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Estudos Feministas, Florianópolis, 21(1): 424, janeiro-abril/2013 211 Copyright ã 2013 by Revista Estudos Feministas 1 CONNELL, 2007. 2 A entrevista contou com a participação de Miriam Grossi. Uma trajetória pessoal e Uma trajetória pessoal e Uma trajetória pessoal e Uma trajetória pessoal e Uma trajetória pessoal e acadêmica: acadêmica: acadêmica: acadêmica: acadêmica: entrevista com Raewyn entrevista com Raewyn entrevista com Raewyn entrevista com Raewyn entrevista com Raewyn Connell Connell Connell Connell Connell Ponto de Vista onto de Vista onto de Vista onto de Vista onto de Vista Durante o 35º Encontro Anual da ANPOCS (outubro de 2011), Raewyn Connell, citada por muitos como o maior nome da sociologia australiana contemporânea, proferiu a palestra “The Coming Revolution in Social Theory”, argumentando em prol de des-centramento que permita aos países do sul e das “periferias” tomar seu devido lugar no centro da produção intelectual global (de fato, o tema do seu livro Southern Theory: The Global Dynamics of Knowledge in Social Science). 1 Muito reconhecida por seu trabalho pioneiro nos campos de estudos de gênero e estudos da masculinidade, ela generosamente aceitou conversar conosco, no hotel Glória, no espaço agora nostálgico da “piscina”, lugar de tantos encontros e conversas quando os congressos da ANPOCS se realizavam em Caxambu. Raewyn falou sobre sua trajetória intelectual e pessoal, contextualizando sua obra e destacando questões como sua relação com o feminismo e os estudos de gênero, e mesmo de que maneira o acadêmico, o pessoal e o político se juntam na sua história singular como pessoa transgênero. 2 Miriam Adelman Universidade Federal do Paraná Carmen Rial Universidade Federal de Santa Catarina

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Copyright ã 2013 by Revista Estudos Feministas1 CONNELL, 2007.2 A entrevista contou com a participação de Miriam Grossi.

Uma trajetória pessoal eUma trajetória pessoal eUma trajetória pessoal eUma trajetória pessoal eUma trajetória pessoal eacadêmica:acadêmica:acadêmica:acadêmica:acadêmica:

entrevista com Raewyn entrevista com Raewyn entrevista com Raewyn entrevista com Raewyn entrevista com RaewynConnellConnellConnellConnellConnell

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Durante o 35º Encontro Anual da ANPOCS (outubro de2011), Raewyn Connell, citada por muitos como o maior nomeda sociologia australiana contemporânea, proferiu a palestra“The Coming Revolution in Social Theory”, argumentando emprol de des-centramento que permita aos países do sul e das“periferias” tomar seu devido lugar no centro da produçãointelectual global (de fato, o tema do seu livro Southern Theory:The Global Dynamics of Knowledge in Social Science).1 Muitoreconhecida por seu trabalho pioneiro nos campos de estudosde gênero e estudos da masculinidade, ela generosamenteaceitou conversar conosco, no hotel Glória, no espaço agoranostálgico da “piscina”, lugar de tantos encontros e conversasquando os congressos da ANPOCS se realizavam em Caxambu.Raewyn falou sobre sua trajetória intelectual e pessoal,contextualizando sua obra e destacando questões como suarelação com o feminismo e os estudos de gênero, e mesmo deque maneira o acadêmico, o pessoal e o político se juntam nasua história singular como pessoa transgênero.2

Miriam AdelmanUniversidade Federal do Paraná

Carmen RialUniversidade Federal de Santa Catarina

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Miriam Adelman (MA):Miriam Adelman (MA):Miriam Adelman (MA):Miriam Adelman (MA):Miriam Adelman (MA): Fale um pouco sobre o seu passado.Raewyn Connell (RC):Raewyn Connell (RC):Raewyn Connell (RC):Raewyn Connell (RC):Raewyn Connell (RC): Sou australiana – o que faz toda adiferença! Na verdade, é fundamental nesta história. A Austráliaé um país rico, localizado no extremo sul. O nome, “Austrália”,significa “terra do sul” – e só recentemente me dei conta dequanto isso é importante.

Sou filha do pós-guerra. Pertenço a uma geração que setornou adulta nos anos 1960, portanto, minha formação políticase deu na Nova Esquerda daquela época. Eu participei doMovimento para a Paz no Vietnã – contra a guerra colonial –,onde a Austrália lutou ao lado do regime norte-americanonaquele país. Fiz o meu PhD na Austrália, fui a primeira de meuDepartamento a graduar-se com PhD. Nessa época, a Austráliacomeçava a desenvolver uma capacidade de pesquisa e,portanto, a possibilidade real de se tornar independenteintelectualmente. Até então éramos só um país colonial,culturalmente falando. Dependente, especialmente, da Grã-Bretanha. O meu trabalho como cientista social de fatocomeçou no contexto do ativismo. No ativismo para a paz, nomovimento trabalhista e depois, obviamente, no movimentofeminista que desabrochou no final dos anos 60. Nessa épocaeu ainda vivia como homem, de modo que não participava doMovimento de Liberação Feminina. Mas minha companheiraparticipava, e ela também é importante nesta história. PamBenton e eu nos tornamos um casal em 1968. Vivemos juntaspor 29 anos, até ela morrer de câncer de mama. Era umafeminista muito ativa. Não uma feminista acadêmica, masativista, envolvida com o trabalho da saúde da mulher. Ela foiuma das fundadoras de um centro de saúde para mulheres.Trabalhava com psicologia feminista, com mulheres imigrantese idosas. Seu último compromisso político, antes de morrer, foi amontagem de uma rede de mulheres idosas na Austrália.

Então, eu estava intimamente ligada ao movimento dasmulheres, embora não participasse pessoalmente. Era umaposição meio estranha, mas teve sua importância, porque mefacilitou criar relações profissionais com as feministas, o Women’sStudies, e com a sociologia e psicologia feministas que surgiramna Austrália durante a década de 1970. Eu participava detudo isso porque fui promovida muito cedo, tornando-me chefede departamento, uma Professora (o que os norte-americanoschamam de full professor ou professor pleno) muito cedo.

Eu criei o Departamento de Sociologia da MacquarieUniversity em Sidney. Por isso eu podia contar com alguns recursos.Procuramos dirigir o Departamento coletivamente e tomamos adecisão de investir um volume significativo de recursos nacriação de uma área de ensino e pesquisa sobre gênero esexualidade. O nosso Departamento foi talvez o primeiro centroacadêmico da Austrália que teve esse tipo de programa voltadopara a teoria feminista, a sexualidade, os estudos gays e outros

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– além de programas interdisciplinares do Women’s Studies queforam criados na mesma época (e que já existiam na nossauniversidade).

Isso me levou, lecionando ou pesquisando, a trabalharcom a teoria feminista e as teorias de gênero. Esse trabalhoproduziu um livro que nunca saiu da Austrália, mas que foi omeu primeiro livro sobre teoria social, chamado, infelizmente[risadas], Which Way is Up? [mais risadas]. E mais tarde o meulivro Gender and Power, publicado em 1987, que circulouinternacionalmente.

MA:MA:MA:MA:MA: Do que tratam os livros? Se puder resumi-los...RC:RC:RC:RC:RC: Bem, apesar do título ruim, Which Way is Up? foi umatentativa de trazer a teoria social da Austrália para o mundoreal, parar de falar de Talcott Parsons e companhia, e começara falar de Freud e Sartre, de feminismo, educação e igualdade,e de globalização em seus estágios iniciais. Esse tipo de coisa.Então o livro era orientado para a teoria social europeia, quehoje critico, mas considero um exercício de teoria crítica em umcontexto australiano.

MA:MA:MA:MA:MA: Suponho que tenha sido um livro importante no contextoaustraliano, pelo que se disse sobre ele.RC:RC:RC:RC:RC: Eu não diria isso, mas outros poderiam dizer que sim ou quenão.

MAMAMAMAMA::::: Você não está sendo modesta?RC:RC:RC:RC:RC: É claro que estou! Fui educada na Igreja Anglicana [risada],onde a arrogância é o maior pecado. A modéstia é uma grandevirtude na cultura em que nasci. Vangloriar-se é o que há depior a se fazer.

Mas, enfim, foi daí que veio Gender and Power, em largamedida uma tentativa de aproximar a experiência australianada teoria europeia e norte-americana, mas também desistematizar uma teoria social de gênero. E aconteceu nummomento interessante – o livro foi publicado em 1987. Tínhamosentão Gayle Rubin e Heidi Hartman, os debates feministas-marxistas, Christine Delphy na França, e as várias teorias dopatriarcado. Dentre todas as teorias de gênero que noschegavam do Norte, a que mais me impressionava era a deJuliet Mitchell. Não sei se ela foi muito traduzida.

Miriam Grossi (MG):Miriam Grossi (MG):Miriam Grossi (MG):Miriam Grossi (MG):Miriam Grossi (MG): Sim, Juliet Mitchell. Foi um dos primeiroslivros sobre estudos de gênero. A Brasiliense publicou-o nadécada de 1980.RC:RC:RC:RC:RC: Fui muito influenciada por ela. Eu tentei assumir umaperspectiva similar e torná-la mais abrangente, mais sistemáticae mais histórica. Ao mesmo tempo eu trabalhava em Sociologiacomo cientista social empírica e fazia trabalho de campo com

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um grupo de pesquisadores. Grande parte de minha pesquisafoi colaborativa. Mesmo que eu tenha feito sozinha a maiorparte do trabalho teórico, o trabalho de campo foi colaborativo.Desenvolvemos um grande projeto sobre igualdade nas escolassecundárias australianas. Entrevistamos pais, alunos e professoresem escolas da classe alta e escolas da classe operária – meninose meninas, mães e pais. Foi um projeto maravilhoso. Que produziuum livro chamado Making the Difference, que foi bastanteinfluente na Austrália. Estou certa disso! Não circulou muito forada Austrália, mas foi traduzido e publicado no Brasil (Estabele-cendo a Diferença: Escolas, Famílias e Divisão Social).3

Mantive contato com alguns educadores progressistasde Porto Alegre, que publicaram alguns de meus trabalhos,inclusive alguns trabalhos antigos sobre masculinidade, narevista Educação e Realidade.4

Carmen Rial (CR):Carmen Rial (CR):Carmen Rial (CR):Carmen Rial (CR):Carmen Rial (CR): Poderíamos falar um pouco mais dessetrabalho sobre masculinidade, de grande impacto no Brasil?RC:RC:RC:RC:RC: Claro. Foi muito importante esse contato com o pessoal doGay Liberation. Alguns alunos e amigos meus eramparticipantes ativos do Gay Liberation. Todos eles homens. Eutambém convivia com as lésbicas, mas elas tendiam mais parao movimento feminista do que para o movimento gay. Issotambém aconteceu na Austrália. Portanto, eu estava por dentroda crítica gay aos homens heterossexuais.

No início da década de 1980 eu consegui ganhar umaverba de pesquisa para trabalhar com teoria social de gênero.Era a primeira verba de pesquisa para teoria que o Conselhode Pesquisa Australiano concedia! Isso foi um grande avanço.Pude contratar como pesquisadores associados dois ativistas eteóricos gays que dividiram o trabalho, porque havia apenasum trabalho a ser feito. Eles se organizaram e trabalharam emconjunto. Eram John Lee e Tim Carrigan.

Começamos a trabalhar na minha agenda maior paraa análise social de gênero, e descobrimos que o ponto em queo ativismo deles e a teoria da homossexualidade e daheterossexualidade se conectavam com a minha agenda detrabalho feminista e minha pesquisa empírica nas escolas, oponto de intersecção era a masculinidade.

Do ponto de vista feminino, achei que estudar amasculinidade era estudar a estrutura de poder. Como eu vinhada Nova Esquerda, cujo objeto de estudo era a estrutura depoder, foi uma transição fácil para mim. Estudei os detentoresdo poder, os grupos privilegiados, para entender o sistema degênero e a ordem de gênero.

Isso era diferente do que as estudiosas feministas estavamfazendo, porque a maioria delas estava engajada – na Austrália– no projeto do Women’s Studies. Ou seja, criticando o mundoacadêmico por serem estudos de homens, criticando a

3 CONNELL, ASLENDEN, KESSLER eDOWSETT, 1995.

4 CONNELL, 1990; 1992; 1995a;1995b.

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ausência de mulheres. Propunham estudar história das mulheres,psicologia feminina, antropologia feminina. Não há dúvida deque era o que deveria ser feito! Mas ainda faltava algumacoisa.

Nós começamos a preencher esse vazio, tentandocombinar teoria gay, teoria feminista, um pouco de psicanálise,e uma teoria estrutural de gênero. Daí surgiu o trabalho sobremasculinidade. Meu primeiro artigo sobre homens emasculinidade foi publicado em 1982 em um livro teórico doPartido Trabalhista, porque eu era um ativista do partido, e domovimento sindical, e escrevi um artigo chamado “Men andSocialism” (em referência ao livro de August Bebel, Women andSocialism). Mas o trabalho teórico só foi publicado um poucomais tarde. Tim Carrigan, John Lee e eu escrevemos um artigomuito longo em 1983 que foi apresentado a uma publicaçãoaustraliana e não aprovado. Então pensamos, vamos botarpra quebrar: vamos enviar o artigo a uma importantepublicação norte-americana e conseguir exposição mundial.Para nosso espanto, eles aceitaram. Foi assim que o artigo“Toward a New Sociology of Masculinity” apareceu.Foi graças a essa decisão que o trabalho tornou-se visívelinternacionalmente. Para mim, foi uma lição de como explorara predominância do Norte na vida intelectual, assunto sobre oque falei na conferência da ANPOCS. Mas isso tem umaexplicação! Se você publica alguma coisa em uma importantepublicação norte-americana, será lido na América Latina, naÁfrica, na Europa.

Então, eu tinha a teoria da masculinidade, mas nãotinha dados. E, como cientista social empírico, eu fiqueiconstrangido de dar qualquer declaração sem ter os dados. Epensei, “Tudo bem, vamos colher alguns dados”. Eu mecandidatei a outro edital de pesquisa para fazer um estudoempírico da construção das masculinidades e consegui osrecursos.

A primeira coisa que aconteceu foi que o apoio foicriticado no Parlamento Nacional como desperdício de recursospúblicos! Políticos da direita atacaram esse apoio em particularcomo uso impróprio de dinheiro público [risadas]. Engraçado,não? Mas não me preocupei, mas sim preocupou a agênciadoadora durante um tempo.

Seja como for, o projeto resultou no estudo da história devida das masculinidades, que comecei a publicar em artigosindividuais em 1990-91. E acabou se transformando no temacentral do livro Masculinities. Usei o método de história de vidaque já tinha usado no estudo das escolas.

Ah, esqueci de dizer que o estudo das escolas tambémproduziu um segundo livro, intitulado Teacher’s Work. É umestudo sobre o processo do trabalho de ensinar, a carreira doprofessor e sua trajetória de vida. Esse trabalho também gerou

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muito material de gênero, porque na Austrália ensinar é umaocupação muito generificada.

MA:MA:MA:MA:MA: Aqui também, e provavelmente em toda parte.RC:RC:RC:RC:RC: Em muitas partes do mundo. Ao mesmo tempo, eutrabalhava com ativistas gays sobre a AIDS. Na década de1980 a [epidemia de] AIDS cresceu também na Austrália,principalmente entre a comunidade gay. Como eu fazia partede um grupo de sociólogos e psicólogos que trabalhava coma comunidade gay, conseguimos verba federal do setor desaúde para fazer uma pesquisa social sobre sexualidade. Eume integrei profundamente ao ativismo da comunidade gaydesenvolvendo projetos de prevenção.

Enfim, isso resultou na primeira grande pesquisa socialquantitativa sobre sexualidade gay, e eu diria até que sobresexualidade em geral na Austrália. Nós a consideramos umapesquisa muito boa. Parte dela saiu em revistas internacionais,todas de língua inglesa e, claro, em revistas norte-americanas.

Também fizemos pesquisa de história de vida entregrupos de homens marginalizados. Um dos problemas dasrespostas da comunidade gay à AIDS é a dependência daafiliação a uma comunidade. E a comunidade gay naAustrália é principalmente da classe média. Portanto, homensda classe operária, aborígenes e migrantes não anglos nãoestão presentes em sua grande maioria.

Então, nós criamos uma abordagem para trabalhar oshomens da classe operária que fazem sexo com homens.Novamente usamos a abordagem de história de vida, eproduzimos, a meu ver, uma das melhores pesquisas sobre osproblemas dos homens homossexuais que não têm os privilégiosde classe para apoiá-los ou um contexto de comunidade gay.Eles têm que sobreviver em circunstâncias difíceis e algunssofrem muito.

Então, tudo isso fazia parte de um material empírico queeu tinha, e na época o campo de estudos do “Men’s Studies” ouestudos da masculinidade crescia na “anglosfera”. Parte do meutrabalho foi publicada nos Estados Unidos, como já disse, e euestava envolvido no processo. Mas relutava muito para escreverum livro sobre homens e masculinidade. Ao mesmo tempo, haviauma grande oferta de psicologia popular “de direita” sobrehomens, livros como Iron John, e uma quantidade enorme dematérias não essencialistas sobre homens. Eu não queriaencorajar o gênero de “livros sobre homens” porque eles eramessencializadores e antifeministas. A maioria era realmentemisógina. Daí a minha relutância em escrever um livro sobrehomens!

Por fim decidi: ok, toda essa porcaria sobre homens emasculinidade já está passando da conta e talvez bons livrosestejam se fazendo necessários. E comecei a escrever. Em 1991-

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92 eu lecionava na Harvard University nos Estados Unidos comoProfessor de Estudos Australianos. Conversei com um conhecidoeditor, que prefiro não citar o nome, que me encorajou a escrevero livro sobre homens. Foi o que fiz. Como se sabe, o livro foirejeitado. Por ser australiano? Não sei dizer.

Com o livro escrito, acabei encontrando uma editora naAustrália. Mas decidi que precisava me globalizar em termosde publicação. Além dessa editora da Austrália, consegui outrana Inglaterra para a Europa; e outra, nos Estados Unidos, paraa América do Norte, todas em língua inglesa. A editora britânicatinha os direitos de tradução e começou a procurar editoras emoutros idiomas.

MA: MA: MA: MA: MA: O livro Masculinities foi traduzido para o espanhol!RC:RC:RC:RC:RC: Espanhol, chinês, sueco, alemão – uma ótima tradução – eitaliano.

MA:MA:MA:MA:MA: E francês?RC:RC:RC:RC:RC: Não. Hebraico foi a última. Gender and Power foi traduzidopara o japonês e o turco, e está sendo traduzido na Rússia. Doponto de vista do autor, os idiomas de tradução são totalmentealeatórios... Masculinities nunca foi traduzido para o português.

MA:MA:MA:MA:MA: Mas aqui as pessoas o leem na versão espanhola. A editoraé da Espanha ou do México?RC:RC:RC:RC:RC: Do México.

MA:MA:MA:MA:MA: Ah, viva México!RC:RC:RC:RC:RC: Viva! Foi o PUEG [Programa Universitario de Estudios deGenero] da UNAM [Universidade Nacional Autônoma de México].

MA:MA:MA:MA:MA: A UNAM. Foi lá que eu me bacharelei em Sociologia, porisso tenho uma ligação afetiva com a universidade,RC:RC:RC:RC:RC: Tenho outro livro em espanhol, o Escuelas y Justicia Social.Não falei dele porque é outra linha de pesquisa, mas fiztrabalhos sobre escolas e pobreza na Austrália. Essa, então, foia minha trajetória em estudos empíricos, na qual ainda meencontro. Quero dizer com isso que continuo fazendo trabalhosempíricos, entre os quais uma pesquisa entre os intelectuaisaustralianos. Continuo um pouco com pesquisa sobremasculinidades, além de uma tese que escrevi para aconsultoria das Nações Unidas. Continuo trabalhando com osprofessores. E há o trabalho da Teoria do Sul, uma crítica àciência social dominada pelos países do Norte. Continuotrabalhando a ideia de gênero como estrutura social. Talvezpossamos retomar isso, dependendo de quantas horas vocêspretendem gravar [risos]!

Então, em 2002 – deixe-me voltar um pouco.

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MAMAMAMAMA::::: Tudo bem.RC:RC:RC:RC:RC: Meus editores ficaram muito satisfeitos com Gender andPower, que estava vendendo bem. Por ter rendido algumdinheiro, eles queriam uma segunda edição. Na época emque preparávamos a segunda edição, a Teoria Queer entrouem cena, Judith Buttler tornou-se mundialmente famosa, e oterreno para a teoria feminista, ao menos na “anglosfera”, estavabem diferente.

Minha vida também mudou. Pam e eu tivemos uma filha,Kylie, que nasceu no ano em que escrevi Gender and Power.Eu cuidava dela durante a noite, enquanto Pam dormia. Davaa mamadeira e trocava fraldas enquanto escrevia o livro.

Em 1994 Pam foi diagnosticada com câncer no seio. Enós estávamos morando nos Estados Unidos porque eutrabalhava na Universidade da Califórnia. Kylie e Pam voltarampara a Austrália. Eu comecei a procurar trabalho por lá. Foi umperíodo muito difícil nas nossas vidas. Pam fez duasmastectomias, quimioterapia e radioterapia. E Kylie tinha só 10anos quando tudo aconteceu. Eu fiquei sozinho cuidando deKylie e de todo o sofrimento que a situação envolvia.

MA:MA:MA:MA:MA: Por quanto tempo isso durou?RC:RC:RC:RC:RC: Pam morreu em 1997, quando Kylie tinha 12 para 13 anos.

MA:MA:MA:MA:MA: Fico pensando em câncer de mama... O discurso oficialde que era completamente tratável... Essa é outra questão sobremulheres e ciência médica.RC:RC:RC:RC:RC: Realmente! Há uma dimensão absolutamente feminista docâncer de mama e do tratamento do câncer de mama, naqual Pam tinha começado a trabalhar.

Levou muito tempo para eu conseguir retomar o trabalhoteórico. Quando o fiz, não consegui fazer uma revisão completade Gender and Power porque ainda estava muito perturbado.Mas escrevi um pequeno manual chamado simplesmenteGender. Que foi muito bem recebido. Também foi traduzido emvários idiomas, mas não em espanhol e português. Acabeiproduzindo uma segunda edição, que saiu em 2009, ondeprocurei ir além da versão sulista da teoria de gênero. O livro sechama Gender: in World Perspective. Não é um livro ambicioso,mas foi razoavelmente bem recebido [e está sendo traduzidopara o português].

Comecei a trabalhar na teoria sulista quando lecionavana Califórnia. Eu dava um curso de “teoria clássica” emSociologia, ou seja, Marx, Durkheim e Weber, todos europeusbrancos e mortos. Então escrevi para os alunos um artigo sobrepor que essa era uma compreensão errada da história daSociologia. Aí começou o meu trabalho com a teoria do Sul.Começo com uma espécie de crítica ao eurocentrismo nopensamento social. Critico isso – e prossigo com críticas a

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Bourdieu, a Giddens e a algumas teorias modernas: o quepoderia ser oferecido como alternativa, se desrespeitássemos opensamento social eurocêntrico? Bem, o pensamento social doresto do mundo – que é certamente o mundo majoritário – eonde há um número enorme de intelectuais fazendo trabalhosinteressantes que não encontram espaço na teoria sociológicavigente no Norte global.

Essa é a história do Southern Theory. O livro é umanarrativa dos meus encontros com pensadores sociais da África,da América Latina, do Sul da Ásia, do Irã, da Austrália, das ilhasdo Pacífico e outros. É uma tentativa de desenvolver um estudode caso para uma abordagem globalmente democrática daciência social. É nisso que estou interessada, foi o que falei naconferência [da ANPOCS]. Atualmente estou escrevendo umartigo – já escrevi várias versões, mas ainda não estou satisfeita– cujo título é “Roses from the South”. Pretendo desenvolver umaanálise da teoria sulista de gênero; é sobre a importância depriorizar o pensamento do Sul global, o mundo majoritário, nopensamento sobre gênero.

MAMAMAMAMA::::: Você vê similaridades entre a Austrália e a América do Sulou a África?CR:CR:CR:CR:CR: Sim, para nós, a Austrália é “Norte”.RC:RC:RC:RC:RC: Que bom que você me perguntou isso, porque eu tenhouma resposta. A palavra Austrália significa “a terra do sul”, comoeu disse anteriormente. E é um nome dado pelos colonizadoresbritânicos, não é um nome aborígene. Os colonizadoresbritânicos deram esse nome porque achavam que era o maislonge que poderiam chegar. E é mesmo – é o antípoda daEuropa. Austrália e Nova Zelândia são o mais distante que sepode chegar a partir da Europa. Então não é a metrópole.Também não é Terceiro Mundo. É um país rico – um país colonialrico. Nesse aspecto não é como o Brasil, e sim como as classesprivilegiadas do Brasil. Temos uma população de 20 milhõesde pessoas, e uma das mais altas rendas médias do mundo.Isso se deve a duas causas. Uma delas é a economia colonial,porque a economia australiana é uma economia de exportaçãoprimária. Exportamos minerais, lã, trigo e outros produtosagrícolas, carvão, ferro e urânio, metais preciosos, prata echumbo, para o mundo industrializado. Não somos um paísindustrializado.

Durante um curto período, a Austrália, bem como partesda América Latina, adotou a estratégia CEPAL de industrializaçãopor substituição de importações, e em meados do século 20conseguimos ter uma pequena economia industrializada. Entãonos tornamos neoliberais. Foi quando perdemos a nossaeconomia industrial e voltamos a ser fornecedores deexportações primárias. É mais ou menos semelhante à estratégiade exportação do governo Lula para o Brasil. Você se concentra

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nas exportações agrícolas, nas exportações minerais e nosprodutos manufaturados de baixa tecnologia. É o que aAustrália faz hoje. Portanto, é uma economia marginaldependente, porém rica.

A outra razão para ter uma renda média tão alta é que aAustrália teve um forte movimento trabalhista. E assim o capitallocal não conseguiu funcionar com uma economia de baixarenda. O movimento trabalhista conquistou o poder no Estado eredistribuiu a renda entre a classe operária branca,especialmente os trabalhadores homens. Criou-se, então, umaespécie de democracia masculina assalariada na Austrália, quelutou por salários mais altos, especialmente para os homens. Ésignificativa a diferença salarial entre homens e mulheres nopaís, mas num nível superior à maioria do mundo pós-colonial.

Mas é também uma cultura profundamente racistaporque é uma sociedade colonial. Os povos indígenas foram,em sua maioria, dizimados por epidemias, assassinatos, perdade habitat, fome, envenenamento e guerra. O grosso dapopulação é europeia e, hoje, também de imigrantes asiáticos.Mas não há uma grande população indígena que poderia serexplorada em uma economia colonial, como a África ealgumas partes da Ásia. Isso resultou numa população decolonos que é extremamente consciente de sua identidaderacial e se sente ameaçada por raças não brancas. Portanto,desse ponto de vista, a Austrália é como a África do Sul, comoas populações de colonos da África do Sul, com a diferençade que lá a população indígena é muito grande. Na Austrália,a população de colonos sente a presença de uma grandepopulação indígena há algumas centenas de quilômetros, naIndonésia, na China e na Índia. Por isso há tanta ansiedadeem relação às “ameaças” vindas da Ásia.

Em razão disso os partidos políticos australianos seidentificaram com os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, comouma espécie de proteção contra o mundo real. Na Guerra Fria,a Austrália alinhou-se massivamente com os Estados Unidos, esempre luta ao lado do Império Britânico. Acredite ou não, apopulação de colonos australiana lutou no Sudão, na Turquia,na França, na Malásia, sempre apoiando o imperialismobritânico; e depois no Vietnã, no Iraque e no Afeganistão emapoio às intervenções norte-americanas. Não é surpresa queas pessoas de outras partes do mundo pensem que a Austráliafaça parte do imperialismo norte-americano, porque num certosentido faz mesmo! Esse é o objeto de crítica da Esquerdaaustraliana, embora no momento essa Esquerda sejaextremamente marginal.

CR:CR:CR:CR:CR: Eu gostaria que você falasse sobre a sua metodologia, otrabalho de campo.RC:RC:RC:RC:RC: Fiz a maior parte do meu trabalho de campo na Austrália.

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UMA TRAJETÓRIA PESSOAL E ACADÊMICA: ENTREVISTA COM RAEWYN CONNELL

CR:CR:CR:CR:CR: Em que parte da Austrália?RC:RC:RC:RC:RC: Em geral ao redor de Sidney. Um pouco também ao sul daAustrália. Mas 80% da população australiana é urbana, é umasociedade bastante urbana, e sempre foi. Então minhapesquisa é feita principalmente com a classe trabalhadora,com a classe dominante e com a classe média da Austráliaurbana. Porque tenho um projeto de pesquisa sobre intelectuais,também fiz algumas entrevistas com intelectuais de outras partesdo mundo – na África do Sul, onde publiquei um artigo a esserespeito; no Chile, onde não publiquei o artigo, e na Europa.Por isso é uma experiência diferente ser entrevistada, porqueem geral sou eu quem entrevista!

MAMAMAMAMA::::: [riso] Também é bom, não é?RC:RC:RC:RC:RC: Ser o centro das atenções! Bem, acho que eu sempre fuicrítica do positivismo nas Ciências Sociais. É claro que quandocomecei isso o positivismo tinha influência como a perspectivadominante da ciência social na Austrália, por isso o tenhocriticado consistentemente. Cada entrevista que faço é umatentativa de entrar no mundo do entrevistado, o máximo possívelnos termos dele, e não nos meus. Mas certamente sou eu quemdefine temas e o resto. Vocês conhecem a dialética queacontece numa entrevista. Mas, num certo sentido, sempreprocuro trabalhar com as epistemologias de outras pessoas,caso a caso.

Essa é a principal característica. Estou começando aescrever artigos metodológicos. Notei que devo estar fazendoisso há muito tempo, mas publiquei um artigo sobre ametodologia da minha pesquisa sobre masculinidades [“Livesof the Businessmen: Reflections on Life-history Method andContemporary Hegemonic Masculinity”] em um número recentede uma revista austríaca,5 onde falo do meu modo de entrevistare o método de análise. Meu objetivo é analisar grupos, porquesou socióloga, não psicóloga. Mas sempre começo com apessoa, procuro entender a história de cada pessoa tal comoé, e escrevo um estudo de caso sobre a experiência e o pontode vista dessa pessoa, antes de ir para o nível do grupo.Suponho, então, que seja um comprometimento com umaespécie de microepistemologia.

Já o trabalho da teoria sulista, esse é extraído principal-mente de textos, não de entrevistas pessoais. Exceto por umnúmero muito pequeno, acho que umas 25 entrevistas, que fizcom intelectuais fora da Austrália. Espero fazer muito outras,mas...

MA:MA:MA:MA:MA: Alguém aqui no Brasil?RC:RC:RC:RC:RC: Ainda não! Me dê essa oportunidade – com um pouco desorte, na semana que vem... Mas eu gostaria de voltar parafazer isso. No momento tenho um projeto em andamento sobre

5 CONNELL, 2010a.

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neoliberalismo e como o neoliberalismo tem sido entendido noSul global, ou seja, na maior parte do mundo. Então gostariamuito de entrevistar intelectuais brasileiros, e talvez eu consiga.

Mas a maior parte do trabalho da teoria sulista ébaseada em textos. Essa também foi uma espécie de decisãometodológica, baseada no trabalho de Paulin Hountondjii, quemencionei em minha palestra. Ele é um filósofo africano queconsidero imensamente interessante, tanto que incluí umcapítulo sobre ele no meu novo livro, Confronting Equality.Hountondjii ficou famoso na África por criticar o que, na época,foi chamada de “filosofia africana”, uma tentativa de construiruma filosofia implícita a partir de contos, narrativas e poesiaspopulares, do conhecimento popular recolhido nascomunidades indígenas africanas. E Hountondjii argumentou:“Isto é etnografia, não é filosofia; a filosofia, uma disciplina doconhecimento, tem que ser baseada em textos”. Na época elenão estava pensando em textos eletrônicos, mas nós podemospensar. A existência de textos torna possível que a críticaaconteça, que ocorra um engajamento crítico e, portanto, umdesenvolvimento do conhecimento.

O argumento de Hountondjii me convenceu. E por issoachei importante voltar os holofotes para os textos da ciênciasocial, do pensamento social, produzidos por intelectuais daperiferia. Da mesma maneira que prestamos tanta atenção aostextos produzidos nas metrópoles. Entre os livros exibidos aqui,na conferência, há textos de Weber, de Marx, de ArmandMattelart, de Foucault, de Bourdieu, de todos que devam serlidos. Encontraremos as mesmas coisas em uma conferênciana Austrália – são os textos do pensamento social metropolitano.

MA:MA:MA:MA:MA: E todos escritos por homens. Porque as mulheres...RC:RC:RC:RC:RC: Todos homens. Esmagadoramente homens. Tem razão...

MA:MA:MA:MA:MA: Porque vivemos tempos difíceis. As políticas de tradução,isso me interessa muito. Existem muitas teóricas feministas cujostrabalhos não são traduzidos para o português, e provavelmentenunca serão, porque isso exige um grande investimento, e osnossos editores aqui no Brasil não os publicam. Por isso a RevistaEstudos Feministas e a Pagu traduzem um ou dois artigos deTeresa de Lauretis ou de outras feministas importantes, até deSpivak, mas é preciso encontrar alguém para publicar o livrointeiro.RC:RC:RC:RC:RC: Mas não monografias.

CR:CR:CR:CR:CR: Quando estive na Índia, conversando com algumassociólogas, comentei: “Agora todo mundo está lendo intelectuaisindianos, como Appadurai e Spivak”. E me responderam queestes não eram indianos. Como pensar essa diáspora dosintelectuais?

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RC:RC:RC:RC:RC: As intelectuais diaspóricas são um grupo muito interessante.Mas você tem razão, elas não são exatamente indianas. Umexemplo disso é aquele excelente livro, Feminism WithoutBorders – vocês conhecem? De Chandra Talpade Mohanty, quetrabalhou nos Estados Unidos – ela foi uma das editoras deoutro livro muito conhecido, Third World Women and the Politicsof Feminism. É uma nova coleção com a marca dela, que foipublicada em 2003. É muito esclarecedora. Mas, como vocêdiz, ela não é uma feminista indiana. Se eu tivesse permanecidonos Estados Unidos, meu trabalho não seria obra de feministaaustraliana.

Então, o que se pode fazer? É preciso ir lá. Eu explorei ofato de que sou reconhecida pelos estudos das masculinidades!Sou convidada para conferências em vários lugares, vou lá epergunto às pessoas: “Quem eu deveria ler?”, “O que se publicaaqui?”, “Quem são as pensadoras feministas mais interessantespor aqui?”, “Sobre o que se debate?” E assim começo a entendera produção intelectual local, mesmo que de uma maneiraimperfeita – porque, obviamente, não sou especialista nisso.Quando venho para a América Latina, falo um pouco deespanhol, mas nada de português, e por isso não entendo bem,e tenho que confiar totalmente nas pessoas locais para me dara direção das coisas.

E então me vejo até certo ponto como a tradutoradaquele trabalho para a “anglosfera”, onde minha audiênciafala inglês. Deveria haver muito mais gente fazendo isso. Érealmente muito difícil. Eu fiz uma brincadeira em uma dasminhas palestras: citei a famosa pergunta de Spivak, “Osubalterno pode falar?”, dizendo “A metrópole pode ouvir?” Ametrópole pode, sim, mas será que ouve? Será que quer ouvir?Não, infelizmente, não quer.

A maior parte das intelectuais feministas da metrópolenão está interessada em perder tempo esforçando-se para ler otrabalho de uma feminista indiana ou de uma feministabrasileira. E entre elas, não há razão nenhuma para fazeremisso. Elas têm plateia na metrópole, têm hábitos profissionais. Seelas trabalham em universidades ou em um sistema acadêmicoque desrespeita o resto do mundo, não estarão interessadas noque se publica no resto do mundo (exceto na forma de estudosde área). Então dá para entender porque isso acontece.

Por outro lado, acho que as feministas da metrópole sãouma fonte importantíssima para o desenvolvimento dofeminismo global. Porque elas possuem muito mais recursos queos grupos feministas que existem pelo mundo, em termos deriqueza institucional, possibilidade de publicações, de revistas,monografias etc.

MA:MA:MA:MA:MA: Appadurai certamente discordaria, ao menos com certasnuances, do que estás dizendo, porque ele parece apostar

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bastante na forma como as ideias, pessoas, circulam... elasfluem entre o Norte e o Sul. [Appadurai parece apostar bastante]que a metodologia dos estudos culturais é circular e dinâmica,razão pela qual o chamado Sul está muito presente no Norte, evice-versa. De fato, aquela teoria baseada na noção de“orientalismo” de Said já criticava essa ideia, dizendo que oNorte tem sido muito mais influenciado pelo resto do mundo doque gostaria de admitir. E que essas trocas se intensificarammuito recentemente. O fato é que, por essa razão, estamos todosmuito mais conectados do que podemos perceber e que, narealidade, não existem perspectivas definitivas de Primeiro eTerceiro Mundo. Isso nos aproxima da ideia de Simmel sobre o“estrangeiro”, mas agora no sentido da Diáspora e do “Atlânticonegro”. E assim nossas ideias e nossas vidas estão intimamente,e cada vez mais, interconectadas. Então, essa noção comoque desloca a questão de dois polos opostos, a mesma questãoque uma mulher levantou na plateia ontem. Eu estava adorandoa sua palestra, mas me identifiquei muito com a pergunta delanaquele momento.RC:RC:RC:RC:RC: Sabe, eu adoraria que fosse verdade [riso]! É tudo queposso dizer, eu gostaria que fosse verdade, e olhe que eu meesforço! Mas, como todos sabem, não sou uma pessoa deEstudos Culturais. Sou uma socióloga muito realista epragmática. Estou interessada em realidades estatísticas eestruturas sociais. E devo dizer que, do meu ponto de vista, essefluxo é muito menor se comparado com as massivas realidadesdas desigualdades econômicas, da centralidade cultural, dofluxo da influência unilateral. Agora, não há dúvida que Spivaké conhecida na Europa e na América do Norte, principalmentepelo seu trabalho com pós-estruturalismo, desconstrucionismo,Derrida. Mas muito poucas intelectuais indianas...

MA:MA:MA:MA:MA: As romancistas são conhecidas, então a literatura...RC:RC:RC:RC:RC: Tem razão, mas é um pouco diferente com a literatura;literatura em inglês, claro, com exceção das traduções. Emnossas áreas de estudo lê-se Amartya Sem, Gayatri Spivak, equem mais?

MA: MA: MA: MA: MA: Homi Bhabha.RC:RC:RC:RC:RC: Homi Bhabha. Todos eles são intelectuais indianos queestão fora da Índia. Um contraste interessante é Ashis Nandy.Ashis Nandy é um intelectual imensamente importante na Índia.Escritor prolífico, brilhante analista cultural, psicólogo e uminteressante historiador. Ele tem coisas importantes a dizer sobregênero etc. E você sabia que os teóricos europeus jamais ocitam? Nunca vi uma única referência [ao trabalho dele],nenhuma.

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MA:MA:MA:MA:MA: A Sociologia é pior que a Antropologia nesse aspecto?RC:RC:RC:RC:RC: Pode ser. A Antropologia é diferente em razão de seu objetode estudo e da história colonial. Mas acredito que essa noçãoseja válida para o mundo intelectual em geral. Se os intelectuaisde outras partes do mundo se tornam conhecidos, em geral éporque eles se mudaram para a metrópole e trabalham nostermos da metrópole. Você pode ganhar o Prêmio Nobel emCiências Naturais quando vem do Terceiro Mundo, mas só depoisque você se transfere para uma universidade metropolitana etrabalha dentro de uma tradição metropolitana de ciência.

É claro que tudo isso pode mudar, que o sistemaeconômico global muda, a China se tornou o principal ator docapitalismo internacional, vivemos tempos estranhos. A Chinaainda é a maior consumidora de ideias, mas está começandoa produzir em áreas tecnológicas que mudarão as relações depoder nessas áreas, embora não ainda em Ciências Sociais eHumanidades. A Índia é, a meu ver, muito mais produtiva que aChina em termos de Ciências Sociais no momento. Tudo podemudar, as coisas realmente mudam, mas ainda há um longocaminho a se percorrer. Eu insisto em dizer, é um velho tema daSociologia, mas a autoridade no mundo intelectual ainda residemassivamente na metrópole global.

MA:MA:MA:MA:MA: E ainda é predominantemente masculina?RC:RC:RC:RC:RC: Principalmente.

MA:MA:MA:MA:MA: E heteronormativa? E heterossexual?RC:RC:RC:RC:RC: Heteronormativo é um conceito do Norte. O fato de que anoção de heteronormatividade e o constructo “LGBT” tenhamse globalizado é quase um exemplo clássico da hegemoniadas perspectivas do Norte nas Ciências Sociais. É realmentesurpreendente para mim ouvir a sigla “LGBT” no Brasil, e já ouvitambém em outros países da América Latina. Então penso: “Oquê? De onde veio isso?” Em um continente onde as políticassexuais são formuladas de maneira diferente, onde adissidência sexual é concebida de maneira diferente. Porexemplo, não existe nada parecido com “travesti” na Américado Norte, portanto não faz parte do conceito “LGBT”.

CRCRCRCRCR::::: Você já ouviu falar em GLS no Brasil?RC:RC:RC:RC:RC: Não. O que é isso?

CR:CR:CR:CR:CR: Significa gays, lésbicas e simpatizantes. É algo queconsidero muito local, a ideia do simpatizante.RC:RC:RC:RC:RC: Esse conceito me soa melhor, porque tem uma realidadepolítica – embora com muita tensão política – na aliança dosgrupos de gays e de lésbicas. Mas não consigo, por mais queme esforce, pensar que mulheres e homens transexuais sejamgrupos de identidade sexual. Não são. Eles não são grupo

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nenhum, basicamente. Então, até nessa área existe aqueleproblema da hegemonia do Norte e da resposta do Sul.

MAMAMAMAMA::::: Existe o conceito de multidões queer, de Beatriz Preciado,que me agrada muito. Um cantor de música popular brasileira,Caetano Veloso, diz algo similar: “de perto ninguém é normal”.RC: RC: RC: RC: RC: É uma grande verdade, quando se estuda sexualidade ehistória de vida em detalhes. De fato, ninguém é um pacotepadronizado.

MA:MA:MA:MA:MA: E para mim essa noção de multidões queer quer dizerexatamente isso.RC:RC:RC:RC:RC: Sem dúvida. Eu deveria falar alguma coisa sobre ser umamulher transexual?

MAMAMAMAMA::::: Sim, por favor, faça isso.RC: RC: RC: RC: RC: Eu deixei isso de lado quando contava a minha história,mas, pelo que li na literatura, se aplica a todas as mulherestransexuais (e para os homens transexuais também). É mais oumenos um fato da vida, e o conceito de “mudança de sexo” é,realmente, um mal-entendido, acho eu, de gênero.

CR:CR:CR:CR:CR: Por que um mal-entendido?RC:RC:RC:RC:RC: Porque parte do princípio de que você está no estágiohomem e depois vai se tornar mulher. E isso não é absolutamenteverdade na vida do homem ou da mulher transexual, da maneiracomo entendo. Desde que me lembre, lá na infância eu já meidentificava como mulher, mas tinha plena consciência de quetinha um corpo masculino. Essa é a grande contradição daexperiência transexual das pessoas. Da mesma maneira quetodos têm suas contradições. Talvez seja essa a minha versãode multidão queer. Considero sexualidade e gêneroinerentemente contraditórios, embora as contradições tenhamintensidades diferentes e formas diferentes. E na minha vida euassumi esta forma.

Então, eu enfrentei, na adolescência e na pós-adolescência, situações de vida muito difíceis, muitoproblemáticas, como de que maneira eu iria sobreviver. Tenhosorte de estar viva, porque muitos transexuais não sobrevivem:ou se matam ou morrem vítimas de violência, ou – não naAustrália, mas em outras partes do mundo – de marginalizaçãosocial, pobreza, AIDS. E considero que devo minha vida a Pam,minha companheira, que me aceitou como mulher transexual.Nós encontramos uma maneira de viver em que eu erasocialmente homem. Isso me possibilitou viver e agir no mundopor muito tempo, embora com muitas dificuldades e tensões, éclaro, mas foi possível. É bom lembrar que nessa época a maioriadas feministas hostilizava as mulheres transexuais de maneiramuitas vezes violenta. A visão do público feminista da

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transexualidade era extremamente negativa [nas décadas de1970-80] nos países de língua inglesa. Não sei como era noBrasil ou na América Latina.

Então o apoio da Pam foi notável. Possibilitou todas asoutras coisas que tenho feito. Mas isso terminou quando Pammorreu, e meu estilo de vida não foi mais possível sem ela. Aúnica maneira de continuar vivo era passar por uma transição.Então, depois que Kylie terminou a escola, eu comecei oprocesso.

MA:MA:MA:MA:MA: Preocupava a maneira como ela encararia o fato?RC:RC:RC:RC:RC: É claro que sim. Mas ela sabia, e quero enfatizar que Kylieme apoiou durante todo o processo, e continua apoiando. Souprofundamente grata a ela. Ainda assim, realizar essa transiçãosignifica ir a público, expor as suas aflições diante de todos,suas soluções imperfeitas. É, portanto, um processo muitodesafiador, não só para a mulher transexual, mas para todas aspessoas que a cercam. Foi difícil para a minha família, difícilpara os amigos, difícil para os colegas, difícil para os meusaliados políticos, e ainda não é fácil para ninguém. Masaconteceu, e tenho sido bastante recompensada pelas respostaspositivas que recebo de muitas feministas australianas. Acreditoque a visão de muitas delas sobre transexualidade mudou. Issose deve em parte às Teorias Queer, porque a Teoria Queer foi umadas forças que mudaram a situação.

MA:MA:MA:MA:MA: Judith Butler?RC:RC:RC:RC:RC: Certamente. E outras. O interesse delas pelatransexualidade, pelo transgênero – que não consideroexatamente a mesma coisa – certamente abriu caminho paraoutras feministas. Então, foi extremamente positivo. Mas tambémacho que algumas feministas admitem que não é uma ameaçaao feminismo, mas uma questão de justiça social, uma questãode gênero, algo que pode trazer mais solidariedade quehostilidade. Então tudo isso tem sido extremamente positivo.

CRCRCRCRCR::::: Você pretende escrever sobre essa experiência?RC:RC:RC:RC:RC: Há uma excelente escritora canadense que eu recomendoa todos os seus leitores, Vivian Namaste, que publicou três livrossobre transexualidade, dois em inglês, um em francês. Eu diriaque Vivian faz uma das críticas mais positivas à Teoria Queer.Ela lembra que as mulheres transexuais são constantementesolicitadas a contarem suas histórias, explicarem para simesmas, para a polícia, para o psiquiatra, para os médicos, osjornalistas...

MA:MA:MA:MA:MA: Para os acadêmicos...RC:RC:RC:RC:RC: Para os acadêmicos, para os profissionais sociais. Ela temrazão! E muitas transexuais realmente contam suas histórias. O

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principal gênero da escrita transexual é a narrativa pessoal, ashistórias do tipo “minha vida”. Confesso que ainda reluto muito.Em parte porque envolve outras pessoas e algumas das históriassão dolorosas. Não é fácil para uma mulher quando o maridoanuncia inesperadamente: “Sou uma mulher”. O que isso fazcom a vida dela? É traumático para algumas mulheres passarpor esse tipo de experiência com o homem com quem elasdividem a própria vida. Algumas dessas histórias são muitodifíceis para as demais pessoas envolvidas; devo dizer quealgumas das narrativas que li são bastante egocêntricas e depéssima qualidade. Outras são respeitosas e interessantes. Variamuito. Mas eu não sinto vontade de escrever sobre isso.Eu publiquei um artigo baseado em uma entrevista que fiz comuma mulher transexual que queria contar a sua história. Está narevista Sexualities.6

Finalmente criei coragem para escrever um artigo sobremulheres transexuais e feminismo que será publicado na Signs,provavelmente no ano que vem.7 Estou começando a escreveralguma coisa sobre questões de transexualidade. É um campominado e eu quero fazer isso com muito cuidado e respeito.

CR:CR:CR:CR:CR: Estive na Austrália. O contexto é muito diferente da Califórnia.Que consequências essa experiência teve em sua teoria etambém na sua vida pessoal?RC:RC:RC:RC:RC: Pessoalmente, foi muito difícil. Sinto muito por isso, porquetenho muitos amigos nos Estados Unidos. De certa forma é omeu segundo lar, porque frequentei a escola naquele paísdurante muitos anos, fiz pós-doutorado, lecionei em trêsuniversidades norte-americanas. Não era um ambiente estranhopara mim, tudo era muito familiar e eu me adaptei facilmente.Mas foi um período muito, muito difícil. História familiar – foi ummomento traumático.

A Austrália é pequena, muito pequena em comparaçãoà América do Norte e aos Estados Unidos; temos menos de 1/10da população e muito menos de 1/10, talvez 1/20, da suariqueza. Todo o nosso sistema universitário nacional caberiadentro da Califórnia, um único estado.

CR:CR:CR:CR:CR: O que me surpreendeu na Califórnia é que em toda parteveem-se transgêneros, homem para mulher, mulher para homem.No Brasil, você foi a primeira a dar uma conferência em umcongresso importante.RC:RC:RC:RC:RC: Eu estive lá provavelmente antes da primeira grande ondade estudos sobre transgêneros, que aconteceu na segundametade da década de 1990. Fui recebido como homem, nãocomo mulher transexual. O campus onde eu dava aula, SantaCruz, era um centro de estudos gay, considerados principalmentecomo estudos gays e lésbicos, não como estudos queer. Então, oqueer começou na época em que eu estava lá. Comecei a dar

7 CONNELL, 2012.

6 CONNELL, 2010b.

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aulas acho que em 1992-93. Era considerado muito avançadopor ter um programa de estudos gays e lésbicos. Existiam váriasfaculdades residenciais no campus de Santa Cruz, uma delasde gays e lésbicas. Acho que nessa época a Teoria Queercomeçava a se tornar hegemônica no contexto gay da Califórnia,mas não existia uma presença de transgêneros no contexto emque eu estava. Eu teria sabido se houvesse, porque meinteressava! Lá pela segunda metade da década de 1990 surgiuuma onda de livros sobre transgêneros, sobre desconstrução deidentidade, houve uma espécie de triunfalismo do cenáriotransgênero, como se tivéssemos solucionado o problema degênero, e todos deveriam abandonar as identidades de gêneropara mergulhar nessa sopa de identidades múltiplas. Mas entãoeu não estava lá. Estava na Austrália e não vi nada disso. Eestava também, de certa forma, em outra via.

MA:MA:MA:MA:MA: Estamos falando já há algum tempo e você deve estarcansada. Como já falamos sobre gerações de feminismo, essepoderia ser um jeito de resumir num encerramento temporário.Como dar espaço às Teorias Queer e às novas perspectivassem apagar nossa história de, no mínimo, uma segunda ondade pensamento feminista, que considero tão importante? Algunsjovens tiveram muito pouco contato com essa onda, até porquepouca coisa foi traduzida, exceto por alguns artigos. Então,estamos como que numa situação de tensão e certas pessoaspensam que estamos nesse mundo pós-gênero, e eu tenho quedizer “calma aí!”RC:RC:RC:RC:RC: Sim, “alto lá!”

MA:MA:MA:MA:MA: Digo “Olhe para a sua vida”, porque muitos ainda estãomuito longe do pós-gênero e da desconstrução. Estamos meioque presas nos velhos paradoxos de gênero, não é mesmo?RC:RC:RC:RC:RC: É, já pensei muito nisso. E escrevi bastante, não exatamentenesses termos, mas eu diria que o meu livrinho Gender: In WorldPerspective está afirmando isso. Reconheço que todo esse pós-estruturalismo e os estudos queer contribuíram para a área degênero. Ainda sou bastante crítica em relação ao que pensosobre a problemática da identidade de gênero, o que significatanto uma preocupação com identidades de gênero quanto adesconstrução de identidades na Teoria Queer. Em algunscenários, isso é o que o estudo de gênero significa, um debatesobre identidade, e mudança de identidade, e desconstruçãode identidade. Para mim, é apenas uma dimensão das relaçõesde gênero.

E como eu já disse, sou socióloga. Estou profissionalmenteinteressada nas estruturas sociais, nas grandes populações, nopoder, nas estatísticas, na realidade do dia a dia, de um grandenúmero de pessoas. Estou interessada em trabalhar com asrealidades da classe operária, com as relações de gênero em

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conexão com as relações de classe e os processos trabalhistas,e assim por diante.

Dessa perspectiva, o contexto no qual posso dizer“vivemos em um mundo pós-gênero” é o dos muito, muitoprivilegiados. É uma política de privilégios de alto nível, quandose olha para o mundo como um todo. Para mim, é a essênciade – aqui estou eu dando uma espécie de sermão! Mas paramim a essência do feminismo tem relação com a justiça social.E isso envolve o mundo material, envolve as desigualdadeseconômicas, que são imensas em escala mundial. Envolveprocessos educacionais, envolve poder de Estado, envolvemilitares, e a violência massiva em todo o mundo. Esse é ocenário das realidades de gênero, do qual as identidadesfazem parte, mas são apenas um fragmento deste todo maiorque envolve o feminismo e a análise de gênero.

Então, não penso realmente que seja uma questão devoltar à segunda onda do feminismo. Essas questões sempreexistiram. E estão mais presentes que nunca. E eu diria que maisno feminismo do mundo em desenvolvimento do que nofeminismo do Norte global. As feministas da América do Nortepodem se preocupar com identidade, talvez porque não estãovendo a pobreza de massa batendo na porta de suas casas.Mas as feministas do Brasil estão. As colegas da América doNorte não estão enfrentando a violência de massa na porta desuas casas, mas as feministas da Índia estão. Nesse sentido, oque estamos precisando é de um feminismo global, e entãotalvez tenhamos que conversar sobre uma quarta ondafeminista, se formos falar em ondas.

CR: CR: CR: CR: CR: Cosmopolitanismo?RC:RC:RC:RC:RC: É esse o meu debate com algumas pessoas, por que euinsisto no conceito de teoria sulista. Se você diz só ciência socialglobal ou ciência social cosmopolita, as pessoas podementender como um projeto homogêneo, tudo a mesma coisa. Ese tudo é a mesma coisa, então é o Norte. É uma emanação doNorte global. É preciso insistir na especificidade da experiênciadas mulheres brasileiras, das chilenas, das indianas, dasindonésias. Estas são as nossas vizinhas na Austrália; é o maiorpaís muçulmano do mundo, tem um importante movimento demulheres, e nunca é ouvido pelo Norte global. Ninguém. Emesmo assim há um intenso debate local que se arrasta hádezenas de anos. Talvez eu esteja girando em círculos, mas éassim que encaro essas questões, e a razão pela qual nãoacredito que uma política de identidade seja um centroadequado para o pensamento feminista.

CR.:CR.:CR.:CR.:CR.: Obrigada.MA:MA:MA:MA:MA: Sinto-me honrada e grata.

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Caxambu, outubro de 2011.

ReferênciasReferênciasReferênciasReferênciasReferênciasCONNELL, Raewyn. “Como teorizar o patriarcado?”. Educação

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CONNELL, R. W.; ASLENDEN, D. J.; KESSLER, S.; DOWSETT, G. W. Estabelecendo a diferença: escolas, famílias e divisãosocial. 7. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.

Tradução: Vera Caputo