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34 EM CENA, AS OUSADAS E (EM ALGUNS CASOS) MIRABOLANTES PERSONAS PÚBLICAS DO ESCRITOR CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO, COMO O PERNAMBUCANO MARCELINO FREIRE Foto: Cia. de Foto/Divulgação

Uma Literatura Perfomática

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Um gênero contemporâneo marca a vida literária brasileira, a do escritor que constrói uma persona pública para conquistar leitores e a posteridade. O autor Rafael Pereira foi selecionado pelo Rumos Jornalismo Cultural e cursa jornalismo na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e estagiou na editora Record.

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EM CENA, AS OUSADAS E (EM ALGUNS CASOS) MIRABOLANTES PERSONAS PÚBLICAS DO ESCRITOR CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO, COMO O PERNAMBUCANO MARCELINO FREIRE

Foto: Cia. de Foto/Divulgação

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A gosto de 1984. Oito horas em ponto. A escritora Ma-ria Amélia Mello assiste ao Jornal Nacional. Na vinheta de abertura, o slogan da marca Technos (“o Jornal Nacional começa às oito em ponto”). “Às Oito, em Ponto” é também o título de um conto que ela havia escrito dias antes. A coincidência não lhe saiu da cabeça. Dias depois, Maria Amélia apresentou um projeto para o lançamento de seu novo livro, homônimo ao conto. Jazz, blues e piano, segui-do de sorteio de relógio, displays e convites estampados com a famosa marca.

“Você está completamente maluca!”, disse-lhe um ami-go do meio literário. Emissoras como a Rede Globo fa-zem reportagens a respeito da surpreendente interação entre música, poesia, conto, sorteio, brindes, autógrafos e uma autora tão empreendedora. Foi uma festa. “O que agora é banal”, resume Maria Amélia, hoje editora da José Olympio.

O que há 26 anos causou espanto – vincular a figura pública do autor e sua obra a uma empresa comer-cial – hoje é café pequeno na frenética busca de vi-sibilidade no mercado literário. O escritor tornou-se uma figura pública, que pontifica em congressos, festas, palestras, feiras de livros etc. Ao lançar seu li-vro, espera-se que ele dê entrevistas, aceite convites para maratonas de autógrafos, leituras públicas e apa-rições em talk-shows da moda. Todos recordam que, um tempo depois de receber o Nobel de Literatura, em 1998, o escritor português José Saramago decla-rou que não lhe sobrava mais tempo para escrever. A clássica pergunta “Como você escreve?” divide agora as atenções com outra pergunta: “Como você divulga o que você escreve?”

por Rafael Pereira

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“Se aceitasse todos esses compromissos, não escreveria mais”, diz o escritor Cristovão Tezza, que, com o romance O Filho Eterno, colecionou os principais prêmios literários do país. O resultado é que, desde então, passou a receber em média um convite por dia para participar de eventos. Não aceita todos, mas ainda assim os cachês pagos pelas palestras, leituras etc. lhe permitiram realizar o sonho de abandonar a universidade.

Até mesmo escritores mais jovens, como Nelson de Oli-veira – que desde 2007 passou a assinar seus livros como Luis Brás –, conseguem sobreviver não propriamente da venda de livros, mas de sua presença no sistema literário. “O que me faz participar desses eventos é a remuneração. Não conheço escritor da minha geração que sobreviva só com direitos autorais”, diz o autor do Pequeno Dicionário de Percevejos, que é também conhecido por suas oficinas literárias e projetos editoriais. Essa necessidade de estar em evidência é reforçada por uma das principais vozes do mercado editorial, Luciana Villas-Boas, editora do Grupo Record, a editora que mais publica editores brasileiros na atualidade. Ela acredita que é inevitável exigir do novo es-critor essa postura quase teatral. “O autor precisa mostrar sua persona literária em eventos”, diz.

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NO CONTEMPORÂNEO, O ESCRITOR É TRANSFORMADO

EM PERSONAGEM E PARTICIPAR DE FESTAS LITERÁRIAS, DEBATES,

PROGRAMAS DE TV, BLOGS, TWITTER É IMPORTANTE PARA

SUA PROJEÇÃO

Para o escritor paranaense Cristovão Tezza, escrever e não divulgar é sua principal preocupação como escritor. Foto: Guilherme Pupo/Divulgação

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Não é de hoje que se valoriza a persona pública do escritor. Os banquetes na Antiguidade e os saraus do século XIX são duas provas de que ser escritor não é só escrever; ele tem que aparecer. Mas há nuances nes-sa história. Nos anos 1970, por exemplo, a questão era política. Quase sempre sem receber cachê, mas impul-sionados pela luta contra a ditadura, escritores como Lygia Fagundes Telles, João Antonio e Ignácio de Loyo-la Brandão viajavam pelo país muitas vezes de ônibus, dormindo em locais abaixo da linha das três estrelas para se aproximar de seus leitores. A essência da per-formance era outra.

“Desde sempre existiu esta atuação do autor. O que mu-dou foi a forma como o mercado passou a enxergar essa figura”, sintetiza Joca Terron, autor de Sonho Interrompido por Guilhotina. Há um grande circuito criado para que o escritor apareça. “Caso o autor queira sobreviver no mer-cado, é preciso entrar neste sistema de celebridades”, rei-tera Joca.

Coisas estranhas passam a acontecer na vida literária brasileira. “Na verdade, quase não escrevo”, diz Marcelino Freire, que viaja o país com o espetáculo Contos Negreiros,

baseado em seu livro homônimo e que conta com a par-ticipação da cantora Fabiana Cozza. Ex-ator, o pernambu-cano Freire tornou-se o mais completo exemplar dessa nova função do escritor. O local da entrevista é sugestivo: a famosa (graças a ele) Mercearia São Pedro, no badalado bairro da Vila Madalena, na Zona Oeste de São Paulo. No caso de Marcelino, as figuras do escritor, agitador cultural e autoempresário se misturam.

Alguns minutos em sua companhia bastam para você entender por que ele mesmo afirma que escreve tão pouco. Atende ao celular, que já tocava havia um bom tempo. “Sim... Amanhã, claro, que horas? Afe Maria! Tudo bom, o.k., abraço”, era um novo convite que surgira. No dia anterior à nossa conversa, Marcelino esteve presente em dois eventos. Após a entrevista, participaria de um sarau na Brasilândia, periferia norte de São Paulo. No dia seguinte, uma participação especial em um show no centro da cidade. Dias depois, uma viagem para o Rio, onde o Marcelino oficineiro entraria em ação. E ainda tem o blog, a produção da Balada Literária, o Twitter... “Minha agenda é lotada. Mas o que me interessa é dei-xar a literatura próxima à vida. Literatura é uma festa, mas que me cansa às vezes.”

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A internet é o novo palco de atuação do escritor per-sonagem. A divulgação é enorme, mas é também um espaço em que as pessoas não controlam totalmente sua própria imagem. “A internet é o foco da construção de personagens públicos”, diz Joca Terron. “Parece que fazem uma confusão entre o que eu sugiro ser e aquilo que realmente sou.”

Vender a imagem mais do que os próprios livros pode ser uma contradição com a qual escritores contemporâneos precisam conviver. “Não crio conscientemente um perso-nagem para mim mesmo. Mas me vejo em situações em que incorporo uma persona, ou sou interpretado como um personagem pelo outro”, declara Terron. Apesar des-sas dúvidas, ele se diz viciado no mundo virtual. Diaria-mente, posta textos e imagens em seus dois blogs (Sorte & Azar S/A e Terronismos!), Facebook e Twitter.

O “escritor tatuado” Santiago Nazarian segue outra linha de atuação. Figura andrógina, gótica, monocromática,

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maquiagem pesada, que já praticou body art, ele admi-te que já tentou. “No início de minha carreira, quis real-mente criar um personagem, ou, pelo menos, forçar um personagem criado pela mídia”, diz Santiago Nazarian, co-nhecido como o “escritor tatuado” e autor de Mastigando Humanos. Acredita, porém, que a onda dos personagens se esgotou. “O escritor não é tão bom personagem como um pop star ou um ator, ele não vende tão bem com a vestimenta pop.”

Apesar da autocrítica, ser personagens de seus livros ainda é uma das principais características da obra de Nazarian. Ele está em orelhas de seus livros, em fotos nas quais aparece sangrando (em referência à body art) ou babando um líquido viscoso. Em sete anos, Santiago publicou cinco livros. Thomas Schimidt é o personagem que mais se repete na obra, uma figura obscura, sempre sob suspeita. “Pessoas próximas afirmam que Thomas seria o próprio alter ego do autor. E que, usando essa identidade, teria ele realmente vivido algumas das his-

AS EXPRESSÕES DA PERSONA ENTRE OS ESCRITORES

PODEM ASSUMIR VÁRIAS FORMAS, COMO O ESCRITOR PERFORMÁTICO, O ESCRITOR

BIZARRO, O ESCRITOR PRODUTOR CULTURAL, O ESCRITOR PALESTRANTE

Joca Terron e Santiago Nazarian, o “escritor tatuado”, são dois dos escritores que estão presentes na internet, nos encontros de escritores...

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tórias posteriormente narradas em seus livros”, diz o link um tanto obscuro do escritor no site da Wikipedia, que ele mesmo atualiza.

“Sou parte deste mundo do bizarro. Por isso, talvez nem crie um personagem para mim. Eu sou o próprio”, diz Na-zarian, confundindo aqueles que querem separar o cria-dor da criatura. Não dá para saber onde isso vai dar. Mas, se a literatura é boa ou não, é o leitor quem vai decidir. A criatividade dos escritores contemporâneos surpreende a maioria dos leitores. No início de 2010, a escritora Paula

PARA ALGUNS ESCRITORES CONTEMPORÂNEOS VENDER A IMAGEM É TÃO IMPORTANTE QUANTO VENDER OS LIVROS.

CONTRADIÇÃO?

Nelson de Oliveira (ou Luis Brás, sua persona) escreve em cafés e sobrevive mais com a participação em encontros literários do que com a venda de seus livros. Foto: Rubens Chiri

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Parisot, autora de Gonzos e Parafusos, transformou o lan-çamento de seu livro em um grande espetáculo. Durante sete dias e sete noites, ficou confinada em um cubo de acrílico dentro da Livraria da Vila, em São Paulo. Ela tinha uma razão: Paula realizou uma performance em que as-sumia o papel de personagem da obra, uma psicanalista em crise. Gravado em vídeo hoje disponível na internet, o espetáculo tornou-se mais grandioso com a visita do até então sempre esquivo José Rubem Fonseca, um escritor conhecido por praticar um esporte impensável para a maioria dos jovens escritores: desaparecer.

E o leitor?Se existe a persona do autor, também existe a persona do leitor: a mineira Isis Costa McElroy, tradutora e professora de literatura brasileira da Universidade Estadual do Arizo-na (EUA), brinca na internet, mas frisa que é brincadeira séria, puro trabalho. Ela cria personas. Já fez, por exemplo, um perfil fictício de si mesma num site de relacionamento gay. Queria entender como seria o encontro virtual entre homens. Quando um amigo a convidou para entrar no Facebook, encontrou na rede social colegas acadêmicos, artistas e escritores latino-americanos, e ali repetiu a ex-perimentação performática (que ela também chama de antropológica): “Já que um autor cria uma persona para si próprio, decidi eu mesma criar uma persona como leitora para interagir com eles”. Santiago Nazarian – a quem Isis considera “brilhante”, “excepcional” e outros adjetivos dis-persos em uma curta conversa por telefone – entendeu o recado e, por meio de encontros virtuais com a leitora, discutiu sua obra num insólito diálogo entre personas, sem nem imaginar que sua interlocutora era, na verdade, uma pesquisadora do assunto. “A partir do momento em que o escritor cria uma personagem para si próprio – e, no meu caso, quando o leitor faz o mesmo –, a relação com o texto muda completamente”, argumenta a professora. Quando a leitora partia para interpretações dos enredos psicodélicos do escritor, respondia em tom irônico o “ani-mal poluído e masturbado pela natureza” (como Santia-go, o personagem, se define socialmente): “Não entendo nada do que você diz, mas acho bonito”. Isis McElroy não perde a brincadeira – e a coesa análise, ainda que sob paradoxos. “Na medida em que eles criam esse espaço performático, forma-se um relação verdadeira e sincera com o leitor. É a inversão da ideia de prostituição ao meio acadêmico”, declara, sem medo, em um tom que varia do acadêmico ao performático.

Para Luciana Villas-Boas, faz parte da vida literária do escritor se apresentar em público. Foto: Divulgação