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Uma outra face da violência Another face of violence Resumo bsctract O controle racional dos impulsos e atos agressivos, tem sido conside- rado, desde o século XVIII, como um dos sinônimos da civilização. A história nos mostra que as manifes- tações de violência tiveram carac- terísticas peculiares em cada épo- ca, em que as formas mais bárba- ras e cruéis conviviam com as suas formas mais sutis. Estudos de diferentes áreas mos- tram que a violência que ocorre nos centros urbanos e no ambiente fa- miliar é potencializada por vários fatores de ordem social como a po- breza, o desemprego, a exclusão social, o consumo e tráfico de dro- gas, o alcoolismo, as aglomerações urbanas etc. Considerando as diferentes ma- nifestações de violência, vemos que os seus motivos nem sempre são conscientes, havendo motivos de natureza inconsciente que podem esclarecer muitos atos humanos, ajudando a lançar luz sobre este as- sunto que reputamos ser de grande complexidade. Palavras-chave: Violência, razão, inconsciente. Since the 18 th century, rational control of impulses and aggressive acts, has been considered as one of the synonyms of civilization. History shows us that manifestations of violence have had peculiar characteristics in each age, in which the most barbaric and cruel forms coexisted with its more subtle forms. Studies in different areas have shown that the violence occurring in urban centers and within the family circle has increasingly become a potential due to various factors of a social nature, such as poverty, unemployment, social exclusion, drug consumption or dealing, alcoholism, overcrowded conditions in big cities, etc. Considering the different manifestations of violence, it is evident that the motives are not always conscious, and that there are motives of an unconscious nature that can explain many human acts, casting a light on this subject, which is considered to be one of great complexity. Key-Words: Violence, reason, unconscious "O sono da razão produz monstros" Goya — 1799 "O que é isto que em nós mente, mata e rouba?" Georg Büchner — 1835 Catarina Maria Schmickler Professora do Curso de Serviço So- cial da Universidade Federal de Santa Catarina; membro do Núcleo de Estu- dos da Criança, Adolescente e Famí- lia da UFSC e Doutoranda do Progra- ma de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social da PUC/SP.

Uma outra face da violência

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Uma outra face da violência

Another face of violence

Resumo bsctract

O controle racional dos impulsose atos agressivos, tem sido conside-rado, desde o século XVIII, comoum dos sinônimos da civilização. Ahistória nos mostra que as manifes-tações de violência tiveram carac-terísticas peculiares em cada épo-ca, em que as formas mais bárba-ras e cruéis conviviam com as suasformas mais sutis.

Estudos de diferentes áreas mos-tram que a violência que ocorre noscentros urbanos e no ambiente fa-miliar é potencializada por váriosfatores de ordem social como a po-breza, o desemprego, a exclusãosocial, o consumo e tráfico de dro-gas, o alcoolismo, as aglomeraçõesurbanas etc.

Considerando as diferentes ma-nifestações de violência, vemos queos seus motivos nem sempre sãoconscientes, havendo motivos denatureza inconsciente que podemesclarecer muitos atos humanos,ajudando a lançar luz sobre este as-sunto que reputamos ser de grandecomplexidade.

Palavras-chave: Violência, razão,inconsciente.

Since the 18 th century, rationalcontrol of impulses and aggressiveacts, has been considered as one ofthe synonyms of civilization. Historyshows us that manifestations ofviolence have had peculiarcharacteristics in each age, in whichthe most barbaric and cruel formscoexisted with its more subtle forms.

Studies in different areashave shown that the violenceoccurring in urban centers and withinthe family circle has increasinglybecome a potential due to variousfactors of a social nature, such aspoverty, unemployment, socialexclusion, drug consumption ordealing, alcoholism, overcrowdedconditions in big cities, etc.

Considering the differentmanifestations of violence, it isevident that the motives are notalways conscious, and that there aremotives of an unconscious naturethat can explain many human acts,casting a light on this subject, whichis considered to be one of greatcomplexity.

Key-Words: Violence, reason,unconscious

"O sono da razãoproduz monstros"

Goya — 1799

"O que é isto que emnós mente, mata e

rouba?"

Georg Büchner — 1835

Catarina Maria Schmickler

Professora do Curso de Serviço So-cial da Universidade Federal de SantaCatarina; membro do Núcleo de Estu-dos da Criança, Adolescente e Famí-lia da UFSC e Doutoranda do Progra-ma de Estudos Pós-Graduados emServiço Social da PUC/SP.

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Introdução...A expressão "violência",atualmente muito veiculadapela mídia, em textos e de-

bates acadêmicos, constitui um ter-mo que, longe de projetar algo novono horizonte das questões relativasao homem, mostra-nos uma faceconhecidamente perversa, que fereos seus direitos de cidadania e nosdeixa perplexos frente a situaçõesverdadeiramente bárbaras, tamanhaa irracionalidade que a motiva.

O preço do que chamamos "mo-derno" é visível nas grandes cida-des, em que um contraditório pro-cesso de urbanização segrega gran-de massa da população nos chama-dos "bolsões de miséria", um trânsi-to caótico tira diariamente a vida demuitos cidadãos e as balas perdidastêm ceifado a vida de tantas outras.

Apesar de a violência sempre terexistido — prova disso é a formacomo evoluiu a humanidade — os jor-nais hoje estão repletos de notíciassobre o assunto.

A violência de que é palco a ur-bes surpreende-nos e nos assusta acada dia. Ela tem seu locus no es-paço urbano mas também está pre-sente nos lares e nas formas consi-deradas mais "sutis" como as humi-lhações, a exclusão social, os pre-conceitos, o desrespeito às mino-rias, o cerceamento das formas deexpressão...

A violência de que somos sujei-tos e objetos faz parte das nossasvidas como os comportamentosautomatizados e os gestos mais sim-ples. Não é sem motivo que o mun-do, hoje, vive as conseqüências deum processo em que o usoindiscriminado do poder e o desres-peito à vida contribuem para mon-tar um cenário de grandes injustiças,de desigualdade, de desrespeito àsdiferenças. O homem parece mes-mo ser o lobo do homem.

Por que o homem é violento?Que motivações o levam a exceder

os limites? Em que circunstâncias aviolência acontece? Quais são asdeterminações que levam o homemà violência? Notificar os casos deviolência? Tornar públicas as ocor-rências? Questões como essas es-tão na mesa de debates de profissio-nais de diferentes áreas como ossociólogos, psicólogos, psicanalistas,enfermeiros, médicos, advogados,educadores, assistentes sociais...

Achar respostas pertinentes paratais questões é algo que convida apesquisar. Explicações que remetemà pobreza, ao consumo e tráfico dedrogas, ao porte ilegal de armas, àsaglomerações urbanas, às migra-ções desordenadas, ao alcoolismo,ao desemprego, à exclusão socialetc. não satisfazem o estudioso maisdetalhista, pois são "causas" coad-juvantes de um processo que certa-mente é mais complexo do que asexplicações que trazem para a cenafatores que podem potencializar oprocesso, mas não são, necessaria-mente, os únicos determinantes.

Cada profissional, tendo comoparâmetro os recortes da sua visãode mundo e das suas teorias, mos-tra um lado da questão que, somadaàs demais, vai clarificando as expli-cações e aprofundando o estudo.Certamente, abordar a violência sobum único prisma nos levará a en-frentar a questão com olhos míopese ingênuos. Abrir novas perspecti-vas de investigação, acolher inter-pretações que mostrem uma faceoculta, pouco investigada pelo As-sistente Social, podem lançar umanova luz sobre um assunto instigante.

O Assistente Social que atua naprática cotidiana com questões queenvolvem situações de violência,quer a que ocorre nas ruas, quer aque se manifesta no meio familiar,sabe o quanto é difícil, complexa edesafiadora uma intervenção nestaseara. O auxílio de referenciais teó-rico-metodológicos próprios muitasvezes não é suficiente para umaação que permita uma compreensãoda situação, uma explicação do fe-

nômeno e uma atuação segura. Faz-se premente olhar com outros olhos,outros referenciais, acolher outrasexplicações que permitam complexi-ficar o estudo, a pesquisa.

Assim, estudar a "violência",compreendendo-a em suas determi-nações de ordem histórica e 'cultu-ral, permite um percurso interessan-te e necessário para desmistificaruma questão que, embora pareça seralgo que os tempos "pós-modernos"nos trazem, mostra ser inerente àespécie humana.

Um pouco de história...

O perfil da violência que uma cul-tura permite ou veta é decorrenteda época, das circunstâncias histó-ricas, doS hábitos sociais a ela cir-cunscritos.

Há muito que se sabe que o ho-mem é um ser agressivo, sendo-lheinato o sentimento de destruição. Noséculo XIX, as teorias de HerbertSpencer e Charles Darwin2 contri-buíram para ratificar a idéia decombatividade do homem como ne-cessária.

O subalterno que no ambiente detrabalho não eleva a voz para nin-guém, em casa abusa da mulher emaltrata o seu cão. Por outro lado,atos agressivos são diferentes desentimentos agressivos, os quais são,muitas vezes, inconscientes e se di-luem na convivência social em de-corrência do medo, das etiquetas, daprudência e de um forte superego. Oque transborda, aparece atenuadocomo irritação, mau humor ou carafeia. "O impulso para a agressãomuitas vezes se materializa, quandoo faz, distorcido e disfarçado, reco-nhecível apenas por aqueles que es-tão alertas aos caminhos tortuosos damente". (GAY,1995, p.13)

Muitas vezes é difícil determinarse um ato é destrutivo ou construti-vo. O que o agredido sente comoum golpe pode ser defendido pelo

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agressor, com absoluta sinceridade,como de capital importância para asua sobrevivência. O limite entre osimpulsos construtivos e destrutivosé muito tênue e os mecanismos dedefesa há muito estudados pelospsicanalistas mostram que aagressividade pode ser canalizadapositivamente para atividades artís-ticas, por exemplo. Portanto os im-pulsos violentos, quando adequada-mente sublimados, podem voltar-separa atos construtivos. Amor e ódiocaminham de mãos dadas, o queevidencia a grande complexidadehumana e desvela o "pano de fun-do" de toda a civilização.

Os vitorianos', ao longo do sé-culo XIX desenvolveram diferentesálibis' para a agressão, os quais le-gitimavam suas ações com apropria-das jpstificativas éticas, o que nãoimpedia o cultivo do ódio, pois "aomesmo tempo o estimulavam e con-tinham, fornecendo argumentos res-peitáveis para seu exercício e, simul-taneamente, obrigando-o a fluir den-tro de canais de aprovação cuida-dosamente demarcados". (GAY,1995, p. 43)

Um exemplo emblemático e bas-tante ilustrativo é a violência funda-mentada no chamado "culto da mas-culinidade" de que o Mensur5 é umexemplo bastante ilustrativo, pois éum exercício de agressão controla-do por regras aceitas. Aliás, todosos momentos importantes e signifi-cativos da vida, como os ritos depassagem, os intercâmbios sociais,a escolha de um par, assim como astransações comerciais, eram regu-lados e sujeitos a rituais. As ofen-sas ou injúrias eram vingadas comduelos, linchamentos e ostracismos.A masculinidade era freqüentemen-te exibida, reafirmada e procuradacomo prestígio, mesmo que para issoa vida fosse colocada em risco, ador fosse o preço necessário e adesgraça uma ameaça sempre pai-rando no ar.

Havia, contudo, no século XIXcampanhas para civilizar a masculi-

nidade, feitas pelos opositores dasmanifestações de crueldade dos due-los, a despeito da existência de fiéisdefensores da virilidade, os quaiseram favoráveis à agressividade,mesmo que isso significasse estarpróximo do limiar do antiintelec-tualismo ou mesmo da barbárie. Tan-to na familia, como na escola, no tra-balho, nas ruas, no exército ou nostribunais a agressão, era punitiva,embora muitas vezes não deixassede ser também um álibi para vingan-ças e, conseqüentemente, justifica-tiva para mais violência.

A punição, necessária para con-ter instintos exacerbados foi vitalpara a existência da civilização. Pri-meiro a vingança, depois a lei detalião: olho por olho, posteriormenteo cristianismo e as idéias iluministasdo século XVIII e, mais tarde, noséculo XIX um vislumbre de redu-ção nas crueldades aceitas. O com-portamento de uma sociedade emrelação a quem a afronta passa aser um termômetro do nível de civi-lização alcançado.

Apesar de, na época, os crimesprovocados por embriaguez e vin-gança terem sido cometidos commais freqüência pelos pobres emrelação aos mais afortunados, nasclasses médias a violência familiarera cometida contra mulheres, mes-mo quando estas estavam grávidasou logo após o parto. Estupros,fornicação com menores e incestosnão eram incomuns, assim comoexigências irracionais com serviçosdomésticos.

A prevenção ao crime, ao invésda punição, passou a ser a única al-ternativa racional de garantir a or-dem e preveni-lo. Se a punição fos-se inevitável, a imputação da dordeveria ser a menor possível. Qual-quer excesso passou a ser conside-rado tirania.

Os philosophes do séculoXVIII, como Montesquieu, Lessing,Helvétius, Voltaire, Rousseau, Kante Bentham combateram energica-

mente contra os costumes assenta-dos na manifestação da violência, natentativa de conter o ódio em nomeda razão.

O debate sobre a natureza hu-mana foi uma das heranças doIluminismo aos vitorianos do séculoXIX. Procuravam-se explicaçõesracionais sobre uma questão cruciale muiio presente: á vingança,comumente reivindicada como álibipara a agressão. Por outro lado, ha-via divergências em relação às im-plicações legais e psicológicas da-quela manifestação humana. Em1886 foi fundado os Archivésd'anthropologie Criminelle com acolaboração de médicos, juristas,professores de direito criminal emagistrados preocupados com asquestões do estado mental do réudurante o ato criminoso7. No finaldo século XVIII, era comum alegarinsanidade. Médicos eram chama-dos para atestá-la e, a partir de 1811,baseados num decreto napoleônico,os especialistas em psiquiatria ti-nham voz na determinação das res-ponsabilidades criminais.

A aceitação da incapacidadeemocional como defesa, ampliou asracionais regras M'Naghten, levan-do jurados a alegarem como inocen-te um assassino que, não desprovi-do de razão, em momentos críticosficava entregue à sua agressividade.Apesar das críticas a esta conclu-são, a sociedade tornou-se mais to-lerante e mais inclinada a aceitar asconclusões da ciência.

Atualizados com as descobertasdo funcionamento da mente, os pro-gressistas acreditavam que a heredi-tariedade não tinha poderes absolu-tos e que a família, a escola, o traba-lho, a sociedade também tinham o seupapel no destino dos homens e fa-ziam inscrições na mente humana.Este particular teve lugar importantenas idéias que permeavam a época,sobretudo porque iam na contramãodo criminalista italiano CesareLombroso" que, em 1870, concluiu erevelou que a criminalidade é inata,

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podendo ser reconhecida por carac-terísticas físicas. Seu determinismobiológico levava à conclusão de queos criminosos natos estavam além dequalquer ajuda.

Outro personagem a mencionaré o austríaco Hans Gross, promotore professor de direito criminal queganhou reputação profissional em1883, quando publicou um livro' quefoi um manual, um repertório de es-pecialidades que ia da química àbalística e sobretudo à psicologia eonde procurou entrelaçar as ciên-cias humanas ao estudo do crime edo castigo. Assim, a análise psico-lógica de desajustados e criminososganhou novo relevo.

Mas, apesar do apoio que a abo-lição da pena de morte foi ganhan-do entre pessoas com reputação res-peitável, no final da era vitoriana aforca e a guilhotina ainda eram usa-das'" . Os abolicionistas, preocupa-dos com o número de inocentes exe-cutados por engano, alegavam quea pena capital era uma espécie depatologia social e pessoal.

O açoite era outra forma de pu-nição da era vitoriana, ao mesmotempo que outra forma patológica deexpressão das necessidades agres-sivas. No ambiente familiar, era umadas formas recomendadas como ino-fensivas e indispensáveis para esta-belecer ou restaurar a autoridade epara desviar os jovens das tendên-cias perversas. Os argumentos deque "isso dói mais em mim do queem você" e que "a dor física,infligida por um professor de bomcoração, era um ato de auto-sacrifício"(GAY, 1995, p.189) eramsocialmente aceitáveis, emboraMontaigne, já no século XVI, tives-se dito que, embora os meninos de-vessem ser educados para seremfortes e vigorosos, isso não recomen-dava o uso do chicote.

A Áustria aboliu o castigo físicoem 1848, mas, já em 1852, restau-rou a pena para os reincidentes. NosEstados Unidos, por exemplo, mes-

mo com a gradativa diminuição doscastigos corporais, estes continua-ram a acontecer sistematicamenteno ambiente escolar e familiar. Alu-nos eram açoitados em decorrênciade fugas, brigas, piadas, por bebercerveja, por resistência à autorida-de, porque não conseguiam traduzirum trecho de grego, ou apenas por-que o olhar era interpretado comosuspeito. Os mais instruídos da épo-ca observavam que havia em mui-tos verdadeiro prazer em surrar, aopasso que em outros, receber açoi-tes também tinha um ingredienteprazeroso, fato que os levou, em1886, a designar tais comportamen-tos patológicos como sadismo emasoquismo" .

O século XIX, herdeiro doIluminismo, foi palco de muitastransformações de mentalidade daclasse burguesa vitoriana. Aos pou-cos, as espadas também abriraméspaço para os xingamentos, pois afala podia ser um outro tipo de arma,que evidenciava por outros meios opoder da agressividade, além do que,permitia uma contra-agressão deoutra natureza daquela historica-mente conhecida. Foi-se perceben-do não só o lado destrutivo daagressividade mas também umaperspectiva que ponderava as suasimplicações positivas' 2 e os aspec-tos da realidade psicológica esocial.

O estímulo à prática do esportefazia deste um equivalente moralpara alguns conflitos, embora osantagonismos de classe não se en-quadrassem nesta lógica, pois haviaesportes tradicionalmente direcio-nados à classe burguesa como o tê-nis, o hipismo, o remo e o pólo. Dequalquer forma, havia uma campa-nha voltada ao estabelecimento deregras'', que poderiam levar ao cul-tivo da agressão sem que se deixas-se de lado os ganhos em esforço eenergia.

O percurso evolutivo das mani-festações aceitas de agressividadesofreu mutações ao longo do século

XIX, havendo algo que chama aatenção e se constitui como umpano de fundo neste panorama deprofundas transformações da civili-zação ocidental: o chamamento darazão em face da brutalidade e dabarbárie presentes em alguns com-portamentos que beiravam o irracio-nal e a consideração do componen-te psicológico presente no homem,que poderia esclarecer atitudes decrueldade' 4 . A temperança, virtudeque impõe a reflexão sobre o dese-jo, era convocada para a substitui-ção de atitudes na vida social e fa-miliar, contrapondo apetites primiti-vos com a luz lançada pela razão.Assim, o uso da palavra em vez douso de punhais, as boas maneiras àmesa, a frequência a bibliotecas,concertos e museus e as regras deetiqueta, entre outros, moldavam umsubstrato em que o autodomínio setomou um valor que refletia uma ci-vilização que evoluía em decorrên-cia do controle das paixões pelo usoda razão.

Como conseqüência, o cultivo deum bom caráter como quase umaterceira natureza do homem, ao ladodo seu corpo e da sua alma, era ex-tremamente valorizado, tornando-seum ideal entre os ideais burgueses.O caráter, sendo o desejo moldado,fruto da herança e das influênciasambientais, tinha o autocontrolecomo elemento indispensável paraa sua formação' 5 . O homem só po-deria ser totalmente livre se tivessecontrole sobre os seus impulsos, oque o colocava num patamar supe-rior ao do animal. Os livros de auto-ajuda faziam parte da literatura daépoca e mostravam que o homempoderia se reformular. Um nívelmaior de autoconsciência, marca daépoca, indicava que o homem comauto-conhecimento tinha maior con-trole sobre si e, conseqüentemente,maior disciplina.

Os desejos não contidos faziamvítimas, tornando-se a era vitorianauma era das desordens nervosas oumesmo das neuroses, as quais eram

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geralmente diagnosticadas comoneurastenia, sendo uma ameaça àsaúde mental. Mas a vida moderna,com a superpopulação das cidades,a velocidade das comunicações e asrestrições auto-impostas levavam aum estado de nervosismo que cau-sava um grande mal-estar que osmédicos procuravam curar'6.

Freud, por volta de 1890, contri-buiu com uma discriminação dossofrimentos nervosos, colocando umpouco de ordem no quadro clínicodas genericamente chamadas"neurastenias", o que só foi possí-vel graças à sua pesquisa sobre aetiologia das neuroses. Mostrou tam-bém que a fronteira entre o normale o neurótico é tênue e porosa, de-clarando que talvez todos sejamosneuróticos'7.

A neurose, que não poupava nin-guém, manifestava-se para maisalém das classes sociais. Todos os-cilavam entre a agressão construti-va e a realidade da agressãodestrutiva. Os bons burgueses, paraa conquista da natureza, o desfruteda cultura e a melhoria da humani-dade, precisavam conter seus impul-sos, moderar seus desejos e subli-mar suas pulsões.

Para desenvolver uma culturacivilizada, em que fosse possível aconvivência, era vital para a burgue-sia do século XIX racionalizar aagressão, sujeitando-se ao autocon-trole e tendo em vista objetivos cons-trutivos. O uso de uma arma, da for-ça muscular ou da palavra ficava,pois, sob estrito controle. A civiliza-ção cobrava um preço bastante altopara garantir a sobrevivência e aconquista da natureza.

Mas, a despeito de todos os es-forços da civilização para transfor-mar e bem ordenar os impulsosagressivos do homem, vemos que ocenário de violência que assola omundo tem crescido em escala geo-métrica, provocando um profundomal-estar e um grande questio-namento dos ideais iluministas do

século XVIII, de cujo uso e frutodeveríamos hoje gozar: a autonomia,a liberdade... A razão deveria tersobrevivido à barbárie...

O mal-estar na civiliza-ção...

Hoje, no apagar das luzes do sé-culo XX, o mundo se defronta comuma série de incertezas, sustos eperplexidades quanto ao que vislum-bramos como o futuro da humani-dade.

O mundo moderno, e no dizer demuitos, pós-modemo'8, tem-nos sur-preendido com gritantes contradi-ções, num cenário que mostra asfrustrações de um projeto que pro-metia um mundo novo. Que mundonovo foi idealizado tempos atrás?

A Grécia dos séculos 3 à 2 aC,ponto de emersão do projetoiluminista'9, testemunhou a emer-gência do ideal da liberdade funda-da na autonomia do homem, a qualse embasava no conhecimento. Este,que não era um conhecimento qual-quer, mas o conhecimento racional,evoluiu da filosofia até a fundaçãoda ciência moderna no Renasci-mento, tendo como matriz a física.

A tensa bidimensionalidade darazão moderna: a razão emanei-patória, libertadora, e a razão ins-trumental, manipuladora, que temcomo pano de fundo a relação dafilosofia com a ciência moderna, écenário da destruição da feudalidadepela burguesia revolucionária, a qualinstaura uma socialidade nova, as-sentada no modo de produção capi-talista que tem como característicauma generalizada e universalizanteinstrumentalização e só se mantématravés dela, pois tudo é meio, ins-trumento para a valorização e acu-mulação do capital. Tudo émediatizado pelo dinheiro. Nessecontexto é muito complexa a incor-poração da razão emancipatória pelaburguesia. Esta abre mão de seusideais, redimensionando-os em favor

de seus interesses. Assim, só incor-pora do projeto Ilustrado a dimen-são instrumental.

A ciência moderna afasta-secada vez mais da elaboração filosó-fica que conservava a dimensãoemancipadora e fundar-se-á a simesma buscando filosofias específi-cas2" . Há, pois, uma cientificizaçãodo pensamento na ótica dainstrumentalização.

A ordem burguesa que instru-mentaliza tudo: a natureza, assimcomo os homens, conflita seus inte-resses com o seu ideário, ou seja, comas dimensões emancipadoras do pro-jeto da modernidade, descompro-metendo-se com este projeto. A ciên-cia passa a ser compreendida comoa possibilitadora de respostas para osproblemas do homem e, quem sabe,para a sua ânsia de ser feliz. Este é opanorama a partir da segunda meta-de do século XIX.

Olhando para trás, vemos que ahistoria das civilizações, sobretudo nomundo ocidental, testemunha umagrande mudança de costumes, mo-dos de vida, valores morais e éticosque foram se desenhando ao longodos tempos e tiveram como pano defundo as lutas do homem para o do-mínio da natureza, a crítica da reli-gião, a experiência dessacralizantefruto da defesa da razão, os embatesideológicos e o crescente desenvol-vimento da ciência.

O movimento de descristia-nização, no bojo de uma revoluçãode ideologia anti-religiosa dos filóso-fos do século XVIII, rechaça os he-róis deificados e entroniza a razãoque se opunha a todo universo religio-so da época. A defesa intransigenteda razão estende-se do domínio dafilosofia à ciência, para a qual a hipó-tese da existência de Deus, por nãoser verificável empiricamente, é to-talmente desprovida de sentido.

A razão, valor primeiro doIluminismo como projeto civilizatórioda modernidade, projeta-se nosideais da universalidade, individuali-

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dade e autonomia com a propostada quebra de barreiras entre os in-divíduos, a atribuição de valor éticoà sua crescente individualização e opensar autônomo, sem a tutela dareligião ou da ideologia.

O que vemos, contudo, neste fi-nal de século? O universalismo so-lapado pelo evolucionismo, pelo ra-cismo, pela xenofobia e a crescenteproliferação dos particularismos; aindividualidade, obscurecida no ano-nimato do conformismo e da socie-dade de consumo e a autonomiaaviltada pelo reencantamento domundo em que os duendes, os ma-pas astrais, as cartas de tarot, oscristais, liberam o homem do privi-légio da modernidade: o de pensar eagir por si mesmo.

A recusa dos princípios e valo-res civilizatórios da modernidademostra que não é paradoxal que nes-te final de século ainda testemunhe-mos guerras, catástrofes, violênciasem diferentes matizes, que fazemparte do nosso cotidiano, e vemoscom espanto, a sua banalização enaturalização. É a razão cedendolugar para a barbárie.

A civilização teria então fracas-sado? Teria o homem frustrado o seuintuito de dominar racionalmente anatureza e de operar uma relaçãoracional com outros homens? Essaera a promessa!

Ao contrário, parece que a ra-zão foi utilizada exacerbadamente,pois nada é mais racional do que aexploração do mundo atômico, nadaé mais racional do que a experimen-tação acerca da fissão nuclear. E aspesquisas com o código genéticohumano? E a poluição dos nossos jáescassos recursos hídricos? E o bu-raco na camada de ozônio? EIroshima e Nagasaki? Existe algomais racional do que a tecnologia, arobótica e a informática?

Lamentavelmente as criaçõeshumanas para a conquista da natu-reza e para a produção de riquezas,muitas vezes, não resistem aos im-

pulsos hostis dos homens, e a ciên-cia e a tecnologia que as construí-ram também podem ser utilizadaspara a sua aniquilação (FREUD,1996a, p.6).

A verdade é que o avanço daciência, com toda a sua raciona-lidade, não nos tomou mais felizes.

Afinal, o que o homem fez coma autonomia e com a liberdade de-fendidas com as lutas da luz contraas trevas? A deusa Razão, entro-nizada como testemunho dodesiderato da Revolução Francese ,estaria sucumbindo ante o irracio-nal, as visões fragmentadas, aofugidio e ao efêmero?

Antes que uma visão ingênua deum lado, enalteça o racionalismocomo uma resposta certa para to-dos os problemas do homem moder-no ou, por outro lado, defenda oirracionalismo como justificativa emface da falência das visõestotalizadoras para a compreensão domundo neste final de século, é perti-nente não perder de vista que, muitomais do que uma derrota da razão naequação das questões aqui - coloca-das, está em pauta um jogo de inte-resses político-econômicos num es-paço histórico-social concreto. O usoda energia nuclear para curar pesso-as, para iluminar casas ou para finsbélicos não é decidido pela razão, masé resultado do interesse das grandescorporações transnacionais. O pro-blema não está na racionalidade, estána ordem social.

Haveria dum caminho do meio?Talvez a quéstão não esteja no meiotermo, mas sim em lançar um olharpara um foco outro, que evidencieos labirintos e os meandros quepermeiam as questões da razão,desmistificando-a.

Freud bem diz que, embora ahumanidade tenha realizado avançosno controle sobre a natureza, não épossível visualizar progresso seme-lhante no trato dos assuntos huma-nos, pois estão presentes no homemtendências destrutivas, anti-sociais e

anti-culturais suficientemente fortespara determinar o comportamentodelas . na sociedade humana.(FREUD,1996b, p.7)

Com este argumento, Freud vaialém das interpretações em cursosobre a civilização, as quais aponta-vam para o controle da natureza,como intuito de adquirir riqueza, e asua adequada distribuição, para eli-minar os perigos que a ameaçam.A ênfase desloca-se para o fato psi-cológico como sendo de importân-cia decisiva para o seu julgamentosobre a civilização humana. Assim,é alterada a ênfase do material parao mental, do econômico para o psi-cológico.

Isso significa que somos todos vio-lentos? Ou a violência é resquício dabarbárie que julgamos remota e quesó corre nas veias de uma camadada população excluída, que os pre-conceitos associam com o baixo ní-vel de escolaridade, a cor negra, amiséria ? Não há dúvida que as clas-ses sub-privilegiadas invejem os pri-vilégios de outras classes e os des-contentamentos levem ao aumento dahostilidade contra a cultura de cujariqueza não podem usufruir.

A pulsão, inerente ao homem, "éuma luta obstinada, contínua einexorável que o leva a procurar paze repouso, não importa por qualmeio, sob qualquer forma..."(RECHARDT, 1988, p.48). Nãotem, pois, a finalidade de obter pra-zer, mas de reencontrar o estado deapaziguamento anterior.

É claro que frustrações de váriasordens dominam o campo dos rela-cionamentos sociais entre os homens,provocando a hostilidade contra a qualtodas as civilizações têm que lutar.Seria primário, contudo, pensar quesó uma classe ou segmento da popu-lação é violento. Há aí algo que me-rece ser elucidado.

Será que é possível amar o pró-ximo como a nós mesmos? O quefaz o sujeito com a quota deagressividade que lhe é inerente? O

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próximo não é só um ajudante empotencial ou um objeto sexual, mastambém alguém através de quem setenta satisfazer a agressividade, ex-plorar a sua capacidade de trabalhosem compensação, utilizá-lo sexual-mente sem o seu consentimento,apoderar-se de suas posses,humilhá-lo, causar-lhe sofrimento,torturá-lo e matá-lo, seja como fru-to de alguma provocação ou a ser-viço de algum intuito. (FREUD,1996c, p.108)

É possível, pois, pensar somenteem termos racionais, quandoestamos frente a questões que en-volvem a violência? Como não ma-tar o próximo que se odeia?

Parece que pelas vias da razãonão é possível chegar a uma respostasem que ela pareça descabida ouparadoxal. A razão se defronta aquicom um limite intransponível, em queconcluir pelo inexplicável é a únicaexplicação.

O próprio Freud, cuja obra foiiniciada no século XIX, teve, algu-mas vezes, expectativas de obter oreconhecimento da ciência. Mas,procurar explicações causais para oaparentemente irracional, absurdo esem sentido, não leva uma pesquisaa bom termo pois só há causalidadeestrutural do desejo.

O que Freud descobriu é que háum outro sujeito por detrás do que éracional e consciente: o sujeito doinconsciente, que opera com umaoutra lógica, que é submetido a ou-tras leis que não as da razão. Umsujeito em quem encontramos con-tradições que são apenas aparentes;e seus sonhos, chistes, atos falhos esintomas são prenhes de significadoe podem ser explicados a partir dasua história.

A verdade do inconsciente nãopode ser encontrada pela ciênciapositiva, porque é um sem-sentido,é um indizível que só pode ser de-tectado pela inferência. É a presen-ça de uma ausência.

Esta descoberta permite aFreud, um contemporâneo da ida-de moderna, operar uma inflexãodo conceito de razão, uma vez quecomprova que "el yo no es el amoen su propia casa" (FREUD: 1996,p.135 ) e que a autonomia e a inde-pendência da razão são uma ilusão.

Sua descoberta tem, no âmbitodos estudos relativos ao homem, ovalor de uma revolução coperni-cana.

A ferida narcísica operada a par-tir da descoberta do descentra-mento do sujeito desnuda a pretensasuperioridade do homem moderno.Queiramos ou não, o homem é su-jeitado pelo inconsciente e, queren-do ou não, ele paga por este desti-no inexorável.

Há comportamentos e atitudesque fogem à sua razão e desobri-gam a consciência de uma pretensaresponsabilidade. Por mais enigmá-ticas, incompreensíveis, constran-gedoras e indesejáveis que sejamas experiências subjetivas de umsujeito, ele está irremediavelmentenelas implicado e é por elas etica-mente responsável.

Freud mostra que não é o con-trole da natureza que vai dar ao ho-mem o consolo em face do seu de-samparo, tampouco é possível umacivilização de obsessivos para ga-rantir a ordem e a boa convivênciasocial.

Os monstros, que no dizer deGoya são produzidos pelo sono darazão, também o são quando a ra-zão está desperta, porque um in-consciente selvagem está sempreprocurando o momento mais opor-tuno para se manifestar, mesmo quea razão não o queira.

Estamos, portanto, largados ànossa própria sorte e é irremediá-vel o nosso desamparo!

Considerações finais...

A história da violência retratadaaqui mostra que, a despeito de to-das as diferenças de raça, etnia, re-ligião, escolaridade e nível social, ohomem sempre conviveu com o con-trole ou não de seus impulsos agres-sivos. O "que em nós mente, matae rouba", como dizia Georg Büchner,no século XIX, não é, entretanto,fruto do sobrenatural mas, com cer-teza, algo encarnado e muito própriodo homem. A vida com o seu seme-lhante, o qual também tem suasidiossincrasias, pulsões e desejos,trouxe desdobramentos peculiarespara cada época histórica, moldan-do e dando contornos próprios aosdiversos momentos da civilização.

O recurso à história tem-nosmostrado que o avanço da ciência eda tecnologia, embora tenha trazidoimensos benefícios ao homem, me-lhorando a sua qualidade de vida elongevidade, não tem sido suficien-te para garantir a sua felicidade. Oprojeto iluminista que procurava ocontrole da natureza como um doscaminhos para dar liberdade e auto-nomia ao homem, tem-se defrOnta-do ao longo dos séculos com onarcisismo, o egoísmo, o orgulho, aganância, a competitividade, a sedede poder dos chamados "animaisracionais". A razão, lamentavelmen-te, não é garantia para os bons pro-pósitos, assim como tem falhado nocontrole efetivo da agressividade.

Há que se reconhecer que o ho-mem fez alguns progressos ao lon-go do tempo, desviando parte dasagressões físicas para formas maissutis de violência, embora igualmenteou até mais destruidoras, porque pro-vocam ressonâncias de outra ordem.Séculos atrás, as manifestaçõeseram explícitas e impossíveis de es-camotear, pois eram visíveis, deixan-do as suas marcas expostas. A re-pressão, contudo, não tem sido sufi-ciente para aplacar os impulsos epulsões. O que vemos, muitas ve-zes, é um "refinamento" das formas

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de manifestação da agressividade,em que a razão é usada não pararefreá-la, mas para elaborar umalógica, muitas vezes sofista, que vaiescamotear as intenções ocultas egarantir uma justificativa arquiteta-da para defender as ações e os ges-tos menos nobres.

Do extremo das situações deguerra, em que o amor ao própriopaís justifica o ódio ao inimigo, jus-tapondo a libido e a agressão, até amorte do inimigo através de palavras,mesmo que as trincheiras estejam aquilômetros de distância, vemos umdesvelar de motivos para a agres-são que nem sempre são da ordemdo consciente. Há motivos de natu-reza inconsciente que podem escla-recer muitos atos humanos. Essaconclusão, que só é possível com osrecursos dos aportes psicanalíticos,em momento algum pode levar aconcluir que os crimes e toda sortede violências são, por si só, justifi-cáveis porque o ser humano é ummisto de consciente e inconsciente.Há aí uma questão que, antes detudo, envolve dimensões éticasinquestionáveis, e que está sujeita àsdeterminações de ordem jurídico-sociais próprias de cada tempo, cul-tura e do momento civilizatório vivi-do. Freud, conhecido por seu extre-mo senso crítico, erri momento al-gum insinuou que alguém devesseter a liberdade interior transforma-da em licença para condutas agres-sivas sem inibições.

A inequívoca complexidade dohomem nos mostra, a cada momen-to, quão grandes são os paradoxose as ambigüidades que o envolvem.Ao longo destes últimos séculos,pode ser observado o inquestionávelesforço pela garantia da civilização,embora, por vezes, vejamos umahipertrofia da violência catalisadapor diferentes razões de ordem so-cial. No entanto, "considerando anatureza problemática do ego huma-no, sempre ameaçado por uma guer-ra civil interna, teria sido utópicoesperar mais". (GAY, 1995, p.528)

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Notas:

1 Outras palavras como "agressão","maus-tratos", "agressividade" sãosignificantes que expressam as mes-mas idéias que o termo "violência"quer traduzir. Ao longo do tempo,os significantes vão mudando, em-bora haja poucas alterações no seusignificado. O fenômeno vai apenasse atualizando e moldando os con-tornos em face de determinaçõeshistóricas, culturais, sociais etc.

2 Darwin publicou a Origem das Es-pécies em 1859 que põe por terra avisão criacionista da vida. É impor-.tante considerar os desdobramen-tos da teoria da "sobrevivência dosmais fortes". ParaSpencer, vale lem-brar que a sociedade era um orga-nismo, uma rede integrada de insti-tuições em perpétuo movimento nadireção de uma diferenciação sem-

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pre maior e o agente que levava àmudança era a seleção natural, quegarantia a sobrevivência do maisapto.

3 O reinado da Rainha Vitória deu-seno período I 837-1901.

4 Para aprofundar o assunto epesquisar com maior detalhamentosobre o cultivo do ódio, consultar aobra de Peter Gay já referenciadaneste artigo.

5 O Mensur era um duelo praticadopor fraternidades de jovens estu-dantes alemães, sobretudo no sécu-lo XIX, em que a luta era uma mani-festação inequívoca do prazer quese poderia obter com os atos agres-sivos, além de ser considerado ex-tremamente útil na construção docaráter, pois ensinava os jovens aterem frieza e coragem. A conse-qüência dos duelos eram feias cica-trizes no rosto dos duelistas, asquais eram sinônimo de orgulho,honra, coragem e masculinidade.Entrar num duelo tinha um objetivoclaro: sair da universidade com tan-tas cicatrizes quanto possível. Nãosó na Alemanha, mas em outros pa-íses, como a França e os EstadosUnidos, também havia duelos.

6 Importa salientar que, a despeito dosopositores das manifestações devingança, alguns pensadores comoJames Fitzjames Stephen, Moreau-Christophe, entre outros, defendiama retribuição como essencial. Kant,embora tenha proposto um planopara a paz mundial, eravigorosamente favorável à retribui-ção, certamente assentado nos prin-cípios da sua doutrina moral cate-górica.

7 Os juízes ingleses baseavam-se naspolêmicas regras M'Naghten, asquais criaram uma jurisprudênciamoderna acerca da natureza huma-na inicialmente proposta por Platão:a mente era vista como um sistemavulnerável de paixões sujeitas a con-troles racionais que muitas vezes sedesfaziam, possibilitando qud im-pulsos destrutivos governassem ocomportamento. Estas regras defi-niam a insanidade como a incapaci-dade de distinguir o certo do erra-do, levando à perda da razão.

8 Lombroso, fiel aos seus compromis-sos científicos teve defensores

como Havelock Ellis e HippolyteTaine mas também fervorososopositores como o sociólogo ÉmileDurkheim, o psicólogo social GabrielTarde e o psiquiatra alemão PaulNãcke.

9 Trata-se do Handbuch fiirUntersuchungsrichter

10 Em 1874, por exemplo, a Suíça abo-liu a pena capital mas, em razão deum surto de assassinatos e de pro-testos, ela foi reintroduzida em setedos vinte e dois cantões do país. ARomênia e a Venezuela aboliram apena de morte em 1864; Portugal em1867; os Países Baixos em 1870 e aItália em 1880.

11 Os termos sadismo e masoquismosão invocados em nome de dois es-critores: o marquês de Sade eLeopold von Sacher-Masoch respec-tivamente, conhecidos por seus com-portamentos característicos. Paraaprofundar o assunto consultar o tra-balho de 1905 de Freud "Três ensai-os sobre a teoria da sexualidade",volume VII das "Obras PsicológicasCompletas de Sigmund Freud," pu-blicado no Brasil pela Imago Editora,em que o autor discorre sobre dife-rentes aberrações sexuais, incluindoas patologias citadas.

12 Embora o termo agressão tenha aconotação de uma força destrutiva,pode também ser vista como uma for-ça necessária para a ação, para a defe-sa de uma causa, ou o desempenhocompetente de uma tarefa. Uma agres-são disciplinada e determinada trans-forma e faz história. Um raciocínio queaponta para outra direção, reflete so-bre a violência "construtiva", comouma expressão da fundação social emoposição à violência "destrutiva" queseria uma manifestação da afirmaçãoindividual. Para aprofundar este últi-mo aspecto mencionado, consultar aobra "Dinâmica da violência" deMichel Maffesoli, referenciada na bi-bliografia.

13 O boxe pode ser citado como umexemplo. Cultivado desde o SéculoXVIII, a partir de 1740 não pode maisser realizado sem a obediência a al-gumas regras que vetavam os chu-tes no adversário, bater quando esteestivesse caído ou desferir golpesabaixo da cintura. Ao longo do tem-po, as regras foram revisadas e, a

partir de 1866, foram adotadas am-plamente.

14 É importante lembrar que Freud (1856- 1939), nascido na segunda metadedo século, foi sujeito desta épocahistórica. É neste caldo cultural queo "Pai da Psicanálise" desenvolveuseus estudos sobre o funcionamen-to da mente humana.

15 Entendia-se que o ser humano eraagressivo e egoísta por natureza,sendo a beleza moral apenas umapromessa que a educação poderiaproduzir através do autocontróle e,assim, suprimir as suas inclinaçõesperversas. Conseqüentemente, osprazeres não deveriam ter lugar pri-vilegiado na vida das crianças paraque a educação atingisse os Objeti-vos de formação do caráter; A re-pressão, pois, era de capital !impor-tância para a civilização. Fitud, jáno final da sua extensa obra, falasobre a coerção e a repressão daspulsões como ingredientes funda-mentais da civilização. É interessan-te a leitura de "O futuro de uma ilu-são" (1927) e "Mal estar na civili-zação" (1930) no volume XXI dassuas Obras Psicológicas Comple-tas... da Imago Editora.

16 A experiência psicanalítica de Freuddeixa inequívoca a influência da pró-pria pessoa, da sua família, da clas-se a que pertencia, do gênero, e dafiliação religiosa na gênese das neu-roses. A cultura urbana e industrial,a convivência e o confronto com odesejo de outros semelhantes nãotornava a vida nada fácil. O preçoda modernidade era uma geração dehomens e mulheres extremamentenervosa. Freud, contudo, foi maisalém dos diagnósticos médicos, queatribuíam os sintomas às causassociais e urbanas, pois descobriu aorigem das neuroses em questõesque envolviam a sexualidade.

17 volume III (1893-1899) das ObrasPsicológicas Completas... Freudapresenta vários trabalhos sobre aetiologia das neuroses, incluindo aíum trabalho sobre a neurasteniacomo uma neurose de angústia.

18 Não há consenso a respeito do fimda modernidade. Embora haja umchamado movimento pós-modernoque se manifesta por uma rejeiçãoàs metanarrativas, há também, por

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outro lado, acirrados críticos dasvisões fragmentadas, ao fugidio eao efêmero, características da pós-modernidade. Vale lembrar que paraHabermas "a modernidade aindatem promessas a cumprir". Há umaextensa bibliografia a respeito destapolêmica, sendo importante as lei-turas das obras de David Harvey eAlain Touraine citadas na bibliogra-fia deste artigo. O livro de Jean-François Lyotard: "O pós-modernoexplicado às crianças" é outra fon-te crítica sobre o assunto, embora,ao contrário do que o título possatransmitir, exija do leitor uma boa lei-tura e familiaridade com a temática.

19 O Iluminismo, reconhecidamente ca-racterístico do século XVIII, é umprojeto de natureza trans-históricaque, na verdade, atravessa épocashistóricas distintas e tem caracterís-ticas específicas que se concretiza-ram segundo os períodos determi-nados.

20 A fundação do conhecimento racio-nal coube à filosofia enquanto refle-xão radical sobre o ser. Para os gre-gos, o conhecimento racional era afilosofia, a qual era uma grandecosmovisão que continha o que de-pois se automatiza dela como as ci-ências da natureza. As ciências fo-ram o marco da ordem burguesa epassaram a empreender a sua auto-fundação, buscando não mais a re-flexão filosófica mais ampla mas afilosofia da ciência e, no interior des-ta, filosofias específicas.

21 Nesta passagem referimo-nos às fes-tas da razão. A primeira foi realizadaem Paris em 10/08/1793 na praça daBastilha onde foi erguida uma está-tua da deusa Razão. A segunda, em10/11/1793, foi realizada na Catedralde Notre-Dame, rebatizada de Tem-plo da Razão e protagonizada poruma atriz vestida de branco e ummanto azul: a deusa Razão. Um corocantava o "Hino à Liberdade". Esteculto foi implantado em outras igre-jas de Paris e depois foi difundidopor toda a França. Em relação aoassunto é importante ler o interes-sante trabalho de Sergio PauloRouanet, "A Deusa Razão", citadona bibliografia.

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