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“Um sorriso negro: Dona Ivone Lara e a ética de filosofar com o tamborim Renato Noguera 1- Considerações primeiras; 2- O samba e a filosofia; 3- Dona Ivone Lara como figura estética, seus perceptos e seus afetos; 4Polifonias heterográficas; 5 Sorriso Negro como conceito filosófico afroperspectivista; 6 Sambasofia/sambafilia e a ética do tamborim; 7- Conclusões parciais; Referências. “Um sorriso negro, um abraço negro, traz felicidade” (Adilson Barbado, Jair Carvalho e Jorge Portela) 1 Considerações primeiras para esquentar os tamborins Por um lado, o som do samba cantado por Dona Ivone Lara é razão para a composição deste capítulo. Por outro, as sonoridades da filosofia de Deleuze. Sem dúvida, o samba é um voo que produz belas vertigens mesmo se for raso. O samba é uma manifestação artística negra plantada e colhida em território brasileiro. Ou ainda, uma reterritorialização africana que fez do samba um acontecimento inusitado que ecoou de corações das pequenas Áfricas baianas, cariocas, quilombolas e das rodas regadas com alegria de cantar em coro. Ora, o termo “samba” deriva de semba, uma palavra do tronco linguístico banto que: (...) entre os quiocos (chokwe) de Angola, é verbo que significa cabriolar, brincar, divertir-se como cabrito. Entre os bacongos angolanos e conguenses, o vocábulo designa uma espécie de dança em que um dançarino bate o peito contra o outro. E essas duas formas da raiz multilinguística semba rejeitar, separar, que deu origem ao quimbundo di-semba, umbigada , elemento coreográfico fundamental do samba rural, em seu amplo leque de variantes, que inclui (...) outras formas de dança (LOPES, 2003, p. 14). Nós não queremos fazer aqui uma genealogia e uma historiografia do samba. Mas, autores como José Ramos Tinhorão (1997; 1998), Nei Lopes (2003), Sérgio Cabral (1990), Hermano Vianna (1995) entre outras e outros, ajudam a entender um pouco dos mapas de produção e emergência desse gênero musical, coreografia, espetáculo, signo nacional ou qualquer outro adjetivo que possamos lhe dar. Sem dúvida, alguns de seus textos são alvos de nossas leituras, análises e servem até hoje como interlocutores quando empreendemos o exercício filosófico afroperspectivista da sambafilia e do sambasofia. Termos aos quais voltaremos mais adiante.

Um Sorriso Negro_Renato Noguera in O Samba e a Filosofia_2014

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O samba e a filosofia

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“Um sorriso negro”: Dona Ivone Lara e

a ética de filosofar com o tamborim

Renato Noguera

1- Considerações primeiras; 2- O samba e a filosofia; 3- Dona Ivone Lara

como figura estética, seus perceptos e seus afetos; 4– Polifonias

heterográficas; 5 – Sorriso Negro como conceito filosófico afroperspectivista;

6 – Sambasofia/sambafilia e a ética do tamborim; 7- Conclusões parciais;

Referências.

“Um sorriso negro, um abraço negro, traz felicidade”

(Adilson Barbado, Jair Carvalho e Jorge Portela)

1 – Considerações primeiras para esquentar os tamborins

Por um lado, o som do samba cantado por Dona Ivone Lara é razão para a

composição deste capítulo. Por outro, as sonoridades da filosofia de Deleuze. Sem

dúvida, o samba é um voo que produz belas vertigens mesmo se for raso. O samba é

uma manifestação artística negra plantada e colhida em território brasileiro. Ou ainda,

uma reterritorialização africana que fez do samba um acontecimento inusitado que

ecoou de corações das pequenas Áfricas baianas, cariocas, quilombolas e das rodas

regadas com alegria de cantar em coro. Ora, o termo “samba” deriva de semba, uma

palavra do tronco linguístico banto que:

(...) entre os quiocos (chokwe) de Angola, é verbo que significa cabriolar,

brincar, divertir-se como cabrito. Entre os bacongos angolanos e conguenses,

o vocábulo designa uma espécie de dança em que um dançarino bate o peito

contra o outro. E essas duas formas da raiz multilinguística semba – rejeitar,

separar, que deu origem ao quimbundo di-semba, umbigada –, elemento

coreográfico fundamental do samba rural, em seu amplo leque de variantes,

que inclui (...) outras formas de dança (LOPES, 2003, p. 14).

Nós não queremos fazer aqui uma genealogia e uma historiografia do samba.

Mas, autores como José Ramos Tinhorão (1997; 1998), Nei Lopes (2003), Sérgio

Cabral (1990), Hermano Vianna (1995) entre outras e outros, ajudam a entender um

pouco dos mapas de produção e emergência desse gênero musical, coreografia,

espetáculo, signo nacional ou qualquer outro adjetivo que possamos lhe dar. Sem

dúvida, alguns de seus textos são alvos de nossas leituras, análises e servem até hoje

como interlocutores quando empreendemos o exercício filosófico afroperspectivista da

sambafilia e do sambasofia. Termos aos quais voltaremos mais adiante.

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Nós vamos mencionar ligeiramente apenas o jornalista e crítico musical

Tinhorão (1997; 1998), polemista de mão cheia que, pelo seu tom iconoclasta, parece

atrair admiração e objeção com a mesma intensidade. Em linhas gerais, Tinhorão pintou

um cenário em que o samba (um gênero autenticamente popular da música brasileira de

irrefutável protagonismo negro e da classe trabalhadora) foi indevidamente apropriado

pela classe média branca, principalmente nas décadas de 1930, o grupo de Vila Isabel, e

nos anos 1950, pelo movimento bossa novista que o desfigurou ainda mais com a

mistura com o jazz. Ora, Tinhorão passou a atrair desde então muitos adversários no

campo da crítica musical. Não é nosso escopo alongar e desenvolver as suas críticas;

basta registrar aqui a tese da expropriação cultural.

Nós podemos trazer uma comparação muito inusitada para boa parte de quem lê

este capítulo. O discurso de Tinhorão, guardando as devidas proporções, equivaleria, em

termos filosóficos, à tese de James (2005) em seu livro “Stollen Legacy” segundo a qual

os gregos aprenderam filosofia com os egípcios e fizeram algumas adaptações sem citar

devidamente as fontes. No livro publicado pela primeira vez em 1954 James, entre

outras coisas, comenta que Pitágoras estudou no Egito.

Pois bem, a analogia tem um esquema muito simples, o samba está para a

filosofia assim como a população negra brasileira está para os egípcios e o continente

africano. Por outro lado, a classe média branca brasileira “representa” os gregos e o

continente europeu. Ora, esse modelo foi o nosso ponto de partida. Samba e filosofia

como produções afroperspectivistas (adiante adentraremos longamente nesse conceito).1

Nós não vamos entrar diretamente nessa polêmica. Esse ligeiro preâmbulo serve

apenas para trazer um pouco das afrografias2 filosóficas que serão descortinadas pelo

samba que se tornou um marco na carreira de Dona Ivone Lara. Ou ainda, serve para

trazer o tom das provocações e arranjos que esperam o(a) leitor(a). Afinal, podemos até

parafrasear Nietzsche (2001) que fez uma declaração de guerra, levantando o martelo

como instrumento de escrita. Se Nietzsche, filósofo que está no elenco principal de

nossos interlocutores, foi enfático ao dizer que o martelo falava na sua destruição

criativa dizendo: “Todos os criadores são duros” (idem, p. 102). Nós aqui dizemos,

todos os criadores têm ritmo. Porque aqui não é o caso de declarações de guerra,

1 Para os que alimentam curiosidade sobre esse ponto, confessamente polêmico, sugerimos conferir nosso

artigo a esse respeito (Noguera, 2013). 2 O termo afrografia foi tomado emprestado de Leda Martins (1997).

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tampouco de tratados de paz; antes, a assunção das multiparcialidades3 próprias do

exercício do convívio. Neste sentido, nossa declaração é propor uma filosofia que toque

tamborim, repique, cuíca e pandeiro. Neste sentido, aventar essas ideias controversas,

inusitadas e, porque não dizer, polêmicas ajuda a esquentar os tamborins.

2 – O samba e a filosofia

“O plano de composição da arte e o plano de imanência da filosofia podem

deslizar um no outro, a tal ponto que as certas extensões de um sejam ocupadas por

entidades do outro” (DELEUZE ; GUATTARI, 1992, p. 89). Esses autores dizem que a

filosofia pensa por conceitos trazidos por personagens conceituais dentro de um plano

de imanência; enquanto a arte faz a mesma coisa através de afetos e perceptos que as

figuras estéticas fazem bailar dentro de um plano de composição. A relação entre a arte

e a filosofia aqui deve ser entendida dentro de uma perspectiva bem específica. Em “O

que é a filosofia?” (DELEUZE; GUATTARI, 1992), encontramos a definição de

filosofia como criação de conceitos. O que se dá por meio da instalação de um plano de

imanência

Nós vamos tratar de samba e de filosofia afroperspectivista, vamos nos deter nas

maneiras como os planos passam um pelo outro. O trabalho que temos feito se

denomina afroperspectividade ou ainda filosofia afroperspectivista. Esse

encaminhamento filosófico dialoga com o samba, a capoeira, o Ifá, o jongo, entre outros

elementos culturais africanos reterritorializados no Brasil.

A definição mais sucinta da afroperspectividade é que se trata de uma atividade

filosófica que se ocupa das coreografias do pensamento africano e seus diálogos,

desdobramentos, bifurcações e encruzilhadas (NOGUERA, 2011). Um exercício que

tem como inicio o reconhecimento da filosofia como atividade pluriversal. Ou seja, não

se trata de entender as produções em termo de universal e local ou regional (RAMOSE,

2011). Mas compreender que todo universal é um regional tomado como cânone. Em

outros termos, reivindicar a pluriversalidade da filosofia significa dizer que nenhuma

perspectiva particular tem “direito de se impor como a primeira e única experiência,

conhecimento e verdade se encaixam e se tornam válidos para todos os outros seres

3 Esse termo foi objeto de uma entrevista dada pelo grupo Mídia Ninja ao programa Roda Viva em

05/08/2013.

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humanos” (RAMOSE, 2011, p. 11), rechaçando outras perspectivas particulares. A

pluriversalidade traz um raciocínio simples para o debate, o “reconhecimento da

particularidade como um critério válido para toda ou para nenhuma filosofia” (Idem).

Neste sentido, significa dizer que toda filosofia é particular e que nenhuma tem “direito”

a ser eleita como universal diante de outras que sejam locais. Visto isso, vale dizer que a

afroperspectividade além de primar pela pluriversalidade também se entende como

polirracional. Este conceito na acepção usada pelo filósofo ugandense Masolo (2010)

diz respeito às múltiplas plataformas de racionalidade que os seres humanos são capazes

de construir, aprender e utilizar.

3. Dona Ivone Lara como figura estética, seus perceptos e seus afectos

O disco lançado em 1981 chamado “Dona Ivone Lara, sorriso negro” é a fonte

para os conceitos que pretendemos de modo afroperspectivista fazer circular entre

nossos(as) ouvintes. Ou melhor, entre nossas(os) leitoras(es). Neste trecho do capítulo

aproveitamos para fazer um pedido, leiam ouvindo a música.

Um sorriso negro

Um abraço negro

Traz felicidade

Negro sem emprego

Fica sem sossego

Negro é a raiz de liberdade

Negro é uma cor de respeito

Negro é inspiração

Negro é silêncio é luto

Negro é a solidão

Negro que já foi escravo

Negro é a voz da verdade

Negro é destino é amor

Negro também é saudade

Um sorriso negro

Um abraço negro

Traz felicidade

Negro sem emprego

Fica sem sossego

Negro é a raiz de liberdade (SANTOS, 2010, p.135-136).

A escritora Katia Santos (2010) é autora de uma biografia muito singela e

penetrante sobre Dona Ivone Lara. Num dado momento ela se refere à repercussão de

“Sorriso Negro” na interpretação de nossa figura estética/personagem conceitual.

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Esta é uma música tão emblemática para os negros brasileiros que é,

inclusive, usada na Igreja do Rosário dos Pretos, de Salvador, Bahia,

nas missas das terças-feiras. Tive a oportunidade de presenciar um

desses serviços e posso garantir que é muito tocante ver, na igreja, as

pessoas se abraçando enquanto cantam o refrão que diz que um abraço

negro traz felicidade. Nesse momento, todos recebem o abraço negro

de felicidade que as pessoas têm para ofertar, independentemente da

cor da pele de quem dá e recebe o abraço. É um momento realmente

muito bonito. E a gravação que ouvimos ecoar na igreja é a voz de

Dona Ivone Lara, acompanhada pela percussão do bloco afro Ilê Ayê

e pelo Coral do Rosário (SANTOS, 2010, p. 136).

Para Deleuze e Guattari (1992), as figuras estéticas são potências, forças

criadoras que fazem emergir os perceptos e afetos, os quais, por sua vez, podem ser

muitas vezes coextensivos aos conceitos filosóficos. Pois bem, o nosso entendimento

aqui é que o samba “Sorriso Negro” – trilha sonora deste capítulo – traz perceptos, isto

é, situações vividas e/ou imaginadas pelo artista que tratam de um tipo de devir negro

como sinônimo de resistência e luta por liberdade. Os afetos dizem algo semelhante, são

os modos de sentir e existir dos que são atravessados pela música. Nesse caso, o

atravessamento e a vivência da arte trazem em si a reconciliação, o abraço como

ocorrência que dá o sentido da liberdade. O sorriso negro é um conjunto de perceptos e

afetos que descortina uma história que não é o registro de uma biografia. Se, em termos

afroperspectivistas, podemos dizer que Dona Ivone Lara é mais do que a mulher negra,

criada no Morro da Serrinha, localizado no majestoso bairro de Madureira, no Rio de

Janeiro. Dona Ivone Lara enquanto figura estética/personagem conceitual difere de

Yvonne da Silva Lara - cuja certidão de nascimento consta: 13 de abril de 1921, filha de

João da Silva Lara, músico virtuoso no violão de sete cordas e, da crooner de rancho

carnavalesco Emerentina Bento da Silva (SANTOS, 2010). Dona Ivone Lara é artista,

compositora e intérprete. Importante dizer que mesmo não sendo autora de “Sorriso

Negro” foi a responsável pela sua consagração.

Nos termos de Deleuze e Guattari (1992), a arte é um bloco de sensações. No

campo musical, o samba pode ser tomado como um conjunto de blocos de sensações,

uma reunião de perceptos e afetos. “Sorriso Negro” é um desses blocos. Os perceptos de

desse samba foram arrancados das percepções, isto é, são mais do que o ritmo

sincopado, dançante entremeado por uma letra que trata da liberdade e alegria de

sorrisos e abraços negros. Ou seja, se trata de um acontecimento que nos dá a

possibilidade de enxergar o mundo por outro prisma, uma afroperspectiva que, além da

aparente inflexão e inversão do termo “negro”, faz da negrura uma potência. Em

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paralelo, o samba retira os afetos das sensações. Eles ultrapassam a relação entre

espectador/ouvinte/pessoa que dança e samba.

Os afetos afroperspectivistas trazem um modo de existir e viver que faz do

negro, a raiz da liberdade. Sorriso negro é samba, arte e, ao mesmo tempo, filosofia.

Uma filosofia afroperspectiva, ou ainda, a capacidade de filosofar com o tamborim –

que foi mencionada no inicio desse capítulo e será retomada adiante. “Sorriso negro” é

um passaporte para estados de vida inéditos, a vibração do refrão é contagiante. A

saturação, a capacidade de levar uma sensação ao extremo, é explorada através da

presença do “negro” em todas as frases. Negro é um devir que se dá na sua máxima

potência. O enlace, isto é, junção inusitada de “emprego” com “sossego”, “luto”,

“saudade” com “inspiração”, “destino” e “amor”, isto é, sensações aparentemente

opostas e contrastantes como coextensivos, semelhantes e vizinhas. A distensão também

aparece na letra da música e na própria melodia, uma sensação sai do seu lugar comum,

“negro” que em muitos dicionários e usos ordinários aparece associado a coisas ruins,

emerge como raiz da liberdade e razão para uma vida imersa em alegria.

(...) a primeira aparição pública dessa música também causou

comoção geral, pelo contexto em que foi apresentada. Conta Dona

Ivone que estava em São Paulo, num show de celebração de 13 de

maio, e “todo mundo elevando os escravos, essa coisa toda”. Nesse

momento ela cantou “Sorriso negro”, foi o maio sucesso, e desde

então a música se transformou numa espécie de hino (SANTOS, 2010,

p. 137).

O caráter de hino não torna a música ordinária, pelo contrário, se trata de um

hino de desbanalização do real. O que faz seus perceptos e afetos serem coextensivos a

um conceito filosófico. A audição desse samba nos lança num turbilhão de

acontecimentos inusitados, a liberdade que floresce de uma raiz negra só se torna viável

por conta de uma afectoesfera própria da roda de samba. Por afectoesfera, nós

entendemos um espaço criado através do compartilhamento de afetos, isto é, um lugar

que se habita por hábitos que ligam as pessoas às mesmas sensações. A afectoesfera das

rodas de samba, embaladas pelo som de “Sorriso Negro”, são modos de ser, existir e

sentir de samba.

Em eventos como o que foi descrito anteriormente por Katia Santos (2010), ou

ainda, em rodas de samba como a do Buraco do Galo4, percebemos a peculiaridade do

samba, as polifonias heterográficas que atravessam todo o ambiente. Pois bem, são

4 A roda de samba do Buraco do Galo é muito tradicional, iniciada em 2001, fica no bairro de Oswaldo

Cruz – localizado no subúrbio carioca na mesma região que a Escola de Samba Portela.

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essas polifonias heterográficas que interessam duplamente, enquanto arte e enquanto

filosofia.

4- Polifonias heterográficas

O que a expressão polifonia heterográfica quer dizer? Sem dúvida, ela não é

óbvia. Ela remete à afectoesfera das rodas de samba, dos encontros de mbambas

(bambas), palavra em quimbundo que significa experts, exímios ou mestres. Ora, nosso

entendimento sugere que afectoesfera, o espaço que compartilhamos na roda de samba,

o lugar de circulação de afetos sambistas, modos de ser em que a tristeza que assola

uma vida se torna razão para celebrarmos o instante, é palco para polifonias

heterográficas! Primeiro, polifonia porque são, literalmente, muitas vozes na roda de

samba. Afinal, é menos importante que uma pessoa cante com bela extensão vocal do

que a emergência do coro de vozes coletivamente agrupadas. Neste sentido, é mais

decisivo conhecer a letra do samba para que as vozes se misturem indistintamente. O

canto não é da classe solo, exercício individual de encantamento de uma plateia. Mas, a

plateia canta, porque o mais importante é que todos vivam a afectoesfera. Não se tratam

mais de espectadores que margeiam um ou mais artistas. Todas as pessoas se tornam

coristas, a polifonia está instalada. Com essa polifonia temos a “escrita”, uma

heterografia, uma escrita de diferentes texturas, pessoas e perceptos. É sabido que um

samba enredo tem muitos(as) autores(as), justamente porque a melodia, cada frase

musical, os arranjos e a letra são costurados por diferentes mãos. José Barbosa da Silva

que ficou conhecido como Sinhô deixou frase célebre, “samba é como passarinho: é de

quem pegar”. Sinhô queria dizer que a produção de um samba era feita de diversas

percepções. Um tipo de perceptoesfera – zona em que os perceptos se descolam da

percepção – com imaginações e vivências de várias pessoas que se cruzam e tocam sem

pertencer a esta ou aquela.

Dona Ivone Lara fez com “Sorriso Negro” um mergulho na perceptoesfera que

colidiu (com)/atravessou Adilson Barbado, Jair Carvalho e Jorge Portela. Dona Ivone

Lara foi capaz de fazer uma ressonante afectoesfera com sua voz de mãos dadas às

vozes que se lançam imediatamente no seu encalço quando sentem sua presença.

Portanto, esse samba cantado por Dona Ivone é uma resistente polifonia heterográfica.

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Uma bela e penetrante obra de arte que desliza pela filosofia que faz conceitos ao toque

do repique, do tamborim, do pandeiro e do cavaquinho.

5. “Sorriso Negro” como conceito filosófico afroperspectivista

A voz de Dona Ivone Lara é polifônica e heterográfica porque ela traz à cena

vozes de corpos que historicamente foram situados às margens. É importante salientar

que Dona Ivone Lara não é a voz da “representação”. Ela não fala exatamente por um

grupo, não se trata de uma eleição dentro de jogos democráticos que possibilitam a

participação igualitária num fórum de debates filosóficos. Ela é a expressão de um

modo de vida que não se encerra nela; mas, existe, atravessa e insiste em outros corpos.

Ora, sem adentrar longamente na história do samba, concordamos que o seu

protagonismo foi e continua sendo da população negra. Nesse sentido, o samba é uma

expressão que dá relevo e destaque às vozes que ficavam silenciadas. Nós estamos

falando de restrições sociais, étnico-raciais que impediam principalmente a população

negra de ser identificada como parte integrante da sociedade brasileira. Pois bem, o

samba se tornou um dos maiores signos brasileiros. Aqui não cabe tratar detidamente

desse tema, mas é oportuno dizer que diante desse cenário, o samba subverteu uma

(certa) ordem e passou de marginal a símbolo da identidade nacional. O samba pode ser

entendido como um gênero de expressão da vida, um modo de resistir e insistir que se

constitui por meio de afetos e perceptos negros. Dona Ivone Lara é uma maneira de ser

desses afetos e perceptos negros, uma figura estética, uma personagem conceitual que

traz um conceito composto: sorriso negro.

Ora, Dona Ivone Lara é “retrato” de um projeto filosófico (afroperspectivista).

Caso leitoras(es) se questionem sobre o caráter filosófico de Dona Ivone Lara, aqui

entendida como personagem conceitual, é preciso dizer que “classificamos” a filosofia

para além da certidão de nascimento grega, dos certificados europeus e do portfólio

ocidental. Filosofia é percebida como atividade pluriversal, policêntrica, gestada e

parida em diferentes escolas de diversos lugares do mundo.

A filosofia que aqui se apresenta propõe um pensamento que se movimenta

baseado em coreografias, um pensamento que expõe conceitos feitos de percussão, em

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rodas de samba [rodas de filosofia5]. Ora, se foi dito, por meio de batuques deleuzeanos,

que ela desliza através da arte. É preciso especificar seus contornos. O sorriso negro é

um conceito composto. O termo negro, como foi aventado antes, não passa por uma

mera inversão. Não se trata somente de positivar negro na contramão dos clichês que

associam a cor negra ao caos, desastre e tristeza. Ora, o lugar-comum estagnado e

monográfico das vozes sem “boca” diz coisas como: “fome negra”, “lista negra”,

“passado negro” e similares, sempre colocando “negro” como adjetivo ruim, nefasto.

Pois bem, o movimento coreográfico do pensamento afroperspectivista faz novas

composições com “sorriso” e “negro”. Para isso, precisamos explicitar um pouco

melhor o que entendemos por filosofia afroperspectivista.

A filosofia afroperspectivista está assentada sobre uma imagem do

pensamento que pode ser apresentada em três teses básicas: 1ª) Pensar é

movimentação, todo pensamento é um movimento que ao invés de buscar a

Verdade e se opor ao falso, busca a manutenção do movimento; 2ª) O

pensamento é sempre uma incorporação, só é possível pensar através do

corpo; 3ª) A coreografia e o drible são os ingredientes que tornam possível

alcançar o alvo do pensamento: manter a si mesmo em movimento.

Paralelamente, em linhas simultâneas, os postulados da imagem

afroperspectivista do pensamento tem seus próprios postulados: 1º) corpo

singular, vontade de diferença e a natureza de fluxo do pensamento; 2º) Ideal

da imanência, dissenso como efeito da imanência; 3º) Simulacro da

experimentação, a dissolução interessante e o desinteressante como casos da

designação; 7º) A modalidade dos arranjos, os desafios são definidos a partir

das possibilidades de coreografias, dribles e cadências das movimentações

resolução; 8º) O resultado do saber, o aprendizado como resultado da

insubordinação diante da imobilidade, o ensaio como modo de produzir o

pensamento como um conjunto de coreografias e dribles sempre inéditos para

cada desafio (NOGUERA, 2011, p. 6-7).

Em resumo, a filosofia afroperspectivista nos propõe um pensamento capaz de

gestar e parir movimentos festivos. A celebração é um tipo de exercício contínuo que se

confronta com o próprio desespero, antagonismos e multiparcialidades que integram a

vida. Ora, nesse bojo: sorriso negro é uma expressão conceitual que faz de “negro(a)”

adjetivo de amor, sucesso, liberdade, união, felicidade; mas, não se atém à inversão,

tampouco propõe uma reflexão que se reduza à inflexão, mudança de lugar dos termos

de um movimento que busque o seu oposto. Não é apenas dizer: “‘Negro(a)’ era coisa

ruim; agora, dizemos: é uma coisa boa”. Sem dúvida, esse é um dos movimentos. Mas,

está para além da inversão simples.

5 A expressão conceitual roda de filosofia é bem específica da afroperspectividade. Ela remete à ideia de

que fazer filosofia é uma atividade heterográfica, polifônica e multifacetada que se faz na companhia de

vários intercessores. A roda de filosofia funciona nos moldes do partido alto.

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Na letra cantada emblematicamente por Dona Ivone Lara, a frase “negro é a raiz

da liberdade” deve ser ouvida (lida) em seus interesses filosóficos afroperspectivistas.

Nesta jornada, o africano-americano Clyde Ford (1999) nos dá um belo tom para uma

entrada bem afinada. Ele traz um campo semântico mais vasto para compreendermos os

sentidos de “negro”, inclusive num estudo filológico. Em diversos mitos africanos, Ford

enegrece – intensifica a compreensão por meio de uma justificativa bem formulada – o

campo semântico do termo “negro” trazendo uma ideia que pode parecer inédita para

uma parcela significativa de ouvintes, ou melhor, de leitoras(es). Conforme Ford, o

termo niger que é de origem latina deriva de uma raiz semítica ngr – uma palavra

semita – com

o significado poético de ‘água que corre areia adentro’. Ela se refere

especificamente ao rio Níger, cujo estranho curso, em forma de U, deve ter

convencido os antigos viajantes de que o rio terminava nas areias do deserto.

Então, acrescentamos agora esse significado à lista de acepções de negro e

preto: povo da água que corre areia adentro – uma imagem maravilhosa do

poder transformador da água em trazer vida à terra árida (FORD, 1999, p.37-

38)

O significado de “negro(a)” também pode ser encontrado nos termos kmt e

melan, o primeiro é egípcio; o segundo, grego. Ambos remetem à terra fértil e

responsável pela fertilidade e florescimento que estão simbolizados pela cor escura da

terra. Em grego a palavra melan está ligado à deusa Melanto, dona da terra fértil, a

negrura responsável pelo poder de fazer germinar frutos da terra.

Outro sentido viável está na ideia de submergir para alimentar a existência de

sonho. Este sentido está presente na noção de “sol poente, simbolizando a imersão da

consciência humana no sonho e na esfera do inconsciente, ou como as águas trazem

vida a áreas estéreis” (Idem, p. 38). Em vocábulos africanos do tronco linguístico banto,

encontramos uma raiz comum para negro(a) nas línguas kimbundu (quimbundo),

kikongo (quicongo), nbundu (umbundu) e chowke (tchwoke), a saber: domb. Por

exemplo, em kimbundu a palavra é kiamdomb; na língua kikongo, o termo é ndombe.

As três palavras – domb, kiamdomb e ndombe – significam negro. Ao mesmo tempo, o

radical “domb” está associado à ideia de louvor. A linguista Yeda Pessoa de Castro

explicita isso ao analisar a palavra candomblé.

O termo candomblé, averbado em todos os dicionários portugueses para

designar os chamados cultos afro-brasileiros na Bahia (como macumba no

Rio de Janeiro, e xangô em Recife), vem do étimo banto "ka-n- dómb-íd-é >

kà-n-dómb-éd-é > ka-n-dómb-él-é", derivado nominal dever- bal de "kù-

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lómb-à > kù-dómb-á, louvar, rezar, invocar, analisável a partir do protobanto

"kòdómb-éd-á", pedir pela intercessão de. Logo, candomblé é igual a culto,

louvor, reza, invocação, sendo o grupo consonantal -bl- uma forma brasileira,

de vez que não existe nenhum grupo consonantal em banto (PESSOA DE

CASTRO, 1983, p. 83-84)

Com efeito, negro(a) circunscreve vários sentidos; mas, pelo que foi exposto

converge para as ideias de fértil, de invocação do sagrado, de nutrição e aumento das

forças. Neste sentido, sorriso negro é uma invocação astuta, um mergulho no poente que

figura como condição de possibilidade do sonho, isto é, restauração. Esse movimento de

restauração da existência se dá pelo canto. Pelo ritmo da intercessão buscado numa vida

de re-existência, isto é, resistir como reinvenção cotidiana. Uma reinvenção que passa

pela consagração cotidiana da vida como festa.

6. Sambasofia/sambafilia e a ética do tamborim

Pois bem, depois do que foi dito. Como estabelecer uma “ética de filosofar com

o tamborim” (parte do subtítulo deste capítulo)? Ora, foi dito que o tamborim figura

aqui como o martelo de Nietzsche, instrumento de nossa escrita. Antes de tratarmos da

ética do tamborim que nos foi suscitada pela escuta de “Sorriso Negro”, vamos retomar

a afroperspectividade.

Nós explicamos a filosofia afroperspectivista em sua inspiração deleuzeana, isto

é, para a pergunta: “qual a melhor maneira de seguir grandes filósofos, repetir o que eles

disseram, ou então fazer o que eles fizeram, isto é, criar conceitos para problemas que

mudam necessariamente?” (DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 41). A resposta foi um

sonoro, criar conceitos ouvindo o samba “Sorriso Negro”! Neste momento, próximo das

conclusões parciais, vale a pena enegrecer que a afroperspectividade, assim como o

samba, é uma cruz, isto é, ao mesmo tempo, os sinais de somar e de multiplicar. O que

isso significa? Muito simples são duas ruas e quatro linhas de fuga: a encruzilhada.

Da esfera do rito e, portanto, da performance, é lugar radial de centramento e

descentramento, interseções e desvios, texto e traduções, confluências e

alterações, influências e divergências, fusões e rupturas, multiplicidade e

convergência, unidade e pluralidade, origem e disseminação. Operadora de

linguagens e de discursos, a encruzilhada, como um lugar terceiro, é geratriz

de produção sígnica diversificada e, portanto, de sentidos. (MARTINS, 1997,

p. 28).

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Sambasofia e sambafilia são modos de filosofar com (de) samba. Os dois termos

só ganham sentido juntos. Sambasofia é um saber de semba. Em outros termos, saber

separar e saber dançar. O separar é entendido como um movimento, o separar os pés, os

passos e refazer os passos. Sambafilia é se tornar amante dessa dança, do cabriolar.

Importante sublinhar que se trata de uma dança do pensamento em que o corpo é a

faculdade de pensar que raciocina pelos passos, por meio de coreografias. Dito em

outras palavras, sambasofia e sambafilia compõe um quadro, são dois conceitos que

funcionam articulados.

Cabe aqui uma digressão, Batman e Robin; São Cosme e São Damião; Faísca e

Fumaça; Milionário e Zé Rico são exemplos de duplas. Elas funcionam juntas e seus

nomes são ditos atrelados. Com sambasofia e sambafilia se dá o mesmo. De um lado, a

sabedoria do samba. Do outro, a amizade do samba. Os dois conceitos convergem para

uma estética, uma política, uma ética, uma metafísica, uma lógica, uma história da

filosofia. Neste escrito vamos nos ater à ética. A sua composição se dá por meio de

aforismos. A ética de tamborins por meio do sorriso negro em versos abaixo:

Sambasofia e sambafilia

O samba como matéria prima da filosofia, se transforma em sabedoria e amizade. O

saber é o gosto pelo canto e pela dança do(no) pensamento. A amizade é multiplicação e

soma de encruzilhadas, linhas em que a coreografia se agita e faz presente. Em poucas

palavras, sambasofia e sambafilia são uma maneira de fazer/escrever a filosofia

afroperspectivista, primando pelo ritmo e pelo formato de aforismo/letra de música. Ou

ainda, letras filosóficas musicadas para rodas de filosofia. Um tipo de encontro que

pretende promover o pensamento filosófico na atmosfera tradicional da roda de samba.

Ética

A definição advinda das rodas de filosofia realizadas pelo projeto afroperspectivista não

são inéditas. Tratar de ética é passar a limpo o rascunho das multiparcialidades de cada

dia, assumindo os riscos do poliamor próprio aos dilemas de re-existir. Em poucas

palavras, a ética é um aspecto da filosofia afroperspectivista que se ocupa das

composições referentes às atuações nas rodas da vida, suas cobranças e suas delícias.

Portanto, ética aqui é o exercício de produzir afrocartografias – mapas

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afroperspectivistas – para facilitar a circulação de corpos, ideias, perspectivas e valores

dentro dos mais variados circuitos.

Tamborim

O tamborim é peculiar, típico instrumento de percussão das escolas de samba. Uma mão

segura com a pegada hangloose (sinal típico de surfistas que ficou popularizado nos

anos de 1980 e 1990), a outra mão, de posse da baqueta, faz o “desenho” do samba: os

traços que serão pintados com outras texturas sonoras. Tamborim é mais do que uma

metáfora, é tido como instrumento de escrita filosófica. Ora, a escrita que precisa de

ritmo e concentração, que desenha as marcas por onde outras sonoridades serão

assentadas. Uma escrita filosófica de tamborim é a base para o samba que virá.

Ética de tamborins e “Sorriso Negro”

Falar de uma ética de tamborins a partir de “Sorriso Negro” é um desafio. O mesmo tipo

de enfrentamento que ocorre quando partideiros versam em rodas de partido alto. É um

exercício de encantamento. Não se trata de comunicar e informar, ainda mais numa

sociedade excessivamente informada. O que a ética pretende é encantar. O argumento

está no registro do encantamento, não se pretende convencer ou converter outras

pessoas à nossa parcialidade. Mas deixá-la encantada com o modo de ser que o “sorriso

negro” provoca com seu enegrecimento, seu fazer sonhar acordado numa louvação

laica. Com isso, a ética quer fazer que outras pessoas frequentem esse “Sorriso Negro”

ainda que as multiparcialidades estejam em guerra declarada. Não se trata de bandeira

branca ou de firmar ataques, mas de compartilhar o festejo que nossa parcialidade

afroperspectivista faz do samba da vida.

7- Conclusões parciais

Primeira conclusão parcial: uma ressalva. Depois de ter tocado tamborim ao som

de “Sorriso Negro” sob o timão de Dona Ivone Lara, nossa caminhada nos deixou

exaustos. Mas ainda com fôlego para a explicação primeira, o uso da primeira pessoa do

plural. O vocábulo “nós” aqui é resultado dos nós atados e desatados que fazem de

quem escreve um devedor dos ancestrais africanos que fizeram samba e filosofia. A

escrita deste capítulo é herdeira de aulas de percussão e de possibilidades que se

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inscrevem numa formação que reuniu a academia e as rodas e escolas de samba. Eu

tenho formação em filosofia, graduação, mestrado e doutorado. Mas, fui formado nas

rodas de samba dos tradicionais bairros de Oswaldo Cruz e Madureira e nos ensaios das

escolas de samba Portela (escola do coração) e Império Serrano (sem contar a filiação

familiar: sou sobrinho neto de Mestre Fuleiro, um dos fundadores da tradicional escola

de samba de Madureira). Se eu fosse apenas doutor em filosofia pela UFRJ nunca seria

capaz de redigir esse texto. Por isso, fiz questão de escrever ouvindo “Sorriso Negro”

todo o tempo, além de ensaiar o toque do carreteiro no meu tamborim sempre que as

ideias me faltavam.

Por fim, uma recomendação: ouvir a música “Sorriso Negro” e tocar tamborim

na busca da afectoesfera suscitada de modo imperativo por Dona Ivone Lara –

entendida como figura estética/personagem conceitual – que nos dá como presente e

dádiva um conceito de negro(a) como um mergulho no infinito da noite, território

privilegiado para nutrição do pensamento. Um conceito que descortina a construção da

ética do tamborim, a emergência do encantamento da multiparcialidade dentro do

modelo de roda de filosofia. Com efeito, a conclusão mais unânime, escutar o samba

“Sorriso Negro” e se deixar encantar pelos tamborins na busca de uma ética que

reconheça que as divergências entre valores e perspectivas, pode não ser razão para a

paz. Mas talvez no lugar da guerra: o encantamento de festejar no quintal dos outros,

uma possível trégua.

Referências

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Janeiro, Francisco Alves, 1990.

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