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Um intelectual no reino de Alejo Carpentier: análise crítica de Los pasos perdidos Por Wanessa Cristina Ribeiro de Sousa Tese de Doutorado submetida à Banca examinadora como requisito necessário para obtenção do Título de Doutora em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos-Literaturas Hispânicas). Orientadora:Profª. Doutora Mariluci da Cunha Guberman Co-orientadora: Profª. Drª Beatriz Ferrús Universidade Federal do Rio de Janeiro/ UFRJ 2016/1

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Um intelectual no reino de Alejo Carpentier: análise crítica de Los pasos

perdidos

Por

Wanessa Cristina Ribeiro de Sousa

Tese de Doutorado submetida à Banca examinadora como requisito necessário para obtenção do Título de Doutora em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos-Literaturas Hispânicas). Orientadora:Profª. Doutora Mariluci da Cunha Guberman Co-orientadora: Profª. Drª Beatriz Ferrús

Universidade Federal do Rio de Janeiro/ UFRJ

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Um intelectual no reino de Alejo Carpentier: análise crítica de Los pasos

perdidos

Por

Wanessa Cristina Ribeiro de Sousa

Tese de Doutorado submetida a Banca examinadora, como requisito necessário para obtenção do Título de Doutora em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos-Literaturas Hispânicas). Orientadora:Profª.Doutora Mariluci Guberman Co-orientadora: Profª. Drª Beatriz Ferrús

Universidade Federal do Rio de Janeiro/ UFRJ

2016/1

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À minha vó Zizinha: Quem sempre me apoiou em todas as

decisões, ainda que nem sempre tenha compreendidos todos os meus motivos.

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Agradecimentos

“Para mim só um grande, um profundo, E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,

Um supremíssimo cansaço”

Álvaro de Campos

Para mim a sensação é de tarefa cumprida, ainda que inconclusa, pois

uma das coisas que aprendi com a leitura crítica de Los pasos perdidos e do

Diario de Alejo Carpentier é que este romance nos faz perder os passos para

que encontremos a cada leitura um novo caminho de observação. Aos demais,

registro aqui meus agradecimentos.

Agradeço primeiramente à Coordenação de Aperfeiçoamento de

Pessoal de Nível Superior (CAPES) e à Fundação de Amparo à Pesquisa do

Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). A subvenção financeira oferecida

possibilitou boa parte do desenvolvimento da pesquisa bibliográfica em solo

brasileiro e a ampliação dos horizontes acadêmicos no período de Doutorado

Sanduíche na Universidade Autonôma de Barcelona.

Agradeço também a Rede de bibliotecas públicas da Catalunha e de

Madrid, pela eficiência no atendimento das minhas necessidades como

pesquisadora; à Biblioteca Nacional da Catalunha que me recebeu de braços

abertos, sempre dispostos a me fornecerem o suporte necessário para o

desenvolvimento da pesquisa; à Biblioteca Nacional da Espanha, pela

grandiosidade do acervo oferecido aos estudantes e à Casa América

Catalunha, especialmente a Cristina Borrás, que se solidarizou com minha

busca bibliográfica adquirindo para o acervo da instituição o Diario (2013) de

Alejo Carpentier. Publicação que me rendeu uma reestruturação na presente

tese.

Impossível deixar de registrar meu agradecimento à Profa. Dra. Mariluci

da Cunha Guberman, minha orientadora, uma pessoa de extrema significação

em minha vida acadêmica e pessoal. Quem me forneceu o apoio bibliográfico,

teórico, pedagógico e humano para converter uma afinidade literária em um

trabalho sério e de relevância para a atividade acadêmica. Agradeço também à

Profª Drª Beatriz Férrus, minha co-orientadora, quem me acolheu em minha

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curta estada na Universidade Autônoma de Barcelona. Uma pessoa sempre

solícita e equilibrada em suas observações.

À Profa. Dra. Leticia Rebollo pela dedicação em todas as aulas e pelo

reconhecimento e respeito do meu trabalho como pesquisadora; À Profa. Dra.

Cláudia Luna por seus questionamentos sempre pertinentes, pelo brilho nos

olhos ao observar meus progressos pessoais e profissionais; ao Prof Dr Víctor

Lemus pelo incentivo e por entender que meu maior interesse era o meio do

caminho e não a estação final; ao Prof Dr. Fernando Castro e ao Prof Dr

Eduardo Coutinho por me incentivarem a sempre “pensar fora da caixinha”; ao

Prof. Dr Antônio Ferreira por estar sempre disposto a compartilhar suas

experiências e seus conhecimentos e a todos os docentes desta Universidade

que, direta ou indiretamente, contribuíram para o meu desenvolvimento

acadêmico.

Agradeço também aos meus professores da Educação Básica,

especialmente, longe de ser exclusivamente, à Célia Lucia, Fernando Pimenta

e Kátia. Por todo o esmero em oferecer o melhor para minha formação como

pessoa e estudante; por serem exemplos de resistência diante de um sistema

educativo reducionista que faz com que o professor espere cada vez menos de

seus alunos. Obrigada por exigirem o meu melhor, por me fazerem pensar, por

não me conformar com minha realidade pessoal e social, por contribuírem com

o meu desenvolvimento como cidadã do mundo. Capaz de empreender

mudanças e de sempre estar disposta a apresentar o melhor de mim.

Agradeço a minha mãe Zildinha, minha avó Zizinha, meus afilhados,

meu marido Clauder. A todos da família Ribeiro e Sousa e aos amigos, alunos

e colegas de profissão que sempre se fizeram presentes. Que entenderam

minhas ausências, inseguranças, explosões e os, surpreendentes, momentos

de silêncio ao longo desses conflituosos anos de pesquisa. Por discutirem

comigo a respeito da obra, por aguentarem a leitura em voz alta, os e-mails

pedindo opinião sobre a escrita, a coerência; que ajudaram a controlar o “índice

de sonolência” das minhas análises; suportaram o choro; o fuso horário durante

o período em que estive na Espanha. Ah, agradeço também ao meu cãozinho

Woody por, mesmo durante sua “filhotice”, saber ser companheiro em meus

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longos momentos no claustro do escritório e por me tirar de lá nos momentos

em que era necessário respirar para voltar a analisar.

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RIBEIRO DE SOUSA, Wanessa Cristina. Um intelectual no reino de Alejo Carpentier: análise crítica de Los pasos perdidos. Wanessa Cristina Ribeiro de Sousa – Rio de Janeiro: UFRJ, 2016. 166 fls.: il.; 30 cm. Orientadora: Mariluci da Cunha Guberman.Co-orientadora: Beatriz Férrus Tese (Doutorado) – UFRJ / Faculdade de Letras / Programa de PósGraduação em Letras Neolatinas, 2016. Referências bibliográficas: 166fls. 1.Identidade. 2. Literatura de viagens. 3. Romance. I. Guberman, Mariluci da Cunha. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas. III. Título. Um intelectual no reino de Alejo Carpentier: análise crítica de Los pasos perdidos.

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RIBEIRO DE SOUSA, Wanessa Cristina. Rio de Janeiro: Um intelectual no reino de Alejo Carpentier: análise crítica de Los pasos perdidos. Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas (Estudos Literários-Literaturas Hispânicas), Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro 2016. Tese de Doutorado, 166 fls.

Resumo

Estudo crítico da obra Los pasos perdidos escrita pelo autor cubano Alejo

Carpentier. Objetiva apresentar o romance não como uma autobiografia, mas

sim como uma representação do modo como Carpentier coloca sua realidade a

serviço da narrativa. Para tanto, se desenvolve o levantamento da problemática

da representação da identidade latino-americana com o apoio teórico de Martí

(1983), Rojas Mix (1991), Anderson (2008) Bethell (2009) e Hall (2011) e a

análise do gênero relato de viagens e a trajetória do intelectual do século XX

tendo em vista os estudos de Malinowski (1978), López de Mariscal (2007) e

Pratt (2011). Tais pontos fundamentam a análise de Los pasos perdidos. A

relevância dessa análise se deve à conjunção harmoniosa entre o estudo do

contexto histórico cultural vigente na primeira metade do século XX, o Diario de

Carpentier e o discurso sustentado na representativa obra, publicada em 1953,

no qual o autor cubano arrola as seguintes instâncias: redescoberta,

construção e representação da identidade latino-americana como estratégia

que convida a reflexões sobre o outro.

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Resumen

Estudio crítico de la novela Los pasos perdidos escrita por el autor cubano

Alejo Carpentier. Objetiva presentar la novela no como una autobiografia, sino

como representación de la manera como Carpentier pone su realidad al

servicio de la narrativa. Para esto, se plantea la problemática de la

representación de la identidad latinoamericana con el apoio teórico de Martí

(1983), Rojas Mix (1991), Anderson (2008), Bethell (2009) y Hall (2011), el

análisis del género relato de viajes y la trayectória del intelectual e el siglo XX

teniendo en cuenta los estudios de Malinowski (1978), López de Mariscal

(2007) y Pratt (2011). Tales puntos fundamentan el análisis de Los pasos

perdidos. La relevancia del análisis se debe a la conjunción armoniosa entre el

estudio del contexto histórico cultural vigente en la primera mitad del siglo XX,

el Diario de Carpentier y el discurso sostenido en la representativa obra,

publicada en 1953, en la cual el autor cubano, relaciona las siguientes

instancias: redescubrimiento, construcción y representación de la identidad

latinoamericana como estrategia que invita a reflexionar sobre el otro.

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RIBEIRO DE SOUSA, Wanessa Cristina. Rio de Janeiro: Um intelectual no reino de Alejo Carpentier: análise crítica de Los pasos perdidos. Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas (Estudos Literários-Literaturas Hispânicas), Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro 2016. Tese de Doutorado, 166 fls.

Abstract

Critical study of the work The Lost Steps written by the Cuban author Alejo

Carpentier. It has as objective to show the novel not as an autobiography, but

like a representation of the way as Carpentier shows the reality to service of the

narrative. Therefore, it develops the survey of problematic of representation of

the identity Latin-American with the theoretical support of Martí (1983), Rojas

Mix (1991), Anderson (2008), Bethell (2009) and Hall (2011) and an analyze of

the gender travel report and the trajectory of intellectual of twenty century in

view of the studies of Malinowski (1978), López de Mariscal (2007) and Pratt

(2011) . Such points underlie an analyze of The Steps. The relevance of the

analyze must be the harmonious conjunction between the study of the cultural

historic context present in the first half of twenty century, the Diary of Carpentier

and the discourse sustained in the representative work, published in 1953,

where the Cuban author, lists the following instances: rediscovery, construction

and representation of the identity Latin-American as strategy that invites the

reflection about the other.

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Sinopse

Análise crítica do romance Los pasos perdidos do

escritor cubano Alejo Carpentier. Abordagem da temática

identitária e sua relação com os aportes teóricos da

literatura de viagens e da práxis do intelectual latino-

americano. Destaque para a correlação entre história e

literatura na América Latina na consolidação dos valores

nacionais.

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… resulta que ahora nosotros, novelistas latinoamericanos, tenemos que nombrarlo todo - todo lo que nos define, envuelve y circunda: todo lo que opera con energía de contexto - para situarlo en lo universal

Alejo Carpentier

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO …………………………………………………………………...….15

1ª PARTE : CONTEXTO HISTÓRICO E CULTURAL

I CRIAÇÃO E RECRIAÇÃO NA AMÉRICA ....................................................19

1.1 O percurso de uma nação sob a tutela de um nome………...........…....20

1.2 Para um conceito de identidade latino-americana.................................29

II ALEJO CARPENTIER: UM INTELECTUAL NO REINO DESTE MUNDO ..38

2ª PARTE : A OBRA LOS PASOS PERDIDOS DE ALEJO CARPENTIER

III O RELATO DE VIAGEM: HISTÓRIA E APLICAÇÕES ………………….....56

3.1. O modelo etnográfico e seu meta-modelo…………………………………..57

3.2. Literatura de viagem: aproximações entre o real e o ficcional………....78

3.3. O rio Orinoco e a Selva discursiva de Alejo Carpentier……….…………..91

IV LA SINFONÍA AL REVÉS: CONDUTORES E CONDUZIDOS AO COMPASSO

DO GÊNESIS…………………………………………………...……....................104

4.1. Presença feminina em Los pasos perdidos………………………………..105

4.2. Os companheiros da barca do intelectual de Alejo Carpentier………....130

4.3. Desdobramentos da figura do intelectual em Los pasos perdidos….…143

CONSIDERAÇÕES FINAIS ……………………………………………….……155

REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS ……………………………………….……157

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INTRODUÇÃO

A obra Los Pasos perdidos, do escritor cubano Alejo Carpentier (1904-1980),

foi publicada em 1953 e, segundo o autor da mesma, apresenta-se como uma das

obras mais pessoais e complexas de sua produção intelectual. Assim sendo,

encontra ao longo das seguintes páginas, uma contextualização histórico-

metodológica para embasar a análise literária do romance. Pretende-se oferecer ao

leitor uma análise crítica das principais conexões feitas por Carpentier entre

realidade histórica e pessoal e criação literária.

O estudo que se encontra nas páginas a seguir pretende construir uma

análise que responda as seguintes questões: a) Como se constrói o diálogo entre a

representação das personagens envolvidas nas narrativas e de quais estratégias se

vale o autor para tecer sua história na História da América ; b) Que estratégias

discursivas são usadas por Carpentier para realizar a representação dos vários

perfis que habitaram o continente e quais elementos condicionaram as variações

entre cada um deles; c) Como se dá o encontro entre os representantes da

Civilização letrada e da selva na narrativa de Carpentier; d) Como uma determinada

visão dos acontecimentos se esforça para questionar uma representação da

identidade com os elementos escolhidos.

Para tanto, em cada capítulo da presente tese, encontra-se, inicialmente, uma

breve introdução do tema a ser desenvolvido. A prática descrita no parágrafo

anterior está em consonância com a metodologia que Carpentier, que nesta tese é

objeto central e também embasamento teórico, em seu labor intelectual. Como se

pode confirmar na passagem da pesquisadora Fabiene Viala (2007: 9) que disserta

em seu artigo “Pintando la Historia: narrativa histórica, narrativa iconográfica” a

respeito da narrativa histórica na América Latina: “El escritor-historiador construye

pasarelas entre la conciencia histórica y la imaginación, de entre las cuales la más

palpable es el arte. […] La narrativa en Carpentier se presenta como ' novela con

historia’ ”

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O capítulo inaugural da presente tese está estruturado de uma maneira que

permita ao leitor situar-se no tema do estudo, tendo em vista o embasamento teórico

lido e analisado para a confecção do texto. Inicia-se o primeiro subcapítulo

apresentando um breve panorama histórico-literário desde o período de colonização

europeia na América até meados do século XX. Tais considerações são importantes

para compreender o processo de construção psicológica das personagens presentes

no romance Los Pasos perdidos.

O segundo subcapítulo dá continuidade às discussões a respeito da

nomeação do continente americano ao abordar a evolução de um dos conceitos-

chave na tese em questão: a identidade. Segundo Alejo Carpentier, a questão da

representação de uma nação perante as demais seria a tarefa mais importante de

um escritor latino-americano que produzia seus textos no século XX. Como defende

Carpentier (2003: 205) em seu artigo “ Problemática de la actual novela

latinoamericana”:

La tarea máxima que corresponde al novelista hispanoamericano de nuestra época es la de definir su continente para la humanidad, de manera que su visión del mundo, lejos de ser ruralista y local, también adquiera valor universal.

Ao trabalhar com o conceito de identidade, pretende-se discutir na presente

tese como a representação deste conceito é problemática, temporal e crucial para a

sociedade hispano-americana do século XX. Tal tarefa, no século XX era destinada

aos intelectuais. Diversas publicações, como a citação anterior o confirmam .

Tendo em vista a evolução do conceito de identidade, relaciona-se, no

segundo capítulo, a figura do intelectual delineada ao longo do século XX e o

posicionamento crítico de Alejo Carpentier em sua trajetória científica. Para tanto,

desenvolve-se uma relação entre o conceito de intelectual e as publicações de Alejo

Carpentier tanto no campo teórico-metodológico quanto no cenário literário.

O terceiro capítulo da presente tese oferece ao leitor uma análise alicerçada

em dois conceitos fundamentais: o modelo do relato etnográfico e a forma literária

escolhida no romance de Alejo Carpentier. Antes de tecer a aproximação entre os

dois apresentam-se considerações a respeito dos aspectos formais que

caracterizam um relato de viagem sem dissociar a importância histórico-teórica que

esses escritos possuem na evolução da história e literatura latino-americanas.

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Após associar os escritos técnicos sobre viagens aos conceitos teóricos sobre

a literatura de viagem, o que se encontrará, respectivamente, é uma análise

baseada na aproximação crítica entre as questões discutidas nos itens anteriores e

a obra Los Pasos perdidos. Desde a divisão dos capítulos do romance, estruturação

da ação, escolhas verbais e vocabulares, referências aos mais diversos campos das

ciências humanas e naturais até a associação a dados biográficos do autor.

O quarto e último capítulo da presente tese trata da análise crítica de alguns

personagens-chave da trama: as três mulheres com quem o protagonista se

relaciona, respectivamente, esposa Ruth, Mouche, amante do mundo “civilizado” e

Rosario, amante da selva. Acrescentam-se a figura do Adelantado, quem o conduz

habilmente em sua viagem al revés; a figura do mineiro Yannes e do protagonista da

trama.

Através do levantamento das associações feitas pelo escritor do romance

entre personagens históricas da literatura mundial e sua biografia a presente tese

encerra o estudo da obra Los pasos perdidos discorrendo a respeito do modus

operandi de Carpentier como escritor de ficção com o fim deixar claro ao leitor que

Alejo Carpentier, ao estabelecer a tessitura do texto, arrola as instâncias:

redescoberta, construção e representação da identidade latino-americana como

estratégia que convida a reflexões sobre o outro interior. Assim sendo, ao efetuar a

travessia textual pelas geografias culturais contidas na obra de Carpentier, o leitor

vislumbra a multiplicidade de identidades que congregam o cenário e as

personagens hispânicas através da atividade crítica e criativa do autor cubano.

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1ª PARTE: CONTEXTO HISTÓRICO E CULTURAL

Datas. Mas o que são datas? Datas são pontas de icebergs

Alfredo Bosi (1992)

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I CRIAÇÃO E RECRIAÇÃO NA AMÉRICA

- […] soy de América. - Ah! Dde eso que descubrió Colón

Miguel Rojas Mix

Ao nomear é possível atribuir, além de chamamento, também uma finalidade.

O nome dá fim, delimita, denomina pessoas, objetos, territórios. No entanto, o nome

pode deixar de transparecer essa finalidade ao longo dos anos. Tomemos como

exemplo o vocábulo embarcar. Originalmente tal palavra, apoiada em suas raízes

etimológicas, compreendia o ato de adentrar em uma embarcação1, o que sugere

que esta ação utiliza o mar como meio de deslocamento. Contudo, atualmente, esta

palavra tem seu sentido ampliado e é utilizada em outros contextos. Como exemplo

temos um Guia do viajante encontrado no site de uma companhia aérea. Neste guia,

a palavra embarcar é usada para designar o ingresso na aeronave. Como se vê nas

linhas que seguem:

Sabia que disponibilizamos um guia online para você que vai viajar com a gente? Seja primeira vez ou não, você encontra dicas para que tudo dê certo, da preparação até o desembarque no destino final. Tirando suas dúvidas antes de embarcar, sua viagem fica muito mais agradável!2

Assim como um vocábulo pode ter sua siginificação ampliada e revista ao

longo da história, o mesmo ocorre com as imagens que construímos de nós e dos

outros. Da mesma forma aconteceu com colonizados e colonizadores envolvidos no

proceso desencadeado pelas Grandes navegações europeias, e não apenas com

eles. As idiosincrasias que nos determinam como único e como pertencente a um

grupo compõem a nossa identidade. Assim como os vocábulos, o conceito que na

atualidade chamamos de identidade deve ser considerado sob uma perspectiva que

respeite sua condição de ser provisório, revogável e de ser avaliado segundo o

contexto em que é aplicado.

1 Estrutura flutuante que se destina à navegação. (In AULETE, 2009) 2 Disponível em: http://blog.tam.com.br/tag/primeira-viagem. Acessado em 22/01/2013.

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Com isso, após considerações sobre a tarefa de nomear, apresentar-se-á um

estudo das origens do vocábulo América com base nos estudos de Rojas Mix (1991)

e Bethel (2009), a construção do nome e da ideia do que entendemos por América

Latina, com o objetivo de refletir sobre a importancia desse processo para formação

identitária da sociedade em questão no primeiro ítem do presente capítulo, conceito

aqui baseado nos estudos de Anderson (2008) e Hall (2003). Para finalizar, serão

apresentados, no capítulo seguinte, alguns dados biográficos sobre o escritor

cubano Alejo Carpentier e informações a respeito do contexto de produção de suas

obras com o fim de sustentar as análises que serão desenvolvidas a respeito de Los

pasos perdidos nos capítulos seguintes

1. 1 O percurso de uma nação sob a tutela de um nome

Que há num simples nome? 3 William Shakespeare

A célebre frase na epígrafe do presente item, tomada de uma das peças

teatrais do renomado escritor inglês William Shakespeare, interroga acerca da

aparente simplicidade dos termos que usamos para nomear pessoas, lugares,

objetos. É a partir dela que se pretende traçar um paralelo entre a variedade de

nomes dados ao continente e os questionamentos que surgiram na sociedade latino-

americana em torno da criação de uma identidade que congregasse os valores da

nação. Questionamentos que se vislumbram não só textos em teóricos, mas também

em literários como no romance Los pasos perdidos de Alejo Carpentier.

É certo que, ao atribuir um nome, o sujeito exerce poder sobre o nomeado e

este rito, carregado de significação, não figura apenas na tradição do pensamento

europeu, mas sim de inúmeras civilizações ao longo dos séculos. Para discorrer

acerca do processo de nomeação do território americano, julga-se relevante iniciar o

3 - SHAKESPEARE, Willian. Ato II, Cena 2.In: Romeu e Julieta. Trad. Beatriz Viégas-Faria, Porto Alegre: L & PM, 1998. (Col. L & PM Pocket, 130)

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presente subcapítulo apresentando o contexto que fomentou o período conhecido

como Grandes navegações.

O continente europeu vivia um momento de crise nos séculos XIII e XIV.

França e Inglaterra disputavam território na chamada Guerra dos cem anos, que

durou, na verdade, 116 anos. No território espanhol, uma massiva ocupação

muçulmana. Em meio a tantos conflitos, o transporte de mercadorias por via terrestre

foi drasticamente afetado. Não havia alimento em quantidade suficiente para a

população europeia. Além disso, a Peste negra foi a responsável por milhares de

mortes.

Os povos que ocupavam o território que hoje conhecemos como França,

Inglatera e Espanha lutavam na Europa para aumentar seus limites e consolidar-se

como Estados-Nação. Portugal, nação favorecida pela evolução das condições

técnico-navais e com a existência de uma poderosa e ambiosa classe burguesa em

seu território, deu início ao que seria conhecido como Expansionismo marítimo-

comercial. Dentre os navegadores portugueses da época, destacam-se as figuras de

Bartolomeu Dias, o primeiro europeu a dobrar o Cabo das tormentas, que desde

então é conhecido como Cabo da Boa Esperança; Vasco da Gama, comandante

que empreendeu a mais longa viagem oceânica até então realizada, da Europa para

a Índia e Pedro Álvares Cabral, a quem se atribui a primeira exploração significativa

da costa nordeste da América do Sul.

As navegações espanholas começariam apenas a partir de 1492, com a

expulsão dos muçulmanos e a consolidação do Estado Nacional Espanhol. Foi

Cristóvão Colombo o navegador que iniciou este processo de expansão. Américo

Vespúcio o teria acompanhado em duas de suas viagens pelo oceano e Fernão de

Magalhães é reconhecido como o primeiro comandante a realizar a viagem de

circum-navegação. O Historiador David Arnold (s/d,76) discorre sobre o período de

expansionismo europeu, como se lê a seguir:

O período compreendido entre 1400 e 1600 foi assim uma época de reconhecimento e exploração dos oceanos, de abertura de novas rotas comerciais e de início dos impérios ultramarinos. [...] contribuiu, também, de forma direta ou indireta, para o posterior desenvolvimento do capitalismo, e da revolução industrial e para o

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surgimento do imperialismo ocidental dos séculos XIX e XX, que se

estendeu a todos os pontos do mundo habitado. A história da construção e da denominação desse território, hoje conhecido

como América latina, é tão labiríntica quanto a história de sua identidade. Os

diversos nomes que este continente possuiu ao longo da história dão tom e ritmo às

discussões em torno da questão identitária. Ao instalar-se no território encontrado,

os ibéricos pretendiam bem mais que apropriar-se das riquezas materiais ali

existentes. Era preciso dominar também as ideias, o pensamento dos nativos.

Introjetar nos habitantes daquele território a cosmovisão europeia. Ela seria o meio

através do qual os europeus conseguiriam convencer os indígenas a servirem aos

interesses da Coroa espanhola.

Os ibéricos estavam comprometidos com as ideias do capitalismo comercial,

sistema econômico que substituiu o feudalismo. Tomaram posse da maior parte do

território americano e estruturaram o cenário do Novo Mundo como uma fonte de

recursos para as metrópoles. No caso espanhol, predominou uma intensa extração

de ouro e prata que serviu aos interesses da Coroa espanhola. Para que tal feito

fosse alcançado, os povos pré-colombianos foram dizimados.

Os relatos à corte espanhola sobre o novo território precisavam ser realizados

em uma língua conhecida pelos reis, mas existiam paisagens desconhecidas aos

olhos e às palavras espanholas. Não poder nomear, descrever em palavras, fará

com que este outro (no caso o cronista) sinta dificuldades em dominar o cenário

circundante. As cartas e diários escritos nesta época sinalizam interessantes

perspectivas sobre a questão do ato de nomear.

O livro A conquista do México reúne as chamadas Cartas de Relação de

Hernán Cortéz que descrevem o período da exploração e conquista do México,

desde o desembarque realizado em Yucatán até a tomada da capital asteca entre

1519 e 1526. Tais documentos se configuravam como uma espécie de informe

oficial dirigido à Coroa espanhola. Continham descrições minuciosas do cotidiano do

jovem navegador espanhol Cortés e de seus soldados na tarefa de conquistar no

Novo Mundo e “salvar” os habitantes daquela terra longínqua, através da introjeção

do pensamento e das crenças vigentes na Europa.

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Para discorrer sobre o olhar do cronista estrangeiro a respeito do território

descoberto, pode-se observar um fragmento contido na segunda carta de Cortéz

dirigida a Carlos V. Ao descrever a cidade de Temixtitán4 manifesta seu desejo em

ser fiel na descrição do território, até então chamado Novo Mundo, mas confessa

sua limitação em realizá-lo por faltarem, em seu idioma, palavras para nomear o que

foi visto, numa tentativa de justificar suas possíveis omissões, como se lê em:

Procurarei dar, mui poderoso senhor, um pequeno relato das grandezas, maravilhas e estranhezas desta grande cidade [...] Mas, certamente, tudo que direi será pouco para descrever o que aqui existe. Mas, pode acreditar vossa majestade que, se algum erro cometer, será por exclusão e não por excesso. [...] nos referidos mercados se vendem todas as coisas que se encontram por toda terra que, ademais das que disse, são tantas e de tantas qualidades que pela prolixidade e por não guardar tantas na memória e também por não saber nomeá-las, não as expresso. [...] há uma mesquita principal que não existe língua humana que consiga descrever a sua beleza e suas particularidades. (CORTÉZ, 2008:62-63)

Deixa-se de expressar o que não se conhece pelo nome. Possuir um nome é

também ter direto a ser mencionado e rememorado. É uma necessidade humana

atribuir nomes a objetos, pessoas, lugares, como uma tentativa de abarcá-las, de

exercer algum conhecimento e/ou poder sobre elas. No livro de Gênesis (2: 19)

encontra-se expressa esta necessidade de nomear o que se vê e Deus, o criador,

teria confiado esta tarefa a Adão, o primeiro homem a povoar a Terra, segundo a

tradição cristã, como lemos em: “ Havendo, pois, o Senhor Deus formado da terra

todo o animal do campo, e toda a ave dos céus, os trouxe a Adão, para este ver

como lhes chamaria; e tudo o que Adão chamou a toda a alma vivente, isso foi o seu

nome”.

Hernán Cortéz (2008: 89) quis exercer sua tarefa de Adão, e nomear o

território para o qual fora trasladado. Como se comprova no fragmento abaixo.

Pelo que tenho visto, existe muita similaridade entre esta terra e a Espanha, tanto em grandeza, fertilidade e frio, além de outras coisas. Por isto me pareceu conveniente dar o nome a esta terra de Nova

4 Sobre a referida publicação não há uma uniformidade no que se refere a ortografia dos nomes próprios. Tal aspecto varia de acordo com a edição. A capital do México aparece escrita como Temistlitán, Temixtitán e Temixtitlán, quando é Tenuxtitlán ou Tenochtitlán (em razão de particularidades do sotaque mexicano)

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Espanha do mar oceano. Assim, em nome de vossa majestade coloquei este nome e peço humildemente que o aceite.

Assim também fez o conquistador europeu Cristóvão Colombo em sua terceira

viagem empreendida em 1498. A seguir temos uma citação sobre o relato de

Colombo extraída da obra El Orinoco ilustrado, publicado em 1741, pelo escritor e

padre missionário espanhol José Gumilla (1999: 13-14) que corrobora o

anteriormente dito:

[...]admirado do frescor das árvores da ilha Orinoco as chamou ilhas de Gracia e a costa de Paria [...]a chamou no dia seguinte, Isla Santa. [...] Colombo ficou maravilhado ao saber que no mundo havia um rio de tão soberbo fluxo capaz de encher de água doce do Golfo inteiro [...] não poderia atravessar o golfo, que chamou de triste, porque o seu centro não oferecia saída, e a única e estreita que possui nomeou Boca de Dragos ou de Dragões pela passagem ruim que deu e ainda dá a velejadores que temem a cada onda, um naufrágio.

Cabe destacar que Colombo, buscou nas escrituras sagradas muitas das

referências que utilizava para descrever o continente americano. A Bíblia e as

narrativas de viagem eram usadas constantemente como fonte de informação para

os homens da época.

Mais que desbravar novos territórios, a figura de Colombo foi imortalizada

como a de alguém que pretendia encontrar o paraíso descrito na Bíblia no mundo

terrenal. Na introdução do livro Diários da descoberta da América, o jornalista

gaúcho Marcos Faerman comenta a respeito da preparação empreendida por

Colombo para descobrir um novo mundo dentro do espaço em que vivia, como se lê

em:

Desenhou mapas para viver, nos seus tempos em Portugal; leu muitas narrativas de viagens, nas bibliotecas dos conventos; ouvia nas tavernas os marujos falando dos mais remotos pontos do mundo – e chegara a ver o mar dos gelos; e um dia lhe caiu nos olhos, em uma leitura do Livro Sagrado, uma palavra que mais ouvia do que lia – e era como se o profeta Isaías com ele estivesse falando: “Eu fundarei um novo céu e uma nova terra e não mais se pensará no que era antes”. Era o sonho de sua vida esta nova terra [...] (FAERMAN in: COLOMBO, 2010:8)

Instaurando um entrecaminho entre a realidade cartográfica e os relatos ficcionais.

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O nome América aparece no ano de 1507, em um mapa da obra Introdução à

Cosmografia, publicada pelo geógrafo alemão Martin Waldseemüller. No mapa, o

geógrafo refere-se ao Novo Mundo como “América”, em uma clara homenagem ao

navegador Américo Vespúcio. Tal nome não serviu aos interesses da Coroa

espanhola e de sua elite colonial, já que a noção de americano não era

compartilhada pelos europeus.

A não aceitação do nome américa está claramente expressa na publicação de

Emílio Castelar, escritor e penúltimo presidente da Primeira República Espanhola,

Historia del descubrimento de América (1892). Em seu livro, o escritor e político

espanhol apresenta um estudo sobre as navegações espanholas dando

protagonismo à figura de Cristóvão Colombo e criticando severamente a

homenagem feita ao navegador Vespúcio.

A Critica sobre a escolha do nome para o continente também foi feita por

outros escritores, dentre eles, vale destacar um fragmento de Frei Bartolomé de las

Casas (1956: 547) em seu Historia de las Indias, no qual argumenta que o

apagamento da figura de Colombo seria: “... usurpar injustamente ao Almirante a

honra, o louvor e privilégios, que, por ser o primeiro que com seus trabalhos, suor e

indústria deu à Espanha e ao mundo o conhecimento desta terra firme. ”

Antes que se chegasse ao nome que conhecemos hoje, este contraditório

continente foi chamado de: Índias, Novo Mundo, Las Españas, Ultramar5. Muitos

cronistas defendiam que se desse o nome de Colômbia, Colona, Columbia,

Hispânida, Isabélica, Antillana, Magna Colômbia. No entanto toda essa discussão

deixou à margem qualquer tentativa de valorizar os povos autóctones. A partir do

olhar europeu, a América Latina se estabeleceu no mundo ocidental moderno como

uma região periférica, explorada e devedora da tradição europeia.

O movimento de independência das colônias espanholas na América ganhou

força no período napoleônico. Para a elite colonial da América Espanhola era

5- O nome Ultramar ressalta uma interessante característica que perdura até a atualidade. Um território que depende de um poder que se encontra em uma região “além-mar”. Ainda temos essa configuração em algumas regiões. A título de exemplo cita-se um caso que há pouco gerou um mal-estar entre duas nações. As Ilhas Malvinas são território ultramarino controlado pelo Reino Unido, desde o desfecho da Guerra das Malvinas (1982), porém a Argentina as reivindica como partes da província da Terra do Fogo, Antártica e Ilhas do Atlântico Sul. Uma disputa que dura mais de 30 anos.

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preciso romper com a metrópole para alcançar o pleno desenvolvimento comercial

do território. Com a derrota de Napoleão, a Espanha se reorganiza para reprimir os

movimentos independentistas na América Espanhola, mas seu poder sobre as

colônias não dura muito tempo.

A partir de 1817, a Inglaterra, sedenta por novos fornecedores de

matérias´primas e mercados consumidores, reestabelece seu apoio aos

revolucionários americanos. Os Estados Unidos, que conquistaram sua

independência em 1776, também se aliaram aos rebeldes na luta contra a

dominação espanhola. Estes últimos objetivavam, por intermédio da Doutrina

Monroe, garantir os mercados regionais que se originaram no processo e

emancipação da América em princípios do século XIX. Buscavam também abrir

novos mercados em seu próprio território.

Esse primeiro momento de independência na América Espanhola não

implicava promover uma autonomia econômica nem uma melhoria nas condições de

vida da população. Com a emancipação das colônias se impôs a dependência

econômica da região às grandes potências capitalistas do século XIX. As nações

americanas permaneciam como fornecedras de matérias-primas e consumidoras de

artigos industrializados. Eram os Estados Unidos os que agora davam continuidade

ao processo de exploração dos territórios, como lemos em Michael Kryzanec (1996)

As ações dos Estados Unidos durante os episódios do Texas e da guerra entre México-Estados Unidos relevaram aos latino-americanos que a ameaça ao hemisfério e a sua integridade nacional não vem da Europa, mas sim de seu vizinno nortenho.

Pode-se observar uma alteração no modo de referir-se ao continente, durante

as primeiras décadas posteriores à independência das colônias espanhola. Líderes

de movimentos pró independência e as novas elites criolas passam a utilizar o termo

Hispano-américa em vez de América6 numa tentativa de constituir uma identidade

cultural que congregasse o grupo de países que foram colonizados pelos espanhóis

6- Ainda que no referido período Simón Bolívar empregue o termo “América” em sua Conferência do Panamá de 1826, é importante destacar que o ideal de construção de uma Hispano-américa passou a ser predominante; essa mudança é relevante, quando se busca compreender a gênese do nome “América Latina”.

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e diferenciar-se das futuras nações das regiões da América colonizadas por outros

países.

Com a forte expansão das colônias norte-americanas, os franceses buscaram

“aproximar-se” dos territórios antes dominados pelos espanhóis disseminando a

ideia do Panlatinismo que foi inicialmente aceita por pensadores franceses e

hispano-americanos, ainda que por distintos motivos. De acordo com Michel

Chevalier justifica-se a importância da participação da França, pois

A França [...] constitui o topo do grupo latino; é o seu protetor. Nos acontecimentos que parecem se aproximar, o papel da França é grande. A França é depositária dos destinos de todas as nações do grupo latino nos dois continentes. Somente ela pode impedir que esta família inteira de povos não seja tragada pelo duplo avanço dos Germanos ou Saxões e dos Eslavos (Cf. CHEVALIER, Michel. “Sobre el progreso y porvenir de la civilización” In: ARDAO, 1991: 165)

A implementação de tal conceito era interessante aos franceses, pois estes

vislumbravam uma possível volta ao antigo Sistema Colonial cujo poder passaria a

estar em mãos francesas. Os pensadores hispano-americanos encontravam no

conceito francês uma via que lhes permitiria construir a ideia de uma identidade

filiada aos valores europeus, permitindo o ingresso na “civilização”e livrando-os do

“atraso” colonial.

O surgimento do termo “América Latina” é controverso. Em relação ao

adjetivo “Latina”, sabe-se que deriva do pequeno território italiano chamado Lácio.

No que concerne, contudo, a expressão América Latina7 temos distintas informações

que serão expostas para ilustrar a complexidade do processo de nomeação do

continente. John Leddy Phelan (1993), afirma que foi à época dos preparativos da

invasão francesa ao território mexicano que nasceu o termo“América Latina”, em um

artigo de 1861 escrito por L. M. Tisserand na Revue des Races Latines. Em

contrapartida, o uruguaio Arturo Ardao (1980) em seu Génesis de la idea y el nombre

de América Latina confronta a visão do historiador norte-americano, e sustenta que o

7- Vale ressaltar que o Brasil estava excluído das discussões sobre o latino-americanismo no século XIX, quando a ideia de América Latina estava diretamente relacionada à América Hispânica.

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nome “América Latina” foi criado, em realidade, pelo pensador e jornalista

colombiano, José Maria Torres Caicedo (1830-1889), no ano de 1856.

É da mesma data que procedem outros dois argumentos: o do historiador

chileno Miguel A Rojas Mix (1991) que atribui o mérito a Francisco Bilbao,

organizador do Movimiento Social de los Pueblos de la América Meridional em

Bruxelas no ano de 1856, onde expôs suas reflexões sobre “la raza latinoamericana”

e “la unidad latinoamericana” em um discurso realizado em Paris. Há também, o

argumento defendido pela historiadora norte-americana Aims McGuiness que

destaca a figura de Justo Arosemena, que era representante liberal do Estado do

Panamá no Senado da Colômbia e fez referência em seu discurso, proferido em

Bogotá, à “América Latina” e ao “interés latinoamericano”. Outros intelectuais

também utilizaram o termo em um período próximo o que dificulta uma determinação

precisa do autor da expressão América latina8

O pesquisador Eduardo Coutinho em “ América Latina: o móvel e o plural”

(2013) sustenta que a escolha do nome Latina seria uma estratégia europeia para

imprimir, no nome do território, a ideia de uma América colonizada por povos de

origem neolatina alcançando, assim, uma diferenciação em relação à América

Anglo-Saxônica. O geógrafo político francês Hervé Théry (2004: 3) afirma, em texto

publicado no livro Literary Cultures of Latin America: a Comparative History, que

somente na América Latina, encontra-se um continente:

8 - Muitas publicações suscitaram interessantes discussões a respeito do tema; por exemplo: José María Samper (1831-88), colombiano residente em Madri, no seu artigo América y España, publicado no periódico La América (agosto de 1858); Santiago Arcos (1822-1874), amigo chileno de Bilbao no livro La Plata, é tu de historique (Paris, 1865); e José Victorino Lastarria (1817-1888), importante político e intelectual liberal chileno, em seu volume preparado com Benjamin Vicuña Mackenna e outros membros chilenos da recém-formada Sociedad Unión Americana, Coleción de ensayos e documentos relativa a la unión y confederación de los pueblos hispano-americanos (1862), e em seu livro La América (1867). O espanhol Emílio Castelar (1832-1899) e Francisco Piy Margall (1824-1901), começaram a referir-se à “América Latina” nessa época. Carlos Calvo, historiador argentino e advogado de direito internacional (1824-1906),autor de Derecho internacional teórico y práctico de Europa y América (2 vols.1863) ,talvez fosse o primeiro a utilizar a expressão em trabalho acadêmico: na Colección completa de los tratados, convenciones, capitulaciones, armisticios y otros atos diplomáticos de todos los estados de la América Latina, comprendidos entre el golfo de Méjico y el cabo de Hornos, desde el año de 1493 hasta nuestros dias (20 vols., Paris, 1862; trad.Francesa, Paris, 1864), que foi dedicada a Napoleão III, e nos Anales históricos de la revolución de la América Latina desde el año 1808 hasta el reconocimiento de la independencia de este extenso continente

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... cujo nome porta um qualificativo que indica a cultura dominante que o moldou, e esse é um fato que tem inúmeras repercussões não só em sua geografia e em sua formação socioeconômica, como também evidentemente em sua produção cultural.

No século XX o termo América Latina é ressignificado. Ao desvincular-se do

caráter puramente etnolinguístico abarca uma dimensão política, transformando-se

em uma “marca expressiva de utopias do habitante do subcontinente por ele

designado, passando, para usar a expressão de alguns críticos, de uma “ficção” a

uma espécie de ‘autobiografia’. ” (COUTINHO, 2013: 60). Acreditava-se ser possível

compreender uma nacionalidade latino-americana, de caráter hispânico, que

precederia nacionalismos locais e regionais em defesa da dominação

estadunidense. A rivalidade entre hispano-américa e Estados Unidos foi alimentada

por um longo período como se lê em:

Os intelectuais hispano-americanos, dos anos 1880 até a Segunda Guerra Mundial, eram bastante hostis aos Estados Unidos, ao imperialismo norte-americano, à cultura norte-americana – e ao pan-americanismo. Os catalisadores foram, sem dúvida, Cuba e a Guerra Hispano-Americana de 1898. O conceito das duas Américas – de um lado, os Estados Unidos, e do outro, a América Espanhola, Hispano-américa, América Latina, na época mais frequentemente chamada “Nuestra América”, que era distinta e superior à América Anglo-Saxã (o humanismo e o idealismo latinos eram exaltados em detrimento do utilitarismo e do materialismo anglo-saxãos) (BETHELL, 2009: 299)

Esse sentimento construído através de um discurso que compreende um

momento histórico e um anseio comum, fomenta a criação de uma identidade

continental filiada não apenas em critérios etnolinguísticos, mas sim em um projeto

de representação frente às outras nações. Para dar prosseguimento a discussão,

apresenta-se no item seguinte alguns conceitos sobre identidade com o fim de

discorrer acerca do processo de construção de uma identidade na América Latina

desde uma perspectiva local.

1.2 Para um conceito de identidade latino-americana

A escolha de um nome para o continente americano pode-se configurar

como um rito de inserção do Novo Mundo no mapa. Com isso, se esperava

que o

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continente americano alcançasse o reconhecimento de sua existência e o respeito

como território livre, perante as demais nações. Sobre a construção da identidade e

seus conceitos, prosseguiremos a seguir, apresentando algumas definições de

identidade propostas no período compreendido entre os séculos XVIII e XX e suas

aplicações, com o fim de vislumbrar a identidade como um processo em constante

atualização.

O pensamento antropocentrista abrira espaço para que as manifestações

culturais, como a pintura e a literatura, expressassem os questionamentos do

homem sobre conflitos existentes no mundo que o circundava. Esse movimento foi

conhecido posteriormente como Renascimento cultural9. Com o advento do

Humanismo a figura do homem passa a ter maior protagonismo na sociedade. O

movimento cultural que surgiu na França, entre os anos de 1650 e 1700, como uma

reação frente a intolerância e os abusos da Igreja Católica e do Estado objetivava

uma valorização do saber enciclopédico como um meio de alcançar uma mudança

efetiva nas formas de Governos existentes até então. Para tanto, o indivíduo em

questão precisava apresentar uma identidade determinada, como vemos em A

identidade cultural na pós-modernidade10 do sociólogo e teórico cultural jamaicano

Stuart Hall (2011:11):

... um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo "centro" consistia num núcleo interior, que pela primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia, ainda que permanecendo essencialmente o mesmo — contínuo ou "idêntico" a ele — ao longo da existência do indivíduo.

Este conceito de identidade, ainda que abarque uma definição estável,

sugerida pela escolha dos vocábulos “centrado”, “unificado”, “contínuo”, representou

uma importante mudança no pensamento da época, pois o homem passou a ser

agente de transformação da realidade. Com as Grandes Navegações empreendidas

9 Iniciou-se na Itália, irradiando-se por toda a Europa. Promoveu uma completa negação dos valores e princípios feudais, refletindo ideais urbanos e burgueses. Aliado à Reforma Protestante são os movimentos que marcam o início dos Tempos Modernos. (VICENTINO 1995: 8) 10 Cabe ressaltar que a presente tese não tem a pretensão de relacionar o conceito de identidade nos moldes entendidos na pós modernidade com a obra de Alejo Carpentier. Os conceitos aqui apresentandos pretendem sustentar o argumento de que a representação da identidade se dá em diversos momentos da vida do indivíduo e que este conceito pode ser ressignificado muitas vezes ao longo dos tempos.

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a partir do século XV, o homem ampliou não apenas seu poder de conquistar

territórios, mas também o seu ponto de vista em relação ao outro. Este outro não era

mais o europeu de um Estado nação diferente do observador, havia agora um outro

continente, do qual muito pouco se sabia. Era preciso identificar, categorizar esse

outro e estabelecer quem exerceria poder sobre quem no encontro entre dois

mundos tão diferentes. Tais relações se desenvolvem tal qual afirma Foucault (2001:

1538) ao afirmar:

Eu quero dizer que, nas relações humanas, quaisquer que sejam - que trate de comunicar verbalmente, como fazemo-lo agora, ou que trate-se de relações amorosas, institucionais ou econômicas -, o poder continua presente: eu quero dizer a relação na qual um quer tentar de dirigir a conduta do outro. Estas são, por conseguinte, relações que pode-se encontrar em diversos níveis, sob diferentes formas; estas relações de poder são relações móveis, ou seja elas podem alterar-se, elas não são dadas de uma vez para sempre

As relações de poder, redefinidas com a disseminação das ideias do

Humanista do século XVI foram fortalecidas pelo ideario iluminista do século XVIII. O

homem passa a ser contemplado como “indivíduo soberano”, processo que

alavancou a evolução do pensamento e permitiu o desenvolvimento do sistema

político-social que se vislumbra na modernidade.

O século XIX se caracterizou como um intenso período de disputas de ordem

intelectual e geográfica. Foi o palco do liberalismo, nacionalismo, imperialismo, da

consolidação do método capitalista e do nascimento das ideias socialistas. Em meio

a este cenário, a noção de sujeito sofreu algumas atualizações. Era importante

considerar que este indivíduo continuava a ser independente e racional, no entanto,

não era possível negar que

a identidade é formada na "interação" entre o eu e a sociedade. O sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o "eu real", mas este é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais "exteriores" e as identidades que esses mundos oferecem. (HALL, 2011: 11-12)

É neste contínuo diálogo promovido pelo contato em sociedade que se

percebe a fragmentação do sujeito, a necessidade de filiar-se a várias identidades.

Entende-se, o processo de identificação como fenômeno provisório, variável e,

consequentemente, problemático. A presença do outro torna-se algo

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indiscutivelmente determinante na caraterização do eu, como se lê na afirmação de

Hall (2011: 38-39)

Assim, a identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do nascimento. Existe sempre algo "imaginário" ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, está sempre "em processo", sempre "sendo formada". (...) Assim, em vez de falar da identidade como uma coisa acabada, deveríamos falar de identificação, e vê-la como um processo em andamento. [...] A identidade surge não tanto da plenitude da identidade [...] mas de uma falta de inteireza que é "preenchida" a partir de nosso exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros. Psicanaliticamente, nós continuamos buscando a "identidade" e construindo biografias que tecem as diferentes partes de nossos eus divididos numa unidade porque procuramos recapturar esse prazer fantasiado da plenitude.

Há agora muitos outros, cujas diferenças vão bem além da identificação

étnica ou geográfica. Em meio a tantas particularidades, infindas descobertas e

choques culturais, era necessário estabelecer uma união entre os povos. E o

equilíbrio entre as particularidades de cada povo não seria a base que sustentaria a

política colonizadora aplicada no território americano.

Ainda que em um território com disposição e organização diferentes, os

conquistadores europeus seguiram usando a cosmovisão europeia como base para

dominação do Novo contimente e o desenvolvimento intelectual das colônias

europeias na América caminhava com grandes interrogações no plano de

constituição de nação.

Existia no continente americano um notório desenvolvimento territorial,

alimentado pelo fluxo de colonos europeus que ocupavam a terra, se casavam,

gerando uma descendência fruto da mescla entre o colonizado e o colonizador. A

qual identidade de filiaria esta geração? Esse foi um dos questionamentos

largamente discutidos desde o século XIX, como pode ser lido em algumas

publicações da época.

José Martí, apresenta em seu manifesto intitulado Nossa América, uma visão

identitária calcada na valorização da história e cultura dos povos Hispano-

americanos e na possibilidade de entender o momento vivido como um espaço de

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efetivas mudanças. Afirma que “Os povos que não se conhecem devem ter pressa

em se conhecer, como aqueles que vão lutar juntos” (Martí, 1983: 194).

O escritor cubano, em seu manifesto, apresenta os pressupostos que julga

fundamentais para a produção e utilização do conhecimento no desenvolvimento de

um país latino-americano como a solução para solucionar os problemas enfrentados,

pois, segundo ele “Trincheiras de ideias valem mais que trincheiras de pedra” (Martí,

1983: 194). E corrobora o discurso reiterando que a fundação de uma identidade

cultural dos povos latino-americanos é substancial para eliminar o perigo da

dominação estrangeira, que poderia abalar a hegemonia dos países latino-

americanos:

[...] o dever urgente de nossa América é mostrar-se como é, unida em alma e intenção, vencedora veloz de um passado sufocante, manchada apenas com o sangue do adubo, arrancado das mãos, na luta com as ruínas, e o das veias que nossos donos furaram [...] e é urgente, já que o dia da visita está próximo, que o vizinho a conheça, que a conheça logo, para que não a despreze. [...] Porque já ressoa o hino unânime; a atual geração leva às costas, pelo caminho adubado por seus pais sublimes, a América trabalhadora; do rio Bravo ao estreito de Magalhães, sentado no dorso do condor, espalhou o Grande Semi, nas nações românticas do continente e nas ilhas doloridas do mar, a semente da América nova! (MARTÍ, 1983: 200-201)

O manifesto de José Martí, filho de europeus, foi publicado primeiramente no

ano de 1891, e é considerado com um dos textos que estariam no cerne da

construção de uma identidade latino-americana. Coloca no plano de discussão

alguns problemas existentes no continente no século XIX, tais como a luta pela

independência frente à Coroa espanhola, como se lê em:

Os orgulhosos pensam que a terra foi feita para servir-lhes de pedestal, [...], e acusam de incapaz e irremediável sua república nativa, pois não lhes dá suas selvas novas, uma maneira contínua de marchar pelo mundo como cacique famoso, guiando cavalos persas e derramando champanhe [...] A incapacidade não está no país nascente [...] e sim naqueles que querem reger povos originais [...] com leis herdadas de quatro séculos de prática livre nos Estados Unidos e de dezenove séculos de monarquia na França.[...] O governo deve nascer do país. O espírito do governo deve ser o do país. A forma de governo deverá concordar com a constituição própria do país. O governo não é mais que o equilíbrio dos elementos naturais do país. (MARTÍ 1983: 195)

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E a necessidade de estabelecer um método de governo próprio para o

continente. Um modelo que não se opõe a beber da cultura de outros povos, mas

que se recusa terminantemente a adotar práticas já existentes sem que estas

representem a melhor escolha para solucionar os problemas locais.

Nem o livro europeu, nem o livro ianque davam a chave do enigma hispano-americano. [...] Os jovens da América arregaçam as mangas, põem as mãos na massa e a fazem crescer com a levedura de seu suor. Entendem que se imita demais e que a salvação é criar. Criar é a palavra-chave desta geração. O vinho é de banana; e se sair ácido, é o nosso vinho! (MARTÍ, 1983: 1956-197)

Ao conformar em seu manifesto elementos de ordem política e emocional,

José Martí fomentava a questão do pertencimento nos territórios colonizados pela

Espanha na América. A geração fruto da união de dois mundos distintos deveria

forjar um novo destino para este capítulo da história, que não privilegiasse apenas

uma visão dos fatos. Era urgente a necessidade de valorizar a prática cultural local.

Dessa forma, o discurso do libertário cubano semeava as bases que alicerçariam um

movimento em busca da autonomia não somente econômica, mas também politica e

cultural. Pode-se vislumbrar a forte emotividade no texto considerando o conteúdo

expresso no fragmento a seguir:

Com o fogo do coração, degelar a América coagulada! Verter, fervendo e latejando nas veias, o sangue nativo do país! De pé, com o olhar alegre dos trabalhadores, saúdam-se, de um povo a outro, os novos homens americanos. Surgem os estadistas naturais do estudo direto da Natureza. Lêem para aplicar, não para copiar. Os economistas estudam os problemas nas suas origens. Os oradores começam a ser sóbrios. Os dramaturgos levam à cena os personagens nativos. As academias discutem temas nossos. [...] A prosa, faiscante e depurada, está carregada de idéias. Os governadores, nas repúblicas de índios, aprendem a linguagem dos índios. (MARTÍ, 1983: 200)

Ao entender a identidade como uma tarefa a ser realizada, faz-se necessário

destacar também o traço plural que contêm tal conceito. A identidade chega, então,

como um elo que permite a construção do que se chamará de nação; perante a qual

seus integrantes devem atuar de modo a demonstrar sua fidelidade a ela, o que

poderá ser nomeado nacionalismo. Tal processo só ocorrerá se acontecer em uma

comum unidade, ou seja: desde que seus integrantes se unam em prol de uma

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causa comum à coletividade. Quem discorre sobre este processo é o sociólogo

Benedict Anderson (2008: 32) em seu livro Comunidades imaginadas. O autor

sustenta que uma comunidade se apresenta como imaginada

[...] porque seus membros nunca conhecerão todos os demais; na mente de cada indivíduo reside uma imagem da comunidade da qual participam. Ou seja, ainda que os limites de uma nação não existam empiricamente, seus indivíduos são capazes de criar e imaginar tais fronteiras, criando e imaginando seus membros.

Sua explanação segue para sustentar que, além de imaginada, uma

comunidade também se configura como limitada em suas fronteiras por outros

territórios. Característica, segundo ele, fundamental para sustentar a ideia de

nacionalismo, já que seria inviável consolidar um sentimento nacionalista que

abarcasse toda a humanidade, dada a pluralidade que constitui seus indivíduos.

O conceito de limitado aplicado ao de comunidade é um dos fatores que

dificulta a instauração de um sentimento de pertencimento que congregue europeus

e colonizados. Como colocado no parágrafo anterior, a consolidação de um

sentimento nacionalista de caráter universal é inviável. A solução para este impasse

é pluralizar o termo identidade e reconhecer que o indíviduo pode filiar-se a várias

ideias de pertencimento.

Outra característica que constituiu uma comunidade, segundo Anderson, é

sua condição de ser soberana. A construção do nacionalismo, tal qual concebe o

sociólogo, estaria intimamente relacionada às transformações ocorridas ao longo da

Idade Moderna e Contemporânea. A comum unidade, idealizada até então pelos

europeus, foi abalada. O mesmo ocorreu com os habitantes do Novo Mundo,

conquistado pelos navegadores ibéricos. Era preciso criar novos modelos

identitários que abarcassem a complexidade advinda do encontro entre Europa e

América.

A partir do século XX, por volta da década de 1950, condensou-se na América

a figura do intelectual, ligado ao campo das letras e artes. Auto-determinavam-se

intelectuais, indivíduos que

Desempenhando-se originariamente como crítico literário se projetou como figura pública legitimada por sua capacidade para interpretar com um método e arsenal conceitual sofisticados os textos literários,

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e dar-lhes uma significação social, cultural e eventualmente política. (AGUILAR In: ALTAMIRANO 2008: 685)

Frutos de um momento em que o acesso aos bens culturais expandia-se, permitindo

que novos grupos sociais, tivessem acesso à leitura, essa porção da sociedade

ganhava cada vez mais espaço no cenário da recém-criada crítica literária.

O intelectual, como entendido nesse momento, deixa de estar somente nos

espaços restritos da academia, para problematizar questões que não competem

apenas ao campo ilustrado das ideias. Encontram um caminho para questionar

também problemas que competem a diversas instâncias da esfera pública.

Os intelectuais da América Latina buscaram alcunhar um nome para o

continente, numa tentativa de encontrar identificação, de encontrar autonomia. É

preciso construir uma ideia de nação e esta deve ser formada de uma série de

símbolos, dentre os quais, figura o nome. É neste ponto que se valoriza a questão

da identidade e se compreende que esta é múltipla e

... tem a ver com as questões referidas ao uso dos recursos da história, da língua e da cultura no processo do devir e não do ser, não << quem somos>> ou << de onde viemos>>, mas sim em que poderíamos nos converter, como nos representaram e, como isso, abarca o modo como poderíamos nos representar. [...] as identidades se constroem no discurso e não fora dele[...] se constroem através da diferença e não a margem dela. [...] (HALL, DU GAY: 17-19)

Em Los pasos perdidos de Alejo Carpentier os homens das letras, das artes e

das navegações seguem sua existência um uma eterna busca. Os conquistadores

espanhóis das histórias lidas pelo protagonista, seguiam a estela de Adão na tarefa

de dar nome às coisas, mas desta vez, não porque estas não possuam um nome e

sim porque este não estava expresso em um idioma que os espanhóis conheciam.

O anônimo protagonista do romance de Carpentier, ao seguir em busca de

objetos raros para o Museu Organográfico, encontra bem mais que raros idiofones

primitivos. Assim como os conquistadores espanhóis, se admira diante das

paisagens contempladas e se reencontra filiando-se a uma identidade latino-

americana ainda não vivenciada, que o faz reafirmar seu compromisso como homem

e artista. Já Carpentier, desenvolve seu ofício de intelectual do reino Latino

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americano lecionando em cátedras, ocupando a posição de diretor da Imprensa

Nacional. Os livros foram seu alfabeto e seu evangelho.

É com a publicação de Los pasos perdidos que o leitor consegue ter contato

com o arcabouço humano de Alejo Carpentier. Ao usar suas experiências pessoais

como enredo da trama, vislumbra-se um escritor para além do conhecimento

ilustrado. Sobre este novo Carpentier, Gonzalez Echeverría (2004: 211-212)

comenta :

[...] esse romance representa uma ruptura importante no transcurso de sua obra [...] uma visão extraordinariamente clara das contradições que [...] dão forma à empresa literária de Carpentier. [...] uma série de rupturas e deslocamentos que são o resultado de seu desejo de localizar a América-Latina e seu próprio discurso dentro da história e da escrita ocidental, ou, o que é mais comum, fora delas.

Deste modo a história e as artes fazem parte da simbologia que permite a

sedimentação dos valores identitários. Compreender o processo de construção do

nome compõe, portanto, um esforço em entender nossa situação colonial,

questionar nossa identidade e aceitar a condição de possuir várias filiações ao longo

de sua existência. Assim, se torna possível a concepção de uma América Latina

enquanto ideia e não apenas como territorialidade. Segue-se portanto, no item

seguinte, com a análise crítica de alguns pontos abordados na vida de Carpentier e

em seu romance Los pasos perdidos com o fim de dar continuidade a reflexão sobre

a importância do discurso literário na representação de uma identidade cultural.

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II ALEJO CARPENTIER: UM INTELECTUAL NO REINO DESTE MUNDO

A relação do escritor cubano Alejo Carpentier com as artes começou a se

estabelecer desde sua infância. Sua avó paterna era pianista e seus pais, o arquiteto

francês, discípulo de Pablo Casals, e a professora de idiomas de origem russa,

sempre cultivaram um ambiente que permitiu a Carpentier escrever e compor desde

muito cedo.

O musicólogo cubano, que se destacou por sua habilidade em manejar la

pluma, experimentou em sua juventude todo o fervor revolucionário presente no

continente Americano nas primeiras décadas do século XX. Integra o Grupo

Minorista, ao lado de escritores como Juan Marinello e Nicolas Guillén; atua na

direção da expressiva Revista de Avance (1927), na qual se denotava uma forte

influência das ideias difundidas nas obras de Picasso e Stravinsky. Porém o vigor

em defender e propagar a realidade que o circundava, desde seu nascimento,

amadureceu somente após sua estada em Paris.

Os anos que passara em contato com as tendências surrealistas e toda a

intelectualidade vigente na Europa promoveram em Carpentier um redescobrimento

do continente americano. A escrita automática e todo o aparato tecnicista do

movimento idealizado por André Breton não atraía o interesse do escritor cubano.

Seu posicionamento a respeito desse momento literário está expresso em seu Diario

(2013: 70): “Soy adverso a la literatura onírica [...] El sueño [...] es uma cosa tan

personal, tan íntima, tan vivida por uno mismo, como el amor físico”.

No entanto, o contato com a estética surrealista permitiu uma reflexão que

levou o escritor cubano a vislumbrar o surrealismo em solo latino-americano. O

campo do absurdo, do desmesurado, manifestado em estado bruto, virgem e alheio

a qualquer artificialidade. Dessa descoberta nasceram suas teorias sobre o real

maravilloso, inaugurada no prólogo de seu livro El reino de este mundo e aplicada

ao longo de todos os seus escritos advindos, na qual comenta que:

Lo real maravilloso […] que yo defiendo, y es lo real maravilloso nuestro, es el que encontramos al estado bruto, latente, omnipresente

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en todo lo latinoamericano. Aquí lo insólito es cotidiano, siempre fue cotidiano.” (CARPENTIER, 1984: 122)

Para tanto, passa a estudar com afinco os documentos que tratam de fornecer

dados sobre o Novo Mundo. A respeito deste período de “imersão” na história

americana, temos a seguinte declaração de Carpentier:

[...] desde las Cartas de Cristóbal Colón, pasando por el Inca Garcilaso, hasta los autores del siglo XVIII. Por espacio de casi ocho años creo que no hice otra cosa que leer textos americanos (Alejo Carpentier. 75 Aniversario, p.13. (Entrevista a VELAYOS ZURDO, 1985: 60)

A necessidade de estar sempre munido de dados precisos sobre os temas que lhe

interessavam se apresentava como característica massivamente trabalhada em

seus, quase, sessenta anos de ofício como jornalista. O que lhe permitiu calcar em

suas obras literárias um marcante traço de verossimilhança.

Ainda sobre sua minúcia ao situar o leitor no tempo e espaço, cabe ressaltar

que seus escritos literários não foram rotulados pela crítica como literatura

informativa: o que reflete uma especial capacidade em manejar as palavras de

acordo com o discurso proposto, reconhecida na afirmação que temos a seguir: “El

periodista es en si un historiador, él es el cronista de su tiempo, y el que anima con

sus crónicas, la gran noche del futuro”. (Granma, La Habana, 16 de enero de 1976

(In: VELAYOS ZURDO, 1985: 55).

Ao analisar aspectos da obra e vida de Alejo Carpentier, é possível vislumbrar

que o escritor cubano se figura na sociedade como intelectual latino-americano, que

pode parecer destoar do ambiente em que vive, mas que se apresenta como

produto da simbiose de culturas tão peculiar ao Novo Mundo. De nacionalidade

cubana, conseguiu depreender também os costumes e valores europeus através da

educação de seus pais que, como muitos habitantes do Velho Mundo, vieram tentar

uma nova vida em solo americano.

Seu caminho percorreu um itinerário clássico, tendo em vista o ambiente no

qual foi criado. Os esplendores teatrais de La Habana Vieja foram o cenário que um

dia albergou a trajetória de um lar que vivia no Caribe, mas se guiava pelo

firmamento europeu. Seguiu os passos de seu pai ao interessar-se por arquitetura,

porém, em pouco tempo lançou seus olhos e talento ao campo do jornalismo.

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O então jornalista cubano, em seu trabalho como chefe de redação da revista

Carteles, armou-se de palavras e usou o discurso escrito para colocar em evidência

a realidade ditadorial sobre a qual vivia a ilha de Cuba. Fez de sua postura

profissional um modus operandi, não só na jornalística como também na literatura

latino-americana. Como se verifica em um fragmento de seu Diario (2013:45) “Quién

quiera, en América, tener una acción política eficaz, siendo escritor, debe empezar

por hacer una obra importante. Luego, respaldado por la obra, gritar por lo que

quiera.”

A citação contida no parágrafo acima poderia justificar a incessante busca

por conhecimento na trajetória profissional e pessoal de Alejo Carpentier, o ferrenho

trabalho em seus textos. Seu compromisso em transparecer a verdade, em

apresentar ao público, em seus programas radiofônicos, fatos históricos

emblemáticos e obras literárias consagradas pelo cânone literário.

Em território parisiense, o inquieto intelectual segue em sua sedenta busca

por conhecimento. Deslumbrado com a multiplicidade de campos de atuação e

acesso à cultura, Carpentier (2013: 5-6) se envolve em múltiplas atividades, como se

pode ler em

Desde su llegada a París [...] para ganarse la vida, había tenido que realizar diversos trabajos de esa índole [lides publicitarias – grifo da autora] en varias instituiciones galas: redactaba publicidade en castellano para la Compañia Transatlántica Francesa, realizaba, además la traducción de la revista turística Le Voyage en France, y promocionaba la importante casa cinematográfica Gaumont Franco Film Aubert (G.F.F.A)

Aproximou-se também de vários artistas, alguns destes pertencentes ao surrealismo,

cujo estudo do momento se centrava em redescobrir a América Latina para

apresentá-la à cultura ocidental sob um olhar moderno. Sobre esse momento de

imersão em território europeu, o autor cubano comenta o seguinte:

Nunca Cuba estuvo más viviente en mi espíritu – en paisajes, hombres, maneras de hablar – que cuando vivía en París. Así mismo, mi visión de París es mucho más exacta, ahora que estoy en América, que cuando vivía allá. (CARPENTIER, 2013:32)

Viveu-se, nesta época, um fervoroso interesse pelas questões relativas ao

primitivo e ao insconciente, impulsionando muitos artistas a empreender missões de

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matiz etnológico em busca de respostas que completassem as lacunas do passado

do território americano. Mario de Andrade realizou semelhante trabalho que

culminou, posteriormente, no aclamado Macunaíma: o herói sem caráter (1928).

Ainda que Carpentier apresentasse pouca simpatia por essa prática terminou por

vivenciá-la e, de tal forma, revisar suas considerações sobre o continente americano

através de uma experiência semelhante, quando de seu autoexílio na Venezuela:

Los pasos perdidos foi escrito durante seu exilio na Venezuela [...] e, efetivamente, descreve uma viagem que o autor fez remontando o Orinoco até as grandes savanas, [...] uma nota final do livro identifica a cena. Porém não é importante precisar o lugar no mapa. Durante o transcurso da narração, o rio permanece anônimo. Poderia se tratar de qualquer rio americano. O narrador poderia ser qualquer homem que remontara a corrente em busca do passado da humanidade e de sua própria infância. (HARSS, 1966: 508, tradução nossa)

Ao experimentar a estética que objetivava dar lugar ao sonho e a imaginção,

com o fim de alcançar paisagens míticas e cosmovisões desmedidas, Carpentier

volta seus olhos para seu continente natal e se dá conta de que este processo por lá

faz parte do cotidiano da América Latina:

Na América Latina tudo é sem medida: montanhas e cascatas gigantescas, planícies infinitas, selvas impenetráveis. A anarquia urbana coloca tentáculos terra adentro, onde sopram os vendavais. O antigo convive com o moderno, o arcaico com o futurístico, o tecnológico com o feudal, o pré-histórico com o utópico. Em nossas cidades se levantam arranha-céus junto a mercados indígenas onde proliferam ainda os amuletos. Como encontrar sentido nesta profusão, em um mundo cuja devoradora presença ofusca o homem, descalabra sua inteligencia e sua imaginação? (HARSS, 1966: 508, tradução nossa)

Para Carpentier, como talvez para todos os que vivem oscilando entre

distintos tempos, a resposta para o questionamento proposto na citação acima foi

deixa-se levar pelo tempo. Atitude que o protagonista do romance Los pasos

perdidos também toma durante toda a narrativa. A respeito dessa intrigante postura

tomada pelo autor cubano, intrigante porque que em seu fazer literário parece ter

extremo controle de todo o processo narrativo, e pelo protagonista do romance que

é objeto de estudo desta tese, temos a seguinte citação de Carpentier (2013:92)

onde, com certo tom confessional, admite:

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Creo tanto en la misteriosa acción de la vida ajena [...] sobre mi existência, que jamás he tratado de imponer uma voluntad mía a las circunstancias, encuentros, etc que van forjando mi destino. Me dejo llevar por las sorpresas de la existência, sin oponer la menor resistencia. Más aún: son ciertos acontecimentos los que me dictan la actitud a adoptar, la medida por tomar.

Viveu entre dos mundos. Europa foi o ponto de observação que lhe conferiu

desapego e distanciamento suficientes para reconhecer as particularidades de sua

terra. O escritor vislumbra a territorialidade americana através da desterritorialização

advinda do exílio em París. Um perído de preparação para o retorno definitivo. Sobre

esse momento sublinha-se que

Carpentier os viveu lançando miradas retrospectivas. Se deu conta de que a vida no estrangeiro, mesmo bem aproveitada, era um destes Dias sem Fim que para o expatriado levam ao vazio. Suspirava pelo continente americano. Carcomia-lhe o desejo de «expresar o mundo da América», de fazer com que seus riachuelos perdidos afluissem ao mar. Agradece aos surrealistas esta iluminação. (HARSS, 1966: 509, tradução nossa)

Ao se descobrir tremendamente ignorante em relação ao passado de seu

continente, exerce, neste período, o seu caótico exercício ilustrado de adquirir

conhecimento, como se lê em:

«Me consagré durante años enteros a leer todo lo que encontraba sobre América, […] América se presentaba como una enorme nebulosa que yo trataba de comprender, pues sentía vagamente que mi obra se desarrollaría allí, que iba a ser profundamente americana. » Organizarse, advirtió pronto, era sólo dar el primer paso hacia la meta. América tenía algo de fruto prohibido. Como lo demuestra su obra, tuvo que recorrer un largo camino antes que su bibliofilia se

convirtiera en experiencia vital. (HARSS, 1966: 509) O gênero romance estava apenas dando seus primeiros passos na América

Latina no momento em que Alejo Carpentier começa a escrever. Há em seu estilo de

narrar uma profusão de palavras, uma preocupação com a retórica. Seu primeiro

romance, Écue-Yamba-Ó (1933), no qual trata de pintar a cultura afro-cubana desde

«dentro», ainda que, como admite textualmente em vários discursos, sua intimidade

com o descrito no romance fosse superficial. Concluiu, a partir desse trabalho que a

literatura exigia mais que um repertório de mitologias e folclore. Não eram suficientes

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apenas elencar os documentos a respeito dos fatos presentes na narrativa, havia

que incluir a intuição nascida da relação íntima entre o contexto e o escritor.

No fim das contas, as cosmogonias indígenas não ofereciam um sistema

intelectual nos moldes vivenviados pela sociedade ágrafa. O branco tratava de

apreender a realidade indígena e aplicar-lhe sua razão, adequando-a a sistemas

para que a Cidade letrada pudesse compreender aquele fenômeno primitivo. O

raciocínio do conquistador branco era o viés para toda e qualquer possibilidade de

entendimento. Um exemplo dessa prática é o Popol Vuh, o livro sagrado dos maias,

que registra a cosmogonia e as tradições orais desse povo, porém sob o olhar de

um sacerdote espanhol. O texto indígena foi compilado e censurado durante a

Conquista, pois poderia ser um entrave às missões jesuíticas.

Em busca de mais conhecimento, o escritor cubano aprofundava-se no

estudo das culturas ancestrais: africana, pré-colombiana. Ainda que pouco evidente

em termos artísticos, o estudo parece ter contribuído para o desenvolvimento de

uma consciência de latino-americanidade. Carpentier foi um dos romancistas que

pretendeu deixar marcado em seus escritos as dimensões das raízes latino-

americanas. Em sua obsessão pelo saber, percorreu tantas paisagens e vivências

quanto lhe foi possível, para dar conta da assimilação e integração das realdiades

que encontrava, até que lhe fossem familiares.

A motivação em seguir os passos perdidos do continente foi o motor de

arranque que impulsionou sua trajetória como romancista. Carpentier ao buscar uma

definição para América Latina, leva em conta os aspectos sociais, geográficos,

políticos, econômicos, históricos desse território de difícil delimitação. Um exemplo

desse modus operandi está no livro de ensaios intitulado Tientos y diferencias.

Publicado pela primeira vez no México, na década de 60, o livro divide o continente

em vários «blocos» principais: a montanha, o rio, a planície. Cada um, segundo a

apresentação feita da publicação de Carpentier (1987: 181), seria

«una sección que tiene sus características propias. Por ejemplo, la región andina con su cultura de tipo predominantemente indígena; el Caribe, donde hay un común denominador afroamericano». En la suma de los rasgos esenciales del continente halla su perfil. Omnipresente, eclipsando al hombre, está el marco telúrico, a la vez

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redundante y múltiple. En el centro del crisol se libra la vieja batalla por la supervivencia y la renovación.

As paisagens tipicamente americanas foram tema de romances que

antecederam Los pasos perdidos. Podemos citar o destaque dado às planícies de

Rómulo Gallegos em Doña Barbara (1929) onde o citadino advogado Santos

Luzardo, retorna a sua terra natal, el hato de Altamira, e decide usar seus

conhecimentos para que as savanas de Altamira deixem de ser usurpadas por Doña

Bárbara. Em Carpentier a selva está em evidência e com ela todo um universo de

complexidade histórica e social, com um matiz arquétipico que ficcionaliza o real

vivenciado na cidade e o mítico experimentado na convivência em Santa Mónica de

los Venados.

Carpentier transita no terreno do absoluto e do categórico. Os contextos

postulados por Carpentier para análise do continente americano atuam marcando e

determinando os temas de discussão. Objetiva empreender a difícil tarefa de

registrar o que é específico e, ao mesmo tempo, genérico na experiência latino-

americana. Para tanto, se fará poeta, romancista, historiador, músico, sociólogo, em

uma compulsiva busca pela completude. Sobre a busca mencionada no período

anterior, temos a seguinte citação de Albert Camus (1985: 57) a respeito da criação:

A criação é a mais eficaz de todas as escolas da paciência. É também o testemunho transformador da única dignidade do homem: a rebelião tenaz contra sua condição, a perseverança em um esforço considerado estéril. Exige um esforço cotidiano, o domínio de sí mesmo, a apreciação exata dos limites do verdadeiro, da mesura e da força [...]

Carpentier afirma que o idioma espanhol, que lhe permite alcançar vinte países, o

faria menos nômade frente ao mundo. Ressalta também a intrigante possibilidade de

viver várias épocas históricas dentro de um mesmo período cronológico. É como se

o tempo da narrativa invadisse o tempo cronológico da existencia real. Para definir

tal fenômeno, o intelectual cubano busca inúmeras vezes a terminologia bíblica:

Gênesis, Babel e Apocalipse.

Considera o que ele chama de influências atmosféricas ou os contextos

luminosos: as luzes que envolvem o homem. Postula que as condições climáticas

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determinam, também o caráter de um lugar. Neste sentido, a América Latina

apresenta um amplo espectro que abarca desde as transparências andinas até as

auroras austrais, passando pelos resplandores do deserto e os rápidos crepúsculos

tropicais. Carpentier (1987:147) tratou de desenvolver uma teoria que abarcasse

cada uma destas manifestações. Afirma que:

«Yo creo que la visión del mundo que tiene el intelectual latinoamericano es una de las más vastas, de las más completas, de las más universales que existen... Para mí, el continente americano es el mundo más extraordinario de este siglo. Nuestra visión de él debe ser ecuménica».

Acredita-se que neste momento de fervor revolucionário, América tenha

alcançado, enfim, uma identidade própria que lhe conferiria voz e lugar de destaque

diante do cenário mundial. As realidades autóctones estão sendo rapidamente

incorporadas à experiência universal. Para o intelectual cubano, os latino-

americanos “No sólo nos encontramos en el umbral de una nueva era, [...], sino que

ya hemos entrado en ella. Nuestra madurez se refleja en la obra de nuestros

novelistas, que llevan el sello de su continente como un distintivo personal”.

(CARPENTIER, 2003:153)

O futuro literário da América Latina, aos olhos de Alejo Carpentier (2003: 205-

206) pode ser vislumbrado com profundo otimismo. Para ele, em pouco tempo, a

literatura latino-americana competirá em pé de igualdade com as obras que

representam o cânone ocidental. É tarefa do romancista latino-americano garantir

que isto se torne realidade, como se lê em:

[...] la gran tarea del novelista americano de hoy está en inscribir la fisionomia de sus ciudades en la literatura universal, olvidándose de tipicismos y costumbrismos [...] la novela empieza a ser gran novela [...] cuando deja de parecerse a una novela; es decir: cuando, nacida de una novelística, rebasa esa novelística, engendrando, con su dinâmica propia, una novelística posible, nueva, disparada hacia nuevos ámbitos, dotadas de médios de indagación y exploración que pueden plasmarse [...] en logros perdurables.

Em sua incessante busca por conhecimento, chefiou a redação da revista

Imán (París 1931), publicada em espanhol, porém dedicada sobretudo a escritores

franceses. Foi diretor de Foniric (Paris, 1933), uma casa editora de discos

fonográficos especializada em publicar registros de textos literarios, que

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comprendiam desde Whitman até Aragon. Colaborou na produção de um filme sobre

o vudú. Estudou musicologia, que lhe permitiu escrever partituras e livretos para

cantatas e óperas bufas baseados em temas americanos. Entre animadas tertulias

com Rafael Alberti e García Lorca, estudou os problemas da sincronização musical e

escreveu uma ópera com Edgar Varèse, considerado o pai da música eletrônica.

A escrita de Carpentier tem instríseca relação com a música. A temática que

permeia os princípios de composição musical figura de maneira substancial como

elementos estruturais de sua obra. Em El siglo de las luces (1962), segundo

palavras do autor, vislumbra-se uma espécie de construção sinfônica através da

qual três personagens principais encarnam, respectivamente, um tema masculino,

um feminino e um neutro.

Ainda que a questão musical esteja fortemente presente em Los pasos

perdidos (1953), o exemplo mais notável do pensamento «musical» de Carpentier é

a obra El acoso, que começou a ser escrita ainda durante o processo de finalização

de Los pasos perdidos. Em El acoso (1958), o tempo da sequência dramática

coincide com a duração da Sinfonia Heroica de Beethoven, enquanto que em Los

pasos perdidos a 9 Sinfonia de Beethoven é colocada no romance, segundo o

próprio Carpentier (2013: 95) como “una barrera más, tras de la barrera simbólica de

Los Andes”. Os dois romances e o livro La música en Cuba (1945) são frutos do

período em que esteve na Venezuela, coordenando uma emissora de rádio

Em Los pasos perdidos, o pomposo protagonista é um músico. Vale destacar,

para delinear o processo de criação do autor cubano, que inicialmente o

protagonista do romance exercia outro ofício. Não só ele, mas também sua ausente

esposa desempenhava outra tarefa. Carpentier em seu Diario (2013: 38) justifica a

alteração nas profissões do protagonista e sua esposa, deixando entrever em suas

palavras um traço importantíssimo que marca o seu modo de criação literária, como

se lê em:

En Los pasos perdidos, el personaje relator comenzó por ser un fotógrafo de periódicos. Pero, al cabo de diez páginas comprendí que, no habiendo sido nunca fotógrafo profesional, me era imposible reaccionar ante los hechos como un fotógrafo y volví mi personaje a un oficio que yo hubiera practicado. Así Ruth hubiera debido ser

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bailarina. Hubiera sido mucho más grato, musical, plástico. Pero no he tenido amores con ballerinas, sino con una atriz.

Outros três anos passou distante de Cuba, retornando a Paris. Tal qual o

protagonista do romance aqui analisado, Carpentier ganhou a vida escrevendo e

dirigindo programas de rádio. Ao regressar, aplicou em Cuba as técnicas de

publicidade que aprendera em Paris.

Uma vez mais a vida do escritor se assemelha a do protagonsita do romance.

Já fatigado de seu trabalho, Carpentier viaja em 1943, a convite de Louis Jouvet, em

direção ao Haití. Ao chegar, abandonou a rotina de escrever programas radiais e

cedeu lugar a seu anseio fervoroso por munir-se de conhecimentos. Sobre esse

período Luis Harrs (1966: 509, tradução nossa) comenta

No Haití — que, com sua energia habitual, percorreu de um extremo a outro— Carpentier, grande frequentador de museus y de velhas igrejas, descobriu a extraordinaria carreira do monarca negro de principios do século XIX, Henri Christophe, um despótico visionario, construtor de um império que se inspirou, por uma parte, na corte napoleônica, e por outra, nos legendários antecessores africanos, o rei Dâ, encarnação da Serpente, e Kankan Muza, fundador do império dos Mandingos. Henri Christophe, sobre o qual até então praticamente não havia sido investigado nada — ainda que sua personalidade ja havia seduzido a mais de um escritor, entre eles Eugene O’Neill de Emperor Jones—, era um persongem de ficção ideal, e foi a base do segundo romance de Carpentier, El reino de este mundo (1949).

A citação acima, permite compreender o modo como Carpentier cria suas

personagens. O escritor cubano as trata como símbolos, presenças históricas.

Christophe é mais um exemplo desse modo de criação do escritor cubano.

Através de suas personagens, representações arquétipicas de situações e

comportamentos-chave para o entendimento da história latino-americana, Carpentier

examina toda uma época. É, sobretudo, um cronista. Seu olhar se detém, por

momentos, nas figuras individuais, porém somente para inserí-las dentro do marco

histórico. Traça suas particularidades sem tocar, aprofundar-se na complexidade

pessoal da personagem.

Em Carpentier há uma multiplicidade enunciativa que perpassa os discursos

de suas personagens e se mescla com a opinião do escritor cubano a respeito de

importantes questões históricas vivenciadas ao longo do século XX. O atuante

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jornalista que é preso ao assinar o manifesto pedindo a renúncia de um governo

tirano é o mesmo que descreve com pessimismo e enfado sobre as revoluções

latino-americanas dando a entender que a história é uma sucessão de

acontecimentos repetidos constantemente ao longo dos tempos.

Seus textos têm a profundidade de um documento histórico em uma

roupagem de parábola. Constantemente reitera em seus escritos o tema do exílio e

do retorno que, carregados de simbolismo, se apresentam como movimentos

cíclicos, partidas e retornos de diferentes pessoas que representam os mesmos

arquétipos americanos. O mundo narrativo de Carpentier é um labirinto que engloba

as várias eras vividas pelo homem, onde passado e futuro não estão regidos pela

imperiosa ação do tempo cronológico.

A presença do eterno no temporal e do universal no particular, como elemento

chave do contexto latino-americano, se elabora categoricamente no terceiro

romance publicado de Carpentier, Los pasos perdidos. Nele a crônica, habilmente

transposta na voz de um narrador-protagonista, que carrega consigo um diário, se

mescla com uma prolongada, e a vezes trabalhosa, reflexão sobre a vida, o tempo e

a história.

As personagens, a começar pelo protagonista, são meros avatares dos

distintos aspectos de uma experiência comum. O tema do livro é o retorno de um

expatriado convertido em estrangeiro, alheio a si mesmo, que perdeu a chave de

sua autêntica existência e empreende uma viagem na qual objetiva, ainda que

inconscientemente, encontrar sua identidade perdida. O próprio Carpentier afirma,

em uma entrevista-livro de Ramón Chao (1984: 9), que ao criar suas personagens

escolhe:

[...] cuidadosamente los nombres de los personajes para que obedezcan a una simbólica que me ayude a verlos. Sofía, por ejemplo, habrá de responder, según la etimologia griega de su nombre, al conocimento, al gai savoir.... Me preocupo por dar a mis personajes fecha onosmática y estado civil.

Em um espaço carregado de metáforas, uma viagem ao longo de um vasto rio em

uma selva cujo nome se desconhece faz com que as personagens empreendam

uma viagem no tempo em direção aos tempos primordiais como descritos no livro

bíblico do Gênesis.

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A ideia de Los pasos perdidos foi concebida durante sua estada na Venezuela

— país que de acordo com o autor cubano seria «una síntesis del continente: sus

ríos inmensos, sus llanos interminables, sus montañas gigantescas y la selva

virgen». Em seu Diario, Carpentier (2013: 30) descreve em detalhes o momento em

que lhe ocorreu o argumento do romance e a maneira como esperava que se

desenvolvesse a criação. Com se lê em:

Cuando la idea de esa novela se me ocurrió, de modo fulgurante, un médio dia en que tomaba un auto de alquiler para regressar a mi casa, me imaginaba que seria un relato en siete capítulos, que

escribiría en unos veinte días. No romance descreve-se a viagem que Carpentier, efetivamente, realizou ao longo

do Orinoco. Uma nota final do livro identifica a cena. Durante o curso da narração, o

rio, assim como o protagonista, permanece anônimo. Poderia ser qualquer rio

americano. O narrador poderia ser qualquer homem que remontara a corrente fluvial

em busca do passado da humanidade e de sua própria infância.

Diferente da corrente regionalista que pretendiam entrar em comunhão com a

natureza, Carpentier não pretende fazer de seu protagonista parte integrante do

lugar. Ao contrário, como observador considerado civilizado se coloca a certa

distância daquele cenário. O drama do livro consiste precisamente nos esforços do

protagonista em encurtar essa distância.

O anônimo protagonista de Los pasos perdidos é um músico que desenvolve

uma teoria sobre as origens miméticas e mágicas da música. O Curador de um

museu vinculado a uma universidade norte-americana convidou-lhe a navegar pelo

rio de uma paisagem elementar em busca de certos instrumentos tribais para

enriquecer a coleção do museu. Ainda que um pouco a contragosto emprende a

viagem. Ao retornar ao território onde cresceu, o protaginista sentencia

Yo había sido desarraigado en la adolescencia, encandilado por falsas nociones, llevado al estudio de un arte que sólo alimentaba a los peores mercaderes de Tin-Pan-Alley, zarandeado luego a través de un mundo en ruinas, durante meses, como intérprete militar, antes de ser arrojado nuevamente al asfalto de una ciudad donde la miseria era más dura de afrontar que en cualquier otra parte. (CARPENTIER, 1998:11)

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Não se menciona também o nome da cidade em que o protagonista vive com

sua esposa Ruth. Sabe-se apenas que esse espaço urbano representa a civilização

moderna, enunciada pelo narrador-protagonista:

¡Ah! Por haberla vivido, yo conocí el terrible tránsito de los que lavan la camisa única en la noche, cruzan la nieve con las suelas agujereadas, fuman colillas de colillas y cocinan en armarios, acabando por verse tan obsesionados por el hambre, que la inteligencia se les queda en la sola idea de comer. (CARPENTIER, 1998:11)

Ainda que viva em melhores condições materiais na terra estrangeira, a vida do

musicólgo já não encontra mais sentido. A rotina o ata a sua esposa Ruth e juntos

representam o espetáculo da relação conjugal, que não passa de um triste repetir de

ações frias. Tampouco se percebe em seu relacionamento com a amante Mouche

algum traço de sentimento e autenticidade.

Há uma incontestável reminiscencia de Joseph Conrad11 em Carpentier, que

não se restringe somente ao estilo exuberante e rebuscado, mas também à alegoria

da viagem. Ambos tratam do mesmo tema, porém de maneira inversa. Para Conrad,

o coração das trevas era um mundo de horror e selvageria, enquanto que no

romance de Carpentier a selva é a contemplação de um espaço idílico.

A anônima capital latino-americana vive todo o fervor da revolução; ao sair

dela para entrar nas aldeias do interior da cidade encontram-se vestígios da vida

como era vivenciada nos séculos XVIII ou XIX. Dando continuidade à viagem,

contemplam-se regiões que mantêm intactas estruturas feudais e finalmente, ao fim

da travessia pelo rio, encontra-se o mundo primitivo, tribal, no mais profundo da

selva.

Uma vez mais se percebe que as personagens no romance funcionam mais

como personificações de figuras emblemáticas do que agentes da ação narrativa: o

buscador de ouro, o aventureiro grego, o sacerdote pioneiro, o Adelantado, que

representa as forças seculares de construção de cidades no território primitivo.

11 Assim como em Carpentier e sua prática literária, o romance O coração das trevas de Joseph

Conrad possui similaridades com a vida do autor britânico. Oito anos e meio antes de escreve-lo, Conrad foi designado para trabalhar como capitão de um navio no rio Congo. No romance, o cenário é o mesmo.

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O anônimo musicólogo de Carpentier retrocedeu através das eras de

existência humana. O fim da viagem fez com que o protagonista vislumbrasse o

princípio da humanidade. De modo idealizado compreende-se esse cenário primitivo

como uma metáfora de uma existência feliz, harmônica, plena. O anônimo musicólgo

que aceita a contragosto a realização do trabalho de campo já não quer regressar à

sufocante atmosfera civilizada, pois descobriu que “aquí puede ignorarse el año en

que se vive, y mienten quienes dicen que el hombre no puede escaparse de su

época” (CARPENTIER, 1998:150)

Contudo, esse desejo de permanência na selva o torna ainda mais vulnerável.

Tal qual no Mito da Caverna de Platão, o protagonista sai da caverna, conhece a luz

e constitui-se como um homem só. Representante da civilização letrada do século

XX, possuidor de um conhecimento ilustrado significativo. Está dotado, ou

condenado, a viver no mundo das letras e artes, por haver provado do fruto do

conhecimento assim como Adão e Eva, no paraíso, provaram do fruto proibido. Não

há retrocesso ou apagamento possíveis, o homem deve estar em contato com seu

século; não pode desconectar-se.

La marcha por los caminos excepcionales se emprende inconscientemente, sin tener la sensación de lo maravilloso en el instante de vivirlo... Los mundos nuevos tienen que ser vividos, antes que explicados. Quienes aquí viven no lo hacen por convicción intelectual; creen simplemente que la vida llevadera es ésta y no la otra. Prefieren este presente al presente de los hacedores del Apocalipsis.(CARPENTIER 1998:147)

Regressar não é uma opção dada ao protagonista, posto que

... el que se esfuerza por comprender demasiado, el que sufre las zozobras de una conversión, el que puede abrigar una idea de renuncia al abrazar las costumbres de quienes forjan sus destinos sobre este légamo primero, en lucha trabada con las montañas y los árboles, es hombre vulnerable por cuanto ciertas potencias del mundo que ha dejado a sus espaldas siguen actuando sobre él». Por lo tanto, «nada de esto se ha destinado a mí, porque la única raza humana que está impedida de desligarse de las fechas es la raza de quienes hacen arte, y no sólo tienen que adelantarse a un ayer inmediato, representado en testimonios tangibles, sino que se anticipan el canto y forma de otros que vendrán después, creando nuevos testimonios tangibles en plena conciencia de lo hecho hasta hoy. (CARPENTIER 1998:150)

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No momento vivido pelo musicólogo latino-americano, protagonista do

romance, os códices universais já não abarcam a universalidade do pensamento

estável. As teorias, tão conexas e afinadas, que lhe custaram anos de incessante

leitura se esfacelam diante de seus olhos. Seguir a missão de dar nome às coisas

assim como Adão na criação do mundo e os conquistadores europeus ao chegar na

América não constitui uma tarefa tão valorosa, como se lê em:

Al cabo de los años, luego de haber perdido la juventud en la empresa, regresarían a sus países con la mirada vacía, los arrestos quebrados, sin ánimo para emprender la única tarea que me pareciera oportuna en el medio que ahora me iba revelando lentamente la índole de sus valores: la tarea de Adán poniendo nombres a las cosas. (CARPENTIER 1998, 75)

Já não se pode mais regressar ao estado original, nem seguir na reprodução

de teorias que não condizem com a prática. É chegado o momento de repensar e

moldar uma nova consciência e seria esta, segundo o narrador, a função dos

homens cujo ofício se enreda com as letras e as artes:

Muy ingeniosa era mi idea de hermanar el propósito mágico de la plástica primitiva […] con la fijación primera del ritmo musical, debida al afán de remedar el galope, trote, paso, de los animales. Pero yo asistí, hace días, al nacimiento de la música. […] Lo que he visto confirma, desde luego, la tesis de quienes dijeron que la música tiene un origen mágico. Pero ésos llegaron a tal razonamiento a través de los libros, de los tratados de psicología, construyendo hipótesis arriesgadas acerca de la pervivencia, en la tragedia antigua, de prácticas derivadas de una hechicería ya remota. Yo, en cambio, […]; he visto, en el juego de la voz real y de la voz fingida que obligaba al ensalmador a alternar dos alturas de tono, cómo podía originarse un tema musical de una práctica extramusical. (CARPENTIER, 1998:202-203)

Para evitar a mácula do final feliz é necessário expor o ponto fraco do

protagonista, mantendo-se engendrada a roda da civilização letrada e a da

civilização elemental. Cada uma em sua rotação. Ambas correm simultaneamente

com o passar do tempo, ainda que cada uma em seu ritmo. Em Los pasos perdidos,

assim como ocorre em quase toda retórica de Carpentier, abunda a linguagem

carregada. Orações complexas, tal qual trabalho de ourivesaria. Tais estruturas se

acumulam formando intermináveis páragrafos. Carpentier parece ter um misterioso

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apetite pela palavra. Uma verborragia temperada, por vezes, com requintes de

natureza morta e em outras com a delicadeza de um paciente jardineiro arquitetando

o jardim do Éden.

Os diálogos são excassos e a estrutura do texto possui uma rigidez quase

sufocante. Trabalho que foi arduamente realizado durante anos. Essa obra torcida,

retorcida, profusa foi completamente reescrita pelo autor três vezes. Pode-se notar o

quão angustiante foi o processo de criação da narrativa quando lemos algumas

páginas de seu diário pessoal ao referir-se sobre a criação de Los pasos perdidos,

principalmente no que se refere à ausência de diálogos

¿Por qué esa necesidad imperiosa, tiránica de suprimir los diálogos y todo signo ortográfico vertical: interrogaciones, admiraciones, paréntesis, en un trabajo de cuatrocientas páginas? Yo mismo me asombro, ahora la disciplina impuesta... (CARPENTIER, 2013: 32)

Na demora em concluir o romance que levaria cerca de vinte dias, segundo

previsões inciais de Carpentier e, no entanto:

Empezándolo el dia 7 de diciembre de 1949, contaba tenerlo terminado para comienzos de enero. El libro ha cobrado 40 capítulos, y pronto se cumplirán dos años desde el momento que su tema se

me impuso de manera ineludible. (CARPENTIER, 2013:30) Sua atitude minusciosa de buscar englobar um infindo repertório de detalhes no

romance, se revela em seu Diario:

Solo suelto un libro, cuando creo haber cuidado, en lo posible, de la factura. La publicación de Los pasos perdidos está detenida por una angustia ante detalles tan pequenos, que el lector nunca se dará cuenta de que allí pudiera estar la barrera. (CARPENTIER, 2013:32)

E o mescla de insegurança e alívio, sentimentos registrados nesse Diario, após a

finalização de Los pasos perdidos:

[...] Hace días, consciente de que Los pasos perdidos era libro que ya estaba en estado de ser mandado a la imprenta [...] Creo que está acabado [...] He llegado en él, a ese estado de saturación en que nada quiero retocarle [...] está lleno de cosas. Quiero salir de él [...] Poder empezar otras cosas. Cambiar de mundo [...] otros personajes, otra gente, vista con experiência reciente (CARPENTIER, 2013: 99)

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Carpentier se interessa mais pelo contexto do que pela personagem. Chama

seu estilo de neo-barroco e o associa diretamente a uma tendência pertencente ao

continente latino-americano. Em Carpentier o discurso tem odor a biblioteca e

arquivo. Carpentier é como o artista árabe que ao não poder representar formas

viventes se expressa em arabescos. Não se contenta apenas em trabalhar em uma

tela ampla, quer cubrir a superficie inteira. Ao leitor não le resta nada que agregar

diante de sua profusa pintura feita a pena e palavras. Chega a perder-se diante de

um mar de perspectivas.

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2ªPARTE: A OBRA LOS PASOS PERDIDOS DE ALEJO CARPENTIER

Me llegó el primer ejemplar completo de Los pasos perdidos. [...]. No tenho ganas de leer el libro [...] demasiado apretado; demasiado denso. Y, sin embargo, si hubiera que escribir el libro de nuevo, no le cambiaría una coma de lugar.

Alejo Carpentier (1953)

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III- O RELATO DE VIAGEM: HISTÓRIA E APLICAÇÕES

No presente capítulo apresenta-se uma análise de alguns aspectos presentes

em Los Pasos Perdidos, de Alejo Carpentier, com a intenção de, ao considerar sua

história, personagens e importância para a América Latina vislumbrar o espaço do

rio Orinoco e da selva como elementos que fomentam a reflexão do intelectual

latino-americano do século XX. Consideram-se também as características formais

que compõem um relato de viagem nos moldes de uma etnografia com o fim de

analisar como Carpentier desenlvolve seu meta-modelo

A temática central, do romance de Carpentier permite que o leitor vislumbre

um imaginário textual: os sinais literários remetem a um mundo que encontra o seu

caminho em torno da viagem temporal e atemporal, como o mito. Este trajeto

estende-se por um espaço geográfico definido: a América Latina. Uma leitura que

retoma e relê muitas obras consagradas no cenário literário. Para analisar este

percurso serão utilizados os conceitos de relato de viagem propostos por Pratt

(2011) e López de Mariscal (2007). Também serão empregados os conceitos sobre

práticas etnográficas de Malinowski (1978) e Strauss (1996), além das concepções

de Alejo Carpentier sobre o Real maravilhoso (1984).

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3.1 O modelo etnográfico e seu meta-modelo

O vocábulo etnográfico12 se define, inicialmente, como a escrita sobre outras

etnias, feita por alguém que não pertence à etnia em estudo. Tal modelo foi criado e

amplamente divulgado no século XIX, momento em que se constituíram as Ciências

Humanas, e preconizava-se no texto, dentre outras regras, a função referencial da

linguagem, a predileção pelo denotativo, a ordem direta, os verbos em indicativo, a

utilização da terceira pessoa do singular, sem incursões pela primeira pessoa, do

teor testemunhal, privilegiava-se o estilo indireto, o uso moderado de adjetivos.

O relato etnográfico costuma ser organizado em datas e contém o maior

número de referências possíveis, partindo do ponto de vista cultural do enunciador.

Dispõem-se as informações de modo que o leitor, mesmo não estando presente na

cena, possa compreender os fenômenos sociais ocorridos na comunidade estudada.

Um dos estudos mais reconhecidos da etnografia intitula-se “Os argonautas

do Pacífico Ocidental”, escrito por Bronislaw Malinowski (1884-1942) e publicado em

1922. Nesta obra encontra-se o relato de uma experiência vivenciada entre os

nativos das ilhas Trobriand. É considerado inovador pois caminha na direção

contrária dos trabalhos que vêm sendo realizados ate então, já que privilegia a

observação participante, estabelecendo uma tensão entre o trabalho de campo,

pouco valorizado pelos pesquisadores, e o trabalho de gabinete.

Também não se poderia deixar de abordar a obra Tristes trópicos de Claude

Levi-Strauss (1908-2009) publicada pela primeira vez em 1955, reconhecido como o

criador da antropologia estrutural. Assim como Malinowski, Strauss também

escreveu sobre o cotidiano de comunidades indígenas em seus cadernos de campo.

Em Tristes trópicos, obra dividida em nove partes, Strauss registra não

somente suas experiências vividas em comunidades indígenas brasileira, mas

também descrições da cidade de São Paulo na década de 30. Além disso, contém

12 No dicionário (HOUAISS e VILLAR, 2009, p. 847) encontram-se as seguintes definições para a referida palavra: “1: estudo descritivo das diversas etnias, de suas características antropológicas, sociais etc. 2: registro descritivo da cultura material de um determinado povo”

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reflexões acerca do trabalho de etnógrafo e sobre as tensões entre cidade x campo;

primitivo x moderno vividas no Novo mundo. O material do livro é fruto do estudo de

um grupo de professores franceses que vêm à São Paulo para trabalhar na

implantação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas na recém-

inaugurada Universidade de São Paulo. Trabalho que rendeu a Strauss o

conhecimento necessário para ser reconhecido mundialmente como etnógrafo.

Sobre a etnografia, estudo ainda pouco valorizado na primeira metade do século XX,

Strauss ( 1996: 356) interroga:

O que é exatamente uma pesquisa etnográfica? O exercício normal de uma profissão como as outras, com essa única diferença de que o escritório ou o laboratório estão separados do domicílio por alguns milhares de quilômetros? Ou a consequência de uma escolha mais radical, implicando um questionamento do sistema no qual nascemos e crescemos? [...] largara minha carreira universitária, enquanto isso, meus condiscípulos mais ajuizados [...] eram, hoje, deputados, em breve ministros. Quanto a mim, eu corria os desertos perseguindo os detritos da humanidade.

A tensão entre o prestigioso e limitado trabalho de gabinete e o inóspito

trabalho de campo é um dos temas abordados ao longo do romance Los pasos

perdidos de Carpentier. O escritor cubano, além de jornalista, é também musicólgo e

desenvolveu estudos teóricos que exigiram uma pesquisa in locus. É possível

reconhecer dados biográficos de Alejo Carpentier em diversas passagens dessa

obra.

Como musicólogo, o Carpentier é internacionalmente conhecido por seus

trabalhos de pesquisa no âmbito histórico e musical como, por exemplo, La música

en Cuba, publicado em 1946. O próprio tema do romance em análise na presente

tese é fruto de uma viagem de Carpentier ao interior da Venezuela em uma de suas

buscas pelas raízes americanas. Como revela o fragmento encontrado na quarta

capa de uma edição de Los pasos perdidos:

Inspirado em experiências pessoais vividas pelo autor no interior da Venezuela, a viagem do anônimo protagonista do romance […] se revela […] como um retrocesso no tempo, através das etapas históricas mais significativas da América, até as origens, até a época das primeiras formas da invenção da linguagem. (CARPENTIER, 1998)

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Esta assertiva foi confirmada nos estudos de Jorge Oscar Pickenhayn , que

apontam o romance Los pasos perdidos como uma das obras mais pessoais de

Carpentier. O processo de criação de Carpentier, seja no cenário literário ou

jormalístico, parecia desenvolver-se como uma tarefa minusciosa. Tal qual o sujeito

poético de Profissão de fé, do poeta brasileiro do período parnasiano, Olavo Bilac,

Alejo Carpentier também

Corre; desenha, enfeita a imagem, […] Torce, aprimora, alteia lima A frase […] E horas sem conto passo, mudo, O olhar atento, A trabalhar, longe de tudo O pensamento

Doutrinado por ideias que defendem a possibilidade de encontrar em

comunidades primitivas a origem da música, e que esta se inspiraria nos sons

encontrados na natureza para realizar uma mera musicalização de ritos, sem

qualquer espaço para a criatividade, o protagonista do romance de Carpentier “viaja

por él [el río Orinoco] hasta las raíces de la vida, pero cuando quiere reencontrarla

ya no puede, pues ha perdido la puerta de su existencia auténtica”. (CARPENTIER,

1965: 218).

O capítulo que inicia o romance do escritor cubano apresenta ao leitor uma

sociedade na qual a figura masculina está reificada. Dentro desse sistema, as

relações interpessoais se desenvolvem apenas em um plano superficial e carecem

de sentido. Os atos das personagens se apresentam como meros esquemas

impostos, executados de forma repetida, como se confirma na seguinte passagem

sobre a vida do protagonista:

Había grandes lagunas de semanas y semanas en la crónica de mi propio existir; temporadas que no me dejaban un recuerdo válido[…] días en que todo gesto me producía la obsesionante impresión de haberlo hecho antes en circunstancias idénticas [...]Cuando se festejaba mi cumpleaños en medio de las mismas caras, [..] me asaltaba invariablemente la idea de que esto sólo difería del cumpleaños anterior en la aparición de una vela más sobre un pastel cuyo sabor era idéntico al de la vez pasada. Subiendo y bajando la

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cuesta de los días, con la misma piedra en el hombro, me sostenía por obra de un impulso adquirido a fuerza de paroxismos (CARPENTIER, 1998: 4-5)

Na citação anterior, evidencia-se a semelhança entre a vida do anônimo

musicólgo e o destino final da personagem mitológica Sísifo, filho de Éolo, deus dos

ventos e descendente direto de Prometeu. Sísifo ficou conhecido como o mais

astucioso de todos os mortais. Fundou a cidade de Cortinto e, segundo Homero, foi

um rei justo e pacífico. Mas sua impetuosidade em desafiar os deuses fez com que

Sísifo fosse castigado por Júpiter a passar a eternidade no Tártaro rolando uma

enorme rocha até o alto de uma montanha e atirá-la daquele cume, tarefa que se

repetiria para sempre.

No romance de Carpentier, não era apenas o protagonista que vivia com o

pesar de desempenhar um ofício enfadonho. Sua esposa Ruth também se mostrava

fatigada em sua carreira de atriz. Na passagem a seguir Carpentier trata da rotina e

da relação desgastada entre o protagonista do romance e sua esposa:

Hasta las paredes de la habitación se habían tajado, al ser tocadas siempre en los mismos lugares […] Sentado ahora en el diván que de verde mar había pasado a verde moho, me consternaba pensando en lo dura que se había vuelto, para Ruth, esta prisión de tablas de artificio, con sus puentes volantes, sus telarañas de cordel y árboles de mentira. […] No le faltaban ganas de romper el contrato. Pero tales rebeldías se pagaban, en el oficio, con un largo desempleo, y Ruth, que había comenzado a decir el texto a la edad de treinta años, se veía llegar a los treinta y cinco, repitiendo los mismos gestos, las mismas palabras, todas las noches de la semana, todas las tardes de domingos, sábados y días feriados […] El éxito de la obra aniquilaba lentamente a los intérpretes, que iban envejeciendo a la vista del público dentro de sus ropas inmutables, […] (CARPENTIER, 1998: 2-3)

Sobre esta personagem, Carpentier, em sua narração, constrói uma

metonímia13, cuja lógica se estabelece a partir de um príncipio nada universal. A

relação íntima entre o casal é denominada pelo narrador como Convivencia do

Sétimo día, já que apenas aos sábados cumpriam o que acreditavam ser a função

de marido e mulher, como se lê em:

13 Atualmente, não se faz mais a distinção entre metonímia e sinédoque (emprego de um termo em lugar de outro), havendo entre ambos relação de extensão. Por ser mais abrangente, o conceito de metonímia prevalece sobre o de sinédoque.

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Pero otra vez un texto, un escenario, una distancia, se interponía entre nuestros cuerpos, que no volvían a encontrar ya, en la Convivencia del Séptimo Día, la alegría de los acoplamientos primeros. (CARPENTIER, 1998:7)

Um aspecto que chama atenção ao longo do relato é a extensa lista de

referências dadas pelo personagem. O que parece querer denotar a erudição do

protagonista, refletindo uma tendência comum dos intelectuais na primeira metade

do século XX. A título de exemplo temos a citação de nomes como os de André

Schaeffner e Curt Sachs, notáveis representantes da chamada musicologia

comparada, precursora da etnomusicologia atual; também a constante menção aos

clássicos alemães Bach e Wagner expoentes do barroco e romantismo,

respectivamente; os compositores eruditos Meyerbeer, Donizetti, Rossini e Hérold,

todos europeus, sem esquecer as frequentes alusões à Nona sinfonia de Beethoven

sobre a qual a personagem comenta:

[…] llegándose al tema de los obreros ilustrados que allá, en su ciudad natal, junto a una catedral del siglo XIII, pasaban sus ocios en las bibliotecas públicas y los domingos […] llevaban sus familias a escuchar la Novena Sinfonía. (CARPENTIER, 1998: 99)

Além das referências musicais têm-se também as filosóficas e literárias, como

Nietzsche, Mallarmé e Lord Byron; e as obras Prometeu acorrentado, Odisséia

contando também com os livros sagrados dos cristãos, a Bíblia, e dos povos pré-

colombianos: o Popol Vuh e o Chilam- Balam.

Essa preocupação com a forma e os detalhes de seus escritos pode ser

comprovada por palavras do próprio Carpentier, no que diz respeito à planificação

do cenário: “Antes de escribir una novela trazo un plan general que comprende

plano de las casas, dibujos de los lugares en que va a transcurrir la acción” (In:

GIACOMAN, 1970: 109-110) Processo que resulta no estabelecimento de uma obra

rica e complexa como afirma Roberto González Echeverría (2004: 62) ao enunciar:

... Carpentier sempre é um contexto problemático, porém persistente para si mesmo […] A ordem na qual se inscreveram os textos de Carpentier constituem uma via de acesso à mecânica dos textos, uma rota, por assim dizer, cheia de recursos e meandros.

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A partir do segundo capítulo a organização do relato toma forma de caderno

de campo, tal qual uma etnografia. Datados, em sua maioria, e com descrições

minuciosas das paisagens e das personagens encontradas, os capítulos retratam a

experiência vivida desde sua chegada à capital latino-americana até sua saída de

Santa Mónica de los Venados.

Assim como nos textos etnográficos privilegia-se no discurso do narrador de

Los pasos perdidos, o uso do estilo indireto. O narrador fornece, no início da trama,

poucas informações sobre si mesmo, detém-se a descrever o espaço, os elementos

que o rodeiam e apresenta sua esposa Ruth como mais uma prisioneira desse

mundo hipócrita. Toma-se conhecimento da profissão do protagonista apenas a

partir do segundo capitulo quando este, em casa de sua amante Mouche, contempla

uma das propagandas em que aplica seus conhecimentos como músico a serviço do

mercado publicitário, se verifica a seguir:

Y pronto quedó montado el proyector con la copia de la película presentada la víspera, […] Aquello había costado tres meses de discusiones, perplejidades, experimentos y enojos, pero el resultado era sorprendente. El texto mismo, escrito por un joven poeta, en colaboración con un oceanógrafo, bajo la vigilancia de los especialistas de nuestra empresa, era digno de figurar en una antología del género. […] Y en cuanto al montaje y la supervisión musical, no hallaba crítica que hacerme a mí mismo.[…] Y después de la segunda proyección, […] se me rogó por una tercera. Pero cada vez que mis ojos, […] , alcanzaban el «fin» floreado de algas [...], me hallaba menos orgulloso de lo hecho. (CARPENTIER, 1998:14)

Essa vida de representações, tomada por um ofício que não agrada o musícólogo,

porém “paga suas contas” o deixa desmotivado, levando-o a remoer com amargor

as palavras de seu pai:

Me pareció oír la voz de mi padre, tal como le sonaba en los días grises de su viudez, cuando era tan dado a citar las Escrituras: «Lo torcido no se puede enderezar y lo falto no puede contarse.» […] Y amarga me sabía ahora la prosa del Eclesiastés al pensar que el Curador, por ejemplo, se hubiera encogido de hombros ante ese trabajo mío, considerando, tal vez, que podía equipararse a trazar letras con humo en el cielo, o a provocar, con un magistral dibujo, la salivación meridiana de quien contemplara un anuncio de corruscantes hojaldres. (CARPENTIER, 1998:14)

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No que concerne à descrição do cenário, temos expressões como “columnas

enfermas” e “vulvas de plantas insectívoras”; comparações entre seres animados e

inanimados em “caimanes parecían maderos pudridos” e “las hojas enormes,

abiertas como manos”, todo um universo mítico que reserva ao leitor apenas a ação

de deixar-se conduzir pela sinuosa estrada ficcional construída por Carpentier. A

respeito do modo de organização de seu discurso, Echevarría (2004: 67-68)

discorre:

O itinerário das obras de Carpentier inclui a invenção de uma linguagem arcaica, como em Larreta, uma erudição enciclopédica, como em Borges, e o desejo constante de inaugurar a escrita, como em Neruda. Chegar a conhecer a trajetória de Carpentier implica chegar a conhecer a problemática da literatura latino-americana moderna

Em relação ao tempo na narração, é possível afirmar que em Los pasos

perdidos, essa variante apresenta-se como tema da obra, já que o protagonista

empreenderia uma viagem al revés através dos tempos rumo aos Compases del

Génesis como se lê em

Porque, al atardecer, hemos caído en el habitat de un pueblo de cultura muy anterior a los hombres con los cuales convivimos ayer. Hemos salido del paleolítico […] para entrar en un ámbito que hacía retroceder los confines de la vida humana a lo más tenebroso de la noche de las edades. (CARPENTIER, 1998:98)

Há na narrativa, simultaneamente, o tempo cronológico em que se descreve a

viagem à capital latino-americana, o transcorrer dos dias de conflito em que o

protagonista fica preso no hotel em que está hospedado. Mas há também um tempo

que parece correr em sentido contrário ao cronológico. À medida que o protagonista

ingressa na selva americana, o tempo deixa de ser medido por instrumentos

mecânicos e passa a ser vivenciado com base nas paisagens contempladas ao

longo do caminho. Paisagens que o protagonista reconhece ao rememorar a leitura

dos textos que datam, cronologicamente, do tempo da colonização europeia.

Roberto Echeverría (2004: 215) em seu livro Alejo Carpentier: el peregrino en su

pátria discorre sobre este aspecto da narrativa, afirmando que:

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... confome penetra na selva, o protagonista, chega a crer que está viajando através de toda a historia humana, como se sua viagem não fosse por uma paisagem real, mas sim através de um museu imaginário, ou um compêndido de história mundial lido ao revés. Sua viagem é também através da memória pessoal, através de todas as etapas de sua vida passada, até a infância e em última instância até seu próprio nascimento

Essa percepção atemporal se ratifica em uma passagem do romance na qual o

protagonista constata:

Observo ahora que yo, maniático medidor del tiempo, atento al metrónomo por vocación y al cronógrafo por oficio, he dejado, desde hace días, de pensar en la hora, relacionando la altura del sol con el apetito o el sueño. El descubrimiento de que mi reloj está sin cuerda me hace reír a solas, estruendosamente, en esta llanura sin tempo (CARPENTIER, 1998:60)

No que concerne as escolhas verbais, temos a predominância do pretérito

imperfeito nos momentos em que o narrador recorda com saudosismo o passado,

como se vislumbra desde o primeiro capítulo:

Hacía cuatro años y siete meses que no había truelto a ver la casa de columnas blancas, con su frontón de ceñudas molduras que le daban una severidad de palacio de justicia, y ahora, […], tenía la casi penosa sensación de que el tiempo se hubiera revertido. Cerca del farol, la cortina de color vino; donde trepaba el rosal, la jaula vacía. Más allá estaban los olmos que yo había ayudado a plantar en los días del entusiasmo primero, cuando todos colaborábamos en la obra común (CARPENTIER 1998: 1-2)

O presente é utilizado, poucas vezes, comumente no registro de alguma cena

corriqueira, como se lê em:

Me siento de piernas tiesas en el fondo de un sillón de mecedora, [...], y abro el Epítome de Gramática de la Real Academia, que esta tarde tengo que repassar [...]La negra, allá en el hollín de sus ollas, canta algo que se habla de los tiempos de la Colonia y de los mostachos de la Guardia Civil.[...] Llamo a María del Carmen, que juega entre las arecas en tiestos, los rosales en cazuela, los semilleros de claveles, de calas, los girasoles del traspatio de su padre el jardinero.[...] Nos envuelve el olor a esparto, a fibra, a heno, de esta cesta traída, cada semana, por un gigante sudoroso, que devora enormes platos de habas a quien llaman Baudilio. (CARPENTIER, 1998: 49-50)

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O uso da primeira pessoa do singular, cuja forma em alguns tempos se iguala

ao uso da terceira pessoa, faz crescer na narrativa esse entrecaminho traçado entre

o narrador do romance e o escritor cubano, que utiliza suas memórias pessoais

como matéria de criação, não apenas neste, mas especialmente em Los pasos

perdidos, como lemos em Echevarría (2004: 222): “O narrador é este espaço entre o

<<eu>> e o <<ele>> e entre aquele momento e o agora; [...] essa falta de centro

gera o barroquismo estilístico de Carpentier [...] assim como o reiterativo do texto e

seu final aberto.”

A seguir destacaremos algumas datas relevantes para a trama de Carpentier.

O capítulo que inaugura o caderno de campo, marca a chegada do musicólgo à

cidade latino-americana em 7 de junho. Na passagem do romance que se lerá a

seguir, é possível notar o estranhamento da personagem com um território que lhe

parecia alheio, ainda que o narrador tivesse nascido naquele espaço:

… aquella capital dispersa, sin estilo, anárquica en su topografía, cuyas primeras calles se dibujaban ya debajo de nosotros […] Al amanecer, cuando volábamos entre nubes sucias, estaba arrepentido de haber emprendido el viaje; tenía deseos de aprovechar la primera escala para regresar cuanto antes y devolver el dinero a la Universidad. Me sentía preso, secuestrado, cómplice de algo execrable, […] (CARPENTIER 1998: 20-21)

Outra questão que se soma à que acabamos de discorrer é a relevância do

idioma materno na rememoração de um perfil identitário na América de origem

hispânica. O protagonista de Carpentier (1998: 23) está habituado a se expressar

em um idioma estrangeiro. Está tão territorializado ao usá-lo que ao ouvir o idioma

de sua infância sente:

… una fuerza me penetra lentamente por los oídos, por los poros: el idioma. He aquí, pues, el idioma que hablé en mi infancia; el idioma en que aprendí a leer y a solfear; el idioma enmohecido en mi mente por el poco uso, dejado de lado como herramienta inútil, en país donde de poco pudiera servirme

Ao passo que este idioma, constantemente utilizado na infância, deixou de ser

uma ferramenta útil em suas aspirações de outrora, passa a ser, no momento

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presente da narrativa, um elemento de identificação e de diferenciação frente ao

outro, aqui representado pela amante Mouche,

Y es […] el que ahora se estampa en los letreros de los comercios que veo por los ventanales de la sala de espera; ríe y se deforma en la jerga de los maleteros negros; se hace caricatura de un ¿Biva el Precidente!, cuyas faltas de ortografía señalo a Mouche, con orgullo de quien, a partir de este instante, será su guía e intérprete en la ciudad desconocida. Esta repentina sensación de superioridad sobre ella vence mis últimos escrúpulos. (CARPENTIER, 1998: 44)

Vê-se configurado na citação que acaba de ser lida, o jogo das identidades, através

do qual o indivíduo age de acordo com o contexto em que está inserido.

Após essa primeira identificação com o elemento linguístico, o protagonista

passa a observar a realidade que lhe rodeou quando criança sob uma nova

perspectiva. Quanto mais o musicólogo ingressava no universo que desembocaria

no povoado de Santa Mónica de los Venados, maiores são os questionamentos em

torno de sua existência como se lê no fragmento a seguir.

Hay, dentro de mí mismo, como un agitarse de otro que también soy yo, y no acaba de ajustarse a su propia estampa; él y yo nos superponemos incómodamente [...] Me siento a la vez deshabitado y mal habitado.[...] El idioma de los hombres del aire, que fue mi idioma durante tantos años, desplaza en mi mente, esta mañana, el idioma matriz — el de mi madre, el de Rosario—. Apenas si puedo pensar en español, como había vuelto a hacerlo, ante la sonoridad de vocablos que ponen la confusión en mi ánimo. (CARPENITER, 1998: 262-264)

A viagem ao povoado primitivo acontecería em breve, no entanto, Mouche e o

musicólogo são supreeendidos pela eclosão de um conflito armado. Tal

acontecimento começa a ser descrito no diário no dia 8 e somente em 11 de junho, o

casal segue com destino à selva onde esperam encontrar os idiófones para o

acervo do Museu Organográfico. Neste primeiro momento, Mouche e o musicólogo

saíram da região dos Altos até o porto onde poderiam tomar uma embarcação que

os levaría à selva. A paisagem contemplada ao longo da viagem inicia o proceso de

reflexão da personagem principal a respeito de suas origens:

De Los Altos partían […] los autobuses que conducían al puerto desde el cual había modo de alcanzar, por río, la gran Selva del Sur.

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Con la revolución, mis dineros habían subido mucho al cambio con la moneda local. Lo más […] limpio, […] en suma, era emplear el tiempo […] cumpliendo con el Curador y con la Universidad, llevando a cabo, honestamente, la tarea encomendada. […] compré al tabernero dos pasajes para el autobús de la madrugada. […] empezamos a rodar sobre una carretera que se adentraba en la sierra […] Cuando saliéramos de la bruma opalescente que se iba verdeciendo de alba, se iniciaría, para mí, una suerte de Descubrimiento. El autobús […] trepaba con tal esfuerzo […] que cada cuesta vencida parecía haber costado sufrimientos indecibles a toda su armazón desajustada […] Todo lo circundante dilataba sus escalas en una aplastante afirmación de proporciones nuevas. (CARPENTIER, 1998: 40-41)

Em meio à descrição de uma paisagem que desconcerta o anônimo

musicólogo de Carpentier, uma melodia irrompe o cenário de redescoberta: é o

primeiro tema da Nona Sinfonia de Beethoven soando em um povoado, cujas

construções o fizeram recordar o início de Don Quijote de la Mancha. O drama de

encontrar-se diante de uma paisagem imperiosa encontra-se com o drama expresso

no primeiro tema de Allegro ma non tropo de Beethoven. A seguir ilustra-se com um

fragmento do romance de Carpentier o momento descrito nas linhas acima:

De pronto, apareció un pueblo, [...], que me pareció de un sorprendente empaque castellano [...] El rebuzno de un asno me recordó una vista de El Toboso [...] que ilustraba una lección de mi tercer libro de lectura, y tenía un raro parecido con el caserón que ahora contemplaba. [...] oí algo como pequeñas voces en un rincón de la sala. Alguien había dejado prendido un aparato de radio [...] Iba a apagarlo cuando sonó, dentro de aquella caja maltrecha, una quinta de trompas que me era harto conocida. Era la misma que me hiciera huir de una sala de conciertos no hacía tantos días. Pero esta noche, [...] esa remota ejecución cobraba un misterioso prestigio. [...] me venía [...] con sonoridades que no eran de notas, sino de ecos hallados en mí mismo. Acercando la cara, escuché. [...] Y fue, en un desgarre de sombras tormentosas, el primer tema de la Novena Sinfonía. [...] Al cabo de tanto tiempo sin querer saber de su existencia, la oda musical me era devuelta con el caudal de recuerdos que en vano trataba de apartar del crescendo que ahora se iniciaba, vacilante aún y como inseguro del camino. (CARPENTIER, 1998: 41-45)

A lembrança trazida pela sinfonia faz com que o protagonista do romance

remonte acontecimentos de sua infância. Diversas passagens vividas que pareciam

ter caído no esquecimento. Momentos que construíram seu enfado diante da

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realidade latino-americana e o fizeram buscar novos rumos em terras de língua a ele

estrangeira. Contudo, ainda que tenha sido acometido por tais reminiscências foi

capaz de apreciar por alguns instantes a Nona Sinfonia, composição que por tanto

tempo lhe causou enfado.

A excessiva citação de intelectuais, obras e teorias prossegue ao longo da

narrativa, porém agora com a função de desconstruir e confirmar os discursos

hegemônicos vigentes nas primeiras décadas do século XX. O narrador que utilizava

um discurso repleto de citações e fórmulas se apropria do discurso de estudiosos e

exploradores de terras do século XIX para terminar problematizando questões

pertinentes ao discurso antropológico do século XX. Como se comprova nas

confirmações de discursos anteriores à chegada do protagonista presente no

seguinte fragmento:

Embarcamos hoy, al alba, y he pasado largas horas mirando a las riberas, sin apartar mucho la vista de la relación de Fray Servando de Castillejos, que trajo sus sandalias aquí hace tres siglos. La añeja prosa sigue válida. Donde el autor señalaba una piedra con perfil de saurio, erguida en la orilla derecha, he visto la piedra con perfil de saurio, erguida en la orilla derecha. Donde el cronista se asombraba ante la presencia de árboles gigantescos, he visto árboles gigantes, hijos de aquellos, nacidos en el mismo lugar, habitados por los mismos pájaros, fulminados por los mismos rayos.(CARPENTIER, 1998: 54)

No estranhamento com paisagens nunca descritas antes, como se observa nas

seguintes linhas:

…un ángel y una maraca no eran cosas nuevas en sí. Pero un ángel maraquero, esculpido en el tímpano de una iglesia incendiada, era algo que no había visto en otras partes. […] Esto último me dejó tan admirado que quise regresar al barco en busca de lápiz y papel, para revelar al Curador, por medio de algunos croquis, esta rara referencia organográfica. […] Me preguntaba ya si el papel de estas tierras en la historia humana no sería el de hacer posibles, por primera vez, ciertas simbiosis de culturas (CARPENTIER, 1998: 118-122)

Ao reconsiderar a validade das inúmeras teorias que aprendeu a acreditar ao longo

de seus anos de estudo, se desilude:

Pienso ahora que mi vieja teoría acerca de los orígenes de la música era absurda. Veo cuan vanas son las especulaciones de quienes

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pretenden situarse en los albores de ciertas artes o instituciones del hombre, sin conocer, en su vida cotidiana, en sus prácticas curativas y religiosas, al hombre prehistórico, contemporáneo nuestro. […] Pienso en otras teorías falaces y me pongo a soñar en la polvareda que levantarían mis observaciones en ciertos medios musicales aferrados a tesis librescas. (CARPENTIER, 1998:202-203)

No romance Los pasos perdidos é possível assinalar uma sociedade que se

encontra dividida entre a ânsia de adquirir os conhecimentos necessários para sair

da posição de “nação colonizada” e a necessidade de encontrar em sua história os

elementos para a formação de uma consciência original, própria. O desinteresse de

muitos indivíduos pelos costumes locais se mostra como um fator que tardava a

conscientização da sociedade em prol da mera reprodução de ideias e projetos

pensados para e pela intelectualidade europeia. Nota-se uma crítica a esse

momento histórico em terras americanas na seguinte passagem:

Tres artistas jóvenes habían llegado de la capital […] El músico era tan blanco, tan indio el poeta, tan negro el pintor, […] El tema era uno solo: París. Y yo observaba ahora que estos jóvenes interrogaban a mi amiga cómo los cristianos del Medioevo podían interrogar al peregrino que regresaba de los Santos Lugares. […] Ahora […] yo interrogaba a esos jóvenes sobre la historia de su país, […] sus tradiciones populares, podía observar cuan poco grato les resultaba el desvío de la conversación. […] El poeta indio respondió, […], que nada había que ver en ese rumbo, […] y que tales viajes se dejaban para los forasteros ávidos de coleccionar arcos y carcajes. La cultura—afirmaba el pintor negro— no estaba en la selva. […] Yo percibía esta noche, al mirarlos, cuánto daño me hiciera un temprano desarraigo de este medio que había sido el mío hasta la adolescencia; cuánto había contribuido a desorientarme el fácil encandilamiento de los hombres de mi generación, llevados por teorías a los mismos laberintos intelectuales, para hacerse devorar por los mismos Minotauros. (CARPENTIER 1998, 74-75)

Vislumbra-se na passagem que acaba de ser lida um momento de revelação

do protagonista do romance. O anônimo musicólogo que se perdeu no labirinto

entramado de teorias parece encontrar, após a conversa com os três jovens, o fio

que o levaria à saída. Este labirinto construído por Carpentier é diferente do labirinto

de Creta. No entrecruzamento de caminhos do romancista cubano são muitos os

Minotauros. Em vez de carne humana, eles se alimentam do desejo dos intelectuais

pelo conhecimento ilustrado.

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Ao questionar sua jornada como indivíduo e como intelectual latino-

americano, percebe-se uma crescente reterritorialização14 do protagonista de

Carpentier com o cenário que o circunda. O musicólogo encontra um equilíbrio que

não buscara diretamente através da tarefa confiada pelo Curador, ao depreender as

particularidades desse território. Como se lê no seguinte fragmento:

Mientras los cambios de altitud, la limpidez del aire, el trastorno de las costumbres, el reencuentro con el idioma de mi infancia, estaban operando en mí una especie de regreso, aún vacilante pero ya sensible, a un equilibrio perdido hacía mucho tempo […] (CARPENTIER, 1998: 71)

O capítulo terceiro do romance Los pasos perdidos descreve o período

compreendido desde a chegada de Mouche e do anônimo musicólogo à casa da

pintora canadense em Los Altos até a Partida de Mouche antes que ela pudesse

chegar a Santa Mônica de Los Venados. Tal qual o terceiro dia da criação divina

presente no livro do Gênesis em que se contemplam terra, mar, vegetações e frutos

das mais distintas ordens, vislumbra-se na prosa de Carpentier o assombro do

protagonista em observar esta paisagem que se mostra virgem da intervenção do

homem ilustrado. Como se ratifica no fragmento:

Porque las montañas crecían [...] Cuando, por sobre las hachas negras, [...] aparecieron los volcanes, cesó nuestro prestigio humano, [...] A nuestras espaldas, muy abajo, habían quedado las nubes que daban sombra a los valles; y menos abajo, otras nubes que jamás verían, [...], los hombres que andaban entre cosas a su escala. Estábamos sobre el espinazo de las Indias fabulosas, [...] entre sus picos flanqueantes, [...], rompían y diezmaban los vientos que trataban de pasar de un Océano al otro [...]. Porque la tierra, pensada desde aquí, [...] parecía algo distinto [...] (CARPENTIER, 1998: 41-42)

Ainda no terceiro capítulo, na jornada XVIII, o anônimo protagonista se libera

de um elemento que o faz recordar a cidade ilustrada dentro do território primitivo da

selva americana: Mouche. A astróloga que empreendeu a viagem, sedenta por

aventuras em comunidades desconhecidas, não resistiu as intempéries do tempo.

Foi expelida do território como peça equivocada em um quebra cabeça. Após esse

14 A reterritorialização consistirá numa tentativa de recomposição de um território engajado num processo desterritorializante. (GUATARRI, 2007:388)

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acontecimento, o musicólogo se sente livre para seguir sua viagem ao princípio dos

tempos históricos:

Hemos despachado a Mouche [...] La hemos metido en la canoa de Montsalvatje, [...], haciéndola creer que la sigo en otra embarcación. [...] He dado al Herborizador mucho más dinero del necesario para que la atienda, [...], quedándome apenas con unos billetes sucios y unas monedas —que de nada sirven, además, en la Selva, [...] En la liberalidad de mi donación hay, además, un secreto ritual de adormecimiento del último crepúsculo de consciencia [...]La barca ha desaparecido ahora en la lejanía de un estero, cerrando con su partida una etapa de mi existencia. Jamás me he sentido tan ligero, tan bien instalado en mi cuerpo, como esta mañana. (CARPENTIER, 1998:82)

No quarto capítulo a narração da viagem em barco que levará ao primitivo

povoado de Santa Mónica de los Venados prossegue. Ainda que liberado da

consciência citadina com a partida de Mouche, o musicólogo segue atendo-se a

datas em seu caderno de campo. Na passagem destacada a seguir, temos a

descrição do momento em que os viajantes encontram a porta de acesso ao

primitivo povoado no interior da selva:

Me parece imposible que estemos buscando algo en aquel lugar [...] De pronto, [...] un grito del Adelantado: «¡Ahí está la puerta! » [...] un tronco igual a todos los demás [...] Pero en su corteza se estampaba una señal semejante a tres letras V superpuestas verticalmente, de tal modo que una penetraba dentro de la outra [...] Junto a ese árbol se abría un pasadizo abovedado, tan estrecho, tan bajo, que me pareció imposible meter la curiara por ahí [...] Y, sin embargo, nuestra embarcación se introdujo en ese angosto túnel [...] Con los remos, con las manos, había que apartar obstáculos y barreras para llevar adelante esa navegación increíble [...] Al cabo de algún tiempo de navegación en aquel caño secreto, se producía un fenómeno parecido al que conocen los montañeses extraviados en las nieves: se perdía la noción de la verticalidad, dentro de una suerte de desorientación, de mareo de los ojos. (CARPENTIER, 1998: 85-86)

Após vivenciar essa travessia repleta de imagens inexplicáveis e terroríficas,

o narrador do romance escreve em seu caderno de campo, em 19 de junho, que

com aquela experiência havia vencido a Primeira Prova. Não há referências

anteriores presentes do relato que ofereçam pistas a respeito dessa prova e menos

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ainda, se pensamos que esta seria a primeira, por quantas provas o musicólogo

deveria passar para obter sucesso.

Ainda, no quarto capítulo de Los pasos perdidos se narra o momento em que

o musicólogo encontra os idiófones15, objetivo original de sua viagem à selva. Ali

acabava a busca do intelectual subvencionado pela Universidade. A tarefa havia

sido cumprida, mesmo diante de tantos percalços pelo caminho. Graças aos

conhecimentos da figura do Adelantado, personagem que será analisada

posteriormente na presente tese, o musicólogo poderá ter materiais suficientes para

comprovar suas teorias a respeito da origem da música. O seguinte trecho descreve

a cena:

En torno mío cada cual estaba entregado a las ocupaciones que le fueran propios, en un apacible concierto de tareas que eran las de una vida sometida a los ritmos primordiales. [...]. Por lo menos, aquí no había oficios inútiles, como los que yo hubiera desempeñado durante tantos años. Pensando en esto me dirigía hacia donde estaba Rosario, cuando el Adelantado apareció en la puerta de una choza, [ ...] Acababa de dar con lo que yo buscaba en este viaje: con el objeto y término de mi misión. Allí, [...], estaban los instrumentos musicales cuya colección me hubiera sido encomendada al comienzo del mes. (CARPENTIER, 1998:94)

E com o entusiamo de um etnólogo que encontra objetos importantes para o

trabalho intelectual, o protagonista segue com uma minusciosa descrição, em seu

caderno de campo, dos objetos encontrados como se lê em:

... puse la mano sobre el cilindro ornamentado al fuego, [...] que señalaba el paso del bastón de ritmo al más primitivo de los tambores. Vi luego la maraca ritual, atravesada por una rama emplumada, las trompas de cuerno de venado, las sonajeras de adornos y el botuto de barro para llamar a los pescadores extraviados en los pantanos. Ahí estaban los juegos de caramillos [...]. Y ahí estaba, sobre todo, dotada de la cierta gravedad desagradable [...], la jarra de sonido bronco y siniestro, con algo ya de resonancia de sepultura, con sus dos cañas encajadas en los costados, tal cual estaba representada en el libro que la describiera por vez primera. Al concluir los trueques que me pusieron en posesión de aquel arsenal [...], me pareció que entraba en un nuevo ciclo de mi existencia. La misión estaba cumplida. En quince días justos había alcanzado mi objeto de modo realmente laudable, y, orgulloso de ello, palpaba deleitosamente los trofeos del deber

15 Instrumentos musicais. In: FRUNGUILLO, Mário D. Dicionário de percussão. São Paulo, UNESP; Imprensa Oficial do Estado, 2003

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cumplido. El rescate de la jarra sonora —pieza magnífica—, era el primer acto excepcional, memorable, que se hubiera inscrito hasta ahora en mi existencia. El objeto crecía en mi propia estimación, ligado a mi destino, aboliendo, [...] la distancia que me separaba de quien me había confiado esta tarea [...] Permanecí en silencio durante un tiempo que el contento interior liberó de toda medida. (CARPENTIER, 1998:94)

Neste momento, o anônimo musicólogo de Alejo Carpentier espelha a figura

de qualquer pesquisador deste ou do século passado que busca ser rememorado ao

longo dos tempos por conta de suas descobertas. Assim como os conquistadores

europeus buscavam, além de riquezas, representatividade ante sua comunidade

natal, os pesquisadores que atualmente desenvolvem seus estudos em campo, em

bibliotecas, em minúsculos quartos pagos, ou não, com a subvenção dos órgãos

fomentadores de pesquisa, também anseiam alcançar notoriedade em seu labor; ver

seu lento e árduo trabalho ser reconhecido como parte importante para o progresso

de uma sociedade.

Contudo, uma confissão de Adelantado desperta no musicólogo o desejo de

submergir-se ainda mais no mundo da selva. O desbravador Pablo, conhecido pela

maioria dos habitantes daquele espaço como Adelantado, conta ao protagonista do

romance que fundou uma cidade. Esse fato desconcerta o narrador de Carpentier e

o motiva, ainda mais, a seguir viagem em companhia de sua mulher Rosario para

contemplar um feito que julgava ser impossível nos tempos em que vivia o

musicólogo.

Antes que chegasse ao povoado mais uma descoberta. Ao longo do caminho,

em meio a um rito primitivo, o musicólogo contempla, segundo ele, o nascimento da

música. Como se lê em:

Detrás de mí, [...], acaban de tender el cuerpo hinchado y negro de un cazador mordido por un cróralo. Fray Pedro dice que ha muerto hace varias horas. Sin embargo, el Hechicero comienza a sacudir una calabaza llena de gravilla [...] para tratar de ahuyentar a los mandatarios de la Muerte. Hay un silencio ritual, preparador del ensalmo, que lleva la expectación de los que esperan a su colmo. Y en la gran selva que se llena de espantos nocturnos, surge la Palabra. [...]. Una palabra que imita la voz de quien dice, y también la que se atribuye al espíritu que posee el cadáver. Una sale de la garganta del ensalmador; la otra, de su vientre. [...] Hay como portamentos guturales, prolongados en aullidos; sílabas que, de

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pronto, se repiten mucho, llegando a crear un ritmo; hay trinos de súbito cortados por cuatro notas que son el embrión de una melodía. [...] Trato de mantenerme fuera de esto [...] Y, sin embargo, no puedo sustraerme a la horrenda fascinación que esta ceremonia ejerce sobre mí...Ante la terquedad de la Muerte [...] la Palabra, de pronto, se ablanda y descorazona. En boca del Hechicero [...] cae, convulsivamente, el Treno [...], dejándome deslumbrado por la revelación de que acabo de asistir al Nacimiento de la Música. (CARPENTIER, 1998: 99)

O narrador encerra o quarto capítulo deixando registrado em seu caderno de campo

que tudo que vivera até então não poderia ser contemplado por ele sem assombro.

Ali imperavam as forças da natureza em sua forma primigênia. Era como se o ser

humano não houvesse passado por aqueles caminhos. Uma vez mais recorre-se ao

texto bíblico para descrever o momento vivenciado, como se lê no fragmento:

Nos vemos como intrusos, prestos a ser arrojados de un dominio vedado. Lo que se abre ante nuestros ojos es el mundo anterior al hombre [...]. Estamos en el mundo del Génesis, al fin del Cuarto Día de la Creación. Si retrocediéramos un poco más, llegaríamos adonde comenzara la terrible soledad del Creador — la tristeza sideral de los tiempos sin incienso y sin alabanzas, cuando la tierra era desordenada y vacía, y las tinieblas estaban sobre la haz del abismo. (CARPENTIER, 1998: 100-101)

O quinto capítulo do romance Los pasos perdidos marca a chegada da

embarcação ao povoado fundado por Adelantado, o desaparecimento das datas no

caderno de campo do narrador da trama, na jornada XXVII e a notícia de que sua

esposa Ruth está a sua procura. Diante da obra empreendida por Adelantado, de

implantar em um território longínquo um protótipo de cidade que, dentro de um

tempo, se assemelharia às que se conheciam do lado oposto ao estreito cano que

atravessaram outrora, o protagonista, agora tomado por sua consciência ilustrada,

anseia compreender aquele espaço usando os métodos que aprendeu na

civilização, como se lê ne no fragmento:

Hay mañana en que quisiera ser naturalista, geólogo, etnógrafo, botánico, historiador, para comprenderlo todo, anotarlo todo, explicar en lo posible. [...]Pero no debo pensar demasiado. No estoy aquí para pensar. Los trabajos de cada día, la vida ruda, la parca alimentación a base de mañoco, pescado y casabe, me han adelgazado, apretando mi carne al esqueleto: mi cuerpo se ha vuelto escueto, preciso, de músculos ceñidos a la estructura. Las malas

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grasas que yo traía, la piel blanca y flaccida, los sobresaltos, las angustias inmotivadas, los presentimientos de desgracias por ocurrir, las aprensiones, los latidos del plexo solar, han desaparecido. Mi persona, metida en su contorno cabal, se siente bien. (CARPENTIER, 1998: 112-113)

O discurso do narrador do romance assemelha-se uma vez mais, ao modus

operandi de Alejo Carpentier. Criatura e criador compartilham a mesma sede pelo

saber, o mesmo incômodo em entregar-se por demasiado tempo às ocupações que

não exigem muito do intelecto. Ao não ser pressionado a produzir conhecimento, a

catalogar descobertas, dissecar fenômenos culturais, o protagonista se encontra

intensamente inspirado em empreender uma tarefa científica, como se lê em:

Al cabo de algún tiempo de sueño [...] me despierto con una rara sensación de que, en mi mente, acaba de realizarse un gran trabajo: algo como la maduración y compactación de elementos informes, disgregados, sin sentido al estar dispersos, y que, de pronto, al ordenarse, cobran un significado preciso. Una obra se ha construido en mi espíritu; es «cosa» para mis ojos abiertos o cerrados, suena en mis oídos, asombrándose por la lógica de su ordenación. Una obra inscrita dentro de mí mismo, y que podría hacer salir sin dificultad, haciéndola texto, partitura, algo que todos palparan, leyeran, entendieran. (CARPENTIER, 1998: 115)

Julgava possuir em sua mente todos os elementos necessários para compor

seu Treno. Tal qual Beethoven em sua tenaz tarefa de musicar a Ode à Alegria de

Friedrish Schindler, que culminou na composição da Nona Sinfonía, o musicólogo

esperava também conseguir expressar, em partitura, a experiência vivida na selva

americana. Como se lê em:

Yo había imaginado una suerte de cantata, en que un personaje con funciones de corifeo se adelantara hacia el público, y, en un total silencio de la orquesta, luego de reclamar con un gesto la atención del auditorio, comenzara a decir un poema muy simple, hecho de vocablos de uso corriente, sustantivos como hombre, mujer, casa, agua, nube, árbol, y otros que por su elocuencia primordial no necesitaran del adjetivo. Aquello sería como un verbo-génesis. [...] Y empezaría a afirmarse una melodía que tuviera [...] la sencillez lineal, el dibujo centrado en pocas notas, de un himno ambrosiano [...] algunos instrumentos de la orquesta entrarían [...] a modo de una puntuación sonora, a encuadrar y delimitar los períodos normales del recitado, [...]Yo veía las entradas sucesivas de las voces del coro, [...] a la manera con que éstas se ordenaban —elemento masculino, elemento femenino— en el tropo compostelano. [...] Así pensaba yo

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lograr una coexistencia de la escritura polifónica y la de tipo armónico, concertadas, machihembradas, según las leyes más auténticas de la música, dentro de una oda vocal y sinfónica, en constante aumento de intensidad expresiva, cuya concepción general era, por lo pronto, bastante sensata. [...]. De lo último pensaba defenderme especulando con los timbres puros, y me citaba a mí mismo, como referencia [...] (CARPENTIER, 1998: 115-117)

Em meio ao fervor da criação artística e da convivência harmônica com

Rosario, em Santa Mônica de los Venados, o musicólogo recebe a notícia de que

está sendo procurado pela universidade e por sua esposa Ruth. O ruído de um avião

surge no horizonte destoando da paisagem e aterrando os planos empreendidos

pelo protagonista. A chegada do avião ao povoado é descrita como se lê a seguir:

Por vez primera suena, [...]un motor de explosión; [...] es el aire removido por una hélice, [...] El avión, sin embargo, tiene una suerte de titubeo en el modo de volar. [...] se aleja hacia el río, desciende un poco más, y es, de súbito, la vuelta cerrada, que lo trae a nosotros, como vacilando de ala a ala, cada vez más bajo. [...]. Dos hombres salen del aparato: [...] me llaman por mi nombre. [...] Alguien [...] ha dicho allá que estoy extraviado en la selva, tal vez prisionero de indios sanguinarios. Se ha creado una novela en torno a mi persona, que incluye la insidiosa hipótesis de que yo haya sido torturado. (CARPENTIER, 1998: 126)

A partir daí o musicólogo volta a fazer parte do cenário, desta vez como

personagem principal, de representações orquestrado por sua esposa Ruth:

Se repite conmigo el caso de Fawcett, y mis relatos, publicados en la prensa, están reactualizando la historia de Livingstone. Un gran periódico tiene ofrecido un premio cuantioso a quien me rescate. [...] sacan del avión un bulto envuelto en telas impermeables, que me hubiera sido arrojado con un paracaídas en caso de habérseme hallado donde fuera imposible el aterrizaje, y entregan medicamentos, conservas, cuchillos, vendas, a Marcos y al capuchino. El piloto aparta una gran cantimplora de aluminio, desenrosca la tapa y me hace beber. Desde la noche de la tempestad en los raudales yo no había probado un sorbo de licor. Ahora, [...] este alcohol me produce, de súbito, una embriaguez lúcida, que llena mis entrañas de apetencias olvidadas. No sólo quisiera beber más, [...] sino que mil ansias de sabores se disputan mi paladar. [...]. Este líquido ardiente que pasa por mi garganta me desconcierta y ablanda. Me siento a la vez deshabitado y mal habitado. (CARPENTIER, 1998: 126-127)

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Um turbilhão de ideias agita os pensamentos do musicólogo. Há na selva a

inspiração para completar o Treno, mas é na civilização que se encontram os

insumos para registrar e respaldá-lo formalmente: papel, tinta, livros. De todas as

renúncias materiais que fez ao longo da viagem, não possuir papel e caneta foi a

lacuna que maior incômodo lhe causou. Diante disso, sentencia:

[...] iré a comprar las pocas cosas que me son necesarias para llevar, aquí, una vida tan plena como la conocen los demás. Todos ellos, con sus manos, con su vocación, cumplen un destino. Caza el cazador, adoctrina el fraile, gobierna el Adelantado. Ahora soy yo quien debe tener también un oficio —el legítimo — fuera de los oficios que aquí requieren el esfuerzo común. Dentro de algunos días regresaré para siempre, luego de haber enviado los instrumentos al Curador y de haberme comunicado con Ruth, para explicarle la situación lealmente y pedirle un pronto divorcio. (CARPENTIER, 1998: 128)

Encerra-se o quinto capítulo com a partida do musicólogo em busca de

materiais que o permitam viver para sempre, ao lado de Rosario, na cidade fundada

por Adelantado. Porém o musicólogo não está habilitado a manejar o seu destino

fora daquele idílico território sobre o qual relata em seu caderno de campo.

Juntamente com as datas que encabeçam seu relato no caderno de campo está sua

esposa Ruth e todo o cenário que o circundava antes da viagem, como se verá no

sexto e último capítulo do romance de Alejo Carpentier.

Chama a atenção no início do capítulo que encerra a trama a epígrafe

escolhida para encabeçar a narração. Há uma citação do poeta espanhol Franscisco

Quevedo, que ao discorrer a respeito da vida e da morte, convida o leitor a se

perguntar sobre a relação dessa citação com a obra de Carpentier. Ao destacar a

palavra de Quevedo que enuncia “Y lo que llamáis morir es acabar de morir, y lo que

llamáis nacer es empezar a morir, y lo que llamáis vivir es morir vivendo”, o

romancista cubano parece querer adiantar a suma do capítulo final.

Em 18 de junho, o musicólogo registra em seu caderno de campo o que lhe

ocorrera na volta à capital latino-americana. Encontra Ruth tomada de um tremendo

desejo de restaurar o casamento; vislumbra todo o cenário criado por Mouche e

como soube aproveitar a participação na viagem, ainda que tenha regressado antes,

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arquitetando os acontecimentos a seu favor; expressa todas as esperanças de logro

depositadas na volta à selva e na publicação de seus estudos.

Seis meses após sua partida do povoado. Fatigado do cenário em que viveu

por tantos anos, o musicólogo resolve retornar à selva. Desembarcando em Porto

Anunciação descobre que a vida ali correu perfeitamente durante sua ausência.

Todas as coisas e pessoas seguiram seu curso. Sua presença não era

imprescindível. Não conseguiu deixar uma estela que o imortalizasse em nenhuma

das civilizações em que vivera. Sozinho, não consegue encontrar a trilha que o

levaria de volta a Santa Mónica de los Venados.

O livro se encerra no sexto capítulo. O discurso do narrador se aproxima

inúmeras vezes ao discurso bíblico. Alude ao livro do Gênesis em diversas

passagens, mas na narrativa não há espaço para o descanso do sétimo dia. Assim

como Sísifo, em seu castigo de empreender uma tarefa inútil, o musicólogo está

condenado a sentir-se estranho em dois mundos.

3.2 Literatura de viagem: aproximações entre o real e o ficcional

A literatura mundial atribui a Homero o mérito da primeira narrativa de viagem

que chega até nós. Em sua Ilíada relata a Guerra de Tróia, o primeiro relato do

conflito, e na Odisseia narra a saga do rei Ulisses para regressar ao seu lar, Ítaca.

Nessas obras, reflete-se o pensamento mítico registrando a coexistência nem

sempre harmoniosa de humanos e deuses.

Três séculos mais tarde, outro grego chamado Heródoto registrou os

primeiros relatos baseados em viagens pessoais. Em V a.C., conta o crescimento e

o ocaso do império persa e suas jornadas pelo Egito, Babilônia, Ucrânia, Itália e

Sicília. Desde então a literatura de viagem estaria influenciada pela visão de um

autor que empreende uma longa jornada com um ou vários destinos em sequência.

Como a tradição oral imperava na época, essas histórias eram geralmente

acompanhadas por um instrumento musical. As longas aventuras descritas estavam

dispostas em versos que eram cantados em espaços abertos, as Ágoras. Música e

literatura estavam intimamente ligadas.

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No Renascimento, o acompanhamento musical já não era mais o motor

primordial que disseminava entre o povo o conteúdo das narrativas. Como a escrita

se apresentava como elemento documental em desenvolvimento, a maior parte dos

relatos de viagem era feita na forma de diários ou cartas de viagem.

Dentre os muitos relatos existentes, as viagens de Marco Polo possuem

especial importância no desenvolvimento do legado de relatos de viagem. O

conquistador Cristóvão Colombo (1450-1506) leu o Livro das maravilhas aproveitou-

se do relato constituído pela descrição de riquíssimos reinos como Cipango e Catai

e as informações contidas nas abundantes notas às margens da publicação. Toda

uma narrativa que somava os interesses mercantilistas aos interesses épicos de

conquista.

Como fruto de suas leituras e expedições, Colombo nos brindou com seus

Diários da Descoberta da América. Esses registros se tornariam instrumento no

período das grandes navegações e dos grandes impérios, quando houve um intenso

trânsito social de expedicionários, missionários entre outros interessados em ocupar

novos territórios. Cabe ressaltar, contudo, que a maneira como Colombo narrava

assemelhava-se mais à relatos literários que científicos. Ainda que buscasse a

minúcia em suas descrições o encantamento diante das paisagens americanas faria

com que o relato de Colombo fosse considerado pelo escritor colombiano Gabriel

Garcia Márquez como o “ primeiro livro do realismo mágico”

Outro exemplo, posterior ao relato das três primeiras viagens de

Colombo, é a Carta do escrivão Pero Vaz de Caminha (1450- 1500) a qual descreve

as inúmeras belezas encontradas na porção da América que seria colonizada pela

Coroa portuguesa. Caminha também deslumbrou-se com paisagens e intrigou-lhe o

costume tão distinto, aos seus olhos europeus, dos habitantes daquele longínquo

território, como se lê em:

Dali avistamos homens que andavam pela praia [...] Eram pardos, todos nus, [...] Nas mãos traziam arcos com suas setas. Vinham todos rijos sobre o batel; e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os pousaram. [...] Ali não pôde deles haver fala, nem entendimento de proveito [...]Davam-nos daqueles arcos e setas por sombreiros e carapuças de linho ou por qualquer coisa que homem lhes queria dar [...]Parece-me gente de tal inocência que, se homem os entendesse e eles a nós, seriam logo

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cristãos, porque eles, segundo parece, não têm, nem entendem em nenhuma crença. (CAMINHA 1500)

Cientistas também relataram suas viagens. Uma das mais representativas é a

do naturalista inglês Charles Darwin (1809-1882), que lança Diário e Anotações

sobre sua expedição que acaba durando três anos mais que o previsto (1871 a

1876), porém norteia toda a produção científica do então jovem Darwin, que vinte

anos depois, abalaria a comunidade científica ao publicar A Origem das Espécies

(1859), no qual introduziu a ideia de evolução a partir de um ancestral comum, por

meio de seleção natural16.

O viajante concentra em sua empresa o desejo sincero de obter uma

mudança através da viagem. A título de exemplo, cita-se a viagem de Cristóvão

Colombo às terras Americanas. Nelas, o conquistador vivencia uma experiência que

paira entre o ordinário e o extraordinário. É possível perceber o desconcerto de

Colombo em seus relatos nos primeiros meses de expedição, no ano de 1492,

quando se lê que: “Parecia-lhe que tudo aquilo devia ser feito de algum

encantamento. Ele disse que tudo o que se via era de tal beleza que não conseguia

mais afastar-se de tantas belas coisas nem do canto dos pássaros, grandes e

pequenos”. (KAPPLER, 1993: 108)

O encontro entre Europa e América acarretou em uma revolução em ambas

as partes, sentida pelo Ocidente como explicita o historiador mexicano Edmundo

O‘Gorman (1992: 184-185):

A partir do momento em que se aceitou que a orbis terrarum era capaz de ultrapassar seus antigos limites insulares, a arcaica noção do mundo como circunscrito a uma só parcela do universo [...] perdeu sua razão de ser e se abriu [...], a possibilidade de que o homem compreendesse que no seu mundo cabia toda a realidade universal de que fosse capaz de se apoderar, para transformá-la em casa e habitação própria; que o mundo, consequentemente, não era algo dado e feito, mas algo que o homem conquista e faz, que lhe pertence [...].

16 O Darwinismo postulava, essencialmente, que a evolução ocorria em função da mudança da população e não da mudança do indivíduo isoladamente. Essa se tornou a explicação científica dominante para a diversidade de espécies na natureza na época.

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Dando espaço para a instauração de novas realidades, desde as chamadas zonas

de contato, que Mary Louise Pratt (2011:31-35) define em Ojos Imperiales: relatos

de viaje y transculturación:

[...]“zonas de contato”, espaços sociais onde culturas díspares se encontram, se chocam e se enfrentam, frequentemente dentro de relações altamente assimétricas de dominação e subordinação, tais como o colonialismo, a escravidão, ou suas consequências como se vivem no mundo de hoje. [...] desloca o centro de gravidade e o ponto de vista em relação ao espaço e o tempo do encontro, ao lugar e ao momento em que indivíduos que estiveram separados pela geografia e pela história agora co-existem em um ponto em que suas respectivas trajetórias se cruzam.

Beatriz Columbi em seu livro Viaje intelectual: migraciones y desplazamientos

en América Latina (1880-1891) discorre sobre a figura de intelectuais cuja produção

artística se situa entre o fim do século XIX e as primeiras décadas do século XX.

Analisa a maneira como os acontecimentos históricos entre Antigo e Novo mundo

influem na escrita de indivíduos que transitam e bebem da cultura de ambos os

espaços, para a estudiosa bonaerense,

A viagem é uma iniciação em numerosos rituais, particularmente, no de ser escritor. Muito antes que a época que me ocupa e durante todo o séculoo XIX, Paris foi a parada obrigatória da peregrinação de distintas gerações letradas e em alguns casos, o lugar de residência permanente de exilados desterrados hispano-americanos. (COLUMBI, 2004: 185)

A narrativa de viagem, tal como será apreciada nesta tese, segue o

entendimento proposto nos estudos de Blanca López de Mariscal (2007:1) quando

declara que

Em todos os relatos de viagem escritos [...] podemos encontrar uma grande riqueza informativa sobre encontros e transferências culturais […] nos oferecem informação, não somente sobre o encontro com o <<outro>>, mas também, e em grande medida, sobre a figura do narrador e o<< mundo de vida>> do qual este procede.

Este estudo tem o propósito de, tendo em vista os aspectos que caracterizam o

romance Los pasos perdidos como um relato de viagem, refletir sobre o modo como

o protagonista de Carpentier apreende a realidade americana depois de anos

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vivendo em um país com cultura e língua diferentes dos seus e em que medida o

olhar do anônimo musicólogo comunga com a proposta do real maravilhoso.

Os escritores hispano-americanos se apropriaram, diversas vezes, do

discurso contidos nos relatos de viagem, reais ou fictícios, em sua prática literária.

Pratt (2011: 418) discorre sobre a importância da literatura de viagem para a

América Latina, como se lê em:

A literatura de viagens, tanto nacional como regional, desempenha um papel-chave nos arquivos do modernismo latino-americano. [...] Na Europa os movimentos de vanguarda de princípios do século XX foram decididamente cosmopolitas e continentais; sobretudo, anti-nacionais. Nas Américas, muito pelo contrário, a construção de um capital cultural nacional foi uma preocupação comum aos artistas da época, incluindo os vanguardistas. Às pessoas cultas lhes correspondeu construir os Estados-nação modernizadores e gerar capital cultural que definiria os cidadãos e criaria para eles um pertencimento.

O filósofo francês Barão de Montesquieu, em seu relato imaginário, descreve

a visita de dois persas à París no século XVIII. Nas cartas, os narradores são persas

que descrevem a seus compatriotas a cidade nos tempos de Luís XIV. Montesquieu

nesta obra critica a sociedade e os valores vigentes na época. O poeta nicaraguense

Rubén Darío dialoga com a obra Carta aos Persas (1721) de Montesquieu em sua

crônica “París y los escritores extranjeros 17”

Na crônica de Darío, a cidade de Paris funciona como um imã que atrairia a

todos os estrangeiros. Há uma profunda crítica a imagem que se tem da capital

francesa e a opinião do nicaraguense a respeito dela. O autor problematiza que o

espaço parisino não é exclusivo no que concerne ao desenvolvimento cultural e

mostra seu incomodo diante da grande quantidade de estrangeiros que vivem em

condições alarmantes, completamente à margem da sociedade. Em uma passagem

da crônica, Dario retoma um fragmento da obra de Montesquieu, em que um

parisino pergunta ao estrangeiro como este poderia ser de origem persa, para

criticar a ideia que os europeus tinham sobre as demais civilizações, ao reescrever a

ironia em forma de pergunta: Como pode este homem ser estrangeiro e, ainda

assim, possuir talento?

17 DARÍO, Rubén "Paris y los escritores extranjeros," Letras, Obras Completas, vol. 1, 463- 464. 1907.

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O colombiano Gabriel García Márquez estabelece uma ponte com Os Diários

de Colombo em El otoño del patricarca para apresentar o descobrimento da América

sob a perspectiva dos que ali habitavam. Em tom de paródia, García Márquez

sugere, dentre outras teorias, que os espanhóis que chegaram na América com

Colombo não seriam os primeiros europeus a visitarem o território.

Na prosa do escritor colombiano são os indígenas que exercem poder sobre

os estrangeiros chegados de além-mar. Ao trazer o foco narrativo para a perspectiva

dos índios, García Márquez os coloca como os manipuladores da relação entre os

dois mundos. O contrario do que se lê nos relatos datados da colonização europeia.

Em sua primeira viagem, o almirante Colombo relata em 11 de outubro de

1492 suas impressões a respeito do território e de tudo que ali encontrara. Após dois

meses de tortuosa navegação no oceano, os tripulantes da caravela Santa Maria

desembarcaram e encontraram uma paisagem nunca antes contemplada. Colombo,

ao discorrer sobre os habitantes daquele território escreve que:

Eu [...] pois percebi que eram pessoas que melhor se entregariam e converteriam à vossa fé pelo amor e não pela força, dei a algumas delas uns gorros coloridos e umas miçangas que puseram no pescoço, além de outras coisas de pouco valor, o que lhes causou grande prazer e ficaram tão nossos amigos que era uma maravilha. Depois vieram nadando até os barcos dos navios onde estávamos, trazendo papagaios [...] e muitas outras coisas [...]. Enfim, tudo aceitavam e davam o que tinham com a maior boa vontade. (COLOMBO, 2010: 44-45)

Verifica-se no seguinte fragmento de El otoño del patriarca, a carnavalização da

cena descrita por Colombo:

... e gritavam que não percebíamos em língua de cristãos [...] depois vieram ter conosco com as suas canoas a que eles chamam almadias, como disse, e admiravam-se de os nossos arpões terem na ponta uma espinha de sável, [...] e trocavam-nos tudo o que tínhamos por estes barretes de cor e estas fiadas de pepitas de vidro que nós púnhamos ao pescoço para lhes sermos amáveis. [...] e como vimos que eram bons servidores e de bom engenho fomo-los levando até à praia sem que dessem conta, mas a chatice foi que entre o troque-me isto por aquilo e eu troco-lhe isto por aquilo outro armou-se um cambalacho dos tomates e daí a pouco toda a gente estava a cambalachar os papagaios, o tabaco, as bolas de chocolate, os ovos de iguaria, tudo quanto Deus criou, pois tudo aceitavam e davam de boa vontade aquilo que tinham, e até queriam trocar um de

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nós por um gibão de veludo para nos mostrarem nas Europas [...] (GARCÍA MÁRQUEZ, 1975: 2)

Outra passagem repleta de ironia, inverte o assombro entre o encontro das

civilizações. Enquanto o europeu se admira ao encontrar o nativo

Mas me pareceu que era gente que não possuía praticamente nada. Andavam nus como a mãe lhes deu à luz. [...] muito bem-feitos, de corpos muito bonitos e cara muito boa; os cabelos grossos [...] e curtos [...] É gente muito bonita [...] Todos, sem exceção, tem pernas bem torneadas, e nenhum tem barriga, a não ser muito bem feita. (COLOMBO, 2010:45-46)

O narrador em García Márquez (1975: 23-25) descreve com sarcasmo os recém

chegados da Europa, como se lê em

... tinham chegado uns forasteiros que tagarelavam em língua

castelhana pois não diziam o mar mas a mar e chamavam papagaios aos guacamaios, [...] e que, tendo visto que saíamos a recebê-los, [...], encarrapitavam-se na mastreação e gritavam uns para os outros que olhem que bem feitos, de mui fermosos corpos e mui boas caras, [...] alvoroçaram-se como periquitos molhados gritando [...] e eles isto e mais aquilo, e nós não percebíamos por que catano se divertiam tanto conosco, meu general, se estávamos tão naturais como as nossas mães nos pariram e em compensação eles estavam vestidos como a dama de paus, apesar do calor, [...] têm o cabelo arramado como as mulheres, embora sejam todos homens [...]e gritavam que não percebíamos em língua de cristãos

O escritor argentino Abel Posse publica três livros que compõem a chamada

série do descobrimento da América18. Com narrações em terceira pessoa, e

tomando como cenário passagens que envolvem conquistadores europeus, Posse

cumpre a tarefa intelectual de revisar o passado da América desde uma perpectiva

latino-americana aliando visão crítica e fatos históricos como elementos de criação

no campo da arte da palavra. Segundo Abel Posse (1997: 83):

É evidente que a história se reescreve, e não para negar o que já foi escrito, mas sim para completa-lo [...]; nós, escritores da América Latina ajudamos a dar uma nova visão, a tornar mais aceitável o

18 Há uma quarta publicação titulada Los Heraldos negros que foi excluída da análise por não

conseguirmos encontrá-la. Sabe-se apenas que o título do romance é uma alusão à obra de Cesar Vallejo e que narra a história de um grupo de jovens jesuítas recrutados para salvar o Cristianismo e recriar o mundo perdido pelo Mal.

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contado, porque fraguamos imaginativamente a crônica, porém sobretudo relemos para reescrevê-la

O primeiro romance é Daimón. Na meta-ficção do argentino publicada em

1978, Lope de Aguirre é a personagem central do romance barroco de Posse. O

conquistador vasco que chega às terras americanas com a mesma missão que

tantos conquistadores europeus se rebela contra a Coroa espanhola e o

Cristianismo para encontrar o Eldorado. Esse é o ponto de partida do romance que

se desenvovolverá em torno da volta de Aguirre, desde o mundo dos mortos, para

empreender uma nova viagem ao território americano.

A tirania encontrada nos que têm sede pelo poder se encontra nos relatos da

colônia, mas também na contemporaneidade latino-americana. A ficcionalização do

passado americano se encontra com a imperialização no presente argentino. Com a

problematização de uma questão de poderio que remonta séculos de história, Posse

alcançou também um caminho para a discussão dos problemas vivenciados pelo

autoritarismo do governo argentino, como lemos na análise de Teodosio Fernández

(1997: 31) sobre o romance Daimón:

Quando Posse publicou Daimón, em 1978, o panorama havia mudado notavelmente. Os anos setenta supuseram para Argentina o regresso de Perón, em 1973, e depois o governo militar que a partir de 1976 acentuou o clima de repressão e violência compartilhado pelos demais países do cone sul. [...] O romance histórico foi uma das possibilidades, em um momento no qual o gênero mostrava-se na Hispano-américa com grande vitalidade. Daimón e Los perros del Paraíso [...] foram as contribuições de Posse ao desenvolvimento de das modalidades mais novedosas desse gênero.

Em Los perros del paraíso, cuja primeira publicação se deu em 1983,

Cristóvão Colombo é o protagonista do relato. Há no relato a descrição de quatro

viagens, que não coincidem cronologicamente com as de Colombo, uma das

características presente na obra de Posse que faz desta e das outras três uma

meta-ficção. O texto do argentino dialoga com textos históricos de forma irônica,

crítica e séria, levantando o questionamento acerca do sistema colonizador que

ainda se percebe na atualidade. Sobre este romance, Posse (1997: 65) comenta

que:

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... é evidente que o episódio do descobrimento e a conquista de nosso continente era um pouco o Big Bang, não somente para América, mas também para a própria Europa [...]. Quis fazer presente o passado, ou se o prefere, visitar o passado com o sentido do presente. De alguma maneira, Colombo e a rainha Isabel seguem presentes em nossas vidas.

Em El largo atardecer del caminante, publicada em 1992, Posse recria o

destino final de Álvar Núñez Cabeza de Vaca, figura histórica que ficou conhecida

por caminhar desnuda e descalça cerca de oito mil quilômetros. Esse percurso teria

durado dez anos e compreenderia o espaço entre a Flórida, onde naufragou, até o

México. Diferente de Colombo, Cabeza de Vaca se destacou, além das navegações,

por lutar contra a poligamia e a escravidão indígena. Segundo ele, somente a fé

cura. Somente a bondade, conquista. No romance de Posse duas histórias correm

em paralelo: a da velhice de Cabeza de Vaca em Sevilha e a segunda em que

reescreve sua história pelas Índias num desejo de imortalizar-se.

Nas narrativas de Abel Posse há uma revisão do passado histórico com

toques de busca pela descoberta de um identidade latino-americana. O olhar

europeu na construção de uma realidade americana não é elemento suficiente para

a construção de uma identidade verdadeiramente latino-americana. É preciso

elencar mais personagens, evocar passagens que não se restrigem ao passado do

continente. É preciso olhar também para o presente. O escritor argentino, com a

escrita de seus romances também alcança um reencontro pessoal com a América,

como lemos em

Eu também descobri a América. Minha vida diplomática me levou a viver no Peru, e ali descobri a América profunda, o universo indígena, a Historia da América e, também, o fio de tudo aquilo, ali descobri Espanha. Sofro, pois, uma transformação: eu era um escritor netamente argentino, ao modo de como eram os escritores argentinos da época: portenhos, europeizantes, exclusivistas, e tive uma revelação de minha historia e de minha linguagem (POSSE 1997: 40)

Antes de García Márquez e Posse, Carpentier em seu romance Los pasos

perdidos revisitou as crônicas de navegadores e de jesuítas sobre a conquista da

América; bebeu também nas fontes de Alexandre Von Humdoldt. Não para recontar

o passado de seu continente, mas sim como elementos que serviriam para

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problematizar o lugar o intelectual latino-americano em meio a tarefa de plasmar

desde realidades tão distintas uma consciência de identidadade latino-americana.

Em Carpentier o protagonista não é um valente consquistador, é, ao contrário,

um frustrado intelectual que se vê preso em uma tarefa que detesta. Um musicólogo

que não se orgulha do trabalho que lhe fornece a remuneração necessária para

viver, mas que não tem coragem de desbravar os mares incertos no estudo da

musicologia. Alguém que se ressente diante de um casamento de aparências, mas

que prefere afugentar-se em um romance extra-conjugal a empreender uma

mudança em seu lar.

A prosa de Los pasos perdidos se apresenta ao leitor como um diário de

viagem. Ao longo da narrativa, o protagonista recorre aos textos bílblicos e as

crônicas sobre a época da colonização, como um estudante busca em referências

teóricas um eco cúmplice para sua análise. O musicólogo se vê aturdido em um

trabalho de campo que lhe oferece mais que um descobrimento etnográfico. Ali se

empreende uma descoberta pessoal.

Alejo Carpentier, em seu prólogo ao livro El reino de este mundo (1949)

apresenta suas teorias sobre o real maravilhoso que tem inspiração no barroco, mas

que pretende abarcar uma compreensão distinta do movimento artístico do século

XVII já que o neo-barroco proposto por Carpentier se vislumbra na paisagem tal qual

se apresenta. Não como um estilo de época, mas sim como uma constante do

espírito, como uma visão de mundo. A respeito de tal conceito, Carpentier

(1984:112) afirma que:

... el barroco, constante del espíritu, que se caracteriza por el horror al vacío, a la superficie desnuda, a la armonía lineal-geométrica, estilo donde en torno al eje central – no siempre manifiesto ni aparente – […] se multiplican lo que podríamos llamar los, <<núcleos proliferantes>>

Outro ponto de importante destaque na teoria proposta pelo autor de Los pasos

perdidos, seria argumentar que: “ […] el espíritu barroco puede renacer en cualquier

momento y renace en muchas creaciones de los arquitectos más modernos de hoy.

Porque es un espíritu y no un estilo histórico. (Carpentier, 1984:113-114).

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Vale mencionar que o conceito proposto, primeiramente no prólogo da

primeira edição de El reino de este mundo, foi posteriormente revisto e ampliado em

sua publicação Tientos y diferencias, na qual discorre sobre uma viagem ao reino de

Henri Christophe no ano de 1943, onde lhe ocorreu a primeira noção do que seria o

‘real maravilloso’. Tal noção, convertida em conceito ao longo do tempo se

apresenta em Carpentier como eixo fundamental para uma maior compreensão das

obras do autor cubano no cenário histórico literário da América Latina. É o que se

percebe no exposto pelo pesquisador e crítico Alexis Márquez Rodríguez (1984:43)

quando afirma: “Em Carpentier, o conceito do real-maravilhoso vai se formando ao

longo de um processo de decantamento em que se parte de uma mera intuição, até

chegar ao conceito propriamente dito”

Este novo olhar, esta ótica insólita, barroca, proliferante se apresenta

longamente nas descrições do musicólogo americano da trama de Carpentier.

Ajustam-se perfeitamente às proposições apresentadas na teoria do ‘real

maravilloso’, através da celebração do insólito ao descrever que:

Cuando las aguas en creciente les [los primitivos] aislan durante meses en alguna región de extremos, y han pelado los árboles como termes, devoran larvas de avispa, triscan hormigas y liendres, escarban la tierra y tragan los gusanos y las lombrices que les caen bajo las uñas, antes de amasar la tierra con los dedos y comerse la tierra misma. […] Contemplo los semblantes sin sentido para mí, comprendiendo la inutilidad de toda palabra, admitiendo de antemano que ni siquiera podríamos hallarnos en la coincidencia de una gesticulación. (CARPENTIER, 1998: 185)

O ‘real maravilloso’ para Carpentier, com toda a inspiração do barroco, se

apresentava como o espaço do entredito, do além visto e vivido e do

permanentemente surpreendedor. Como se percebe no seguinte fragmento:

La selva era el mundo de la mentira, de la trampa y del falso semblante; allí todo era disfraz, estratagema, juego de apariencias, metamorfosis. Mundo del lagarto-cohombro, la castaña-erizo, la crisálida-ciempiés, la larva con carne de zanahoria y el pez eléctrico que fulminaba desde el poso de las linazas (CARPENTIER, 1998: 169)

A imagem se apresenta como uma pulsão que depende do outro, o

espectador, para que se manifeste de forma única e latente. Como bem discorre

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Antonio Lara, no prólogo de Introducción a la teoría de la imagen de Justo Villafañe

(2002:13), pode-se considerar que “o mundo da Imagem está aí, com seu tremendo

poder de sugestão e sua indubitável influência social, suas incógnitas e problemas,

que exigem uma pronta solução, ainda que seja ilusória”. No fragmento do prólogo

de El reino de este mundo, que se lerá a seguir, pode-se vislumbrar a força da

imagem contemplada pelo conquistador espanhol Hernán Cortéz bem como a

impossibilidade em descrevê-la com os referenciais que se tinha até o momento:

Yo encuentro que hay algo hermosamente dramático, casi trágico, en una frase que Hernán Cortés escribe en sus Cartas de relación dirigidas a Carlos V […] << Por no saber poner los nombres a estas cosas, no los expreso >>. Y dice de la cultura indígena: <<No hay lengua humana que sepa explicar las grandezas y particularidades de ella>>. Luego, para entender, interpretar este nuevo mundo hacía falta un vocabulario nuevo al hombre, pero además – porque sin el uno no existe lo otro -, una óptica nueva. (CARPENTIER, 1984: 122-123)

Em Los pasos perdidos o barroquismo está presente no encadeamento de

ideias, na intertextualidade com outros textos literários, históricos, no trabalho com

as palavras ao descrever a paisagem. Cenário que se reconstrói a todo instante

dentro de um tempo mítico instaurado, não por meio da ação humana, mas sim por

motivos assombrosos como cita o narrador em:

En todas partes parecía haber flores; pero los colores de las flores eran mentidos, casi siempre, por la vida de hojas en distinto grado de madurez o decrepitud. Parecía haber frutos; pero la redondez, la madurez de las frutas, eran mentidas por bulbos sudorosos, terciopelos hediondos, vulvas de plantas insectívoras que eran como pensamientos rociados de almíbares, cactáceas moteadas que alzaban, a un palmo de la tierra, un tulipán de esperma azafranada. [...] Hasta el cielo mentia a veces, cuando, invirtiendo su altura en el azogue de los lagunatos, se hundía en profundidades celestemente abisales. (CARPENTIER,1998:169-170)

Na selva americana vislumbramos as poderosas manifestações da vida. Em

Carpentier encontramos uma extensa lista de referências literárias, musicais,

históricas, filosóficas, religiosas dadas pelo personagem. Todas entramadas,

refletindo a necessidade do autor em preencher os espaços discursivos tal qual a

tendência encontrada no Barroco. As referências do mundo ilustrado do anônimo

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musicólogo de Carpentier são o fio que o ata entre a realidade dos documentos e o

absurdo contemplado na selva americana. Na passagem a seguir o protagonista

descreve a viagem através do tempo que empreende à medida que navega pelo rio:

Pero de súbito me deslumbra la revelación de que ninguna diferencia hay entre esta misa y las misas que escucharon los Conquistadores del Dorado [...] El tiempo ha retrocedido cuatro siglos. Esta es misa de Descubridores, recién arribados a orillas sin nombre, [...], ante el asombro de los Hombres del Maíz. [...] Aquellos dos — el Adelantado y Yannes [...] son soldados de la Conquista, [...] Fiat misericordia —salmiza el capellán de la Entrada, con acento que detiene el tiempo—. Acaso transcurre el año 1540. Nuestras naves han sido azotadas por una tempestad y nos narra el monje ahora, a tenor de la sacra escritura, cómo fue hecho en el mar tan gran movimiento que el barco se cubría de las ondas; mas El dormía, y llegándose sus discípulos le despertaron diciendo: Señor, sálvanos que perecemos; y Él les dice: ¿Por qué teméis, hombres de poca fe?, y entonces, levantándose, reprendió a los vientos y a la mar y fue grande bonanza. Acaso transcurre el año 1540. Pero no es cierto. Los años se restan, se diluyen, se esfuman, en vertiginoso retroceso del tiempo. (CARPENTIER, 1998: 95)

O narrador, estupefato diante do que acabara de lhe ocorrer, se alegra em

saber como um intelectual consegue empreender uma viagem sem sair fisicamente

de um território. Encontra-se cronista que pode deslocar-se entre mundo bem

maiores que os separados por oceanos. Ao reconhecer nas experiências vividas na

selva, cenas descritas em livros que discorrem sobre a história em vários séculos

anteriores ao que vive, o musicólogo constata:

Comprendo ahora que he convivido con los burgueses de buen trago, [...] cuya vida jocunda me hiciera soñar tantas veces en los museos [...] he compartido la desmedida afición por las especias que les hicieron buscar los nuevos caminos de Indias [...]. Pero los conocía a través del barniz de las pinacotecas, como testimonio de un pasado muerto, sin recuperación posible. Y he aquí que ese pasado, de súbito, se hace presente. Que lo palpo y aspiro. Que vislumbro ahora la estupefaciente posibilidad de viajar en el tiempo, como otros viajan en el espacio (CARPENTIER, 1998:96)

Se o cientista imprime em seus escritos a necessidade de encontrar na

realidade o fundamento de suas teorias, o literato carrega a realidade com toda sua

subjetividade dando-lhe um novo sentido. Ambos partem do campo da imaginação,

seja empírica ou teórica, e a partir daí desenvolvem suas obras. Se forem movidos

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por um olhar subjetivo, produzem realidades que podem ou não ser comprovadas

pelo olhar humano. Nesse percurso, fruto do encontro entre ciência e arte, que

Carpentier perde seus passos e se encontra diante da vasta complexidade da

natureza Latino- americana.

3.3 O rio Orinoco e a Selva discursiva de Alejo Carpentier

Caminante no hay camino se hace camino al andar

Antonio Machado

Assim como o poeta espanhol Antônio Machado, na epígrafe que inicia o

estudo, afirma-se nesta explanação que o caminho se faz durante o processo da

caminhada. Ao se considerar que as vias de chegada até um ponto podem ser

finitas, a viagem, real ou imaginada, produz uma mudança, uma alteração da ordem

anterior não só do indivíduo, mas também do espaço em questão.

Em conformidade com o exposto, pode-se concordar com a ideia do crítico

Tzvetan Todorov (1992: 93), em seu capítulo intitulado “A viagem e a narrativa”, ao

afirmar que o conceito de viagem coincide com o de existência, pois ambos implicam

um ponto de partida, um trajeto e uma estação final. Considerando suas reflexões

sobre as ideias de viagem e narrativa19 vale destacar que

A viagem transcende todas as categorias, até, e inclusivamente, a da mudança, do mesmo e do outro, já que desde a mais alta antiguidade são postas lado a lado viagens de descoberta, explorações do desconhecido e viagens de regresso, reapropriação do familiar: os Argonautas são grandes viajantes, mas também Ulisses o é.

O escritor cubano Alejo Carpentier afirmou em algumas ocasiões que a

Venezuela possuía todos os elementos necessários que compunham o “Novo

19 Embora as inquietações no texto de Tzvetan Todorov sejam de ordem política e tenham em mira a crítica ao colonialismo contemporâneo, ele aborda a relação entre o ato de viajar e a escrita narrativa como questionamento introdutório. E é esta questão que interessa discutir, primordialmente, no desenvolvimento do presente estudo.

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Mundo”, graças a sua riqueza no que se refere à variedade de sua paisagem

geográfica, humana e cultural. Em uma entrevista20 datada de 1964, comprova-se

textualente o acima exposto:

Conocer Venezuela completaba mi visión de América, ya que este país es como um compendido del Continente: allí están sus grandes ríos, sus llanos interminables; sus gigantescas montañas, la selva: La tierra venezonala fue para mí como una toma de contacto con el suelo de América, y meterme en sus selvas, conocer el cuarto día de la creación [...]. Remontar el Orinoco es como remontar el tempo.

Apresenta-se, a seguir, uma reflexão sobre um dos espaços descritos em Los

Pasos Perdidos, do autor cubano Alejo Carpentier, com a intenção de, ao considerar

sua história, personagens e importância para a América Latina vislumbrar o espaço

do rio Orinoco como um elemento fomentador da reflexão do intelectual latino-

americano do século XX.

O rio Orinoco, um dos principais da América do Sul, e o principal rio

da Venezuela, abrange um quarto do território da Colômbia, estende seu braço para

interligar-se às águas do Rio Negro, no Brasil, e povoa o imaginário de milhares de

viajantes desde os tempos da Colonização europeia na América. Antes de

Carpentier e seu anônimo protagonista, outros viajantes navegaram por suas

intrigantes águas.

O escritor e padre missionário espanhol José Gumilla (1999:13), no livro El

Orinoco ilustrado, publicado em 1741, apresenta um valioso registro tanto das

distintas comunidades indígenas que povoaram o rio no século XVIII quanto das

plantas medicinais, dos animais que ali estavam e demais viajantes que passaram

pelo rio. Tornou-se uma das obras pioneiras da antropologia e da etnologia na

Venezuela, ainda que não se trate de um livro científico como requer a atualidade.

Nele pode-se ler um relato sobre as impressões do conquistador Cristóvão Colombo,

em sua terceira viagem empreendida em 1498, ao deparar-se com a grandiosidade

do Orinoco.

... admirado de la lozanía de las arboledas de la isla del Orinoco las llamó Islas de Gracia y a la costa de Paria […] la llamó, al día siguiente, de Isla Santa. […] Colón se maravilló mucho de que hubiese en el

20 “Confesiones sencillas de un escritor barroco”, In: Cuba V3.Núm 24, 1964, p.30. Entrevista a César Leante.

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mundo un río de tan soberbio caudal capaz de llenar de agua dulce todo el golfo y sacó la firme consecuencia de que […] no podía originarse sino de muy vastos y dilatados terrenos y de muy remotas provincias.

O conquistador genovês Cristóvão Colombo registra em seus Diários da

Descoberta da América desde a chegada à foz do rio Orinoco, na então chamada

terra de Gracia, até o percurso que fez ao tentar desvendar aquela intrigante obra da

natureza. Ele se encaminha pelas águas do rio Orinoco movido por uma extrema

curiosidade, já que seus olhos nunca contemplaram antes semelhante

comportamento da natureza (2010: 148-149):

Quando cheguei a esta ponta do Arsenal, verifiquei que ali se abre uma foz [...] entre a ilha de Trinidad e a terra de Gracia [...] Ancorei ali, na referida ponta do Arsenal, fora da referida foz, e achei que as águas vinham do Oriente para o Poente com o mesmo ímpeto que ocorre em Guadalquivir em tempo de enchente e isso, sem parar [...] No dia seguinte [...] descobri que na parte mais baixa da foz havia seis ou sete braças de profundidade, enquanto as correntezas não paravam de entrar e sair [...] atravessei pela foz adentro e logo encontrei tranquilidade, e por acaso se tirou água do mar, que achei doce.

O assombro do conquistador era tal que em suas descrições da nova terra

explorada faltavam pontos de comparação. Após a viagem empreendida em 1498,

Colombo (2010: 158) declara que, ao deparar-se com tanta desconformidade lhe

restava apenas passar a considerar o mundo de maneira diversa. Para ele, o único

ponto de comparação possível para as terras americanas se encontrava nos relatos

bíblicos. Seria esse Novo mundo o Paraíso terrestre apenas descrito na Bíblia,

porém nunca localizado no globo terrestre. Tais considerações se apresentam no

fragmento da carta em que se dirige aos Reis Católicos Fernando de Aragão e

Isabel de Castilha:

Volto ao meu assunto da terra de Gracia, do rio e do lago que ali encontrei, tão grande que seria justo considerá-lo mar, pois “lago” é lugar de água e, sendo grande, se diz “mar”, como se chamou ao mar da Galiléia e ao mar Morto, e eu afirmo que esse rio emana do Paraíso terrestre e de terra infinita, pois do Austro até agora não se teve notícia, mas a minha convicção é bem forte de que ali, onde indiquei, fica o Paraíso terrestre [...]

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Séculos mais tarde, Alexandre Von Humboldt e Aimé Bonpland, ambos

nascidos na Alemanha, estiveram na América, subsidiados pela Espanha após uma

astuta argumentação de Humboldt, e viajaram pelo que chamavam de “Novo

Continente”. Seus escritos repercutiram significadamente a ponto de estabelecerem

as linhas para a reinvenção ideológica da América do sul ocorrida durante as

primeiras décadas do século XIX e vivenciada nos dois lados do Atlântico, como se

lê no livro de Mary Louise Pratt, intitulado Ojos Imperiales: relatos de viaje y

transculturación . Sobre Humbolt diz-se que:

Foi – e ainda é - considerado “ o explorador mais criativo de sua época”; suas viagens pela América eram tidas como “ um modelo de viagens de exploração e uma magnífica conquista geográfica” ”[...] não escreveu nem viajou como um humilde instrumento dos aparatos europeus de construção de conhecimento, mas sim como seu criador. (PRATT, 2011: 212-219)

Em sua primeira viagem, Humboldt e Bonpland, passaram mais de um ano

percorrendo o Orinoco e o que havia em suas margens, onde registraram

detalhadamente a particularidade da selva, o comportamento dos habitantes e

animais da região. Através de seus trabalhos foi possível “reinventar a América”

apresentando uma natureza extraordinária, imprevisível, que destoava do modelo

categorizável dos lineanos21. Pode-se perceber que suas descrições mantêm o

propósito de desenvolver a pesquisa empírica de campo sem, contudo, deixar de

reconhecer o caráter intrigante e inexplicável da natureza americana. Como lemos

em

... naveguei trezentas e oitentas léguas pelo interior do continente, desde as fronteiras do Brasil até as costas de Caracas, passando do rio negro ao orenoco através do Casiquiári. Nesta parte superior do rigueiro, entre 3º e 4º graus de latitude norte a natureza renovou muitas vezes o misterioso fenômeno das chamadas águas negras. [...] Provavelmente devem estes a sua singular cor a uma dissolução de hidrogênio carbonado, à riqueza da vegetação tropical e à multiplicidade de plantas que lhe cobrem o leito. (HUMBOLDT, 1950: 218-219)

21 As sociedades lineanas são sociedades científicas cujo nome deriva de Lineu (1707-1778), naturalista sueco, criador da nomenclatura binomial e da classificação científica, sendo assim considerado o "pai da taxonomia moderna"

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As viagens por este mítico rio fluíram ao longo dos tempos não apenas pelos

rios do literal, mas também pelas intrigantes correntes do literário. Alejo Carpentier

empreendeu, tal qual seu protagonista, uma viagem pelo rio Orinoco. As

semelhanças entre a trajetória do intelectual cubano e do protagonista do romance

analisado na presente tese são várias. Neste momento em que se pretende reforçar

o capital intelectual das nações independentes, as convicções intelectuais sobre o

funcionamento do mundo e de seus constituintes se proliferam no imaginário de um

latino-americano do século XX. Como se confirma em Pratt (2011: 410)

As primeiras décadas do século XX são, com frequência, consideradas como a época em que a modernidade se consolidou na América. [... ] Nas cidades se desenvolvem as artes, o rádio, a fotografia, o cinema e os movimentos de vanguarda. Os intelectuais se converteram nos portadores da modernidade e dos valores metropolitanos.

No ensaio La ciudad letrada do uruguaio Ángel Rama, evidencia-se esse

papel destacado por Pratt no que se refere ao intelectual latino-americano. A obra

que apresenta, em seis capítulos, a evolução das cidades latino-americanas, desde

a destruição da capital asteca Tenochitlán por Hernán Cortéz até a inauguração de

Brasília. Em sua organização, caberia à cidade letrada a tarefa de conceber, projetar

e conservar a cidade ideal. No entanto, o que ocorre em Rama (1998:43) é um

reflexo do trabalho intelectual vislumbrado na sociedade moderna: a cidade letrada

abre caminho para a cidade escriturária. Como se lê em:

Foi evidente que a cidade letrada remedou a majestade do Poder [...] inspirou a distância com respeito ao comum da sociedade. Foi a distância entre a letra rígida e a fluida palavra falada que fez da cidade letrada uma cidade escriturária, reservada a uma estrita minoria.

O protagonista do romance Los pasos perdidos já não estava inserido no

mundo acadêmico, na intelectualidade que compreende o trabalho de gabinete, o

saber enciclopédico. No entanto, era desde este lugar que o musicólogo observava

o mundo a sua volta. Seu trabalho como redator de peças publicitárias não havia

sido uma escolha motivada pela tarefa em si, mas sim pelo que ela proporcionaria

em termos práticos. A tarefa intelectual era demorada e seus logros mais ainda. Ao

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aceitar empreender a busca pelos idófones para o Museu Organográfico, o

musicólogo volta à cena, mas desta vez desempenhando uma atividade pouco grata

aos renomados estudiosos das culturas primitivas: o trabalho de campo.

Ao empreender, a partir de Puerto Anunciacíon, uma travessia em barco em

busca dos materiais requeridos pelo Curador, o musicólogo remonta, através do rio,

a história que marcou o início das civilizações22, que se organizavam em torno dos

rios porque ali encontraram território fértil para garantir sua subsistência. Ainda que

a história do romance de Carpentier se localize cronologicamente no século XX, ao

navegar pelos rios o protagonista sugere:

Era como si una civilización extraña, de hombres distintos a los conocidos, hubiera florecido allí, dejando, al perderse en la noche de las edades, los vestigios de una arquitectura creada con fines ignorados. Y es que una ciega geometría había intervenido en la dispersión de esas lajas erguidas o derribadas que descendían, en series, hacia el río: series rectangulares, series en colada plana, series mixtas, unidas entre sí por caminos de baldosas jalonadas de obeliscos rotos. Había islas, en medio de la corriente, que eran como amontonamientos de bloques erráticos, como puñados de inconcebibles guijarros dejados aquí, allá, por un fantástico despedazador de montañas. (CARPENTIER, 1998: 74)

O rio através do qual o anônimo musicólogo reconhecia passagens de textos

bíblicos, de crônicas da época colonial, de relatos de viagem escritos por cientistas

de séculos anteriores, era, para Montsalvaje, no papel de cientista interessado pelo

que a natureza poderia contribuir na cura de enfermidades, uma fonte de

incalculáveis descobertas. Ao boticário não importava o que havia sido construído ou

deixado em suas margens pela presença humana, mas sim o que crescia ali

naturalmente, como lemos em:

Sin interesarse mayormente por saber quiénes somos, el herborizador nos agobia bajo una terminología latina que destina a la clasificación de hongos nunca vistos, de los que tritura una muestra con los dedos, explicándonos por qué cree haberlos bautizado acertadamente. De pronto repara en que no somos botánicos, se burla de sí mismo, calificándose del Señor-de-los-Venenos, y pide noticias del mundo de donde venimos. Algo cuento en respuesta, pero es evidente —lo noto en la desatención de las gentes— que mis nuevas no interesan a nadie aquí. El doctor Montsalvatje quería

22 Com exceção dos gregos e dos fenícios.

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saber, en realidad, de hechos relacionados con la vida misma del río. (CARPENTIER, 1998: 75)

Um espaço que se caracterizava, para os que transitam pela região, como

uma via de acesso aos espaços de terra firme. O lugar em que se faria a higiene do

corpo, a limpeza de roupas e objetos e que também serviria de cenário para ilustrar

inúmeras cenas do cotidiano dos que por ali passavam. Em uma das cenas

descritas em Los pasos perdidos, o protagonista de Carpentier faz uso do rio como

cenário de fuga diante de uma situação constrangedora entre Yannes e Mouche.

Como se lê em:

Por acabar con la situación falsa que nos tenía desasosegados en torno a la mesa, propuse que anduviéramos hacia el río [...]El Buscador de Diamantes [...] Ante mi propuesta de salir, compró botellas de cerveza fría, como aliviado, y nos llevó a una calle recta que se perdía en la noche, alejándose de los fuegos del valle. Pronto llegamos a la orilla del río que corría en la sombra, con un ruido vasto, continuando, profundo, de masa de agua dividiendo las tierras. (CARPENTIER, 1998: 58)

O rio, agora como espaço que fomenta reflexão, é depreendido pelo protagonista

sob uma nova ótica:

No era el agitado escurrirse de las corrientes delgadas, ni el chapoteo de los torrentes, ni la fresca placidez de las ondas de poco cauce que tantas veces hubiera oído de noche en otras riberas: era el empuje sostenido, el ritmo genésico de un descenso iniciado a centenares y centenares de leguas más arriba, en las reuniones de otros ríos venidos de más lejos aún, con todo su peso de cataratas y manantiales. (CARPENTIER, 1998: 58)

Outra passagem do romance ilustra a atração sentida pelo protagonista ao

contemplar o rio, que lhe serve de estrada para alcançar seu objetivo. Por vezes, ao

longo da jornada, o musicólogo deixa-se levar pela paisagem que lhe cerca. Reflete

acerca da importância daquele elmento da natureza para o equilíbrio do território.

Entende sua importância e sua imponência diante do comportamento do rio:

Me vuelvo hacia el río. Su caudal es tan vasto que los raudales, torbellinos, resabios, que agitan su perenne descenso se funden en la unidad de un pulso que late de estíos a lluvias, con los mismos descansos y paroxismos, desde antes de que el hombre fuese inventado. [...] El río entra, en el espacio que abarcan mis ojos, por una especie de tajo, de desgarradura hecha al horizonte de los ponientes; se ensancha frente a mí hasta esfumar su orilla opuesta

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en una niebla verdecida de árboles, y sale del paisaje como entró, abriendo el horizonte de las albas para derramarse en la otra vertiente, allá donde comienza la proliferación de sus islas incontables, a cien leguas del Océano. Junto a él, que es granero, manantial y camino, no valen agitaciones humanas, ni se toman en cuenta las prisas particulares. El riel y la carretera han quedado atrás. Se navega contra la corriente o con ella. (CARPENTIER 1998: 59)

O musicólogo confessa também que este misterioso espaço, não somente o

rio, mas toda a paisagem da selva, promove o descobrimento que nenhum livro

havia empreendido antes em sua consciência: a existência de paisagens que não

estavam presentes nas publicações catalogadas pelo homem ilustrado; civilizações

que ignoravam os progressos da inteligência humana sem que isso afetasse o curso

de sua existência, como se lê em:

... si algo me estaba maravillando en este viaje era el descubrimiento de que aún quedaban inmensos territorios en el mundo cuyos habitantes vivían ajenos, a las fiebres del día, y que aquí, si bien muchísimos individuos se contentaban con un techo de fibra, una alcarraza, un budare, una hamaca y una guitarra, pervivía en ellos un cierto animismo, una conciencia de muy viejas tradiciones, un recuerdo vivo de ciertos mitos que eran, en suma, presencia de una cultura más honrada y válida, probablemente, que la que se nos había quedado allá (CARPENTIER: 1998: 66)

A selva, ali contemplada, ainda era o espaço das criaturas assustadoras dos

relatos coloniais. No entanto, tudo parecia perfeitamente orquestrado. O

assombroso, desmedido era, ali, rotineiro:

Luego [...], la barca avanzaba ahora, río arriba, bordeando un tanto para esquivar el empuje poderoso de la corriente. Sobre la vela triangular, de galera antigua, muy desprendida del mástil, se reflejaban las luces del poniente. En esta antesala de la Selva, el paisaje se mostraba a la vez solemne y sombrío. En la orilla izquierda se veían colinas negras, pizarrosas, estriadas de humedad, de una sobrecogedora tristeza. En sus faldas yacían bloques de granito en forma de saurios, de dantas, de animales petrificados. (CARPENTIER, 1998: 74)

Ao adentrá-la, o protagonista abre os olhos para enxergar uma nova realidade que o

faz crer na existência de uma simbiose de culturas que resultaria em um novo e

profícuo modo de coexistência, propriamente, latino-americano. O que ilustra na

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obra literária uma afirmação de Alejo Carpentier (1987:99), autor do romance

estudado, quando escreve em Tientos, diferencias y otros ensayos que: “América es

el único continente en que el hombre de hoy, del siglo XX, puede vivir con hombres

situados en distintas épocas que se remontan hasta el neolítico y que le son

contemporáneos”. Nasce, na prosa de Carpentier, um sujeito cultural americano que,

segundo Pratt (2011: 418)

… nasce através das viagens, em um itinerário que não evita a metrópole, mas a atravessa, para depois voltar ao ponto de partida. O caminho em direção à descolonização e à tomada de consciência não passa ao redor, mas sim através dos códigos da modernidade.

Vale ressaltar que o trajeto que o musicólogo percorreu desde sua saída da

capital norte americana até o povoado fundado por Adelantado esteve repleto de

percalços. De acordo com palavras do narrador a viagem em avião, por si só, o

estimulara a regressar. O ônibus que o transportou de Los Altos até Puerto

Anunciación contava com uma estrutura precária e as balsas que o conduziram

durante a viagem fluvial não se diferenciavam muito. O narrador parece querer, com

sua narração, ressaltar as condições em que se realizou a viagem como uma

estratégia para exaltar sua ação de aceitar o que seria considerado um ato

descabido na metrópole.

O protagonista menciona ao longo do relato, a existência de algumas provas,

grafando-as com letra maiúscula. Ao final da leitura compreende-se que são três as

provas impostas pelo narrador, durante a jornada vivida. As duas primeiras se

passam durante a travessia do rio. O musicólogo escreve que nestas duas provas

deveria vencer os terrores noturnos, cuja descrição se lê a seguir:

Con el trastorno de las apariencias, en esa sucesión de pequeños espejismos al alcance de la mano, crecía en mí una sensación de desconcierto, de extravío total, que resultaba indeciblemente angustiosa [...] Todos parecían tranquilos en torno mío; pero un miedo indefinible, sacado de los trasmundos del instinto me hacía respirar a lo hondo, sin hallar nunca el aire suficiente [...]Cuando desembocamos en un pequeño estanque inverno, que moría al pie de una laja amarilla, me sentí como preso, apretado por todas partes [...] Las tinieblas se estremecían de sustos y deslizamentos [...]Las fatigas de la jornada, la expectación nerviosa, me habían extenuado. Cuando el sueño venció el temor a las amenazas que me rodeaban,

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estaba a punto de capitular —de clamar mi miedo—, para oír voces de hombres. (CARPENTIER, 1998: 86-87)

E acrescentam-se, também, as tempestades, como lemos em:

Y, de pronto, la corriente nos arroja a toda la anchura de un río amarillo que desciende, atormentado de raudales y remolinos, hacia el Río Mayor [...]. El empuje del agua se acrece hoy, peligrosamente, con el peso de lluvias caídas en alguna parte. Tomando el oficio de baqueano, fray Pedro, con un pie afianzado en cada borde, va arrumbando las canoas con el bastón [...]. De pronto, hay turbamulta en el cielo: baja un viento frío que levanta tremendas olas, los árboles sueltan torbellinos de hojas muertas, se pinta una manga de aire, y, sobre la selva bramante, estalla la tormenta. [...] Prosigue la terrible lucha durante un tiempo que mi angustia hace inacabable. [...] Comprendo que el peligro ha pasado cuando fray Pedro vuelve a pararse en la proa, afincando los pies en las bordas. [...]Agotado por la tensión nerviosa, me duermo sobre el pecho de Rosario. (CARPENTIER, 1998: 91)

Eis a descrição das duas provas que, segundo o musicólogo, havia vencido.

Após passar por semelhantes transtornos, acreditava que se aproximara em bravura

e resistência dos habitantes daquela paisagem, acostumados a enfrentar as

intempéries da natureza. Em sua ânsia de pertencimento o narrador buscava em

sua trajetória meios que o levassem a se integrar ao cenário que ali se concertava.

Se transcreve nas linhas que se seguem a passagem que descreve esta pretensiosa

reflexão:

Al lavarme el pecho y la cara en un remanso del caño, junto a Rosario que limpiaba con arena los enseres de mi desayuno, me pareció que compartía en esta hora, con los millares de hombres que vivían en las inexploradas cabeceras de los Grandes Ríos, la primordial sensación de belleza, de belleza físicamente percibida, gozada igualmente por el cuerpo y el entendimiento, que nace de cada renacer [...] de sol —belleza cuya conciencia, en tales lejanías, se transforma para el hombre en orgullo de proclamarse dueño del mundo, supremo usufructuario de la creación (CARPENTIER, 1998: 87-88)

As provações do intelectual latino-americano, protagonista do romance,

estavam bem aquém das célebres provas enfrentadas pela mitológica figura de

Hércules ou das tentações de Abraão, cuja vida é reverenciada nos livros do

cristianismo, judaísmo e islamismo. Não há no relato de viagens de Carpentier um

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enfrentamento que leve o protagonista a desfazer-se de mais que elementos

acessórios a sua existência.

Nas provas que julga ter enfrentado, não é mais que espectador dos

acontecimentos. Em ambas as passagens, o narrador adormece. Descontrói-se na

narrativa qualquer indício que possa inscrever o intelectual latino-americano como

herói da história, como desbravador de um mundo desconhecido. González

Echeverría (2004: 218) corrobora com o que pode ser vislumbrado, por meio da

leitura do romance, ao enunciar que

A guerra do tempo se faz no ato de escrever e a única figura mítica que pode surgir é a do escritor moderno, quem por definição é um destrutor de mitos, inclusive do seu próprio. Ao levar até o fim sua auto-desmitificação, Carpentier submete-se ao grosso da tradição literária latino-americana sua prova mais séria. Se os passos que levam às origens se perderam realmente, o romance se apresenta então não como conservador da tradição, mas sim como demolição e novo começo.

A terceira prova descrita no caderno de campo seria resistir à tentação de

regressar e, por esta, o musicólogo não conseguiu passar. Com a ideia de regressar

à civilização, apenas para buscar os insumos necessários para desenvolver suas

teorias sobre a origem da música, retorna a Puerto Anunciación, após seis meses de

distanciamento de Rosario e tudo que se relacionava a Santa Mónica de los

Venados. Com muita dificuldade, conseguiu empreender uma viagem pelo rio em

busca da porta secreta que levava à cidade do Adelantado Pablo.

Neste momento da narração o musicólogo deixa de ser passageiro da

embarcação para ser guia de viagem. Ele é quem conhece o caminho que o levaria

até seus cadernos de campo, deixados com Rosario como prova de amor. Torna-se

agente da ação. Há nesta cena um espaço aberto para o real protagonismo do

intelectual de Carpentier diante da selva americana. Ele acredita que esta será uma

tarefa sem muitas dificildades, como se lê em:

Al cabo de tres horas de remo, río arriba, tenemos que encontrar aquel valladar de árboles [...]aquella muralla de troncos, como trazada a cordel — donde está la entrada del caño de passo [...]Más allá, siempre hacia el Este con ayuda de la brújula, hemos de caer en el otro río, donde me agarrara la tempestad, cierta tarde memorable de mi existencia. Llegado a donde hallé los instrumentos, veré cómo

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me desprendo de mi compañero de viaje, siguiendo con la gente de la aldea (CARPENTIER, 1998: 144)

O musicólgo esteve presente durante a jornada que levou a Santa Mónica de

los Venados. No entanto, não possuía os conhecimentos necessários para acessar

a região. Em um mundo como o contemplado na selva a paisagem era um livro cujo

idioma o intelectual de Carpentier desconhecia completamente. Ao tentar

empreender a travessia,

Ya proseguimos la navegación y [...] señalo a Simón, a la izquierda, la pared de árboles que cierra la ribera hasta donde alcanza la mirada. Nos acercamos, y empieza una lenta navegación, en busca de la señal que marca la entrada del caño de paso. Con la vista fija en los troncos, busco, [...] la incisión que dibuja tres V superpuestas verticalmente, en un signo que pudiera alargarse hasta el infinito. [...] Seguimos más adelante. Pero pongo tanta atención en mirar, [...], que al cabo de un momento mis ojos se fatigan de ver pasar constantemente el mismo tronco. Me asaltan dudas de haber visto sin darme cuenta; [...]Navegamos durante media hora más. [...] Es evidente que la entrada del caño ha quedado atrás. [...] (CARPENTIER, 1998: 144-145)

Após um bom tempo sem sucesso, uma lembrança parece dar solução

àquela busca, porém, como se lerá a seguir, a vontade do musicólogo não é fator

suficiente para completar seu objetivo. A natureza entra, uma vez mais, de maneira

determinante em seu caminho:

Yo recordaba que cuando habíamos estado aquí con el Adelantado, los remos alcanzaban el fondo en todos momentos. Esto quiere decir que sigue desbordado el río, y que la marca que buscamos está debajo del agua. Digo a Simón lo que acabo de entender. Riendo me responde que ya se lo figuraba, pero que «por respeto» no me había dicho nada, creyendo, además, que al buscar la señal yo tenía en cuenta el hecho de la creciente. Ahora pregunto, con miedo a la respuesta, [...], si él cree que pronto habrán bajado las aguas lo suficiente para que podamos ver la marca [...] «Hasta abril o mayo», me responde[ ...]. Hasta abril o mayo estará cerrada, pues, para mí, la estrecha puerta de la selva. Me doy cuenta ahora que después de haber salido vencedor de la prueba de los terrores nocturnos, de la prueba de la tempestad, fui sometido a la prueba decisiva: la tentación de regresar. (CARPENTIER, 1998: 145- 146)

Assim sendo, o intelectual constata que:

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Aún están abiertas las mansiones umbrosas del Romanticismo, con sus amores difíciles. Pero nada de esto ha sido destinado para mí, porque la única raza humana que está impedida de desligarse de las fechas es la raza de quienes hacen arte, y no sólo tienen que adelantarse a un ayer inmediato, representado en testimonios tangibles, sino que se anticipan al canto y forma de otros que vendrán después, creando nuevos testimonios tangibles en plena conciencia de lo hecho hasta hoy. (CARPENTIER, 1998: 150).

Assim como a selva americana, robusta, retorcida, exuberante, o texto de

Carpentier também o é. Uma profusão de imagens que se desdobram e se

sobrepõem. Um entramado de teóricos, historiadores que nos conduzem a viajar, na

história e na arte, através dos tempos. Múltiplas realidades, em um mesmo espaço,

que poderiam ser entendidas como a manifestação do consciente do escritor sobre

os questionamentos que lhe inquietam a respeito da realidade vigente no século XX.

Ao vislumbrar as descrições de Los pasos perdidos o leitor é devorado pela

realidade descrita na obra literária. Enredado por inúmeras referências textuais e

históricas, entorpecido pela magnitude da narração e assombrado pelo caráter

desconcertante da natureza já não se pode mais regressar ao estado original. O

pensamento do leitor está tão alterado quanto o rio de Heráclito. A cada banho uma

nova dimensão da realidade, a cada leitura um novo olhar sobre a narrativa

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IV – LA SINFONÍA AL REVÉS: CONDUTORES E CONDUZIDOS AO COMPASSO

DO GÊNESIS

No presente capítulo propomos uma reflexão, desde o ponto de vista

histórico, através de fragmentos do livro Los pasos perdidos, publicado em 1953,

para abordar a trajetória de algumas personagens que conduziram os passos do

protagonista e a maneira como se problematiza a questão identitária na América

Latina.

No primeiro item analisa-se a presença de três personagens femininas: Ruth a

esposa, Mouche a amante citadina e Rosario com quem se relaciona na selva. Para

tanto, será considerada a trajetória da participação feminina ao longo da história e

sua repercussão na sociedade.

O segundo item discorre a respeito de personagens que acompanharam o

protagonista em sua viagem fluvial: o mineiro Yannes e Pablo, o Adelantado. Tais

análises se fazem necessárias, pois as personagens carregam consigo valores que

o autor do romance pretende problematizar.

Cada uma dessas figuras cumpre um papel na trajetória empreendida pelo

anônimo musicólogo de Carpentier e seus perfis psicológicos se assemelham a

personagens contemplados em outras narrativas ocidentais. Uma mostra de como

as experiências pessoais e leituras de outras obras se articulam na criação literária

de Carpentier.

No terceiro e último item da presente tese temos a aproximação entre

protagonista e autor. Muito se discorre a respeito do caráter auto-biográfico presente

em Los pasos perdidos. Carpentier imprime no protagonista sua concepção a

respeito das personagens:

Como en los más clásicos teatros, los personajes eran, en este gran escenario presente y real, los tallados en uma pieza del Bueno y el Malo, la Esposa Ejemplar o la Amante Fiel, el Villano y el Amigo Leal, la Madre digna o indigna. Las canciones ribereñas cantaban, en décimas de romance, la trágica historia de una esposa violada y muerta de vergüenza, y la fidelidad de la zamba que durante diez

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años esperó el regreso de un marido a quien todos daban por comido de hormigas en lo más remoto de la selva. (CARPENTIER, 1998:80)

O autor cubano releva também sua concepção sobre a ambientação do cenário:

Em 1945. Carpentier se mudou de Havana a Caracas para tomar um posto similar ao de seu protagonista em uma agência de publicidade; [...] Carpentier é compositor e musicólogo [...]. Assim que assentou-se na capital Venezoelana um golpe militar derrocou o governo [...] Algumas crônicas Márquez Rodríguez e Müller-Berg [...] indicam que [...] quando vivia na Venezuela, viajou à selva, e que, durante sua viagem, concebeu a ideia de escrever Los passos perdidos. (ECHEVERRIA, 2004: 29)

Carpentier nos deixa entreaberta a cortina por onde entrevemos, mais que uma

explicação sobre uma obra, uma demonstração a mais do modus operandi do

intelectual cubano ao confrontarmos sua construção narrativa com o conteúdo de

seu diário Diario, cuja publicação foi retida durante muitos anos por vontade de sua

esposa Lilia Esteban.

4.1 Presença feminina em Los pasos perdidos

A figura da mulher e os caminhos por ela traçados ao longo da história é

matéria de estudo em diversos campos. No presente item, apresenta-se um

panorama da trajetória feminina, com base nos estudos das Ciências Humanas, e os

aspectos presentes em um livro religioso, a Bíblia, no qual abundam referências

históricas que foram utilizadas por Alejo Carpentier ao elaborar Los pasos perdidos e

que, portanto, se fazem necessárias ao desenvolvimento da análise que virá a

seguir.

No Antigo Testamento, temos uma parte inicial que se denomina Pentateuco.

Nela estão os cinco primeiros livros da Bíblia que tinham como função apresentar a

sociedade as leis que deveriam ser seguidas por todos: Gênesis, Êxodo, Levítico,

Números e Deuteronômio. A respeito desse conjunto de livros é interessante

ressaltar que:

[...] encontramos historias e leis que foram postas por escrito durante seis séculos, reformulando, adaptando e atualizando tradições

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antigas e novas. Tanto as histórias como as leis giram em torno de um centro: o ato libertador de Deus no êxodo, que é o ato fundante do povo de Israel (BIBLIA, 1990: 11,12)

No livro do Gênesis a mulher é vista como aquela que encaminha o homem

ao pecado. A serpente entra em contato com ela. É a mulher quem, segundo o texto

bíblico, convence Adão a comer do fruto proibido. Nesse momento, o Criador se

apresenta como uma força que, além de onipotente, castiga duramente suas

criaturas.

Na cosmovisão da época, o projeto de aliança com o deus criador exigia que

seus seguidores reconhecessem que ele era único e supremo diante de todas as

coisas. Ao reconhecer esse deus como absoluto seria possível estabelecer relações

fraternas e desfrutar de uma vida cujo centro seria a liberdade e a vida. No entanto

essa liberdade estava condicionada à vontade desse deus único e não dos homens

que o veneravam. Ao desobedecê-lo, eram castigados com ira, como se lê em

Javé Deus disse então a mulher: “Vou fazê-la sofrer muito em sua gravidez; entre dores, você dará à luz seus filhos; a paixão vai arrastar você para o marido e ele a dominará. Javé Deus disse para o homem: “Já você que deu ouvidos à sua mulher […] Enquanto você viver […] comerá seu pão com o suor do seu rosto, até que volte para a terra […] (GÊNESIS, 1990: 3;16-19)

Na Bíblia temos apenas três livros, todos presentes no Antigo Testamento,

que levam nomes de mulher: Rute, Judite e Ester. O livro de Rute (1990: 296), narra

um “roteiro para a luta do povo pobre em busca de seus direitos”. Ao apresentar a

protagonista do livro como uma estrangeira, o narrador veicula a ideia de que todas

as nações podem aceder à salvação prometida pelo deus único, Javé. Rute

representa o modelo ideal que deve ser seguido pelo povo que acredita no deus

único. Seus discípulos devem estar dispostos a

[...] deixar suas seguranças para se comprometer com o povo pobre, que nada mais tem, a não ser a esperança que nasce pela fé. […] no projeto de Javé os bens devem ser partilhados entre todos […] Para conquistar sua liberdade e vida, o povo tem que lutar para reconhecer e fazer valer seus direitos, endereçando a sociedade para a conretização do projeto de Javé (RUTE, 1990: 297)

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Já os livros de Judite e Ester são chamados livros históricos23. Os dois livros,

juntamente com o livro de Tobias e os de Macabeus não se encaixam na cronologia

dos livros anteriores e tampouco dos posteriores contidos na Bíblia. São

considerados romances que apresentam situações típicas vivenciadas pelos judeus

na Palestina ou fora dela sem que haja relação direta com os acontecimentos

históricos de então. Funcionam atualmente, segundo a doutrina cristã, como um

modelo para analisar, em profundidade, algumas situações reais.

Acredita-se que o livro de Judite foi escrito na Palestina em meados do século

II a.C, durante a resistência dos Macabeus ou logo após. Ao descrever a tirania de

Nabucodonosor, o texto pode servir como motivador para qualquer povo que se

sinta oprimido. Nele também se encontra descrita a mecânica de funcionamento de

um sistema dominador utilizado por uma grande potência: desde o aparato militar

até as estratégias de intimidação, e de convencimento pela força e, ainda, como os

países de menor expressão se subjugam diante de tal sistema.

A figura de Judite simboliza a mulher corajosa que sai em defesa de seu povo

e faz também uma alusão ao próprio povo que renova sua força alicerçando-se na fé

ao deus único. A protagonista do livro bíblico faz uso do artifício da beleza e

sedução para alcançar a vitória, mostrando como pode manipular os demais através

da imagem. Atributos que, segundo a descrição do autor, lhes são ressaltados

graças à fé. Judite elabora suas palavras e seus atos de modo astuto, manipulando

o opressor para alcançar seus objetivos, como se lê em

As palavras de Judite agradaram a Holofenes e seus oficiais. Admirados com a sabedoria dela disseram: “ De um extremo a outro da Terra, não existe mulher tão bonita e que saiba falar tão bem. […] Você é bela e eloquente. Se fizer o que me disse, o seu Deus será o meu Deus, […] e será famosa no mundo inteiro. (JUDITE, 1990: 11; 20-23)

O livro de Ester, nos moldes apresentados na Bíblia, é o resultado da fusão

de duas versões da história: uma de origem hebraica, a qual se baseia na tradução

23 As demais narrações contidas na Bíblia são consideradas pelos cristãos como história real ou como escritos fruto da inspiração divina. Neste caso, portanto, o termo histórico possui marcado caráter literário.

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da edição aqui utilizada para análise; outra, de origem grega, que serviu para

preencher as lacunas textuais deixadas pela versão hebraica.

Essa informação já suscita uma série de questionamentos a respeito do texto.

Ao final do trabalho, quem é o autor do livro? Um hebreu ou um grego? Talvez

ambos ou nenhum deles se considerarmos o editor que uniu as duas versões e que,

mesmo marcando textualmente as inserções de origem grega, é responsável pela

escolha que culminou no texto final. Sobre a protagonista do livro sabe-se que:

… é orfã e vem do meio dos pobres e oprimidos, mas a sua beleza mostra que estes nada ficam a dever diante dos ricos. O nome dela significa provavelmente “a escondida” ou “aquela que esconde. […] Ester penetra no mais íntimo do sistema opressor […] e anuncia a intervenção libertadora, que ela vai realizar em favor de todo o seu povo (BIBLIA, 1990: 563-564)

A leitura do livro transmite ao leitor a mensagem de que é possível

estabelecer uma sociedade alternativa, livrando-se do jugo opressor. A obra elenca

situações e ações que vislumbram a viabilização de uma política que una

transformações de ordem local e nacionalista a estratégias globais que atinjam

outras nações. Um interessante argumento que parece ter como objetivo fomentar a

união entre povos de diferentes etnias, levando-os a professar a mesma fé no

estabelecimento de um reino unificado, homogêneo, perene.

A última consideração a respeito de personagens femininas presentes na

Bíblia tem a ver com a emblemática Maria, que surge no Novo Testamento como

redentora da humanidade. Aquela que permite que se realize uma nova aliança com

o deus único. Ao contrário de Eva, Maria entrega-se completamente à vontade do

deus que se apresenta como onipotente, onisciente e onipresente. Uma figura que

personifica um modelo a seguir: silenciosa, crente, resistente, submissa e

intercessora. Como se lê em “Eis a escrava do Senhor. Faça-se em mim segundo a

tua palavra” (LUCAS, 1990: 1; 38)

Configura-se uma nova imagem de guerreira. Esta não fará uso de artifícios

de linguagem ou atributos estéticos como fizeram Judite e Ester. A mulher escolhida

para ser a mãe do Messias, é virgem e adota uma postura de serenidade, advinda

do hábito da oração e da confiança no deus único. Ela não se configura como ser de

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ação e sim de intercessão. O seu corpo é utilizado com instrumento para

restauração da aliança entre os homens e a divindade. Aliança que se materializa

com o nascimento do Messias, sobre o qual se afirma que:

Eis que você ficará grávida e dará a luz a um filho, e dará a ele o nome de Jesus. Ele será grande, e será chamado filho do Altíssimo. E o Senhor Deus dará a ele o trono de seu pai Davi. E ele reinará para sempre sobre os descendentes de Jacó. E o seu reino não terá fim. (LUCAS, 1990: 1; 31-35)

Com esta aliança, a ideia de um reino unificado cujo poder se concentra em

mãos de um único ser volta a ser considerada. Nesta versão, a aliança entre o

humano e o divino se estabelece no verbo que se faz carne, aproximando ambas as

forças e sugerindo uma fraternidade entre pecador e divindade.

Todo e qualquer discurso possui um emissor e um receptor. Esse emissor

enuncia desde um lugar definido pela história e pelo tempo. Os acontecimentos que

circundam sua existência influenciam, de modo inevitável, em suas decisões. Ao

elaborar seu discurso, o emissor precisa levar em consideração o público que vai

recebê-lo. Nenhuma enunciação é inocente. Ainda que involuntariamente, há um

posicionamento a respeito do que é contado na narração.

Assim sucedeu nos escritos bíblicos, nos relatos etnográficos, por mais que

se tenha visado – nestes últimos – a imparcialidade, e no romance Los pasos

perdidos de Alejo Carpentier. A seguir temos algumas considerações sobre três

personagens femininas que tiveram especial participação na trajetória do

personagem principal do romance de Carpentier ao longo de sua viagem al revés:

Ruth, a esposa do protagonista; Mouche a amante e Rosario com quem estabelece

um romance na selva. Em cada uma delas se vê representada uma ideia, um

modelo de existência a ser analisado.

A primeira personagem analisada é Ruth, atriz e esposa do protagonista. Seu

nome alude ao livro homônimo presente no Antigo Testamento, cujo tema gira em

torno dos princípios necessários para reorganizar a comunidade que sofreu as

intempéries do exílio na Babilônia por volta do século V a.C. Tanto a personagem

central do livro bíblico, quanto a do romance de Carpentier são estrangeiras. A Rute

das escrituras é exemplo de virtude e fidelidade aos valores morais, refletidos em

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suas atitudes. Com a morte de seu marido, a fiel moabita permanece até o fim ao

lado de sua sogra Noemi, preservando a instituição familiar erguida em seu

casamento, como se observa no fragmento que se segue:

Não vou voltar, nem vou deixar você. Aonde você for, eu também irei. Onde você viver, eu também viverei. Seu povo será o meu povo, e seu Deus será o meu Deus. Onde você morrer, eu também morrerei e serei sepultada. Somente a morte nos separará. (RUTE 1990: 1;16-17)

As semelhanças entre a personagem do romance não se restringem ao

campo bíblico, pois alcançam também a biografia do autor de Los pasos perdidos.

Em seu Diario (2013), Carpentier registra as experiências ocorridas entre 1951 e

1957. Além das músicas, textos e tarefas que fazem parte de seu cotidiano, o

escritor cubano também menciona pessoas de seu círculo íntimo.

Vale destacar o importante trabalho do corpo editorial em preeencher as

lacunas textuais deixadas pelo autor, e acentuadas pela revisão de sua última

esposa Lilia Esteban Hierro, através de notas de rodapé e de um esclarecedor

prólogo. Na citação que se encontra ao fim deste parágrafo, é possível entender

melhor como funciona a estrutura do material póstumo editado. Além disso, deixa-se

entrever mais uma semelhança entre Alejo Carpentier (2013: 20-21) e o anônimo

protagonista do romance Los pasos perdidos:

Para facilitar a leitura do Diario de Alejo Carpentier decidiu-se também identificar tanto as personalidades como os acontecimentos menos conhecidos com uma pequena nota biográfica ou explicativa […] Ao proceder a leitura e análise das páginas do Diário nos encontramos com numerosos nomes de pessoas que são assinalados apenas pela letra inicial do nome […] H, é Hèlene, atriz teatral cujo nome desconhecemos e quem, segundo nos disse o prório Alejo neste diário, lhe serviu de modelo para a personagem Ruth em Los pasos perdidos.

Sobre Hèlene, representada na publicação apenas pela primeira letra de seu

nome, temos a seguinte nota de rodapé:

Hèlene [...] era, segundo o próprio Alejo Carpentier, atriz de cinema e manteve uma relação sentimental com Carpentier nos últimos anos de sua estada em Paris.[…] Na Fundação Alejo Carpentier se

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conserva uma carta íntima de Hèlene, datada de 7 de outubro de 1940, dirigida ao escritor. (CARPENTIER, 2013: 92)

Cabe ressaltar, a menção de Carpentier (2013:92) em um dos textos, datado de 28

de setembro de 1952, que compõem seu diário pessoal:

Me dejo llevar por las sorpresas de la existencia, sin oponer la menor resistencia. Más aún: son ciertos acontecimientos los que me dictan la actitud a adoptar, la medida por tomar. […] Mi prisión de cuatro días en 1938 (diciembre) por el terrible delito de tener una << Carte d'Identité>> périnée […] determinó mi firme voluntad de irme de Francia y regresar a Cuba – cuando precisamente, ganaba maravillosamente mi vida em París, estaba instalado, vivía mi historia con H.,etc.

No romance de Carpentier a personagem inspirada em Hélene é esposa do

protagonista. Integra o cenário monótono da vida do musicólogo latino-americano.

Compartilham uma vida de representações, de rotinas enfadonhas, de atos

realizados por mera convenção: um esforço por manter a ilusão da vivência de um

sacramento. Esta relação pode ser vislumbrada na seguinte passagem:

Al no hallar un modo normal de hacer coincidir nuestras vidas —las horas de la actriz no son las horas del empleado—, acabamos por dormir cada cual por su lado. El domingo, al fin de la mañana, yo solía pasar un momento en su lecho, cumpliendo con lo que consideraba un deber de esposo, aunque sin acertar a saber si en realidad mi acto respondía a un verdadeiro deseo por parte de Ruth. […] Regábamos el geranio olvidado desde el domingo anterior; cambiábamos un cuadro de lugar; sacábamos cuentas domésticas. Pero pronto nos recordaban las campanas de un carrillón cercano que se aproximaba la hora del encierro. (CARPENTIER, 1998:2)

A personagem do romance de Carpentier vive envolta por textos e maquiagens.

Encena dia a dia seu papel de atriz medíocre e esposa ausente. Assim como seu

marido, Ruth se deixa levar pelo automatismo de sua profissão, como se comprova

no seguinte trecho:

[…] Ruth, que había comenzado a decir el texto a la edad de treinta años, se veía llegar a los treinta y cinco, repitiendo los mismos gestos, las mismas palabras, todas las noches de la semana, todas las tardes de domingos, sábados y días feriados […] Cada vez más amargada, menos confiada en lograr realmente una carrera que, a pesar de todo, amaba por instinto profundo, mi esposa se dejaba llevar por el automatismo del trabajo impuesto, como yo me dejaba llevar por el automatismo de mi oficio. (CARPENTIER, 1998: 5)

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Esse círculo tedioso vivido pelo casal se rompe apenas a partir da notícia de

que Ruth se ausentaria de suas funções de esposa por um período bem mais

extenso que o habitual. Sua turnê em direção à outra costa dos EUA foi o motor que

desatou o músico latino-americano de seu empoeirado e cômodo ofício de gabinete

para embarcar na busca por suas raízes, ainda que inconscientemente. Como

ilustram as linhas a seguir:

Ruth me hablaba a través del espejo, mientras ensuciaba su inquieto rostro con los colores grasos del maquillaje: me explicaba que al terminarse la función, la compañía debía emprender, de inmediato, una gira a la otra costa del país y que por ello había sus maletas al teatro. [...] Tuve una tremenda sensación de soledad. Era la primera vez, en once meses, que me veía solo, fuera del sueño, sin una tarea que cumplir de inmediato, sin tener que correr hacia la calle con el temor de llegar tarde a algún lugar. (CARPENTIER, 1998: 5)

Ruth foi a peça fora do quebra-cabeças, há anos montado, que fez com que o

protagonista saísse de sua zona de conforto. A impossibilidade de efetuar o seu

rotineiro plano de vida, o fez sair de seu estado de eterna complacência. Como se lê

em:

El recuerdo de su viaje me produjo una repentina irritación: era ella, realmente, a la que yo estaba persiguiendo ahora; la única persona que deseaba tener a mi lado, en esta tarde sofocante y aneblada, cuyo cielo se ensombrecía tras de la monótona agitación de los primeros anuncios luminosos. Pero otra vez un texto, un escenario, una distancia, se interponía entre nuestros cuerpos, que no volvían a encontrar ya, en la Convivencia del Séptimo Día, la alegría de los acoplamientos primeros. (Ibidem)

Foi Ruth também quem motivou o musicólogo a repensar seu trabalho e dedicar-se

à tarefas mais contidas. A estabelecer um espaço em que ambos pudessem manter

um momento de convivência.

Antes de se unirem, o protagonista desenvolvia com o Curador sua teoria

sobre a origem da música. Para seguir com esta tarefa seriam necessários

momentos de separação que poderiam afastá-lo ainda mais de sua esposa Ruth.

Então, juntos, como se pode ler no romance, “hubiéramos destrozado, com nuestra

fuga, la existencia de un hombre excelente.” (CARPENTIER 1998:10). Como se

comprova a seguir:

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Cuando agotamos los tiempos de la anarquía amorosa me convencí muy pronto de que la vocación de mi mujer era incompatible con el tipo de convivencia que yo anhelaba. Por ello había tratado de hacerme menos ingratas sus ausencias en funciones y temporadas, orientándome hacia una tarea que pudiera llevarse a cabo los domingos y días de asueto, sin la continuidad de propósitos exigida por la creación. (CARPENTIER, 1998: 10)

A sua ausência, aliada à insistência do Curador e de Mouche faz com que o

musicólgo empreenda sua viagem al revés. Por seis semanas, o protagonista viveu

uma história que lhe permitiu redescobrir-se. O músico que tomou o hábito de se

comunicar em inglês ou francês; que desenvolveu sua teoria sobre o mimetismo-

mágico-rítmico das comunidades primitivas foi estrangeiro em solo nacional,

conquistador de terras inexploradas. Encontrou em Santa Monica de los Venados

não só a origem da música como também um papel a desempenhar dentro daquele

universo maravilloso. Em meio a esse novo cenário, Ruth chega, novamente, para

resgatá-lo e reconduzi-lo ao seio familiar. É sua esposa quem o conduz para fora de

seu lar, ao dirigir-se para fora dele em busca de conquistas profissionais, e quem o

traz de volta ao mover todas as forças para resgatá-lo do convívio com os primitivos.

A Atriz empreende, segundo o protagonista, o melhor papel de sua existência, como

se lê em:

… observo a Ruth, ahora, bajo las arañas de la galería de los retratos, y me parece que interpreta el mejor papel de su vida: […] usurpa las funciones de ama de casa con una gracia y una movilidad de bailarina. Está en todas partes; […] y es su actuación tan matizada, diversa, insinuante, […] usando de mil artimañas inteligentes para ofrecerse a todos como la estampa de la dicha conyugal, que dan ganas de aplaudir. […] es Genoveva de Brabante, vuelta al castillo; […] Tengo la impresión, al salir del Ayuntamiento, que sólo falta bajar el telón y apagar las candilejas. (CARPENTIER, 1998: 272-273)

A esposa ausente com quem dividia a convivência do sétimo dia ao saber de

suas intenções em obter o divórcio e submergir em uma vida que ela ignorava o

sentido, se apresentou:

…vestida de negro, sin carmín en los labios, empeñada en seguir representando su papel de esposa herida en el corazón y en el vientre ante los jueces de la nación. Lo de su embarazo fue una mera alarma. […] Era yo, pues, el hombre despreciable de las Escrituras,

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que edifica casa y no vive en ella, que planta la viña y no la vendimia. (CARPENTIER, 1998: 286)

Ainda que surpreendido com a mudança de sua esposa e fatigado com a

mentira da gravidez, o protagonista eximiu Ruth de qualquer culpa, afirmando que

“no había sido una mala mujer, sino la víctima de su vocación malograda”.

(CARPENTIER, 1998, 265). Assim sendo, desvencilhou-se o quanto pôde dos

artifícios da atriz em mantê-lo na capital e dirigiu-se ao que julgava ser o seu

destino.

Em seguida daremos continuidade ao estudo apresentando a análise de uma

segunda personagem feminina: Mouche. A relação estabelecida entre o anônimo

protagonista do romance e a astróloga foi possível a partir das ausências da esposa

Ruth. O narrador não consegue explicar exatamente por que mantém esta relação.

La había conocido dos años antes, durante una de las tantas ausencias profesionales de Ruth, y aunque mis noches se iniciaran o terminaran en su lecho, entre nosotros se decían muy pocas frases de cariño. […] Me era difícil saber si era amor real lo que a ella me ataba. A menudo me exasperaba por su dogmático apego a ideas y actitudes conocidas en las cervecerías de Saint-Germain-des-Prés ,[…]Pero a la noche siguiente me enternecía con sólo pensar en sus desplantes, y regresaba a su carne que me era necesaria, pues hallaba en su hondura la exigente y egoísta animalidad que tenía el poder de modificar el carácter de mi perenne fatiga, pasándola del plano nervioso al plano físico. (CARPENTIER, 1998:13)

Diferente da relação vivenciada com sua esposa Ruth, em um cenário de

representações teatrais, onde cada um atua como modelo de esposo e esposa em

um contrato conjugal se vislumbra, entre Mouche e o protagonista, uma relação na

qual as limitações de cada um são expostas constantemente. Os pontos de vista de

cada uma das partes dessa relação são diferentes e tal fato resulta, inúmeras vezes,

em discussões, sem, contudo, ocasionar um rompimento, como se lê em:

Reñíamos, a veces, de tremenda manera, para abrazarnos luego con ira, mientras las caras, tan cercanas que no podían verse, intercambiaban injurias que la reconciliación de los cuerpos iba transformando en crudas alabanzas del placer recibido. Mouche, que era muy comedida y hasta parsimoniosa en el hablar, adoptaba en esos momentos un idioma de ramera, al que había que responder en iguales términos para que de esa hez del lenguaje surgiera, más agudo, el deleite. (CARPENTIER, 1998:13)

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Como já mencionado na presente tese, Carpentier seleciona o nome de suas

personagens tendo em vista a conduta que seguirão na trama. Assim sendo,

recorre-se ao significado do substantivo Mouche, com o fim de delinear alguns

aspectos revelantes dessa personagem para o desenrolar do romance. O

substantivo Mouche tem origem francesa e significa mosca. Tendo em vista a

complexidade do processo criativo de Alejo Carpentier, faz-se necessário buscar

mais referências a respeito da presença desse inseto em escritos consagrados.

Em Los Pasos perdidos, são reconhecidas associações a diversas obras

literárias. Como dito anteriormente, há também alusões a histórias contidas em livros

sagrados. Nos dois livros dos Reis, presentes no Antigo Testamento da Bíblia,

relata-se a história de um povo, que viveu antes da chegada do Cristo, e sua relação

com seus soberanos, os reis. Essa sociedade era politeísta e, dentre os deuses que

cultuavam havia um que guardava relação íntima com as moscas: Baal-Zebud, o

senhor das moscas.

De acordo com os estudos bíblicos, Baal-Zebud, conhecido atualmente como

Belzebu, seria o chefe dos demônios. Com a instituição do Cristianismo, na Idade

Média, a divindade filisteia era vista como um dos sete príncipes do Inferno; a

personificação do pecado da gula, o irmão mais velho de Lúcifer. Para a civilização

grega, a mosca era um ser sagrado. Acredita-se que ela seria capaz de evocar o

turbilhão da vida olímpica ou a onipresença dos deuses.

No entanto, a referência que mais se assemelha à personalidade de Mouche

está contida em uma das Fábulas de La Fontaine, titulada: “Le coche et la Mouche”.

Na história de La Fontaine, uma mosca acredita que seu zumbido e suas investidas

contra os cavalos e o condutor do coche são o motivo que fazem com que o veículo

consiga prosseguir sua viagem, depois de vir abaixo em uma estrada montanhosa.

Para o cavalo e o cocheiro tal atitude é vista como um grande incômodo, enquanto a

mosca sustenta, fervorosamente, que ela é o único ser ali que está verdadeiramente

contribuindo. Também acrescenta que não acredita ser justo fazer todo o trabalho

sozinha e sequer receber agradecimentos por isso. Como se vislumbra na ilustração

abaixo, encontrada em uma das edições do livro do escritor francês:

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Le coche et la mouche. Auguste Vimar, 1897.

Tal qual a mosca de La Fontaine, Mouche, em Los pasos perdidos, pousa no

anônimo musicólogo e pretende usufruir de todas as oportunidades oferecidas,

como no exemplo:

… me estremezco al ver una fotografía de Mouche, en coloquio con un periodista conocido por su explotación del escándalo.[…] Esta le declaró del modo más sorpresivo que fue colaboradora mía en la selva: según sus palabras, mientras yo estudiaba los instrumentos primitivos desde el punto de vista organográfico, ella los consideraba bajo el enfoque astrológico […] cometiendo errores risibles para cualquier especialista, Mouche habla de la «danza de la lluvia» de los indios Zunis, con su suerte de sinfonía elemental en siete movimientos; cita los ragas indostánicos, nombra a Pitágoras, con ejemplos debidos, evidentemente, a la amistad de Extieich. Y es hábil, a pesar de todo, ya que con ese despliegue de falsa erudición trata de justificar, ante los ojos del público, su presencia junto a mí en el viaje, haciendo olvidar la verdadera índole de nuestras relaciones. […] (CARPENTIER, 1998: 133)

Entra em conformidade com uma das definições encontradas no verbete “mosca” no

Dicionário de símbolos de Jean Chevalier (2006: 623): “a mosca representa o

pseudo-homem de ação, ágil, febril, inútil e reinvidicador: é a mosca da carruagem,

na fábula, que reclama seu salário, sem nada ter feito além de irritar os

trabalhadores”

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A oportunidade oferecida ao musicólogo pelo Curador de viajar até a selva

para buscar idiófones de comunidades primitivas, soou para Mouche como um

passaporte para aventuras e satisfação pessoal. Uma vez mais, assemelhando seu

comportamento ao da mosca na fábula de La Fontaine, a personagem rodeia a cena

e torce os argumentos de modo a tirar proveito daquela situação, como lemos em:

… cuando Mouche se me acercó con el elogio presto, cambié abruptamente la conversación, contándole mi aventura de la tarde. Con gran sorpresa mía se me abrazó, clamando que la noticia era formidable, pues corroboraba el vaticinio de un sueño reciente en que se viera volando junto a grandes aves de plumaje azafrán, lo que significaba inequívocamente: viaje y éxito, cambio por traslado. Y sin darme tiempo para enderezar el equívoco, se entregó a los grandes tópicos del anhelo de evasión, la llamada de lo desconocido, los encuentros fortuitos, en un tono que algo debía a los Sirgadores Flechados y las Increíbles Floridas del Barco Ebrio. (CARPENTIER, 1998: 16)

Mouche não mediu esforços para tornar a viagem do casal uma realidade.

Ainda que dispusessem da verba apenas para o custeio das despesas do

pesquisador insistia em acompanhá-lo. Como maneira de convecê-lo, a astróloga

cogita a possibilidade de obter os idiófones necessários sem precisar ir até o interior

da selva. Assim, seria possível reduzir os custos e os percalços de uma viagem tão

longa, abrindo espaço para as aventuras que tanto ansiava. Tal situação se

descreve no fragmento:

Le hice notar que [...] la Universidad sólo hubiera sufragado, [...], los gastos de una sola persona. [...] Mi amiga me explicó su repentina ocurrencia: para llegar adonde vivían los pueblos que hacían sonar el tamborbastón y la jarra funeraria, era menester que fuéramos, […] a la gran ciudad tropical, […] se trataba simplemente de permanecer allá, con alguna excursión a las selvas que decían cercanas, dejándonos vivir gratamente hasta donde alcanzara el dinero. […] Nadie estaría presente para saber si yo seguía el itinerario impuesto a mi labor de colección. Y, para quedar con honra, yo entregaría a mi regreso unos instrumentos «primitivos» […] irreprochablemente ejecutados, […] , por el pintor amigo, gran aficionado a las artes primitivas, y tan diabólicamente hábil en trabajos de artesanía, copia y reproducción, [...] Tan sucia, tan denigrante me resultó la proposición, que la rechacé con asco. (CARPENTIER, 1998: 16-17)

Ainda que enojado com as ideias da amante, o narrador é incapaz de

sustentar sua argumentação e calar Mouche. Ao ver-se sozinho em sua casa e sem

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uma tarefa que cumprir, posto que a peça publicitária já foi terminada, o musicólogo

repensa a viagem em busca dos idiófones e elabora uma série de justificativas, para

oferecer a si mesmo, que o redimiriam da culpa:

Hablé largamente, pero Mouche no me escuchaba […] Ante tal desenfado, más hiriente que una burla, salí del apartamento dando un portazo. […] Me detuve indeciso. En mi casa me esperaba el desorden dejado por Ruth en su partida; […] Y cuando sonara un timbre sería el despertar sin objeto, y el miedo a encontrarme con un personaje, sacado de mí mismo, que solía esperarme cada año en el umbral de mis vacaciones. Me adosé a un poste, pensando en el vacío de tres semanas hueras, [...] y que serían amargadas, mientras más corrieran las fechas, por el sentimiento de la posibilidad desdeñada. […] Yo no había dado un paso hacia la misión propuesta. Todo me había venido al encuentro, y yo no era responsable de una exagerada valoración de mis capacidades. […] Si los museos tesoraban más de un Stradivarius sospechoso, bien poco delito habría, en suma, en falsificar un tambor de salvajes. (CARPENTIER, 1998: 16,17)

Empreendida a viagem, nota-se que a relação entre Mouche e o musicólogo

vai se desvanecendo. À medida que avança sobre as águas do mítico rio que os

conduz a Santa Monica de Los Venados, o musicólogo vai se dando conta de toda a

artificialidade contida na figura de sua amiga. Desde os aspectos físicos, como se lê

em:

Ahora me asombraba de cómo la materia misma de su figura, la carne de que estaba hecha, parecía haberse marchitado desde el despertar de aquella última jornada de navegación. El cutis, maltratado por aguas duras, se le había enrojecido, descubriendo zonas de poros demasiado abiertos en la nariz y en las sienes. El pelo se le había vuelto como de estopa, de un rubio verde, desigualmente matizado, revelándome lo mucho que debía su cobrizo relumbre habitual al manejo de inteligentes coloraciones. Bajo una blusa manchada por resinas raras, caídas de las lonas, su busto parecía menos firme, y mal sosnían el barniz unas uñas rotas por el constante agarrarse de algo que nos impusiera la vida en una cubierta atestada de baldes y barriles, del galpón flotante que había sido nuestro barco. Sus ojos de un castaño lindamente jaspeado en verde y amarillo, reflejaban un sentimiento que era mezcla de aburrimiento, cansancio, asco a todo, latente cólera por no poder gritar hasta qué punto le resultaba intolerable este viaje emprendido por ella, sin embargo, con frases de alto júbilo literario. (CARPENTIER, 1998: 56)

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Os conhecimentos astrológicos, até então, considerados aceitáveis, e as teorías

que ela repetía com uma propriedade invejável, neste momento, causavam enfado

ao anônimo protagonista de Carpentier: “No eran tontas las observaciones de

Mouche; pero yo había llegado, frente a ella, al grado de saturación en que el

hombre, hastiado de una mujer, se aburre hasta de oírle decir cosas inteligentes”.

(CARPENTIER, 1998: 56)

Alejo Carpentier deixa claro em sua prosa a contraposição entre o cenário da

selva latino-americana, repleto de belezas naturais, e Mouche, como representação

da artificialidade da cultura letrada do Ocidente. Em um ambiente em que se

estabelece contato direto com a natureza não há espaço para enganos. A

artificialidade de Mouche não pode ser sustentada nas paisagens primigênias de

selva, com isso, a astróloga cai enferma. Como se a paisagem ali vivenciada a

expulsasse do território. O se vislumbra a seguir:

En pocos días, una naturaleza fuerte, honda y dura, se había divertido en desarmarla, cansarla, afearla, quebrarla, asestándole, de pronto, el golpe de gracia. Me asombraba ante la rapidez de la derrota, que era como un ejemplar desquite de lo cabal y auténtico. Mouche, aquí, era un personaje absurdo, sacado de un futuro en que el arcabuco fuera sustituido por la alameda. Su tiempo, su época, eran otros. (CARPENTIER, 1998: 80)

Ao se dar conta que Mouche estava “sobrando” naquele cenário, o

protagonista se preocupou com a possibilidade de ter que regressar

à cidade por conta das limitações de sua amante. Ele não seria capaz de deixá-la

regressar sozinha, em um ambiente que lhe soou tão hostil, no entanto mostrava-se

sensivelmente preocupado em ter que fazê-lo. Foi quando Montsalvaje apresentou-

lhe a solução para este impasse:

Era evidente que Mouche estaba de más en tal escenario, y yo debía reconocerlo así, […] Sin embargo, [...] su regreso implicaba el mío; lo cual equivalía a renunciar a mi única obra, a volver endeudado, con las manos vacías, avergonzado ante la sola persona cuya estimación me fuera preciosa —y todo por cumplir una tonta función de escolta junto a un ser que ahora aborrecía. Adivinando tal vez la causa de la tortura que debía reflejarse en mi semblante, Montsalvatje me trajo el más providencial alivio, diciendo que no tendría inconveniente en llevarse a Mouche, mañana. (CARPENTIER, 1998:81)

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Para fechar o percurso, temos a personagem Rosário. Seu nome também nos

remete a um símbolo cristão. O rosário se caracteriza por criar um clima

contemplativo, que permite a meditação e o aprofundamento dos grandes mistérios

da fé, associados ao que se repete em cada dezena. Este objeto é evocado algumas

vezes ao longo da narrativa. Para ilustrar serão apresentados a seguir dois

momentos em que se menciona o referido objeto. Primeiro, durante a chegada do

protagonista à capital latino-americana, em meio a um cenário de revolução, como

se lê em:

El dueño de la tienda cerró apresuradamente la puerta, pasando gruesas trancas detrás de los batientes. […] La revolución había terminado, tal vez, en lo que se refería a la toma de los centros vitales de la ciudad; pero seguía la persecución de grupos rebeldes. En la trastienda, varias voces femeninas abejeaban el rosario. Un olor a salmuera de abadejo se me atravesó en la garganta.[…] Ahora, los disparos se hacían más espaciados.[…] La calma que dentro de esta casa reinaba, el perfume de los jazmines que crecían bajo un granado en el patio interior, la gota de agua que filtraba un tinajero antiguo, me sumieron en una suerte de modorra: un dormir sin dormir, entre cabeceadas que me devolvían a lo circundante por unos segundos. (CARPENTIER, 1998:33)

O protagonista, em uma de suas reflexões durante a viagem que o levará até Porto

Anunciação, descreve, com certo assombro, a diversidade de elementos contidos

naquela embarcação, como se lê a seguir:

Con su carga de toros bramantes, gallinas enjauladas, cochinos sueltos en cubierta, que corrían bajo la hamaca del capuchino, enredándose en su rosario de semillas; con el canto de las cocineras negras, la risa del griego de los diamantes, la prostituta de camisón de luto que se bañaba en la proa, el alboroto de los punteadores que hacían bailar a los marineros [...] (CARPENTIER, 1998: 64)

A partir daí o vocábulo ganha mais uma significação. O objeto, que convida o

religioso a adotar uma postura silenciosa e perseverante, torna-se personagem

humana. No universo religioso, o rosário, como instrumento de oração, é a via de

acesso do pecador à salvação, já em Carpentier, a relação com Rosario é o visto

que garante ao musicólogo o direito de pertencer àquela realidade presente na

selva. A pesquisadora Inés Cottle (1981:209) em seu artigo intitulado “Sobre Los

pasos perdidos de Alejo Carpentier”, define a personagem Rosario como

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Mulher-mãe, mulher-terra, umbigo do mundo. Esta mulher que é mito e realidade, que é lenda e que é terra, vai configurar a essência da América, É a síntese racial na que se confluem as idiossincrasias hispano-americanas

Rosário mitifica todo o repertório de histórias circundantes no cenário hispano-

americano. É ela quem representa a perpetuação dos dogmas mais elementares da

convivência humana, tratando as doenças, presságios e da certeza da morte de

maneira mítica, como se lê em

Toda enlutada, con el pelo lustroso apretado a la cabeza, pálidos los labios, me pareció de una sobrecogedora belleza. Miró a todos con los ojos agrandados por el llanto, y, de súbito,[…] , crispó sus manos junto a la boca, lanzó un aullido largo, inhumano, [...], y se abrazó al ataúd. Decía ahora con voz ronca, [...], que iba lacerar sus vestidos, que iba a arrancarse los ojos, que no quería vivir más, que se arrojaría a la tumba para ser cubierta de tierra. Cuando quisieron apartarla se resistió enrabecida, amenazando a los que trataban de desprender sus dedos del terciopelo negro, en un lenguaje misterioso, escalofriante, como surgido de las profundidades de la videncia y de la profecía . Con la garganta rajada por los sollozos hablaba de grandes desgracias, del fin del mundo, del Juicio Final, de plagas y expiaciones. (CARPENTIER, 1998: 69-70)

Em Rosario se plasma a imagem de alguém que concebe a vida e o mundo

de uma maneira complemente diferente da qual o protagonista está acostumado em

seu refúgio intelectual do ocidente. Na existência dessa mulher que representa, no

romance de Carpentier, a autenticidade americana, observa-se uma atitude

desprendida de preconceitos, pautada em um princípio de sabedoria que não está

categorizado pela ciência, mas que é passado de geração em geração para os

habitantes daquela região, como se comprova a seguir:

Comprendí por qué la que era ahora mi amante me había dado una tal impresión de raza, el día que la viera regresar de la muerte a la orilla de un alto camino. Su misterio era emanación de un mundo remoto, cuya luz y cuyo tiempo no me eran conocidos. (CARPENTIER, 1998:93)

É Rosário quem o acompanha, após a partida de Mouche em sua jornada e,

ao mesmo tempo, a que encerra sua esperança de perder-se na “noche anterior a

las edades”. Ela aparece logo no início da viagem que o levará a encontrar os

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instrumentos pedidos pelo Curador. Sua chegada foi assim registrada pelo narrador

do romance:

En eso llegó la aludida, toda temblorosa, riendo de su temblor, pues había ido a asearse a una fuente cercana con las mujeres de la casa. Su cabellera, torcida en trenzas en torno a la cabeza, goteaba todavía sobre su rostro mate. (CARPENTIER, 1998: 109)

Rosario, ao contrário de Ruth e Mouche que se utilizam de artifícios para

manter a beleza intacta às vicissitudes do tempo, apresenta-se, em todos os

aspectos, de maneira natural. Suas palavras não são mascaradas por alegorias,

suas atitudes estão de acordo apenas com seu pensamento, e nem sua aparência

física se rende ao artificial, como se lê em uma das descrições registradas pelo

narrador:

Esa mujer india por el pelo y los pómulos, mediterránea por la frente y la nariz, negra por la sólida redondez de los hombros y una peculiar anchura de la cadera […] Porque aquí no se han volcado, en realidad, pueblos consanguíneos, sino las grandes razas del mundo, las más distintas, las que durante milenios permanecieron ignorantes de su convivencia en el planeta: (CARPENTIER, 1998: 67)

O protagonista a conhece quando, ainda, está ao lado da amante Mouche e a

comparação entre as duas companheiras de viagem empreende significativas

transformações no pensamento do musicólogo da narração. Como se lê em:

… la joven crecía ante mis ojos a medida que transcurrían las horas,[…]. Mouche, en cambio, iba resultando tremendamente forastera dentro de un creciente desajuste entre su persona y cuanto nos circundaba. Un aura de exotismo se espesaba en torno a ella, estableciendo distancias entre su figura y las demás figuras; entre sus acciones, sus maneras, y los modos de actuar que aquí eran normales. Se tornaba, poco a poco, en algo ajeno, mal situado, excéntrico, […]. Rosario, en cambio, […] De la mañana a la tarde y de la tarde a la noche se hacía más auténtica, más verdadera, más cabalmente dibujada en un paisaje que fijaba sus constantes a medida que nos acercábamos al río. […] Me sentía cada vez más cerca de Rosario, que embellecía de hora en hora, frente a la otra que se difuminaba en su distancia presente, aprobando cuanto decía y expresaba. (CARPENTIER, 1998:57)

Toda força e beleza encontradas na figura de Rosario fizeram com que a

união entre a personagem principal e essa figura tão valiosa, segundo ele, fosse

inevitável. Seria ela, assim como o objeto cristão, o instrumento que o levaria à

plena redenção. Ao nomear-se como tu mujer, Rosário desvelava um novo ser,

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adormecido no musicólogo tão habituado aos ofícios intelectuais da civilização

letrada. O que lhe faz refletir sobre inúmeros fatos de sua vida, como seu

matrimônio:

Y en esa constante reiteración del posesivo encuentro como una solidez de concepto, una cabal definición de situaciones, que nunca me diera la palabra esposa. Tu mujer es afirmación anterior a todo contrato, a todo sacramento. Tiene la verdad primera de esa matriz que los traductores mojigatos de la Biblia sustituyen por entrañas, restando fragor a ciertos gritos proféticos. (CARPENTIER, 1998: 203)

O protagonista, também reflete sobre seu nome, o que pode conotar uma análise

sobre a existência desde os primeiros momentos de vida, quando relata o seguinte:

Hoy, por vez primera, Rosario me ha llamado por mi nombre, repitiéndolo mucho, como si sus sílabas tuvieran que tornar a ser modeladas —y mi nombre, en su boca, ha cobrado una sonoridad tan singular, tan inesperada, que me siento como ensalmado por la palabra que más conozco, al oírla tan nueva como si acabara de ser creada. (CARPENTIER, 1998:176)

A relação estabelecida entre o protagonista e Rosario é completamente

diferente da que este mantém com sua amiga do mundo ocidental. Rosario sente-se

responsável por seu companheiro, como comprova o seguinte trecho:

Por lo demás, todo el mundo se da cuenta de que Rosario [...] se ha comprometido conmigo. Me rodea de cuidados, trayéndome de comer, ordeñando las cabras para mí, secándome el sudor con paños frescos, atenta a mi palabra, mi sed, mi silencio o mi reposo, con una solicitud que me hace enorgullecerme de mi condición de hombre: aquí, pues, la hembra «sirve» al varón en el más noble sentido del término, creando la casa con cada gesto. Porque, aunque Rosario y yo no tengamos un techo propio, sus manos son ya mi mesa y la jicara de agua que acerca a mi boca, luego de limpiarla con una hoja caída en ella, es vajilla marcada con mis iniciales de amo. (CARPENTIER, 1998:83)

De acordo com as concepções dessa autêntica mulher, a relação

estabelecida naquele espaço primitivo poderia se desfazer tão logo o interesse de

uma das partes deixasse de ser comum. Rosario acredita em uma união livre, cuja

manutenção dependa, exclusivamente, do empenho que cada uma das partes

dedica em mantê-la estabelecida. Uma mostra disso se encontra na fala de Rosario

ao afirmar que

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[…] el casamiento, la atadura legal, quita todo recurso a la mujer para defenderse contra el hombre. El arma que asiste a la mujer frente al compañero que se descarría es la facultad de abandonarlo en todo momento, de dejarlo solo, sin que tenga medios de hacer valer derecho alguno. La esposa legal, [...], es una mujer a quien pueden mandar a buscar con guardias, cuando abandona la casa en que el marido ha entronizado el engaño, la sevicia o los desórdenes del licor. […] Casarse es caer bajo el peso de leyes que hicieron los hombres y no las mujeres. En una libre unión, en cambio —afirma Rosario, sentenciosa—, «el varón sabe que de su trato depende tener quien le dé gusto y cuidado»[...] (CARPENTIER, 1998: 253)

Este pensamento deixa o protagonista ainda mais desconcertado ao entender que

esta concepção não é um raciocínio inerente apenas a Rosario, mas sim “[…] una

argumentación que es la de sus hermanas, fue sin duda la de su madre, y es

probablemente la razón del recóndito orgullo de esas mujeres que nada temen”

(CARPENTIER, 1998:253)

A mulher que atravessou fronteiras sem nunca ter precisado aprender outro

idioma choca com sua racionalidade camponesa tão lógica e coordenada para as

circunstâncias vividas. Desestabiliza uma vez mais a crença do forasteiro que

acreditava compreender a lógica universal das relações humanas graças a sua

intelectualidade. Desloca o protagonista de sua posição privilegiada de homem

pertencente ao mundo letrado para condicioná-lo a sua situação de varão, simples

criação de uma força maior que a força humana:

[…] no creo que para habituarse a mí haya tenido que hacer tantos acomodos intelectuales como yo. Ella no me ve como un hombre muy distinto de los otros que haya conocido. Yo, para amarla —pues creo amarla entrafiablemente ahora—, he tenido que establecer una nueva escala de valores, en punto a lo que debe apegar un hombre de mi formación a una mujer que es toda una mujer, sin ser más que una mujer. (CARPENTIER, 1998:107)

Ao ser toda esta mulher: forte, decidida, constante, destemida sem possuir

um capital cultural cristalizado pela sociedade letrada, Rosario provoca um profundo

assombro no protagonista, como se confirma em:

Me asombra el valor de esa mujer, que realiza sola, sin vacilaciones ni miedos, un viaje que los directores del Museo para quienes trabajo consideran como una muy riesgosa empresa. Este sólido temple de

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las hembras parece cosa muy corriente aquí. (CARPENTIER, 1998: 125)

Esta constatação gera uma revisão no repertório de crenças do protagonista em

relação à figura da mulher. O que o leva a encontrar-se “torpe, cohibido, consciente

de mi propio exotismo, ante una dignidad innata que parecía negada de antemano a

la acometida fácil.” ( CARPENTIER, 1998:57)

No pensamento de Rosario, os conceitos de história e tempo não estão

atrelados aos cânones do pensamento ocidental. O que a liberta para entender um

texto escrito em um contexto histórico diferente do seu como algo ainda vigente em

sua era e viver intensamente o lido. A temporalidade, segundo Rosario, se

apresenta de forma plural, já que admite a possibilidade de coexistência de várias

realidades que não coincidem com a sua, como se comprova em:

Ahora Rosario cerraba los ojos. «Lo que dicen los libros es verdad.» Es probable que, para ella, la historia de Genoveva fuera algo actual: algo que transcurría, al ritmo de su lectura, en un país del presente. El pasado no es imaginable para quien ignora el ropero, decorado y utilería de la historia. Así, debía imaginarse los castillos del Brabante como las ricas haciendas de acá, que solían tener paredes almacenadas. Los hábitos de la caza y la monta se perpetuaban en estas tierras, donde el venado y el váquiro eran entregados al acoso de las jaurías. Y en cuanto al traje, Rosario debía ver su novela como ciertos pintores del temprano Renacimiento veían el Evangelio, vistiendo a los personajes de la Pasión a la manera de los notables del día, arrojando al infierno, cabeza abajo, algún Pilato con atuendo de magistrado florentino. (CARPENTIER, 1998: 54)

Quando chega o resgate ao povoado e o protagonista decide voltar à capital

sem a companhia de tu mujer, este novamente se surpreende. Num ato de pura

coerência com as teorias sobre a livre união, reflete-se no comportamento de

Rosario:

[…] una expresión fría y ausente, que no expresa disgusto, angustia ni dolor. […] Le explico entonces, en pocas palabras, lo que acabo de decidir. Ella no responde, encogiéndose de hombros con una expresión que ha pasado a ser despectiva. Le entrego, entonces, como prueba, los apuntes del Treno. Le digo que, para mí, esos cuadernos son la cosa más valiosa después de ella. «Te los puedes llevar», me dice con acento rencoroso, sin mirarme. (CARPENTIER, 1998, 264-266)

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Tal atitude desconcerta o músico, porém não lhe furta a esperança de voltar o

mais breve possível para os braços de tu mujer. No entanto, a vida para cada um

deles transcorre em um compasso distinto. O tempo imutável da selva que

circundava Santa Monica de los Venados só se perpetua nas impressões do

musicólogo. Enredado em um mundo repleto de nomes, títulos e histórias que

exaltam os feitos de quem espera longamente pela realização de algo, mantém seus

pensamentos estagnados no tempo. Espera encontrar exatamente a mesma

paisagem que deixou quando saiu do povoado.

Após muito esforço, o musicólogo conseguiu voltar e se empenhou a

empreender novamente sua marcha às origens da vida, porém, a porta já não

estava mais aberta. A espera pela chegada do Adelantado, aquele que guarda a

chave que abriria o mistério entre as folhas, só se estendia. Até que chega Yannes,

quem fecha a última brecha de regresso ao cenário que o protagonista viveu

naquelas seis semanas de descobertas, revelando que Rosario era agora:

«Mujer de Marcos —me responde el griego—. Adelantado contento, porque ella preñada recién...» […] «Ella no Penélope. Mujer joven, fuerte, hermosa, necesita marido. Ella no Penélope. Naturaleza mujer aquí necesita varón...» (CARPENTIER, 1998: 307-308)

Traçando um paralelo entre as personagens escolhidas para a presente

análise, pode-se situá-las da seguinte maneira: Ruth em uma extremidade,

representando a civilização letrada e o cumprimento de ritos instituídos pela

sociedade moderna; Rosário em seu extremo oposto como personificação de

Nuestra América24 que cumpre seu destino sem analisar em demasia, pois crê que

“es regido por «cosas grandes», cuyo mecanismo es oscuro, y que, en todo caso,

rebasan la capacidad de interpretación del ser humano”. (CARPENTIER, 1998: 203).

Ruth encarna o papel de esposa-atriz. Atuando, segundo a visão do narrador,

dentro e fora dos palcos teatrais. No entanto, o musicólogo também teatraliza suas

ações com o fim de manter o contrato matrimonial: ele ajusta o texto de sua

existência acomodando-o à rotina de Ruth.

Ruth e Mouche são personificações da mulher moderna, modelo instituído no

século XX. Foram criadas por uma geração de mulheres governadas pela presença

24 MARTÍ, José; Nuestra América. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 2005 p.31-38

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masculina. Suas mães eram vistas como frágeis seres que deveriam se

responsabilizar unicamente pela manutenção de seu lar, ainda que, para tanto, fosse

necessário subjugar-se às vontades de seus maridos.

As personagens citadinas do romance de Carpentier foram diretamente

influenciadas pelas transformações decorridas da Primeira e Segunda Guerra

Mundial. O movimento que se iniciou na primeira Revolução Industrial, intensificou-

se no século XX com o advento das Guerras. Na Primeira Guerra, por exemplo,

nove milhões de homens morreram em combate. Suas esposas passaram a ser

responsáveis também por garantir o sustento da família, e boa parte delas teve que

continuar essa empreitada sozinhas após o fim do conflito.

Neste cenário de grande tensão entre países e desenvolvimento tecnológico a

passos largos, a mulher foi ocupando espaços deixados pelos homens e

conquistando outros que antes, seriam impossíveis de alcançar. O imaginário a

respeito da figura feminina foi se redesenhando. Em um mundo com deficit

masculino, por conta das baixas de guerra, e com a entrada da mulher no mercado

de trabalho, o casamento deixou de ser uma obrigação que condicionava a mulher a

contrair matrimônio para que pudesse ter amparo.

Ruth representa a mulher que ressignificou a profissão de atriz. O que antes

estava reservado apenas a mulheres de reputação duvidosa na sociedade patriarcal

do século XIX25 ganha, no século seguinte, um espaço de ascensão e

reconhecimento do poder feminino. Representa também os desdobramentos do

casamento da primeira metade do século sem deixar de suscitar uma discussão a

respeito da imaturidade desse modelo de contrato conjugal.

Ainda que ambos tenham contraído matrimônio por livre vontade, tenham

ofícios que lhe garantam uma renda, parecem estar atados por algum tipo de

obrigação da qual não pretendem rebelar-se. Mascaram a displicência com que

encaram o relacionamento com a ideia de liberdade, que é apregoada ao longo do

século XX.

25 Cabe destacar que a mulher pisa no palco, pela primeira vez, no século XVIII nas representações teatrais do

escritor espanhol Lope de Vega.

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Já Mouche se aproxima do modelo das mulheres conhecidas na década de

1920 como Flappers nos Estados Unidos, Garçonne na Europa ou Melindrosas26 no

Brasil. Essas mulheres ousavam no vestuário e nas atitudes: fumavam, participavam

de discussões filosóficas e literárias, até então dirigidas apenas por homens, e

defendiam o direito ao amor livre.

Entre Mouche e o protagonista se estabeleceu um relacionamento em

constante tensão. Unidos, aparentemente, pelo desejo carnal protagonizavam largas

discussões em razão dos diferentes pontos de vista que tinham a respeito do

mundo. O musicólogo, erudito, ilustrado conhecedor das teorias consagradas do

pensamento ocidental minimizava a importância dos estudos astrológicos de sua

amante. Sobre Mouche, Carpentier sentencia:

... uma mulherzinha em extremo sofisticada, que combina a astrologia para clientes ingênuos com práticas libertinas que pretendem ser a expressão de um espírito liberado de preconceitos […] sem dar-se conta de que não há nada mais burguês que seu próprio individualismo y sua marcada propensão ao esnobismo e frivolidade (Apud GIACOMAN, 1970:70)

Rosario, em contrapartida, apresenta-se em um pólo diametralmente oposto a

Ruth e Mouche. Enquanto a mulher e a amante usufruem das conquistas da

modernidade, a personagem que o musicólogo conheceu durante sua viagem al

revés parece inabalável aos acontecimentos que eclodiram no século XX.

Enquanto Ruth e Mouche utilizam o vestuário e a maquiagem para esconder

as marcas do tempo e destacar os aspectos do corpo que lhe são favoráveis,

Rosario se apresenta como uma tela pintada unicamente pela ação da natureza. É a

personificação da selva americana em seu estado virgem. Como discorre Carpentier,

[Rosario] representa a mulher elemental, a mulher que pertence verdadeiramente à Terra. Simone de Beavoir, no terceiro tomo de suas memórias, a “Force de choses”, me encanta esse aspecto de meu livro e diz-se que há um pouco nessa integração, diriamos, da mulher elemental com a terra. Aceito provável que assim seja enquanto exagero em ou sentido ou outro (Apud MÜLLER-BERG, 1972:37)

26 No Brasil modernista, a escritora Patrícia Rehder Galvão, conhecida como Pagu, foi considerada como uma mulher à frente de seu tempo por atos como fumar na rua, usar cabelos curtos e dizer palavras obscenas, o que não condizia com sua origem familiar conservadora e tradicional.

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As três mulheres desempenham importante papel na trajetória do

protagonista de Los pasos perdidos. Como este apresenta-se absorto por uma

atmosfera de representações, comportando-se diante das situações com uma total

inércia são as mulheres os motores que o fazem deslocar-se, majoritariamente, ao

longo da narrativa. É a carreira de Ruth que faz com que o protagonista aceite a

tarefa de usar seus conhecimentos musicais para produzir peças publicitárias. A

partida de Ruth em uma turnê teatral, aliada a imperiosa ação de Mouche em buscar

aventuras, leva a personagem e aceitar a tarefa proposta pelo Curador de buscar os

idiofónes na selva americana.

Rosario com sua cosmovisão da existência, tão diferente daquela do

protagonista, leva-o a revisar seus conceitos sobre relacionamento e a buscar uma

mudança efetiva em seu trabalho e em sua vida pessoal. É graças a esta última, que

o anônimo protagonista do romance, volta a fazer planos. Também é Rosario que

faz desvanecer tais planos, ao se tomar conhecimento, no romance de Carpentier,

de que ela não ficou esperando seu regresso para dar continuidade a seu caminho.

O protagonista da trama de Carpentier, desiludido com a impossibilidade de

integrar-se à paisagem natural do Vale do Tempo Detido, regressa ao seu trabalho

de Sísifo. A narrativa se desenha traçando um movimento iniciado no exílio do

musicólogo que o encaminha a uma fragmentação e revisão das teorias que povoam

e regem sua existência, até o momento, para culminar num regresso ao cenário do

estado inicial sem, contudo, conseguir resolver a problemática instaurada em sua

mente após a experiência vivida.

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4.2 Os companheiros da barca do intelectual de Alejo Carpentier

“ Todo un hombre,

hecho de todos los hombres y que vale lo que todos y

lo que cualquiera de ellos Jean Paul Sartre

A barca é um símbolo que circunda o universo da viagem. Tanto a realizada

pelos vivos como a empreendida pelos mortos. Com o fim de contemplar a

amplitude da perspectiva carpenteriana ao desenvolver seu romance, faz-se

necessário contrapor fragmentos de seu romance com uma das obras do pintor

holandês Jeroen van Aeken, cujo pseudônimo é Hieronymus Bosch (1450-1516)

nomeada a Nau dos insensatos, produzida entre os séculos XV e XVI e com

fragmentos do poema satírico A “Nau dos insensatos” publicado em 1494. Em

seguida analisa-se alguns personagens presentes na barca que viaja pelo rio em

direção à Santa Mónica de los Venados.

Para completar sua missão e encontrar os idiofones que, segundo as teorias

do mundo ilustrado, levariam à origem da música o anônimo protagonista de Los

pasos perdidos precisou empreender uma longa e tortuosa viagem em barco. Assim

como na Nau dos Insanos de Brant, partiram duas barcas rumo ao mundo conhecido

apenas pela figura emblemática do Adelantado. Nelas estavam o protagonista,

Rosario, Adelantado e seu fiel cão Gavilán, Fray Pedro e Yannes.

Consideremos primeiramente a tela de Hieronymus Bosch. Pode-se inferir

uma crítica, em forma de alegoria, aos costumes da sociedade medieval. Dentre os

tripulantes estão uma monja franciscana, um goliardo e um camponês,

representando o pecado da gula e indivíduos que parecem querer roubar o que está

sobre a mesa. Vale ressaltar também que uma árvore é usada como mastro e que

nela se exibem uma bandeira e um frango. Se nos determos a esse detalhe da

pintura, é possível vislumbrar algumas ressignificações interessantes propostas pelo

pintor holandês em sua tela. Como se contempla na imagem contida na página

seguinte.

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A árvore é símbolo de vida em constante renovação. Interliga o nível

subterrâneo, através de suas raízes, com o da superfície, através de seu tronco, até

as alturas, por meios de suas ramificações. Ao considerar que o mastro é o elo que

sustenta as demais partes de uma embarcação, pode-se inferir que esse mastro é a

última e a primeira parte a ser vista no horizonte por quem está como espectador da

cena; Atua como o portador da bandeira, elemento que simboliza a essência dos

tripulantes.

O germânico Sebastian Brant também compôs um poema satírico que

versava sobre o mesmo tema da tela de Bosch: A Nau dos insensatos, publicado em

1494, discorria sobre a sociedade em que vivia Brant, sem omitir suas mazelas e

oferecendo em seus versos uma solução para o fim daquele caos: a conversão ao

Cristianismo. O próprio autor se coloca na “ciranda dos néscios” num estratagema

em que

... não apenas assume uma postura autocrítica, como incorpora algo da figura do bobo da Corte, que tem liberdade para falar as mais ousadas verdades sobre todos, doa a quem doer. Com audácia e franqueza – as quais tempera com refinada erudição –, Brant passa da religião à ciência, da vida cotidiana ao arsenal da cultura greco-romana, da retórica à política. Suas palavras vibram de indignação, mas também estão repletas de bom humor. (BRANT 2010: 14)

Assim como Bosch e Brant, o narrador de Los Pasos perdidos, ao descrever em seu

diário a viagem até Santa Monica de los Venados, se coloca na nave dos loucos,

como se lê em:

... este barco nuestro me hacía pensar en la Nave de los Locos del Bosco: nave de locos que se desprendía, ahora, de una ribera que no podía situar en parte alguna, pues aunque las raíces de lo visto se hincaran en estilos, razones, mitos, que me eran fácilmente identificables, el resultado de todo ello, el árbol crecido en este suelo, me resultaba desconcertante y nuevo como los árboles enormes que comenzaban a cerrar las orillas, y que, reunidos por grupos en las entradas de los caños, se pintaban sobre el poniente — con redondez de lomo en las frondas y algo de hocico perruno en las copas— como concilios de gigantescos cinocéfalos. (CARPENTIER, 1998: 64)

Neste momento da criação literária, Alejo Carpentier se aproxima e rememora

não somente Sebastian Brant e Hieronymus Bosch, mas também toda uma vertente

da chamada literatura dos loucos, brilhantemente representada por obras como: O

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Elogio da Loucura (1511), de Erasmo; Rei Lear (aprox.1606), de Shakespeare; O

aventuroso Simplicissimus (1667), de Grimmelshausen; Ship of Fools (1962), de

Katherine Anne Porter, O auto da barca do inferno (encenada pela primeira vez em

1517) de Gil Vicente, entre outros.

As duas canoas comandadas pelo Adelantado seguiam rumo a um universo

completamente desconhecido. Seus tripulantes sofriam com as intempéries do

tempo, tal qual os pobres fiéis religiosos suportavam as mazelas da fome e da

miséria na esperança de alcançar o reino dos céus. Durante a narrativa, evidencia-

se apenas o assombro e a expectativa do protagonista da trama, que tenta

incessantemente associar aqueles acontecimentos vividos com alguma passagem

lida em alguns de seus livros ou vivida em algum momento de sua existência

ilustrada. Contempla-se, neste momento, o desprendimento do tempo cronológico

para dar lugar a uma nova perspectiva em relação aos acontecimentos, como lemos

em

Al cabo de algún tiempo de navegación en aquel caño secreto, se producía un fenómeno parecido al que conocen los montañeses extraviados en las nieves: se perdía la noción de la verticalidad, [...] No se sabía ya lo que era del árbol y lo que era del reflejo. No se sabía ya si la claridad venía de abajo o de arriba, si el techo era de agua, o el agua suelo; si las troneras abiertas en la hojarasca no eran pozos luminosos conseguidos en lo anegado. Como los maderos, los palos, las lianas, se reflejaban en ángulos abiertos o cerrados, se acababa por creer en pasos ilusorios, en salidas, corredores, orillas, inexistentes. Con el trastorno de las apariencias, en esa sucesión de pequeños espejismos al alcance de la mano, crecía en mí una sensación de desconcierto, de extravío total, que resultaba indeciblemente angustiosa. Era como si me hicieran dar vueltas sobre mí mismo, para atolondrarme, antes de situarme en los umbrales de una morada secreta. (CARPENTIER, 1998: 86)

A partir desta viagem, os passos comedidos e calculados do musicólogo de

gabinete, que ganha a vida em uma tarefa que julga ser inútil, se perdem. Em um

universo que lhe soa completamente alheio, onde impera a sua ignorância em

relação ao que seus olhos presenciam, lhe atordoa a inutilidade de todo seu

conhecimento ilustrado acumulado durante anos de árduo estudo. O protagonista

busca, desesperadamente, em sua memória alguma imagem que dê conta de

compreender o que está acontecendo, como lemos em:

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Tenía mi memoria que irse al mundo del Bosco, a las Babeles imaginarias de los pintores de lo fantástico, de los más alucinados ilustradores de tentaciones de santos, para hallar algo semejante a lo que estaba contemplando. Y aun cuando encontraba una analogía, tenía que renunciar a ella, al punto, por una cuestión de proporciones. Esto que miraba era algo como una titánica ciudad —ciudad de edificaciones múltiples y espaciadas—, con escaleras ciclópeas, mausoleos metidos en las nubes, explanadas inmensas dominadas por extrañas fortalezas de obsidiana, sin almenas ni troneras, que parecían estar ahí para defender la entrada de algún reino prohibido al hombre. (CARPENTIER, 1998: 92)

Era preciso render-se àquele momento, desvencilhando-se de qualquer

alusão cronológica. O anônimo protagonista de Los pasos perdidos estava fazendo

uma viagem através de um espaço geográfico que o remetia a épocas anteriores,

mas que coexistia com a sua realidade ilustrada de intelectual do século XX. Essa

sensação de retorno a tempos anteriores pode ser lida no fragmento que segue:

Pero las fechas seguían perdiendo guarismos. En fuga desaforada, los años se vaciaban, destranscurrían, se borraban, rellenando calendarios, devolviendo lunas. pasando de los siglos de tres cifras al siglo de los números. Perdió el Graal su relumbre, cayeron los clavos de la cruz, los mercaderes volvieron al templo, borróse la estrella de la Natividad, y fue el Año Cero, en que regresó al cielo el Ángel de la Anunciación. Y tornaron a crecer las fechas del otro lado del Año Cero —fechas de dos, de tres, de cinco cifras —, hasta que alcanzamos el tiempo en que el hombre, cansado de errar sobre la tierra, inventó la agricultura al fijar sus primeras aldeas en las orillas de los ríos, y, necesitado de mayor música, pasó del bastón de ritmo al tambor que era un cilindro de madera ornamentado al fuego, inventó el órgano al soplar en una caña hueca, y lloró a sus muertos haciendo bramar un ánfora de barro. Estamos en la Era Paleolítica. Quienes dictan leyes aquí, quienes tienen derecho de vida y muerte sobre nosotros, [...] son hombres que usan el cuchillo de piedra y el rascador de piedra[...]. Somos intrusos, forasteros ignorantes —metecos de poca estadía—, en una ciudad que nace en el alba de la Historia. (CARPENTIER, 1998: 96)

A paisagem da selva latino-americana foi o pano de fundo que permitiu ao

protagonista da trama empreender uma viagem cujo deslocamento vai muito além

do plano geográfico. No entanto, não é apenas o cenário que compõe uma bela

representação artística. Há que se contar também com a carga emocional

transferida pelos atores do espetáculo. Além do protagonista temos aqui o

Adelantado e seu cão Gavilán, Yannes, Fray Pedro e Rosario, sobre a qual se

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discorreu no item anterior, ao analisar a presença feminina no romance de

Carpentier.

Comecemos pelo explorador Yannes, o grego. Após confundir Mouche com

uma prostituta e envolver-se em uma briga com o protagonista do romance, é

Rosario quem descreve Yannes, numa tentativa de apaziguar os ânimos, do

anônimo musicólogo de Los pasos perdidos, como se lê em:

... lo conocía de mucho tiempo, pues no era de este lugar, sino de Puerto Anunciación, el pueblo cercano a la Selva del Sur, donde la esperaba su padre enfermo con el remedio de la milagrosa estampa. El título de Buscador de Diamantes me hizo interesante, de pronto, al que poco antes me golpear (CARPENTIER, 1998:56)

Em seguida, em um cenário que incita a conversa e o relaxamento: uma cantina

com meia garrafa de aguardente, o protagonista segue por sua conta delineando o

perfil daquela emblemática figura:

Ancho de pecho, espigado de cintura, con algo de ave de presa en la mirada, el minero movía un semblante sombreado por un filo de barba que podía haberse desprendido de un arco de triunfo por la decisión y el empaque del perfil. Al saber que era griego — [...] — estuve a punto de preguntarle, por broma, si era uno de los Siete contra Tebas. (CARPENTIER, 1998:56)

O grego, que deixou seu território em busca do Eldorado, representa os

aventureiros em busca de fortuna. No entanto, o protagonista do romance de

Carpentier dá a Yannes uma participação a mais na teatralização de sua odisseia no

tempo associando-o, em seu relato, à figura de Micer Codro. Um astrólogo italiano

que ficou conhecido como personagem de uma anedota relacionada ao explorador e

fidalgo espanhol Vasco Nuñez de Balboa, como se comprova no seguinte

fragmento:

No tempo em que Vasco Nuñez mandava em Darien, este consultor [Micer Codro – grifo meu] das estrelas lera seu horóscopo, pretendendo adivinhar-lhe o destino. Uma noite- mostrando a Vasco Nuñez certa estrela, lhe assegurou que no ano que a visse novamente no mesmo lugar do céu sua vida estaria em iminente risco; porém se sobrevivesse àquele ano seria o mais rico e famoso capitão entre os índios (IRVING 1854:3)

A anedota narrada em Viajes y descubrimientos de los compañeros de

Colón, está presente também na coleção lendas mexicanas, no volume escrito por

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José María Roa Bárcena (1879: 6), dedicado a Vasco Núñez, onde se pode ler, em

versos, a profecia do astrólogo italiano:

Que le acompaña siempre, Micer Codro, El italiano astrólogo. ¿Descubres Junto á Sirio esa estrella que hácia el Norte Brilla con viva luz? Cuando, tras larga Revolución, llegare á inverso punto Tendrás, si no me engaña la alta ciencia, En peligro la vida; mas no antes Ni despues, si salvares." A su acento, Recostado allí cerca, oído atento Presta, al viejo y al Jefe de hito en hito Viendo, ya con sorpresa, ya con odio, Aunque disimulado, Garabito.

Na história escrita por Carpentier, Yannes busca apenas uma estrela, ou

melhor, uma gema que brilha tal qual o astro, mas que possui valor apenas em terra.

Ao conseguir a indicação necessária para encontrar o ouro que tanto deseja, deixa

os demais viajantes passando a tomar rumo próprio, como lemos em:

El Adelantado ha alzado el brazo, señalando el rumbo del Oro, y Yannes se despide de nosotros para buscar el tesoro de la tierra. Solitario el de ser el minero que no quiere compartir su hallazgo; avaro en sus manejos, mentiroso en sus decires, borrando el camino detrás de sí como el animal que barre sus huellas con la cola. [...]Hoy lo guía la codicia del metal precioso que hacía de Micenas una ciudad de oro, y emprende la ruta de los aventureros. [...] Yannes se aleja de nosotros, camino de su barca, de torso desnudo en el amanecer, llevando su remo en el hombro con sorprendente estampa de Ulises. (CARPENTIER, 1998: 102)

A seguir passemos à analise, do personagem Adelantado, apresentado ao

protagonista pelo grego Yannes como um

... individuo muy poco visible en Puerto Anunciación. Cubriendo territorios inmensos —me explicaba—, encerrando montañas, abismos, tesoros, pueblos errantes, vestigios de civilizaciones desaparecidas [...] «Algo así como el Arca de Noé, donde cupieron todos los animales de la tierra, pero sólo tenía una puerta pequeña» (CARPENTIER, 1998:68)

Seu nome de batismo é Pablo, no entanto a alcunha de Adelantado o permitiu

destacar-se dentre outros tantos Pablos existentes naquelas terras como se lê em:

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«Pues, señor —dice el Adelantado, arrojando una rama al fuego—, me llamo Pablo, y mi apellido es tan corriente como llamarse Pablo, y si a grandes hechos suena el título de Adelantado, les diré que sólo se trata de un mote que me dieron unos mineros, al ver que siempre me adelantaba a los demás en lo de hacer pasar por mi batea las arenas de un río...» (CARPENTIER, 1998: 103)

Uma explicação comum para uma característica que a Pablo lhe soa

corriqueira, mas para o anônimo protagonista de Los pasos perdidos parece

grandiosa. Pablo é um homem ligado à terra, cresceu sob a necessidade de sacar

dos trabalhos braçais sua subsistência. O título de Adelantado não lhe foi conferido

por nenhuma academia. Representa um reconhecimento coletivo de uma

característica que lhe é inata. Esse homem, admirado pelo musicólogo de gabinete

do romance de Carpentier, empreende uma longa viagem que o conduz da miseria à

consagração.

No capítulo quinto de Los pasos perdidos, o leitor pode conhecer melhor,

através da ótica do protagonista do romance, a história dessa emblemática figura

desbravadora. Adelantado se sente confortável para conversar,

despretensiosamente, contando passagens de sua vida ao anônimo musicólogo que

lhe acompanha, pois já foi cumprida a missão de chegar até o territorio esperado e o

mineiro Yannes, quem por afã de ouro, poderia causar-lhe problemas em Santa

Monica de los Venados, já não está mais presente. A partir desta conversa é

possível vislumbrar a evolução da figura de Pablo, que começou sua jornada como:

… un hombre de veinte años, con el pecho desgarrado por una tos rebelde, mira a la calle a través de las bolas de cristal, llenas de agua tinta, de una farmacia de viejos.[…] Vencido y enfermo, se ha ofrecido a trabajar en botica, a cambio de remedios y albergue. Algo le enseñaron de maceraciones, y le confían las recetas de prescripción casera, a base de nuez vómica, raíz de altea o tártaro emético. ( CARPENTIER, 1998: 103-104)

Durante os momentos de pausa em seu trabalho na farmácia contemplava ao

longe dezenas de homens que saíam de embarcações trazendo muitas

enfermidades. Contudo, em algumas ocasiões, um brilho em seus semblantes que

fazia com que o jovem franzino acreditasse nas histórias que corriam pela pequena

cidade. Muitos desses homens traziam consigo riquezas e cada um deles fazia de

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suas conquistas o uso que lhe conviesse. Essa cena se repetiu inúmeras vezes

diante de Pablo, como se registra na narração do protagonista do romance nas

linhas que seguem:

A veces, […] , bajan al desembarcadero cercano unos hombres de andar agobiado, que tientan con bastones las tablas podridas del andén, […] Son mineros palúdicos, caucheros que se rascan las sarnas, leprosos de las misiones abandonadas, que acuden a la farmacia, […] y al hablar de las comarcas donde creen haber contraído sus plagas, van descorriendo, ante el oscuro pasante, las cortinas de un mundo ignorado.[…] Llegan los vencidos, pero llegan, también, los que arrancaron al barro una mirífica gema, y, durante ocho días, se hartarán de hembras y de música. Pasan los que nada hallaron, pero traen los ojos enfebrecidos por el barrunto de un tesoro posible. Esos no descansan ni preguntan dónde hay mujeres. Se encierran con llave en sus habitaciones, examinando las muestras que traen en frascos, y, […] parten, de noche, a la hora en que todos duermen, sin revelar el secreto de su rumbo. (CARPENTIER, 1998:104)

Perante esta rotina, cresce em Pablo o desejo de tomar o mesmo rumo que

os aventureiros que ele contempla desde a janela da botica em que trabalha. O

jovem rapaz quer estar à frente, quer mais que sobreviver as intempéries de sua

existência e o faz com parcimônia. Reúne conhecimento e habilidades suficientes

para realizar seus planos, minimizando as chances de voltar como um dos vencidos.

Esse momento de planejamento e aquisição de conhecimentos é descrito na

seguinte passagem do romance:

Andando de frascos a recetarios, aprende a hablar de yacimientos nuevos: conoce los nombres de quienes encargan bombonas de agua de azahar para bañar a sus indias; repasa los extraños nombres de ríos ignorados por los libros; obsesionado por la percutiente sonoridad del Cataniapo o del Cunucunuma, sueña frente a los mapas, contemplando incansablemente las zonas coloreadas en verde, desnudas, donde no aparecen nombres de poblaciones. Y un día, al alba, sale por una ventana de su laboratorio, hacia el embarcadero donde los mineros izan la vela de su barca, y ofrece remedios a cambio de ser llevado. (CARPENTIER, 1998:104)

Pablo, consciente de que não possui condições materiais para empreender

esta viagem por conta própria, adquire os recursos necessários em uma aventura

como esta. Novamente, utiliza como moeda de troca a sua força de trabalho e seus

conhecimentos, sendo mais uma vez acolhido.

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Como já era de se esperar o caminho é tortuoso. Durante dez anos

compartilha com os demais tripulantes misérias, rancores, reveses com poucos

momentos afortunados. Ainda que fatigado, Pablo segue adiantando-se. Por nunca

ser favorecido, resolve ir mais longe e, com tal escolha, passa a estar cada vez mais

só, até que algo muda em sua busca, como lemos em:

Y una mañana se asoma al mundo de las Grandes Mesetas. Camina durante noventa días, perdido entre montañas sin nombre, comiendo larvas de avispas, hormigas, saltamontes, como hacen los indios en meses de hambruna. Cuando desemboca en este valle, una llaga engusanada le está dejando una pierna en el hueso. Los indios del lugar —gente asentada, de una cultura semejante a los factores de la jarra funeraria— lo curan con hierbas. Sólo un hombre blanco vieron antes que él, y piensan, […] que somos los últimos vástagos de una especie industriosa pero endeble, muy numerosa en otros tiempos, pero que está ahora en vías de extinción. Su larga convalecencia lo hace solidario de las penurias y trabajos de esos hombres que lo rodean. Encuentra algún oro al pie de aquella peña que la luna, esta noche, hace de estaño. (CARPENTIER, 1998:104)

E diferente dos demais aventureiros em busca de ouro, Pablo retorna ao

povoado indígena trazendo insumos conseguidos com a venda do ouro encontrado

naquelas terras.

Al volver de cambiarlo en Puerto Anunciación, trae semillas, posturas y algún apero de labranza y carpintería. […] Al regreso del segundo viaje trae una pareja de cerdos atados de patas en el fondo de la barca. Luego, es la cabra preñada y el becerro destetado, para el cual tienen los indios, como Adán, que inventar un nombre, pues jamás vieron semejante animal. Poco a poco, el Adelantado se va interesando por la vida que aquí prospera. (CARPENTIER, 1998:104-105)

Pouco a pouco, Pablo vai fazendo parte daquela paisagem e também ajuda a

desenhá-la. Já não se interessa apenas por juntar riquezas e levá-las para longe de

onde as encontrou. Pablo, Adelantado, quer mais. Quer criar raízes, frutificar,

construir algo maior. Regressar com o fruto de suas descobertas já não lhe parece

ser a melhor atitude, visto que despertaria o interesse de aventureiros em busca de

riquezas, como se lê em:

Piensa, entonces, que si sigue apareciendo en Puerto Anunciación con algún polvo de oro en los bolsillos, no tardarán los mineros en seguirle el rastro, invadiendo este valle ignorado para trastornarlo con sus excesos, rencores y apetencias. Con el ánimo de burlar las

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suspicacias, comercia ostensiblemente con pájaros embalsamados, orquídeas, huevos de tortugas. (CARPENTIER, 1998:105)

Ao ser acolhido pelos índios, retribuiu com fidelidade e, com isso, ganhou a

admiração de todos que circundavam aquele espaço. Não deixou de enviar ao

povoado mostras de suas viagens, no entanto, teve a cautela de escolher a

mercadoria que levaria para o comércio. Pablo, já havia se dado conta de que

fundara uma cidade, mas para fazer parte definitivamente do território era

necessário estabelecer laços, empreender mudanças, sabendo disso:

Un día toma mujer, […] Un día se percata de que ha fundado una ciudad. […] El Adelantado traza el contorno de la Plaza Mayor. Levanta la Casa de Gobierno. Firma un acta, y la entierra bajo una lápida en lugar visible. Señala el lugar del cementerio para que la misma muerte se haga cosa de orden. (CARPENTIER, 1998:104-105)

Diferente dos aventureiros de Manoa e dos conquistadores europeus,

Adelantado não vislumbra naquela paisagem uma fonte inesgotável de riquezas a

serem extraídas, tampouco a vê como uma materialização do paraíso bíblico na

Terra, já que lá

… hay enfermedades, azotes, reptiles venenosos, insectos, fieras que devoran los animales trabajosamente levantados; hay días de inundación y días de hambruna, y días de impotencia ante el brazo que se gangrena. Pero el hombre, por muy largo atavismo, está hecho a sobrellevar tales males. (CARPENTIER, 1998:103)

Eis aí a grande conquista de Pablo, agora, definitivamente o Adelantado. O

homem que nunca teve um lugar que fosse exatamente seu, que sempre buscou

aprimorar-se para conseguir o que quería. Era ele também um profundo conhecedor,

acumulara vasto conhecimento, tal qual o protagonista do romance Los pasos

perdidos. No entanto, cada figura adquiriu conhecimento de maneira distinta, em

territórios bem diferentes e por motivos ainda mais diversos. Para o anônimo

musicólogo de Carpentier era difícil compreender como os homens daquele lugar

… se contentan de cosas muy simples, hallando motivo de júbilo en la tibieza de una mañana, una pesca abundante, la lluvia que cae tras de la sequía, con explosiones de alegría colectiva, de cantos y de tambores, promovidos por sucesos muy sencillos como fue el de nuestra llegada.(CARPENTIER, 1998:105)

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Uma vez mais, o musicólogo recorre ao seu conhecimento ilustrado para

descrever o que acontece diante de seus olhos. Continuando seu jogo de teatralizar

a realidade, o protagonista compara a cidade fundada por Adelantado com a cidade

de Enoc (In: CARPENTIER, 1998: 103). Segundo os escritos bíblicos Henoc seria

um dos patriarcas, pai de Matusalém, e que por sua conduta, Henoc teria sido

arrebatado aos céus juntamente com o Deus criador. Como se lê em

Quando Enoc completou 65 anos, gerou Matusalém. Enoc andou com Deus. Depois do nascimento de matusalém, Henoc viveu 300 anos e gerou filhos e filhas. Toda a duração da vida de Enoc foi de 365 anos. Enoc andou com Deus, depois desapareceu, pois Deus o arrebatou.27 (GÊNESIS, 1990: 5; 21-24)

A Summa Theologiæ, escrita entre 1265 e 1273, cuja autoria se atribui a São

Tomás de Aquino combina a filosofia de Aristóteles com a doutrina Católica, em

uma tentativa de unir a fé e a razão. A obra encontra-se dividida em três partes, nas

quais se encontram 512 questões, e pretende, responder acerca da natureza de

Deus, das questões morais e da natureza de Jesus. Para efeitos de análise,

interessa-nos destacar um trecho contido na III parte da publicação, em que se faz

referência à figura de Enoc.

Elias foi arrebatado ao céu aéreo; não ao céu empíreo, que é o lugar dos bem-aventurados. E, do mesmo modo, tampouco o foi Enoc, foi, no entanto, levado ao paraíso terrenal, onde, junto com Elias, se crê que vive até que se produza a vinda do Anti-cristo.

(SUMA III,49,5, ad 2)28

Ao comparar Adelantado a Henoc e suas respectivas cidades, o musicólogo

sustenta sua ideia de que existem vários mundos coexistindo na existencia terrenal

e que nem todos têm permissão para viverem em alguns destes territórios. O que faz

crescer sua admiração sobre a figura do Adelantado, como se comprova no seguinte

fragmento:

27A analogia feita do documento cristão a respeito da idade humana tem a ver com a relação entre

felicidade e o mal e não a nenhum aspecto de caráter biológico. Segundo nota de rodapé presente no livro do Gênesis, “à medida que o mal cresce, o homem é menos feliz, ou seja, vive menos” 28 São Tomás entende por "céu aéreo” o paraíso de Adão e Eva, (v. GÊNESIS 3,23-24)

enquanto que o "céu empíreo", seria reservado para os santos, e teria sido aberto pela Paixão do Senhor (Santo Irineu: contra as Heresias 5,5,1)

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… ahora que el griego ha partido, puede hablarse a voces del

secreto: el Adelantado ha fundado una ciudad […] Fundar una

ciudad. Yo fundo una ciudad. Él ha fundado una ciudad […] Se

puede ser Fundador de una Ciudad. Crear y gobernar una ciudad

que no figure en los mapas, que se sustraiga a los horrores de la

Época, que nazca así, de la voluntad de un hombre, en este mundo

del Génesis. La primera ciudad. La ciudad de Henoch, edificada

cuando aún no habían nacido Tubalcain el herrero, ni Jubal, el

tañedor del arpa y del órgano… […]29 (CARPENTIER, 1998: 102)

Graças aos conhecimentos adquiridos ao longo de tortuosas viagens, Pablo,

o Adelantado, conseguiu forjar um destino. Não esperou que lhe fossem dadas as

chaves do paraíso como uma recompensa pelas tormentas passadas. As portas

foram abertas por esse desbravador e com isso:

… sólo él conocía cierto paso entre dos troncos, único en cincuenta leguas, que conducía alguna angosta escalinata de lajas por la que podía descenderse al vasto misterio de los grandes barroquismos telúricos. […] El descifraba el código de las ramas dobladas, de las incisiones en las cortezas, de la rama-no-caída-sino-colocada (CARPENTIER, 1998: 141-142)

Era ele também quem: “… podría hallar los instrumentos requeridos en las primeras

aldehuelas de una tribu que vivía, a tres jornadas de río, en las orillas de un caño

llamado El Pintado, por el siempre tornadizo color de sus aguas revueltas.”

(CARPENTIER, 1998: 143)

O protagonista do romance, ao fim, teve acesso não só aos instrumentos

encomendados pelo Curador, mas também a todo um mundo que só havia

contemplado pelas letras de relatores como Hernán Cortés ou Fray Servando de

Castillejos. Em uma passagem do texto, o músicólogo latino-americano compara a

figura do desbravador à figura histórica do cavaleiro alemão Felipe de Ultre. Sobre

esta personagem da colonização venezuelana se sabe o seguinte:

O intrépido e honrado Ultre é sem contradição uma das figuras mais simpáticas entre os germânicos que agregaram páginas tão românticas à historia do descobrimento das Américas do Sul […] o campeão mais esforçado da liberdade na época da Reforma, que tinha uma alma em forma de chama. Em Julho de 1541 organizou

29 Tubalcaim é um personagem presente no Antigo Testamento, no livro de Gênesis como

fazendo parte da descendência de Caim. Teria sido irmão de Jubal e Jabal. Segundo a Bíblia,

Tubalcaim teria sido o primeiro homem a fazer uso do cobre e do ferro nas construções da

humanidade: E Zilá também teve a Tubalcaim, mestre de toda obra de cobre e de ferro; (Gênesis

4:22)

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Felipe uma expedição em busca do Eldorado. (JOHANNES, 1895:629)

A admiração do protagonista do romance de Carpentier pela figura de Pablo,

conhecida por todos como Adelantado, pode ser sustentada no fato de este

apresentar-se como uma peça que possui livre trânsito entre os dois “mundos”

narrados em Los pasos perdidos. Assim como o conquistador alemão, o

personagem da ficção saiu em busca do Eldorado e alcançou muitos feitos, entre

eles, a fundação de uma cidade. Como se vê no fragmento:

… el Adelantado ha fundado una ciudad. No me canso de repetírmelo, desde que esto de una ciudad me fuera confiado, hace pocas noches, encendiendo más luminarias en mi imaginación que los hombres de las gemas más codiciadas.[….] El Adelantado me dice, con un temblor de orgullo en la voz: «Esta es la Plaza Mayor... Esa, la Casa de Gobierno... Allí vive mi hijo Marcos... Allá, mis tres hijas... En la nave tenemos granos y enseres y algunas bestias... Detrás, el barrio de los indios...» (CARPENTIER, 1998: 212-213)

O conquistador Pablo fornece os idiófones necessários para completar o

acervo da galeria de instrumentos aborígenes da América, providencia os itens

indispensáveis para a manutenção da cidade que fundou, porém esse livre acesso é

pessoal e intransferível à figura do conquistador, e o protagonista da trama, ainda

que acredite interpretar vários papéis ao longo de sua jornada, está impedido de

cumprir esta função.

As personagens que empreendiam a mítica viagem ao longo do rio, assim

como suas histórias, estavam para o narrador de Los pasos perdidos, a serviço de

sua imaginação. Como lemos no seguinte fragmento:

Me divierto con un juego pueril sacado de las maravillosas historias narradas, […], por Montsalvatje: somos Conquistadores que vamos en busca del Reino de Manoa30. Fray Pedro es nuestro capellán,[…] El Adelantado bien puede ser Felipe de Utre. El griego es Micer Codro, el astrólogo. Gavilán pasa a ser Leoncico, el perro de Balboa. Y yo me otorgo, en la empresa, los cargos del trompeta Juan de San Pedro, con mujer tomada a bragas en el saqueo de un pueblo. Los indios son indios, y aunque parezca extraño, me he habituado a la rara distinción de condiciones hecha por el Adelantado, […] cuando,

30 Também conhecido como Eldorado

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al narrar alguna de sus andanzas, dice muy naturalmente: «Eramos tres hombres y doce indios.» (CARPENTIER, 1998: 85)

A mesma estratégia é adotada pelo autor cubano, como se lê em em

Giacoman (1970: 109-110): “Antes de escribir una novela trazo un plan general que

compreende plano de las casas, dibujo de los lugares en que va a transcurrir la

acción”. Artifício que é analisado por Luis Harss (1966:75): “As personagens em

Carpentier, se colocam de costas ao leitor, ou giram opacas, símbolos andantes de

ideais ou atitudes, por falta de opacidade psicológica verosímil, exemplificam, sem

dramatizar, os problemas. ”

Vislumbra-se em Los pasos perdidos a mesma estratégia, tanto no relato da

personagem quanto no do criador do romance analisado. Enquanto a criatura

descrevia os indivíduos que o cercavam de acordo com modelos que havia

contemplado em livros e outras obras ilustradas, Carpentier, o criador, alia a

estratégia de sua criatura agregando à sua gênese de personagem as pessoas com

quem se relacionou ao longo da vida.

4.3 Desdobramentos da figura do intelectual em Alejo Carpentier

A infinidade de regras, preceitos e fórmulas que circunda o universo da escrita

faz com que esse ato seja mais que uma ação. Espera-se que o escritor o

desenvolva como um exercício contínuo. Antes da escrita valorizava-se a memória e

a eloquência daquele que transmitia a mensagem, logrando um espaço para o

deleite do interlocutor que participava desse momento.

A instalação de gráficas e editoras, a propagação das obras, os museus e a

venda de livros, bem como o desenvolvimento da educação, fizeram da América

Latina um canteiro próspero para escritores e suas obras, leitores e os diálogos

possíveis entre essas obras. O desenvolvimento das instituições acadêmicas e a

democratização do acesso à literatura criaram um ambiente propício para que a

expressão literária se desenvolvesse, alimentada por diversas frentes e não

somente produto de uma criação calcada no era produzido na Europa.

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Muito se comenta a respeito do ofício de escritor. Para o romancista

português José Saramago, a escrita envolve não somente o ato de redigir textos e

compilá-los em uma publicação. Exige que se tome um posicionamento específico

diante da vida e dos acontecimentos, que não se resuma à simples contemplação. O

escritor colombiano Gabriel García Márquez e o norte-americano Henry Miller

ressaltam a importância das experiências pessoais dos escritores como elemento

que fomenta a escrita. Já o norte-americano Ernest Hemingway, cujos escritos

literários possuem fortes marcas da sua experiência como jornalista, destaca, em

diversos momentos, a preocupação com a forma clara, o cuidado com o uso dos

adjetivos, no tamanho das frases.

Todas essas considerações a respeito do ato de escrever têm algo em

comum: associam-se ao tempo-espaço e particularidades de quem as proferiu. Para

cada experiência vivida, tanto pelos autores mencionados quanto para os demais,

há um ponto de partida, um lugar de observação e é este o ponto de reflexão que se

pretende destacar na presente tese. A literatura permite a releitura de uma realidade

vivida e permite a criação de realidades imaginadas pelo escritor. Consideremos as

palavras da professora Bella Josef (2005: 7)

Escrever é prosseguir uma obra coletiva anterior. Uma literatura é uma história: o domínio do particular e do mutável, uma história dentro da história maior que é a de cada sociedade. Mas há em cada obra de arte um elemento irredutível à casualidade histórica.

Com essas palavras, Jozef inicia o seu livro História da literatura hispano-

americana (2005), referindo-se à importância de uma leitura historiográfica do texto

literário, além da sua interferência no sentido histórico. Percebe-se o mesmo em

autores como T. S. Eliot no que concerne à tradição literária. O autor salienta que é

preciso buscar o individual, ou seja, o essencial para o homem; afinal, a tradição não

é somente o que é deixado à geração seguinte, mas as relações que se

estabelecem a partir de uma obra.

A tradição tornaria o escritor, segundo Eliot, aguçadamente consciente

preparando-o para o diálogo com outra geração de seu país e até mesmo de outra

nação. Sobre a tradição, Eliot afirma:

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A tradição implica um significado muito mais amplo. Ela não pode ser herdada, e se alguém a deseja deve conquistá-la através de um grande esforço. Ela envolve, em primeiro lugar, o sentido histórico, que podemos considerar quase indispensável a alguém que pretenda continuar poeta depois dos vinte e cinco anos; e o sentido histórico implica a percepção, não apenas da caducidade do passado, mas de sua presença; o sentido histórico leva um homem a escrever não somente com a própria geração a que pertence em seus ossos, mas com um sentimento de que toda a literatura europeia desde Homero e, nela incluída, toda a literatura de seu próprio país têm uma existência simultânea e constituem uma ordem simultânea. Esse sentido histórico, que é o sentido tanto do atemporal quanto do temporal e do atemporal e do temporal reunidos, é que torna um escritor tradicional. (ELIOT, 1989: 38-39)

O crítico uruguaio Mario Benedetti levanta, em El escritor latinoamericano y la

revolución posible (1977), o tema da crescente tradição que se forma na América

durante o século XX. Destaca que o momento traz consigo uma inovação que retira

os escritores latino-americanos de suas ilhas. Abre caminho para uma criação que

não é modelo da tradição europeia e que, também, não é produto de uma total

negação dos valores culturais do Velho continente. A crescente tradição e a

singularidade da literatura aparecem como tema da obra de Benedetti como se pode

verificar:

… a literatura passa hoje por uma das etapas mais vitais e criadoras de sua história. Evidentemente, já não se trata de grandes nomes isolados, que sempre existiram, mas sim de uma primeira linha de escritores capazes de assumir sua realidade, seu contorno, e também de colocar-se, com um estilo próprio, nas correntes que constantemente e em escala mundial, se encarregavam de renovar o acontecimento artístico. As renovações literárias europeias ou norte-americanas já não devem esperar varias décadas para chegar aos escritores de América Latina (BENEDETTI, 1977: 28)

Em um dos capítulos da referida publicação de Benedetti, “La comarca no es

el mundo”, o autor faz referência à marginalidade do discurso latino-americano e à

consciência desta condição por parte dos intelectuais. Corrobora assim com a ideia

de que a relevância da manifestação literária está atrelada à economia e à tradição.

Sobre esta última deve-se destacar a citação de T.S. Eliot ao afirmar que é “[a

tradição] que, ao mesmo tempo, faz com que um escritor se torne mais agudamente

consciente de seu lugar no tempo, da sua própria contemporaneidade. ” (ELIOT,

1989: 39)

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O escritor inglês defende que o vocábulo tradição não seja visto como um

entrave, mas sim como uma proposta que permite entender a dinâmica da literatura.

Para Eliot os textos dialogam entre si. Criam laços e particularizam estilos,

construindo assim uma rede de textos acessíveis carregada de inferências que

estimularão o exercício da leitura. Assim, cria-se uma das bases da literatura,

inclusive da hispano-americana, contudo deve-se atentar para outros aspectos.

O cubano Alejo Carpentier, cujo romance é objeto de análise da presente

tese, vivenciou um importante momento na história da América Latina. Desde seu

lugar de escritor, Carpentier discorre a respeito do ofício de romancista latino-

americano do século XX enunciando que

Ahora, cada novelista de ese período concibe el mecanismo narrativo de manera particular [...] Ante el crecimiento portentoso de la tecnologia, [...], el novelista moderno [...] resulta tan analfabeto [...] como el campesino tzotzil invocado por Carlos Fuentes (CARPENTIER, 2003: 61-72)

Em seus escritos buscava tornar palpáveis as palavras do Manifesto do Grupo

Minorista, ao qual pertenceu, cujo fragmento se reproduz abaixo:

Pela revisão dos valores falsos e gastos Pela arte vernácula e, em geral, pela arte nova em suas diversas manifestações. Pela reforma do ensino público. Pela independência econômica de Cuba e Contra o imperialismo ianque. Contra as ditaduras políticas unipessoais no mundo, na América, em Cuba. Pela cordialidade e a união latino-americana. (CARPENTIER, 2003: 162)

Ainda que tenha participado do movimento independentista e exercido um

expressivo trabalho jornalístico e acadêmico na ilha, considera-se frequentemente o

discurso de Carpentier como europeizante. Afirma-se que o seu olhar sobre a

América não condiz com a perspectiva de um latino-americano, mas sim de um

europeu. Mas o que seria o olhar? Consideremos a seguinte colocação de Alfredo

Bosi (1988: 66) em seu capítulo “Fenomenologia do olhar”, no qual inicia sua análise

refletindo sobre a etimologia do vocábulo.

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Se em português os dois termos aparentemente se casam, em outras línguas a distinção se faz clara ajudando o pensamento a manter as diferenças. Em espanhol: ojo é o órgão; mas o ato de olhar é mirada. Em francês: oeil é olho; mas o ato é regard/regarder. Em inglês: eye não está em look. Em italiano, uma coisa é o occhio e outra é o sguardo. Creio que essa marcada diversidade em tantas línguas não se deva creditar ao mero acaso: trata-se de uma percepção, inscrita no corpo dos idiomas, pela qual se distingue o órgão receptor externo, a que chamamos “olho”, e o movimento interno do ser que se põe em busca de informações e de significações, e que é propriamente o olhar”

Carpentier cresce em solo cubano, mas os olhares de seus pais, ambos de

origem europeia, e suas memórias se perpetuam no escritor cubano. Não somente

seu modo de encarar o mundo possui influências europeias. Há no seu sotaque

espanhol uma marca da influência do idioma francês, língua das conversas

familiares na casa dos pais de Alejo Carpentier. Em uma entrevista da década de

197031, o cubano comenta sobre o tema e diz que teve oportunidades de quitar-lhe o

vestígio da língua francesa, que tanto o incomodou na juventude, mas que aquele

traço definia quem ele era. Seu contato com a língua e a cosmovisão de mundo

europeia, não fariam dele menos cubano, latino-americano. Sentia-se plenamente

filiado a uma identidade antilhana, hispano-americana. Pratt (2011: 415-416)

comenta a respeito da crítica a Carpentier, como se lê em:

Carpentier não pretende assumir a autoridade cultural europeia para representar, descrever ou recriar o que vê. Reclama a autoridade somente para expressar o reconhecimento do que aprendeu (ou lhe ensinaram) [...] Seu texto é sim eurocêntrico, porém não está regido pelos códigos europeus da literatura de viagens. Carpentier é europeizante de uma maneira inegavelmente americana, e até colonial. Sua incômoda insistência pela necessidade do conhecimento livresco reflete, em minha opinião, a concepção cultural do intelectual da periferia, para quem a realidade “real” e a

história “real” existem em outra parte.

31 Alejo Carpentier em 'A fondo' (1977). Joaquín Soler Serrano entrevista o escritor cubano Alejo Carpentier em uma edição de seu programa. Disponível em: http://www.rtve.es/alacarta/videos/a-fondo/entrevista-alejo-carpentier-fondo-1977/1067330/. Acessado em 15/12/2015

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Carpentier faz parte do grupo que ascendeu na América latina por volta da

década de 50. Pertencia à classe dos intelectuais32. O termo intelectual da literatura

designa, neste momento, o indivíduo enquanto crítico literário, que se legitima na

esfera pública como alguém capaz de dar uma significação social, cultural e política

aos textos literários, tendo em vista suas habilidades adquiridas através do

conhecimento acadêmico.

Com isso, assiste-se na América Latina à consolidação e modernização das

universidades; um crescimento do capital cultural alimentado pela expansão do

mercado de bens simbólicos; o acesso de novo grupos sociais à leitura. Cada vez

mais a literatura se colocou entre os pilares que definiriam uma identidade latino-

americana. O intelectual da literatura reveste seus escritos de um caráter científico,

analítico. Aqui o trabalho crítico não está limitado ao espaço acadêmico. Ele

transpassa as paredes da universiadade e problematiza questões que estão vívidas

no imaginário coletivo da população.

Intelectuais, intérpretes e produtores de conhecimento a respeito da realidade

americana, como Alejo Carpentier, utilizavam-se dos discursos religioso e histórico

como fonte de compreensão e justificativa em seus discursos sobre a identidade

latino-americana. Na análise crítica de Roberto Echeverría (2004: 212-213), a

respeito da obra de Carpentier, pode-se entender a obra do escritor cubano como

um reflexo da tendência mencionada nas linhas anteriores:

As narrações escritas durante os quarenta [...] são releituras fragmentárias de vidas capturadas pelo redemoinho da história [...] A ênfase recai sobre o telos da narrativa [...] não nas vidas das personagens ou no motivo de suas ações [...] Todos os relatos escritos antes dos cinquenta, com a exceção de partes de << Semelhante à noite >> se situam nos séculos dezoito e dezenove e se inserem em episósios históricos relativamente conhecidos ou em ciscunstâncias reconhecíveis do passado.

Carpentier, como intelectual ilustrado, herdeiro das tradições europeias que

cresceu em solo latino-americano, certamente, sentiu-se pressionado pelos

32 Cabe ressaltar que o termo intelectuais aplicado a poetas, ensaístas e demais escritores não é exclusivo deste período. Durante o século XIX figuras como o cubano José Martí já vislumbrava na tarefa literária uma via para a construção de uma identidade latino-americana que contribuiria ao desenvolvimento das cidades

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questionamentos da Modernidade assim como discorre Berman (2007: 24): “ Ser

moderno é viver uma vida em paradoxo e contradição. É sentir-se fortalecido pelas

imensas organizações burocráticas que detêm o poder de controlar e

frequentemente destruir comunidades, valores, vidas.” Com a publicação de Los

pasos perdidos pretende empreender a tarefa de de “pintar a América Latina com as

mais vivas cores” e apresentá-la ao mundo. Para Echeverría (2004: 63-64)

A história é o tema principal da ficção de Carpentier e a história da qual se ocupa – a do Caribe – é uma de princípios e fundanções – Foi no Caribe onde os europeus pela primeira vez pisaram no novo mundo e foi ali onde se estabeleceram as primeiras populações europeias. Foi, portanto, no Caribe onde a problemática específica da cultura latino-americana começou a cobrar forma. Foi, portanto no Caribe, onde a literatura latino-americana <<começou>>, pois é no diário de Colombo onde primeiro encontramos o que se converterá no tópico mais persistente da literatura latino-americana: como escrever literatura em um idioma europeu sobre realidades nunca antes vistas na Europa

Em vista disso, Carpentier lê uma série de diários33 como uma tentativa de

depreender por meio da leitura a habilidade em produzir no gênero objetivado. A

respeito do gênero diário, Carpentier (2001: 59-60) postula:

... proclamo la necesidad de los <<Diarios>>. Cualquier Diario llevado por cualquier hombre [...] me refiero al Diario escrito de cualquier manera [...] donde un ser humano ha consignado sensaciones, impresiones, fechas, coincidencias [...] Si los muchos hombres se curaram del pudor [...] que les hace retroceder ante el gesto de consignar en cuadernos, los hechos interesantes que pudieran quitar monotonía al transcurso de sus humanos destinos, conoceríamos un tipo de novela real, directa, íntima, más conmovedora que cualquier obra de ficción

Ainda que proclame uma liberdade de escrita, não parece ser esse o seu

método de criação em Los pasos perdidos. Talvez porque o diário pertença a sua

personagem e não a si mesmo. Ainda que haja na trajetória do anônimo musicólogo

uma série de coincidências que nos remetem à vida de Carpentier esta última é uma

obra de ficção.

33 Em seu Diario (2013) Carpentier registra de 1951 a 1953 a leitura de: Les confessions de Rousseau (p.24); Diários de Gide (p.36); Memórias de Pío Baroja (p.40); Diário de Ernst Junger (p.42); Cuadernos de conversaciones de Beethoven (p.54) e Diário Cojuelo de Vélez Guevara (p.80)

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O verdadeiro diário de Carpentier é publicado apenas no ano de 2013, mas é

escrito em concomitância com seus romances, dentre eles Los pasos perdidos.

Graças a essa obra podemos tecer comparações entre o romance e o diário do

autor fugindo de generalizações. Sigamos com a confrontação das semelhanças

entre autor e personagem do romance. No Diario de Carpentier (2013: 37) é possível

ler o quão enfadado está o escritor cubano com seu trabalho na ARS Publicidad,

El éxito obtenido por mi curso sobre la música moderna me demuestra, una vez más, cuánto tempo pierdo en ese medíocre, odioso, vano, oficio de la publicidad: empapeladores de murallas, afeadores de paisajes, pregoneros del Orvietano, con esas máquinas de aullar [...] que son los apararos de radio [...] O dejo eso a comienzos del año próximo, o haré alguna barbaridad.

Semelhante enfado se vislumbra na narração de Los pasos perdidos, como se lê :

Y amarga me sabía ahora la prosa del Eclesiastes al pensar que el Curador, por ejemplo, se hubiera encogido de hombros ante ese trabajo mío, considerando, tal vez, que podía equipararse a trazar letras con humo en el cielo, o a provocar, con un magistral dibujo, la salivación meridiana de quien contemplara un anuncio de corruscantes hojaldres. Me consideraría como un cómplice de los afeadores de paisajes, de los empapeladores de murallas, de los pregoneros del Orvietano. (CARPENTIER, 1998: 14)

Ainda que as frustrações sejam semelhantes, apenas Carpentier parece conseguir

se resgatar desse mundo considerado odioso. Ele, como intelectual do plano real é o

único que consegue êxito em sua tarefa acadêmica.

São muitas as análises sobre a obra que a atestam como uma autobiografia

de Alejo Carpentier. Ao confrontar a biografia do autor com dados contidos no

romance, a ideia de autobiografia parece se tornar cada vez mais evidente. Como já

foi mencionado em diversas partes da presente tese a viagem realizada pelo

protagonista do romance se assemelha a uma empreendida por Carpentier.

Criador e criatura passam percalços em uma capital latino-americana por

conta de um conflito armado. Assemelham-se por buscar no saber ilustrado a fonte

do conhecimento para ler o mundo que os cerca. Mas tomar essas evidências como

suficientes para classificar Los pasos perdidos como uma auto-biografia é descartar

uma importante declaração do autor em relação à criação de suas personagens.

Como se lê em seu Diario, Carpentier (2013: 38) afirma que

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Un escritor consciente solo debe hablar de ofícios que ha practicado, de enfermidades que ha padecido, de idiomas que habla, de lugares que ha visitado, de personajes – mujeres, sobre todo – que ha conocido intimamente, lo demás es mala literatura.

Este é o modo como Carpentier cria suas histórias e como ele acredita que

todas as demais ficções devam ser criadas, como se lê em duas passagens de seu

Diario. Na primeira temos uma crítica ao Diario de André Gide. Carpentier (2013: 38)

mostra-se tremendamente incomodado ao encontrar no diário do escritor francês,

André Gide, na passagem que narra um diálogo com um afinador cego, como lemos

em:

Gide me choca tremendamente en su Diario [...] ¿ Cómo un escritor se permite la osadía de mover un personaje ciego? Gide, que no se jacta de haber hecho literatura, sino todo lo contrario obró como un literato – y de los peores – al tratar así sin más ni más, un tipo de personaje cuyo fondo [...] no podia conocer, puesto que solo un ciego muy inteligente y observador podría hablarnos realmente del mundo de los ciegos

É possível inferir que para Carpentier ser literato é ser diferente de ser

escritor. Parece que aos literatos não lhes seria conferido, por Carpentier, o título de

intelectuais, tal qual se definira na década de 50. Em outra passagem de seu diário

pessoal volta-se ao tema da criação. Ao conhecer em Caracas, Jean Malaquias,

pseudônimo usado pelo romancista francês Wladimir Jan Pavel, o autor cubano

comenta sua discordância a respeito das considerações do francês sobre os

métodos de criação de um romancista, como lemos em:

Cree que la imaginación del novelista debe suplir, en muchos casos, la experiência propia. Y en esto lo encuentro absolutamente opuesto a mí. Quien no haya sido carpinteiro, quien no conozca, siquiera, el nombre de las herramientas [...] y tenga que buscarlo en un diccionario, hará siempre << literatura >> Fabricará un carpinteiro literário. [...] de niño en el Lucero, tuve a mi cargo una pequena granja avícola [...] Luego puedo manejar algún día, el personaje de un avicultor, como he manejado uno de músico, por haber estudiado música a fondo. (CARPENTIER, 2013: 132-133)

Essa convicção sobre a necessidade de viver para contar algo. De possuir

propriedade alcançada através da experiência justifica, por exemplo, o enfado do

autor cubano diante das produções surrealistas. Tais produções artísticas não se

adequavam à sua concepção de arte. Todas personagens que povoam suas obras

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são frutos de alguma experiência vivida por Carpentier. Sua história pessoal é

apenas mais um instrumento a serviço da narrativa. Assim como Hèlene, mulher

com quem teve um romance e foi modelo na criação de Ruth, sua vida é matéria de

criação. Sente a necessidade de deslocar as figuras com quem cruzou ao longo de

sua vida para as páginas de seus livros, como lemos em:

Vuelvo a pensar en aquella Habana de comienzos del siglo [...] Hay algo que hacer con los elementos evocados. La negra Mercedes, que era lavandera de mi casa, y había sido esclava de nación. Lo español de la vida. El viejo Miguel, que evocaba los tempos de la esclavitud, y me mostraba, incluso, los campos que labraban los esclavos. Y, luego, la cercania de la fiebre amarilla, Weyler, la renconcetración, etc. Habría que poder a vivir, en un cuento, aquella ciudad desconcertante, que, en 1910, sigue con negros esclavos en las casas, herrerías en pleno centro, etc. (CARPENTIER, 2013: 48)

Porém uma das personagens de Los pasos perdidos não foi criada tal qual as

demais que circulam pelas obras do autor cubano: Rosario, a intrigante personagem

que desconcertou o anônimo musicólogo de Carpentier, foi inspirada em uma índia

que o escritor cubano conheceu durante sua estada na selva americana. Não houve

contato entre ambos para que Carpentier pudesse deslocar a vida da personagem

para a ficção narrativa, no entanto ele esteve com ela. O encontro entre o escritor

cubano e a lindíssima índia que mais parecia uma princesa, segundo palavras do

autor, foi real. Foi a partir dessa experiência que a personagem Rosario foi criada. O

intelectual latino-americano traz consigo uma lembrança da índia: uma foto que,

mais tarde exibirá, como prova de sua existência, em uma entrevista34 televisiva

dada na década de 70. Eis, a seguir, a imagem da nativa que inspirou a criação de

Rosario.

34 Alejo Carpentier em 'A fondo' (1977). Joaquín Soler Serrano entrevista o escritor cubano Alejo Carpentier em uma edição de seu programa. Disponível em: http://www.rtve.es/alacarta/videos/a-fondo/entrevista-alejo-carpentier-fondo-1977/1067330/. Acessado em 15/12/2015

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Arquivo pessoal de Alejo Carpentier mostrado em entrevista a Joaquín Soler no programa A Fondo (1977)

A presente análise poderia encerrar-se com a conclusão de que Los pasos

perdidos não é uma autobiografia, mas sim o exemplo mais latente do modo como o

autor cubano opera em sua criação literária. O que faz a narrativa diferente das

demais é a proximidade entre a vivência real dos fatos e sua transposição para o

romance, o qual foi a obra que mais teria suscitado incertezas em Carpentier,

segundo se lê em:

Dudoso todavia de Los pasos perdidos, pero contento de haber salido de este libro que se me acompañó demasiados momentos duros de mi vida [...] Estuvo presente cuando tales cosas ocurrían [...] Los pasos perdidos tiene desgarramientos visibles para mí solo, que me lo actualizan tal vez demasiado. ¿Es un buen libro? No lo sé. Estuve por surprimir [...] todo el segundo capítulo [...] Luego me pareció que la transición era necesaria. [...] En fin: que jamás me he sentido tan indeciso y desamparado ante un libro dado a la imprenta (CARPENTIER, 2013: 116)

Carpentier, ao contrário do protagonista do romance, acredita ocupar uma

posição de destaque em relação aos demais homens. Afirma possuir domínio de si

para não mais empreender trabalhos que estejam alheios a sua vontade; sente-se

dono de sua escrita. Crê que poucos seriam os contemporâneos a ele que teriam a

oportunidade de vivenciar experiências em tão diversas e grandiosas ordens como

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as que vivia até então. No ano de 1952, Carpentier (2013: 53) registra esse

sentimento em seu Diario, como se lê a seguir:

Mi verdadeira obra está aún por hacerse. Pero esa obra bulle en mí. Han pasado los tiempos [...] de trabajo de un yo divorciado de mí mismo [...] Hasta El reino de este mundo la escritura me arrastraba [...] Los pasos perdidos me dieron mis últimas lecciones. Ahora sé lo que de mí mismo [...] debo evitar. Por lo demás, dudo que muchos hombres de mi edad puedan haber pasado por tantas experiências humanas como yo.

A presente tese acredita ter oferecido elementos que permitam entender Los

pasos perdidos como o exemplo mais latente da sua estratégia de criação literária.

Que a biografia do autor funciona como matéria prima da criação artística, em um

constante jogo com a verossimilhança. Porém, antes de partir para as considerações

finais, é possível entrever uma das cortinas que emoldura o cenário da teatralidade

de Alejo Carpentier. Na obra que pretende ser um registro biográfico, uma nota

pessoal da vida ao autor cubano, encontra-se uma vez mais os rastros de um

interdito. Em umas das páginas da referida publicação podemos ler uma mostra de

sua teatralidade no manejo da palavra:

Pienso a veces que si estas hojas cayeran en manos de un desconocido, se le ocurriría decir: << He aqui un hombre deformado por la literatura, que solo vive en función de la letra impresa. Cuando releo algo de lo aqui dejado, lo encuento muy literario... lo que demuestra que, aun en un diário no se enseña el verdadero rostro (CARPENTIER, 2013: 63)

Ao auto-criticar suas memórias Carpentier coloca-se no mesmo lugar do

sujeito poético de “Autopsicografia”, de Fernando Pessoa: o de um fingidor. Trabalha

seu discurso de modo que somente ele pode ter acesso à porta que conduziria a

verdade em seu estado literal. Realmente é ele o dono de sua escrita. E é no espaço

do interdito que se perpetua sua obra, deixando livre caminho para este assim como

para outros tantos estudos que se farão a respeito de suas obras.

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Considerações Finais

A aventura que transportou a personagem principal de Los pasos perdidos, de

Alejo Carpentier, se apresenta como um diálogo relevante entre o texto literário e o

discurso crítico de um momento histórico. O anônimo protagonista teve contato real

com um mundo que conhecia somente através dos livros, graças a seus anos de

estudo assimilando uma cultura estrangeira.

Ao tentar renunciar a seu passado americano, o protagonista da trama de

Carpentier espera encontrar-se em solo estrangeiro e ganhar notoriedade com seu

trabalho. Tal plano não se concretiza. Ao regressar a seu país de origem e viajar

pelas águas do rio Orinoco, o anônimo musicólogo espera encontrar, além dos

instrumentos musicais primitivos, um lugar na existência da selva americana e uma

consciência ainda mais acertada de seu compromisso como homem e artista. O que

tampouco ocorre.

Rememorar não é trazer integralmente um passado de volta. A experiência é

o alimento para que se desenvolva uma reflexão a respeito da sociedade latino-

americana da primeira metade do século XX. Para tanto o escritor lança mão de

tipos presentes na história e em suas memórias em seu discurso literário.

Percebemos, pois, que este cenário istaura uma relação Selva-Cidade atravessada

pela memória.

A trajetória das personagens do romance confirma a relação entre mito e

realidade. Através da alusão de inúmeras obras e personalidades institucionalizadas

pela cultura dominante, no campo musical principalmente, o autor cubano promove

uma significativa reflexão sobre as teorias vigentes, problematizando, dentre tantas

questões possíveis, a eterna tensão estabelecida entre teoria e prática.

Desde a epopeia clássica até os escritos de ficção científica e as narrações

de literatos do século XX, a narrativa de viagem figura como a via ideal dos sonhos e

dos mitos. Ela se alimenta de mudança tanto quanto a viagem e, nesse sentido,

viagem e narrativa relacionam-se mutuamente. A viagem que se realiza em um

espaço físico, requer que o viajante se submeta aos efeitos da passagem do tempo

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no qual acontecerão mudanças de ordem biológica, climática, geográfica,

psicológica. O deslocamento como tema de uma narrativa literária implica que seu

escritor se atente aos pressupostos da viagem literal com a liberdade de “viajar”

pelos “rios caudalosos” do literário.

A viagem é o código através do qual o escritor cubano expressa a relação

neocolonial vigente. O intelectual latino-americano, delineado no romance de

Carpentier, é concebido através das viagens. Ele não teme a metrópole, mas a

atravessa para regressar ao estado original na tentativa de encontrar algo que não

sabe nomear, mas parece estar perdido. Os resultados desse processo de

deslocamento e reterritorialização serão fundamentais para a construção do

necessário capital cultural nacional que seguirá em constante processo de revisão

na América Latina.

A obra Los pasos perdidos instaura, calcada às bases do realismo

maravilhoso, um tempo e um espaço que se apresentam de forma múltipla e

simultânea. Múltiplas realidades coexistem em diversos espaços da América Latina,

formando uma heterogênea e singular mostra da identidade que constantemente se

desenha nestas terras. Carpentier nos abre uma brecha entre o real e o factível para

situar-nos além do discurso das Letras, promovendo um encontro com o homem do

continente Americano.

Ao entender Los pasos perdidos não como autobiografia, mas sim como

exemplo no qual abunda a estratégia de criação utilizada por Alejo Carpentier,

confirma-se, portanto, a premissa de que existe muito de vida em toda manifestação

artística. Sem deixar de ressaltar que, para que vida se justifique como arte, é

necessário todo um trabalho de eternizar o fato como um evento; de trazer o real

para o campo polissêmico da verossimilhança, revelando-se sempre como um

frutífero caminho entre esses dois eixos.

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