Uma analítica do poder para as políticas públicas: Foucault e a contribuição da Anthropology of Public Policy

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  • 7/24/2019 Uma analtica do poder para as polticas pblicas: Foucault e a contribuio da Anthropology of Public Policy

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    Jose Renato SantAnna Porto

    Uma analtica do poder para as polticas

    pblicas: Foucault e a contribuio da

    Anthropology of Public Policy

    Introduo

    Este trabalho tem como intuito avanar em novas possibilidadespara a anlise de polticas pblicas a partir de discusses relacio-nadas dimenso do poder. O foco central deste exerccio consisteem apresentar uma vertente ainda pouco explorada no contexto

    brasileiro, denominada Anthorpology of Public Policy, que tem nopensamento de Michel Foucault um importante referencial para ainterpretao das distintas dimenses que emergem da prtica daspolticas pblicas.

    Como se sabe, so inmeras as correntes de pensamento existen-tes e que inuenciam a literatura brasileira a respeito da anlise depolticas pblicas, mas nem todas elas conferem dimenso polticao mesmo status. Romano (2009), em um intenso exerccio de mapea-mento das principais correntes interessadas na poltica das polticaspblicas, oferece um ponto de partida bastante consistente para aspretenses deste trabalho, apresentando e debatendo correntes im-portantes como, por exemplo, as abordagens centradas nas redes depolticas pblicas, na permeabilidade do Estado (MARQUES, 2000) ena perspectiva que confere s ideias um papel central na anlise daspolticas pblicas, intitulada como abordagem cognitiva (FOUILLEUX,2011; GRISA, 2012).

    No objetivando traar o mesmo percurso de reviso realizado por

    Romano, o intuito deste artigo apresentar um novo referencial de

    Doutorando no Programa de Ps-Graduao de Cincias Sociais em Desenvolvi-mento, Agricultura e Sociedade - CPDA/UFRRJ, Brasil. E-mail: [email protected].

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    anlise, tambm centrado na dimenso poltica das polticas pblicas,mas oriundo de um linhagem antropolgica de interpretao. Comoprincipais expoentes desta recente perspectiva analtica, podemoscitar os trabalhos editados por Cris Shore e Susan Wright, em especialos textos contidos nos livrosAnthropology of Policy: Critical Perspectiveson Governance and Power (1997) e Policy World: Anthropology and the

    Analysis of Contemporary Power (2011), bem como o artigo intituladoToward naAnthropology of Public Policy(2005), sendo este ltimo es-crito por Shore em parceria com Stacy Lathorp, Janine Wedel e Gre-gory Feldman, autores que tambm vem se esforando para construire estruturar tal perspectiva analtica.

    Como dito, os textos citados so inspirados em grande medida

    no pensamento de Michel Foucault e trazem uma srie de insightsinovadores no que diz respeito dimenso do poder nas polticas p-

    blicas. A partir da complexidade conferida por Foucault, em especials discusses sobre poder e governo, outros planos de observaoso apontados como possibilidades de interpretao das polticaspblicas, no s na sua concepo e constituio, mas tambm emseu funcionamento e em seu papel de construo de mundos dapoltica pblica. Congura-se, no caso, uma espcie de analtica do

    poder, para usar um termo do prprio Foucault, para a anlise daspolticas pblicas.A ttulo de organizao das ideias neste artigo, primeiramente ser

    feita uma tentativa de reviso do projeto metodolgico de MichelFoucault acerca de questes que nos interessam diretamente nesteartigo, como, por exemplo, os debates sobre o poder, sobre o Estadoe suas variadas formas de expresso. Esta primeira seo tem comointuito contextualizar a proposta terica foucaultiana e permitir uma

    compreenso mais acurada a respeito de como o autor discute algunstemas que podem estar mais diretamente relacionados interpreta-o contempornea das polticas pblicas, mesmo que isso requeiraalgumas digresses mais longas no pensamento de Foucault. Em se-guida ser apresentada a perspectiva analtica que orienta a chamada

    Janine Wedel e Gregory Feldman so cofundadores do IGAPP Interest Group forthe Anthropology of Public Policy, um grupo de estudo e pesquisa que vem buscandoconsolidar a produo acadmica sobre polticas pblicas a partir de uma abordagemantropolgica. (hps://sites.google.com/site/aaaigapp/)

    No caso brasileiro, as poucas experincias de utilizao deste referencial se rela-cionam aos trabalhos de alguns antroplogos, com destaque para o texto de AntnioCarlos Souza Lima (2008) cujo ttulo Poltica(s) Pblica(s).

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    Anthropology of Public Policy, de modo a esclarecer as principais cate-gorias de anlises e as ideias que estruturam essa experincia recentede estudo das polticas pblicas. Por m, sero tecidos alguns brevescomentrios nais acerca das possibilidades e das potencialidadesanalticas da abordagem apresentada para a produo acadmica noque tange s polticas pblicas.

    O poder e o Estado na viso de Michel Foucault: caminhospara repensar as polticas pblicas?

    O intuito de mobilizar a contribuio terica de Michel Foucaultneste artigo est relacionado ao objetivo de discutir as relaes depoder e a prpria ideia de poder a partir de uma abordagem distinta

    das que inuenciam e inspiram hoje as anlises de polticas pblicas,abrindo espao para questes e interpretaes no muito usuais nocontexto brasileiro. Embora discusses abordadas por algumas pers-pectivas de anlise tambm tangenciem as temticas trabalhadas nasdiscusses realizadas sob a gide foucaultiana, como, por exemplo, aproduo de discursos (RADAELLI, 2006), os signicados e narrativas(YANOW, 1996), a experincia (LEJANO, 2006), a produo de ideias(FOUILLEUX, 2011; GRISA, 2012), a organizao das redes de relaes

    polticas (MARQUES, 2000), e mesmo as estratgias e instrumentos deao poltica (LASCOUMES; LE GALS, 2009), tais debates no estonecessariamente relacionados abordagem terico-metodolgicaproposta por Foucault acerca dessas questes, o que, como veremos,resulta em uma conotao bastante diferenciada s discusses sobrepoder, polticas pblicas e governo.

    Nesse sentido, a proposta aqui apresentar, mesmo que de umamaneira sinttica, alguns elementos da contribuio terica de Fou-

    cault que se conguram como pontos em potencial para o debatesobre a dimenso poltica nas polticas pblicas. Cabe salientar quea seleo dos temas e das entradas para interpretao do poder noguardaram relao direta com a classicao mais geral acerca dos di-ferentes tipos de poder organizada por Foucault, a saber: poder desoberania, poder disciplinar e poder de segurana. Correndo o riscode uma montagem equivocada e esquemtica atravs da aproximaode elementos que, embora apresentem conexes possveis, no foramassim pensados por Foucault, o que esta proposta pretende agluti-nar elementos para a reexo do poder em uma perspectiva analticaque dialogue com a dimenso da anlise de polticas pblicas e queremonte o backgroundterico no qual se ancora a vertenteAnthropolo-

    gy of Public Policy, a qual ser apresentada na seo seguinte.

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    A analtica, os dispositivos e as tecnologias de poder

    Uma das vrias vias de anlise por meio da qual Foucault empre-ende sua interpretao acerca do poder a investigao das prticas

    cotidianas e naturalizadas atravs das quais o poder se expressaria.Nesse sentido, pergunta-se sobre como tais prticas emergem, sopostas em funcionamento e passam por processos de naturalizaoem contextos determinados? Como as prticas, no sentido tambmde comportamentos especcos, de procedimentos de operacionali-zao das coisas, de padres e de modos de organizao e gesto, soconstitudas e incorporadas em determinados meios (por exemplo, nombito da gesto de polticas pblicas)?

    A partir de problematizaes como essas, Foucault entende que talprocesso de constituio disso que estamos chamando genericamen-te de prticas produto de relaes de poder, e so tambm, e aomesmo tempo, os elementos que retroalimentam essas mesmas rela-es de poder. Nesse sentido, num movimento de politizao dessasprticas normalizadas pelo cotidiano, a questo sofre um processo detranslao, partindo de uma interrogao das prticas somente comoelementos operacionais e instrumentais, e ancorando a reexo nasprticas como instrumentos e expresses do poder. Assim, a reexomodica-se e torna-se necessria uma indagao mais geral acerca decomo o poder posto em prtica.

    Para Foucault (2010), a dimenso substancial da anlise polticaest centrada justamente no como o poder se expressa. Comear aanlise pelo como indicar a necessidade de descrio do poder emsuas dimenses prticas e cotidianas, em como o poder se expressa,nas extremidades e nas suas capilaridades. Assim, o procedimento deanlise do poder remete ideia de um inqurito acerca das prticas

    cotidianas. Nas palavras do autor ( 2010, p. 13), vericamos claramen-te essa opo metodolgica centrada na anlise do como:

    O que o poder? Ou melhor porque a pergunta o que opoder? seria justamente uma questo terica que coroaria oconjunto, o que eu no quero o que est em jogo e determi-nar quais so, em seus mecanismos, em seus efeitos, em suasrelaes, esses diferentes dispositivos de poder que se exercem

    em diferentes nveis da sociedade, em campos e com extensesto variadas.

    A discusso sobre o poder no pensamento de Foucault tambmcoloca em xeque a ideia de secundarizao, ou melhor, a ideia de sub-

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    misso das relaes de poder com outras esferas, como, por exemplo,a dimenso econmica, a qual muitas vezes utilizada como meioatravs do qual se explicam as relaes de poder ou mesmo como re-sultado nal onde o poder se materializa e ganha forma. Foucault nodescarta a possibilidade do poder ter sobreposies ou estar conec-tado com a estrutura de organizao econmica, mas contundenteao enfatizar que tal associao no pode ser tomada como um apriorianaltico. Para o autor, caso exista relao entre economia, direito, fa-mlia, sexualidade, etc., e a dimenso poltica, essa no seria da ordemda subordinao (...) mas de uma outra ordem que se trataria precisamentede revelar (2010, p. 14)

    Nesse sentido, revelar tal ordem signicaria descrever as regras

    institudas, os efeitos das mesmas sobre o comportamento dos indi-vduos, os potenciais limitadores e organizadores das convenes,as tcnicas e os instrumentos de governo e controle que assumemposio central nessa forma de perceber o poder. Assim, Foucaultconfere tambm certo destaque aos instrumentos que remontariamao que ele denomina como uma ordem do governo (DREYFUS; RABI-NOW, 2010, p. 288).

    O exerccio do poder estaria em consonncia com o controle, com o

    governo das coisas, das prticas possveis, da conduo das condutase, em especial, da conduta das pessoas, fato que seria possvel atra-vs do funcionamento de determinados dispositivos organizadoresde tal ordem. O governo, tal como compreendido pelo autor, e aoperacionalizao dos dispositivos de poder no ocorrem de mododissociado dos embates e das questes polticas entre determinadosgrupos em relao. Pelo contrrio, surgem precisamente do proces-so de interao e disputa entre os distintos grupos de interesse, no

    desenvolvimento das estratgias de dominao e prevalecimento deuns sobre os outros, e, principalmente, no processo de naturalizao/normalizao dessas relaes.

    Assim, o foco em tais dispositivos e tecnologias de poder requerum detalhamento no s de seu funcionamento na prtica e de seusefeitos no que tange, para ser exato, ao governo das condutas e manuteno de determinadas relaes de poder, mas tambm de seucontexto de emergncia, dos propsitos e interesses mais amplos aosquais tais instrumentos e tecnologias de gesto esto atrelados.

    Sobre a histria, a produo de verdades e os discursos

    Para Foucault, a expresso do poder, em termos das prticas coti-dianas e do funcionamento dos dispositivos organizadores das rela-

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    es, produtora de sentidos de verdade. A normalizao de umadeterminada prtica (e poderamos aqui pensar em prticas poltico--administrativas no mbito da concepo e gesto de polticas pbli-cas) induz a formao de crenas atravs da estruturao de discursosque se estabelecem em processos de disputa pela verdade. Foucaultse pergunta, com preocupao a tais discursos e sua relao com adimenso do poder, qual esse tipo de poder capaz de produzir discursosde verdade que so, numa sociedade como a nossa, dotados de efeitos to

    potentes? (2010, p. 22).Nesse sentido, o poder se expressaria no s nas prticas, mas

    tambm na produo de verdades sobre a realidade, sendo esta ver-dade pertencente originalmente a um quadro de relaes de fora, de

    disputas. Assim, o que o autor denomina economia dos discursosde verdade eleva a anlise do poder para um plano semntico-dis-cursivo. No caso, o discurso no seria apenas um veculo pelo qualso retratados os fatos, mas, sobretudo um objeto de disputa poltica,algo que os grupos desejam se apropriar para colocar em operaodeterminada viso de mundo coadunada a determinadas prticasordenadoras das relaes entre os indivduos e grupos sociais. Paraaproximar o debate, seria o caso de pensarmos o processo de constru-

    o discursiva no mbito das polticas pblicas, onde uma verdadeseria instaurada em determinado campo de ao ou campo temticoatravs da produo de uma histria que teria a funo de organi-zar os fatos, os procedimentos e os interesses.

    Nessa economia dos discursos de verdade, encontramos um pro-cesso intenso de disputa de paradigmas semnticos, fundamentalpara a conduo das prticas e comportamentos, e que culmina naexcluso do que no se cristaliza como verdade. Ou seja, a emergncia

    de um discurso que se promove como verdadeiro se d atravs dosembates, das lutas com outros discursos que se propem mesmapretenso. O resultado nal (ou pelo menos provisrio, uma vez que,para Foucault sempre possvel - embora no seja simples - que estra-tgias alternativas venham revogar a verdade posta) a consolidaode um s discurso como verdadeiro, e o rebaixamento, a excluso dosoutros. Para Foucault, esse um procedimento intrnseco ideia deverdade: a excluso.

    De fato, em busca do statusde verdade absoluta que os distintosgrupos de interesse colocam em voga suas estratgias discursivas.Para Foucault (2011) a ideia de vontade de verdade, historicamenteconstruda no seio da sociedade ocidental, que garante o funciona-mento desse campo de disputas discursivas em direo qualidade

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    de discurso de verdade. , portanto, justamente esta legitimidade queconferimos para a verdade que d o suporte necessrio a tal dimensodas relaes de poder no plano discursivo.

    Dessa maneira, para o estudo de tais questes, torna-se necess-rio restituir ao discurso seu carter de acontecimento; suspender, enfm, asoberania do signifcante (FOUCAULT, 2011, p. 51). nesse ponto quese pode acionar outra dimenso analtica que Foucault utiliza emsuas reexes sobre a relao entre o poder e o discurso. Rero-me aabordagem diferenciada que o autor confere histria, entendendo-atambm como um meio atravs do qual os discursos buscam conquis-tar legitimidade e se fundar como a verdade aceita socialmente. Nesteponto, Foucault trata a histria em um statusde saber especco, desaber histrico, que garante a quem dele se apropria certa conotaolegtima e aceitvel, capaz de construir e garantir uma determinadaordem teleolgica dos fatos.

    Quando enfatizamos que a histria se coloca como uma espciede veculo, ou quando falamos de um saber histricoque detm statusde autoridade na sociedade, confere-se, por extenso, certo destaquepara os atores ou grupos sociais que se apropriam da histria ou quefazem uso deste saber histrico. Esse sujeito, que fala da histria, a

    partir da histria e que tambm parte central do contedo que sefala na histria, constri, sua imagem e semelhana, uma histriaenviesada e autointeressada. Nas palavras de Foucault (2010, p. 112):

    ... um novo sujeito que fala: algum diferente que vai tomara palavra na histria, que vai contar a histria; algum dife-rente vai dizer eu e ns quando narrar a histria; algumdiferente vai fazer o relato de sua prpria histria; algumdiferente vai reorientar o passado em torno de si mesmo e de

    seu prprio destino.

    A partir da apropriao da histria pelos grupos sociais, Foucaulttambm sugere que tal processo desencadeie outras formas de con-cepo da prpria ideia de histria. Por exemplo, em um contextoonde determinado grupo de interesse conquiste a autoridade de falarem nome da histria, a prpria forma de construir esse saber histrico moldada pelos interesses, pela viso de mundo e tambm pelas ca-pacidades e limitaes de quem conta a histria. Isso ocorre no s naforma, como tambm, e principalmente, no contedo. Lana-se mode novos referenciais, novos episdios paradigmticos, novos objetosque anteriormente no tinham visibilidade, e assim vai se construin-do uma nova histria, como dito, interessada e orientada a partir

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    de determinado interesse especco, ou melhor, a partir de relaesde poder, as quais so tambm reorientadas pelos prprios efeitosdessa nova histria. Nesse sentido, tomando a histria como causae produto das relaes de poder, assume-se, por consequncia, umaperspectiva relacional da ideia de histria e de poder.

    Ou seja, uma histria contada por determinado grupo social no in-forma somente o desenvolvimento e os fatos referentes a esse grupo.Nem diz respeito, unilateralmente, a questes atinentes a outrosgrupos presentes nas cenas histricas que so relatadas. A histria,tomada nessa perspectiva sociopoltica, informa tambm as relaesde fora e poder que permitem a construo de determinada narrativasobre os fatos, retratada a partir de um ponto de vista especco, na

    maioria das vezes o de quem subjuga e controla o governo das coisase das pessoas.

    Assim, Foucault transmite uma noo de histria ativa, nocomo um simples instrumento de contar a histria, mas como um me-canismo de construo da histria, um modicador da realidade. Issopossibilita a quem a controla no s uma reinterpretao do passado,mas tambm uma reorientao do presente e do futuro, a partir daconstruo de narrativas teleolgicas, tomadas como arma discursiva

    utilizvel, exibvel por todos os adversrios no campo poltico (2010, p.159).Aspectos metodolgicos e orientaes para anlise do poder

    A seguir ser apresentado um conjunto de sugestes metodol-gicas que Foucault aponta em Segurana, Territrio e Populao(2009)quando conduz uma reexo a respeito de como se deve procederna anlise de instituies. Essas reexes indicam tambm elementos

    bastante interessantes para pensarmos as polticas pblicas, embora

    o contexto especco de anlise do autor, que inclusive aparece nosexemplos que ele menciona, se rera s grandes e tradicionais ins-tituies, como a psiquiatria, expressa no hospital psiquitrico, e osistema penal, expresso nas prises e casas de deteno etc. O intuitoaqui tentar mapear sugestes desse tipo de anlise institucional paradois objetivos particulares. O primeiro tentar buscar conexes maisconsistentes e estveis entre os planos de observao mencionadosnas sees anteriores. O segundo trata do esforo em mapear elemen-tos para novas estratgias de anlise de polticas pblicas, centradasespecialmente nas discusses sobre poder sob a tica focaultiana.

    Foucault, no intuito de observar e compreender as dinmicasorganizadoras dos dispositivos, instrumentos e das tecnologias depoder que operam no bojo de determinada instituio, prope um

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    deslocamento analtico em direo ao exterior, muito atrelado aoque o autor denomina mtodo genealgico, no sentido de fugir aoinstitucional-centrismo.

    O procedimento realizvel a partir de trs movimentos. O pri-meiro deles seria a nfase na ideia de que uma instituio pode sercompreendida com base em algo exterior a ela, algo mais geral ao quea mesma est atrelada em sua prpria concepo, e, assim, tambmem sua operacionalizao. Esse algo exterior tomado por Foucaultcomo um projeto global ao qual o propsito desta instituio est di-retamente atrelado. Para levar em conta tal instruo, necessrio quese passe por trs da instituio a fm de tentar encontrar (...) o que podemoschamar grosso modo de tecnologia de poder (2009, p. 157), ou o modo

    como o poder se expressa no bojo de tal instituio, seja em termos dedominao, de disciplina ou de governo.

    O segundo procedimento metodolgico sugerido por Foucault,muito complementar ao primeiro, refere-se suspenso, mesmo queprovisoriamente, da observao da funcionalidade da instituio,para que seja possvel situar a instituio no escopo de uma economiageral de poder. De fato, o procedimento seria tambm o de analisarqual o sentido de funo, de ecincia e de eccia para determina-

    da instituio, colocando-a em um contexto mais amplo. Trata-se decompreender as estratgias e tticas, que inclusive podem estar rela-cionadas aos dcits funcionais, se estes forem observados de umamaneira supercial, sem levar em conta a dimenso global onde talinstituio se insere.

    J a terceira estratgia de passagem ao exterior proposta por Fou-cault diz respeito necessidade de exibilizao do prprio objeto depesquisa. Nas palavras de Foucault, seria o caso de recusar-se a querer

    medir as instituies, as prticas e os saberes com o metro e a norma desseobjeto j dado (FOUCAULT, 2009, p. 158). Ou seja, estabelecer muitodenitivamente a estratgia e o alcance da anlise pode limitar a com-preenso de fenmenos e conexes mais globais que esto relaciona-das operacionalizao dos dispositivos de poder de determinadainstituio. Essa uma noo particularmente cara s experincias deanlises de polticas pblicas que se orientam a partir do pensamentode Foucault, conforme veremos mais adiante.

    De um modo geral, como o prprio Foucault enfatiza, a estratgiade anlise das relaes de poder no seria precisamente uma questode mtodo, mas antes uma questo de ponto de vista. No caso, o mo-vimento em direo ao exterior no abandona, em hiptese alguma, aconsiderao ao plano micropoltico. Nesse sentido, o ponto de vista

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    do poder, a analtica do poder, partindo da anlise do micropoder con-textualizado e localizado, compatibiliza-se e ganha escala e forma apartir do encaixe e do dilogo com a trajetria analtica em direoao exterior.

    Foucault, o Estado e a ideia de governamentalidade

    Sem querer estabelecer ou buscar nos escritos de Foucault umadenio mxima do que o Estado (o que seria um equvoco emse tratando da maneira que o autor constri sua estrutura de pen-samento e reexo), esta seo tem por objetivo apresentar algumasconsideraes a respeito da perspectiva diferenciada atravs da qualFoucault observa o Estado, evidenciando, mesmo que em linhas

    gerais e de maneira sistematizada, o percurso analtico que permitetal viso heterodoxa desse fenmeno Estado. Essa breve incursoacerca do Estado na viso de Foucault tambm um ponto importan-te para contextualizar a perspectiva analtica daAnthropology of PublicPolicy, que, em grande medida, se orienta a partir das ideias que seroapresentadas a seguir.

    Bem, como dito, seria um tanto quanto audacioso demais preten-der remontar todo caminho trilhado por Foucault no que se trata de

    seu pensamento sobre o Estado. No que o autor tenha de fato inves-tido grande parte de suas pesquisas acerca deste objeto especco, oEstado, como zeram Poulanas, Althusser, Gramsci, dentre outros.Sem ter essa obsesso pelo Estado, Foucault percorre uma trajetriadifusa que lhe permite entender o prprio Estado a partir de umaviso multidirecional e com base em diferentes fenmenos que, se-parada ou articuladamente, possibilitaram a congurao desta enti-dade complexa que se tornou ou que se convencionou chamar de o

    Estado.Toda a discusso acerca do poder, do exerccio do poder (essesim objeto de grande investimento intelectual do autor) contribuiem grande medida para o processo de compreenso do fenmenoEstado. No que o Estado seja o centro irradiador do poder. Muitopelo contrrio. Para Foucault, o poder, assim como o Estado, no deveser tomado como uma entidade essencializada, substancializada, quepossui uma encarnao estanque ou que seja passvel de ser possudoe aprisionado em uma s instncia ou polo de concentrao. Creio queisso seja demasiadamente importante do ponto de vista da concepode Foucault acerca do Estado: a ideia de que, assim como o poder, oEstado, apesar da importncia de seu aparato e de suas instituies,no algo que possa ser reduzido apenas a elas.

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    No denso processo de discusso sobre o poder na obra de Foucault, possvel observar uma espcie de evolutiva circular e cumulati-va entre as concepes ou tipologias diferenciadas de poder que oautor identica em seu projeto. Ou seja, embora indique a passagemda soberania em direo s tcnicas da disciplina, e depois para astticas de governo ou do biopoder, indica tambm que o surgimento nahistria de uma nova forma de poder no implica o desaparecimentodas outras, podendo at mesmo ser uma forma de reforo e incentivodas prticas anteriores, quando bem conjugadas. Sem nos alongarneste ponto especco, optamos por discorrer um pouco mais sobreo que Foucault chamou de o problema do governo, entendendoque esta seja uma porta de entrada interessante para compreender o

    pensamento do autor acerca do Estado, bem como traz uma srie deelementos para pensarmos as polticas pblicas, as quais podem serentendidas como uma expresso contempornea e prolongada de ummesmo processo histrico de governamentalizao. Vejamos entoum pouco a esse respeito.

    Em seus cursos no Collge de Francenos anos de 1977 e 1978, quemais tarde veio a ser editado em forma de livro (Segurana, Territrio ePopulao), Foucault se prope a uma incurso meticulosa na histria

    com o intuito de perceber as diferentes formas e origens da prticado governo. Nesse sentido, a meu ver, Foucault organiza dois eixosdistintos, porm complementares, de reexo e pesquisa acerca doque seria governar, buscando identicar origens, s vezes as maisremotas, dessas prticas de governo.

    A primeira discusso diz respeito interpretao de Foucault deque teria ocorrido a partir da introduo da ideia de economiano mbito das relaes polticas, ou no mbito do Estado, lato sensu,

    quando as prticas de governo teriam ganhado escala e puderamse desenvolver em todas as suas tticas e procedimentos. Foucaultarma que a ideia de economia no sculo XVI signicava claramenteuma forma de governo, relacionada no s, mas principalmente di-menso do privado, da famlia. Governar seria a funo e o objetivodo responsvel pela famlia, do pai de famlia, e teria a conotao deprover aos integrantes dessa famlia os bens e condies necessriaspara sua sobrevivncia e reproduo, salvaguardando o bom funcio-namento da economia domstica. Por outro lado, e de modo oposto, mesma poca a dimenso pblica, relacionada ao Estado, gernciae administrao do Estado, estava muito embebida nos refernciasdo poder soberano, calcados em grande medida na doutrina exposta

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    no Prncipe de Maquiavel4e distante o bastante de qualquer ideia deeconomia ou de governo. A preocupao do Prncipe estava voltadaquase que exclusivamente para manuteno de sua prpria condio,da condio do Estado soberano.

    , ento, com base nesta reexo que Foucault argumenta que apartir da gradativa insero da ideia de economia no mbito da ad-ministrao do Estado que a forma de gesto, conduo e mesmo deconcepo do que seria governar o Estado e do que seria o prprioEstado passam a se alterar substancialmente.

    A introduo da economia no seio do exerccio poltico, isso,ao meu ver, que ser a meta essencial do governo ... Governar

    um Estado ser portanto aplicar a economia, uma economiano nvel de todo o Estado, isto , exercer em relao aos ha-bitantes, s riquezas, conduta de todos e de cada um umaforma de vigilncia, de controle, no menos atenta do que a dopai de famlia sobre a casa e seus bens [...] Eis portanto o que governar e ser governado. (FOUCAULT, 2009, p. 126-127).

    Se, por um lado, o objetivo do Prncipe era, como vimos, a manu-teno de sua prpria condio de soberano, da soberania do Estado,

    do territrio e de suas fronteiras e recursos, por outro lado e de mododiferenciado, o objetivo nal do governo ou de quem governa so aspessoas, ou melhor, as pessoas em suas relaes, seus vnculos entresi e com as coisas. Ou seja, o alvo da prtica de governo so as condu-tas dos indivduos e o todo/grupo dos indivduos, ao mesmo tempo.Governar signicaria no apenas o controle de algo esttico, mas simo controle e a conduo das condutas, dos movimentos, das variveis.

    Mas, como teria sido possvel a substituio ou a sobreposio e a

    hegemonizao das tticas de governo sobre um Estado administrativocom base no poder soberano? Foucault argumenta que justamentea insero da economia como um nvel de realidade, e, por extenso,como uma forma de conhecimento e legibilidade que adentra s estru-turas do Estado, que esse processo de governamentalizao do Estadofoi pouco a pouco se estruturando. A economia, de uma forma particu-

    4No curso oferecido por Foucault nos anos de 1977 e 1978 notam-se os dilogos queele faz com uma srie de autores que se mostravam crticos ao contedo do Prncipe. De

    uma maneira geral, com base na crtica desses autores, em especial de um autor cha-mado La Perrire, que Foucault estrutura sua argumentao contestatria ao status atento aparentemente intocvel da concepo de administrao do Estado e da prprianoo de Estado com base nos princpios da soberania.

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    lar de organizao e conduo da dimenso privada, das famlias e dosindivduos, como vimos, passa, ao longo dos sculos XVII e XVIII, aoestatuto de cincia de governo, to poderosa e complexa que abstradacomo um nvel especco da realidade, a dimenso econmica.

    Portanto, esta dimenso econmica era em sua origem algo ex-terior ao Estado, mas que atravs de procedimentos complexos deintegrao acoplada ao Estado no sentido de se fazer como o princ-pio bsico de inteligibilidade e de funcionamento estatal. Assim, paraFoucault, a necessidade de conduzir a gesto do Estado tal qual agesto familiar/privada, exigia o desenvolvimento e o aprimoramen-to da forma de conhecer, de vigiar e de controlar todos e cada um,ao mesmo tempo. A economia, como princpio organizador e forma

    de conhecimento, juntamente com a estatstica e sua produo deinformaes minuciosas foram marcos importantes no surgimento daideia de populao. A interveno do Estado no que diz respeito aocuidado, salvaguarda da condio de vida de todos o que produza populao, e, ao mesmo tempo, produz tambm o que Foucaultdenominou de poder de segurana, ou biopoder, que se exerce pelasprticas de governo sobre essa populao constituda por ele prprio.

    Ou seja, a populao vai ser o objeto que o governo deverlevar em conta nas suas observaes, em seu saber, parachegar efetivamente a governar de maneira racional e ree-tida. A constituio de um saber de governo absolutamenteindissocivel da constituio de um saber de todos os proces-sos que giram em torno da populao no sentido lato, o que sechama precisamente de economia ... So estes trs movimentos a meu ver: governo, populao e econmica poltica, acercados quais cabe notar que constituem a partir do sculo XVIII

    uma srie slida, que certamente no foi dissociada at hoje.(FOUCAULT, p. 140-143).

    Essa srie slida a qual Foucault se refere basicamente o que elemesmo conceituou como governamentalidade, que seria, por umlado, justamente a composio das instituies, dos procedimentos,dos clculos, das tticas e das formas de saber que tem como alvo apopulao, e que podem ser traduzidas em conjunto e genericamentecomo governo; e, por outro lado, governamentalidade tambmassume a conotao de um espraiamento constante e progressivo detais prticas, com incio remoto no sculo XVII e que mantm con-tinuidade at hoje. Este espraiamento, essa insero da prtica dogoverno no cotidiano das pessoas no algo que se faz somente no

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    escopo do aparato estatal, embora, como Foucault evidencia com bas-tante nfase, atravs desse processo de governamentalizao que oprprio Estado adquire a capacidade de manuteno e de suavizaode suas prprias prticas.

    Para o autor, se foi possvel ao Estado a perpetuao de suas prti-cas ao longo do tempo, isso se deve em grande medida predominn-cia da gramtica do governo no bojo de seu funcionamento. Isso sedeve em parte ao fato de uma caracterstica particular das tticas degoverno que permite quele que exerce tal poder um carter benevo-lente, um statusde provedor que encoberta a dimenso negativa ouopressora do prprio exerccio do poder. Nas palavras de Foucault, (apopulao) aparece como consciente, diante do governo, do que ela quer, etambm inconsciente do que a fazem fazer. (2009, p. 140).

    Esse carter benevolente ou benfazejo do exerccio do poder de go-verno algo que Foucault identica como extremamente particular auma forma especca de poder, que o autor denomina comopoder pas-toral. A partir dessa questo, entendemos que Foucault desencadeiaum segundo caminho de reexo sobre a emergncia das prticas degoverno. Na realidade, trata-se de uma continuidade do raciocnio,mas, a ttulo de organizao desta apresentao, acreditamos car

    mais didtico a separao das reexes em dois caminhos de pes-quisa trilhados por Foucault.O intuito de trazer o debate sobre poder pastoral neste texto,

    alm de sinalizar a incurso profunda na histria que Foucault fazpara investigar os contextos de surgimento do ato de governar, temtambm um objetivo especco, que de evidenciar e deixar claroo fato de que o governo no tem sua origem atrelada ao Estado.Foucault nos mostra que este tipo especco de poder pastoral, do

    poder de governo sobre os homens uma ideia cuja origem deve serbuscada no Oriente, num Oriente pr-cristo primeiro, e no Oriente cris-to, depois. (ibid, p. 166).

    Ou seja, no esteio da antiguidade clssica ocidental, no bero dacivilizao grega, a ideia de ser governado, de ser conduzido, o fatode se considerar uma ovelha entre as ovelhas (ibid, p. 174), era algocertamente impensvel. Tanto que a grande maioria das teorizaessobre poltica e Estado, na perspectiva clssica, que tm o pensamentogreco-ocidental como matriz principal, no traz a dimenso do go-verno como algo central ou importante no que tange concepo doEstado e sua administrao.

    De todo modo, quando Foucault sinaliza que se trataria de inves-tigar, em certa medida, o Oriente cristo, ele est fazendo meno ao

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    processo progressivo da Igreja na coadunao e organizao dessasprticas de conduo das condutas, da relao pastoral, para dentrode suas razes institucionais. E, em alguma medida, possvel perce-

    ber que a passagem das tcnicas de governo da Igreja para o Estado,ou melhor, o transbordamento das tcnicas de governo da Igreja, nonecessariamente ou somente em direo ao Estado, se d no contextode perda de fora progressiva da instituio Igreja, no decorrer dosculo XVIII e em diante.

    Est a outro eixo de emergncia da governamentalizao e quenos parece muito importante em termos de construo dessa carac-terstica benfazeja, desse eufemismo que se confere s prticas degoverno, seja no escopo do Estado ou fora dele. Se antes as tcnicas

    de governo, essa conduo das condutas, eram praticadas pela Igrejacom o objetivo de salvao das almas, aps esse processo de revo-gao do privilgio da Igreja no exerccio do governo de todos e decada um, parece ocorrer o surgimento de propsitos mais munda-nos de quem governa. Objetivos como bem-estar, sade, segurana,combate pobreza etc. (objetos contemporneos das polticas pbli-cas), so o que conferem ao Estado uma prerrogativa interfernciae ao sobre a populao. Para resumir, nas palavras de Foucault

    (2010, p. 282):E isso implica que o poder do tipo pastoral, que durantesculos, por mais de um milnio-, foi associado a uma insti-tuio religiosa denida, ampliou-se subitamente por todoo corpo social; encontrou apoio em uma multiplicidade deinstituies.

    Obviamente que o Estado foi um destino importante desse trans-

    bordamento, mesmo no tendo sido o nico lcus de aplicao e fun-cionamento deste poder pastoral. Mas, ao conjugar no interior de suasestruturas polticas duas tcnicas especcas, a individualizao e atotalizao, o Estado moderno reeditou o poder pastoral em um novocontexto de exerccio, agora no governo da populao, nas prticas dogoverno em mbito estatal, que assumem escala e fora antes desco-nhecidas e que permitem o avano, o funcionamento e a proliferaodas estruturas polticas do Estado como nunca se viu anteriormente.E, talvez, as polticas pblicas sejam justamente uma expresso dacontinuidade desse mesmo movimento. V-se, portanto, que o queh de importante para a nossa modernidade, isto , para a nossa atualidade,no a estatizao da sociedade, mas o que eu chamaria de governamentali-zao do Estado (FOCAULT, 2009, p. 144-145).

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    Anthopology of Public Policy: um olhar a partir da vertente

    foucaultiana

    Esta seo tem como objetivo a apresentao dos principais esfor-os e experincias de aplicao do arcabouo antropolgico foucaul-tiano para a anlise de polticas pblicas. Ou seja, sero apresentadasa seguir em linhas gerais as principais ideias e propostas que estrutu-ram a chamadaAnthropology of Public Policy. Ser feita tambm uma

    breve tentativa de contextualizao dessa linha de pesquisa, buscan-do dialog-la com outras perspectivas de anlise de polticas pblicas,

    bem como no sentido de demonstrar as questes que motivaram umgrupo seleto de acadmicos, em sua maioria antroplogos, a se volta-

    rem para o estudo das polticas pblicas.No caberia aqui fazer uma reviso extensa sobre as inmeras

    abordagens existentes sobre anlise de polticas pblicas. Contudo, importante propor algumas aproximaes e fazer algumas coloca-es que possam situar melhor a proposta de anlise que ser aquiutilizada. No contexto brasileiro, embora tenhamos algumas experi-ncias preocupadas em colocar a questo poltica no centro da anlisedas polticas pblicas, ainda so escassos os trabalhos nesse campo

    de estudo que se propem a discutir o poder a partir da perspectivafoucaultiana. Romano (2009), em um trabalho exaustivo de revisoda literatura sobre anlise de polticas pblicas, em especial sobre apoltica nas polticas pblicas, como o prprio nome de seu livrosugere, apresenta um panorama que corrobora esse fato. No mape-amento feito pelo autor, no h registros de trabalhos a partir desteolhar foucaltiano e antropolgico para as polticas pblicas, atporque, conforme veremos, a organizao desta linha de pesquisa

    sobre polticas pblicas consideravelmente recente.Souza Lima (2008), em um texto bastante crtico sobre o campo deestudo das polticas pblicas no Brasil, aponta para os limites dos tra-

    balhos sobre tal temtica (especialmente daqueles oriundos da cinciapoltica, que, diga-se de passagem, a rea majoritria no campo deanlise das polticas pblicas), no que diz respeito a incapacidade damaioria desses estudos em oferecer um olhar mais abrangente paraas relaes de poder. No mesmo trabalho, a partir de debates e ree-xes realizadas a partir do olhar do antroplogo sobre as polticaspblicas, Souza Lima apresenta e descreve as linhas gerais do queestamos tratando aqui comoAnthropology of Public Policy, em especiala partir dos primeiros trabalhos editados em conjunto por Wright eShore (1997).

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    Com base no s no dilogo com essas novas referncias, mastambm com uma ideia de processos de formao de Estado5, umadas principais crticas de Souza Lima vem no sentido de questionar,suspender e/ou colocar em xeque a prpria ideia de pblico que, auma viso mais supercial, aparenta ser algo intrnseco s polticaspblicas. Para o autor, tal procedimento signicativo por abrir apossibilidade de se observar os vieses e os jogos de interesses queesto por traz das polticas pblicas e do prprio Estado.

    Um fato comum nas revises de Romano e Souza Lima a signica-tiva ausncia dessa perspectiva antropolgica de anlise de polticaspblicas, no s no Brasil, como tambm em contexto internacional,onde a policy analysis hegemonizada pelos modelos tericos da ci-

    ncia poltica e da economia. Como tambm aponta Souza Lima, apenas em meados da dcada de 1990 que se iniciam alguns esforospara a construo desse campo de pesquisa que mais tarde foi deno-minadoAnthropology of Public Policy.

    Wedel et al. (2005), ao contextualizar a emergncia desta linha depesquisa, sinalizam dois movimentos internos disciplina antropo-lgica, que, em alguma medida, antecedem a sistematizao maisorgnica de um conjunto de pesquisas voltadas para a antropologia

    das polticas pblicas. O primeiro movimento, ou melhor, o primeiroargumento que justica a emergncia de tal perspectiva de anlise,refere-se ideia de que no mundo contemporneo as polticas p-

    blicas teriam assumido um status importante no sentido de se con-gurarem como elementos capazes de organizar dinmicas sociais eculturais. Para Shore e Wright (1997), a ideia de polticas pblicas,assim como os conceitos de comunidade, sociedade e nao,estaria se tornando um elemento central de ordenamento nas socie-

    dades contemporneas.Como sugere a prpria ideia de policy worldsque, mais tarde, foiutilizada por Shore e Wright como ttulo de seu livro (2011), as polti-cas pblicas constroem mundos particulares, dotados de domniosde sentido, linguagens, prticas padronizadas e limites de ao que semanifestam social e culturalmente, dispondo uma nova ordem entre

    5Esta ideia de processos de formao do Estado proposta por Souza Lima, calca-da no pensamento de Elias e Foucault, no qual o Estado estaria constantemente emmutao e nunca acabado, fazendo-se e refazendo-se continuamente, traz tambmimportantes consideraes metodolgicas para a compreenso das polticas pblicas,conferindo a essas (embora no sejam as polticas pblicas reduzidas aqui ao Estadoem ao) um carter tambm dinmico, relacional e processual.

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    os grupos e indivduos que com elas interagem e que so objetos desuas intervenes. Assim, as polticas pblicas, mais do que meros re-exos desses ambientes produtores de signicados, seriam propulso-ras e delimitadoras dos mesmos, a partir da estruturao de padresde interao, dos cdigos de conduta e dos meios em que passam a sedar as relaes entre os atores.

    Essa concepo das polticas pblicas e dos seus efeitos reala umaimportante dimenso para a pesquisa antropolgica acerca desteobjeto, uma vez que aos antroplogos interessaria, no mbito dasustentao simblica e cultural das polticas pblicas, compreendero processo de formao discursiva, as metforas mobilizadas, as cate-gorias de classicao, as prticas institudas etc., bem como propor

    uma interpretao capaz de contextualizar tais elementos a partir deconexes dimenso do poder e a uma reinterpretao do Estado e desuas variadas formas de expresso no cotidiano.

    J o segundo movimento ou interpretao feita por Wedel et al.(2005) acerca do contexto de emergncia da Anthropology of PublicPolicy diz respeito ideia de que no seria necessariamente nova arelao dos antroplogos com as polticas pblicas, desde que no seassuma a denio de poltica pblica de uma maneira restrita. Os

    autores armam que, sendo a antropologia uma disciplina que nascejustamente no esteio das aes de interveno de Estados coloniais,quando muitos de seus prossionais dedicaram-se a reexes profun-das sobre estes processos complexos de interveno estatal, possvelcorrelacionar parte do que a antropologia das polticas pblicas seprope a fazer com algumas experincias de pesquisa antropolgicaanteriores, principalmente aquelas que se preocuparam em descrevere analisar categorias como Estado, poder, colonialismo, elites, dentre

    outros.Tendo este contexto de emergncia, autores como Shore, Wright eWedel passam a consolidar um campo de estudo especco no intuitode qualicar e aprofundar a anlise das polticas pblicas, propondo aobservao e interpretao das mesmas a partir de um backgroundte-rico inspirado no pensamento de Michel Foucault, em especial a partirda mobilizao das ideias de poder e governamentalidade. Conferemassim um olhar diferenciado s polticas pblicas ao conceb-las comodispositivos de poder capazes de conjugar e ordenar diferentes ele-mentos, como prticas sociais, instituies, arranjos de regulao, leis,categorias administrativas, conhecimento cientco etc.

    Adicionalmente, o perl dinmico e de promoo de conexesentre esses diferentes elementos para esse conjunto de autores uma

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    caracterstica importante das polticas pblicas. Nas palavras deWright e Shore from our perspective, it is precisely the way that policycreates links between agents, institutions, technologies and discourses andbrings all these diverse elements into alignment that makes it analytically

    productive (2011, p. 11). Assim, enfatiza-se a ideia de que as polticasseriam pontos de articulao atravs dos quais mltiplos atores, comogovernos, instituies privadas, organizaes no-governamentais,

    burocracia e organismos multilaterais, desencadeariam processos declassicao e regulao de populaes e espaos no intuito de gover-n-los, utilizando aqui a palavra governo no sentido foucaultianodo termo. Ou seja, por mais que no seja grande novidade na anlisede polticas pblicas a ideia de que diferentes atores articulam suas

    ideias e interesses atravs das polticas, esta abordagem traz consigo apossibilidade de observar tal fato a partir de outro referencial terico,capaz de focar processos e relaes de poder no muito evidentes aoutras perspectivas analticas.

    Nesse sentido, aAnthropology of Public Policytem como desao per-manente lidar com dois emblemas fortes que acompanham a ideia depolticas pblicas, no s no senso comum, mas tambm como resul-tado de uma produo acadmica modular que confere um carter

    assptico e apoltico ao Estado e s polticas pblicas. Trata-se daconotao neutra e racional em que so concebidas as polticaspblicas convencionalmente. Ou seja, por mais que se considerem apresena de interesses diversos e a inuncia de grupos distintos deatores no processo de policy making, a herana positivista dos mo-delos analticos conguram bloqueios importantes observao dapoltica como um dispositivo de poder. De uma maneira geral, estedesao vem sendo posto ao debate tambm por outras perspectivas

    de anlise, em especial pelo enfoque interpretativo (FISCHER, 2006;LEJANO, 2006; YANOW, 1996) que tambm buscam tensionar os limi-tes dos modelos mais convencionais.

    Importante tambm assinalar que, se a primeira vista a catego-ria Estado parece (re) assumir uma posio de centralidade nestaperspectiva de concepo e anlise de polticas pblicas, essa recon-siderao no se d sem uma problematizao diferenciada sobre oconceito de Estado. Ou seja, levando em conta as discusses sobreefeitos e sobre a governamentalizao do Estado que essa perspectivasobre as polticas pblicas congurada, no sentido de buscar com-preender as diferentes formas e expresses de poder que emanam eso reproduzidas no escopo das polticas pblicas. A discusso sobreEstado ganha relevo no escopo da Anthropology of Public Policydado

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    que parte considervel dos trabalhos que se liam a essa abordagemtem como objeto de anlise polticas neoliberais. Por exemplo, autorescomo Cruikshank (1999) e Greenhalgh (2008), dentre outros, passama problematizar mais densamente os processos desencadeados poralgumas polticas neoliberais, questionando a dimenso retrica ediscursiva da retirada do Estado e buscando observar processos eefeitos relacionados transgurao das formas de governo que sodesencadeadas por meio da execuo de tais polticas neoliberais.

    Nesse sentido, uma questo que os autores buscam problematizardiz respeito promoo de ideais como participao, autogesto,controle social e governana multinvel, que so propagadas poressas polticas pblicas de modo concomitante a ideia-fora de des-

    monte do Estado, mas que em algum sentido erguem uma espcie decortina de fumaa diante de processos mais amplos de transforma-o (e no de anulao) da ao do prprio Estado, que passa a exercercada vez mais funes de regulao e gerenciamento em vez da inter-veno propriamente dita, o que parece corroborar com a prpria ideiada progressiva governamentalizao do Estado proposta por Foucault.

    Assim, a interpretao feita que, embora se propalem comomtodos ou arranjos organizacionais necessrios nova forma de

    democracia, essas tecnologias geram efeitos diversos, dentre osquais uma impreciso problemtica acerca da esfera de deciso. Naspalavras de Cruikshank, the lack (or invisibility) of a policy author hasmajor implications for democracy. If one cannot identify an actual case, anindividual or an institution that is responsible for a policy reform, how iseective resistance possible? (1999, p. 15).

    Em um mbito mais especco, a Anthropology of Public Policy sedebrua na anlise dessas prticas contemporneas de governo espe-

    cialmente a partir de dimenses particulares, relacionadas aos efeitosdesencadeados pela produo discursiva e pela linguagem atribudacomo cdigo padro das polticas pblicas, obviamente sem perderde vista a relao intrnseca que esses mecanismos possuem no quediz respeito ao ordenamento das prticas e do campo de ao dosatores e indivduos.

    No que diz respeito ao enfoque que toma a poltica pblica comolinguagem e como palco de relaes de poder, Shore e Wright aten-tam para o fato de que as polticas pblicas valem-se de metforasmobilizadoras, de cdigos e simbologias especcas que funcionamcomo instrumentos de legitimao e tambm como chaves de acessoe de excluso. Na linha dos estudos antropolgicos, o estudo da lin-guagem como um componente das relaes polticas algo bastante

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    difundido, principalmente no que diz respeito aos estudos de socie-dades no ocidentais. De todo modo, tal perspectiva ainda poucoexplorada no contexto de estudos antropolgicos das sociedades mo-dernas, e tambm no estudo das polticas pblicas, e pode ser muitotil para interpretaes e para a desnaturalizao dos discursosconstrudos pelas polticas pblicas, atravs delas e por meio da acei-tao de linguagens, contedos e cdigos que as mesmas impem.

    Desse modo, um procedimento chave apontado pelos autoresseria a tentativa de compreender questes como: Quem de fato temo poder de denir os discursos, as linguagens, os instrumentos queprevalecem no escopo da poltica pblica? Como fazem para procedercom tal delimitao? O que inuencia tal delimitao? De onde vm

    as ideias, os valores, as representaes? Como traar as conexes emtermos de relaes de poder? E, principalmente, quais seriam as im-plicaes e os efeitos de uma determinada linguagem em um contextoespecco? Como isso altera ou limita o campo de ao/contestaodos indivduos e atores sociais?

    Nessa perspectiva, preciso questionar a preponderncia da ver-dade imposta pelo discurso ocial e sua linguagem padronizada, as-sumindo a possibilidade de existncia de mais de um discurso (mais

    de um ponto de vista, mais de uma viso de mundo) sobre determi-nado problema, e que somente a partir de determinados processosde excluso e sujeio que apenas um desses vrios discursos capazde alar o statusde verdade, ou, no caso, o statusde pblico, no bojodas polticas pblicas. Assumir tal posio de discurso em vogaimplica tambm a possibilidade de modelar e remodelar os meios einstrumentos de acesso e usufruto da poltica pblica, bem como aspossibilidades (estruturais e discursivas) de emergncia de contrapo-

    sies ao que se coloca como dado, como normal. Isso indica umaaproximao evidente e uma complementaridade da anlise do planodiscursivo com relao ao plano dos instrumentos de poder, o que

    bastante singular e importante nesta perspectiva de anlise acerca daspolticas pblicas.

    Ou seja, estruturar e manter determinado discurso-signicante,determinada narrativa de construo do problema e da prpria ideiade pblico nas polticas pblicas, implica tambm um controle e umareformulao dos meios de acesso e de operao de propostas emer-gentes. Forma-se, portanto, um discurso de autoridade e normaliza-o, e um procedimento de legibilidade que dene e conduz os com-portamentos possveis, os atores possveis e mesmo os contrapontospossveis. Assim, para Shore e Wright (1997), essa perspectiva de

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    observao e anlise das polticas pblicas, inspirada em uma espciede inqurito antropolgico acerca dos discursos, dos cdigos e daslinguagens, contribui para revelar as polticas pblicas como instru-mentos de governana e governo (das coisas, das pessoas), como ve-culos ideolgicos que organizam os interesses e as prprias pessoasem sistemas de poder e de autoridade.

    No desenrolar desta proposta analtica, o procedimento de inves-tigao obviamente no se restringe aos contornos e limites denidospela poltica pblica, muito menos ideia de que a poltica pblica um ciclo de etapas coesas e subsequentes. Ao contrrio, refora in-clusive a ideia de que tais limites so denies abstratas, inspiradase usualmente aplicadas a partir de uma viso restrita do que sejam

    as polticas pblicas. Seguir o processo de construo dos discursose seus signicados, bem como o papel que cumprem as tecnologiasde poder na organizao e controle das condutas, requer necessaria-mente um transbordamento das estruturas e dos limites institucionaisestabelecidos, percebendo distintos focos de onde emergem e a partirde onde as estratgias discursivas mantm conexo.

    As polticas pblicas no seriam elas em si o foco ltimo da anli-se. Muito mais que isso, as polticas pblicas, entendidas como ponto

    nodal que articulam e convergem processos sociais, polticos e cul-turais de vrias escalas, seriam, na verdade, o ponto de partida daanlise. Susan Wright (2011), em clara aluso ao princpio metodo-lgico proposto por Foucault a respeito da no restrio do objeto eda necessidade de exibilidade metodolgica no contorno dos focosde anlise das relaes de poder, toma a poltica pblica como umcampo de anlise em permanente construo, uma vez que, na rea-lidade, as polticas no se apresentam como um mapa esttico entre

    atores e estruturas, mas sim como algo dinmico, que pode se ex-pandir, se contrair, ser apropriado e retraduzido, englobando novosatores, novas relaes de poder.

    Para a autora, o desao metodolgico consiste, portanto, em pro-curar o ponto de observao que privilegie a anlise etnogrca daoperao dos processos polticos e de suas transformaes ao longodo tempo. Essa abordagem, ou melhor, este ngulo de observao dapoltica pblica guarda relaes diretas com o que Wright e Reinhold(2011) chamaram de studying through. Nas palavras das autoras:

    Instead, studying through follows a discussion or a conictas it ranges back and forth and back again between protago-nists, and up and down and up again between a range of local

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    and national sites. The aim is to follow a ow of events andtheir contingent eects, and especially to notice struggles overlanguage, in order to analyze how the meaning of keywordsare contested and change, how new semantic clusters formand how a new governing discourse emerges, is made au-thoritative and become institutionalized. What is studied is aprocess of political transformation through space and time.(2011, p. 101).

    Consideraes nais

    Aps termos visto a apresentao acima, tanto de alguns elementosespeccos do projeto terico de Michel Foucault, quanto dos princi-

    pais conceitos e categorias organizadas na chamada Anthropology ofPublic Policy, o que gostaria de ressaltar como um diferencial destaabordagem so as possibilidades diferenciadas de empreender umesforo analtico acerca do poder nas polticas pblicas, tomando-oem sentido difuso e complexo. Ou seja, como bem lembra Foucault, opoder no pode ser procurado a partir de um fenmeno especco ouem um nico ponto de emergncia, sendo imprescindvel revelar osdistintos focos por onde ele se expressa, organizando relaes, indiv-

    duos e seus comportamentos em padres especcos. Nessa orienta-o, pensando nas polticas pblicas, o poder no estaria apenas nosinteresses dos grupos, mas estaria tambm nas leis que se cristalizam,nos instrumentos de gesto, nos discursos, nos smbolos, nos cdi-gos e nas ideias que sustentam e conformam o corpus das polticaspblicas.

    Caberia a ns, como diria Foucault (2010, p. 47), redescobrir o sangueque secou nos cdigos, captando, por exemplo, como os instrumentos

    de operacionalizao de determinada poltica pblica carregariam emsi lgicas de sujeio, ou como tais instrumentos serviriam como dis-positivos de excluso, reproduzindo ordenamentos e estabelecendolgicas de governo, sendo esse governo o governo das pessoas, nosentido de conduzi-las, de control-las.

    Seria, portanto, mais que compreender como os instrumentos deri-vam de uma orientao cognitiva especca. Tratar-se-ia de descobrircomo os prprios instrumentos, as prprias instituies, se congu-rariam e estariam em conexo com tais representaes e serviriama elas como tecnologias de governo. Indo um pouco mais a fundo,caberia entender como as formas de gesto de polticas pblicas, osseus instrumentos e os seus preceitos organizativos estariam ligadosno apenas a projetos ideolgicos, mas, mais do que isso, a um projeto

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    mais amplo, de controle dos comportamentos, de construo da pas-sividade, da docilidade dos indivduos; um projeto de governodas condutas, de padronizao dos comportamentos e de restriodas possibilidades de contraposies. Para encerrar, recorremos maisuma vez s palavras de Foucault, que, nesse caso, exemplica de ma-neira bastante clara e enftica o argumento e a aproximao acerca daqual estamos considerando:

    ... nunca se governa um Estado, nunca se governa um terri-trio, nunca se governa uma estrutura poltica. Quem go-vernado so sempre pessoas, so homens, so indivduos oucoletividades. (FOUCAULT, 2009, p. 164).

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    Resumo: (Uma analtica do poder para as polticas pblicas: Foucault ea contribuio da Anthropology of Public Policy). Este trabalho temcomo proposta avanar em novas possibilidades para a anlise de po-lticas pblicas a partir da apresentao de uma vertente ainda poucoexplorada no contexto brasileiro, denominada Anthropology of PublicPolicy, que tem no pensamento de Michel Foucault um importantereferencial para a interpretao das distintas dimenses que emer-gem da prtica das polticas pblicas. De modo complementar, serproposta uma reviso do projeto metodolgico de Foucault acerca dequestes que nos interessam mais diretamente no mbito do presentetexto, por exemplo, os debates sobre poder, Estado e governo. Estacontextualizao gura como um esforo necessrio para o objetivo

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    de contextualizar a proposta terica da Anthropology of Public Policy,que ser debatida em seguida, de modo a problematizar as principaiscategorias de anlises e as ideias que estruturam essa experincia re-cente de estudo antropolgico das polticas pblicas. Por m, serotecidos alguns breves comentrios nais acerca das possibilidades edas potencialidades analticas da abordagem apresentada para a pro-duo acadmica no que tange s polticas pblicas, em especial nocontexto brasileiro.Palavras-chave: polticas pblicas, Foucault, poder.Abstract: (An analysis of the role of power in public policies: Foucault andthe contribution of Anthropology of Public Policy). This paper aims to ad-vance into new possibilities for the analysis of public policies based

    on the introduction of an underexplored approach in the Braziliancontext, called Anthropology of Public Policy, which has the thoughtof Michel Foucault as an important reference point for the interpre-tation of the dierent dimensions that emerge from the practice ofpublic policies. Complementarily, the article presents a review of themethodological project of Foucault about issues that concern us mostdirectly within this text, for example, the debates about power, theState and government. This brief review is important for the purpose

    of contextualizing the theoretical proposal of Anthropology of PublicPolicy, which is discussed next. Finally, the author seeks to drawout some brief comments about the possibilities and potential of theanalytical approach presented for academic studies in the sphere ofpublic policy, particularly in the Brazilian context.Keywords: Public policy, Foucault, Power.

    Recebido em novembro de 2014.Aceito em dezembro de 2014.