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Um porto, dois mares, três redes: um estudo sobre Gades e sua inserção nas redes
mediterrânicas
BRUNO DOS SANTOS SILVA*
“Aqui vivem os homens que constroem os maiores e melhores
navios mercantes, do Atlântico e do Mediterrâneo, apesar de, em primeiro
lugar, a ilha em que vivem não ser muito grande, e, em segundo lugar, eles
não ocupam muito território no continente em frente à ilha, e terceiro, não
são tão afortunados na posse de outras ilhas; de fato, eles vivem sobretudo no
mar, embora alguns fiquem em casa ou ocupem seu tempo em Roma”
(ESTRABÃO, 3.5.3)
Ao tratar de Gades em sua Geografia, Estrabão apresenta uma cidade de
mercadores que se destacam na construção e no manejo de navios que realizam o
contato marítimo entre o oceano Atlântico e o mar Mediterrâneo. Em outras partes de
sua obra, o autor diz que a cidade foi fundada após uma série de expedições fracassadas,
promovidas pela cidade fenícia de Tiro, estimuladas por um oráculo (ESTRABÃO,
3.5.5). Estima-se que, desde o início do I milênio a.C., os fenícios procuravam por
metais nessa região, especialmente estanho e prata. Gades – ou Gadir, na língua fenícia
– teria surgido como um entreposto desse povo para manter contato com a população
local, os tartessos.
É interessante notar que, passados vários séculos, a importância estratégica da
cidade não mudara. A proposta dessa apresentação – assim como de nossa pesquisa de
doutorado – é analisar as transformações de uma cidade, a qual é, ao mesmo tempo,
mediadora do contato de duas grandes porções de água e “nó” de três redes que se
estabelecem ao longo do I milênio a.C. Em outras palavras, a rede comercial e colonial
fenícia, a rede que coloca em contato o litoral atlântico e o interior da Turdetânia (escala
regional) e a rede de domínio romano sobre o Mediterrâneo têm em Gades um de seus
principais nós.
Esta apresentação é uma tentativa de expor e discutir uma das questões centrais
de nossa pesquisa de doutorado, que propõe um estudo do contato entre a cidade de
Gades e o vale do rio Guadalquivir. Pretendemos, nesse texto, analisar quatro fontes
escritas que abordem e descrevam este contato: a Geografia de Estrabão terá papel
* Doutorando da Universidade de São Paulo – Departamento de História Social, Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas.
2
central em nossa abordagem, uma vez que é a fonte que gerou a maior parte das
questões caras à nossa pesquisa; Guerras na Espanha (História Romana) de Apiano,
que influenciou grande parte das interpretações feitas acerca da presença dos Bárcidas
na Espanha; História de Roma de Tito Livio, que coloca Gades no radar político de
Roma; e Pró Baldo de Cícero, que, definitivamente, apresenta um cidadão da cidade
como ator político relevante nos assuntos políticos de Roma no século I a.C.
A breve análise dessas fontes será contrastada com uma importante discussão
teórica acerca do conceito de integração. Procuraremos articular a análise de nossas
fontes com os vários debates sobre a expansão do poderio romano, particularmente em
direção às terras do oeste do mar Mediterrâneo.
Este texto, assim como a presente pesquisa, deriva de uma das conclusões de
nossa dissertação de mestrado. Nela procuramos analisar os livros III e IV da Geografia
de Estrabão, em que o autor descreve a península Ibérica e a Gália, respectivamente.
Nossa intenção era discutir o papel de Roma nas transformações vividas pelas regiões
nos séculos I a.C. a I d.C., época de elaboração da Geografia. O debate acerca da
Romanização dessas duas regiões norteava a pesquisa, e nos fez chegar à conclusão de
que, a partir da leitura desta fonte em especial, havia um processo de integração em
pleno vapor no período em questão. As regiões litorâneas possuíam cidades que
tornavam as populações polite/iaj – termo tradicionalmente traduzido como civilizadas.
Em decorrência de toda carga ideológica que este termo carrega – fruto das políticas
imperialistas do século XIX – propusemos traduzir este termo por “viver em cidades”.
Assim, concluímos que os povos no litoral dessas regiões já viviam em cidades – e
carregavam consigo todas as implicações políticas, culturais e sociais decorrentes –,
especialmente em razão da presença de povos como os gregos e os fenícios; e o interior
das duas regiões era marcado pela recente urbanização, fruto da presença romana.
Havia, dessa forma, um processo de integração, começado por povos do leste do
mediterrâneo e em realização pelos romanos naquela época.
Para chegar a esta conclusão mais genérica, o estudo da região da Turdetânia foi
extremamente importante. Na Geografia de Estrabão, essa região possui litoral e
interior intimamente conectados. Propusemos, a partir dessa observação, que a região,
para o autor, estaria completamente integrada, isto é, teria as regiões litorâneas e
interioranas conectadas por uma série de fatores, principalmente em virtude da
3
existência de cidades que se relacionavam intensamente. Vejamos essa questão com
mais calma.
Quase todo capítulo 1 do livro III da Geografia é dedicado a descrever, em
detalhes, a Turdetânia. Começando pela caracterização do litoral, Estrabão apresenta as
fronteiras físicas dele e ressalta que aquela é abastecida pelos dois maiores rios da
península: o Anás (Guadiana) e o Baetis (Guadalquivir). A importância deste último faz
com que alguns chamem a região de Baetica, enquanto outros preferem Turdetânia, em
razão do povo que ocupa a região, os Turdetanos, que Estrabão classifica como os mais
sábios da Ibéria, uma vez que possuíam um alfabeto próprio com o qual podiam
registrar suas histórias antigas, seus poemas e suas leis (Estrabão 3.1.6).
Nas partes 3.1.7, 3.1.8 e 3.1.9, o litoral entre o Cabo Sagrado e os Pilares de
Hércules é descrito. A costa é uma região rica na produção de peixe salgado e em
entrepostos comerciais, como Menlaria e Belon. Há ainda a cidade de Gades –
extremamente rica, segundo Estrabão –, que fica em uma ilha próxima do continente
(Estrabão 3.1.8) – as ilhas são descritas no capítulo 5. Ao finalizar o primeiro capítulo,
Estrabão apresenta o restante do litoral, na direção dos Pilares. Próximo ao Cabo
Sagrado, ele destaca o porto e o templo de Menesteus, os estuários de Asta e Nabrisa,
duas cidades importantes do litoral, além da cidade de Ebura e o santuário de Artêmis
(Estrabão 3.1.9).
Podemos dizer que o geógrafo de Amásia apresenta um quadro que aponta a
pesca e o comércio como principais meios de produção de riqueza na região costeira. O
contato com o norte da África é destacado (Estrabão 3.1.8). E, à exceção de Gades, não
é mencionada relação direta entre as cidades do litoral e Roma.
O capítulo 2 também é dedicado à Turdetânia, entretanto, a narrativa agora se
desloca para o interior. Estrabão começa apresentando as fronteiras internas da
Turdetânia, as quais são a oeste e a norte o rio Anas; a leste, a Carpetânia e a Oretânia; e
ao sul, sua própria costa. Ele usa a palavra xw/raj para diferenciar o interior do litoral, e
afirma que, juntos, litoral e interior possuem mais de duzentas cidades (Estrabão 3.2.1).
As maiores estão, segundo o autor, localizadas nas margens dos rios, nos estuários ou
próximas ao mar. As mais importantes são Corduba – fundada por Marco Cláudio
Marcelo (século II a.C), segundo o geógrafo – e a cidade de Gades. Esta última é
considerada importante em virtude do comércio e do contato com os romanos; já aquela
4
primeira, em função da qualidade do seu solo e por ter sido a primeira colônia dos
romanos.
Há todo um trecho dedicado aos rios Anás e Baetis, e este último exerce
importante papel de navegação e contato na região. Além de torná-la “a mais fértil do
mundo” (Estrabão 3.1.6), o Baetis é um facilitador natural que conecta o litoral
especialista em navegação e comércio ao interior rico em minérios (Estrabão 3.2.3).
Para o geógrafo, é exatamente isso que transforma a Turdetânia em uma região
tão rica: sua fácil locomoção e a possibilidade de cultivar produtos na terra e/ou retirá-
los das montanhas para exportá-los facilmente. A riqueza que primeiro atraíra os
Fenícios para lá – e o autor frisa que eles ainda habitavam a região em seus dias
(Estrabão 3.2.13) –, fora outrora conhecida por Homero, que ouvira relatos de um povo
riquíssimo chamado Tartessos ocupando a região (3.2.13). Homero também era a fonte
de Estrabão para saber que Hércules lá estivera, e que uma série de coincidências entre
os relatos de Odisseu e os nomes da região levavam-no a acreditar que este último
também a visitara (3.2.13). Os fenícios eram os informantes de Homero, de acordo com
Estrabão, uma vez que já haviam se instalado na região muito antes dos gregos saberem
de sua existência, e de lá só saíram expulsos pelos romanos, na guerra contra os
Bárcidas – que invadiram a Turdetânia em busca de metais preciosos1. As últimas três
seções do capítulo 2, assim, formam o bloco que apresenta o passado greco-fenício,
contado por Homero, e uma fonte respeitada e defendida por Estrabão.
Em termos gerais, podemos afirmar que há uma especialização do litoral e uma
do interior. Outro diferenciador é o período em que receberam as primeiras cidades: o
interior passa pelas transformações do presente de Estrabão, isto é, provocadas por
Roma, enquanto o litoral possui cidades desde tempos remotos. Dessa forma, Estrabão
constrói a descrição de maneira que aquilo que torna a Turdetânia única e diferente do
resto da Ibéria é, primeiro, a existência destas duas formas de riqueza combinadas e,
segundo, os importantes rios que promovem o contato entre elas (3.2.8).
Fizemos no mestrado uma análise numérica de quanto espaço Estrabão dedica
em sua obra para a descrição do litoral e do interior. Nestes termos, numericamente, o
litoral se sobrepõe ao interior. Portanto, podemos dizer que Estrabão passa muito mais
tempo descrevendo cidades litorâneas como Gades, Cartago Nova, Terraco, Empório,
1 Aqui as fontes de Estrabão são Anacreonte e Heródoto.
5
do que as transformações dos povos do interior. As cidades litorâneas, apesar de
possuírem algum grau de relação com Roma, principalmente no presente de Estrabão,
têm suas transformações muito mais marcadas pela presença de outros povos do
mediterrâneo, que não exclusivamente os descendentes de Rômulo. Gades, no capítulo
5 do livro III, ocupa, sozinha, três quartos do espaço dedicado à descrição das ilhas
próximas à península Ibérica.
Ao juntarmos essa divisão proposta para a Turdetânia à dedicação de Estrabão
para Gades, podemos concluir que, nesse processo de difusão da vida em cidades, as
transformações no espaço litorâneo merecem destaque. Portanto, podemos inferir que,
além de se verificar uma forte interação entre litoral e interior, verifica-se também uma
divisão importante: enquanto o litoral tem sua história de transformações intimamente
ligada a gregos e fenícios, o interior é dominado por cidades romanas. Constatamos,
assim, o deslocamento de uma forma de viver específica, que vai do litoral (no passado)
para o interior (no presente). Nesse sentido, a Turdetânia seria o modelo acabado e ideal
de um processo de integração – facilitada, como dissemos, pela fartura de recursos
naturais disponíveis.
Nenhuma das outras fontes que escolhemos faz descrição tão detalhada dessas
regiões. No entanto, sua importância está na localização de Gades e do vale do
Guadalquivir (Turdetânia) no processo de ampliação do poder de Roma sobre o
Mediterrâneo. Apiano e Tito Lívio são os principais escritores que descrevem as
Guerras Púnicas após a conquista da Ibéria por Roma.
Apiano, em meados do século II d.C., procurou fazer uma grande narrativa da
história de Roma. Na parte correspondente às Guerras na Espanha – contra os Bárcidas,
e outros povos da região – de seu História Romana, o autor coloca Gades como um dos
principais portos de entrada dos cartagineses e dos romanos para a península nos
séculos III e II a.C. – período das Guerras Púnicas (App. Hisp. 5.28; App. Hisp. 6.31;
App. Hisp. 7.37; App. Hisp. 10.58; App. Hisp. 11.65). Um trecho, em particular, chama
atenção pelo julgamento de valor com relação aos generais cartagineses que o autor faz:
Ele (Hamilcar) associou-se ao seu genro Hasdrubal, cruzou os estreitos (de Gibraltar)
até Gades e começou a pilhar o território dos Ibéricos (ta\ Ibh/ron), ainda que estes
não tivessem feito nenhum mal a eles. (App. Hisp. 1.5)
6
Antes mesmo dessa afirmação mais contundente, no mesmo capítulo 1, o autor
destaca a riqueza da região, e como ela atraiu povos desde períodos muito remotos,
como celtas, fenícios e “saqueadores” cartagineses (App. Hisp. 1.1 e 1.2). Destaquemos
também que uma das características ressaltada por Apiano é a grande quantidade de rios
que facilitam a navegabilidade pela região (App. Hisp. 1.1).
Gades aparece para Apiano como um porto extremamente importante e
estrategicamente localizado. No contexto da guerra que levou Roma para fora da
península Itálica, dominar a cidade e obter o controle marítimo e terrestre da região foi
extremamente importante. Entretanto, a visão positiva do autor com relação à presença
romana, que expulsou os vilões Bárcidas da região, ecoa até hoje em algumas análises
históricas. Vejamos, por exemplo, o que diz o historiador francês William Seston, em
seu artigo “Gadès et l'empire romain” (1980):
Os primórdios da instalação dos romanos na Bética são bastante conhecidos
por muitos estudiosos, incluindo o Sr. Sanchez Albornoz. Eles, em parte,
refletem a situação de Gades no Império de Roma. Os gaditanos tinham
sofrido muito com o regime dos Bárcidas. Ao fundar Cartagena, Asdrúbal
instalara uma base alternativa para a presença púnica em Espanha. Além
disso, ao tentar tornar-se uma espécie de rei helenístico, como evidencia de
forma irrepreensível uma série de moedas, era óbvio que ameaçava o regime
oligárquico tradicional dos fenícios que predominava em Gades. Por fim, a
guerra Hanibálica arruinou grande parte do comércio gaditano no
Mediterrâneo, fechando os mercados italiano e grego, enquanto aumentava
a cobrança de impostos para os Bárcidas. (...) Libertados da opressão dos
bárcidas, abandonados por Cartago, os gaditanos viram sua única salvação
em um acordo com os romanos, oferecido à Bética. Eles se entregaram ao
conquistador. (SESTON, 1980: 399)
Para evitar reproduzir a tentativa de exaltação do poder romano feita por Apiano
e a emissão de qualquer juízo de valor, como a feita por William Seston, atentar-nos-
emos ao quadro geral apresentado pela fonte: as guerras que ocorreram na região por
volta dos séculos III e II a.C. foram uma série de disputas pelo controle de uma região
rica em recursos minerais, a qual atraía povos distintos desde tempos imemoráveis.
Nesses embates, a cidade de Gades e seus habitantes desempenharam papel bastante
importante.
7
Tito Lívio, escrevendo na mesma época de Estrabão, ao tratar das mesmas
Guerras Púnicas de Apiano, também coloca Gades como uma cidade estrategicamente
importante para as duas forças em disputa. O templo de Hercules gaditano (Melqart)
ganha destaque no trabalho de Lívio (Liv 21.21.9) como ponto de referência para visitas
de generais que buscavam a proteção do deus antes de suas campanhas. Além desses
destaques, temos também a lembrança de que, no ano 199 a.C., o povo de Gades pediu
aos romanos que não enviassem governadores para a cidade, para que eles pudessem
manter sua autonomia, como havia sido acordado entre a cidade e L. Marcius Septimus
no momento de sua rendição (Liv 32.2.6).
Tendo a importância que aparentemente possuíam, a cidade de Gades e sua
população ganharam papel de destaque nas tramas políticas da república romana. Nas
guerras civis do século I a.C., por exemplo, uma figura importante no desenrolar das
contendas entre Júlio César, Crasso e Pompeu fora o gaditano Lucio Cornélio Balbo,
pelo menos é o que nos diz Cícero, em seu Pró Balbo. O texto é uma defesa que o autor
faz de Balbo perante a acusação de uso ilegal da cidade romana. Balbo teria recebido
este privilégio após auxiliar alguns generais romanos em suas guerras contra Sertório.
Para defender o pertencimento de Balbo à comunidade de cidadãos romanos, Cícero
destaca a importância que a cidade teve na luta contra os cartagineses e nas guerras
contra os povos da Ibéria. Ao longo de seu texto, este autor procura apontar os acordos
traçados entre Roma e Gades desde o século II a.C. para lembrar ao Senado que os
gaditanos possuíam direitos, e que Balbo poderia, sim, ser nomeado cidadão romano,
em razão dos préstimos pessoais e urbanos (Cic. Balb. 14 - 16).
Essas breves análises, associadas às conclusões que propusemos em nossa
pesquisa de mestrado, nos dão a dimensão da importância dessa cidade e da região em
que ela está inserida. Fundada por fenícios de Tiro por volta do século IX a.C2, esta
cidade sempre esteve em constante contato com o interior da Turdetânia, principalmente
em decorrência de sua proximidade com os rios Guadalete e Guadalquivir. A
importância dos rios ficou clara nos relatos apresentados.
2 Há um grande debate acerca da data de fundação de Cádiz. Não entraremos neste mérito no artigo, mas
o debate pode ser lido em Aubet, M. E. “The Phoenicians and the West: Politics, Colonies and Trade”
(1994) e Salmonte, F. J. L. “Nueva história de Cádiz” (2011).
8
Destacados, então, o contato entre litoral e interior e a importância de Roma nos
desdobramentos da vida da cidade e de sua população a partir do século II a.C.,
precisamos, agora, discutir como essa última questão vem sendo trabalhada pela
historiografia, e como podemos avançar com as questões levantadas pela análise da
história de Gades.
Além das fontes escritas, evidências materiais também atribuem aos romanos
uma importante participação nas transformações vividas pela cidade. Questionar-se se
estas transformações são fruto exclusivamente da presença romana é adentrar no debate
da Romanização, o qual tem raízes no século XIX. O grande historiador e epigrafista
Theodor Mommsen foi um dos primeiros a utilizar a ideia de que as transformações
feitas pelos imperadores romanos foram benéficas para os povos dominados (SILVA,
2011). Outros autores do pré-II Guerra Mundial, como Francis Haverfiled e Camille
Julian, também assumiram tal visão positiva sobre a atuação de Roma fora da península
Itálica – provavelmente devido ao paradigma do Estado Nação e de sua defesa como
entidade passível de levar a civilização para os cantões bárbaros do mundo3.
Nos últimos cinquenta anos, desde as guerras de independência na África e na
Ásia, e dos movimentos de contra-cultura dos anos 1960, uma imensidão de pesquisas
passou a questionar essa visão monolítica da atuação romana, procurando dinamizar a
análise do contato entre Roma e outros povos. Entre eles, podemos destacar: Martin
Millet, que enxerga uma política externa de Roma voltada para alianças com os povos
das diversas regiões conquistadas, apresentando uma espécie de “autorromanização”,
um projeto das elites locais de adotar os hábitos dos romanos com a finalidade de
manterem-se no topo da hierarquia social (MILLET, 1990: 38); e o professor Greg
Woolf, que apresentou, ainda nos anos 90, uma proposta de análise interessante acerca
da difusão de um tipo-ideal pelos romanos buscando cooptar as elites locais (WOOLF,
1998: 54), embora tenha mudado sua abordagem recentemente, procurando analisar, por
exemplo, a expansão do império como criadora de um “middle ground” em que várias
identidades se relacionam em diferentes formas e níveis, em que a criação e a
reprodução de lendas sobre os povos bárbaros assumem papel relevante (WOOLF,
2011: 113).
3 Trabalhei mais a fundo este tema no artigo Romanização e os séculos XX e XXI: a dissolução de um
conceito, publicado em 2011 na Revista Mare Nostrum, n. 2.
9
Outras abordagens, como as que procuram pensar a romanização como uma
experiência subjetiva vivenciada nas cidades romanas chamada de Roman-ness
(REVELL, 2009: 153 e 192), ou mesmo que propõem estudos regionais (MATTINGLY
e ALCOCK, 1997), também foram bastante frutíferas. Entretanto, um dos trabalhos que
revolucionou os estudos sobre romanização foi o livro Rome’s Cultural Revolution
(2008), do professor Andrew Wallace-Hadrill. Neste, a romanização é tida como um
conjunto de processos de troca de códigos dentro de um único fenômeno: o aumento do
consumo e da luxúria provocado pela expansão do modelo de viver em cidades
(WALLACE-HADRIL, 2008: 301). Em seu trabalho, o professor atenta para a questão
cronológica das diferentes etapas do consumo nesse mundo greco-romano: o final da
república aparece como o momento do auge da importação dos produtos helênicos
promovidos pelos negotiatores itálicos, seguido por um período em que Augusto
procurara naturalizar/harmonizar a ratio grega com a consuetudo romana, que seria a
marca da romanitas, evidenciada, entre outros espaços, nos banhos públicos. Assim, no
início do Império, ficaria evidente que a romanitas gerara uma demanda interna nas
províncias, e essa seria a revolução provocada pelos romanos: intensificar o consumo a
patamares até então inimagináveis, provocando, com isso, alterações profundas na
maneira de viver, falar e interagir das populações locais (WALLACE-HADRIL, 2008:
315-355).
Uma vez que Gades é tida como uma cidade que se integra ao comércio
mediterrânico em razão da presença romana, a proposta de Wallace-Hadril de analisar
as mudanças nos hábitos de consumo pode ser muito bem aproveitada. Como se
comportava a elite local antes da presença romana? A passagem de um considerável
número de ânforas pelo porto de Gades, transportando produtos do interior da
Turdetânia para Roma, pode ter provocado quais alterações na cidade? É possível
comparar este período ao período de domínio fenício?
A análise de Wallace-Hadril, acompanhada por outros historiadores, dá às
cidades um papel de destaque na trama da romanização. Estudos urbanísticos, isto é, das
transformações pelas quais muitas cidades passaram com a presença romana, ou mesmo
de novas cidades construídas por estes, são cada vez mais essenciais para se pensar a
expansão do poderio itálico. Para exemplificarmos, tomemos duas grandes obras que
tratam desta questão.
10
Completando quase vinte anos, a coletânea “The development of towns in
Iberia” é um conjunto riquíssimo de capítulos que abordam a questão urbanística na
península ibérica, desde o período do bronze até as primeiras décadas de criação do
império romano. Editado em 1995 pelo renomado arqueólogo inglês Berry Cunliffe e
pelo especialista em península Ibérica, Simon Keay, este livro nos é particularmente
interessante, pois, diferentemente de outras análises, coloca as fundações fenícias, entre
as quais está Gades, como parte das transformações urbanísticas da região. Em seu
capítulo, Simon Keay nos mostra como a presença dos romanos variou ao longo dos
séculos: no decorrer do período republicano, aproveitaram a estrutura urbana anterior
(fenícia, grega e cetibérica) para promover uma participação na obtenção da riqueza
local. Já a partir dos tempos de Augusto, desenvolveu-se uma identidade cultural
romana que visava ao desenvolvimento de uma ideologia imperial e à dominação
completa dos povos locais (KEAY, 1995: 322-323).
Se o livro anterior traz de relevante a diversidade urbanística da península
Ibérica, podemos dizer que “The City in the Roman West”, dos pesquisadores Ray
Laurence, Simon Cleary e Gareth Sears, é uma das mais completas obras que
aprofundam a questão das cidades romanas na península (além das outras províncias
ocidentais). Preocupados com as transformações arquitetônicas e com a construção de
monumentos, os autores defendem a ideia da criação de um padrão urbanístico romano
(calcado nas influências gregas e itálicas) que vai se espalhando “por conquista ou por
osmose” por todo o ocidente até o III século d.C. (LAURENCE, CLEARY & SEARS,
2011: 11). Em consonância com as já citadas obras de Louise Revell, David Mattingly e
Susan Alcock, estes pesquisadores levam em consideração o experimentar a vida na
cidade, e as consequências que este fato pode ter. Entretanto, Laurence, Cleary e Sears
pretenderam, com a seguinte obra, enfatizar os aspectos mais importantes do padrão
urbanístico romano, em vez de explorar o peso deste fato no processo de romanização.
Assim sendo, enfático ou não no debate acerca da romanização, o estudo das
transformações das cidades vem se mostrando bastante relevante.
Outro ponto importante para este texto é o contato desta cidade com as regiões
interioranas. Há muitos autores que analisam a presença de Roma no interior do vale do
Baetis, e como esta modificou as dinâmicas produtivas e comerciais da região,
principalmente com o transporte feito pelos rios.
11
Não há muitos estudos acerca da mobilidade no mundo antigo, muito
provavelmente em razão da dificuldade documental. Entretanto, estudos como o
“Corrupting Sea” de Peregrine Horden e Nicholas Purcell (200) e “Greek and Roman
Networks in the Mediterranean” (2009), coletânea editada por Irad Malkin
conjuntamente com Christy Constantakopoulou e Katerina Panagopoulou, apresentam
breves análises sobre esta questão, mas tendo o transporte marítimo como foco. Em
todos esses estudos, especialmente no último, a teoria das redes está presente.
Normalmente, o mar – e aqui o Mediterrâneo possui papel central – é tido como o
espaço de deslocamento de pessoas, mercadorias, ideias, modas, hábitos, que formam
rotas de um ponto ao outro, podendo cada encontro das rotas estabelecidas funcionar
como chegada e saída de outras rotas. Cada um desses encontros é chamado de nó, que
originam redes de variados tamanhos, podendo ser amplas, como o mar Mediterrâneo,
ou mais reduzidas, como o mar Egeu – a depender da escala da análise.
Em todos esses trabalhos, as cidades, os portos, os templos, e vários outros
espaços são vistos como nós, e podem ser analisados à medida que a dinâmica da rede à
qual eles pertencem se modifica. A conectividade de um nó é essencial para entender a
dinâmica das transformações que se dão nestes espaços (MALKIN,
CONSTANTAKOPOULOU e PANAGOPOULOU, 2009). Assim sendo, se pudermos
tomar a cidade de Gades como um nó na rede mediterrânica dominada por Roma a
partir do século II a.C., pensar acerca da dinâmica de contato desta com o interior da
Turdetânia, através do vale do Baetis, mostra-se bastante promissor.4
Um trabalho que pode servir de parâmetro para essa análise que pretendemos
esmiuçar aqui é o trabalho de Michel Dietler com Marselha e o vale do rio Ródano.
Ainda que não faça uso do conceito de redes, Dietler, no livro “Archaeologies of
Colonialism” (2010), se propõe a pensar no contato entre duas regiões: a
desembocadura do rio Ródano e o vale deste rio mais ao interior. Mais próximo dos
conceitos de “middle ground” e “colonial encounters”, o autor busca discutir o consumo
e as trocas comerciais e culturais entre vários atores sociais que se relacionaram com a
região ao longo dos séculos VII a.C. e I d.C. A proposta de Dietler, de pensar o contato
4 Um dos elementos que nossa pesquisa pretende apresentar de novidade ao debate é pensar o rio como
um importante espaço de conectividade.
12
entre duas regiões ao longo do tempo e mediadas por um rio, parece-nos bastante
interessante.
Finalizaremos essa parte do texto atentando para um conceito ainda em
construção, mas já largamente utilizado por historiadores da Antiguidade: a integração.
Todos os modelos teóricos anteriores pretendem, ao fim e ao cabo, tratar do fenômeno
da integração que se deu em algumas regiões do globo. Decorrente do fenômeno
moderno de integração global, ou globalização, pudemos perceber que, seja por
exclusividade de Roma (Romanização), seja porque o mar Mediterrâneo possui
microecologias que dependem umas das outras para existir (HORDEN & POURCEL,
2000), desenvolve-se um fenômeno paralelo em partes do globo, principalmente a partir
do I milênio a.C. O professor Norberto Guarinello propõe pensar este fenômeno
estudando a articulação de fronteiras internas de determinadas sociedades com
fronteiras externas a elas, decorrentes de transformações sistêmicas. Dessa maneira,
“o processo de integração submete, ao longo do tempo e em escala
cumulativa, as fronteiras locais e a vida local a fronteiras mais amplas, a
uma unidade mais extensa, a um sistema de diferenças em escala maior, que
lhes oferece, de fora, suas próprias identidades e seu sentido.”
(GUARINELLO, 2013: 55).
Submetamos nossas considerações acerca das fontes que descrevem as relações
de Gades com as várias redes que se apresentam. Sua fundação próxima da
desembocadura do rio Guadalquivir é fruto da construção da rede fenícia que se
estabelece em princípios do I milênio a.C. Assim sendo, as comunidades locais,
majoritariamente aquelas habitantes do vale do Guadalquivir, têm suas fronteiras
internas modificadas pelo surgimento e crescimento de uma rede mediterrânica que
coloca em contato cada vez mais intenso duas regiões espacialmente distantes. Gades
surge então como um nó importante para essa rede que integra os povos que habitam as
margens deste mar.
Por volta do final do milênio, as fronteiras internas da cidade passam por uma
série de transformações: surgimento de uma considerável elite equestre5; problemas
políticos locais que são desdobramentos da participação em assuntos políticos externos;
5 “Eu tenho ouvido que em um dos nossos recentes recenseamentos, havia 500 homens gaditanos
classificados como Equestres” (ESTRABÃO, 3.5.3)
13
recepção de estrangeiros para frequentar o mais importante templo da região; etc. À
medida que Roma cria fronteiras mais amplas, transformando e unificando a rede
mediterrânica, Gades é afetada, e, em escala regional, também é afetado o contato entre
essa cidade e o interior do continente.
Podemos concluir afirmando que o estudo desta cidade, a partir do referencial
teórico da teoria das redes e da integração, é-nos muito útil e frutífero. Primeiramente,
pois nos afasta das abordagens que fazem juízo de valor acerca da presença deste ou
daquele povo como agente histórico. Em segundo, pois nos permite ter uma visão dupla
de um mesmo processo: localmente, como os habitantes de determinadas regiões
reagem a transformações que lhes são externas, e, de maneira inversa, como as
mudanças em determinados nós de redes em plena modificação funcionam como
evidências da formação de um processo de integração (quase) em escala global –
oikouméne.
Bibliografia
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