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UniCEUB – FACE - LETRAS DISCIPLINA: MONOGRAFIA PROFESSORA-ORIENTADORA: ANA LUIZA MONTALVÃO MAIA
A TRADIÇÃO LUCIÂNICA NO CONTO A IGREJA DO DIABO, DE MACHADO DE ASSIS
Kênia Mara de Sousa Brasília, junho de 2004.
UniCEUB – FACE – LETRAS DISCIPLINA: MONOGRAFIA PROFESSORA – ORIENTADORA: ANA LUIZA MONTALVÃO MAIA
A TRADIÇÃO LUCIÂNICA NO CONTO A IGREJA DO DIABO,
DE MACHADO DE ASSIS
Kênia Mara de Sousa Brasília, junho de 2004.
Ao meu marido Alencar, com todo meu amor. Aos meus filhos, Brenda e Pedro Henrique, cuja presença iluminam a minha vida e justificam diariamente a minha existência.
Agradeço:
- Aos meus pais, David e Elza, em reconhecimento por tudo.
- À minha Professora-Orientadora, Ana Luiza, pois durante todo o tempo se prontificou a oferecer-me o saber por ela conquistado.
- A todos os Professores que fizeram e fazem parte da minha vida acadêmica, pela amizade, compreensão, palavras de carinho, elogios, paciência e incentivo constante à produção e à perseverança.
- Acima de tudo, a Jeová Deus, que me deu sabedoria, saúde e forças para enfrentar todos os obstáculos do meu caminho e conquistar mais este desafio da minha vida.
E os escritores são aliados muito valiosos, cujo testemunho deve ser levado em alta conta, pois costumam conhecer toda uma vasta gama de coisas entre o céu e a terra com as quais a nossa filosofia ainda não nos deixou sonhar. (FREUD, S; 1906).
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 6 CAPÍTULO I – A TRADIÇÃO LUCIÂNICA 8 CAPÍTULO II - IRONIA E PESSIMISMO NOS CONTOS MACHADIANOS DA 2ª FASE 18 CAPÍTULO III – A CONDIÇÃO HUMANA SOB A ÓTICA DA TRADIÇÃO LUCIÂNICA NO CONTO A IGREJA DO DIABO, DE MACHADO DE ASSIS 25
CONCLUSÃO 31
ANEXOS 34
REFERÊNCIAS 43
6
INTRODUÇÃO
O título desta monografia é A Tradição Luciânica no conto A Igreja do
Diabo, de Machado de Assis, cuja delimitação do assunto se restringiu em averiguar
o uso que este autor faz da ironia e do pessimismo, tendo como objeto de estudo o
conto A Igreja do Diabo, deste mesmo autor. A metodologia empregada foi a
pesquisa bibliográfica, sendo que as principais fontes consultadas foram textos de
Enylton de Sá Rego, Roberto Schwartz, Linda Hutcheon e Jacynto Lins Brandão e o
estudo do caso, onde foi analisado o conto A Igreja do Diabo, de Machado de Assis.
O primeiro capítulo deste trabalho destinou-se a fazer uma breve síntese
dos principais elementos norteadores da obra do sírio helenizado, Luciano de
Samósata, a saber: o hibridismo genérico como meio de inovação artística; a
utilização sistemática da paródia; a extrema liberdade de imaginação e fantasia, em
oposição às exigências do fazer poético de sua época; o caráter satírico e não-
moralizante, em contraste com o moralismo romano e, finalmente o emprego
recorrente do ponto de vista irônico ou do narrador distanciado.
O uso destes mesmos recursos, além da citação direta e velada a
Luciano, refletem a influência que este exerceu em Machado de Assis, comprovando
não só que Machado tinha um conhecimento preciso da poética da tradição
luciânica, como também a utilizou ao desenvolver temas e técnicas literárias com ela
intimamente associadas. Por isso, o segundo capítulo tratou de analisar a ironia e o
aparente pessimismo presentes nas obras da segunda fase de Machado de Assis.
7
O terceiro capítulo apresenta uma síntese do conto A Igreja do Diabo, de
Machado de Assis, e destaca algumas passagens deste texto que denotam a
presença de elementos irônicos e pessimistas do narrador machadiano. Neste conto,
observa-se a citação direta de condutas que denotam toda a complexidade humana:
a gula, o adultério, o egoísmo, a avareza, a desonestidade. Tudo à luz de um
narrador distanciado que se vale de um profundo conhecimento da natureza humana
para abordar toda a ambigüidade que envolve o ser humano.
8CAPÍTULO I
A tradição luciânica
A palavra “tradição” pode adquirir dois amplos sentidos: um que gira
em torno do passadismo, da hierarquia, da herança e como tal não aceita outros
elementos que lhe renove e, por isso mesmo pode ser deixado de lado; e, um outro
que é atributo de algo construído solidamente servindo de alicerce tanto para o
presente quanto para o futuro, de tal maneira que pode e deve ser retomado em
qualquer tempo. É nesta acepção da palavra que se encaixa a tradição luciânica,
denominação referente à obra de Luciano de Samósata.
Há quase dois mil anos, entre 120 D. C e 140 D. C, Luciano nascia
em Samósata, pequena cidade situada próxima ao rio Eufrates, na Síria Oriental.
Ainda jovem, este autor pouco estudado pela crítica, abandona sua terra natal e
muda-se para a Grécia sob o domínio romano, e ali empreende seus estudos
filosóficos e literários, ganhando a vida como advogado e se destacando como
eloqüente orador. A condição de estrangeiro lhe permitiu enxergar o mundo grego
sob um prisma diferente, de tal maneira que desenvolve uma escrita literária que
satirizava o pensamento filosófico da época. O fato de não “ ser ” grego, mas, antes,
“ estar ” grego, proporcionou-lhe a capacidade de se aprofundar nas questões
9
helênicas sob o ângulo não de um ingênuo colonizado, mas sim, de um pensador
que manipulava a tradição cultural sob um viés crítico-analítico.
De fato, a indefinida condição de aculturado, isto é, de uma pessoa
ao qual foi imposta a necessidade de assimilar os elementos culturais daquela
sociedade, em detrimento dos de sua própria origem, o obrigou a ser fazer grego
como os gregos mais genuínos. Este fato acaba por lhe conceder uma situação
desconfortável de não conseguir nem ser absolutamente grego e nem tampouco um
genuíno bárbaro. É todo este processo de adaptação cultural que faz com que
Luciano de Samósata defenda a viabilidade de uma convivência na diferença, com a
conseqüente busca de novas modalidades discursivas e literárias na qual se
configura a possibilidade de harmonia entre o diferente e o diferente. Para tanto, não
nega a retórica - ou seja, a arte da persuasão - não abandona o raciocínio capcioso,
não adere integralmente à filosofia, mas se transforma em uma espécie de
condensador de todos os segmentos, no exercício duradouro de discernimento das
diferenças e distâncias.
A essência do discurso luciânico pode ser definida como sendo a
busca de uma identidade construída à base de diferenças, sejam elas culturais,
raciais ou mesmo, ideológicas. Desta forma, Luciano de Samósata consegue colocar
a sátira e o humor a serviço da crítica social, talvez por ser este um dos meios mais
eficazes de se fazer um texto democrático, ao mesmo tempo em que atinge seu
objetivo de expor a sociedade ironizando-a. Assim, a poética luciânica lega à
posteridade um discurso que se encontra além dos esquemas estabelecidos como
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detentores da verdade, mas, antes, um discurso autônomo, anômalo e que goza da
pura liberdade de expressão.
Não é incompreensível, pois, que o discurso luciânico tenha
atravessado a história e influenciado, quer direta, quer indiretamente, vários
escritores através dos tempos. De fato, a tradição luciânica seria praticamente o
conjunto das marcas deixadas pela leitura dos textos de Luciano de Samósata nos
livros de significativos autores da literatura mundial, tais como, Rabelais, Gil Vicente,
Quevedo, Diderot, Cirano de Bergerac, Voltaire, Sterne, Dostoievski, e, em especial,
Machado de Assis, autor do conto A Igreja do Diabo, objeto de análise desta
monografia. Todos esses escritores que adotaram o riso e a crítica com a intenção
de desnudar o comportamento social, trazem esse fio luciânico até a modernidade.
O crítico literário Jacyntho Lins Brandão, no livro A Poética do
Hipocentauro – literatura, sociedade e discurso ficcional em Luciano de Samósata,
identifica neste escritor as características que o tornam bastante especial na história
da literatura mundial. Segundo Brandão, Samósata é, por vezes, inovador. A mesma
visão que o Ocidente possui de obras clássicas é recorrente em seu pensamento.
Ao ler os trabalhos de historiadores, poetas e filósofos que o antecederam, Luciano
de Samósata, além de tomar a tradição como referência, passa a dialogar com o
legado de tais artistas. Vem daí a mistura de gêneros que culmina com a criação do
chamado diálogo cômico, que entrelaça filosofia e comédia.
11
Outra importante contribuição de Luciano de Samósata para a
Literatura, ainda de acordo com o professor Brandão, consiste na sua visão do fazer
artístico. Samósata é considerado o primeiro autor da história a admitir a noção de
ficção enquanto pura e simplesmente ficção, ou realidade ficcional. Vivendo numa
época em que os historiadores e filósofos estavam comprometidos com a noção do
que consideravam ser verdade, ele inova ao declarar que em seus textos o uso da
mentira é algo corriqueiro, que supera os fatos do mundo. Na realidade, ao
confessar que mente, o narrador luciânico está criticando, ou mesmo ironizando, os
escritores que se dedicavam a perseguir somente a verdade.
A obra luciânica, contudo, é o nascedouro de muitas polêmicas. A
grande variedade de formas literárias do seu legado – são cerca de oitenta títulos
entre diálogos, ensaios, narrativas, textos autobiográficos, críticas, epigramas e
exercícios de retórica – explica a grande dificuldade encontrada pelos críticos para
classificá-la em termos de gênero literário.
Há os que o consideram como escritor clássico. Tal classificação é
baseada no conceito de que clássicos são aqueles autores ou aquelas obras em
torno das quais, por gerações sucessivas, se formou um consenso baseado num
juízo de valor positivo e no reconhecimento de um caráter exemplar. Sob tal aspecto,
existe em torno da obra de Luciano de Samósata uma certa unanimidade ao
conferir-lhe os créditos de ser clássica por suas qualidades de correição lingüística e
estilo primoroso. Por outro lado, o conteúdo de seus textos, por vezes considerado
12
imoral ou amoral, gerou incômodo, o que ocasionou o expurgo de passagens
consideradas impróprias.
Uma outra corrente defende Luciano de Samósata não como escritor
clássico, mas, pós-clássico. Esta denominação decorre do entendimento de que este
escritor era um legítimo pensador da cultura, posto que sua obra revela um
conhecimento profundo do patrimônio cultural grego, aliado a leituras deslocadas,
que ganhariam com ele, um contorno surpreendente.
A despeito das controvérsias que sua obra provoca, o que se
considera como característica preponderante do diálogo luciânico é que este nada
mais seria do que a retomada da sátira menipéia, de tal modo que seria possível
reconstituir esta última através da análise minuciosa daquele. De fato, o próprio
Luciano declarou em Zêuxis e, sobretudo, em Tu és um Prometeu em teus
discursos, que a originalidade de sua obra consistia no projeto de mesclar o diálogo
filosófico à comédia, fato que remete à sátira menipéia que, ao que tudo indica até o
presente momento, se utilizava não apenas do puro diálogo, mas preponderava
sobre ela o elemento narrativo.
Caracterizar a sátira menipéia não é um trabalho fácil, já que inexiste
um estudo sistemático e dedicado exclusivamente à elucidação do termo “sátira
menipéia” (REGO, 1989; 29). Como resultado dessa ausência, esta expressão é
utilizada de forma vaga, genérica e imprecisa. No entanto, é produtivo considerar a
obra luciânica como uma ponte que liga a tradição grega da sátira menipéia às suas
13
repercussões nos tempos modernos. O que pode ser constatado é que a sátira
menipéia deve seu nome a um personagem chamado Menipo de Gadara. Segundo
a tradição, Menipo teria nascido em Gadara, cidade síria de provável origem grega
situada a sudeste do Mar da Galiléia. Escravo, a serviço de um cidadão do Ponto,
que mais tarde ganhando a liberdade, teria vivido na cidade de Tebas. Todos os seu
escritos se perderam, conhecendo-se apenas os títulos de algumas obras. Ainda
tomando-se por base a tradição, Menipo teria desenvolvido um tipo de sátira que
desrespeitaria costumes vigentes da época.
Este novo modelo de fazer artístico apresentava uma proposta
subversiva ao romper as barreiras hierárquicas sociais, etárias, sexuais, religiosas,
ideológicas e lingüísticas dominantes na época. Pregava a irreverência, a falta de
decoro e de etiqueta, sendo que o elemento preponderante era a pura liberdade de
expressão, onde o riso assumia um papel de magnitude até então desconhecida.
Um dos escritores que evocou o nome e fazer artístico de Menipo foi Luciano de
Samósata, conferindo-lhe um lugar de suma importância na história literária: “trata-
se da maior e mais completa obra que liga a tradição grega da sátira menipéia às
suas repercussões nos tempos modernos” (REGO, 1989, 43).
Além da criação, ou como preferem alguns, a continuação, de um
gênero literário inovador, através da união do diálogo e a comédia, a obra de
Luciano pode ser resumida em outros quatro aspectos: 1) utilização sistemática da
paródia aos textos literários, como um meio de renovação artística; 2) extrema
liberdade de imaginação, não se deixando limitar pelas imposições convencionais da
14
época; 3) ambigüidade e caráter não-moralizante, na qual os elementos sério e
cômico não se submetem a uma hierarquização, mas apenas coexistem; 4)
aproveitamento sistemático do ponto de vista do observador distanciado, que analisa
o mundo desapaixonadamente, sem envolvimento.
A utilização da paródia, partindo-se da definição de paródia como
sendo um canto paralelo, isto é como uma prática textual que se refere
prioritariamente a outra prática textual, é recorrente nos diálogos luciânicos. Em
resultado do uso sistemático deste recurso, esses textos adquirem um aspecto
fragmentado, já que intercalam poesia e prosa. No diálogo O sonho e o galo, por
exemplo, são parodiados tanto os sermões em favor de uma vida pacata, livre de
ambições – típicas dos filósofos cínicos - quanto a filosofia de Pitágoras, que exercia
forte influência entre os cínicos. Neste diálogo, o pobre cidadão Micilo descobre um
dia ao acordar que seu galo não só fala, como também é a própria reencarnação de
Pitágoras.
Encontra-se também este recurso nos famosos textos de Luciano de
Samósata: Menipo ou Necromancia e Histórias Verdadeiras I e II, em que o autor
parodia, respectivamente, a descida aos infernos, tema da Odisséia, de Ulisses,
como também, faz uma alusão aos exageros e inveracidades típica das obras dos
historiadores clássicos.
15
Outra característica adotada por Luciano de Samósata é a extrema
liberdade de criação imaginativa demonstrada por ele frente às limitações impostas
por uma visão representacional da obra de arte, tão comum em sua época. Este
autor entendia que a obra de arte deve ser julgada por critérios outros que os da
verossimilhança, que regula a produção do historiador. Para ele, o fazer poético
deveria ser estender sob o manto da produção imaginária, da ficção o que lhe
conferia grande poder de atuação. Fiel à tradição da sátira menipéia, a obra
luciânica “não apresenta nenhum texto normativo que regulasse a sua poética”
(REGO, 1989: 59).
Uma especificidade da obra luciânica é o caráter não – moralizante
de sua sátira. Nela coexistem a comicidade e a seriedade, sem que aja qualquer
prevalência de um elemento sobre o outro. O fato de não pregar explicitamente
valores morais absolutos não significa amoralismo. Embora, estes textos não
contenham textualmente valores morais normativos, eles não deixam de abordar os
problemas filosóficos, históricos e sociais do seu tempo. A arte luciânica tinha por
princípio criticar comicamente os exageros e as contradições dos sistemas
filosóficos vigentes em sua época, expondo toda a sua inconsistência, através de um
pensamento sério – cômico.
Uma marca de fundamental importância da obra de Luciano de
Samósata é a utilização sistemática do ponto de vista do narrador distanciado, o que
significa afirmar que o narrador não finge estar fundido com os personagens: ele
presencia todos os acontecimentos, está perfeitamente a par deles, ou coloca-se de
16
fora para poder então olhar para dentro. Pressupõe o conhecimento íntimo dos
personagens, seus pensamentos e emoções, como se fosse um deus onisciente,
que tudo sabe, tudo vê. Tal estratégia estilística, se não foi inventada por ele, marca-
a tão profundamente que chega a ponto de com ela se identificar, reaparecendo com
considerável insistência nos escritores por ele influenciados, notadamente Machado
de Assis, caracterizando, assim, a própria tradição luciânica. Para Rego (1989, 66):
É através da utilização do ponto de vista distanciado que Luciano de Samósata consegue ao mesmo tempo afastar-se das convenções dos gêneros literários vigentes em sua época e, paradoxalmente, renová-los, isto é, conferir-lhes um nova roupagem através de sua hibridização; é ainda o distanciamento que lhe permite o uso da paródia para aquele fim; é este recurso que possibilita a relativização do conceito de veracidade, na produção de uma arte sobretudo imaginativa; e finalmente, é esse mesmo distanciamento que o mantém avesso a uma posição ética moralizante.
Existe uma proposta de que a análise da produção poética de
Luciano de Samósata deve ir além do que apenas tentar enquadrá-la em um gênero
especifico de literatura, quer imitação, quer criação, originalidade, ou mesmo,
engajamento social. Tal estudo elucidativo é norteado pelo principio de que os textos
luciânicos são livres de envolvimento, produzindo simplesmente o riso. O que torna
sua obra tão distinta das demais seria exatamente o modo com que ele aborda as
tradições e o modo que as transforma, num contínuo processo de reinvenção.
Luciano de Samósata apresenta uma obra inusual, cuja heterogeneidade revela uma
aproximação do passado com a intenção de adaptá-la ao presente. A passagem do
diferente ao diferente vem a ser, da perspectiva das relações com o passado, o
próprio processo da lide luciânica com a tradição. Desta forma, o humor, a ironia e a
crítica não seriam apenas instrumentos estilísticos, mas antes, uma maneira de
reforçar um método literário inovador e que viria, posteriormente, a deixar marcas
17
indeléveis nas produções literárias que o precederam, delineando assim, a sua
própria tradição. Desta feita, o próximo capítulo abordará a ironia e o pessimismo
em Machado de Assis, nos contos da sua 2ª fase.
18
Capítulo II
IRONIA E PESSIMISMO NOS CONTOS MACHADIANOS DA 2ª FASE
“... Ironia é esse movimento ao canto
da boca, cheio de mistérios, inventado
por algum grego da decadência,
contraído por Luciano, transmitido a
Swift e Voltaire, feição própria dos
cépticos e desabusados...”.
(Machado de Assis; 1882).
A obra de ficção de Machado de Assis claramente se distribui em duas
fases distintas: uma primeira, que coincide com a temperada adesão ao
Romantismo, convencional e bem-comportada; e a segunda, original, independente,
realista, pontilhada de lances de ironia e marcada por uma filosofia de
esmiuçamento dos problemas ligados à psique humana (FREITAS, 2001). A força da
obra machadiana dessa fase consiste exatamente na fusão destes dois elementos:
ironia e pessimismo.
Desde que a ironia como palavra e um conceito chamou a atenção da
cultura grega antiga, tem havido discussões sobre como ela funciona e qual é ou
poderia ser o seu escopo, bem como quem são os participantes desse ato social
19
chamado “ironia”. Tentativas de teorizar a ironia geralmente começam dizendo que
ela é a afirmação de algo diferente do que se deseja comunicar, geralmente o
contrário, na qual o emissor deixa transparecer a contrariedade por meio do contexto
do discurso, ou através da alguma diferenciação editorial, ou entoativa ou gestual.
No entanto, sua atuação vai além dessa definição semântica. Diferentemente de
outras figuras do discurso, a ironia tem um componente emotivo. Ela produz efeitos
sobre os sentimentos e pensamentos das pessoas, podendo deixá-las irritadas e
com os nervos à flor da pele, o que cria um profundo desconforto. Sob este prisma,
depreende-se que ironia não é sinônimo de humor. Muito embora o riso possa
acontecer, grande parte dos enunciados irônicos não são particularmente
engraçados e seu uso supera a mera necessidade de divertir. Pode-se afirmar que a
ironia é um recurso usual de humor. Torna-se mais intensa quanto mais extrema a
relação de oposição entre o falso atribuído e o verdadeiro. Assim, uma ironia entre o
'belo' e o 'feio' é menos extrema e intensa que entre o 'lindo' e o 'horrível'.
O que diferencia a ironia do enunciado falso simples é a sinalização da
contrariedade, geralmente sutil, através do contexto, edição, entoação ou gesto ou
de outro sinal. A função da ironia geralmente é crítica e impressionista. Dizer
ironicamente que alguém é virtuoso implica numa impressão: 'é um mau exemplo' e
numa crítica: 'devia mudar, ser diferente'. Ironiza-se o excesso e o reprovável.
A crítica Linda Hutcheon, em seu livro Teoria e Política da Ironia, retrata
os contextos comunicacionais que tornam possível a ironia acontecer. O que
significa pensá-la não apenas como fruto da intenção do ironista, mas também, e
principalmente, como decodificação do interpretador. Ou seja, como um
acontecimento que depende da interação entre sujeitos: de um lado, alguém capaz
20
de produzir (voluntariamente ou não) mensagens dúplices e/ou dúbias e, do outro,
um interpretador apto a juntar - até mesmo friccionar - o dito e o não dito, cada um
assumindo um significado apenas em relação ao outro.
É essa relação que possibilita a emergência de um significado irônico:
“ambos o dito e o não dito juntos formam aquele terceiro significado, e eu quero
argumentar que isso é o que deveria ser chamado, mais corretamente, de
significado irônico'', diz a autora (HUTCHEON; 2000: 93). Tal olhar conduz a uma
constatação: a de que a ironia vem casar-se com o caráter polissêmico da
linguagem, como atualizadora dos diversos sentidos que o uso da língua pode
sugerir. Mas, essa polissemia irônica replica-se em dialogia: ''[a] solução semântica
da ironia, então, mantém em suspenso o dito mais alguma coisa diferente dela e em
acréscimo a ela que permanece não dito'' (HUTCHEON; 2000: 97). Não por acaso,
conclui a autora: ''[a] ironia está na diferença; a ironia faz a diferença. Ela joga entre
significados, num espaço que é sempre carregado afetivamente, que tem sempre
arestas irônicas” (HUTCHEON; 2000: 176).
A ironia pressupõe um distanciamento de quem a utiliza. E esta é uma
das marcas mais distintas do narrador machadiano. Este distanciamento ou
deliberada atitude de não envolvimento pode justificar o fato de Machado entender
que a ironia foi “inventada por algum grego da decadência”, isto é, por alguém que,
justamente porque decadentista, consegue contemplar as glórias do passado. Com
efeito, Machado não se apresenta como inventor da ironia, mas, sim, como o agente
transmissor aos tempos modernos de algo que havia sido criado, provavelmente,
pela tradição grega da sátira menipéia.
21
Este deliberado afastamento proporcionou ao narrador machadiano a
liberdade necessária para criar personagens que retratam o ser humano como de
fato ele é: mesquinho, oportunista e que por vezes demonstra uma atitude de falso
moralismo, características muito bem delineadas no conto A Igreja do Diabo, objeto
de estudo desta monografia. Em seus textos, sobretudo os da segunda fase,
Machado reflete o contágio sofrido por ele pela apreciação positiva ou pela
identificação com a tradição luciânica, na qual o riso não é gratuito e a ironia nasce
da capacidade de decodificação por parte do leitor.
Nota-se nos textos machadianos que a ironia é repassada gota a gota,
insinuada em frases curtas e de longo alcance, que faz com que o leitor mais atento
tenha um sorriso de descoberta, de conivência, de piedade, de reconhecimento.
Mas, o sorriso é também do narrador que parece não levar muito a sério as misérias
que vai constatando aqui e ali. A ironia com que Machado contempla o mundo de
seus contos e romances cumpre esta função de apontá-lo como um exímio contador
de casos, além de ser usada como um instrumento para uma análise crítica, e por
certo corrosiva, das instituições que de algum modo se propõem a fixar normas de
conduta moral para a sociedade humana. Isto feito sob o espectro do narrador que
sabe tomar distância do que conta, e que sabe, também, manter o leitor à distância,
a exemplo dos diálogos luciânicos. De fato, quando um leitor é capaz de rir
insensivelmente de um personagem que, por exemplo, escorrega, é porque se sente
distanciado e não envolvido emocionalmente com o que lhe é apresentado. Conclui-
se dessa forma que é necessário um certo afastamento do objeto para que se possa
ter um ângulo de visão mais abrangente. Isto denota uma postura de deliberada
ausência de comprometimento e imparcialidade.
22
É através da ironia e do humor que este autor revela também uma de
suas características mais controversas: o pessimismo. De fato, para o narrador
machadiano o homem é irremediavelmente corrompido, egoísta, vítima da
ingratidão, da maldade, do ódio. Isto é notado pelo cepticismo sarcástico do autor
em face dos sofrimentos da humanidade, não se mostrando nada generoso ao julgar
a vida e o comportamento humano. Esta característica pessimista tem sido
amplamente discutida pelos críticos literários desde meados do século dezenove
(REGO, 1989: 19). Há os que acreditam que a visão machadiana de profundo
cepticismo no homem seja fruto de uma proposital adesão à filosofia negativista e
aos postulados do niilismo – cuja essência de idéias é condensada no primado de
descrença em tudo e em todos - mesclado com sua própria experiência de vida, ou
seja, o fato de ser mestiço, vindo de família pobre e portador de doença grave, lhe
condicionou a uma perspectiva pessimista e sem esperança. Como defende o crítico
Afrânio Coutinho:
“... a consciência da inferioridade física pela doença e a constituição psicológica semi-anormal; o conflito íntimo resultante da consciência da inferioridade social pela origem humilde e mestiçamento e da preocupação de ascensão social; e as doutrinas abeberadas na leitura e meditação dos autores prediletos, os quais se lhes ajustaram perfeitamente...” (COUTINHO; 1971: 25).
Outros entendem que o pessimismo de Machado seria em decorrência
de sua aguçada lucidez. A constatação da falência e degradação dos valores das
elites o teriam levado a um estado de absoluta amargura e desilusão da sociedade
humana, como foi analisado pelo crítico Valentim Facioli: “o texto da segunda fase
de Machado é determinado pelas mudanças ocorridas em 1871 na dinâmica social
do Império (FACIOLI; VALENTIM, 1982 apud REGO, 1989, p.18). Já Alcides Maya,
no livro Machado de Assis – Algumas notas sobre o humor, propõe uma
23
interpretação psicológica do humor e do pessimismo machadiano. Alega que o
cepticismo da obra de Machado tem um timbre novo, que poderia ser denominado
de ” filosofia do supremo desengano”, pois a dúvida é menos que uma dúvida, já que
desaparece na certeza do irreparável (MAYA; 1942). Maia acrescenta, ainda, que
diante do enfado e da tristeza do mundo e do homem, o humorista reage com a
“análise dos questionamentos da existência humana, num misto de impassibilidade e
de pena, ante a evanescência das coisas” (MAYA; 1942). Pelo exposto, nota-se que
as tentativas de explicar o pessimismo da segunda fase da obra machadiana vão
desde razões biopsicológicas, passando por motivos sócio-econômicos até chegar
ao determinismo diante de pensamentos filosóficos que o teriam influenciado de
alguma maneira. Rego apresenta uma proposta de se analisar o aparente
pessimismo de Machado como uma “opção artística e literária”, e não por
causalidades reducionistas:
“... nosso objetivo é simplesmente mostrar que a visão de mundo expressa na segunda fase de sua oba tem antecedentes numa longa tradição literária, e que Machado, através de suas leituras, estava consciente desta tradição ao decidir adotá-la”. (REGO, 1989: 126).
A despeito de todas as especulações em torno dessa problemática, o fato
é que o viés cético - ou realismo cético (FREITAS, 2001) - aparece em sua obra,
sobretudo nos textos da 2ª fase, de uma forma propositadamente ambígua, cheia de
pistas falsas, de frases de duplo significado, quase com a intenção de que o sentido
de sua obra permanecesse oculto para o leitor que não lhe desse a devida atenção.
De fato, o olhar de Machado é oblíquo é só poderá compreender o que é transmitido
aquele que se predispuser a uma análise quase espiritual de sua obra, posto que
seu interesse preponderante é a sondagem do espírito humano, e não simplesmente
a matéria. Em verdade, Machado de Assis não copiava a vida, mas servia-se da
24
realidade, transfigurada pela imaginação, resultando na exposição do lado trágico
das relações humanas. Este lado trágico fala do permanente mal-entendido dos
encontros humanos, do indivíduo constantemente acossado pelo outro, pelas forças
da natureza, bem como o pior de todos os detratores – seu mundo interno. Assim, o
capítulo III abordará a condição humana, sob o viés da tradição luciânica, exposta
no conto A Igreja do Diabo, de Machado de Assis.
19
Capítulo II
IRONIA E PESSIMISMO NOS CONTOS MACHADIANOS DA 2ª FASE
“... Ironia é esse movimento ao canto da boca, cheio de mistérios, inventado por algum grego da decadência, contraído por Luciano, transmitido a Swift e Voltaire, feição própria dos cépticos e desabusados...”.
(Machado de Assis; 1882).
A obra de ficção de Machado de Assis claramente se distribui em duas
fases distintas: uma primeira, que coincide com a temperada adesão ao
Romantismo, convencional e bem-comportada; e a segunda, original, independente,
realista, pontilhada de lances de ironia e marcada por uma filosofia de
esmiuçamento dos problemas ligados à psique humana (FREITAS, 2001). A força da
obra machadiana dessa fase consiste exatamente na fusão destes dois elementos:
ironia e pessimismo.
Desde que a ironia como palavra e um conceito chamou a atenção da
cultura grega antiga, tem havido inúmeras discussões sobre como ela funciona e
qual é ou poderia ser o seu escopo, bem como quem são os participantes desse ato
social chamado “ironia”. Tentativas de teorizar a ironia geralmente começam dizendo
que ela é a afirmação de algo diferente do que se deseja comunicar, geralmente o
20
contrário, na qual o emissor deixa transparecer a contrariedade por meio do contexto
do discurso, ou através de alguma diferenciação editorial, ou entoativa ou gestual.
No entanto, sua atuação vai além dessa definição semântica. Diferentemente de
outras figuras do discurso, a ironia tem um componente emotivo. Ela produz efeitos
sobre os sentimentos das pessoas, podendo deixá-las irritadas e com os nervos à
flor da pele, o que cria um profundo desconforto. Sob este prisma, depreende-se que
a ironia não é sinônimo de humor. Muito embora o riso possa acontecer, grande
parte dos enunciados irônicos não são particularmente engraçados e seu uso supera
a mera necessidade de divertir. Pode-se afirmar que a ironia é um recurso usual de
humor. Torna-se ainda mais intensa quanto mais extrema a relação de oposição
entre o falso atribuído e o verdadeiro. Assim, uma ironia entre o ‘belo’ e o ‘feio’ é
menos intensa que entre o ‘lindo’ e o ‘horrível’.
O que diferencia a ironia do enunciado falso simples é a sinalização da
contrariedade, geralmente sutil, através do contexto, edição, entoação, gesto ou
outro sinal. A função da ironia na maioria das vezes é crítica e impressionista. Dizer
ironicamente que alguém é virtuoso implica numa impressão: ‘é um mau exemplo’ e
numa crítica: ‘ devia mudar, ser diferente’. Ironiza-se o excesso e o reprovável.
A professora Linda Hutcheon, em seu livro Teoria e Política da Ironia,
retrata os contextos comunicacionais que tornam possível a ironia acontecer. O que
significa pensá-la não apenas como fruto da intenção do ironista, mas também, e
principalmente, como decodificação do interpretador. Ou seja, como um
acontecimento que depende da interação entre sujeitos: de um lado, alguém capaz
de produzir (voluntariamente ou não) mensagens dúplices e/ou dúbias e, do outro,
21
um interpretador apto juntar – até mesmo friccionar – o dito e o não dito, cada um
assumindo um significado apenas em relação ao outro.
É essa relação que possibilita a emergência de um significado irônico:
“ambos o dito e o não dito juntos formam aquele terceiro significado, e eu quero
argumentar que isso é que deveria ser chamado, mais corretamente, de significado
irônico”, diz a autora (HUTCHEON; 2000:93). Tal olhar conduz a uma constatação: a
de que a ironia vem casar-se com o caráter polissêmico da linguagem, como
atualizadora dos diversos sentidos que o uso da língua pode sugerir. Mas, essa
polissemia irônica replica-se em dialogia: “[a] solução semântica da ironia, então,
mantém em suspenso o dito mais alguma coisa diferente dela e em acréscimo a ela
que permanece não dito” (HUTCHEON; 2000: 176).
A ironia pressupõe um distanciamento de quem a utiliza. E esta é uma
das marcas mais distintas do narrador machadiano. Este distanciamento ou
deliberada atitude de não envolvimento pode justificar o fato de Machado de Assis
entender que a ironia foi “inventada por algum grego da decadência”, isto é, por
alguém que, justamente porque decadentista, consegue contemplar as glórias do
passado. Com efeito, Machado não se apresenta como inventor da ironia, mas sim
como o transmissor aos tempos modernos de algo que havia sido criado,
provavelmente, pela tradição da sátira menipéia.
Este deliberado afastamento proporcionou ao narrador machadiano a
liberdade necessária para criar personagens que retratam o ser humano como de
fato ele é: mesquinho, oportunista e que por vezes demonstra uma atitude de falso
22
moralismo, características muito bem delineadas no conto A Igreja do Diabo, objeto
de estudo desta monografia. Em seus textos, sobretudo os da segunda fase,
Machado reflete o contágio sofrido por ele pela apreciação positiva ou pela
identificação com a tradição luciânica, na qual o riso não é gratuito e a ironia nasce
da capacidade de decodificação por parte do leitor.
Nota-se nos textos machadianos que a ironia é repassada gota a gota,
insinuada em frases curtas e de longo alcance, que faz com que o leitor mais atento
tenha um sorriso de descoberta, de conivência, de piedade, de reconhecimento.
Mas, o sorriso é também do narrador que parece não leva muito a sério as misérias
que vai constatando aqui e ali. A ironia com que Machado contempla o mundo de
seus contos e romances cumpre esta função de apontá-lo como um exímio contador
de casos, além de ser usada como um instrumento afiado para uma análise crítica, e
por certo corrosiva, das instituições que de algum modo se propõem a fixar normas
de conduta moral para a sociedade humana. Isto feito sob o espectro do narrador
que sabe tomar distância do que conta, e que sabe, também, manter o leitor à
distância, a exemplo dos diálogos luciânicos. De fato, quando um leitor é capaz de rir
insensivelmente de um personagem que, por exemplo, escorrega, é porque se sente
distanciado e não envolvido emocionalmente com o que lhe é apresentado. Conclui-
se dessa forma que é fundamental um posicionamento distanciado do objeto para
que se possa ter um ângulo de visão mais abrangente. Isto denota uma postura de
deliberada ausência de comprometimento e imparcialidade.
É através da ironia e do humor que Machado revela também uma de suas
características mais controversas: o pessimismo. De fato, para o narrador
23
machadiano o homem é irremediavelmente corrompido, egoísta, vítima da
ingratidão, da maldade, do ódio. Isto é notado pelo cepticismo sarcástico do autor
em face dos sofrimentos da humanidade, não se mostrando nada generoso ao julgar
a vida e o comportamento humano. Esta característica pessimista tem sido
amplamente discutida pelos críticos literários desde meados do século dezenove
(REGO, 1989: 19). Há os que acreditam que a visão machadiana de profundo
cepticismo no homem seja fruto de uma proposital adesão à filosofia e aos
postulados do niilismo – cuja essência de idéias é condensada no primado da
descrença em tudo e em todos – mesclado com sua própria experiência de vida, ou
seja, o fato de ser mestiço, oriundo de família pobre e portador de doença grave, o
teria condicionado a uma perspectiva pessimista e sem esperança. Como defende o
crítico Afrânio Coutinho:
“... a consciência da inferioridade física pela doença e a constituição psicológica semi-anormal; o conflito íntimo resultante da consciência da inferioridade social pela origem humilde e mestiçamento e da preocupação de ascensão social; e as doutrinas abeberadas na leitura e na meditação dos autores prediletos, os quais se lhes ajustaram perfeitamente...” (Coutinho; 1971: 25).
Outros entendem que a postura pessimista adotada por Machado seria
em decorrência de sua aguçada lucidez. A constatação da falência e degradação
dos valores das elites o teriam levado a um estado de absoluta amargura e
desilusão da sociedade humana, como foi analisado pelo crítico Valentim Facioli: “o
texto da segunda fase de Machado é determinado pelas mudanças ocorridas em
1871 na dinâmica social do Império” (FACIOLI; VALENTIM, 1982 apud REGO, 1989,
p. 18). Já Alcides Maia, no livro Machado de Assis – Algumas notas sobre o humor,
propõe uma interpretação psicológica do humor e do pessimismo machadiano. Alega
que o cepticismo da obra de Machado tem um timbre novo, que poderia ser
24
denominado de “filosofia do supremo desengano”, pois a dúvida é menos que uma
dúvida, já que desaparece na certeza do irreparável (MAIA; 1942). Pelo exposto,
nota-se que as tentativas de se explicar o pessimismo da segunda fase da obra de
Machado de Assis vão desde razões biopsicológicas, passando por motivos sócio-
econômicos até chegar ao determinismo diante de leituras que o teriam influenciado
de alguma maneira. Rego faz uma proposta de se analisar o aparente pessimismo
de Machado como uma “opção artística e literária”, e não por causalidades
reducionistas:
“... nosso objetivo é simplesmente mostrar que a visão de mundo expressa na segunda fase de sua obra tem antecedentes numa longa tradição literária, e que Machado, através de suas leituras, estava consciente desta tradição ao decidir adotá-la”.(REGO, 1989: 126).
A despeito de todas as especulações em torno dessa problemática, o fato
é que o viés cético – ou realismo cético (FREITAS, 2001) – aparece em sua obra,
sobretudo nos textos da 2ª fase, de uma maneira propositadamente ambígua, cheia
de pistas falsas, de frases de duplo sentido, quase com a intenção de que o sentido
de seus textos permanecesse oculto para o leitor que não lhe desse a devida
atenção. De fato, o olhar de Machado é oblíquo e só poderá compreender o que é
transmitido aquele que se predispuser a uma análise quase espiritual de sua obra,
posto que seu interesse é a sondagem do espírito humano, e não simplesmente a
matéria. Em verdade, Machado de Assis não copiava a vida, mas servia-se da
realidade, transfigurada pela imaginação, resultando na exposição do lado tráfico
das relações humanas. Esse lado trágico fala do permanente mal-entendido dos
encontros humanos, do indivíduo constantemente acossado pelo outro, pelas forças
da natureza, bem como o pior de todos os detratores – seu mundo interno. Assim, o
25
capítulo III abordará a condição humana, sob o viés da tradição luciânica, exposta
no conto A Igreja do Diabo, de Machado de Assis.
25
CAPÍTULO III
A CONDIÇÃO HUMANA SOB A ÓTICA DA TRADIÇÃO LUCIÂNICA NO CONTO A IGREJA DO DIABO, DE MACHADO DE ASSIS
O objeto de estudo desta monografia, o conto A Igreja do Diabo1,
publicado no livro Histórias sem data, de Machado de Assis, conta uma história,
narrada num velho escrito beneditino, onde dizia que certa vez o Diabo teve a idéia
de fundar sua própria igreja, organizar seu rebanho, tal qual Deus. Dizia-se cansado
de ser desorganizado, de ficar com as circunstanciais sobras das diferentes
manifestações de fé. Nela, ele acolheria todos os fiéis que cometiam pecados ou
que possuíam vícios incontroláveis. Fundando uma igreja, teria vantagem de ser
única neste tipo de pregação: ”... enquanto as outras religiões se combatem e se
dividem, a minha será única; (...) Há muitos modos de afirmar: há um só de negar
tudo”. Quando resolve contar a notícia a Deus, argumenta de várias maneiras sobre
os motivos que ensejaram o estabelecimento de sua doutrina e ri triunfante devido
ao suposto êxito sobre o Mestre que, um dia, o venceu. Logo, ao ascender aos céus,
fica observando um velho que acabava de chegar por ter salvado dois jovens noivos,
sacrificando sua vida em prol dos mesmos. O Diabo se aproveita da situação para
afirmar que aquele senhor seria a última pessoa que Deus iria acolher nas moradas
celestiais, porque diante da possibilidade de liberdade total, quem daria importância
aos dogmas do cristianismo? Diante da retórica do Diabo, Deus lhe ordena que
desça novamente a Terra para fazer o que bem entendesse, desde que parasse de
repetir o velho discurso, dito e redito pelos velhos moralistas, de que os homens
26
serviam a Deus, mas, estavam sempre com a tendência pecaminosa a lhes rodear.
Imediatamente, o Diabo retorna a Terra e começa sua pregação. Defende a inveja, a
gula, a preguiça, tudo com justificativas da história, das letras e das artes.
Rapidamente, obtém mais e mais adeptos, criando a nova igreja hegemônica. De
fato, sua liturgia propaga-se pelo globo, tornando-se conhecida em muitas línguas.
Tempos depois, todavia, estabelecida e difundida a Igreja, o Diabo percebeu baixas
entre seus fiéis. Aqui e ali seus seguidores praticavam, às escondidas, atos de
bondade, de restituições de roubo, de arrependimento. Pesquisando a fundo,
verificou o Diabo que em todo o mundo já se espalhava tal atitude. Atônico, volta ao
céu para ouvir as explicações de Deus. Através de uma irônica metáfora, Deus
explica a situação: “é a eterna contradição humana”.
O problema que originou a pesquisa foi o de constatar, neste conto, a
presença da ironia e do pessimismo, além de averiguar a influência de Luciano de
Samósata sobre a obra machadiana. Desta feita, pode-se assim especificar:
3.1 - Ironia:
- “... enquanto as outras religiões se combatem e se dividem, a minha
igreja será única; não acharei diante de mim nem Maomé, nem Lutero...”. 2
- “... não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo, rindo, mas
por todos os Faustos do século e dos séculos...”. 3
27
- “... recolhei primeiro esse bom velho; dai-lhe o melhor lugar, mandai que
as mais afinadas cítaras e alaúdes o recebam com os mais divinos coros...
provavelmente é dos últimos que virão ter convosco. Não tarda muito que o céu
fique semelhante a uma casa vazia, por causa do preço, que é alto...”. 4
- “... Sabes o que ele fez? perguntou o Senhor, com os olhos cheios de
doçura...”.5
- “... as virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a
rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu proponho-
me a puxá-las por essa franja, e trazê-las todas para a minha igreja; atrás delas
virão as de seda pura...”. 6
- “... Mas não quero parecer que me detenho em coisas miúdas; não falo,
por exemplo, da placidez com que este juiz de irmandade, nas procissões carrega
piedosamente ao peito o vosso amor e uma comenda... Vou aos negócios mais
altos...”. 7
- “... a doutrina era a que podia ser na boca de um espírito de negação.
Isso quanto à substância, porque acerca da forma, era umas vezes sutil, outras
cínica e deslavada...”. 8
- “... a avareza era a mãe da economia, com a diferença que a mãe era
robusta, e a filha uma esgalgada...”. 9
28
- “... o Diabo prometia substituir a vinha do Senhor, expressão metafórica,
pela vinha do Diabo, locução direta e verdadeira, pois não faltaria nunca aos seus
com o fruto das mais belas cepas do mundo...”.10
- “... a inveja era a virtude principal, origem de prosperidades infinitas;
virtude preciosa que chegava a suprir todas as outras, e ao próprio talento...”.11
- “... fraude era chamada de braço esquerdo do homem; o direito era a
força; e concluía: Muitos são canhotos; eis tudo...”. 12
- “... o pasmo não lhe deu tempo de refletir, comparar e concluir do
espetáculo presente alguma coisa análoga ao passado...”. 13
- “... é a eterna contradição humana...”. 14
3.2 – Pessimismo:
- “... a misantropia pode tomar aspecto de caridade; deixar a vida aos
outros, para um misantropo, é realmente aborrecê-los...”. 15
- “... muitos corpos que ajoelham aos vossos pés, nos templos do mundo
trazem as anquinhas da sala e da rua, os rostos tingem-se do mesmo pó, os lenços
cheiram aos mesmos cheiros, as pupilas centelham de curiosidade e devoção entre
o livro santo e o bigode do pecado...”. 16
29
- “... clamava ele que as virtudes aceitas deviam ser substituídas por
outras, que eram as naturais e legítimas...”. 17
- “... quem negaria que era melhor sentir na boca e no ventre os bons
manjares, em grande cópia, do que os maus bocados, ou a saliva do jejum?...”. 18
- “... o amor era uma simples invenção de parasitas e negociantes
insolváveis; não se devia dar ao próximo senão indiferença; em alguns casos, ódio
ou desprezo...”. 19
- “... todas as virtudes cuja capa de veludo acabava em franja de algodão,
uma vez puxadas pela franja, deitavam a capa às urtigas e vinham alistar-se na
igreja nova...”. 20
- “... meteu-se a conhecer mais diretamente o mal, e viu que lavrara
muito...”. 21
- “... as capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo
tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana...”. 22
A pesquisa foi concluída, pois se observa no conto A Igreja do Diabo, de
Machado de Assis, aspectos da tradição luciânica, por meio da ironia e do
pessimismo expressos na obra.
30
Notas
1 ASSIS, Machado de. A Igreja do Diabo. In: FILHO, Domício Proença: Os melhores contos de Machado de Assis. 8ª ed; São Paulo Global, 1993. 2 Op.cit., p.187. 3 Op.cit., p.188. 4 Op.cit., p.188. 5 Op.cit., p.188. 6 Op.cit., p.189. 7 Op.cit., p.189 8 Op.cit., p.191 9 Op.cit., p.191 10 Op.cit., p.192 11 Op.cit., p.192 12 Op.cit., p. 192 13 Op.cit., p.195 14 Op.cit., p.195 15
Op.cit., p.190 16 Op.cit., p.189 17 Op.cit., p.191 18 Op.cit., p.191 20 Op.cit., p.194 21 Op.cit., p.194 22 Op.cit., p.195
31
CONCLUSÃO
A pesquisa foi concluída posto que é notadamente observável a presença da
ironia e da visão pessimista do narrador machadiano no conto A igreja do Diabo, objeto de
análise desta monografia. O riso que este texto provoca é ambivalente, já que funde humor e
sarcasmo, refletidos na dicotomia de afirmação e negação, personificados pelas figuras de
Deus e do Diabo, no qual um se torna a negação recíproca do outro e sua fiel tradução,
simultaneamente. É no diálogo travado entre esses dois personagens que Machado de
Assis cria um retrato cômico e ambivalente ser humano, divido na luta do Bem contra o Mal.
Uma leitura deste conto, por certo resultará em uma análise do confronto
ideológico que cerca o ser humano, sempre às voltas entre a complexidade do ser e o dever
ser. O narrador machadiano revela-se um profundo desmistificador deste eterno dilema
existencial humano, ao apontar no texto as atitudes e contradições que envolvem todas as
condutas sociais e morais da sociedade humana. Neste conto, o escritor cria uma ambiência
espiritual, cósmica, para demonstrar quão insatisfeita e ambígua pode ser a natureza
humana, acuada entre duas forças inversamente proporcionais e igualmente poderosas: ser
o que ela realmente é, ou simplesmente agir conforme a sociedade espera dela.
Sob este prisma, Machado de Assis é singular em nossa literatura. Detentor de
uma aguçada visão, ele consegue exprimir a dualidade pertinente ao homem universal,
condensado em uma existência conflitante e problemática. Através de seus textos,
sobretudo os da chamada fase da maturidade, o narrador machadiano expõe as questões
32
mais intrínsecas do indivíduo, sempre fundindo a linguagem filosófica com a humorística,
atributo recorrente dos diálogos luciânicos.
No conto A Igreja do Diabo, objeto de estudo desta monografia, Machado exercita
suas capacidades analíticas, buscando desvendar a psique humana, sob a máscara do riso.
O esboço humano que ele desenha é o de um ser facilmente corruptível e está sempre
sujeito às influências do meio que o rodeia, sejam elas boas ou más. Neste conto, Machado
mostra uma imagem humana refletida num espelho invertido, pois a proposta doutrinária do
Diabo é semelhante à de Deus, ou seja, a de que o homem pode fazer tudo o que não for
proibido. O único postulado que as diferencia é a profunda negação, refletir o contrário, ou
simplesmente mostrar o avesso.
Com a pregação das novas crenças o Diabo persuade e chega a convencer os
homens de que o Mal pode ser tão atraente quanto o Bem, demonstrando assim que estas
duas forças convivem lado a lado, duas faces de uma mesma moeda, e que elas se revelam
dependendo das circunstâncias a que são expostas. Dentro deste quadro, o riso aparece de
uma forma ambivalente. Adquire este caráter porque só pode ser concebido diante de seu
relativismo: é alegre e, ao mesmo tempo, sarcástico, mordaz. O narrador machadiano ri
diante da “eterna contradição humana”; ri do gosto do homem diante do que é proibido e ri
da fragilidade inerente ao ser humano de se deixar levar pelos caminhos dos prazeres
fortuitos.
A “eterna contradição humana” aludida no texto é outro aspecto de profunda
revelação da natureza humana. Se por um lado, com Deus está a fonte de tudo que é santo
e perfeito, de outro, observa-se a existência de um mundo voltado para a satisfação imediata
33
dos desejos carnais. Cria-se, então, dois pólos distintos: um positivo, voltado para Deus, e
outro, negativo, que revela todo um sistema mundano. Diante desta dicotomia, o homem
exerce o seu tão apregoado livre-arbítrio, ou poder de escolha, para tomar as decisões que
julgar mais apropriada, sempre revelando que não quer ser controlado, pois quando é
persuadido a fazer o que é correto, sente-se tentado em fazer o que é imoral, e o contrário
também é verdadeiro. Como bem confessou o escritor bíblico Paulo: “Pois o bem que quero,
não faço, mas o mal que não quero, este é o que pratico” (Romanos 7:19). Desta forma, o
homem deixa transparecer sua complexa ambigüidade, de quem quer exercitar uma
liberdade espremida entre dois caminhos opostos.
É esta volta às práticas virtuosas que atordoa o Diabo. É o homem tão
contraditório que seria impossível defini-lo, ou enquadrá-lo em um único papel? Eis a
questão que Machado de Assis deixa para que seus leitores mais atentos reflitam e tirem
suas próprias conclusões. O legado de sua obra, recheada de citações bíblicas, simbologia,
temática religiosa e alegorias, fruto de suas leituras conjugadas com uma observação crítica
da sociedade, o colocam em um patamar privilegiado em nossa literatura.
Ressalta-se, ainda, que, através do conhecimento e do uso da poética implícita
na tradição luciânica, Machado de Assis produziu em seus textos da chamada segunda fase,
obras híbridas nas quais re-escreveu os mais importantes gêneros narrativos da tradição
literária ocidental. De fato, ao apontar na obra machadiana sua grande dificuldade de
classificação genérica, seu caráter fragmentário, suas citações truncadas, seu ponto de vista
irônico e distanciado, e ao julgá-la como pessimista, os críticos estariam repetindo as
mesmas observações feitas aos textos de Luciano de Samósata, conferindo, dessa maneira,
a influência sofrida por Machado de Assis, enquanto leitor e reprodutor da tradição luciânica.
43
REFERÊNCIAS
ASSIS, Machado de. A Igreja do Diabo. In: FILHO, Domício Proença: Os melhores contos de Machado de Assis. 8ª ed; São Paulo Global, 1993. BRANDÃO, J.A. A poética do hipocentauro. Literatura, sociedade e discurso ficcional em Luciano de Samósata. Coleção Humanitas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001. COUTINHO, Afrânio. Machado de Assis: Estudo Crítico. In: Obra Completa de Machado de Assis. Rio, Editora Nova Aguiar S. A, 1971. 1º Volume. FREITAS, Luiz Alberto Pinheiro de. Freud e Machado de Assis – Uma interação entre psicanálise e literatura. 1ª ed; Editora Mauad, 2001. HUTCHEON, Linda. Teoria e política da ironia. Tradução de Julio Jeha. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000. MAYA, Alcides. Machado de Assis – Algumas notas sobre o humor. 2ª ed; Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 1942. REGO, Enylton de Sá. O calundu e a panacéia – Machado de Assis, a sátira menipéia e a tradição luciânica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989. SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo – Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades, 1990.
34
ANEXOS
“Há muitos modos de afirmar; há um só de negar tudo”.
(O Diabo, planejador da Igreja que leva seu nome, neste conto).
A IGREJA DO DIABO
(Histórias sem data)
Capítulo I
De uma idéia mirífica
Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a
idéia de fundar uma igreja. Embora os seus lucros fossem contínuos e grandes,
sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos, sem
organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada. Vivia, por assim dizer,
dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos. Nada fixo, nada
regular. Por que não teria ele a sua igreja? Uma igreja do Diabo era o meio eficaz de
combater as outras religiões, e destruí-las de uma vez.
- Vá, pois, uma igreja, concluiu ele. Escritura contra Escritura, breviário
contra breviário. Terei a minha missa, com vinho e pão à farta, as minhas prédicas,
bulas, novenas e todo o demais aparelho eclesiástico. O meu credo será o núcleo
universal dos espíritos, a minha igreja uma tenda de Abraão. E depois, enquanto as
outras religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será única; não acharei
35
diante de mim, nem Maomé, nem Lutero. Há muitos modos de afirmar; há só um de
negar tudo.
Dizendo isto, o Diabo sacudiu a cabeça e estendeu os braços, com um
gesto magnífico e varonil. Em seguida, lembrou-se de ir ter com Deus para
comunicar-lhe a idéia, e desafiá-lo; levantou os olhos, acesos de ódio, ásperos de
vingança, e disse consigo: - Vamos, é tempo. E rápido, batendo as asas, com tal
estrondo que abalou todas as províncias do abismo, arrancou da sombra para o
infinito azul.
CAPÍTULO II
Entre Deus e o Diabo
Deus recolhia um ancião, quando o Diabo chegou ao céu. Os serafins que
engrinaldavam o recém-chegado, detiveram-no logo, e o Diabo deixou-se estar à
entrada com os olhos no Senhor.
- Que me queres tu? perguntou este.
- Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo rindo, mas por
todos os Faustos do século e dos séculos.
- Explica-te.
- Senhor, a explicação é fácil; mas permiti que vos diga: recolhei primeiro
esse bom velho; dai-lhe o melhor lugar, mandai que as mais afinadas cítaras e
alaúdes o recebam com os mais divinos coros...
- Sabes o que ele fez? perguntou o Senhor, com os olhos cheios de
doçura.
36
- Não, mas provavelmente é dos últimos que virão ter convosco. Não
tarda muito que o céu fique semelhante a uma casa vazia, por causa do preço, que
é alto. Vou edificar uma hospedaria barata; em duas palavras, vou fundar uma igreja.
Estou cansado da minha desorganização, do meu reinado casual e adventício. É
tempo de obter a vitória final e completa. E então vim dizer-vos isto, com lealdade,
para que me não acuseis de dissimulação... Boa idéia, não vos parece?
- Vieste dizê-la, não legitimá-la, advertiu o Senhor.
- Tendes razão, acudiu o Diabo; mas o amor-próprio gosta de ouvir o
aplauso dos mestres. Verdade é que neste caso seria o aplauso de um mestre
vencido, e uma tal exigência... Senhor, desço à terra; vou lançar a minha pedra
fundamental.
- Vai.
- Quereis que venha anunciar-vos o remate da obra?
- Não é preciso; basta que me digas desde já por que motivo, cansado há
tanto da tua desorganização, só agora pensaste em fundar uma igreja?
O Diabo sorriu com certo ar de escárnio e triunfo. Tinha alguma idéia cruel
no espírito, algum reparo picante no alforje de memória, qualquer cousa que, nesse
breve instante da eternidade, o fazia crer superior ao próprio Deus. Mas recolheu o
riso, e disse:
- Só agora concluí uma observação, começada desde alguns séculos, e é
que as virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a rainhas, cujo
manto de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu proponho-me a puxá-las
por essa franja, e trazê-las todas para minha igreja; atrás delas virão as de seda
pura...
- Velho retórico! murmurou o Senhor.
- Olhai bem. Muitos corpos que ajoelham aos vossos pés, nos templos do
mundo, trazem as anquinhas da sala e da rua, os rostos tingem-se do mesmo pó, os
lenços cheiram aos mesmos cheiros, as pupilas centelham de curiosidade e devoção
37
entre o livro santo e o bigode do pecado. Vede o ardor, - a indiferença, ao menos, -
com que esse cavalheiro põe em letras públicas os benefícios que liberalmente
espalha, - ou sejam roupas ou botas, ou moedas, ou quaisquer dessas matérias
necessárias à vida... Mas não quero parecer que me detenho em coisas miúdas; não
falo, por exemplo, da placidez com que este juiz de irmandade, nas procissões,
carrega piedosamente ao peito o vosso amor e uma comenda... Vou a negócios
mais altos...
Nisto os serafins agitaram as asas pesadas de fastio e sono. Miguel e
Gabriel fitaram no Senhor um olhar de súplica. Deus interrompeu o Diabo.
- Tu és vulgar, que é o pior que pode acontecer a um espírito da tua
espécie, replicou-lhe o Senhor. Tudo o que dizes ou digas está dito e redito pelos
moralistas do mundo. É assunto gasto; e se não tens força, nem originalidade para
renovar um assunto gasto, melhor é que te cales e te retires. Olha; todas as minhas
legiões mostram no rosto os sinais vivos do tédio que lhes dás. Esse mesmo ancião
parece enjoado; e sabes tu o que ele fez?
- Já vos disse que não.
- Depois de uma vida honesta, teve uma morte sublime. Colhido em um
naufrágio, ia salvar-se numa tábua; mas viu um casal de noivos, na flor da vida, que
se debatiam já com a morte; deu-lhes a tábua de salvação e mergulhou na
eternidade. Nenhum público: a água e o céu por cima. Onde achas aí a franja de
algodão?
- Senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega.
- Negas esta morte?
- Nego tudo. A misantropia pode tomar aspecto de caridade; deixar a vida
aos outros, para um misantropo, é realmente aborrecê-los...
- Retórico e sutil! exclamou o Senhor. Vai; vai, funda a tua igreja; chama
todas as virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os homens... Mas, vai!
vai!
38
Debalde o Diabo tentou proferir alguma coisa mais. Deus impusera-lhe
silêncio; os serafins, a um sinal divino, encheram o céu com as harmonias de seus
cânticos. O Diabo sentiu, de repente, que se achava no ar; dobrou as asas, e, como
um raio caiu na terra.
CAPÍTULO III
A boa nova aos homens
Uma vez na terra, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se pressa em
enfiar a cogula beneditina, como hábito de boa fama, e entrou a espalhar uma
doutrina nova e extraordinária, com uma voz que reboava nas entranhas do século.
Ele prometia aos seus discípulos e fiéis as delícias da terra, todas as glórias, os
deleites mais íntimos. Confessava que era o Diabo; mas confessava-o para retificar
a noção que os homens tinham dele e desmentir as histórias que a seu respeito
contavam as velhas beatas.
- Sim, sou o Diabo, repetia ele; não o Diabo das noites sulfúreas, dos
contos soníferos, terror das crianças, mas o Diabo verdadeiro e único, o próprio
gênio da natureza, a que se deu aquele nome para arredá-lo do coração dos
homens. Vede-me gentil a airoso. Sou o vosso verdadeiro pai. Vamos lá: tomai
daquele nome, inventado para meu desdouro, fazei dele um troféu e um lábaro, e eu
vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo...
Era assim que falava, a princípio, para excitar o entusiasmo, espertar os
indiferentes, congregar, em suma, as multidões ao pé de si. E elas vieram; e logo
que vieram, o Diabo passou a definir a doutrina. A doutrina era a que podia ser na
boca de um espírito de negação. Isso quanto à substância, porque, acerca da forma,
era umas vezes subtil, outras cínica e deslavada.
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Clamava ele que as virtudes aceitas deviam ser substituídas por outras,
que eram as naturais e legítimas. A soberba, a luxúria, a preguiça foram reabilitadas,
e assim também a avareza, que declarou não ser mais do que a mãe da economia,
com a diferença que a mãe era robusta, e a filha uma esgalgada. A ira tinha a
melhor defesa na existência de Homero; sem o furor de Aquiles, não haveria a
Ilíada: "Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de Peleu"... O mesmo disse da gula,
que produziu as melhores páginas de Rabelais, e muitos bons versos do Hissope;
virtude tão superior, que ninguém se lembra das batalhas de Luculo, mas das suas
ceias; foi a gula que realmente o fez imortal. Mas, ainda pondo de lado essas razões
de ordem literária ou histórica, para só mostrar o valor intrínseco daquela virtude,
quem negaria que era muito melhor sentir na boca e no ventre os
bons manjares, em grande cópia, do que os maus bocados, ou a saliva do jejum?
Pela sua parte o Diabo prometia substituir a vinha do Senhor, expressão metafórica,
pela vinha do Diabo, locução direta e verdadeira, pois não faltaria nunca aos seus
com o fruto das mais belas cepas do mundo. Quanto à inveja, pregou friamente que
era a virtude principal, origem de prosperidades infinitas; virtude preciosa, que
chegava a suprir todas as outras, e ao próprio talento.
As turbas corriam atrás dele entusiasmadas. O Diabo incutia-lhes, a
grandes golpes de eloqüência, toda a nova ordem de cousas, trocando a noção
delas, fazendo amar as perversas e detestar as sãs.
Nada mais curioso, por exemplo, do que a definição que ele dava da
fraude. Chamava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço direito era a força; e
concluía: muitos homens são canhotos, eis tudo. Ora, ele não exigia que todos
fossem canhotos; não era exclusivista. Que uns fossem canhotos, outros destros;
aceitava a todos, menos os que não fossem nada. A demonstração, porém, mais
rigorosa e profunda, foi a da venalidade. Um casuísta do tempo chegou a confessar
que era um monumento de lógica. A venalidade, disse o Diabo, era o exercício de
um direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o
teu sapato, o teu chapéu, cousas que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas
que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o
teu voto, a tua palavra, a tua fé, cousas que são mais do que tuas, porque são a tua
própria consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é cair no absurdo e no contraditório.
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Pois não há mulheres que vendem os cabelos? não pode um homem vender uma
parte do seu sangue para transfundi-lo a outro homem anêmico? e o sangue e os
cabelos, partes físicas, terão um privilégio que se nega ao caráter, à porção moral do
homem? Demonstrando assim o princípio, o Diabo não se demorou em expor as
vantagens de ordem temporal ou pecuniária; depois, mostrou ainda que, à vista do
preconceito social, conviria dissimular o exercício de um direito tão legítimo, o que
era exercer ao mesmo tempo a venalidade e a hipocrisia, isto é, merecer
duplicadamente.
E descia, e subia, examinava tudo, retificava tudo. Está claro que
combateu o perdão das injúrias e outras máximas de brandura e cordialidade. Não
proibiu formalmente a calúnia gratuita, mas induziu a exercê-la mediante retribuição,
ou pecuniária, ou de outra espécie; nos casos, porém, em que ela fosse uma
expansão imperiosa da força imaginativa, e nada mais, proibia receber nenhum
salário, pois equivalia a fazer pagar a transpiração. Todas as formas de respeito
foram condenadas por ele, como elementos possíveis de um certo decoro social e
pessoal; salva, todavia, a única exceção do interesse. Mas essa mesma exceção foi
logo eliminada, pela consideração de que o interesse, convertendo o respeito em
simples adulação, era este o sentimento aplicado e não aquele.
Para rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria cortar por toda a
solidariedade humana. Com efeito, o amor do próximo era um obstáculo grave à
nova instituição. Ele mostrou que essa regra era uma simples invenção de parasitas
e negociantes insolváveis; não se devia dar ao próximo senão indiferença; em
alguns casos, ódio ou desprezo. Chegou mesmo à demonstração de que a noção de
próximo era errada, e citava esta frase de um padre de Nápoles, aquele fino e
letrado Galiani, que escrevia a uma das marquesas do antigo regime: "Leve a breca
o próximo! Não há próximo!" A única hipótese em que ele permitia amar ao próximo
era quando se tratasse de amar as damas alheias, porque essa espécie de amor
tinha a particularidade de não ser outra cousa mais do que o amor do indivíduo a si
mesmo. E como alguns discípulos achassem que uma tal explicação, por metafísica,
escapava à compreensão das turbas, o Diabo recorreu a um apólogo: - Cem
pessoas tomam ações de um banco, para as operações comuns; mas cada acionista
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não cuida realmente senão nos seus dividendos: é o que acontece aos adúlteros.
Este apólogo foi incluído no livro da sabedoria.
CAPÍTULO IV
Franjas e Franjas
A previsão do Diabo verificou-se. Todas as virtudes cuja capa de veludo
acabava em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja, deitavam a capa às
urtigas e vinham alistar-se na igreja nova. Atrás foram chegando as outras, e o
tempo abençoou a instituição. A igreja fundara-se; a doutrina propagava-se; não
havia uma região do globo que não a conhecesse, uma língua que não a traduzisse,
uma raça que não a amasse. O Diabo alçou brados de triunfo.
Um dia, porém, longos anos depois, notou o Diabo que muitos dos seus
fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam todas, nem
integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas. Certos glutões
recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente em dias
de preceito católico; muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal
povoadas; vários dilapidadores do erário restituíam-lhe pequenas quantias; os
fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o coração nas mãos, mas com o
mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que estavam embaçando os outros.
A descoberta assombrou o Diabo. Meteu-se a conhecer mais diretamente
o mal, e viu que lavrava muito. Alguns casos eram até incompreensíveis, como o de
um droguista do Levante, que envenenara longamente uma geração inteira, e, com
o produto das drogas, socorria os filhos das vítimas. No Cairo achou um perfeito
ladrão de camelos, que tapava a cara para ir às mesquitas. O Diabo deu com ele à
entrada de uma, lançou-lhe em rosto o procedimento; ele negou, dizendo que ia ali
roubar o camelo de um drogman; roubou-o, com efeito, à vista do Diabo e foi dá-lo
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de presente a um muezim, que rezou por ele a Alá. O manuscrito beneditino cita
muitas outras descobertas extraordinárias, entre elas esta, que desorientou
completamente o Diabo. Um dos seus melhores apóstolos era um calabrês, varão de
cinqüenta anos, insigne falsificador de documentos, que possuía uma bela casa na
campanha romana, telas, estátuas, biblioteca, etc. Era a fraude em pessoa; chegava
a meter-se na cama para não confessar que estava são. Pois esse homem, não só
não furtava ao jogo, como ainda dava gratificações aos criados. Tendo angariado a
amizade de um cônego, ia todas as semanas confessar-se com ele, numa capela
solitária; e, conquanto não lhe desvendasse nenhuma das suas ações secretas,
benzia-se duas vezes, ao ajoelhar-se, e ao levantar-se. O Diabo mal pôde crer
tamanha aleivosia. Mas não havia duvidar; o caso era verdadeiro.
Não se deteve um instante. O pasmo não lhe deu tempo de refletir,
comparar e concluir do espetáculo presente alguma cousa análoga ao passado.
Voou de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa secreta de tão
singular fenômeno. Deus ouviu-o com infinita complacência; não o interrompeu, não
o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia satânica.
Pôs os olhos nele, e disse:
- Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas
de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna
contradição humana.