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UM QUARTO DE SÉCULO DE INFLUÊNCIA NEOCONSERVADORA NAS POLÍTICAS EXTERNA E DE SEGURANÇA NACIONAL DOS ESTADOS UNIDOS 1 Paulo Kramer Membro do Centro de Pesquisas Estratégicas “Paulino Soares de Sousa”, da UFJF. Pesquisador do Instituto de Ciência Política, Universidade de Brasília, Ipol/UnB. Assessor Parlamentar. [email protected] 1. Introdução O presente ensaio analisa e discute acontecimentos e atores, propostas e políticas pertencentes um período recente e crítico das políticas externa e de segurança nacional dos Estados Unidos, um período situado entre o final do longo envolvimento militar americano no Vietnã, nos anos 70, e os debates dos anos 90 sobre a redefinição do papel internacional do país no pós-Guerra Fria – antes do começo da administração do presidente George Walker Bush (e, portanto, dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, da campanha 1 (*) Trabalho apresentado no Fourth Colloquium on American Studies sobre o tema: The Role of the U.S. after the Cold war: International Security”. O autor agradece a Vera Galante, da Embaixada dos Estados Unidos, por seu apoio e, sobretudo, sua paciência. O autor expressa os seus agradecimentos, também, aos professores John Owen IV, da Universidade da Virgínia, e Richard Immerman, da Universidade de Temple, que dirigiram os trabalhos do colóquio, e também aos colegas naquele evento, por compartilharem com ele seu entusiasmo, seu saber e sua sabedoria. Um último, mas não menos importante, ‘muito obrigado’ para as bibliotecárias do Information Resource Center de Brasília e da Biblioteca “Acadêmico Luiz Viana Filho”, do Senado Federal. Os ensaios apresentados no Fourth Colloquium on American Studies serão publicados em coletânea pela PUC – Minas Gerais.

UM QUARTO DE SÉCULO DE INFLUÊNCIA NEOCONSERVADORA …ecsbdefesa.com.br/defesa/fts/UQSI.pdf · 2008-08-10 · 2. Containment: duradoura diretriz realista da política americana na

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UM QUARTO DE SÉCULO DE INFLUÊNCIA NEOCONSERVADORA NAS POLÍTICAS EXTERNA E DE SEGURANÇA NACIONAL

DOS ESTADOS UNIDOS1

Paulo Kramer Membro do Centro de Pesquisas Estratégicas “Paulino

Soares de Sousa”, da UFJF. Pesquisador do Instituto de Ciência Política, Universidade de

Brasília, Ipol/UnB. Assessor Parlamentar.

[email protected]

1. Introdução

O presente ensaio analisa e discute acontecimentos e atores, propostas e políticas pertencentes um período recente e crítico das políticas externa e de segurança nacional dos Estados Unidos, um período situado entre o final do longo envolvimento militar americano no Vietnã, nos anos 70, e os debates dos anos 90 sobre a redefinição do papel internacional do país no pós-Guerra Fria – antes do começo da administração do presidente George Walker Bush (e, portanto, dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, da campanha

1 (*) Trabalho apresentado no Fourth Colloquium on American Studies sobre o tema: “The Role of the U.S. after the Cold war: International Security”. O autor agradece a Vera Galante, da Embaixada dos Estados Unidos, por seu apoio e, sobretudo, sua paciência. O autor expressa os seus agradecimentos, também, aos professores John Owen IV, da Universidade da Virgínia, e Richard Immerman, da Universidade de Temple, que dirigiram os trabalhos do colóquio, e também aos colegas naquele evento, por compartilharem com ele seu entusiasmo, seu saber e sua sabedoria. Um último, mas não menos importante, ‘muito obrigado’ para as bibliotecárias do Information Resource Center de Brasília e da Biblioteca “Acadêmico Luiz Viana Filho”, do Senado Federal. Os ensaios apresentados no Fourth Colloquium on American Studies serão publicados em coletânea pela PUC – Minas Gerais.

militar contra o terror islâmico no Afeganistão e da intervenção militar no Iraque em 2003).

Este estudo procura lançar luz sobre alguns personagens, idéias, decisões e situações na expectativa de oferecer ao leitor brasileiro atento à importância da presença dos Estados Unidos no cenário mundial – pertença ele ou não ao circuito acadêmico de Ciência Política/Relações Internacionais – uma perspectiva para a compreensão das continuidades e descontinuidades significativas dessa política no período em exame e também para uma apreciação ainda que ligeira e aproximada, de seus desdobramentos mais recentes e polêmicos.

Em outras palavras, se não chega com o poderio militar americano até Bagdá, pelo menos ajuda a entender melhor certos caminhos que conduziram a esse desfecho.

Para tanto, o texto busca responder às seguintes questões, que também servem para estruturar seus focos analíticos:

- Quais foram as características definidoras do containment, estratégia de contenção do comunismo, por meios militares e não-militares, a qual norteou as políticas externa e de segurança nacional dos Estados Unidos no período da Guerra Fria – após a Segunda Guerra Mundial até o colapso da União Soviética, no final do século passado?

- Como essa estratégia, pioneiramente formulada pelo diplomata americano George Kennan em 1946/47 e ampliada pela administração Harry S. Truman em 1947, se relacionava com o legado teórico da perspectiva realista de análise das relações internacionais?

- Qual foi a contribuição do intelectual e diplomata Henry Kissinger, quando assessor de Segurança Nacional e secretário de Estado em duas administrações republicanas (Richard Nixon e Gerald Ford), nas quais projetou-se como arquiteto e negociador da détente – ou distensão das relações com a hoje extinta União Soviética – ao ‘prolongamento atualizado’ do containment, entre o final dos anos 60 e a primeira metade dos 70?

- Por que e como um grupo de intelectuais direitistas conhecidos como neoconservadores passou a criticar e desafiar as propostas, o modus operandi e os resultados da détente kissingeriana, de meados da década de 70 em diante?

- Quem eram/são esses neoconservadores? Em que se diferenciaram/diferenciam de outras correntes da direita americana política e intelectualmente influentes na formulação e na condução das políticas externa e de segurança nacional dos Estados Unidos? E até que ponto tiveram êxito em suas propostas para o redirecionamento de tais políticas durante as administrações republicanas dos anos 80 ao início dos 90 (Ronald Reagan e George Herbert Walker Bush), quando ainda lutavam para refinar, difundir e, sobretudo, legitimar as formulas que distinguiram o perfil externo da segunda presidência Bush (mudança de regimes ditatoriais possivelmente possuidores de armas de destruição em massa e patrocinadores do terrorismo; nova estratégia de ataques preventivos em substituição à doutrina da dissuasão associada ao containment; propagação das idéias e instituições da democracia liberal em outras regiões do planeta, sobretudo no Oriente Médio)?

2. Containment: duradoura diretriz realista da política americana na Guerra Fria

Como observa o historiador das políticas externa e de segurança nacional dos Estados Unidos no século XX John Lewis Gaddis, a contenção (contaiment) da ameaça soviética foi o grande molde doutrinário, o paradigma geral em torno do qual giraram as diferentes interpretações do interesse nacional americano defendidas por sucessivas administrações presidenciais ao longo de quatro décadas e meia de Guerra Fria. (1)

A formulação pioneira e canônica dessa doutrina coube a George Kennan (1904-2005), que, enquanto servia como diplomata na Embaixada dos Estados Unidos em Moscou, redigiu o famoso “longo telegrama”, de 22 de fevereiro de 1946, no qual procurou esclarecer seus superiores em Washington acerca das motivações do regime comunista quanto à Europa do imediato pós-Segunda Guerra Mundial e suas implicações para o Ocidente, sob a liderança americana. No entender de Kennan, o stalinismo herdara e acentuara os velhos traços de insegurança e expansionismo característicos da Rússia dos czares.

No longo telegrama [...], Kennan sublinhou que a mola-mestra da política externa soviética eram as “básicas necessidades internas russas que preexistiam à recente guerra e continuam a existir hoje. Ao fundo da neurótica visão do Kremlin sobre os assuntos mundiais encontra-se o tradicional e instintivo senso de insegurança russo”. O dogma marxista – “um disfarce de respeitabilidade moral e intelectual” – apenas se soma à insegurança e o imperialismo tradicionais russos, tornando-o mais perigoso e insidioso do que nunca. (2)

Um ano depois, com Kennan já de volta a Foggy Bottom, na chefia do Policy Planning Staff do Departamento de Estado, uma versão resumida do telegrama foi publicada em Foreign Affairs, sob o pseudônimo X. (3) O artigo popularizou a visão de uma tirania soviética oportunista, porém suficientemente cautelosa para evitar o risco de nova guerra, passível, portanto, de ser contida em suas tentativas de ultrapassar sua esfera de influência na Europa centro-oriental por uma firme, flexível e sóbria oposição dos Estados Unidos e seus aliados. Kennan nutria a expectativa de que o regime soviético, assim confrontado, viesse futuramente a entrar em colapso, vítima de suas deficiências internas (ilegitimidade política e incompetência econômica).

A pressão soviética contra as instituições livres do mundo ocidental é algo que pode ser contido pela [...] vigilante aplicação de contraforça numa série de pontos geográficos e políticos em constante deslocamento, correspondendo às mudanças e manobras da política soviética, todavia impermeáveis a lisonjas e argumentos. [...] [A debilidade da sociedade soviética] por si mesma asseguraria a adoção pelos Estados Unidos, com razoável confiança, de uma firme política de contenção destinada a confrontar os russos com inalterável contraforça em todos os pontos onde eles mostrassem sinais de ingerência nos interesses de um mundo pacífico e estável. (4)

A ‘estréia’ do containment como diretriz efetiva das políticas externa de segurança nacional dos Estados Unidos se deu naquele mesmo ano de 1947, quando o então presidente Harry S. Truman (1884-1972) solicitou ao Congresso e dele obteve recursos de assistência econômica e militar à Grécia e à Turquia que então enfrentavam insurreições comunistas. A chamada Doutrina Truman logo inspiraria o Plano Marshall (programa de recuperação econômica da Europa ocidental orçado em 17 bilhões de dólares) e, em 1949, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan, ou, em inglês Nato), aliança militar liderada pelos Estados Unidos e integrada pela Europa não-comunista e o Canadá.

Kennan não tardaria a deplorar a cristalização do containment, que concebera como instrumento político-diplomático flexível, em uma rígida estrutura militarizada, o que, a seu ver, viria a alimentar a agressividade soviética, perenizar a divisão da Europa em Leste e Oeste e enfraquecer a estabilidade mundial.

Em sua (frustrada) aspiração a um futuro neutro e desmilitarizado para o continente europeu, livre de uma rivalidade bipolar Estados Unidos/União Soviética inerentemente instável, Kennan evidenciou a preferência por “uma política de equilíbrio de poderes”, (5) um dos conceitos definidores da perspectiva realista de análise das relações internacionais, de acordo com o qual a paz, ou ao menos a estabilidade, entre as nações decorre não do primado da ética e do direito, mas da sua capacidade de se contrabalançarem mutuamente em termos de poderio militante e alianças diplomáticas.

Segundo Michael Joseph Smith, os outros traços característicos do realismo são: (a) uma visão negativa da natureza humana, marcada por universal tendência dos indivíduos e grupos a acumularem poder para o exercício da dominação entre si (noção central nas formulações pioneiras autores clássicos do realismo como Tucídides [circa 460 – ca. 404], em sua História da Guerra do Peloponeso; Nicolau Maquiavel [1469-1527], em O príncipe; e Thomas Hobbes [1588-1679], em Leviatã; (b) a centralidade dos Estados nacionais soberanos como atores por excelência das relações internacionais; (c) a inevitabilidade do conflito de interesses de poder entre esses Estados nacionais (e as suas precárias possibilidades de cooperação), sendo estes o que são e sendo a natureza humana o que é, segundo os realistas; e (d) a suscetibilidade à análise racional desses conflitos de “interesses definidos em termos de poder”, na frase do principal pensador realista das relações internacionais do século XX, o americano nascido na Alemanha Hans Morgenthau (1904-1980), em sua obra capital Politcs among nations, com a conseqüente expectativa de que a condução da política exterior fique a cargo de diplomatas tarimbados e servidores públicos eficazes, tanto quanto possível ‘blindados’ em relação às flutuações e nacionais das massas e às pressões políticas ‘paroquiais’ e imediatistas de grupos de interesses domésticos. (6)

Neste ponto, vale salientar que a profissão de fé realista de Kennan inscrevia-se no contexto polêmico das reações de setores da elite burocrática e acadêmica americana ao fracasso de projetos de reconstrução da ordem internacional pós-Primeira Guerra Mundial no marco do idealismo. A perspectiva idealista, estribada em um receituário ético-jurídico para a paz mundial teve um Woodrow Wilson (1856-1924), presidente democrata dos

Estados Unidos de 1913 a 1921 e ganhador do Prêmio Nobel da Paz de 1920, seu mais famoso representante. (7), Meses antes do final do conflito de 1914-1918, ele anunciou ao Congresso americano sua Declaração dos Quatorze Pontos, como contribuição a um futuro tratado de paz. Chegando à França em dezembro de 1918 para a conferência de paz em Paris, seu projeto passou imediatamente a chocar-se com os interesses de vencedores e vencidos. O fulcro institucional da proposta wilsoniana consistia na Sociedade (ou Liga) das Nações, organismo internacional de segurança coletiva e resolução de conflitos por meios pacíficos.

O veterano diplomata americano Stefan Halper e seu colega britânico Jonathan Clarke oferecem este prático resumo do projeto idealista wilsoniano:

Wilson advogou uma série de princípios como base para uma nova ordem mundial. Embora oito desses pontos se relacionassem a especificidades políticas e geográficas das negociações de paz [...], os outros seis traduziam as crenças do wilsonianismo, a saber: autodeterminação das populações coloniais, concerto duradouro de nações votado a promover segurança coletiva, acordos de paz abertos [transparentes para a opinião pública], liberdade de navegação marítima, remoção das barreiras econômicas ao comércio e maciça redução nos níveis de armamentos. Embora muitos dos objetivos de Wilson tenham sido comprometidos na negociação subseqüente, o décimo quarto ponto, relativo a uma assembléia de nações com o propósito de segurança coletiva tornou-se a base para o Pacto da Liga das Nações, inaugurado no Tratado de Versalhes em Paris, a 28 de junho de 1919, pelos líderes da Grã-Bretanha, da Itália, da França e dos Estados Unidos da América. A visão de Wilson de uma ordem de pós-guerra ficou conhecida como a “tríade wilsoniana”, compreendendo os três princípios basilares de paz, democracia e livre-comércio. (8)

Em que pese a decepção de Kennan com o desvirtuamento de sua fórmula político-diplomática original em progressiva militarização – a ponto de o containment, dos anos 50 em diante, se haver tornado praticamente sinônimo de dissuasão nuclear –, o fato foi que o realismo de base da sua concepção contribuiu para uma estabilidade duradoura que o idealismo do entreguerras jamais lograra produzir.

3. De Kennan a Kissinger: a détente como nova etapa do containment

Cada vez mais crítico acerca dos rumos tomados pelas políticas externa e de segurança nacional dos Estados Unidos, da administração republicana, de 1953 a 1961, de Dwight D. Eisenhower (1890-1969) –com seu poderoso secretário de Estado, John Foster Dulles (1888-1959) – em diante, Kennan acabou abandonando a diplomacia pela academia. (9) Em sua longa associação com o Instituto de Estudos dos Avançados da Universidade de Princeton, onde ingressou em 1950, além de haver publicado dois celebrados volumes de memórias, distinguiu-se como prolífico pesquisador de história diplomática, analisando os antecedentes da Primeira Guerra Mundial, sem, porém, descuidar-se dos problemas contemporâneos das relações internacionais e da política exterior. (10) Se, em sua última década de serviço diplomático, ainda apoiou a intervenção americana na Coréia (1950-1953),

Kennam se oporia vigorosamente ao envolvimento dos Estados Unidos no Vietnã, nos anos 60, por considerá-lo irrelevante ao interesse nacional, nocivo à legitimidade do governo diante da opinião pública doméstica, desastroso para a imagem mundial do país e as suas relações tanto com os aliados ocidentais quanto com o rival soviético. (11)

Base conceitual do chamado consenso bipartidário em torno da política externa durante duas décadas, o containment foi abalado pela ruptura desse consenso na esteira da maré montante de manifestações de protesto contra a guerra no Vietnã, as quais, partindo dos campi universitários, difundiram-se pelos meios de comunicação de massa até exercer um profundo e duradouro impacto na opinião pública dos Estados Unidos.

A essa difícil situação doméstica vinham se juntar os efeitos de transformações estruturais no sistema internacional que, em seu conjunto, apontavam para um declínio, se não absoluto, pelo menos relativo, da até então incontestável primazia estratégica, política e econômica dos Estados Unidos: forte recuperação de uma Europa e de um Japão das devastações da Segunda Guerra Mundial; escalada soviética rumo à paridade nuclear com os arsenais americanos; afirmação da China continental como ‘meca alternativa’ do comunismo mundial; avanços da descolonização na África e na Ásia; crise política e econômica na América Latina simbolizada pelo regime pró-comunista de Fidel Castro em Cuba.

Esses eram os tremendos desafios com que se defrontou o republicano Richard Nixon (1913-1994) ao assumir a presidência dos Estados Unidos em 1969 (Seria reconduzido no pleito do seguinte, mas forçado a renunciar em 1974 a fim de escapar ao seu iminente impedimento pelo Congresso, em conseqüência do escândalo de Watergate.)

Seu conselheiro de Segurança Nacional no primeiro mandato e secretário de Estado no segundo, Henry Kissinger, alemão naturalizado americano (nascido em 1923), descreveu trajetória inversa à de Kennan – da academia ao núcleo decisório da política externa –, passando à história contemporânea como arquiteto e negociador da détente com a União Soviética e introdutor da China comunista na comunidade internacional.

Antes de chegar lá, Kissinger, simultaneamente à carreira de pesquisador e professor de Governo em Harvard, havia prestado consultoria sobre defesa e controle de armamentos às três administrações anteriores (a do republicano Eisenhower e as dos democratas Kennedy e Johnson, estas últimas responsáveis pela escalada da presença americana no Vietnã).

Kissinger estabelecera suas credenciais como pensador realista em 1957, com a publicação de influente livro sobre a reconstrução da ordem européia depois do cataclisma da Revolução Francesa e das guerras napoleônicas. Os dois heróis dessa narrativa eram dois habilidosos diplomatas: o ministro austríaco das Relações Exteriores, príncipe de Metternich (por extenso, Klemens Wenzel Lothar von Metternich-Winneburg, 1773-1859), e seu colega britânico Robert Stewart, visconde de Castlereagh (1769-1822); no Congresso de Viena (1814-1815), que redesenhou o mapa da Europa, lideraram a estruturação de um sistema de equilíbrio de poder responsável por quase um século de paz no continente, encerrado em 1914, com a Primeira Guerra Mundial. Em Nuclear weapons and foreign policy (também de 1957),

Kissinger defendeu o emprego combinado de armas nucleares táticas e forças convencionais na estratégia de dissuasão. E, em The necessity for choice, reformulou algumas de suas propostas restringindo a forças convencionais a resposta da Otan a um primeiro ataque soviético, mas alertando para crescimento do hiato (missile gap) entre os arsenais de mísseis de alcance estratégico da União Soviética e dos Estados Unidos, em prejuízo do segundo. (12)

A estratégia exterior de Nixon-Kissinger poderia ser definida como tentativa ambiciosa e complexa para adaptar o containment à relativa redução de recursos de poder à disposição da superpotência americana, onde à détente coube lugar fundamental, mas de forma alguma exclusivo. O próprio Kissinger assim descreveu as tarefas globais que desafiavam a administração, no terceiro volume de suas memórias:

(1) sair do Vietnã em condições honrosas; (2) confirmar nossa discordância [Casa Branca x oposição congressual democrata] ao movimento de protesto para a Indochina; (3) assumir posição de destaque na questão da paz através de uma estratégia que mostrasse ao povo americano que, embora continuássemos na Guerra Fria, faríamos o máximo para reduzir seus riscos e, gradativamente sobrepujá-la; (4) alargar o tabuleiro diplomático pela inclusão da China no sistema internacional; (5) reforçar alianças; (6) e, desta plataforma, assumir a ofensiva diplomática, especialmente no Oriente Médio. (13)

Em apoio a essa estratégia, Nixon e Kissinger procuraram redistribuir o ônus do containment, a fim de dimensioná-lo mais realisticamente às capacidades americanas na virada da década de 60 para a de 70, insistindo no rateio das despesas militares com os aliados da Europa ocidental, triangulando com a China e prestigiando potências autocomunistas do mundo em desenvolvimento, como o regime do Xá Reza Pahlavi no Irã.

Para avançar na negociação com os soviéticos, seu instrumento capital foi a linkage (vinculação), que condicionava concessões que eles valorizavam em determinadas áreas a contrapartidas que os Estados Unidos desejavam em outras. “Progressos nas questões do interesse de Moscou tinham que coincidir com progressos nas áreas do nosso interesse”.

Por isso, insistíamos que as negociações individuais, como por exemplo, o controle de armas, tivessem lugar num clima político soviético de contenção principalmente em relação a regiões por muito tempo problemáticas, tais como Berlim, Oriente Médio e Indochina. Duas semanas após sua posse, em 4 de fevereiro de 1969, Nixon enviou uma carta com esse objetivo aos ministros, no NSC [National Security Council]: “Estou convencido de que as grandes questões estão fundamentalmente interrelacionadas. Não quero dizer com isso que devamos estabelecer laços artificiais entre elementos específicos de uma ou outra questão, ou entre os passos táticos que possamos escolher. Mas, acredito que as crises ou confrontações em um lugar e a cooperação em outro não podem ser sustentadas simultaneamente.

“Creio que os líderes soviéticos têm que entender que não podem esperar colher os frutos da cooperação em uma área, enquanto buscam vantagem com atenção ou a confrontação em outra. Tais atitudes envolvem o perigo de os soviéticos usarem as conversações sobre armamentos como válvula de segurança para a intransigência alhures.” (14)

Passados pouco mais de três anos, ao final do primeiro mandato, os resultados dessa visão traduziriam amplo reposicionamento dos Estados Unidos no cenário mundial. Nixon, o anticomunista e conservador linha-dura

que havia pautado sua carreira, na Câmara dos Representantes (1947-1951), no Senado (1951-1953) e na vice-presidência da administração Eisenhower (1953-1961), por palavras e atitudes abominadas pela esquerda e mesmo pela centro-esquerda – a exemplo da perseguição, que ele liderara, na comissão de atividades não-americanas da Câmara, ao antigo funcionário do Departamento de Estado Alger Hiss por ligações com o Partido Comunista dos Estados Unidos –, esse mesmo Nixon agora visitava a República Popular da China (em fevereiro de 1972) e apertava a mão do então presidente e velho líder revolucionário Mao Tsé-tung (1893-1976, ou Mao Zedong, depois de reformado sistema de transliteração em 1979), para, em maio do mesmo ano, negociar com o maior rival dos chineses no mundo comunista, Leonid Brejnev, secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética, um inédito pacote de controle de armamentos nucleares ofensivos e sistemas defensivos anti-mísseis. O Salt-1, como ficariam conhecidas as Conversações para Limitação de Armamentos Estratégicos (Strategic Arms Limitation Talks), incluiu o congelamento temporário da instalação de mísseis, dotados de ogivas nucleares, com capacidade para atingir os territórios americano e soviético e também o abandono, pelos dois lados, de seus ABM (antiballistic missiles), na expectativa de que a ameaça de destruição mutuamente assegurada (MAD, na sugestiva sigla em inglês), pela ausência de ‘escudos’ contra primeiro ataque (first strike) nuclear e subseqüente retaliação, dissuadiria ambas as partes de embarcarem em uma guerra total.

Os entendimentos abriram caminho afinal para a assinatura, em Paris, da paz com o Vietnã do Norte, em janeiro de 1973, pelo que Kissinger receberia o prêmio Nobel da Paz daquele ano. (O negociador norte-victnamita Le Duc Tho, que compartilhou a láurea, recusou-se, porém, a recebê-la.)

Mas, apesar da cobertura favorável da imprensa internacional e do apoio doméstico da maioria da opinião pública consultada nas pesquisas da época, a diplomacia de Nixon/Kissinger, simbolizada na détente, encarou – e continuaria encarando até bem depois da saída de ambos do governo – considerável oposição tanto à esquerda quanto, como tentarei mostrar mais adiante, à direita do espectro político americano.

Esses dois segmentos políticos alternavam reações de incredulidade e indignação.

A interpretação kissingeriana da desorientada frustração dos liberais de centro-esquerda democratas merece ser aqui brevemente recapitulada. Ela surgiu poucos anos depois de um grupo de seus expoentes melhores e mais brilhantes, na expressão que dá título ao investigante livro de jornalismo histórico de David Halberstam, (15) tendo à frente o secretário de Defesa das administrações Kennedy e Johnson, Robert McNamara, haver empurrado o país ao atoleiro sangrento do Vietnã e, de quebra, implodido o consenso bipartidário em política externa. Transtornada pelos protestos anti-guerra que, vindo dos campi universitários, se misturavam a explosões violentas de ódio racial nas grandes cidades para formar um caldo de cultura, ou, mais corretamente, de contracultura, antagônico a tudo quanto dissesse respeito aos valores tradicionais da sociedade americana e suas instituições (aí incluídos, claro, o regime econômico de concorrência e a política externa), essa elite mostrava-se incapaz, naquele momento, de articular uma alternativa à agenda distensionista de Nixon/Kissinger, refugiando-se então, em uma retórica

moralista que mal disfarçava a surpresa e despeito daqueles liberais com os avanços computados por sua bête-noire, o direitista Richard Nixon. (16)

Friamente convencido de que o melhor meio de isolar os liberais era, de fato, apossar-se de seu programa, Nixon não resistiu e começou a apregoar que era ele – o desprezado e ostensivamente reacionário Guerreiro do Frio – quem estava, na verdade, executando a maior parte da agenda, liberal, através de negociações com o adversário. [...] Os liberais, que vinham defendendo maiores contatos Leste/Oeste, controle de armas e incremento do comércio, ao longo de uma década, deveriam apoiar essas políticas, já que estavam, então, sendo implementadas. Talvez com outro presidente, que não Richard Nixon, tivessem endossado a substância de nossas políticas, a menos da abordagem geopolítica [para Kissinger, sinônimo de realista] com a qual as justificávamos. Mas, Nixon era considerado maldito para o grupo liberal por mais de duas décadas; a aversão era grande demais. (17)

Prosseguindo no mesmo fôlego, o ex-secretário de Estado queixou-se da incoerência deliberada com que os liberais procuravam deslegitimar sua política, não hesitando em subverter a noção de linkage para esse fim.

A primeira linha de defesa dos liberais era composta de suas críticas padronizadas. A política de Nixon, argumentavam eles, não tinha alcance suficiente e era apenas um subterfúgio para continuar a Guerra Fria. Contudo, em vista da frente ampla em que Nixon estava atuando, esse argumento só tinha validade para os figadais inimigos do presidente.

No decorrer de 1972, o ataque dos liberais se desviou para uma direção inteiramente nova, que permitiu que eles mantivessem suas tradicionais críticas morais. Embora viessem até então insistindo em que as trocas Leste/Oeste, o controle de armas e o relacionamento cultural eram vitais para amenizar o conflito entre as superpotências e, portanto, deveriam ser perseguidos por seus próprios méritos, os liberais agora declaravam guerra ao sistema interno soviético. Nem um pouco embaraçados por sua rejeição ao conceito de ligação entre si das questões de política externa, eles, por pura vingança, ressuscitavam a ligação, defendendo que todos os acordos deveriam ter relação com alterações nas práticas domésticas soviéticas.

Mudanças nos editoriais do New York Times espelhavam essa metamorfose. (18)

Explorarei este último ponto daqui a pouco, pois ele assinalou a inflexão direitista de uma parcela influente de intelectuais e operadores políticos que, até algum tempo antes, atacavam a détente a partir das trincheiras democratas e depois abraçaram a posição neoconservadora.

Na verdade, Kissinger, no terceiro volume de suas Memórias, praticamente subsumiu as críticas de direita contra sua política ao neoconservadorismo.

Em meio a uma clima de opinião e um ambiente político que se iam tornando cada vez mais adversos à administração e ao próprio Nixon com a eclosão do escândalo Watergate, Kissinger manobrava para garantir o apoio da direita à détente, enfatizando a continuidade desta em relação ao containment, doutrina articuladora da posição dos Estados Unidos frente à União Soviética desde o início da Guerra Fria. O que havia mudado fora o modo de perseguir o mesmo objetivo dentro de um contexto internacional em profunda transformação. Até mesmo a aposta fundamental que Kennan fizera no debilitamento a longo prazo de um regime soviético devidamente contido em suas pretensões expansionistas continuava presente. “A equipe de Nixon via o conflito com Moscou como uma contenda geopolítica de longo prazo, na qual, com a ajuda dos nossos aliados, desgastaríamos o sistema soviético. Os

neoconservadores advogavam que era possível superar o comunismo com uma explosão de elã ideológico.” (19)

Na próxima seção, buscarei discutir as motivações e o impacto da jornada da esquerda até a direita empreendida pelos neoconservadores. Por ora, contento-me em ilustrar rapidamente a gênese de sua aversão à détente focalizando o papel desempenhado à época por um intelectual que viria a se tornar um dos mais influentes articuladores da visão neoconservadora sobre política externa e segurança nacional: Richard Perle, então assessor do senador democrata, pelo estado de Washington, Henry (apelidado Scoop) Jackson (1912-1983) e mais tarde secretário assistente de Defesa na administração Reagan e também coordenador do Defense Policy Board no primeiro mandato de George W. Bush.

Seu antigo chefe, o senador Jackson, era um democrata liberal cujo firme anticomunismo fundamentava seu apoio ao fortalecimento do poderio militar dos Estados Unidos. Kissinger compartilhava o generalizado respeito pelos conhecimentos de Jackson sobre questões de defesa em que se havia especializado durante sua longa permanência no Senado, desde 1952. “Jackson era indispensável aliado na estafante e interminável batalha pelo resgate do orçamento da defesa das depredações do [C]ongresso – uma posição extremamente corajosa, em função da tendência predominante dentro do [P]artido [D]emocrata dos anos 70.” (20)

Mas, fosse por razões ditadas pela competição político-partidária (segundo Kissinger, Jackson ambicionava concorrer à presidência como candidato democrata na eleição de 1976), fosse pela arraigada sensibilidade anticomunista do velho parlamentar Jackson se afastaria cada vez mais da estratégia de Kissinger até se constituir no mais poderoso adversário da détente sob a administração Nixon e, depois da renúncia deste, durante o mandato-tampão exercido pelo seu ex-vice, Gerald Ford (1974-1977). (21)

O fervor ideológico de Perle deu uma contribuição expressiva para esse afastamento transformado em confronto. O ataque de Jackson/Perle à détente se desdobrou em duas linhas: de uma parte, a exploração dos temores de que o Salt-1 consolidasse a superioridade dos arsenais nucleares soviéticos em relação aos Estados Unidos; de outra, a denúncia de violações aos direitos humanos de opositores do regime comunista, combinada com a exigência de um condicionamento de concessões comerciais de interesse do Kremlin ao fim das restrições soviéticas à imigração de cidadãos judeus para Israel, em uma manobra de apropriação retórica da linkage, redirecionada contra o seu próprio criador.

A repercussão alcançada por essas criticas sem dúvida agravou as dificuldades de Kissinger e das duas administrações em que serviu na ‘venda’ de uma nova concepção de política externa por si mesma complexa, de vez que importava nada menos que na substituição da rígida bipolaridade de duas décadas de Guerra Fria por um sistema multipolar de equilíbrio de poder. Para tanto, caberia aos Estados Unidos minimizar o declínio relativo de seu poder redividindo os custos e responsabilidades pelo containment e, ao mesmo tempo, sedimentando a estrutura de paz sobre um esquema de incentivos e punições entre áreas aparentemente desconexas da política internacional. A essa dificuldade conceitual acrescia-se, ainda, à repulsa moral motivada pelo

que Kissinger atribuía a um teimoso resíduo de idealismo wilsonianista na cultura política americana, avesso a negociações que, de tão amplas e freqüentes, poderiam indicar um indejável “grau de interesse com o adversário comunista.” (22)

Sob o fogo cruzado da política doméstica, a détente acabou sepultada na segunda metade da década de 70. Entre seus coveiros, coube aos neoconservadores lugar destaque. Continuariam a travar sucessivas batalhas ideológicas ainda por muito tempo, até a definitiva substituição do contanment por uma estratégia de intervencionismo liberal-democrático, unilateral e preemptiva, fruto, em parte, de profunda remodelagem do discurso e da substância daquele velho wilsonianismo.

Antes desse clímax, contudo, percorreram etapas intermediárias (recrudescimento e epílogo da Guerra Fria, seguidos de controvérsias sobre o novo papel mundial da superpotência americana) que serão tema da próxima seção.

4. Neoconservadores: do colapso da détente ao fim da Guerra Fria – e além

Ao lamentar o naufrágio do seu projeto distensionista, Kissinger reservou palavras especialmente amargas para os críticos neoconservadores.

O que transformou a inquietação dos conservadores [com abertura de negociações entre Nixon e a liderança soviética] em desabrida oposição foi a emergência dos chamados neoconservadores. O fato de eles reivindicarem mesmo parte do rótulo de conservadores era algo anômalo, pois, quase sem exceção, a maioria dos seus principais representantes tinha começado no lado liberal, quase todos na ala radical.

[...]

Com o início do verão de 1972 e estendendo-se pelo período de um ano, esse grupo se desiludiu com o rumo que o liberalismo americano estava tomando. Eles consideraram sem graça o radicalismo e o estilo da convenção democrata que indicou George McGovern [nascido em 1922, à época senador por Dakota do Sul e expoente da ala esquerda do Partido Democrata, derrotada por Nixon na eleição que o reconduziu à Casa Branca], em 1972. E desde a invasão da Tchecoslováquia [em 1968], desencantaram-se com a URSS. A Guerra do Oriente Médio, em 1973 [iniciada com o ataque de surpresa egípcio a Israel durante o feriado judaico do Dia do Perdão; daí ter ficado conhecida como a Guerra do Yom Kippur], completou sua conversão para as realidades geopolíticas. Interpretaram aquela guerra como uma conspiração soviético-árabe contra Israel e as democracias industriais e concluíram que a resistência ao desafio estava na oposição à détente. (23)

E, mais adiante, tentando explicar a predileção neoconservadora pelo rígido anticomunismo do então candidato republicano à presidência Ronald Reagan, assinalou:

Quando os neoconservadores se transferiram para a direita radical, levaram em suas malas a visceral antipatia por Nixon, mesmo que, tecnicamente, estivessem agora do mesmo lado.

[...]

Com o passar do tempo, ficou claro que as diferenças eram mais profundas. De um lado, havia um elemento de rivalidade pessoal inseparável da política. Muitos dos convertidos ao

conservantismo tinham sido ativistas na política democrata, ou seja, não somente procuravam desenvolver idéias, mas também aspiravam implementá-las no mundo político. Recém-chegados às plagas conservadoras, precisavam de espaço para suas ambições. Nada era mais natural do que elevar as diferenças táticas a uma questão de princípios que, portanto, necessitava da troca do grupo responsável pela existente política externa americana. (24)

Descontada a compreensível dose de mágoa retrospectiva, as ruminações de Kissinger acertavam quanto à gênese do neoconservadorismo americano.

É impossível, nos limites de um ensaio concentrado em certos aspectos de política externa e de segurança nacional fazer justiça à riqueza e à complexidade dessa “persuasão” ou “tendência”, como a classificam, respectivamente, duas de suas expressões fundacionais: Irving Kristol (nascido em 1920) e Norman Podhoretz (nascido em 1930), de preferência a movimento, que, na opinião do segundo, evoca uma idéia “’de organização central’” que o neoconservadorismo “’jamais teve ou a que nunca aspirou’”. (25) Menos viável, ainda, seria discorrer aqui sobre a situação do neoconservadorismo no horizonte mais amplo de idéias econômicas, políticas, sociais e culturais de direita que reorientarem duradouramente a sensibilidade, o discurso e agenda da vida pública e intelectual dos Estados Unidos nas últimas décadas. (26) (Um exemplo significativo e recente dessa alteração do clima de opinião e do ambiente decisório consistiu no realinhamento à direita das políticas econômica e previdenciária do ex-presidente Bill Clinton, na década de 90, o qual traduziu-se em um desembarque do consenso dirigista, fiscalista e assistencialista dominante no seu Partido Democrata desde as jornadas pelos direitos civis e os programas da Grande Sociedade de Lyndon Johnson, nos anos 60.)

Deveremos, o leitor e eu, nos contentar com o esboço a seguir.

O neoconservadorismo nasceu em meados da década de 60 como reação de um grupo de antigos intelectuais esquerdistas, predominantemente nova-iorquinos, aos excessos da contracultura por suas repercussões relativistas, nefastas para a tessitura ético-cívica da democracia liberal e da economia de mercado.

Kristol aceitou o rótulo de neoconservador em 1972 e desde então passou a ostentá-lo em orgulho, sendo considerado o patrono do neoconservadorismo americano. (27) Filho de imigrantes judeus pobres, nasceu no Brooklyn e estudou no City College of New York, onde se aproximou da ala trotskista do movimento universitário, antes de combater na Europa, durante a Segunda Guerra. Nos anos 50, em Londres, dirigiu a revista Encounter, órgão do Congresso para a Liberdade de Cultura. (Mais tarde, causaria mal-estar entre vários de seus participantes e furor entre seus adversários a descoberta de que o Congresso era financiado pela Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos, a CIA.) de volta aos Estados Unidos, fundou, com o sociólogo Daniel Bell, seu antigo companheiro de militância, a revista trimestral The Public Interest, publicada ininterruptamente desde 1965 até o encerramento de suas atividades em 2005. Ao projeto logo se juntaram outros renomados acadêmicos com o sociólogo Nathan Glazer; o cientista político e criminologista James Q. Wilson; a historiadora da política social da Inglaterra vitoriana Gertrude Himmelfarb (mulher de Irving e mãe do

expoente da segunda geração de neoconservadores William Kristol, nascido em 1952, chefe de gabinete do vice-presidente da primeira administração Bush, Dan Quayle fundador do semanário The Weekly Standard; e comentarista político do canal de TV Fox News); e o estudioso de relações raciais, embaixador à Índia (administração Nixon), às Nações Unidas (administração Ford) e, mais tarde, senador por Nova York, Daniel Patrick Moynihan (1927-2003).

Os colaboradores de Públic Interest realçaram o contraste da abordagem neoconservadora ao debate político e cultural com as visões de outras correntes importantes da direita americana contemporânea (28) aplicando o raciocínio e os métodos quantitativos das ciências sociais à análise crítica de políticas públicas assistenciais, previdenciárias, habitacionais, de integração racial, saúde e segurança, a fim de iluminar seus efeitos perversos não-antecipados, a exemplo da eternização da marginalidade e da disseminação da criminalidade violenta em consideráveis segmentos de minorias étnicas desprivilegiadas, sobretudo negros, incentivadas por programas de auxílio financeiro a mães solteiras sem condicionalidades à qualificação para o trabalho ou ao exercício da paternidade responsável.

Ainda a esse respeito, vale observar que o neoconservadorismo não rechaça o welfare state por princípio, reconhecendo, na tradição liberal-democrata do New Deal, até mesmo a importância para a coesão social e a legitimidade política de uma rede de proteção governamental a segmentos estruturalmente incapazes de se alçar até um padrão mínimo consensual de sobrevivência digna. Preferem os neoconservadores, sempre que possível, um sistema assistencial e previdenciário que desestimulem ao máximo a dependência permanente e ao mesmo tempo premie os esforços responsáveis do pobre para superar sua condição com base no mérito individual e na solidariedade familiar. Daí serem moralmente contrários, por exemplo, a auxílio financeiro sem condicionalidades a mães solteiras adolescentes, mas favoráveis à aposentadoria por velhice, ao mesmo tempo que discordam de políticas de cotas raciais, por atribuírem privilégios a determinados grupos somente porque seus membros compartilham certos traços. (28.a)

Em razão das polêmicas em torno do Vietnã que começavam a dilacerar o Partido Democrata à época de sua fundação, The Public Interest jamais focalizou questões de política externa e de segurança nacional.

Já para Commentary, outro importante periódico porta-voz do neoconservadorismo, a crítica à détente e a defesa do fortalecimento militar e do endurecimento diplomático dos Estados Unidos em face da URSS eram preocupações constantes ao longo das décadas de 70 e 80. Tendo à frente (de 1960 a 1995), o crítico literário, comentarista político e cultural e memorialista Norman Podhoretz, a revista mensal fundada em 1945 pelo Comitê Judaico Americano, e o editor guinaram para a direita na segunda metade dos anos 60, em resposta não apenas à Guerra, dos Seis Dias no Oriente Médio (1967), mas também ao crescentemente incômodo tom anti-sionista e até mesmo anti-semita do discurso do movimento negro e de outros segmentos da militância esquerdista. (29)

Dois artigos de Podhoretz – o primeiro ainda durante a administração Ford e o segundo já sob a presidência do democrata Jimmy Carter (nascido em

1924, 1977-1981) –, a começar pelos títulos (“Making the world safe for cummunism”, em Commentary de abril de 1976, e “The culture of appeasement”, na Harper’s de outubro de 1977), refletiram a angústia neoconservadora com os efeitos debilitantes combinados do trauma do Vietnã e da mentalidade de détente sobre a autoconfiança das elites e da opinião pública dos Estados Unidos em face de uma União Soviética desafiadora e disposta a tirar vantagem das divisões e vacilações ocidentais. (30)

Tentativa marcante de romper esse impasse foi o exercício chamado Team B. Em meados da década de 70, os adversários direitistas da détente, dentro e fora do Congresso, propagavam a desconfiança de que as estimativas anuais da CIA acerca das capacidades militares e intenções soviéticas estivessem subestimado deliberada e perigosamente a gravidade de sua ameaça à segurança dos Estados Unidos. Autorizado por Ford, apoiado pelo então secretário de Defesa Donald Runsfeld (que voltaria a chefiar o Pentágono um quarto de século depois, na administração George W. Bush) e organizado pelo diretor da CIA à época e mais tarde presidente George H. W. Bush, o Team B era um grupo composto de especialistas independentes, com a finalidade de passar isso a limpo. Seu coordenador era o professor de história russa em Harvard e polonês de nascimento Richard Pipes – pai do neoconservador de segunda geração Daniel Pipes, especialista em Oriente Médio. Entre os dez integrantes, figurava ao lado de veteranos da Guerra Fria como o conselheiro de segurança Nacional da administração Truman, Paul Nitze, um então jovem funcionário da Agência para Controle de Armas e Desarmamento dos Estados Unidos chamado Paul Wolfowitz, que viria a ser um dos mais ferrenhos partidários da intervenção militar no Iraque em 2003, quando secretário adjunto de Defesa. (31)

Em outubro de 1976, pouco antes da eleição presidencial que daria a vitória ao democrata Jimmy Carter contra o presidente Ford, o Team B divulgou seu relatório, que criticava a CIA por subestimar “a ‘intensidade, [o] escopo e [a] ameaça implícita’ colocada pela União Soviética”, (32) ao confiar demasiadamente em dados colhidos por satélites e não prestar devida atenção às intenções hegemônicas declaradas pela liderança do Kremlin nas suas referências eufemísticas ao “’triunfo mundial do socialismo’”. (33) Conclusão do relatório: o regime soviético seguia uma orientação prioritariamente ofensiva, e não defensiva. (34) Assim, os acordos de limitações de armamentos nucleares estratégicos negociados por Kissinger no quadro da détente, em um momento de reafirmação dos desígnios agressivos da superpotência rival, só poderiam ser prejudiciais à defesa dos Estados Unidos e de seus aliados ocidentais.

Em seguida à divulgação do relatório do Team B, Richard Pipes, Paul Nitze e outros participantes daquele exercício crítico de avaliação da ameaça soviética fundaram o Committee on the Present Danger (CPD) Seu manifesto de lançamento, “What is the Soviet Union up to?”, martelava a tecla da vulnerabilidade americana em razão da inferioridade nuclear diante dos arsenais soviéticos. Significativamente, a sede de organização era o escritório da Coalition for a Democratic Majority (CDM), grupo de democratas desiludidos com guinada esquerdista do partido na já referida candidatura presidencial de McGovern em 1972, solidários com as críticas de Henry Jackson à détente no Senado e partidários de suas propostas para um fortalecimento quantitativo e qualitativo das capacidades militares americanas. Alguns de seus membros,

como Richard Perle, a então cientista política da Universidade de Georgetown Jeane Kirk Patrick (1926-2006) e Max Kampelman assumiriam posições de responsabilidade nas políticas externa e de segurança nacional da administração Reagan. (35)

O rationale para o questionamento desafiador lançado pelo Team B e pelo CPD aos pressupostos e ao desempenho da détente foi, em grande medida, obra de Albert Wohlstetter (1913-1997, analista estratégico cujo legado bem poderia dividir a primeira posição no panteão neoconservador com o do falecido filósofo judeu de origem alemã e ex-professor de filosofia política na Universidade de Chicago Leo Strauss (1899-1973)

Muito embora jornalistas americanos e europeus, sobretudo desde os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 e a intervenção militar no Iraque em 2003, tenham se devotado quase que obsessivamente a confeccionar verdadeiros ‘conspirogramas’ vinculando as idéias de Strauss – um erudito comentarista dos clássicos do pensamento político antigo, medieval e moderno, alheio à militância político-partidário, ainda que afeiçoado ao regime liberal-democrático de sua pátria adotiva americana – com projeto e decisões da administração George W. Bush concernentes à guerra contra o terror, à derrubada de tiranias hostís aos Estados Unidos (como o Iraque sob Saddam Hussein) ou à subseqüente reconstrução democrática desses países, o fato é que sua obra não oferece sugestões para a solução de nenhum desses problemas. Penso que, apenas em termos muito genéricos, seria possível sugerir uma influência da atitude straussiana – convicta da existência de uma moralidade objetiva, atingível por meio do cultivo das mais elevadas potencialidades da natureza humana, e resoluta na condenação do relativismo hedonista como porta aberta à ascensão de tiranias – sobre a propaganda neoconservadora pela destituição de ditadores que personificaram ficariam o mal.

Muito mais fácil de discernir seria a ascendência de Wolhstetter, outro cientista político, colega de Strauss em Chicago, na formatação da visão neoconservadora de questões estratégicas. (36)

O texto que inicialmente o projetou nessa área fora publicado, em 1959, em Foreign Affairs, alertando sobre o risco da inferioridade americana na corrida nuclear com a União Soviética. (37) Nos anos 60, as preocupações de Wolhstetter eram o perigo da proliferação nuclear, especialmente na explosiva região do Oriente Médio e o fortalecimento das defesas antimísseis nucleares dos Estados Unidos, que, conforme já assinalei, viriam a ser congeladas em conseqüência das negociações de Nixon/Kissinger com os soviéticos em 1972. (38) No início da década de 70, Wohlstetter voltou a acionar o seu alarme, a respeito da vulnerabilidade nuclear dos Estados Unidos em face da URSS, contribuindo para o clima de opinião intelectual e político que levaria à instalação do anteriormente citado Team B. (39) Nos últimos 20 anos de sua vida, a agenda de pesquisa e militância pública de Wohlstetter se concentrou na promoção de tecnologias balísticas de alta precisão capazes de baixar os custos humanos e políticos das intervenções militares (menos baixas civis, menores danos colaterais). Em 1976, encabeçou bem-sucedido lobby para que os Estados Unidos não abrissem mão dos mísseis Tomahawk nas conversações Salt-2 com a União Soviética. A superioridade tecnológica exibida pelos militares americanos durante os anos 90, na Guerra do Golfo e

nos Bálcãs, foi fruto em boa medida da criatividade e da visão de Wohlstetter, (39.a) que, juntamente com sua mulher Roberta, historiadora e autora de brilhante estudo sobre o ataque japonês de surpresa à base americana de Pearl Harbor no Havaí, em 1941, recebeu a medalha Presidencial da Liberdade das mãos de Ronald Reagan, em 1985.

Já durante a administração Carter, com a détente nos estertores, o novo alvo dos neoconservadores era a política de promoção de direitos humanos em países em desenvolvimento muitas vezes governados por ditaduras pró-Estados Unidos. O grande marco da crítica neoconservadora foi o artigo da já referida Jeane Kirkpatrick, “Dictatorships and double standards”, publicado em Commentary de novembro de 1979. Nele, a então professora de Ciência Política na Universidade de Georgetown, veterana militante democrata, atacava o utopismo da proposição de Carter como lesivo ao interesse americano. Seu argumento era marcadamente realista: ao desprestigiar ditadores aliados, tais como Anastásio Somoza na Nicarágua, a maioria branca à época no poder na África do Sul e o xá do Irã, Washington colaborava, na prática, com o fortalecimento de seus opositores mais radicais, assim abrindo espaço à influência soviética. Ademais, ao contrário de regimes comunistas totalitários, esses governos autoritários – racionava Kirkpatrick – poderiam ser induzidos pelo governo americano a se liberalizarem gradativamente. Ao mesmo tempo que criticava, por ingênuas, as tentativas do governo americano para promover, em ritmo acelerado, a democratização em Estados fortes na esfera de influência ocidental, a autora considerava-as incoerentes com a tolerância resignada da diplomacia de Carter em face das violações dos direitos humanos no império soviético. (40)

O artigo de Kirkpatrick veio à luz pouco depois da derrubada da monarquia iraniana pela revolução liderada pelo religioso xiita aiotolá Khomeini, em janeiro de 1979,a qual levara ao poder um regime teocrático inimigo dos Estados Unidos, estigmatizados como o grande Satã. No final daquele mesmo ano, jovens revolucionários invadiram a embaixada americana em Teerá e fizeram 66 americanos reféns. A humilhação da administração Carter foi agravada, quatro meses após, com a queda no deserto de helicópteros da desastrada operação americana designada para libertar os prisioneiros. Também no final de 1979, outro acontecimento no Oriente Médio abalou o prestígio do poder dos Estados Unidos no mundo: a invasão soviética do Afeganistão. (41)

O realismo agressivo da análise de Kirkpatrick em Commentary impressionou o então pré-candidato presidencial republicano Ronald Reagan, que a convidou para colaborar nas propostas de política externa de sua campanha. Vitorioso, fé-la embaixadora americana às Nações Unidas, onde ela exercitaria sua combatividade denunciando conluio entre a União Soviética, seus satélites do Leste europeu e governos de países ditos não-alinhados do Oriente Médio, da África, da Ásia e da América Latina contra os interesses dos Estados Unidos e de seus principais parceiros, especialmente Israel.

A trajetória de Jeane Kirkpartrick simbolizou um amplo realinhamento de parcelas do eleitorado americano, anteriormente fiéis ao Partido Democrata: sulistas defensores dos direitos dos estados contra a dissolução da sonegação racial imposta pela legislação federal de direitos civis; sindicalistas das regiões industriais do Leste e do Meio-Oeste; famílias de classe média com origens

imigrantes – enfim, a chamada coalizão do New Deal que desde os anos 30 apoiava os democratas.

Entre esses antigos democratas convertidos ao reaganismo, os neoconservadores figuravam entre os grupos mais articulados e vocais que contribuíram para enterrar a pretensão reeleitoral de Jimmy Carter em 1980. Reagan chegou à Casa Branca, no início do ano seguinte, a bordo de uma mensagem carismática, de vigor e otimismo, com forte apelo popular naquele momento de desorientação, incerteza e mal-estar, provocado pela alta dos preços do petróleo, a inflação de dois dígitos, as preocupações dos aiotalás, as investidas soviéticas no Terceiro Mundo e o inesquecível fiasco no Vietnã: suas palavras de ordem eram, simplesmente, resgatar a prosperidade doméstica e fortalecer o poderio americano ao redor do mundo.

O love/affair dos neoconservadores com Reagan remontava à infrutífera campanha deste para tornar-se o candidato republicano ao pleito presidencial de 1976. Apesar de derrotado pelo então presidente Ford, Reagan colheria uma meia-vitória quando a convenção republicana aprovou a incorporação de sua proposta de “moralidade na política externa” à plataforma eleitoral da candidatura Ford, em uma clara condenação ao percebido realismo amoral da détente kissingeriana.

Agora, recém-empossado na Casa Branca, Ronald Reagan parecia encarnar, aos olhos do neoconservadorismo, os impulsos político-ideológicos de rollback e de liberation caros a um setor importante da direita americana em etapa período anterior da Guerra Fria, os quais a consolidação da doutrina realista do containment jamais havia permitido se efetivassem em políticas externa e de segurança nacional. (Assim, a promessa de empurrar o império soviético para aquém das esferas de influência por ele conquistadas na esteira da Segunda Guerra, bem como a de libertar os povos do Leste europeu feitos cativos pelo Exército Vermelho e por partidos comunistas locais fiéis a Moscou provaram ser nada mais que retórica do ex-presidente Eisenhower e do seu secretário de Estado, John Foster Dulles, quando confrontadas com o esmagamento, pelo Exército Vermelho e pelos seus aliados-satélites no pacto de Varsóvia, da rebelião húngara de 1956.) Na recapitulação dos já aqui citados Halper e Clarke, “Como afirmou Podhoretz, ‘os mais calorosos amigos do presidente e também seus mais violentos inimigos imaginaram nele haver encontrado um campeão do velho sonho conservador de ir além da contenção do comunismo [passando] ao “rollback” da influência e do poder comunistas e à “liberation” do império soviético’”. (42)

Nos próximos parágrafos, me basearei amplamente na reconstituição histórica oferecida por Halper e Clarke nos capítulos 3 (“The nineties: from near death to resurrection”, pp. 74-111) e, sobretudo, 5 (“The false history”, pp. 157-181) de sua obra, embora eu não compartilhe a intenção polêmica da dupla, dedicada ao ataque, a partir de uma plataforma ‘conservadora realista’, da pretensão atual do neoconservadorismo de reler seletivamente o legado da administração Reagan, a fim de legitimar-se como herdeiro de suas políticas externa e de segurança nacional.

A célebre condenação lançada por Reagan contra o comunismo soviético rotulando-o como um império do mal, perante evento em Orlando, Flórida, da Associação Nacional dos Evangelistas, em março de 1983,

simbolizou com eloqüência os motivos pelos os quais neoconservadores haviam depositado tantas esperanças em sua chegada à presidência. Para além das palavras, a administração tomou medidas muito concretas para robustecer militarmente os Estados Unidos em face do rival soviético.

No tocante à força militar, Reagan afirmou que Moscou agora detinha o dobro da megatonelagem em armas nucleares dos Estados Unidos e uma clara superioridade em mísseis balísticos baseados em terra. Imediatamente ele se comprometeu a colmatar o hiato militar e ordenou o maior aumento da capacidade militar em tempos de paz da história americana. Entre 1981 e 1986, o orçamento anual de defesa cresceu de 171 bilhões para 367,5 bilhões de dólares. Mais de um quarto deste incremento concentrou-se no avanço do programa do bombardeiro B-1, no sistema balístico intercontinental MX (Míssil Experimental) e no sistema do míssil Trident, lançado de submarinos. A marinha passou de 456 para 600 navios. Ademais, enfrentando forte oposição não apenas em Moscou, mas Europa afora e dentro do próprio Partido Republicano, Reagan também foi adiante com a instalação de mísseis de alcance intermediário na Europa ocidental, a fim de se contrapor à crescente força de foguetes terrestres soviéticos SS-20. Em março de 1983, a administração Reagan apresentou planos da nova Iniciativa de Defesa Estratégica [...] – um escudo defensivo baseado no espaço e em terra [e] destinado a interceptar e destruir mísseis inimigos. Isso provocou imediato alarme em Moscou em razão da potencial vantagem estratégica que conferia a Washington. (43)

Mas, como Halper e Clarke fazem questão de salientar, a deliberada concentração unilateral dos neoconservadores da atualidade nessa dimensão ‘guerreira’ da presidência Reagan acabou falseando a verdade histórica por ocultar outros aspectos igualmente marcantes do seu legado, a saber: entendimentos com a União Soviética (antes e durante a presidência de Mikhail Gorbatchev) para controle de armamentos nucleares na Europa; a prudente minimização do emprego direto da força militar americana; e o fortalecimento dos arsenais americanos como manobra dissuasória destinada a relembrar o Kremlin dos inaceitáveis custos militares, políticos e econômicos que adviriam de seu aventureirismo ofensivo. Este último aspecto, aliás, iluminou o vínculo do reaganismo com a essência defensiva do contanment, uma estratégia disposta a barrar avanços soviéticos para além das suas esferas de influência do pós-guerra enquanto aguardava a lenta dissolução do regime comunista por sua ilegitimidade ético-política e sua precariedade econômica. A essa lista de fatores, Halper e Clarke acrescentam, ainda, a ausência de neoconservadores nos escalões realmente decisivos das políticas externa e de segurança nacional da administração Reagan.

Na verdade, o descolamento entre retórica agressiva e gestos de negociação se acentuou já nos primeiros meses dessa administração. Em abril de 1981, Reagan suspendia o embargo à exportação de grãos americanos para a União Soviética, imposto por Carter como resposta à invasão do Afeganistão, justificando-o com a intenção de “produzir ‘diálogo significativo e construtivo que nos ajudará a cumprir com nossa obrigação conjunta de encontrar [uma] paz duradoura’”. (44)

No final do segundo mandato, Reagan e seu secretário de Estado, George Shultz, podiam exibir o coroamento de uma série de negociações e entendimentos com a liderança soviética iniciada na virada de 1983 para 1984, já então com suficiente respaldo no revigoramento militar há pouco mencionado: a assinatura de acordo entre Estados Unidos e União Soviética para eliminação de mísseis nucleares com alcance de 480 a 5.400 quilômetros na Europa, em dezembro de 1987. (45)

Quanto à cautela na aplicação direta do poderio militar americano em contraste com o discurso confrontacionista, suas mais completas traduções foram as chamadas doutrinas Reagan e Weinberger (esta referida ao seu secretário de Defesa entre 1981 e 1987, Caspar Weinberger. Nos termos da primeira, o governo americano combatia ‘por procuração’ os avanços da União Soviética e dos seus aliados no Terceiro Mundo prestando assistência econômica e militar a forças anticomunistas como a Unita em Angola, a guerrilha dos Contras nicaragüenses, a resistência fundamentalista islâmica ao Exército Vermelho no Afeganistão (onde o mais bem tarde terrorista arquiinimigo dos Estados Unidos Osama Bin Laden ainda receberia apoio da CIA). (46)

Já a doutrina Weinberger propunha um novo e cuidadoso rationale para a aplicação do poderio militar dos Estados Unidos que superasse em definitivo o trauma do Vietnã, baseado em seis critérios fundamentais: (a) envolvimento militar externo americano unicamente em situações consideradas vitais para o interesse do país ou de seus aliados; (b) mobilização de uma vontade e de tropas com a intensidade necessária para vencer; (c) objetivos políticos e militares claramente definidos; (d) permanente reavaliação e ajustamento entre os objetivos colimados e as forças empregadas; (e) conquista do apoio da opinião pública americana e do Congresso dos Estados Unidos previamente ao envio de combatentes ao exterior; e (f) uso de forças de combate como último recurso. (47)

Três oportunidades para o teste prático de ambas doutrinas surgiram na Polônia (1981), na minúscula ilha caribenha de Grenada (1983) e na Líbia (1986). No primeiro caso, à decretação de regime militar apoiado por Moscou contra o sindicato independente Solidariedade, Washington respondeu com providências limitadas: suspensão do envio de componentes americanos para o gasoduto entre a Sibéria e a Europa, canalização de fundos para os revoltosos por intermédio da central sindical americano AFL/CIO (American Federation of Labor/Councill of Industrial Organizations) e o apoio à resistência moral comandada pelo papa João Paulo II. O antigo regime pró-marxista de Grenada, com exército de apenas 600 soldados, foi facilmente derrotado por contingente de 7 mil americanos, na única intervenção militar envolvendo diretamente tropas dos Estados Unidos durante toda a era Reagan. E o envolvimento do regime de Mu’ammar Kadhafi na explosão de discoteca em Berlin causadora da morte de soldados americanos foi revidado com ataques cirúrgicos da Força Aérea dos Estados Unidos a objetivos líbios, “estritamente controlados por Reagan ‘para evitar baixas [...] civis’”. (48)

Conforme recordam Halper e Clarke, o comedimento demonstrado pela administração Reagan nesses e em outros episódios provocou decepção entre os neoconservadores. Estes propunham medidas econômicas mais duras contra a Polônia e a própria União Soviética, como a suspensão de todos os empréstimos, o embargo das exportações agrícolas e transferências tecnológicas e a execução imediata da dívida polonesa. Angustiavam-nos ainda certas posições tomadas pelo governo americano em relação ao Oriente Médio: o anúncio da venda de aviões de sistemas de alerta antecipado por radar (Awacs) à monarquia da Arábia Saudita, em um reconhecimento prático de sua importância como aliado da segurança ocidental na região; e a

concordância com as Nações Unidas na reprovação à insistência de Israel em anexar a Faixa de Gaza, a Margem Ocidental e as colinas de Golã. (49)

Essa decepção se refletia em títulos de artigos como “The first term: the Reagan road to détente” (de Podhoretz, em Foreign Affairs, 1984), “The neo-conservative anguish over Reagan’s foreign policy” (também de Podhoretz, na revista dominical do New York Times, de 02 de maio de 1982), “The Middle East: Carterism without Carter?” e “Appeasement and the AWACS” (ambos do cientista político Robert Tucker, em Commentary de setembro e dezembro de 1981, respectivamente). (50)

O desapontamento chama a atenção para mais um fato: a visível mas, mesmo assim, limitada influência neoconservadora nessas e em outras decisões no contexto de um gabinete dominado por republicanos sem dúvida firmemente anticomunistas, porém menos ideológicos e mais pragmáticos, a exemplo dos dois ex-secretários de Estado Alexander Haig (general da reserva) – à frente do departamento de 1981 a 1982 – e George Shultz; do antigo diplomata de carreira Lawrence Eagleburger (na subsecretaria de Estado para Assuntos Políticos); do ex-secretário de Defesa Weinberger; e do seu adjunto, o também diplomata, com amplas ligações com a área de inteligência, Frank Carlucci.

Os dois neoconservadores ocupantes de postos mais ‘vistosos’, porém encarregados de implementar decisões e não de tomá-las, eram a já referida Jeane Kirkpatrick, à frente da missão dos Estados Unidos à ONU, e Elliott Abrams, genro de Podhoretz e da mulher deste, a também escritora e jornalista neoconservadora Midge Decter (nascida em 1927) Abrams o qual passou por três diferentes posições em nível de secretário-assistente no Departamento de Estado. Nessa mesma época, Wolfowitz esteve à frente do Policy Planning Staff (posto outrora ocupado por Kennan) antes de se tornar secretário-assistente de Estado para Assuntos da Ásia Oriental e do Pacífico, enquanto a Perle coube a posição de secretário-assistente de Defesa para Política de Segurança Internacional. (51)

No exercício dessas funções, ademais, esses neoconservadores se dedicavam a perseguir objetivos bem mais moderados que aqueles definidos por seus companheiros fora da administração. Assim, Abrams, a despeito de sua forte posição pró-rebeldes nicaragüenses, declinou à revista Foreign Policy que “’a tarefa de quem acredita na democracia não é impô-la a um mundo amargamente contrário a ela, mas sim ajudar a preencher as expectativas que todas as pessoas reconhecem por si mesmas’”. (52) Kirkpatrick, por sua vez, desde os tempos do famoso artigo em Commentary, onde criticava a administração Carter por suas tentativas de promover os direitos humanos contra a vontade de regimes fortes aliados de Washington, insistia na tecla marcadamente realista da não-interferência em assuntos internos de governos de algum modo convenientes aos interesses dos Estados Unidos. (53)

A vitória final dos Estados Unidos na Guerra Fria, com o colapso da União Soviética e a dissolução do seu império no Leste Europeu, entre o final dos anos 80 e o início dos 90, foi o acontecimento mais importante da política internacional na segunda metade do século passado. Absolutamente decisiva para esse desfecho fora a dupla estratégia adotada por Ronald Reagan, de revigoramento do containment por meio do reforço militar dos Estados Unidos –

em uma escalada armamentista de alta tecnologia impossível de ser acompanhada pela precária economia soviética – e de negociações diplomáticas com o Kremlin destinadas a evitar o confronto nuclear. Enquanto isso, anteriores avanços soviéticos em zonas periféricas eram neutralizados ou revertidos. Daí por que, com o passar do tempo, a segunda geração de neoconservadores, sucessores de Irving Kristol e Norman Podhoretz, viria a lutar pela apropriação retrospectiva desse tremendo legado.

Esse, contudo – repito –, estava longe de ser o estado de espírito predominante no seio do neoconservadorismo ao tempo em que tais transformações foram concebidas e implementadas. “Como muitos neoconservadores admitiram amargamente, Reagan não era um neoconservador. Em vez disso ele ponderava suas opções de política externa com cuidado e agia com cautela”. (54)

Na arguta observação de Halper e Clarke, o fim da Guerra Fria coincidiu com a ‘troca de guarda’ entre as duas gerações neoconservadoras, com a acentuação das diferenças de suas respectivas visões da ordem internacional emergente e do papel que nela deveria caber aos Estados Unidos.

Assim, Irving Kristol, que, já em 1985, fora um dos fundadores da revista trimestral The National Interest – cujo título mesmo evocava uma preocupação realista –, Jeane Kirkpatrick, Nathan Glazer e Robert Truker passaram a prever (e a aspirar a) um redimensionamento mais modesto dos compromissos estratégicos globais americanos, agora que o “monólito soviético” jazia “derrotado”. (55)

Muitos daqueles que haviam longamente pressionado Reagan para que honrasse suas promessas de apoiar e encorajar movimentos democráticos ao redor do mundo durante a Guerra Fria recuaram, então, da idéia de fazer da exportação da democracia um propósito central da política externa americana após o colapso soviético. Irving Kristol admitiu que, em boa parte, a campanha ideológica do neoconservadorismo contra a URSS era essencialmente defensiva, na medida em que respondia a uma ameaça concreta e era exigida nas circunstâncias criadas pela Guerra Fria. Conforme argumentou ele [...] em 1991, “a perspectiva da intervenção e da ocupação americanas para ‘fazer a democracia funcionar’... em suma... algo como um império americano puramente motivado pela ideologia... não é nem pode ser uma opção séria para a política externa americana. (56)

Um pouco antes, Kirkpatrick havia publicado artigo em The National Interest do outono de 1990, reafirmando o matiz realista do seu neonconservadorismo, sob o título “A normal country in a normal time”, no qual assegurava que a ‘“Maioria das obrigações internacionais que assumimos [e] foram outrora importantes estão agora superadas’” (57)

Não menos sugestivo era o título do ensaio de Glazer publicado em uma coletânea nessa mesma época: “A time for modesty”.

Como sugeriu ele, “Qualquer [que fosse] o nosso compromisso com governos liberais e democratas, ele jamais teria justificado a enorme expansão do poder militar americano não fora pela ameaça do comunismo”. Enquanto dizia [que] “Deveríamos manter nossa democracia e o nosso compromisso com o governo livre”, Glazer também afirmava [que], “Na promoção e recomendação desses princípios universais, aos quais estamos vinculados, é tempo agora de recuar para algo mais próximo do papel modesto que os Patriarcas [da constituição americana] pretenderam”. Glazer acreditava que não cumpria à América “[...] ser o policial do mundo”. Em sua opinião, [o país] “não deve envolver-se em alianças permanentes, não importa se baseadas no equilíbrio de poder, [em] algum conflito geopolítico presumido, ou [numa] suposição de clivagem ideológica permanente ou imutável” (58)

Enquanto isso, a jovem guarda neoconservadora transformava suas decepções com o sucessor de Reagan, e ex-vice deste, George H. W. Bush em matéria-prima de seu projeto para assegurar a supremacia americana no mundo do século XXI.

Na equipe encarregada das políticas externa e de segurança nacional dessa administração despontavam alguns nomes identificados com posições conservadoras moderadas: o secretário de Estado, James Baker III, comandara o Departamento do Tesouro no segundo mandato de Reagan (depois de haver chefiado o gabinete da presidência durante o primeiro). O conselheiro de Segurança Nacional, general Brent Scowcroft, voltava ao posto já ocupado na administração Gerald Ford, no qual colaborara estreitamente com Henry Kissinger. Para a chefia dos Joint Chiefs of Staff (estado-maior conjunto das forças armadas), o general Colin Powell trazia a concepção de firmeza e cautela do ex-secretário da Defesa Caspar Weinberger, sob o qual servira na qualidade de assessor militar.

Tal enfoque seria aplicado à risca, no final de 1989, na primeira intervenção militar americana do pós-Guerra Fria e, até então, a mais importante depois do Vietnã: a derrubada do regime encabeçado pelo general Manuel Noriega, o então homem forte do Panamá e antigo colaborador da CIA, envolvido com o narcotráfico, a supressão violenta da oposição e finalmente com a perseguição a militares americanos estacionados no país daí resultando a morte de um soldado. (59)

O episódio panamenho se revestiu de um forte significado retrospectivo e também prospectivo quanto ao uso da força militar dos Estados Unidos no exterior. Como registra James Mann,

O legado maior da intervenção no Panamá consistiu simplesmente no seu sucesso, um sucesso que poderia ser utilizado para restaurar a confiança do público americano nas capacidades do Pentágono. O secretário de Estado [...] Baker [...] mais tarde explicou: “Ao romper com a atitude mental do povo americano no tocante ao uso da força na era pós-Vietnã, o Panamá foi um predicado emocional que nos permitiu reunir o apoio público tão essencial para o sucesso da Operação Tempestade no Deserto [contra a invasão do Kuwait pelo regime iraquiano de Saddam Hussein] cerca de 13 meses mais tarde “[...] O impacto não foi apenas sobre o público americano. O Panamá também ajudou a vencer as resistências dentro do próprio Pentágono ao uso da força. (60)

Veterano do Vietnã e discípulo atento da doutrina do seu ex-chefe Weinberger, o general Powell cuidou para que ela triunfasse no Panamá, onde a esmagadora superioridade bélica americana foi empregada com objetivos claramente definidos.

Porém, o maior desafio militar da primeira administração Bush viria dali a pouco mais de um ano, com a resposta dos Estados Unidos à invasão iraquiana do Kuwait, uma resposta mais tarde fadada servir como alvo da duradoura e amarga condenação da jovem guarda neoconservadora, por sua inconclusidade, visto não haver sido levada até o coração do Iraque, nem encerrada com a deposição de Saddam Husseim.

No dia 2 de agosto de 1990, dois anos depois do fim de uma Guerra que durara oito contra o Irã, a ditadura comandada por Saddam Hussein, outro ex-

parceiro dos Estados Unidos, lançou suas tropas à invasão do emirado do Kuwait, no Golfo Pérsico a mais rica região petrolífera do planeta. Em 27 de fevereiro de 1991, após 100 horas de combate, chegava ao fim a Operação Tempestade no Deserto com a vitória dos Estados Unidos à frente de uma coalizão de 28 países sob as bênçãos das Nações Unidas: o Kuwait foi libertado e o sul do Iraque, ocupado, mas o regime baatista permaneceu no poder em Bagdá.

Durante os meses entre a invasão do Kuwait e o desencadeamento da Tempestade no Deserto, travaram-se, nos bastidores da administração Bush I escaramuças opondo o secretário de Defesa, Richard (Dick) Cheney – ex-deputado republicano pelo Wyoming, antigo subchefe e chefe do gabinete presidencial na administração Ford e futuro vice de George W. Bush –, e seu subsecretário Paul Wolfowitz, de um lado, e o chefe do JCS, Powell, de outro. Ao passo que os dois primeiros insistiam em uma estratégia de deestabilização da ditadura iraquiana para garantir a segurança dos dois mais importantes aliados dos Estados Unidos na regiã,o Israel e Arábia Saudita, e também da confiabilidade de fornecimento de petróleo ao mundo industrializado, Powell, frustrado em seu intento inicial de persuadir Bush a porfiar no emprego de sanções político-econômicas e ameaças militares contra Bagdá em detrimento do recurso à guerra, terminou por fixar-se na sua fórmula “’Entre forte e termine rápido’”. (61)

A rapidez com que a vitória e o cessar-fogo foram declarados contrariou Wolfowitz, muito embora, como Mann deixa sobejamente documentado, àquela altura nem ele nem Cheney considerassem seriamente a opção de levar a guerra até Bagdá, a fim de derrubar Saddam Hussein, um mote que, mais tarde, os neoconservadores martelariam para denunciar a administração Bush I pelo desperdício de uma oportunidade ímpar de remodelar duradouramente a política do Oriente Médio em conformidade com o interesse americano. (62) No que Wolfowitz parecia então acreditar era que, se os Estados Unidos houvessem aguardado mais tempo antes de anunciar o cessar-fogo, a oposição iraquiana haveria podido reunir melhores condições para depor o ditador. (63) Decisões efetivamente tomadas pelo comando americano concorreram para um desfecho muito diferente. Os militares iraquianos se aproveitaram da permissão do chefe do Comando Central dos Estados e responsável pela execução da Tempestade no Deserto, general Norman Schwarzkopf, para que usassem helicópteros a fim de acelerar a retirada do território kuwaitiano e metralharam, do ar, “forças xiitas e curdas que estavam tentando se rebelar contra Saddam Hussein. Esses curdos e xiitas bem poderiam ter sido encorajados pelas sugestões do presidente Bush, antes do início da guerra, para que o povo iraquiano derrubasse Saddam Hussein”. (64).

Resultado? A sangrenta sobrevida de uma dúzia de anos para a ditadura do Iraque, até que nova intervenção militar, encabeçada pelos Estados Unidos, lograsse destroná-la, mas ao preço de desencadear uma inaudita etapa de violência no Oriente Médio, de erosão da legitimidade doméstica do governo americano e de desgaste das suas alianças internacionais.

Para a nova investida americana contra Saddam Hussein, em 2003, seria essencial o concurso de Cheney, agora na vice-presidência dos Estados Unidos, e do neoconservador Wolfowitz, desta feita a segunda autoridade do Pentágono. Ainda ao final da administração Bush I, este foi responsável pela

construção do novo marco de referência para a estratégia americana no pós-Guerra Fria, o qual possibilitaria esse longo caminho até Bagdá.

No segundo semestre de 1991, a equipe da subsecretaria de Wolfowitz no Pentágono dedicou-se à elaboração de um documento bienal, Defense Planning Guidance, contendo a previsão das necessidades de equipamento das forças armadas, a serem traduzidas em dotações orçamentárias, durante o período 1994-1999. (65)

Previsto para ficar pronto no início do ano seguinte, o último do mandato do presidente George H. W. Bush, aquele DPG precisou responder a um desafio inédito: como justificar uma defesa forte, depois da dissolução do velho adversário soviético, em seguida ao frustrado golpe da linha-dura do Partido Comunista contra o governo de Mikhail Gorbatchev em agosto de 1991 e a renúncia deste em dezembro, perante políticos e eleitores americanos ávidos por colher os chamados dividendos da paz, transformando boa parte dos gastos militares da Guerra Fria em verbas para programas socioconômicos domésticos?

A versão do DPG que ‘vazou’ para a imprensa em março de 1992 fora esboçada por um assessor de Wolfowitz, Zalmay Khalilzad, que, como seu chefe, havia sido orientado por Albert Wohlstetter em Chicago. O documento reunia sugestões de Perle e do próprio Wohlstetter, entre outros especialistas chamados a opinar, dentro e fora do Pentágono. Resumidamente, sua proposta consistia em aproveitar a nova condição dos Estados Unidos como única superpotência para consolidar incontrastável superioridade militar naquela ordem mundial. Na avaliação de Halper e Clarke, o texto não se limitava a uma receita para a capitalização do momento unipolar em benefício da estratégia americana, (66) mas antecipava os conceitos de preempção (guerra preventiva) e de unilateralismo militar que viriam a ser os pontos mais polêmicos da doutrina de segurança nacional da administração Bush II.

O primeiro objetivo anunciado pelo DPG era “prevenir o ressurgimento de um novo rival” Isso exigia que os Estados Unidos impedissem qualquer potência hostil de dominar uma região cujos recursos fossem suficientes para gerar poder global. Os autores da versão preliminar afirmavam que os Estados Unidos deveriam estar preparados para usar a força a fim de se “antecipara ameaças” e precaver-se contra a proliferação de armas nucleares. Ademais, o esboço advertia que os Estados Unidos deveriam estar “em posição e agir independentemente frente à impossibilidade de ação coletiva ser orquestrada”. [...] (67)

A divulgação do documento, embora saudada por neoconservadores da segunda geração nos think tanks e na imprensa, como o colunista Charles Krauthammer, suscitou uma barragem de críticas no Congresso e semeou preocupações entre os aliados dos Estados Unidos, especialmente na Europa Ocidental. Para aplacá-las, o Pentágono anunciou uma versão do DPG em termos mais ‘polidos’, mas que retinha suas concepções centrais. A nova redação, a cargo do subsecretário adjunto de Wolfowitz, L. Lewis (Scooter) Libby – ex-aluno do primeiro em Yale, depois seu subordinado na área de planejamento do Departamento de Estado durante a administração Reagan, e, futuramente, chefe de Gabinete do vice-presidente de George W. Bush, Dick Cheney –, trocava a linguagem confrontacionista de prevenção do surgimento de potências rivais via a superioridade militar incontrastável dos Estados

Unidos pela manutenção da “profundidade estratégica da América”, para significar “sua larga dianteira sobre outros países em capacidade militares e tecnológicas”, como garantia da iniciativa americana na “’moldagem do futuro ambiente de segurança’” (68)

A versão de Libby, se, por um lado, atenuou a forma, incluindo concessões multilaterais como referências à necessidade de consultas entre os Estados Unidos e seus aliados e também às instituições de segurança coletiva, de outro aprofundou o desígnio unipolar, projetando-o para muito além do escopo de uma possível rivalidade, a curto ou médio prazo, com gigantes econômicos daquele momento, como o Japão e a recém-unificada Alemanha. Tratava-se, nada menos, de jogar todo o peso da economia americana em uma escalada armamentista e tecnológica de tal magnitude que daí resultasse uma superioridade militar permanente, irreversível. Na visão de Mann,

Esta nova estratégia do Pentágono serviu como a ponte que ligou [...] os anos 70 e 80 ao mundo posterior ao colapso soviético. Os pressupostos subjacentes eram [...] aproximadamente os mesmos [que aqueles que viriam a ser adotados futuramente pelas políticas externas e de segurança nacional da administração Bush II]: a América não precisava nem deveria buscar uma acomodação com nenhum outro país. Agora, porém, os Estados Unidos não estavam combatendo um rival único e conhecido, como a União Soviética ou China. Em vez disso, a América se assegurava de que jamais viesse a surgir nenhum futuro adversário com o qual seria aconselhável a necessidade de uma détente. Realmente, era uma visão de tirar o fôlego. (69)

Embora a segunda parte do DPG de 1992, que especifica as necessidades do Pentágono e os cenários de provável aplicação do poderio militar americano, permaneça secreta, sua primeira parte, contendo a nova redação dada por Libby à versão preliminar de Khalilzad, veio a público no apagar das luzes da administração Bush I (janeiro de 1993), um dos últimos documentos assinados por Chenney ainda à testa do Pentágono. (70)

Naquele ponto, se havia tornado irreversível – e não poderia ser mais radical – a ruptura com as prescrições da velha guarda neoconservadora, favorável a um papel internacional mais modesto para os Estados Unidos, em conseqüência da expiração do compromisso histórico representado pelo containment. Os neoconservadores da segunda geração se dedicariam pelo restante da década de 90 a propagar uma agenda oposta: emprego constante e, sempre que conveniente, unilateral do colosso bélico dos Estados Unidos no mundo como instrumento do interesse americano.

Enquanto aguardava o surgimento da oportunidade de entronizar tal agenda em política de governo, a jovem guarda flexionava seus músculos intelectuais e políticos aplicando-a como critério analítico e propositivo às crises internacionais daquele período.

5. Conclusão: a agenda e a oportunidade

Os argumentos do DPG, que Wolfowitz e sua equipe do Pentágono haviam sistematizado na linguagem discreta da burocracia, ganharam colorido retórico, vigor polêmico e, principalmente, atenção pública poucos anos mais tarde em um artigo de William Kristol e seu colega no Weekly Standard Robert

Kagan – filho de outro respeitado intelectual da velha guarda neoconservadora, o historiador de relações internacionais de Yale Donald Kagan. (71)

Publicado em Foreign Affairs (julho/agosto de 1996), seu título, “Toward a neo-Reaganite foreign policy”, provocou estocada de Halper e Clarke cujo sentido, fica claro nas discussões do presente ensaio: “A política externa neo-reaganiana delineada por Kagan e Kristol é muito mais ‘neo’ do que ‘reaganiana’”. (72)

A oportunidade da publicação era a campanha presidencial daquele ano, eleição em que Bill Clinton conquistou seu segundo mandato vencendo o desafiante republicano Bob Dole (nascido em 1923) veterano senador pelo Kansas.

A proposta de Kristol e Kagan era chacoalhar o “consenso morno”, que, após a Guerra Fria, fizera convergirem as atenções (e também as dotações orçamentárias) dos políticos liberais e conservadores para questões econômicas e sociais domésticas, afastando-as dos desafios reservados aos Estados Unidos na nova ordem mundial. Para angústia dessa dupla de autores, o desaparecimento do inimigo soviético – façanha por eles entusiasticamente creditada ao descortino, à pertinência e, claro, à escalada armamentista do seu ídolo Ronald Reagan – acabara levando à perigosa ilusão do fim das ameaças externas aos interesses americanos. Ora, a hegemonia desfrutada pelos Estados Unidos graças à unipolaridade corria o risco de dissolver-se em imprevidência autocomplacente, caso os responsáveis pela defesa do país negligenciassem o dever de pensar o impensável e prepará-lo para o pior. No entender de Kristol e Kagan,

Hoje, a falta de uma ameaça visível aos interesses vitais dos Estados Unidos ou à paz mundial seduziu os americanos a, desleixadamente, desmantelar as fundações materiais e espirituais em que se baseou o nosso bem-estar. Não percebem que potenciais desafiantes são dissuadidos antes mesmo de contemplar [a possibilidade de] um confronto por [um] poder e [uma] influência esmagadores.

Assim, à ubíqua questão pós-Guerra Fria – onde está a ameaça – acha-se mal formulada. Em um mundo onde a paz e a segurança americana dependem do poder dos Estados Unidos e da sua determinação de usá-lo, a principal ameaça que o país enfrenta, agora e no futuro, é sua própria fraqueza. A hegemonia americana é a única defesa confiável contra a ruptura da paz e da ordem internacionais.

O artigo resumia na fórmula “hegemonia global benevolente”, a proposta de Kristol e Kagan para o novo papel internacional dos Estados Unidos, com o esclarecimento de que a finalidade primordial “da política externa americana deveria ser preservar e aprofundar [seu] predomínio [“estratégico e ideológico”], apoiando os seus amigos, promovendo os seus interesses e defendendo os seus princípios ao redor do mundo”.

Cabe atentar para essa ênfase em princípios. Paralelamente ao apelo em prol de substancial reforço do orçamento do Pentágono, Kristol e Reagan insistiam em uma política de “clareza moral”, inspirada no credo americano de liberdade política e econômica. Interpretavam como sucessos das pressões de Reagan não apenas o desmantelamento do comunismo soviético, mas também a redemocratização de antigos regimes autoritários na esfera da influência americana (Coréia do Sul, Filipinas). Afinal, em se tratando de Estados Unidos,

“objetivos morais” e “interesses nacionais fundamentais” dever-se-iam reforçar mutuamente, e não excluir-se entre si, conforme a cínica lição da cartilha realista.

Mas à propagação dos princípios do credo americano e ao patrocínio de políticas pró-mercado – sem dúvida importantes para o sucesso da estratégia hegemônica “benevolente” – era indispensável o concurso de respaldo militar abundante, para o enfrentamento de Estados hostis como “Irã, Cuba ou China”, sem descartar a tomada de medidas ativas, destinadas, em última análise, a produzir “uma mudança de regime”.

Esse programa, traçado em 1996, reapareceu, no ano seguinte, no manifesto de fundação do Project for the New American Century, assinado, entre outros, por Kristol (presidente), Kagan, membros-chave da futura administração Bush II (Cheney, Rumsfeld, Libby), além de Wolfowitz e Perle, dupla que, como bem assinala Robert Jervis, serve como o elo entre as duas gerações neoconservadoras. (73) Sediado no mesmo edifício que abriga o American Enterprise Institute, em Washington, o Pnac tem por finalidade ‘”promover a liderança americana global’”. (74) (Muito embora o portal www.rightweb.irc-oline.org, do think tank esquerdista international Relations Center (IRC), de Silver City, Novo México, dedicado a patrulhar minuciosamente qualquer influência de direita nas políticas externa e de segurança nacional dos Estados Unidos, reconheça que o Pnac “esteve praticamente inativo desde o final de 2005”; e apesar de o jornalista Max Boot, ex-editor do respeitável Christian Science Monitor, lembrar que sua administração conta com apenas “cinco” pessoas e que seus fundos orçamentários desaparecem no cotejo com “[a] Brookings Institution, [a] Heritage Foundation e [o] Cato Institute, três dos maiores think tanks de Washington, nenhum deles simpático à visão neoconservadora de política externa”, mesmo assim, com a hostilidade de sempre, Halper e Clarke inserem o Project... em uma rica rede de organizações filo-israelenses e belicistas financiadas pela indústria de armamentos e integrantes de um establishment das sombras, hoje a teleguiar a agressiva atuação do império americano no mundo e em especial no Oriente Médio...) (75)

A forma de atuação preferencial do Pnac consistiu na divulgação de uma série de relatórios e, mais ainda, cartas abertas dirigidas a Bill Clinton, e ao sucessor deste, George W. Bush, sobre questões internacionais variadas (“da defesa de Taiwan”, contra as ameaças de invasão emanadas de Beijing”, à necessidade de derrubar [o regime do então homem forte da Sérvia-Iugoslávia Slobodan Milosevic), mas seus focos prioritários estavam mesmo no Oriente Médio: Israel, Iraque e desde 2001, obviamente, o terrorismo islâmico. (76)

Vale agora chamar atenção para o contraste da ênfase atribuída pelos neoconservadores ao poderio militar como instrumento prioritário de política internacional e, também, da impaciência deles ante um multilateralismo visto como restritivo ao amplo emprego desse poderio, de um lado, com as preferências exibidas pela administração Clinton (1993-2001) – período de ‘exílio’ para o grupo –, de outro.

A vitória do democrata na corrida presidencial de 1992 já se devera, em boa medida, à cerrada focalização das suas mensagens nas prioridades de retomada da economia e de criação de empregos, contra um George H. W.

Bush distante das aflições domésticas, consumido pelos detalhes da arquitetura da nova ordem internacional e encantado com o seu ‘triunfo de 100 horas’ na Guerra do Golfo. Já entrou, aliás, para o folclore político o mote lançado pelo consultor de comunicação daquela campanha democrata, James Carville: “É a economia, estúpido.” Observa Mann que, Clinton já no poder, sua administração “procurou articular [...] visão própria do papel da América no mundo, [a qual] salienta a importância da globalização, [dos] mercados abertos e [da] democracia.” (77)

O desconforto neoconservador diante do excesso clintoniano de confiança nas vantagens do soft power se prolongava na queixa contra a deliberada tendência da administração a se autolimitar por compromissos multilaterais nas crises internacionais dos anos 90, na África, e sobretudo, nos Bálcãs.

Na verdade, essa irritação vinha da administração Bush I, cujo conselheiro de Segurança Nacional, Brent Scowcroft, receava que um apoio cabal americano aos movimentos de independência balcânicos (Croácia, Eslovênia e Bósnia) contribuísse para acelerar a caótica desagregação do antigo império soviético. (78)

Enquanto os noticiários televisionavam sem parar o massacre da população muçulmana bósnia por forças sérvias, a administração democrata reafirmava sua opção multilateralista (‘“Devemos trabalhar em conjunto, por meio das Nações Unidas’”, declarou Clinton) (79) e esbarrava na recusa dos comandos francês e britânico da Força de Proteção da ONU à proposta de Washington para suspensão do embargo de armas à Bósnia simultaneamente a ataques aéreos contra objetivos militares sérvios. Mesmo depois de o conselheiro de Segurança Nacional de Clinton, Anthony Lake, haver persuadido “os aliados europeus da idéia geral de ataques aéreos da Otan contra os sérvios da Bósnia [,] em 1994, [...] franceses, britânicos e americanos tiveram que contornar as objeções européias a um pleno controle da Otan estabelecendo o [poder de] veto das Nações Unidas sobre o processo decisório [...] Antes que a Otan pudesse entrar em ação, a ordem deveria provir da ONU”, em teoria, mas dos governos da França e da Grã-Bretanha, na prática. (80)

Na Somália, a queda do regime de Siad Barre precipitara a guerra civil e uma grande mortandade por falta de alimentos. Depois da retirada da maior parte de uma força expedicionária americana (35 mil soldados) autorizada nos últimos momentos da administração republicana para garantir o suprimento de comida à população civil, seus remanescentes, sob comando da ONU, sofreram 18 baixas em um único ataque, no final de setembro de 1993.

Naqueles momentos de angústia, os neoconservadores juntaram seus protestos aos de expoentes da política, da diplomacia e da academia ao longo do espectro liberal/conservador (como na carta aberta a Clinton sobre a Bósnia, publicada no Wall Street Journal de 02 de setembro de 1993). Naturalmente, não nutriam a menor simpatia por propostas liberais de corrigir, o fracasso do multilateralismo com doses adicionais do mesmo ‘remédio’, como o fortalecimento do Tribunal Penal Internacional contra atos de genocídio perpetrados pelo Exército Sérvio da Bósnia (ESB). Sua alternativa consistia em remover obstáculos ao emprego da superioridade militar americana em doses

maciças para resultados rápidos. Tais pressões, afinal, frutificaram em 1995, com a Operação Força Deliberada: graças ao papel central da força aérea dos Estados Unidos nos bombardeios da Otan contra o ESB, os sérvios abriram negociações em três semanas. E o sucesso militar fortaleceu a iniciativa diplomática de Washington. “O cessar-fogo em toda a Bósnia foi mediado por uma equipe de negociadores dos Estados Unidos, os acordos finais assinados em solo americano e a real contribuição da ONU ao término da guerra resumiu-se às suas bênçãos ao mandato da Otan para assegurar o acordo de paz”. (81)

Quatro anos depois, em 1999, outro conflito balcânico, agora decorrente da agressão sérvia para manter o domínio do Kosovo, tornou a evidenciar o abismo entre os americanos e seus parceiros europeus na Otan no tocante tanto à primazia quantitativa e qualitativa dos arsenais dos primeiros em relação aos segundos quanto à disposição para o seu uso com fins militares e políticos.

Assim, passou-se um quarto de século desde as primeiras escaramuças dos neoconservadores contra o derrotismo pós-Vietnã e a détente kissingeriana até as suas pregações em prol da aplicação unilateral, nos Bálcãs, da mais poderosa máquina bélica do planeta.

Ao longo desse tempo, nos seus livros, periódicos e think tanks, formataram uma agenda que se materializaria nas políticas externa e de segurança nacional dos Estados Unidos na primeira década do século XXI. Uma retrospectiva superficial e apressada destes últimos seis anos poderia conduzir à falsa noção de que isso estava escrito nas estrelas desde a eleição do segundo presidente Bush. Mas a história não é essa, pois, nos primeiros meses ele parecia inclinado na direção da política exterior “mais ‘modesta’” dos seus discursos de campanha. A estes, inclusive, não faltaram críticas por excessivamente ‘”realistas”’, várias delas disparadas pelo editor do Weekly Standadr, William Kristol, que, por sinal, apoiara outra pré-candidatura republicana, a do senador John McCain, do Arizona. (82)

Nessa chave interpretativa, a proposta do presidente Bush, que provocou tanto desconforto russo e europeu no primeiro semestre de sua administração, concernente ao programa de Defesa Nacional Antimísseis, poderia ser lida quase como antítese da receita neoconservadora de intervencionismo, mudança de regimes e promoção da democracia. Decerto, essa retomada da visão reaganiana da Iniciativa de Defesa Estratégica (popularizada pela mídia nos anos 80 como ‘guerra nas estrelas’), com custos de desenvolvimento inicial calculados em 60 bilhões de dólares, sepultaria o ABM, tratado antibalístico, negociado com a antiga União Soviética em 1972, no auge da détente. No entanto, como insistia Bush em seus esclarecimentos ao presidente russo, Vladimir Putin, e aos parceiros dos Estados Unidos na aliança atlântica, o novo escudo se destinaria a proteger o território americano de possíveis ataques com armas de destruição em massa disparadas por Estados delinqüentes (rogue states), como Irã, Iraque e Coréia do Norte – trinca que formaria o “eixo do mal”, denunciado pelo presidente no seu discurso sobre o Estado da União de janeiro de 2002 –, (83) e não a dar cobertura a uma estratégia proativa de destruição desses regimes e sua substituição por democracias patrocinadas por Washington.

Ora, o que mudou tudo foram os ataques aéreos terroristas de 11 de setembro de 2001.

No rastro do pânico e da desorientação que devastaram psicologicamente a sociedade e ameaçaram paralisar o governo, a ambiciosa e minuciosa agenda neoconservadora sobressaiu como a grande oportunidade de dar o troco ao inimigo terrorista, personificado em Osama Bin Laden, líder da rede Al-Qaeda, em seu esconderijo no Afeganistão do regime islâmico fundamentalista do Talibã: aplicação esmagadora de força militar, a fim de prevenir novos atentados, independentemente, necessário dos aliados dos Estados Unidos.

Os conceitos tão caros aos neoconservadores de guerra preventiva e de unilateralismo, ao lado do de mudança de regimes, forneceram o tripé em que se assentou a Estratégia de Segurança Nacional (NSS), documento divulgado um ano depois pelo governo americano, em setembro de 2002. (84) A nova NSS fundamentou o desdobramento da fulminante campanha militar contra o Afeganistão, do final de 2001 na invasão do Iraque, de março de 2003. Era o ápice da influência neoconservadora sobre as políticas externa e de segurança nacional dos Estados Unidos, o coroamento de uma jornada desde os estudos de doutoramento de Wolfowitz em Chicago, sob a orientação de Wohlstetter, passando pela Guerra do Golfo, em 1991, e os seus seguimentos, sempre no marco da mesma convicção: o regime de Saddam Hussein era fator central da crônica instabilidade do Oriente Médio e, por conseguinte, um perigo para a segurança dos Estados Unidos e do conjunto do mundo industrializado, dependente de petróleo da região. (A conjuntura pós-Onze de Setembro favoreceu a aceitação do argumento central para a invasão, o de que a contigüidade entre a ditadura de Bagdá e os focos do terror, mais que uma coincidência geográfica, traduzia uma relação de causa e efeito.)

Definitivamente arquivados estavam agora a doutrina do containment e o seu rationale defensivo-dissuasório; o vácuo foi ocupado por um conjunto de idéias que os neoconservadores se haviam esmerado por longo tempo em legitimar e disseminar, tais como a da “profundidade estratégica” (leia-se: vantagem militar insuperável) a serviço da “moldagem do futuro ambiente internacional” à imagem e semelhança dos interesses dos Estados Unidos (leia-se: preempção/prevenção), nos termos burocráticos do DPG de 1992, ou então, na linguagem mais vibrante do manifesto fundador do Pnac, de 1997: “a história do século XX nos deveria ter ensinado que é importante modelar as circunstâncias antes que surjam crises e encarar ameaças antes que elas se tornem perigosas.”

Em retrospectiva, portanto, soam quase premonitórias estas considerações de Kristol e Kagan no seu artigo de 1996, período em que a agenda neoconservadora esperava por sua oportunidade histórica.

A história [...] mostra que o povo americano pode ser convocado a enfrentar os desafios da liderança global, desde que estadistas apresentem os argumentos de modo nítido, persuasivo e persistente. Quando surgem os problemas e torna-se clara a necessidade de agir, aqueles que assentaram as fundações de uma necessária mudança na política têm uma oportunidade de liderar os americanos em um novo rumo. Em 1950, Paul Nitze e outros membros da administração Truman delinearam o famoso plano NSC-68, conclamação a um amplo esforço

para enfrentar o desafio soviético que incluía confrontação ideológica em grande escala e aumentos maciços de gastos de defesa. A princípio, suas propostas enlanguesceram. O presidente Truman, preocupado com um Congresso hostil e patrulhador do orçamento e um público americano no gozo de uma era de paz e prosperidade, recusou-se, durante meses, a aprovar as propostas de gastos de defesa. Foi necessário a invasão norte-americana da Coréia do Sul para permitir à administração mobilizar apoio às recomendações do NCS-68. Antes da Guerra da Coréia, os políticos americanos discutiam se o orçamento da defesa deveria ser de [US]$ 15 bilhões ou [US]$ 16 bilhões; a maioria acreditava que mais gastos com a defesa quebrariam a nação. No ano seguinte, o orçamento de defesa era superior a [US]$ 50 bilhões.

Uma seqüência similar de fatos ocorreu nos anos 70. Quando Reagan e os democratas [da linha] “Scoop” Jackson começaram a fazer soar o alarma do perigo soviético, o público americano não estava pronto para escutar. Então, veio a invasão do Afeganistão e o aprisionamento dos reféns americanos no Irã. Ao tempo em que Jimmy Carter admitiu haver aprendido mais do que nunca sobre a União Soviética, Reagan e seus aliados conservadores em ambos os partidos haviam assentado as fundações intelectuais da escalada militar dos anos 80.

A trajetória neoconservadora no âmbito das políticas externas e de segurança nacional dos Estados Unidos deu atestado eloqüente da validade da afirmação presente no título da obra publicada há quase meio século pelo pensador tradicionalista – ‘paleo’, não ‘neoconservador’ – Richard Weaver (1910-1963): as idéias têm conseqüências. (85)

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Notas e referências

(1) Cf. GADDIS, John Lewis, Strategies of containment: a critical appraisal of postwar American national security policy. New York: Oxford University Press, 1982, passim. Cf., também, WATERS, Robert, “Containment”, American conservatism: an encyclopedia, Bruce Frohnen, Jeremy Beer, and Jeffrey O. Nelson (eds.). Wilmington, DE: ISI Books, 2006, pp. 193-195.

(2) SMITH, Michael Joseph, Realist thought from Weber to Kissinger. Baton Rouge: Louisiana State University Press, 1986, p. 174.

(3) KENNAN George, “The sources of Soviet conduct by X”, Foreign Affairs, XXV, July, 1947: 566-582, reproduzido em KENNAN, American diplomacy: 1900-1950. Chicago: University Press, 1951.

(4) Kennan apud SMITH, Realist thought…, op.cit, p. 175.

(5) SMITH, op.cit., p. 177.

(6) Cf. id., ibid., pp. 219-226. Cf., também, MORGENTHAU, Hans J., Politics among nations: the struggle for power and peace, 5th ed., revised. New York: Alfred A. Knopf, 1978, passim. (Já existe edição brasileira: A política entre as nações: a luta pelo poder e pela paz. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/Brasília: Universidade de Brasília [UnB] e Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, 2003.)

(7) Depois de conseguir manter a neutralidade do seu país nos primeiros anos da guerra entre a Tríplice Aliança (Alemanha, Império Austro-Húngaro e Império Otomano), de um lado, e a Entente (encabeçada pela Grã-Bretanha e a França), de outro, Wilson atendeu ao clamor popular provocado pela guerra submarina irrestrita alemã responsável pelo torpedeamento de vários navios com a perda de centenas de vidas americanas (O governo da Alemanha considerava zona de guerra as águas em torno das ilhas britânicas.) Em abril de 1917, esmagadora maioria no Congresso concordou com o pedido de declaração de guerra feito por WW. Apesar do despreparo militar dos americanos no início de sua campanha na Europa, a entrada dos Estados Unidos, que já, havia tempo, era a maior potência industrial do mundo, desequilibrou a correlação de forças contra alemães e austríacos e apressou o fim do conflito. O desígnio wilsoniano de contribuir com o vigor material, a influência política e a tradição democrática de liberdade sob a lei da América à edificação de uma ordem pacífica e estável no pós-guerra esbarraria nas limitações impostas pela política doméstica. Nas eleições congressuais de meio de mandato presidencial de 1918, Wilson perdeu a maioria no Senado para os adversários republicanos e, conseqüentemente, o controle da poderosa Comissão de Relações Exteriores daquela Casa. Por isso, de volta da Europa, ele mergulharia em uma extenuante programação de

atos públicos a fim de convencer a opinião pública para que esta, por sua vez, pressionasse o Senado a ratificar o Tratado de Versalhes e o ingresso americano na Sociedade das Nações (SdN): entrevistas, comícios, conferências etc, até que, em setembro de 1919, no Colorado, vítima de esgotamento físico e nervoso, sofreu uma trombose que paralisaria seu lado direito. No Senado, enfrentou a oposição liderada pelo republicano Henry Cabot Lodge (1850-1924), do estado de Massachusetts, representante da forte tradição isolacionista republicana e adversário da SdN, por considerá-la um obstáculo ao pleno exercício da soberania americana e, portanto, ao interesse nacional dos Estados Unidos. Contrariado com a descaracterização de sua proposta, especialmente em torno do polêmico artigo sobre segurança coletiva, o próprio Wilson pediu à bancada democrata que rechaçasse o texto, com o que, ‘ironicamente’ ficariam os Estados Unidos fora da organização internacional inspirada por ele próprio. Cf. “Wilson, Woodrow”, The New Encyclopaedia Britannica, vol. 12. Chicago: Encyclopaedia Britannica Inc., 1994, pp. 690-692. (Havia um elemento de rivalidade intelectual no antagonismo Wilson/Lodge: o ex-presidente era doutor em Ciência Política – com tese sobre o Congresso americano – pela Universidade Johns Hopkins, enquanto sua nêmesis republicana havia sido o primeiro pós-graduado na mesma disciplina em Harvard.)

(8) HALPER, Stefan & CLARKE, Jonathan, America alone: the neo-conservatives and the global order. New York: Cambridge University Press, 2004, nota 9, p. 77. A análise histórica de maior fôlego sobre o papel dos neoconservadores e de suas idéias nas políticas externa e de segurança nacional dos Estados Unidos é EHRMAN, John, The rise of neoconservatism: intellectuals and foreign affairs, 1945-94. New Haven: Yale University Press, 1995. (Infelizmente, não tive acesso ao meu exemplar da obra de Ehrman a tempo de incorpora-la à presente reflexão.)

(9) Já associado a Princeton, Kennan retornaria a Moscou em 1952, desta vez como embaixador, lá permanecendo, porém, por apenas um ano. Licenciou-se da universidade mais um vez, entre 1961 e 1963, para assumir seu último posto diplomático, o de embaixador em Belgrado, antiga Iugoslávia. Em sua derradeira passagem pela União Soviética, escreveu dois trabalhos que consolidaram anos de reflexão sobre os desencontros entre as duas superpotências. No artigo para Foreign Affairs de abril de 1951, “América and the Russian Future” (depois reproduzido em American diplomacy..., op.cit), Kennan reafirmou a posição defendida nas páginas daquele mesmo periódico quatro anos antes: “uma prudente política de resistência diplomática à União Soviética não poderia deixar de produzir o ‘enfraquecimento gradual’ do regime “comunista; isto porque Kennan mantinha-se convicto de sua fragilidade fundamental (“’não pode haver genuína estabilidade em nenhum sistema [...] baseado no mal e na fraqueza humana’”). Cf. SMITH, Realist thought... op. cit., pp. 179-180. E, em despacho ao Departamento de Estado, de 8 de novembro de 1952, intitulado “The Soviet Union and the Atlantic Pact”, deplorou o erro de percepção americano quanto às reais intenções do Kremlin, erro que redundara em uma política conducente à rígida divisão em blocos militares antagônicos, já no final dos anos 40. Segundo Kennan, o governo americano fora incapaz de compreender que, ao manter e ampliar um grande exército, Moscou não planejava provocar uma guerra, mas sim projetar sua influência política por meios não- militares. Assim, o bloqueio de Berlim e a exclusão forçada dos políticos não-alinhados aos comunistas na Tchecoslováquia, em 1948, teriam sido uma resposta soviética ao Plano Marshall e à Doutrina Truman (de ajuda militar à Grécia). Ora, desde o longo telegrama, de 1946, e o artigo sob o pseudônimo de X, de 1947, Kennan criticara a expectativa irrealista dos líderes ocidentais quanto à possibilidade de uma íntima colaboração com os russos; agora, no seu entender, abandonando suas ilusões de cooperação, esses líderes incorriam em equívoco oposto ao superestimar a ameaça militar soviética, o que precipitou uma escalada de suspeitas mútuas e tornou, assim, inevitável a corrida armamentista. Cf. SMITH, op.cit., pp. 178-180.

(10) Como exemplos desse duplo foco, cf. seus O declínio da ordem européia de Bismarck. Brasília. UnB, 1985, e The nuclear delusion: Soviet-American relations in the atomic age, expanded edition. New York: Pantheon Books, 1983. Nos seus artigos do início dos anos 80, em pleno recrudescimento da Guerra Fria sob a presidência de Ronald Reagan, como “On nuclear war” (para New York Review of Books, XXVIII, January 21, 1982: 8-12) e “Nuclear weapons and the Atlantic alliance” (em co-autoria com dois formuladores da estratégia americana na administração John F. Kennedy, de 1961-1963, o ex-conselheiro de Segurança Nacional McGeorge Bundy e o antigo secretário de Defesa Robert S. McNamara, além de Gerard Smith, para Foreign Affairs, LX, Spring, 1982: 753-769), sua crônica decepção transformou-se em desespero a ponto de levá-lo a defender propostas de desarmamento unilateral!

(11) No início de 1966, Kennan, perante a Comissão de Relações Exteriores do Senado americano, prestou depoimento destinado a ficar célebre sobre a guerra do Vietnã, quando, lembra Smith, os Estados Unidos já haviam enviado cerca de 200 mil soldados, e a administração Lyndon B. Johnson tentava obter do Congresso créditos suplementares no valor de 275 milhões de dólares, a fim de escorar o governo de Saigon, sob ataque conjunto do exército do regime comunista do Norte e da guerrilha vietcongue. O testemunho de Kennan equivaleu a uma súmula da tradição realista. Ele “afirmou que a guerra era um erro por três razões essenciais. Primeiramente, o Vietnã não se constituía em um interesse vital para os Estados Unidos: ‘É difícil crer que quaisquer desdobramentos decisivos da situação mundial seriam determinados, em circunstâncias normais, pelo que ocorre naquele território’. Embora reconhecendo que os Estados Unidos haviam – desavisadamente – comprometido seu prestígio com o Vietnã do Sul [...], Kennan insistia em que o ‘envolvimento militar’ americano ‘tem de ser reconhecido como infeliz, como algo que não escolheríamos deliberadamente se nos fosse dado escolher de novo’. Concluiu ele que ‘o objetivo do nosso governo deveria ser a liquidação deste envolvimento com a rapidez possível, sem prejuízo [...] para o nosso prestígio’ Quanto ao modo pelo qual isso poderia ser feito, Kennan apoiava a idéia [...] de uma estratégia militar defensiva, posicionando nossas tropas em enclaves defensivos e procedendo a negociações para a retirada ao menor custo possível”. Realist thought..., op.cit, pp. 185-186. Vale notar que a posição de Kennan era compartilhada por outro

realista icônico, ninguém, menos que o já referido Morgenthau, mais um depoente ilustre à mesma comissão do Senado. Aparentemente, as críticas de ambos, disseminadas graças à cobertura televisiva dessas audiências, influenciou o início da virada da opinião pública contra a continuação do envolvimento militar dos Estados Unidos no Sudeste asiático, o que teria como conseqüências políticas imediatas a decisão de Johnson (ex-vice de Kennedy, guindado à presidência pelo assassinato deste em novembro de 1963) de não concorrer a reeleição em 1968 e a vitória no pleito daquele ano do republicano Richard Nixon.

(12) Cf. KISSINGER, Henry A., Um mundo restaurado: Castlereagh, Metternich e a restauração da paz no período

de 1812-1822. Rio: José Olympio, 1973; id., Nuclear weapons and foreign policy, Garden City. NY: Doubleday, 1957; e id., The necessity for choice: prospects for American foreign policy. New York: Harper Brothers, 1960. Depois de deixar o governo, Kissinger, além de inaugurar uma bem-sucedida carreira como consultor internacional em Nova York, dedicou-se a reconstituir e defender sua atuação à frente do Conselho de Segurança Nacional e no Departamento de Estado em três grossos volumes de memórias: Memoirs I: White House years. Boston: Little, Brown, 1979; Memoirs II: years of upheaval: Boston: Little Brown, 1982; e Memoirs III: years of renewal. New York: Simon & Schuster, 1999. (Até agora, somente o terceiro volume ganhou edição brasileira: Memórias – 3º volume: anos de renovação. Rio: UniverCidade/Topbooks, 2001.) A suma de suas análises sobre a história das relações internacionais está em Diplomacia. Rio: UniverCidade/Francisco Alves, 1999.

(13) KISSINGER, Memórias – 3º volume, op.cit., p. 100.

(14) Id., ibid., p. 103.

(15) HALBERSTAM, David, The best and the brightest. New York: Random House, 1969. O trabalho de Halberstam convida a um contraponto com ISAACSON, Walter & THOMAS, Evan, The wise man: six friends and the world they made. New York: Simon & Schuster/A Touchstone Book, 1986, monumental biografia coletiva dos bem-sucedidos fundadores da política exterior americana no pós-Segunda Guerra Mundial, dentre eles o secretário de Estado da administração Truman, Dean Acheson (1893-1971) e o próprio Kennan.

(16) Cf. KISSINGER, Memórias – 3º Volume…, op.cit., pp. 93-106.

(17) Id., ibid., pp. 105-106.

(18) Id., ibid., p. 106.

(19) Id., ibid., p. 110.

(20) Id., ibid., pp. 114-115.

(21) Id., ibid., p. 115.

(22) Id., ibid., pp. 107. Cf., também, p. 109.

(23) Id., ibid., pp. 107-108.

(24) Id., ibid., pp. 108 e 112.

(25) Apud STELZER, Irwin, “Neoconservatives and their critics”, em The neocon reader, Stelzer (ed.). New York: Grove Press, 2004, p. 4.

(26) O leitor interessado em se aventurar nesse terreno pode começar, por exemplo, pelo artigo de Adam Wolfson, publicado na coletânea de Stelzer, The neocon reader, op.cit., “Conservatives and neoconservatives”, pp. 213-231, e prosseguir com MICKLETHWAIT, John e WOODRIDGE, Adrian, The right nation: conservative power in America. New York: Penguin, 2004.

(27) A trajetória do neoconservadorismo e de sua influência na vida americana do último meio século é narrada pelo seu expoente maior em KRISTOL, Irving, Neoconservadorismo: autobiografia de uma idéia. Lisboa: Quetzal, 2003. Kristol ainda multiplicou seu dinamismo como articulista do Wall Street Journal, desde 1972, fundador da revista de política internacional National Interest, em 1985, e professor da New York University entre 1969 e 1988. Atualmente está associado ao think tank (instituto de estudos políticos, econômicos e sociais) direitista American Enterprise Institute, em Washington. Cf. HOEVELER, J. David, Jr., “Kristol, Irving”, American conservatism: an encyclopedia, Bruce Frohnen et alii (eds.)., pp. 480-481.

(28) Tais como os tradicionalistas, influenciados por Russell Kirk (1918-1994), admirador do patriarca do conservadorismo moderno, o irlandês Edmund Burke (1729-1797), e autor de The Conservative mind, clássico do

renascimento intelectual conservador americano quando de seu lançamento em 1953, e popularizados pela revista National Review, criação do polemista, romancista e seu publisher até hoje William Buckley (nascido em 1925), nas primeiras décadas desde sua fundação em 1955; e os libertários, ferozes inimigos do intervencionismo estatal na economia e na vida privada em geral, sob a influência do americano Milton Friedman (1912-2006), pai da chamada escola de Chicago e ganhador do Prêmio Nobel de Economia de 1976, e dos austríacos Ludwig von Mises (1881-1973) e Friedrich von Hayek (1899-1992, Nobel de Economia de 1974 e autor do clássico The road to serfdom, de 1944, libelo contra o coletivismo nazi-fascista, comunista ou social-democrata, até hoje o maior sucesso de vendas da editora da Universidade de Chicago e com várias tiragens no Brasil [O caminho da servidão], pelo Instituto Liberal). Resumo útil e agradável é o já referido WOLFSON, Adam, “Conservatives and neoconservatives”, em The neocon reader, Stelzer (ed.), op.cit.

(28.a) Cf. STELZER, Irving, “Neoconservatives and their critics”, em The neocon reader, Stelzer (ed.), op.cit, pp. 20-21 e 24; e, na mesma coletânea, KRISTOL, Irving, “A conservative welfare state”, pp. 143-148.

(29) Dados como o papel de Commentary nos debates neoconservadores; a origem judaica de figuras centrais da primeira geração neoconservadora (Irving Kristol, Nathan Glazer etc), do já citado estrategista Richard Perle e do ex-secretário- adjunto de Defesa da administração George W. Bush, Paul Wolfowitz; e a intensa propaganda de guerra ao terrorismo islâmico por publicistas da segunda geração (o já referido William Kristol e o filho de Norman, John Podhoretz, entre outros) têm sido usados por adversários à esquerda e à direita para acusar o neoconservadorismo de uma quinta-coluna dos interesses de Israel, em especial do partido direitista Likud, no estabelecimento das políticas externa e de segurança nacional dos Estados Unidos. Para contra-ataques bem fundamentados a essa crítica, com os quais, por sinal, concordo, cf. BROOKS, David, “The neocon cabal and other fantasies”; Boot, Max, “Myths about neoconservatism”; MURAVCHIK, Joshua, “The Neoconservative cabal”, todos em The neocon reader, pp. 39-42, 43-52 e 241-257, respectivamente , op. cit; e cf., também, até mesmo os adversários declarados do enfoque neoconservador em política externa HALPER, Stefan & CLARKE, Jonathan, America alone: the neo-conservatives and the global order, op.cit. p. 58.

(30) Cf. HALPER & CLARKE, op.cit., p. 56. O apaziguamento passou para a História como rótulo da fracassada política do ex-primeiro ministro britânico Neville Chamberlain (1869-1940) em relação às ambições anexacionistas da Alemanha de Adolf Hitler no período imediatamente anterior à Segunda Guerra Mundial.

(31) Segundo o site esquerdista Right Web (ligado ao International Relations Center, [IRC], de Silver City, Novo México), Richard Pipes alcançou a coordenação do Team B graças à recomendação do senador Jackson, a quem havia sido apresentado por Richard Perle. Cf. www.rightweb.irc-oline.org/profile/2822 (consultado em 09 de setembro de 2007).

(32) Apud Right Web, loc.cit.

(33) Apud MANN, James, Rise of the Vulcans: the history of Bush’s war cabinet. New York: Penguin, 2004, p. 74.

(34) Cf. Right Web, loc.cit.

(35) Cf. www.rightweb.irc-online/gw/1589 (também consultado em 09 de setembro de 2007)

(36) Erudito judeu alemão, Strauss deixou seu país de nascimento para escapar da perseguição nazista, passando rapidamente pela França e a Grã-Bretanha até fixar-se nos Estados Unidos. Lecionou na Universidade de Chicago a maior parte de sua vida. Sua meditação sobre a crise da modernidade ocidental baseava em uma leitura penetrante de obras clássicas como as de Platão, Xenofonte, Aristóteles, Al-Farabi (circa 870-950, pensador islâmico), Moisés Maimônides (1135-1204, filósofo judeu), Maquiavel, Hobbes e Spinoza. Quanto à insistência straussiana em uma atitude de intransigente denúncia e combate ao mal, motivo de sua admiração pelo antinazismo e o anticomunismo de estadistas como o ex-primeiro ministro britânico Winston Churchill (1874-1965), cf., por exemplo, BOYER, Peter, “The believer: Paul Wolfowitz defends his war”, The New Yorker, November 1, 2004, perfil jornalístico do então secretário-adjunto de Defesa da administração George W. Bush (disponível em www.newyorker.com/archive/2004/11/04/041101fa_ct? printable=true). Para uma pequena lista de ex-alunos – e ex-alunos de ex-alunos – de Strauss a serviço de administrações republicanas recentes, cf. WEINSTEIN, Kenneth R., “Philisophic roots, the role of Leo Strauss, and the war in Iraq”, em The neocon reader, Stelzer (ed.), op.cit., pp. 204-205. Esse ensaio oferece uma breve e útil introdução às questões centrais do pensamento straussiano, à luz de algumas de suas obras mais importantes, entre as quais Natural right and history. Chicago University Press, 1953. Wolfowitz, em seus tempos de graduação na Universidade de Cornell, fora aluno de um famoso discípulo de Strauss, Allan Bloom, e, mais tarde, já estudante do doutorado em Ciência Política de Chicago, cursou duas disciplinas com o próprio Strauss, ao contrário de Richard Perle, que jamais estudou com este. Mas, em sua tese de doutoramento (1972), sobre os riscos da proliferação nuclear no Oriente Médio, foi Wolfowitz orientado por Albert Wohlstetter. E Perle ainda adolescente, havia namorado a filha de Wohlstetter em Los Angeles. Mais tarde, por volta de 1969, Perle, já estudante de pós-graduação na Universidade de Princeton, foi recrutado por Wohlstetter para um estágio no escritório de Washington de efêmero grupo de pressão idealizado por Dean Acheson e Paul Nitze para defender os

sistemas antibalísticos das críticas e dos cortes orçamentários dos liberais do Senado. Cf. MANN, James, Rise of the Vulcans..., op.cit, pp. 30-32.

(37) Cf. WOHLSTETTER, Albert, “The delicate balance of terror”, Foreign Affairs, January 1959: 211-234.

(38) Cf. MANN, op.cit., pp. 29-32.

(39) Cf. www.rightweb.irc-oline.org/profile12822 (consultado em 09 de setembro de 2007).

(39.a) Cf. HALPER, Stefan & CLARKE, Jonathan, America alone…, pp. 61-64, 90 e 92.

(40) Cf. MANN, op.cit., pp. 91-94.

(41) Cf. id., ibid., p. 88.

(42) HALPER & CLARKE, op.cit., p. 171.

(43) Id., ibid., pp. 163-164.

(44) Id., ibid., p. 162.

(45) Para uma visão sucinta desses episódios e uma boa interpretação das motivações táticas e estratégicas de Reagan e do seu secretário de Estado Shultz, cf. SKINNER, Kiron K., “Reagan’s plan”, The National Interest, (56), Summer 1999: 136-140.

(46) Cf. HALPER & CLARKE, op.cit., p. 163.

(47) Id., ibid., p. 177.

(48) Id., ibid., p. 176.

(49) Cf. id., ibid., pp. 167-168.

(50) Id., ibid., pp. 164-171.

(51) Para as informações contidas neste parágrafo e no anterior, cf. id., ibid., pp. 172-175. Os mesmos autores lembram ainda que, em 1983, Reagan não aceitou promover Kirkpatrick à posição de conselheira de Segurança Nacional. Cf. p. 174. Segundo Halper e Clarke, a administração Reagan ostentava “trinta e dois membros do Committee on the Present Danger em posições de assessoramento.” Cf. p. 172.

(52) HALPER & CLARKE, op.cit., p. 175.

(53) Conforme recorda James Mann, essa foi a área onde, à certa altura da administração Reagan, verificou-se uma inflexão antecipatória da política de promoção democrática adotada pelo presidente George W. Bush. Até o início dos anos 80, o governo Ferdinand Marcos, nas Filipinas, encarnava o protótipo da ditadura autoritária merecedora da tolerância de Washington, segundo Kirkpatrick. Porém, as gestões empreendidas pelo então secretário-assistente de Estado para a Ásia-Pacífico Paul Wolfowitz terminaram por persuadir seu chefe George Shultz e, em seguida, o próprio Reagan de que a combinação de violência repressiva e fraude eleitoral empregados por Marcos para resistir à liberalização do seu regime e ao avanço da oposição tenderiam a fortalecer politicamente líderes pró-comunistas. A ameaça de corte da ajuda militar americana e a pressão pessoal de Reagan sobre seu velho aliado filipino abriram afinal o caminho para a renúncia deste e a posse da presidente eleita Corazón Aquino, bem como ajudaram a acelerar a transição democrática nas vizinhas Coréia do Sul e Taiwan. Cf. MANN, Rise of the Vulcans..., op.cit, pp. 128-135.

(54) HALPER & CLARKE, op.cit., pp. 171-172.

(55) Id., ibid., p. 99.

(56) Id., ibid., p. 100.

(57) Kirkpatrick apud HALPER & CLARKE, op.cit., p. 78.

(58) HALPER & CLARKE, op.cit., p. 78. Quanto a Tucker, seu livro em co-autoria com David Hedrickson, The imperial temptation: the New World Order and America’s purpose, lançado em 1992, era recheado de

recomendações nesse mesmo sentido: “Ecoando a modalidade de realismo defendida por Kristol, Tucker afirmou [que] ‘O princípio-guia da política americana de segurança, hoje, deve ser uma devolução de responsabilidades substanciais aos parceiros de nossas alianças, juntamente com a retenção dos compromissos de segurança vigentes’”. HALPER & CLARKE, op.cit., p. 77.

(59) Cf. MANN, op.cit., pp. 179-180.

(60) Id., ibid., p. 180.

(61) Colin Powell apud MANN, op.cit., p. 189.

(62) Cf. MANN, op.cit., pp. 189-194.

(63) Cf. id., ibid., p. 192.

(64) Id., ibid., 193.

(65) Cf. HALPER & CLARKE, op.cit., p. 145. Neste e nos próximos parágrafos, baseio-me amplamente no relato de MANN, op.cit., pp. 198-215.

(66) “The unipolar moment” é o título de artigo de Charles Krauthammer, colunista do Washington Post e membro proeminente da jovem guarda neoconservadora, publicado em Foreign Affairs, na edição do inverno de 1990/91 (pp. 23-33). No inverno anterior (1989/90), a revista The National Interest já havia divulgado ensaio do mesmo articulista intitulado “Universal dominion: toward a unipolar world” (pp. 173-178).

(67) HALPER & CLARKE, op.cit., p. 145.

(68) MANN, op.cit., pp. 212-213.

(69) Id., ibid., p. 200

(70) Cf. Id., ibid., p. 213.

(71) Entre outras obras, Donald Kagan é autor de um estudo importante já publicado no Brasil: A Guerra do Peloneso: novas perspectivas sobre o mais trágico confronto da Grécia Antiga. Rio: Record, 2006. Para seu filho Robert, a fama veio com uma articulada defesa da estratégia preventiva unilateral e intervencionista da administração Bush II diante dos seus críticos europeus em plena conjuntura do início da Guerra do Iraque: Of paradise and power: American and Europe in the new world order. New York: Knopf 2003, também lançado no Brasil (pela Rocco).

(72) HALPER, Stefan & CLARKE, Jonathan, “Neoconservatism is not Reaganism”, American Spectator, 37, (3), April 2004, captado na base de dados www.web.ebscohost.com, em 02 de agosto de 2007, graças ao apoio da Biblioteca “Acadêmico Luiz Viana Filho”, do Senado Federal. Quanto ao artigo de Kristol e Kagan, o já referido “Toward a neo-Reaganite foreign policy”, colhi-o no portal do Carnegie Endowment for Peace (www.CarnegieEndowment.org), em 09 de setembro de 2007, razão pela qual não posso referir as páginas de Foreign Affairs onde apareceu pela primeira vez.

(73) Cf. HALPER & CLARKE, America alone..., op.cit., pp. 103-105. Cf. também, a resenha de Robert Jervis do livro de Halper & Clarke no Political Science Quarterly, 120, (1), 2005: 131-132.

(74) www.rightweb.irc-online.org/profile/1535d (consultado em 09 de setembro de 2007).

(75) Cf. www.rightweb.irc-oline.org, loc.cit.; cf., também, BOOT, Max, “Myths about neoconservatism”, em The neocon reader, Irwin Stelzer (ed.), op.cit., p. 48., e HALPER & CLARKE, op.cit., pp. 104-110. O mesmo portal resume a declaração financeira do Pnac, que, “[d]e 2000 a 2005, [...] recebeu [US]$ 241.735 em dolações de [...] fundações conservadoras [...] A fundação Bradley foi a maior fonte de sustento do PNAC, repassando-lhe [US]$ 800.000 de 1997 a 2005.”

(76) Cf. www.rightweb.irc-online.org, loc.cit., que, em seu perfil crítico do Pnac reconheceu a “característica capacidade” da organização “para reunir diferentes elementos da paisagem política, alguns destes [...] apoiado por grupos e indivíduos liberais [...], bem como líderes do lobby pró-Israel nos Estados Unidos, cristãos evangélicos [,] conservadores sociais, falcões liberais do Partido Democrático, nacionalistas republicanos linha-dura”, bem como expressões do realismo conservador.

(77) MANN, Rise of the Vulcans..., op.cit., pp. 103-105.

(78) Cf. HALPER & CLARKE, America alone…, op.cit., p. 82, em cujas informações (pp. 84-98) baseio-me amplamente nos próximos parágrafos.

(79) Apud HALPER & CLARKE, ibid., p. 86.

(80) HALPER & CLARKE, ibid., p. 87.

(81) Id., ibid., p. 91.

(82) WOLFSON, Adam, “Conservatives and neoconservatives”, em The neocon reader, Irwin Stelzer, op.cit., pp. 226 e 228.

(83) Cf. “O escudo antimísseis”, editorial de O Estado de S. Paulo, de 06 de maio de 2001, p. A-3.

(84) Dado o impacto dos acontecimentos no clima político e de idéias daquele momento, pouco importava que a NSS não tivesse sido elaborada sob direta responsabilidade dos neoconservadores da administração Bush II, entre os quais Wolfowitz, à época o segundo em comando no Pentágono. A tarefa ficou a cargo de uma brilhante ex-soviétóloga da Universidade de Stanford, introduzida na Casa Branca de Bush I pelo ex-conselheiro de Segurança Nacional, o realista e moderado Brent Scowcroft: Condoleezza Rice. (Depois de ocupar, durante o primeiro mandato de Bush II, a mesma posição de seu antigo mentor, ela assumiria a função de secretária de Estado no segundo.) Para ajudá-la na NSS, Rice encarregou um companheiro de academia, o professor Philip Zelikow, da Universidade da Virgínia, o qual já havia escrito em co-autoria com ela livro sobre a reunificação alemã, um dos principais capítulos da nova ordem mundial pós-Guerra Fria, protagonizado pelas administrações Reagan e Bush I. Cf. RICE, Condolezza & ZELIKOW, Philip, German united and Europe transformed. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1995. Vale observar, também, que a dupla dos dois mais poderosos defensores do uso unilateral da força militar americana contra o terrorismo islâmico e o seu prolongamento na guerra ao regime de Saddam Hussein, formada pelo vice-presidente Richard Cheney (nascido em 1941) e o ex-secretário de Defesa Donald Rumsfeld (nascido em 1932), tampouco pode ser classificada como neoconservadora. Halper e Clarke, p. 14, os descrevem como “nacionalistas americanos” cujas posições duras em assuntos de política externa encontraram conveniente respaldo intelectual na agenda dos neoconservadores. As trajetórias de ambos se entrelaçaram ao longo de mais de 30 anos. Depois de três mandatos como deputado republicano pelo Illinois à Câmara dos Representantes, Rumsfeld dirigiu o Escritório de Oportunidades Econômicas (OEO), entre 1969 e 1971, na administração Nixon; seu assistente especial era Cheney. Quando Rumsfeld deixou a chefia de gabinete da Casa Branca de Gerald Ford, em 1975, para assumir pela primeira vez o comando do Pentágono, foi substituído pelo seu subchefe, novamente Cheney, que também seria deputado republicano à Câmara (pelo Wyoming), de 1979 a 1989. Durante os anos Reagan, Rumsfeld (então, próspero executivo da indústria farmacêutica) e o deputado Cheney se encontravam periodicamente como integrantes de um exercício supersecreto destinado a manter o núcleo decisório do governo americano em caso de ataque nuclear soviético. Cf. MANN, op.cit., pp. 138-149.

(85) Cf. WEAVER, Richard M., Jr. Ideas have consequences. Chicago: University of Chicago Press, 1984 [1948]. E, para terminar, duas observações que me parecem relevantes. Apesar da ruptura com a tradição do containment, a abordagem preventiva ou preemptiva não é uma novidade absoluta na história da estratégia americana. Em 1818, quatro anos depois do ataque militar inglês a Washington, durante a segunda guerra da independência (1812-1815) – primeira das duas únicas agressões externas contra o território continental dos Estados Unidos, sendo a outra desfechada quase dois séculos depois, no Onze de Setembro –, o então secretário de Estado (e depois sexto presidente americano, de 1825 a 1829) John Quincy Adams (1767-1848) apoiou operação militar preventiva contra índios hostis da Flórida, na época território pertencente à coroa espanhola. Cf. GADDIS, John Lewis, Surprise, security and the American experience. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2004. (Sou grato ao professor Richard Immerman por chamar minha atenção para esse fato e também para a obra de Gaddis, durante o Quarto Colóquio de Estudos Americanos [O papel dos Estados Unidos depois da Guerra Fria: Segurança Internacional]. Porto Alegre, 07 a 14 de julho de 2007.) Há uma certa ironia subjacente à evocação de John Quincy Adams como precursor da preempção/prevenção na estratégia dos Estados Unidos, já que os adversários das políticas externa e de segurança nacional da administração Bush II costumam brandir contra o intervencionismo neoconservador a conhecida advertência daquele presidente de que a América jamais deveria ir “ao exterior à procura de monstros para destruir” (KRISTOL & KAGAN, “Toward a neo-Reaganite foreign policy”, artigo citado). A segunda e última ironia fica por conta das referências de mais de um comentarista – cf., por exemplo, e, também, Halper e Clarke tanto no livro quanto no artigo citados acima – ao idealismo wilsoniano como fonte inspiradora do intervencionismo neoconservador, com sua receita para a mudança de regimes tirânicos antiamericanos e sua reconstrução em moldes liberal-democráticos pró-Ocidente. (Eu mesmo já incorri nesse equívoco ao comentar o segundo discurso de posse do presidente George W. Bush, em janeiro de 2005, no artigo “W, de Woodrow?”, para a minha coluna de análise política no www.congressoemfoco.com.br) Muito embora Halper e Clarke façam qualificações importantes como a de lembrar que, no projeto de Wilson, o multilateralismo era instrumento essencial para a prevenção das guerras e construção de uma ordem mundial pacífica e democrática (Cf. HALPER & CLARKE, America Alone..., op.cit., p. 181), acabam concordando em rotular os neoconservadores da jovem guarda de wilsonianos armados (“Wilsonians with guns”). (Esse rótulo aparece no seu artigo “Neoconservatism is not Reaganism”, para American Spectator, referido acima, na nota 72.) Da minha parte, estou convencido de que Kristol e Kagan refletem muito mais

acuradamente os instintos da sua própria tendência ao reivindicar o legado de Theodore Roosevelt (1858-1919), 26º presidente dos Estados Unidos (1901-1909) e apóstolo do uso da força militar como ferramenta essencial do interesse americano, proclamando-o a pedra fundamental do seu neo-reaganismo, quando afirmam: “Uma política externa neo-reaganiana seria boa para os conservadores, boa para a América e boa para o mundo. Vale recordar que os dois mais bem-sucedidos presidentes republicanos deste século [o artigo de K&K é de 1996], Theodore Roosevelt e Ronald Reagan, inspiraram os americanos a assumir, com ânimo elevado, as novas responsabilidades internacionais decorrentes do aumento de poder e influência. Ambos celebraram o excepcionalismo americano. Ambos tornaram os americanos orgulhosos do seu papel de liderança nos assuntos mundiais [...]”