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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO UMA ESCRITA EM BUSCA DE REDENÇÃO Nikos Kazantzákis e a espiritualidade da luta e da liberdade em Ascese Os Salvadores de Deus Por José Renato dos Santos São Bernardo do Campo Fevereiro de 2014

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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO

FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

UMA ESCRITA EM BUSCA DE REDENÇÃO

Nikos Kazantzákis e a espiritualidade da luta e da liberdade em Ascese Os Salvadores de Deus

Por

José Renato dos Santos

São Bernardo do Campo

Fevereiro de 2014

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JOSÉ RENATO DOS SANTOS

UMA ESCRITA EM BUSCA DE REDENÇÃO

Nikos Kazantzákis e a espiritualidade da luta e da liberdade

em Ascese Os Salvadores de Deus

Dissertação apresentada à banca examinadora em cumprimento às exigências do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo, para obtenção do grau de Mestre, sob orientação do professor Dr. Claudio de Oliveira Ribeiro.

São Bernardo do Campo

Fevereiro de 2014

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A dissertação de mestrado sob o título “Uma escrita em busca de redenção. Nikos

Kazantzákis e a espiritualidade da luta e da liberdade em Ascese Os Salvadores de

Deus”, elaborada por José Renato dos Santos, foi apresentada e aprovada em 20 de

fevereiro de 2014, perante banca examinadora composta por: Prof. Dr. Claudio de

Oliveira Ribeiro (Presidente/UMESP), Prof. Dr. Rui de Souza Josgrilberg

(Titular/UMESP) e Prof. Dr. Luiz Felipe Pondé (Titular/PUC-SP).

____________________________________________

Prof. Dr. Claudio de Oliveira Ribeiro

Orientador e Presidente da Banca Examinadora

___________________________________________

Prof. Dr. Helmut Renders

Coordenador do Programa de Pós-Graduação

Programa: Pós-Graduação em Ciências da Religião

Área de Concentração: Linguagens da Religião

Linha de Pesquisa: Teologias das Religiões e Cultura

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Três espécies de almas, três orações:

1) Sou um arco em Tuas mãos, Senhor. Estenda-me para que não apodreça.

2) Não me estenda demais, Senhor. Quebrarei.

3) Estenda-me Senhor, e quem se importa se eu quebrar!

(KAZANTZÁKIS, Testamento para El Greco)

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Agradecimentos

Michele – pelo apoio, carinho e companheirismo constantes;

CAPES – por ter me concedido bolsa integral e possibilitado, assim, que a presente

pesquisa fosse realizada;

Ao professor Claudio de Oliveira Ribeiro – pelo comprometimento atencioso e sempre

tão amigável com a orientação;

À Carolina Bernardes – pesquisadora e incentivadora dos estudos de Kazantzákis no

Brasil;

Aos professores Etienne Alfred Higuet e Rui de Souza Josgrilberg – que estiveram

presentes em minha qualificação e deram valiosas sugestões;

Ao professor Marcelo Furlin e ao grupo de pesquisa Relegere – que proporcionam

encontros e discussões tão agradáveis sobre literatura;

Às amigas Ivna e Vera – companheiras de descobertas na relação entre Religião e

Literatura;

Aos demais professores, bem como à Coordenação e à Regiane do Programa de Pós-

Graduação em Ciências da Religião da UMESP – pela seriedade e competência.

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SANTOS, José Renato. Uma escrita em busca de redenção. Nikos Kazantzákis e a

espiritualidade da luta e da liberdade em Ascese-Os Salvadores de Deus. São Bernardo

do Campo: UMESP, 2014. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião), 141f.

Resumo

O escritor grego Nikos Kazantzákis (1883-1957) carrega as marcas de poeta e de

pensador, e cuja obra é mais que expressão literária: revela sua busca por redenção.

Inserido nesta perspectiva está o livro Ascese-Os Salvadores de Deus – obra

fundamental para compreender o pensamento do autor e que descreve o esforço que o

ser humano deve empreender para adquirir uma nova concepção de vida. A presente

pesquisa pretende investigar os elementos constitutivos desse livro e analisar sua

profunda espiritualidade. Ao longo da obra termos como Deus, liberdade e luta se

interpenetram e se confundem, formam um complexo conceitual e são constantemente

reinterpretados. Complexidade é a sua marca: composta numa forma poética, nela

interage os discursos literário, filosófico e religioso, constituindo, assim, uma tentativa

de conciliação entre diversos pontos de vista. Dentre as muitas influências é possível

vislumbrar indícios das filosofias de Nietzsche e de Bergson. Sua trajetória é uma

ascese da afirmação da vida e do empenho por reelaborar incessantemente um novo

rosto para Deus. Na perspectiva de Kazantzákis, Deus é sentido a partir de uma

espiritualidade da luta e da liberdade. Uma luta permanente contra a imobilidade e em

direção à espiritualização da vida: o desafio de “transubstanciar a matéria em espírito”.

É o sentido da criação/liberdade no qual o ser humano deve lutar para salvar Deus.

Palavras chave: Kazantzákis, Redenção, Espiritualidade, Luta, Liberdade, Deus.

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SANTOS, José Renato. The written in search of redemption. Nikos Kazantzakis and

spirituality of struggle and freedom in Ascese-Os Salvadores de Deus. São Bernardo do

Campo: UMESP, 2014.

Abstract

The Greek writer Nikos Kazantzakis (1883-1957) carries the marks of a poet and

thinker, and whose work is more than literary expression, reveals his search for

redemption. Inserted in this perspective is the book Ascese-Os Salvadores de Deus –

this work is key to understanding the author's thought and describes the effort that the

human being must take to acquire a new outlook on life. The present research intends to

investigate the constituent elements of this book and analyze his deep spirituality. Along

of this work terms as God, freedom and struggle be interpenetrating and be confused,

make a complex conceptual and are constantly reinterpreted. Complexity is your mark:

composed in a poetic form, it interacts with the literary, philosophical and religious

discourses, thus constituting an attempt to reconcile different points of view. Among the

many influences can discern evidence of the philosophies of Nietzsche and Bergson.

His journey is an ascent of the affirmation of life and commitment to continually

redesign a new face to God. At the point of view by Nikos Kazantzakis God is feeling

from now of the spiritually of freedom and struggle. A permanent struggle against

immobility in direction the spiritualization of life: the challenge of “Transubstantiate the

matter in spirit”. This is the sense of creation/freedom in which being human must

struggle to save God.

Keywords: Kazantzakis, Redemption, Spirituality, Struggle, Freedom, God.

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Sumário

Introdução .......................................................................................................................10

Capítulo 1 – Vida e obra de Kazantzákis: a expressão de um “Grito”............................14

1.1 Uma vida em constante movimento: viagens e criação literária incessante..............15

1.2 Deus, luta e liberdade: o eixo temático das obras de Kazantzákis............................24

1.2.1 Nas obras anteriores a Ascese.................................................................................24

1.2.2 Na Odisseia – ampliação e transposição épica de Ascese......................................28

1.2.3 Nos romances tardios e no “relatório final” (Testamento para El Greco).............32

1.3 Considerações gerais sobre o pensamento filosófico e religioso de Kazantzákis.....39

Capítulo 2 – Ascese: Os Salvadores de Deus: trajetória de uma escrita em busca de

redenção...........................................................................................................................50

2.1 Os antecedentes e as motivações da composição de Ascese.....................................51

2.1.1 Um credo filosófico-religioso e político – o “metacomunismo”............................55

2.1.2 A revisão de 1928...................................................................................................61

2.2 Resumo das seções de Ascese....................................................................................64

2.3 Apontamentos para uma caracterização literária de Ascese......................................71

2.3.1 A junção literário-filosófica em Zaratustra: um modelo para Ascese....................72

2.3.2 A circularidade entre prosa e poesia e a questão dos personagens em Ascese.......75

Capítulo 3 – A espiritualidade da luta e da liberdade em Ascese....................................84

3.1 Ascese: exercícios espirituais para a afirmação da vida............................................85

3.1.1 Sobre os sentidos e as finalidades da áskêsis (ascese)............................................85

3.1.2 O amor fati nietzschiano.........................................................................................88

3.1.3 A ascese kazantzakiana: amor fati, amor à vida.....................................................90

3.2 A face imanente e evolucionária de Deus.................................................................94

3.2.1 Élan vital e união mística com a criação em Bergson............................................95

3.2.2 Uma figuração místico-poética do élan vital bergsoniano em Ascese.................100

3.3 O Silêncio final da Ascese: lugar de um novo começo............................................106

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3.3.1 O silêncio kazantzakiano e o Nirvana..................................................................107

3.3.2 Uma abordagem a partir da mística cristã............................................................110

3.3.2.1 Bebendo nas fontes da tradição apofática..........................................................111

3.3.2.2 O comentário de Kazantzákis acerca do “Sequer este Um Existe”...................117

3.4 Salvatores Dei: uma espiritualidade da luta e da liberdade.....................................119

Considerações Finais.....................................................................................................128

Bibliografia ...................................................................................................................131

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Introdução

Nikos Kazantzákis (1883-1957) foi um homem de letras: romancista, poeta,

dramaturgo, jornalista, advogado, tradutor. Uma personalidade cosmopolita, conhecedor

de outras culturas. Viajante incansável. Percorreu extensamente a Europa, a Ásia e o

Extremo Oriente. Sua vasta obra expressa uma concepção de mundo terminantemente

pessoal e inteiramente livre das ataduras do academicismo. Um asceta moderno, de

grande inquietude intelectual, peregrino de insaciável curiosidade e ávido de

experiências. Um homem que se dedicou, e não somente por meio da criação literária, a

fazer valer a atitude do ser humano frente a si mesmo e à sociedade, imerso em todos os

acontecimentos essenciais de sua época. Em suma, Kazantzákis não foi apenas “um dos

maiores escritores do século XX, mas um dos maiores espíritos do seu tempo”

(BUENO, 2007, p. 1).

Enquanto no Brasil ainda nos deparamos com a falta de informações a respeito

de Kazantzákis e a ausência quase absoluta de estudos sobre sua obra, em outros países,

como Chile e Estados Unidos, por exemplo, o escritor vem sendo consideravelmente

pesquisado. Mas, de um modo geral, a impressão que temos é a de que se trata de um

autor a ser redescoberto neste início de século1. Diante disso, o juízo feito pelo escritor

inglês Colin Wilson, no seu livro de 1962, The Strength to Dream, pode trazer ainda

algum significado: O nome de Kazantzákis permanece quase totalmente desconhecido. É um caso curioso, talvez devido ao fato de que escrevesse em grego e que os leitores modernos não esperam descobrir um escritor grego importante. Até seu nome tem uma consonância desalentadora. Se tivesse escrito em russo e se chamasse Kazantzovski, sem dúvida alguma suas obras seriam universalmente conhecidas e admiradas, (...). Há uma espécie de tragédia nisso, pois se trata de um escritor que poderia situar-se junto aos gigantes do século XIX, Tolstói, Dostoiévski, Nietzsche (com o qual tem afinidades) ... (apud KAZANTZAKI2, 1974, pp. 376-377).

1 Nesse sentido foi realizado em março de 2007, na New York University, o Simpósio intitulado: “Why Should We Read Kazantzakis in the Twenty-first Century?” (Por que devemos ler Kazantzákis no século XXI?), em homenagem ao cinquentenário da morte de Kazantzákis. 2 No decorrer do nosso texto o nome do escritor, quando citado, aparecerá com pequenas diferenças na grafia – Kazantzákis; Kazantzaki; e Kazantzakis –, ora com acento, ora sem acento, ora com “is” no final, ora só com “i” no final. Isso ocorre porque reproduziremos o nome de acordo com as variações na forma em que foi transcrita pelos tradutores das obras. No entanto, oficialmente, utilizaremos o nome na forma “Kazantzákis”, com o acento agudo, observando a regra da língua portuguesa de que todas as paroxítonas terminadas em “i” ou “is” recebem o acento.

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O escritor inglês não está se referindo somente aos principais romances

kazantzakianos que levaram, por exemplo, Thomas Mann a comparar o escritor grego

aos grandes prosistas russos. De fato, a influência de Dostoiévski e Tolstói é perceptível

no escritor grego. E a de Nietzsche é muito clara. Kazantzákis nunca escondeu a

veneração que sentia pelo filósofo alemão e o apontou reiteradas vezes como uma das

personalidades que mais marcou o seu espírito. Como poeta e criador que era, talvez a

única regra que seguiu tenha sido a máxima de Zaratustra: “Escreve com sangue e

descobrirás que o sangue é espírito” (NIETZSCHE, s/d, p. 43). Assim, com tal

disposição, Kazantzákis criou sua obra. Dentro dela ocupa um lugar especial o opúsculo

Ascese: Os Salvadores de Deus. E talvez sejam as características desta obra que

influenciaram com maior intensidade no juízo de Wilson.

De difícil classificação, a obra Ascese traz em si as marcas do literário, do

filosófico e do religioso. Pode-se dizer que em sua breve extensão ela condensa um

excelente resumo do pensamento do autor e da sua atitude diante da vida. Este livro, em

seu esforço por “transubstanciar a matéria em espírito”, por dar forma ao que não a tem

– por tornar sensível o impalpável – parece desafiar o impossível. Suas imagens estalam

fulgurantes, incendiando num instante todo o mundo que nos cerca com seus rios, suas

árvores, seus animais, e fazendo, em seguida, tudo desaparecer, deixando apenas uma

sensação de angústia, de desconhecido, de perigo e de trevas. No entanto, o poeta em

Kazantzákis socorre ao místico: a seus êxtases, a seus temores, a suas iluminações ele

deu contorno e corpo. As imagens impressionantes de Ascese provocam um

surpreendente sentimento de presença. Nesta obra, a proximidade com o sagrado

também se traduz na imagem de um Deus todo coberto de feridas, mas que, ainda

assim, luta conosco.

Nos últimos anos estive envolvido com a obra Ascese, assim como com as

demais contribuições de Kazantzákis, durante os quais elaborei uma pesquisa e cujo

resultado é o que agora apresento. De um modo geral, o presente trabalho se insere, por

assim dizer, num campo de estudos que está em pleno desenvolvimento aqui no Brasil e

que visa as condições de relacionar religião e literatura, servindo-se de instrumentais

teóricos diversos provenientes, por exemplo, da crítica literária, da filosofia e da

teologia. Trata-se, portanto, de uma área de pesquisa que não se restringe a um único

método de leitura e possui uma perspectiva mais livre, sem, contudo, abrir mão do rigor

metodológico: trilha o caminho da interdisciplinaridade. Com efeito, na composição do

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presente trabalho faremos desde abordagens aproximativas a partir de elementos

biográficos, passando pelo aporte de uma análise literária da obra Ascese e indo até a

investigação filosófico-religiosa da mesma para compreender sua espiritualidade e

dimensão mística.

O trabalho se divide da seguinte forma: no primeiro capítulo faremos uma

abordagem da vida, da obra e do pensamento de Nikos Kazantzákis, uma vez que o

autor em questão é pouco conhecido no Brasil, e por isso parece-nos que esta primeira

aproximação se faz necessária. A vida e a época de Kazantzákis foram bastante

movimentadas e influenciaram diretamente na sua criação literária. Neste capítulo,

portanto, mostraremos que os temas fundamentais que percorrem toda a obra do escritor

grego giram em torno de Deus e da liberdade, e que a densidade filosófica com a qual

ele os pensará se revelará profundamente atual.

Já no segundo capítulo, buscaremos maior familiaridade com a obra Ascese: Os

Salvadores de Deus. Será percorrida a trajetória da sua composição, insinuada por nós

como uma escrita em busca de redenção. Esta etapa do estudo se dará, primeiramente,

por meio da análise do contexto, das possíveis motivações e influências que cercam a

obra. Depois, apresentaremos um resumo descritivo do texto, e, por fim, partindo do

exemplo do Zaratustra de Nietzsche, mais especificamente da relação entre literatura e

filosofia, e também sob a perspectiva da prosa poética, faremos alguns apontamentos

com a intenção de apresentar a característica literária de Ascese.

No terceiro capítulo, examinaremos a espiritualidade sustentada pela obra. De

acordo com nossa hipótese tal espiritualidade se apoia na busca de um Deus que é a

expressão da luta e da liberdade, ou, da liberdade em luta. Neste ponto, portanto,

destacam-se alguns aspectos da dimensão religiosa de Ascese. Assim, o significado da

“ascese” kazantzakiana se constituirá numa perspectiva de afirmação da vida e cujo

embasamento para tal leitura nós o tomaremos do conceito de amor fati em Nietzsche.

Por sua vez, a imagem de Deus enquanto um contínuo fluir ascendente será interpretada

a partir do élan vital de Bergson. A seção final de Ascese, intitulada “O Silêncio”,

poderá ser vista numa breve relação com o budismo, mas, principalmente, a

interpretaremos do ponto de vista da mística cristã em sua vertente apofática. Enfim, em

todos esses aspectos a luta e a liberdade aparecerão como motivos que atravessam e

alimentam a espiritualidade proposta por Kazantzákis.

Portanto, o presente trabalho pode ser compreendido como uma somatória de

elementos que recolhe desde apontamentos biográficos de Kazantzákis até análises

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interpretativas de Ascese. Em sua totalidade, este trabalho não pretende ser mais do que

a indicação e a apresentação de um escritor que, com sua obra, pode trazer uma

significativa contribuição para os estudos da interface entre religião e literatura.

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Capítulo 1 – Vida e Obra de Kazantzákis: a expressão de um

“Grito” Toda minha vida é um grito

e toda minha obra a interpretação deste grito

Nikos Kazantzákis

Reconhecido como o maior romancista da Grécia, Kazantzákis aparece entre os

grandes escritores do século XX. Desde os anos de 1950 sua obra conheceu uma rápida

e ampla difusão, chegando a ser traduzida para dezenas de idiomas, tornando-se o

escritor grego contemporâneo mais traduzido. Seus romances, em especial O Cristo

Recrucificado, Vida e Proezas de Aléxis Zorbás e A Última Tentação de Cristo,

contribuíram e muito para esta difusão3. Mas seus romances são apenas parte de uma

produção muito extensa e que praticamente abrange todos os gêneros literários. A obra

de Kazantzákis inclui mais de uma dezena de peças teatrais, além de livros (relatos) de

viagens, da sua autobiografia romanceada (Testamento para El Greco), da série de 21

“Cantos” ou “Elegias” em terza rima dedicada àqueles que o escritor considerava guias

de sua alma, e de uma epopeia moderna, a Odisseia. Compôs também opúsculos e

ensaios filosóficos, tais como Ascese, Simpósio e a tese sobre Nietzsche na Filosofia do

Direito e do Estado. Ele escreveu ainda livros para crianças, roteiros para cinema e foi

tradutor de grandes obras, vertendo para o grego moderno a Ilíada e a Odisseia, A

Divina Comédia, os Diálogos de Platão, obras de Nietzsche, Bergson, William James,

Goethe, Shakespeare, e um grande número de poetas espanhóis e russos.

Trata-se, certamente, de uma obra grandiosa e de inestimável valor para a

literatura mundial. Entretanto, cabe aqui dizer: Kazantzákis é pouquíssimo conhecido

em território brasileiro. Quando se pergunta às pessoas, a resposta na maioria das vezes

é negativa. Diante deste quadro, que se completa com a quase absoluta escassez de

estudos sobre este escritor no Brasil, creio que se faz apropriado e relevante traçar um

breve seguimento da vida e da obra deste autor para que possamos conhecê-lo um pouco

3 Estas três obras também receberam adaptações para o cinema. A este respeito faremos algumas observações no tópico 1.2.3 do primeiro capítulo.

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melhor4. Aliás, no caso de Kazantzákis, sua vida não se separa de sua obra, pois há uma

similitude quase absoluta entre o homem e o escritor. Com efeito, neste primeiro

capítulo nossa intenção será: 1) ressaltar alguns fatos e algumas datas importantes com

o objetivo de contextualizar a vida e a obra de Kazantzákis; 2) destacar de dentro da sua

produção literária algumas obras com o objetivo de sinalizar o eixo de suas

preocupações temáticas; e 3) evidenciar o alcance do seu pensamento filosófico e

religioso. Dessa forma, a partir de um contato prévio com o autor, sua obra e seu

pensamento, seremos conduzidos, nos capítulos subsequentes, a um estudo mais

detalhado e voltado para o objeto de nosso estudo, a obra Ascese Os Salvadores de

Deus.

1.1 Uma vida em constante movimento: viagens e criação literária

incessante

Nikos Kazantzákis nasceu em Candia, a atual Heráklion, capital da ilha grega de

Creta, em fevereiro de 1883, ainda durante o domínio turco que se estendia desde 1669.

Foi o primeiro dos quatro filhos do casal Maria e Michelis Kazantzákis. Seu pai, o

4 Com relação a este aspecto da falta de conhecimento e de estudos no Brasil sobre Kazantzákis é necessário fazer algumas menções. Nesse sentido, ressaltamos o nome de José Paulo Paes, respeitado poeta, crítico literário, tradutor, e, além de apresentar dois ensaios sobre Kazantzákis em Poesia Moderna da Grécia e em Gregos e Baianos, é responsável pela tradução direta do grego de Ascese Os Salvadores de Deus e de uma valiosa introdução a esta obra, publicada em 1997 pela Editora Ática (edição utilizada por nós como referência neste trabalho). No âmbito da pesquisa acadêmica destaca-se o nome de Lucília Maria Soares Brandão que desenvolveu a pesquisa, para obtenção do título de mestre, A função do épico na obra de Kazantzákis (1996, UFRJ), e para a obtenção do título de doutor, De Homero a Kazantzákis: uma viagem através da epopéia grega (2001, UFRJ). Com relação a estudos centrados em Ascese, aparece o nome de Carolina Dônega Bernardes com a dissertação de mestrado Multidiscursividade em Ascese Os Salvadores de Deus, de Nikos Kazantzákis (2004, UNESP-Araraquara). Esta mesma pesquisadora defendeu em 2010 sua tese doutoral intitulada A Odisseia de Nikos Kazantzákis: epopeia moderna do heroísmo trágico (UNESP-São José do Rio Preto) e publicada em 2012 pela editora Cassará (Primeira e única publicação, até o momento, de um estudo de fôlego sobre Kazantzákis no Brasil). No que se refere à publicação das obras de Kazantzákis em nosso país é preciso dizer que (além de Ascese) apenas os seus grandes romances chegaram até nós. Merecem destaque os que foram reeditados nos últimos anos aqui no Brasil. Um deles, no ano de 2002, foi o romance biográfico de São Francisco de Assis, O Pobre de Deus (Editora Arx), que recebeu nova tradução, diretamente do grego, de Ísis Borges Belchior da Fonseca. Em 2011, foi a vez de seu mais aclamado e talvez mais conhecido romance, Vida e Proezas de Aléxis Zorbás (Editora Grua), também com tradução direta do grego, por Marisa Ribeiro Donatiello e Silvia Ricardino. E agora, em 2013, com mais de meio século de atraso foi publicada pela primeira vez O Capitão Mihális: Liberdade ou Morte (Editora Grua), tradução direta de Silvia Ricardino. Também em 2013, graças a um site de financiamento coletivo (Catarse), a editora Cassará arrecadou fundos para custear uma tradução mais fiel e uma nova edição da obra Testamento para El Greco, cujo lançamento está previsto para junho de 2014. Por fim, outra importante menção a ser feita refere-se à existência da Sociedade Internacional dos Amigos de Nikos Kazantzákis (SIANK), criada em Genebra no ano de 1988, e presidida por George Stassinakis, com subdivisões em diversos países, entre eles o Brasil. A filial nacional situa-se em São Paulo, com a ocorrência de eventos no Instituto de Estudos Gregos Areté, sob a presidência atual de Tereza Jardini, e tem como objetivo a divulgação da obra do escritor grego neste país.

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“Capitão Michelis”, como gostava de ser chamado, era um homem calado e com olhar

severo, temido e respeitado pelos vizinhos no vilarejo de Heráklion. De acordo com

Nikos, apenas uma vez na vida lhe dirigiu palavras de aprovação. As palavras foram:

“Você não desgraçou Creta [...]” (KAZANTZAKIS, 1975, p. 27). Tal “elogio” ocorreu

por ocasião de uma premiação concedida ao pequeno Nikos na escola comunal, no

período em que a família havia se transferido para a ilha de Naxos. A mãe, Maria,

diferente do pai, era uma pessoa amável e, nas ocasiões em que seu marido se

ausentava, abria-se em doces sorrisos para os filhos. Ensinava-os a temer um Deus

responsável por tudo o que era bom para os homens, mas que também os punia devido

aos seus pecados.

Diante da diferença de temperamento do caráter de seus pais é possível imaginar

as dificuldades e os conflitos que atuaram na formação de Kazantzákis, algo, aliás, que

anos mais tarde, em Testamento para El Greco, ele expressará da seguinte maneira:

Intimamente me olho e estremeço. Do lado paterno meus ancestrais eram piratas sanguinários no mar, chefes guerreiros em terra. Não temiam nem a Deus nem aos homens. Do lado materno, eram amáveis, insípidos camponeses que se debruçavam confiantes sobre a terra de sol a sol, semeavam, esperando com fé a chuva e o sol, ceifavam. E na tarde do dia sentavam-se no banco de pedra em frente às suas casas, de braços cruzados, entregando suas esperanças a Deus. Fogo e terra. Como poderia eu harmonizar estes dois ancestrais combativos no meu interior? (KAZANTZAKIS, 1975, p. 22).

Cursava ainda os primeiros anos do ensino primário, em 1889, quando irrompe

uma das inúmeras revoltas dos cretenses contra o domínio turco. Durante alguns meses

a família Kazantzákis deixou Creta e se refugiou em Pireu, um município vizinho a

Atenas. Entretanto, a experiência de testemunhar os constantes atos heroicos da luta de

seu povo para libertar a ilha da ocupação turca deve ter deixado marcas em Kazantzákis,

e, possivelmente, foi o que desencadeou mais tarde a sua obsessão com o problema da

luta, da liberdade e do culto ao herói.

Alguns anos depois, em 1897, com o início da última grande rebelião cretense, a

família novamente se muda, agora para a ilha de Naxos, onde Nikos completa seus

estudos primários em um colégio de padres franceses. Lá, aprendeu a falar francês e

italiano, familiarizou-se com a literatura europeia e, assim, entrou em contato com a

cultura ocidental. Esta última revolução durou até 1899, quando, a partir daí, Creta

finalmente estava livre do domínio turco e a família pôde retornar a Heráklion. Por essa

época, Nikos Kazantzákis já era um adolescente e parecia encontrar nos estudos e na

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literatura uma espécie de refúgio não só para a brutalidade da sociedade que o cercava,

mas também para entender duas novas teorias apresentadas por seu professor de física e

que haviam lhe abalado profundamente. Em Carta a Greco5 ele as descreve assim:

O primeiro segredo, atroz, era este: a Terra não é, como julgávamos, o centro do Universo; [...] o nosso planeta não passa de um astrozinho insignificante, atirado para um canto da galáxia, e gira servilmente em redor do Sol. A coroa real caíra da cabeça da mãe Terra. [...]. Esta foi a primeira ferida; e a outra: que o homem não é a criatura querida, privilegiada, de Deus, que Deus não lhe insuflou, não lhe deu uma alma imortal: que ele é, como os outros, um anel da cadeia infinita dos animais, netos, bisnetos do macaco. E que se rasparmos um pouco a pele, se cavarmos na nossa alma, encontraremos por baixo o nosso avô, o macaco (KAZANTZAKI, s/d, p. 107).

Diante desses dois “segredos terríveis” revelados pelo professor de física, o

escritor confessa: “Nunca mais, desde então, as feridas que eles abriram em mim

cicatrizaram por completo” (KAZANTZAKI, s/d, p. 107).

Ao concluir os estudos secundários, Kazantzákis deixa sua ilha natal para ir

morar em Atenas, no outono de 1902, e lá se inscreve na Faculdade de Direito. Agora

vivia na capital e tinha um maior acesso ao conhecimento e à cultura. Como sempre

seus resultados enquanto estudante eram ótimos, porém, os anos passavam e suas

inquietações permaneciam. São anos de revolta, solidão e desespero. “Meu coração

chora quando recordo aqueles anos que passei como estudante na Universidade de

Atenas. Embora olhasse, nada via” (KAZANTZAKIS, 1975, p. 94). Como consolo para

suas angústias existenciais e inquietudes ideológicas dedica-se à produção literária e, no

mesmo ano em que se diplomou pela Faculdade de Direito, em 1906, escreve suas

primeiras obras: o ensaio A doença do século, assinada com o pseudônimo Karma

Nirvana; o romance em forma de diário O lírio e a serpente, e a obra teatral Amanhece,

ambos com o mesmo pseudônimo. Com esta peça, no ano seguinte, sua vocação

literária já dava, pois, sinal de si, ao ser premiada num concurso de arte dramática, na

Universidade de Atenas.

Em1907, Kazantzákis começou a trabalhar como cronista no jornal Acrópoles de

Atenas. Em suas crônicas usa o pseudônimo Akritas, fazendo alusão ao lendário herói

de um poema épico bizantino6. E em outubro do mesmo ano decide ir para Paris, onde

5 Carta a Greco (edição portuguesa) e Testamento para El Greco (edição brasileira) referem-se à mesma obra de Kazantzákis: Anaforá ston Gréko. Na maioria das vezes citarei a edição brasileira. A edição portuguesa será utilizada por mim quando entender que o texto desta está mais bem colocado. 6 Digenis Akritas é um poema anônimo que remonta ao século X ou XII.

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iria continuar seus estudos de Direito na Sorbonne. Estando lá, também teve a

oportunidade de acompanhar o ciclo de palestras de Henri Bergson no Collège de

France. Sobre a filosofia de Bergson, reconhecidamente uma influência marcante sobre

suas concepções de vida, Kazantzákis escreverá alguns anos depois um longo ensaio.

Outra forte influência veio dos dias e noites que passara encerrado na Biblioteca Sainte-

Geneviève: um encontro com o livro Assim Falou Zaratustra, de Nietzsche. Sobre esse

encontro ele fará a seguinte declaração: “Este foi um dos momentos decisivos da minha

vida. [...]. Esperando por mim estava o Anticristo, aquele guerreiro fogoso inteiramente

coberto de sangue” (KAZANTZAKIS, 1975, p. 221). Em 1909, Kazantzákis conclui

sua tese doutoral que versou justamente sobre a filosofia do Direito e do Estado em

Nietzsche. Neste mesmo ano ele viaja brevemente pela Itália e regressa a Creta.

Publica, então, sua tese sobre Nietzsche; o ensaio A ciência está falida? e a peça

dramática Comédia. Tragédia em um ato. Neste drama são discutidas questões

profundas em torno de inquietudes existenciais.

A partir de 1910 também passou a se dedicar profissionalmente ao trabalho de

tradutor, vertendo para o grego, além de Bergson e Nietzsche, autores como Willian

James, Goethe e Darwin. Mais tarde, Kazantzákis “voltar-se-ia para um tipo de tradução

de muito maior dificuldade técnica. [...] à tradução de poesia, campo em que enriqueceu

o demótico com magistrais versões não apenas dA Divina Comédia e do Fausto como

igualmente da Ilíada e da Odisseia” (PAES, 1985, p. 152).7

Em 1911, Kazantzákis casou-se com Galatea Alexiou, uma jovem escritora de

Creta que ele havia conhecido um ano antes. Juntos passaram a escrever livros infantis,

bem como compêndios escolares. A essa altura de sua vida, Nikos já estava

profundamente engajado na campanha para a adoção do demótico como língua oficial

do país, em substituição ao katharévousa, um idioma purista artificialmente criado por

eruditos.8 A língua popular foi objeto de admiração e de cultivo especial por

Kazantzákis desde seus anos de juventude. O escritor colaborou na revista Numás,

7 Paes ainda acrescenta: “... a quem possa estranhar essas traduções do grego antigo para o grego moderno, que embora este conserve o vocabulário essencial daquele, o grande número de empréstimos estrangeiros e a simplificação de sua estrutura gramatical afastaram-no a tal ponto da língua-tronco que os gregos de hoje não entendem o grego de outrora, a menos que o tenham estudado quase como se estuda uma língua estrangeira”. 8 O demótico era a língua de uso diário, e o katharévousa era uma forma arcaica (mais perto do ático) utilizada para documentos oficiais, literatura, escritos formais e outros fins. Somente em 1976 o katharévousa foi substituído pelo demótico como a língua oficial do Estado grego. Durante a sua longa história o idioma grego tinha assimilado alguns vocábulos de várias línguas como o latim, italiano e turco, uma grande parte dos quais eram proscritos pelo "purificado" katharévousa.

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órgão criado em 1903 pelos demoticistas militantes, e participou do Círculo de

Instrução de Atenas na longa e dura batalha para vencer os prejuízos e preconceitos

linguísticos, conseguindo introduzir, em 1919, o estudo da língua popular nas escolas.

Nos anos de 1912 e 1913 ocorrem as Guerras Balcânicas9, conflito bélico no

qual Kazantzákis se alistou como voluntário, mas do qual não chegou a participar. Entre

os anos de 1914 e 1915, na companhia de um dos maiores poetas gregos, Angelos

Sikelianós, viajou extensamente pela Grécia, além de ter empreendido uma jornada de

quarenta dias, uma espécie de retiro espiritual, pelos monastérios do Monte Athos e da

ilha de Sifnos. Ambos possuíam profundas inquietudes existenciais e religiosas, e

encontravam-se dispostos a fundar uma nova religião. “Loucos de felicidade, viajamos

de um monastério para outro, conversando a voz pequena como os antigos peregrinos,

sobre Deus, o destino do homem e de nosso dever em particular – os três temas

persistentes de nossa inteira viagem” (KAZANTZAKIS, 1975, p. 140). A peregrinação

ganha, então, nas palavras de Kazantzákis, a seguinte motivação: “Temos que

reorganizar o ascetismo cristão – dissemos, fazendo disto um juramento. – Temos que

soprar nele o sopro da criatividade. Temos. Esta é a razão de nossa vinda à Montanha

Sagrada” (KAZANTZAKIS, 1975, p. 142). Mediante suas anotações em diários e

correspondências sabe-se que nestes anos ele leu intensamente: Whitman, Claudel,

Tagore, Bergson, Tolstói. Por essa época nascem as primeiras intuições daquela que é

considerada a sua maior obra, a Odisseia, e também a consciência acerca da importância

da libertação e do caminho ascensional, temáticas recorrentes no desenvolvimento de

toda sua produção literária.

A partir daí, o período que se estende até 1920 é de intensa atividade política e

humanitária. Em 1919, o então Primeiro Ministro da Grécia, Venizelos, nomeou

Kazantzákis como diretor geral do Ministério da Assistência Social, com a missão de

repatriar 150 000 gregos que estavam sendo perseguidos no Cáucaso, pelos

bolcheviques. Aliás, conforme nos recorda José Paulo Paes, “O drama desses

9 Aqui se trata da Primeira Guerra dos Balcãs. Um conflito militar que durou de outubro de 1912 a maio de 1913 e colocou a Liga Balcânica (Sérvia, Montenegro, Grécia e Bulgária) contra o Império Otomano. As forças combinadas dos Estados balcânicos conseguiram superar as forças otomanas, numericamente inferiores e em desvantagem estratégica, conseguindo um rápido sucesso. Como resultado da guerra, quase todos os territórios europeus do Império Otomano foram conquistados e divididos entre os aliados, e um Estado independente albanês foi criado, por pressão da Áustria-Hungria e da Itália. Apesar deste sucesso, as nações balcânicas permaneceram insatisfeitas com o resultado da guerra, e as tensões internas que surgiram com a retirada da ameaça otomana, que até então os unira, logo resultou na Segunda Guerra Balcânica.

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deslocados é referido nas cartas que o amigo do narrador, em Zorba, o Grego10, lhe

escreve do sul da Rússia, onde estava lutando pela repatriação de seus concidadãos

perseguidos” (PAES, 1985, p. 153). Vale lembrar também que a inspiração do

personagem protagonista do romance, escrito entre 1941 e 1943, veio de um tal Yióriys

Zorbás, homem simples, mas dotado de um vitalismo a toda prova, que Kazantzákis

conheceu em 1917, por ocasião da exploração frustrada de uma mina de linhita, e que

depois se tornaria seu assistente no trabalho de repatriação dos gregos caucasianos.

Todavia, frustração bem maior veio em 1920, diante dos reveses políticos.

Sobretudo, o assassinato do líder demoticista, Dragoumis, e a derrota de Venizelos nas

urnas desiludiram Kazantzákis a tal ponto que o levaram a renunciar ao Ministério da

Assistência Social e a ir passar um breve período de tempo na França. Em seu retorno

para a Grécia, em 1921, isolou-se em Kifissia e durante o verão daquele ano começou a

trabalhar na tragédia intitulada Cristo. Depois, deixa a Grécia novamente e entre os anos

de 1921 e 1924 vive por um tempo em Viena e Berlim, dedicando-se à escrita.

Em 1922, sua estada em Viena será marcada por uma estranha doença de fundo

emocional, um eczema facial, que o terapeuta freudiano Wilhelm Steckel considerou

como um exemplo típico de somatização histérica, conhecida por “máscara da

sexualidade”, uma espécie de refúgio de pureza que aparece em ascetas e homens

considerados “santos” 11. Kazantzákis estava profundamente envolvido com o estudo

das escrituras budistas e começou a escrever a tragédia Buda, cujo texto, aliás, refez

mais de uma vez. Em setembro do mesmo ano ele se muda para a Alemanha, mais

precisamente para Berlim. Em meio à decadência do pós-guerra, e no final ainda

daquele ano inicia Ascese, um pequeno livro místico-poético em que expressa suas

inquietações religiosas e suas idéias metafísicas. Ele o completará em abril de 1923.

Pouco depois, Kazantzákis percorrerá várias cidades da Alemanha; em Dornburg,

próxima a Jena, ele se hospedará na casa que havia sido de Goethe; depois conhecerá

Naumburg, a cidade onde Nietzsche passou sua infância. No início de 1924,

Kazantzákis viaja pela Itália e escreve reportagens sobre o regime de Mussolini. Realiza

sua primeira peregrinação a Assis, que o impacta. O escritor grego foi um grande

10 Este é, na verdade, o título da adaptação cinematográfica do livro Vida e proezas de Aléxis Zorbás. Diante do sucesso nos cinemas, reedições posteriores do livro passaram a adotar o título do filme. 11 O episódio da moléstia facial está relatado em Testamento para El Greco, p. 246-248. Nesse relato, a explicação do Dr. Steckel para essa estranha doença veio após Kazantzákis ter-lhe confessado sua obsessão pela vida de Buda e seu esforço de distanciamento das mulheres.

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admirador de São Francisco, cuja inspiração lhe fará escrever, anos mais tarde, o livro O

pobre de Deus.

Também em 1924, pouco depois do seu retorno a Grécia, em um passeio pelas

imediações de Atenas, Kazantzákis conheceu Eléni Samiou, a mulher que se tornará sua

futura companheira, sua segunda esposa. Com ela percorrerá sua ilha natal, e já no final

do ano, em Heráklion, começará a composição de sua mais audaciosa obra, a Odisseia,

num exaustivo trabalho de escrever e reescrever que se prolongou por catorze anos. Em

1925, saiu em viagem pelas ilhas do mar Egeu, e foi nessa viagem que ele descobriu

Egina, o lugar onde mais tarde iria morar. Em outubro deste ano partirá para a União

Soviética, como correspondente do diário Eléftheros Logos. Kazantzákis desempenhará

uma intensa atividade cultural escrevendo para periódicos em Moscou e visitando

escolas, bibliotecas, museus, teatros e pinacotecas. Por esta época se oficializará então o

divórcio entre o escritor e sua primeira esposa, e marcará também um vasto período de

viagens e peregrinações.

A fase de andanças por vários países resultou em alguns livros de impressões de

viagens. De fato, esse foi um momento em que Kazantzákis percorreu e descreveu

localidades tão diversas como Palestina, Chipre, Espanha, Itália, China, Japão, Egito,

Rússia. Parte dessas viagens e suas impressões foram mais tarde coligidas no livro Do

Monte Sinai à Ilha de Vênus. Nesta obra a descrição do encontro, em Moscou, com o

escritor romeno Panait Istrati e o também escritor e ativista político russo Máximo

Gorki, deixa entrever, por exemplo, sua simpatia por aquilo que ele chama de “milagre

soviético”, ou seja, “aquela visão do mundo a um só tempo niilista e heroica a que

sempre se manteve fiel e que muito pouco tem a ver com o marxismo”. (PAES, 1985, p.

154). Em outros países, os relatos referem-se à sua tendência para a espiritualidade e ao

seu desejo de conhecer lugares considerados místicos. Assim, no Japão e na China,

acentua-se seu interesse pelas doutrinas religiosas e filosóficas do Oriente,

especialmente pelo budismo. No Sinai, conheceu o mosteiro de Santa Catarina. Na

Espanha, esteve em Ávila de Santa Teresa.

Já pelos anos da década de 1930, Kazantzákis trabalhou em um ritmo intenso,

escrevendo roteiros para cinema12 e poesia, compôs peças para teatro, elaborou

romances em francês, compilou enciclopédias e dicionários, contribuiu em jornais

gregos e russos, além de traduzir grandes obras de literatura. Em 1936 viaja pela terceira

12 Os roteiros cinematográficos escritos por Kazantzákis fazem parte de uma produção desconhecida de sua obra; apesar de seus esforços, nenhum deles (parece que foram sete no total) foi levado ao cinema.

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vez para a Espanha, ocasião em que desempenhou a função de jornalista correspondente

da Guerra Civil, realizando entrevistas com o general Franco e com o filósofo

Unamuno. Desta experiência Kazantzákis também escreverá um livro sobre suas

impressões da Espanha. No final desse ano, sua casa em Egina está concluída, e, ao lado

de Eléni, pela primeira vez fixa residência. Agora só raramente saía de Egina, em

algumas ocasiões para viajar, e, em 1938, para supervisionar a publicação de sua

continuação moderna da Odisseia.

Durante a Segunda Guerra, a ocupação das tropas alemãs e os anos da guerra

civil que a ela se seguiu na Grécia, Kazantzákis ali permaneceu e, a exemplo de milhões

de compatriotas, lutou contra todas as agruras e privações. Nesse período, começou a

escrever o romance Vida e proezas de Aléxis Zorbás e o esboço de O Cristo

Recrucificado. Depois que os alemães se retiraram, ele retorna a Atenas, que estava sob

o domínio do conflito civil, e à vida política, tornando-se líder do partido socialista e

encarregado pelo governo para verificar as atrocidades alemãs em Creta. Ainda em

1945, se candidatou para a eleição de admissão na Academia de Atenas, mas a perdeu

por dois votos. Em novembro do mesmo ano, oficializou sua união de muitos anos com

Eléni Samiou.

No início de 1946, a Sociedade dos Escritores Gregos recomenda Kazantzákis

para o Prêmio Nobel da Literatura. O escritor, no entanto, comunica que só aceitaria a

indicação se fosse em conjunto com o amigo e poeta Angelos Sikelianós (Cf.

KAZANTZAKI, 1974, pp. 357-358). O nome de Kazantzákis seria novamente indicado

poucos anos depois. De fato, muitos personagens de destaque e contemporâneos ao

escritor grego, tais como o teólogo Albert Schweitzer, prêmio Nobel da Paz, juntamente

com o escritor alemão Thomas Mann, por exemplo, empenharam-se para que lhe fosse

conferido o Prêmio. Algo, porém, que acabou não acontecendo13. A este respeito vale a

pena citar o que o poeta francês Alain Bosquet escreveria três dias depois da morte de

Kazantzákis no periódico Combat14:

Uma das figuras mais excelsas e nobres da literatura entrou para sempre na memória dos homens do nosso tempo. Em mais de uma ocasião seu nome foi indicado para o prêmio Nobel. O fato de não haver conseguido é hoje em dia a principal garantia de sua grandeza. Junto com Kafka e Proust, e esse outro

13 Segundo consta, em 1957, Kazantzákis deixou de levar o Prêmio por apenas um voto de diferença para o escritor francês Albert Camus. 14 Combat foi um jornal francês. Sua fundação ocorre em meio a Segunda Guerra Mundial, sendo um diário clandestino editado pela Resistência Francesa e contou com a colaboração, entre outros, de Albert Camus.

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desconhecido Hermann Broch, é um dos maiores escritores do nosso século. (apud STASINAKIS, 1999, p. 237).

E Albert Camus, dois anos após a morte do escritor grego, numa carta enviada a

Eléni Kazantzákis, faria o seguinte comentário:

Sempre senti muita admiração e, se me permite, uma espécie de afeto para a obra de seu marido (...). Não esqueço quando, no dia em que me lamentava por receber uma distinção (Prêmio Nobel) que Kazantzákis merecia cem vezes mais que eu, recebi dele o mais generoso dos telegramas. Com ele desaparecia um dos nossos últimos grandes artistas. Sou dos que lamentam e continuarão sentindo o vazio que nos deixou (apud KAZANTZAKI, 1974, p. 449).

Mas voltemos para 1946, pois, ainda neste ano, Kazantzákis viajaria para a

Inglaterra a convite do Conselho Britânico. E estando lá também foi convidado para

falar na BBC. Em seu discurso, o escritor grego sugere a criação de uma Internacional

do espírito, uma espécie de organização cuja ideia central seria estimular os intelectuais

do mundo inteiro a participarem de uma tentativa de ressaltar a prioridade dos valores

artísticos e espirituais na condução da melhoria do mundo. Como já era de se esperar, o

retorno de tal convocação foi fraquíssimo. Depois, Nikos vai para Paris, onde é

nomeado assessor literário da UNESCO. Algumas de suas obras começam a ser

traduzidas, e, com isso, vai ganhando cada vez mais notoriedade internacional.

A partir de 1951 sua saúde entrou em declínio constante, mas, ainda assim, sua

produção literária era intensa e criativa. Nesse período escreve A última tentação de

Cristo, romance em que a figura de Cristo representa a luta entre a carne e o espírito,

luta que o escritor cretense deseja superar. Também por esse período é internado em um

hospital na Holanda, onde aproveitou para estudar a vida de São Francisco de Assis, que

resultaria no ano de 1953, em mais um livro: O pobre de Deus. Neste ano, após ter

recebido um prêmio na Alemanha pela peça Sodoma e Gomorra, entra em um hospital

para fazer tratamento, onde é diagnosticado com leucemia linfática. Contudo, em 1955,

encontrou forças para realizar uma nova série de viagens, fundamentalmente para Itália

e Suíça, onde se encontra com Albert Schweitzer, a quem dedicou o livro O pobre de

Deus. Trabalhou ainda com Kimon Friar na tradução da Odisseia para o inglês, e

começou a redigir o romance autobiográfico Testamento para El Greco.

Antes de falecer, fato que se consumaria em 26 de outubro de 1957, recebeu o

Prêmio da Paz em Viena. Pôde ver ainda a publicação de A última tentação de Cristo na

Grécia e participar em Cannes da festa de estreia do filme francês Aquele que deve

morrer, dirigido por Jules Dassin, baseado em seu romance O Cristo Recrucificado.

Junto à esposa também começou uma nova viajem para a China e Japão. Esta seria,

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pois, sua última viajem. Em Cantão, na China, deram-lhe a vacina contra cólera e

varíola que acabou provocando uma reação gangrenosa em seu braço. É levado para

tratamento no Hospital Nacional de Copenhague. Entretanto, seu quadro se agrava e ele

é transferido para uma clínica em Friburgo, na Alemanha, onde contrai gripe asiática e

em poucos dias viria a falecer. Tinha 74 anos.

Da Alemanha “seu corpo foi transportado a Atenas, onde a Igreja Ortodoxa lhe

recusou enterro cristão. Isso a pretexto de tratar-se de um inimigo da fé” (PAES, 1997,

p.18). Porém, o corpo é levado para Creta e velado na igreja Metropolitana de Heráklion

que o acolheu com honras de herói. Em sua lápide, que ainda hoje é destino de visita de

muitos que vão a Creta, encontra-se gravado o auto epitáfio que bem lhe resume a altiva

filosofia de vida: “Não espero nada. Não temo nada. Sou livre”.

1.2 Deus, luta e liberdade: o eixo temático das obras de Kazantzákis

Diante da grande produção literária criada por Nikos Kazantzákis, produção que,

conforme foi visto, se estende por uma longa carreira de escritor, podemos dizer que,

em termos gerais, o temor à morte, assim como o problema da liberdade, a importância

da luta e a relação do ser humano com Deus são os grandes temas, o leitmotiv, que

aparecem reiteradamente em sua literatura. De fato, esses temas encontram-se

constantemente interpenetrados em suas obras. Tal problemática constitui, nesse

sentido, o eixo da luta interna e das inumeráveis preocupações filosóficas e metafísicas

em Kazantzákis. Em Ascese toda a temática filosófica e religiosa ali contida se

desenvolverá, pois, em torno da questão de Deus, da luta e da liberdade. Mas, antes

mesmo de Ascese, esta preocupação já se fazia presente, e, posteriormente, continuará

sendo o fio condutor de sua criação literária. Assim, com o objetivo de ilustrar essa

problemática a partir de suas obras recordaremos, primeiramente, aquelas que

antecedem Ascese; depois analisaremos sua Odisseia; e, por fim, três dos romances que

lhe renderam fama internacional e seu relato semiautobiográfico, Testamento para El

Greco.

1.2.1 Nas obras anteriores a Ascese

É preciso dizer, antes de tudo, que as primeiras incursões nas letras gregas de um

praticamente desconhecido Kazantzákis, no início do século XX, foram obscurecidas

devido à grandeza e a força de suas criações posteriores. E, contudo, é muito

significativo ver com que ímpeto o jovem e desafiante Kazantzákis irrompe na criação

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literária de sua época, pois, esse início já projeta certa luz sobre o que será sua produção

posterior. Com efeito, pinçaremos as principais obras dessa fase inicial que, de algum

modo, já antecipam e ilustram em boa medida a problemática acerca de Deus, a

exigência da luta e o anseio com a liberdade.

Reconhecem-se como as primeiras obras de Kazantzákis aquelas que foram

escritas a partir de 1906. É deste ano o ensaio A doença do século, considerado seu

primeiro escrito oficial, quando era um jovem estudante de Direito em Atenas. Este

ensaio foi publicado na revista Pinakothiki, em seus números 61, 62 e 63,

correspondentes aos meses de março, abril e maio, assinado com o pseudônimo Karma

Nirvana. Neste seu primeiro ensaio, o escritor grego já apresenta suas inquietações

sobre uma crise geral dos valores da civilização ocidental. Como causa desta crise, o

autor indica, por um lado, o anúncio da morte de Deus feita por Nietzsche e a

necessidade da superação da metafísica, e, por outro, o desenvolvimento do pensamento

científico que havia conduzido à desmistificação, sem poder, contudo, substituir o vazio

metafísico.

Do mesmo ano, 1906, é O lírio e a serpente, o primeiro livro de Kazantzákis a

ser efetivamente publicado, e também assinado com o pseudônimo Karma Nirvana. É

um pequeno romance escrito em forma de diário e relata os últimos dez meses de um

casal, um pintor e sua modelo, que se suicidam por asfixia em um quarto cheio de

flores. Trata-se de uma obra impregnada de erotismo, segundo os críticos da época, a

qual suscita opiniões divergentes (o próprio Kazantzákis a desaprovará posteriormente

por considerá-la fraca), mas, ao mesmo tempo, todas elas coincidem em manifestar

certa surpresa e estranheza de que tais ideias e tais paixões, tão nitidamente expressadas,

pudessem ser obra de alguém tão jovem. É significativa, nesse sentido, a opinião de

Palamás15 sobre o romance, entre outras coisas ele diz: “é ao mesmo tempo história e

poema. A história se desenrola através do monólogo de um personagem... E a poesia a

penetra totalmente. Poema juvenil, nocivo, belo e mortal, um romance perigoso para os

jovens...” E Palamás conclui predizendo o êxito futuro do autor quando diz: “trata-se

das primeiras manifestações da sensibilidade de um jovem escritor que, com o tempo,

criará belíssimas obras” (apud OMATOS, 2009, p. 186). Aliás, opinião semelhante à de

Vlassis Gavriilidis, um célebre jornalista grego da época, ao ressaltar que a aparição

deste romance eleva a literatura grega, até então muito pobre, e que seria enriquecida

15 Kostís Palamás (1859-1943) foi um importante poeta grego e um dos mais respeitados críticos literários da sua época.

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com um jovem escritor de primeira linha. Nas palavras do jornalista, o jovem

Kazantzákis “faz sua entrada no universo das letras com nova inspiração intelectual,

estética e linguística. É o escritor novo, o escritor da chama, o escritor da vida...” (apud

KAZANTZAKI, 1974, p. 35).

Mas é novamente de Palamás que vem o comentário que queremos destacar,

quando ele diz: “o romance contém toda a contraposição ética, prisão do homem em que

se combatem mutuamente e sem descanso a Carne e o Espírito” (apud OMATOS, 2009,

187). Esta observação é realmente interessante ao se referir à primeira obra de um

Kazantzákis ainda jovem, com vinte e três anos, porque essa luta, que já é tão evidente

em sua primeira criação artística, será a chave de toda a obra posterior do escritor. Em

outras palavras, a constante batalha entre matéria e espírito que o escritor cretense

permanentemente pretenderá harmonizar na trajetória ascendente de superação humana:

a obsessão pela liberdade definida como a transfiguração da matéria em espirito.

Todavia, será numa de suas composições para teatro16 onde aparecerá com toda

força e inovação aquela marca permanente de sua criação artística. Entre 1908 e 1909,

Kazantzákis escreve uma peça com o título Comédia e subtitulada Tragédia em um ato,

cujas cenas, do início ao fim, acabam por conduzir a uma espécie de olhar apocalíptico.

Encontram-se ali refletidos diversos elementos da condição humana, como a esperança

e o temor, a fé e a dúvida, a alegria terrena e o anseio de uma felicidade prometida, a

espontânea cotidianidade e a renúncia ascética, a serenidade efêmera e o drama da

espera; encontram-se também etapas e paixões da vida que, em seu conjunto, nos fazem

pensar no niilismo, no pessimismo heroico, na trama existencialista e na teologia

negativa. Nesta obra, portanto, percebe-se não somente a complexidade do pensamento

de Kazantzákis, todo ele permeado por suas visões poéticas, mas, além disso, podem ser

reconhecidas também as aporias de quem percebe com assombro a transcendência de

uma obra tão destilada de buscas filosóficas, e, deste modo, de quem não encontra todas

as palavras adequadas para transmitir o forte impacto recebido. Marie Louise Bidal-

Baudier nos dá o argumento da obra:

16 A produção de obras para teatro percorre praticamente toda a carreira literária de Kazantzákis e mereceria um estudo a parte. Aqui, por falta de espaço, faremos menção apenas a Comédia, uma peça do início de sua carreira de escritor e, como se verá, inovadora para a época. Deve-se registrar também que a base temática de sua obra dramática é a mesma de todo o seu conjunto literário. Nesse sentido, fica como indicação e referência a edição de Teatro, com tradução, introdução e notas de Miguel Castillo Didier, além do estudo de Nelson T. Riquelme: Ascesis de libertad en seis tragédias de Nikos Kazantzakis (ver a bibliografia no final do nosso trabalho). Neste estudo, o autor aborda aspectos da criação dramática de Kazantzákis, tendo por referencial a obra Ascese, especialmente sobre o tema da liberdade nas tragédias Constantino Paleólogo; Juliano, o Apóstata; sua trilogia sobre Prometeu; Buda e Cristóvão Colombo.

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Em um quarto fechado, que significa o cárcere da morte, um grupo de pessoas, com idades e comportamentos diferentes, espera por Deus, que viria para lhes abrir a porta do reino da luz e cuja “cara resplandecerá como o Sol nascente diante delas”. Mas à medida que se apagam as velas, que passam as horas no grande relógio das doze badaladas, a esperança se desvanece e a angústia aumenta: a porta não abre. Uma angústia que se converte em sufocação e em frio de morte que esmaga o peito, como o peso de uma placa de concreto, e rompe os corações com a nostalgia da terra e doçura da vida (BIDAL-BAUDIER, 1986, p. 164).

Deve-se notar que esta obra se configura em uma verdadeira inovação para a

época. Ora, o motivo da espera e da alienação existencial, somado ao tema do mais além

desconhecido, da impotência da razão, da contingência do ser humano e da atmosfera da

agonia, nos remete imediatamente a duas famosas obras escritas muitos anos depois de

Comédia, são elas: Entre quatro paredes (1945) de Jean-Paul Sartre, e Esperando

Godot (1950) de Samuel Beckett. Se Comédia, conforme escreve Eléni Kazantzákis,

“não tivesse sido publicada em1909 seria acusada de plágio, já que em muito ela

recorda Huis clos, de Sartre. Mas em Kazantzákis, os doze mortos fechados em um

quarto sem saída, só esperavam a chegada do Salvador, que nunca chegará”

(KAZANTZAKI, 1974, p. 40).

Obviamente que Comédia não é uma peça experimental ou um simples exercício

sobre o desespero individual e coletivo. A espera inútil e o silêncio de Deus não

afirmam o niilismo e a completa desolação como destino humano. A obra é, na verdade,

um grito de liberdade e abandono das subjugações sociais. Expressa uma crítica à

religião e às estruturas da fé, conclamando a uma busca por algo por detrás da esperança

e do temor religioso. O que se percebe é “a perspectiva de um Deus escondido nas

sílabas do nada, um Deus distante, mudo, ausente, silencioso, abissal, e que simples e

facilmente não se submete aos interesses e cálculos do homem” (PIZARRO, 1998, p.

48).

A peça, importante não só pela antecipação aos temas existencialistas e à

condição absurda do ser humano diante dos temas metafísicos, constitui-se como uma

precursora incursão de Kazantzákis em busca de Deus, empreendimento que

permanecerá recorrente em sua produção posterior. Se por um lado Kazantzákis tece

uma crítica ferrenha às crenças religiosas e às inquietações metafísicas que moldaram o

pensamento medieval, por outro, a espera muda possibilita o anúncio de uma visão

pessoal de Deus, uma imagem sem rosto e silenciosa, oculta atrás das portas do temor e

da fé irrestrita. Além de representar a resposta de Deus ao dogmatismo, a porta fechada

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diante dos personagens é a libertação desse mesmo Deus das máscaras e símbolos que

lhe são atribuídos pelas religiões: por detrás das máscaras encontrar-se-ia o abismo sem

fundo.

O que Comédia expõe deve ser situado nas coordenadas evolutivas de um tipo

de credo filosófico dialético de Kazantzákis consigo mesmo. Ou seja, estas são suas

primeiras marcas desde as quais se avança da escuridão até a luz; daquele momento

preliminar em que ele acentua primeiro a falta de esperança no ser humano, para em

seguida exaltar a luta, o combate sem esperança por qualquer recompensa, enfim, para

exaltar a chama que devora o destino humano.

Outra obra que, apesar de Kazantzákis não tê-la publicada em vida, merece aqui

uma menção é Simpósio. Sem ter a data conclusiva para a composição deste texto,

costuma-se aceitar que tenha sido escrito em 1922, muito próxima, portanto, ao esboço

de Ascese. Mas a obra só foi publicada em 1971, por Eléni Kazantzákis, ou seja, meio

século depois de sua redação e catorze anos após a morte do autor. Simpósio é um texto

curto, e, ao que tudo indica, trata-se de uma obra não concluída. Assim como em

Ascese, também se percebe no Simpósio o delineamento daquela ideia, praticamente

uma filosofia de vida, que é o de salvar Deus, seguir sua presença e dar outro ímpeto ao

ritmo humano.

De acordo com Pizarro, o principal personagem do livro, Harpagos,

representaria o próprio Kazantzákis, enquanto os outros personagens do diálogo

estariam representando alguns de seus principais amigos (cf. PIZARRO, 2003, p. 294).

Simpósio é considerada uma obra menor, muito possivelmente por estar inconclusa. Na

verdade é um pequeno “simpósio”, no qual falta o diálogo. Dos quatro personagens,

somente Harpagos é quem fala quase que permanentemente. Os outros – Kosmas, o

homem de ação; Petros, o poeta; e Myros, um simples amigo de Harpagos – falam

somente no início e, no fundo, não desejam expor suas próprias ideias, mas incentivar

Harpagos a fazer uma prometida “confissão”.

Se em O Banquete Platão falava do amor, Kazantzákis, em seu Simpósio, falará

de Deus. Dessa maneira, ao começar sua primeira e extensa intervenção, Harpagos

menciona “o ar acre de Deus”.

Nossa cena esta noite é para mim um verdadeiro simpósio místico [...]. Sei que cada pessoa transubstancia sua vida temporal à sua maneira; entretanto, é bom confessar nossa própria luta, expor o método de nossa alma e indicar a nossa nova esperança. Dessa maneira, as almas semelhantes abreviarão sua agonia e as outras procurarão encontrar sua libertação com uma determinação mais forte. Mas todas juntas, sem saberem, com exercício, com renovadas esperanças,

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querendo ou não, ascendem à Montanha de Deus. Tu me reprovas, Kosmas, e, no entanto, sem que saibas, nossos dois espíritos marcham ao mesmo ritmo; lutei o melhor que pude, ampliando o campo de minha visão, conquistando minha vicissitude individual, para respirar o ar acre de Deus (KAZANTZAKIS, 1978, p. 25-26).

Mesmo não tendo satisfeito o próprio autor quanto ao seu valor filosófico,

Simpósio possui riqueza metafórica e amplitude poética. Portanto, é um livro de

pensamento lírico. As ideias e a poesia caminham de mãos dadas. Poder-se-ia dizer que

sua leitura produz um grande gozo estético; mas não é só isso, é uma tentativa filosófica

que, mais uma vez, expressa as grandes inquietudes de Kazantzákis, as mesmas que

sempre retornam em todos os seus livros. Por meio desta obra, pouco conhecida e pouco

estudada, “se conhecerá suas agonias metafísicas, se penetrará em seu credo filosófico

não pela pesada porta oficial de Ascese, mas por trilhas campestres cheias de tomilho,

sálvia, azeitonas maduras...” (PIZARRO, 2003, p. 300).

1.2.2 Na Odisseia – ampliação e transposição épica de Ascese

Em 1938 é publicada aquela que é considerada o obra prima de Kazantzákis: a

Odisseia. O valor desta obra é assinalado pelo próprio autor quando, em 1947, ele

escreve ao amigo Börje Knös para dizer: “Do ponto de vista da forma poética e do

conteúdo filosófico, a Odisseia representa o ponto mais alto que pude chegar depois dos

esforços de toda uma vida a serviço do espírito” (KAZANTZAKI, 1974, p. 377). E

alguns anos mais tarde, em outra carta ao mesmo amigo, Kazantzákis declara: “Acredito

que toda a minha alma, toda a chama e a luz que fiz nascer da matéria à qual fui

moldado, se expressam na Odisseia” (KAZANTZAKI, 1974, p. 425). Por tudo isso, um

estudo sobre Kazantzákis não pode deixar de fazer uma apresentação desta obra, tida

“como um dos pontos altos da épica do século XX” (PAES, 1997, p.12), e que, ao lado

de Ascese, é fundamental para a compreensão do seu pensamento.

Trata-se verdadeiramente de um “poema de dimensões admiráveis”

(BERNARDES, 2012, p.18): obra grandiosa, tanto na abordagem de seus temas, quanto

no seu tamanho, são 33.333 versos de 17 sílabas poéticas. Kazantzákis toma por

empréstimo o tema de Ulisses17 (Odisseu), o famoso herói mítico do homônimo poema

homérico, e, a partir daí, o antigo personagem, na Odisseia kazantzakiana, retoma sua

viagem, não mais de retorno a Ítaca, mas a partir de Ítaca. Essa viagem se expressa

17 Ulisses é a utilização latina amplamente aceita pela tradição para o nome grego Odisseu.

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mediante uma incrível acumulação de sonhos, mitos, lendas, costumes, crenças e ritos

de diversos povos e épocas; uma verdadeira torrente de vivências e experiências

derramadas ao longo de 24 Cantos.

Segundo Miguel Castillo Didier, “é a obra mais discutida de toda a literatura

neogrega” (DIDIER, 2006/2007, p. 22). De fato, a Odisseia de Kazantzákis parece

recolher todo o tesouro da língua neohelênica: dialetos, expressões, motivos, versos,

fragmentos e às vezes baladas completas da poesia grega, elementos da mitologia e da

cultura popular. Devido a essas peculiaridades linguísticas o trabalho de tradução torna-

se extremamente difícil. Das versões traduzidas destacam-se a versão inglesa de Kimon

Friar, que só apareceu em 1958; a francesa de Jacqueline Moatti, em 1968; e a

castelhana de Miguel Castillo Didier, em 1975.

Foi num subúrbio em Heráklion, capital de Creta, no ano de 1924, que

Kazantzákis “iniciou a composição de sua Odisseia, num exaustivo trabalho de escrever

e reescrever (fez nada menos de sete versões do poema) que se prolongou por catorze

anos” (PAES, 1985, p. 155). Quando apareceu em Atenas, nos idos de 1938, a epopeia

de Kazantzákis, materializada num grosso volume de 835 páginas, foi fonte de debates e

de muitos “motivos para controvérsias de ordem ética, teológica e artística” (PAES,

1985, p. 158). Didier, citando Kimon Friar, faz lembrar o fato de que a aparição da

Odisseia

Causou nos círculos gregos discussões tão vivas como as que produziram nos círculos ingleses a publicação de outra epopeia com dimensões parecidas e disposição semelhante: o Ulisses de Joyce. As duas obras se referem ao homem contemporâneo que busca seu ser. E nas duas os autores utilizam o esqueleto da Odisseia homérica, ainda que de maneiras distintas (apud DIDIER, 2006/2007, p. 22).

Mas como entender uma obra pretensamente inovadora em sua proposta, sendo

esta, a partir de sua constituição, composta por meio de elementos da epopeia? Ora, esse

gênero hoje é tido “por obsoleto e só aceito, agora, em sua forma ‘degradada’, prosaica,

de romance” (PAES, 1985, p. 156). Recusar-se-ia, portanto, a Odisseia de Kazantzákis

por se tratar de uma tentativa frustrada de reviver um gênero irremediavelmente morto.

Todavia, a resposta para essa questão foi dada pelo próprio autor: Nada mais vão e inútil que colocar a questão se a Odisseia é uma epopeia e se a epopeia é um gênero anacrônico... Para mim, tempo mais épico que este não existiu. Nestas épocas em que um mito decai enquanto outro luta por dominar, nascem as epopeias. Para mim, a Odisseia é um esforço épico, dramático, do homem contemporâneo, que vive cada momento da luta diária, perseguindo as mais atrevidas esperanças, para buscar a salvação, a libertação. Qual libertação? Ele não o sabe. Ao atuar, vai criando continuamente, com suas alegrias e suas

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amarguras, com seus fracassos e desencantos: lutando. O homem contemporâneo que vive profundamente seu tempo, de forma consciente ou inconsciente, dá à luz este combate (apud PIZARRO, 2003, p. 309).

Portanto, segundo Kazantzákis, a qualidade épica do poema deriva exatamente

da essência epopeica da luta do homem atual em meio ao caos em que se vê imerso, ao

tentar tomar consciência de seu ser. Com isso a Odisseia kazantzakiana pretende

sinalizar todos os caminhos, todas as possibilidades, todas as aberturas às quais o ser

humano pode dirigir seu olhar para tentar captar e atribuir um sentido à existência.

Representa uma suma de visões que podem engendrar a imaginação humana, visões que

se situam fora do tempo e do espaço. Massacres, incêndios, orgias, cidades ideais,

desertos africanos, geleiras polares; as sombras daqueles que amou e admirou: Cristo,

Buda, Dom Quixote, Homero; homens do povo, camponeses, pescadores, artesãos,

caçadores; a presença obsessiva da morte; é um mundo de fortes cores, violento,

desmedido, brilhante em cada verso com as imagens fulgurantes criadas pelo poeta. Isso

explica então o tamanho colossal do poema, já que o autor procurou explorar e fundir

todas as visões, todas as imagens e caminhos possíveis.

Sendo uma continuação, a Odisseia de Kazantzákis começa, portanto, a partir do

canto XXII, verso 477, da Odisseia de Homero. Depois de matar os pretendentes de

Penélope e de narrar suas peripécias, o Ulisses kazantzakiano sente um profundo

desencanto, e sua ilha tão desejada torna-se a seus olhos estreita e asfixiante. Decide,

então, partir uma vez mais, com alguns poucos companheiros, sem rumo determinado.

De acordo com Carolina Bernardes: Se na primeira Odisseia o tema é a volta (nóstos), na Odisseia kazantzakiana há uma tentativa clara de superação da meta representada pela chegada à Ítaca. Como reavaliação moderna do herói de Homero, o herói de Kazantzákis mantém-se em marcha, ultrapassando suas próprias conquistas, visto que a chegada não manifesta nele o apaziguamento, e sim o desejo de ir além. Nesta nova odisseia, Odisseu descobre que a “superação” é constituída pelo próprio caminho, e então, lança-se novamente à viagem (BERNARDES, 2012, pp. 18-19).

Ulisses em seu anseio por superação, conhecimentos e novas experiências será

levado a uma contínua busca por Deus. No poema, Deus tomará diversas formas, assim

será também com a morte. Com efeito, Esparta, Creta, Egito, as diversas latitudes do

continente africano, o mar e as terras geladas do Polo Sul, são as estações de uma

peregrinação em que Ulisses cumpre várias missões, encontra diversos personagens

representativos de tipos humanos aos quais interroga em sua busca por um caminho que

dê sentido à existência. O herói navegante, ao longo de sua viagem, assume diversos

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modos de ser: aventureiro, revolucionário, construtor de uma cidade ideal, e, finalmente,

se torna um asceta. Tendo superado valores e dogmas, Ulisses tem encontros diversos

com personagens que simbolizam tendências e possíveis caminhos da humanidade: o

príncipe Manayís, espécie de atormentado Hamlet; a prostituta Perla que entre os

caminhos da salvação escolhe o caminho do amor; o Eremita, espécie de Fausto,

insaciável, sedento de conhecimentos; o Capitão Uno, sombra de Dom Quixote; o

Hedonista e os homens primitivos; o jovem Pescador negro, um tipo representativo de

Jesus. Depois desses encontros, Ulisses começa a construir na costa sul-africana sua

última embarcação. Este barco, em forma de ataúde, o levará em total solidão à morte

entre as geleiras do Polo Sul.

A trajetória de Ulisses é marcada por um constante exercício de superação. Esta

exigência ininterrupta de superação é o que Kazantzákis designará por “ascese” (cf.

BERNARDES, 2012, p. 20). E aqui, então, nota-se a afinidade entre Ascese e a

Odisseia: ora, o que se reconhece na segunda obra é uma visão que se verifica

abstratamente na primeira. Num certo sentido, a Odisseia é a obra que coloca em ação o

que em Ascese é contemplação (cf. ÁLVAREZ, 2009, p. 40). Por isso, essas duas obras

“constituem o núcleo de uma obra vasta, que é na essência uma unidade” (DIDIER,

1975, p. 21). Pizarro, por sua vez, dedica um capítulo do seu livro Dimensiones de un

poeta pensador para estudar a relação entre as duas obras. Na realidade, o capítulo do

livro de Pizarro, intitulado “Odisea, transposición poética”, procura sublinhar o que, em

síntese, já havia sido ressaltado por Aziz Izzet, um dos primeiros estudiosos da obra de

Kazantzákis. Izzet explica a afinidade entre o opúsculo místico-filosófico e o poema

épico da seguinte maneira:

Kazantzákis se esforçou em Ascese por reviver em si mesmo, profundamente, todos os ciclos da marcha humana sobre a terra. Aqui ele o faz abstratamente, por assim dizer. Mais tarde, na Odisseia, ele fará criando uma obra de arte. Esta é a autêntica função do artista, e ele a cumpriu de maneira grandiosa. A Odisseia é a transposição artística de Ascese. Ulisses cruza todos os mundos, todas as ações, todos os sonhos mais extravagantes do ser humano; todas as esperanças e todos os desesperos, todos os êxitos e todos os fracassos. O poema vai desde o cômico mais rabelaisiano ao trágico concentrado de Shakespeare. Não é um poema social; não é um poema religioso; não é um poema classificável. Trata-se, mais uma vez, de retraçar todas as etapas do pensamento e do devir humano. Ulisses constrói cidades ideais que se afundam no dia da inauguração. Pratica retiros cruelmente austeros e se entrega a atos de pirataria e de injustiça sangrentos. Pouco a pouco aprende a empreender sem esperança de recompensa nem de êxito; assim se elimina o desespero, assim se cria a verdadeira criação (apud DIDIER, 1975, p. 21-22, ênfase do autor).

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Obviamente que essa demonstração da relação intrínseca entre as duas obras se

tornaria mais evidente se já contássemos também com maiores informações sobre

Ascese, o que só acontecerá, porém, a partir do nosso segundo capítulo, quando nos

ocuparemos, então, em analisá-la particularmente. A intenção aqui, entretanto, foi

somente sinalizar o caráter central de tais obras, por onde flui de maneira inter-

relacionada e tão formidavelmente toda a problemática kazantzakiana em torno de

Deus, da luta e da liberdade.

1.2.3 Nos romances tardios e no “relatório final” (Testamento para El Greco)

Os romances escritos por Kazantzákis, que lhe trariam a fama de maior

romancista da literatura grega moderna, só vieram à luz “na quadra final de sua vida,

durante a Segunda Guerra Mundial e nos anos subsequentes” (PAES, 1997, p. 11) 18.

Dentre esses devem ser destacados: Vida e proezas de Aléxis Zorbás, O Cristo

Recrucificado e A última tentação de Cristo. Estes três por também terem sido

adaptados para o cinema lhe dariam, pois, um público ainda mais vasto que o das

livrarias19.

O livro Vida e proezas de Aléxis Zorbás, publicado em 194620, foi escrito entre

agosto de 1941 e maio de 1943, período no qual Kazantzákis estava recolhido em sua

casa na ilha de Egina, por causa da ocupação alemã na Grécia. A história narrada é

verdadeira em sua essência, embora alguns pormenores sejam fantasiosos e a época da

ação não tenha sido claramente apontada. Kazantzákis conheceu o macedônico Zorbás

em 1917, por ocasião da exploração de uma mina na Messênia que é basicamente a

trama desenvolvida no livro. O dionisíaco Zorbás, com sua sabedoria vital, foi para o

escritor um verdadeiro mito vivo: “ensinou-me a amar a vida e não temer a morte” 18 Sobre os romances de Kazantzákis, José S. Lasso De La Vega diz que eles acabam aparecendo como “fenômenos marginais na rota sinuosa do seu labor literário. [...] Até então não havia tido a vontade de romancear desde que em 1906 compusera o relato extenso O lírio e a serpente. Trinta anos depois retorna ao gênero compondo em francês O jardim dos rochedos, que na verdade não é propriamente um romance. Seus últimos romances são de uma rara distinção, a obra de um romancista de grande classe. Reiteram em forma mais popular e atemperam-se aos gostos do público as experiências agudas de um pensador e poeta maduro” (VEGA, 1968, p. 11). 19 A respeito das adaptações para o cinema destes três romances de Kazantzákis, o estudioso de literatura grega moderna Peter Bien, no artigo Nikos Kazantzakis’s novels on film, considera que foram oportunidades perdidas, uma vez que os filmes não teriam conseguido reproduzir o principal de cada um dos romances. Assim, de acordo com Bien, na adaptação de O Cristo Recrucificado o final teria sido distorcido; em Zorba, o grego, o final do livro teria sido omitido; e em A última tentação de Cristo, Scorsese não teria dado conta da exuberante linguagem do livro. 20 Vida e proezas de Aléxis Zorbás deu origem ao filme Zorba, o Grego, rodado na ilha de Creta no verão de 1963 e lançado em 1964. Com direção de Mihális Kakoyánnis, atuação de Anthony Quinn e música original de Míkis Theodorákis, o filme fez um enorme sucesso e trouxe em sua esteira novas traduções da obra literária, que adotaram o título da adaptação cinematográfica.

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(KAZANTZÁKIS, 2011, p. 7). Para Kazantzákis, Zorbás representa a libertação das

normas, do conformismo, dos medos, da vida burguesa, da submissão às regras e a

possibilidade de se abrir ao abismo.

Paralelamente à narrativa, Kazantzákis vai, então, expondo suas angústias

existenciais e sua filosofia. São apontadas, entre outras, as noções de “grito”, o “olhar

sobre o abismo” e “transfiguração da matéria em espírito”. Enquanto o “grito” é a voz

que explicita o modo de ser do indivíduo no mundo, o “olhar sobre o abismo”, sem

medo nem esperança, que abraça ao mesmo tempo vida e morte, é sinônimo da

almejada liberdade. E, coroando seu pensamento, “transfigurar matéria em espírito”,

convertendo corpo e alma num conjunto harmonioso, significa atingir a unidade que

integra, finalmente, o ser humano ao cosmos. Com efeito, toda essa filosofia é

encarnada no personagem Zorbás, em seu proceder vitalista, sua atitude sempre

exultante, sua disposição em gozar cada momento e em qualquer circunstância. Mostra,

mediante o modo de ser do personagem, a possibilidade de se chegar a Deus não através

do sofrimento e da renúncia sustentados pelo cristianismo, mas – numa espécie de

dionisismo – o encanto de tocar o divino mediante o gozo e o êxtase nas pequenas

coisas e tão somente no milagre de existir. Zorbás, além do mais, não aspira à beatitude

divina, mas que se conforma com a solidão de seu heroísmo terreno. Trata-se, pois, de

um romance permeado pela dimensão da liberdade, da coragem, do enfrentamento da

vida e da luta.

O romance O Cristo Recrucificado, escrito em 1948, quando foi publicado na

Grécia em 1954 já havia sido traduzido para quatro idiomas21. Em 1950, Kazantzákis

escreve agradecendo ao amigo Börje Knös por tê-lo traduzido para o sueco: “Bravo por

concluir (a tradução) de O Cristo Recrucificado! Alegro-me que tenha gostado até o

fim. É um autêntico romance... Zorbás era, sobretudo, um diálogo entre um escritor e

um verdadeiro homem do povo” (KAZANTZAKI, 1974, p. 391).

O crítico de literatura comparada Theodor Ziolkowski estuda amplamente este

livro e o considera como uma das mais destacadas obras de transfiguração ficcional a

partir de personagens e acontecimentos tomados dos Evangelhos (cf. ZIOLKOWSKI,

21 Deste romance o cineasta francês Jules Dassin fez uma versão para o cinema com o título Celui qui doit mourir (Aquele que deve morrer), cuja pré-estreia se deu no festival de Cannes em 1957, contando com a presença de Kazantzákis. Em 28 de abril de 1957, em carta a Börje Knös, ele escreve: “Acabo de regressar de Cannes, onde se apresentou o filme para alguns espectadores. Não pude conter o choro; é muito emocionante” (KAZANTZAKI, 1974, p. 442). O escritor colaborou com Dassin no projeto e na realização do filme, do mesmo modo como assessorou o compositor tcheco Bohuslav Martinú para estabelecer o libreto da ópera A Paixão grega, também baseada no livro, que só estreou em 1962.

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1982, pp. 154-166). O cenário geográfico e histórico da narrativa de Kazantzákis, cuja

ação se desenrola no ano de 1922 numa aldeia do interior da Anatólia, recordam

nitidamente o dos Evangelhos: um povo submetido; um governador estrangeiro; a

desordem provocada pela atitude e mensagem de Cristo, revivido aqui por um pastor

chamado Manólios (que em grego é diminutivo de Emanuel); o pedido de parte deste

povo subjugado que, colérico, solicita à autoridade estrangeira que condene à morte

Manólios/Jesus; o sacrifício deste pelos outros, sacrifício assumido com total

consciência de tomar sobre si as faltas dos outros.

No final do livro, as palavras do representante do povo oprimido, o padre Photis,

diante do cadáver de Manólios em plena noite de Natal, parecem resumir o pensamento

de Kazantzákis em relação à missão de Jesus: “Foi em vão, meu pobre Manólios, que

deu a sua vida – murmurou ele. – Você chamou a si todos os crimes de que nos

acusavam”; então o padre Photis ouve o alegre badalar dos sinos à meia noite, que

anunciavam o nascimento de Cristo, que viera para nos redimir, e arremata: “Isso

também foi em vão, Senhor. Já se passaram quase dois mil anos e, até hoje, não

cessamos de crucificar-te. Quando virás ao mundo, Senhor, para não mais seres

crucificado, para viveres conosco eternamente” (KAZANTZAKIS, 1971, p. 516). Como

sempre, o que aparece é a temática da luta, do sacrifício e da coragem, da liberdade cujo

significado, em última instância, é ser livre da esperança de qualquer recompensa

futura.

Em A última tentação, escrita entre 1950-1951, Kazantzákis concentrou, uma

vez mais, as inquietudes espirituais que lhe atormentaram durante toda a vida. E agora

ele o faz tomando a própria figura de Cristo por personagem; e, como é natural, faz com

seu estilo, em sua prosa ardente, povoada de hipérboles, cheia de paradoxos, iluminada

por expressões proféticas. Viu o sacrifício de Jesus como um dos caminhos de

libertação para o ser humano, talvez o mais sublime. E também o mais apaixonante,

diante da eterna luta entre as duas naturezas de Cristo, a Divina e a Humana, cujo maior

objetivo é se unir a Deus: “É este o Dever Supremo do homem que luta”

(KAZANTZAKIS, 1988, p. 6).

Quando escreveu A última tentação de Cristo, Kazantzákis revelou que seus

olhos se enchiam de lágrimas e que jamais havia se comovido tão profundamente. Em

13 de novembro de 1951 ele envia uma cópia datilografada do livro para Knös com o

seguinte comentário:

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...Sinto uma grande emoção enviando esta obra para você; se tiver paciência para ler lentamente, estou certo de que se sentirá invadido pela mesma emoção que experimentei ao escrevê-la... Eu quis renovar e completar o mito sagrado, a base da grande civilização cristã do Ocidente. Não se trata, de forma alguma, de uma simples biografia de Cristo, mas de um doloroso e sagrado esforço criador para reencarnar a essência de Cristo, eliminando escorias, mentiras e mesquinharias com que todas as igrejas e usuários de batina da cristandade o carregaram, lhe desfigurando. Meus escritos ficaram muitas vezes molhados porque eu não podia conter minhas lágrimas. Algumas parábolas que Jesus, possivelmente, não deixaria tão incompletas da forma como as encontramos nos Evangelhos, eu as completei e lhes dei a finalidade nobre e compassivamente digna de seu coração; coloco em sua boca palavras que talvez não pronunciou, mas que Ele teria dito se seus discípulos tivessem sua força psíquica e sua pureza. E em toda parte se encontra poesia, amor aos animais, a terra, aos homens, confiança na alma, segurança de que vencerá a luz. ... Durante um ano emprestei da biblioteca de Cannes todos os livros que foram escritos sobre Cristo e sobre a Judéia, as crônicas dessa época, o Talmude, etc. assim, todos os detalhes são historicamente justificados, entretanto, deve ser reconhecido ao poeta o direito de não seguir servilmente a história “poíesis filosofóteron ístorias” (a poesia é mais filosófica que a história) ... (KAZANTZAKI, 1974, pp. 406-407).

Uma ideia importante que Kazantzákis apresenta em seu romance é a de que

Jesus não sabe claramente quem é ele e nem qual é a sua missão. Diversos sinais e

visões parecem indicar que seu caminho não será o de um simples carpinteiro, e esta

etapa de sua vida não é nada fácil. Há também nisso uma luta, um combate importante

de Jesus. Durante o tempo que dura o processo de esclarecimento de seu destino, Jesus

vive os problemas do povo judeu, que carrega o pesado jugo romano. Seus amigos e

conhecidos, que depois serão chamados seus discípulos, tem como ele inquietudes não

muito definidas, mas relacionadas com a espera e possível vinda do Messias e com a

fermentação de rebeldia contra o domínio estrangeiro. Um deles, Judas, pertencente a

um grupo de patriotas, espera do Messias – que parece ser Jesus – que encabece a luta

pela liberdade nacional. A mensagem de amor de Jesus lhe parecerá uma traição.

A última tentação chega quando Jesus, já pregado na cruz, passando por

horríveis sofrimentos e se sentindo abandonado pelo Pai, acaba por desmaiar, algo que

durará apenas um segundo. Mas é neste instante que Jesus passa a ter a visão de toda

uma vida paralela, quieta, tranquila, cheia de paz e de legítimas alegrias. Viverá longos

e aprazíveis anos, com muitos filhos e netos. Começa então a ser atormentado por seus

antigos discípulos, que lhe mostrarão sua traição, sua deserção, sua covardia, por ter

deixado o sacrifício para se entregar à vida tranquila do homem comum. E, então,

passado o segundo:

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Sua cabeça sobressaltou-se. De repente lembrou-se de onde estava, de quem era e porque sentia dor. Dominou-o uma alegria selvagem, indômita. Não, não era um covarde, um desertor, um traidor. Não! Ele estava cravado à cruz. Mantivera com honra a posição até o fim; cumprira sua palavra. No momento em que bradara ELI ELI e desmaiara, a Tentação dele se apoderara e o seduzira. As alegrias, os casamentos, os filhos eram invenção. Os velhinhos decrépitos que o chamavam de covarde, desertor, traidor, eram de mentira. Tudo, todos eram ilusões enviadas pelo Demônio. Seus discípulos estavam vivos e com saúde. Partiam em viagens por terra e mar a fim de proclamar a Boa Nova. Tudo acabara como devia, louvado seja Deus! Jesus deu, então, um grito triunfal: ESTÁ CONSUMADO! E foi como se tivesse dito: tudo está começando (KAZANTZAKIS, 1988, p. 509).

Tanto por falta de capacidade de compreensão quanto por falta de sensibilidade

de seu verdadeiro fundo, A última tentação de Cristo provocou juízos polêmicos e

condenações. Nesse sentido, a Igreja Católica Romana, exatamente por incompreensão

da obra, condenou o romance e o colocou no Índice dos Livros Proibidos22. Numa carta

de primeiro de maio de 1954, Kazantzákis escreve a Börje Knös:

O editor alemão me avisou ontem: Letzte Versuchung auf päpstlichem Index (A última tentação no Index papal). A estreiteza de espirito e de coração humanos sempre me assombra: eis um livro de grande exaltação religiosa, com um amor ardente por Cristo, e o representante de Cristo, o Papa, não compreende nada e o condena! Está na ordem das coisas que eu seja condenado pela mesquinhez deste mundo de escravos... (KAZANTZAKI, 1974, p. 422).

Todavia, a Igreja Católica que proibia a leitura do livro a seus fiéis, não podia

excomungar Kazantzákis, uma vez que ele pertencia a Igreja Ortodoxa, embora parte

desta também condenava a obra. Muito tempo depois da morte do escritor, a adaptação

para o cinema de A última tentação de Cristo, em 1988, com direção de Martin

Scorsese, reascendeu as polêmicas. Esta produção foi indicada para o Oscar de Melhor

Diretor, e contou com as atuações de Willem Dafoe como Cristo, Harvey Keitel como

Judas, Barbara Hershey como Maria Madalena e David Bowie como Pilatos. O filme –

que ficou caracterizado como um dos feitos brilhantes da história do cinema – despertou

22 O Index Librorum Prohibitorum (Índice dos Livros Proibidos) foi uma lista de publicações literárias que eram proibidas pela Igreja Católica. A primeira versão do Index foi promulgada pelo Papa Paulo IV em 1559, e uma versão revista deste foi autorizada pelo Concílio de Trento. A última edição do Index foi publicada em 1948, mas só foi efetivamente abolido pela Igreja Católica em 1966, pelo Papa Paulo VI. Nessa lista estavam livros que iam contra os dogmas da Igreja e que continham conteúdo tido como impróprio.

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grande alvoroço entre os vários grupos cristãos, mesmo antes de seu lançamento oficial,

que exigiam sua censura e condenação23.

O último livro escrito por Kazantzákis foi Testamento para El Greco24,

publicado somente após sua morte, em 1961, por Eléni Kazantzákis. Em carta de 10 de

julho de 1955, novamente para Börje Knös, o escritor, que se encontrava junto à esposa

em uma cidadezinha do Distrito de Lugano, na Suíça, já esboçava a intenção desta obra: Penso em começar aqui uma nova obra que se intitulará Carta a Greco, uma espécie de biografia na qual me confessarei a meu avô, El Greco. Ontem um velho amigo, Helmut von den Steinen, veio nos visitar e disse que Petrarca escreveu cartas a Cícero, a quem tanto venerava. Alegrei-me em saber: minha ideia não é, pois, única, é uma necessidade muito antiga de querer conversar com um morto em quem se confia para lhe fazer confissões (KAZANTZAKI, 1974, p. 429).

Segundo Eléni, Kazantzákis começou a escrevê-la no outono de 1956, sem ter,

contudo, tido tempo para fazer um segundo esboço como era de seu costume.

Conseguiu reescrever apenas o primeiro capítulo e uma das partes finais, “Quando o

germe da ‘Odisseia’ em mim se frutificou”, que conseguiu enviar antes de sua morte

para que fosse publicado no periódico Nea Estia. E teve tempo apenas para reler o

manuscrito e fazer uma ou outra correção e acréscimos.

Testamento para El Greco é, então, uma espécie de relatório, ou informe, em

que o soldado presta contas diante do general. Para ser seu general, ou melhor, para ser

seu “avô”, Kazantzákis escolheu o pintor El Greco (1541-1614), pois este era cretense

como ele e, por isso, o compreenderia melhor que qualquer outro combatente do

passado e do presente. Na introdução feita por Eléni se lê a seguinte passagem: Testamento para El Greco é uma mistura de fato e ficção – uma boa parte de verdade, um mínimo de fantasia. Algumas datas foram modificadas. Quando menciona outras pessoas, é sempre com verdade, sem modificações. Exatamente o que viu e ouviu. Quando fala de suas aventuras pessoais, existem algumas pequenas modificações. Mas, uma coisa é certa: se tivesse sido capaz de reescrever este livro, o teria mudado. Exatamente como, não o podemos saber. Certamente o teria enriquecido, já que a cada dia recordava-se de novos acontecimentos que esquecera. E, também, o teria amoldado – acredito eu – à realidade. Sua vida real foi cheia de significado, de vivências dolorosas. De alegria e de dor – e para usar uma única palavra, de “dignidade”. Por que

23 Um amplo estudo sobre este filme foi realizado por Eduardo Tomás Pánik na tese de doutorado para o curso de Ciências da Religião da UMESP. O título da tese é Cinema e religião: um estudo sobre o humano e o divino no filme A última tentação de Cristo; defendida em 1998. 24 Como já anunciamos, assim se traduziu o título na edição brasileira: Testamento para El Greco. Trad. Clarice Lispector. Em Portugal se traduziu como: Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho; tal como para a edição em castelhano: Carta al Greco. Trad. Delfín Leocadio Garasa. No original, em grego, o título é Anaforá ston Gréko, que se traduziria melhor por “Relatório (um “Informe”) a Greco”.

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haveria de ter mudado sua vida? Não por falta de momentos difíceis, de fraquezas, de fugas e de sofrimentos. Ao contrário. Eram exatamente estes momentos que sempre serviram a Kazantzakis como novos degraus que lhe permitiam ascender mais alto. De ascender e alcançar o topo que se tinha prometido a si mesmo escalar antes de abandonar os instrumentos de trabalho porque a noite principiara sua descida (KAZANTZAKIS, 1975, p. 9, grifo do autor).

E na introdução feita por Kazantzákis anuncia-se, portanto, a missão do texto,

cuja importância radica exatamente em refletir a “ascensão” do próprio autor, isto é, o

processo de sua libertação espiritual. “Durante toda minha vida, uma palavra sempre foi

meu tormento e flagelo. A palavra ascender” (KAZANTZAKIS, 1975, p. 15). A forma

com a qual ele pretende apresentar esta ascensão é “misturando a verdade à fantasia”.

Trata-se, pois, num certo sentido, de um testemunho experiencial onde o itinerário

revela as diversas linhas que configuram uma determinada concepção artística, além dos

processos espirituais e intelectuais implicados nela. Nesta obra, portanto, Kazantzákis

procura expressar as raízes do seu próprio gênio, a explicação e a gênese de toda sua

obra literária e filosófica; sua luta e busca interminável por uma forma que unisse seu

amor pela vida e pela arte e sua incessante indagação sobre a verdade do espírito.

Em suma, neste apaixonante relatório final de sua vida e obra é possível conferir,

uma vez mais, toda aquela problemática que se apresenta de forma reiterada em sua

escrita. Uma escrita que, conforme acompanhamos, se desdobra nos mais variados

gêneros literários, mas que contém sempre a mesma preocupação temática, revelando a

profundidade de uma existência que não teme em ficar diante do abismo, livre da

esperança e do temor, numa luta necessária e sem trégua, na aceitação plena, sem

reservas ou ressentimentos, da própria vida.

1.3 Considerações gerais sobre o pensamento filosófico e religioso de

Kazantzákis

Pode-se dizer que atualmente Kazantzákis é mais conhecido como um

romancista. Ele mesmo, porém, queria ser lembrado como poeta, e, no entanto, dedicou

a maior parte de sua vida a escrever teatro. Afora isso, chama a atenção o profundo

conteúdo filosófico que percorre toda sua obra, seja ela em verso ou em prosa. Segundo

José Paulo Paes: “Embora ele lhe tenha retocado ocasionalmente uma que outra

formulação, os retoques não chegaram a alterar a essência dessa filosofia” (PAES, 1997,

p. 12). José Ramón Arana, por sua vez, considera Kazantzákis um escritor complexo,

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devido à diversidade de gêneros literários que cultiva, aos personagens que desenvolve,

às distintas influências filosóficas que assume e às várias experiências que se submete. Tudo isso faz de Kazantzákis um escritor de ideologia não muito clara. Não é um pensador acadêmico nem um professor preocupado com a transmissão de um saber e com a formação de um grupo de seguidores. É um agitador intelectual, um provocador. Suas afirmações podem desconcertar o leitor e, inclusive, resultar contraditórias (ARANA, 1999, p. 17).

De qualquer modo, é possível reconhecer que das páginas que constituem a obra

de Kazantzákis – obra que se desenvolve em diferentes campos, desde a tragédia, a

epopeia, o romance, a poesia, o ensaio, o conto, diários de viagem – destaca-se uma

espécie de plano filosófico, e, num certo sentido, chega mesmo a ultrapassar a dimensão

literária. Que se tenha isso em conta é preciso dizer, contudo, que a arte ou “a vida

poética é seu elemento natural, o ritmo mesmo de sua respiração. (...) É a forma poética

que tem por função expressar suas concepções fundamentais” (BIDAL-BAUDIER,

1986, p. 43). Ainda que Kazantzákis tenha se ocupado com temas e tendências da

filosofia, estas foram revestidas com a forma poética. A totalidade de sua obra está

carregada de poesia: “Toda a obra de Kazantzákis, romances, obras de teatro, livros de

viagens, estão impregnados de um sentido poético, todos seus escritos são uma

inesgotável fonte de poesia” (STASINAKIS, 1999, p. 243). E muito embora tenha

estudado os filósofos, não se deve considerá-lo como um pensador acadêmico ou

sistemático. Ele não foi, nesse sentido, um filósofo profissional. Reconhece-se sim que

o escritor grego em sua obra nos fale dos conflitos humanos em geral, que por trás de

sua literatura se apresenta um autor com uma postura intelectual que ousou pensar sobre

a vida e sobre a morte, sobre o valor e sobre a beleza, sobre o que se pode (ou não)

conhecer, sobre Deus ou sobre a realidade última, sobre a liberdade e sobre o dever (cf.

PIZARRO, 2011, p. 268-271). Enfim, a obra total de Kazantzákis pode ser vista como

uma depuração do que há de melhor em todas as literaturas.

Há algo de Shakespeare, algo de espírito fáustico, de imaginação dantesca, muito de amplitude épica. Kazantzákis, com espírito agudamente crítico, estudou e meditou o melhor do pensamento humano, e soube utilizar as melhores notas de cada uma destas expressões (ZAVALA, 1965, p. 197).

Como todo renomado artista, Kazantzákis foi capaz de nutrir-se da criação

daqueles que vieram antes dele e dialogar com diferentes horizontes de pensamento.

Pôde, dessa maneira, entrar em contato com grandes personalidades do conhecimento

humano (tais como: Bergson, Nietzsche, Shoppenhauer, Homero, Lênin, Dante, Willian

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James, Goethe, Dickens e outros) e aproveitar o máximo de cada um deles sem perder

de vista a continuidade e originalidade do seu próprio programa intelectual.

Acompanhando o itinerário de sua vida, percebemos sobressair alguns traços que

fazem parte da longa tradição de homens que se destacaram por uma extraordinária

sensibilidade, uma ilimitada curiosidade e uma incansável necessidade de viajar e

conhecer outros povos e mundos novos. Em Kazantzákis há uma curiosidade universal,

uma necessidade de investigar sem limites outras culturas. De suas inúmeras viagens ele

recolherá as mais diversas experiências humanas que o ajudarão na formação de sua

cosmovisão e na composição de sua literatura. Essa visão abrangente e multifacetada o

conduzirá, num certo sentido, a permanecer sempre insatisfeito com sua obra e longe da

certeza de um conhecimento verdadeiro ou filosófico da vida e do mundo.

Sempre quando alcanço alguma certeza, meu descanso e segurança são de curta direção. Novas dúvidas e ansiedades rapidamente nascem desta certeza e sou obrigado a inaugurar uma nova luta para me liberar da primeira certeza e encontrar uma nova – até que finalmente esta nova amadureça por sua vez e seja transformada em incerteza... Como então podemos definir a incerteza? Incerteza é a mãe de uma nova certeza (KAZANTZAKIS, 1975, p. 235).

Como um peregrino, ou um buscador, Kazantzákis é movido por essas

experiências de curiosidade e de admiração por tudo, pela inquietação e excitação de

saber algo; a necessidade de um aperfeiçoamento espiritual e da busca de um absoluto

que deveria ser alcançado. São sentimentos que revelam a alma de quem está perdido,

de quem sabe que não sabe nada, sensações muito próprias dos místicos e dos poetas.

Frente aos problemas e as dificuldades que em todas as épocas, em menor ou

maior grau, as sociedades humanas tiveram que enfrentar, Kazantzákis se colocou e

procurou estudá-los, aprofundá-los, e, assim, propôs a sua mensagem, ou, melhor

dizendo, o seu “grito”. Cada homem tem um grito, o seu grito, para jogar no ar antes que morra; portanto não vamos perder tempo, para que não sejamos pegos de surpresa. É verdade que este grito pode espalhar-se ineficazmente no ar, que não haja um ouvido seja na terra ou no céu que o ouça. Não importa. Não és um carneiro, és um homem e isto significa que é uma coisa que está desacomodada e que grita. Bem então – grite! (KAZANTZAKIS, 1975, p. 333).

O próprio escritor interpreta sua obra como um esforço por parir um grito, por

expressar um grito de luta e perplexidade diante da vida. Tal é, portanto, sua

manifestação em Carta a Greco: “Toda a minha vida é um grito e toda a minha obra a

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interpretação desse grito” (KAZANTZAKI, s/d, p. 9). Sua palavra não é uma voz suave

e doce para servir de consolo aos homens. Sou o homem mais sensível que existe, mas quando sinto um “grito” em mim, não aceito transformá-lo em um balbucio para satisfazer aos mudos e tartamudos. Não desejo agradar a ninguém, nem ter discípulo e nem ser discípulo. Vim a este mundo por alguns instantes e quero lançar um grito e partir. Nada mais (apud STASSINAKIS, 1998). 25

Como tantos outros intelectuais, Kazantzákis também recebeu as influências das

grandes correntes políticas e sociais da época. Foi, ao seu modo, simpatizante do

comunismo e esteve na Rússia por três vezes. Aliás, em 1927, por ocasião do décimo

aniversário da Revolução, foi o único grego convidado pelo governo soviético para

participar das comemorações. Mas houve também um desgaste pessoal com o

comunismo, do qual, a bem da verdade, ele nunca foi verdadeiramente adepto. É

interessante frisar aqui o quanto a postura ideológica de Kazantzákis chega a ser

extremamente contraditória quando avaliada por seus contemporâneos: para alguns ele

aparece como um inquieto comunista; enquanto para outros, ele é visto como um

místico de pouca utilidade26.

Em 26 de maio de 1928, quando se encontrava em Kiev, ele escreve uma carta a

Eléni fazendo o seguinte comentário:

É natural que a Rússia já não me inspire a primeira emoção febril do contato virginal: a) porque ela não se encontra mais em seu período heroico e avança cada vez mais para um equilíbrio normal, primordial é claro, mas que não exalta mais minha alma; b) porque não sou um homem de ação e não posso me interessar, sem trégua, pela melhoria de um regime social (KAZANTZAKI, 1974, p. 156-157).

E com o tempo, cada vez mais, vai ocorrendo uma separação entre o comunismo

e Kazantzákis: “o comunismo permanecerá com as leis históricas, Kazantzákis com um

impulso maior, a ascensão da humanidade. O dionisismo kazantzakiano não cabia de

forma plena nas doutrinas de Marx e Lenin” (ÁLVAREZ, 2009, p. 41-42). De fato, o

escritor grego nunca foi um militante, nunca se comprometeu verdadeiramente com uma

ideologia política. Sinal típico de alguém que buscou acima de tudo a mais profunda

25 Stassinakis cita estas palavras do escritor no artigo “Nikos Kazantzakis, un pensador de nuestro tiempo”, publicado originalmente na revista Byzantion Nea Hellás, n. 18, 1998. Nosso acesso a este artigo se deu pelo site: www.apocatastasis.com, por meio do índice “Cultura helênica, helenismo, Grécia”. No site, porém, não há numeração das páginas. 26 Entre outros, ver a este respeito o livro de Bidal-Baudier, Nikos Kazantzakis: Como el hombre se hace inmortal, precisamente a Segunda parte “Retratos”, onde a autora apresenta as várias e contraditórias impressões em torno da figura de Kazantzákis.

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liberdade. Mesmo assim, isso não o impediu, em caso de necessidade, de tomar

posições públicas em defesa dos oprimidos, contra a fome, contra a guerra e em favor

da paz. Exemplos disso podem ser vistos quando defendeu a Resistência grega (durante

a ocupação nazista e, depois, durante a guerra civil), quando participou na criação da

União Socialista dos Trabalhadores, e defendeu os movimentos de libertação nacional.

Por esses motivos, recebeu em 1956, em Viena, o Prêmio Internacional da Paz.

A postura do escritor era guiada por preocupações humanas e éticas, e não por

interesses político-partidários. No fundo, a maior preocupação de Kazantzákis era com

o desenvolvimento espiritual da humanidade. Por isso, ele declara em Carta a Greco:

“Toda a minha vida lutei para alargar o meu espírito até ele ranger, e ficar prestes a

romper-se; para criar uma grande ideia que pudesse dar um sentido novo à vida, um

sentido novo à morte, e consolar os homens” (KAZANTZAKI, s/d, p. 487). Esta

preocupação em buscar um novo sentido para a humanidade está consolidada, por

exemplo, em sua conferência para a BBC de Londres em 1946, ou seja, no momento em

que o mundo vivia os rastros de destruição e incertezas deixados pelo pós-guerra. Aqui,

Kazantzákis lança uma chamada aos intelectuais do mundo inteiro. Apesar de ser uma

citação extensa, creio que valha a pena reproduzir alguns pontos dessa significativa

chamada: Para que uma civilização se mantenha em um nível elevado, é preciso estabelecer a harmonia entre o espírito e a alma. Esta síntese deve constituir o fim supremo da luta atual da humanidade. A tarefa é difícil, mas a realizaremos se soubermos claramente o que queremos e para onde vamos. Mas antes de chegar a isso, é natural que vivamos o caos e a anarquia. Caos moral e espiritual. Qualquer um que hoje entre em contato com homens conscientes, em qualquer parte do mundo, observa inclusive neles as consequências inevitáveis da guerra, quer dizer, os resultados da angústia e da fome, desânimo, ansiedade e incerteza; e, sobretudo, a ausência de uma moral estável, universalmente reconhecida, a base na qual se possa reconstruir a vida interior do homem do pós-guerra. Não devemos nos enganar: a verdadeira reconstrução não é a de fábricas, barcos, casas, escolas e igrejas destruídas pela guerra. Uma civilização só pode se estabelecer a partir de bases espirituais. A vida política e econômica é governada por realizações espirituais do homem. Como poderá o homem se refazer interiormente em um clima de cansaço, de ansiedade e de incerteza? Só existe um meio: mobilizar todas as forças de luz que estão adormecidas em cada homem e em cada povo. Neste momento crítico não existe outra saída. Devemos mobilizar todos os nossos recursos para combater a mentira, o ódio, a pobreza, e a injustiça. Devemos levar a virtude a este mundo. Quem são os homens que levarão adiante os recursos morais da humanidade? Não podemos esperar que este grito, este toque de chamada, o mais importante de todos, proceda de chefes temporais, políticos, técnicos ou economistas. Só os líderes espirituais do mundo podem e devem cumprir esta nobre missão, por cima das paixões pessoais. Em nossos dias a responsabilidade do pensador é

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muito grande, pois as paixões são cegas e engendram a luta, e são formidáveis as forças materiais que o espirito colocou nas mãos dos homens: de sua utilização depende a salvação ou a perdição da humanidade. Consideremos claramente a perigosa época que atravessamos e veremos qual é o dever espiritual do homem de hoje. A beleza já não basta, nem a verdade teórica, nem a bondade passiva. O dever do homem de hoje é maior e mais complexo que no passado. Ele deve aportar a ordem ao caos depois da guerra e abrir um caminho. Deve descobrir e formular um novo grito de chamada universal capaz de estabelecer a unidade, ou seja, a harmonia entre intelecto e coração. Deve encontrar palavras fáceis que, uma vez mais, revelarão aos homens esta verdade muito simples: todos os seres humanos são irmãos (KAZANTZAKI, 1974, p. 361-362).

Nota-se por este texto que a primazia dos valores espirituais não se encontra

totalmente desvinculada da política no desenvolvimento do pensamento de Kazantzákis.

Ocorre que para ele a “salvação” não viria das ideologias políticas ou econômicas, seja

do comunismo ou de qualquer outra. O escritor grego acabou por rejeitar cada uma

dessas possíveis soluções como moralmente cruéis. E passou a insistir efetivamente em

uma “política escatológica” de realização espiritual (cf. BIEN, 2007, p. 3 ss.).

Para Kazantzákis a grande virtude não está em ser livre, mas em lutar

incansavelmente por uma liberdade pessoal. E liberdade para o escritor significa antes

de tudo ausência de temor e de esperança. Não se deve esperar nada; não se deve buscar

recompensas e honras. Escreve em Carta a Greco: “Todas as religiões que prometem

ao homem o que ele deseja começavam a parecer-me um refúgio para medrosos,

indignas do homem autêntico” (KAZANTZAKI, s/d, p. 329); e um pouco mais adiante

acrescenta: “me parece que a fé mais desesperada não só é a mais verídica, como a mais

viril; e a esperança metafísica um engodo incapaz de iludir o homem autêntico”

(KAZANTZAKI, s/d, p. 330). Este é um dos importantes aspectos do pensamento de

Kazantzákis, e não é por acaso que sobre sua tumba figure, então, aquele já mencionado

epitáfio: “Não espero nada. Não temo nada. Sou livre”. Isto significa que não teme o

porvir, a vida eterna; que se libertou de todas as superstições, tornando-se, portanto,

livre. Esta pode ser considerada a sua mensagem de redenção.

O poeta cretense considerava que somente um caminho o conduziria a Deus: a

ascensão. Ainda que hesitasse sobre o significado da palavra Deus, ele nunca hesitou

sobre a “estrada” que o levaria ao “topo supremo do desejo do homem”

(KAZANTZAKIS, 1975, p. 335). Desse modo, para alcançar a liberdade o ser humano

deve sempre “ascender”. A “ascensão” é sempre o meio supremo pra Kazantzákis. Subir

permanentemente, lutar a cada instante para se chegar a um degrau mais alto, e, quando

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aí chegar, ascender ainda mais. Trata-se, nesse sentido, de uma luta constante e

interminável pela liberdade. O ser humano deve sempre lutar, superar-se a cada instante

para alcançar Deus, ou seja, a liberdade absoluta.

O escritor cretense costumava dizer: “Cada homem adquire a altura do inimigo

com qual luta. Agradava-me, mesmo se significando minha destruição, de lutar com

Deus. Ele pegou na lama para criar um mundo. Eu pegava as palavras”

(KAZANTZAKIS, 1975, p. 103). Esse seu orgulho, essa sua intransigência e

independência selvagem que lhe faziam recusar os valores solidamente estabelecidos,

encontram significado também em sua raça e no solo do qual era parte, a ilha de Creta.

É, dessa maneira, o dissidente, conforme o qualificativo atribuído por sua segunda

esposa27, o rebelde cretense que prefere a morte à servidão.

Kazantzákis costumava atribuir a Creta o significado simbólico de uma missão

espiritual. Geograficamente esta ilha se encontra entre o Oriente e Ocidente, no meio do

Mediterrâneo, um lugar onde se encontram e se mesclam ideias diferentes e de origens

variadas. Sua responsabilidade e missão encontram-se na tentativa de reconciliar esses

dois imensos mundos, em fazer a síntese. Segundo Kazantzákis, mais do que a beleza, o

feito maior de Grécia é a luta pela liberdade, um difícil destino que o escritor, como

bom cretense que era, assumiu para si.

Da sua raça e do seu solo, portanto, Kazantzákis extrai aquilo que ele chamará

de “olhar cretense”. Trata-se de uma concepção que possui uma densidade

profundamente filosófica e que reflete o centro de sua complexidade humana, entre o

escritor e o pensador. O olhar cretense foi uma espécie de revelação que o escritor grego

teve ao observar os afrescos de Knossos, aquelas antigas paredes pintadas com as

chamadas tauromaquias, ou jogos com touros, em que os ancestrais cretenses

transubstanciavam o medo e o convertiam em virtude espiritual.

Olhei para as paredes pintadas, a agilidade e a graça da mulher, a força imperturbável do homem, como brincavam com o touro frenético enfrentando-o com olhares intrépidos [...] Assim o cretense transubstanciava o horror, transformando-o num jogo exaltado no qual a virtude do homem, em contato direto com a onipotência sem mente, recebia o estímulo e conquistava sem aniquilar o touro porque não o considerava um inimigo, mas sim companheiro de trabalho [...] Certamente que uma pessoa necessita muito treino de alma e de corpo se deseja ter a resistência para observar o animal e brincar de tão perigoso jogo. Mas uma vez treinado e adquirido o tino do jogo, cada um de seus movimentos se torna

27 É o título do livro escrito por Eléni Kazantzaki dedicado ao seu marido: Le Dissident (1968). Em nossa pesquisa estamos usando a edição publicada na Espanha em 1974: Kazantzaki El Disidente: visto a través de sus cartas, sus notas, sus textos inéditos.

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simples, certo e lento; enfrenta o medo intrepidamente. Enquanto olhava as lutas representadas nas paredes, a antiga batalha entre o homem e o touro (a quem hoje chamamos de Deus), digo-me: “Tal era o olhar cretense” (KAZANTZAKIS, 1975, p. 338).

Segundo Kazantzákis, a face da época em que vivia era terrível e feroz, de tal

sorte que as almas frágeis não conseguiam olhá-la de frente. Assim, o olhar cretense

pode ser interpretado como um modo de se ver o abismo (Deus?), de se colocar de pé

frente a ele sem se decompor; de encarar a vida e a morte a partir de um ponto vista de

abertura para o novo, e, de fato, viver uma vida nova, mais plena, mais heroica e mais

consciente.

A partir da ideia de luta sua escritura se orientará, em grande medida, no sentido

de desenvolver e cultuar a figura do herói. Desse modo, convocará um seleto grupo de

personagens, que envolvem homens históricos, figuras inspiradas na ação e na reflexão,

que lhe servirão de exemplo e arquétipo para a fundação de uma nova forma de

avaliação do mundo. Esses eleitos (só para citar alguns: Cristo, Buda, Nietzsche, São

Francisco de Assis, Lênin, El Greco) refletem, segundo Kazantzákis, uma luta e um

esforço que obedecem tão somente à liberdade, uma heroicidade condizente com a

época em que viveram. Guardadas as diferenças relativas ao tempo em que cada uma

dessas personalidades viveu, bem como a diversidade de suas ideias, tais exemplos

“representavam para Kazantzákis um único e mesmo caminho: o esforço heroico, vital e

visionário de superação do destino e dos valores arraigados” (BERNARDES, 2010, p.

4).

Um aspecto notável no pensamento do poeta grego é a veneração pela natureza,

o que o torna bastante atual em tempos de discussões ecológicas e propostas de éticas

planetárias28. Tendo crescido na fascinante ilha de Creta – próximo ao mar, às árvores,

aos animais e aos camponeses – Kazantzákis absorveu e sempre manteve em sua alma a

vida fincada na terra, e a fez florescer com belíssimas descrições em sua obra.

Espalhados em seus escritos encontram-se inúmeras passagens sobre a importância da

natureza, combinando um compromisso humanista com a construção de um habitat

terrestre. Em Toda Raba, por exemplo, está escrito: “Sejam simples e bons! Amem os

28 Sobre este aspecto mencionamos o livro The Terrestrial Gospel of Nikos Kazantzakis (consultar a bibliografia). Trata-se de uma antologia de trechos selecionados de vários livros de Kazantzákis, centrando-se sobre a natureza e revelando o amor que este autor sentia por ela. O editor da obra, Thanasis Maskaleris, afirma que não são apenas trechos poéticos decorativos, mas uma homenagem à fonte vital da sempre regenerativa vida humana, do crescimento biológico, do espírito individual e da comunidade ecológica.

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homens, amem os animais e as plantas... Amem a matéria, não a violentem!”.

(KAZANTZAKIS, 1977, p. 131). No romance sobre a vida de são Francisco de Assis,

O Pobre de Deus, Kazantzákis coloca as seguintes palavras na boca do santo:

- Ah! Se eu fosse Deus – disse-me rindo –, faria entrar no Paraíso os bois também, como os santos... Podes tu imaginar, meu irmão Leão, um Paraíso sem burrinhos, bois e pássaros? Eu, por mim, não posso. Não bastam os anjos e os santos, não bastam. O Paraíso deve ter também burrinhos, bois e pássaros! (KAZANTZÁKIS, 2002, p. 55).

Em Ascese Os Salvadores de Deus lhe consagra dois momentos para reverenciar

a natureza: aparece na seção “A Marcha” quando se leva em conta nosso parentesco

com toda a Terra; e também em “A Prática” quando se reflete “A relação entre homem e

a natureza”. O escritor grego reconhece, pois, uma dimensão divina na natureza e busca

nela a concordância, a consonância, a harmonia perfeita entre o ser humano e o

universo.

Digno de nota e de interesse capital para o nosso estudo é o pensamento

religioso que transborda da obra de Kazantzákis. A este respeito ele é categórico: “Por

uma só coisa anseio: apreender o que se esconde atrás dos fenômenos; desvendar o

mistério que me dá a vida e a morte; saber se uma presença invisível e imota se esconde

além do fluxo visível e incessante do mundo” (KAZANTZÁKIS, 1997, p. 47). Em El

disidente encontramos esta afirmação: “Toda minha obra tem como marca e finalidade:

Come l’uomo s’eterna29. É aí onde vou parar” (KAZANTZAKI, 1974, p. 51). Na

mesma obra Eléni assinala: “Fundar uma religião, fundar uma religião a todo custo,

ideia fixa que perseguirá Kazantzákis durante muitos anos, levando ao extremo suas

tendências inatas de ascetismo” (KAZANTZAKI, 1974, p. 52).

Ao que tudo indica o pensamento religioso deste autor dá sinais de estar muito

mais próximo de nós do que de seu tempo. Nesse sentido, Peter Bien dirá: “Kazantzákis

estava filosoficamente à frente de seu tempo e, em muitos aspectos, ainda está à frente

do nosso”; na sequência do comentário, Bien esclarecerá que a utilização da palavra

“filosoficamente” neste contexto, significará “‘religiosamente’, porque a filosofia básica

de Kazantzákis é uma cosmologia – ou seja, um estudo de como funciona o universo.

Isto é o que a religião normalmente procura explicar” (BIEN, 2008, p. 1).

No entanto, o escritor cretense não se satisfaz com as respostas tradicionais da

religião, e, neste aspecto, deve-se reconhecer que para compreender seu pensamento

29 Como o homem se faz eterno.

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religioso é necessário fazer algumas distinções entre o que é religião, o que é Igreja e o

que é religiosidade. Assim, “a religiosidade é o núcleo, a religião a casca; a

religiosidade é o vivido, a religião é a expressão. Enquanto a Igreja é a instituição.

Kazantzákis se colocava na esfera da religiosidade” (STASSINAKIS, 1998). Portanto,

diante da perspectiva kazantzakiana é melhor nos referirmos em termos de mística e

espiritualidade.

A relação do ser humano com Deus, a visão peculiar de Kazantzákis a este

respeito, é um tema recorrente em toda sua obra: (...) o tema principal, quase único, de toda minha obra, é o combate do homem com “Deus”, a luta acirrada do verme chamado “homem”, contra as forças todo-poderosas e tenebrosas que se encontram nele e em torno dele; a obstinação, a luta, a tenacidade da pequena Faísca que trata de penetrar e vencer a imensa Noite eterna. A luta e a angústia por transformar as trevas em luz, a escravidão em liberdade... (KAZANTZAKI, 1974, pp. 408-409).

Kazantzákis buscava a riqueza espiritual. Com esta intenção, tornou-se um

estudioso das religiões e das filosofias. Sentiu-se verdadeiramente atraído por Buda,

mas é muito provável que nenhuma outra figura o tenha impressionado tanto quanto o

Cristo. O rosto de Cristo me fascinara indescritivelmente desde minha infância. Acompanhara-O pelos ícones no Seu nascimento, ao atingir de Seus doze anos, parado num barco a remos levantando Sua mão e aquietando o mar. Depois quando O flagelaram e crucificaram e quando gritou da cruz: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” E depois, quando numa bela manhã se levantou do túmulo e ascendeu ao céu, tendo nas Suas mãos o estandarte branco. Vendo-O eu também era flagelado. Eu também era crucificado e ressuscitado. (KAZANTZAKIS, 1975, p. 74).

Tal fascínio pela figura de Cristo fez com que ao menos cinco de suas obras o

tomassem como inspiração. Vale lembrar, então, que o escritor grego lhe dedicou uma

peça de teatro e um extenso poema métrico. Em sua obra máxima, a Odisseia, também

lhe consagrou um Canto. Mais tarde escreveria, ainda, os romances O Cristo

Recrucificado, e, em seguida, A última tentação de Cristo. Além destes, escreveu O

pobre de Deus, que é um romance sobre São Francisco de Assis, o santo que

Kazantzákis mais reverenciou. Este é considerado seu último romance, e, de acordo

com Miguel Castillo Didier, pode-se dizer que se trata de “uma sexta obra sobre a figura

de Cristo, enquanto nela aparece a visão que de Cristo tinha Francisco e enquanto a

imagem de Francisco tende a identificar-se com a de Jesus” (DIDIER, 1997, p. 124).

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Em todas essas obras a preocupação maior do autor é enfatizar a natureza humana de

Jesus.

Com relação à Igreja, a instituição, Kazantzákis teve alguns problemas. Devido

ao teor considerado herético de sua obra, a Igreja Ortodoxa Grega cogitou excomungá-

lo. Em 1954, o romance A última tentação de Cristo é colocado pelo Papa na Lista dos

Livros Proibidos, que considerou esta obra indecente e atéia. Ao comitê da Igreja

Católica Romana e à hierarquia ortodoxa de Atenas, Kazantzákis envia a seguinte frase

de Tertuliano: “Ad tuum, Domine, tribunal appello” (Apresento, Senhor, meu apelo em

seu tribunal), e acrescenta: “Vocês, santos Padres, me deram uma maldição. Eu lhes dou

uma benção: fiquem com a consciência limpa como a minha, e que tenham moral e

sejam tão religiosos como eu” (KAZANTZAKI, 1974, p. 423).

Atualmente alguns teólogos têm se interessado pelo pensamento religioso de

Kazantzákis por considerá-lo um precursor do que se pode chamar de pós-modernismo

teológico.30 Darren Middleton, por exemplo, argumenta que Kazantzákis, tal como

Nietzsche, foi um dos que previu aquilo que hoje se reconhece como virada pós-

moderna na filosofia e na religião. Ao abordar a vida de uma maneira que prefigura a

natureza perturbadora da pós-modernidade e de suas atuais tendências filosóficas, o

escritor grego, segundo Middleton, foi capaz de perceber o Ser como um evento, e Deus

como um verbo ativo. De fato, o ar da incerteza, da contingência e a concepção do devir

ou do vir a ser pairam sobre a obra de Kazantzákis, e nela, por meio da tarefa tão

defendida de “transfigurar a matéria em espírito” 31, é possível acompanhar a passagem

de uma ontologia do ser para a contingência do se tornar.

Por tudo o que se viu, há que se reconhecer na base filosófica da produção

literária de Kazantzákis uma série de aspectos significativos para se pensar a relação

entre literatura e religião. No sentido de ir encerrando este tópico, quero citar um

pequeno trecho de uma carta que sintetiza muito bem tudo o que foi dito até aqui. A

carta foi escrita por Kazantzákis em 1954 a um amigo de infância que se tornara

sacerdote ortodoxo grego, o padre Papastefánou. O ser humano – e não apenas o ser humano, mas também o Universo – tem um único propósito: transubstanciar a matéria em espírito. [...] Meu propósito particular tem sido [...] salvar a minha alma por meio das palavras –

30 Darren Middleton vê algumas analogias entre Kazantzákis e quatro grandes filósofos pós-modernos da religião: John Caputo, Don Cupitt, Loyd Geering e Gianni Vattimo. Cf: TZIOVAS, Dimitris. From being to becoming: reflections on the enduring popularity of Kazantzákis. Byzantine and Modern Greek Studies. Vol. 33, N. 1, 2009, p.86. 31 Ver Ascese, 1997, pp. 111-112; 119.

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escrevendo. [...] com a fé inabalável de que desta forma estou colaborando com Deus. Eu passei por três grandes fases teológicas: 1. Oh Deus, tu vai me salvar. 2. Oh Deus, eu vou te salvar. 3. Oh Deus, trabalhando juntos seremos salvos juntos (apud BIEN, 2008, p. 5).

Escrita quase no final de sua vida esta carta toca em alguns pontos de uma

teologia que, conforme teremos oportunidade de ver, já havia sido elaborada por ele

muito antes em Ascese. Ou seja, trinta anos depois, na carta enviada ao amigo,

encontram-se aquelas mesmas ideias tão presentes em Salvadores de Deus, e que

compreende o ser humano como um lutador, um colaborador de Deus no propósito da

salvação, e, além disso, manifesta que o seu propósito ao escrever não era outro senão a

salvação, sugerindo a escrita como uma forma de se buscar a redenção.

***

Neste primeiro capítulo procuramos apresentar os momentos marcantes da vida

e da obra de Kazantzákis. Uma vida que presenciou desde muito cedo, em seu chão

natal, a batalha dolorosa pela liberdade. A partir daí, esteve em constante movimento,

tanto por curiosidade em conhecer novos lugares, povos e culturas, quanto pela

intensidade de suas inquietudes existenciais – o seu Grito – que o empurrava para novas

descobertas espirituais e que acabaram fazendo dele um tipo peregrino.

Tudo isso contribuiu na elaboração da sua visão de mundo e é expressa na sua

obra. Deus, luta e liberdade surgem como elementos fundantes e servem como horizonte

para o seu desenvolvimento literário, conforme pudemos verificar ao passar em revista

seus trabalhos principais.

Constatamos, finalmente, que por trás do revestimento literário que Kazantzákis

dá a toda a sua obra encontra-se nela uma profunda dimensão filosófica. De um modo

bastante amplo, pudemos perceber o trato que ele dá às questões do seu tempo

relacionadas principalmente com a política e com a religião, indo sempre além dos

sentidos partidário e dogmático que esses temas poderiam sugerir. Enfim, a escrita de

Kazantzákis é a confissão poética de seus desvelamentos místico-filosóficos, cujo

empenho não era outro senão a luta pela liberdade, a busca por redenção. E isso nos dá,

portanto, um gancho para iniciarmos a discussão do próximo capítulo.

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Capítulo 2 – Ascese. Os Salvadores de Deus: trajetória de uma

escrita em busca de redenção Existem três espécies de escritores:

Os que olham para trás – romantismo, evasão, estetas;

Os que olham à sua volta – a podridão, o mundo decadente de nossos dias;

Os que olham ao longe, o futuro e que lutam para criarem a matriz donde

brotará a realidade futura.

Nikos Kazantzákis

Kazantzákis é certamente um escritor da terceira espécie citada na epígrafe

acima. O escritor que olha para frente e cuja escrita passa a significar uma ferramenta de

luta. Escrever torna-se, então, um ato que, numa certa acepção, deve ultrapassar o

estético para assumir o poder de mudança, de transformação, de redenção. Podemos

encontrar muitas de suas declarações nesse sentido. Vejamos, por exemplo, a seguinte

passagem de Testamento para El Greco: Escrever poderia ter sido um jogo em outros tempos, em tempos de equilíbrio. Hoje é um grave dever. Seu objetivo não é o de entreter a mente com contos de fadas e fazer com que esqueça, mas proclamar um estado de mobilização a todas as forças luminosas que ainda sobrevivem na nossa época de transição e de apressar os homens a fazerem o máximo para ultrapassar o animal. [...] Sei que o que escrevo nunca será consumado artisticamente, por eu propositadamente querer ultrapassar as fronteiras da arte, e assim a harmonia, a essência da beleza é distorcida. Quanto mais escrevia, mais sentia que ao escrever eu lutava, não pela beleza, mas pela redenção. Ao contrário de um escritor de verdade, eu não conseguia tirar nenhum prazer em criar uma frase enfeitada ou de combinar uma rima sonora; eu era um homem que lutava e que estava machucado, um homem que buscava a redenção. [...] Meu objetivo ao escrever não era a beleza, era a redenção (KAZANTZÁKIS, 1975, p. 314-315).

A obra Ascese expressa esta perspectiva. Já no nível da forma ela manifesta sua

redenção ao se libertar da imposição e dos limites de um único discurso ou de um único

gênero, tornando-se uma obra de difícil classificação. Em uma carta enviada a Eléni, no

mês de setembro de 1927, Kazantzákis faz o seguinte comentário: “Todos consideram

Ascese uma obra de arte e não um grito de busca, de angústia, porque ninguém tem em

seu interior esse Grito...” (KAZANTZAKI, 1974, p. 137). E numa outra carta de

novembro do mesmo ano, o escritor diria ainda:

Ascese, que escrevi com meu sangue, é um grito terrível que se escutará depois de minha morte. Hoje os homens só compreendem a forma poética. Mas entre

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as frases e imagens líricas brota ardentemente, para além do desespero e da esperança, o futuro rosto de Deus... (KAZANTZAKI, 1974, p. 142).

De fato, em Ascese aparece toda aquela prodigiosa facilidade de Kazantzákis

para criar imagens poéticas. Seu conteúdo se apresenta na forma de versículos, que

recorda ao mesmo tempo a Bíblia e Assim falou Zaratustra, de Nietzsche. Portanto, em

Ascese é possível dizer que a palavra se converte em uma literatura nômade que

redescobre novos e velhos cruzamentos de caminhos, por onde o pensamento

filosófico/religioso tornou-se um bom acompanhante de andança.

Para acompanharmos o máximo dessa escrita e dos seus caminhos ou trajetória

de busca por redenção, e, assim, poder apreciá-los dos mais diversos prismas, neste

segundo capítulo iremos nos aproximar da obra Ascese basicamente de duas maneiras.

Os primeiros pontos a serem abordados referem-se, por assim dizer, às circunstâncias

que cercam externamente a obra, ou seja, aquilo que diz respeito ao seu contexto e suas

motivações, suas influências e suas intenções. Depois, então, entraremos no texto

propriamente dito, apresentando, em primeiro lugar, um resumo descritivo de cada uma

de suas seções, e, em seguida, abriremos uma discussão em torno da sua caracterização

literária.

2.1 Os antecedentes e as motivações da composição de Ascese

Entre maio e agosto de 1922, Kazantzákis encontrava-se em Viena. Durante esse

período ele escreve a primeira versão de Buda, uma obra dramática que ele ainda

remodelaria durante longos anos32. Neste momento, por um lado, o envolvimento com o

estudo sobre a vida de Buda estava lhe conduzindo para a renúncia do prazer; por outro,

sua constante atração pelo mundo e a sedução das mulheres vienenses o inclinavam ao

júbilo. Tal era o conflito em seu íntimo. Por coincidência ou, quem sabe, por efeito

psíquico, de acordo com a explicação do doutor Steckel, discípulo de Freud, um

estranho eczema lhe cobriu repentinamente todo o rosto. Ele, que tanto amava a beleza e

repugnava a enfermidade, se viu encarcerado sob uma terrível máscara. Durante

semanas esta “máscara da sexualidade” ou “doença dos ascetas”, segundo a definição

do psicanalista, o atormentou, e só despareceu de seu rosto depois que ele deixou Viena.

Para além deste conflito tão íntimo, Kazantzákis também se sente

profundamente abalado com a situação de desalento na qual praticamente toda a Europa 32 Kazantzákis trabalhou e reelaborou esta obra por cerca de vinte anos, sendo que é considerada como definitiva a versão de 1941.

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estava mergulhada. Já em suas primeiras impressões sobre Viena, descritas nas cartas

enviadas a Galatea, ele relata o estado de calamidade daquele lugar: (Viena) 12 de maio, 1922

O horror de Viena, que está desmoronando, é indescritível. Organizou-se um serviço especial de polícia para impedir que as pessoas desesperadas se joguem durante a noite ao Danúbio. Mesmo assim, muitos chegam a burlar a vigilância e se jogam, principalmente mães com seus filhos. À noite inúmeras mulheres tratam de “entregar-se” pelas ruas para poderem comer. Eros por fome! Não existe amargura mais terrível! [...] Hoje, diante dos olhos da infame Europa, assassinam-se lentamente, pela fome, a milhares de crianças, de mulheres (KAZANTZAKI, 1974, p.68).

O contexto do sua terra natal também era desastroso. A Grécia vivia em 1922

uma guerra de efeitos devastadores em número de mortos e no plano ideológico.

Milhares de gregos foram dizimados em um embate contra os turcos em Esmirna

(localizada na Ásia Menor). As sequelas da tragédia atingiram não só as vítimas do

ataque, mas igualmente os gregos do continente, que precisaram receber e abrigar os

fugitivos desterrados.

Frente a todo esse quadro, o horror de Viena, a tragédia da Ásia Menor, enfim,

frente a toda essa violência e esse caos, Kazantzákis se acha em uma situação de

implacável indignação e angústia. Deve-se acrescentar ainda a sensação do fracasso na

ação política direta, a incapacidade pessoal que Kazantzákis tinha a respeito de si

mesmo neste âmbito33. De certa maneira, isso pode revelar que a sua atração por Buda

também era advinda da extrema desilusão política, a qual ele vinha acumulando por

esses meses. Ora, o personagem de Buda lhe havia ensinado a menosprezar os prazeres

e sofrimentos mundanos, a enfrentar o cotidiano com disciplina de monge e a não se

contaminar com as ilusões. Por isso, “desde que sentiu que estava confirmada a

vanidade de qualquer esforço, ele se tornou maduro para aceitar um sistema religioso

que explicasse seu sentido de inutilidade” (BIEN, 1983, p. iii).

Chegando a Berlim, em setembro de 1922, Kazantzákis estava ainda em plena

fase budista. Entretanto, um passeio com uma jovem judia, que lhe levou aos bairros

pobres e lhe mostrou as crianças famintas, as mulheres chorando, os homens sem

emprego, tristes e calados, acabaram contribuindo para despertá-lo do seu sonho búdico.

Diante de tanta dor não lhe era mais permitido permanecer impassível. O sofrimento

humano não é uma ilusão. Ele declara: “Cada último pedacinho de meu coração, eu

33 Lembramos, principalmente, que entre os anos de 1919 e 1920 Kazantzákis ocupou o cargo de diretor geral do Ministério da Assistência Social da Grécia, e que a constante instabilidade política em seu país o havia desiludido.

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sentia, não tinha sido envolto pelo manto amarelo. Um pulsar escarlate ainda estava

pulsando obstinadamente, recusava a deixar que Buda tomasse posse total de mim”

(KAZANTZAKIS, 1975, p. 249). Definitivamente, aos olhos do escritor cretense, a

Europa daquele tempo tornara-se a viva imagem de que o Ocidente se encontrava em

uma grave crise e começou a se perguntar: O que fazer? Escrever ou lutar? Como

sobreviver a tudo isso?

Num outro ponto da Europa, na Rússia, há pouco ocorrera uma das grandes

agitações da história34, contra a qual se ergueram, num impulso de autodefesa, quase

todos os países do mundo. Mas o que ocorria na Rússia também chamava a atenção e

ganhava adeptos em toda a parte como se fosse uma nova religião, e “cuja fé e ardor

combativo ultrapassavam de longe os arroubos de seus adversários” (IZZET, s/d, p. 5).

E é por essa época que Kazantzákis se aproxima de um grupo de jovens comunistas,

cujo anseio de ação e de luta logo o impressionou. Sob a influência deste grupo ele

desejou atenuar seu espírito contemplativo e a buscar uma postura mais ativa. Dessa

maneira, o poeta que existia em seu interior esperava converter-se um dia em um

homem de ação. Desde esta perspectiva as ideias comunistas encontraram nele boa

acolhida. Em uma carta do começo de novembro de 1922, ele escreve a Galatea:

Que triunfe a Rússia com o novo Deus. Que domine a Europa. Que o novo Deus proletário quebre todos os horríveis e vis ídolos, políticos, econômicos, morais, espirituais, e que proclame uma nova liberdade ao mundo. Toda a Ásia estremece. Rússia, crucificada, espera e prepara a Ressurreição. Toda a Europa se afunda na desonra e na escuridão. Não sei como se apresenta na Grécia todo este terremoto. Mas aqui, o caos é visível e palpável e a agonia por uma nova ordem é bastante profunda. No Ser Humano, No Homem, penso eu – seja este turco, grego, hebreu, seja quem for. Salvemo-los (apud PIZARRO, 2008, p. 278).

Não devemos nos esquecer “que o leninismo dos anos vinte não havia se fixado

ainda no endurecimento de um regime, nem havia se comprometido na rigidez de sua

aplicação: era somente um ímpeto, uma esperança, possibilidade inaudita para o ser

humano sair de seu cárcere e superar sua condição” (BIDAL-BAUDIER, 1986, p. 123).

Com efeito, o que importava para Kazantzákis não eram os fins ou o desfecho de uma

luta, mas a luta em si. A luta não era um meio para se atingir a liberdade: era já a

liberdade. Nesse sentido, Lenin não era, na compreensão do escritor, “somente o chefe

de uma insurreição ou de uma nova tentativa social; era o revolucionário, ou seja, o

34 A Revolução Russa: um período de conflitos iniciados em 1917, que derrubou a autocracia russa e levou ao poder o Partido Bolchevique, de Vladimir Lenin.

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signo de um turbilhão interno inerente à evolução criadora do homem e da História”

(IZZET, s/d, p. 6). Portanto, a Rússia, Lenin e o comunismo passam a significar para

Kazantzákis, naquele momento, metáforas de um impulso cósmico, a exaltação das

potencialidades humanas e sobre-humanas: quando a luta do povo se identifica com a

luta de Deus.

Em meio a toda essa pulsação vivida em Berlim, os ares da revolução soviética e

o anseio messiânico, o conflito entre a atração por Buda e o interesse por Lenin, ou seja,

a resignação budista e o ativismo comunista, Kazantzákis resolve, então, redigir para os

amigos uma espécie de manual visando o equilíbrio entre a ação e a meditação: “Ascese

é, afinal de contas, uma tentativa desesperada de conciliação entre mil antinomias, entre

as quais havia esta” (IZZET, s/d, p. 7). No final de dezembro de 1922, ele escreve uma

carta à esposa com a seguinte informação: Estou escrevendo Ascese, um livro místico em que descrevo um método pelo qual a alma ascende de ciclo em ciclo até alcançar o supremo Contato. Há cinco ciclos: Ego [Eu], Humanidade, Terra, Universo, Deus. E descrevo como nós ascendemos a cada degrau, e quando nós alcançamos o topo, como nós vivemos simultaneamente todos os ciclos anteriores. Estou escrevendo-o deliberadamente sem poesia, em uma forma seca e imperativa. Conto muito a você sobre isto porque é o último fruto de minha busca. Quando a busca terminará? Ou talvez meu propósito seja apenas a busca em si; esta progressão de ponto a ponto? Talvez seja a completa progressão de Deus? A busca em si – ascendente e com coerência – talvez este seja o propósito do Universo. Propósito e formas tornam-se identificados. ... Deus é a suprema expressão do incansável e esforçado homem. Oh, destemido, incurável Buscador! (apud FRIAR, 1960, pp. 12-13).

Tal como os “Exercícios Espirituais” de Santo Inácio de Loyola35, a Ascese de

Kazantzákis pretende ser um método de “iniciação”, visando uma espécie de

treinamento sistemático para a ascensão e o conhecimento de Deus. Numa formulação

alternativa à carta citada acima ele escreve ao amigo Papastefánou elencando quatro

etapas, o mesmo número empregado por Santo Inácio: Comecei... um novo livro, totalmente místico: Salvatores Dei. O objetivo é mostrar brevemente o método da salvação, com simples palavras. Está dividido em quatro grandes ciclos: (1) êxodo do eu, (2) êxodo da humanidade e do mundo, (3) êxodo do universo, (4) êxodo do êxodo. Cada ciclo tem seu decálogo, seu treinamento espiritual (ασκήσεις), suas virtudes (apud BIEN, 2007, p. 69).

35 Inácio de Loyola (1491-1556) foi o fundador da Companhia de Jesus, cujos membros são conhecidos como jesuítas. Os Exercícios Espirituais são o fruto dos assuntos sobre os quais ele refletiu, meditou e contemplou. Publicado em 1548, trata-se de um processo, de uma metodologia para uma experiência espiritual que tem como ferramenta principal a oração, e como meta o discernimento; totalmente fundamentado na experiência de Santo Inácio. Segundo Peter Bien, Ascese “foi um esforço lírico afetado por Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola, que Kazantzákis conhecia muito bem” (2007, p. 67).

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Em abril de 1923, tendo permanecido em Berlin durante todos esses meses,

Kazantzákis concluía aquela que viria ser a primeira versão de Ascese, e escreve a

Galatea: Ontem acabei de escrever Ascese. Isto é bom? Não sei. Esforcei-me com palavras simples, como uma confissão, para escrever a ascese de minha vida, de onde parti, como superei os obstáculos, como começou a agonia de Deus, como encontrei o conceito ou a ideia central que regula meu pensamento, minha palavra e minha ação (apud PIZARRO, 2008, p. 284).

Assim, num curto espaço de aproximadamente quatro meses, durante o tempo

em que esteve em Berlim, Kazantzákis escreveu sua Ascese. Entretanto, se deve ter em

conta que os primeiros esboços da obra já tinham sido traçados em Viena. Numa carta à

esposa, de nove de agosto de 1922, Kazantzákis havia revelado a intenção de se dedicar

“completamente a uma nova obra, claramente teológica”, e conclui: “Já esbocei seu

esqueleto” (apud PIZARRO, 2000/2001, p. 257).

Mais ainda, talvez se deva realmente considerar que o germe de Ascese teria sido

já concebido muitos anos antes, em 1914, quando ao lado do poeta Sikelianós havia

percorrido os monastérios do Monte Athos. Nesta peregrinação se agitava em sua mente

aquilo que ele confessou ser o “desejo mais essencial, mais elevado: criar uma religião”

(KAZANTZAKI, 1974, p. 46); tal era a razão deste retiro: “reorganizar o ascetismo

cristão”, insuflando nele um novo sopro criador (KAZANTZAKIS, 1975, p. 142). Com

efeito, não somente a vivência em Viena e Berlim teria sido o fator determinante na sua

intenção de escrever o manual. Na realidade, sendo Ascese o seu credo, uma espécie de

manifesto, Kazantzákis procurou concentrar ali todas as suas forças e todos os

resultados das suas experiências anteriores. Nesta obra, portanto, ele reuniu e entrelaçou

vários segmentos de seu passado numa tentativa de elaborar respostas para uma época

tão conturbada.

2.1.1 Um credo filosófico-religioso e político – o “metacomunismo”

Podem ser reconhecidas em Ascese, de acordo com Peter Bien36, as muitas

influências filosóficas que marcaram a trajetória do pensamento do escritor grego. Entre

estas encontramos: a visão do matemático francês Henri Poincaré (1854-1912), evocada

desde 1909 por Kazantzákis, de que a vida é um breve incidente entre eternidades de

36 O comentário sobre Ascese em Politics of the spirit, volume 1, p. 67-78.

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morte, ou de que a consciência é um instante de luz entre duas noites sem fim; e, no

mesmo sentido, a célebre frase de Pascal (1623-1662) “O silêncio eterno desses espaços

infinitos me apavora”, copiada pelo escritor em seu caderno de anotações; de Kant

(1724-1804), A crítica da razão pura que havia sido sintetizada por Kazantzákis, em

1909, no ensaio A ciência está falida?; de Nietzsche (1844-1900), o chamado para a

criação de uma nova tábua de valores; o subjetivismo de Shoppenhauer (1788-1860);

muito do evolucionismo criador, do élan vital de Bergson (1859-1941); do teórico

francês Georges Sorel (1847-1922), a convicção de que a consciência mítica longe de

inibir a ação a favorece, e seu acordo com a posição de Giambattista Vico (1668-1744)

sobre “o barbarismo da reflexão” como sinal do declínio da Europa; de Lev Shestov

(1866-1938), filósofo existencialista russo, a reflexão sobre a ausência de fundamento e

sobre o trágico; do historiador alemão Oswald Spengler (1880-1936) a predicação

baseada na “lei” histórica, de que a “época de transição” seria encerrada por um novo

elemento de interioridade, uma espécie de “segunda religiosidade” que se iniciaria a

partir da decadência do racionalismo e de sua incapacidade de socorrer a humanidade.

A complexidade de Ascese decorre, pois, do fato de que se tratava, para o

escritor, não apenas de um meio para esclarecer suas próprias ideias sobre as filosofias e

ideologias que ele havia examinado, mas também, e talvez mais que tudo, de apresentá-

las numa síntese satisfatória. O resultado de todo este esforço coloca a obra numa

posição de fundamental importância dentro da criação literária de Kazantzákis. Para

Aziz Izzet, um dos seus primeiros e melhores comentadores, Ascese “é a ossatura e o

coração de toda a obra do grande escritor grego” (IZZET, s/d, p. 14). Eléni Samiou,

segunda esposa e também biógrafa do escritor, dá seu parecer dizendo tratar-se de “um

pequeno livro que mais tarde servirá de chave para compreender melhor sua obra”

(apud DIDIER, 1975, p.18). É possível dizer, então, que Ascese “condensa, em sua

breve extensão, um excelente resumo do pensamento do autor e de sua atitude perante a

vida” (ARANCÓN, 1999, p. 137). Deve-se notar ainda que a obra pôs fim a um período

de mais de uma década (1910-1923) durante a qual o autor não publicou nada de muito

importante, exceto alguns artigos secundários, sem interesse especial, e algumas

traduções. “Terminado este relativo silêncio, Ascese foi reconhecido por Kazantzákis, a

partir de sua composição até o fim de sua vida, como o seu ‘credo’ definitivo, o impulso

por trás de toda a sua posterior poesia e prosa” (BIEN, 2007, p. 67).

Num certo sentido, poder-se-ia dizer que Ascese refletiria a irrenunciável

vocação profética do escritor grego em pregar a chegada de um novo evangelho ou de

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uma nova redenção para a humanidade. Por isso, o filólogo alemão Karl Kerenyi opina

que na realidade “era uma obra sobre uma nova religião; o chamado para a realização de

um mito, como demonstra o subtítulo Salvatores Dei” (apud PIZARRO, 2003, p. 278).

A obra pretende ser, então, um tipo de evangelho (uma “boa nova”) contendo uma

teologia, já que ela discute a natureza que Deus assumirá em sua futura aparência; um

método de iniciação para o conhecimento de Deus; e recomendações para o

comportamento. Em outras palavras, contém uma doutrina e uma ética, e, como outros

evangelhos, destinava-se a ser transmitido. Nesta perspectiva, a filósofa espanhola Ana

Martínez Arancón destaca:

É preciso considerá-la não tanto como uma obra especulativa, mas como um plano de vida. Seu próprio título, Ascese, nos convida a encará-la desta perspectiva. Como as obras dos grandes escritores espirituais do nosso Século de Ouro, trata-se de um manual, de “Exercícios espirituais”, e, como tal, exige do leitor uma participação ativa, uma reação não somente intelectual, mas que implique todas as suas faculdades. Está concebida como um árduo “Caminho de perfeição” que, por sua própria dificuldade, exige um compromisso (ARANCÓN, 1999, p. 137).

As palavras acima, apesar de precisas, podem nos induzir ao engano se

aplicarmos a Kazantzákis certas imagens e conceitos de uma religiosidade tradicional,

colocando-o em um terreno ideológico que aos seus olhos se mostrava insuficiente e

estreito. Ora, é preciso lembrar que este autor se situa no âmbito de uma fé trágica, no

campo mais profundo da espiritualidade, e que a sua ascese contribui a ampliar ou

ultrapassar os limites da fé canônica. De fato, em Ascese, Kazantzákis interpreta do seu

modo os mistérios da humanidade e, a partir deles, vislumbra um caminho ascensional e

libertador, colocando em marcha uma ação redentora. Uma redenção filosófica, por

assim dizer, que escapa à concepção religiosa tradicional da salvação/aprovação e

remissão dos pecados. A ação redentora para a qual Kazantzákis aponta tem a ver com a

infindável luta contra a acomodação. Para ele, a satisfação é o pior dos pecados e, por

isso, proclama: “Sê sempre inquieto, descontente, inadaptado. Quando um hábito se

tornar cômodo, rompe com ele” (KAZANTZÁKIS, 1997, p. 68). Basicamente, seria

este, portanto, o sentido da redenção e da “boa nova” que Kazantzákis deseja transmitir.

A obra Ascese possui uma dimensão filosófico-religiosa inegável, mas, de

acordo com Bien, ela também precisa ser encarada como uma obra política. Como foi

visto, para Kazantzákis o mundo parecia realmente estar em decomposição e exigia uma

nova percepção, uma reforma. E por isso o escritor grego acreditava na adesão a uma

política que se comprometesse com a transformação. Assim, não vacilou em incluir o

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comunismo no movimento de ascensão da humanidade. No entanto, esse movimento de

subida que visa ir além da condição humana implica em vencer a realidade, libertar-se

da fatalidade que pesa sobre ela, é um impulso até a imortalidade, um esforço por imitar

Deus. Tal esforço, portanto, coloca a concepção de comunismo de Kazantzákis numa

outra esfera. E parece que um dos propósitos do autor em Ascese era formular suas

próprias ideias sobre o comunismo, ou pelo menos foi isso que ele acreditou ter

realizado com eficiência, conforme expressa a Eléni em 1928: “Minhas ideias sobre o

comunismo já são conhecidas por você e as manifestei de forma árdua, mas clara, em

Ascese”; e na sequência do registro ele é bem explícito ao declarar sua distância do

comunismo daqueles dias: “Não sou superficial, de visão estreita e nem marxista”

(KAZANTZAKI, 1974, p. 148).

A distância de Kazantzákis com o comunismo fica entrevista no uso do termo

“metacomunismo”. Em dezembro de 1926, ele escreve a Eléni:

Concluí o ensaio de que te falava sobre o “Metacomunismo”, como o chamo. Será publicado mais tarde, pois é um passo decisivo em minha vida e devo equilibrar cuidadosamente cada termo. É uma grande ruptura com o comunismo, um salto, não para retroceder, mas para avançar. Meus amigos comunistas se zangarão; e os que estão de acordo me confundirão novamente (1974, p. 129, ênfase nossa).

Neste ponto, seria bom entendermos um pouco mais o que ele queria dizer com

o termo “metacomunismo”. Sabemos, a partir de comentadores, que em janeiro de 1927

Kazantzákis publicou um longo artigo sobre o assunto com o título Rússia Crucificada.

Entretanto, seguiremos aqui a indicação feita por Bien, citando duas outras formulações

mais precisas. A primeira constitui uma definição bastante sucinta, enquanto a segunda

oferece uma boa explicação sobre esta mesma definição:

(1) Metacomunismo é o segundo estágio do comunismo – o estágio criativo. O primeiro estágio é o destrutivo. (2) Marx deu (às massas) uma fé. Quais são as principais características desta fé? São duas: i) materialismo; ii) adoração da máquina. [...] A missão do comunismo não é a criação de uma nova civilização, mas a dissolução da civilização burguesa. O comunismo é o final, não o começo. Têm todos os sintomas do fim: o puro materialismo, hipertrofia do racionalismo, dissolução fatal de toda fé que ultrapassa os cinco sentidos, deificação dos objetivos práticos [...]. Devemos [...] intensificar todas as tendências do comunismo até o extremo para que a salvação chegue o quanto antes. Qual salvação? A destruição deste mundo e o começo da criação de outro [...] onde a adoração da máquina, do racionalismo e dos objetivos práticos será considerada indigna (apud BIEN, 2007, p. 70-71).

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Então, quando Kazantzákis chama Ascese de seu credo metacomunista, ele está

se referindo, segundo a interpretação de Bien, a uma teologia do ativismo, militante, e

justificando a destruição do decadente capitalismo não tanto pelo interesse da justiça

econômica ou social (do progresso materialista), mas por uma interioridade vital, ou por

uma espiritualidade mais elevada do que aquela que poderia ser alcançada pelo

capitalismo ou pelo comunismo, ou seja: pelo interesse no desenvolvimento de uma

espiritualidade capaz de descobrir e honrar a própria visão de mundo do poeta cretense.

Para Kazantzákis, o objetivo da revolução era elevar os seres humanos suficientemente

na escala evolutiva para fazê-los entender o que ele mesmo havia entendido sobre a

realidade última.

Desnecessário dizer que isso não atraiu nem um pouco os comunistas. E, no final

das contas, o metacomunismo de Kazantzákis não poderia ser entendido por eles a não

ser como anticomunismo. Ascese era vulnerável aos ataques marxistas por ser

considerada uma obra demasiadamente contemplativa e mística, quer dizer, tratava-se

de teoria incapaz de gerar uma prática real. Em setembro de 1927, Kazantzákis escreve

da ilha de Egina para Eléni revelando o quanto ele era consciente da falta de

compreensão que a obra sofria: “Espero que tenha recebido Ascese. Duvido que se

encontrem aqui três almas que estejam de acordo com o meu pensamento”

(KAZANTZAKI, 1974, p. 137). O escritor cretense considerava que ninguém

compreendia sua obra por falta daquela inquietude que ele possuía, por falta daquele

grito interno que clama por uma autêntica liberdade.

E é preciso fazer também menção à independência de Kazantzákis. Embora

escrevendo no momento da euforia revolucionária e antes das barbaridades de Stalin,

ele desdenhou em seguir a linha do partido. Conforme Frangópoulos comenta, o escritor

grego preferia “permanecer sempre em terra de ninguém”; e sua recusa em se engajar

num caminho pré-determinado pode ser a lição de alguém que é livre e não se precipita

em tomar partido (apud BIEN, 2007, p. 71). Kazantzákis parece realmente não oferecer

soluções prontas. Em sua Apologia37, escrita em 1925, ele diria: Eu queria [...] esclarecer o máximo possível, tanto comunistas como burgueses. [...] E não consegui satisfazer nem a comunistas nem a burgueses. Pouco importa. Minha finalidade não era agradar, mas dizer a verdade.

37 Trata-se de um texto escrito em Creta, logo após sua primeira viajem à Rússia, na qual ele apresenta seus argumentos em relação ao incidente em que foi acusado de liderar uma ação comunista e subversiva em sua terra-natal, tendo sido detido por 24 horas. O documento, além de revelar sua reação à desfaçatez das autoridades, tendo em vista sua inocência, constitui-se em uma boa análise crítica sobre o momento histórico. Encontra-se publicado em: KAZANTZAKI, Eleni. El disident.

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Não sou um detrator de mente estreita nem um apologista superficial, pois não sou um homem de ação, mas um homem que propôs como objetivo se esforçar em pensar e articular o pensamento (KAZANTZAKI, 1974, p. 460).

Portanto, o credo metacomunista de Kazantzákis é conscientemente

contemplativo e, provavelmente, incapaz de gerar uma prática real. Não obstante,

devemos lembrar que ao escrever o manual a sua intenção era equilibrar contemplação

com ação. Pelo momento conturbado da Europa, somado à euforia revolucionária que

Kazantzákis ainda vivia naqueles dias em Berlim, é muito provável que ele acreditasse

que estava redigindo um documento tanto religioso como político. Por isso, na opinião

de Bien, a grande importância de Ascese “é a forma como se desenvolve com muita

habilidade uma teologia do ativismo, incorporando receitas para a ação política no

âmbito de uma visão de mundo pessimista” (BIEN, 2007, p. 72).

Apesar de suas convicções sobre a futilidade das coisas, é preciso ter em mente

que Kazantzákis não pregava o afastamento do mundo. Nesse sentido, ele não foi

totalmente um adepto da busca budista por nirvana e nem da busca grego-ortodoxa de

ataraxia, a ausência de perturbação e não envolvimento. De fato, na carta que

Kazantzákis escreve para Galatea, ao concluir a primeira versão de Ascese, em abril de

1923, ele realça o valor da ação: Encontro-me em uma nova conjuntura crítica. A última e mais sagrada forma da teoria é a ação. Em todas as partes está Deus, no homem, na política, na vida diária, e Ele está em perigo. Não é todo-poderoso, para que cruzemos os braços aguardando seguramente sua vitória. De nós depende sua salvação e, só se salva Ele, salvando a nós. A teoria tem valor somente como preparação: o combate, o combate crítico é a ação (apud PIZARRO, 2008, p. 284).

E, do mesmo modo, naquela formulação alternativa enviada ao amigo

Papastefánou, em que ele informa sobre os quatro ciclos de Salvatores Dei, dos quais

todos são êxodos dos contatos diários visando o interesse maior que é o Contato final

com a essência imaterial, surpreendentemente, Kazantzákis, então, acrescenta: “Do mais

alto ciclo os maiores iniciados descem para a vida cotidiana, agem como humanos,

vivem, trabalham, e se casam – mas agora com uma luz completamente nova” (apud

BIEN, p. 72). Com efeito, o objetivo não era conduzir os iniciados ao afastamento

definitivo da vida diária, mas, em vez disso, trazê-los de volta ao mundo, enriquecidos

agora com o entendimento da realidade última.

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O Deus proclamado em Ascese acredita, pois, na matéria. E é por isso que na

seção intitulada “A Prática”, 38 Kazantzákis inclui a declaração de que o mundo “não é

uma ilusão, uma fantasmagoria policroma onde se espelha nossa mente”

(KAZANTZÁKIS, 1997, p. 135). Num certo sentido, poder-se-ia dizer que é preciso

apoiar-se no sensível e passar por ele para chegar à contemplação, para chegar até Deus.

O corpo é a alma tornada visível, a alma viva. Deste modo, a contemplação, o

pensamento, a inteligência tornam-se atos. Já não existe a dualidade ação-contemplação,

nem a dualidade alma-corpo. Daí Kazantzákis insistir para a amiga Elsa Lange que seu

método exposto em Salvatores Dei “não consiste na negação do espírito e do corpo, mas

visa à realização deles intensificando-os” (KAZANTZAKI, 1974, p. 104).

Em suma, Ascese parece ter sido concebida para ser aquilo que Kazantzákis,

então, chamou de seu credo metacomunista. Sendo a ação reconhecida como a forma

sagrada da teoria, os exercícios procedem da visão para a prática, em que seus

enunciados teológicos são destinados a fazer com que se “desça” para a vida diária

depois do Supremo Contato. Ou seja, após ter escalado os ciclos filosóficos da mais alta

iniciação, do seu topo se é trazido de volta para o cotidiano com o dever de ajudar Deus.

Assim, seu programa de “treinamento” espiritual é encerrado com uma oração

final. E esta oração, depois do quinto verso-parágrafo (na sua forma não revisada) – “Oh

Senhor, Você clama: ‘Salva-me! Salva-me!’ Você clama, Oh Senhor, e eu ouço” – é

concluída com as seguintes bem-aventuranças39: Bem-aventurados todos os que ouvem, porque serão salvos lutando. Bem-aventurados todos os que são salvos, porque libertarão Deus, criando. Bem-aventurados todos os que em seus ombros suportam a Suprema Responsabilidade (apud FRIAR, 1960, p. 32).

Até aqui tenho procurado fazer uma aproximação de Ascese basicamente com a

ajuda de glosas explicativas externas, sem adentrar no texto propriamente dito. Para

finalizarmos esta parte resta ainda serem feitas algumas considerações acerca da revisão

de 1928.

2.1.2 A revisão de 1928

38 “A Prática” era a seção final da primeira versão de Ascese, antes que lhe fosse acrescida a seção “O Silêncio” na revisão de 1928. 39 Essas três bem-aventuranças não aparecem mais na versão disponível para nós hoje. Mas elas são citadas por Kimon Friar no prefácio da sua tradução inglesa de Ascese.

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Ao nos aproximarmos de Ascese, e conforme vamos mergulhando no estudo

desta obra, vamos descobrindo a sua trajetória por trás do desenvolvimento e da fixação

do texto. Como foi visto, em sua passagem por Viena, Kazantzákis já havia esboçado a

sua estrutura. Mas é depois, em Berlim, entre o final de dezembro de 1922 e abril de

1923, que ele efetivamente escreverá a primeira versão da obra. E será ainda neste ano

de 1923 que Ascese conhecerá a sua primeira tradução para o alemão feita pelo helenista

Karl Dietrich, e nessa forma ele também a enviará para a União Soviética. Na Grécia, o

opúsculo só aparecerá publicado em julho-agosto de 1927, em dois números sucessivos

da revista ateniense Anayénnisi (Renascença).

Contudo, um ano depois, em 1928, numa de suas viagens para a Rússia40,

Kazantzákis resolve fazer uma revisão no final de Ascese e lhe acrescenta, assim, o

último capítulo, intitulado “O Silêncio”. A este respeito, em El disidente, Eléni nos

informa: “Ascese, o Credo que Kazantzákis havia começado a escrever em Viena,

tomaria forma definitiva em Berlim. Seria a ele acrescentado apenas um capítulo, o

último, O Silêncio, que redigiu anos mais tarde, durante uma viagem a Sibéria”

(KAZANTZAKI, 1974, p. 75).

A decisão de revisar o final do opúsculo e acrescentar-lhe O Silêncio ocorre,

portanto, em sua última viagem para U.R.S.S. que durou exatamente um ano (abril de

1928 até abril de 1929) e que acabou por ser um dos mais importantes períodos de seu

desenvolvimento, concluindo, assim, um ciclo que havia se iniciado em 1925, onde seu

ativismo foi diminuindo na medida em que seu subjetivismo foi se reafirmando. O

enfraquecimento do ativismo de Kazantzákis neste período se deve, em muito, por

aquilo que ele viu na Rússia e interpretou como alienação daquele povo, ou seja, por

achar que os soviéticos não conseguiam enxergar nada além dos objetivos práticos, e,

por isso, não estavam prontos para o seu metacomunismo. Em outras palavras, depois

de um primeiro entusiasmo com o comunismo, Kazantzákis vai pouco a pouco, ao

longo de suas viagens para a Rússia, se dando conta que o regime comunista forma um

tipo de pessoa que não somente lhe é alheio, mas que lhe repugna por seu materialismo

grosseiro, por sua estreiteza de pontos de vista, por sua total incapacidade de conceber a

vida interior.

Desse modo, tal desapontamento na área de aplicação de seu credo o leva para

longe da vida de participação direta nas lutas do povo. “A forma sagrada da teoria é a

40 Kazantzákis empreendeu três viagens para a Rússia: em 1925; 1927 e 1928.

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ação, mas se a ação só encontra frustração, a teoria sempre pode ser reelaborada no

papel” (BIEN, 2007, p. 78). Além disso, seu interesse pelo divino se volta cada vez

mais para a ideia de um “deus” que é indiferente às preocupações humanas.

Tais fatores levariam Kazantzákis à revisão de Ascese. Desse modo, na versão

revisada o conteúdo sobre o silêncio recebe algumas mudanças e acaba por se separar,

tornando-se um capítulo à parte. Sobre isso, o escritor comentará: “Estou corrigindo

Ascese. Adicionei um pequeno capítulo: ‘Silêncio’ – uma bomba que explode

totalmente Ascese. Mas explodirá os corações apenas de poucas pessoas” (apud

OWENS, 1998, p. 332). As “bem-aventuranças” da primeira versão também são

alteradas, e o conceito de silêncio recebe, então, um significado estendido. O texto

revisado de 1928 só será efetivamente publicado em Atenas em 1945, e foi dedicado por

Kazantzákis ao seu fiel amigo e conterrâneo cretense Pendélis Prevelákis. O título que

anteriormente era Askitikí (Ascese) passava agora a ser Askitikí: Salvatores Dei (Ascese:

Os Salvadores de Deus).

Não obstante, é preciso lembrar que entre os anos da revisão e da publicação de

Ascese, Kazantzákis escreve, em 1936, o romance O jardim dos rochedos e em cuja

narrativa incorporou, sob a forma de interpolações sucessivas, boa parte do texto de

Ascese. O romance foi escrito diretamente em francês e tal como já havia feito em outro

romance, Toda-Raba (1929), onde nos passa a visão de sua experiência na Rússia,

Kazantzákis quis dar agora em O jardim dos rochedos a quintessência de suas

experiências no Japão e China, países por onde havia empreendido uma viagem em

1935. É a época em que os japoneses preparam a invasão da China41 e a obra nos leva

por ambos os países, na companhia de personagens significativos de um e outro lado.

Assim, entre personagens condenados a um destino ameaçador, a inquietação da

existência, o mal e o sofrimento acabam se convertendo em protagonistas de um relato

em que a ação muitas vezes fica suspensa e com reflexões repletas de lirismo. Segundo

Aziz Izzet,

O jardim dos rochedos é uma espécie de laboratório em que todas as experiências do autor são submetidas duramente à prova. No espírito de Kazantzákis, se tratava sem dúvida de por Ascese ao alcance do leitor, mas também, ao mesmo tempo, de comprovar a solidez dos resultados de sua própria ascese (apud KAZANTZAKI, 1974, p. 270).

41 Ou seja, trata-se do contexto da Segunda Guerra Sino-Japonesa travada de 1937 a 1945 entre a China e o Japão, antes e durante a Segunda Guerra Mundial. Apesar dos conflitos permanentes entre as duas nações existirem desde 1931, chamados de “incidentes”, a guerra em larga escala começou em julho de 1937 e só terminou com a rendição incondicional do Império Japonês aos Aliados em setembro de 1945.

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Então, ao incorporar parte de Ascese no romance, Kazantzákis imaginava, ao

que parece, atingir duas finalidades: tornar mais acessível o complexo livro com sua

visão trágica, dando-lhe uma espécie de justificação ou de uma explicação romanesca, e

ao mesmo tempo verificar, de certo modo, a solidez de sua experiência espiritual,

pondo-a a prova num mundo em fermentação, fragmentado entre a teoria e a prática,

entre o passado com seus mortos e um futuro com seus delírios, que o presente ambíguo

e violento preparava. Além disso, parece ter havido também um fator prático que não

pode ser desconsiderado. Ora, ao incluir Ascese neste livro escrito diretamente em

francês, o autor esperava atingir um número maior de leitores e, com isso, torná-lo

famoso na Europa, redimindo seu fracasso ao ser publicado na Rússia, Alemanha,

França e Inglaterra.

Costuma-se mencionar ainda como versões alternativas: a de Octave Merlier,

uma tradução francesa publicada em Atenas, em 1951, e na revista Les Quatre

Dauphins, em Aix-en-Provence, em 1957, que apresenta certas diferenças com texto

grego e com a versão francesa incorporada no romance, mas que contou com a

colaboração parcial de Kazantzákis. A outra versão é a que foi estabelecida também em

francês por Aziz Izzet, redigida depois da morte do escritor grego e publicada em 1959,

e que levou em conta o máximo de proximidade com o texto grego, sem perder de vista

o uso que Kazantzákis lhe atribuíra no seu romance, considerando quando possível o

texto de Merlier. Na elaboração de sua versão, Izzet contou com as opiniões da viúva do

escritor, Eléni.

Resta dizer também que das edições de Ascese que nos chegaram aqui no Brasil,

primeiramente contamos com a de Aziz Izzet, traduzida por Ivo Barroso e publicada

pela editora Record, sem data precisa. Depois, em 1997, foi a vez de José Paulo Paes

nos brindar com a sua tradução direta do texto grego da versão revisada. Esta tradução

veio acompanhada com uma valiosa introdução de Paes, e foi publicada pela editora

Ática. E é com esta edição que estamos trabalhando em nosso estudo. Feito tais

esclarecimentos, nosso objetivo agora é apresentar um resumo da obra em questão.

2.2 Resumo das seções de Ascese

O pequeno livro de Kazantzákis mostra cinco etapas mediante as quais o ser

humano pode exercitar o seu espírito e se preparar para a busca da liberdade. Trata-se da

ascese kazantzakiana para a redenção. As etapas são: A Preparação; A Marcha; A

Visão; A Prática; O Silêncio. Cada uma destas seções se subdivide em diferentes

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deveres e graus que permitem vislumbrar um caminho ascendente para lutar contra o

temor do nada e da morte, incessantes combates para se alcançar os mais altos picos da

libertação, buscando superar os limites da natureza humana, da servidão e da concepção

de um Deus que não passa de um mero reflexo dos desejos e interesses humanos. As

cinco etapas da Ascese procuram nos levar, assim, a apreciar a liberdade em suas mais

variadas formas: como ausência de medo e de esperanças, como autossuficiência, como

libertação da necessidade e como libertação da própria liberdade. Passaremos, agora,

para uma apresentação resumida de cada um desses momentos de Ascese.

A obra se inicia com uma espécie de prólogo, que não passa de uma página, e

prepara, por assim dizer, um pouco do palco emocional e da perspectiva que ela deverá

tomar direção. Começa dizendo o seguinte: “Viemos de um abismo de trevas; findamos

num abismo de trevas: ao intervalo de luz entre um e outro damos o nome de vida”

(KAZANTZÁKIS, 1997, p. 38). 42 A vida define-se, pois, como uma espécie de

centelha, um breve instante de luz entre dois nadas escuros, e, a partir daí, é tida como

um caminho entre o brotar e o apagar-se. Tal dinamismo constante faz que a vida não

seja nunca repouso: é um morrer contínuo e também um nascer, pois se renova sem

cessar. Esta explosão de luz no meio do nada parece surpreender Kazantzákis, a ponto

de ele dizer que a vida “parece uma reação ilegítima, desnaturada...”, um verdadeiro

escândalo. Mas logo corrige e compreende que a própria inesgotabilidade da vida, sua

imensa capacidade de renovação, revela-se como um impulso do Universo. Com efeito,

ser humano e Universo compartilham esse assombro, esta estupenda e improvável

capacidade de existir. E então o existir se manifesta como algo ao mesmo tempo

inevitável e excepcional; sua situação entre os dois nadas, o já e o ainda não, o definem

como tensão perpétua, uma luta por manter quente e iluminada a chama frente ao sopro

gelado das trevas.

A partir daí inicia-se as etapas da Ascese. A primeira é A Preparação. Indicado

já no prólogo, ou seja, neste breve espaço entre o abismo escuro de onde viemos e o

abismo escuro para onde vamos, o principal problema do ser humano é o de deixar de

ser. Como enfrentar essa realidade? Antes de tudo, nesta etapa de preparação é preciso

cumprir três deveres. O primeiro consiste em adquirir uma consciência tal que se chegue

a ter muito claro os limites inerentes à inteligência, ao entendimento humano. Trata-se

42 Todas as citações extraídas de Ascese referem-se a esta mesma edição, e, a partir de agora, citarei apenas o número da página.

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de reduzir o conhecimento humano ao âmbito do fenomênico. Com efeito, o primeiro

dever é aceitar os seguintes pontos: 1) A mente do homem só pode apreender os fenômenos ou aparências, jamais a essência; 2) e não todos os fenômenos, só os da matéria; 3) e nem sequer os fenômenos da matéria, apenas as relações entre eles; 4) e tais relações não são reais, independentes do homem; ele é que as gera; 5) e não são as únicas possíveis, mas tão só as mais convenientes para as necessidades práticas e teóricas do homem (pp. 43-44).

Kazantzákis pensa que é uma etapa bastante dura, pouco gratificante e que

requer muita coragem, mas também alegre, enquanto supõe uma libertação.

O segundo dever é o de superar os limites impostos pela mente. Agora é preciso

dar mais um passo e não aceitar que seja apenas com a razão tudo o que podemos

conhecer. Não resignar-se a ela e ouvir a voz do coração. Este sente angústia frente a

esses limites, se rebela e luta para ir mais além, pois pretende alcançar o grande

mistério, a essência que supostamente se encontra por trás dos fenômenos. Viver

intensamente o conflito e a angústia dos limites do saber e do desejo de ir além, “dar um

sentido humano à luta sobre-humana” (p. 52), é o segundo dever.

Chega-se, então, ao terceiro e último dever nesta etapa de preparação. Agora,

Kazantzákis deseja incutir que se abstenha de qualquer esperança. O terceiro dever

consiste em empreender o combate amando simplesmente a luta em si. É preciso se

libertar da mente e do coração, a partir da grande tentação da esperança que ambos

oferecem de subjugar fenômenos ou de encontrar a essência das coisas. Libertar-se da

simples complacência da mente que pensa em colocar todas as coisas em ordem e

espera dominar fenômenos. Libertar-se do anseio do coração que procura e espera

encontrar a essência das coisas. Desprezar qualquer esperança de triunfo ou de

recompensa. É, portanto, quando se pode dizer: “Agora sei: não espero nada, não temo

nada, libertei-me da mente e do coração, subi mais alto, sou livre. É isso que eu quero.

Não quero senão isso. Eu buscava a liberdade” (p. 58).

A Marcha. Depois de cumprir os três deveres impostos em A Preparação,

chega-se à segunda etapa, na qual o ser humano ouve um grito que surge do mais

profundo do seu ser. E é dever do homem ouvir esse grito que lhe impulsiona para a

luta, uma vez que sua liberdade está nessa luta. Esse grito, essa ordem, está no início da

marcha, e, portanto, o colocará em movimento. É preciso eleger agora o caminho a

seguir.

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Dos dois caminhos eternos, qual hei de escolher? De repente dou-me conta de que a minha vida toda depende dessa decisão; dela depende a própria vida do Universo. Dos dois caminhos, escolho o que sobe. Por quê? Sem nenhuma razão, sem certeza alguma; sei o quão impotente se demonstra o intelecto nesse momento crítico e quão precárias são as certezas humanas. Escolho a subida porque até ela me impele o coração. “Para cima! Para cima! Para cima!” brada-me o coração e eu o sigo cheio de confiança (pp. 63-64).

A marcha se inicia e deverá avançar através de quatro degraus. O primeiro deles

é o “Eu”, onde se deve exercitar o corpo e manter lúcida a mente para o combate, e não

deixar que se extinga o fogo aceso no coração. Para usufruir esses objetivos são

indicados uma série de mandamentos, tais como amar o perigo, aprender a obedecer e a

comandar, apreciar a responsabilidade, buscar companheiros para o combate, ser

sempre insatisfeito e inadequado. Ao terminar o primeiro degrau se pode dizer: “Sou

uma ponte ligeira; Alguém passa sobre mim e desabo após sua passagem” (p. 69).

Avança-se, assim, para o segundo degrau.

Este segundo degrau é a “Raça”. Aqui se diz: “O Grito não é teu. Não és tu que

falas; inúmeros antepassados falam por tua boca. Não és tu que desejas; inúmeras

gerações de descendentes desejam com o teu coração” (p. 70). Os versículos poéticos de

Kazantzákis vão enunciando três deveres fundamentais: sentir no fundo do ser a

presença de todos os antepassados, prosseguir e acabar as obras iniciadas por eles e,

finalmente, ensinar aos filhos a grande tarefa de superar lhes.

O terceiro degrau é a “Humanidade”, momento no qual se deve ultrapassar a

noção de raça e ampliar o círculo de pertencimento: toda a humanidade com as suas

inumeráveis gerações. “Somos uma humilde letra, uma sílaba, uma palavra da

gigantesca Odisseia. Estamos imersos numa canção gigantesca e brilhamos como

brilham as humildes conchas imersas no mar” (p. 82).

Continuando esse trajeto de superação, rompe-se uma vez mais os limites, agora

os da humanidade, e chega-se ao quarto degrau: a “Terra”. Alcança-se, desse modo, o

nível superior desta etapa.

Não és tu que gritas. Não é a raça que grita dentro do teu peito efêmero. Não gritam em teu coração apenas as gerações de homens brancos, amarelos e negros. Grita dentro dele a Terra inteira, com suas águas e suas árvores, seus bichos, seus homens e seus deuses (p. 86).

Depois deste último degrau, o ser humano integrou seu pensamento e coração

com toda a natureza. O espírito chegou à beira de um abismo. Como prosseguir? A

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partir daí, as relações se estabelecem para além do mundo visível, onde o Invisível se

converte em visão, onde o mortal combate com o imortal e o homem se enfrenta com

seu Deus, acontecimento que dá passo para a terceira etapa da ascese kazantzakiana.

A Visão. Nesta seção começam a serem descritas as imagens da visão sobre

Deus.

Atrás da corrente do meu corpo e do meu cérebro, da raça e dos homens, dos animais e das plantas, vejo, a tremer, o Invisível que espezinha tudo quanto seja visível e ascende. [...]. Seu semblante é severo, mudo e sombrio; está além da alegria e da dor, além de toda esperança (p. 99).

Frente a essa visão sobressai-se um sentimento de terror. Daí, logo em seguida, a

pergunta dirigida a esse ser estranho: “Tremo. És tu o meu Deus?” E diante do que é

descrito na sequência, têm-se a impressão de se estar enfrentando uma visão monstruosa

e feroz: Teu corpo está repleto de lembranças. Como um prisioneiro de longa data, trazes tatuados nos braços e no peito árvores estranhas e dragões peludos, aventuras sanguinolentas e gritos e cronologias. Senhor, Senhor, ruges como uma fera! Teus pés estão sujos de sangue e lama; tuas mãos também. Pesadas como pedras de moinho são as tuas mandíbulas trituradoras. Tu te aferras às arvores e aos animais, calcas o homem e chamas. Escalas o negro e infindo precipício da morte e tremes (p. 99).

E seguem fluindo as linhas repletas de imagens que procuram expressar a visão

acerca do Invisível. Uma das afirmações marcantes nesta etapa de Ascese é a de que “A

essência do nosso Deus é a LUTA” (p. 101). Uma luta, aliás, cuja finalidade escapa

totalmente à compreensão humana. De fato, existe somente um impulso de Deus que

pode ser reconhecido pelo ser humano: “Entre todos os impulsos de Deus, qual o que o

homem pode perceber? Somente este distinguimos: uma linha rubra sobre a terra, uma

rubra linha de sangue que luta por ascender, da matéria inanimada às plantas, das

plantas aos animais, dos animais ao homem” (p. 103).

Diante da sequência de descrições de imagens tão complexas, de difícil

compreensão, há uma passagem no final desta seção que se mostra bastante lúcida

quanto à dificuldade de expressar o Invisível e que também traz uma recomendação:

“Aquilo que vives durante o êxtase jamais o poderás pôr em palavras. Não obstante,

esforça-te o tempo todo. Com mitos, comparações e alegorias, com palavras comuns ou

raras, com gritos e rimas, procura dar-lhe carne, exprimi-lo” (p. 105). Portanto, nesta

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passagem é dado ao ser humano, na recomendação de se esforçar o tempo todo, o papel

de lutador e criador e que deverá levá-lo a uma ação, a uma prática.

A Prática. Ao chegar a esta etapa o indivíduo já deve ter adquirido a consciência

de sua liberdade e do seu papel criador. E nesse sentido, se já foi estabelecido sua

verdadeira identidade e seu lugar no universo, agora é preciso perguntar o que se vai

fazer sobre isso. Esta seção é principalmente sobre a responsabilidade, ou seja, a

responsabilidade do ser humano para com a força da vida sempre ascendente, em

direção ao outro e em direção à Terra. Ora, cabe-lhe contribuir para o amadurecimento

de todas as coisas, inclusive a sua própria. Pois se o ser humano é a culminação sublime

dessa luta, não é por isso menos incompleto, ainda em processo de criar-se a si próprio.

Não lhe é permitido descambar para a satisfação, porque ainda há muito por fazer. Há,

portanto, o dever e a necessidade do ser humano ultrapassar a si mesmo e de ajudar

universalmente para o amadurecimento.

Com efeito, A Prática divide-se em três subseções. A primeira delas recebe o

nome de “A relação entre Deus e o homem”, onde a prática é indicada como a última

forma, “a forma mais sagrada da teoria” (p. 109). Entretanto, o ponto alto desta

subseção se funda no desenvolvimento da exploração da natureza de Deus. Aqui se trata

de indicar que este Deus não é onipotente, posto que a luta de cada uma das suas

criaturas com a morte é sua própria luta, e que não pode assegurar nenhuma vitória. Não

é todo bondade, tal como a vida, é duro e, às vezes, cruel; ama num instante e esquece

para sempre. Não é onisciente, porque é aperfeiçoável, porque vai em busca de si

mesmo através do labirinto da criação; um Deus cuja luta, ainda que em maior escala, é

a mesma que a do ser humano, pois combate pela vida e por conhecimento. Nesse

sentido, o ser humano trabalha, atua e luta junto a Deus, o qual precisa de ajuda em sua

nobre tarefa, fato que permite entender o subtítulo da obra em questão, Salvadores de

Deus. Isso fica expresso na seguinte passagem: “Deus inteiro corre perigo. Não poderá

salvar-se se nós, com nossa luta, não cuidarmos disso; e não nos poderemos salvar se

ele não salvar-se” (p. 117); e fica ainda mais evidente quando, um pouco mais adiante, é

feita a afirmação de que “Não é Deus que nos irá salvar; nós é que o salvaremos

lutando, criando, transfigurando a matéria em espírito” (p. 119).

A segunda subseção desta etapa é denominada “A relação de homem a homem”,

momento em que a humanidade é caracterizada com os seguintes dizeres: “Nós,

homens, somos miseráveis, pusilânimes, mesquinhos, insignificantes. Mas há em nós

uma essência superior que nos impele impiedosamente para cima” (p. 123). Esta

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essência superior é o que promove a identificação do ser humano com o Universo, e é o

que gera as duas grandes virtudes éticas: a responsabilidade e o sacrifício. Assim, é

dever de cada um ajudar a libertar aquele Deus que está sufocado dentro da

humanidade. Somos todos um, todos uma essência em perigo. Por isso, a salvação do

Universo é a nossa salvação e se fala da solidariedade entre o gênero humano: “[...] a

solidariedade entre os homens não é um luxo de corações ternos, mas uma profunda

necessidade de auto conservação. Uma necessidade como, num exército em combate, a

salvação do companheiro em fileira” (p. 131). Mesmo assim, no final desta subseção,

uma passagem paradoxal deixa em aberto os caminhos para a salvação, uma vez que

“Cada qual tem seu próprio caminho para a redenção – uns a virtude, outros o mal”

(p.133).

Na terceira subseção, “A relação entre o homem e a natureza”, o mundo não é

visto como uma ilusão ou fantasia colorida representada por nossa mente, mas também

não é totalmente independente da força do cérebro. Reafirma-se nesse momento nossa

conexão com as forças da natureza, forças antagônicas: uma descendente, a qual quer

dissipar-se ou morrer; e uma ascendente, que nos permite buscar a liberdade e a

imortalidade. Essas forças se entrechocam o tempo todo e os sinais visíveis disso são as

plantas, os animais, os seres humanos. Frente ao caos de tais forças cabe ao ser humano

submetê-las a leis, impor-lhes uma ordem, pois

Quando, no combate contra o caos, o homem submete uma série de fenômenos às leis de sua mente e define essas leis com rigor verbal, o mundo respira, os gritos se ordenam, purificam-se as coisas vindouras [...]. Com o auxílio da mente, obrigamos a matéria a seguir-nos (p. 138).

Consequentemente, somente através da humanidade, e não da natureza, é que

Deus tem a chance de ser salvo. Nessa relação do ser humano com a natureza, chega-se

a uma nova concepção que é fundamental. É quando se coloca que “Ao lutar com o

mundo visível que nos circunda e ao submetê-lo, não libertamos Deus apenas: nós o

criamos” (p. 138). Portanto, nesta perspectiva, salvar Deus é criá-lo, e isso se estende às

lutas diárias de cada um, ao seu trabalho. Quer dizer, não seria outra coisa senão o

máximo desenvolvimento das próprias faculdades e as exercendo, cada qual em seu

campo de ação, da melhor maneira possível. Assim, um camponês salva Deus quando

ele trabalha para ajudar a terra a dar frutos; ou quando um sábio mata velhas ideias para

criar novas. Mas, enfim, descobre-se agora que “Pela primeira vez, Deus contempla sua

própria luta sobre esta terra, através de nossas mentes e corações” (p. 142).

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O Silêncio. É a seção final de Ascese.

Silêncio quer dizer: Cada qual, após cumprir seu tempo de serviço como combatente, chega ao mais alto cimo do esforço – passados os combates, não luta mais, não grita mais: amadurece por inteiro, silenciosamente, indissoluvelmente, eternamente, com o Universo (pp. 147-148).

Nesta etapa é preciso desvincular-se de todos os nexos concretos, um desapego

necessário para se encontrar com o Universo e unir-se com o Abismo. A seção é

finalizada com uma espécie de oração ou exorcismo contendo uma série de nove

versículos em letras maiúsculas, onde o primeiro deles expõe a concepção de um Deus

guerreiro, denominado “guarda-fronteiras”, o qual protagoniza a eterna luta entre a luz e

as trevas, combatendo incessantemente para vencer e fecundar a matéria. A oração

prossegue e os três versículos finais adquirem a forma própria das bem-aventuranças,

sendo que o último deles revela o maior e mais desconcertante dos segredos: “E três

vezes bem-aventurados os que carregam nos ombros, sem vergar ao seu peso, o grande,

o extraordinário, o terrível segredo: sequer este Um existe!” (p. 150).

Obviamente que o resumo de uma obra como Ascese Os Salvadores de Deus não

consegue dar conta de expor toda a grandeza de sua complexa filosofia e do forte apelo

da sua beleza poética. Ao mesmo tempo, também devemos estar cientes de que ao

descrever e resumir uma obra já começamos a interpretá-la. Por isso, ninguém está

dispensado de fazer uma leitura atenta da obra para tirar suas próprias conclusões.

Entretanto, ao passarmos brevemente em revista cada uma das etapas que constituem

este livro, acreditamos ter mostrado seus ingredientes básicos e que nos aproximam,

assim, daquilo que lhe é essencial, ou seja: a temática da luta, os tipos de liberdade, a

necessidade de superação, a natureza e as imagens de Deus. O passo seguinte em nosso

estudo terá como objetivo fazer uma análise sucinta da caracterização literária de

Ascese.

2.3 Apontamentos para uma caracterização literária de Ascese

De acordo com Pizarro, “nenhum outro livro de Kazantzákis é mais controverso

e obscuro do que Ascese em sua equação de conteúdo e forma” (PIZARRO, 2008, p.

279). Trata-se de um texto com inquestionável dimensão poética e aberta às mais

variadas interpretações. Uma obra eminentemente fundadora, parturiente e com

amplitude de sentidos. Na realidade, trata-se de uma obra esteticamente redentora e que

escapa a qualquer classificação. Devido à interação entre os discursos filosófico,

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literário e religioso, a pesquisadora Carolina Bernardes confere a Ascese a característica

de texto híbrido, e acrescenta: Seus parágrafos breves, ritmados e marcados pela repetitividade de palavras e expressões, e pela frequência de metáforas e figuras que dão corpo a ideias abstratas remetem o texto à poesia ou à prosa poética. A elocução de Ascese é pronunciada num diálogo virtual, que permite o questionamento sobre quem são os emissores do discurso. O tom passional e as inflexões admonitórias presentes aproximam-na de Assim Falou Zaratustra de Nietzsche. A sonoridade de versículos bíblicos e a voz imperativa da elocução assumem o caráter religioso da multidiscursividade do texto (BERNARDES, 2004, p. 6).

O estilo da obra parece ter sido para Kazantzákis um novo ponto de partida na

característica de sua escrita. De fato, no mesmo período em que escreve Ascese ele já

havia descartado cerca de três mil versos do seu primeiro rascunho do drama Buda e

iniciado sua segunda tentativa, agora em prosa poética. Motivado por esta experiência, e

seguindo, assim, a mesma forma de escrita também em Ascese, é preciso reconhecer que

sua maior semelhança se encontra com Assim falou Zaratustra, de Nietzsche. Em ambas

as obras encontramos aforismos e máximas, num estilo direto, imperativo e, ao mesmo

tempo, carregadas de metáforas. E em ambos os casos podemos considerar que os

autores se utilizaram de um recurso literário sui generis para expressarem suas próprias

ideias filosóficas. Portanto, há algo que aponta para a influência de Zaratustra43 em

Ascese no nível da escrita, e que gostaríamos rapidamente de elucidar.

2.3.1 A junção literário-filosófica em Zaratustra: um modelo para Ascese

Nietzsche é um pensador controverso. Tido por muitos como um pseudofilósofo,

no máximo, um literato, um poeta, um artista da linguagem; para outros, um grande

modelo de filósofo, alguém que leva ao limite as possibilidades do pensamento. Para

alcançar coerência em suas reflexões, trabalha uma linguagem altamente metafórica, e

até mesmo poética em alguns textos. A preferência pelo estilo poético sobre o

conceitual distingue sua obra das demais obras filosóficas, característica, aliás, que

resultará numa forte influência até os dias de hoje. E é em Assim falou Zaratustra que se

pode ver a junção literário-filosófica com maior clareza, ou seja, a coexistência da prosa

filosófica com a poesia. Nesse sentido, esta obra parece ser o experimento criativo de

Nietzsche que pode ajudar a pensar mais claramente a relação entre filosofia e literatura.

Assim falou Zaratustra é uma obra singular se comparada com as outras obras de

Nietzsche; não houve outra igual em estilo. É uma obra construída em prosa-poética, e

43 Zaratustra, em itálico, diz respeito à obra. Se aparecer em letras normais, refere-se ao personagem.

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se pensarmos em termos tradicionais, é o livro menos “filosófico” de Nietzsche. Um

livro confuso, cheio de desencontradas narrativas, entrecortado por discursos e

acontecimentos, por vezes, desconexos. Olhado de fora, um livro que em nada lembra

um tratado filosófico à moda aristotélica ou espinosiana, muito menos pode ser

facilmente encarado como uma obra literária. Olhado por dentro, ou seja, percebendo e

colocando a obra no contexto das outras obras e, sobretudo, no contexto das noções

fundamentais do pensamento de Nietzsche, talvez seja seu livro mais “filosófico”,

exatamente por querer fazer filosofia mediante elementos que fugiam da forma

tradicional de fazer filosofia, o que o torna também, ainda sob um viés tradicional, o

mais literário livro de Nietzsche.

A obra não deixa de seguir o estilo aforístico que é a marca registrada de

Nietzsche, mas a dimensão poética ativa o pensador. A musicalidade, a metaforização, a

divisão da frase em seguimentos, caracterizam a junção da poesia com a prosa

filosófica. Massaud Moisés faz o seguinte comentário da obra “literário-filosófica” de

Nietzsche:

Sentir e pensar a um só tempo, um pensar que se derrama em frases coordenadas, breves como hemistíquios, sem propósito aparente de rigor silogístico ou científico. Cada parágrafo explode num jacto, numa irrupção nervosa, brotada de um intelecto a funcionar em alta rotação, abrindo-se para os horizontes de onde nasce a poesia. A reflexão aforística é, ao mesmo tempo, conhecimento e emoção, como se os ventos da irracionalidade soprassem para dentro do pensamento. Zaratustra/Nietzsche fala das palavras e dos sentidos, dos sons, do além-túmulo, e da exterioridade, em abstrato, consoante pede a investigação filosófica, em busca de uma saber universal e perene. Mas, na verdade, o alter ego do filósofo divisa tudo de seu prisma pessoal, egolatricamente, convicto de não haver nada fora dele, como um autêntico poeta lírico [...] De súbito, arrastado pelo transe em que atropela seus pensamentos, era como se a razão filosófica se identificasse com a subjetividade do pensador. Ou como se a Razão apenas cintilasse no espaço atravessado pela emoção, ou seja, onde o saber filosófico, que se pretende conceptual e por isso persuasivo, se aliasse à poesia. Afinal, noutro passo Zaratustra se diz “poeta, adivinho de enigmas”, querendo com isso apontar a congruência entre a reflexão do filósofo e a intuição do vate (MOISÉS, 1967, p. 28).

Assim, Zaratustra insere-se no projeto filosófico de Nietzsche, e essa inserção se

torna mais clara quando articulada com o primeiro livro de Nietzsche, O nascimento da

Tragédia, no qual o jovem Nietzsche pretendia inaugurar, pela filologia, uma crítica

diferente ao espírito racionalista da modernidade pelo viés trágico. Para ele, esta era a

única forma de livrar o homem moderno do pessimismo negador da vida, o qual, já

nesse momento, é percebido em várias expressões da organização da sociedade. Frente a

isso, afirmava a necessidade de se expressar não por conceitos, mas por figuras

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significativas. Será, então, em Assim falou Zaratustra que Nietzsche alcançará com

maior êxito este objetivo. Isso, depois de um processo de amadurecimento vital e

reflexivo, longe da academia e dos seus grandes mestres, que gerou nele uma série de

noções novas e críticas, todas desenvolvidas sob a noção do trágico, que, portanto,

deveriam ser expostas de forma diferente. Zaratustra mostra-se como a tentativa mais

ousada de Nietzsche de expressar suas concepções. Ousadia que vem em decorrência de

novas necessidades desse novo conjunto de descobertas, mas cujo filão original já havia

sido descoberto anteriormente. Dessa maneira, os limites entre as compreensões

tradicionais de filosofia e literatura começam a ruir.

No estudo Zaratustra – tragédia nietzschiana, Roberto Machado procura

analisar todas essas questões em suas especificidades e significados. Suas análises

confirmam o que até aqui expusemos acerca da ideia de que Assim falou Zaratustra

esteja escrito de forma poética e que seja a concretização, nas palavras do comentador,

de um “projeto de fazer da poesia o meio de apresentação de um pensamento filosófico

não conceitual e não demonstrativo. Um pensamento emancipado, portanto, da razão”

(MACHADO, 2001, p. 23).

De acordo com Machado, Nietzsche desejava “fazer a escrita atingir a perfeição

da música, considerada sempre por ele, na esteira de Wagner e Shoppenhauer, a arte

superior” (MACHADO, 2001, p. 25). Com efeito, Zaratustra parece ter sido a

concretização desse projeto, aproximando-se, assim, do ditirambo dionisíaco, que é uma

apresentação da palavra e da música como componentes da tragédia, o apolíneo e o

dionisíaco respectivamente. Contudo, o Zaratustra não pode ser explicado somente por

meio dos ditirambos, uma vez que ele também pode ser dança e até mesmo sinfonia,

lembrando que para Nietzsche “escrever é dançar com a pena, [e] o maior desejo de um

filósofo é ser um bom dançarino” (MACHADO, 2001, p. 25).

Então, aqui, é ressaltado o seguinte aspecto: Só que Assim falou Zaratustra pretende escapar da ideia de sistema ou de tratado de um modo específico: através da narrativa e do drama, formas que, em consonância com a temática do apolíneo e do dionisíaco, aproximam o livro tanto da epopeia quanto da tragédia (MACHADO, 2001, pp. 26-27).

Portanto, Assim falou Zaratustra já não é somente um canto, uma dança, uma

poesia filosófica. É possível reconhecer também um paralelo com a narrativa dramática,

seja ela a tragédia ou a epopeia. Obviamente que Zaratustra não é uma tragédia como

gênero determinado nos moldes de Ésquilo, de Sófocles ou de Eurípedes. “Em sua

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forma híbrida, polivalente, múltipla, Assim falou Zaratustra me parece um resultado da

independência do trágico com relação à tragédia clássica...” (MACHADO, 2001, p. 28).

De fato, essa proximidade com a tragédia pode ser entendida a partir da união do

apolíneo com o dionisíaco na figura do próprio Zaratustra, que num determinado

momento apresenta-se como herói luminoso, solar, e mais adiante como herói

tenebroso.

Pois bem, sem me estender mais, passo, então, a esboçar ligeiramente algumas

possibilidades da proximidade de Ascese com Zaratustra. Ainda que, de acordo com

Ana M. Arancón, uma leitura mais apurada possa revelar profundas diferenças em

relação ao conteúdo, pois “Nietzsche tem antes de tudo um propósito hermenêutico,

enquanto Kazantzákis está animado mais por uma intenção soteriológica” (ARANCÓN,

1999, p. 137). Entretanto, o próprio Kazantzákis reconhecia em Zaratustra a intenção

profética que também poderia ser atribuída a Ascese, ou seja: a de ser um novo

evangelho. De fato, em Testamento para El Greco, ele comenta: Tu [Nietzsche] dissestes: Uma obra nova deve ser criada, é meu dever de criar – para poder pregar um novo evangelho à humanidade. Mas como? Um sistema filosófico? Não. O pensamento deve jorrar com lirismo. Um épico? Profecias? E subitamente a forma de Zaratustra lampejou na tua mente (KAZANTZAKIS, 1975, p. 226).

Com efeito, Ascese se servirá de uma estrutura semelhante à de Zaratustra, num

misto de prosa, poesia e discurso filosófico. Além disso, tal como a obra de Nietzsche,

deve-se considerar que Ascese tem em vista como leitores os chamados “espíritos

livres”. Zaratustra é uma espécie de profeta, um anunciador da superação de si, do

eterno retorno e da afirmação dionisíaca; o além-homem aponta para uma nova maneira

de sentir, pensar e avaliar. Kazantzákis, ao seu modo, não faz diferente. Como teremos

oportunidade de mostrar, o elocutor ou herói/leitor de Ascese protagoniza uma espécie

de escalada, onde recomendações como a superação de si, a remodelação de um novo

deus, a afirmação como criação em meio ao caos, vão construindo a estrutura da obra.

Mediante a desconstrução de valores, a obra pretende recriá-los por meio do pensar e do

sentir, por meio da prosa em união com a poesia, por meio do discurso conceitual – em

busca da verdade – e do discurso religioso – que fala mais ao sentimento do que à razão

–, arraigados por séculos no processo de construção do conhecimento. Dessa forma,

Kazantzákis, tal como Nietzsche, desenha um itinerário de libertação (redenção) dessa

tradição de valores, fundados e criados pela religião e pela filosofia, numa linguagem

sonora, ritmada e narrativa.

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Após essas constatações de semelhanças entre Zaratustra e Ascese, agora será

preciso providenciar um comentário mais detalhado em torno da prosa e da poesia, e do

movimento destes gêneros, especialmente na modalidade conhecida por prosa poética, e

indicando, assim, seus traços em Ascese.

2.3.2 A circularidade entre prosa e poesia e a questão dos personagens em

Ascese

Da parte de sua forma textual, Ascese pode ser reconhecida como uma unidade

estrutural constituída por elementos próprios da linguagem poética e narrativa e de

elementos do discurso filosófico-religioso, e “cuja melhor caracterização literária seria a

de poema em prosa filosófico” (BUENO, 2007, p. 14). Especificamente no âmbito

literário Ascese transita, portanto, pela narrativa e pela poesia, não se perdendo, porém,

às características convencionais desses gêneros. Devemos tratar agora

despretensiosamente da prosa e da poesia, esclarecendo suas peculiaridades tanto em

separado como em conjunto, e buscando, por conseguinte, suas marcas na obra em

questão.

Diante dos muitos estudos dedicados ao exame da prosa e da poesia percebe-se a

dificuldade em delimitar com precisão as fronteiras que separam os dois gêneros, tendo

em vista a grande associação entre as duas formas de literatura. É muito comum

reconhecer a presença da prosa em textos considerados como poéticos e a presença de

poesia em textos classificados como narrativos. A distinção e definição dos gêneros, em

muitos casos, acabam se dando devido à necessidade de se classificar uma obra por

utilidade de aplicação da parte dos críticos literários. Os escritores, contudo, adotam,

transformam ou mesmo rejeitam tais classificações, o que acaba favorecendo o caráter

instável e transitório dos gêneros, desembocando ou em novas classificações ou em

textos considerados híbridos, de difícil classificação.

Deve-se notar que prosa e poesia se servem das mesmas palavras, da mesma

sintaxe, do mesmo jogo de conotações, mas são coordenados e estruturados de formas

diferentes. O que pode ser eficiente para um gênero nem sempre o é para outro.

De maneira muita genérica, pode se dizer que a prosa ou narrativa se identifica

com a expressão do “não-eu” (MOISÉS, 1982, p. 270), numa relação de acontecimentos

relatados ou encadeados com o devir temporal. A especificidade da narrativa parece

estar no conflito dramático, ou intriga, que é desenvolvido a partir das ações das

personagens (cf. FRANCO JUNIOR, 2009, p. 33 ss). Já as sequências de sentimentos

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ou de palavras na narrativa devem ocorrer na forma de acontecimentos, ou seja: os

sentimentos estão presentes na narrativa, mas na forma de análise ou de caracterização

de um personagem; e as palavras não ganham estatuto por si mesmas, mas fazem parte

de um discurso ou diálogo. De fundamental importância nesse gênero são o narrador, a

personagem, o espaço e o tempo definidos, pois esses elementos são representações do

real, os motores que fazem acelerar ou retardar a ação, com a intenção de apreender a

totalidade da vida.

Por sua vez, a poesia lírica, sendo a expressão do “eu”, é a forma de expressão

linguística destinada a evocar sensações, impressões e emoções por meio da união de

sons, ritmos e harmonias, utilizando-se de vocábulos essencialmente metafóricos. Tais

sentimentos, é certo, alimentam-se de algum modo na realidade, que é, afinal, resultado

de institucionalizações, de ideias. Porém, concentrando-se no sujeito individual, não se

preocupa com a construção de uma ação objetiva, que se expande aos limites do mundo,

mas nas situações e objetos particulares desse sujeito, como seus juízos, suas alegrias,

suas admirações e suas sensações. Portanto, o interesse maior desse gênero literário “é

propor ao leitor uma experiência cognitiva mais (digamos) imaterial, pedindo-lhe que se

aproprie, até despudoradamente – para aceitar ou para recusar – do ‘sentimento’, do

‘estado psíquico’ que ela carrega, ainda que mais ou menos fingidamente” (CORTEZ;

RODRIGUES, 2009, p. 59). Ler um poema seria também buscar o “estado poético do

poeta, a fim de que ele suscite no leitor outro ou similar estado poético”, conforme

Ângelo Ricci (apud DUFRENNE, 1969, p. xvii). A poesia tem uma função lúdica e atua

num mundo próprio criado pelo espírito, “no qual as coisas possuem uma fisionomia

inteiramente diferentes das da lógica e da causalidade” (HUIZINGA, 1999, p. 133). A

mensagem poética, embora possa conter um fato (ou fatos narrativos), busca ainda, às

vezes mais do que outra coisa, acionar estados, vivências, ideias, sutilezas. “O poeta é

doador de sentido” (BOSI, 1983, p. 78).

Em seu ensaio “Verso e Prosa”, Octávio Paz coloca as diferenças entre os dois

gêneros da seguinte maneira: Enquanto o poema se apresenta como uma ordem fechada, a prosa tende a se manifestar como uma construção aberta e linear. Valéry comparou a prosa com a marcha e a poesia com a dança. Narrativa ou discurso, história ou demonstração, a prosa é um desfile, uma verdadeira teoria de ideias ou fatos. A figura geométrica que simboliza a prosa é a linha: reta, sinuosa, espiralada, ziguezagueante, mas sempre para diante e com uma meta precisa. Daí que os arquétipos da prosa sejam o discurso e a narrativa, a especulação e a história. O poema, pelo contrário, apresenta-se como um círculo ou uma esfera – algo que se fecha sobre si mesmo, universo auto-suficiente no qual o fim também é um

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princípio que volta, se repete e se recria. E essa constante repetição e recriação não é senão o ritmo, maré que vai e que vem, que cai e se levanta. O caráter artificial da prosa se comprova cada vez que o prosador se abandona ao fluir do idioma. Tão logo se volta sobre seus passos, à maneira do poeta ou do músico, e se deixa seduzir pelas forças de atração e repulsa do idioma, viola as leis do pensamento racional e penetra no âmbito de ecos e correspondências do poema (PAZ, 1982, p. 83-84).

Percebe-se que, ao final da citação, Paz sugere, de forma bastante sutil, a

possibilidade de associação entre prosa e poesia, uma categoria híbrida que se

convencionou chamar de prosa poética ou narrativa poética. A rigor, a prosa poética não

se constitui como um gênero literário, e sim uma modalidade de como a poesia se

externa.

A prosa poética se apresenta nas mais diversas manifestações do gênero

narrativo, ou seja, do romance à crônica que, num todo ou em partes, vem permeada por

uma linguagem mais elaborada, de forma que os cenários, personagens e enredo,

amalgamados, formam um mosaico lírico. Nos textos que seguem essa vertente são

encontrados diversos elementos próprios de um poema, como o predomínio de figuras

como a metáfora, o eu-lírico, atitude lírica. Uma das diferenças é que nela não há a

preocupação do emprego de elementos formais, por exemplo, o visual (a disposição das

frases em estrofes, versos) e o sonoro (figuras de som, rimas, aliterações, assonâncias,

paronomásias etc), geralmente buscados nos poemas, que em si possuem um sentido, e

que dão a eles efeitos peculiares. Ressalta-se que é possível que a prosa poética possa

conter efeitos sonoros interessantes, mas ele não é tão expressivo quanto os

desenvolvidos nos poemas, por exemplo, concretos, parnasianos, simbolistas. O que

existe nessa nova estrutura é uma dinamicidade, materializada seja pela incorporação do

falar coloquial ou mesmo pela metaforização do espaço que não se compara com as

narrativas puramente descritivas.

Os textos em prosa poética apresentam um compasso que pertence tanto à poesia

quanto à prosa. As narrativas estão permeadas por soluções poéticas, tudo depende do

ponto de vista do eu-lírico. Da prosa poética depreendem-se questões como estas: Onde

se passa a ação? Quando? Por quanto tempo? Quem são e como são as personagens?

Na narrativa poética, o personagem central está em relação direta com um outro

ser, que ele procura, remetendo a uma busca de si mesmo pela ausência de outro. O

espaço deixa de ser definido como no romance, e está sempre alhures, além, porque é o

de uma viagem orientada e simbólica, percorrendo um itinerário. Esse movimento é

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aumentado pelo recurso da imagem, uma vez que cada frase passa de um nível a outro.

A metáfora se associa à lógica da frase que é a um só tempo a da emoção e a do

arcabouço histórico. Há a fusão do “eu” com o “não-eu”, os acontecimentos do mundo

externo se voltam para a reflexão e para a introspecção. O tempo acontece em repetição,

mas ocorre em diferença porque momentos e frases idênticos são colocados em outro

lugar do texto e carregados de tudo o que precede. O compromisso da narrativa poética

com a natureza e com o intemporal a aproxima dos mitos. Da parte do narrador poético

a narrativa é transformada em instrumento da poesia, pois ele expressa a visão de poeta

e não de romancista. Desse modo, a prosa poética efetiva-se como a fusão entre o

conceito de acontecimento e a referência contínua à trama do imaginário.

Feitas tais considerações, e pensando agora mais precisamente no caso de

Ascese, parece-nos ficar manifesta a circularidade entre poesia e prosa no

desenvolvimento da obra. Na realidade, é bastante fácil perceber o seu teor poético.

Parece que a dificuldade maior está em poder reconhecer alguns elementos que também

lhe dariam a qualidade de narrativa. Entretanto, é esse reconhecimento que José Paulo

Paes sugere, em seu estudo introdutório da Ascese: “o ‘eu’ que assume a elocução em

primeira pessoa, ou seja, o elocutor, [...], é uma instância literária, de estatuto

equivalente ao de personagem de romance” (PAES, 1997, p. 22).

Ora, reconhecer, portanto, a voz que fala (ou vozes que falam) como

personagem (ou personagens) será nosso objetivo, já que este parece ser um dos pontos

delicados, literariamente falando, da obra a ser analisada. Carolina Bernardes, em sua

dissertação acerca da multidiscursividade em Ascese, faz uma análise detalhada a este

respeito44, a qual, aliás, me apoiarei totalmente.

Em Ascese é certo que os personagens não aparecem como sujeitos concretos,

com características físicas e ou psicológicas aparentes que sirvam de referência ao

leitor, mas são entidades abstratas, como mente e coração, que recebem personificação e

voz próprias para discutirem e confrontarem pontos da doutrina. O diálogo aparece no

texto, de forma direta ou indireta, fluindo em muitas passagens para um monólogo

interior. O deslocamento ocorre num plano simbólico, não acontece exatamente num

espaço físico, nem em um tempo determinado. A ação obedece a um ritmo, que é o de

uma subida ou de uma escalada, não num plano geográfico, mas espiritual, psicológico.

Em meio a isso se dá o conflito dramático, que é o confronto entre as formas de saber,

44 Refiro-me ao tópico “2.2.1 O alicerce literário em Ascese”, do segundo capitulo da dissertação de Bernardes, pp. 51-70.

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entre teorias e conceitos etc. Reconhece-se com muita clareza que Ascese é a metáfora

de uma escalada, cujo pano de fundo seria, fundamentalmente, a busca de libertação ou

de redenção. Contudo, o enredo, os personagens, o espaço e o tempo empregados na

consumação da peregrinação, enfim, os elementos próprios de uma narrativa, ficam

obscurecidos, dissolvidos, indeterminados, envoltos em abstração.

Então, “a problemática maior que insurge em Ascese é a de personagem ou, em

designação que melhor se aplica a esse texto, das vozes que falam” (BERNARDES,

2004, p. 52). De fato, a voz elocutora não se preocupa em definir quem fala e age em

cada passagem do texto. As vozes se misturam, ora em primeira ou terceira pessoas, ora

em segunda pessoa no modo imperativo. Na maior parte das vezes é alguém que se

manifesta em primeira pessoa, por meio do eu-lírico, como pode ser visto, por exemplo,

logo nas linhas iniciais da seção que abre o livro: “Contemplo o mundo com serenidade

e lucidez e digo: Tudo quanto vejo, sinto, provo, cheiro e toco são invenções de minha

mente” (KAZANTZÁKIS, 1997, p. 41). Em todas as seções de Ascese o eu-lírico se

manifesta, e, conforme as etapas se sucedem, este eu vai manifestando sua própria

evolução, em acordo com o movimento ascendente que é impulsionado pela busca da

liberdade. Com efeito, a cada passagem, o personagem, centrado no eu, relata suas

dúvidas e descobertas, vitórias e angustias que vão acontecendo em seu íntimo. Não lhe

são atribuídas, contudo, características específicas que o identifiquem. Na verdade este

personagem deve ser considerado como um representante do ser humano em geral, cuja

busca pelo conhecimento e pela liberdade é a mesma em todos os tempos e lugares.

“Assim, o personagem em primeira pessoa é a metonímia do próprio ser humano”

(BERNARDES, 2004, p. 53).

A luta a que se submete pelo desafio de realizar tal busca, e até mesmo pelos

termos bélicos utilizados por Kazantzákis, sugere que este representante universal seja

alguém de ação, um herói. Todavia, esta busca, no fundo, é por conhecimento e pelo

aumento das forças interiores, o que dá a entender que o personagem também está

voltado para a contemplação, podendo ser identificado com a figura de um poeta. Com

isso, reconhece-se no personagem uma relação entre herói e poeta, entre o agir e o

contemplar, entre uma busca prática e objetiva e a busca interna, subjetiva de algo

simbólico. A luta que se inicia na obra, então, é uma luta de incursões e excursões,

acontecendo no plano concreto e no plano abstrato. Por isso, de acordo com Bernardes,

este personagem em primeira pessoa pode muito bem ser denominado por herói/poeta.

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Do mesmo modo, em muitos momentos surge também a possibilidade de

identificação do herói/poeta com o leitor, mediante a utilização do verbo na primeira

pessoa do plural. Nesses momentos, Ascese parece se aproximar do texto dramático,

quando se volta ao público – tal como no recurso do coro nas tragédias – e dele

depende.

Corremos. Sabemos que a morte nos espera, mas não podemos parar. Corremos. Pegamos uma tocha e corremos. Por um instante, nosso rosto se ilumina, mas prontamente passamos a lanterna a nosso filho e em seguida sumimos no Hades (KAZANTZÁKIS, 1997, p.79).

Por ser o personagem um representante da espécie humana, o leitor, então,

também pode tomar parte na caminhada do herói, resultando na ampliação da

denominação do personagem para herói/poeta/leitor.

Existem passagens em que a voz que fala se utiliza do modo imperativo,

aproximando-se das imposições e das exortações da linguagem religiosa, e indicando

sua superioridade em relação ao herói/poeta, ora mostrando o caminho a ser seguido,

ora revelando um conhecimento maior que o do personagem em primeira pessoa. Em

tais passagens, então, se estabelece uma relação de mestre e discípulo.

A cada instante, dia e noite, na alegria e na dor, em meio à necessidade cotidiana, teu dever é ouvir esse Grito: ouvi-lo como melhor convenha à tua natureza, com paixão ou com calma, rindo ou chorando; esforça-te para entender quem seja aquele que grita em transe de perigo; esforça-te por descobrir como poderemos todos juntos, sair a campo para libertá-lo (KAZANTZÁKIS, 1997, pp. 61-62).

Neste ponto, Carolina Bernardes especula que a voz que fala no imperativo

poderia ser entendida como a voz de um mestre de disciplina, aquele que já empreendeu

todas as etapas da ascese. Agora o mestre indica o caminho, e sem se afastar do herói

assume, junto com ele, os desafios dessa trajetória.

Outra hipótese apontada por Bernardes em relação à voz imperativa é a de que o

próprio herói assume o comando para instruir o leitor, e, assim, alcançarem juntos o

grau maior dos exercícios. Isso se dá quando num mesmo parágrafo percebe-se a

presença do tempo verbal na primeira pessoa e no imperativo: “Não aceito os limites, os

fenômenos não me podem conter; sufoco! Teu segundo dever é viver essa cruenta, essa

profunda agonia” (KAZANTZÁKIS, 1997, p. 46). Aqui, o eu-lírico dá sinais de

testemunhar seu próprio aprendizado ao mesmo tempo em que ajuda o leitor, que

também é o próprio herói/poeta, a realizar sua busca. “Ambas as instâncias estariam

fundidas, sem delimitação entre personagem literário e leitor, entre mestre e discípulo”

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(BERNARDES, 2004, p. 54). Então, para o personagem como discípulo e mestre de si

mesmo pode ser dada outra denominação, herói/poeta/mestre.

Na seção “A Marcha”, a partir do “Quarto degrau: a terra”, Bernardes indica que

a voz centrada no eu bifurca-se entre o ser humano e Deus. Mas a elocução passa de um

para outro sem qualquer aviso ou sinal que os identifique. Entretanto, podemos

reconhecer a voz de Deus, por exemplo, na seguinte passagem: “Mas salvei-me. Deixei

para trás as folhagens copiosas, deixei para trás os peixes, as aves, as feras, os símios.

Fiz o homem” (KAZANTZÁKIS, 1997, p. 88). Esta indicação nos faz, então, descobrir

Deus como um novo personagem, e que vai recebendo uma caracterização cada vez

mais acurada. E a partir daí, em muitas passagens, o herói volta a ser poeta na recriação

de Deus, pois uma de suas tarefas é remodelar, redescobrir a face de Deus.

Já o discurso na terceira pessoa em Ascese pode apontar para duas

possibilidades. Num caso, enquanto discurso filosófico conceitual deixa a marca da

impessoalidade. Por exemplo: Quando, no combate contra o caos, o homem submete uma série de fenômenos às leis de sua mente e define essas leis com rigor verbal, o mundo respira, os gritos se ordenam, purificam-se as coisas vindouras e libertam-se as quantidades infindas e sombrias de números, que se ordenam então no mistério da qualidade (KAZANTZÁKIS, 1997, p. 138).

A outra possibilidade se abre à voz de um narrador que de um ponto de vista

externo vai relatando os acontecimentos.

A mente delibera. Quer encher de grandes obras sua prisão, o crânio. Quer gravar nas paredes palavras heroicas, pintar em seus grilhões as asas da liberdade. O coração não aceita deliberar. Mãos batem do lado de fora de sua prisão; ouvem-se no ar vozes amorosas; e o coração, repleto de alegria, rompe seus grilhões sacudindo-os; num átimo, eles parecem ter-se convertido em asas (KAZANTZÁKIS, 1997, p. 53).

O narrador torna-se um tipo de colaborador, iluminando fatos que o herói/leitor

não tem condições de apreender por si mesmo. Igualmente, a mesma utilidade existe no

discurso impessoal, que oferece informações e diretrizes para uma maior compreensão

de si e do Universo.

Outros personagens poderiam ainda ser identificados. Seria o caso do coração e

da mente que se tornam personificações, com características humanas, investidos de voz

própria para discutirem pontos da doutrina. Contudo, ainda que o coração e a mente

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sejam mantidos ao longo do percurso, “a personificação que as caracteriza na primeira

etapa da ascese não se repete nas etapas subsequentes” (BERNARDES, 2004, p. 56).

Quanto aos outros elementos narrativos, o espaço, por exemplo, reafirma-se que

a ação do personagem não acontece em um lugar específico e determinado. Não existem

descrições ou referências que possam levar o leitor a situar a ação em um dado local.

Por se tratar de uma escalada espiritual, portanto, simbólica e universal, não há um país,

uma cidade, ou um local em especial. O cenário do esforço heroico do poeta é o mundo

interior do ser humano e, num certo sentido, da vida em geral.

Enfim, por tudo o que foi discutido chega-se às seguintes considerações. Sendo

uma trajetória simbólica, Ascese utiliza-se da analogia metafórica, do ritmo e do eu-

lírico, que incorporam imagens e transforma essa trajetória ou itinerário em um longo

poema. Entretanto, esta disposição em forma de poema, acentuada principalmente pelo

predomínio do eu-lírico, não elimina a presença da prosa que aparece por meio da voz

de personagens, de um narrador – ainda que não possam ser identificados dentro das

normas tradicionais – e de um desenvolvimento sempre para diante, sucessivo, mesmo

que não haja um enredo claramente definido. Não há dúvida que esta ausência de

enredo caracteriza o texto como poema, mas a presença de diálogos retoma a prosa. Em

outras palavras, a obra não se deixa ser classificada definitivamente por qualquer

gênero. Diante disso, Bernardes vai fechando esse tópico da sua pesquisa confirmando

as interpenetrações entre poesia e prosa em Ascese e ressaltando a impossibilidade de

categorizá-la pelos gêneros literários. A pesquisadora lembra também que Ascese “não

tem por objetivo, como plano de obra, de estabelecer e fixar normas para si, nem

tampouco criar um novo gênero que inaugure uma forma de escrever” (BERNARDES,

2004, pp. 69-70). E em coerência com a obra, a autora acaba por não enquadrá-la aos

gêneros existentes, mesmo que combinados entre si. Portanto, podemos dizer que até na

forma inclassificável em que foi escrita, Ascese segue a intenção kazantzakiana de

busca por liberdade/redenção.

***

Neste segundo capítulo iniciamos uma abordagem aproximativa da obra Ascese

que procurou encará-la de diversos ângulos. Assim, percorremos a trajetória contextual

em que ela foi escrita, suas circunstâncias e possíveis motivações, além de tentar

explicitar suas manifestações filosóficas e políticas. Passamos também pela difícil tarefa

de descrever a trajetória do plano da obra, resumindo cada uma de suas seções. Por fim,

discutimos algumas questões em torno da caracterização literária de Ascese, isto é, a

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trajetória da sua forma literária. Com isso, acreditamos ter deixado evidente que em

todo o seu trajeto, desde o momento histórico em que se insere até à forma em que foi

escrita, a obra se apresenta como um manifesto de libertação – de valores, de

enquadramentos, de regras etc. –, se apresenta afinal como uma escrita em busca de

redenção. Agora, nosso próximo e último passo nesta pesquisa será no sentido de

destacar e refletir alguns pontos que envolvem a profunda dimensão religiosa e

teológica da obra.

Capítulo 3 – A espiritualidade da luta e da liberdade em Ascese

Há uma única substância, sempre a mesma, e o homem ainda não achou outro meio de se elevar;

a derrota da matéria e a submissão do indivíduo a um fim que o

ultrapassa pode muito bem ser uma quimera; para um coração que crê e ama não é uma quimera, para ele

só a coragem , a confiança e a ação profunda têm valor.

Nikos Kazantzákis

Este terceiro e último capítulo será destinado a refletir um dos aspectos mais

relevantes e estudados da obra de Kazantzákis: a religião. Aos que se dedicam a

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investigar a literatura do escritor cretense é praticamente impossível deixar de lado este

tema que transborda da sua obra: são abundantes suas manifestações sobre religião e

Deus. E toda a complexidade e contraditoriedade do poeta grego a este respeito tornam

o assunto um prato cheio para teólogos e filósofos da religião45. Para usar um

comentário de Luiz Felipe Pondé sobre Dostoiévski, mas que pode muito bem ser

aplicado a Kazantzákis, podemos dizer que não é possível apreender a fundo sua obra

sem a compreensão de seu pensamento religioso, já que “sua escrita está fincada em sua

postura religiosa”, e não levar isso em consideração implicaria em “miopia

hermenêutica” (PONDÉ, 2003, p. 30).

Portanto, a infatigável busca de Kazantzákis por Deus acabará manifestando em

sua literatura uma intensa espiritualidade teológica46. E Ascese pode ser vista como a

expressão essencial dessa busca. Nosso intuito aqui será apresentar e discutir alguns

temas pertinentes a essa trajetória espiritual. Assim, procuraremos reconhecer o sentido

da ascese kazantzakiana como afirmação da vida e da liberdade, interpretada por nós a

partir do conceito nietzschiano de amor fati; depois, com a necessidade de uma nova

compreensão de Deus, tal como é sugerida em Ascese, levaremos em conta sua

dimensão imanente e evolucionária, e a associaremos ao élan vital concebido por

Bergson; na sequência, partindo da seção final da obra em questão indicaremos sua

relação com o budismo, mas principalmente com os aspectos da apofática e da teologia

negativa encontradas na tradição da mística cristã; e, fechando o capitulo,

reafirmaremos a luta e a liberdade como motivos que sustentam a espiritualidade de

Ascese.

3.1 Ascese: exercícios espirituais para a afirmação da vida

Kazantzákis reconhecia uma inquietação e um compromisso com a palavra Deus

e a palavra ascensão. Por isso, dizia ter certeza de uma coisa na vida: “que uma estrada,

e somente uma, leva a Deus – a ascensão” (KAZANTZAKIS, 1975, p. 335). Para o

45 Ver por exemplo a coletânea de ensaios a este respeito de D. J. N. Middleton & P. Bien (Eds.): God’s Struggler. Religion in the Writings of Nikos Kazantzakis; e também o livro de D. Dombrowski: Kazantzakis and God. 46 Uso essa expressão “espiritualidade teológica” levando em consideração àquilo que Philip Sheldrake se refere no livro Espiritualidade e teologia, ao dizer que a prolongada separação entre espiritualidade e teologia foi profundamente prejudicial a ambas. As tentativas contemporâneas de encorajar uma conversação entre elas são, portanto, vitais. Sheldrake entende que essa conversação é uma rica fonte em potencial para a renovação da teologia e também garante o desenvolvimento continuado de espiritualidades, ricas em tradição embora plenamente atentas a questões, valores e experiências contemporâneos.

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escritor, portanto, somente o caminho que sobe é o que conduz a Deus, nunca a descida

ou o caminho plano.

Nas religiões é muito comum a ascensão vir representada pela imagem ou

metáfora da escada. Há, pois, na simbologia da escada um sentido de elevação e de

desenvolvimento psíquico/espiritual. Nesse sentido, os degraus marcariam os níveis de

progresso, e a cada etapa conquistada, numa superação de patamares e sucessão de

estados espirituais, vai se confirmando o aumento da persistência e da coragem para se

enfrentar as lutas. Assim é que em Ascese Os Salvadores de Deus a aquisição da

elevação espiritual obtém-se também pela superação de etapas – A Preparação, A

Marcha, A Visão, A Prática, O Silêncio – que, num certo sentido, podem ser vistas

como degraus a galgar e cuja peregrinação estaria em harmonia com os passos das

grandes escolas místicas, contendo elementos “presentes nas vias de Pseudo Dionísio

Areopagita, nas moradas de Santa Teresa e nas semanas de Santo Inácio de Loyola”

(VILLAS BOAS, 2013, p. 216). Em Ascese se lê: “Escolho a subida porque até ela me

impele o coração. ‘Para cima! Para cima! Para cima! ’ brada-me o coração e eu o sigo

cheio de confiança” (KAZANTZÁKIS, 1997, p. 64). O esforço e o treinamento a ser

realizado com o objetivo de se alcançar tal elevação é a prática ascética.

3.1.1 Sobre os sentidos e as finalidades da áskêsis (ascese)

Creio ser importante abrirmos uma discussão a respeito da prática ascética para

melhor entendermos o sentido que Kazantzákis a toma em seu livro. Ora, a prática

ascética geralmente é vista como um meio por excelência para obter a purificação do

espírito, da alma. É, pois, por essa via que o asceta pode atingir a libertação total do

corpo e o afastamento do mundo, e, por isso, não é difícil entender quanto a ascese

marcou, e ainda marca, grandes e pequenas religiões. Nesse sentido, a ascese estaria

relacionada à preocupação humana de querer livrar-se de algum tipo de sofrimento ou

preocupação. Assim, somente por meio de um grande esforço é que o ser humano

conseguiria atingir esse seu objetivo, isto é, alcançar a libertação daquilo que o

incomodava. O que se tem nessa perspectiva é um olhar sobre a ascese como um modo

para extirpar tudo aquilo visto como o mal, e, portanto, com conotação religiosa e

moral.

Numa tal forma de pensar, o mal estaria ligado ao corpo, e este,

consequentemente, tornar-se-ia empecilho para a liberdade humana. A ascese teria,

então, a função de submeter o corpo ao espírito mediante práticas de renúncia e

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mortificações. Com efeito, o corpo passa a ser visto ao mesmo tempo como empecilho –

para a liberdade – e como instrumento máximo de ascese que privilegia uma vida para

além do corpo, a vida da alma. No Ocidente, este sentido de ascese, enquanto renúncia e

mortificação, relacionado também à questão da penitência, tornou-se predominante na

Idade Média com o cristianismo. Contudo, o ascetismo não está vinculado

exclusivamente à história do cristianismo.

Para endossar o que até aqui dissemos, mas, sobretudo, para também ressaltar

outra perspectiva sobre a ascese iremos nos remeter à etimologia da palavra. O termo

ascese vem do grego (verbo: askéo; substantivo: áskêsis, askêtês) e designa

precisamente “exercício”. Dessa maneira, “em seu sentido originário, a palavra indicava

qualquer exercício – físico, intelectual e moral – realizado com certo método visando a

um progresso” (DEFIORES; GOFFI, 1989, p. 50). Ou seja, a ascese era aplicada a

diversas finalidades como para alcançar uma habilidade (Homero, Heródoto), ou como

treinamento físico (Tucídides, Xenofonte, Platão) e militar (sofistas), mas também como

abstenção (estoicos, Epiteto, sofística antiga) e exercício religioso (Isócrates, Fílon de

Alexandria). Em seu sentido cristão o termo é usado principalmente por Clemente de

Alexandria e Orígenes. E no século IV torna-se correlativo a “monge” e vida monástica.

Porém, no latim (monasterium, asceterium) o termo é raro (cf. KÖNIG;

WANDENFELS, 1995, pp. 43-44).

Para Lalande a “ascese concerne menos aos exercícios ou às privações materiais,

e mais à vida interior” (LALANDE, 1996, p. 91), acentuando o sentido de ascese como

meio de tornar viável a prática da virtude. Lalande conclui com a seguinte citação de

Dugas: “Chamamos ascese ao esforço heroico de vontade que impomos a nós próprios a

fim de adquirir a energia moral, a força e a firmeza de caráter” (apud LALANDE, 1996,

p. 91). Nesta mesma direção, o verbete ascetismo parece indicar um método presente

em quase todas as morais que, no entanto, só terá o nome de ascetismo se for levado ao

extremo ou considerado como o essencial da moralidade. Maurice Blondel, por sua vez,

afirma que é um equívoco pensar na ascese e no ascetismo a partir de um rigorismo que

preste culto ao sofrimento porque etimológica e originalmente estes termos se referem à

aplicação das leis morais, de modo que, “a menos que se creia que os preceitos têm uma

eficácia imediata, e que o ‘exercício metódico’ não é indispensável para a conquista da

pessoa moral, uma ascese prolonga, pois, e completa normalmente a ética” (apud

LALANDE, 1996, p. 91).

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De acordo com Pierre Hadot, cogita-se ter existido uma pré-história da ascese,

“mas, diante da pobreza de fragmentos conservados e da dificuldade de interpretá-los,

descrever com precisão essas práticas demandaria, [...] um estudo muito longo”

(HADOT, 1999, p. 271). Admite-se, contudo, que a noção de ascetismo está relacionada

ao treinamento ou preparação com vistas a se estar em forma para determinados

exercícios atléticos. A partir dos pitagóricos, dos cínicos e dos estoicos é que se teria

aplicado o ascetismo à vida moral na medida em que a realização da virtude implica em

submissão dos desejos e renúncia.

Como se pode ver, o significado de ascese é bastante amplo na sua origem. Mas

podemos já adiantar que a Ascese de Kazantzákis, embora seja moderna, ela evoca, no

entanto, suas origens gregas47. E ainda que ela manifeste um claro sentido religioso, a

ascese na obra de nosso autor não é a elevação ao sagrado por meio de mortificações ao

corpo e de rejeição do mundo, mas trata-se, sim, de exercícios metódicos que possam

levar o ser humano ao progresso e desenvolvimento espiritual. Michel Foucault, em A

hermenêutica do sujeito, sugere o uso do termo ascese no sentido em que, segundo nos

parece, pode ser encontrado em Kazantzákis. Conjunto mais ou menos coordenado de exercícios disponíveis, até mesmo obrigatórios, ou pelo menos utilizáveis pelos indivíduos em um sistema moral, filosófico e religioso, a fim de atingirem um objetivo espiritual definido. Entendo por “objetivo espiritual” uma certa mutação, uma certa transfiguração deles mesmos enquanto sujeitos, enquanto sujeitos de ação e enquanto sujeitos de conhecimentos verdadeiros. É este objetivo de transmutação espiritual que a ascética, isto é, o conjunto de determinados exercícios, deve permitir alcançar (FOUCAULT, 2004, p. 505).

Então, em Kazantzákis a ascese deve ser entendida como um conjunto de

exercícios espirituais que promovem a transformação do sujeito. Mas, principalmente, é

preciso reconhecer que a ascese kazantzakiana deseja apontar o exercício necessário à

condição humana para a total aceitação, sem reservas ou ressentimentos, da própria

vida. E é aqui que podemos relacionar a ascese de Kazantzákis com o conceito de amor

fati nietzschiano.

3.1.2 O amor fati nietzschiano

Para entendermos este conceito em Nietzsche devemos fazer uma breve

digressão em torno do seu pensamento. Sabe-se que Nietzsche não é um pensador

sistemático, e isso não se deve somente ao estilo específico que adota ou ao tratamento

47 Não só em seu título, Askitikí (Ascética), mas, em muito, no seu sentido também.

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peculiar que dá a certas questões, como também à recusa explícita dos sistemas

filosóficos. Seus principais conceitos não são trabalhados em obras específicas, mas

apresentados e ampliados em diferentes obras. Assim, ao tratarmos de um conceito

como amor fati estaremos também às voltas com outros conceitos que se inter-

relacionam na obra do filósofo, tais como: transvaloração dos valores, eterno retorno,

além-do-homem etc.

Ora, em Nietzsche costuma-se reconhecer um projeto fundamental que se refere

ao conceito de transvaloração dos valores48. Uma vez anunciada ou proclamada a

“morte de Deus” todos os valores em pé, todas as tábuas de valores provenientes da raiz

platônico-cristã perdem sua razão de ser, perdem seu fundamento. Desse modo, a

transvaloração aparece como uma nova postura, um plano que visa superar os valores

arraigados pelo cristianismo e pelas estruturas sociais que deles derivam, é outra visão

valorativa cujo critério deve ser a vida mesma concebida como plenitude dionisíaca. Em

Nietzsche a transvaloração passa pela erradicação absoluta do cristianismo: “Fui

compreendido? Dioniso contra o crucificado...” (NIETZSCHE, 2003, p. 154). Para o

filósofo alemão, Dioniso e o Crucificado se relacionam mediante a experiência da dor,

porém, sob perspectivas vitais distintas.

Dioniso é a vida mesma, a vida que em sua imanência se constrói e se destrói, com seu duplo movimento de nascimento e morte, de prazer e de dor. O Crucificado, por sua vez, é o símbolo de um sofrimento que aponta para além da vida terrena, para a transcendência (COLOMER, 1990, p. 322-323).

O que realmente incomodava Nietzsche era a renúncia ao corpo, aos sentidos e

ao mundo em função de uma salvação num “mais além”, questões postuladas pelo ideal

ascético cristão. Para o filósofo alemão esta forma de ascetismo tem por fundamento a

rejeição do prazer, o apagamento dos sentidos e, no limite, a negação da própria vida,

uma espécie de ânsia virtual em deixar de viver um aqui e agora “imperfeito” e

“ilusório” para renascer numa suposta perfeição e na “verdade” de um além. Em outros

termos, o ideal ascético era visto por Nietzsche como um empobrecimento da vida, na

medida em que recusava os abundantes valores desta em nome de um único valor a ela

alheio: um além que só servia para degradar o aquém. Contra isso, o filósofo dispara:

“A noção ‘Deus’, inventada como noção antítese à vida – tudo nocivo, venenoso,

caluniador, toda a hostilidade mortal contra a vida enfeixada em uma unidade horrível!”

(NIETZSCHE, 2003, p. 153).

48 Conferir, nesse sentido, o livro de Scarlet Marton: Nietzsche: a transvaloração dos valores.

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Por isso, na compreensão de Nietzsche, o ideal ascético cristão faria a apologia

de um falso amor fati, que consistiria em suportar – sem amar – os fatos da existência,

na esperança de que Deus, enfim, nos livre de todos os fatos, dando-nos uma outra vida.

Contrariamente, o ideal dionisíaco aceita a vida em plenitude, em si e por si, nas suas

contradições, no seu perene fluir onde nascimento e morte são duas faces de uma

mesma moeda. Para Nietzsche, “o maravilhoso fenômeno do dionisíaco” era “uma

fórmula da suprema afirmação, um dizer sim sem reserva, mesmo ao sofrimento,

mesmo à culpa, mesmo a tudo o que é problemático e estranho na existência”

(NIETZSCHE, 1974, p. 32).

Em Nietzsche, o amor fati (amor ao destino) é uma ideia inseparável de sua

concepção de eterno retorno. “Sob a égide do eterno retorno, querer será sempre querer

o necessário: amor fati. É aqui que está o segredo da superação do niilismo, assim como

a dificuldade final da filosofia de Nietzsche: fazer com que coincidam o querer e o

destino, a liberdade e a necessidade” (MOURA, 2005, p. 283). Com efeito, amor fati é

amar o inevitável, amar o destino, amar o justo e o injusto, o próprio amor e o desamor.

Ou seja, ser, antes de tudo, um forte para amar a vida como ela é, ainda que com os

sofrimentos. Não se trata de amar o sofrimento, mas a vida que não existe sem o

sofrimento. Trata-se de um dionisíaco dizer sim ao mundo, tal como ele é: “a grande

participação panteísta em alegria e sofrimento, que aprova e santifica até mesmo as mais

terríveis e problemáticas propriedades da vida” (NIETZSCHE, 1974, p. 401).

O termo aparecerá em A gaia ciência de maneira bastante clara no seguinte

trecho: Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas: - assim me tornarei um daqueles que fazem belas as coisas. Amor fati [amor ao destino]: seja este, doravante, o meu amor! Não quero fazer guerra ao que é feio. Não quero acusar nem mesmo acusar os acusadores. Que a minha única negação seja desviar o olhar! E, tudo somado e em suma: quero ser, algum dia, apenas alguém que diz Sim! (NIETZSCHE, 2001, p. 188).

O amor fati foi usado por Nietzsche em Ecce homo no sentido de designar a

“fórmula para a grandeza do homem”, isto é: “não querer ter nada de diferente, nem

para frente nem para trás, por toda a eternidade... Não apenas suportar aquilo que é

necessário, muito menos dissimulá-lo – todo o idealismo é falsidade diante daquilo que

é necessário –, mas sim amá-lo” (NIETZSCHE, 2003, pp. 67-68). Essa é a formula para

o homem se tornar o além-do-homem. A grandeza do ser humano, sua superação, está,

pois, em converter o impedimento em meio, o obstáculo em estímulo e, dessa maneira,

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poder afirmar com alegria o acaso e a necessidade ao mesmo tempo; é dizer sim à vida.

Portanto, nem conformismo, nem resignação, nem submissão passiva, mas amor; nem

lei, nem causa, nem finalidade, mas fatum (destino).

Na concepção nietzscheana de amor fati se acha reunido o que aparentemente

não se pode reunir: a atividade em vista de realizar o que ainda não é e a aceitação

amorosa do que advém. Em vez de esperar que um poder transcendente justifique o

mundo, o ser humano tem de dar sentido à própria vida; e em vez de aguardar que

venham redimi-lo, deve amar cada instante como ele é. Por isso, o amor fati, como

afirmação incondicional da vida, contrapõe-se a uma prática ascética que seja a da

renúncia, da negação, da oposição ao mundo.

Estando agora de posse do conceito de amor fati e dos seus possíveis

desdobramentos, veremos como este conceito pode servir de chave de leitura para se

compreender o significado da ascese kazantzakiana.

3.1.3 A ascese kazantzakiana: amor fati, amor à vida

O que se propõe em Ascese os Salvadores de Deus assemelha-se à tarefa do

homem de A gaia ciência, quando Nietzsche destaca certo potencial no ser humano,

tendo em vista a sua superação: Seria pensável um prazer e força da autodeterminação, uma liberdade da vontade, em que um espírito se despede de toda crença, de todo desejo de certeza, exercitado, como ele está, em poder manter-se sobre leves cordas e possibilidades, e mesmo diante de abismos dançar ainda. Um tal espírito seria o espírito livre par excellence (NIETZSCHE, 1974, p. 223).

Essa é exatamente uma das propostas do “exercício ascético” do livro de

Kazantzákis: libertar-se da crença, do desejo de certeza e promover verdadeiros

espíritos livres. Já na etapa que abre a Ascese (A Preparação) trata-se justamente de

procurar se libertar do simples comprazimento da mente que pensa em colocar todas as

coisas em ordem e espera dominar fenômenos, e, do mesmo modo, também se libertar

do anseio do coração que procura e espera encontrar a essência das coisas. E isso

significa se libertar de toda e qualquer crença e do desejo de adquirir certeza do que

quer que seja. Então, essa etapa da ascese kazantzakiana se encerra com aqueles dizeres:

“Agora sei: não espero nada, não temo nada, libertei-me da mente e do coração, subi

mais alto, sou livre. É isso que eu quero. Não quero senão isso. Eu buscava a liberdade”

(KAZANTZÁKIS, 1997, p. 58).

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Essa ascensão delineada por uma via de negação poderia levar logicamente à

conclusão de uma absoluta inutilidade da ação. Rondaria, dessa forma, as fronteiras de

um niilismo radical. Entretanto, não é o que acontece, pois Ascese é na realidade um

insistente chamado para a luta, ainda que seja uma luta sem esperança nem recompensa.

Lembremos: “Seja como for, lutamos sem nenhuma certeza e nossa virtude, por não

estar segura de recompensa, se reveste de maior nobreza” (KAZANTZÁKIS, 1997, p.

132). Em todo caso, Kazantzákis interioriza sim em sua obra um tipo de niilismo, mas

um “niilismo heroico” (cf. PAES, 1997, p. 13; 1985, p. 160), e que não tem nada a ver

com a recusa da vida ou renúncia do mundo; leva, antes, à sua total aceitação, leva ao

amor fati. Uma aceitação, portanto, heroica, dionisíaca, de participar da vida em sua

plenitude, nas suas alegrias e nas suas dores.

O que se pode reconhecer nas entrelinhas de Ascese é que a vida possui um valor

supremo, único, acima mesmo das ideias religiosas ou científicas que a qualificam de

outra maneira. A vida como tal pode inclusive não possuir um sentido, uma razão de

ser, mas nem assim perde sua grandeza e seu valor. A defesa de Kazantzákis em favor

da vida terrena é absoluta. Quer dizer, da mesma maneira que Nietzsche, num certo

sentido, ele também a defende para que não caia no niilismo do cristianismo-platonismo

que nega o valor desta vida, ele a defende, pois, da tentação da religião que

tradicionalmente coloca “o centro da gravidade da vida [...] não na vida, mas no ‘Além’

– no nada –, tira-se em geral à vida o centro de gravidade” (NIETZSCHE, 2009, pp. 64-

65). E aqui também deve ser lembrado que a ciência possui o seu “além”: o seu a priori,

a “verdade” posta na natureza. O que se deve notar é que o ser humano tem dificuldades

para viver tanto sem o além da religião quanto sem a metafísica da ciência e da

filosofia, porque tudo gira em torno da “verdade absoluta”. Ao ser questionado todo o

quadro valorativo em torno do qual gira a civilização, o ser humano entra em uma

grande crise e se sente perdido no tempo e no espaço e uma falta de sentido toma conta

dele.

Kazantzákis apela com suas palavras (seu exercício ascético) a não retroceder

por falta ou ausência de sentido, ou a pôr em dúvida o amor à vida. De fato, na ascese

kazantzakiana a concepção de amor fati parece se estabelecer como uma postura de vida

que lhe cabe perfeitamente. Assim, por exemplo, podemos ler: Aonde vamos? Não me perguntes! Sobe e desce. Não existe começo, não existe fim. O que existe é o momento presente, cheio de amargor e de doçura, e eu o desfruto por inteiro.

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A vida é boa, a morte é boa, e a Terra é redonda e firme como um seio de mulher em minhas mãos experientes. Eu me dou a tudo. Amo, sofro e luto (KAZANTZÁKIS, 1997, p. 57).

Na ascese de Kazantzákis o mundo trágico não perde sua beleza, a tragédia da

vida humana não é rejeitada e o absurdo do incompreensível não provoca a diminuição

no desejo de viver. Por isso, recomenda-se o seguinte: “Morre a cada dia. Nasce a cada

dia. Renega a cada dia o que possuis. A virtude suprema não é ser livre, mas lutar pela

liberdade./ Não te dignes a perguntar: ‘venceremos ou seremos vencidos?’. Luta!”

(KAZANTZÁKIS, 1997, p. 134). Trata-se de uma ascese que não tem em vista um

sentido já definido para a vida, mas que incentiva cada um a criar o seu próprio

caminho, e nesse caminho a ser criado tudo deverá adquirir “inesperada santidade – a

beleza, o conhecimento, a esperança, a luta econômica, os cuidados diários, tidos por

insignificantes” (KAZANTZÁKIS, 1997, p. 132). Todos esses dados deverão adquirir

valor por si mesmos, e não porque existe um sentido para além deles.

Os exercícios espirituais de Kazantzákis procuram restituir ao ser humano o

potencial criativo e de transformação, introjetando aquele niilismo heroico ou ativo (o

amor fati) que lhe dará a coragem para “mesmo diante de abismos” continuar a dançar.

Assim, o niilismo heroico como um rompimento com os valores estabelecidos, para

reavaliação destes e a futura fundação de uma nova postura diante do mundo, se

coaduna com a visão que procura explorar em si as potencialidades divinas de criação, a

luta ininterrupta por manter-se heroicamente dançando quando tudo parece exigir a

inação.

A atribuição do niilismo heroico a Kazantzákis, ou seja, essa postura carregada

de amor fati como exigência para se cumprir a ascese da afirmação da vida, pode ser

identificada ainda por aquilo que o próprio escritor chamou de olhar cretense49. Ora, o

“olhar cretense” não é senão uma declaração vitalista e corajosa, isenta de dogmas de fé,

uma maneira imanente e afirmativa de pôr a vida em movimento, de transubstanciar em

algo positivo tudo o que desafia o ser humano. Significa olhar fixamente o abismo sem

temer, lançar-se sobre e como um relâmpago, suportar toda a violência do caos ou da

realidade sem se cegar, tal é, pois, a disposição de espírito do “olhar cretense”, e que

também poderia ser qualificada de “luciferiana-nietzschiana” (PIZARRO, 2007, p. 154).

Enfim, sendo a síntese de uma filosofia nômade, metamórfica, consciente da existência

49 Este conceito já foi rapidamente apresentado no primeiro capítulo desta dissertação; conferir as páginas 31 e 32.

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de muitos pontos de partida e de chegada, o olhar cretense se fundamenta pela ideia de

uma conquista desafiante, por uma força de ânimo necessária para enfrentar os perigos e

capaz de estar à altura de qualquer situação.

Portanto, aquele que vivenciar em seu íntimo algo como o “olhar cretense” e

praticar com heroísmo a ascese da afirmação da vida seguirá dançando, “mesmo diante

de abismos”, conforme a proposta de Nietzsche. Interessante notar que em Ascese a

imagem da dança aparecerá no final, sob a forma de uma dança de fogo, que é, segundo

Kazantzákis, “a primeira e a última máscara do meu Deus. Dançamos e choramos entre

duas grandes fogueiras” (KAZANTZÁKIS, 1997, p. 146). O fogo deve ser aqui

entendido como aquilo que ao mesmo tempo consome e é consumido. É o próprio ritmo

da vida.

Por sua vez, a palavra “abismo” surge frequentemente no texto de Kazantzákis

como figuração multívoca do incriado, do caos, do nada, da eternidade e do próprio

Deus. Mas, sobretudo, “abismo” conota a noção de perigo. E isso é fundamental naquilo

que pode ser visto como um agir heroico e afirmativo em Ascese, justamente por ser no

enfrentamento do perigo que a heroicidade se assegura como tal. Esse agir será

impulsionado por aquilo que Kazantzákis denomina de “grito”,50 que também é uma

expressão recorrente em Ascese, e que sempre nasce nas entranhas do ser humano

exatamente como um ímpeto a lhe ordenar. Semelhante ao estandarte do “viver

perigosamente” proclamado e erguido pelo Zaratustra de Nietzsche, que tem em vista o

Übermensch – o além-do-homem –, lemos numa das passagens de Ascese o seguinte:

“Podes e deves, em teu próprio setor, tornar-te herói./ Ama o perigo. Que há de mais

difícil? Pois é o que quero! Que estrada tomarás? A subida mais íngreme e pedrosa.

Essa é a que tomo; acompanha-me!” (KAZANTZÁKIS, 1997, p. 67).

Em suma, é com uma disposição heroica desse tipo que a ascese kazantzakiana

da afirmação da vida vai se constituindo. Com coragem tanto nas dores como nas

alegrias, subindo sem esmorecer de pico em pico, ultrapassando cada uma das etapas e

com total consciência de que a altura não possui fim. Dever-se-á, então, chegar ao final,

que na verdade não é um final, mas sempre um recomeço, reconhecendo o valor

daqueles que conseguiram se unir a “Deus” para se fazer Um com ele, e santificando

ainda mais os “que carregam nos ombros, sem vergar ao seu peso, o grande, o

extraordinário, o terrível segredo: sequer este Um existe!” (KAZANTZÁKIS, 1997, p.

50 O “grito” também foi apresentado em nosso primeiro capítulo; ver principalmente as páginas 27 e 28.

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150). Trata-se, afinal, de se manter firme diante do abismo. Ascese não como fuga deste

mundo, mas como encontro do ser humano consigo mesmo em sua integralidade.

Exercício ascético como sentido até diante do sem sentido, isto é, um mundo sem

sentido não mais como empecilho para viver intensamente esta vida. Pelo contrário,

uma ascese exercida como estímulo para a afirmação desta vida.

3.2 A face imanente e evolucionária de Deus

Em Ascese, toda essa trajetória da afirmação da vida acabará exigindo uma nova

relação com Deus e, por conseguinte, uma nova compreensão sobre a divindade. Não é

tarefa fácil delinear tal concepção nesta obra, pois não se trata de uma visão

unidimensional. Para alguns intérpretes o significado da “transfiguração da matéria em

espírito”, por exemplo, não seria um movimento do ser humano para Deus, mas

“significa a vitória da humanidade sobre um não-Deus” (DOMBROWSKI, 1997, p. 39),

e, nesse sentido, Ascese possuiria um valor mais antropológico do que teológico. Não

raras vezes Kazantzákis foi visto como um ateu, e isso se deve muito a Ascese, com seu

credo tão pouco ortodoxo51, de uma ascensão pessoal e orgulhosa do espírito mediante

seus próprios esforços, mas, principalmente, por sua imagem de um Deus que necessita

do ser humano para se salvar, além do suposto niilismo de seu último capítulo. Não

obstante, a referência a Deus é constante, ainda que seja a imagem de um Deus diferente

em muitas maneiras do que normalmente se concebe nas chamadas religiões abraâmicas

(judaísmo, cristianismo e islamismo). Quanto ao impasse em saber se a obra é

antropológica ou teológica, creio que se deveria levar em conta uma pequena nota de 26

de maio de 1928, onde Kazantzákis declara: “Pois, como se sabe, não me interesso pelo

homem, mas por aquele a quem denomino tão imperfeitamente Deus” (KAZANTZAKI,

1974, p. 157).

O que se deve notar é que em Ascese as intensidades de disposição espiritual e

as qualificações visíveis para compreender Deus aparecem, pois, como um processo

aberto e livre, e não como um sistema religioso tradicional. Nesta perspectiva, a

concepção de Deus em Ascese poderá ser melhor analisada por meio da dimensão

mística da obra. Mais precisamente, neste tópico de nossa pesquisa o objetivo será

apresentar uma modalidade de misticismo encontrada na obra de Kazantzákis que se

51 Iniciou-se, nesse sentido, a partir de 1928, um processo relativo à publicação de Ascese, julgada antirreligiosa e antipatriótica, em que a igreja ortodoxa grega queria lançar anátema contra Kazantzákis. Esse processo acabou sendo adiado repetidas vezes e, na realidade, nunca se concretizou.

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caracteriza por ser uma experiência imediata de um Deus imanente, em constante

atividade criadora.

Queremos mostrar, assim, que o livro de Kazantzákis parece apontar para um

tipo de misticismo que consistiria na habilidade de discernir entre a realidade ordinária

que é somente ordinária e a realidade “ordinária” que é perpassada pelo infindável sopro

de criação, o impulso vital. Neste impulso se reconheceria, pois, a essência da divindade

que seria precisamente a luta, a liberdade, o sofrimento, a alegria, enfim, o sentido

encontrado na vida cotidiana. Dessa maneira, o valor da realidade adquirida por esta

forma de misticismo se encontra na capacidade humana para lutar e colocar-se na

atividade de criação e transformação, na condição de ser receptivo ao divino ou ao

espiritual como algo onipresente. Em outras palavras, este sentido de misticismo é a

atividade de “salvar Deus”, lutando e criando, um procedimento com o qual se espera

“transfigurar a matéria em espírito”. Assim, em Ascese aparecem várias imagens de um

Deus que pode ser visto como impulso de vida, como energia criadora e lutadora que

está presente em tudo. Diante disso, surge a proposta de ver esse Deus como uma

representação mística do élan vital bergsoniano.

3.2.1 Élan vital e união mística com a criação em Bergson

Para entendermos a concepção de élan vital em Bergson deveremos passar em

revista alguns conceitos básicos do seu pensamento. Antes, é preciso dizer que a

filosofia de Henri Bergson se destacou na França durante o período de 1900 e 1914,

alcançando a Europa após a Primeira Guerra. Seu pensamento conquistou justo

reconhecimento ao receber o Prêmio Nobel em 1927, mesmo ano, aliás, em que Ascese

foi publicada pela primeira vez. Basicamente, a filosofia bergsoniana guia-se pela

intenção de libertar-se do racionalismo e do cientificismo do final de século XIX e por

um grandioso interesse pela vida e pela força criadora do espírito.

Bergson parte fundamentalmente das questões ligadas ao tratamento do

problema do tempo. Este pensador entende que o tempo real, o tempo que nós vivemos

e que nós sentimos, escapa às ciências matemáticas, pois estas nos dão o tempo em

função do espaço, e não o tempo real, o tempo como duração – durée. A duração é a

própria constatação da passagem do tempo, mas de uma passagem que deixa suas

marcas, trazendo mudanças que, embora radicais, parecem imperceptíveis. E cada

instante é um instante inteiramente novo, uma vez que se entende o tempo como

duração. Isto porque, a cada momento da vida, todo um passado de experiências já

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vivenciadas vem se reunir, não permitindo, assim, que um mesmo fato se repita da

mesma forma. Diante dessa perspectiva, a vida se torna perpétua criação e liberdade.

Por sua vez, quando a ciência, e mesmo o senso comum, fala do tempo,

normalmente pensa-se na medida da duração e não na duração mesma. Tanto a

linguagem corrente quanto a linguagem científica se expressa em termos quantitativos e

não qualitativos, como justaposição de unidades homogêneas e quantificáveis, não

como progresso na heterogeneidade e mutação contínua. “Esta duração, que a ciência

elimina, que é difícil de conceber e de exprimir, nós a sentimos e vivemos”

(BERGSON, 1979a, p. 102).

O filósofo francês chegará à conclusão de que a dificuldade que se tem de

entender a consciência interna enquanto imediata e enquanto pura qualidade mutante

reside na própria natureza da inteligência. Ora, o papel da inteligência é medir e

analisar, e, ao tentar apreender e explicar os estados da consciência, tende a espacializar

e fixar o que é puro fluxo qualitativo, pura duração. O filósofo reconhece que a

inteligência possibilita a atividade cientifica e tem importância vital para o ser humano,

pois está voltada para o útil e para o cômodo, é fabricadora de símbolos e conceitos,

além de máquinas e ferramentas. Contudo, a inteligência que analisa e fragmenta,

espacializa e fixa a realidade é incapaz de apreender o que cada objeto tem de essencial

e de próprio, ou seja, aquilo que realmente deveria interessar à filosofia. Nesse sentido,

Bergson entenderá que para apreender a duração, enquanto objeto metafisico, torna-se

necessária outra faculdade de abordagem que não a inteligência. Outro método que seja

capaz de comunicar diretamente, sem mediações, a intimidade do sujeito com a

intimidade do objeto. Este outro método é o que Bergson chama de intuição: “visão

direta do espírito pelo espirito. (...) consciência imediata, visão que quase não se

distingue do objeto visto, conhecimento que é contato e mesmo coincidência”

(BERGSON, 1979a, p. 114). Intuir é captar a realidade em um “golpe de vista”, antes

mesmo de sua racionalização. Por isso, diferentemente da inteligência que analisa e

multiplica os pontos de vista e busca representar o objeto, a intuição coloca-se no

próprio objeto e, dessa forma, atinge o espirito, a duração, a mudança pura.

Há, segundo o filósofo francês, um ponto de partida, ou seja, uma intuição

primeira, aquela que é a forma mais próxima da intuição da duração: Há uma realidade, ao menos, que todos apreendemos de dentro, por intuição e não por simples análise. É nossa própria pessoa em seu fluir através do tempo. É nosso eu que dura. Podemos não simpatizar intelectualmente, ou melhor,

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espiritualmente, com nenhuma outra coisa. Mas simpatizamos, seguramente, conosco mesmos (BERGSON, 1979a, p. 15).

Posteriormente, aprofundando sua reflexão sobre a duração, o tempo real,

Bergson constatou que não somente a consciência humana, mas que todo o cosmo

possui duração. Em sua principal obra, A evolução criadora, a duração é estendida a

todos os seres, passa-se, portanto, da análise dos dados imediatos da consciência para a

elaboração de uma visão global da vida e da realidade, propondo a ideia de uma espécie

de evolucionismo cosmológico.

A exemplo da vida da consciência, a vida biológica em sua totalidade não é

máquina que se repete, sempre idêntica a si mesma, mas é novidade constante e

incessante, é criação e imprevisibilidade, é vida sempre nova, que englobando e

conservando todo o passado cresce sobre si mesma. De acordo com Bergson, a vida é

evolução criadora, criação livre e imprevisível, é, pois, impulso vital. E neste ponto,

portanto, a duração receberá o nome de élan vital. Este élan vital é exatamente o

impulso de vida, um impulso interior que perpassa todos os seres da natureza. O élan vital é o primeiro impulso original de vida, o princípio vital. De forma mais ampla, ele pode ser compreendido como energia primordial criadora de tudo o que há e, nesse sentido, é o princípio, como diriam os antigos: a arché, o começo, o ponto de partida que é origem de todas as coisas. Um princípio que é energia criadora, elã de vida, não pode nunca ser compreendido como algo estático, mas como um princípio que é movimento puro; não como um substrato inerte ao qual o movimento exterior adere posteriormente, mas como algo que é em si e por si movimento total que perdura sempre. O élan vital também não pode ser compreendido como algo exterior às coisas que cria, mas como um princípio imanente, como pura interioridade. [...] O élan vital, como única fonte de energia criadora, é fundamentalmente movimento, movimento de criação, em pleno crescimento e expansão criadora de si e da vida; cresce atualizando-se em inúmeras direções divergentes (ROSSETTI, 2004, p. 40-41).

Para Bergson, o élan vital não é uma realidade estática ou fixa, mas sim um

fluxo constante, um movimento ininterrupto de criação, que se apresenta como contínuo

devir ou vir a ser. No entender do filósofo francês, a plena compreensão dessa realidade

só se dá mediante a intuição, pois somente esta função, enquanto forma de

conhecimento interior, tem a capacidade de entrar na essência mesmo da vida, de sentir

o seu movimento, sua criação, e, assim, seguir os contornos dessa realidade movente.

Esse élan que percorre tudo, formando e transformando, é o modo como

deveríamos conceber o ser, se o interpretássemos como ato e mobilidade, e não como

estabilidade de formas – eterno e imutável. A totalidade, portanto, não é uma ideia nem

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uma realidade fechada em si mesma, mas um processo aberto e interminável, isto é, o

infinito como movimento. Assim, se fosse possível romper as malhas da inteligência

que nos mantém dentro de uma realidade estrutural e calculável, atingiríamos, por

intuição, esse movimento absoluto em que o que entendemos por ser se revela como

devir ou vir-a-ser. No limite, por meio de uma intuição seriamos capazes de coincidir

com o processo criador. E essa realização plena da liberdade seria, num certo sentido,

uma forma de transcendência.

Mas aqui transcender não significa necessariamente ir ao encontro de uma

entidade superior, princípio ou razão de ser de tudo que existe. Seria antes passar da

particularidade fechada à totalidade aberta, onde, de fato, já estamos, mas na qual não

nos sentimos, porque as conveniências da vida nos impõem a segmentação da realidade

e a divisão rígida entre sujeito e objeto, de acordo com as mediações da inteligência. Se

fossem abandonadas essas mediações seria possível, de acordo com Bergson, entrar em

contato imediato com algo que ultrapassa infinitamente o espaço da relação pragmática

com o mundo.

Enfim, a realidade da vida é, pois, criação, o que significa que na sua essência

ela é puro processo e movimento. As formas criadas são vestígios desse processo

porque a imobilidade é algo que deriva do movimento. Normalmente, falar em criação

implica falar em criador, e é nesse ponto que se colocaria, no contexto bergsoniano, a

questão de Deus. Mas o que há de original em Bergson é justamente a ideia de que a

criação como processo e movimento não implicaria na tarefa de identificar o “ser”

criador, o que seria remeter o processo a uma entidade e o tempo à eternidade. Então, o

que há de divino na criação é o próprio processo. Nesse sentido, o significado do élan

vital remete menos a um espírito do que à espiritualidade, entendida como ação

criadora.

Em A evolução criadora Deus é identificado, portanto, com o élan vital e visto

como um centro de onde se irradiaria e jorraria os múltiplos impulsos de criação que

governariam a vida, [...] desde que, no entanto, eu não tome esse centro como uma coisa, mas como uma continuidade de jorro. Assim definido, Deus absolutamente nada fez; ele é vida incessante, ação, liberdade. A criação assim concebida, não é um mistério; experimentamo-la em nós sempre que ajamos livremente (BERGSON, 1979b, pp. 218-219).

Posteriormente, em sua obra As duas fontes da moral e da religião, Bergson

compreenderá que o contato mais profundo com essa realidade criadora, isto é, o

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contato com aquilo que ela tem de divino, será privilégio de personalidades

excepcionais: os místicos. Dessa maneira, o misticismo é definido por Bergson como

uma forma de contato, imediato e vivido, com a unidade da vida:

A nosso ver, o advento do misticismo é uma tomada de contato, e, por conseguinte, uma coincidência parcial com o esforço criador que a vida manifesta. Esse esforço é de Deus, se não for Deus mesmo. O grande místico seria uma individualidade que ultrapassa os limites impostos à espécie por sua materialidade, individualidade que continuasse e prolongasse assim a ação divina (BERGSON, 1978, p. 182).

O misticismo assumiria, assim, o papel de uma intuição que pode ser qualificada

como a intuição em seu máximo grau. Esta intuição seria, pois, o móvel da ação

humana nos mais variados campos, e que é impulsionada por aquilo que Bergson

denomina de emoção criadora. Seria a faculdade que realmente nos leva ao

conhecimento, no campo das ciências; que nos possibilita a experiência estética, no

campo da arte; e que gera o herói, no campo da moral.

No entender do filósofo francês, os verdadeiros místicos são aqueles homens e

mulheres de ação que, sentindo a ação criadora da vida (de Deus), tornam-se também

parte dessa ação. Os verdadeiros místicos simplesmente se abrem à vaga que os invade. Seguros de si mesmo, porque sentem em si algo de melhor que eles, revelam-se grandes homens de ação, para surpresa daqueles para quem o misticismo não passa de visão, transporte, êxtase. O que eles deixaram escoar no interior de si mesmos é um fluxo descendente que desejava atingir os outros homens através deles: a necessidade de espalhar em volta deles o que receberam eles sentem como um ímpeto de amor (BERGSON, 1978, p. 81).

O que Bergson entende por religião dinâmica, em oposição à religião estática, é

aquela que deriva da atitude dos grandes místicos que transmutam o élan vital em amor

e fazem com que a humanidade evolua. Ora, assim como em A evolução criadora o

élan vital impulsionava a evolução das formas de vida, em As duas fontes da moral e da

religião encontra-se o mesmo impulso movendo as formas de organização da

humanidade. No pensamento bergsoniano a religião dinâmica, ou mística, é o móvel da

mais pura moral, a moral aberta. Por meio do exemplo dos grandes místicos é possível

reconhecer, então, uma dimensão ética que se abre e que preza pela unidade não apenas

entre todos os seres humanos, mas com toda a criação. “Se disséssemos que ela abrange

a humanidade inteira, não iriamos muito longe, não iríamos nem mesmo

suficientemente longe, dado que seu amor se estenderá aos animais, às plantas, à

natureza toda” (BERGSON, 1978, p. 32).

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Por isso, o filósofo mostra em sua obra que mediante a intuição é possível

coincidir com o élan criador; à vida, que é o ato criador contínuo do Ser supremo; ao

amor divino, que na verdade é o próprio Deus. Situando o ser humano na natureza,

Bergson procurou indicar, com sua filosofia, que se pode ir muito além do que

normalmente se acredita.

3.2.2 Uma figuração místico-poética do élan vital bergsoniano em Ascese

É importante lembrar aqui que, em 1907, Kazantzákis decidiu dar continuidade

aos seus estudos de Direito em Paris, e estando lá também pôde seguir os cursos de

Bergson no Collège de France. E é preciso frisar que suas inquietudes intelectuais

coincidiam com o interesse das primeiras décadas do século XX por filosofias da vida e

os valores vitalistas que elas promoviam. Com efeito, o contato com Bergson e seus

ensinamentos constituiu, muito provavelmente, um estímulo na aventura intelectual e

humanista do escritor grego. Nesse sentido, o bergsonismo pode realmente ter lhe

confirmado o sentido de sua luta por liberdade e influenciado na assimilação da ideia de

que a força propulsora do universo é uma constante vitalidade criadora, projetando

luzes, por assim dizer, em sua concepção que visa “transfigurar matéria em espírito”. De

acordo com Peter Bien, “esta, com certeza, é uma visão mística, mas ao mesmo tempo

suficientemente científica (ou pseudocientífica) na aparência para responder à

necessidade de Kazantzákis por uma visão de mundo pós-cristã que ainda seja religiosa

sem entrar em desacordo com o pensamento moderno” (BIEN, 2007, p. 36). Enfim, a

base da concepção de um Deus que é luta pela liberdade poderá ser interpretada, em boa

medida, a partir do conceito de élan vital formulado por Bergson.

Pois bem, isto posto, tomemos agora as primeiras linhas do prólogo de Ascese,

onde lemos o seguinte:

Viemos de um abismo de trevas; findamos num abismo de trevas; ao intervalo de luz entre um e outro damos o nome de vida. Tão logo nascemos, principia o retorno; partida e volta são simultâneos; morremos a cada instante. (KAZANTZÁKIS, 1997, p. 38).

De uma forma poética coloca-se o principal dilema existencial: o significado

aparentemente vazio da vida. Esta seria a situação em que o ser humano se

encontra. Não há porque confiar na ciência, ou confiar em nós mesmos, ou, ainda,

confiar em qualquer autoridade espiritual. Fica-se com a sensação de uma vertigem

existencial. E é à beira desse abismo sobre o qual Kazantzakis nos coloca.

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A citação do prólogo já contém em si aspectos para uma compreensão mística do

Deus kazantzakiano. Ora, aqui, o abismo pode ser referência para uma das metáforas de

Deus52, ou seja, Ele é apresentado com uma de suas “máscaras”, conforme expressão de

Kazantzákis, a primeira de muitas que escondem o seu rosto. Esse abismo/Deus

cumpriria, pois, duas tarefas iniciais: a primeira é criar a matéria; a segunda é insuflar

nela, em forma de energia, o sopro vital. Dessa maneira, no instante desse contato, surge

a vida. E isso parece ocorrer de forma violenta, como se fosse uma luta, já que as duas

forças se contrapõem. Por isso, “Nos transitórios corpos vivos, lutam duas correntes: 1ª.

a ascendente, rumo à síntese, à vida, à imortalidade; 2ª. a descendente, rumo à

dissolução, à matéria, à morte./ E as duas correntes se originam no imo da substância

primeva” (KAZANTZÁKIS, 1997, p. 38).

Neste ponto é perceptível uma alusão quase imediata ao pensamento

bergsoniano. Bergson também havia apontado, em A evolução criadora, as duas

direções no movimento evolutivo: a ascendente, que caracteriza a evolução animal e a

mobilidade que leva “à consciência cada vez mais ampla”; e a descendente, que buscou

retardar a evolução animal, procurando imobilizar cada passo com uma tendência

regressiva rumo à vida vegetativa das plantas, caracterizada por “consciência

adormecida e insensibilidade” (BERGSON, 1979b, p. 105). Diante do movimento

evolutivo, a corrente que sobe é identificada com mobilidade e com a consciência

desperta, isto é, com a vida e com a liberdade, enquanto que a corrente que desce é

entendida como inconsciência e imobilidade, quer dizer, com a matéria e o

determinismo.

Tanto em Bergson como em Kazantzákis, o universo parece estar em guerra

consigo mesmo, pois as forças opostas, a vida e a matéria, lutam eternamente. O escritor

grego usa algumas analogias para descrever essa relação: guerra, dança, casamento.

Vida, em Kazantzákis, é o Espírito que sobe em direção à integração: é a vida, a luz, o

masculino, o falo, a contingência, a luta, o desenvolvimento, a assimetria e a

criatividade. A Matéria, por outro lado, é carne, o feminino, o coração, que desce em

direção à desintegração: é a morte, o escuro, o útero, o necessário, o tranquilo, o mal, o

simétrico e o destrutivo, o desejo de estar em repouso. No entanto, apesar de opostas,

52 O termo abismo é uma das metáforas mais recorrentes acerca de Deus na tradição da linguagem mística e apofática. A este respeito, ver a tese de doutorado de Cleide Maria de Oliveira intitulada Por um Deus que seja noite, abismo e deserto: considerações sobre a linguagem apofática; indicada em nossa bibliografia.

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ambas as forças nascem no “imo da substância primeva”, o que significaria dizer, numa

compreensão bergsoniana, que elas procedem do élan vital.

No decorrer da leitura de Ascese nos deparamos com o intento confesso do autor

em propor uma nova concepção de Deus para o seu tempo, uma vez que ele entende que

as imagens dadas por outras épocas e povos à divindade haviam perdido sua validade.

Nesse sentido, Kazantzákis escreve: Não me importa que rosto deram outras épocas e outros povos à prodigiosa essência sem rosto. Encheram-na de virtudes humanas, de recompensas e punições, de certezas. Deram um rosto às suas próprias esperanças e temores, impuseram um ritmo à sua própria anarquia, encontraram uma justificação superior para viver e labutar. Cumpriram seu dever. Nós porém ultrapassamos hoje tais necessidades, rasgamos essa máscara do Abismo; nosso Deus não cabe mais na velha anteface. Nosso coração transborda de novas angústias, de renovados fulgores e silêncios. [...]. Cuidemos de debruçar-nos sobre nosso coração e ali divisar com destemor o abismo. Cuidemos de modelar o novo rosto contemporâneo de nosso Deus com nossa própria carne e sangue (KAZANTZÁKIS, 1997, pp. 113-114).

Ao que tudo indica essa nova face de Deus deveria vir da teoria da evolução, por

se tratar de um dos paradigmas das visões de mundo da contemporaneidade. Entretanto,

se assim for, certamente que o evolucionismo ao qual Kazantzákis recorrerá não será

àquele determinista e materialista do cientificismo do século XIX, mas estará bem mais

próximo da concepção espiritualista que Bergson formulou. Como já foi mais ou menos

mencionado, o filósofo francês entende que a marcha evolutiva venceu a resistência da

matéria e deu origem às primeiras formas de vida, e graças ao seu “formidável impulso

interior” (élan vital), se desenvolveu em formas mais complexas. Assim ele a descreve

em A evolução criadora:

Todos os seres vivos se entrosam, e todos cedem ao mesmo formidável ímpeto. O animal toma seu ponto de apoio na planta, o homem cavalga a animalidade, e a humanidade inteira, no espaço e no tempo, é um imenso exército que galopa ao lado de cada um de nós, na frente e atrás de nós, numa carga avassaladora capaz de derrubar todas as resistências e de superar muitos obstáculos, inclusive talvez a morte (BERGSON, 1979b, p. 237).

Há nisso uma analogia imediata com o que se pode ver, por exemplo, em “A

marcha”, a segunda seção de Ascese. Percebe-se muito bem que ali a marcha é no

“sentido de ascensão evolucionária desde a pedra, passando pelos vegetais, os peixes, as

aves, as feras e os símios, até o homem e o além-homem” (PAES, 1997, p. 26).

Em “A marcha” o impulso vital aparecerá insinuado na forma figurativa de um

“Grito” que reboa no coração da humanidade, esforçando por libertar-se, impelindo,

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assim, o ser humano a pôr-se em movimento. Esse grito será sentido, portanto, no

coração, já que este órgão, para Kazantzákis, equivaleria àquilo que no pensamento

bergsoniano seria a intuição. O escritor cretense assinala: “todo o coração do homem é

um grito. Inclina-te sobre teu próprio peito para ouvi-lo: dentro de ti alguém luta e grita”

(KAZANTZÁKIS, 1997, p. 61).

Na terceira seção de Ascese, “A visão”, fica ainda mais evidente o paralelo que

estamos traçando com a teoria do evolucionismo criador de Bergson. Lá, mediante a

descrição antropomorfizada da força vital, podemos ler o seguinte: Como pôr em palavras essa terrível visão? Debruço-me sobre o abismo e fico à escuta. Alguém vem subindo, ofegante, a escarpa secreta e perigosa. Esforça-se, luta obstinadamente por subir. Mas encontra um obstáculo de igual mas contrária obstinação: Alguém que desce apressadamente um secreto e cômodo declive. Na espessa corrente que desce, o Sopro se desfaz, turbilhona e por um instante – o de uma vida – equilibram-se os dois desejos contrários. Eis como nascem os corpos, eis como o mundo é criado e como se equilibram, nos seres vivos, as duas forças antagônicas. [...]. Atrás da corrente do meu corpo e do meu cérebro, da raça e dos homens, dos animais e das plantas, vejo, a tremer, o Invisível que espezinha tudo quanto seja visível e ascende (KAZANTZÁKIS, 1997, pp. 96-99).

Frente ao que foi descrito fica-se com a sensação que o Invisível – o esforço

vital – é consciente, auto impulsionado, autodirigido. E logo fica claro que esse impulso

vital é o que Kazantzákis chamará de Deus. Ao reconhecer a força vital como divina,

Kazantzákis aproxima-se, assim, daquilo que Bergson entenderá, em As duas fontes da

moral e da religião, como a experiência mística de Deus. Devemos reforçar que para

este pensador o “misticismo é uma tomada de contato, e, por conseguinte, uma

coincidência parcial com o esforço criador que a vida manifesta. Esse esforço é de

Deus, se não for Deus mesmo” (BERGSON, 1978, p. 182). Portanto, o filósofo indica a

hipótese de que o esforço criador, o élan vital, e Deus são a mesma força. Além disso,

ele também aponta os místicos como os principais propulsores do élan vital, isto é,

caberia aos místicos o protagonismo de continuar e prolongar a ação divina no mundo.

Visto dessa maneira, o misticismo não se detém num estado contemplativo, para além

deste, a autêntica experiência mística, segundo Bergson, se caracteriza pela ação. Com

efeito, lembremos: os místicos, “seguros de si mesmo, porque sentem em si algo de

melhor que eles, revelam-se grandes homens de ação, para surpresa daqueles para quem

o misticismo não passa de visão, transporte, êxtase” (BERGSON, 1978, p. 81). Dessa

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forma, “a intuição mística é uma relação que se dá ao mesmo tempo como visão e como

impulso para a ação” (LEOPOLDO E SILVA, 1994, p. 297).

Neste ponto, encontramos em Ascese outro paralelo com a perspectiva mística

bergsoniana, uma vez que Kazantzákis também enfatiza o valor da ação. Lembremos

ainda que na forma em que o livro é estruturado, com sua sucessão de etapas a serem

desempenhadas, encontra-se, logo após “A visão”, a seção “A prática”, mas que

também poderia ter sido traduzida por “A ação”,53 em cuja primeira versão era a seção

que encerrava a obra. Dessa maneira, em Ascese, destaca-se a importância da ação, pois

“A forma última, a forma mais sagrada da teoria é a prática. [...]/ A ação é a porta mais

larga para a libertação” (KAZANTZÁKIS, 1997, p. 109).

O místico, na compreensão bergsoniana, será aquele que se sentirá chamado a

desempenhar a tarefa deixada por Deus de continuar a criação e evolução da vida.

Kazantzákis estende essa tarefa a todas as pessoas:

Nosso essencial dever de homens não é explicar, esclarecer o ritmo da marcha de Deus e sim, na medida do possível, ajustar por ele o ritmo de nossa própria vida, pequena e fugaz. Só assim nós, mortais, conseguiremos algo de eterno, porque estaremos colaborando com o que é Imortal (KAZANTZÁKIS, 1997, p. 110).

Dessa forma, o ato criador de Deus recebe a cooperação humana, que em última

análise será a própria ação de salvar Deus, uma vez que “Não é Deus que nos irá salvar;

nós é que o salvaremos lutando, criando, transfigurando a matéria em espírito”

(KAZANTZÁKIS, 1997, p. 119).

Há que se fazer aqui um pequeno comentário acerca do termo “transfigurando”

que aparece na edição brasileira de Ascese. O termo foi utilizado como tradução da

palavra metousiónontas (μετουσιώνοντας) uma palavra grega composta pelo substantivo

ousía que, por sua vez, é formado a partir do feminino do particípio presente do verbo

“ser”, einai. Normalmente, ousía costuma ser traduzida como substância ou essência.

Assim, a palavra metousiónontas, usada por Kazantzákis, acenaria mais para o sentido

de uma mudança no nível do “ser”, ou seja, uma mudança na essência, na substância.

Por outro lado, o termo transfigurar indicaria uma mudança mais no aspecto, uma

mudança de figura, de feição e não uma mudança interna. Portanto, em vez de

53 O título original em grego da seção é “η πραξη”. Na versão em inglês de Kimon Friar aparece traduzida por “The Action”; na versão castelhana de Enrique de Obregon por “La Acción”; e na edição brasileira de Ivo Barroso, “A Ação”.

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transfigurando, parece que metousiónontas seria melhor traduzida por “transmutando”,

ou, de preferência, “transubstanciando”54.

A ideia de “transubstanciação” (metousiosis) em Kazantzákis extrapola o

alcance desta noção em seu marco teológico originariamente cristão – do catolicismo

romano e da ortodoxia oriental55 – para alcançar a totalidade da atividade humana. No

pensamento kazantzakiano o que se entende por “transubstanciação” refere-se, pois, ao

processo de espiritualização. Esse processo relaciona-se, em termos bergsonianos, com

o próprio ato criador e tem a ver com mobilidade, com abertura, com liberdade, com

ascensão e dinamismo. Logo, opõe-se à materialização, no sentido em que isto

implicaria em imobilidade, fechamento, determinismo, estático.

Salvar Deus por esse processo de luta, de criação, de “transubstanciação” da

matéria em espírito, isto é, pelo processo de espiritualização, significa coincidir com a

própria essência da divindade. Em consonância com a concepção de Deus em Bergson,

que é “vida incessante, ação e liberdade” (BERGSON, 1979b, p. 218), a essência de

Deus é definida por Kazantzákis como “luta pela liberdade”. E se para Bergson, “a

criação [...] não é um mistério; experimentamo-la em nós sempre que ajamos

livremente” (BERGSON, 1979b, p. 219), no mesmo sentido, em Kazantzákis, a

atividade de transubstanciação significa colocar-se à disposição de ser receptivo ao

divino ou ao espiritual como algo onipresente. Com efeito, coincidir com essa essência

é responder ao constante chamado para que se atualize a aspiração humana à liberdade.

Daí então que para o escritor grego “A vida é o serviço militar de Deus.

Querendo ou não, partimos em cruzada para libertar, não o Santo Sepulcro, mas o Deus

sepultado na matéria e em nossa alma” (KAZANTZÁKIS, 1997, p. 119). Vemos aqui,

de modo bastante figurativo, o sentido da luta incessante para transubstanciar a matéria

em espírito. Esse processo de luta incessante seria uma forma de divinização.

Com isso estaria refletida em Ascese a influência Oriental Ortodoxa,

precisamente no ponto do esforço humano por alcançar a “deificação”, ou

“divinização”, conhecido pelo termo theosis. De fato, “poucas palavras são tão

representativas no Oriente cristão como theosis”, e pode mesmo “traduzir-se

54 Na versão inglesa, Kimon Friar traduziu por “transmuting”; Enrique de Obregón, na versão castelhana, traduziu por “transformación”; tal como na versão de Ivo Barroso que aparece por “transformação”. Por sua vez, Daniel Dombrowski, em seu livro Kazantzakis and God, apresenta um capítulo com o título “Transubstantiation”. 55 O conceito de transubstanciação refere-se à mudança da substancia do pão e do vinho em substância do corpo e sangue de Cristo no ato da consagração.

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literalmente por ‘divinização’” (MENESES, 2001, p. 19). Em seu significado mais

amplo é o mesmo que santificação. Trata-se da história da ação do Espírito; é o sentido

definitivo para o qual tendem todas as preocupações humanas; é na verdade a aspiração

de todo o ser humano quando busca a profundidade de seu ser. Em suma, theosis refere-

se à realização de semelhança ou união com Deus, que é o estágio final do processo de

transformação e, como tal, o objetivo da vida espiritual. Ora, nesse sentido, theosis é

justamente aquilo que Kazantzákis pretende com sua Ascese. No entanto, conforme

salienta Samuel Calian, “ele colocou o conceito de theosis dentro de um contexto

exclusivamente antropomórfico que o fez parecer pouco ortodoxo para a sua Igreja

Grega” (CALIAN, 1971, p. 43). Parece que a crença do escritor grego era que a

divinização do ser humano deveria acontecer totalmente nesta vida.

Muito ainda poderia ser dito sobre a relação entre Ascese e o sentido de theosis

na tradição cristã ortodoxa56, mas não caberá tal aprofundamento aqui nesta pesquisa.

Deixaremos este assunto assim, em aberto, para uma possível investigação no futuro.

Entretanto, para finalizar, quero remeter a noção de divinização em Ascese para a

conclusão a que Bergson chega em As duas fontes, quando este diz que a função

essencial do universo é ser “uma máquina de fazer deuses” (BERGSON, 1978, p. 262).

É, pois, a própria função do impulso vital criar seres criadores, livres e artífices do

tempo. Nessa perspectiva, o ser humano pode reconhecer em si mesmo a dimensão

divina do universo, pois o Deus ao qual Ascese se refere “está encerrado dentro de cada

partícula de carne” (KAZANTZÁKIS, 1997, p. 100). Kazantzákis pretendia mostrar que

é Deus quem luta na profundidade de nosso ser e buscava, dessa forma, incentivar seus

leitores a serem “salvadores de Deus”, a ponto de se tornarem eles também divinos – o

que, afinal, não seria outra coisa que o máximo desenvolvimento das faculdades e das

potencialidades de cada um a serem exercidas da melhor maneira possível. Desse modo,

então, estaria desperta a consciência de um agir ao mesmo tempo místico e heroico em

direção à divinização e à salvação de Deus.

3.3 O Silêncio final da Ascese: lugar de um novo começo

Do que ficou exposto acima se poderia concluir que a dimensão mística em

Ascese é para ser interpretada estritamente em termos antropológicos e imanentes. Mas,

como veremos, não é bem assim. Conforme anunciamos no início do tópico anterior,

56 Sobre esse tema ver o texto de Lambros Kamperidis, “The Orthodox Sources of The Saviors of God”, pp. 53-70; In: Middleton & Bien, God’s Struggler: Religion in the Writings of Nikos Kazantzakis, 1996.

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não é tarefa fácil apreender a concepção do Deus kazantzakiano, pois não se trata de

uma visão unidimensional. Portanto, é preciso encarar esta concepção como uma teoria

complicada, de difícil assimilação e que não se reduz a uma única explicação, em que a

atitude mais prudente deve ser a de tentar se aproximar por outras direções. Assumindo

tal atitude, pretendo agora encaminhar a discussão para uma abordagem do final da

Ascese a partir da perspectiva da mística cristã, mas não sem antes sinalizar também

alguns aspectos pertinentes à obra em relação com o budismo.

3.3.1 O silêncio kazantzakiano e o Nirvana

Vejamos a seguinte passagem em Ascese: Suspeito que atrás de todas as aparências há uma essência em luta. Quero unir-me a ela. Suspeito que a essência em luta busca também, atrás das aparências, unir-se ao meu coração. Mas o corpo se ergue entre nós e nos separa. A mente se ergue entre nós e nos separa. Qual é o meu dever? Romper o corpo; lançar-me à união com o Invisível. Calar a mente para poder ouvir o clamor do Invisível. Caminho trêmulo à beira do abismo. Duas vozes lutam em mim. A mente: “Por que nos preocuparmos em perseguir o impossível? Nosso dever é reconhecer no sagrado recinto dos cinco sentidos os limites do homem”. Uma outra voz em mim – a que chamamos sexto sentido ou coração – resiste e brada: “Não! Não! Não reconheças nunca os limites do homem! Rompe os limites! Nega o que os teus olhos veem! Morre e diz: a morte não existe!” (KAZANTZÁKIS, 1997, pp. 48-49).

Daniel Dombrowski explica que não se deve “assumir aqui que Kazantzákis

espera por uma imortalidade pessoal; ao contrário, é o Invisível que é imortal”

(DOMBROWSKI, 1997, p. 85). Qualquer conceito ou ideia de último “fim” do ser

humano, do último estado de realidade e estado da vida é pura imaginação e deforma a

verdade. Quem tem medo de morrer está apegado ao seu ego, por mais que se queira

revestir com argumentos racionais. Podemos inferir a partir daí que em sua proposta

para salvar Deus, Kazantzákis não olhou somente para as concepções bergsonianas, mas

também para os ensinamentos budistas que apontam para o caminho da superação do

reino fenomênico, conhecido por samsara57, e para a extinção e libertação da fonte do

sofrimento, o desejo e a existência. Isso permitiria, pois, que todos os obstáculos que

impedem a união com Deus desaparecessem.

57 Algumas ideias que também ajudam a entender samsara são: a existência condicionada; o nascimento e morte; o eterno retorno; a existência corporal.

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Da parte do budismo o egoísmo é um mal, e por consequência o “eu” só se doma

por disciplina moral. Mas o egoísmo é mantido pela “egoidade”, e simples

mandamentos serão pouco eficazes enquanto não tiver sido eliminada a opinião tão

comum e errônea que costuma se utilizar de expressões do tipo: “isto, sou eu”. O “eu”

está constantemente querendo se afirmar, e só depois de ter descoberto perfeitamente a

verdadeira natureza deste “eu” inconstante é que se deverá combatê-lo, e dele fazer um

servidor e melhor aliado. Segundo Ananda K. Coomaraswamy, o Buda, em seus

ensinamentos, enfatizava: “‘Aquilo não é meu, eu não sou aquilo, aquilo não é minha

Ipseidade’. Se disto vos libertais para sempre, se renunciais totalmente às noções de ‘eu

sou fulano’, ‘eu sou o agente’, ‘eu sou’, será ‘vosso benefício e felicidade’”

(COOMARASWAMY, 1952, p. 41). No que se refere à existência de Deus, sabe-se que

em sua doutrina o Buda se recusou a “responder sim ou não. Dizer sim seria participar

do erro ‘eternalista’; dizer não, do erro ‘aniquilacionista’” (COOMARASWAMY,

1952, p. 44).

A seção final de Ascese, “O Silêncio”, é a mais budista de todas. Lembremos

que, para Kazantzákis, “Silêncio quer dizer: Cada qual, após cumprir seu tempo de

serviço como combatente, chega ao mais alto cimo do esforço – passados os combates,

não luta mais, não grita mais: amadurece por inteiro, silenciosamente,

indissoluvelmente, eternamente, com o Universo” (KAZANTZÁKIS, 1997, pp. 147-

148); e poderia ser comparado aqui com a concepção de nirvana. O Nirvana [...] é um termo fundamental da terminologia budista, e sem dúvida o mais mal compreendido de todos. O Nirvana é uma morte, um fim (no sentido de estar “terminada” e “aperfeiçoada”). [...]. O Nirvana não é nem um lugar nem um efeito; ele não está no tempo, ele não se obtém por quaisquer meios; [...]. Os “meios” empregados na prática não são em si os meios de se atingir o Nirvana, mas meios de afastar tudo o que perturba nossa “visão” do Nirvana, da mesma forma que um candeeiro trazido numa sala escura nos permite ver o que aí já se encontrava. Compreendemos agora porque o “eu” (attã) deve ser domado, vencido, refreado, rejeitado, e posto fora de atividade. O Arahant, o Homem Perfeito, é aquele cujo “eu” é domado (atta-danto), cujo “eu” foi despojado (atta-jaho); seu fardo foi deposto (ohitabharo); o que tinha a fazer, foi feito (katam-karaniyam). A ele são aplicáveis todos os epítetos dados ao próprio Buda, que não tem mais qualquer nome pessoal; é “liberto” (vimutto); é extinto (nibutto); para ele não há mais porvir; obteve o repouso da fadiga (yoga-k-kheman); é “desperto” (buddho) – epíteto que se aplica a todo Arahant e não somente a Buda, por excelência –; é imutável (anejo); é “Ariano”; não é mais discípulo (sekho), é um Mestre (asekho) (COOMARASWAMY, 1952, pp. 38-39).

Então, o significado de Nirvana pode ser entendido como um “morrer”, ou

“extinção”, como se diria de um fogo, de uma chama. Ora, assim como o fogo se nutre

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de combustível, toda a existência da vida se mantém pelo alimento material ou mental.

Segundo o budismo, o fogo do ego, da egoidade, é mantido pelo combustível do desejo,

do ressentimento, da cólera e da ilusão ou ignorância. Por isso, o mundo está em fogo e

nós queimamos. “É esta ‘extinção’ (do fogo) que se chama o ‘expirar’

(nibbana=sânscrito. Nirvana) e que se encontra naturalmente associado à ideia de um

‘refrescar’” (COOMARASWAMY, 1952, p. 38).

Kazantzákis parece estar ciente da imagem do fogo e a utiliza em várias

passagens de “O Silêncio”. Ele inicia a seção dizendo: “A alma do homem é uma

chama: pássaro de fogo [...]”; depois, “O Universo todo se torna uma árvore de fogo.

Entre as chamas e os fumos, repousando no ápice da fogueira, seguro o fruto puro,

fresco, e sereno do fogo – a Luz”; “E um fogo dentro de mim se adianta para responder.

Chegará sem dúvida o dia de o fogo purificar a terra. Chegará sem dúvida o dia de o

fogo destruir a terra”; “A alma é uma língua de fogo que lambe e forceja por queimar a

massa sombria do Universo. Um dia o Universo inteiro se converterá num grande

incêndio”; “O fogo é a primeira e última máscara do meu Deus. Dançamos e choramos

entre duas grandes fogueiras”; “Brilham, cintilam nossos pensamentos e nossos corpos.

Mantenho-me tranquilo entre as duas fogueiras” (cf. KAZANTZÁKIS, 1997, pp. 145-

147).

Porém, de acordo com Andreas K. Poulakidas, em Kazantzákis as imagens do

fogo – da chama; da fogueira – indicariam um contínuo “queimando” em vez de um

“apagando”, o “resfriamento” que levaria ao Nirvana, ao Silêncio.

Seu conceito de Nirvana é escatológico – no futuro, onde o processo do vir a ser cessará – em vez de ético, um estado alcançado aqui e agora, de acordo com Buda. Neste Silêncio ou Nirvana, existe uma realidade: que é o da unidade do eu e Brahma. Se essa realidade é ou não é, não se sabe. Buda se recusou a divulgar esse segredo ou a discuti-lo, como fez Bergson, enquanto que Kazantzákis se compromete (POULAKIDAS, 1975, pp. 216-217).

De acordo com a interpretação de Poulakidas, portanto, Kazantzákis se

compromete porque como sabemos, no final da sua Ascese, ele revelou “o grande, o

extraordinário, o terrível segredo:/ Sequer este Um existe!” (KAZANTZÁKIS, 1997, p.

150).

Trata-se de um final enigmático, onde o último verso soa bastante

desconcertante e contraditório, sobretudo se lembrarmos que o Silêncio para

Kazantzákis significava um amadurecer por inteiro, indissoluvelmente, eternamente,

com o Universo. Todavia, ao que tudo indica, para o escritor grego somente quem for

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capaz de abraçar “o terrível segredo” deverá alcançar a liberdade suprema, ou seja, se

desprender da última das amarras: a finalidade. Com efeito, a ação em si mesma deve

ser reconhecida como seu próprio fim. E a ascese kazantzakiana se assemelharia, assim,

à definição de Raimon Panikkar acerca da experiência de Vida no budismo. De fato, no

entender deste estudioso, poder-se-ia compreender o budismo mediante estas três

visões: “insatisfação constitutiva, ‘trabalhar com diligência em nossa salvação’ e

esperança de um salto no vazio. Então o caminho já é a meta. Daí a paz (tradicional no

budismo) que irradia o Buda” (PANIKKAR, 2007, p. 236).

Diante disso, cabe então o comentário de Ana Martínez Arancón a respeito do

final de Ascese: Em última análise, é indiferente que Deus exista ou não, que seja uma invenção, ou ainda uma ilusão da mente (as ilusões são criações em cumplicidade com o desejo) que se desvaneça, conosco, no nada, e nada disso importa porque no empenho por romper uma a uma as amarras, o espírito acaba por livrar-se também da última delas, a mais agradável: o ser (ARANCÓN, 1999, p. 146).

Assim como acontece com o budismo, não poucas vezes a Ascese de

Kazantzákis tem sido interpretada como um manifesto de pessimismo e niilismo.

Poulakidas, por exemplo, entende que ele não tem uma teologia: “Se, em essência,

sequer este Um existe, então certamente não se pode falar de Deus, ou de uma natureza,

ou do homem ser um Deus e ser salvo. Existe apenas o ilimitado e mortal silêncio do

Abismo” (POULAKIDAS, 1975, p. 217). Contudo, veremos a seguir se outra

possibilidade pode ser aberta a partir da mística cristã.

3.3.2 Uma abordagem a partir da mística cristã

Dois elementos fundamentais constituem a essência tanto do místico cristão

quanto da “santidade” kazantzakiana: uma vida disciplinada (ascetismo) e, na medida

do possível, a união com Deus. Os dois elementos estão conectados, pois somente por

meio de uma disciplina é que se pode estar em posição para atingir a união com Deus.

Mas esses elementos também são encontrados no budismo, o que significa, portanto,

que se deve evitar a ideia de que o budismo é somente renúncia (abnegação) do eu,

niilismo, ou ateísmo religioso. A seguinte citação de Gautama pode ser instrutiva a este

respeito: “Existe um Não-Nascido, Não-Originado, Não-Criado, Não-Formado. Se não

houvesse esse Não-Nascido, esse Não-Originado, esse Não-Criado, esse Não-Formado,

escapar do mundo do nascido, do originado, do criado, do formado seria impossível”

(apud DOMBROWSKI, 1997, p. 89).

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Nada disso implica, como já foi dito, que Kazantzákis acreditava numa

imortalidade pessoal. Sua proposta era que a divinização do ser humano deveria ocorrer

nesta vida. Pois, para ele, só Deus é Imortal; só Ele “em meio a toda a sorte de

transitórias formas e peripécias humanas, permanece sempre o mesmo, o irredutível

ritmo de luta em prol da liberdade” (KAZANTZÁKIS, 1997, p. 123). Deve-se entender

que Kazantzákis não está buscando o Céu, ou o Nirvana, e nem a ataraxia. Ele

acreditava na matéria, ou melhor, na transubstanciação da matéria em espírito e na

íntima relação de um ser humano incorporado ao espírito, totalmente presos um ao

outro. O Deus de Ascese é uma espécie de força obscura trabalhando e lutando no

mundo e que em muito se afasta da compreensão que identificaria tal força

simplesmente como uma forma de anestésico ou como um receptor dos problemas

humanos. Enfim, podemos considerar que o desenvolvimento do teísmo de Kazantzákis

possui elementos budistas se o que se entende por budismo incluir a citação mencionada

acima sobre o Não-Nascido, etc; e é certamente composto mediante aspectos da tradição

cristã quando visto a partir da riquíssima herança mística.

Não devemos nos esquecer de que Kazantzákis nasceu e cresceu na cultura da

Igreja Cristã Ortodoxa; além disso, na adolescência foi educado por frades Franciscanos

e depois também viveu grande parte da sua vida adulta na cultura do Ocidente cristão.

Mas não há grande necessidade em se preocupar se Kazantzákis foi mais influenciado

pelo teísmo da Igreja ocidental ou da Igreja oriental, uma vez que percebemos

praticamente um mesmo misticismo como pano de fundo em ambas as tradições. Além

disso, deve-se notar também que a separação entre o cristianismo oriental e ocidental

ocorreu apenas no século onze; tudo, antes disso, constituía uma tradição comum.

Obviamente que ao pensarmos em Kazantzákis a partir de normas e regras, tanto

do Oriente como do Ocidente, ele é um heterodoxo, um dissidente em relação a

determinadas questões teológicas, por exemplo: “sua negação da onipotência divina; sua

cristologia ariana; sua negação da imortalidade pessoal” (DOMBROWSKI, 1997, p.

92). Nesses pontos ele diverge claramente das questões teológicas tradicionais. Agora,

se o inserirmos mais propriamente no âmbito da mística cristã, então perceberemos

Kazantzákis percorrendo a tradicional tensão entre teologia catafática e teologia

apofática.

3.3.2.1 Bebendo nas fontes da tradição apofática

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Peter Bien coloca o aspecto místico do final de Ascese em foco quando assinala

que o “conhecimento (gnosis) – ‘Eu e Tu somos Um’– é necessariamente seguido pelo

não conhecimento (agnosia): ‘Sequer este Um existe’” (BIEN, 2007, p. 138). A

primeira forma, a do conhecimento, seria nesse caso uma reminiscência da tradição

catafática da mística cristã, também conhecida como “via positiva”. Quanto à segunda

formulação, tantas vezes interpretada pelos estudiosos como niilista, se encaixaria agora

na tradicional teologia apofática ou “via negativa”. Somente esta via do não

conhecimento pode levar ao grau mais elevado da iniciação. Só o silêncio como parte

da via negativa, segundo Bien, pode “revogar a diferenciação implícita nas palavras” de

modo a provocar a consciência da plenitude de Deus (cf. BIEN, 2007, p. 197; cf. ibid.,

138, 142, 268). Portanto, o objetivo dessa via não é o de transportar para uma ausência,

para um vazio absoluto, mas, ao contrário, é a indicação de uma renovação psíquica.

Neste ponto entra-se inevitavelmente em questões de linguagem ao se tentar

discutir o “Um” metafísico que está além da referência e da determinação ontológica.

Questões, aliás, para as quais Kazantzákis era bastante sensível. Em Ascese, ele afirma:

Esforçamo-nos por tornar visível esse Sopro, por dar-lhe um rosto, envolve-lo em palavras, em alegorias, pensamentos e esconjuros para que não nos fuja. Mas ele não cabe nas vinte e quatro letras de que dispomos; sabemos que todas essas palavras, alegorias, pensamentos e esconjuros não são mais que outra máscara a esconder o Abismo (KAZANTZÁKIS, 1997, p. 111).

Michael Sells, no seu livro sobre linguagem mística, procura mostrar justamente

como o exercício da escrita apofática consiste em uma dialética do dizer e do não dizer,

do dito e do não dito. Ora, qualquer declaração ou afirmação sobre a “realidade

suprema” deve ser, portanto, sempre corrigida por uma declaração seguinte segundo a

qual nada pode ser falado sobre ela: o referente permanece sempre indefinido. Sells

anota: “Nenhuma afirmação sobre X pode se manter como definitiva, mas deve ser

corrigida por uma nova declaração, que por sua vez deve ser corrigida em um discurso

não fechado” (SELLS, 1994, p. 207). Logo, a primeira declaração sobre X deverá ser

“não dita” – não afirmada – na declaração seguinte. De acordo com Sells, o objetivo da

linguagem apofática é deslocar o objeto gramatical de referência: “A linguagem

apofática é uma linguagem de proposições duplas na qual nenhuma proposição pode se

manter sozinha como significativa” (SELLS, 1994, p. 178). Com efeito, nessa

compreensão da linguagem mística, mantêm-se a presença de uma necessária tensão

entre a via afirmativa e a via negativa. Compatível, nesse sentido, com o que foi

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sugerido por Bien, uma vez que o final da Ascese demonstraria uma dialética

desconcertante da presença e da ausência, discurso e silêncio, afirmação e refutação.

Lewis Owens também vê no final de Ascese a possibilidade de uma abordagem a

partir da via apofática. Tomando Plotino por referência, Owens faz o seguinte

comentário:

Quando Kazantzákis afirmou no final de Ascese “sequer este ‘Um’ existe”, sua ênfase não estava em uma vazia conclusão niilista, mas no ‘Um’ ou ‘Abismo’ metafísico que se encontra além (‘meta’) do âmbito material. Como este ‘Um’ carece de qualquer ponto de referência ontológico, não se pode dizer que exista. Além disso, Kazantzákis tomou elementos de sua rica herança grega – o neoplatônico Plotino – ao priorizar seu ‘Um’ metafísico. Examinando o pensamento de Plotino torna-se possível avançar e desenvolver recentes postulados de que o pensamento de Kazantzákis pode ser interpretado a partir da perspectiva do apofatismo ou ‘teologia negativa’. De fato, a aproximação apofática de Plotino nos capacita para ver como Kazantzákis poderia ter afirmado que ‘sequer este Um existe’, sem ser niilista. Não obstante, como na interpretação de Plotino por Shestov, Kazantzákis adverte que ascender até o ‘Um’ é ao mesmo tempo sublime e aterrorizante (OWENS, 2001, p. 269).

Plotino (205-270) é considerado o fundador do discurso negativo ou apofático

no Ocidente. Sua filosofia remete à noção de marcha ascendente. Sobre isso, Roberto

Pizarro faz um paralelo e comenta que “quando lemos em Plotino as expressões ‘é

preciso subir’ e ‘sobe até Ele’, de imediato nos leva a pensar nos mandamentos de

Ascese” (PIZARRO, 2005, p. 15). Plotino dará a esta marcha a dimensão de uma

intensa busca metafísica, tendo como ponto culminante e maior recompensa a união

mística com um princípio da realidade que é rigorosamente transcendente, o princípio

de todas as coisas, anterior a todas elas e absolutamente simples: o Um.

Tais características colocam o Um além de toda determinação e de toda

compreensão racional. A recusa por parte de Plotino em permitir qualquer predicação ao

Um está entre os aspectos mais bem conhecidos de seu pensamento. De acordo com

uma das passagens das Enéadas58 (5.3.13), lemos o seguinte: “Isso é [...]

verdadeiramente inefável: pois o que quer que você diga sobre isso, você sempre estará

falando de algo”. Isso é frequentemente descrito como “além do ser”, e também além do

conhecido. Assim, na passagem 5.3.12, está escrito: “O Um, como está além do

intelecto, está também além do conhecimento (gnosis), e como ele não precisa de modo

algum de coisa alguma, então ele não precisa de conhecimento. [...] Pois o

58 Trata-se das obras de Plotino que foram organizadas e publicadas por seu discípulo Porfírio no início do século IV em seis volumes de nove tratados. De acordo com McGinn, “Eles estão entre as maiores obras primas da mística, assim como da literatura filosófica” (2012, p. 80).

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conhecimento é uma coisa; mas Aquilo é um sem o algo”. De fato, Plotino qualifica seu

apofatismo não apenas ao admitir alguma forma de contato com o Um, mas também

através de sua luta para construir uma linguagem dialética crítica sobre ele.

Daí que a linguagem apofática é, portanto, um discurso que visa à própria

transcendência e se orienta para a denúncia de um vazio intrínseco à linguagem e ao

mundo que dela se origina. E o discurso é dito negativo porque nega que o

transcendente possa ser nomeado ou predicado. Com efeito, qualquer afirmação sobre o

primeiro princípio (que ele é o Um, por exemplo) torna-se inadequada, pois o coloca

como um objeto, um “algo”, limitando sua infinitude. Qualquer predicação acerca dele

é, em última análise, referente a nós mesmos, pois são sinais que funcionam como

artifícios hermenêuticos, a fim de articularmos nossa própria experiência da presença

dele em nós. Quando se diz que ele é “causa de todas as coisas”, não significa que ele

seja causa, mas que nós somos causados. Portanto, a negação, se rigorosamente

empregada, tem como propósito determinar o que ele não é, visto que não podemos

dizer o que ele é (cf. BARACAT, 2010, p. 99 ss).

A linguagem apofática é um gênero discursivo estreitamente relacionado à

Teologia Negativa. Tal manifestação já pode ser percebida, por exemplo, em São

Gregório de Nissa (330-395), “um dos pensadores mais penetrantes e originais do

cristianismo grego e um dos maiores teóricos místicos da Igreja antiga” (MCGINN,

2012, p. 210). Ele teve um papel crucial não só no desenvolvimento da teologia

trinitária, mas também na visão cristã da natureza divina como ilimitada e, portanto,

incompreensível. De acordo com Bernard McGinn, “Gregório criou a primeira teologia

negativa sistemática na história do cristianismo, do tipo que viria a ter um efeito

profundo um século mais tarde sobre Dionísio” (MCGINN, 2012, p. 212). Na obra Vida

de Moisés ele desenvolve a tese de que tudo o que nós afirmamos sobre Deus deve ser

equilibrado por uma negação correspondente. Conforme o comentário de Moisés N. Q.

Ponte:

Gregório sabe por experiência que o verdadeiro conhecimento de Deus consiste em não conhecê-lo absolutamente, pois não pode um ser finito apreender aquele que não conhece fim ou limites. Poder-se-ia seguramente afirmar que aqui se abre o caminho para uma teologia apofática. No entanto, importa ressaltar que a preocupação de Gregório é sobremaneira positiva. O interdito do conhecimento absoluto de Deus evita que se lhe considere como a qualquer outro objeto cognoscível, passível de de-finição. Trata-se, portanto, de deixar Deus ser Deus, tornando ilimitadas as possibilidades de seu encontro e suscitando naquele que lhe busca um amor cada vez maior, um desejo sempre crescente que jamais encontra saciedade. Quanto mais nele se mergulha, mais se deseja mergulhar, quanto mais se caminha mais se sente peregrino, um itinerário espiritual que

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Juan Catret [...] não hesitou em chamar de “espiritualidade do caminho” (PONTE, 2013, p. 10).

São Gregório prega que nós devemos humildemente reconhecer que o divino

transcende infinitamente todas as interpretações humanas de Deus. Para ele, nossa

epistemologia de Deus não pode estar fundamentada, por assim dizer, no caráter

racional ou na coerência conceitual de nossas categorias teológicas. Ao contrário,

acredita que o conhecimento acerca de Deus seja o resultado de uma subida rigorosa ao

divino por meio de uma purificação ascética e do cumprimento do silêncio. Como

temos visto, Kazantzákis também sublinha o esforço heroico para se elevar até Deus

mediante uma série de etapas, isto é, mediante uma ascese, e O Silêncio pode ser

considerado o ponto do vértice dessa escalada moral e espiritual para Deus.

Mas a formulação mais bem acabada da teologia negativa talvez se encontre na

obra de Dionísio Areopagita, ou Pseudo Dionísio. E é bem provável que nenhum outro

místico oriental tenha exercido tanta influência sobre o Ocidente latino do que ele. O

pensamento de Dionísio é uma síntese e uma integração do neoplatonismo – Plotino e

Proclo – com os ensinamentos do cristianismo59.

Muito pouco se sabe sobre sua pessoa; apenas que as obras divulgadas sob o

nome de Dionísio datam do fim do século V ou começo do século VI. Fato este que

exclui a possibilidade de identificação com o Dionísio convertido por São Paulo.

Acredita-se somente que ele poderia ter vivido entre os monges na Síria. Vários

estudiosos da obra do Areopagita constatam a variabilidade e os limites das diversas

formas de teologia: conceitual, simbólica e mística. Esses três aspectos se compenetram

e são inseparáveis. O Corpus Dionisyacum60 revela, pois, uma distinção fundamental

entre a teologia negativa e a teologia afirmativa, mas, ao mesmo tempo, mostra também

que ambas são na realidade duas dimensões de uma mesma teologia.

59 Muitos eruditos têm visto Pseudo Dionísio mais como um filósofo neoplatônico do que como teólogo cristão. Outros se opõem a essa primeira opinião e encaram Dionísio como um pensador cristão disfarçado de neoplatônico, um teólogo bastante cônscio de sua tarefa, que viria a conquistar terreno que era posse dos neoplatônicos ao se tornar um mestre de seu método filosófico. E há aqueles que adotaram um meio termo e que reconhecem a inspiração fundamentalmente cristã de suas obras, bastante evidente nas transposições que o autor fez ao adotar as categorias neoplatônicas para a expressão do ensinamento cristão sobre a Trindade, a criação, o retorno a Deus, mas também apontando para certas áreas que parecem teologicamente problemáticas ou inadequadas, mais frequentemente na cristologia (cf. MCGINN, 2012, pp. 236-237). 60 Corpus Dionisyacum é o nome pelo qual ficou conhecido o grupo composto pelos seguintes textos: De Caelesti Hierarchia (A Hierarquia Celeste); De ecclesiastica Hierarchia (A Hierarquia Eclesiástica); De Divinis Nominibus (Os Nomes Divinos); De Mystica theologia (A Teologia Mística); ainda dez Cartas ou Epístolas e alguns poucos escritos que se perderam.

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Em seu pequeno tratado denominado Teologia Mística, de importância central

para todo o desenvolvimento do pensamento cristão, Dionísio Areopagita não só cria o

termo “teologia mística, mas também deu expressão sistemática a uma visão dialética da

relação de Deus com o mundo que foi a fonte dos sistemas especulativos místicos

durante pelo menos mil anos” (MCGINN, 2012, p. 235). Nessa obra, portanto, é tratado

o aspecto teológico negativo do conhecimento misterioso de Deus. O caráter de

negatividade presente nesta teologia surge porque a mesma se assenta numa base “não-

ontológica – ou, melhor ainda, supra ontológica da compreensão de Deus”, conforme

Bogdan Burcur (apud MARÇAL, 2011, p. 5). A alma busca atingir o cume das

ascensões divinas. Porém, mesmo neste alto grau de elevação, o sujeito ainda não está

em relação completa com Deus, já que é a própria negatividade da Divindade quem

pode reger esta impossibilidade. Em Teologia mística 61lemos: [...] todavia não se encontra Deus mesmo. Não contempla o Invisível, mas o lugar onde Ele mora./ Isso significa, penso eu, que as coisas mais santas e sublimes percebidas por nossos olhos e razão são apenas meios pelos quais podemos conhecer a presença d’Aquele que a tudo transcende (I, 3, 1000 D).

J. C. Marçal enfatiza que o caráter fundamental dessa negatividade é que o Deus

de Dionísio transcende todas as categorias das coisas (os seres), e pode ser entendido

como Aquele que é além de todo modo de ser. Marçal também aponta que Dionísio

caracteriza a divindade pelo termo ύπερηνωμένος – este termo “deve ser entendido

como ‘além da unidade’ ou ‘além do que é unificado’ e não como o ‘supremo

unificado’” (MARÇAL, 2011, p. 6). Em Os nomes divinos, Dionísio diz: Deus não é nenhum dos seres. Não. Mas de forma simples e indefinível abarca e contém de antemão em si todo o ser. Por isso se chama “Rei dos séculos”, pois Nele, com Ele e por seu poder todo ser é e subsiste. Não foi antes, nem será depois, nem é um devir, nem chegará a ser nada. Não. Ele não é um ser. Ele é o Ser dos seres (V, 4, 817 D).

Para Dionísio, em Teologia mística, os mistérios da Palavra de Deus são

mistérios simples, absolutos e imutáveis revelados “nas trevas mais que luminosas do

silêncio que mostra os segredos” (I, 1, 997 B). Das negras trevas os raios de luz

transbordam: “absolutamente intangíveis e invisíveis, os mistérios de belíssimos

resplendores inundam nossas mentes deslumbradas” (I, 1, 997 B). Revelações a que se

chega, aconselha Dionísio, quando se deixa de lado

61 Para as referências às obras de Pseudo Dionísio, estamos utilizando a versão das Obras Completas editada por Teodoro H. Martin-Lunas – Biblioteca de Autores Cristianos (B. A. C.), Madri, 1995.

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Os sentidos, as operações intelectuais, a tudo que é sensível e inteligível. Despoja-te de todas as coisas que são e das que ainda não são. Deixa de lado teu entender e se esforce por subir o mais que possa até unir-te com aquele que está além de todo ser e todo saber. Porque pelo livre, absoluto e puro afastamento de si mesmo e de todas as coisas, eliminando tudo e de tudo, serás elevado espiritualmente até o divino Raio de trevas da divina Supraessência (I, 1, 997B e 1000A).

Para ver através da cegueira e da ignorância, e para conhecer o princípio

superior à visão e ao conhecimento, explica Dionísio, é preciso fazer “como os

escultores que esculpem as estátuas. Retiram tudo aquilo que a modo de invólucro

impede de ver claramente a forma encoberta. Basta este simples despojo para que se

manifeste a oculta e genuína beleza” (II, 1025B). Às trevas mais que luminosas,

enquanto Causa de tudo, aplicam-se lhes todas as afirmações positivas dos seres,

todavia, enquanto a tudo transcende “é supraessencial a todas as coisas, anterior e

superior às privações, pois está além de qualquer afirmação ou negação” (I, 2, 1000 A).

A Causa universal, portanto, está acima das afirmações e negações, “é eloquente e

silenciosa, na realidade é calada. Não há nela palavra nem razão, pois é supraessencial a

todo ser” (I, 3, 1000C). A teologia, sabedoria de Deus, conforme indica Dionísio,

implica uma dialética ascendente que envolve afirmações e negações:

Convém, pois, no meu entender, louvar a negação de maneira muito diferente à afirmação. Afirmar é ir colocando coisas a partir dos princípios, descendo pelos meios e chegar até os últimos extremos. A negação, em contrapartida, é ir retirando tudo a partir dos últimos extremos e subir aos princípios. Removemos tudo o que nos impede de conhecer desnudamente o Incognoscível, conhecido somente através das coisas que o encobrem. Olhemos, portanto, aquela treva supraessencial que não deixa ver as luzes das coisas (II, 1025B).

Enfim, semelhante com o que estamos discutindo a respeito do final da Ascese,

temos em Pseudo Dionísio um processo de compreensão da Divindade que se inicia

com afirmações daquilo que é para atingir uma esfera ainda mais radical, aquilo que não

é. Parece, então, que uma leitura do final de Ascese a partir de fontes apofáticas poderia

nos ajudar a entender o sentido de algumas das afirmações de Kazantzákis a respeito de

Deus e também da sua ênfase no silêncio. De fato, precisamos entender que “a

dificuldade de Kazantzákis no tocante em como Deus pode ser cognoscível e

incognoscível é uma característica das religiões abraâmicas em geral”

(DOMBROWSKI, 1997, p. 93). Assim, por esta perspectiva, poder-se-ia dizer que para

o escritor cretense o mundo inteiro está carregado, invadido, atravessado com a

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grandeza de Deus, mas este Deus é também, para utilizar as palavras de Gerard M.

Hopkins, “uma parte desconhecida da Sarça Ardente” (apud DOMBROWSKI, 1997, p.

93). Em outras palavras, trata-se de uma dialética entre presença e ausência, entre a

mística imanente e a mística com disposição transcendente.

3.3.2.2 O comentário de Kazantzákis acerca do “Sequer este Um Existe”

Shestov afirma que Plotino “reconhece que só através da superação de verdades

auto evidentes transmitidas a nós pelos sentidos é que podemos atingir essa última

liberdade, a liberdade de criação a partir do nada, que ele chama de união com Deus”

(apud OWENS, 2001, p. 276). Essa “liberdade final”, indicada por Shestov, também

parece ser desejada por Kazantzákis. Porém, a declaração “Sequer este Um existe” seria

apenas um lugar de “descanso temporário” e não o ápice da sua busca filosófica.

Diferente, portanto, de Plotino, cuja procura parece ser a de se estabelecer com essa

“liberdade final” e fazer com que a sua experiência individual signifique uma verdade

universalmente válida; ora, ao fazer isso, a verdade tornar-se-ia uma entidade

idealizada, estática, em vez de impulso para um autêntico recomeço filosófico.

Percebemos, então, que o final de Ascese pode oferecer uma dialética implícita

entre afirmação e negação, presença e ausência, ação e descanso. E uma pista que ajuda

a clarear esta suposição é dada pelo próprio Kazantzákis. Trata-se do comentário feito

em uma carta de 24 de outubro de 1943, enviada a Emile Hourmouzios, e embora esteja

se referindo a sua Odisseia, pode ser igualmente aplicado a Ascese.

[...] durante alguns segundos, num momento de grande tensão, por ocasião de uma crise que dura o tempo de um relâmpago, um escuro relâmpago, todas as formas se rompem e tudo desaparece. [...] Tal qual Ulisses, toda grande alma se asfixia em algum momento: pois sente que não será capaz de conter a mais nobre façanha, a alegria mais elevada ou a maior dor e o ideal mais arrojado. Nada caberá nela, exceto Nada. E solta o grito. Em seguida, recupera sua força, refreia o demônio interior e continua a ascensão. É o que faz Ulisses. E seu grito niilista “Sequer este Um existe!” não é em absoluto o apogeu de seu combate. É uma válvula de escape que se abre para não se asfixiar, para recuperar o fôlego e se aliviar, para recuperar a coragem do horror e prosseguir no caminho que havia escolhido: a ascensão (KAZANTZAKI, 1974, p. 339).

Lewis Owens observou que “como na interpretação de Plotino por Shestov,

Kazantzákis adverte que ascender até o ‘Um’ é ao mesmo tempo sublime e

aterrorizante” (OWENS, 2001, p. 269). Kazantzákis, ao falar de Ulisses, mostrou que a

realização do “Sequer este Um existe” é de fato um momento difícil e, no entanto,

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também é uma válvula de escape que permite o reinício para uma nova subida, um novo

começo. É, pois, um momento de necessidade e de enfrentamento. Esse Um não existe, mas é tão inexistente quanto necessário: pois o que seria de nós sem o auxílio do que não existe? O supremo Não-Ser, término da ascese, não é inacessível, merece ser buscado. Se Kierkegaard escreveu “Quem vê Deus, morre”, Kazantzákis parece nos dizer: “Quem alcança e tem audiência frente ao Não-Ser, só esse merece morrer como homem em pleno exercício de sua humanidade” (VEGA, 1968, p. 40).

Em suma, o Ulisses kazantzakiano abraça a carência de segurança ontológica,

mas a vivencia não como uma paralisia niilista nem como um lugar de descanso final,

senão como o começo de uma existência potencialmente autêntica, de responsabilidade

e de sacrifício para um Deus que busca libertar-se a si mesmo de uma prisão material e

alcançar o abismo metafísico.

Há, pois, uma espécie de renovação após a dissolução: “tudo é apagado, no

entanto não permanecemos no Nada; nós continuamos..., continuamos” (BIEN, 2007, p.

142). Portanto, aquilo que poderia dar a entender como um final niilista e propenso à

resignação passa a ser visto como um incentivo para a contínua criação. Nesse sentido,

não se pode falar de um niilismo absoluto em Ascese, pois o silêncio ali não é absoluto,

mas apenas metáfora para uma forma de renovação psíquica, coerente, aliás, com os

ensinamentos tanto do budismo quanto da mística cristã.

3.4 Salvatores Dei: uma espiritualidade da luta e da liberdade

Ao longo deste terceiro capítulo discutimos alguns pontos do caráter religioso de

Ascese. A bem da verdade, a esta altura já deve estar suficientemente claro que devemos

ser cautelosos em atribuir a palavra religião para o que estamos refletindo, pois se trata

de uma busca muito mais ampla, imprecisa e ilimitada, e por isso achamos melhor

falarmos de uma mística sui generis, ou, no caso, de espiritualidade. Em se tratando de

Kazantzákis é melhor falarmos de “um esforço indomável, uma tentativa de saída a seus

impulsos por filosofar sem dogmas e para viver uma fé de maneira examinada e não

cega. É a essa força daimônica de lucidez e êxtase a que chamaremos ‘espiritualidade’

em Kazantzákis” (PIZARRO, 2005, p. 8).

Apesar de termos feito uma abordagem razoavelmente dilatada e aberta acerca

de temas tão diversos, mas essenciais a essa espiritualidade, penso que tenha ficado

transparecido a dimensão da luta e da liberdade que por ela perpassam. Agora, ao irmos

fechando este capítulo, nossa intenção não será exatamente elaborar uma síntese ou

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recapitular o que já foi dito, ainda que alguns pontos e muitas passagens já apresentados

anteriormente se repitam aqui. A ideia é ressaltar e reforçar os aspectos que em Ascese a

luta e a liberdade vão tomando e que podem nos ajudar a compor um comentário mais

nítido e conciso sobre sua espiritualidade. Com esse intuito também acrescentarei notas

e comentários que se encontram em outros textos de Kazantzákis, mas que iluminam e

corroboram o que está expresso em Ascese, aceitando assim a visão do próprio escritor:

“Tudo o que escrevi depois não foi mais que um comentário e uma ilustração de

Askitikí” (apud BIDAL-BAUDIER, 1986, p. 208) 62.

Isto posto, quero começar retomando a primeira seção de Ascese, “A

Preparação”, mais especificamente o encerramento do Terceiro Dever, quando nos

deparamos com a seguinte declaração:

Desesperado mas intrépido, deves caladamente voltar a proa para o abismo. E dizer: Não existe nada! Agora sei: não espero nada, não temo nada, libertei-me da mente e do coração, subi mais alto, sou livre. É isso que eu quero. Não quero senão isso. Eu buscava a liberdade” (KAZANTZÁKIS, 1997, p. 58).

O escritor grego deixa entrever nessa citação que é preciso abster-se de qualquer

esperança. Devemos lembrar ainda que a síntese desta citação também é a palavra final

de Kazantzákis, isto é, o seu epitáfio: “Não espero nada. Não temo nada. Sou livre”. Os

“nadas” enfáticos que nela aparecem poderiam dar a entender que se trata de uma

postura assumidamente niilista. Mas, como já foi visto, não é bem assim. O que se tem

em Ascese é na verdade um constante chamado para a luta. Percebe-se claramente, a

partir da citação, que é preciso se libertar tanto da mente que ordena os fenômenos na

esperança de subjugá-los, quanto do coração que busca e essência na esperança de

encontrá-la, ou seja, é preciso se libertar morrendo para a autossuficiência. A partir daí,

“caladamente voltar a proa para o abismo”; e dizer: “Não existe nada!” e “É isso que eu

quero”. Assim se superará “os limites da pretensa razão e do pretenso onipotente

coração, para ser livre para então se pôr em marcha em direção a um sentido, sem lhe

impor condições” (VILLAS BOAS, 2013, p. 201).

Ser totalmente livre para se colocar em marcha e criar um sentido, qual seja: a

ininterrupta busca e notável luta com Deus. Nesse sentido, vale a pena relembrarmos

62 A visão do autor de que todos os seus trabalhos posteriores eram representações deste trabalho central – uma posição que ele também manifestou, por exemplo, em 1951, a Max Tau: “[Ascese] é meu credo, o centro da minha obra; mais ainda, o centro de toda a minha vida” (apud BIEN, 2007, p. 142).

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aqui aquela passagem já mencionada por nós da carta enviada ao amigo Börje Knös,

onde Kazantzákis confessa: O tema principal, quase único, de toda minha obra, é o combate do homem com ‘Deus’, a luta acirrada do verme chamado ‘homem’, contra as forças todo-poderosas e tenebrosas que se encontram nele e em torno dele; a obstinação, a luta, a tenacidade da pequena Faísca que trata de penetrar e vencer a imensa Noite eterna. A luta e a angústia por transformar as trevas em luz, a escravidão em liberdade (KAZANTZAKI, 1974, pp. 408-409).

No prólogo de A última tentação de Cristo, o escritor comenta que por causa da

ambiguidade do mundo, essa luta com Deus envolve conflito ou perigo, e que pode

suscitar diferentes qualidades de resposta:

Eclode em todos o combate entre Deus e o homem, acompanhado do anseio pela reconciliação. Na maioria das vezes é um combate inconsciente e efêmero. Uma alma fraca não tem a capacidade de resistir à carne por muito tempo. Torna-se pesada; transforma-se ela própria em carne, e a luta termina. Entre os homens responsáveis, homens que dia e noite mantém os olhos concentrados no Dever Supremo, o conflito entre a carne e o espírito irrompe sem tréguas e pode se estender até a morte (KAZANTZAKIS, 1988, pp. 5-6).

Na perspectiva de Kazantzákis, sabemos que cada pessoa adquire o nível do

inimigo com o qual luta. Por isso ele gostava de dizer que lutava com Deus. E se Deus

pegou no barro para criar o ser humano, ele, poeta que era, se utilizou das palavras.

Lutando com Deus, portanto, Kazantzákis se sentia Um com Ele, se sentia um criador.

Com as palavras ele criava o mundo. Mas não só isso. Com as palavras ele também

criava Deus. Em outra passagem podemos ler: “Deus está sendo construído. Também eu

incluí minha pedrinha, uma gota de sangue, para dar-lhe solidez. Para que Ele não

morra. Para que Ele possa me solidificar para que eu não morra” (KAZANTZAKIS,

1975, p. 18). E dessa maneira, “Com as letras do alfabeto (as únicas pedras e o único

concreto que possuo) pavimentei a nova estrada que leva à salvação”

(KAZANTZAKIS, 1975, p. 245). Com esse objetivo, Kazantzákis reconhecia que

escrever era um grave dever. Mais do que por beleza, por simples efeito estético,

escrever para nosso autor era uma forma de se lutar pela redenção.

Sua luta e redenção/liberdade derivam do seu ímpeto criador. E o Deus que

Kazantzákis forja com a palavra, se funde com o bem e com o mal, com o corpo e com

a alma, com a razão e com a intuição, com o céu e com o inferno. Este Deus com o qual

ele luta e cria, o Criador ao qual ele se une e carrega dentro de si, combate nas fronteiras

da linguagem para impedir que o sentimento de separação avance. É, pois, o grande

esforço de fazer comunicável, por apenas um momento, alguma fração do Inefável.

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Com efeito, “a harmonia, a beleza, é o resplendor da luta por conquistar esse equilíbrio,

é o exercício pleno da liberdade, não só na arte, mas também [como afirma Aziz Izzet]

em todas as frentes: a liberdade dos povos, dos seres humanos e a do espírito” (PÉREZ;

AMÉSTICA, 2000, p. 49).

Para Kazantzákis Deus está em contínuo processo de construção, deve estar

sempre sendo criado. E um dos propósitos declarados em Ascese tem a ver justamente

com ajustar e atualizar o rosto Deus com o nosso suor, ou melhor, “com nossa própria

carne e sangue”, já que o poeta grego entendia que as feições dadas por outras épocas e

povos a essa “prodigiosa essência sem rosto” são máscaras datadas.

Nada mais de acordo com sua época do que dar a Deus um rosto de luta. Uma

vez que “nossa época histórica é um momento de crise violenta, um mundo desaba e o

outro ainda não nasceu. A nossa não é uma época de equilíbrio, em que a cortesia, a

concórdia, a paz e o amor possam ser virtudes fecundas” (KAZANTZÁKIS, 1997, 129).

Conceber um Deus que toma o rosto duro, vulgar e atormentado de uma época, que

trabalha enfurecido pelo cansaço e pela fome, que seja identificado com as lutas

sombrias do ser humano e que, apesar de tudo, conserve a radiação do Infinito. Para

Kazantzákis faltava um Deus que fosse o reflexo das “angústias e das lutas do ser

humano de sua época, mas que conservasse, de todos os modos, seu implacável

distanciamento da aventura humana, que continue sendo ‘um ímpeto sem começo nem

fim, superior a toda origem e a toda meta’” (BIDAL-BAUDIER, 1986, p. 141).

Diante disso, a espiritualidade inerente à ascese kazantzakiana é conduzida

mediante uma árdua subida, vivente e combativa, com esse Deus. O tom dessa

espiritualidade também pode ser percebido numa pequena passagem de Carta a Greco:

“[...] iniciei uma luta para conciliar os inconciliáveis, reconciliar a esperança extrema

com o extremo desespero, abrir uma porta para lá da razão e da certeza”

(KAZANTZAKI, s/d, p. 319). Mas, como está escrito em Ascese, “talvez a vitória se

consolide a cada ação valorosa de nossa parte, talvez todas essas lutas em prol da

redenção e da vitória sejam inferiores à natureza da divindade”; por isso, uma vez mais,

chegamos àquela máxima: “seja como for, lutamos sem nenhuma certeza e nossa

virtude, por não estar segura de recompensa, se reveste de maior nobreza”

(KAZANTZÁKIS, 1997, p. 132). Essa postura implica numa espiritualidade bastante

incomum, em muitos sentidos, quando comparada com a pregação e interesses

religiosos que se revestem com a cara da esperança e do temor dos seres humanos. Por

isso: “Não é somente a dor a essência de Deus; tampouco a esperança na vida futura ou

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na vida terrena; e muito menos o é a alegria ou o triunfo. Toda religião, erguendo em

adoração uma dessas máscaras de Deus, constringe-nos o coração e a mente”

(KAZANTZÁKIS, 1997, p. 101). E em Testamento para El Greco, Kazantzákis

expressa: “Não, o homem que espera pelo céu ou teme o inferno não pode ser livre.

Vergonha caia sobre nós se continuarmos a nos embriagarmos nas tavernas da

esperança ou nos celeiros do medo!” (KAZANTZAKIS, 1975, p. 231). Portanto,

retomando o seu epitáfio, podemos dizer que apenas quando não esperamos nada,

quando não tememos nada é que somos livres.

Creio que seja interessante notar aqui o quão próximo dessa ideia está o filósofo

francês André Comte-Sponville, que ganhou notoriedade nos últimos anos com o

pensamento que defende o desespero como superação de uma vida pautada por

expectativas: “o desespero, no sentido em que emprego a palavra, não é tristeza, menos

ainda o niilismo, a renúncia ou a resignação: é antes o que eu chamo de um gaio

desespero, um pouco no mesmo sentido em que Nietzsche falava do gaio saber”

(COMTE-SPONVILLE, 2001, p. 67). Comte-Sponville parte da fórmula de Espinosa,

na Ética63, que diz: “não há esperança sem medo nem medo sem esperança”

(ESPINOSA, 1983, p. 203). A partir daí, o filósofo francês considerará a esperança

como um obstáculo a ser superado e, nesse sentido, irá propor a inversão radical de seu

estatuto, não sendo mais vista como uma virtude – como é no cristianismo, uma das três

virtudes teologais junto com a fé e a caridade –, passando por uma crítica que a

desmascara como fonte de temor e infelicidade. Comte-Sponville costuma evocar a

noção de “alegre desespero”, que consiste em viver o presente, impulsionado pela força

alegre do desejo, preferindo sempre a ação à espera, a intervenção ativa à reza, o amor à

carência, sem temores nem desencantos. Ele declara: Crer em Deus é crer que tudo estará bem, amanhã ou depois de amanhã; que, no fundo, vivemos no melhor dos mundos possíveis, e, sobretudo, que depois da morte o essencial estará adquirido. Ser ateu é o contrário. É pensar que nem tudo estará melhor amanhã, que nada está jamais adquirido nem prometido, enfim, que todas as nossas esperanças só desembocam, no final das contas, no nada. Não é o mais fácil, mas, ainda uma vez, a esperança, o conforto ou a facilidade não são argumentos. É o que Clément Rosset chama de ‘a lógica do pior’: tomemos as coisas pelo pior, mas também pelo mais provável, pois, desse pretenso Deus, não se conhece nada, dessa vida depois da morte, não se conhece nada; o que constatamos é a vida como ela é, e a morte como ela advém. E, diante desse pior, tentemos viver o melhor de que somos capazes. Tentemos atingir a maior felicidade possível, tentemos amar tanto quanto podemos, tentemos agir tanto quanto podemos! (COMTE-SPONVILLE, 2002, pp. 71-72).

63 Precisamente da Parte III, escólio da proposição 50.

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Antecedendo, pois, à reflexão de Comte-Sponville, Kazantzákis sentencia que o

ser humano é tão mais digno de ser humano quanto mais estreito for o abraço com o

abismo. Mais uma vez recorreremos a Carta a Greco para expor o seu pensamento: Optemos pois pela visão mais desesperada do mundo e, se acontecer enganarmo-nos e existir alguma esperança, tanto melhor; em todo o caso, a nossa alma nunca cairá no ridículo e não haverá ninguém, deus ou demônio, que possa divertir-se à sua custa, afirmando que ela se embriagou como um fumador de haxixe criando, por ingenuidade e cobardia, paraísos artificiais que dissimulem o abismo. E assim me parece que a fé mais desesperada não só é a mais verídica, como a mais viril; e a esperança metafísica um engodo incapaz de iludir o homem autêntico. É a fé mais difícil aquela que eu considero digna dum homem, que não lamenta, que não suplica, que não mendiga, é essa que eu anseio (KAZANTZAKI, s/d, p. 330).

Como se pode ver há certa semelhança no tom das duas declarações, cuja crítica

à esperança, no fundo, é uma mensagem de liberdade e de responsabilidade para os

seres humanos. Quanto a isso, Kazantzákis também dirá: “Até agora confiáramos a

Deus a inteira administração do mundo. Teria chegado a vez do homem de tomar a si

esta responsabilidade” (KAZANTZAKIS, 1975, p. 231). E é nesse sentido, para

promover tal consciência, que a espiritualidade da ascese kazantzakiana se encaminha.

Quer dizer, com a esperança colocada sob suspeita e a trágica lucidez da ausência de

recompensa, Kazantzákis vai desenvolvendo em Ascese aquilo que poderíamos designar

por sua espiritualidade teológica. Nela encontra-se a intenção de substituir um paraíso

imaginário por uma realidade incontestável, a morte. De fato, Ascese é o fruto, a síntese

dessas aspirações tão humanas e, contudo, tão sobre-humanas, “impossível de realizar a

priori [...]; seu sabor é áspero, inesperado, cujas sementes lançadas a todos os ventos

têm todo o futuro para madurar” (BIDAL-BAUDIER, 1986, p. 142).

Tal compreensão também indica as marcas da sua visão sobre aquele a quem ele

admirava profundamente e que escandalizará a muitos em seu romance A última

tentação de Cristo: o Cristo sem a ressurreição é um indivíduo trágico, mas heroico

porque superou a última tentação, enfrentou a cruz, olhou para o abismo e deu o salto.

Para o escritor, Cristo revelou a todos que a morte é a libertação final do homem, é a sua

salvação, que não se deve temê-la ou mesmo desviar-se dela. Kazantzákis tenta mostrar

que o destino de Cristo se cumpre na morte e que não é preciso olhar para além dela.

Em Ascese, portanto, o escritor havia assumido o desafio de entrelaçar esse pano

de fundo teológico tão sui generis, tão pessoal, com partes também dos ensinamentos do

budismo. “De Buda, em contraste com Jesus, a lição mais importante aprendida foi a de

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procurar um salvador que pudesse ‘libertar a humanidade da salvação’. A mensagem do

Buda é livrar-se do medo e da esperança, abandonando o desejo” (CALIAN, 1971, p.

40). Ainda que posteriormente, em alguns aspectos, tenha rejeitado Buda, o escritor

nunca deixou de reconhecer sua dívida com este mestre que foi uma de suas fontes de

inspiração para escrever Ascese e que, de algum modo, contribuiu para sua própria

salvação, aguçando-lhe a perspectiva sobre a realidade e promovendo sua intensa busca

por Deus.

Examinando um pouco mais de perto a metodologia kazantzakiana sempre

retornamos à concepção de luta, sempre tão presente em seu desenvolvimento teológico.

O combate dá sentido às forças confusas que confrontam o ser humano em sua

existência. E a característica desta luta é dialética, uma vez que a natureza humana está

enraizada em contradições. Aliás, a batalha dos contrastes pode ser percebida inclusive

na elaboração do texto de Ascese, na medida em que se percebe nesta obra o empenho

por sintetizar figuras e ensinamentos contrastantes: Cristo, Buda, Nietzsche, Bergson,

Lênin, e outros. Estes são os grandes portos da trajetória ascética e estética de

Kazantzákis. Todavia, desses encontros tão divergentes ele só reterá aquilo que pode ser

útil momentaneamente para criar seu pensamento e elaborar seu credo.

Na realidade, mais que uma síntese de visões sobre a divindade, o que surge em

Ascese é uma nova criação, uma nova imagem de Deus. E assim a luta vai se revestindo

com um caráter sagrado, pois é um ingrediente primordial nesse modelo de Deus que

Kazantzákis vai moldando ao longo da obra. Com efeito, a grandeza do ser humano está

em escapar da conformidade para se tornar um criador, um lutador junto com Deus.

Neste ponto encontraríamos um reflexo da noção hebraica da criação.

O homem é fruto de uma evolução pela qual Deus lutou; depois da criação do homem, foi preciso que ele atingisse a inteligência que significa, biblicamente, o conhecimento: eis a “queda”. A partir desse instante, o homem criado torna-se não apenas um criador, mas um criador livre, um colaborador de Deus. Ele é cooperador de Deus (I, Cor., 3,9). Assim, Deus é criação eterna. Compete agora ao homem criar; auxiliar a recriação eterna de Deus (IZZET, s/d, p. 8).

Para Kazantzákis, Deus vai cada vez mais se identificando com uma força

primordial que impele o ser humano a superar-se. Desse modo, a empresa à qual o ser

humano está envolvido é a mesma da divindade que nos pede que o salvemos, e esse

pedido de socorro é a raiz do grito interior que nos dá o impulso de partida para

chegarmos a transubstanciar a matéria em espírito. E tudo isso quer dizer que a

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liberdade de criação e a luta são ingredientes primordiais que constituem os seres

humanos e que se interpenetram na elaboração da trajetória para a divinização.

Portanto, divinizar-se significa ser criador, e ser criador significa lutar para ser

livre. Então, para alcançar a liberdade, o ser humano deve sempre “ascender”.

Retomemos aqui o que Kazantzákis diz sobre a importância do caminho que sobe:

Durante toda a vida tive certeza de uma coisa: que uma estrada, e somente uma, leva a Deus – a ascensão. Nunca a descida ou a estrada horizontal, somente a ascensão. Minha inabilidade em distinguir os conteúdos da palavra Deus com clareza, esta palavra tão manchada e usada pelos homens, fez-me hesitar muitas vezes, mas eu nunca hesitei em olhar a estrada que leva a Deus, ou seja, o topo supremo do desejo do homem (KAZANTZAKIS, 1975, p. 335).

A ascensão será sempre o meio supremo para Kazantzákis. Subir

permanentemente, lutar a cada instante para se chegar ao degrau mais alto e quando ali

chegar, subir ainda mais alto. O ser humano deve sempre lutar para superar-se, pois,

como já foi assinalado, “a virtude suprema não é ser livre, mas lutar pela liberdade”

(KAZANTZÁKIS, 1997, p. 134), já que o triunfo nunca será definitivo, senão uma luta

sem fim. Na espiritualidade kazantzakiana o ponto de chegada será também sempre um

novo ponto de partida; é o Mistério abissal para onde tudo vai e de onde tudo começa.

Em suma, a espiritualidade que se encontra em Ascese procura reinventar os

valores com as cores da contemporaneidade, mas, para reinventar, precisa mergulhar

nos valores da Tradição com o espírito de seu tempo, para atingir a essência inspiradora

e abstrair-se da forma limitante, na medida em que não ajuda a busca.

Encerraremos com uma passagem que ilustra bem a disposição de espírito que

permeia a trajetória da ascese kazantzakiana. O texto que faz ressoar profundamente o

sentido místico/poético ao estilo de Kazantzákis nos é dado em Carta a Greco:

Verdadeiramente, nada se parece tanto com o olhar de Deus como o da criança que pela primeira vez vê e cria o mundo. O mundo era dantes um caos, e todas as criaturas, árvores, homens e pedras passavam, inextricavelmente confundidas, diante da vista da criança. Não diante dela: mas nela. Tudo: as formas, as cores, as vozes, os perfumes passavam como relâmpagos, e ela não podia fixá-los, nem ordená-los. O mundo da criança não é feito de barro capaz de resistir; é feito de nuvens, uma brisa fresca sopra nas têmporas da criança e o mundo condensa-se, rarefaz-se e desaparece. Era assim que, antes da criação, o caos devia passar diante dos olhos de Deus (KAZANTZAKI, s/d, pp. 39-40).

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Na liberdade, na inocência espiritual – tal qual a inocência apontada no

Zaratustra de Nietzsche64 –, se observa o que é essencial e contemplamos o mundo

como se fossemos deuses. E talvez seja mesmo essa inocência a mais heroica e a mais

mística de todas as lutas. Diante disso, a espiritualidade que desponta em Ascese não se

comprometerá com promessas de recompensas e nem de castigos, mas unicamente com

a possibilidade de que na luta se renovem nossos olhos virginais, e tudo o mais, vida e

morte, seja o que Deus quiser e o que quer que seja Deus.

***

No decorrer deste terceiro capítulo procuramos analisar alguns pontos que

expressam o teor da espiritualidade contida em Ascese. Para começar foi investigado o

sentido do termo “ascese” que dá título à obra. Reconhecemos a partir daí que a ascese

kazantzakiana refere-se a certos exercícios – exercícios espirituais – cuja finalidade é

iluminar a consciência e colocar em prática uma ação afirmadora da vida, em sua

plenitude e total aceitação, bem ao estilo do amor fati nietzschiano. Esses exercícios

também acabam, por assim dizer, produzindo uma nova concepção de Deus; um Deus

que não pode ser definido, mas que se adapta ao nosso tempo, às nossas lutas. Por isso é

um Deus imanente e em constante movimento, em processo, semelhante, neste aspecto,

com o conceito de élan vital de Bergson. Todavia, vimos que este Deus também tem sua

dimensão de transcendência e, portanto, exige uma postura de silêncio. E, assim, para

melhor apreciarmos esta tendência em Ascese, aplicamos a ela uma chave de leitura que

insinuasse a influência do budismo, mas, sobretudo, que levasse em conta o referencial

da mística cristã na sua forma apofática. Por tudo o que se viu, finalizamos o capítulo

sustentado e reafirmando a espiritualidade da luta e da liberdade na trajetória da ascese

kazantzakiana.

64 Em “Das três transmutações” Zaratustra fala: “Inocência é a criança, e esquecimento, um começar-de-novo, um jogo, uma roda rodando por si mesma, um primeiro movimento, um sagrado dizer-sim” (1974, p. 238).

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Considerações finais

Temos plena consciência de que sobre a obra de Kazantzákis há ainda muito por

explorar, pois se trata de um universo impossível de ser abarcado de uma só vez. Ainda

assim, acreditamos que em nossa pesquisa foram percorridos em boa medida os

momentos marcantes desta obra e mesmo da vida deste que é um dos grandes escritores

do século XX. Nesse sentido, entendemos que nosso trabalho pode ser interpretado

como um “processo de introdução” ao autor e sua obra.

No percurso do nosso texto retomamos questões e temáticas que cercam a

existência de Kazantzákis, uma existência marcada por inúmeras viagens e inquietudes,

e os pontos que refletem seu caráter complexo, sensível, heterodoxo, intenso,

abismante. O escritor grego era verdadeiramente alguém que nunca se acomodava e

estava sempre em busca, de espírito incansável e incessantemente criador. De sua obra,

que foi a expressão – o Grito – da sua vida, destacam-se ao mesmo tempo as marcas de

um pensador, de um poeta e de um místico. Aquelas que eram suas influências, seus

guias e seus mestres, passaram sobre o escritor grego como um forte vento de vitalidade

e fizeram dele um conciliador de opostos, um autor de novas sínteses e fórmulas, o que

o torna ideologicamente inclassificável, um rompedor de dogmatismos, um profeta

original. Seu mundo parece ser todo o mundo, ele o carrega consigo e o deixa entrar em

seus livros. Dessa maneira, a produção literária de Kazantzákis desenvolve uma

recuperação mais que intelectual da vida, é a expressão do seu grito espiritual, da sua

humanidade: sua criação literária é uma ferramenta de luta, uma trajetória para se

alcançar a redenção.

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De fato, para Kazantzákis, escrever era mais do que busca por beleza, era seu

esforço por redenção. Entretanto, devemos considerar que com a sua escrita o autor

também nos proporciona a redenção: a qual nos chega especialmente por meio da beleza

poética que dela aflora. De qualquer modo, no decorrer da sua carreira e trajetória de

vida, Kazantzákis chegará à seguinte constatação: “Tentei ir por diferentes caminhos

com o objetivo de alcançar minha salvação: o caminho do amor, da curiosidade

científica, da pergunta filosófica, do renascimento social, e finalmente o difícil e

solitário caminho da poesia” (apud FRIAR, 1958, pp. 23-24).

Todo o empenho e o essencial dessa trajetória podem ser vistos em Ascese Os

Salvadores de Deus. Nesta obra, a redenção já se expressa na própria forma em que ela

foi escrita, pois se trata de um poema com a presença de elementos da prosa, onde o

discurso literário, filosófico e religioso se interpenetram, tornando-a, assim, livre de ser

definida ou classificada por qualquer gênero literário. Em seu conteúdo condensa-se

todo o itinerário de Kazantzákis para se buscar existencialmente a liberdade/redenção –

a sua própria, a de toda a humanidade e de todo o Universo. Recorrendo, pois, a todas as

experiências intelectuais e espirituais pelas quais havia passado, o escritor procurou

manifestar neste pequeno livro os conflitos que lhe dilaceravam a alma, e oferecer uma

solução para eles, numa tentativa desesperada de conciliar as inúmeras antinomias que

lhe atormentavam a consciência.

Isso pode explicar a desnorteante complexidade do texto desta obra. De fato, no

decorrer da leitura de Ascese percebemos que o itinerário de ascensão vai sendo

construído por Kazantzákis com o auxílio de diferentes filosofias, como as de Nietzsche

e de Bergson, bem como de fontes místicas provenientes tanto da tradição ocidental

como da oriental. Frente a pensamentos e tradições tão distintos, e mesmo

incompatíveis, constatamos ainda que Ascese não pretende impor o seu caminho, mas

apenas apontar direções e contribuir para o debate entre correntes de pensamentos,

propiciando ainda mais a proliferação de ideias que se interferem mutuamente.

Numa certa perspectiva, poder-se-ia dizer que Kazantzákis ao desenvolver a

tessitura da sua Ascese procurou expor uma espécie de síntese entre os pensamentos

mais diversos. E, neste aspecto, poderíamos mencionar que o escritor tomou para si a

missão que ele próprio atribuía à sua tão amada ilha natal. Ora, Creta situa-se entre três

continentes, na fronteira imaginária do Oriente com o Ocidente, e seu dever simbólico

ou espiritual, segundo o escritor, seria fazer a reconciliação entre essas duas potências.

Na cabeça de Kazantzákis isso era uma exigência, pois somente assim, unindo as forças,

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o mundo que estava prestes a desmoronar poderia ser reconstruído. Ascese seria a

manifestação desta tarefa. Com isso, poderíamos inclusive especular que até mesmo o

título da obra, em sua grafia original - Aσκητικη: Salvatores Dei -, revelaria tal intenção.

Ao escrever a primeira palavra do título em grego e o subtítulo em latim, Kazantzákis já

daria sinais do seu objetivo: a cooperação entre a prática antiga e original da ascese

grega (Askitikí) com a urgência ocidental moderna – europeia – do começo do século

XX de salvar Deus (Salvatores Dei). Seria, pois, a proposta de recuperação e

atualização dos valores profundamente místicos e espirituais para uma sociedade que

havia sido reduzida à força da técnica, da industrialização. Em suma, Ascese seria a

contribuição de Kazantzákis, seu “evangelho” para a redenção/libertação de um mundo

meramente e grosseiramente materialista.

Com efeito, Ascese pode ser entendida como um caminho místico e heroico em

que se projetam os passos, por assim dizer, de indivíduos excepcionais a serviço de uma

grande ideia, de um ardente ideal de humanidade que não conhece fronteiras. As seções

desta obra – A Preparação, A Marcha, A visão, A Prática, O Silêncio – refletem os

degraus de uma ascensão, a superação etapa por etapa até se chegar à condição de total

aceitação da vida, sem medo e sem culpa. E um caminho de ascensão que procura estar

além do que seja comum só pode exigir o máximo de superação, de luta, para que se

realize uma espiritualização dos instintos, ou, para usar aquela designação tão cara a

Kazantzákis, “a transubstanciação da matéria em espírito”.

A espiritualidade que Ascese promove é a espiritualidade da luta e da liberdade,

isto é, da liberdade em luta. Uma luta que Kazantzákis considerou tanto mais digna

quanto menos expectativas fossem depositadas sobre ela. Dessa forma, o efeito

principal da espiritualidade kazantzakiana é a criação de uma unidade nova, cujo

fundamento é o de lutar sempre e sem esperança de recompensas e ganhos nesta vida ou

de uma vida supra terrena. Ser livre significa lutar para se libertar da esperança e do

medo. Esta é a síntese de Ascese e a palavra final do escritor: “Não espero nada. Não

temo nada. Sou livre.”

A obra Ascese pode ser considerada problemática se vista a partir dos

pronunciamentos teológicos oficiais da Igreja, pois está imbuída com todos os tipos de

elementos e com as mais diversas influências, e, obviamente, não pode ser considerada

eclesiológica. Todavia, a força espiritual de Ascese expressa um grande desafio aos que

buscam Deus hoje: o desafio de salvá-lo, isto é, não deixar que Deus seja apenas outro

nome para os nossos medos, desejos, esperanças e interesses. Sem promessas de

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consolo ou vitória, e sem promessas de um futuro paradisíaco além-morte, Ascese

sugere o compromisso e o envolvimento sinceros com a totalidade desta vida, nossa

única vida, da vida como ela é, indiferente a qualquer esperança de recompensa futura.

Por outro lado, se poderia pensar também que Kazantzákis, no fundo, não pretende

eliminar a esperança dos seres humanos. O que faz realmente é limpar a palavra, ou

seja, ele a purifica da carga de alienação e superficialidade que nela se acumulou ao

longo do tempo. Afinal, a purificação parece ser uma das funções da arte em geral, e

aqui, em especial, da literatura.

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