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Um Tratado da Natureza Humana David Hume Resumo da Parte 3 do Livro 1 : “Do conhecimento e probabilidade” [1] Ó Silvio S. Chibeni – 2004 Índice das seções: 1. Do conhecimento 2. Da probabilidade e da idéia de causa e efeito 3. Por que uma causa é sempre necessária 4. Das partes componentes de nossos raciocínios sobre causa e efeito 5. Das impressões dos sentidos e memória 6. Da inferência da idéia a partir da impressão 7. Da natureza da idéia de crença 8. Das causas de crença 9. Dos efeitos de outras relações e outros hábitos 10. Da influência da crença 11. Das probabilidades de acaso 12. Das probabilidades de causas 13. Da probabilidade não-filosófica 14. Da idéia de conexão necessária 15. Regras pelas quais se pode julgar acerca de causas e efeitos 16. Da razão dos animais 1. Do conhecimento. [1] Hume enumera aqui sete tipos de relações filosóficas, divididas em dois grupos [cf. 1.1.1.5]: a) a) As que “dependem unicamente das idéias que comparamos”: semelhança, proporção em quantidade ou número, graus em qualquer qualidade e contrariedade. b) b) As que “podem ser mudadas sem nenhuma mudança nas idéias” relacionadas: identidade, relações de tempo e lugar, e causação.

Um Tratado Da Natureza Humana

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Um Tratado da Natureza Humana

Um Tratado da Natureza Humana

David HumeResumo da Parte 3 do Livro 1 : Do conhecimento e probabilidade [1]( Silvio S. Chibeni 2004

ndice das sees:

1. Do conhecimento

2. Da probabilidade e da idia de causa e efeito

3. Por que uma causa sempre necessria

4. Das partes componentes de nossos raciocnios sobre causa e efeito

5. Das impresses dos sentidos e memria

6. Da inferncia da idia a partir da impresso

7. Da natureza da idia de crena

8. Das causas de crena

9. Dos efeitos de outras relaes e outros hbitos

10. Da influncia da crena

11. Das probabilidades de acaso

12. Das probabilidades de causas

13. Da probabilidade no-filosfica

14. Da idia de conexo necessria

15. Regras pelas quais se pode julgar acerca de causas e efeitos

16. Da razo dos animais

1. Do conhecimento.

[1] Hume enumera aqui sete tipos de relaes filosficas, divididas em dois grupos [cf. 1.1.1.5]:

a) a) As que dependem unicamente das idias que comparamos: semelhana, proporo em quantidade ou nmero, graus em qualquer qualidade e contrariedade.

b) b) As que podem ser mudadas sem nenhuma mudana nas idias relacionadas: identidade, relaes de tempo e lugar, e causao.

[2] Somente as relaes do primeiro tipo podem ser objeto de conhecimento e certeza; elas so o fundamento da cincia [1.3.2.1]. Das quatro, trs podem ser descobertas primeira vista, ou seja, intuitivamente: semelhana, graus em qualquer qualidade e contrariedade.

[3] Apenas as relaes de proporo em quantidade ou nmero podem requerer demonstrao.

[4] Quanto geometria, nunca pode atingir perfeita preciso e exatido, porque seus princpios se baseiam na aparncia geral dos objetos, podendo haver a alguma insegurana.

[5] As nicas disciplinas cientficas so, pois, a aritmtica e a lgebra; todas as demais caem no domnio da probabilidade [1.3.2].

[6] Apesar da incerteza, a geometria til, porque as aparncias em que se baseiam seus princpios so as mais fceis e menos enganosas. H mais certeza nelas do que numa proposio complexa sobre um quiligono, por exemplo.

[7] um erro supor que as idias matemticas sejam objeto de uma viso pura e intelectual. O mesmo vale para as chamadas idias abstratas. Todas as idias tm origem emprica, em impresses.

2. Da probabilidade e da idia de causa e efeito.

[1] As relaes de semelhana, proporo em quantidade ou nmero, graus em qualquer qualidade e contrariedade so o fundamento da cincia.

[2] Hume comea o estudo das outras trs relaes (identidade, relaes de tempo e lugar, e causao) esclarecendo a noo de raciocnio. Todos os tipos de raciocnio no passam de uma comparao, e de uma descoberta das relaes [...] que dois ou mais objetos guardam entre si. Todavia, quando os dois objetos esto presentes aos sentidos, trata-se antes de percepo do que de raciocnio propriamente dito. Desse modo, no devemos considerar raciocnio nenhuma das observaes que faamos sobre identidade e relaes de tempo e lugar, visto que em nenhuma delas a mente pode ir alm do que est imediatamente presente aos sentidos [...]. somente a causao que produz uma conexo capaz de nos assegurar, a partir da existncia ou ao de um objeto, que uma outra existncia ou ao a precedeu ou seguiu.

[3] Conclumos que, de todas as relaes filosficas, a nica que pode ser prolongada alm de nossos sentidos, e nos informar acerca de existncias ou objetos que no vemos ou sentimos a causao. Esse ponto importante reaparece na Investigao: Todos os raciocnios sobre questes de fato parecem fundar-se na relao de causa e efeito (4.4), princpio que a justificado apenas com a exposio de alguns exemplos.

[4] Hume lana-se ento numa longa busca das impresses das quais a idia de causao possa se originar. Isso necessrio para conferir clareza idia e, por conseguinte, aos nossos raciocnios que a envolvam.

[5] Examinando dois objetos quaisquer que chamamos de causa e efeito, percebemos, inicialmente, que nenhuma de suas qualidades particulares pode estar na origem da idia de causao, visto que, para qualquer uma delas, sempre haver objetos que no a possuem e que, apesar disso, caem sob a denominao de causa ou efeito.

[6] A idia de causao h, pois, de derivar de alguma relao entre os objetos. Hume dedica-se agora a descobrir essa relao. Inicialmente, prope que quaisquer objetos classificados como causa e efeito so contguos.

[7] Depois, argumenta que a prioridade temporal da causa com relao ao efeito tambm essencial relao causal, embora isso no seja universalmente reconhecido. H filsofos que mantm que causas e efeitos podem ser concomitantes. Hume oferece um argumento complexo contra essa possibilidade (em sntese, ela levaria a uma completa aniquilao do tempo, i.e. da sucesso de eventos no mundo).

[8] Em qualquer caso, o ponto no de grande importncia, e ser assumido na seqncia da anlise.

[9] Considerando os casos individuais de causa e efeito, parece que no podemos descobrir mais nada neles, alm de contigidade e sucesso.

[10] A tentativa de definir uma causa dizendo que algo que produz alguma outra coisa apontada como vazia de contedo, pois aparentemente no podemos definir o que uma produo sem recorrer noo de causa.

[11] Hume nota agora que aquelas duas relaes no bastam: Um objeto pode ser contguo e anterior a outro sem que seja considerado sua causa. H uma conexo necessria para ser levada em considerao; e essa relao de importncia muito maior do que qualquer uma das duas j mencionadas. A procura das impresses das quais essa idia de conexo necessria possa se originar ocupar Hume at a seo 14. A extenso dessa busca, de aproximadamente cem pginas, justifica-se pelo carter inusitado da concluso.

[12] Hume retoricamente esboa um movimento de desnimo, para depois rebat-lo, reafirmando sua convico no primeiro princpio de sua cincia da natureza humana (o princpio da cpia, 1.1.1.7; 12).

[13] Ainda retoricamente, sugere que a busca de algo to recndito ser comeada por um exame meio ao acaso de algumas questes da mesma rea:

[14] Por que razo dizemos ser necessrio que tudo cuja existncia tem um comeo deve tambm ter uma causa?; e

[15] Por que conclumos que tais causas particulares tm necessariamente que ter tais efeitos particulares; e qual a natureza da inferncia que fazemos de um para outro, e da crena que depositamos nele?

[16] Hume adverte que embora v usualmente considerar apenas as impresses de sensao na maior parte da busca a ser empreendida, a idia de causa e efeito pode tambm derivar de impresses de reflexo (e.g. certas paixes podem ser causas de outras).

3. Por que uma causa sempre necessria?

[1] A proposio Tudo o que comea a existir h de ter uma causa no intuitivamente ou demonstrativamente certa. Isso se pode ver por dois argumentos:

i. i. [2] Nenhuma das quatro relaes capazes de fornecer certeza (semelhana, proporo em quantidade e nmero, graus de qualquer qualidade, contrariedade) est envolvida na proposio;

ii. ii. [3] A suposio de que algo comece a existir sem causa perfeitamente concebvel, no envolve nenhuma contradio; portanto isso possvel; e se possvel, sua negao no necessria.

Trs objees so rejeitadas: [4] a de que deve haver uma causa, capaz de determinar o ponto do espao e do tempo em que a coisa comea a existir (Hobbes); [5] a de que, sem uma causa, a coisa teria de produzir-se a si prpria (Clarke); [6] e a de que, se no houvesse causa, a coisa teria de ser produzida pelo nada (Locke). [7] Os dois ltimos argumentos tm em comum o fato de assumirem o que est sendo questionado.

[8] Embora todo efeito pressuponha uma causa (pois so noes correlativas), isso no implica que todo ser tenha de ser precedido por uma causa.

[9] No sendo intuitiva ou demonstrativa a base da opinio da necessidade de uma causa para toda nova produo, ela deve residir na experincia. A nova questo que devemos investigar , pois: Como a experincia d lugar a esse princpio? Hume prefere, no entanto, considerar a questo: Por que conclumos que tais causas particulares tm necessariamente que ter tais efeitos particulares, e por que fazemos uma inferncia de um para outro?, esperando encontrar, no final, que a mesma resposta sirva para aquela outra questo mais geral.

4. Das partes componentes de nossos raciocnios sobre causa e efeito.

[1] Nas inferncias sobre causas e efeitos a mente tem de partir de impresses ou idias de memria, que so equivalentes a impresses. Quando inferimos um efeito a partir de uma causa, temos de estabelecer a existncia dessa causa; e isso s podemos fazer por uma percepo imediata da memria ou sentidos, ou por uma inferncia a partir de outras causas. Mas somente uma impresso da memria ou sentidos, alm do que no h lugar para dvida ou investigao, pode evitar um regresso infinito aqui.

[2] Caso falte esse ponto de apoio emprico, o raciocnio ser quimrico e sem fundamento, como ocorre nos argumentos hipotticos, ou raciocnios a partir de suposies.

[3] No constitui objeo vlida a essa doutrina dizer que podemos s vezes raciocinar sobre concluses passadas sem recorrer s impresses em que se basearam: a convico que produziram permanece.

5. Das impresses dos sentidos e memria.

[1] Todos os nossos argumentos acerca de causas e efeitos consistem de uma impresso da memria ou dos sentidos e de uma idia daquela existncia que produz ou produzida pelo objeto da impresso. Temos, portanto, que explicar aqui trs coisas: a impresso original, a transio para a idia da causa ou efeito a ela conectada, e a natureza e qualidades dessa idia.

[2] Quanto s impresses que surgem dos sentidos, sua causa ltima , em minha opinio, perfeitamente inexplicvel pela razo humana, sendo sempre impossvel decidir com certeza se surgem imediatamente dos objetos [realismo], do poder criador da mente [idealismo, solipsismo] ou de Deus [Berkeley]. Mas isso no importa aqui: Podemos tirar inferncias da coerncia de nossas percepes, quer sejam verdadeiras ou falsas [cf. a discusso que Locke faz das idias falsas e verdadeiras, Essay, II.xxxii].

[3] Uma vez que a memria no conhecida nem pela ordem de suas idias complexas nem pela natureza de suas idias simples, segue-se que a diferena dela com relao imaginao reside em sua fora e vivacidade superiores. Hume d vrios argumentos para essa tese:

[4, Apndice] a transformao repentina de imaginao em recordao, pelo avivamento da cena descrita pelo outro homem; [5] o pintor que procura avivar sua imaginao por meio de impresses semelhantes; o apagamento da memria e conseqente dvida se seria apenas imaginao; [6] o mentiroso, que por hbito aviva tanto a sua fico que acaba crendo que realidade.

[7] Parece, assim, que a crena ou assentimento que sempre acompanha a memria ou os sentidos no passa de uma vivacidade das percepes que apresentam; e que somente isso os distingue da imaginao. Crer , neste caso, sentir [feel] uma impresso imediata dos sentidos, ou uma repetio dessa impresso na memria. a mera fora e vivacidade da percepo que constitui o primeiro ato do julgamento e estabelece a base do raciocnio que sobre ela construmos quando rastreamos [trace] a relao de causa e efeito. (Ver T 1.3.9.3, onde Hume fala dos dois sistemas de realidade, o primeiro sendo justamente formado pelos objetos das impresses e idias de memria.)

6. Da inferncia da idia a partir da impresso.

[1] A inferncia que fazemos das causas para os efeitos, ou vice-versa, no pode derivar da inspeo desses objetos considerados em si mesmos, pois podemos sem contradio separar as idias das causas e dos efeitos. (Ver E 4.6-13 para mais detalhes sobre esse ponto importante.)

[2] Portanto, somente pela experincia que a existncia de um objeto pode ser inferida a partir da existncia de outro. A natureza dessa experincia consiste na contigidade, sucesso temporal e conjuno constante dos objetos. Em todos os casos nos quais aprendemos a conjuno de causas e efeitos particulares, ambos as causas e os efeitos foram percebidos pelos sentidos, e so rememorados. Mas em todos os casos em que raciocinamos sobre eles apenas um percebido ou rememorado, e o outro fornecido de conformidade com nossa experincia passada (grifamos).

[3] Embora importante, essa relao de conjuno constante, que acaba de ser descoberta pela considerao de uma multiplicidade de casos semelhantes, no parece ajudar muito na descoberta da conexo necessria que parte essencial da relao causal. Da repetio de uma impresso passada qualquer [...] nunca surgir uma idia nova original, como a de conexo necessria. Tendo constatado que aps a descoberta da conjuno constante de objetos quaisquer sempre fazemos a inferncia de um objeto para outro, examinaremos agora a natureza dessa inferncia, e da transio da impresso para a idia. Talvez aparea no final que a conexo necessria depende da inferncia, e no a inferncia da conexo necessria.

[4] Visto que a dita inferncia depende da experincia da conjuno constante, devemos determinar se a experincia produz a idia [inferida] por meio do entendimento ou da imaginao. Se fosse pelo entendimento, ele teria de basear-se no princpio de que o curso da Natureza continua sempre o mesmo. Mas essa proposio funda-se ou em argumentos demonstrativos ou em argumentos de probabilidade.

[5] Pode-se ver que no se baseia numa demonstrao pelo simples fato de podermos perfeitamente conceber uma alterao no curso da Natureza.

[6] Quanto aos raciocnios provveis, envolvem sempre alguma coisa presente mente, vista ou recordada, a partir da qual inferimos algo a ela conectado, que no visto ou rememorado.

[7] Agora a nica relao entre objetos capaz de nos levar alm das impresses imediatas dos sentidos ou da memria a de causa e efeito. Essa relao, porm, deriva da experincia de que em todos os casos passados certos objetos mostraram-se sempre conjugados. Assim, todo raciocnio provvel funda-se na suposio de uma semelhana entre os objetos acerca dos quais tivemos experincia e aqueles que no experimentamos. , pois, impossvel que essa suposio se apie em raciocnios provveis (haveria uma circularidade).

[8] Algum poderia objetar que a partir da experincia da conjuno constante inferimos um poder de produo na causa (caso contrrio seria impossvel que ela tivesse aquele efeito), e a partir dele inferimos necessariamente o efeito, constituindo isso um fundamento justo para as concluses causais.

[9] A resposta, diz Hume, poderia recorrer novamente ao j exposto em T 1.3.2.10: a idia de produo a mesma que a de causao, e assim a soluo proposta vazia de contedo. Ou ainda Hume poderia apelar ao que estabelecer mais tarde acerca da idia de poder. Mas no far isso aqui.

[10] Mesmo, porm, que concedamos que a produo de um objeto por outro num dado caso implique um poder, e que esse poder est ligado ao seu efeito, resta como podemos estabelecer que em outros casos o mesmo poder vai existir, com base apenas nas qualidades sensveis, que so tudo aquilo a que temos acesso. [O] apelo experincia passada no decide nada no caso presente.

[11] Assim, no apenas nossa razo falha na descoberta da conexo ltima de causas e efeitos, mas mesmo aps a experincia haver-nos informado de sua conjuno constante impossvel satisfazer-nos pela razo por que devamos estender essa experincia alm dos casos particulares que caram sob nossa observao.

[12] A razo [i.e., o entendimento] nunca pode nos mostrar a conexo de um objeto com outro, embora auxiliada pela experincia, e pela observao de sua conjuno constante em todos os casos passados. Portanto, quando a mente passa da idia ou impresso de um objeto para a crena ou idia de outro, no determinada pela razo, mas por certos princpios que associam as idias desses objetos [semelhana, contigidade e causao], e os une na imaginao. Se as idias no possussem na imaginao [fancy] mais unio do que os objetos possuem no entendimento, jamais poderamos extrair nenhuma inferncia de causas para efeitos, nem depositar crena em nenhuma questo de fato [no observada]. A inferncia depende, pois, unicamente da unio de idias (grifei).

[13] Esses princpios, relembra Hume, no so as causas nicas nem infalveis da unio de idias, mas apenas os nicos princpios gerais de associao.

[14] Hume expe aqui um possvel candidato a um quarto princpio, mas no incio do pargrafo seguinte afirma que de fato se reduz a uma associao causal.

[15] No possumos nenhuma noo de causa e efeito seno a de certos objetos que sempre estiveram conjugados [...]. No podemos penetrar a razo da conjuno. Apenas observamos a prpria coisa [fato], e sempre constatamos que, a partir da conjuno constante, os objetos requerem uma unio na imaginao. Quando a impresso de um torna-se presente para ns, formamos imediatamente a idia de seu acompanhante usual. Conseqentemente, podemos estabelecer como uma parte da definio de crena ou opinio que ela uma idia relacionada ou associada a uma impresso presente.

[16] Assim, embora a causao seja uma relao filosfica, que implica contigidade, sucesso e conjuno constante, apenas enquanto relao natural, que produz unio entre nossas idias, que podemos raciocinar sobre ela, ou extrair dela alguma inferncia.

7. Da natureza da idia de crena.

[1] A idia de um objeto parte essencial da crena que nele depositamos, mas no tudo. Concebemos muitas coisas nas quais no cremos. H, pois, uma diferena entre a crena em algo e sua mera imaginao.

[2] Quando concebemos uma coisa como existindo, ou quando acreditamos que realmente existe, no acrescentamos nenhuma idia nova idia que dela temos. O que distingue a crena da simples imaginao no reside, portanto, nas partes ou composio da idia que concebemos. Segue-se da que a distino tem de estar na maneira pela qual concebemos o objeto.

[3] O problema de saber em que consiste a diferena entre crer e no crer em uma proposio fcil de resolver quando se trata de proposies estabelecidas por intuio ou demonstrao. Nesse caso, a pessoa que acredita em uma proposio no apenas concebe as idias de acordo com a proposio, mas est determinada a conceb-las daquele modo particular [...]. No possvel imaginao conceber algo contrrio a uma demonstrao. No caso, porm, das proposies sobre questes de fato, porm, esse critrio da necessidade absoluta no tem lugar: a imaginao pode conceber tanto uma proposio quanto sua negao.

[4] Defesa da tese de que a crena s pode residir na maneira de conceber uma idia (complemento do pargrafo 2).

[5] Hume prope ento que no caso das proposies sobre questes de fato apenas a fora e vivacidade da idia do objeto que possibilita distinguir crena de imaginao. (Ver o penltimo pargrafo da seo 13 para a enumerao de outros casos de crena.). Quando voc de alguma maneira varia a idia de um objeto particular, voc pode apenas aumentar ou diminuir sua fora e vivacidade. Se fizer qualquer outra mudana, a idia representar um diferente objeto ou impresso. [...] Uma opinio ou crena pode, portanto, ser mais precisamente definida como uma idia vvida relacionada ou associada a uma impresso presente. [2][6] Sumrio.

[7] (Pargrafo acrescentado no Apndice do Tratado; ser parcialmente aproveitado em E 5.12.) Hume desenvolve mais o assunto: Uma idia qual se assente sentida de modo diferente [feels different] de uma idia fictcia, apresentada somente pela imaginao. E tento explicar essa diferente sensao [feeling] chamando-a uma fora, ou vivacidade, ou solidez, ou firmeza, ou estabilidade superiores. Tal diversidade de termos [...] destina-se apenas a expressar o ato da mente que torna as realidades mais presentes a ns do que as fices, fazendo-as pesar mais no pensamento, conferindo-lhes uma influncia superior sobre as paixes e sobre a imaginao. Crena algo sentido pela mente que distingue as idias do julgamento das fices da imaginao. D-lhes mais fora e influncia; faz com que apaream como mais importantes; implanta-as na mente, tornando-as os princpios que governam todas as nossas aes.

[8] Ilustrao da tese principal sobre a natureza da crena por meio do livro que lido por um homem como fico e por outro como relato da realidade.

8. Das causas de crena.

[1] Hume investiga agora os fatores capazes de conferir vivacidade idia daquilo em que se acredita.

[2] Prope, como uma mxima emprica da cincia da natureza humana, que quando uma impresso qualquer se nos torna presente, no apenas transporta a mente para as idias a ela relacionadas, mas igualmente comunica-lhes parte de sua fora e vivacidade.

[3, 4] O primeiro experimento que contribui para nos mostrar isso se refere comunicao de vivacidade a uma idia pela semelhana que guarde com uma impresso presente: o retrato de um amigo ausente, as cerimnias da igreja catlica romana (exemplos reproduzidos em E 5. 15 e 16).

[5] O segundo experimento refere-se vivacidade conferida por contigidade: a viso das coisas que ficam perto de nossa casa aviva a idia que formamos dela (exemplo reproduzido em E 17).

[6] O terceiro experimento relativo causao: o exemplo das relquias dos santos (efeitos parciais; exemplo reproduzido em E 5.18). Na seo seguinte Hume argumentar que somente no ltimo caso a vivacidade transmitida idia suficientemente forte para redundar em crena.

[7] O exame deste ltimo tipo de experimento poderia bastar para estabelecer a hiptese sobre a natureza da crena. Apesar disso, vai buscar uma comprovao.

[8] Essa comprovao consiste em tratar o ponto como uma questo em de filosofia natural, a ser determinada pela experincia e observao. Hume comea observando que embora comumente se pense que o objeto presente aos sentidos e aquele cuja existncia inferida influenciem-se por seus poderes ou qualidades particulares, o fenmeno da crena que estamos examinando meramente interno, de modo que tais poderes e qualidades, sendo-nos inteiramente desconhecidos, no podem ter nenhum papel em sua produo. a impresso presente que deve ser considerada a causa verdadeira e real da idia e da crena que a acompanha. Temos, pois, que tentar descobrir por meio de experimentos as qualidades particulares pelas quais ela pode produzir um efeito to extraordinrio.

[9] A esse respeito, podemos fazer trs experimentos. Primeiro, verificamos que, quando considerada uma percepo individual, a impresso no produz esse efeito por seu prprio poder e eficcia. somente sua conjuno constante com alguma outra impresso que o produz.

[10] Segundo, a crena que acompanha a impresso presente e produzida por um certo nmero de impresses e conjunes passadas [...] surge imediatamente, sem nenhuma outra operao nova da razo ou imaginao. Logo, toda crena que resulta de impresses presentes deriva unicamente do costume.

[11] Por fim, notando que quando a impresso substituda por uma idia a crena na idia correlativa se perde, conclumos que uma impresso presente absolutamente exigida para toda crena em questes de fato no observadas. [3][12] Assim, todo raciocnio provvel no passa de uma espcie de sensao [sensation] [...]. Quando estou convencido acerca de um princpio qualquer, apenas uma idia que me atinge de modo mais forte.

[13] A experincia passada da qual os juzos sobre causas e efeitos dependem atua de forma geralmente imperceptvel. O costume opera antes que tenhamos tempo para refletir.

[14] Alm disso, a experincia pode produzir seus efeitos indireta ou tacitamente, o que explica as inferncias de causas ou efeitos apoiadas em um nico experimento: Embora assumamos que nesse caso tivemos apenas um experimento de um efeito particular, temos muitos milhes para convencer-nos do princpio de que objetos semelhantes [like objects] colocados em circunstncias semelhantes sempre produziro efeitos semelhantes.

[15-17] Objeo: pode haver inferncias causais baseadas em idias. Explicao obscura.

9. Dos efeitos de outras relaes e outros hbitos.

[1] A hesitao cuidadosa na aceitao de hipteses novas uma disposio muito louvvel nos filsofos. Nesta seo Hume inicialmente examina sua prpria hiptese acerca do mecanismo de produo das crenas causais.

[2] Como as relaes de semelhana e contigidade foram, ao lado da causao, consideradas princpios de associao de idias, capazes no apenas de transportar a imaginao de uma idia a outra, mas tambm de conferir vivacidade adicional s idias associadas s impresses presentes, poder-se-ia objetar referida hiptese que a crena deve resultar tambm de tais relaes, e no apenas da de causa e efeito, como mostra a experincia. A esse respeito, um esclarecimento preliminar importante feito por Hume que ele apontou o poder que as relaes de semelhana e contigidade tm de avivar idias a fim de confirmar, por analogia, [sua] explicao de nossos juzos acerca de causa e efeito.

[3, 4] Hume inicia sua rplica dizendo que h dois sistemas de realidades: o das impresses e idias da memria e o que se conecta a este pelo costume, ou, se preferirmos, por causa e efeito.

[5] Hume assevera agora que se o objeto contguo ou semelhante for inserido neste [segundo] sistema de realidades, no h duvida de que essas relaes [de semelhana e contigidade] auxiliaro a relao de causa e efeito, implantando a idia relacionada com mais fora na imaginao. Ele reconhece que mesmo onde o objeto relacionado apenas imaginado [feigned] aquelas duas relaes serviro para avivar a idia.

[6] No entanto, Hume prope que quando isoladas da relao de causalidade as relaes de semelhana e contigidade tm influncia muito fraca e incerta, incapaz de levar crena. Isso porque a mente pode variar livremente os objetos assemelhados e contguos; ela nunca est determinada a imaginar sempre os mesmos objetos.

[7] J no caso da relao de causa e efeito os objetos que apresenta so fixos e inalterveis.

[8-15] Hume apresenta nesses pargrafos diversas situaes que mostram que, apesar de tudo, as relaes de semelhana e contigidade ainda tm alguma influncia no aumento da convico de nossas opinies.

[16] Hume examina os efeitos de outros tipos de costume, bem como de outras relaes. Na presente seo dedica-se apenas ao estudo da repetio na mente de uma mera idia desacompanhada, a que chama educao.

[17] Esse hbito, afirma Hume, no apenas se aproxima, em sua influncia, daquele que resulta da unio constante e inseparvel de causas e efeitos, mas pode mesmo, em muitas ocasies, sobrepuj-lo. Hume considera que o fenmeno da educao corrobora sua tese sobre a natureza da crena. Aqui temos no apenas de dizer que a vivacidade da idia produz crena, mas tambm que so inseparavelmente a mesma coisa; ou seja, a crena consiste precisamente na vivacidade da idia. A repetio freqente de uma idia implanta-a na imaginao; porm jamais poderia, de si prpria, produzir crena se tal ao da mente estivesse ... anexada apenas a um raciocnio e comparao de idias.

[18] Exemplos de expectativas estabelecidas pelo hbito.

[19] A anlise do caso revela que mais da metade das opinies que prevalecem na Humanidade deve-se educao. Mas embora a crena que resulta da educao tenha quase a mesma fundao o costume e a repetio que nossos raciocnios acerca de causas e efeitos, a educao uma causa artificial de crena, e suas mximas muita vezes so contrrias razo e tambm umas s outras, em diferentes pocas e lugares.

Quadro dos tipos de crenas (S. S. Chibeni): luz do que foi visto nesta seo e nas duas precedentes, podemos distinguir os seguintes tipos de crena:

1. Crena em relaes de idias. Resulta da impossibilidade de concebermos a negao da proposio que expressa a relao na qual se acredita. Isso prima facie no envolve a vivacidade de idias, contrariamente a todos os casos enumerados a seguir (ver porm a nota de Hume seo 7).

2. Crena em questes de fato. Consiste na fora e vivacidade superiores das idias envolvidas. Podem-se distinguir os seguintes casos:

a) a) Questes de fato que so ou foram testemunhadas pelos sentidos. (Esse assunto enfocado apenas de passagem nesta seo e na seo 5, tornando-se importante quando Hume analisa a crena no mundo exterior, na seo 2 da parte 4.)

b) b) Questes de fato no testemunhadas pelos sentidos. A crena resulta da vivacidade que o hbito confere a uma idia a partir de uma impresso que sempre se verificou, em casos semelhantes, estar acompanhada da impresso correspondente a essa idia.

c) c) Hume considera tambm a crena que resulta da repetio de idias individuais (crena pela educao). Nota, porm, que por provir de uma causa artificial esse tipo de crena no tem sido reconhecido pelos filsofos. No fcil determinar quanta legitimidade ele est disposto a lhe conferir, pois comedido ao asseverar que tais crenas tm quase a mesma fundao que as crenas em causas e efeitos.

d) d) Por fim, Hume refere-se crena por credulidade, ou seja, que resulta de uma f demasiadamente fcil no testemunho dos outros [12]. Esse caso, mencionado ao longo da discusso de um dos exemplos de avivamento de idias por semelhana, no apresentado claramente como uma fonte independente de crena. E, pelo modo em que as trata, depreende-se que Hume no considera genunas as crenas desse tipo. O que ele assevera que temos uma acentuada propenso a acreditar no que nos relatam, especialmente quando o fato relatado guarda semelhana com as idias sugeridas pelas palavras que ouvimos. [4]10. Da influncia da crena.

[1] Hume prev que seu sistema epistemolgico contar com a oposio dos filsofos, ao redundar em que a maior parte de nossos raciocnios e todas as nossas paixes e aes no podem derivar seno do costume e hbito. Resolve ento antecipar nesta seo algo do que dir no livro 2 acerca das paixes e do senso esttico.

[2-3] Analisando certos aspectos das idias de prazer e dor, Hume conclui que o efeito da crena elevar uma mera idia a uma posio de igualdade com relao s nossas impresses, e conferir-lhe influncia semelhante sobre as paixes. [...] Sempre que pudermos fazer uma idia aproximar-se das impresses em fora e vivacidade, ela as imitar em sua influncia sobre a mente; e, vice-versa, onde a idia imitar as impresses nessa influncia [...] tem-se de atribuir isso sua aproximao das impresses em fora e vivacidade. [3]

[4] Aps observar que a crena quase que absolutamente requerida para excitar nossas paixes, Hume afirma que, por outro lado, estas tm o poder de avivar as idias, e portanto de favorecer as nossas crenas.

[5-8] Quanto s relaes entre crena e imaginao, inegvel o poder que a primeira tem sobre a segunda. Sabendo disso, os poetas freqentemente misturam s suas fantasias fragmentos de fatos nos quais acreditamos, para faz-las nos impressionar mais fortemente. Como no caso das paixes, a influncia entre crena e imaginao mtua. Assim, podemos observar no apenas que a crena confere vigor imaginao, mas tambm que uma imaginao vigorosa e forte , dentre todos os talentos, o mais prprio para produzir crena e autoridade. difcil abster-nos de assentir quilo que se pinta com todas as cores da eloqncia; e a vivacidade produzida pela fantasia [fancy] , em muitos casos, maior do que a que surge do costume e da experincia. [8]

[9] Isso se torna particularmente evidente no caso da loucura.

[10-12] Tais constataes tm significativa repercusso sobre a teoria de Hume acerca da crena. Parece certo que o fervor potico pode avivar grandemente idias que representam coisas nas quais de modo algum acreditamos. Dando-se conta da tenso aqui existente, no Apndice do Tratado Hume acrescenta trs pargrafos para tentar alivi-la. S o consegue relaxando de alguma forma sua tese de que o critrio exclusivo da crena em questes de fato a vivacidade (cf. penltimo pargrafo da seo 13). Tanto na poesia como na loucura, diz Hume, a vivacidade das idias no deriva das particulares situaes ou conexes dos objetos dessas idias, mas da tmpera e disposio presentes da pessoa. No importa, porm, qual seja o grau a que se eleve essa vivacidade, evidente que na poesia ela nunca tem a mesma sensao [feeling] do que aquela que surge na mente quando raciocinamos, com base embora na mais baixa das espcies de probabilidade. A mente pode facilmente distinguir uma da outra; e seja qual for a emoo que o entusiasmo potico d aos espritos, ainda ser apenas um fantasma [phantom] de crena ou persuaso. [10] Uma descrio potica capaz de exibir o objeto diante de nos em cores mais vvidas. As idias que apresenta, porm, so diferentes para a sensao [feeling] relativamente quelas que provm da memria e do julgamento. H algo fraco e imperfeito no meio de toda aquela aparente veemncia de pensamento e sentimento que acompanha as fices da poesia. [10]

11. Das probabilidades de acaso.

[1] Nesta seo e na seguinte Hume expe algumas das conseqncias do seu sistema epistemolgico, relativas aos casos em que a conjuno de fenmenos subjacente s inferncias causais no constante.

[2] Hume comea criticando os filsofos que dividiram a razo humana em conhecimento e probabilidade [Locke, e o prprio Hume em T 1.3.1 e 2!], pois isso nos obriga, em vista dos resultados precedentes, a incluir todos os argumentos a partir de causas e efeitos nesta ltima categoria, j que o conhecimento refere-se apenas evidncia que resulta da comparao de idias. Mas as inferncias a partir de uma conjuno absolutamente constante de objetos no so objeto de dvida sensata, formando uma categoria parte, qual Hume (enganosamente) denomina provas. Assim, ser classificado de probabilidade apenas aquilo que seja passvel de dvida razovel.

[3] Em seguida, prope que h dois tipos de probabilidade: a que se funda no acaso (probability of chance) e a que surge de causas (probability of causes). Nesta seo 11 trata apenas do primeiro tipo.

[4] Inicia afirmando que o acaso, em si prprio, no algo real [5], sendo meramente a negao de uma causa, de modo que sua influncia sobre a mente contrria da causao, sendo-lhe essencial deixar a imaginao perfeitamente indiferente para considerar a existncia ou no-existncia do objeto considerado contingente.

[5-7] Visto que uma inteira contingncia essencial para o acaso, nenhum acaso (chance) pode ser superior a outro, a no ser por compor-se de um nmero superior de acasos iguais. [5] Hume examina ento que efeito uma combinao superior de acasos pode ter sobre a mente, e de que maneira influencia o nosso julgamento e opinio. [7] Essa influncia no se deve a demonstraes: impossvel provar com certeza que um evento tem de cair no lado onde h um nmero superior de acasos. [7] Tampouco apia-se em probabilidades: dizer que mais provvel que ocorra o evento caracterizado por um nmero superior de acasos tautolgico.

[8-9] A questo substancial : Por que meios um nmero superior de acasos opera sobre a mente, produzindo crena ou assentimento? [8] Para elucid-la, Hume considera o caso de um dado que tem uma mesma marca em quatro lados e outra marca nos dois outros lados. Nossa crena de que, num lanamento, resultar a primeira marca surge de uma das mais curiosas operaes do entendimento. [9]

[10-11] Essa operao complexa envolve trs fatores. Primeiro, por causao cremos, sem nenhuma dvida, que o dado cair, que no desaparecer, que sua forma ser mantida etc., e que um de seus lados ficar voltado para cima.

[12] Segundo, -nos inteiramente indiferente qual ser esse lado; no h nada que fixe o lado particular; isso determinado inteiramente pelo acaso[6]. Desse modo, o impulso original, e conseqentemente a vivacidade de pensamento que surge das causas, dividido e fracionado em pedaos entre os acasos entrelaados.

[13] Por fim, quando consideramos o evento da obteno de uma marca, e no de uma face, particular essas vivacidades parciais se unem em torno de sua idia, do que resulta uma vivacidade proporcional ao nmero de lados que tm essa marca. Poder-se ia esperar que Hume propusesse, a partir disso, que formamos crenas na ocorrncia das diversas marcas, proporcionalmente a suas vivacidades. Mas isso ele s far na Investigao, onde diz que a ocorrncia de cada marca recebe um certo grau de crena e um peso e autoridade particulares (6.2 e 4). Aqui, curiosamente prope o seguinte. Como os eventos so contrrios (i.e., incompatveis), os impulsos tornam-se igualmente contrrios, e o inferior destri o superior, na medida de seu poder, de modo que, no final, acreditaremos na ocorrncia da marca que foi gravada em um maior nmero de faces, porm com uma crena diminuda, relativamente que existiria se ela estivesse gravada em um nmero ainda maior de faces. No h referncia explcita crena na ocorrncia dos eventos para os quais concorrem um menor nmero de acasos. (Essa explicao adaptada, na Investigao, 10.6-10, para o caso das crenas resultantes de testemunhos.)

12. Das probabilidades de causas.

[1] O que eu disse acerca das probabilidades de acaso no tem outro propsito que o de nos auxiliar na explicao da probabilidade de causas; pois os filsofos comumente admitem que o que o vulgo chama acaso no passa de uma causa secreta e oculta. [7][2] Hume enumera pelo menos dois tipos de probabilidades de causas, provenientes, no entanto, da mesma origem, a associao de idias a uma impresso presente. Antes que o hbito que produz a associao causal atinja o seu grau mximo, conduzindo-nos a uma segurana perfeita em nossas inferncias, ele passa por vrios graus inferiores, em cada um dos quais [o nosso julgamento] deve ser tido apenas como uma presuno [presumption] ou probabilidade. Portanto, a transio das probabilidades para as provas , em muitos casos, imperceptvel. Essas crenas que resultam de experincias imperfeitas da conjuno constante de eventos constituem o primeiro tipo de probabilidade de causas.

[3] Hume nota, no entanto, que ningum que haja atingido a maturidade pode ainda ser afetado por tal espcie de probabilidade, visto que ocorre com elas o fenmeno descrito na seo 8: a crena completa atingida a partir de um nico experimento, porque a pessoa j formou a crena geral na regularidade da Natureza. O segundo tipo de probabilidade de causas surge onde existe uma contrariedade em nossa experincia, ou seja, quando observamos que objetos ou eventos de um certo tipo vm acompanhados de objetos ou eventos de tipos diferentes. A ingesto de pio, por exemplo, ora segue-se de sono, ora no.

[4-5] Embora o vulgo atribua a incerteza dos eventos a uma incerteza intrnseca a suas causas, os filsofos observaram que em quase toda parte da Natureza h uma variedade de fontes e princpios usualmente ocultos, por sua pequenez ou distanciamento, sendo pois possvel que a contrariedade de eventos proceda da, ou seja, da operao secreta de causas contrrias [5], e no de uma contingncia na causa. Aparentemente, foi o sucesso dos filsofos (cientistas, diramos hoje) na descoberta de muitas dessas causas ocultas que indutivamente levou Hume a sustentar que no h acaso na Natureza.

[6-7] Como quer que seja, as inferncias que fazemos a partir das experincias irregulares so sempre as mesmas: formamos uma crena hesitante. Dois so os motivos apontados para esse enfraquecimento da crena. Primeiro, a contrariedade de eventos passados produz um hbito e uma transio imperfeitos da impresso presente para a idia relacionada. [6] Depois, podemos conscientemente levar em conta a contrariedade dos eventos passados e pesar cuidadosamente os experimentos que temos de cada lado.[7] Este ltimo caso o que mais freqentemente ocorre, segundo Hume. Nele as inferncias probabilsticas no resultam do hbito de forma direta, porm de um modo oblquo, que explica a seguir.

[8] Diante da experincia da contrariedade, sempre julgamos que o evento que se observou com maior freqncia o mais provvel. H aqui duas coisas a serem consideradas.

[9] Primeiro, quanto s razes que nos determinam a fazer do passado um padro para o futuro, Hume reafirma que derivam inteiramente do hbito.

[10-11] Depois, Hume examina a maneira pela qual extramos um juzo nico de uma contrariedade de eventos passados. Quando nos aparece um objeto que no passado foi observado seguir-se de objetos de tipos diversos, a determinao ou impulso habitual da mente quebra-se em pedaos, difundindo-se por todas aquelas imagens [dos vrios objetos], cada uma das quais partilha uma igual poro da fora e vivacidade que deriva do impulso. [10] Quando consideramos a possvel ocorrncia de um objeto de determinado tipo, essas pores de vivacidade se renem em torno da idia desse tipo, o mesmo ocorrendo com os demais tipos. Hume fornece, assim, uma explicao anloga das probabilidades de acaso: Cada experimento passado pode ser considerado um tipo de acaso. [11] Cada um tem o mesmo peso, e somente um nmero superior deles que pode fazer a balana pender para um dos lados. Como a crena que depositamos em um evento aumenta ou diminui de acordo com o nmero de acasos ou experimentos passados, ela deve ser considerada um efeito composto, cujas partes provm, cada uma, de um nmero proporcional de acasos ou experimentos. [11]

[12] Assim, resumindo, experimentos contrrios produzem uma crena imperfeita, quer pelo enfraquecimento do hbito, quer dividindo, e depois juntando em partes diferentes, aquele hbito perfeito que nos faz concluir em geral que casos dos quais no tivemos experincia tm necessariamente de assemelhar-se aos de que tivemos.

[13-19] Hume fornece ento a uma longa explicao adicional dessa segunda espcie de probabilidade. Essa explicao envolve o processo de destruio parcial da vivacidade da idia do evento mais comum pela vivacidade da idia do evento menos freqente, que Hume props na anlise das probabilidades de acaso. Diz que a nica maneira pela qual o nmero superior de partes componentes de uma crena pode exercer sua influncia, e prevalecer sobre o [nmero] inferior da outra [crena] produzindo uma viso [view] mais forte e vvida de seu objeto. [17] Um pouco adiante acrescenta: Como as vises contrrias so incompatveis entre si [...], suas influncias sobre a mente tornam-se mutuamente destrutivas, e ela determinada para a superior apenas com a fora que sobra aps a subtrao da inferior. [19]

[20] O estudo dos raciocnios conjeturais ou provveis fornece evidncia, segundo Hume, para dois princpios fundamentais de seu sistema: 1) que no existe nada, em um objeto qualquer, considerado em si mesmo, que nos possa fornecer uma razo para extrair uma concluso que v alm dele; e 2) que mesmo aps a observao da conjuno freqente ou constante de objetos, no possumos nenhuma razo para extrair nenhuma inferncia acerca de quaisquer objetos alm daqueles de que j tivemos experincia.

[21] Primeiro, se as causas do objeto inferido por um raciocnio provvel fossem as propriedades conhecidas do objeto a partir do qual se raciocina, a concluso no seria incerta. A incerteza da concluso das inferncias provveis mostra que elas no partem das propriedades conhecidas do objeto.

[22] Segundo, se a transferncia do passado para o futuro se fundamentasse apenas em uma concluso do entendimento, jamais poderia ocasionar qualquer crena ou segurana. [...] Nossa experincia passada no apresenta [neste caso dos argumentos provveis] nenhum objeto determinado; e como nossa crena, no importa quo fraca, se fixa sobre um objeto determinado, evidente que ela no surge meramente da transferncia do passado para o futuro, mas de alguma operao da imaginao [fancy] que se lhe associa. a imaginao que funde todas aquelas imagens que cooperam [concur] e extrai delas uma imagem ou idia nica.

[23] Hume explica por que no podemos emular voluntariamente, pela imaginao, os raciocnios provveis, produzindo crenas fictcias.

[24] Explica tambm por que a vivacidade, ela apenas, no explica os raciocnios provveis nos quais grandes nmeros esto envolvidos. Nesse caso, diz Hume, a mente tem de recorrer a regras gerais (a serem estudadas na seo seguinte).

[25] Aps apresentar duas reflexes adicionais, Hume encerra apontando brevemente um terceiro tipo de probabilidade de causas. Mas alm dessas duas espcies de probabilidade, derivadas de uma experincia imperfeita e de causas contrrias, h uma terceira, que surge da analogia [...]. Todos os tipos de raciocnio a partir de causas e efeitos fundam-se em dois pontos; a saber, a conjuno constante de dois objetos quaisquer em toda a experincia passada e a semelhana de uma impresso presente com qualquer um deles. [...] Se voc enfraquece ou a unio ou a semelhana, voc enfraquece o princpio de transio e, conseguintemente, a crena que dele resulta. [...] Nas probabilidades de acaso e de causas explicadas acima a constncia da unio que diminuda; e na probabilidade derivada da analogia a semelhana apenas que afetada. [...] Mas como essa semelhana admite muitos graus diferentes, o raciocnio torna-se proporcionalmente mais ou menos firme e certo.

13. Da probabilidade no-filosfica.

Nesta seo Hume apresenta mais quatro tipos de probabilidades (de causas), que derivam dos mesmos princpios que os anteriores, mas que no so reconhecidos pelos filsofos, sendo pois chamadas no-filosficas.

[1] O primeiro tipo tem lugar quando, em um raciocnio de causa e efeito, ocorre uma diminuio da impresso, ou seja, quando a impresso em que a inferncia se apia fraca e obscura. Essa menor vivacidade acarreta menor vivacidade da idia inferida; em conseqncia, a crena no seu objeto ser menor, adentrando o domnio da probabilidade.

[2] O segundo tipo de probabilidade no-filosfica [9] tambm diz respeito s inferncias causais, quando partem, no de uma impresso, mas de uma idia de memria. Note-se que embora ao referir-se s inferncias de causas e efeitos Hume quase que invariavelmente, ao longo do livro, fale que se baseiam em uma impresso presente, no incio da seo 4 desta parte 3 admite explicitamente que essa impresso pode ser substituda por idias de memria, que so equivalentes a impresses. O que est afirmando agora que como as idias de memria usualmente vo perdendo vivacidade com o tempo, se tomarmos uma delas como base de uma inferncia causal, a crena naquilo que se infere pode diminuir tambm, caindo no mbito da probabilidade.

[3] O terceiro tipo surge quando h um encadeamento de vrios argumentos de causas e efeitos. A crena na concluso final ser, neste caso, enfraquecida, devido perda gradual de vivacidade em cada passo da cadeia. Desse modo, os raciocnios a partir de provas [...] freqentemente degeneram imperceptivelmente em raciocnios provveis.[10][4] Hume expe uma objeo, baseada neste ltimo tipo: a histria antiga, dependendo de longas cadeias causais, perderia toda a segurana.

[5] Entre parnteses, Hume nota que uma objeo anloga poderia ser levantada contra a religio crist. difcil perceber o exato objetivo de Hume aqui.

[6] Soluo: no caso da histria no h a perda de segurana porque os elos da cadeia causal so todos do mesmo tipo. Tambm aqui difcil avaliar se a soluo eficaz.

[7-18] A quarta e ltima espcie de probabilidade no-filosfica a que deriva de regras gerais. No longo texto sobre esse assunto, Hume aparentemente utiliza a expresso regras gerais em vrios sentidos no-equivalentes. pgina 200 de sua edio do Tratado, Macnabb distingue cinco sentidos, entre os quais o primeiro, Hbitos de julgamento irrefletidos estabelecidos por conjunes acidentais e semelhanas vagas, parece ser aquele em que se pode dizer que das regras gerais deriva um certo tipo de probabilidade. [Neste resumo no adentrarei os detalhes da obscura discusso de Hume. Sobre as regras gerais, ver tambm a seo 15.]

[19] No final da seo, Hume apresenta uma sinopse geral dos tipos de opinio ou de julgamento (graus epistmicos). Esquematicamente, so os seguintes: [11]

1) 1) Conhecimento (versa exclusivamente sobre relaes de idias);

2) 2) Crenas nos objetos das impresses;

3) 3) Crenas nos objetos das idias de memria;

4) 4) Inferncias sobre causas e efeitos baseadas na experincia da conjuno constante;

5) 5) Inferncias sobre causas e efeitos baseadas em um nmero insuficiente de conjunes;

6) 6) Inferncias sobre causas e efeitos quando a semelhana no exata;

7) 7) Inferncias sobre causas e efeitos quando a impresso fraca e obscura;

8) 8) Inferncias sobre causas e efeitos quando a idia de memria se enfraquece;

9) 9) Inferncias sobre causas e efeitos quando a conexo depende de uma cadeia de argumentos;

10) 10) Inferncias que derivam de regras gerais.

[20] Por fim, Hume chama, a ateno para a coerncia do seu sistema, no qual h um acordo entre [as] partes, e a necessidade de uma para explicar outra.

14. Da idia de conexo necessria.

[1] Havendo j explicado a maneira em que raciocinamos alm das impresses imediatas e conclumos que tais causas devem ter tais efeitos, Hume examinar agora qual nossa idia de necessidade, quando dizemos que dois objetos esto necessariamente conectados. Essa necessidade sempre atribuda aos objetos que consideramos associados pela relao de causa e efeito. Inspecionando dois objetos assim associados, percebemos que so contguos no espao e no tempo, e que aquele que chamamos causa precede o que chamamos efeito. Alm dessas duas circunstncias, no podemos perceber nenhuma outra, nos casos individuais de causas e efeitos. somente quando vrios casos similares so considerados que uma nova impresso surge: a da determinao que temos para inferir um objeto a partir da observao do outro. dessa impresso que deriva a idia de necessidade ou poder, conforme Hume explicar detalhadamente mais adiante.

[2-3] Comentrios sobre a importncia do assunto examinado.

Antes de abordar os pontos centrais, Hume prepara o terreno com a exposio de diversos tpicos relacionados.

a) a) [4] Os termos eficcia, agncia, poder, fora, energia, necessidade, conexo e qualidade produtiva so aproximadamente sinnimos, de modo que no se pode definir qualquer deles por meio dos demais, como se faz vulgarmente.

b) b) [5] A explicao da origem da idia de poder fornecida por Locke no aceitvel. Segundo esse filsofo, ela seria obtida raciocinando-se sobre a observao das diversas novas produes na matria. Todavia, a razo incapaz de produzir idias originais, como o prprio Locke, alis, sustentava. Depois, a razo nunca pode nos levar a concluir que todo comeo de existncia h de ter uma causa (cf. seo 3).

c) c) [6] Como a idia de eficcia ou poder no pode provir da razo, tem de derivar da experincia. Temos, pois, de encontrar uma produo natural onde a operao e poder de uma causa sejam claramente concebidos e compreendidos pela mente.

d) d) [7] As propostas da filosofia Antiga e Medieval, que apelam a princpios tais como formas substanciais, matria etc. tambm devem ser rejeitadas. Tais princpios no se reduzem a nenhuma propriedade conhecida dos corpos, sendo totalmente ininteligveis e inexplicveis. Essa circunstncia, alis, refora a suspeita de que a idia de poder no deriva daquilo que se observa nos corpos, pois do contrrio os filsofos jamais teriam recorrido a tais noes obscuras.

e) e) [8-11] Diante disso, filsofos modernos concluram que a eficcia ltima da Natureza completamente desconhecida. A tese cartesiana, desenvolvida por Malebranche, de que a matria destituda de todo poder, analisada brevemente por Hume. Segundo essa tese, Deus seria no apenas a fonte ltima de todo o poder, mas tambm sua fonte imediata. Hume objeta que assim como os defensores dessa posio inferem que a matria desprovida de poder a partir do fato de que no nos possvel descobri-lo nela, teriam que concluir tambm que a prpria Divindade no possui poder algum, visto que ns no conhecemos o poder divino. Esta ltima afirmao assume que: i) a doutrina das idias inatas j foi refutada; e ii) que no podemos formar a idia de poder por nossas prprias faculdades, observando os corpos e nossa mente. [12]f) f) [12] Em um trecho acrescentado no Apndice, Hume rejeita, de forma anloga, que a idia de poder provenha da observao de casos individuais das operaes da mente sobre os corpos ou sobre as idias. A maneira pela qual essas operaes se realizam -nos inteiramente incompreensvel, e sem a experincia jamais poderamos saber que a mente tem alguma influncia sobre o corpo ou sobre as idias. [13]g) g) [13] Tambm no se pode manter que, a despeito de no encontrarmos a impresso de poder nos corpos que examinamos, possumos uma idia geral de poder. Isso iria contra o nominalismo, que Hume afirma j haver sido estabelecido como um princpio certo. Segundo tal doutrina, as idias gerais ou abstratas no passam de idias particulares tomadas sob uma certa luz. Assim, se idias particulares de poder no provm da observao dos corpos, tampouco a idia geral de poder da deriva.

[14] A concluso parcial alcanada a partir desses pontos que quando falamos da conexo necessria entre objetos, e supomos que tal conexo depende de uma eficcia ou energia que tais objetos possuem, todas essas expresses, aplicadas deste modo, na verdade no possuem nenhum sentido distinto; empregamo-las como palavras comuns, sem idias claras e determinadas. Note-se que Hume no est afirmando que as palavras poder, eficcia etc. so completamente sem sentido, mas apenas que no possuem, quando aplicadas de forma realista, um significado distinto. Imediatamente aps o trecho citado, prossegue: Mas como mais provvel que essas expresses percam aqui o seu significado verdadeiro, ao serem aplicadas erradamente, do que no tenham nenhum significado, ser apropriado considerar a questo sob um outro ngulo, para ver se podemos descobrir a natureza e a origem das idias que a elas anexamos (grifos de Hume). O significado realista da palavra poder seria, pois, obscuro, incerto, errado; seu verdadeiro significado remete a algo que ocorre no plano de nossas percepes, conforme se explicar agora. [14][15] Se no observssemos seno casos singulares da conjuno de objetos, jamais seramos capazes de formar as idias de causa e efeito.

[16] Quando diversos casos semelhantes se nos apresentam, porm, imediatamente concebemos uma conexo entre os objetos. Essa multiplicidade de casos semelhantes constitui, pois, a prpria essncia do poder ou conexo, e a fonte da qual sua idia surge. Todavia, a mera repetio das ocorrncias similares no pode dar origem diretamente a uma idia original, como a de poder: a repetio tem de produzir ou descobrir algo novo, que seja a fonte dessa idia.

[17] Agora evidente que a repetio de objetos semelhantes em relaes semelhantes de contigidade e sucesso no descobre nada de novo em nenhum deles.

[18] Tambm certo que ela no produz nada nesses objetos, j que os vrios casos so independentes entre si.

[19] Logo, as idias de necessidade, poder e eficcia no representam nada que pertena ou possa pertencer aos objetos que esto constantemente conjugados.

[20] No entanto, a observao dessa semelhana [dos vrios casos de conjugao de objetos] produz uma nova impresso na mente. Tal impresso a da determinao da mente de passar de um objeto para o seu acompanhante usual, e constitui o modelo real da idia de poder ou necessidade. A necessidade , assim, o efeito dessa observao, e no nada seno uma impresso interna da mente.

[21] A conexo necessria entre causas e efeitos o fundamento de nossa inferncia daquelas a estes ou reciprocamente. O fundamento de nossa inferncia a transio resultante da unio habitual. A conexo necessria e a transio so, portanto, a mesma coisa.

[22] A idia de necessidade surge, pois, de uma impresso de reflexo. No fim das contas, necessidade algo que existe na mente, no nos objetos; jamais fazemos dela a mais remota idia, quando considerada uma qualidade nos corpos. [15][28] Hume concede, no entanto, que as operaes da Natureza so independentes de nosso pensamento e raciocnio, tendo mesmo notado que os objetos esto relacionados por contigidade e sucesso; que se pode observar que objetos semelhantes guardam, em vrios casos, relaes semelhantes; e que tudo isso independente e anterior s operaes do entendimento. Mas se formos alm, atribuindo um poder ou conexo necessria a tais objetos, isso o que nunca observamos neles; essa idia tem de provir daquilo que sentimos internamente ao contempl-los.

[29] Hume sugere, de modo no muito claro, que sua explicao da idia de poder aplica-se tambm esfera das percepes.

[30] Agora j possvel ver por que, como Hume antecipou em 1-3.6-3, primeiro era preciso examinar as inferncias causais para depois examinar a idia de conexo necessria.

[31] Hume apresenta agora duas definies de causa, que representam vises diferentes do mesmo objeto. A relao de causa e efeito pode ser considerada tanto uma relao filosfica (uma comparao de duas idias) ou uma relao natural (uma associao de idias). Temos, assim, que uma causa , respectivamente: 1) Um objeto precedente e contguo a outro, e onde todos os objetos que se assemelham ao primeiro guardam relaes semelhantes de precedncia e contigidade com objetos que se assemelham ao segundo; ou 2) um objeto precedente e contguo a outro, e a ele unido de tal modo que a idia de um determina a mente a formar a idia do outro, e a impresso de um determina-a a formar uma idia mais vvida do outro.

[32] Encerrando, quatro corolrios da doutrina da causalidade so apresentados:

[32] 1) Todas as causas so do mesmo tipo, a saber, causas eficientes. No h fundamento para se traar uma distino entre causas eficientes e causas sine qua non, formais, materiais, exemplares e finais. A distino entre causa e ocasio tambm deve ser rejeitada: Se a conjuno constante estiver envolvida no que chamamos ocasio, ela ser uma causa real; se no estiver, no ser nenhuma relao, no podendo dar origem a nenhum argumento ou raciocnio.

[33] 2) H apenas um tipo de necessidade: a distino comum entre necessidade moral e fsica carece de fundamento na Natureza. (O argumento de Hume neste caso envolve alguns pontos obscuros, como por exemplo a afirmao de que a conjuno constante dos objetos, junto com a determinao da mente, que constitui a necessidade fsica.)

[34] A distino, que freqentemente fazemos, entre o poder e o seu exerccio igualmente destituda de fundamento.

[35] 3) A tese da seo 3, de que no necessrio que tudo o que comea a existir tenha uma causa, agora mais fcil de aceitar.

[36] 4) Nunca podemos ter razo para crer na existncia de um objeto acerca do qual no possamos formar uma idia. (Exemplos, a serem considerados na parte IV: matria e substncia.)

15. Regras pelas quais se pode julgar acerca de causas e efeitos.

[1] Em princpio, qualquer coisa pode produzir qualquer coisa, uma vez que a conjuno constante de objetos determina a sua causao, e que, propriamente falando, nenhum objeto contrrio a outro, exceto a existncia e a no-existncia.

[2] Diante disso, Hume julga conveniente fixar algumas regras gerais pelas quais se poder saber se dois objetos realmente so causa e efeito:

1) 1) [3] A causa e o efeito tm de ser contguos no espao e no tempo.

2) 2) [4] A causa tem de ser anterior ao efeito.

3) 3) [5] Tem de haver uma unio constante entre a causa e o efeito. principalmente essa qualidade que constitui a relao.

4) 4) [6] A mesma causa sempre produz o mesmo efeito, e o mesmo efeito nunca surge seno da mesma causa. Esse princpio deriva da experincia, e constitui a fonte da maioria de nossos raciocnios filosficos. Pois quando descobrimos, por meio de um experimento claro, as causas ou efeitos de um fenmeno, imediatamente estendemos nossa observao a todo fenmeno do mesmo tipo, sem esperar aquela repetio constante, da qual a primeira idia dessa relao proveio. [16]5) 5) [7] H outro princpio atrelado a esse, a saber, que onde vrios objetos diferentes produzem o mesmo efeito, tm de faz-lo por meio de alguma qualidade que descobrimos ser comum a todos eles. Pois como efeitos semelhantes implicam causas semelhantes, sempre temos de atribuir a causao circunstncia na qual descobrimos a semelhana.

6) 6) [8] Nessa mesma razo funda-se o seguinte princpio. A diferena nos efeitos de dois objetos semelhantes tem de provir da particularidade pela qual diferem. Pois como causas semelhantes sempre produzem efeitos semelhantes, quando nossa expectativa desapontada em um caso qualquer, temos de concluir que esta irregularidade provm de alguma diferena nas causas.

7) 7) [9] Quando um objeto aumenta ou diminui com o aumento ou diminuio de sua causa, deve ser considerado um efeito composto, derivado da unio de vrios efeitos diferentes que surgem da vrias partes diferentes da causa. [...]

8) 8) [10] A oitava e ltima regra que anotei que um objeto que exista durante um certo tempo em sua inteira perfeio sem nenhum efeito no a causa nica de nenhum efeito, mas requer a assistncia outro princpio capaz de promover a sua influncia e operao. Pois como efeitos semelhantes necessariamente seguem causas semelhantes, e num tempo e lugar contguos, sua separao por um momento mostra que essas causas no so completas.

[11] Hume reconhece que estas, bem como todas as regras para direcionar o nosso juzo em filosofia [...] so de fcil inveno, porm de aplicao extremamente difcil. [17] Hume comenta a grande complexidade dos fenmenos da filosofia natural, e diz que os da filosofia moral so ainda mais complexos.

[12] Por isso, importante ampliar tanto quanto possvel a esfera dos meus experimentos, razo pela qual conveniente examinar a faculdade de raciocnio dos brutos.

16. Da razo dos animais.

[1] Hume considera ridculo negar, a exemplo de Descartes, que os animais sejam providos de pensamento e razo.

[2] Seu argumento o seguinte. Em milhes de casos vemos os animais executar aes semelhantes s nossas para adaptar meios a fins. Como tais aes so, em ns, produto da razo, tambm devem s-lo nos animais.

[3] da semelhana das aes externas dos animais e das que ns mesmos fazemos que julgamos que suas [aes internas] igualmente assemelham-se s nossas. Nesse raciocnio Hume aplica a quarta regra da seo precedente, porm em um sentido inverso do indicado pelo ttulo da seo. A regra no usada para identificar como uma causa real um determinado tipo de evento observado, mas para sustentar a hiptese de que um determinado objeto inobservvel no caso, a faculdade interna de razo nos animais de fato existe, e causa certos eventos observados os movimentos corporais dos animais. [18]

[4] O caso da razo dos animais um teste decisivo do presente sistema sobre a natureza do entendimento (classificado de hiptese no pargrafo precedente).

[5] H dois tipos de ao animal, as aprendidas e as instintivas. (Essas denominaes no so de Hume!)

[6-7] As aes do primeiro tipo tm a mesma origem que os raciocnios causais humanos.

[8] O fato de os animais formarem, como ns, certos hbitos e agirem de acordo com eles constitui, segundo Hume, uma prova invencvel de seu sistema, visto que ningum poder pretender que nessas aes os animais so guiados pela percepo de uma conexo real entre os objetos. , pois, pela experincia que eles inferem um [objeto] a partir de outro. Jamais podem, por meio de argumentos, formar uma concluso geral de que os objetos que no experimentaram assemelham-se queles de que tiveram a experincia. Somente pelo hbito, portanto, que a experincia opera sobre eles.

[9] Por que nos admiramos dos instintos animais e no das operaes de nossa prpria razo? Na verdade, diz Hume, a razo no passa de um maravilhoso e ininteligvel instinto em nossas almas, que nos conduz ao longo de uma certa cadeia de idias, conferindo-lhes qualidades particulares, segundo suas situaes e relaes particulares. Esse instinto surge, verdade, da observao e experincia passadas; mas pode algum apontar a razo ltima pela qual a experincia e a observao passadas produzem tal efeito? No; da mesma forma como no poderia se fosse produzido apenas pela Natureza. Ela capaz de produzir tudo o que surja do hbito; e o hbito no seno um dos princpios da Natureza, que deriva toda sua fora dessa origem.

Notas

1.Os nmeros entre colchetes indicam os pargrafos, numerados consecutivamente a partir do incio de cada seo. (Sistema proposto na edio de Norton & Norton, Oxford University Press, 2000.) [volta]2. Note-se que nessa definio Hume restringe-se crena em proposies sobre questes de fato que escapam ao testemunho presente dos sentidos ou aos registros da memria. H outras classes de proposies passveis de crena, conforme se ver no final da seo 9. (Ver tambm o final da seo 5 e o ltimo pargrafo da nota seo 7.) [volta]3. Note-se que essa afirmao , a rigor, incompatvel com o que Hume diz na seo 4, de que, como ponto de partida de inferncias causais, as idias de memria so equivalentes a impresses. [volta]4. O que significa essa semelhana? Ver E 10.7-10 para um possvel esclarecimento. A seo Dos Milagres, na qual esses pargrafos se inserem, contm uma detalhada discusso das crenas baseadas em testemunho. [volta]5. Na Investigao afirma que o acaso no existe no mundo ( 46). [volta]6. estranho que Hume no aponte que, segundo a cincia de seu tempo, o lanamento de um dado, assim como todos os processos materiais, era tido como um processo inteiramente determinista. Nossa ignorncia das condies exatas em que se d que nos obriga a falar em acaso e probabilidades. Se esse ponto, do qual Hume tinha pleno conhecimento (ver a seo seguinte), for levado em conta, a distino entre probabilidades de acaso e de causas aparentemente no poder ser traada. [volta]7. Com essas palavras Hume parece indicar que de fato no existe uma distino irredutvel entre probabilidades de acaso e probabilidades de causas. [volta]8. (Suprimida.)

9. A distino entre os dois primeiros tipos no clara em sua apresentao inicial. somente na sinopse final da seo que se percebe o que Hume tem em mente. [volta]10. Recorde-se que uma tese formalmente anloga havia sido proposta por Descartes e Locke para o caso dos raciocnios que envolvem relaes de idias. (Na primeira seo da parte 4 desse livro 1 do Tratado Hume desenvolve uma argumentao ctica contra a razo que se apia em teses semelhantes a essa.) O fato de essa tese no parecer sustentvel no implica que a tese mais fraca que Hume defende aqui seja insustentvel. [volta]11. Hume curiosamente no menciona o segundo item desta lista. No claro que haja uma estrita ordem decrescente de certeza na lista; especialmente a partir do quinto tipo parece difcil estabelecer uma ordem qualquer. [volta]12. O primeiro item evidentemente remete a Locke, embora Hume no o mencione. O segundo uma das pressuposies do prprio adversrio, que, em um certo sentido, Hume rejeitar depois, j que em sua doutrina a idia de poder uma idia de reflexo. Na Investigao, 7.22-25, dois outros argumentos so levantados contra Malebranche, um teolgico e outro meta-filosfico. [volta]13. Na Investigao, 7.9-20, esse tpico amplamente desenvolvido. [volta]14. No pargrafo em que critica o ocasionalismo, Hume afirma de passagem que no possumos uma idia adequada de poder ou eficcia em nenhum objeto, utilizando assim uma categoria lockeana. Para Locke, lembremos, idias adequadas so aquelas que representam perfeitamente seus arqutipos (Essay, II xxxi 1). So adequadas todas as idias simples, bem como as de modos e relaes; nunca porm as de substncias, quando referentes s essncias reais, ou quando entendidas como colees de qualidades que se observam coexistir. As razes apontadas por Locke so, no primeiro caso, nossa ignorncia das essncias reais das substncias e, no segundo, o fato de que as qualidades e poderes das substncias a partir dos quais formamos suas idias complexas so muito numerosos e variados para serem contidos numa idia complexa de um homem (ibid., par. 8). interessante observar que assim como Locke admite, apesar disso, o uso da palavra substncia para referir-se, em um sentido vago, s essncias reais, Hume parece tambm conceder que o termo poder pode ser usado de forma realista, porm com sentido obscuro e indeterminado. Veja-se, por exemplo, esta passagem importante do pargrafo 27: De fato, estou pronto para admitir que pode haver vrias qualidades, tanto nos objetos materiais como nos imateriais, com as quais no temos nenhuma familiaridade. Se as quisermos chamar poder ou eficcia, pouco importar para o mundo. Mas quando, ao invs de significar essas qualidades desconhecidas, empregarmos tais termos para significar algo acerca do que temos uma idia clara, e incompatvel com aqueles objetos aos quais a aplicamos, ento o erro e a obscuridade comeam a tomar lugar [...]. Este o caso quando transferimos a determinao do pensamento [da qual temos uma idia clara] para os objetos externos [incompatveis com essa idia], e supomos uma conexo real inteligvel entre eles; tal conexo [inteligvel] pode pertencer apenas mente que os considera. [volta]15. Uma forte oposio a esse violento paradoxo antevista por Hume, devido tendncia que a mente tem de espalhar-se sobre os objetos externos, atribuindo-lhes quaisquer impresses internas que ocasionem [25]. [volta]16. curioso que essa regra seja formulada como uma proposio, que, alm disso, parece tautolgica (em vista da terceira regra). Para complicar, Hume assevera que ela deriva da experincia. Aparentemente, ele pretende, a um s tempo, enunciar o fato da regularidade observada da Natureza e propor que a crena no prosseguimento dessa regularidade constitui a base de nossas inferncias sobre questes de fato no observadas. Todavia, nessa interpretao fica difcil ver em que sentido teramos aqui uma regra de identificao da relao causal. [volta]17. Talvez no seja exagero afirmar que todas as oito regras propostas apresentam problemas, quer de obscuridade de contedo, quer de compatibilidade com as noes de causalidade efetivamente utilizadas na filosofia natural, notadamente nas teorias contemporneas. Resta determinar at que ponto tais dificuldades comprometem o cerne da anlise humeana da causalidade. [volta]18. Haveria aqui uma tenso com o quarto corolrio do final da seo 14? Podemos formar a idia da razo nos animais? Esse aparente relaxamento da doutrina humeana abriria espao, por analogia, para a fundamentao da crena na existncia das entidades inobservveis postuladas pelas cincias naturais (realismo cientfico)?