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MAURO AUGUSTO PONCE DE LEÃO BRAGA UMA VISÃO HERMENÊUTICA DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, COMO FORMA DE ACESSO À JUSTIÇA SOCIAL. Dissertação apresentada como requisito, para obtenção do título de Mestre em Direito, pela Universidade Estácio de Sá. Orientador: Prof. Dr. Humberto Dalla. Rio de Janeiro 2005

UMA VISÃO HERMENÊUTICA DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE … · operadores do direito, mais especificamente com aqueles que se debruçam diuturnamente sobre as questões relacionadas ao

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MAURO AUGUSTO PONCE DE LEÃO BRAGA

UMA VISÃO HERMENÊUTICA DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE

DA PESSOA HUMANA, COMO FORMA DE ACESSO À JUSTIÇA

SOCIAL.

Dissertação apresentada como requisito, para

obtenção do título de Mestre em Direito, pela Universidade

Estácio de Sá.

Orientador: Prof. Dr. Humberto Dalla.

Rio de Janeiro

2005

2

VICE-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

A dissertação

UMA VISÃO HERMENÊUTICA DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA,

COMO FORMA DE ACESSO À JUSTIÇA SOCIAL.

elaborada por

MAURO AUGUSTO PONCE DE LEÃO BRAGA

e aprovada por todos os membros da Banca Examinadora foi aceita pelo Curso de Mestrado em

Direito como requisito parcial a obtenção do título de

MESTRE EM DIREITO

Rio de Janeiro, 8 de julho de 2005.

BANCA EXAMINADORA

___________________________

Prof. Dr. Humberto Dalla Presidente

Universidade Estácio de Sá

___________________________

Prof. Dra. Renata Braga

Universidade Estácio de Sá

___________________________

Prof. Dr. Francisco Mauro Dias

Pontifícia Universidade Católica – Rio de Janeiro

3

RESUMO

É o objetivo primeiro deste Estudo a defesa da aplicação do Princípio Constitucional da

Dignidade da Pessoa Humana, como forma de acesso à Justiça Social em nosso País. Nossas

preocupações repousam na total disparidade entre os direitos e deveres do homem que trabalha,

diante da força a ele imposta pelo capital.

Com este objetivo, trataremos das três atividades que, na visão de Hannah Arendt, caracterizam a

Condição Humana: o labor, que corresponde ao processo biológico do corpo humano; o trabalho

que representa o artificialismo da existência humana, e a ação que é a única atividade que se

exerce diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria. É pois, através da

ação que o homem dá continuidade à vida e modifica as condições de sua existência.

Se é através do trabalho que o homem produz o mundo em que vive e através da ação é capaz de

modificar as condições de sua existência, vislumbramos, em um mundo globalizado onde se vê

imperar a força do capital sobre o trabalho, a possibilidade de uma nova visão hermenêutica do

Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, pretendendo, com isso, uma profunda reflexão por

parte dos operadores do Direito, em especial pelos Juízes do Trabalho, de que este princípio deve

nortear e embasar as decisões dos casos levados às suas apreciações. É diante da perfeita

compreensão do que representa o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, para o homem que

trabalha, que poderemos aplicar com maior amplitude os princípios da Eticidade, da Boa-fé e,

principalmente, da Proteção.

Palavras-chave: princípio da proteção. trabalho. acesso à justiça.

4

ABSTRACT

The first objetive of this research is the defense of the Constitucional Principles of Human Being,

as away to approach to the Social Justice in our contry. Our concernings lay on the total disparity

between rights and duties of the worker in dueto the influence imposed on him by the capital.

With this objetive we will be concerned with three actives that, on Hannah Arendt view fefines

the Human Condition: the labour, that corresponds to the process of biological body of the human

being; the labour that represents the artificiality of the human being existence, and the action tha

is the only one activity what it carries out strainght to the mankind without any transaction

neither the things nor the material one. Then through the action of mankind to continue life and

changes the condition of his existence.

If so, it is through the labour force that the mankind works out the world that we live then

through action he is able to change the condition of his existence, we discerning in a global world

where we are able to see the influence of the capital force upon the labour, the new hermeneutic

view on principles of the human being dignity, it pretends with that a deep reflection to set aside

by the law careers, in special to the labour judges, in hence to this principle must guide and found

on the decisions of the cases which are take into Justice. It is with a perfect knowledge of what it

means the Principle of the Human Being Dignity, to the man who works and the we will be able

to aplly enlargely the principles of Ethical, Good Faith and mainly Protection.

Ahd so this is our objetive. We shall reflect on this Thesis and struggle to assure for al workers,

tha so willing way to Justice and for all brazilian citizens, that it will be a wonderful social life

context.

SUMÁRIO

5

1.INTRODUÇÃO..............................................................................................................8

2. LABOR, TRABALHO E AÇÃO COMO FORMAS DE CONCRETIZAÇÃO DA

EXISTÊNCIA E DA CONDIÇÃO HUMANAS............................................................12

2. 1. A VIDA ATIVA COMO FUNDAMENTO DA CONDIÇÃO HUMANA............12

2.2. A INVERSÃO DA ORDEM HIERÁRQUICA ENTRE VIDA ATIVA E VIDA

CONTEMPLATIVA.......................................................................................................13

2.3.DIMENSÃO FILOSÓFICA – O MUNDO DA CONTEMPLAÇÃO E O MUNDO DA

AÇÃO.......................................................................................................................16

2.4.DIMENSÃO SOCIOLÓGICA - A AÇÃO COMO ELEMENTO DA CONDIÇÃO

HUMANA.......................................................................................................................18

2.5. DIMENSÃO ECONÔMICA – AS ESFERAS PÚBLICA E

PRIVADA.......................................................................................................................23

2.6. DIMENSÃO JURÍDICA - TRABALHO QUE LIBERTA E EMBRUTECE O

HOMEM..........................................................................................................................29

3. A HERMENÊUTICA COMO INSTRUMENTO DE CONCRETIZAÇÃO DOS PRINCÍPIOS

NA APLICAÇÃO DAS NORMAS JURÍDICAS....................................35

3.1. OS TRAÇOS FUNDAMENTAIS DE UMA TEORIA DA EXPERIÊNCIA

HERMENÊUTICA..........................................................................................................35

3.2. INTERPRETAÇÃO, COMPREENSÃO E APLICAÇÃO NO PROCESSO

HERMENÊUTICO..........................................................................................................47

3.3. A QUESTÃO DA APLICAÇÃO NA HERMENÊUTICA

JURÍDICA.......................................................................................................................52

6

4. OS PRINCÍPIOS COMO FUNDAMENTO DA INTERPRETAÇÃO E DA

APLICAÇÃO..................................................................................................................60

4.1. DEFINIÇÃO E ALCANCE.....................................................................................60

4.2. 4.2. OS PRINCÍPIOS E AS REGRAS COMO CONSTITUTIVOS DA NORMA

JURÍDICA.......................................................................................................................63

4.3. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E OS DIREITOS SOCIAIS....................68

4.3.1. ASPECTOS GERAIS............................................................................................68

4.3.2. A CONSTITUIÇÃO DE WEIMAR E OS DIREITOS SOCIAIS. OS DIREITOS

INDIVIDUAIS ASSEGURADOS NAS CONSTITUIÇÕES BRAS.............................72

3.3. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 – “A CONSTITUIÇÃO CIDADÔ.....76

4.3.4. HISTÓRICO SOBRE A JUSTIÇA DO TRABALHO NO BRASIL....................77

4.3.5. O DIREITO AO TRABALHO, O DIREITO NO TRABALHO E O DIREITO DO

TRABALHO.............................................................................................................83

a) O DIREITO AO TRABALHO....................................................................................83

b) O DIREITO NO TRABALHO...................................................................................85

c) O DIREITO DO TRABALHO....................................................................................86

4.3.6. PRINCÍPIO DA BOA-FÉ.....................................................................................88

4.3.7. PRINCÍPIO DA ETICIDADE...............................................................................91

4.3.8. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA....................................95

5. O PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO E A EFETIVIDADE DA JUSTIÇA SOCIAL....101

6.CONCLUSÃO............................................................................................................114

BIBLIOGRAFIA...........................................................................................................117

7

1. INTRODUÇÃO O Estudo que nos propusemos a elaborar fará uma abordagem sobre a origem e a

evolução dos Princípios Constitucionais e dos Direitos Sociais dentro de nosso ordenamento

jurídico constitucional. Procuraremos enfatizar os princípios da boa-fé, da eticidade, da dignidade

da pessoa humana e da proteção, que além de possuírem estatura constitucional, norteiam e

direcionam o Direito do Trabalho de nosso País.

Nosso objetivo é proporcionar uma nova visão hermenêutica do princípio da

dignidade da pessoa humana, objetivando que sua aplicação venha a garantir um efetivo acesso à

Justiça Social. Para isso procuraremos demonstrar de que forma os aplicadores do Direito, em

especial, os Juízes do Trabalho, no nosso modo de ver, deveriam aplicá-lo quando da apreciação

dos casos levados ao seu conhecimento, visando uma maior efetividade na prestação

jurisdicional.

Ao propormos a presente pesquisa temos a expectativa de contribuir com os

operadores do direito, mais especificamente com aqueles que se debruçam diuturnamente sobre

as questões relacionadas ao Direito do Trabalho, visando buscar soluções que possibilitem

eficiência e maior proteção dos direitos trabalhistas.

Neste diapasão, não se pode esquecer que o Direito do Trabalho é Direito Social;

em seu âmbito, discute-se salário, trabalho e sustento do trabalhador e de sua família e, portanto,

em última análise, falamos de dignidade da pessoa humana. A fome e outras mazelas decorrentes

da inserção do trabalhador no mundo ocupacional não podem esperar.

De maneira coerente com tal premissa, a lei, formulada para proteger o pólo fraco

de toda e qualquer relação jurídica, não pode representar impedimento para a garantia de

prestação jurisdicional eficaz e tempestiva daquele que, na relação capital x trabalho, não possua

8

qualquer garantia de que seu emprego e, portanto, o sustento de seus dependentes, estará

assegurado.

É tempo de aplicação dos princípios, do Estado Democrático de Direito, da

Democracia. É o tempo da prevalência da Dignidade da Pessoa Humana.

Com base nessa premissa e nesses valores nos propusemos a elaborar o presente

estudo visando discutir a possibilidade de uma nova visão hermenêutica do Princípio da

Dignidade da Pessoa Humana, como forma de acesso à Justiça Social.

Primeiramente trataremos dos três elementos que concretizam a condição e a

existência humanas: labor, trabalho e ação. Procuraremos demonstrar de que forma a vida ativa

fundamenta a condição humana, bem como sua dimensão filosófica, sociológica, econômica e

jurídica.

Em um segundo momento procuraremos enfatizar a questão da hermenêutica

jurídica analisando o problema hermenêutico da aplicação para, ao final, tentarmos dimensionar

de que forma o Juiz, na era do Estado Democrático de Direito e com fundamento no Princípio da

Dignidade da Pessoa Humana, deverá proferir suas decisões, visando, acima de tudo, alcançar a

Justiça Social.

No momento seguinte nossas considerações repousarão sobre os princípios de

estatura constitucional e os direitos sociais, seu surgimento e sua evolução diante de todas as

Constituições do Brasil, desde o tempo do Império, até a Constituição Cidadã de 5 de outubro de

1988. Faremos, ainda, um breve histórico sobre a Justiça do Trabalho no Brasil e os direitos

individuais elencados nas Constituições Federais do País. Estudaremos os princípios, seu alcance

e aplicação, em especial os princípios da Boa-fé, da Eticidade e da Dignidade da pessoa humana.

Para uma melhor compreensão do ensaio que nos propusemos a elaborar, mister uma distinção

entre os conceitos de Direito ao trabalho, Direito no trabalho e Direito do Trabalho, para que,

9

desta forma, possamos melhor compreender que, fundamentando sua decisão no princípio da

dignidade da pessoa humana, o Juiz do Trabalho poderá buscar os dispositivos legais que melhor

se adeqüem ao caso levado ao seu exame e, agindo dessa forma, estará próximo de uma decisão

justa, podendo garantir uma efetiva prestação jurisdicional e, em conseqüência, o absoluto acesso

à justiça.

Por fim, procuraremos discutir de que forma o Princípio da Proteção dará

efetividade à Justiça Social. Procuraremos, inicialmente, analisar o atual conceito de acesso à

justiça, visando superar o entendimento segundo o qual esse acesso se restringe ao direito de

ingresso ou contestação de ações judiciais, nas varias instâncias do Poder Judiciário. Neste

diapasão procuraremos enfatizar que somente através da aplicação do Princípio da Proteção, no

âmbito do Direito do Trabalho, o Juiz poderá igualar as forças do capital e do trabalho, de patrões

e empregados, tendo em vista que o fundamento deste princípio está ligado à própria razão de

existência do Direito do Trabalho, que surgiu como conseqüência de que a liberdade de contrato

entre pessoas com poder e capacidade econômicas desiguais poderia conduzir a diferentes formas

de exploração. Falaremos sobre as ponderações divergentes, em especial às defendidas pelo

Professor Arion Sayão Romita, em sua obra O Princípio da Proteção em Xeque, por estarem ali

esposados alguns dos argumentos contra os quais procuramos lutar em nosso dia-a-dia pela

aplicação do Direito Social. E é com enorme respeito e admiração ao professor Romita e por total

amor ao argumento e ao Direito do Trabalho que ousaremos discutir suas considerações e seus

fundamentos.

Concluiremos nossos estudos defendendo o Direito ao Trabalho, o Direito no

Trabalho e o Direito do Trabalho, bem como a aplicação dos Princípios da Boa-fé, da Eticidade,

da Dignidade da Pessoa Humana e da Proteção, como forma de um ilimitado e efetivo acesso à

Justiça Social em nosso País.

10

A pesquisa ora proposta será de natureza documental, de acordo com o modelo

crítico dialético.

Conforme dito anteriormente, a pesquisa que ora se inicia fará uma abordagem

sobre a origem e a evolução dos Princípios Constitucionais e dos Direitos Sociais dentro de nosso

ordenamento jurídico constitucional, objetivando que a aplicação dos princípios da boa-fé, da

eticidade, da dignidade da pessoa humana e da proteção, possam garantir um efetivo acesso à

Justiça Social e, assim, possam os aplicadores do Direito, em especial os Juízes do Trabalho,

garantir uma efetiva, rápida e justa prestação jurisdicional, alcançando-se, desta forma, a paz e a

justiça sociais.

Para o desenvolvimento da pesquisa, pretendemos tomar como fontes a vasta

doutrina filosófica, constitucional e trabalhista nacional e estrangeira, que visem a dar suporte às

respostas questões norteadoras e objetivos de nossa investigação.

A adoção desse material obedecerá a critérios históricos e evolutivos do direito

constitucional e do trabalho, que visem a demonstrar qual a realidade atual do Direito do

Trabalho e quais as suas perspectivas futuras. A coleta de dados será feita através da consulta à

bibliografia, além de busca em Internet, jornais, revistas e periódicos que tratem do tema a ser

abordado.

Nosso objetivo não é apenas a defesa de uma tese, mas uma tese em defesa da

Constituição, do Trabalho, do Direito e da Justiça em toda sua amplitude; é a defesa dos

princípios como origem e fundamento do próprio Direito; é uma declaração de confiança e fé de

que, proteger é ser ético, é agir de boa-fé e é garantir o respeito à dignidade de todo e qualquer

ser humano.

Façamos nossa parte.

11

2. LABOR, TRABALHO E AÇÃO COMO FORMAS DE

CONCRETIZAÇÃO DA EXISTÊNCIA E CONDIÇÃO HUMANAS.

2.1. A VIDA ATIVA COMO FUNDAMENTO DA CONDIÇÃO HUMANA.

Neste capítulo trataremos das concepções sobre labor, trabalho e ação, como

atividades fundamentais da vita activa, desenvolvidas por Hannah Arendt, em sua obra A

condição humana; Tradução de Roberto Raposo, prefácio de Celso Lafer 10ª edição – Rio de

Janeiro: Forense Universitária, 2003, que visa, fundamentalmente, refletir sobre os nossos fazeres

nestes três campos de atividade.

Contudo, antes de empreendermos o desenvolvimento da questão é necessário a

explicitação de qual vida ativa trata Hannah Arendt, na referida obra.

Testemunhamos um tempo de surpreendentes progressos do conhecimento do

universo e da vida, não apenas afirmados na dimensão da vida especulativa, mas

experimentalmente provado pela dimensão da vida ativa. A primeira guerra mundial em 1919 e a

segunda, em 1945 são os dois acontecimentos que impuseram novas concepções a respeito do

universo da matéria, do homem, da vida onde o universo e a matéria, segundo Jaspers1, projetam

nosso conhecimento do mundo para os infinitos; o primeiro para o infinitamente grande, sempre

em expansão; o segundo, para o infinitamente pequeno, sempre em contração.

1 JASPERS, Karl. Introdução ao pensamento filosófico. Tradução de Leônidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota. 5ª edição - São Paulo, Editora Cultrix, 1965. p. 18.

12

A partir desse mundo, a ciência construiu uma visão radicalmente nova. Antes

daquele momento se aceitava que a totalidade do existente era o mundo, mas o mundo se

fragmentou, se desmitificou e os seus fenômenos tornaram-se inteligíveis. Estamos num mundo,

sem termos jamais como objeto, a totalidade desse mesmo mundo. Nele, os fenômenos devem ser

explorados ao infinito2 .

Situado no mundo, “o homem que somos parece a própria evidência e é, entretanto

a mais enigmática das coisas.”3 Como enfatiza Jaspers,4 “tudo que sabemos do homem, tudo que

cada um dos homens sabe de si mesmo não corresponde ao homem. Aquilo a que o homem está

ligado, aquilo com que o homem se debate não identifica o homem.” É na relação com o outro

que o homem, através da ação sobre o mundo e sobre si mesmo, se reconstrói e faz a sua própria

história.

Exilado em seu existente o homem quer ultrapassar-se. Não se satisfaz

com ser numa quietude fechada em si mesma, o perpétuo retorno do existente. Não

mais se reconheceria autenticamente como homem, se se contentasse com ser o homem

que hoje é. [...] Só na ação sobre si mesmo e sobre o mundo, em suas realizações é que

ele adquire consciência de ser ele próprio, é que ele domina a vida e se ultrapassa. 5.

2.2. A INVERSÃO DA ORDEM HIERÁRQUICA ENTRE VIDA ATIVA E

VIDA CONTEMPLATIVA. 2 JASPERS, Op. Cit., p. 23. 3 IDEM, p. 45. 4 IDEM, p. 48. 5 IDEM, p. 50.

13

As descobertas da era moderna e a fé do homem “no engenho das próprias mãos”

levaram, segundo Hannah, à inversão da ordem hierárquica entre a vida contemplativa e a vida

ativa. Sendo um instrumento, o telescópio, obra da mão do homem que forçou o universo a

revelar os seus segredos.

As razões para que se confiasse no fazer e se desconfiasse do contemplar ou observar

tornaram-se ainda mais fortes após o resultado das primeiras pesquisas ativas.6 [...] a

mudança que ocorreu no século XVII foi mais radical do que se pode depreender da

simples inversão da ordem tradicional entre contemplação e ação.7 (304)

Mostrando que a inversão de posição entre a vida ativa e a vida contemplativa não

é privilégio da modernidade, mas algo que tem ocorrido ao longo da história, Hannah afirma que

a tradição platônica do pensamento filosófico e político começou com uma inversão, e que esta

inversão determinou em grande parte as correntes de pensamento da filosofia ocidental. Que a

inversão de que trata A condição humana tem como suporte as descobertas de Galileu e como

fundamento, “a convicção de que a verdade objetiva não é dada ao homem e que ele só pode

conhecer aquilo que ele mesmo faz não advém do ceticismo, mas de uma descoberta

demonstrável e, portanto, não leva à resignação, mas a uma atividade redobrada ou ao

desespero.” 8

Para compreensão do termo Condição Humana, Hannah Arendt9 utiliza a

expressão a vita activa pretendendo designar três atividades humanas fundamentais: labor,

6 ARENDT, Hannah. A condição Humana. 10ª edição – 3ª reimpressão. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. p. 303. 7 IDEM, p. 304. 8 IDEM, p. 306. 9 IDEM, p. 15.

14

trabalho e ação, porque a cada uma delas corresponde uma das condições básicas mediante as

quais a vida foi dada por Deus ao Homem aqui na terra.

O labor é a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano,

cujo crescimento espontâneo, metabolismo e declínio, mesmo que eventuais, têm a ver com as

necessidades vitais produzidas e introduzidas pelo labor no processo da vida. Portanto, a

condição humana do labor é a própria vida.

O trabalho é a atividade correspondente ao artificialismo da existência humana, ou

seja, pelo trabalho o homem produz um mundo artificial de coisas e através dele pode modificar

todo e qualquer ambiente natural. O trabalho como condição humana é a mundalidade, ao passo

que o mundo deva transcender e sobreviver a todas as vidas individuais. Em outras palavras, o

homem nasce, trabalha, morre e o mundo permanece em função desse trabalho por ele

desenvolvido.

A ação, única atividade que se exerce diretamente entre os homens sem a

mediação das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade já que nesse

sentido os homens e não o Homem, vivem e habitam o mundo e se multiplicam dando

continuidade à vida humana e ao próprio mundo.

Essas três atividades antes mencionadas e suas respectivas condições têm íntima

relação com as condições mais gerais da existência humana, isto é, o nascimento e a morte, a

natalidade e a mortalidade. O labor é o responsável por assegurar não apenas a sobrevivência do

indivíduo, mas a vida da espécie; o trabalho e seu produto, o artefato humano, emprestam certa

permanência e durabilidade à futilidade da vida mortal e ao caráter efêmero do tempo humano e,

15

por fim, a ação, na medida em que se empenha em fundar e preservar corpos políticos, cria a

condição para a lembrança, ou seja, para a história.

O labor e o trabalho, bem como a ação, têm também raízes na natalidade, na

medida em que sua tarefa é produzir e preservar o mundo para o constante influxo de recém-

chegados que vêm a este mundo na qualidade de estranhos, além de prevê-los e levá-los em

conta. Não obstante, das três atividades, a ação é a mais intimamente relacionada com a condição

humana da natalidade; o novo começo inerente a cada nascimento pode fazer-se sentir no mundo

somente porque o recém-chegado possui a capacidade de iniciar algo novo, isto é, de agir.

Tem-se, pois, que tudo que toque ou diga respeito à vida humana ou entre em

ralação duradoura com ela assume imediatamente o caráter de condição da existência humana.

Sendo assim, os homens, independentemente do que façam serão sempre seres condicionados,

posto que, tudo o que adentra espontaneamente no mundo humano, ou por ele é trazido pela

força humana, torna-se parte da condição humana.

2.3. DIMENSÃO FILOSÓFICA – O MUNDO DA CONTEMPLAÇÃO E O

MUNDO DA AÇÃO.

A expressão vita activa trás uma enorme carga de tradição e essa tradição, longe

de abranger e conceituar todas as experiências políticas da humanidade ocidental é produto de

uma constelação histórica específica: o julgamento de Sócrates e o conflito entre o filósofo e a

polis. Depois de haver eliminado muitas das experiências de um passado anterior que eram

16

irrelevantes para suas finalidades políticas, prosseguiu até o fim, na obra de Karl Marx, de modo

altamente seletivo. A própria expressão que, na filosofia medieval, é a tradução consagrada do

bios politikos de Aristóteles, já ocorre em Agostinho onde, como vita negatiosa ou actuosa,

reflete ainda o seu significado original: uma vida dedicada aos assuntos públicos e políticos.

São três os modos de vida que Aristóteles distinguia, os quais caberia ao homem

escolher livremente, independentemente das necessidades da vida e das relações dela decorrentes.

Esta condição, que garantia tal liberdade de escolha do tipo de vida escolhida pelo homem para si

eliminava, de logo, qualquer modo de vida dedicado basicamente à sobrevivência do indivíduo –

não apenas o labor, que nada mais era do que o modo de vida do escravo, mas também a vida de

trabalho dos artesãos livres e a vida aquisitiva do mercador. Essa liberdade de escolha de vida

pelo homem excluía todas as formas em que o homem, voluntária ou involuntariamente,

temporária ou permanentemente, não poderia dispor de liberdade quanto aos seus movimentos e

às suas ações.

Excluídos tais modos de vida, Aristóteles distinguia três outros modos, os quais

têm em comum o fato de se ocuparem do “belo”, ou seja, de coisas que não eram necessárias nem

meramente úteis. São eles:

...a vida voltada para os prazeres do corpo, na qual o belo é consumido tal como é dado; a vida dedicada aos assuntos da polis, na qual a excelência produz belos feitos; e a vida do filósofo, dedicada à investigação e à contemplação das coisas eternas, cuja beleza perene não pode ser causada pela interferência produtiva do homem nem alterada através do consumo humano.”10

10 ARENDT, Op. Cit. p. 21.

17

Vale dizer que essa enorme superioridade da contemplação sobre qualquer outro

tipo de atividade, inclusive a ação, não tem sua origem no cristianismo. Pode ser encontrada na

filosofia política de Platão, onde toda a reorganização utópica da vida na polis não é apenas

dirigida pelo superior discernimento do filósofo, porém, sua finalidade não é outra senão tornar

possível o modo de vida filosófico.

Tradicionalmente, e até o início da era moderna, a expressão vita activa jamais

perdeu sua conotação negativa de “in-quietude”. Como tal, sempre permaneceu intimamente

ligada à distinção grega, ainda mais fundamental, entre as coisas que são por si o que são e as

coisas que devem ao homem a sua existência. O primado da contemplação sobre a atividade

baseia-se na convicção de que nenhum trabalho de mãos humanas pode igualar em beleza e

verdade o kosmos físico, que revolve em torno de si mesmo, em imutável eternidade, sem

qualquer interferência ou assistência externa, seja humana ou divina.

Há, pois, uma significativa separação entre dois mundos e dois homens distintos: o

mundo da contemplação, onde reside o homem do pensamento, e o mundo da ação, onde reside o

homem com a mesma natureza, o homem que trabalha, que produz e que modifica o mundo em

que vive, sendo a ação responsável por sua condição humana.

2.4. DIMENSÃO SOCIOLÓGICA - A AÇÃO COMO ELEMENTO DA

CONDIÇÃO HUMANA.

18

A vita activa, isto é, a vida humana na medida em que se empenha ativamente para

fazer algo, tem raízes permanentes em um mundo de homens; em um mundo de coisas

produzidas, feitas pelos homens. As coisas e os homens, com efeito, constituem o ambiente de

cada uma das atividades humanas que não teriam sentido se não estivessem ou pertencessem a

esse mundo. Por essa razão, seria correto afirmar que o mundo ao qual viemos não existiria sem a

atividade humana que o produziu; produtos fabricados, cultivo de terras, organização do corpo

político.

Todas as atividades humanas são condicionadas pelo fato de que os homens vivem

juntos; mas, somente a ação, apenas ela é a única que não pode ser imaginada fora da sociedade

dos homens. Poder-se-ia dizer que a atividade do labor realizada por um único homem em

completa solidão, sem requerer a presença de outros homens que laborassem junto a ele, o

transformaria de homem em animal laborans. Quanto ao trabalho, um homem que trabalhasse,

fabricasse, construísse em um mundo habitado apenas por ele mesmo seria um fabricador, mas

teria perdido a sua qualidade especificamente humana e seria, antes, um deus, mas, certamente,

não o Criador.

A ação é prerrogativa exclusiva do homem e só ela depende inteiramente da

constante presença de outros homens. Com essa afirmação e com a relação entre ação e vida em

comum, podemos concluir que o homem é, por natureza, um ser social e político. É somente com

o conceito de sociedade da espécie humana que o termo “social” começa a adquirir sentido geral

de condição humana fundamental.

Segundo o pensamento grego, a capacidade humana de organização política não

apenas difere mas é diretamente oposta a essa associação natural cujo centro é construído pela

19

casa e pela família. O surgimento da cidade-estado significava que o homem recebera, além de

uma vida individual e privada, uma segunda: a vida política.

De todas as atividades necessárias e presentes nas comunidades humanas, somente

duas eram consideradas políticas: a ação e o discurso, os quais eram tidos como semelhantes,

pertencentes às mesmas categoria e espécie; isto significava originalmente não apenas que quase

todas as ações políticas são realmente realizadas por meio de palavras, sendo a ação nada mais do

que o ato de encontrar as palavras adequadas no momento certo, independentemente da

informação ou comunicação que transmitem.

Na experiência da polis que, com alguma razão, tem sido considerada o mais

eloqüente dos corpos políticos, e mais ainda na filosofia-política que dela surgiu, a ação e o

discurso separaram-se e tornaram-se atividades cada vez mais independentes. A ênfase passou da

ação para o discurso, e para o discurso como meio de persuasão, não como forma

especificamente humana de responder, replicar e enfrentar o que aconteceu ou o que é feito.

O ser político, o viver em uma polis, significava que tudo era decidido mediante

palavras e persuasão, e não através do emprego de força ou violência. Os gregos compreendiam

que o emprego da violência ao invés da persuasão eram modos pré-políticos de tratar com as

pessoas e que só tinham lugar fora das polis, sendo característicos do lar e da vida em família,

onde o chefe da casa se fazia impor através de poderes nunca contestados, ou também nos

impérios bárbaros cujos imperadores se impunham através dos poderes despóticos.

Já Aristóteles não pretendia definir o homem, mas identificar sua mais alta

capacidade, a qual, para ele não era o uso da palavra, o Logus, mas o nous, isto é, a capacidade de

20

contemplação, cuja principal característica é que o seu conteúdo não pode ser reduzido a

palavras.

Hannah Arendt11 afirma haver um profundo erro de interpretação contido na

tradução latina de “político” como “social”:

De fato, não só na Grécia e na polis, mas em toda a antiguidade ocidental, teria sido

evidente que até mesmo o poder do tirano não era tão grande nem tão ‘perfeito’ quanto

o poder com que o paterfamilias, o dominus, reinava na casa onde mantinha os seus

escravos e seus familiares; e isto não porque o poder do dirigente da cidade fosse

igualado e controlado pela combinação dos poderes dos chefes de família, mas porque o

domínio absoluto e inconteste e a esfera política propriamente dita eram mutuamente

exclusivas.

Embora tal equivoco de interpretação entre as esferas política e social seja tão

antigo quanto a tradução latina de expressões gregas e sua adaptação ao pensamento romano-

cristão, a confusão daí decorrente agravou-se ainda mais no uso moderno e na moderna

concepção de sociedade.

A distinção entre uma esfera de vida privada e uma esfera de vida pública

corresponde à existência de uma esfera da família e outra da política, como entidades

absolutamente diferentes e distintas, que se acentuou com o surgimento da cidade-estado.

Cabe aqui uma distinção entre a esfera familiar e a esfera da polis. Era na esfera

familiar que os homens viviam juntos por serem a isso compelidos por suas necessidades e por

11 ARENDT, Op Cit. p. 36-37.

21

suas carências, impostas pela própria vida. E assim, pois, com o acompanhamento de outros

homens, era mantida a sua sobrevivência e a de sua espécie. Na esfera familiar a tarefa do homem

era a manutenção individual, através do labor e do suprimento dos alimentos, enquanto que à

mulher cabia a sobrevivência da espécie, através do parto. Tanto homem quanto mulher

trabalhavam para a permanência da vida e a comunidade natural da família, do lar, decorria da

necessidade.

A esfera da polis, ao contrário, era a esfera da liberdade, isto é, se havia alguma

relação entre família e polis, essa repousava na idéia de que a vitória sobre as necessidades da

vida em família constituía a condição natural para a liberdade na polis. Assim, liberdade encontra

seu amparo na esfera social. É através da liberdade que o homem que vive em sociedade, seja ela

qual for, de empregados ou de proprietários, de consumo ou de produção, protege-se da

autoridade política e da violência, que passa a ser monopólio do governo.

Por fim, pode-se dizer que a polis diferenciava-se da família pelo fato de somente

conhecer “iguais”, ao passo que a família era o centro da mais severa desigualdade. Ser livre

significava ao mesmo tempo não estar sujeito às necessidades da vida nem ao comando do outro

e também não significava submissão. Assim, dentro da esfera da família, a liberdade não existia,

pois o chefe da família, seu dominante, só era considerado livre na medida em que tinha a

faculdade de deixar o lar e ingressar na esfera política, onde todos eram iguais.

Com o advento da sociedade, com a admissão das atividades caseiras e da

economia doméstica à esfera pública, a nova esfera tem-se caracterizado principalmente por uma

irresistível tendência a crescer e de devorar as esferas mais antigas como a política e a privada.

Este enorme e constante crescimento é reforçado pelo fato de que, através da sociedade, o próprio

22

processo da vida foi, de uma ou de outra forma, canalizado para a esfera pública. A esfera

privada da família era o plano no qual as necessidades da vida, da sobrevivência individual e da

continuidade da espécie eram atendidas e garantidas.

A mais nítida indicação de que a sociedade constitui a organização pública do

próprio processo de vida talvez seja encontrada no fato de que, em um breve espaço de tempo, a

nova esfera social transformou todas as comunidades modernas em sociedades de operários e de

assalariados, em outras palavras, essas comunidades concentram-se imediatamente em torno da

única atividade necessária para manter a vida – o labor.

2.5. DIMENSÃO ECONÔMICA – AS ESFERAS PÚBLICA E PRIVADA.

Para nossos estudos, o que interessa neste contexto é a o surgimento de um fato

novo, qual seja, uma divisão decisiva entre as esferas pública e privada, entre as esferas da polis e

da família e, finalmente entre as atividades pertinentes a um mundo comum e aquelas pertinentes

à manutenção da vida, divisão esta na qual se baseava todo o antigo pensamento político, que a

via como axiomática e evidente por si mesma. Pode-se dizer que a linha divisória é inteiramente

diversa, tendo em vista ver o corpo de povos e comunidades políticas como uma família, cujos

negócios diários devem ser atendidos por uma administração doméstica nacional e gigantesca. O

pensamento científico, portanto, que corresponde a essa nova concepção já não reflete a ciência

política, mas a economia nacional ou a economia social, todas elas indicando uma espécie de

administração doméstica coletiva, conhecida, a partir de então, como sociedade, ou seja, o

conjunto de famílias economicamente organizadas de modo a constituírem o fac-smile de uma

única família sobre-humana, e sua forma política de organização é denominada nação.

23

O que foi chamado anteriormente de ascensão do social coincidiu historicamente

com a transformação da preocupação privada em preocupação pública. Logo que passou à esfera

pública, a sociedade assumiu o disfarce de uma organização de proprietários que, ao invés de se

arrogarem acesso à esfera pública em virtude de sua riqueza, exigiram dela proteção para o

acúmulo de mais riqueza.

O que se pode constatar é que a apropriação privada de riquezas não é bastante

para proteger as liberdades individuais, tendo em vista que em uma sociedade de detentores de

empregos, sem qualquer estabilidade ou garantia que os assegurem nos mesmos, estas liberdades

só estarão seguras na medida em que são garantidas pelo estado, e ainda hoje são constantemente

ameaçadas, quer pela sociedade, que distribui os empregos e determina a parcela de apropriação

individual, como pelo próprio estado, que dispõe de sua faculdade de legislar de acordo com a

conveniência e necessidade do governo que detiver o poder em dado momento, deixando-se de

lado, pois, com tal postura, os direitos sociais e excluindo-se os mesmos da categoria dos direitos

fundamentais.

Leciona Vicente de Paulo Barretto 12 em seu texto denominado Reflexões sobre os

Direitos Sociais, que a alocação de recursos para suprimir demandas sociais depende, em última

instância, da vontade política que se expressa no estado democrático de direito através do sistema

representativo, quando ocorre a escolha pelo eleitor dos projetos públicos de sua preferência.

Tanto a questão da liberdade, como a da igualdade, constituem o pano de fundo diante do qual

serão escolhidas as alternativas de políticas públicas apresentadas pelos partidos políticos. E

12 BARRETTO, Vicente de Paulo. Texto: Reflexões sobre os Direitos Sociais. Direitos Fundamentais Sociais: Estudos de Direito Constitucional, Internacional e Comparado, organizado por Ingo Wolfgang Sarlet. Rio de Janeiro - São Paulo. Renovar, 2003. p. 119-120.

24

acrescenta: “A sociedade é que deverá escolher quais as opções político-econômicas e, portanto,

em quais setores serão aplicados preferencialmente os recursos públicos.”13

Como assinalado anteriormente, o labor é a única atividade necessária para manter

a vida. É indispensával, todavia, fazer uma distinção entre labor e trabalho para que se possa

chegar a uma dimensão jurídica dessa ação imprescindível da condição humana.

Entendemos que tal discussão deve restringir-se aos conceitos atuais, tendo em

vista o que nos dispusemos a abordar nas linhas que completam nossos estudos.

É surpreendente que a era moderna, onde se inverteram todas as tradições

referentes aos conceitos de ação e contemplação, como a tradicional hierarquia dentro da própria

vita activa, tendo glorificado o trabalho (labor) como fonte de todos os valores, e tendo

promovido o animal laborans à posição tradicionalmente ocupada pelo animal rationale - não

tenha produzido uma única teoria que distinguisse claramente entre o labor do nosso corpo e o

trabalho de nossas mãos. O que se vê na verdade é uma distinção entre trabalho produtivo e

improdutivo; mais tarde, uma diferenciação entre trabalho qualificado e não-qualificado; e,

finalmente, sobrepondo-se a ambas por ser aparentemente de importância mais fundamental, a

divisão de todas as atividades em trabalho manual e intelectual.

Apenas o trabalho produtivo tinha a aceitação da opinião pública, sendo

menosprezado o trabalho improdutivo, ao passo que esse modo de trabalho não contribuía para o

enriquecimento do mundo. Em outras palavras a distinção entre trabalho produtivo e

improdutivo, contém, embora recheada de preconceito, a distinção mais fundamental entre

trabalho e labor, tendo em vista ser típico deste último, nada deixar atrás de si: o resultado de seu 13 IDEM. P. 120.

25

esforço é consumido quase tão depressa quanto o esforço é despendido. E, no entanto, esse

esforço, a despeito de sua futilidade, decorre de enorme premência; motiva-o o impulso mais

poderoso que qualquer outro, pois a própria vida depende dela. A era moderna, em geral

fascinada, pela produtividade real e sem precedentes da humanidade ocidental, tende quase que

irresistivelmente a encarar todo o labor como trabalho e a falar do animal laborans em termos

muito mais adequados ao homo faber, como a esperar que restasse apenas um passo para eliminar

totalmente o labor e a necessidade.

Independentemente de circunstâncias históricas ou localização na esfera pública

ou privada, há que se destacar aqui a verdadeira atividade do trabalho (labor), qual seja, a

produtividade. Essa produtividade não reside em qualquer um dos produtos do labor, mas,

efetivamente, na força humana, cuja intensidade não se esgota depois de produzidos os meios de

subsistência ou sobrevivência, mas tem a capacidade de produzir algo mais, mais do que

realmente se tem por necessário. Essa força de trabalho do homem, portanto, é que explica a

produtividade do trabalho e é a partir desse ponto de partida que devemos concentrar nossos

estudos em busca de uma melhor compreensão e aprimoramento das decisões que contemplem o

homem e sua força de trabalho produtiva.

Não há, todavia, como iniciar nossas considerações sem nos reportarmos ao

trabalho escravo, que ainda hoje, em lugares não tão distantes, pode ser encontrado sem tanta

dificuldade.

A escravidão veio a ser a condição social das classes trabalhadoras porque se

acreditava que ela era a condição natural da própria vida.

26

O ônus da vida biológica, que pesa sobre a vida humana, medida entre os dias do

nascimento e da morte, e que a consome, só pode ser eliminado mediante o uso de servos, sendo

a função principal dos antigos escravos, a de arcar com o ônus do consumo de uma casa, e não

produzir para uma sociedade em geral. O trabalho escravo, portanto, desempenhou um

importante papel nas antigas sociedades porque os poderosos da terra podiam usar até mesmo os

sentidos através de seus escravos, isto é, podiam ver e ouvir através de seus escravos, sendo a

comida sua recompensa. Assim, com essa paga, os escravos obtinham o necessário para

sobreviver, enquanto seus donos, proprietários de terras, tinham a certeza de que subsistiriam

fisicamente. Vale ressaltar que essa remuneração, a qual consistia basicamente na sobrevivência

dos escravos, mantinha, por outro lado, a rentabilidade da terra de seus donos.

Sendo assim, o trabalho escravo era um trabalho que revertia seus frutos única e

exclusivamente aos seus donos, nada, porém, se destinava aos próprios escravos.

Passamos posteriormente a uma nova era do trabalho, onde surgem as ferramentas

e os instrumentos que podiam suavizar consideravelmente o esforço do labor. Tais instrumentos e

ferramentas são, na verdade, frutos do trabalho do próprio homem.

Passa-se a ter uma abundante e desenfreada busca pelo consumo, que move a

sociedade e que traduz nossa preocupação com o trabalho e com o homem que trabalha. É através

de uma dimensão jurídica do trabalho como condição humana que procuraremos amparar esse

trabalhador cada vez mais vulnerável e isolado no mundo da produção e do consumo

exacerbados.

Podemos dizer que o trabalho, se por um lado, deu algum poder ao homem, por

outro, tornou-o impotente diante de um enorme instrumental que o obriga a pensar em por a salvo

27

a própria existência humana. Irany Ferrari14 afirma que o trabalho, de uma parte eleva, liberta e

civiliza o homem para o mundo e de outra, reduz o homem a tarefas que o embrutecem pela

rotina desgastante.

Evoluindo, o homem foi encontrando os meios necessários para seu

desenvolvimento pessoal e social e, assim, o trabalho passou a oferecer-lhe melhores condições

de uma vida condigna e maior segurança, deixando de ser castigo, como na escravidão, e

passando a ser sinônimo de bem-estar do próprio trabalhador e de sua família. Passa a ser

exigência social, pois traz benefícios a toda a sociedade; adquiriu status social, pois passou a

contribuir para uma melhoria no nível de vida do trabalhador e de sua família; passou a ter

relevância política, pois, passou-se a exigir mais do Estado no que concerne à educação, saúde,

saneamento etc. e, por fim, passa a ter um caráter de solidariedade, pois o trabalho sai da esfera

do indivíduo e passa à esfera coletiva, isto é, no mundo moderno já não trabalha mais o homem

sozinho, mas todos os homens.

Há que se ressaltar que o trabalho começa a se expandir tanto na esfera do

indivíduo, quanto nas sociedades civil, comercial, industrial e agrícola, começando, pois, a trazer

melhorias na renda de quem se dedica ao trabalho, especialmente, para aqueles que se dedicam

aos trabalhos de direção e supervisão, o que traz uma nova visão ao trabalho intelectual, o qual

passa a assumir um papel relevante no meio empresarial.

14 FERRARI, Irany, NASCIMENTO, Amauri Mascaro e FILHO, Ives Gandra da Silva Martins. História do Trabalho do Direito do Trabalho e da Justiça do Trabalho – Homenagem a Armando Casimiro Costa. 2ª Edição. São Paulo: Editora LTr, 2002. pg. 48.

28

2.6. DIMENSÃO JURÍDICA - TRABALHO QUE LIBERTA E EMBRUTECE O

HOMEM.

Chegados a esse ponto, o trabalho não poderia deixar de merecer a proteção do

Direito. Um valor em si mesmo, eleva-se à condição de Bem Jurídico e passa a ser tutelado pelo

Estado.

No caso brasileiro o trabalho tem estatura constitucional desde a Constituição

Política do Império, datada de 25 de março de 1824, a qual, em seu artigo 179 garantia a

liberdade, a segurança individual e a propriedade, de diversas maneiras, estabelecendo no item 24

que nenhum gênero de trabalho, de cultura, indústria ou comércio poderia ser proibido, uma vez

que não se opusessem aos costumes públicos, à segurança e saúde dos cidadãos.

Já a Constituição Republicana, de 1891, na Seção de Declaração de Direitos,

artigo 72, inciso 24, estabelecia, em síntese, ser garantido o livre exercício de qualquer profissão

moral, intelectual e industrial.

A Carta de 16 de julho de 1934, originária do Governo Provisório instalado no

País em data de 11.11.1930, teve a primazia de introduzir um capítulo dedicado à Ordem

Econômica e Social nas que lhe sucederam. Escreveu-se naquela Constituição de 1934, no

Capítulo II destinado aos Direitos e Garantias Individuais, mais especificamente em seu item 12,

estar garantida a liberdade de associação para fins lícitos, as quais não poderiam ser previamente

dissolvidas senão por força de sentença judiciária. O item 13 do mesmo capítulo, por sua vez,

29

dizia ser livre o exercício de qualquer profissão, observadas as condições de capacidade técnica e

outras que a lei estabelecesse, ditadas pelo interesse público.

Por fim, já no Título IV de que trata da Ordem Econômica e Social poder-se-ia

destacar os artigos: 115 que estabelecia ser de responsabilidade dos poderes públicos a

verificação periódica acerca do padrão de vida nas várias regiões do País; 120 que disciplinava a

matéria sindical e 121 que dispunha que a lei promoveria o amparo à produção e estabeleceria as

condições de trabalho, na cidade e nos campos, tem em vista a proteção social do trabalhador e os

interesses econômicos do País. Vale ressaltar que o parágrafo primeiro desse mesmo dispositivo

legal passou a ser praticamente seguido pelas demais Constituições do Brasil, quando estabelecia

que a legislação do trabalho observaria os seguintes preceitos, além de outros que colimassem

melhorar as condições do trabalhador, quais sejam, proibição de diferença de salário para o

mesmo trabalhador por motivo de idade, sexo, nacionalidade ou estado civil, salário mínimo

capaz de satisfazer as necessidades normais de cada trabalhador, jornada de trabalho diária não

excedente de oito horas, proibição do trabalho para menores de 14 anos, de trabalho noturno para

os menores de 16 anos e em condições insalubres aos menores de 18 anos e às mulheres, repouso

hebdomadário, de preferência aos domingos, férias anuais remuneradas, indenização do

trabalhador dispensado sem justa causa, assistência médica e sanitária ao trabalhador e à gestante,

assegurado a esta descanso antes e depois do parto, sem prejuízo do salário e do emprego, e

instituição de previdência, mediante contribuição igual à União, do empregador e do empregado,

a favor da velhice, da invalidez, da maternidade e nos casos de acidente de trabalho ou de morte,

além de regulamentação do exercício de todas as profissões e reconhecimento das convenções

coletivas de trabalho. O parágrafo segundo desse artigo 121 é de suma importância para a época,

quando ainda não havia sido criada a CLT, mas apenas algumas tímidas leis sobre o trabalho,

30

pois determinava a proibição de distinção entre o trabalho manual e intelectual ou técnico nem

entre os profissionais respectivos. Por fim, o artigo 123 da mesma Carta de 1934 equiparava aos

trabalhadores, para todos os efeitos das garantias e dos benefícios da legislação social, os que

exerciam profissões liberais.

Surgiu no ordenamento jurídico brasileiro a Carta de 10 de novembro de 1937,

com a justificativa de que o Estado, sob as instituições existentes, não dispunha de meios

adequados para preservação e defesa da paz, da segurança e do bem-estar do povo e, com o apoio

das Forças Armadas e cedendo às inspirações da opinião pública nacional, foi editada pelo

Presidente da República de então, Getúlio Vargas.

Nasce o Estado Novo, intervencionista em seu todo, mas, em especial, na Ordem

Econômica e Social – tudo é o Estado, para o Estado e nada contra ele: A greve foi proibida; os

Sindicatos passaram a ser assistenciais; vigorou a unicidade sindical, com a reserva legal de que

só o Estado poderia reconhecer-lhe a legitimidade; Criou-se o Conselho de Economia nacional

com representantes de vários ramos da produção nacional, garantida a igualdade de representação

entre empregados e empregadores, divididos em cinco seções: (a) da indústria e do artesanato; (b)

da agricultura; (c) do comércio; (d) dos transportes; e (e) do crédito. Foi retirado o termo “Social”

do Capítulo dedicado à Ordem Econômica o qual estabelecia em seu artigo 136 que o trabalho

seria um dever social. O trabalho intelectual, técnico e manual tem direito a proteção e solicitude

especiais do Estado, sendo a todos garantido o direito de subsistir mediante seu trabalho honesto

e este, como meio de subsistência do indivíduo, constituiria um bem que é dever do Estado

proteger, assegurando-lhe condições favoráveis e meios de defesa.

31

Na visão de Irany Ferrari15 este dispositivo contém a concepção mais correta

elaborada para o trabalho no contexto da sociedade. Não pode ser compreendido como um dever-

obrigação, mas como um dever-direito. Defende o ilustre professor ser certo que o Brasil da

época, sob a influência do Estado Novo, influenciado pelo fascismo italiano, o dever ali se inseriu

para ser obrigação, tanto assim, que o Código Penal Brasileiro de 1940, sob a mesma inspiração,

tipificou como crime a vadiagem. Eram os sinais dos tempos de concepções da época em que se

sonhava com um mundo igualitário, inclusive quanto às obrigações de cada um, e nesse diapasão,

de trabalhar, como um dever, de não fazer greve, por ser ato anti-social, de ser passível de prisão

quem não trabalhasse.

E conclui Irany Ferrari16 seu pensamento:

De nada disso seria preciso, como coerção estatal, se o trabalho antes da obrigação

fosse um direito de todo o cidadão, como veremos no capítulo dedicado ao direito do

trabalho, e se o Governo da época se dispusesse a tomar medidas concretas para que

nenhum brasileiro ficasse sem o trabalho, como também era a filosofia reinante, tanto

que o trabalho honesto deveria ser um dever a ser protegido pelo Estado assegurando-

lhe condições favoráveis e meios de defesa.

A Constituição de 18 de setembro de 1946, votada pela Assembléia Constituinte

legalmente convocada, reorganizou o País nos moldes democráticos, incluiu a Justiça do

Trabalho como órgão do Poder Judiciário, com a mesma Constituição que existe até hoje,

hierarquicamente. No Título reservado à Ordem Econômica e Social, está dito que ela deveria ser

organizada conforme os princípios da justiça social, conciliando a liberdade de iniciativa com a

15 FERRARI, Op. Cit. p. 57-58. 16 IDEM, p. 58.

32

valorização do trabalho humano, devendo ser assegurado trabalho a todos, possibilitando-se,

assim, existência digna, continuando a ser o trabalho uma obrigação social, neste passo entendida

como uma necessidade social, gerando reflexos positivos para toda a sociedade.

Foi, portanto, com o advento da Constituição de 1946 que se ouviu falar, pela

primeira vez, em valorização do trabalho humano, princípios de justiça social e necessidade

social. Surge, portanto, ainda muito timidamente, uma semente com a preocupação do trabalho

como forma de dignidade da pessoa e condição humanas.

Promulgada a Constituição de 1967 em um período no qual o Brasil se encontrava

sob o regime militar, que fora instaurado com a revolução de 30 de março de 1964, tinha como

objetivo o combate à inflação que atingia limites alarmantes e para prevenir o País do comando

da esquerda política que crescia a olhos vistos. Porém, sua justificativa maior foi a de garantir a

harmonia e a solidariedade entre os fatores de produção, bem como a valorização do trabalho

humano. Essa Constituição praticamente manteve os direitos individuais e coletivos dos

trabalhadores garantidos pela Constituição de 1946, restringindo, todavia, o direito à greve e

proibindo-a nas atividades essenciais e nos serviços públicos. Como avanço enfatizou a

integração do trabalhador na vida e no desenvolvimento da empresa, com participação nos lucros

e, excepcionalmente, na gestão da própria empresa. Com tal inovação surgiu, inicialmente o PIS

e, posteriormente o PASEP, sendo depois geridos, o primeiro pela Caixa Econômica Federal e o

segundo pelo Banco do Brasil. A idade mínima para o trabalho passou a ser de 12 anos o que

contrariou flagrantemente todas as recomendações internacionais. Porém, a principal alteração,

quando ao trabalho, foi, sem dúvida, a introdução do FGTS, em substituição, ao menos parcial,

do direito à indenização, que, somente com a Constituição Federal de 1988, teve seu golpe de

morte finalmente dado.

33

Foi, todavia, com a promulgação da Constituição Federal de 5 de outubro de 1988

que o trabalho passou a fazer parte dos princípios fundamentais da República Brasileira, ao lado

da soberania, da cidadania, do pluralismo político, eis que ali estão, no artigo 1º da Carta Maior,

“a dignidade da pessoa humana” e, “os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa”,

fundamentos do Estado Democrático de Direito, da República Federativa do Brasil.

E será sobre esses princípios basilares, em especial o da dignidade da pessoa

humana que repousarão nossas considerações neste Estudo que nos propusemos a iniciar e jamais

a encerrar.

34

3. A HERMENÊUTICA COMO INSTRUMENTO DE

CONCRETIZAÇÃO DOS PRINCÍPIOS NA APLICAÇÃO DAS NORMAS

JURÍDICAS.

3.1. OS TRAÇOS FUNDAMENTAIS DE UMA TEORIA DA EXPERIÊNCIA

HERMENÊUTICA

A elevação da historicidade da compreensão a um princípio hermenêutico.Para

Gadamer, a compreensão não se trata de uma faculdade do homem, mas sim uma pré-condição

para sua existência inteligente. A hermenêutica, segundo o autor, não é utilizada para fins

práticos; mas sua preocupação é definir em que condições se dá o processo de compreensão.

“(...). É verdade que os preconceitos que nos dominam freqüentemente

comprometem o nosso verdadeiro reconhecimento do passado histórico. Mas sem uma prévia

compreensão de si, que é neste sentido um preconceito, e sem a disposição para uma autocrítica,

que é igualmente fundada na nossa autocompreensão, a compreensão histórica não seria

possível nem teria sentido. Somente através dos outros é que adquirimos um verdadeiro

conhecimento de nós mesmos. O que implica, entretanto, que o conhecimento histórico não

conduz necessariamente à dissolução da tradição na qual vivemos; ele pode também enriquecer

essa tradição, confirma-la ou modifica-la, enfim, contribuir para descoberta de nossa própria

identidade.(...)”17

“(...).Tal é provavelmente o papel mais importante da consciência histórica

caracterizada como burguesa: não que o antigo deva ser relativizado, mas que o novo, por sua

vez relativizado, torne possível uma justificação do antigo.”18

17 Cf.Gadamer,O Problema da Consciência Histórica,p.13. 18 Cf.Gadamer,O Problema da Consciência Histórica,p.15.

35

A intenção de Gadamer é dar plausibilidade ao seu modo de ver a hermenêutica, é

por apresentar uma teoria inovadora que alguns de seus observadores atribuem ao seu trabalho a

virada hermenêutica. Ao utilizar a consciência histórica como elemento indispensável para

compreensão, Gadamer se coloca em uma posição de vanguarda nessa nova visão de

hermenêutica.

“(...).Entendemos por consciência histórica o privilégio do homem moderno de ter

plena consciência da historicidade de todo presente e da relatividade de toda opinião.(...).19

Esse homem moderno -que Gadamer descreve- possui um comportamento notadamente

reflexivo, possibilitando a compreensão como um todo:

“(...). Ninguém pode atualmente eximir-se da reflexividade que caracteriza o

espírito moderno. Seria absurdo, daqui por diante, confinar-se na ingenuidade e nos limites

tranqüilizadores de uma tradição fechada sobre si mesma, no momento em que a consciência

moderna encontra-se apta a compreender a possibilidade de uma múltipla relatividade de pontos

de vista. Também nos habituamos, nesse sentido, a responder aos argumentos que se nos opõem

através de uma reflexão em que nos coloquem deliberadamente na perspectiva do outro”.20

Para que a interpretação seja feita da maneira como Gadamer a vislumbra, a

consciência histórica não pode assumir uma atitude passiva diante da tradição:

“(...), vida moderna começa a se recusar a seguir ingenuamente uma tradição ou

um conjunto de verdades aceitas tradicionalmente. A consciência moderna assume –

precisamente como consciência histórica – uma posição reflexiva com relação a tudo que lhe é

transmitido pela tradição. A consciência histórica já não escuta beatificamente a voz que lhe

chega do passado, mas, ao refletir sobre ela mesma, recoloca-a no contexto em que ela se

originou, a fim de ver o significado e o valor relativos que lhe são próprios. Esse comportamento

reflexivo diante da tradição chama-se tradição”.21

19 Cf.Gadamer,O Problema da Consciência Histórica,p.18. 20 Cf.Gadamer,O Problema da Consciência Histórica,p.18. 21 Cf.Gadamer,O Problema da Consciência Histórica,p.18.

36

A atitude que Gadamer espera do intérprete não é a que abomine a tradição, pelo

contrário, para que seja perfeito o ciclo da compreensão é antes dever daquele que busca o

significado colocar em discussão suas opiniões e buscar aquilo que a tradição coloca em questão.

Não se trata de um método em busca da verdade, o que fez Gadamer foi valorizar a posição do

intérprete no processo, chamando a atenção para a posição deste como observador do passado e

do presente.

“(...). Não se trata, em absoluto, de definir simplesmente um método específico,

mas sim de fazer justiça a uma idéia inteiramente diferente de conhecimento e de verdade.

(...)”.22

Com relação à teoria do círculo hermenêutico, em particular, se apresenta sob

novo aspecto e adquire importância fundamental. Não se trata somente da relação formal entre

a antecipação do todo e a construção das partes, correspondente à regra do “decompor e

recompor” que nos era ensinada nos cursos de latim – relação que de fato constitui a estrutura

circular da compreensão de textos. Ora, o círculo hermenêutico é um círculo rico em conteúdo

que reúne o intérprete e seu texto numa unidade interior a uma totalidade em movimento. A

compreensão implica sempre uma pré-compreensão que, por sua vez, é prefigurada por uma

tradição determinada em que vive o intérprete e que modela seus preconceitos.

Gadamer atribui à análise existencial de Heidegger a descoberta do novo sentido

da estrutura circular da compreensão:

“Eis o que lemos em Heidegger: “Não podemos depreciar esse círculo

qualificando-o de vicioso e nos resignarmos com este seu traço. O círculo encerra em si uma

autêntica possibilidade de conhecer mais original que só aprendemos corretamente quando

admitimos que toda explicitação (ou interpretação) tem por tarefa primeira, permanente e última

22 Cf.Gadamer,O Problema da Consciência Histórica,p.18.

37

não deixar que seus conhecimentos e concepções prévios se imponham pelo que se antecipa nas

instituições e noções populares.(...)”.23

Com relação à descoberta de Heidegger e da pré-estrutura da compreensão,

enquanto Heidegger entra na problemática da hermenêutica e das críticas históricas com o fim

ontológico de desenvolver, a partir delas a pré-estrutura da compreensão; Gadamer quer saber se

uma vez liberadas as inibições ontológicas do conceito de objetividade da ciência, a hermenêutica

fará jus à historicidade da compreensão.

“(...). Toda interpretação correta tem que proteger-se da ocorrência de “felizes

idéias” e contra a limitação de hábitos imperceptíveis do pensar e orientar sua vista “às coisas

elas mesmas”(...)”.24

Para que um texto seja compreendido é necessário um projetar, porque ao

constatar o intérprete um primeiro sentido no texto, em verdade já é também noção do todo.

“ Naturalmente que o sentido somente se manifesta porque quem lê o texto lê a

partir de determinadas expectativas e na perspectiva de um sentido determinado. A compreensão

do que já está posto no texto consiste precisamente na elaboração desse projeto prévio, que,

obviamente, tem que ir sendo constantemente revisado com base no que se dá conforme se

avança na penetração do sentido”.25

No processo de compreensão, o intérprete se coloca em uma posição em que não

pode desprezar o passado e se utilizar apenas de suas opiniões prévias; em razão de sua existência

como ser inteligente, o indivíduo é dotado de preconceitos que fazem parte desse processo de

busca, não diria de uma verdade absoluta, até porque o próprio Gadamer não vê a compreensão

como um processo finito. É necessário, porém, que essas opiniões prévias que ensejaram a

23 Cf.Gadamer,O Problema da Consciência Histórica,p.60. 24 Cf.Gadamer, Verdade e Método,p.402. 25 Cf.Gadamer, Verdade e Método,p.402.

38

compreensão tenham legitimidade (origem e validez), do contrário não há porque se falar em

interpretação, se não satisfeita tal exigência.

“Essa exigência fundamental deve ser pensada como a radicalização de um

procedimento que na realidade exercemos sempre que compreendemos algo. Face a qualquer

texto, nossa tarefa é não introduzir, direta e acriticamente, nossos próprios hábitos lingüísticos –

ou, no caso de uma língua estrangeira, aquele que nos é familiar através dos autores ou do

exercício cotidiano. Pelo contrário, reconhecemos como nossa tarefa o alcançar a compreensão

de um texto somente a partir do hábito lingüístico epocal e de autor(...)”.26

Gadamer se ocupou também em encontrar “a saída do cabo de força das próprias

opiniões prévias”, e explicita qual seria a atitude do intérprete a fim de não fosse afetada a

compreensão e fosse observado o conteúdo do texto, qual seja, aquele que quer compreender não

pode se entregar já desde o início, à causalidade de suas próprias opiniões prévias e ignorar o

mais obstinada e conseqüentemente possível a opinião do texto – até que este, finalmente, já não

possa ser ouvido e perca sua suposta compreensão. Quem quer compreender um texto, em

princípio, disposto a deixar que ele diga alguma coisa por si. Por isso, uma consciência formada

hermeneuticamente tem que se mostrar receptiva, desde o princípio para a alteridade do texto.

Mas essa receptividade não pressupõe nem “neutralidade” com relação à coisa nem tampouco

auto-anulamento, mas inclui a apropriação das próprias opiniões prévias e preconceitos,

apropriação que se destaca destes.27

O descrédito que sofreu o preconceito através do Aufklãrung, fez surgir a teoria

dos preconceitos desenvolvida no Aufklãrung traz a seguinte divisão:

26 Cf.Gadamer, Verdade e Método,p.403. 27 Cf.Gadamer, Verdade e Método,p.405.

39

- Preconceitos gerados pelo respeito humano.

- Preconceitos gerados por precipitação.

Na verdade, o fato de que a autoridade seja uma fonte de preconceitos coincide

com o conhecido princípio fundamental de Kant: tenha coragem de te servir de teu próprio

entendimento. Embora, a decisão, citada acima, não se restrinja somente ao papel que os

preconceitos desempenham na compreensão dos textos, ela encontra seu campo de aplicação

preferencial também no âmbito hermenêutico..28

Convém, ainda, assinalar que a tendência geral do Aufklãrung é não deixar valer

autoridade alguma e decidir tudo diante de um tribunal da razão. Assim, a tradição escrita, a

Sagrada Escritura, como qualquer outra informação histórica, não podem valer por si mesmas.

Antes, a possibilidade de que a tradição seja verdade depende da credibilidade que a razão lhe

concede. A fonte última de toda autoridade já não á tradição mas a razão. O que está escrito não

precisa ser verdade”.29

Os padrões do Aufklãrung moderno continuam determinando a autocompreensão

do historicismo. Fazem-no não imediatamente, é claro, mas através de uma ruptura peculiar

causada pelo romantismo. Isso cunha-se muito claramente, no esquema básico da filosofia da

história, que o romantismo tem em comum com o Aufklãrung e que se firma como premissa

inabalável precisamente pela reação romântica contra o Aufklãrung: o esquema da superação do

mythos pelo logos..30

Ademais a auto-reflexão e a autobiografia – pontos de partida de Dilthey- não são

fatos primários e não bastam como base para o problema hermenêutico, porque por eles a história

é reprivatizada. Na realidade não é a história que pertence a nós mas nós é que a ela pertencemos.

28 Cf.Gadamer, Verdade e Método,p.409. 29 Cf.Gadamer, Verdade e Método,p.410. 30 Cf.Gadamer, Verdade e Método,p.411.

40

Muito antes de que nós compreendamos a nós mesmos na reflexão, já estamos nos

compreendendo de uma maneira auto-evidente na família, na sociedade e no Estado em que

vivemos. A lente da subjetividade é um espelho deformante. A auto-reflexão do indivíduo não é

mais que uma centelha na corrente cerrada da vida histórica. Por isso os preconceitos de um

indivíduo são, muito mais que seus juízos, a realidade histórica do seu ser.”31

Não podemos deixar de destacar o importante papel têm os preconceitos como

condição de compreensão, para tanto segue-se a análise:

a) A reabilitação da autoridade e tradição

“(...), a atitude autêntica é aquela que visa a uma “cultura” da tradição no sentido

literal da palavra, ou seja, um desenvolvimento e uma continuação daquilo que reconhecemos

como sendo o elo concreto entre todos nós.(...).De fato, a realidade da tradição mal constitui um

problema de conhecimento; ela é, ao contrário, um fenômeno de apropriação espontânea e

produtiva dos conteúdos transmitidos”.32

“(...).Se se quer fazer justiça ao modo de ser finito e histórico do homem, é

necessário levar a cabo uma drástica reabilitação do preconceito e reconhecer que existem

preconceitos legítimos.(...)”.33

Como identificar quando um preconceito é legítimo?

31 Cf.Gadamer, Verdade e Método,p.415. 32 Cf.Gadamer,O Problema da Consciência Histórica,p.44. 33 Cf.Gadamer, Verdade e Método,p.416.

41

A premissa do Aufklãrung se calca no uso metódico e disciplinado da razão como

suficiente para coibir o erro (idéia cartesiana do método). A má utilização dessa razão está

associada à precipitação, que é fonte de equívocos. Já a autoridade nem ao menos permite o uso

dessa razão.

A Reforma de Lutero proporcionou a busca pela utilização correta da razão na

compreensão da tradição, sem que isso seja feito da forma despótica como era de costume:

“(...).Nem a autoridade do magistério papal,

nem o apelo à tradição podem tornar supérflua a

atividade hermenêutica, cuja tarefa é defender o

sentido razoável do texto contra toda imposição”.34

Então, o preconceito legítimo seria tão-somente aquele que se respalda na razão?

Responder afirmativamente seria restringir demais o papel dos preconceitos, e

simplificar seu papel na interpretação. Mesmo quando um preconceito é justificável, torna-se,

porém imprescindível analisa-lo a partir do problema da autoridade, pois, na verdade, a

autoridade é, em primeiro lugar, um atributo de pessoas. Mas a autoridade das pessoas não tem

seu fundamento último num ato de reconhecimento e de conhecimento: reconhece-se que o outro

está cima de nós em juízo e perspectiva e que, por conseqüência, seu juízo precede, ou seja, tem

primazia em relação ao nosso próprio. Junto a isso dá-se que a autoridade não se outorga,

adquire-se, e tem de ser adquirida se ela quer apelar.35

A tradição foi uma forma de autoridade defendida pelo romantismo, afirmava-se

que aquilo consagrado pela tradição e pela herança histórica perfaz uma autoridade que se tornou

anônima, mas que não pode ser ignorada. Por exemplo: os costumes retiram sua validade da

34 Cf.Gadamer, Verdade e Método,p.417. 35 Cf.Gadamer, Verdade e Método,p.419.

42

herança histórica e da tradição, e nem por isso deixam de ser respeitados e reconhecidos pela

sociedade, pode até ser que mudem.

“(...), à margem dos fundamentos da

razão, a tradição conserva algum direito e

determina amplamente as nossas instituições e

comportamentos.(...)”.36

A tradição é essencialmente conservação e como tal sempre está atuante nas

mudanças históricas. No entanto, a conservação é um ato de razão, ainda que caracterizado pelo

fato de não atrair atenção sobre si.37

Vê-se, pois, que a conservação, a destruição e a inovação no processo de

interpretação constituem a conduta livre da sociedade de uma época:

O que, de fato, satisfaz nossa consciência histórica é sempre uma pluralidade de

vozes nas quais ressoa o passado. Isso somente aparece na diversidade de ditas vozes, tal é a

essência da tradição da qual participamos e queremos participar. A própria investigação histórica

moderna não é somente investigação, mas também mediação da tradição.38

b) O exemplo do clássico.

O conceito de clássico, que no pensamento histórico, a partir do descobrimento do

helenismo por Droysen, tinha sido reduzido a um mero conceito estilístico, obtém agora um novo

direito de cidadania.39

36 Cf.Gadamer, Verdade e Método,p.421. 37 Cf.Gadamer, Verdade e Método,p.423. 38 Cf.Gadamer, Verdade e Método,p.427. 39 Cf.Gadamer, Verdade e Método,p.428.

43

O conceito do clássico designa hoje uma fase temporal, uma fase de um

desenvolvimento histórico, não um valor supra-histórico.40

O clássico é uma verdadeira categoria histórica por ser mais do que o conceito de

uma época ou o conceito histórico de um estilo, sem que por isso pretenda ser uma idéia de valor

supra-histórico. Não designa uma qualidade que deva ser atribuída a determinados fenômenos

históricos, mas, sim, um modo característico do próprio ser histórico, a realização histórica da

conservação que, numa confirmação constantemente renovada, torna possível a existência de

algo verdadeiro.41

No fundo, o clássico é bem outra coisa do que um conceito descritivo em poder de

uma consciência histórica objetivadora; é uma realidade histórica, à qual a própria consciência

histórica continua pertencendo e submetida. O que é clássico é aquilo que se diferenciou

destacando-se dos tempos mutáveis e dos gostos efêmeros; é acessível de modo imediato.42

Temos assim o significado hermenêutico da distância temporal.

- Como se inicia o esforço hermenêutico?

- Quais as conseqüências geram para a compreensão a condição hermenêutica de

pertença a uma tradição?

De acordo com a regra hermenêutica, é necessário compreender o todo a partir do

individual e o individual a partir do todo.

40 Cf.Gadamer, Verdade e Método,p.430. 41 Cf.Gadamer, Verdade e Método,p.431. 42 Cf.Gadamer, Verdade e Método,p.431.

44

“(...) A antecipação do sentido, na qual está entendido o todo, chega a uma

compreensão explícita através do fato de que as partes que se determinam a partir do

todo, determinam por sua vez, a esse todo”.43

“(...) O critério correspondente para a correção da compreensão é sempre a

concordância de cada particularidade com o todo. Quando não há tal concordância,

isso significa que a compreensão malogrou”.44

Schleiermacher aponta no círculo hermenêutico um aspecto objetivo e um aspecto

subjetivo, tal como cada palavra forma parte do nexo da frase, cada texto forma parte do nexo da

obra de um autor e esta forma parte, por sua vez, do conjunto do correspondente gênero literário e

mesmo de toda literatura. Mas, por outro lado, o mesmo texto pertence, como manifestação de

um momento criador, ao todo da vida da alma de seu autor. A compreensão acaba acontecendo, a

cada caso, a partir desse todo, de natureza tanto objetiva como subjetiva. No que se relaciona com

essa teoria, Dilthey falará de “estruturas” e da “concentração em um ponto central”, a partir do

qual se produz a compreensão do todo. Com isso ele transporta ao mundo histórico, como já

dizíamos, o que desde sempre tem sido um fundamento de toda interpretação textual: que cada

texto deve ser compreendido a partir de si mesmo.45

Mas, em que aspecto deve ser entendido o movimento circular da compreensão?

“O círculo, portanto, não é de natureza formal. Não é nem objetivo nem

subjetivo, descreve, porém, a compreensão como a interpretação do movimento da

43 Cf.Gadamer, Verdade e Método,p.436. 44 Cf.Gadamer, Verdade e Método,p.436. 45 Cf.Gadamer, Verdade e Método,p.437.

45

tradição e do movimento do intérprete. A antecipação do sentido, que guia nossa

compreensão de um texto, não é um ato de subjetividade, já que se determina a partir

da comunhão que nos une com a tradição. Porém, essa nossa relação com a tradição,

essa comunhão está submetida a um processo de contínua formação.(...)”.46

Gadamer atribui um novo sentido a esse círculo, em razão de uma nova

conseqüência hermenêutica, e que ele denomina de “concepção prévia da perfeição”.

“(...)O que pretende dizer é que somente é compreensível o que apresenta uma

unidade perfeita do sentido. Fazemos tal pressuposição da perfeição quando lemos um

texto, e somente quando esta se manifesta como insuficiente, isto é, quando o texto não

é compreensível, duvidamos da transmissão e procuramos adivinhar como pode ser

remetida”.47

É através da comunidade de preconceitos fundamentais e sustentadores que se

realiza o momento da tradição no comportamento histórico-hermenêutico, para Gadamer este é o

sentido da pertença.

“(...)A hermenêutica tem de partir do fato de que quem quer compreender está

vinculado com a coisa em questão que se expressa na transmissão e que tem ou

alcança uma determinada conexão com a tradição a partir da qual a transmissão fala.

Por outro lado, a consciência hermenêutica sabe que não pode estar vinculada à coisa

em questão, ao modo de uma unidade inquestionável e natural, como se dá na

continuidade ininterrupta da tradição.(...)”.48

46 Cf.Gadamer, Verdade e Método,p.440. 47 Cf.Gadamer, Verdade e Método,p.440. 48 Cf.Gadamer, Verdade e Método,p.442.

46

Para Gadamer, a hermenêutica tem como tarefa esclarecer as condições que

ensejam a compreensão, não se confundido com um procedimento específico para tanto.

“(...) Mas essas condições não têm todas o modo de ser de um procedimento ou

de um método de tal modo que quem compreende poderia aplica-las por si mesmo –

essas condições tem de estar dadas. Os preconceitos e opiniões prévias que ocupam a

consciência do intérprete não se encontram à sua disposição, enquanto tais.(...)”.49

Dizer que a compreensão é um comportamento sempre produtivo, demonstra que

o novo sentido dado a um texto pelo intérprete irá superar seu autor sempre; especialmente

quanto maior for a distância do tempo, porque o tempo já não é mais, primariamente, um abismo

a ser transposto porque divide e distancia, mas é na verdade, o fundamento que sustenta o

acontecer onde a atualidade finca suas raízes(...) Na verdade trata-se de reconhecer a distância do

tempo como uma possibilidade positiva e produtiva do compreender. Não é um abismo

devorador, mas está preenchido pela continuidade da herança histórica e da tradição(...)”.50

A distância temporal possibilita, ainda, “distinguir os verdadeiros preconceitos,

sob os quais compreendemos, dos falsos preconceitos que produzem os mal entendidos”. Isso

porque Gadamer não aceita que o intérprete seja neutro.

3.2. INTERPRETAÇÃO, COMPREENSÃO E APLICAÇÃO NO PROCESSO

HERMENÊUTICO.

49 Cf.Gadamer, Verdade e Método,p.442. 50 Cf.Gadamer, Verdade e Método,p.445.

47

Antes de falarmos da hermenêutica jurídica como instrumento de concretização

dos princípios, mister que analisemos o problema hermenêutico da aplicação, fulcrando nossas

considerações nos ensinamentos de Hans-Georg Gadamer, em sua obra intitulada Pensamento

Humano – Verdade e Métodos – Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 3ª Edição.

Petrópolis: Editora Vozes, 1999, mais especificamente na segunda parte da referida obra, que

trata da retomada do problema hermenêutico fundamental, páginas 459 a 544.

O problema hermenêutico fundamental, que ocupava lugar sistemático, apresenta

dois componentes: a compreensão (subtilitas intelligendi) e interpretação (subtilitas explicandi),

tendo a elas, durante o pietismo, sido incorporado um terceiro componente, qual seja, a aplicação

(subtilitas applicandi). Esses três momentos deveriam, pois, perfazer o modo de realização da

compreensão.

A interpretação não é um ato posterior e oportunamente complementar à

compreensão, porém, compreender é sempre interpretar, e, por conseguinte, a interpretação é a

forma explicita da compreensão. A fusão interna da compreensão e da interpretação teve como

conseqüência prática a complexa desconexão do terceiro momento da problemática da

hermenêutica, qual seja, o da aplicação, o que vai de encontro aos nossos estudos, pois

acreditamos que a aplicação é um momento do processo hermenêutico, tão essencial e integrante

como a compreensão e a interpretação.

A história da hermenêutica nos ensina que junto à hermenêutica filológica -

ciência que, por meio de textos escritos, estuda a língua, a literatura e todos os fenômenos de

cultura de um povo - existiriam também uma teológica e outra jurídica e que somente as três

juntas comportariam o conceito pleno de hermenêutica.

48

A união dessas três formas de interpretação como um conceito pleno de

hermenêutica é descrito como sendo uma estreita pertença que unia na sua origem a hermenêutica

filológica com a hermenêutica jurídica repousando sobre o reconhecimento da aplicação como

momento integrante de toda compreensão. Tanto para a hermenêutica jurídica como para a

teológica, é constitutiva a tensão que existe entre o texto proposto – da lei ou da revelação – por

um lado, e o sentido que alcança sua aplicação ao instante concreto da interpretação, no juízo ou

na prédica, por outro. Uma lei não quer ser entendida historicamente. A interpretação deve

concretizá-la em sua validez jurídica. Da mesma maneira, o texto de uma mensagem religiosa

não deseja ser compreendido como um mero documento histórico, mas ele dever ser entendido de

forma a poder exercer seu efeito redentor. Em ambos os casos isso implica que o texto, lei ou

mensagem de salvação, se se quiser compreendê-lo adequadamente, isto é, de acordo com as

pretensões que o mesmo apresenta, tem de ser compreendido em cada instante, isto é, em cada

situação concreta de uma maneira nova e distinta. E, assim, nesse sentido, poder-se-ia dizer que

compreender é sempre aplicar.

Outra questão fundamental para nossas considerações está na teoria geral da

interpretação onde procurou-se distinguir três formas de interpretação, quais sejam, cognitiva,

normativa e re-produtiva.

A distinção entre uma função normativa e uma função cognitiva faz cindir,

definitivamente, o que claramente é uno. O sentido da lei, que se apresenta em sua aplicação

normativa, não é, em princípio, diferente do sentido de um tema, que ganha validez na

compreensão de um texto. É completamente errôneo fundamentar a possibilidade de

compreender textos na pressuposição da “congenialidade” que uniria o criador e o intérprete de

uma obra. Se isso fosse assim, as ciências do espírito estariam em maus lençóis. O milagre da

49

compreensão consiste, antes, no fato de que não é necessária a congenialidade para reconhecer o

que é verdadeiramente significativo e o sentido originário de uma tradição. Somos, antes, capazes

de nos abrir à pretensão excelsa de um texto e corresponder compreensivamente ao significado

com o qual nos fala. A hermenêutica, no âmbito da filologia e da ciência espiritual da história,

não é um “saber dominador”, isto é, apropriação por apoderamento, mas se submete à pretensão

dominante do texto. Mas para isso o verdadeiro modelo é constituído pela hermenêutica jurídica e

teológica. A interpretação da vontade jurídica e da promessa divina não são evidentemente

formas de domínio, mas de servidão. Ao serviço daquilo que deve valer, elas são interpretações,

que incluem aplicação. A tese é, pois, que também a hermenêutica histórica tem que levar a cabo

o fornecimento da aplicação, pois, também ela serve à validez de sentido, na medida em que

supera, expressa e conscientemente, a distância de tempo que separa o intérprete do texto,

superando assim a alienação de sentido que o texto experimentou.

Não há falar em hermenêutica sem que se esteja obrigado a nos reportarmos a

Aristóteles, mais especificamente à sua teoria da atualidade hermenêutica e Hans-Georg

Gadamer51 faz referência à atualidade hermenêutica de Aristóteles, considerando a ética

aristotélica como solução para o que denomina de “contexto problemático”, referido-se ao núcleo

do problema hermenêutico, que, segundo ele, está no fato de que a tradição como tal tem que ser

entendida cada vez de uma maneira diferente, tratando-se, portanto, sob o ponto de vista lógico,

da relação entre o geral e o particular.

A ética aristotélica tem como pilar a questão de que o saber do homem deve

orientar o seu fazer. Nesse particular o saber se divide em dois campos: técnico e ético.

Surge, então, a partir dessa discussão sobre o técnico e o ético, o ponto em que se

poderia relacionar a análise aristotélica do saber ético com o problema hermenêutico das 51 GADAMER, p. 465.

50

modernas ciências do espírito. Na verdade, a consciência hermenêutica não se trata de um saber

técnico nem ético, porém, ambos contêm a mesma tarefa da aplicação que temos reconhecido

como a dimensão problemática central da hermenêutica. Também é claro que “aplicação” não

significa o mesmo em ambos os casos. Existe uma peculiaríssima tensão entre a tekne que se

ensina e aquela que se adquire por experiência.

Sobre o conceito de aplicação, conclui-se que só se pode aplicar o que já se

conhece previamente, que uma tekne ou técnica se aprende e pode-se esquecer, enquanto que o

saber ético não pode ser aprendido e nem esquecido, ao passo que não podemos nos confrontar

com ele de maneira que dele possamos ou não nos apropriar, da mesma forma que se pode eleger

um saber objetivo, ou seja, uma tekne.

O saber ético já deve ser sempre conhecido por nós e, dessa forma, esteja pronto

para ser aplicado à situação concreta. As imagens que o homem forma, sobre o que ele deve ser,

como por exemplo, seus conceitos de justo e injusto, de decência, coragem, dignidade,

solidariedade etc. (todos conceitos que têm seu correlato no catálogo das virtudes de Aristóteles)

são, de certo modo, imagens, diretrizes, pelas quais se guia.

E será que essas imagens e diretrizes farão justas todas as atitudes do homem? O

que é justo não pode ser determinado por inteiro, independentemente da situação que nos pareça

de justiça. É evidente que o justo também parece estar determinado num sentido absoluto, pois

está formulado nas leis e contido nas regras gerais de comportamento da ética, que apesar de não

estarem codificadas, mesmo assim, tem uma determinação precisa e uma vinculação geral. O

próprio cultivo da justiça é uma tarefa própria que requer saber e poder.

No campo do direito, aquele que “aplica”, estará obrigado, diante da situação

concreta, a fazer concessões com respeito à lei num sentido estrito, mas, não porque não seja

51

justo. Fazendo o aplicador do direito concessões em face da lei não estará fazendo deduções à

justiça, mas, ao contrário, estará encontrando um direito melhor. Diz Aristóteles, por conseguinte

que a eqüidade é a correção da lei.

Surge então uma questão fundamental para a teoria aristotélica: a distinção entre

direito natural e direito positivo, não sendo a inalterabilidade do primeiro e alterabilidade desse

último, a única característica que os diferencia.

O direito positivo existe pela própria existência de leis jurídicas que são coisa da

conveniência, como por exemplo as normas de trânsito, como a regra que determina a condução

pela direita. Mas, também existem aquelas que não permitem uma convenção humana qualquer,

porque a própria “natureza das coisas” tende a se impor constantemente, sendo essa classe de leis

chamadas justificadamente de “direito natural”.

Os exemplos que Aristóteles apresenta são extremamente elucidativos, quando se

entende que a natureza das coisas deixa uma certa margem de mobilidade para a afirmação,

podendo, por conseguinte, esse direito natural ser alterado.

Exemplifica Aristóteles, na questão das leis do trânsito, quando se convencionou

que se deva conduzir pela direita, que a mão direita é, por natureza, a mais forte, mas nada

impede que se treine a esquerda até igualá-la à direita.

3.3. A QUESTÃO DA APLICAÇÃO NA HERMENÊUTICA JURÍDICA.

Onde está o homem está a interpretação. Não adiantaria ali estar o Direito se não

estivesse ele constantemente sendo interpretado, sendo submetido à apreensão do sentido que

52

possa oferecer. Sem isso, é como se não estivesse lá. Direito, ou qualquer outro objeto cultural,

sem a abordagem do interprete, ou seja, sem o sendo da interpretação, é paralisia, é estagnação.

Não passa de algo virtual, mera potencialidade, e, assim, perde a razão de ser. Mas a própria

interpretação já feita, também é paralisia e estagnação. Outra interpretação que se faça, do mesmo

objeto cultural, é sempre nova apreensão de sentido, é sempre uma nova interpretação, que pode

até coincidir com o sentido antes captado, mas não necessariamente, pois o processo espiritual é

novo. Todo nova interpretação é uma interpretação nova. Por isso, se se deseja dar vida vivente

ao Direito, não se fale em Direito, fale-se em interpretação dele. Esta é que se aplica à existência

efetiva das relações convivenciais.

A ordem jurídica constitui um sistema, por conta disso, reveste-se de unidade. Não

de uma unidade morta, parada, mas de uma unidade funcional, em que cada elemento ou parte,

mesmo sem perder sua forma ou base física, tem de contribuir para o funcionamento do todo. A

hermenêutica permite, através do circulo que se forma entre as compreensões do mundo físico, da

sociedade objetiva, da vida vivente, da individualidade, enfim, do existir, extraindo-se das

inúmeras alternativas que se oferecem ao intérprete aquela de maior interesse, respeitado o

homem, ao todo convivencial. Toda e qualquer interpretação que se feche para essa enorme

tessitura sistêmica, será uma interpretação insensível ao todo em que o homem e o Direito se

inserem, por isso mesmo, será uma compreensão pobre e incapaz de escolher, em meio à

variedade de sentidos possíveis, aquele que melhor atenda aos reclamos da dimensão total do ser

humano em busca da justiça.

Outro ponto de fundamental importância para nossos estudos repousa no

significado paradigmático da hermenêutica jurídica. Nesse particular, há que se fazer uma

53

distinção entre a hermenêutica jurídica e a hermenêutica histórica, estudando os casos em que

uma e outra se ocupam do mesmo objeto, isto é, os casos em que textos jurídicos devem ser

interpretados juridicamente e compreendidos historicamente.

O jurista toma o sentido da lei a partir de, e em virtude de um determinado caso

concreto. Já o historiador jurídico, pelo contrário, não tem nenhum caso de que possa partir, mas

procura determinar o sentido da lei, na medida em que coloca construtivamente a totalidade do

âmbito de aplicação da lei diante dos olhos. Defende sua teoria sob o argumento de que a

hermenêutica jurídica recorda em si mesma o autêntico procedimento das ciências do espírito.

Nela temos o modelo de relação entre passado e presente que estávamos procurando. Quando o

juiz adeqüa a lei transmitida às necessidades do presente, quer certamente resolver uma tarefa

prática. Isso não quer dizer, todavia, que sua interpretação da lei seja uma tradução arbitrária.

Também nesse caso, compreender e interpretar significam conhecer e reconhecer um sentido

vigente. O juiz procura corresponder à “idéia jurídica” da lei, intermediando-a com o presente e

com o caso posto à sua análise. É evidente, ali, uma mediação jurídica. O que tenta reconhecer é

o significado jurídico da lei, não o significado histórico de sua promulgação ou certos casos

quaisquer de sua aplicação. Assim, não se comporta como historiador, mas se ocupa de sua

própria história, que é seu próprio presente. Por conseqüência, pode, a cada momento, assumir a

posição do historiador, face às questões que implicitamente já o ocuparam como juiz.

Por outro lado e inversamente, o historiador, que não tem diante de si nenhuma

tarefa jurídica, mas que pretende simplesmente averiguar o significado histórico da lei – como o

faria o conteúdo de qualquer outra tradição histórica – não pode ignorar que seu objeto é uma

criação do direito, que tem que ser entendida juridicamente. Ele tem que poder pensar também

juridicamente e não apenas historicamente.

54

Diante de tais considerações, conclui-se que para a possibilidade de uma

hermenêutica jurídica é essencial que a lei vincule por igual todos os membros da comunidade

jurídica, posto que se isso não ocorrer, como no caso do absolutismo, onde a vontade do senhor

absoluto estava acima da lei, não há falar em hermenêutica alguma.

A tarefa da interpretação, pois, consiste, nas palavras de Gadamer, em “concretizar

a lei em cada caso, isto é, em sua aplicação.”52 . Cabe, assim, ao juiz, o papel de complementar

produtivamente o direito, sendo sua sentença, não um conjunto de arbitrariedades imprevisíveis,

mas uma ponderação justa do conjunto, estando, assim, garantida a tão desejada segurança

jurídica, fundamental no estado democrático de direito.

Há que se fazer, ainda, uma breve referência à a hermenêutica e à dogmática

jurídicas, informando existir entre elas uma relação essencial, na qual a hermenêutica detém uma

posição preponderante. Poder-se-ia, pois, afirmar, não ser sustentável a idéia de uma dogmática

jurídica total, sob a qual se pudesse baixar qualquer sentença por um simples ato de subsunção.

Outra questão abordada por Gadamer53 diz respeito à hermenêutica teológica, tal

como foi desenvolvida pela teologia protestante, entendendo que aqui se pode apreciar com

clareza uma autêntica correspondência com a hermenêutica jurídica, já que nesse caso, a

dogmática não reveste nenhum caráter de primazia. Chama atenção, porém, para uma diferença

fundamental, qual seja, a hermenêutica teológica encontra sua verdadeira concreção da

proclamação na prédica, (pregação, sermão), a qual não é uma complementação produtiva do

texto que interpreta, mas, tão-somente, o anúncio de uma verdade, tendo o ouvinte que alcançar

seu significado, não pela idéia do pregador, mas pela força da própria palavra.

52 GADAMER, Op. Cit. p. 489. 53 IDEM, P. 490.

55

Conclui-se, portanto que, o que é verdadeiramente comum a todas as formas da

hermenêutica é que o sentido de que se trata de compreender, somente se concretiza e se

completa na interpretação, porém, ao mesmo tempo, essa ação interpretadora se mantém

inteiramente atada ao sentido dado ao texto por aquele a quem tal texto fora direcionado. Assim,

a compreensão não está na literalidade da ordem, nem tampouco na verdadeira intenção de quem

a dá, mas unicamente na compreensão da situação e na responsabilização de quem a obedece.

Tornou-se, pois, evidenciado que o sentido da aplicação já está de antemão em

toda forma de compreensão. A aplicação não significa aplicação ulterior de algo comum,

compreendida primeiro em si mesma, a um caso concreto, mas é, antes, a verdadeira

compreensão do próprio comum que cada texto dado representa para nós.

Após os ensinamentos de Hans-Georg Gadamer entendemos necessário

mencionarmos o processo de interpretação defendido por Lenio Luiz Streck54 em sua obra

Jurisdição Constitucional e Hermenêutica.

Lenio Luiz Streck55 rompendo com o paradigma metafísico aristotélico-tomista

defende a idéia de que, ao mesmo tempo, o processo interpretativo deixa de ser reprodutivo e

passa a ser produtivo, alegando que nesse ponto repousa a teoria de Gadamer quando afirma que

o caráter da interpretação é sempre produtivo e que esse aporte produtivo forma parte

inexoravelmente do sentido da compreensão.

Defende Streck, no plano da Nova Crítica do Direito, que o intérprete não

interpreta por partes, como se estivesse repetindo as fases da hermenêutica clássica, ou seja,

primeiro compreende, depois interpreta, para finalmente aplicar. Ao contrário, em sua visão esses

54 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica – Uma Nova Crítica do Direito., Porto Alegre: Livraria do Advogado editora, 2002. 55 STRECK, Op. Cit. P. 169.

56

três momentos ocorrem em um só: a applicatio, que se dá no movimento da circularidade da

autocompreensão no interior da espiral hermenêutica. Assim, ao interpretar um texto, o intérprete

estará no entremeio do círculo hermenêutico, havendo um movimento antecipatório da

compreensão.

Em sendo assim, o juiz, a partir da Nova Crítica do Direito, não decide para depois

buscar a fundamentação; ao contrário, ele decide porque já encontrou o fundamento para sua

decisão, sendo esse fundamento a condição de possibilidade para a decisão tomada, buscando, em

um segundo momento o aprimoramento de seu fundamento.

Com tal afirmação Lenio Streck56 afirma que não é possível desdobrar o ato de

aplicação em dois momentos: decisão e fundamentação. Defende a idéia que um faz parte do

outro e assim, as condições de possibilidades para que o intérprete possa compreender um texto

implicam a existência de uma pré-compreensão (seus pré-juízos) acerca da totalidade do sistema

jurídico-político-social.

Não há falar em interpretação sem que se mencione a Dogmática Jurídica. Neste

particular, mister reportarmo-nos à obra do Professor Tércio Sampaio Ferraz Junior – Função

Social da Dogmática Jurídica57 onde se lê:

O postulado quase universal da Dogmática Jurídica, de que não há norma sem

interpretação, define de imediato a função social das interpretações dogmáticas. Como

dissemos, a Dogmática cria condições para uma libertação do espírito onde a sociedade

espera vinculação. Ao afirmar seu postulado, a Dogmática interpreta sua própria

vinculação a dogmas, conferido ao intérprete uma disponibilidade que o autoriza a

ampliar as incertezas sociais de um modo suportável e controlado.

56 STRECK, Op. Cit. p. 180. 57 FERRAZ Jr., Tércio Sampaio. Função Social da Dogmática Jurídica. São Paulo: Ed. Max Limonad, 1998.

57

No que se refere à interpretação no plano do direito, acrescenta Tércio Sampaio

Ferraz Junior58, que a questão da unidade se torna um problema de sentido da ordem normativa.

Fundamenta sua teoria suscitando as palavras de Savigny, numa fase do seu pensamento anterior

a 1814, quando afirmada que interpretar era mostrar aquilo que a lei diz. Tal alusão ao verbo

“dizer” nos faz crer que Savigny estava preocupado com o texto da lei. A questão técnica da

interpretação era, então, como determinar o sentido textual da lei. Daí emerge a elaboração de

quatro técnicas, quais sejam: a interpretação gramatical, que procurava o sentido vocabular da lei;

a interpretação lógica, que visava o seu sentido proposicional; a sistemática, que buscava o

sentido global; e a histórica, que tentava atingir o seu sentido genético. Após 1814, percebe-se na

obra de Savigny que a questão toma outro rumo, e o problema da constituição da Dogmática

Jurídica, a partir de um modelo hermenêutico, se esboça. A questão deixa de ser a mera

enumeração de técnicas interpretativas para refere-se ao estabelecimento de uma teoria da

interpretação. Surge o problema de se procurar um critério para a interpretação autêntica. A

pergunta é: qual o paradigma para se reconhecer que uma interpretação do texto da lei é

autêntica? A resposta envolve a possibilidade de um sentido último e determinante. A concepção

de que o texto da lei é expressão da mens legislatoris leva Savigny a afirmar que interpretar é

compreender o pensamento do legislador manifestado no texto da lei

Contrapondo-se à teoria de Savigny, Niklas Luhmann59, em sua obra Sociologia

do Direito II, referindo-se à origem do direito afirma que a mesma não está ligada à vontade do

legislador tão-somente, em verdade a decisão do legislador – o mesmo se diga para a do juiz – se

confronta com uma multiplicidade de projeções normativas, entre as quais, e com uma certa

58 FERRAZ Jr., Op. Cit. p. 139-140. 59 LUHMANN, Neklas. Sociologia do Direito II.. Rio de Janeiro Editora Tempo Brasileiro, 1983. p. 8.

58

margem de liberdade, ele vai optar por uma delas. Logo, a função do juiz e do legislador não

consiste na criação do Direito, mas na seleção e na dignificação simbólica da norma enquanto

Direito vinculativo. Há, nesse processo um “filtro processual”, por onde passam todas as idéias

jurídicas com o fim de se tornarem socialmente vinculativas enquanto Direito.

Diante de todas as ponderações até aqui apresentadas verificamos que o objetivo

maior de um conceito amplo da hermenêutica jurídica, sua compreensão e efetivação por todos os

aplicadores do direito, repousa na busca incessante de aprimoramento do próprio Direito, dentro

das inúmeras mudanças sociais, econômicas, políticas e jurídicas que se multiplicam no mundo

contemporâneo. E nesse diapasão é fundamental a posição do aplicador do direito, não sendo essa

figura restrita à figura do juiz, nem tampouco do legislador.

O processo de interpretação deve ultrapassar toda e qualquer fronteira que o limite,

assim, também, como aproximar o historiador jurídico ao filólogo, o juiz ao advogado, o jurista

ao legislador, enfim, dar a cada um a parte que lhe cabe e assim, adicionando-se os papéis, e não

os separando, por via da hermenêutica jurídica, poderemos, quem sabe, acompanhar o

desenvolvimento de toda a sociedade, fim maior do Direito. Que se façam presentes no processo

de interpretação o fundamento e a decisão, o legislador e o espírito que o envolveu ao elaborar

determinada lei. Que se possa compreender, através de uma pré-compreensão do mundo e dos

valores que envolvem nosso comprometimento com o Direito, que se julgue através de nossos

“pré-juízos” e que se interprete o Direito comprometidos com sua correta aplicação para toda a

sociedade e com o contínuo processo evolutivo dessa mesma sociedade e do próprio Direito.

59

4. OS PRINCÍPIOS COMO FUNDAMENTO DA INTERPRETAÇÃO E DA

APLICAÇÃO

Princípios são proposições máximas, ponto de

partida ou fundamento do ser ou do conhecer

Abbagnano

4.1. DEFINIÇÃO E ALCANCE

E o que são os Princípios? O que eles alcançam? Como devem ser aplicados?

Américo Plá Rodriguez60 define princípios como “linhas e diretrizes que informam

algumas normas e inspiram direta ou indiretamente uma série de soluções, pelo que podem servir

para promover e embasar a aprovação de novas normas, orientar a interpretação das existentes e

resolver os casos não previstos.”

Portanto, diante de tal definição, podemos dizer que os princípios são os caminhos

orientadores das normas que podem ser utilizados direta ou indiretamente para o alcance de

soluções para os casos concretos; alcançam a aprovação de outras tantas normas, devendo servir

de orientação daquelas existentes e devem ser aplicados para resolver os casos ainda não

previstos.

Dos ensinamentos de Américo Plá Rodriguez61 extrai-se que os princípios são

enunciados básicos que contemplam, abrangem, compreendem uma série indefinida de situações,

60 PLÁ RODRIGUEZ, Américo. Princípios de Direito do Trabalho. 3ª edição atualizada – 2ª tiragem. São Paulo: Editora LTr, 2002. p. 36 61 PLÁ RODRIGUEZ, Op. Cit. p. 36-38.

60

sendo algo mais geral que uma norma, tendo em vista servir para inspirá-la, para entendê-la, para

supri-la.

Para a obtenção de um princípio, há que se submeter a um processo lógico que

consiste em induzir uma solução mais geral da comparação de disposições particulares

concordantes, para aplicar o princípio assim obtido a qualquer hipótese não abrangida por

nenhuma previsão legal.

Há que se destacar que os princípios possuem eficácia jurídica, cujas modalidades,

segundo Ana Paula de Barcelos62 são: a interpretativa, a negativa e a vedativa do retrocesso,

sendo que esta última não se consolidou inteiramente na doutrina e na prática jurisprudencial.

Ao contrário do que acontece com as regras, a eficácia interpretativa tem aplicação

bastante ampla no caso específico dos princípios, tendo em vista a indeterminação de seus efeitos

e da multiplicidade de situações às quais eles poderão ser aplicados.

Quando se trata de princípios constitucionais, isso se torna ainda mais evidente,

pois estarão associadas suas características de norma-princípio com a superioridade hierárquica

própria da Constituição. Daí resulta que cada norma constitucional ou infraconstitucional, deverá

ser interpretada de modo a realizar o mais amplamente possível o princípio que rege a matéria.

Há ainda a eficácia negativa que exige mais elaboração quando se trata dos

princípios, tendo em vista a força de seus efeitos. No caso, a eficácia negativa funciona como

uma barreira de contenção, impedindo que sejam praticados atos ou editadas normas que se

oponham aos propósitos dos princípios.

Já a vedação do retrocesso, desenvolveu-se principalmente levando em

consideração os princípios constitucionais e, em particular, aqueles que estabelecem fins

62 BARCELLOS, Ana Paula de. Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais – Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Rio de Janeiro – São Paulo: Renovar, 2002. p. 80.

61

materiais relacionados aos direitos fundamentais, para cuja consecução é necessária a edição de

normas infraconstitucionais. Sua finalidade é evitar que o legislador vá tirando as tábuas e vá

destruindo o caminho porventura já existente, sem criar qualquer alternativa ao objetivo em

questão.63

E quais as funções dos princípios?

Américo Plá Rodrigues64, sob os ensinamentos de Federico de Castro enumera três

funções essenciais pertinentes aos princípios, quais sejam: informadora, através da qual os

princípios inspiram o legislador, servindo de fundamento para a elaboração do ordenamento

jurídico; normativa, isto é, os princípios atuam como fonte supletiva, no caso de ausência de lei,

sendo meios de integração de direito e, por fim, interpretativa, tendo em vista que os princípios

operam como critério orientador do juiz ou do intérprete.

E aqui repousa a importância da hermenêutica para nossos estudos: como deve o

juiz aplicar a melhor solução ao caso?

Deve o magistrado fundamentar sua decisão inspirado pelos princípios morais e

éticos que a sociedade tanto espera dele, devendo sua decisão repercutir em toda a sociedade, e

não restringir-se a objetivos individuais e particulares.

Buscar conselho consigo é o que deve o juiz fazer quando se deparar com um

problema que dele exija muito mais do que a simples aplicação de uma determinada norma. É a

ética fluindo de seu pensamento, é a moral explodindo por sobre o papel da sentença e é,

principalmente, a realização da justiça com base nos princípios da ética, da boa-fé e da dignidade

63 Afirma Ana Paula de Barcellos que tanto a eficácia interpretativa, como a negativa e a vedativa do retrocesso, só dispõem de meios para impedir que o princípio seja violado quando confrontadas com alguma espécie de ação, normalmente estatal; seja uma outra norma ou ato administrativo que deverá ser interpretado de acordo com o princípio constitucional, seja o ato ou a norma regulamentadora do princípio constitucional que primeiro terá que existir para que, em seguida, se considere inconstitucional sua revogação. Caso nenhuma manifestação comissiva se apresente, será impossível desencadear o mecanismo de quaisquer das três modalidades de eficácia jurídica. 64 PLÁ RODRIGUEZ, Op. Cit. p. 43-44.

62

da pessoa humana, que ora passamos a examinar, dando especial enfoque aos mesmos no que se

refere à sua aplicação no âmbito da Justiça Social Brasileira, qual seja, a Justiça que trata das

angústias, necessidades e anseios do homem trabalhador.

Como dito no Capítulo 1 do presente estudo, Hannah Arendt65 atribui ao trabalho e

ao seu produto, o artefato humano, o verdadeiro sentido da condição do ser humano, além da

ação e do labor, que juntos emprestam certa permanência e durabilidade à futilidade da vida

mortal e ao caráter efêmero do tempo humano.

4.2. OS PRINCÍPIOS E AS REGRAS COMO CONSTITUTIVOS DA NORMA

JURÍDICA

A noção de principio aqui desenvolvida está sustentada no entendimento de

Humberto Ávila (2003:18), de que os princípios, assim como as regras, são elementos

constitutivos das normas. Segundo afirma, enquanto as regras sãos normas imediatamente

descritivas, primeiramente retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência, para

cuja aplicação se exige a avaliação da correspondência, sempre centrada na finalidade que lhes dá

suporte ou nos princípios que lhes são axiologicamente sobejacentes, entre a construção

conceitual da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos, os princípios são normas

imediatamente finalistas, primeiramente prospectivas e com pretensão de complementaridade e

de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o estado de

coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à promoção.

No seu entendimento, as normas são princípios ou regras, sendo que essas não

precisariam e nem poderiam ser objeto de ponderação, enquanto aqueles, ao contrário, precisam e 65 ARENDT, Op. Cit. p. 16-17.

63

devem ser objeto de ponderação. Enquanto as regras instituem deveres definitivos, independentes

das possibilidades fáticas e normativas, isto é, no caso de colidirem duas regras, uma delas deverá

ser considerada inválida, ou, em última análise, deve ser aberta uma exceção a uma delas para a

solução do conflito, por outro lado, quando colidirem dois princípios, os dois devem ultrapassar o

conflito mantendo sua validade, cabendo ao aplicador decidir qual deles possui maior peso e

melhor se coaduna com o caso em exame. Em última análise os princípios poderiam ser

distinguidos das regras pelo caráter hipotético-condicional, isto é, as regras possuem uma

hipótese e uma conseqüência que predeterminam a decisão, sendo aplicadas ao modo se, então;

já os princípios apenas indicam o fundamento a ser utilizado pelo aplicador para, futuramente,

encontrar a regra aplicável ao caso concreto. Assim, os princípios seriam as normas que

estabelecem os fundamentos para que um determinado mandamento seja encontrado, enquanto

que as regras determinariam a própria decisão.

A definição apresentada por Ávila66 inicia dizendo que os princípios são normas

imediatamente finalistas, isto é, eles estabelecem um fim a ser atingido. Ressalte-se que “um fim”

conduz à idéia de fixação de um objetivo ou de um conteúdo a ser alcançado ou pretendido, não

necessariamente significando um ponto final a ser alcançado, mas, apenas, um conteúdo

desejado. Daí se dizer que “o fim” estabelece um estado ideal de coisas a ser alcançado ou

atingido. É determinando “o fim” que se encontrarão os meios para alcança-lo.

Neste diapasão temos como exemplo o princípio da moralidade que exige a

realização ou preservação de um estado de coisas exteriorizado pela lealdade, seriedade, zelo,

postura exemplar, boa-fé, sinceridade e motivação. Para a realização desse estado ideal de

coisas, todavia, são necessários determinados comportamentos, senão vejamos: para efetivação

66 ÁVILA, Op. Cit. pg. 70.

64

de um estado de lealdade e boa-fé é preciso o cumprimento de tudo aquilo que foi prometido;

para realização de um estado de seriedade é essencial agirmos movidos por motivos sérios; para

tornarmos real uma situação de zelo é fundamental colaborarmos com o administrado e informá-

lo de seus direitos e da forma de protegê-los; para concretizarmos um estado em que predomine a

sinceridade é indispensável falarmos a verdade e, para garantirmos a motivação é necessário

expressarmos por que se age. Por tudo isso, sem esses comportamentos não se contribuirá para a

existência do estado de coisas apregoado como ideal pela norma, e, por via de conseqüência, não

se atingirá o fim desejado. Não se concretizará, portanto, o princípio.

Os princípios não são, pois, apenas valores cuja realização depende de meras

preferências sociais. Princípios e valores não se confundem, simplesmente se relacionam, na

medida em que o estabelecimento de fins implica qualificação positiva de um estado de coisas

que se quer promover. Porém, podem afastar-se porque, enquanto os princípios se situam no

plano deontológico e, por via de conseqüência, estabelecem a obrigatoriedade de adoção de

condutas necessárias à promoção gradual de um estado de coisas, os valores se situam no plano

axiológico ou meramente teleológico e, por isso, apenas atribuem uma qualidade positiva a

determinado elemento.

Humberto Ávila67 propõe algumas diretrizes para análise dos princípios,

considerando que sua definição repousa na idéia de que se tratam de normas finalísticas que

exigem a delimitação de um estado ideal de coisas a ser buscado por meio de comportamentos

necessários a essa realização.

67 ÁVILA, Op. Cit. p. 72-77.

65

Uma primeira diretriz trata da especificação dos fins ao máximo, isto é, quanto

menos específico for o fim, menos controlável será sua realização.68 Neste caso é necessário

trocar o fim vago por um fim específico. Uma segunda diretriz refere-se às pesquisas de casos

paradigmáticos que possam iniciar esse processo de esclarecimento das condições que compõem

o estado ideal de coisas a ser buscado pelos comportamentos necessários à sua realização.69 Aqui

mister substituir o fim vago por condutas necessárias à sua realização. A terceira diretriz trata do

exame, nesses casos, das similaridades capazes de possibilitar a construção de grupos de casos

que girem em torno da solução de um mesmo problema central.70É necessário abandonar a mera

catalogação de casos isolados, em favor da investigação do problema jurídico neles envolvido e

dos valores que devem ser preservados para sua solução. Uma quarta diretriz fala da verificação

da existência de critérios capazes de possibilitar a delimitação de quais são os bens jurídicos que

compõem o estado ideal de coisas e de quais são os comportamentos considerados necessários à

sua realização.71 Em outras palavras, troca-se a busca de um ideal pela realização de um fim que

possa se concretizar. Por fim, uma quita e última diretriz versa sobre a realização de um percurso

inverso, ou seja, descobertos o estado das coisas e os comportamentos necessários à sua

68 Para Ávila isso significa, em primeiro lugar, ler a Constituição Federal com atenção específica aos dispositivos relacionados ao princípio objetivo de análise; segundo, relacionar os dispositivos em função dos princípios fundamentais; terceiro, tentar diminuir a vagueza dos fins por meio da análise das normas constitucionais que possam, de forma direta ou indireta, restringir o âmbito de aplicação dos princípios. 69 Casos paradigmáticos, para Humberto Ávila são aqueles cuja solução pode ser tida como exemplar, considerando-se, assim, aquela solução que serve de modelo para a solução de outros tantos casos, em virtude da capacidade de generalização do seu conteúdo valorativo. 70 Ao investigar alguns casos – e Humberto Ávila cita, por exemplo, o caso de um funcionário que agiu conforme memorando interno de uma instituição financeira, que mais tarde não o quis cumprir; ou o do estudante que teve deferido seu pedido de transferência de uma Universidade para outra, e anos depois, teve tal transferência anulada, por vício formal; dentre outros casos – constata-se que, em todos eles, as decisões do Poder Judiciário giram em torno do problema relativo à proteção da legítima expectiativa riada pelo Poder Público na esfera jurídica do particular, notadamente quando essa expectativa se consolidou no plano dos fatos, durante longo espaço de tempo. 71 No caso do princípio da moralidade, a análise de alguns casos investigados podem revelar, de um lado, o dever de realizar o valor da lealdade e, de outro, a necessidade de adoção de comportamentos sérios, motivados e esclarecedores para a realização de tal valor. Bem concretamente, isso significa, primeiramente, analisar a existência de critérios que permitam definir, também para outros casos, quais são os comportamentos necessários para a realização de um princípio e, em segundo lugar, expor os critérios que podem ser utilizados e os fundamentos que fazem com que sejam atodados.

66

promoção, tornar-se-ia necessária a verificação da existência de outros casos que deveriam ter

sido decididos com base no princípio ora em análise.

Um segundo passo no exame dos princípios refere-se à investigação da

jurisprudência, especialmente dos Tribunais Superiores, para que se possa verificar em casa caso

paradigmático, quais foram os comportamentos tidos como necessários à realização do princípio,

objeto da análise.

Há casos em que determinado princípio, embora utilizado, não vem a ser

expressamente mencionado. Em outras hipóteses, embora obrigatória à promoção de um fim, o

princípio não é utilizado como fundamento e em face dessas considerações é preciso, depois de

desvendadas as hipóteses de aplicação típica do princípio em análise, refazer a pesquisa, dessa

feita não mediante a busca do princípio como palavra-chave, mas, por meio da busca do estado

de coisas e dos comportamentos havidos como necessários à sua realização. Significa dizer que

se deve, primeiramente, refazer a pesquisa jurisprudencial mediante a busca de outras palavras-

chave e, ato contínuo, analisar de forma crítica as decisões encontradas, reconstruindo-as de

acordo com o princípio que se está analisando, de modo a evidenciar seu uso ou a falta dele. E

qual a função do juiz nesse processo de análise e interpretação dos princípios e regras que são

normas?

Para respondermos a esta pergunta reportamo-nos a Dworkin72 que em sua obra o

Império do Direito, no Capítulo VII – Integridade do Direito, no tópico destinado à cadeia do

direito, afirma que a interpretação criativa vai buscar sua estrutura formal na idéia de intenção,

não (pelo menos não necessariamente) porque pretenda descobrir os propósitos de qualquer

pessoa ou de algum grupo histórico específico, mas porque pretende impor um propósito ao

texto, aos dados ou às tradições que está interpretando. 72 DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p 275.

67

Tudo depende, com efeito, do tempo em que o juiz vai decidir, da tradição que

envolve esse mesmo tempo e das circunstâncias com as quais o juiz se depara no seu processo

interpretativo e aplicativo dos princípios ou das regras.

Vivemos no Brasil, de acordo com o que dispõe o Artigo 1º da Constituição

Federal, um Estado democrático de Direito, que tem como fundamento, dentre outros, a

dignidade da pessoa humana.

Assim, é essa a tradição, é esse o nosso tempo, portanto é assim, em conformidade

com tal princípio, que deve agir o juiz ao decidir o caso concreto, ao analisar a letra da lei e ao

formular sua fundamentação que ensejará sua decisão. É o tempo do Estado democrático de

Direito é a tradição da dignidade da pessoa humana, portanto, que devem reger e nortear toda e

qualquer decisão judicial, ainda mais se tal decisão tiver reflexo na questão social brasileira.

4.3. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E OS DIREITOS SOCIAIS

4.3.1. ASPECTOS GERAIS

Ao se tratar de Justiça Social e dos Princípios Constitucionais que a sustentam,

mister uma primeira abordagem quanto ao surgimento dos Direitos Sociais nas Constituições

Brasileiras, anteriores à Constituição Federal promulgada em 5 de outubro de 1988.

Após a independência da nação brasileira em 7 de setembro de 1822, D. Pedro I

outorgou a primeira carta constitucional do país em 25 de março de 1824, a qual fora elaborada

pelo Conselho de Estado, tendo sido adotada a forma unitária de Estado, o regime monarquista

parlamentar, em consonância com a filosofia liberal da revolução francesa, não tratando, todavia,

68

dos direitos sociais do trabalhador, que pressupõem a intervenção do Estado nas relações

contratuais.

Em 15 de novembro de 1889, proclamada a República, o Congresso Nacional,

dotado de poderes constituintes, promulgou o novo estatuto político fundamental em data de 24

de fevereiro de 1891, sob decisiva influência da Constituição norte-americana, tornando-se o

Estado brasileiro um Estado federal, republicano, presidencialista e liberal. Mais uma vez, assim

como a Constituição do Império, essa também não cuidou dos direitos sociais do trabalhador,

tendo em vista se entender que a legislação trabalhista infringia o princípio da liberdade

contratual e que, além disso, ainda que fosse permitida, seria da competência dos Estados legislar

sobre tal matéria.

Rui Barbosa, todavia, em famosa conferência proferida no Teatro Lírico, em 1920,

defendeu a competência do Congresso Nacional para legislar sobre a proteção ao trabalho, o que

irradiou, desde então, ampla adesão à sua proposição, culminando com a reforma de 1926 que

consagrou tal competência.

Vale ressaltar que antes mesmo dessa reforma, algumas conquistas já haviam sido

conseguidas pelos trabalhadores, quais sejam: o direito de sindicalização aos trabalhadores,

através do Decreto nº 1.637 de 1907; a União legislou sobre o seguro de acidentes de trabalho –

Lei nº 3.724, de 1919; foram instituídas as Caixas de Aposentadorias e Pensão dos Ferroviários,

com estabilidade decenal para os empregados das respectivas empresas – Lei Eloi Chaves, nº

4.682, de 1923; foi criado o conselho Nacional do Trabalho, vinculado ao Ministério da

Agricultura, Indústria e Comércio – Decreto nº 16.027, de 1923; direito a quinze dias de férias

anuais remuneradas aos empregados de estabelecimentos comerciais, industriais, bancários e de

caridade ou beneficentes – Lei nº 4.982, de 1925.

69

Cabe assinalar que a reforma constitucional não impulsionou a legislação social-

trabalhista e que até a Revolução de 1930 apenas foram elaborados a Lei nº 5.109, de 1926, que

estendeu o regime das Caixas de Aposentadorias e Pensões às empresas portuárias e às de

navegação marítima e fluvial; o Decreto nº 17.934, de 1924, que dispunha sobre o trabalho de

menores e a Lei nº 5.492, de 1928, disciplinando a locação de serviços teatrais.

Depois da Revolução de 3 de outubro de 1930 todas as constituições dispuseram

sobre os direitos sociais do trabalhador e não poderiam deixar de faze-lo em virtude da legislação

decretada por Getúlio Vargas, como chefe do Governo Provisório, a partir da criação do

Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, a 26 de novembro de 1930.

Aqui vale transcrever um breve relato histórico-comparativo trazido ao nosso

conhecimento pelas palavras do Eminente Professor Arnaldo Süssekind73:

Promulgada a 16 de julho de 1934, o Novo Estado Político tornou-se um marco na

história do Direito Constitucional brasileiro pelas normas que inseriu no capítulo, até

então inédito, sobre a ordem econômica e social.

Como veremos no registro comparativo que a seguir faremos sobre os direitos sociais-

trabalhistas nas constituições de 1934, 1937, 1946 e 1967 (esta reformada pela

Emenda Constitucional nº 1, de 1969):

a)variaram consideravelmente as diretrizes doutrinárias e os preceitos concernentes ao

direito coletivo de trabalho;

b) a Justiça do Trabalho, a princípio de natureza administrativa, teve ampliada sua

competência e se integrou no Poder Judiciário;

c)os direitos individuais do trabalhador cresceram a partir do elenco consagrado pela

Constituição de 1934.

Determinava a Constituição de 1934, em síntese, que a ordem econômica deveria

ser organizada conforme os princípios de Justiça e as necessidades da vida nacional, de modo que

73 SÜSSEKIND, Arnaldo. Direito Constitucional do Trabalho.. 3ª Edição Ampliada e Atualizada até 20.10.2003. Rio de Janeiro – São Paulo: Renovar, 2004.; p 34.

70

possibilitasse a todos uma existência digna, devendo a lei promover um amplo amparo da

produção e estabelecer as condições de trabalho, tendo em vista a proteção social do trabalhador

e os interesses econômicos do país. Por fim, caberia, ainda, à lei dispor sobre o reconhecimento

dos sindicatos e das associações profissionais, tendo que assegurar a pluralidade sindical e a

completa autonomia dos sindicatos, assim, também, como o reconhecimento das convenções

coletivas de trabalho.

A Carta Magna de 10 de novembro de 1937, outorgada por Getúlio Vargas, com o

apoio das Forças Armadas, sublinhou que o trabalho, como meio de subsistência do indivíduo,

constitui um bem que é dever do Estado proteger, assegurando-lhe condições favoráveis e meios

de defesa.

No campo do direito coletivo do trabalho, depois de assegurar a livre associação

profissional e sindical, deu ao sindicado o reconhecimento pelo Estado, garantindo-lhe o

privilégio de representar a todos os que o integram, defendendo-lhes os direitos, bem como a

prerrogativa de estipular contratos coletivos de trabalho e o poder de impor contribuições e

exercer funções delegadas do poder público.

A Constituição de 18 de setembro de 1946, ao ver de Arnaldo Süssekind74, “o

melhor dos estatutos fundamentais brasileiros”, foi decretada e promulgada por uma Assembléia

Constituinte. No Capítulo Da Ordem Econômica e Social, asseverou que a ordem econômica

deveria ser organizada conforme os princípios da justiça social, conciliando a liberdade de

iniciativa com a valorização do trabalho humano. É o primeiro momento, no nosso modo de ver,

que se inicia uma preocupação, ainda que superficial, com a dignidade do trabalhador; é o

primeiro passo para a contemplação do princípio da dignidade da pessoa humana.

74 SÜSSEKIND, Op. Cit. p. 36.

71

No que se refere à organização sindical, afirmou a liberdade associativa e atribuiu

à lei regular a forma da constituição dos sindicatos. Outro importante avanço foi o

reconhecimento da greve como direito dos trabalhadores, cabendo à lei regular seu exercício,

bem como o reconhecimento dos direitos trabalhistas assegurados através das convenções

coletivas de trabalho.

A Constituição de 1967 foi decretada e promulgada pelo Congresso Nacional

visando assegurar a continuidade da Revolução de 1964, tendo, porém, sofrido rude golpe em

data de 17 de outubro de 1969, ocasião em que a Junta Militar, que assumiu o poder naquela

oportunidade, impôs-lhe ampla revisão através da Emenda Constitucional nº 1, a qual, todavia,

não alterou o elenco dos direitos sociais trabalhistas, mas introduziu modificações de relevo

quanto à finalidade da ordem econômica.

No que se refere ao direito coletivo de trabalho, a Carta Magna de 1967/69 repetiu

as disposições da Constituição de 1946 sobre organização sindical, tornando, todavia, obrigatório

o voto nas eleições sindicais e incluindo, de logo, entre as funções públicas que poderiam ser

delegadas aos sindicatos, a de arrecadar contribuições para o custeio das atividades de seus

órgãos e para a execução de programas de interesses das categorias por eles representadas.

Outros avanços dizem respeito à greve – incluída entre os direitos dos

trabalhadores, salvo em relação aos serviços públicos e às atividades essenciais definidas por lei,

e também ao reconhecimento das Convenções Coletivas de Trabalho como instrumento de

negociação entre empregados e empregadores.

4.3.2. A CONSTITUIÇÃO DE WEIMAR E OS DIREITOS SOCIAIS. OS

DIREITOS INDIVIDUAIS ASSEGURADOS NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS.

72

Com o fim da primeira Guerra Mundial a situação da Alemanha era grave. As

instituições políticas estavam destruídas, as forças de ordem desmoralizadas e a situação social

caótica. A esquerda radical buscava tomar o poder em favor dos conselhos de operários e

soldados ao estilo bolchevique.

Não era ao menos possível que a Assembléia Constituinte convocada

estabelecesse um novo quadro constitucional. Desta feira, ela se reuniu em Weimar.

Foi, assim, elaborada uma Constituição para a Alemanha republicana, cuja Parte II

concentra o ponto mais relevante para a história jurídica, qual seja, “Direitos e deveres

fundamentais dos alemães”. Dedica-se a primeira seção ao indivíduo, a segunda, à vida social, a

terceira, à religião e sociedades religiosas, a quarta, à instrução e estabelecimento de ensino, e a

quinta, à vida econômica.

Um novo espírito, o qual se pode chamar de “social”, marca todas referidas

seções. Estava assim consagrado um novo modelo, o qual foi seguido e imitado na constituições

que mais tarde foram editadas na Europa, e pelo resto do mundo, chegando ao direito positivo

brasileiro – o qual a será retratado em outro ponto – com a Carta de 1934.

Quais seriam, então, os caracteres dos direitos sociais?

Os direitos sociais, assim como as liberdades públicas, são direitos subjetivos. Não

se tratam, todavia, de meros poderes de agir, mas sim poderes de exigir.

Sem dúvida há direitos sociais que são antes poderes de agir, como é o caso do

direito ao lazer, entretanto assim mesmo quando a eles se referem, as Constituições tendem a

encara-los pelo prisma do dever do Estado, o qual é considerado como sujeito passivo desses

direitos.

73

O direito social tem como objeto uma contraprestação sob a forma de prestação de

um serviço, pressupõe sociedade; logo não são direitos naturais no sentido que dava a essa

expressão a doutrina iluminista no século XVIII.

Contudo, os direitos sociais podem ser deduzidos da sociabilidade humana,

considerando-se tal sociabilidade como própria à natureza humana, é que podem ser ditos

naturais.

A garantia que o Estado, considerado como coletividade organizada, dá a esses

direitos é a instituição dos serviços públicos a eles correspondentes. Temos, destarte, uma

garantia institucional.

Quanto aos direitos individuais o Estatuto Político de 1934 assegurou a percepção

do salário mínimo, capaz de satisfazer, conforme as condições de cada região às necessidades

normais do trabalhador. A Carta Constitucional de 1937 repetiu o texto de 1934. A de 1946

ampliou o termo necessidades normais do trabalhador, para necessidades normais do trabalhador

e de sua família, o que foi repetido pela Constituição de 1967.

O princípio da Isonomia – salário igual para o trabalho igual – foi garantido em

termos amplos pela Constituição de 1934, a qual proibia a diferença salarial por motivo de sexo,

idade, nacionalidade ou estado civil. Já a Constituição de 1937 foi silente quanto a esse ponto.

Com a Constituição de 1946 a norma foi reincorporada ao texto, nos mesmos dizeres da de 1935.

A de 1967 estendeu a não discriminação, antes referente exclusivamente aos salários, aos

critérios de admissão, mas só mencionou os motivos de sexo, cor e estado civil.

O salário do trabalho noturno superior ao do diurno foi uma inovação trazida pela

Carta de 1937 e reproduzida pela de 1946 e pela de 1967. As Constituições de 1934, 1937, 1946

e 1967 estabeleceram a jornada normal de trabalho não excedente de oito horas, sendo que as

74

duas primeiras aludindo à prorrogação nos termos da lei e a última referindo-se ao intervalo

intrajornada.

A Constituição de 1934 instituiu o repouso semanal, preferencialmente aos

domingos e a de 1937 previu o descanso aos domingos e feriados, observado os limites das

exigências técnicas da empresa. A de 1946 assegurou que esse repouso semanal e em feriados

passasse a ser remunerado, o que foi repetido pela Constituição de 1967.

Férias anuais remuneradas foram inscritas no elenco dos direitos sociais dos

trabalhadores pelas Constituições de 1934 e repetidas nas constituições que se seguiram. Quanto

à higiene e segurança do trabalho, somente com a Constituição de 1946 recebeu estatura

constitucional, sendo da mesma forma referida na Carta Magna de 1967.

No que respeita ao trabalho da mulher e do menor, as Constituições de 1934 e de

1937 dispuseram igualmente no sentido de proibir o trabalho a menores de 14 anos; o trabalho

noturno a menores de 16; e em indústrias insalubres a menores de 18 anos e a mulheres. A de

1946 ampliou proibição do trabalho noturno para 18 anos e acrescentou a seguinte frase:

“respeitadas , em qualquer caso, as condições estabelecidas em lei e as exceções admitidas pelo

juiz competente” (art. 157, IX). A de 1967 proibiu o trabalho da mulher e do menor de 18 anos

em indústrias insalubres, o menor de 18 anos à noite e baixou para 12 anos a admissão em

qualquer trabalho, o que afrontou o limite de idade para o trabalho determinado pelas normas

internacionais adotadas pela OIT.

A licença da trabalhadora gestante, antes e após o parto, sem prejuízo do emprego

e do respectivo salário, foi garantida pelas Constituições de 1934, 1937, 1946 e 1967. A

indenização do trabalhador dispensado sem justa causa foi instituída pela Carta Magna de 1934,

tendo a Constituição de 1937 assinalado que tal indenização seria proporcional aos anos de

serviço e que seria também devida, quando o empregado não desse motivo à cessação das

75

relações de trabalho e desde que a lei lhe conferisse direito à estabilidade no emprego. Já a

Constituição de 1946 enunciou simplesmente a estabilidade do empregador na empresa ou na

exploração rural e indenização caso fosse despedido, nos casos e condições previstos em lei. A de

1967, visando compatibilizar o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS, com a

Constituição, impôs uma regra, segundo a qual, estaria garantida a estabilidade no emprego, com

indenização ao trabalhador despedido ou fundo de garantia equivalente. No que se refere à

sucessão de empregadores nas obrigações trabalhistas, cumpre destacar que somente a Carta de

1937 tratou da referida matéria.

A não discriminação entre os trabalhos manual, técnico ou intelectual, ou entre os

respectivos profissionais, no que concerne aos direitos sociais-trabalhistas, foi enunciada pelas

Constituições de 1934, 1946 e 1967, porém, a de 1934 estabeleceu que o trabalho agrícola seria

objeto de regulamentação especial, que atenderia, tanto quanto fosse possível, ao elenco dos

direitos sociais enumerados no seu art. 121, § 4º.

Outra questão que passou a ter estatura Constitucional foi a da assistência médica

e a previdência social, previstas nas de 1934, 1937, 1946 e 1967. A Constituição de 1934

recomendou a regulamentação do exercício de todas as profissões, o que até a presente data não

se efetivou. Já a participação do trabalhador nos lucros das empresas, que posteriormente foi

estatuída em lei de forma direta e obrigatória, foi preceituada na Constituição de 1946, tendo a de

1967 ido além, determinando a integração na vida e no desenvolvimento da empresa com

participação nos lucros e, excepcionalmente, na gestão, segundo critérios estabelecidos em lei.

4.3.3. CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 – “A CONSTITUIÇÃO CIDADÔ.

76

Chegamos a 5 de outubro de 1988, o Congresso Nacional promulga, sob as

bênçãos de Deus, a Constituição Cidadã que trás em seu Preâmbulo a instituição de um Estado

democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a

segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de

uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e

comprometida com a ordem interna e internacional, solucionando pacificamente as controvérsias.

Assim dispõe o Artigo 1º da Constituição Federal de 1988:

Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos da Constituição.

Portanto, como sublinhado no preâmbulo e no Artigo 1º da Constituição em vigor,

o regime político brasileiro corresponde a um Estado democrático de Direito, em que todo o

poder emana do povo e por ele é exercido, ou através de representantes eleitos.

4.3.4. HISTÓRICO SOBRE A JUSTIÇA DO TRABALHO NO BRASIL.

Antes de nos reportarmos à Justiça do Trabalho no Brasil necessário se faz investigarmos

a razão do seu surgimento no mundo.

O reconhecimento de que os primeiros organismos especializados na solução de conflitos

entre empregados e patrões a respeito do contrato de trabalho surgiram na França é unânime,

foram os conselis de Prud’hommes, em 1806.

77

Note-se, porém, que se tratava de uma experiência bem sucedida, a qual passou a ser

adotada por outros países europeus que instituíram organismos independentes do Poder

Judiciário. Tais organismos buscavam, primeiramente, a conciliação, muito mais do que uma

solução pelo Estado. A composição, originariamente, era feita por juízes letrados, conhecedores

tanto do direito como das questões laborais. Posteriormente, adotou-se a sistemática da

representação paritária, em que as comissões de conciliação dos conflitos trabalhistas eram

compostas por um representante do empregador e outro dos empregados, cuja indicação era feita

pelo sindicato profissional. Surge, então, o modelo de juízo tripartite, onde, aos representantes

das categorias econômica e profissional se somava, como elemento de desempate, o representante

estatal.

A tendência moderna segue no sentido da supressão da representação classista nos órgãos

jurisdicionais trabalhistas, podendo remanescer em conselhos de conciliação e arbitragem, dada a

natureza distinta que possuem em relação aos órgãos jurisdicionais.

A criação de uma jurisdição do trabalho independente teve como objetivos os de

possibilitar uma solução mais rápida, simples e barata dos conflitos laborais, a par de propiciar

métodos mais eficazes de composição tanto de dissídios individuais como de coletivos.

Para melhor exemplificar, extraí-se do quadro abaixo a situação da Justiça do Trabalho no

mundo.

OS CONFLITOS TRABALHISTAS SÃO DIRIMIDOS DA SEGUINTE FORMA

JUSTIÇA COMUM OU

ADMINISTRATIVA

JUSTIÇA DO TRABALHO

COMO RAMO DE

JUSTIÇA COMUM

JUSTIÇA DO TRABALHO

COMO JUSTIÇA

ESPECIAL

78

ESTADOS UNIDOS

FRANÇA

ÍNDIA

MÉXICO

SUÍÇA

ARGENTINA

BOLÍVIA

COLÔMBIA

COSTA RICA

CHILE

ESPANHA

ITÁLIA

PANAMÁ

PARAGUAI

PERU

URUGUAI

ALEMANHA

AUSTRÁLIA

BRASIL

CAMARÕES

COSTA DO MARFIM

EGITO

GRÃ-BRETANHA

ISRAEL

MADAGASCAR

NOVA ZELÂNDIA

SENEGAL

VENEZUELA

Os países que adotam o sistema de atribuir a um dos ramos da Justiça Comum a

apreciação das questões laborais funcionam, em primeira instância, em juízos monocráticos, de

caráter estritamente técnico-jurídico.

SISTEMA DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS COLETIVOS

ARBITRAGEM

VOLUNTÁRIA

ARBITRAGEM

OBRIGATÓRIA

PODER NORMATIVO

ARGENTINA

ESTADOS UNIDOS

GRÃ-BRETANHA

CHILE

COLÔMBIA

EGITO

AUSTRÁLIA

BRASIL

MÉXICO

79

JAPÃO

PANAMÁ

ESPANHA

ITÁLIA

MALÁSIA

REPÚBLICA DOMINICANA

PAQUISTÃO

SENEGAL

VENEZUELA

NOVA ZELÂNDIA

PERU

Nos países de pequenas dimensões geográficas, não há uma 3ª instância

trabalhista, uniformizadora da jurisprudência, cabendo, das decisões de 2 ª instância, quando a

controvérsia envolve matéria constitucional, o apelo à Corte Suprema do país. A 3ª instância

laboral serve, assim, basicamente nos países de constituição federativa, como uniformizadora da

jurisprudência entre as várias entidades federadas. De suas decisões cabe recurso à Suprema

Corte do país, que exerce o controle de constitucionalidade das decisões dos demais órgãos do

Poder Judiciário.

ESTRUTURA DA JUSTIÇA DO TRABALHO

PAÍS 1ª INSTÂNCIA 2ª INSTÂNCIA CORTE SUPERIOR

ALEMANHA ARBEITGERICHTS LANDSARBEITGERICHT BUNDESARBEITGERICHT

ARGENTINA JUEZ DEL

TRABAJO

SALA SOCIAL DE LA

CORTE DISTRITAL

SALA SOCIAL DE LA

CORTE SUPREMA DE

JUSTICIA

CHILE JUZGADO DE

LETRAS DEL

CORTE DE APELACIÓN SUPREMA CORTE DE

JUSTICIA

80

TRABAJO

COSTA

RICA

JUZGADO DEL

TRABAJO

TRIBUNAL SUPERIOR

DO TRABALHO

SALA DE CASSACIÓN DE

LA CORTE SUPREMA

ESPANHA JUECES DE LO

SOCIAL

SALAS DE LO SOCIAL

DE LOS TRIBUNALES

SUPERIOES DE

JUSTICIA DE LAS

COMUNIDADES

AUTONOMAS

SALA DE LO SOCIAL DE

LA AUDIENCIA

NACIONAL

FRANÇA CONSELI DE

PRUD’HOMMES

COURT D’APPEL COURT DE CASSATION

ITÁLIA PRETORE TRIBUNALE COMUNE

DI APELAZIONE

CORTE DE CASSAZIONE

PARAGUAI JUEZ DE

PRIMERA

INSTANCIA EM

LO LABORAL

TRIBUNALE DE

APELACIÓN DEL

TRABAJO

CORTE SUPREMA DE

JUSTICIA

No tempo do Império no Braisl, as leis de 13 de setembro de 1830, 11 de outubro

de 1837 e 15 de março de 1842 foram as primeiras a dar tratamento especial às demandas

relativas à prestação de serviços, que deveriam ser apreciadas segundo o rito sumaríssimo pelos

juízes comuns. O Decreto n.2.827, de 15 de março de 1879, no entanto, veio a restringir tal

81

procedimento às demandas de prestação de serviços no âmbito rural, atribuindo sua solução aos

juízes de paz. As demais demandas relativas a contratos de trabalho, de acordo com o

Regulamento n.737, de 25 de novembro de 1850, seriam apreciadas pelos juízes comuns, mas

segundo o rito sumário. Via-se, desta forma, o reconhecimento de que as questões trabalhistas

demandavam um processo mais célere e simplificado. No entanto, os primeiros ensaios de se

criar organismos independentes para a solução dessas demandas apenas se verificaram nos

começos da República.

Sendo o Brasil, nos seus primórdios, um país agrícola, o protecionismo estatal dirigiu-se

basicamente ao trabalhador manual do campo, especialmente o imigrante. O Decreto n.979, de 6

de janeiro de 1903 facultou aos trabalhadores do campo a organização de sindicatos para a defesa

de seus interesses, mas com objetivos mais amplos. Sua feição era mais econômica do que

política ou jurídica.

Em 1923, surgia, no âmbito do então Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, o

Conselho Nacional do Trabalho (núcleo do futuro TST), instituído pelo Decreto n.16.027, com

tríplice finalidade: ser órgão consultivo do Ministério em matéria trabalhista; funcionar como

instância recursal em matéria previdenciária; e atuar como órgão autorizador das demissões dos

empregados que, no serviço público, gozavam de estabilidade, através de inquérito

administrativo.

A revolução Constitucionalista Paulista de 1932 levou à convocação de uma Assembléia

nacional Constituinte por Getúlio Vargas em 1934, na qual o deputado Abelardo Marinho

formulou a proposta de que fosse instituída a Justiça do Trabalho, uma vez que o sistema

administrativo que vinha sendo seguido, com as decisões das JCJs sendo alteradas a seu talante

pelo Ministro do Trabalho ou revistas integralmente pela Justiça Comum, tornavam ineficazes as

decisões proferidas pelos órgãos existentes.

82

No que se refere à Justiça do Trabalho no Brasil, sua instituição foi prevista pela

Constituição de 1934, o que foi repetido pela Carta Maior de 1937, porém, apenas em 1º de maio

de 1941 a Justiça do Trabalho foi instalada em todo o país, como parte da Administração Federal,

vinculada ao Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio.

Foi com a Constituição de 1946, todavia, que a Justiça do Trabalho foi intergrada

ao Poder Judiciário, ficando assegurado a paridade de representação de empregados e

empregadores em todos os seus órgãos e sua competência era restrita a estabelecer normas e

condições de trabalho nos casos especificados em lei, ao julgar os dissídios coletivos.

A Constituição de 1967/69 manteve essas normas e deu um passo além, definindo

a composição do Tribunal Superior do Trabalho e dos Tribunais Regionais, com juízes vitalícios

e juízes classistas temporários, entre aqueles garantida, nas proporções indicadas, a participação

de magistrados de carreira, advogados e membros do Ministério Público do Trabalho e, por fim,

limitou o recurso ao Supremo Tribunal Federal aos casos em que a decisão da Justiça do

Trabalho contrariasse a Constituição.

4.3.5. O DIREITO AO TRABALHO, O DIREITO NO TRABALHO E O

DIREITO DO TRABALHO.

a) O DIREITO AO TRABALHO.

Antes de analisarmos os princípios e suas diversas manifestações no âmbito das

relações entre patrões e empregados, mister fazermos uma breve distinção entre o direito ao

trabalho, o direito no trabalho e o Direito do Trabalho.

83

E o que vem a ser o direito? Alberto Nogueira75 o define como sendo tudo aquilo

que pode ser sem afetar os outros. O Direito é o espaço em que cada um é absoluto, o centro de

todas as pretensões. Quem está com o Direito – por menor que seja – detém legitimamente todo o

poder humano. Pode até não lograr exercê-lo, diante da opressão, mas é o legítimo titular do

poder, em cada situação concreta. O Direito assim concebido, pois, é a fonte do poder humano.

Basta dizer – validamente – que se tem o Direito para pôr em ação toda força legítima da

humanidade, ou seja, a ordem jurídica.

Nossa Constituição Federal de 1988, em seu art. 6º impõe que o trabalho é um

Direito Social e como tal deve ser promovido pelo Estado a todo cidadão, sendo livre o exercício

de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais estabelecidas

em lei, conforme dispõe o inciso XIII, do Artigo 5º que trata dos Direitos e Garantias

Fundamentais da Carta Constitucional vigente.

Por fim a ordem social do Estado democrático de Direito brasileiro tem como base

o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais, conforme se extrai do art.

193 da Carta Maior de 1988.

Mas, nem sempre foi assim. Como já visto no Capítulo 1 do presente estudo, tudo

teve início com a escravidão como condição social das classes trabalhadoras, os quais tinham

como função principal arcar com o ônus do consumo de uma casa, e não produzir para uma

sociedade em geral. Passamos posteriormente a uma nova era do trabalho, onde surgem as

ferramentas e os instrumentos que podiam suavizar consideravelmente o esforço do labor.

Passou-se a ter uma abundante e desenfreada busca pelo consumo, o que moveu a sociedade e

deu início a uma preocupação com o trabalho e com o homem que trabalha, isto é, passou-se a

75 NOGUEIRA, Alberto. Jurisdição das Liberdades Públicas. Rio de Janeiro . São Paulo: Renovar, 2003. p. 164-165.

84

pensar em formas amparar esse trabalhador cada vez mais vulnerável e isolado no mundo da

produção e do consumo exacerbados. Continua o processo evolutivo e o homem foi encontrando

os meios necessários para seu desenvolvimento pessoal e social e, assim, o trabalho passou a

oferecer-lhe melhores condições de uma vida condigna e maior segurança, deixando de ser

castigo, como na escravidão, e passando a ser sinônimo de bem-estar do próprio trabalhador e de

sua família. Passou a ser exigência social, pois trouxe benefícios a toda sociedade; adquiriu status

social, pois passou a contribuir para uma melhoria no nível de vida do trabalhador e de sua

família; passou a ter relevância política, pois, passou-se a exigir mais do Estado no que concerne

à educação, saúde, saneamento etc. e, por fim, passa a ter um caráter de solidariedade, pois o

trabalho sai da esfera do indivíduo e passa à esfera coletiva, isto é, no mundo moderno já não

trabalha mais o homem sozinho, mas todos os homens.

E o trabalho culminou com tudo isso que hoje nos envolve, isto é, têm-se o

trabalho subordinado, o trabalho autônomo, doméstico, servidores públicos, avulsos, eventuais,

dentre outros, coube ao Direito o papel de garantidor dos deveres e direitos das partes que

compõem as relações jurídicas de trabalho.

O Direito ao trabalho, pois é um dever do Estado, um direito de toda sociedade e a

forma mais clara de dignidade da pessoa humana.

b) O DIREITO NO TRABALHO.

85

Como visto no item anterior, várias são as formas de trabalho: subordinado,

autônomo, doméstico, serviços públicos, trabalhos avulsos, eventuais dentre tantos outros.

Em cada um deles os sujeitos da relação jurídica são detentores de direitos e

obrigações recíprocas, que se descumpridas por uma das partes, ensejarão o rompimento da

relação pela outra parte.

No caso de nossos estudos vamos nos restringir a uma das formas de relações de

trabalho, qual seja, o trabalho subordinado. Não queremos, todavia, dizer que os princípios da

boa-fé, eticidade e dignidade da pessoa humana não estejam ou, não devam estar presentes nas

demais formas de relações de trabalho. Ao contrário, são tais princípios – ou deveriam ser -

inerentes a toda e qualquer relação humana, muito mais quando nessas relações o objeto é o

trabalho.

Na relação empregatícia o empregado tem direitos assegurados no curso do

contrato, isto é, quais sejam, aqueles estabelecidos no art. 7º da Constituição Federal de 1988,

incisos I a XXIV, parágrafo único, quais sejam, proteção contra despedida arbitrária ou sem justa

causa, seguro-desemprego, fundo de garantia por tempo de serviço, salário mínimo,

irredutibilidade de salário, décimo terceiro salário, férias anuais, participação nos lucros da

empresa, salário família, licença maternidade e licença paternidade, aviso prévio, dentre outros.

Estão, outrossim, na Consolidação das Leis do Trabalho os demais direitos e também os deveres

do empregado, e respectivamente os do empregador.

c) O DIREITO DO TRABALHO.

86

Jorge Luiz Souto Maior76 destaca que o direito do trabalho surgiu como reflexo de

uma tensão que se instalou no mundo das idéias, surgido como fórmula da classe burguesa para

impedir a emancipação da classe operária. Com o direito do trabalho a separação de classes está

mantida.

Porém, com o surgimento do direito do trabalho, inicia-se um processo de

valorização do trabalho, que somente tomou corpo a partir da formação de uma consciência

social em torno dessa mesma valorização. Nasce nesse momento a idéia de um homem livre, o

trabalhador, que ainda não é detentor dos meios de produção, portanto não podendo usufruir do

resultado de seu próprio trabalho, mas, que aos poucos começa a aproveita-lo.

Aos poucos vai-se desvinculando o trabalho da figura do trabalhador, passando a

importar apenas sua força de trabalho, que tem seu valor determinado pela lei do mercado

econômico. Assim, o direito do trabalho deixa de ser um meio de valorizar o trabalho e o homem,

passando a ser examinado em conformidade coma as contingências econômicas. É o surgimento

de fenômenos como a flexibilização e da desregulação do direito do trabalho, o que nos remete à

situação atual.

Essa situação, semelhante em quase todas as nações, é muito mais grave no Brasil

onde a ausência de ideais de justiça, ou pelo menos a ausência da difusão desses ideais perante as

classes trabalhadoras, visando a formação de uma consciência de cidadania entre os

trabalhadores, levou a crer que o direito por eles conquistado, na verdade lhes foi um direito

concedido.

Ao tratarmos dos princípios da boa-fé, da eticidade e da dignidade da pessoa

humana, voltaremos nossas considerações à disciplina Direito do Trabalho e de que forma a

76 MAIOR, Jorge Luiz Souto; O direito do trabalho como instrumento de justiça social; São Paulo, LTr, 2000, pgs. 69-70.

87

aplicação desses princípios poderá servir como instrumento para a realização de uma verdadeira

justiça social no Brasil.

4.3.6. PRINCÍPIO DA BOA-FÉ.

Para que se alcance o fim estabelecido quando da celebração de um contrato de

trabalho é necessário que o trabalhador assuma a obrigação de realizar suas tarefas de forma a ter

rendimento no trabalho, demonstrando empenho e dedicação e seus afazeres. Em contrapartida,

tal obrigação também alcança o empregador que deve, com o cumprimento integral de suas

obrigações, conduzir a relação em consonância com o princípio da boa-fé.

É, portanto, a boa-fé que antecede à celebração de um contrato de trabalho, por

tratar-se de um elemento jurídico indispensável para sua interpretação e sua integração. Quando

dizemos isso, queremos afirmar que o princípio da boa-fé não é uma norma, mas um princípio

jurídico fundamental que devemos admitir como premissa de todo ordenamento jurídico. É a boa-

fé que deve sustentar toda e qualquer relação jurídica, pois ela se desdobra em fidúcia e,

conseqüentemente, no princípio da continuidade da relação laboral, fundamental para a

concretização do verdadeiro sentido da condição humana.

Américo Plá Rodrigues77ao afirmar a importância do princípio da boa-fé no

Direito do Trabalho, conceitua boa-fé distinguindo-a entre a boa-fé-crença e a boa-fé-lealdade,

afirmando que a primeira é a posição de quem ignora determinados fatos e pensa, portanto, que

sua conduta é perfeitamente legítima e não causa prejuízos a ninguém, v.g. o possuidor de boa-fé

- que ignora o vício ou o obstáculo que lhe impede a aquisição da coisa ou do direito possuído.

Já a boa-fé-lealdade se refere à conduta da pessoa que considera cumprir realmente com o seu 77 PLÁ RODRIGUES, Op. cit. p. 425-426.

88

dever. Pressupõe uma posição de honestidade e honradez no comércio jurídico, porquanto

contém implícita a plena consciência de não enganar, não prejudicar, nem causar danos. E ainda

mais: implica a convicção de que as transações são cumpridas normalmente, sem trapaças, sem

abusos, nem desvirtuamentos, sendo esta última, sem sombra de dúvidas a boa-fé que deve

vigorar como princípio do Direito do trabalho, isto é, a boa-fé que se refere a um comportamento

e não a uma simples convicção. Ressalta, ainda, que tal princípio abrange ambas as partes do

contrato de trabalho e não apenas uma delas, devendo inspirar o trabalhador e demonstrar o

empregador.

Muito se fala no cumprimento do dever do trabalhador de apresentar rendimento,

ou seja, exige-se que realize seu trabalho com rendimento e a um ritmo regular, porém, se

omitem muitas outras implicações contidas na idéia de que o trabalhador deve agir lealmente.

Mas, sobretudo, costuma-se prescindir da projeção desse princípio no que diz respeito à conduta

do empregador. Agir o empregador de boa-fé, lealmente, representa cumprir com todas as suas

obrigações contratuais. Plá Rodrigues78 leciona que a reafirmação desta obrigação não é ociosa,

nem inútil, porque a experiência prática enumera inúmeros exemplos de violações desse dever:

desde o do empregador que paga salários inferiores aos mínimos estabelecidos ou atribui

hierarquias inadequadas, até ao que faz uso abusivo e injustificado do jus variandi. Não se pode

esquecer os casos menos freqüentes, mas não desconhecidos, daqueles patrões que obrigam o

trabalhador a cumprir horário sem destinar-lhe qualquer tarefa, para que se sinta moralmente

embaraçado e acabe por deixar a empresa.

Cabe salientar que o Princípio da Boa-fé abrange a todas as obrigações contratuais,

e que este princípio deve ser levado em conta para a aplicação de todos os direitos e obrigações

que as partes adquirem como conseqüência do contrato de trabalho. 78 IDEM, p. 427.

89

Como dito anteriormente, o Princípio da Boa-fé, é muito mais do que uma simples

norma jurídica, é, nas palavras de Américo Plá Rodrigues79, “um modo de agir, um estilo de

conduta, uma forma de proceder, diante das mil e uma emergências da vida quotidiana, que não

se pode ater nem se limitar à forma de cumprimento de certas obrigações. E que, quanto mais

importante é a obrigação e maior o tempo que ela demande, maior será a importância prática do

princípio.” Assim, a importância antes mencionada centraliza-se na obrigação, de um lado, de

prestar os serviços e, de outro, de pagar a retribuição correspondente. O não cumprimento dessas

obrigações básicas, pois, ensejarão outras tantas ocasiões e circunstâncias que levarão à violação

do princípio.

Tamanha a importância do Princípio da Boa-fé na relação entre trabalhador e

empregador, que a inobservância ou violação desse princípio por quaisquer das partes, poderá

ensejar a ruptura por justa causa do vínculo empregatício, conforme capitulado nos Artigos 482 e

483 da CLT.80

O trabalhador estará violando o Princípio da Boa-fé e constituindo justa causa para

rescisão de seu contrato de trabalho pelo empregador nas seguintes situações:

Art. 482. Constituem justa causa para rescisão do contrato de trabalho pelo empegador: ...................................................................................................... c) negociação habitual por conta própria ou alheia sem permissão do empregador e quando constituir ato de concorrência à empresa para a qual trabalha o empregado, ou for prejudicial ao serviço; ...................................................................................................... e) desídia no desempenho das respectivas funções; ...................................................................................................... g) violação de segredo da empresa; ...................................................................................................... i) abandono de emprego;

79 PLÁ RODRIGUES, Op. Cit. p. 428. 80. SAAD; Eduardo Gabriel. Consolidação das Leis do Trabalho Comentada. 36ª edição. São Paulo: LTr, 2003. p. 335- 339.

90

Já o empregado, diante do que dispõe o Artigo 483 Consolidado quando o

Princípio da Boa-fé deixar de ser observado por seu empregador, nas seguintes situações:

Art. 483. O empregado poderá considerar rescindido o contrato de trabalho e pleitear a devida indenização quando: a) forem exigidos serviços superiores às suas forças, defesos por lei, contrários aos

bons costumes, ou alheios ao contrato; b) for tratado com pelo empregador ou por seus superiores hierárquicos com rigor

excessivo; ...................................................................................................... d) não cumprir o empregador as obrigações do contrato; ...................................................................................................... g) o empregador reduzir o seu trabalho, sendo este por peça ou tarefa, de forma a afetar sensivelmente a importância dos salários;

4.3.7. PRINCÍPIO DA ETICIDADE.

A Ética, segundo Gustavo Korte81, estuda as relações entre o indivíduo e o

contexto em que está situado, isto é, entre o que é individualizado e o mundo a sua volta,

procurando enunciar e explicar as regras, normas, leis e princípios que regem os fenômenos

éticos, que são, todos os acontecimentos que ocorrem nas relações entre o indivíduo e seu

contexto. Tais fenômenos, com efeito, são enunciados por idéias, linhas e formas de pensar, e

tornam-se concretizados em atos, fatos, ações, relações e procedimentos.

A Ética está ligada ao conceito de Respeito que, por sua vez, corresponde à idéia

de uma regra para o relacionamento de todo indivíduo com tudo que se encontra no contexto

onde esteja situado. E Respeito também se equivale a Moral, cuja idéia recebemos das tradições e

costumes: Dizer a verdade é moral; deve-se trabalhar para alcançar o sustento, porque a ética

81 KORTE, Gustavo; Iniciação à Ética; São Paulo; Editora Juarez de Oliveira – 1999; pg. 1

91

ensina que deve ser assim; Ame a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como assim mesmo, é

o Mandamento maior da Lei de Deus; honre seu pai e sua mãe para ser próspero e ter vida longa

na terra, foi o ensinamento gravado na pedra e recebido por Moisés.

O homem ético, pois é um homem de virtudes que traz em seu ser o verdadeiro

sentido da eticidade. Gustavo Korte82, valendo-se do pensamento Confuciano enumera sete

palavras-chaves, para revelar o verdadeiro sentido ético em que deve o homem se basear para

conviver com o contexto que o cerca:

A primeira é a Fidelidade que pode ser compreendida sob dois prismas distintos: o

primeiro como um ato de livre manifestação de vontade individual, que liga o amante ao ser

amado, prendendo-lhe a atenção e os sentimentos e gera uma relação afetiva unilateral – amo

porque quero vê-la amada, ou bilateral – amo porque sou amado; o segundo no sentido da

fidelidade do súdito ao seu soberano, do trabalhador ao empregador, ocorre da parte do primeiro

uma ligação de fé, de confiança, em que o último, com mais sabedoria, poder e força, irá fazer o

melhor por aquele e por sua comunidade. Há uma fé latente na validade da relação soberano-

povo. A fidelidade se extingue quando o soberano, o empregador, se mostra injusto ou incapaz.

A segunda palavra é Altruísmo que emerge do conformismo, traduzindo, em

sentido genérico, os conceitos de abnegação e amor ao próximo, opondo-se ao egoísmo.

Terceira palavra, Humanidade, que dentre os vários sentidos, indica as virtudes

morais, como compaixão, clemência e benevolência, opondo-se a desumanidade, crueldade e

impunidade.

A quarta palavra é Justiça, que diz respeito à profissão que abraçamos, pode ser

resumida na seguinte frase: Dar a cada um o que lhe pertence. E para que se possa alcançar a

justiça, não é suficiente aplicar-se a lei, posto que fazer-se isto sem humanidade, sem altruísmo, 82 KORTE, Op. Cit. p. 71-78.

92

sem sabedoria, sem decência, sem sinceridade e sem fidelidade, não é fazer justiça; pode ser

sentença, mas nunca passará de uma manifestação isolada, injusta e indesejada de quem detém o

poder, mas não sabe julgar.

Quinta palavra: Decência é a virtude que decorre da compatibilidade entre o

procedimento, suas causas e os ritos e rituais em que ele se desenvolve. O que é decente para uns

é indecente para outros. Decência, pois, está de acordo com os ritos e rituais de uma determinada

sociedade, o que para nós quer significar comportar-se de acordo com os nossos usos e costumes.

A sexta palavra é a Sabedoria, que como virtude, é a somatória da fidelidade, da

humanidade, da sinceridade, da justiça, do altruísmo e da decência.

Por derradeiro, a palavra é Sinceridade. Existe a sinceridade quando a pessoa é

decente porque quer sê-lo. Quando fiel porque acredita na fidelidade como virtude. É altruísta,

porque é humilde. É sábio porque ama a sabedoria e é justo porque acredita na justiça.

Estamos falando em homem social, em vida em sociedade, em condição humana,

que na concepção de Hannah Arendt83, como assentado no Capítulo I, utiliza a expressão a vita

activa pretendendo designar três atividades humanas fundamentais, quais sejam, labor, trabalho e

ação, porque a cada uma delas corresponde uma das condições básicas mediante as quais a vida

foi dada por Deus ao Homem aqui na terra.

Falamos, pois, em Ética Social que guarda ralação direta com a política, a

economia, a produção, o consumo e a filosofia do direito.

No que se refere ao trabalho, relacionado diretamente com as questões políticas,

econômicas, produtivas e filosóficas, leciona Gustavo Korte84 que o trabalhismo, movimento que

surgiu na Inglaterra no século XIX, e depois nos demais países avançados, teve por princípio

83 ARENDT, Op. Cit. p. 15. 84 KORTE, Op. Cit. p. 148-149.

93

interferir na relação capital-trabalho, dando ao trabalhador uma importância e uma proteção

maior, em face do poder do capital.

Assim, tendo o capital maior força econômica que o trabalho, este deve ser

protegido pelo Estado, para viabilizar equilíbrio e justiça social. Vale dizer, a segurança dos

direitos do trabalhador passa a ser também função do Estado, e à medida que cresce o capital,

nessa relação, mais proteção deve ser dispensada ao trabalhador.

Fidelidade, Altruísmo, Humildade, Justiça, Decência, Sabedoria e Sinceridade são

elementos essenciais à Ética, cujo princípio norteia também as relações laborais, tendo em vista

que trabalhador e patrão, devem trazer para dentro da relação jurídica cada um desse elementos e,

assim, cumprir suas obrigações recíprocas e garantir os direitos que lhe são assegurados por lei e

pela vontade que declararam quando da celebração do contrato.

A Ética está inserida nos próprios conceitos de empregador e empregado,

capitulados nos artigos 2º e 3º da Consolidação das Leis do Trabalho, respectivamente, cabendo

ao primeiro assumir os riscos da atividade econômica por ele explorada, admitindo e assalariando

o empregado e dirigindo a prestação dos serviços. Quanto ao segundo, deve prestar seus serviços

de forma não eventual, mediante o recebimento de salário.

É ético, pois, o empregador que não transfere ao empregado os prejuízos que

porventura venha a sofrer na execução da atividade explorada. É comum nos Pretórios

Trabalhistas de todo o País, frentistas de postos de gasolina, serem obrigados a ressarcir os

valores pagos com cheques sem fundos ou com cartões de crédito roubados. Motoristas serem

obrigados a pagar prejuízos causados em acidentes de trânsito e tantos outros casos. É ético o

empregador que admite um empregado independentemente de sua cor, sua crença religiosa ou

sua opção sexual. É ético o patrão que paga corretamente a remuneração a que faz jus o

trabalhador e é ético o empregador que dirige a prestação dos serviços sem exigir do empregado

94

esforço que não esteja apto a suportar, ou impor ordens que não façam parte do objeto do

contrato. É ético o empregador que age com humanidade e justiça diante de seus subalternos.

Quanto ao empregado, diz-se ético aquele que cumpre rigorosamente com todas as

obrigações contratuais, cumpre horários, respeita seus colegas de trabalho e seus superiores

hierárquicos, é fiel e sincero com seu empregador e utiliza sua sabedoria para melhorar as

condições de vida de sua família.

É a Ética que preconiza outro Princípio do Direito do Trabalho, qual seja, o

Princípio da Continuidade do contrato de trabalho, o qual só poderá se consolidar se empregado e

empregador agirem em absoluta consonância com o Princípio da Eticidade.

Por fim, cabe ao Juiz do Trabalho, considerando e tendo em mente sempre os

fundamentos do trabalhismo, citado anteriormente, fazer prevalecer tal princípio quando da

apreciação de toda e qualquer demanda de natureza trabalhista.

É, pois, ético, o Juiz do Trabalho que assegura equivalência à relação capital-

trabalho, dando ao trabalhador a importância e a proteção de que necessita, em virtude do

incomensurável poder do capital.

É o Estado Juiz, repleto de Ética e com uma visão social e normativa, quem tem o

poder de proteger o trabalhador em face do maior poder do capital, viabilizando, em última

análise, o equilíbrio, o acesso à justiça e a tão desejada Justiça Social.

4.3.8. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.

95

Dispõe o Artigo 1º da Constituição Federal de 198885, que trata Dos Princípios

Fundamentais, em síntese, que o Brasil, constitui-se em um Estado democrático de direito e tem

como fundamentos, dentre outros, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho

e da livre iniciativa .

Já o Artigo 5º, inciso XIII do Título II, Capítulo I da Carta Constitucional, que

trata Dos Direitos e Garantias Fundamentais, assegura o livre exercício de qualquer trabalho,

ofício ou profissão, atendidas as qualificações estabelecidas em lei.

No Artigo 6º, do Título II, Capítulo II da Carta Fundamental, que trata dos Direitos

Sociais, restam assegurados a educação, a saúde, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência

social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados e o trabalho, na

forma da Constituição.

A garantia desses direitos, liberdades e princípios fundamentais é dever do Estado,

em conformidade com o que dispõe a Constituição Federal vigente, conforme se lê nos incisos

XXXV e XLI do Artigo 5º, que dispõem, respectivamente, que a lei não excluirá da apreciação

do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito e, a lei punirá qualquer discriminação atentatória

dos direitos e liberdades fundamentais.

Arnaldo Süssekind86 afirma que os instrumentos normativos que incidem sobre as

relações de trabalho devem visar, sempre que pertinente, a prevalência dos valores sociais do

trabalho. E a dignidade do trabalhador, como ser humano, deve ter profunda ressonância na

interpretação e aplicação das normas legais e das condições contratuais de trabalho.

85 Constituição Da República Federativa do Brasil promulgada em 5 de outubro de 1988. 86 SÜSSEKIND, Op. Cit. p. 66.

96

A Constituição Federal de 1988 determina, em seu Título VIII, Artigo 193, que a

ordem social tem como base o primado ao trabalho e, como objetivo o bem-estar e a justiça

sociais.

A esse respeito Arnaldo Süssekind87 menciona as artigos 7º e 8º da Constituição

Federal vigente, para verificar a existência de princípios inerentes aos direitos fundamentais do

trabalhador, como o princípio da não-discriminação, que proíbe diferença de critério de admissão,

de exercício de funções e salário por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil (Art. 7º, XXX),

ou critério de admissão e de salário em razão de deficiência física (Art. 7º, XXXI). Outro

princípio é o da continuidade da relação de emprego, o qual, embora não seja inflexível, posto

que não há estabilidade absoluta consagrada na Constituição de 1988, emana das normas que

garantem indenização por dispensa arbitrária, ou sem justa causa (Art. 7º, I).

Mas, o que vem a ser a dignidade da pessoa humana?

Rizzato Nunes88 leciona que Dignidade é um conceito que foi sendo elaborado no

decorrer da história e chegou ao início do século XXI repleta de si mesma como um valor

supremo, tendo sido construído pela razão jurídica, sendo uma conquista da razão ético-jurídica,

fruto da reação à história de atrocidades que, infelizmente, marcou e marca a existência humana.

Ingo Wolfgang Sarlet89 diz que se deve entender por dignidade da pessoa humana

a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e

consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de

direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de

cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas

87 SÜSSEKIND, Op. Cit. p. 68. 88 NUNES, Rizzatto. O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana – Doutrina e Jurisprudência. São Paulo: Editora Saraiva, 2002. p 46. 89 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988; Segunda Edição Revista e Ampliada. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2002. p. 62.

97

para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável

nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.

Desse conceito pode-se extrair alguns termos que devem nortear as relações entre

os indivíduos, comunidade/indivíduo e Estado/indivíduo: o respeito e a consideração por parte do

Estado e da comunidade. O indivíduo deve ser tratado com respeito e consideração por todos

aqueles que fazem parte do contexto de sua vida em sociedade: família, amigos, empregador e

pelo próprio Estado. Essa condição de respeito e consideração leva o indivíduo à realização plena

de seus direitos e deveres, que tem por finalidade, sejam inibidos atos desumanos e atentatórios à

sua pessoa, assegurando-lhe condições mínimas essenciais para uma vida saudável. Essas

condições são, moradia, saúde, lazer, previdência social e trabalho, dentre outros, todas elas

consubstanciadas no texto do Artigo 6º da Constituição Federal, antes mencionado.

É certo afirmar que nossa Constituição, de cunho marcadamente compromissário

elevou a dignidade da pessoa humana à condição de fundamento de nosso Estado democrático de

Direito. Assim, nossa Constituição pode ser considerada como sendo uma Constituição da pessoa

humana, por excelência, mesmo que não raras vezes venha a ser desrespeitada.

Conforme salienta Ingo Wolfgang Sarlet90, ainda que a dignidade preexista ao

direito, certo é que o seu reconhecimento e proteção por parte da ordem jurídica constituem

requisito indispensável para que esta possa ser tida como legítima.91

Assiste, pois, razão aos que apresentam a dignidade da pessoa humana como

critério aferidor da legitimidade substancial de uma determinada ordem jurídico-constitucional.

Se por um lado consideramos que há como discutir, especialmente na nossa ordem constitucional

90 SARLET, Op. Cit. p. 82-83. 91 E acrescenta Ingo Wolfgang: “Aliás, tal dignidade tem sido reconhecida à dignidade da pessoa humana que se chegou a sustentar, parafraseando o conhecido e multicitado art. 16 da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), que toda sociedade que não reconhece e não garante a dignidade da pessoa não possui uma Constituição.”

98

positiva, a afirmação de que todos os direitos e garantias fundamentais encontram seu

fundamento direto, imediato e igual na dignidade da pessoa humana, e por ele concretizados,

verifica-se, por outro lado, que os direitos e garantias fundamentais podem, ainda que de modo e

intensidade variáveis, ser reconhecidos de alguma forma à noção de dignidade da pessoa humana,

tendo em vista que todos remontam à idéia de proteção e desenvolvimento de todas as pessoas e

não apenas de cada uma, individualmente.

Impõe-se, pois, seja ressaltada a função instrumental e hermenêutica do princípio

da dignidade de pessoa humana, na medida em que este serve de parâmetro para aplicação,

interpretação e integração não apenas dos direitos fundamentais e das demais normas

constitucionais, mas de todo o ordenamento jurídico.

Há aqui que se relembrar os ensinamentos do professor Lenio Luiz Strek92, já

vistos quando da elaboração do Capítulo 2 do presente ensaio. Diz o professor, com base na

teoria da Nova Crítica do Direito, que o intérprete não interpreta por partes, isto é, primeiro

compreende, depois interpreta, para finalmente aplicar. Em se tratando da aplicação do princípio

da dignidade da pessoa humana e de todos os demais princípios que dele emergem e sustentam

não só o ordenamento constitucional, mas todo o ordenamento jurídico pátrio, esses três

momentos devem ocorrer em um só: a applicatio, que se dá no movimento da circularidade da

autocompreensão no interior da espiral hermenêutica.

Em sendo assim, o juiz, a partir da Nova Crítica do Direito, não decide para depois

buscar a fundamentação; ao contrário, ele decide porque já encontrou o fundamento para sua

decisão, sendo esse fundamento a condição de possibilidade para a decisão tomada, buscando, em

92 STRECK, Op. Cit. p. 169.

99

um segundo momento o aprimoramento de seu fundamento e esse fundamento deve repousar no

princípio da dignidade da pessoa humana.

No caso do Direito do Trabalho, este deve ser o comprometimento do Juiz:

fundamentar sua decisão no princípio da dignidade da pessoa humana e buscar, a partir desse

ponto, desse fundamento, os dispositivos legais que melhor se adeqüem ao caso levado ao seu

exame. Agindo dessa forma, o Juiz do Trabalho estará próximo de uma decisão justa, garantindo

uma efetiva prestação jurisdicional e, em conseqüência, o absoluto acesso à justiça.

100

5. O PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO E A EFETIVIDADE DA JUSTIÇA

SOCIAL.

Para que possamos efetivamente refletir acerca da questão proposta é imprescindível

visualizarmos o direito como Instrumento. Há uma dificuldade em definir o direito, posto que se

apresenta paradoxal, pois, de um lado,protege-nos do poder arbitrário, exercido à margem de

toda regulamentação, dá a todos oportunidades iguais e, ao mesmo tempo, ampara os menos

favorecidos. De outro lado, é um instrumento manipulável que frustra as aspirações dos menos

privilegiados, permitindo o uso de técnicas de controle e dominação, sendo assim acessível

apenas a uns poucos especialistas. Cumpre observar ainda, que se trata de um dos mais

importantes fatores de estabilidade social, haja vista que admite um cenário comum no qual as

mais diversas aspirações podem encontrar uma aprovação e uma ordem.

Ultrapassada que seja tal discussão a respeito do direito como Instrumento, resta-nos

indagar qual seria um dos fins almejados quando da sua utilização efetiva, deparamo-nos, então,

com o tão festejado movimento do acesso à justiça.

Neste Capítulo procuraremos analisar o atual conceito de acesso à justiça, superando o

entendimento segundo o qual tal acesso se restringe ao direito de ingresso ou contestação de

ações judiciais nas varias instâncias do Poder Judiciário. Para tanto, embasaremos nossas

considerações na Obra de Mauro Cappelletti e Bryant Garth, com tradução de Ellen Gracie

Northfleet, Acesso à Justiça, Porto Alegre, Sergio Antônio Fabris Editor, 1988, reimpresso em

2002.

Inicialmente direito ao acesso à proteção judicial significava essencialmente o

direito formal do indivíduo agravado de propor ou contestar uma ação. A justiça, assim como

outros bens, só poderia ser obtida por aqueles que pudessem arcar com seus custos, sendo os

101

únicos responsáveis por sua boa sorte, aqueles que não pudessem fazê-lo. Era, pois, o acesso

formal, mas não o acesso efetivo à justiça, isto é, a igualdade era formal, mas não a igualdade

efetiva.

Surge, com o crescimento das sociedades do laissez-faire, em tamanho e

complexidade, uma forte transformação do conceito de direitos humanos e, assim, as ações e

também os relacionamentos passaram a assumir um caráter mais coletivo do que individual,

ficando para trás a visão individualista dos direitos. É quando surge o movimento que passa a

reconhecer os direitos e deveres sociais dos governos, comunidades e indivíduos. Esses novos

direitos humanos, inicialmente exemplificados no preâmbulo da Constituição Francesa de 1946,

são, antes de tudo, os necessários para tornar efetivos, isto é, acessíveis a todos os direitos antes

proclamados, quais sejam, os direitos ao trabalho, à saúde, à segurança material e à educação.

Assim, imperiosa passou a ser a atuação positiva do Estado com vistas a assegurar o gozo de

todos esses direitos sociais básicos. Com isso, foi ganhando particular atenção o direito ao efetivo

acesso à justiça, na medida em que as reformas do Welfare state procuraram armar os indivíduos

de novos direitos substantivos em sua qualidade de consumidores, locatários, empregados e,

acima de tudo, cidadãos.

O acesso à justiça, nas palavras de Mauro Cappelletti93, “pode, portanto, ser

encarado como o requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um sistema

jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos.

Embora o acesso efetivo à justiça venha sendo crescentemente aceito como um

direito social básico nas modernas sociedades, o conceito de efetividade é muito vago. A

efetividade perfeita, aquela que todos almejamos, poderia ser expressa como uma completa

“igualdade de armas”, isto é, a garantia de que se chegaria a uma conclusão definitiva ao final de 93 CAPPELLETTI, Op. Cit. p. 12.

102

um processo judicial, pura e simplesmente pelos méritos jurídicos relativos às partes e ao seu

litígio, e que nenhum fator estranho ao Direito pudesse afetar o curso do processo e a garantia do

Direito a quem fosse seu real detentor.

Inúmeros obstáculos se opõem a que se alcance esse tão desejado acesso à justiça,

tais como as elevadas custas judiciais; o infindável tempo para que se dê a solução final ao

processo - a Convenção Européia para a Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades

Fundamentais reconhece explicitamente, no artigo 6º, parágrafo primeiro que a Justiça que não

cumpre suas funções dentro de “um prazo razoável” é, para muitas pessoas, uma Justiça

inacessível; a disparidade dos recursos financeiros que possuem pessoas e organizações, contra os

assalariados e pobres de nosso País e, finalmente, o infindável rol de recursos judiciais que

proporcionam àqueles que podem constituir bons advogados, a garantia de que o processo nunca

terá fim.

As mudanças que desejamos só poderão ser concretizadas se efetivamente houver

uma mudança social e política por parte daqueles que detêm o poder. Mas, vai muito além disso.

É necessária uma mudança de mentalidade e de comprometimento de todos os aplicadores do

direito, especialmente, por parte daqueles que defendem o direito laboral. Tal mudança ultrapassa

a letra fria da lei, se encontra com os princípios fundamentais esculpidos no Texto Constitucional

e se derrama sobre o homem e a dignidade que deve preencher sua existência. A finalidade, nas

palavras de Mauro Cappelletti94 não é fazer uma justiça “mais pobre”, mas torná-la acessível a

todos, inclusive aos pobres. E, se é verdade que a igualdade de todos perante a lei, igualdade

efetiva – não apenas formal – é o ideal básico de nossa época, o enfoque de acesso à justiça só

poderá conduzir a um produto jurídico de muito maior “beleza”, ou seja, de muito melhor

qualidade, do que aquele de que dispomos atualmente. 94 CAPPELLETTI, Op. Cit. p. 165.

103

E como garantir essa efetiva igualdade entre capital e trabalho, entre patrões e

trabalhadores, dentro do âmbito do Direito do Trabalho?

Entendemos que a resposta está na aplicação por parte do Juiz do Trabalho,

quando da apreciação das demandas que lhe forem levadas ao conhecimento, de um dos

princípios que regem nossa disciplina: o Princípio da Proteção.

Américo Plá Rodrigues95 afirma que tal princípio se refere ao critério fundamental

que orienta o Direito do Trabalho, pois este, ao invés de inspirar-se num propósito de igualdade,

responde ao objetivo de estabelecer um amparo preferencial a uma das partes, qual seja, o

trabalhador.96

O fundamento deste princípio está ligado à própria razão de existência do Direito

do Trabalho, que surgiu como conseqüência de que a liberdade de contrato entre pessoas com

poder e capacidade econômicas desiguais conduzia a diferentes formas de exploração. A partir

daí, o legislador não teve mais como manter a ficção de igualdade existente entre as partes do

contrato de trabalho e inclinou-se para uma compensação dessa desigualdade econômica

desfavorável ao trabalhador com uma proteção jurídica que lhe fosse favorável. Aqui está, pois, o

fundamento do direito do Direito do Trabalho: responder ao propósito de nivelar as

desigualdades. É através do que costumamos denominar de direito social - que representa um

sistema legal de proteção dos hipossuficientes, através do qual, em caso de dúvida, a

interpretação deverá ser sempre feita em favor do economicamente fraco, em favor do

empregado, quando de seu litígio com o empregador - que se realizará a justiça social.

95 PLÁ RODRIGUES, Op. Cit. p. 83. 96 Assevera Américo Plá Rodrigues que enquanto no direito comum existe uma constante preocupação para assegurar a igualdade jurídica entre os contratantes, no Direito Laboral a preocupação central é a de proteger uma das partes com o objetivo de, mediante essa proteção, alcançar uma igualdade substancial e verdadeira entre elas.

104

Essa orientação vai de encontro aos critérios que se aplicam em qualquer ramo do

direito, nos quais o intérprete deve sempre atuar em consonância com a intenção do legislador.

Assim, o Princípio da Proteção se explica não só sob o ponto de vista social, mas também sob o

jurídico, tendo em vista que a intenção do legislador nesta matéria foi sempre a de favorecer aos

trabalhadores, conforme se pode verificar tanto no Texto Constitucional, quando na legislação

infraconstitucional. Mas há divergências.

Dentre as inúmeras ponderações que divergem dos conceitos até aqui expostos,

reportamo-nos às considerações do Professor Arion Sayão Romita, em sua obra intitulada O

Princípio da Proteção em Xeque e outros ensaios. São Paulo: LTr, 2003, por tratar-se de obra

repleta de argumentos que embasam uma teoria absolutamente contrária ao protecionismo que

deve reger, em nossa concepção, o Direito do Trabalho como meio para a realização da justiça

social.

Fundamenta o professor Romita97 sua teoria nas mudanças ocorridas no mundo da

economia, da tecnologia e da política, que segundo ele, deverão refletir-se na legislação que

regula as relações individuais e coletivas de trabalho para adaptá-la às novas realidades

econômicas e sociais. Defende, ainda, que a visão conservadora e resistente às mudanças se

esmera na supervalorização do princípio da proteção, opondo-se à tendência renovadora, como a

flexibilização e questões afins. Estariam, pois, em mãos opostas: princípio da proteção x

princípio da flexibilização ou princípio autoritário e corporativista x princípio da democracia.

Essas afirmações repousam no fato de que, o princípio de proteção não existiria

nem poderia ser afirmado sem que se levasse em conta os fundamentos históricos e sociopolíticos

do ordenamento trabalhista brasileiro, cujo regime autoritário e corporativista jamais aceitaria a

tese de um ordenamento jurídico que privilegiasse ou protegesse o trabalhador. Ao contrário, a 97 ROMITA, Op. Cit. p. 21.

105

própria índole desse ordenamento jurídico repele tal noção de proteção, pois em última análise,

os destinatários dessa proteção seriam os detentores do poder estatal, econômico e sindical.

Assim, não sendo o trabalhador detentor de qualquer desses poderes, seria uma ficção a

afirmação de existência de qualquer princípio criado para protege-lo.

Por outro lado, na visão do professor Romita98, não constitui função do direito, ou

melhor, de qualquer dos ramos do direito, proteger algum dos sujeitos de dada relação social. Ao

contrário, a função do direito é apenas regular a relação em busca da realização do ideal de

justiça.

Neste particular, podemos imaginar como estariam os consumidores nos dias de

hoje, sem o Código de Defesa do Consumidor; como seriam tratados os réus em processos

criminais, diante da absurda onda de criminalidade que assola o País, sem que lhe fossem

garantidos o direito à ampla defesa, o contraditório e o princípio basilar do in dubbio pro réu”

que rege o direito penal brasileiro. Mesmo o Direito Civil, com o advento do Novo Código Civil

de 2002, passou a tratar da função social do contrato e princípio da boa-fé, assegurando aos que

não dispõem de recursos materiais um maior equilíbrio com os detentores do poder econômico.

Vê-se, pois, que se busca “equilibrar a balança”, garantindo a oportunidade para os

litigantes disputarem, fazendo com que assim seja respeitado o princípio da isonomia material,

especialmente no plano processual.

Ao mesmo tempo que afirma não ser função do direito proteger os sujeitos de dada

relação social, nem tampouco ser função do direito do trabalho proteger o empregado, assim

conclui: “Se para dar atuação prática ao ideal de justiça for necessária a adoção de alguma

98 IDEM, P. 23.

106

providência tendente a equilibrar os pólos da relação, o direito concede à parte em posição

desfavorável alguma garantia, vantagem ou benefício capaz de preencher aquele requisito.”99

E qual é essa garantia que o direito concede ao trabalhador para equilibrar uma

relação social a ele totalmente desfavorável? É essencialmente a certeza de que em havendo

dúvidas sobre qual norma aplicar, sobre as provas produzidas no decorrer do processo, só será

alcançado o ideal de justiça se aplicado o Princípio da Proteção em benefício do trabalhador.

Há, no nosso modo de ver, duas questões que precisam ser examinadas

separadamente, para que não se confunda o conceito de Princípio de Proteção com benefício ou

garantias exacerbadas a quaisquer das partes.

A primeira versa sobre o momento da celebração do contrato de trabalho

subordinado e o momento de sua vigência. Aí todos concordamos e reconhecemos a inicial

posição de desvantagem em que se encontra o trabalhador, porém, seria a função principal do

direito do trabalho equilibrar as posições econômicas entre empregador e empregado por meio de

concessão de garantias a esse último, com o intuito de compensar, ou pelo menos de tentar

compensar as desigualdades iniciais. Mas, onde estão essas garantias? Onde está assegurado o

emprego do trabalhador? Se buscarmos cuidadosamente por tais institutos, certamente não os

encontraremos. Ao fazer jus o empregado à Carteira de Trabalho assinada, não tem certeza do

recolhimento de seu INSS que contabiliza seu tempo para aposentadoria; se faz jus a um salário

nunca inferior ao mínimo legal, não tem certeza de que o receberá ao final de 30 dias de trabalho;

se lhe é garantida multa de 40% sobre o FGTS pela dispensa sem justa causa, não pode reclamar,

enquanto empregado, o não recolhimento de tal fundo e a pior de todas as situações: mesmo

estando subordinado ao poder potestativo de seu patrão, podendo ser dispensado a qualquer

momento sem justa causa, não lhe sendo garantida nenhuma estabilidade no emprego, ainda 99 ROMITA, Op. Cit. Pg. 23.

107

assim, tem o empregador o poder de dispensá-lo por justa causa sem pagar-lhe qualquer valor a

título de indenização.

E podem surgir algumas indagações como por exemplo sobre o instituto da

estabilidade do cipeiro, do dirigente sindical, da mulher gestante. Respondo que tal estabilidade é

também provisória, estando o empregado totalmente desamparado ao final do período

estabelecido em lei.

O que se tem, na verdade, são direitos sociais mínimos garantidos ao empregado

enquanto perdurar o contrato de trabalho, mas não há no nosso ordenamento jurídico qualquer

garantia de que o empregado poderá acordar todos os dias sabendo que seu emprego estará

garantido. Como se vê, essas ditas garantias não protegem o trabalhador nem atenuam as

desigualdades com o empregador, muito menos o protegem.

Se essa é a triste realidade que encontramos em nosso País, onde poderá ser

aplicado o Princípio Protetor que rege o Direito do Trabalho?

É através das sentenças trabalhistas fundadas nos princípios da eticidade, da boa-fé

e da dignidade da pessoa humana que o Juiz do Trabalho, como operador do Direito Social pode

e deve igualar ou pelo menos amenizar as diferenças entre o capital e o trabalho, entre o

empregado e o empregador.

É na Justiça do Trabalho, no mais das vezes, que se faz valer o Direito do

Trabalho, garantido ao trabalhador todos os institutos previstos em lei, que muitas vezes lhe

foram negados quando da vigência do contrato.

108

O Princípio da Proteção, portanto, deverá ser aplicado no momento da apreciação

das demandas trabalhistas, devendo desdobrar-se nas regras “in dubio, pro operario” , “da norma

mais favorável” e “da condição mais benéfica”.100

É aqui, neste momento, que o direito compensa as desigualdades iniciais e é aqui,

neste momento que se realiza o ideal de justiça.

Negar a efetividade e a aplicação do Princípio da Proteção é negar a própria razão

de existência do Direito – material e processual - e da Justiça do Trabalho e toda sua história em

nosso País.

O Direito tem, por sua natureza, um caráter instrumental, o qual pode ser sentido

na constatação de que sua ação pode modificar até mesmo a base social que lhe deu existência.

Jorge Luiz Souto Maior, em sua obra O Direito do Trabalho como Instrumento de

Justiça Social. São Paulo: LTr, 2000, p. 244-316, sustenta que o direito como instrumento não é

só o direito legislado, ou seja, a visão do direito como instrumento fornece todas as armas que se

encontram no próprio direito. Sendo assim, em uma sociedade democrática, a Constituição,

necessariamente, consagra os muitos valores constantes das diversas ideologias político-sociais

que podem ser modificados com a evolução das ralações sociais que exige novas respostas do

direito a cada momento. Devem, pois, estar sempre atentos à essa evolução os legisladores, os

juízes e os doutrinadores para elaborarem um direito aplicável a seu tempo.

O Direito do Trabalho, sustenta Jorge Luiz Souto Maior101, pode ser um

instrumento para construção de uma sociedade mais justa, mesmo que forças econômicas afastem

100 In dúbio, pro operário: caso uma norma seja suscetível de duas ou mais interpretações, deve-se preferir a interpretação mais favorável ao empregado. Regra da norma mais favorável: Aplica-se ao caso concreto a norma mais favorável ao trabalhador, mesmo que hierarquicamente inferior a outra norma também aplicável ao caso em apreço. Regra da Condição mais benéfica: pressupõe a existência de uma situação concreta, anteriormente reconhecida, e determina que ela deve ser respeitada, na medida em que seja mais favorável ao trabalhador que a nova norma aplicável. 101 MAIOR, Op. Cit. p. 246.

109

leis sociais ou façam surgir leis anti-sociais, pois o direito é algo que está acima da lei e seu fim é

a busca pelo ideal justiça.

Esse ideal de justiça, pois, é o que confere sentido ao direito, o que lhe dá

dignidade. No que se refere à noção de justiça, impregnando o direito, basta verificar que o

Direito do Trabalho é construído sem que se perca de vista a desigualdade material entre seus

sujeitos – empregados e empregadores -, compondo-se de forma desigual, para compensar aquela

desigualdade, tentando-se torná-la uma igualdade, não apenas formal, mas uma igualdade de fato.

Lutar-se efetivamente por uma justiça social em nosso País, utilizando-nos do

Direito do Trabalho como instrumento, culmina com a constitucionalização das normas

protetivas do trabalho e a normatização de seus princípios fundamentais, possibilitando a

interpretação das normas infraconstitucionais com base nesses postulados. Dessa forma, o Direito

do Trabalho assim construído e aplicado é instrumento decisivo para a formulação e a defesa da

justiça social.

E o Princípio da Proteção poderia ser entendido como Norma de Direito

Fundamental?

Ana Virginia Moreira Gomes102 afirma que apesar de não escrito, é na própria

Constituição que encontramos a base jurídica para a consideração do princípio protetor como

direito constitucional dos trabalhadores. Sendo princípio fundamental do Estado Democrático de

Direito a dignidade da pessoa humana, torna-se, no mínimo razoável, que a sociedade exija um

nível mínimo de cidadania para todos, inclusive para o trabalhador, justificando-se, assim, a ação

protetora do Estado.

102 GOMES, Ana Virginia Moreira. A aplicação do princípio protetor no direito do trabalho. São Paulo: LTr, 2001. ; p. 41-42.

110

Hoje o que se vê no Brasil é que se está deixando de lado a preocupação com a

eliminação de injustiças, com vistas à melhoria das condições de vida dos trabalhadores, para

considerar, única e exclusivamente, o fenômeno do desemprego, o que, no nosso modo de ver,

justifica o surgimento de mais injustiça, todas elas consagradas pelo próprio direito.

Dessa forma fala-se em flexibilização das leis trabalhistas, reforma sindical,

prevalência da livre negociação sobre a norma posta. Preocupa-nos o surgimento desse novo

paradigma, hoje defendido por inúmeros juristas consagrados do Direito Laboral pátrio, tendo em

vista que apenas o oferecimento de trabalho, de qualquer trabalho, a qualquer custo, não é

suficiente para o desfazimento das injustiças e, sendo assim, nas palavras de Jorge Luiz Souto

Maior103, “o direito do trabalho, desse modo, tende a ser meramente direito a trabalhar, inserido

na conjuntura do direito civil.”

Não concordamos com esse novo paradigma, pois entendemos que a razão de ser

do Direito do Trabalho permanece viva e só podem ser desprezadas as suas bases teóricas por

aqueles que pretendem justificar uma enorme injustiça social, tentando fazer prevalecer a teoria

de um mal menor, Isto é, melhor ter-se trabalho, a qualquer preço, a qualquer título, sem qualquer

garantia, do que não ter trabalho. Em última análise, é isso que preconizam os defensores desse

novo paradigma, utilizando-se dos meios de comunicação tão somente para falar de desemprego

e globalização, mas escondendo, ou não mencionando em nenhum momento a dignidade, a ética

e a justiça.

Para que se considere o Direito do Trabalho como um instrumento de justiça

social, é necessário a total compreensão e defesa de um pressuposto, qual seja, de que o Direito

do Trabalho é o instrumento capaz de equilibrar as forças do capital e do trabalho, pois só assim

imperará a igualdade de forças numa relação totalmente desigual. 103 MAIOR, Op Cit. p. 261.

111

O que procuram na verdade os defensores do já citado modelo de flexibilização e

globalização é a desregulamentação do Direito do Trabalho, ou, para ser melhor compreendido, o

fim do Direito do Trabalho. E como deter o avanço brutal dessa idéia?

Jorge Luiz Souto Maior104 oferece razoável resistência utilizando-se de três

fundamentos: o primeiro, jurídico, através do qual, pode-se reafirmar os conceitos do Direito do

Trabalho, descortinando e valorizando seus princípios históricos, interpretando suas regras e

integrando suas lacunas à luz dessa base teórica; o segundo, político, por intermédio do exercício

da democracia, buscando a normatização de princípios consagrados do Direito do Trabalho e a

constitucionalização das normas, ou ainda, buscando manter a ordem já conquistada na

Constituição Federal de 1988; e, por fim, filosoficamente, mediante a construção de uma

ideologia, se não dominante pelo menos reveladora, de que o homem, para ter sua dignidade

protegida no mundo capitalista, precisa que sua força de trabalho seja valorizada, ou seja, que o

homem seja identificado como homem.

É este o objetivo de nosso trabalho: defender a razão de ser do Direito do

Trabalho, reconhecer e aplicar os princípios da eticidade, da boa-fé e da dignidade da pessoa

humana e, principalmente, fazer valer o princípio da proteção, que rege e orienta o Direito do

Trabalho como instrumento de Justiça Social no Brasil. Para isso conclamamos todos os

aplicadores do Direito, em especial aos Juízes do Trabalho espalhados por cada comarca deste

imenso País, para que defendam o Direito do Trabalho, juridicamente, defendendo os conceitos

históricos e valorizando seus princípios; politicamente, atuando para que sejam ampliados os

direitos trabalhistas consagrados pela Constituição e não diminuídos os que ali já estão colocados

e, filosoficamente, tratando o homem como homem, valorizando seu trabalho e reconhecendo sua

dignidade de pessoa humana, visando buscar a paz e a justiça sociais. 104 MAIOR, Op Cit. p. 264.

112

Norberto Bobbio105 afirma:

Direitos do homem, democracia e paz são os três momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos. Em outras palavras, a democracia é a sociedade dos cidadãos, e os súditos se tornam cidadãos quando lhes são reconhecidos alguns direitos fundamentais; (...)

Rudolf Von Ihering, em a Luta pelo Direito, 106afirma:

O direito não é uma pura teoria, mas uma força viva. Por isso a justiça sustenta numa das mãos a balança em que pesa o direito, e na outra a espada de que se serve para o defender.

Pesemos na balança, segura pela mão esquerda, mão que guarda o lado do coração,

o peso do Direito do Trabalho e reflitamos sobre como sua aplicação se revelará para o homem

trabalhador, como se traduzirá em ética e dignidade. Protejamos, defendamos o Direito e o

trabalhador com a espada que se empunha com a mão direita, pois é assim que se alcançará a paz

e a justiça sociais.

105 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direito. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. Introdução. p. 1. 106 Von, Ihering, Rudolf. A Luta pelo Direito. Tradução de João Vasconcelos. Rio de Janeiro: Forense, 1997. pg. 1.

113

6. CONCLUSÃO:

São estes os fundamentos que entendemos necessários para uma reflexão sobre o

momento por que passa o Direito do Trabalho no Brasil. É, pois, sobre dos argumentos expostos

no decorrer de todos os capítulos deste ensaio, que repousam nossos objetivos e nossas

preocupações. Pretendemos, com nossas considerações, defender o trabalhador e sua dignidade

como ser humano; protegê-lo diante da força do capital, ampará-lo quando da apreciação de sua

demanda, aplicando sempre o princípio protetor sem esquecer a igualdade de tratamento que se

deve dar às partes – obrigação de todo magistrado. Porém, não é apenas do Juiz do Trabalho esta

árdua tarefa. Advogados, membros do Ministério Público do Trabalho. Pertence a todos o desafio

que ora propomos. É em todos nós que o trabalhador deposita sua confiança. É para nós que o

humilde entrega seu destino, portanto, é sobre nossos ombros que pesarão a demora na solução

dos litígios e, em conseqüência, a falta de justiça.

Falando sobre o advogado, Piero Calamandrei107 assim se manifesta:

A fé que certos clientes, especialmente gente humilde e inculta, depositam nas virtudes dos advogados e na infalibilidade dos juízes às vezes é tão cega e absoluta que provoca ao mesmo tempo espanto e ternura. Quando, diante das dúvidas honestas que exprimo sobre o desfecho de uma causa, ouço o cliente dizer-me: “Advogado, se o senhor quiser, com certeza o tribunal me dará razão”, tenho vontade de abrir os olhos desse iludido, que não sabe com quantos riscos está semeado o caminho dos advogados. Mas, depois, penso que sentir assim a justiça como um nume onipotente, que não invoca em vão, talvez seja a conquista mais elevada da civilização e é, por certo, o cimento que melhor mantém unida a sociedade humana. E não tenho coragem de desenganar o bom sujeito.

107 CALAMANDREI, Piero. Eles, os Juízes, vistos por um advogado. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 153-154.

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É isso que o cliente espera de seu Advogado: virtude e amor em defesa de sua

causa. Se é assim, que se faça com respeito ao Direito e à Justiça. Que se escreva a verdade, que

se narre os fatos como realmente ocorreram, que se respeite o adversário, que se recorra de uma

decisão pela certeza de que ela não é justa e não apenas para ganhar tempo e protelar o término

de um processo. Advogado e Direito são pilares de um mesmo ideal: a Justiça.

Ao juiz cabe se fazer compreender, cabe, diante da simplicidade daqueles que

lerão suas sentenças, dizer o Direito de forma simples, direta, objetiva e respeitosa com todos,

partes e patronos.

Sobre os juízes Piero Calamandrei108 assim se manifesta:

Dizer de um juiz que suas sentenças são “bonitas”, no sentido de que são ensaios de estilo ornamentado e de brilhante erudição exposta em vitrine, não me parece que seja fazer-lhe um elogio. As sentenças dos juízes devem, simplesmente, nos limites das possibilidades humanas, ser justas. [...]

E como ser justo? Como proferir decisões que reflitam o desejo da sociedade por

justiça social, sem que com isso, tenha o Juiz do Trabalho que se afastar da imparcialidade e da

igualdade de tratamento para com as partes?

Entendemos que isso só será possível quando se fizer presente na mente e no

coração do Magistrado o verdadeiro sentido do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana;

quando o Juiz antes de buscar o fundamento na letra fria da lei, puder encontrar em cada artigo,

em cada inciso, em cada alínea, os princípios de boa-fé e de eticidade; e mais; quando o Juiz do

Trabalho se convencer de que não há Estado Democrático de Direito, sem que se proteja aquele

que necessita de proteção, sem que se garanta a prestação jurisdicional proferindo decisões justas,

108 CALAMANDREI, Op. Cit. p. 171-172

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protegendo o trabalhador contra a força do capital, aplicando normas que lhe sejam mais

favoráveis, declarando-se procedente seu pedido, em caso de dúvida, pois estes são os princípios

que regem o Direito Social que defendemos. E é através das lições de Hans-Georg Gadamer que

pretendemos utilizar a hermenêutica como instrumento de concretização dos princípios na

aplicação das normas jurídicas para fazer prevalecer nossa convicção e nosso entendimento e

nossa esperança.

Dignidade da Pessoa Humana, a Justiça é tua morada e sob ela estarão protegidos

os trabalhadores e os humildes que de nós necessitarem.

116

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