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    Topoi (Rio J.), Rio de Janeiro, v. 15, n. 28, p. 354-359, jan./jun. 2014 | www.revistatopoi.org 354

    Um combate em dois fronts *

    Raul Amaro de Oliveira Lanari **

    C , Françoise.O patrimônio em questão:antologia para um combate. Belo Horizon-te: Fino Traço, 2011.

    Lançado no Brasil no ano de 2011, o livro

    O patrimônio em questão: antologia para umcombate , da pesquisadora francesa FrançoiseChoay, integra um campo de investigação jáconsolidado nas áreas da história, antropo-logia e arquitetura/urbanismo: o patrimôniocultural. Autora de A alegoria do patrimônio (1992), Choay possui uma visão crítica doprocesso de expansão da “cultura do patri-

    mônio” nos tempos da cultura de massas,o que pode ser percebido pelo título de seunovo livro. Seu combate pode ser resumidocomo a luta contra o esvaziamento da fun-ção memorial dos monumentos no contextourbano e, assim, trata-se de uma discussãoque interessa aos estudiosos da história dascidades, bem como da história das políticas

    públicas na área da cultura.Choay não se encontra sozinha nestecombate. A “questão urbana” é objeto de es-tudo de uma série de estudiosos franceses,desde Henri Lefebvre (1920-1991), autor deO direito à cidade (1968), até Henri- Pierre Jeudy, autor deEspelho das cidades (2005).Da publicação do célebre livro de Choay

    em 1992 aos dias atuais observaram-se di-versos esforços para o aprofundamento dastemáticas abordadas pela autora. No caso

    brasileiro, é necessário citar os estudos de José Reginaldo Santos Gonçalves, AntônioGilberto Ramos Nogueira, Ulpiano BezerraToledo de Meneses, Márcia Regina Chu-va, Silvana Rubino, Maria Cecília Londres

    Fonseca, Rogério Proença Leite e MyriamSepúlveda dos Santos. Percebe-se, portanto,que a contribuição atual de Choay encontraampla receptividade na comunidade acadê-mica brasileira e mundial.

    Seria de se esperar, dada a importânciada autora no debate sobre o patrimônio e ascidades, que seu novo livro trouxesse novida-

    des analíticas, pontos de aprofundamento desuas hipóteses. Não é isso o que se percebeapós a leitura do mesmo.O patrimônio emquestão: antologia para um combate sintetizaideias já consagradas, possui generalizações,por vezes apresenta uma visão esquemáticado processo histórico que procura identi-car. O livro é dividido em três partes: um

    Prefácio, uma Introdução e uma Antologiade Textos. Dedicaremos as próximas pági-nas à análise dessas seções.

    A autora inicia a obra com um peque-no prefácio, no qual explica as condições desua elaboração — disciplinas ministradasna universidade para futuros arquitetos eurbanistas e cursos destinados a prossio-

    nais interessados pela história ou gestão dopatrimônio. Apresenta seu combate contraas confusões terminológicas que apagaram

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    a profundidade da preservação do patrimô-nio, retirando dele a função de evocar a me-mória viva, e propõe uma tomada de consci-

    ência. Trata-se de um livro destinado a umpúblico duplo, formado por acadêmicos epesquisadores, mas também pelo “públiconão especializado e não informado dos ci-dadãos” (p. 10). Para atingir seu m, Choayadmite que realizou algumas generalizaçõespara condensar conteúdos já explorados em

    A alegoria do patrimônio. Percebe-se então

    que o caráter generalizante e por vezes pou-co denso da exposição decorre de uma es-colha de Choay, que sinaliza uma tentativade alargamento do debate público sobre opatrimônio e as cidades. Talvez a inovaçãomaior da obra, portanto, seja seu caráter deum “combate bifronte” e não o aprofunda-mento da reexão teórica.

    A introdução do livro parte da análi-se genealógica do conceito de patrimônio.Choay recupera inicialmente a distinção en-tre monumentos e monumentos históricos,raízes lexicais do conceito difundido mun-dialmente nos dias atuais. Os primeiros sãoconstruídos com clara intenção de evocar alembrança e ligam-se à memória viva. Já os

    segundos são elaborações de determinadosaber sobre a realidade, escolhas efetuadasentre um vasto conjunto de monumentosde acordo com os valores históricos, artís-ticos, políticos, dentre outros. Para Choay,os monumentos têm longa existência, compresença marcante nas sociedades humanasdesde tempos muito remotos, enquanto os

    monumentos históricos são característicosda sociedade europeia pelo menos desdea Alta Idade Média. A despeito da impor-

    tância dada a ambos, a autora ressalta que aação destruidora esteve presente e foi até pre-dominante na maioria dos períodos históri-

    cos, principalmente no continente europeu.Sacudida por revoluções culturais, a Europagestou o culto moderno dos monumentos, apartir da Renascença e da Revolução Indus-trial, em diferentes graus de amplitude, deacordo com as regiões.

    A autora argumenta que a evolução domonumento ao monumento histórico ocor-

    reu de forma lenta entre os séculos XV e XIX e mais rapidamente na virada do século XIX para o XX, com consequências impor-tantes. Três revoluções culturais europeiasteriam impulsionado estas mudanças. A pri-meira, na Renascença, caracterizou-se peloafrouxamento do teocentrismo medieval. Oser humano deixou de ser considerado mera

    criatura e a ele passou a ser atribuída umacapacidade criadora, o que levou ao interessenas manifestações da atividade humana emdiferentes épocas. Novos tipos prossionaisurbanos como o arquiteto e o artista plásticose destacaram por desempenharem ativida-des relacionadas ao apuro técnico, ao deleiteestético e à história dos homens. Arte e téc-

    nica andavam juntas e garantiam a legitimi-dade de um novo saber, histórico. As obrasda Antiguidade, em muitos casos utilizadascomo fontes para a conrmação ou negaçãodos textos antigos, foram as primeiras a rece-ber a atenção desses novos homens de artese saberes — os eruditos antiquários. As ci-dades italianas foram precursoras dessa pri-

    meira revolução cultural no século XV, quese estendeu aos reinos vizinhos a partir doséculo seguinte. Segundo a autora, “os anti-

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    cionais sobre as políticas de preservação.Enquanto na França houve ênfase maior naconstrução de categorias jurídicas por par-

    te do Estado, dentre as quais a do “tomba-mento” foi a mais importante, nos países delíngua inglesa a preservação cou a cargo deassociações particulares de estudiosos e co-lecionadores. O modelo francês previa umareconstituição dos edifícios signicativos eisolados em um estado de completude ideal.O modelo inglês afastava-se dessas proposi-

    ções, valorizando a ruína e conferindo a elaum caráter quase sagrado. A escola italiana,por sua vez, pensou as técnicas de restauroe ensaiou uma proposta de reutilização dosedifícios antigos. A tradição alemã, da qualfez parte Alöis Riegl, foi a primeira respon-sável por uma análise fundada nos valorescontraditórios dos quais todo monumento é

    portador (p. 22-26).O último ciclo de mudanças que teriacontribuído para a atual valoração do pa-trimônio é situado após a Segunda GuerraMundial, no contexto de internacionaliza-ção da cultura ocidental e da organizaçãodos organismos multilaterais, como a ONU,a Unesco, a OMC e outros. Introduziu tam-

    bém as inovações tecnológicas da computa-ção e dos ambientes virtuais, das prótesesurbanas enxertadas a partir de concepçõesde cultura globalizantes. Essa terceira revo-lução cultural não foi apenas europeia, secaracterizou por seu aspecto mundial. Foi operíodo no qual surgiu a noção de “Patrimô-nio Cultural da Humanidade”, responsável

    por uma profunda modicação na relaçãoda sociedade com seus monumentos, históri-cos ou não. A existência de uma suposta cul-

    tura mundial, apoiada pelos grandes gruposde comunicações e pelas estratégias de ma-rketing cultural, trouxe em seu bojo a plani-

    cação dessa mesma cultura, a perda de suasespecicidades e dos valores que denirama existência dos monumentos e monumen-tos históricos em sua evolução no tempo. Aautora constata que as diferenças entre estesdois últimos são cada vez mais apagadas poressa nova concepção globalizante de cultura,e que ambos se mostram cada vez mais esva-

    ziados de valor simbólico e participantes deações de estilização urbana. Os edifícios e osprocessos de restauro, por sua vez, são cadavez mais frutos dossoftwares , e o arquitetolimitou sua atividade à boa operação dessesprogramas.

    A autora não ignora a mercantilizaçãodesse patrimônio, que serve bem a estraté-

    gias políticas e empresariais de “responsa-bilidade social”. Tratado como um produtocultural, o patrimônio passa a ser um pasti-che, ou uma casca sem conteúdo (p. 34-38).O esvaziamento simbólico do patrimôniofoi acompanhado por umboom de consu-mo dos bens culturais. Cultura passou a sersinônimo de entretenimento, e as políticas

    de preservação se aproximaram das de tu-rismo, muitas vezes confundidas com elas. Assistiu-se a um processo de reconstrução demonumentos com a retirada das populaçõesoriginais e a adequação a padrões cada vezmais homogêneos de visitação por pessoasde alto poder aquisitivo. Choay termina suaIntrodução com duras críticas ao panorama

    descrito, e conclama não somente os estu-diosos, mas sobretudo os cidadãos, à tomadade consciência do apagamento daquilo que

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    caracteriza a vida humana no espaço, a dife-rença e a ação do próprio homem. Ela refutaas soluções padronizadas em assuntos de pre-

    servação do patrimônio edicado e recuperaexemplos franceses, italianos e colombianospara mostrar que ainda é possível revitali-zar sítios ouvindo a comunidade e pensandoestratégias inusitadas para vencer o forma-lismo reinante na prática patrimonial. Aomesmo tempo, exalta oHomo sapiens sapiens em detrimento doHomo protheticus , arti-

    cial, mecanizado e estanque. A segunda parte do livro é constituídapor 21 seleções de textos signicativos parailustrar a evolução apresentada pela autoraem sua introdução. Os textos são precedi-dos de comentários explicativos, nos quaisa obra do autor é contextualizada no tempoe no espaço em que foi produzida. Os au-

    tores selecionados são: Abade Suger, PoggioBracciolini, Pio II Piccolomini, BaldassareCastiglione, Raffaello Sanzio, Leão X, JacobSpon, Bernard de Montfaucon, Aubin-LouisMillin, Félix de Vicq D’azyr, Quatremère deQuincy, Victor Hugo, John Ruskin, EugèneViolet-Le-Duc, Karl Marx, Alöis Riegl,Gustavo Giovanoni, André Malraux, além

    de excertos da Carta de Atenas (1931), daCarta de Veneza (1964) e do documento re-sultante da Convenção pela Proteção do Pa-trimônio Mundial, organizada pela Unescoem 1975. Os textos são provenientes, em suatotalidade, da Europa, e a autora justica aescolha pelo fato de se tratar de uma obranascida dentro das salas de aula europeias,

    por mais que a problemática seja mundial.Na maioria dos textos as seleções privile-giam pontos considerados positivos. Os co-

    mentários críticos da autora se aprofundamna medida em que os textos vão se tornandocontemporâneos. Dentre todos, os mais in-

    cisivos são os destinados às proposições de André Malraux, primeiro-ministro da Cul-tura francês e principal defensor da noçãode “patrimônio cultural”, e às propostas daConvenção para a Proteção do PatrimônioMundial, de 1975.

    Choay explica que prefere combater poralgo a combater contra algo. Seu combate

    é pela capacidade criadora, pela defesa dahumanidade fundada na diferença, peladesmercantilização do patrimônio e a rea-propriação dos bens imóveis legados pelopassado a partir de usos contemporâneos.Ela advoga a participação das comunidadeslocais, associações civis de moradores, emsubstituição ao modelo estatista de preser-

    vação dos monumentos, argumentando quesomente os primeiros podem buscar solu-ções não articiais, enraizadas espacial etemporalmente.

    O historiador dedicado a trabalhos téc-nicos ou acadêmicos na área do patrimôniopode terminar o livro se perguntando sobrea ausência do patrimônio imaterial nas aná-

    lises de Françoise Choay, o que não seria des-medido. Pelo menos desde o início do século XXI, uma noção mais antropológica passoua ser considerada, ainda que sua aplicabili-dade seja restrita em diversos países, sendoo Brasil um desses exemplos. Porém, como já frisado no início do texto, as diferençasentre os olhares de historiadores e arquitetos

    são partes constitutivas do campo de pesqui-sa e trabalho aqui abordado. As provocaçõesaguerridas de Françoise Choay emO patri-

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    mônio em questão: antologia para um comba-te fornecem armas poderosas a uma críticaconsistente do processo de intervenção arbi-

    trária ocorrido nas grandes cidades, inclusi-ve as brasileiras, supostas “revitalizações” deespaços que na verdade não passam de umamercantilização do patrimônio, uma estili-zação cultural urbana com a nalidade deentreter. Isso não seria aplicável também àproteção do patrimônio imaterial? Não pa-decemos hoje de um fascínio peloretro,pelo

    vintage esvaziado de valor memorial e cheiode valor de troca? A cultura não vem sendoconstantemente tratada por governos comomera organização de eventos? Nesse sentido,

    o livro de Françoise Choay é muito enrique-cedor e pertinente. Ele cumpre com o pro-pósito de atender a dois públicos distintos,

    de especialistas e leigos, incentivando ambosa pensar além da obra.

    * Esta resenha foi produzida como atividade dadisciplina “Produção e circulação do conhecimen-to histórico nos periódicos cientícos”, ministradapela professora Regina Horta Duarte no Programade Pós-Graduação em História da UFMG duranteo primeiro semestre de 2013. Agradeço à professorae aos colegas pelas discussões que deram origem ao

    texto nal.** Doutorando em história pela Universidade Federalde Minas Gerais, professor de história do Centro Uni-versitário de Belo Horizonte. Belo Horizonte, MG,Brasil. E-mail: [email protected].