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Um Cordeiro Para Andrea (Boca Santa - 2. Caralho)

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Um Cordeiro Para Andrea é o segundo livro da BOCA SANTA. É o caralho. E é cria de Maria Ribeiro e Mario Neto. Conheça todos os palavrões e livros e tudo da BOCA SANTA: www.boca-santa.com

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PARTE ÚNICA Ano. 1923. 23 é uma dupla dezena so-mada a três unidades. Um, dois, três. A santíssima trindade. 23 é um número. Ímpar. A exata medida da incongruência. Pai, Filho e o Espírito. A ungida e volátil esperança de ser nem um, nem dois. Mas três. Eu, aquele e nós. Desatados desde o primeiro ato. Desde rompida a boca do lastro. Desde sabidos tronco e orifício. Ár-vore. Desde crentes. Crer é, senão, o en-dereço do desespero. Creio carne por não ser além de vísceras, lâminas de gordura e o regurgito de Cristo. Folha primeira, livro da Vida. Em 1923, os homens de Lenísia. Bendizer, os meninos, amantes e futuros maridos de Lenísia foram gado e crentes no território, enviados para a guerra. Maldizer, mortos todos. Um a um. Uma a uma. As mulheres desfeitas em lágrimas, úmidas, água. Um padre, An-drea Pierangelo, apontado esteio, barra-

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gem: represar a dor ensaiada de mulheres nascidas esposas. Abigaelle, uma senhora francesa germinada seca, embora mulher, lavada. Eleonora, a mãe do vigário. Um leito em comunhão consigo. Um vigário encharcado. Felipe, o esquilo. O nome dá à coisa aquilo que a coisa não dá a si: existência. O episódio narrado, admita-mos, é cinza. Enquanto houver quem so-pre, haverá enciclopédia. Enquanto hou-ver quem inale a cinza, haverá história.

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Rescrito Papal Aeterna Dei Sapientia

Do Sumo Pontífice Gregório IV aos veneráveis irmãos, patriarcas, pri-mazes, arcebispos, bispos e outros ordinários do lugar, em paz e co-munhão com o Evangelium Vitae

Sobre o conhecimento da verdade e a restauração do sacramento ma-trimonial

Ocupando a Cátedra de Pedro, e respondendo ao chamado da Divina Providência, aclamamos os excelsos registrados no Livro Sa-grado. Os últimos acontecimen- tos, transcorridos na província de Lenísia, alcançaram o Santo Epis-copado. O Concílio Ecumênico, em comunhão com o romano pontífice, designa o padre Andrea Pierangelo para restauração do vínculo entre o

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poder de Deus e nossas irmãs. Que o seu ministério reconheça o juízo pronunciado pela sé apostólica e edifique a fé entre as concidadãs enlutadas, fazendo-as declarar fide-lidade aos deveres diocesanos. On-de quer que Cristo seja nomeado haverá de prevalecer Seu funda-mento, todos e de modo pleno, as-sim, crescei e multiplicai-vos. Cabe ao homem o batismo das coisas e, desconhecida designação qualquer, deverá ele próprio cuidar para que cada grão de areia seja cunhado como tal. Nome e coisa, uma só carne. O homem e a mulher. Desde que perseverantes na oração e im-plorantes pelo perdão do Pai, esta-rão as viúvas livres para contração de novo laço matrimonial e o exer-cício cotidiano da vida. A guerra, tendo dizimado os homens de Lení-sia, ensina-nos que a universalida-

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de do pecado é concomitante à uni-versalidade da salvação.

Na comunhão com Deus. A todos vós, caríssimos, com a mi-nha benção. Dado em Roma, junto de São Pe-dro, aos sete dias do mês de abril, primeiro domingo do Advento, no-no do meu Pontificado.

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Instalar-se na pensão de Abigaelle

Há uma semana, o padre Andrea des-perta estranhando a mobília. O sabão or-dinário, esquecido sobre o ralo da pia, evapora um cheiro de louça ajardinando. É preciso borrifar lavanda sobre os len-çóis. É preciso comprar lavanda e um pouco de goma. É preciso encontrar um barbeiro competente e agora um barbeiro. O barbeiro está morto. Os lençóis estão puídos. Então, salta da cama e logo des-mancha as remelas com golfadas de água fria, lava as narinas, escarra o equivalente a um botão médio, o bochecho é uma ta-lagada de Porto e fios de cabelo são pen-teados com excitada devoção. É preciso

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mandar instalar um toucador, boas esco-vas macias, um xarope, um borrifador, toalhas quentes, loção e deve bastar. Um barbeiro enviado ao campo de batalha, Senhor, que desvario. O cabelo é um es-tado de atenção, o que faz do barbeiro um oficial de altíssima patente. Andrea es-preme o semblante e repete: do Filho, do Espírito Santo, Amém. Do Filho, Espírito Santo. Amém e eis a Trindade. Onde está o envelope? A carta da mãe. O envelope. Um punhado de ameixas doces desman-cha sob o abajur e, antes de consumi-las uma a uma, Andrea engole a pasta num susto, feito dois militares flagrados em meias de nylon.

No andar de baixo, a cozinha é o apito

de panelas cuspindo vapores, o ruído agudo de talheres enxaguados aos trios, a marcha ininterrupta de tamancos e chine-

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las. A culinária é uma forma de agencia-mento político e engraxa com azeite o cuscuz marroquino. Os pistilos de aça-frão? Pela hora da morte! Nunca sem mel, noz-moscada e farofa de cravo. Três colheritas são como a visita do arcanjo. A dona da pensão era natural de Chamonix-Mont-Blanc, bastante francesa, branca e magra, como supomos os franceses ou deveríamos. Chamava-se Abigaelle, em-bora os empregados preferissem Abigor-naelle, em razão do pendor para intermináveis manifestações de engaja-mento gastronômico e circunlóquios sobre práticas curativas. Agora, tomam-nos os pistilos, logo não melo as panquecas e, no intervalo de uma piscadela, meu paladar inteiro. Teu muco como anda? Gengibre, padre Andrea. Nos dedos em V, um talho molhado em bicarbonato e sorver, sorver, sorver. Como um bebê faminto. Abigaelle

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cumpria o desígnio de secos e molhados, sendo, ao mesmo tempo, deserto e en-chente, penúria e abundância. Quando um hóspede avança pelo portil, reclamando o tamanho da ração, Abigaelle detém o re-clamante com severa brandura. O mingau esfria na tigelinha. Anfibigaelle, pensa Andrea, enquanto um sorriso rouba-lhe a baba derramando migalhas. No braço que iça a colher até a boca, sente a interrup-ção de uma enxada. Prove, antes, meu açúcar mulatinho, Santíssimo. Duas pita-das de um poema. Tendo hesitado o pa-dre, continua a mulher, vamos, vamos. E, com tapinhas no ombro, pastoreando o paladar de Andrea: duas pitaditas e não se demore. Um suspiro a menos e apoucamo-nos.

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2 Novo desjejum:

lamber e mordiscar Às 9h45, outra vez e todos os dias,

vestindo a batina como um cego o faria, Andrea dirige o imenso volume para den-tro do mesmo estabelecimento na rua dos Komatsu, sacudindo uma bolsa inflada de moedas. Elas tilintam, nunca mais do que duas vezes, e uma garçonete ruiva debuta alegre em cavalgadas. As tortilhas, abebe-radas no caldo de linguiça defumada, são acompanhadas por generosos punhados de guacamole e tiras finas de pernil tor-rado. As geleias ombreiam-se na bandeja, sempre da mais clara para a de amora. Pães, desde que integrais e salpicados com sementes de coentro, seguem empi-lhados, ao lado do antepasto de berinjela

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e meia porção de abacate com curry. Uma chávena de café fervente incensa o lugar e o comensal arfa cada vez que a colher mergulha na porcelana. Quando a concha faz estalar o fundo vazio da xícara, a en-carregada ensaia um aplauso e a garço-nete, repetindo aquelas passadas de pônei novo, irrompe no salão. A moça abando-na um bolo inteiro, de banana e bem me-lado, metendo-se debaixo da mesa e levantando a veste do padre e compri-mindo aquelas coxas esparramadas e amassando as articulações e alisando as varizes e dobrando o tornozelo e quase espancando a planta de dois pés sem ta-manho. A criada é pesada também, pesa-díssima, como toda a cidade, e do couro cabeludo avermelhado nascem gotas es-pessas, cujo lustro lembra um pingente de oliva. A encarregada, a quem tudo parece repugnante, considera correr até as persi-

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anas a fim de laçar um instante de vento. Ainda que suas pernas roliças fossem o meio e o obstáculo. Revigorado, o sacer-dote dá a espremer, intermitente, o indi-cador contra o polegar. O estalido aciona a garçonete que, escapulindo para a su-perfície, saca do avental uma caixa de madeira. O objeto, acomodado na altura da orelha do presbítero, tem a tampa reti-rada com a prudência cirúrgica de quem opera a baleia à procura de Jonas. As castanhas portuguesas recém-assadas so-pram um cheiro doce, de baunilha, canela e mesmo um ateu rezaria com os olhos afogados. A redonda santidade mordisca o fruto, molda-lhe as pontas, gira a casta-nha viscosa no buraco da boca. A moça vai e volta equilibrando um copo de anti-ácido até que, ao meio-dia e nenhum mi-nuto, as portas do restaurante explodem em operárias, donas de casa, a jornaleira,

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a velha cocheira e um bando de jovenzi-nhas da Escola Normal.

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Sobre ser Abigaelle uma mulher castrada

O telefone é ainda um privilégio, daí a proprietária eleger o toque adocicado, de nome Provençal. Enquanto instala o aparelho, o mascate explica que a flauta, um tubo oco, sim, com orifício para o so-pro. Um tubo oco, desabitado, não? Pois ventamos para dentro do nada e música. O tapeceiro, que Deus o receba em Sua morada, ofereceu-me um bordado uns dias antes de. Bem. Deus, Ele mesmo, so-prava para dentro de um rapaz nu, com-preende, assim, pendido para o lado, mas o tecido não aparentava boa qualidade. Que bonito, não? Deixe-me anotar: pois ventamos para dentro do nada e música.

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Os dedos tapam e destapam e as notas crescem às fileiras, tal e qual uma des-cendência de feijões alinhados sobre tufos de algodão. Os dedos tapam e destapam e a melodia muito serena e que belíssima escolha e que escolha terna diante dos acontecimentos. Os pés de feijão são ali-nhados sobre tufos de, deixe-me anotar. Abigaelle finge dar de ombros, afinal, aqui um telefone e não uma peça de leilão ou a encenação de Die Zauberflöte, salvo a ladainha do ambulante deixar escapar certo brilhantismo. Na estação de rádio, urubus e capivaras dividem o condomí-nio. As enlutadas oram sibilantes e, durante a assembleia, mulher alguma indicou interesse pelo bondinho. As pol-tronas aveludadas do cabaré assistem a tipografia derramada de folhas de jornal ociosas. Noutro tempo, o sentar das ur-gências masculinas e já os gemidos úmi-

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dos são o esqueleto de um camelo. O ci-nema, um acampamento de baratas e a jornaleira teria visto a velha cocheira es-condendo em casa o projetor e a máquina de pipocas. Na farmácia, a agonia da vés-pera carregou todos os sedativos e, diante da falta, o mutismo foi declarado a mais nova terapêutica. O desvairado, o patru-lheiro, o marceneiro. A matraca, a moto-ca, o martelo. Uma coroa de flores negras decora a prefeitura e não é ouvido o cos-tumeiro alarido de cartões de ponto. To-dos os homens mortos e morremos desde quando morreu o primeiro homem, de modo que qualquer lamento é platitude.

A dona da pensão medita sobre o as-

sunto. De uma ponta a outra, a cidade mede a distância de um arremesso. A tristeza toma nota de tudo e não há esca-patória. Recensear, recensear, recensear,

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cochicha consigo mesma. O rejeitado e sua cerimônia classificatória: um cigarro fumado às pressas, certa cortesia protoco-lar, o tíquete do teatro, a cursiva elegante e as direções de um endereço, o prato gi-rando na radiola, hearts will play tippy-tippy-tay like a gay tarantela, os escânda-los masturbatórios desde lábios roçados, a taça do melhor sorbet de pistache, o es-trado da cama em agonia, os olhos fisga-dos pelo teto, um cheiro de anis, pedaços de torta de avelã e dedos lambidos entre gargalhadas. Uma carta recebe o espirro de um perfume familiar, alcançando o destinatário finalmente reconhecido. “Eu te amo” é, senão, a confissão de perma-nência: “eu estou aqui e, no lugar onde você está, a minha escolha”. O serviço do jantar contando galheteiros, guardanapos dobrados e ferramentas especiais para moluscos. Há sempre uma das mães, de

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fato ambas, atarantada com os trajes, o alinho dos empregados (são sempre um ornamento distinto, embora quem traba-lhe seja o anfitrião), a toalha com tecido decorado, o copo borgonhês não, oras, que os mouros usam-no para leite de be-zerro, prato pequeno, onde serviremos o pão, claro, o trazido da Bavária, onde es-tá, mas que falta de apuro! E durante, um ou outro pai, vestido e escovado desde a tardezinha, estuda em pé. Sem um átimo de convicção, o volume intitulado A Des-comunal Rota de Vinhos da Alsácia é fo-lheado com a crença íntima de que “descomunal” melhor caberia para Viña del Mar, Valparaiso e outras regiões das Américas. Sopra a mão em concha desco-brindo um odor viciado e continua de si para si. Está certo que o pai interlocutor, ao qual chamaremos pai convidado, pode não saber do que se trata e convém certi-

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ficar-se sobre Cocha y Toro ficar na Ar-gentina, no Chile ou Brasil e melhor mesmo não chamá-las “das Américas”, mas “paragens euroandinas”, à exceção do Brasil, evidente. Não carregasse um filhote de galgo afegão, embrulhado em fita verde, ofereceria o noivo seu braço à mãe convidada. Não carregasse o próprio desconforto, o mesmo que dá a curvar a cervical e confere ao homem um ar de cabide, o marido teria oferecido à mulher afetada o mesmo apoio reservado à espo-sa jovem do comendador Simas, cujas curvas, as da esposa, terieam sido dese-nhadas com um compasso.

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O mascate deu a instalação por termi-nada, bem como sua colheita de verdades a golpeadas, aquelas todas dedicadas ao escrutínio da condição humana. VERDA-DES A GOLPEADAS. Reforçou letra a letra com tamanho alvoroço que a mão canhota borrou as primeiras garatujas. O homem vinha do mundo filosófico, ali on-de a resposta só faz mesmo agitar o ócio de novas perguntas, e o desastre pareceu-lhe um prenúncio. ▬ A GOLPEADAS ha-via preservado o que de fato tece a vida. Que estupidez, compreende e pensando consigo, ignorar a foice apoiada nas nos-sas costas. Deus não é o Flautista Miseri-cordioso. Deus é o Agricultor Enfastiado, desde o início do Universo dedicado a mesma operação: arrancar-nos o joio ao custo do nosso próprio desconsolo. Um vago incômodo correu-lhe o corpo todo e a blasfêmia resultou em uma tosse mo-

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lhada. Dentro de alguns dias o bacilo abrirá pequenas cavernas no pulmão do mascate. O corpo franzino, contorcendo-se a maneira de um fósforo aceso, repeti-rá tantas vezes o nome Dele que a sequência dará no enigma: usdeusdeus-deUSDEUSDEUSDEUS! Será noite quan-do um gato, faminto e acorcovado, lamberá a última gema de sangue explo-dida sobre o leito mortuário. Para aquele animal doméstico, o trigo.

Abigaelle lembrou-se do galgo Fiódor.

Lembrou-se da mãe, envelopada no velho chiffon turquesa, bufando uma indignação falsamente controlada. O pai, mal dri-blando as investidas do filhote, sapateava desconcertado à frente do pai convidado, um enólogo titulado e com hálito agrido-ce. Ele dizia grenache, syrah e mour-vèdre, com a malícia dos que esvaziam as

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economias públicas. Não, não como um gatuno. E apertou o pulso. Com a desen-voltura zombeteira de quem finge diálogo quando, de fato, estufa a própria existên-cia. A lenha crepitava na lareira e um pe-daço de pau, muito curto, fazia crac. Crac. Que fiasco. Crac. Peça à copeira que traga o café e simule um bocejo. Crac. Allons enfants de la Patrie. Le jour de gloire est arrivé! Contre nous de la tyrannie. L´étendard sanglant est levé. Crac. Bis. Crac. Allons enfants de la. Crac. Que pe-nalidade senhor tão notável ignorar o francês. Crac. Os empregados coaxam na cozinha, enquanto a honra do anfitrião mosqueia trôpega. Crac. Baixe as calças e sugira um duelo de genitálias. Crac. Por Deus, homem, reaja. Crac. Crac. Crac. O jantar foi uma ópera. Apenas os talheres e a madeira, além do enólogo solista, alcan-çavam o tom de uma nota. O pai de

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Abigaelle recusava. A alegria do cão, es-tourando em saltinhos. A esposa enfastia-da, metida no desgaste do vestido. A audácia daquele que comia e bebia e ha-via visitado Viña del Mar ao lado da jo-vem companheira do comendador Simas, semanas antes de casar-se com uma mu-lher silente, memorável como uma lâm-pada queimada, não bastante ter sido nomeado grão-sommelier da Château Lafite Rothschild.

O telefone tocou e os pensamentos de Abigaelle partiram em revoada. Bambole-ando a cabeça no ritmo do toque, o mas-cate exibia a feição de um demente. A dona da pensão sentiu pena quando o chateação das últimas memórias juntou-se à visão do homem capturado pelo as-sobio do aparelho. O pai e o mascate da-vam-lhe náuseas. Náuseas de natureza

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semelhante àquelas experimentadas pelo abandonado ao rememorar o primeiro beijo. Todo primeiro beijo é uma viagem ao estrangeiro e o retorno. O retorno, um naufrágio. Vamos! Atenda! Sob a som-bra espessa da véspera, o pobre homem anunciou: Madame Abigaelle, o assisten-te do Santo Pontífice chama pelo padre Andrea Pierangelo.

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Felipe: um esquilo espadachim

O padre Andrea não soube dizer se embrulhos dourados ou os arroxeados e a indecisão é mesmo uma lástima. Com a testa estirada para longe dos óculos, e contando mil viúvas, o sacerdote move sua indeterminação estética para dentro da sacristia. O coroinha, cujo diminutivo não atenua um micromilímetro o porte de estivador, sacode os ossos da mão contra a porta. Andrea escorrega uma camada densa de ovos nevados sobre o naco de pão integral. A es-pu-ma das e-ge-i-as en-gri-nal-dan-do Cre-ta. Está acontecen-do agora, veja. A cena é de fato lindíssima e Andrea exibe domínio celestial sobre a técnica. Mas a pasta doce mingua antes

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da borda e o padre julga a intervenção um fracasso. A espátula penetra de novo as claras batidas, lambuzando ambas as faces com o creme mole. Assim, a espuma das egeias engrinaldan-. O coroinha tor-nou a estocar a entrada e, imediatamente, outra vez. Um único estampido alcança, num esguicho, as orelhas do padre. Seu pescoço enterrado desliza para fora do colarinho e, ó!, aquilo está mesmo aconte-cendo. Deve ser Felipe, balbucia Andrea. Felipe é um belo nome, embora um tanto libidinoso para aquele que acende os cí-rios. São Felipes, por exemplo, os esqui-los. Esquilos são bons Felipes quando um Felipe é aquele que põe o fruto de joelhos, que desfaz a linha entre o dente e a carne. Entre. Felipe. Entre.

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Felipe abre a porta. Atrás de si, o ras-tro sonoro. A algazarra de plaquinhas de metal entalhadas com os nomes dos de-funtos. Dante Américo Myga, marido es-timado, descanse. Luis Dias Rebello, meu filho, meu filho. Antal Gancz, um esquife de pinho, um Danúbio. Marcelino Freire, não volte. Martím Baldo, condolências da Companhia Elétrica de Lenísia. Os soluços das devotas colam-se ao calcanhar do menino. O coice discreto, imitando um espasmo, desgruda os ruídos e Felipe tro-peça para dentro da câmara sacerdotal. Torrõezinhos de açúcar imergem na xí-cara de café. Sirva-se, Felipe, ordena Andrea. E o esquilo sacode a cabecinha, acanhado, como quem diante do Espírito Santo luta contra uma coceira nas partes. Carrega uma carta e dispensa um gole de café, Felipe, a redação haverá de acalmá-lo. O padre entrega ao coroinha almaço,

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lápis e, ditando, lavanda, goma, toalhas, noz-moscada, batatinhas, alecrim fresco, rodelas de pernil, seis, não, oito. Felipe treme a letra na tentativa de fazê-la arre-dondada e aquela missiva, ali, sobre a mesa, tem a força de um rinoceronte cho-vendo aos pedaços. Andrea era também moço quando diante do espelho a batina desceu o decreto. Estamos quase termi-nando, murmura o padre. Manteiga, se-mentes de mostarda, toalhas, confira, toalhas são importantes. Ordenou-se aos quase trinta, alguns anos passados desde a mãe tornada carcaça. A mulher deixou papéis e um molar de ouro. No desenlace, para abreviar e porque abreviados sere-mos todos, arrotou um melodioso livre, LIVRE, antes de congelar a boca aberta.

Num dos cadernos de Eleonora, lemos:

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“As mulheres que conheço são santas. Medem as arestas das palavras e usam frases curtíssimas. Sobem as meias até os quadris e decoram uma dúzia de vocábu-los em outro idioma. Acendem uns men-tolados finos, às escondidas, e gargarejam com água de colônia. Cruzam as pernas ave-santíssima, rindo baixinho, aos pe-quenos solavancos. Não bebem cerveja e nunca suam de dia. As mulheres que co-nheço doam o troco da lotação e não bai-xam a roupa nos becos. Recusam todos os goles depois do comércio fechado. São hábeis nas coisas da linha e da agulha, tem as unhas polidas, são asmáticas e preferem suco de frutas. Colecionam re-cortes sobre a Índia e desejam pavonear em sáris coloridos, mimando crianças es-curas. As mães das mulheres que conheço são mulheres conhecidas e exibem beleza

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imprevista. Andrea, meu filho, há poucas mulheres como eu.

Curioso caso de Cais do Sena, distrito

onde nasci. Ocorre que o vigário, insatis-feito com a horda de meninas brancas que ordenhava charutos atrás da igreji-nha, achou bom plano pastoreá-las para a missa. Antes mesmo da Eucaristia, quan-do celebramos o sacrifício do corpo e sangue de Jesus, estariam as moças in-cumbidas da limpeza dos bancos, da troca de flores, dos bules de chá e de bolinhos assados, pouco importando o sabor ou qualidade da massa. A beatada com mais de sessenta invernias rebateu o desígnio do ministro de Deus. Expropriadas das atividades pré-sermonárias, desobrigadas do sair cedo de casa, viram-se minutos a mais condenadas à missa de corpo pre-sente, diária e com maridos vivos. Às seis

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primeiras horas da manhã, quando o sino badalava vigoroso, nada do coro de boce-jos juvenis. Impávidas, as donzelas-co-risco corriam com os últimos vasos e bandejas de porcelana. Os tubinhos diges-tivos virginais estariam a salvo dos perdi-gotos caudalosos de biltres pagãos. O primeiro desenho de luz no céu. Homens que brotam das calçadas em direção à repartição deverão procurar mulheres outras que não as santas. Mulheres costu-radas por cegos, todo acabamento apa-rente. Tratadas por ‘senhoras’ desde a adolescência, indo e descendo em taman-cos emprestados. Mulheres que se coçam em público e esquecem os pelos aos tufos, os lábios rochosos, os cabelos rebelados. As mulheres outras, Andrea, têm as eco-nomias espatifadas contra espelhos esti-lhaçados e contas enciclopédicas na mercearia. Mijam de cócoras na quarta-

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feira de cinzas e jantam enlatados com pão doado. Empregam-se dia sim, dia sim, dia não, quando são logo atiradas no passeio público por fumarem filtro verme-lho. Os grandes lábios são colossais e encobertos, apenas, pelos pequenos. Ma-mam dengosas cacetas conhecidas, foras-teiras, febris ou amaldiçoadas. Preferem calças compridas, bebida muita a de qua-lidade e fossem animais seriam nunca coisa diversa de tarântulas ou répteis es-camados. São mulheres outras as acabru-nhadas nas quinas dos lugares, as ainda invisíveis debaixo de luz incandescente, as que não se espantam com a porta esmur-rada alta madrugada. As mulheres outras são pênseis, sempre sacudidas daqui para lá (e nunca o contrário), escapadas para dentro da última dose, do cigarro aceso e dos olhos marejados. São sempre abcesso rompido, drenado ou potencial”.

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Compreenda, Felipe, para que servem as toalhas. Somos úmidos por natureza. As excrescências. Não excretássemos e nossa alma nunca besuntada, creia, é co-mo é. Por isso tantos os escorregões, as quedas. A extensão da queda. Caíram Adão e Eva. Caíram e agora arrastam a humanidade para baixo. Deus é uma Toa-lha. E nós. Bem, por isso suamos. Eu era jovem. Uma fonte, Felipe. Mostarda. Mos-tarda e laranjas, boas para a digestão. O coroinha, simplesmente, não compreendia e seu focinho pareceu sofrer o ataque de formigas. Os olhos fixaram-se sobre a le-tra “M”. Mostarda. Mario. Poderia criar cavalos e usar um chapéu amarelo, sim, seria possível. E caminhar sobre a folha-gem, o orvalho, puxa vida, seria possível. Ele gosta de cavalos e tem pés bonitos, pensou Felipe. Andrea viu aquele animal empalhado. Já não é mau. O que diz a

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carta, Felipe, leia. Então, estão todos pre-ocupados. As mulheres de Lenísia redigi-ram um ofício, assinaram e. Mas não morreu o mensageiro? Parece que a se-nhora Abigaelle entregou o documento ao mascate e. Anfibigaelle. Desde que o se-nhor chegou, desculpe-me, mas. O que querem? São mulheres, oras. Sim, senhor, desculpe-me, mas é o seu rebanho e. Ó, Felipe! São mulheres, são úmidas! Expe-rimente estancar um braço de rio com uma toalha e entenderá o que digo.

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Na borra do café, um velho com os olhos costurados. Andrea não pede permissão a Deus para falar consigo. Do que se trata, afinal? E com um pedaço de grafite, pre-parando o engenho das ideias para a úl-tima moagem. Homens varridos para fora. O Santo Papa e a sagrada comu-nhão. Felipe. A extinção do mascate. Um assassínio? usdeusdeusdeUSDEUSDEUS-DEUS! Eleonora, minha mãe. Abigaelle. As únicas mulheres nomeadas são fissões conciliatórias. Do que se trata, afinal?

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Maria Ribeiro (São Paulo, 1979). Seu Ópera-balé participa da antologia Maus Escritores (Demônio Negro, 2009). Seu Açúcar Mulatinho, da antologia Gran-ja (Casa Impressora de Almeria e A Ofici-na do Santo, 2012). Um Cordeiro Para Andrea é sua primeira novela. Mario Neto veio da fronteira. Da inaptidão em escrever passou a ilus-tração mantendo o uso da esferográfica como vingança. Possui produção bissexta que associada à procrastinação crônica torna quase impossível a publicação do seu trabalho.

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UM CORDEIRO PARA ANDREA Carniceria Livros A Oficina do Santo texto: Maria Ribeiro desenhos: Mario Neto edição: Luis Rafael Montero projeto gráfico: Carniceria Livros João Gabriel Monteiro revisão: Carniceria Livros

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BOCA SANTA idealização: Luis Rafael Montero realização: Carniceria Livros A Oficina do Santo design: Juneco Martineli João Gabriel Monteiro fotos e vídeos: João Gabriel Monteiro Felipe Schürmann Vinicius de Oliveira A Oficina do Santo programação do site: Guilherme "Nabo" artistas: Juliana Amato, Mariana Coan, Raphael Gancz, Fernanda Grigolin, Carolina Krieger, Isadora Krieger, Lobot, Pedro Mattos, Daniel Minchoni, João Gabriel Monteiro, Luis Rafael Montero, Mario Neto, Nelson Provazi, Maria Ribeiro, Felipe Valério.

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