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93 Ling. Acadêmica, Batatais, v. 5, n. 1, p. 93-120, jan./jun. 2015 Uma análise de abordagens da Nova História Cultural a partir das leituras exegéticas de Rute Jean Steferson PEREIRA 1 Semíramis Corsi SILVA 2 Resumo: A novela bíblica Rute relata o drama de mulheres de uma família errante que busca sua estabilidade em meio às desventuras que lhe são impostas. Embora simples, a partir de uma leitura interdisciplinar do texto, é possível compreender importantes elementos históricos próprios do momento de sua elaboração. Na busca de um sentido interpretativo a partir dos métodos e técnicas historiográficos, este artigo transita entre as abordagens da Nova História Cultural e os elementos teológicos da Exegese Bíblica, relacionando os métodos de ambas as áreas para a análise de Rute. Com este estudo, entende-se que a história de Rute pode ser interpretada à luz de métodos que mostram a afirmação do feminino em uma sociedade patriarcal. E isso não deve ser entendido como uma leitura abusiva do livro. Antes, pode ser o seu sentido mais original, percebido a partir de uma análise contextualizada do texto. Palavras-chave: Exegese Bíblica. Nova História Cultural. Livro de Rute. 1 Jean Steferson Pereira. Especialista em História Cultural pelo Claretiano – Centro Universitário – Polo de Pouso Alegre (MG). Graduando em Teologia pela Faculdade Católica de Pouso Alegre (FACAPA). Licenciado em Filosofia pela Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) – campus de Campanha (MG). E-mail: <[email protected]>. 2 Semíramis Corsi Silva. Doutora em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP) – campus de Franca (SP). Mestre e graduada em História pela mesma instituição. Docente da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: <[email protected]>.

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Uma análise de abordagens da Nova História Cultural a partir das leituras exegéticas de Rute

Jean Steferson PEREIRA1

Semíramis Corsi SILVA2

Resumo: A novela bíblica Rute relata o drama de mulheres de uma família errante que busca sua estabilidade em meio às desventuras que lhe são impostas. Embora simples, a partir de uma leitura interdisciplinar do texto, é possível compreender importantes elementos históricos próprios do momento de sua elaboração. Na busca de um sentido interpretativo a partir dos métodos e técnicas historiográficos, este artigo transita entre as abordagens da Nova História Cultural e os elementos teológicos da Exegese Bíblica, relacionando os métodos de ambas as áreas para a análise de Rute. Com este estudo, entende-se que a história de Rute pode ser interpretada à luz de métodos que mostram a afirmação do feminino em uma sociedade patriarcal. E isso não deve ser entendido como uma leitura abusiva do livro. Antes, pode ser o seu sentido mais original, percebido a partir de uma análise contextualizada do texto.

Palavras-chave: Exegese Bíblica. Nova História Cultural. Livro de Rute.

1 Jean Steferson Pereira. Especialista em História Cultural pelo Claretiano – Centro Universitário – Polo de Pouso Alegre (MG). Graduando em Teologia pela Faculdade Católica de Pouso Alegre (FACAPA). Licenciado em Filosofia pela Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) – campus de Campanha (MG). E-mail: <[email protected]>.2 Semíramis Corsi Silva. Doutora em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP) – campus de Franca (SP). Mestre e graduada em História pela mesma instituição. Docente da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: <[email protected]>.

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An analysis of new approaches to new cultural history from exegetical readings of Ruth’s book

Jean Steferson PEREIRA Semíramis Corsi SILVA

Abstract: The Biblical novel Ruth recounts the drama of women of a wandering family that is seeking for stability in the midst of misfortunes. Although simple, from an interdisciplinary reading of the text, it is possible to understand important elements of own historical moment of its production. Searching for an interpretive direction from the historiographical methods and techniques, this article moves between the approaches of the New Cultural History and the theological elements of Biblical Exegesis, relating the methods of both areas for the analysis of Ruth. With this study, we understand that the story of Ruth can be interpreted based on methods that demonstrate the assertion of the feminine in a patriarchal society. And this shouldn’t be construed as an unfair reading of the book. Rather, it’s the most original sense, originated from a contextualized reading of the text.

Keywords: Biblical Exegesis. New Cultural History. Ruth’s Book.

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1. INTRODUÇÃO

Rute – uma das novelas bíblicas do Antigo Testamento da Bíblia Hebraico-Cristã – relata o drama de uma família errante que busca sua estabilidade em meio às desventuras que lhe são impostas. Tal família, composta por Elimelec e Noemi e pelos filhos Maalon e Quelion, muda-se para os Campos de Moab fugindo da fome que assola sua terra natal, Belém de Judá. Vivem como estrangeiros por dez anos, até que morre Elimelec. Com a morte do pai, os dois filhos de Noemi se casam com as moabitas Orfa e Rute; porém, os dois também falecem. Amargurada, Noemi decide voltar à sua terra, pois Deus havia lhe abençoado com pão, e, assim, despede-se de suas noras. Orfa volta para sua casa, mas Rute decide acompanhar a sogra até o fim de sua vida. Assim, a história desenvolve-se relatando o cotidiano dessas duas mulheres e, especialmente, suas lutas para sobreviver em meio às dificuldades da sociedade patriarcal de Israel.

Embora simples e curta, a partir de uma leitura interdiscipli-nar, é possível ler essa narrativa como uma história surpreendente e inusitada. Por isso, na busca desse sentido mais profundo, este trabalho transita entre as abordagens da Nova História Cultural e os elementos teológicos da Exegese Bíblica, relacionando os métodos de ambas as áreas.

Analisando algumas pesquisas acerca da interpretação do li-vro de Rute, percebe-se que muitos autores tendem para uma exe-gese tradicional, que enxerga a narrativa apenas como um elemento da história do rei Davi, uma grande personalidade da história de Israel. Entretanto, atualmente, outros exegetas, amparados pelas transformações contemporâneas das Ciências Humanas e motiva-dos pelo método interdisciplinar de pesquisa científica, sem deixar de lado o valor espiritual e teológico das Sagradas Escrituras, es-tão propondo leituras mais problematizadas acerca da história em questão.

A partir dessas novas abordagens de Rute, é possível compre-ender o quanto a Exegese Bíblica está afinada com os estudos da Nova História Cultural e como a relação de ambas contribui para

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uma hermenêutica mais profunda dos textos bíblicos. Contudo, a reflexão que propomos neste artigo é apenas uma reflexão prope-dêutica, cuja finalidade é lançar luzes para um estudo mais profun-do, que leve em conta, cada vez mais, a relação interdisciplinar en-tre as áreas. Para alcançar os objetivos aqui expostos, começaremos expondo o que é a Exegese Bíblica.

2. A INTERPRETAÇÃO EXEGÉTICA DA BÍBLIA

As escrituras sagradas são textos considerados pelas tradi-ções religiosas como inspirados por Deus. A Bíblia é o conjunto dos setenta e três livros que os cristãos consideram inspirados. Eles fo-ram escritos ao longo da história e, por isso, trazem consigo aquilo que é próprio da cultura e do contexto de produção do povo hebreu. Por isso, precisam de interpretação.

A interpretação das Sagradas Escrituras se dá, sobretudo, através da exegese. Mas o que é Exegese Bíblica? Segundo Mosco-ni (1996, p. 108-109):

“Exegese” é uma palavra que vem da língua grega. Tradu-zida [...] significa conduzir fora, puxar de dentro para fora. Portanto, exegese é o processo de descobrir e conduzir para fora a mensagem do texto. É deixar o texto falar por si próprio e buscar aquilo que ele quer dizer [...]. Exegese é a busca do sentido do texto-em-si: O que este texto bíblico quer dizer? Qual a mensagem?

Exegese é, desse modo, o exercício de interpretar o texto, de conhecer, por mais difícil que seja, a intenção do autor e as diversas influências que o texto recebeu na sua composição. Nesse sentido, o autor continua:

Qualquer texto, não somente o bíblico, precisa de exegese. Também fatos e acontecimentos precisam de exegese: o que este fato quer transmitir? Fazê-la é uma necessidade. É uma questão de fidelidade ao texto. Quanto mais distante no tempo e no espaço ficam os autores dos textos, mais exegese será necessária. Se é difícil fazer a exegese de um texto escrito em nossos tempos e em nossa cultura, mais exigente ela se torna em textos bíblicos escritos séculos

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atrás e em culturas diferentes da nossa. (MOSCONI, 1996, p. 109).

Ao analisar a história da Exegese Bíblica, é possível perceber que, ao longo do Cristianismo, muitas foram as interpretações das Sagradas Escrituras. Entre elas, destacam-se aqui dois grandes mo-mentos: a exegese alegórica patrística, no início da Era Cristã, e a exegese contemporânea, atenta às novas descobertas das Ciências Humanas.

Mesters (2012, p. 55), refletindo sobre a Exegese Bíblica pa-trística, entende que:

A maneira de os Padres da Igreja fazerem exegese não se parece em nada com a nossa exegese atual. Só temos em comum o texto bíblico e a vontade de descobrir lá dentro o que Deus nos quer dizer hoje. Por ex. quando Orígenes, Século IV, o maior intérprete do passado, comenta a tra-vessia do Jordão e a tomada de Jericó do livro de Josué, a gente tem a impressão de que para ele o texto bíblico não passa de uma ocasião, oferecida por Deus, para ele fazer reflexões bonitas sobre a vida, sobre a Igreja, sobre a presença de Deus na vida, sobre a moral e tantas outras coisas. Santo Agostinho, no seu comentário clássico dos salmos, quase sempre, já na primeira palavra do salmo, esquece o sentido global do salmo e passa a interpretá-lo por associação de ideias que, aparentemente, nada tem a ver com o texto do salmo.

Com isso é possível perceber o caráter que podemos con-siderar pouco científico na exegese patrística, sem desconsiderar, todavia, a sua riqueza simbólica. Ela oferece muitas contribuições para o estudo bíblico, mas também precisa ser analisada conforme o contexto e as ideais dos exegetas patrísticos em questão.

Feitas tais considerações, dá-se um salto para a exegese mo-derna, pois é na Época Moderna, com a Reforma Protestante, que essa ciência é desenvolvida. Lutero, o monge que motivou o movi-mento da Reforma no século XVI, traduziu a Bíblia para o alemão e difundiu uma doutrina cujo centro é o acesso e a livre interpretação das Escrituras, porque, pelo Batismo, todos os fiéis são considera-dos como gozando de condições para tanto.

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Assim, a Reforma Protestante e, depois, a Contra-Reforma Católica geraram no mundo cristão uma nova maneira de interpre-tar os textos sagrados. No entanto, essa Exegese Bíblica coincide com um grande desenvolvimento das Ciências Naturais e, por isso, a relação das mesmas acaba tornando-se inevitável. Nesse sentido, Zabatiero (2006, p. 24) afirma que:

A exegese moderna desenvolveu-se dentro dos limites do paradigma do sujeito: um sujeito racional interpreta me-todicamente o sentido do texto (objeto), que deve corres-ponder tanto à intenção do seu autor quanto à coisa de que se fala no texto (referente). A atividade interpretativa foi dividida em duas grandes “ciências”: a hermenêutica, tri-butária da filosofia, que formula os princípios gerais da in-terpretação e da atualização do sentido, e a exegese, tribu-tária da história, que formula os princípios metodológicos da descoberta do sentido do texto em seu próprio contexto. A exegese moderna, concebida como ciência crítica de tipo histórico, gerou dois modelos concorrentes: O modelo histórico-gramatical, que subordinou a crítica racional à autoridade do texto bíblico [...] e o modelo histórico-críti-co, que aplicou ao texto bíblico a crítica racional histórica.

Destaca-se o modelo histórico-crítico, que ganhou muita ade-são nos séculos XIX e XX, tornando-se referência nas pesquisas bíblicas. Entretanto, com o tempo, o mesmo acabou sendo alvo de muitas críticas, tornando-se até mesmo indesejado por muitos bi-blistas. É o que explica Lima (2009, p. 359):

A exegese bíblica tradicional baseada no método históri-co-crítico encontra sua limitação principalmente porque concebendo a Bíblia como documento histórico, acredita que, por meio dela, se pode ter acesso à sua época de ori-gem, e, mais ainda, à intenção original do seu autor. Os exegetas insistiram que era possível compreender o signi-ficado dos textos bíblicos a partir do ponto de vista de seus próprios autores ou primeiros leitores, e tal ideia ainda não está superada por completo.

Desse modo, percebe-se que o caminho tomado pela Exegese Bíblica atual, após ser alvo de muitas críticas, precisou ser revisto, já que é impossível assumir uma espécie de imparcialidade e objetividade “histórico-crítica” na interpretação das Sagradas Escrituras, pois toda operação historiográfica traz em si um caráter

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de subjetivação do pesquisador. Contudo, esse é um caminho metodológico legítimo e, por isso, está se reformulando, como descreve Zabatiero (2006, p. 25):

A exegese histórico-crítica tem realizado um interessante trabalho de autocrítica: refletindo sobre as bases teóricas de sua metodologia; incorporando metodologia, conceitos e perspectivas derivadas das ciências sociais e das teorias linguísticas e literárias; incorporando novas temáticas de pesquisa; refletindo mais intensamente sobre o seu lugar público na contemporaneidade.

É a partir desse processo de adequação do método histórico--crítico que se pode falar em interdisciplinaridade. E, nesse sentido, propõe-se, neste artigo, uma aproximação entre a Exegese Bíblica contemporânea e a Nova História Cultural, no estudo do livro de Rute e das suas diversas leituras exegéticas. Vejamos, então, como se dá, em nossa leitura, esse processo.

3. A NOVA HISTÓRIA CULTURAL NO PROCESSO DE EXEGESE BÍBLICA MODERNA

A Nova História Cultural vem ganhando, ao longo dos últi-mos anos, vários adeptos, tanto leitores como pesquisadores, sendo uma espécie de desdobramento da chamada Nova História, que, por sua vez, surgiu como uma das gerações da Escola dos Annales. Muitos críticos do modelo tradicional da historiografia – marcado pela análise marxista e pela abordagem sociopolítica e econômica – buscavam uma nova maneira de fazer História. Surge assim a Nova História, mais ampla e dinâmica, entendida como História da Cultura, pois defende a universalidade da investigação: tudo pode ser objeto de pesquisa, desde que aceito pelo historiador.

Peter Burke (2005), um dos maiores expoentes dessa fase de renovação, propõe um sucinto resgate da Nova História ao destacar os quatro momentos de sua elaboração. São eles:

• clássico: entre os anos de 1800 e 1950, nos quais os histo-riadores começaram a dar passos significativos na modifi-cação do fazer histórico, inclusive voltando aos clássicos da arte, da literatura e da filosofia;

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• História Social da Arte: momento posterior à Segunda Guerra Mundial (1939-1945), quando ocorreu uma grande migração de historiadores e outros pensadores, gerando, assim, principalmente nos Estados Unidos e na Grã-Breta-nha, uma nova consciência sobre cultura e sociedade;

• redescobertadaHistóriadaCulturaPopular: após a dé-cada de 1960, é retomado o conceito de cultura popular, surgido na Alemanha do século XVIII, com novo vigor, a partir de publicações importantes cujo centro de reflexão são críticas às ideias de cultura tradicional e elitista;

• NovaHistóriaCultural: nascida nos anos de 1980 e en-tendida como um novo paradigma de produção histórica; é chamada nova porque se propõe diferente das outras for-mas de História Cultural, e, ainda, porque se distingue das histórias social e intelectual, enfatizando: mentalidades, práticas e suposições.

É possível perceber, com isso, que a Nova História Cultural é nova em dois aspectos: tanto na proposta de pesquisa, quanto no pouco tempo de seu surgimento enquanto método historiográfico. E, buscando apresentar os caminhos de pesquisa dessa Nova Histó-ria Cultural, Vasconcelos (2011, p. 53-54) afirma que:

Muitos historiadores têm se voltado para a História do co-tidiano das pessoas que viveram no passado, ou têm em-preendido trabalhos de micro-história, isto é, pesquisas com objetos reduzidíssimos, como uma pequena vila ou uma fábrica. Ao invés de ocuparem-se com regiões muito vastas durante longos períodos de tempo – a Europa na Idade Média, por exemplo –, tais historiadores preferem estudar pequenas comunidades. Com objetos menos ex-tensos, a pesquisa acaba ganhando em termos de profun-didade. Temas antes tidos como não históricos – como boemia, prostituição, leitura, religiosidade popular etc. – passaram a ocupar o primeiro plano no trabalho de diver-sos pesquisadores.

Como se vê, a Nova História Cultural é uma tendência e um modo próprio de compreensão histórica. Ela oferece uma contribui-ção indispensável para a visão da história como um todo e, assim, torna-se um campo aberto aos outros círculos de saber, proporcio-

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nando uma produção interdisciplinar. Por isso, propõe abordagens diversas, como afirma Burke (1992, p. 02):

Nos últimos trinta anos nos deparamos com várias histó-rias notáveis de tópicos que anteriormente não se havia pensado possuírem uma história, como, por exemplo, a infância, a morte, a loucura, o clima, os odores, a sujei-ra e a limpeza, os gestos, o corpo (como apresentado por Roy Porter), a feminilidade (discutida por Joan Scott), a leitura (debatida por Robert Darnton), a fala e até mesmo o silêncio. O que era previamente considerado imutável é agora encarado como uma “construção cultural”, sujeita a variações, tanto no tempo quanto no espaço.

Essas possibilidades de novas leituras são o objeto desta pes-quisa. Por meio de um processo de estudo interdisciplinar entre Exegese Bíblica e Nova História Cultural, elas serão analisadas no livro de Rute, pois, segundo Castro (2012, p. 109):

A história de Rute está carregada de elementos que funda-mentam a vida humana: terra, alimento, sobrevivência. E traz marcas fortes da cultura ocidental como o patriarca-lismo, o judaísmo, a marginalização da mulher. O livro de Rute é uma afirmação da força do feminino num sistema que suprime os direitos das mulheres, dos pobres, dos es-trangeiros.

Por ser assim, essa história bíblica mostra-se passível de tal leitura interdisciplinar para que seja compreendida na sua amplitu-de de significado. Seguem, para tanto, algumas das diversas leitu-ras de Rutee a análise de três das abordagens da Nova História Cul-tural que foram escolhidas e destacadas como modelos neste artigo.

4. AS DIVERSAS LEITURAS DE RUTE

O livro de Ruteé alvo de diversas interpretações exegéticas. Isso se dá porque não há clareza do contexto, da data da redação e, até mesmo, de quem foi o autor ou autora da obra. Na Bíblia cristã, essa narrativa está localizada entre os LivrosHistóricos, pois faz uma descrição do tempo dos Juízes – como está escrito no início da história –, na intenção de explicar ao povo a origem do rei Davi. Já na Bíblia hebraica, encontra-se dentre os livros chamados Escritos,

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como um dos cinco Rolos, destinado à leitura na Festa de Pentecos-tes, pois o mesmo trata de uma colheita de cevada.

As diversas opiniões acerca da mensagem desse livro sempre existiram e perduram até hoje, abrindo, ainda, novos leques de re-flexão a partir dos estudos atuais das Sagradas Escrituras. Mesters (1986, p. 07), ao apresentar algumas dessas leituras, afirma:

Alguns estudiosos associam a história de Rute às histórias de mulheres do livro dos Juízes: Débora [...]; Jael [...]; a mulher sem nome, que matou Abimelec; a filha de Jefté [...]; a primeira mulher de Sansão [...]; Dalila [...]; e, final-mente, Rute, a avó do rei Davi. Outros associam o livro de Rute às crônicas dos livros de Samuel; outros estabelecem uma ligação entre a grande abertura do livro de Rute e o universalismo da fé em Javé que transparece nos livros de Jonas e Isaias 40–66; outros vêem afinidades entre Rute e Jó por causa do tema do sofrimento, e da retribuição; ou-tros ainda, por outros motivos, descobrem afinidades com Esdras e Neemias, com Ester, e situam o livro na época depois do exílio.

Não obstante a contextualização histórica e sua posição na Bíblia, ainda há outras formas de classificação e entendimento do texto, como continua Mesters (1986, p. 07-08):

Alguns abordam o livro de Rute através da análise do gê-nero literário e o tratam como um conto popular que exalta o espírito do clã e da família; outros o abordam através da análise da estrutura literária e procuram estruturas pa-ralelas ou semelhantes nas histórias de Judá e Tamar, de Abraão e Sara etc. Outros a abordam através do estudo do conteúdo que converge em torno da observância da lei do resgate e do levirato; outros ainda o abordam através do estudo de um dos muitos temas que aparecem no livro: abandono nas mãos da Providência com que Deus conduz os que nele confiam; o problema do sofrimento e da retri-buição; as virtudes familiares que fazem a felicidade do povo e merecem a bênção de Deus; a acolhida e entrada de estrangeiros no povo de Deus; os sinais da presença de Deus nos fatos da história. Outros ainda, apoiando-se no final do livro (4, 17-22), o abordam como sendo a introdu-ção à história do rei Davi.

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A última parte de Rute(4, 17-22)é chamada genealogia de Davi, pois narra a sucessão dos seus antepassados. Para muitos exegetas, sobretudo da linha tradicional da pesquisa bíblica, essa história só ganhou espaço dentre os livros sagrados do povo hebreu porque faz essa referência à dinastia davídica. Toda ela teria sido contada entre o povo da Bíblia e, depois, compilada num texto, por causa da referência explícita ao grande rei de Israel, Davi.

No entanto, as pesquisas atuais, sobretudo a partir da leitura interdisciplinar na Exegese Bíblica, mostram que o livro de Rute é recheado de sentido e significado, e tem muito a dizer por si mes-mo. E mais: provavelmente não há analogia direta com a história ou dinastia davídica, nem em relação ao tempo de sua composição, e muito menos no sentido de ser escrito para apresentar os antepas-sados do rei Davi.

Seguindo essa linha de interpretação de Rute, em uma breve síntese, Tonucci (1983, p. 103-105) conta que:

O livro de Rute contém a história de duas mulheres, No-emi e Rute [sogra e nora, respectivamente]. Escrito por volta do ano 500 antes do nascimento de Cristo, relata um episódio acontecido no tempo dos Juízes, isto é, 700 anos atrás. Como todos os livros da Bíblia, não foi escrito só para relatar uma história fria, mas com a finalidade de lou-var e ensinar uma boa vivência no meio familiar [...] e de lembrar a proteção de Deus para com aqueles que vivem conforme seus ensinamentos [...]. Escrito num tempo em que era muito forte o ódio contra os estrangeiros, nosso livrinho mostra uma estrangeira exemplar e lembra que o grande rei Davi era bisneto de uma moabita, de uma pagã.

O excerto anterior apresenta uma leitura clássica de Rute,presente na maioria dos manuais de Exegese Bíblica e pertencente a uma corrente exegética tradicional. A história é tida como um ensinamento bonito, com atitudes exemplares e final feliz. Sem luz própria, a história ganha destaque por terminar apontando para Davi, o grande rei de Israel. Essa mesma leitura é feita por muitos outros autores, como se pode perceber neste comentário bíblico:

A tradição judaica, atestada pelo próprio Flávio Josefo, que fala de Rute em sua AntiguidadesJudaicas, vê no li-vro de Rute uma recordação fiel dos antepassados de Davi,

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ao mesmo tempo que tira da narração lições de compor-tamento moral e social para a vida atual. A interpretação tradicional da exegese cristã está bem resumida nas pala-vras de L. Fillion: “o livro de Rute foi composto para con-servar a lembrança de um acontecimento emocional que se referia à família de Davi e para estabelecer a série de um certo número de seus antepassados” (OPORTO; GARCÍA, 2002, p. 620-621).

Essa postura em relação ao livro de Ruteé antiga e consensu-al, pois possui suas origens na exegese alegórica dos Santos Padres. Nesse sentido, segundo Robert e Feuillet (1967, p. 202):

Seguramente, Orígenes e São Jerônimo admitiram que primitivamente Rute fazia bloco com os Juízes, a título, poderíamos dizer, de terceiro apêndice. Melitão de Sardes e Santo Atanásio o inseriam também nos seus cânones, de-pois dos Juízes.

A partir dessa citação, deduz-se que a história de Rute era considerada pelos grandes comentadores bíblicos da Antiguidade Cristã, Orígenes e Jerônimo, como um apêndice de terceira catego-ria, relacionado ao livro dos Juízes. Melitão e Atanásio, na mesma esteira, procuraram situá-lo depois dos Juízes, dando a entender que a história, por si, não trazia grande sentido; por isso, deveria ser agregada a um texto de maior importância.

Mais adiante, no mesmo estudo bíblico, é encontrada a se-guinte afirmação:“[...] desta união nasce Obed, pai de Isaías e avô de Davi” (ROBERT; FEUILLET, 1967, p. 203). Inserida no capítu-lo que trata do conteúdo da obra, ela mostra que a história tem seu fim em Davi, ou seja, foi contada com a intenção de apresentar a família do Rei de Israel. No próximo capítulo, intitulado Aspectocaracterísticodoescrito, outra passagem chama a atenção:

Resulta igualmente do livro de Rute que os casamentos entre israelitas e estrangeiros não parecem tanto em oposição com alguma lei ferozmente proibida. Não se censura Mahlon [Maalon] nem Kilyon [Quelion] por terem desposado moabitas, e seria de mau gosto protestar contra o gesto de Booz que, introduzindo Rute no povo de Javé, devesse assegurar o nascimento de Davi, e constituir um elo na linha ancestral do Messias (Mt 1,5). (ROBERT; FEUILLET, 1967, p. 204).

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Essa citação reflete sobre a lei da pureza – sobretudo da proi-bição dos casamentos mistos em Israel. Além de colocar a interpre-tação da história de Rute na linha genealógica de Davi, aponta, já, para o Messias, esperado pelo povo judeu. Mais tarde, o Evangelho de Mateus colocará Jesus como descendente de Davi, pois ele é o Messias esperado, recorrendo à genealogia do livro de Rute.

Paralela a essa leitura tradicional, existe, também, a proposta exegética de Mesters, que consideramos, dentre as diversas leituras de Rute, uma das mais amplas e contextualizadas, pois apresenta outra visão da obra. Para Mesters (1986, p. 13):

O livro de Rute traz uma história muito bem contada, al-tamente poética, cheia de surpresas, do começo ao fim. Parece uma história inocente, uma novela, inventada para distrair o povo. Parece, mas não é! É uma história muito fina, inteligente, contada por alguém que sabia dar o seu recado. Nela não há nada de supérfluo. Tudo tem um sen-tido.

Nessa interpretação, uma primeira curiosidade que salta aos olhos são os nomes dos personagens. Segundo Mesters (1986), to-dos possuem significados importantes para o texto. No casal prin-cipal, têm-se os nomes Elimelec(“meu Deus é rei”) e Noemi(“gra-ciosa”); esta, no desenrolar da história, muda seu nome para Mara(“amargurada”). Os dois filhos são chamados MaaloneQuelion, respectivamente “doença” e “fragilidade”, apontando para a fra-queza e morte de ambos.

As noras de Noemi são Orfa (“costas”) e Rute (“amiga/sa-ciada”). Esses nomes revelam a ação de ambas em relação à sogra: Orfaabandona-a, dando-lhe as costas;Rutepermanece com a so-gra, sendo-lhe amiga e, consequentemente, saciada pela graça de Deus. No fim do drama, aparece Booz, cujo significado é “força”, que dará um rumo novo às vidas de NoemieRute.O filho de BoozeRuterecebe o nome de Obed, “o servo”, já que por ele toda a graça é recuperada para a família de Noemi.

Outro ponto destacado pelo exegeta é a organização geográ-fica do livro de Rute:

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A história de Rute tem uma geografia, isto é, as coisas acontecem em lugares certos e marcados. Nos quatro epi-sódios da história, as pessoas voltam sempre ao ponto de saída. Cada uma das quatro cenas é como um círculo. A história se desenrola em quatro círculos concêntricos, cada vez menores, que apontam, assim, onde está o centro [...]. Em todos os episódios, o retorno é para a terra, a casa, a família (MESTERS, 1986, p. 14).

Além dos nomes dos personagens e da geografia, é impor-tante dar atenção à divisão do livro, já que a história é muito bem construída. Nela, vê-se um quadro inicial e outro final, permeados por quatro passos, além de um apêndice – genealogia de Davi, pro-vavelmente acrescentada à história original – que encerra o texto. O quadro inicial (1,1-5) descreve a situação do povo a que Noemie sua família pertencem. O final (4,13-17), contrapondo-se ao inicial, descreve o nascimento do filho de Rutee a nova esperança que nasceu para o povo. Dentre os quadros, encontram-se quatro passos cuja finalidade é apontar para a caminhada da reconstrução do povo de Israel – na história, simbolizado pela família de Noemi.Esses passos, descritos nos versículos 1,6-4,12, são:

1º passo: atraída pela Boa Notícia da visita de Deus à terra natal dando pão, Noemi decide voltar para a terra em busca de Deus e do pão (1,6-22). 2º passo: Rute toma a iniciativa de catar a sobra da colheita e, assim, começa a fazer valer os direitos dos pobres (2,1-23). 3º passo: Convidado por Rute, Booz se compromete a cumprir a lei do resgate e, as-sim, ele ajuda na solução do problema da família de Noemi (3,1-18). 4º passo: Booz cumpre a lei de resgate, casa-se com Rute e, assim, garante a posse da terra e o futuro da família de Noemi e Elimelec (4,1-12) (MESTERS, 1986, p. 15).

Feitas todas essas considerações acerca do conteúdo, pode-se dizer que a obra, embora sendo pequena, pode ser lida de diversas maneiras.

Hoje é consenso afirmar que esse livro foi escrito em torno do ano 450 a.C, época na qual o povo de Israel recebeu licença para voltar do exílio babilônico e reconstruir Jerusalém.

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Ao chegar à sua terra, o povo encontrou pobreza, destruição, abandono e sofrimento. Ao lado disso, havia o mandato de recons-trução do Templo de Jerusalém e do reerguimento das muralhas da cidade, assolando mais o povo. E ainda, a ideia de purificação da raça judaica, que havia se misturado na Babilônia e mesmo entre os vizinhos de Israel. Condenavam-se os casamentos mistos entre judeus e estrangeiros, esquecia-se do compromisso com os pobres e cobravam-se muitos impostos. Neste contexto, nasce a história de Rute,como um grito de resistência e uma proposta de mudança.

5. ABORDAGENS PARALELAS ENTRE NOVA HISTÓRIA CULTURAL E EXEGESE BÍBLICA NAS LEITURAS DE RUTE

Dentre as múltiplas leituras de Rute, três abordagens ligadas aos estudos da Nova História Cultural, que sobressaem à obra, são evidenciadas para nossa análise. São elas: História do corpo, do cotidiano e de gênero. A simples e, ao mesmo tempo, instigante história de Ruteainda permite tantas outras análises e reflexões, entretanto delimita-se o estudo a essa tríade que parece contemplar bem a proposta interdisciplinar aqui desenvolvida.

Dentre os muitos enfoques temáticos da Nova História Cul-tural, há a chamada Históriadocorpo, que possui significados sim-bólicos e deve ser levada em consideração na análise histórica dos sistemas sociais. Nesse sentido, Porter (1992, p. 295) diz que:

Devemos enxergar o corpo como ele tem sido vivenciado e expresso no interior de sistemas culturais particulares, tanto privados quanto públicos, por eles mesmos alterados através dos tempos. Se [...] os corpos estão presentes para nós, apenas por meio da percepção que temos deles, então a história dos corpos deve incorporar a história de suas percepções.

A história de Ruteoferece, no capítulo terceiro, um pouco das percepções que o povo de Israel, no contexto da narrativa, possuía do corpo. Encontram-se, nesse trecho, duas cenas: a primeira, na qual Noemi incentiva Rute a preparar-se para um encontro com seu

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pretendente; e a outra, no momento em que Rute e Booz encon-tram-se na eira de cevada. Noemi diz:

Minha filha [...] lava-te, pois, e perfuma-te, põe teu manto e desce à eira, mas não te deixas reconhecer por ele, até que tenha acabado de comer e beber. Quando ele for dor-mir, observa o lugar em que ele está deitado; então entra, descobre seus pés e deita-te; e ele te dirá o que deves fazer (Rt 3,1-4).

Seguindo o texto, percebe-se que Rute fez tudo o que sua sogra orientou e, assim, ganhou a atenção de Booz.

Para Silva (2002), esse trecho de Ruteé tão simbólico quanto toda a história. Ao buscar outras referências no Antigo Testamento, afirma que os pés de Booz, que devem ser descobertos por Rute, simbolizam, além da força e autoridade, os próprios órgãos sexuais do homem. Outras expressões na Bíblia são utilizadas com esse sentido, como: “água dos pés”, que significa urina; “cobrir os pés”, no sentido de fazer suas necessidades. E mais, para a autora “[...] se o gesto de puxar a aba do manto significa atentar contra os direitos do marido sobre a mulher, o gesto de cobrir a mulher com seu man-to indica adquirir a autoridade de marido” (SILVA, 2002, p. 64).

Nessa mesma linha, Jack M. Sasson (1997, p. 349) levanta a questão: “Rute deve simplesmente descobrir os pés dele? Ou No-emi está lhe pedindo para arriscar um lance mais ousado?” Sem responder diretamente, o autor afirma que Rute se apresenta como aquela que pode ser tomada por um homem livre como concubina ou esposa.

Diante dessas questões, ainda pode-se dizer, conforme Vitó-rio (2008, p. 92-93), que Rute:

Dá mostras de ingenuidade ao realizar, sem questionamen-to, o plano arriscado da sogra, mandando-a vestir como se fora prostituta e dormir com um desconhecido embriaga-do e seguir os conselhos dele, com a alegação de se tratar de um goel[resgatador].Foi crédula a ponto de aceitar a história contada pela sogra, sem pedir esclarecimentos. Se ficasse grávida e Booz se recusasse a assumi-la, a desonra seria só dela [...]. Na escuridão da noite, Rute age com dis-crição e sem ambiguidades, evitando o papel de sedutora irresistível. Aproxima-se de Booz depois que ele estava

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dormindo e não ao se deitar, como havia dito Noemi [...]. A ação da personagem Rute traz a marca da grandeza ética [...]. Em momento algum dá mostras de agir por egoísmo ou por interesses inconfessados.

Com isso, conclui-se que a História do corpo tem um papel importante na exegese de Rute, já que lança luzes para a interpreta-ção desse capítulo que gira em torno da proposta de Noemi, da ação de Rute e da resposta de Booz. Compreende-se, com isso, como o povo judeu lidava com o corpo, sobretudo na relação homem/mulher e nesse momento de sua história, entendendo, com mais clareza, o que o autor queria dizer aos seus leitores.

Outra abordagem que merece destaque nas interpretações de Ruteé a da História do cotidiano. Os exegetas valorizam muito os elementos simples, que são, muitas vezes, despercebidos; todavia, dão um sentido novo à leitura dos textos quando levados em con-sideração. A Nova História Cultural também atentou para isto: fez uma crítica ao “fazer histórico” que valorizava somente os grandes fatos e as personagens mais importantes, e assumiu uma postura mais democrática, por meio da qual tudo e todos puderam tornar-se fontes históricas de conhecimento, segundo o olhar do historiador.

Segundo Burke (1992, p. 23), o novo da História Cultural também está relacionado com:

A importância dada à vida cotidiana nos escritos históri-cos contemporâneos [...]. Outrora rejeitada como trivial, a história da vida cotidiana é encarada agora, por alguns historiadores, como a única história verdadeira, o centro a que tudo o mais deve ser relacionado.

Sem cair nesse extremo, quer-se, nesta pesquisa, dar atenção à abordagem do cotidiano como parte fundamental da interpretação do livro de Rute,já que, para interpretar o mesmo, é preciso consi-derar os detalhes e as diversas situações da narrativa em si e do seu contexto.

Atento, por conseguinte, a essa questão, Vitório (2008) apre-senta uma série de eixos temáticos que compõem a história de Rute,dando a ela uma plurissignificação. São eles: o eixo feminino, o

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matriarcal, o econômico, o familiar, o jurídico, o rural, o davídico e o teológico. Destacam-se alguns deles, nos dizeres do autor:

O tema do empobrecimento é um componente do contexto do livro de Rute. Duas são as causas: a primeira deve-se a uma grande estiagem, com a consequente fome generalizada; a segunda, à morte dos elementos masculinos da família, deixando à deriva os elementos femininos. Os empobrecidos não cruzam os braços. Procuram os meios de superar a situação (VITÓRIO, 2008, p. 102).

O livro de Rute é uma história de várias famílias: Elimelec e Noemi, Maalon/Quelion e Orfa/Rute, Booz e Rute. Famílias desfeitas pela morte. Famílias recompostas pelo exercício da lei do levirato. Famílias com filhos e famílias sem filhos [...] o substrato familiar é, como se percebe, consistente na narração (VITÓRIO, 2008, p. 102).

O ambiente rural da narrativa é um dado importante. Elimelec com a família parte do interior de Judá, Belém, e vai para os campos de Moab. Noemi e Rute voltam e se instalam em Belém, onde se desenrola todo o resto da narração. O texto refere-se à colheita de cevada e trigo, a joeirar a cevada na eira, a trabalhadores rurais, a respiga, a venda de terreno, a direito de resgate de terra, transação de resgate. O centro geográfico da narração é ocupado por Belém, cidade do interior, e por famílias da região (VITÓRIO, 2008, p. 103).

Nessas abordagens, vê-se a valorização do cotidiano como elemento fundamental para análise de Rute, que provavelmente foi escrita para responder às demandas sociais e culturais do povo he-breu. Nesse sentido, Mesters (1986, p. 9) enriquece a reflexão, pois faz uma leitura da situação do povo na época da composição de Rute, levando em consideração os muitos detalhes no descrever do cotidiano familiar que a narrativa apresenta. Para ele:

A unidadebásicadesta sociedade era o clã, isto é, a grande família patriarcal. A família de Elimelec e Noemi perten-cia ao clã dos Efrateus, de Belém de Judá. Mas, ao que tudo indica, o clã estava em fase de desintegração e já não funcionava como devia: não favorecia a partilha e fraterni-dade, nem era capaz de defender os direitos dos seus mem-bros [...]. O direito do pobre foi transformado em esmola! Havia famílias que emigravam, obrigadas pela fome. A

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migração parece ter sido uma coisa bastante comum en-tre os pobres: iam e vinham conforme as perspectivas de encontrar alimento e condições de vida. A migração pro-duzia mistura de raças. As mulheres estrangeiras, porém, não eram bem acolhidas, pois Rute recebeu vários avisos de se prevenir contra possíveis agressões. Ora, a família de Elimelec não teria tido tantos problemas, se o clã dos Efrateus tivesse funcionado como devia.

O estudo do cotidiano, portanto, é uma forma de análise que permite uma interpretação do sentido profundo do texto e/ou da situação em questão. Por ele, numa perspectiva histórica e exegé-tica, é possível entender o processo de elaboração das práticas e representações culturais que entremeiam o dado histórico. Nesse caso, por meio do estudo do cotidiano, no livro de Rute,é possível adentrar nos elementos que deram fundamento para a construção da narrativa, que é uma resposta à situação vivencial de um povo.

A história de Rutetambém permite analisar a questão de gê-nero. Esta, talvez, seja a leitura mais inovadora e, por isso, tomada como objeto de estudo de muitos exegetas contemporâneos. O que surpreende é o fato de Ruteser um dos poucos livros bíblicos que possui o nome de uma mulher, de ser um drama protagonizado por mulheres, tendo, inclusive, como personagens principais Noemi e Rute e, possivelmente, ser um livro escrito por uma autora, pois se encontra na voz feminina.

Os estudos de gênero configuram-se como um desdobramen-to dos estudos sobre a História das Mulheres. No entanto,

[...] estudar gênero implica em deixar de pensar os sexos como naturezas biologicamente determinadas, procuran-do categorias para conhecer o mundo feminino, propondo novas interpretações sobre história das mulheres pela ótica masculina. (SILVA, 2009, p. 70).

Estudar gênero também propõe novos olhares sobre a história do feminino e do masculino de maneira relacional. Segundo Scott (1992, p. 86-87), importante historiadora norte-americana na área de estudos de gênero:

Embora os usos sociológicos de “gênero” possam incorpo-rar tônicas funcionalistas ou essencialistas, as feministas

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escolheram enfatizar as conotações sociais de gênero em contraste com as conotações físicas de sexo. Também en-fatizaram o aspecto relacionado do gênero: não se pode conceber mulheres, exceto se elas forem definidas em re-lação aos homens, nem homens, exceto quando eles forem diferenciados das mulheres.

Os estudos de gênero emergem especialmente a partir da dé-cada de 1980, seguindo as novas tendências da Nova História Cul-tural e seus desdobramentos.

Para Pinsky (2009, p. 162), “[...] gênero remete à cultura, aponta para a construção social das diferenças sexuais, diz respei-to às classificações sociais de masculino e feminino”. Por isso, a temática é assumida pelos historiadores da cultura como elemento importante de suas análises, pois essa relação entre masculino e feminino, diversa em cada grupo, marca a maneira como se dão as construções sociais. Assim, como diz a autora, a História quer:

[...] entender a importância, os significados e a atuação das relações e representações de gênero no passado, suas mudanças e permanências dentro dos processos históricos e suas influências nesses mesmos processos (PINSKY, 2009, p. 162).

É fato que, no final do livro de Rute, apenas os nomes mascu-linos são mencionados como genitores de Davi:

As vizinhas deram-lhe um nome, dizendo: “Nasceu um filho a Noemi” e chamaram-no de Obed. Foi ele o pai de Jessé, pai de Davi. Esta é a posteridade de Farés: Farés gerou Hesron. Hesron gerou Ram e Ram gerou Aminadab. Aminadab gerou Naasson e Naasson gerou Salmon. Sal-mon gerou Booz e Booz gerou Obed. E Obed gerou Jessé e Jessé gerou Davi (Rt, 4, 17-22).

No entanto, os elementos recolhidos ao longo da pesquisa são fundamentais para o entendimento da questão do gênero na história de Rute. Assim, vemos que as mulheres são centrais na narração,o significado da história passa, necessariamente, pela postura das mulheres que protagonizaram a obra e a os homens na narrativa devem ser compreendidos em seu sentido relacional com essas mu-lheres – lembrando que, antes de mencionar a geração da qual vem Davi, em linhagem masculina, as mulheres são mencionadas como

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genitoras e cuidadoras – Rute é a mãe e Noemi cuida de Obed. Meyers (2002, p. 112-113) confirma tal ideia ao dizer que:

Diferente de Ester, o outro livro [da Bíblia] com nome de mulher, Rute é quase inteiramente um conto de mulher. Ester, como heroína, até certo ponto partilha o centro das atenções com Mardoqueu. Além disso, também o rei As-suero e o vizir Amã tem papéis proeminentes. Em Rute, os homens não são muito valorizados. Sem dúvida, Booz é indispensável à história; contudo, seu papel não é central. Rute, a moabita, bisavó do rei Davi, ao lado de sua corajosa sogra, Noemi de Belém, ocupa o centro do palco. Desde a introdução [...] até a cena final, na qual Rute dá à luz um filho e Noemi o adota, as mulheres dominam tanto os diá-logos quanto a estrutura narrativa.

Essa abordagem de gênero, entretanto, foi pouco difundi-da nos estudos do livro. Quase sempre, como vimos em algumas exegeses alegóricas e tradicionais, Rute é vista apenas como a avó do rei Davi e não como uma mulher valente que, com a ajuda de sua sogra Noemi, consegue mudar a contingência da vida de sua família. Essa crítica pode ser vista, ainda, em Meyers (2002, p. 113-114):

Esses trabalhos tradicionais, por incrível que pareça, na prática ignoram o fato de que o androcentrismo dominante da Escritura é quebrado pelo ginocentrismo de Rute [...]. Tanto quanto outras disciplinas, os estudos bíblicos tam-bém ocultam ou ignoram e, portanto, menosprezam as ex-periências das mulheres como grupo. Por isso, a atenção que estudos recentes dão à narrativa e aos papéis sociais e religiosos das mulheres em Rute é uma correção há muito necessária que se faz à pesquisa acadêmica, que tem es-tado cega às questões de gênero na literatura bíblica e na história israelita.

Ao quebrar esse círculo tradicional de Exegese Bíblica, e lan-çando mão de uma perspectiva mais ampla, Meyers (2002) elenca seis características femininas que fazem do texto uma exceção no conjunto bíblico. São elas: o que está sendo contado é uma história de mulher; há um vínculo com a sabedoria bíblica (a sabedoria, nas Sagradas Escrituras, é como o lado feminino de Deus); as mulheres são sujeitos do seu próprio destino; as ações das mulheres atingem

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outras pessoas; o cenário é doméstico; e há um casamento envolvi-do no enredo. Em relação a elas, o autor continua:

Podemos resumir o significado dessas características en-fatizando que todas elas envolvem uma perspectiva femi-nina sobre questões que, em qualquer outro texto da Bíblia Hebraica, são vistas na perspectiva masculina que domina a Escritura. O termo “casa da mãe” [que aparece no versí-culo oito do primeiro capítulo de Rutee que ganha especial atenção do autor] levou-nos ao ambiente interno ou fami-liar que circunscreve as atividades de praticamente todas as mulheres israelitas e provavelmente também da maioria dos homens israelitas). Em tal ambiente, eram ouvidas as vozes das mulheres, cuja presença era valiosa e valorizada e cujos atos tinham uma profunda influência sobre as ou-tras pessoas (MEYERS, 2002, p. 146-147).

Ainda sobre a questão de gênero, há uma corrente exegética que estuda a possibilidade do livro de Ruteter sido escrito por uma mulher, o que seria uma grande novidade para a cultura hebraica da época. Nesse sentido, estudando essa possível autoria feminina do texto de Rute, Brenner (2002, p. 186) afirma:

Por si só, a centralidade de uma figura feminina não sig-nifica automaticamente que uma voz feminina controla o processo literário. No entanto, se outros elementos textuais sustentam a centralidade dos interesses femininos, ainda que tais elementos ajustem-se às perspectivas androcêntri-cas, as probabilidades pendem a favor de uma focalização textual predominantemente feminina e de uma vozfemi-nina.

É possível dizer, assim, que a questão de gênero muito influi na análise histórico-exegética do livro de Rute, pois o mesmo foge aos padrões normativos dos textos bíblicos, constituindo, assim, uma singularidade. Além de ser uma narrativa que trata da história de mulheres, tendo-as como protagonistas, o texto ainda pode ter sido escrito por uma delas. Todos esses elementos podem fazer do texto um grito de resistência da mulher no passado e, por ser consi-derado um evangelho, ainda pode ser lido como uma boa-nova para a mulher contemporânea.

Assim, por meio dessas leituras, é possível perceber como as abordagens da História do corpo, do cotidiano e de gênero são

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importantes para análise do livro de Rute.Esses aspectos, para mui-tos dos exegetas, são como eixos centrais da narrativa. Portanto, se levados em consideração, permitem uma nova leitura de Rute, mos-trando como essa história traz em si elementos para a compreensão de grupos subalternos da sociedade antiga que a compôs, como os estrangeiros e as mulheres.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Fazer uma análise de Rute e das suas diversas leituras, ao longo da história da exegese cristã, constituiu-se uma tarefa de-safiadora e, ao mesmo tempo, prazerosa. Desafiadora porque são muitas as interpretações antigas e contemporâneas que poderiam ser levadas em consideração, mas, por motivo de tempo e espaço, não puderam ser abarcadas neste artigo. E prazerosa, porque um trabalho interdisciplinar abre muitas oportunidades de discussão, recolhendo abordagens da Exegese e da História que são atuais.

Toda pesquisa interdisciplinar corre o risco de perder-se na valorização ou desvalorização de métodos, conceitos ou elementos de uma área em relação à outra. Atentando a isso, procurou-se defi-nir o que é a Exegese Bíblica e, também, Nova História Cultural. E, a partir dessa conceituação, lançou-se mão do material bibliográfi-co recolhido, mostrando como são afinadas as leituras de ambas as disciplinas. Porém, não se pode esquecer que a exegese, enquanto matéria teológica, leva em consideração elementos que estão para além da ciência, como o caráter inspirado por Deus dos textos bí-blicos. Desde o início, trabalhou-se com a ideia de diversas leituras acerca de Rute, pois é impossível afirmar uma única maneira ou, ainda, uma maneira oficial de interpretar o texto bíblico. Muitas leituras foram consideradas, todavia foi preciso ir além, pois os métodos exegéticos – canônico, tradicional, histórico-crítico – con-seguiram, mas apenas de forma limitada, ver o livro de Rutecomo uma novidade no conjunto das Escrituras Sagradas.

Entende-se que isso se deu pelo fato de que muitos exegetas estiveram atrelados a uma visão tradicional, atentos apenas a ele-mentos já canonizados, como é o caso da relação que foi feita entre

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a história de Rute e a genealogia de Davi. No entanto, essa novela bíblica foge à regra, pois trata de gente pobre, estrangeiros, mulhe-res, esperança por tempo e situações melhores, ou seja, elementos que não se relacionam a uma história tradicional dos vencedores ou dos grandes feitos. Antes, é uma história dos subalternos: gente pobre e excluída.

Desse modo, percebeu-se que as vertentes atuais do estudo bíblico – abertas aos avanços das Ciências Humanas, como Antro-pologia, Arqueologia, História, Psicologia, Sociologia – ajudam a ampliar e dar uma nova visão às Sagradas Escrituras, sem exigir demais dos textos sagrados.

No caso de Rute, entende-se que a história não é simples-mente ingênua e bonita, mas sim instigante e provocadora, como um grito de resistência, um apelo para a justiça e uma afirmação do feminino em meio a uma sociedade patriarcal. E essa não deve ser entendida como uma leitura abusiva do livro. Antes, é o seu sentido mais original, que nasce a partir de uma leitura ampla e contextua-lizada da obra.

Contudo, não é possível dogmatizar tais considerações. Afi-nal, a Nova História Cultural foge dos dogmatismos e abre-se, cada vez mais, a uma busca interpretativa, por meio da cultura e da inter-pretação dos fatos históricos. O que se propõe é uma abertura para a interdisciplinaridade, que permite ler o sentido mais profundo do texto.

Assim, é possível concluir com uma metáfora: há um tesouro escondido num baú que necessita de muitas chaves para ser aberto. Ruteé esse tesouro. Muitas foram as trancas já abertas, outras ainda estão por abrir. Aqui apenas foi recolhido um pouco do que já foi estudado, relacionando as idéias à luz da Nova História Cultural para melhor compreendê-las. Contudo, muitas outras leituras po-dem surgir a partir de novas pesquisas interdisciplinares.

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