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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ - UNIOESTE - Campus de Cascavel – Centro de Ciências Sociais Aplicadas ESCOLA DE GOVERNO DO PARANÁ Gerência Executiva da Escola de Governo CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM FORMULAÇÃO E GESTÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS PROPOSTA DE PROGRAMA DE ACOMPANHAMENTO PSICOLÓGICO E GESTACIONAL DA GRAVIDEZ DE FETO ANENCEFÁLICO. ERIETE ONEIDA COVATTI CASCAVEL 2008

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ - UNIOESTE -

Campus de Cascavel – Centro de Ciências Sociais Aplicadas

ESCOLA DE GOVERNO DO PARANÁ

Gerência Executiva da Escola de Governo

CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM FORMULAÇÃO E GESTÃO DE

POLÍTICAS PÚBLICAS

PROPOSTA DE PROGRAMA DE ACOMPANHAMENTO PSICOLÓGICO E

GESTACIONAL DA GRAVIDEZ DE FETO ANENCEFÁLICO.

ERIETE ONEIDA COVATTI

CASCAVEL

2008

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ERIETE ONEIDA COVATTI

PROPOSTA DE PROGRAMA DE ACOMPANHAMENTO PSICOLÓGICO E

GESTACIONAL DA GRAVIDEZ DE FETO ANENCEFÁLICO.

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para obtenção do título de especialista em Formulação e Gestão de Políticas Públicas. Docente: Drª Loreni Brandalise

CASCAVEL

2008

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PROPOSTA DE PROGRAMA DE ACOMPANHAMENTO PSICOLÓGICO E

GESTACIONAL DA GRAVIDEZ DE FETO ANENCEFÁLICO.

Trabalho de Conclusão de Curso aprovado como requisito parcial para a obtenção do título de

Especialista em Formulação e Gestão de Políticas Públicas, da UNIOESTE – Campus de

Cascavel/Escola de Governo do Paraná.

Data de Aprovação:

_____/_____/_____

Banca Examinadora:

__________________________

Prof. Drª Loreni Brandalise

Orientadora

Universidade Estadual do

Oeste do Paraná – UNIOESTE

__________________________

Prof. Msc. Geysler Bertolini

Universidade Estadual do

Oeste do Paraná - UNIOESTE

__________________________

Prof. Msc. Odacir Tagliapietra

Universidade Estadual do

Oeste do Paraná - UNIOESTE

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EPÍGRAFE

Se lutarmos por tudo que acreditamos mas perdermos,

não podemos de maneira alguma nos deixar abater.

Devemos levantar e mostrar o quanto ainda somos

capazes de recomeçar com coragem,

determinação e amor.

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DEDICATÓRIA

À minha família, que sempre esteve ao meu lado;

E as minhas amigas, pessoas que sempre

mostraram sua amizade incondicional e ajudaram

em todos os momentos desta conquista.

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AGRADECIMENTOS

À Deus, razão maior da minha existência,

pela força necessária para superar os obstáculos e

pelo dom da sabedoria por Ele concedido...

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PROPOSTA DE PROGRAMA DE ACOMPANHAMENTO PSICOLÓGICO E GESTACIONAL DA GRAVIDEZ DE FETO ANENCEFÁLICO.

RESUMO: A pesquisa busca demonstrar atualizações existentes no Código Penal Brasileiro

no que se refere ao aborto de feto anencefálico, bem como até então sua omissão o que indica

sua inconstitucionalidade diante dos preceitos fundamentais violados, analisar os aspectos

legais médico-jurídico da interrupção da gravidez de feto anencefálico e através deste propor

a elaboração de um programa de acompanhamento à gestante com diagnóstico de anencefalia

antes, durante e após a realização de uma interrupção da gestação. A evolução médica (no

avanço dos diagnósticos precisos) e a ordem jurídica, os avanços sociais, moral, ético e

religioso. O direito subjetivo da gestante frente ao princípio da dignidade da pessoa humana.

O posicionamento na decisão do Supremo Tribunal Federal autorizando liminarmente a

interrupção da gestação de feto anencefálico reconhecendo o direito da gestante em abortar o

produto da concepção em face de sua inviabilidade de sobrevida. O método de pesquisa

utilizado é o dedutivo, onde, a partir da relação entre enunciados básicos, denominadas

premissas, tira-se uma conclusão. Considerando que as gestações de fetos anencefálicos são

em grande maioria consideradas inviáveis, e que quando não espontâneo, há a possibilidade

de um abortamento consentido, fica uma lacuna na assistência prestada à mulher e sua

família, pois atualmente não existe nenhum programa dentre as esferas governamentais, seja

municipal, estadual ou federal que acolha esta clientela oferecendo-lhes apoio psicológico e

psiquiátrico. Assim faz-se necessária a elaboração de um projeto com o intuito de atender esta

necessidade.

Palavras-chave: Constituição Federal; Aborto; Anencefalia

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 09

1.1 Objetivos ............................................................................................................................ 10

1.1.1 Objetivo geral .................................................................................................................. 10

1.1.2 Objetivos específicos ....................................................................................................... 10

1.2 Justificativa ....................................................................................................................... 11

1.3 Metodologia ....................................................................................................................... 12

1.3.1 Metodologia de Abordagem ........................................................................................... 12

1.3.2 Metodologia de Procedimento ........................................................................................ 13

1.3.3 Técnicas de Pesquisa ....................................................................................................... 13

2 REFERENCIAL TEÓRICO .............................................................................................. 14

2.1 Aborto ................................................................................................................................ 14

2.2 Conceito Histórico da Legislação Brasileira Referente ao Crime de Aborto ............. 15

2.3 Processo de Aborto ........................................................................................................... 16

2.4 Formas de Aborto ............................................................................................................. 17

2.5 Princípios e Direitos Constitucionais ............................................................................. 19

2.5.1 Os Princípios e o Aborto Anencefálico. .......................................................................... 20

2.5.2 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. .................................................................... 21

2.5.3 Princípio da Legalidade, Liberdade e Autonomia da Vontade. ....................................... 22

2.5.4 Direito à Saúde. ............................................................................................................... 23

2.5.5. Direito à Vida. ................................................................................................................ 25

2.6 Conceito Jurídico de Morte ............................................................................................. 26

2.7 A Legalidade do Aborto Anencefálico ............................................................................ 27

2.8 Conceito de Anencefalia. .................................................................................................. 30

2.9 Aspectos Religiosos do Aborto Anencefálico ................................................................. 31

2.10 Aspecto Psicológico da Gestante de Feto Anencefálico .............................................. 35

2.11 Os Aspectos Psicológicos da Gestação x Gestação Anencefálica ................................ 36

2.12 O Código Penal ............................................................................................................... 39

2.13 Requisitos para a Realização da Antecipação do Parto .............................................. 40

2.14 Novas Tendências sobre a Autorização Jurídica da Interrupção de Gravidez de

Feto Anencefálico .................................................................................................................... 41

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3. SUGESTÕES E RECOMENDAÇÕES ............................................................................ 43

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................. 44

REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 46

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1 INTRODUÇÃO

No Brasil a partir da década de 60 a gestante passou a ter acesso ao diagnóstico

pré-natal, ocorrendo, na década de 90, um grande avanço nos equipamentos médicos, o que

veio a tornar mais fácil a realização de pré-natal e de diagnósticos de doenças genéticas ou

imperfeições durante a gravidez. Atualmente estes equipamentos são utilizados no Brasil para

a realização do pré-natal, tanto em clínicas particulares quanto pelo Sistema Único de Saúde

(SUS), tal acompanhamento é feito desde o início da gravidez até o parto, sendo que 50% dos

casos de malformações fetais são diagnosticados por meio da ultra-sonografia.1

Na realização desses exames e constante acompanhamento médico é possível

diagnosticar, entre outras deformidades no feto, a anencefalia, que é uma má formação do

crânio, ou seja, o feto é dotado de fragmentos cerebrais, com má formação congênita do

sistema nervoso central, na qual o encéfalo é anaplásico (não se desenvolve) e a calota

craniana está ausente, deixando a massa cefálica exposta em alguns casos, e em outros com

uma parte da cabeça achatada2.

Assim, este feto só tem condições de manter algumas funções, como batimentos

cardíacos, choro, e sucção, tendo uma previsão de vida de horas ou dias. Diante deste

diagnóstico, como a mãe deve reagir? Qual decisão tomar? Manter esta gestação até o final?

Estas questões envolvem religião, moral, ética, além de Direito Penal e Civil e infelizmente

não se tem respostas claras e definidas para todas as questões.

Diante destas questões não pacificadas é que se buscará explanar sobre os direitos

do nascituro, os direitos da mãe, o direito à vida, o princípio da dignidade humana, as

posições doutrinárias, jurisprudenciais e sob a ótica da ética e também da psicologia.

No Brasil, por força da Constituição Federal e do Código Penal, o aborto é

considerado crime, suscetível de punição, salvo se a gestação se deu por estupro ou se puser

em risco de vida a gestante. Entretanto, muitas vezes nos deparamos com reportagens que

informam a atuação de clínicas clandestinas “especializadas” na prática de abortos, e que

muitas vezes, acarretam à mulher graves problemas de saúde, podendo lhe causar a morte.

Pelo fato de não existir uma previsão legal para aborto de feto anencefálico,

muitas gestantes e familiares ingressam o pedido de autorização judicial – chamado de alvará

1 FRIGÉRIO, Marcos Valentin. Aspectos Bioéticos, Médicos e Jurídicos do Abortamento por Anomalia Fetal Grave no Brasil. Revista brasileira de ciências criminais - RT, São Paulo, ano 11, n.41, p.269 e 273, 2003. 2 COSTA, Domingos Barroso. Sobre a Atipicidade da Interrupção da Gestação de Feto Anencéfalo. Revista do instituto brasileiro de ciências criminais – IBCCRIM, São Paulo, ano 13, n. 152 p. 13, 2005.

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judicial - para interromper a gestação3, entretanto, os Doutos Magistrados, ainda não

chegaram a um entendimento pacífico com relação ao assunto, de modo que as decisões

muitas vezes são contraditórias, o que vem levando à polêmica sobre o fato do aborto de feto

anencefálico, ser ou não um fato antijurídico.

Nesse sentido, há alguns problemas que envolvem não só o âmbito do Direito

Penal, o do Direito Constitucional, e o aspecto psicológico materno, questões a serem

elucidadas por esta pesquisa: É lícita a conduta da gestante em autorizar a interrupção da

gestação de feto anencefálico frente à Constituição Federal e ao Código Penal? Mediante

a autorização deste procedimento, como lidar com os fatores emocionais da gestante e

posteriormente da puérpera?

Diante do exposto, a grande questão a ser discutida consiste no fato de poder ou

não considerar o sofrimento da mãe como uma cláusula excludente da antijuridicidade, nos

casos de interrupção da gestação de feto anencefálico, e propor em casos de gestação

confirmada com esta anomalia e com parecer favorável para interrupção da mesma, a inclusão

desta mulher em programa específico a ser implantado em maternidades conveniadas ao SUS

dando todo suporte necessário no que tange as necessidades psicossociais.

1.1 Objetivos

1.1.1 Objetivo geral

Elaborar proposta de programa de acompanhamento psicológico e gestacional da

gravidez de feto anencefálico.

1.1.2 Objetivos específicos

a) Apresentar aspectos referentes ao bem jurídico tutelado pelos tipos penais

previstos nos artigos 124, 125, 126 e 128 do Código Penal relacionados à

prática do aborto;

b) Abordar o direito do embrião e do nascituro – direito de nascer previsto na

Constituição Federal e no Código Civil; 3 FRIGÉRIO, Marcos Valentin. Aspectos Bioéticos, Médicos e Jurídicos do Abortamento por Anomalia Fetal Grave no Brasil. Revista brasileira de ciências criminais - RT, São Paulo, ano 11, n.41, p. 271, 2003.

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c) Fundamentar teoricamente acerca da anencefalia, aspectos médico, jurídico,

religioso e psicológico;

1.2 Justificativa

Muito se tem discutido acerca dos aspectos criminais que envolvem a prática do

aborto quando constatada a anencefalia do feto. A proteção ao nascituro tem sido contraposta

aos danos psicológicos da mulher em suportar uma gravidez nestas circunstâncias. A questão

exige um profundo e merecedor debate nos aspectos médicos, jurídicos, morais e religiosos

devido à grande complexidade do tema.

Apesar de se tratar de um Estado laico, a religião continua influenciando no meio

social, e dessa forma, no modo de pensar de todos que a compõem. Desse modo, a Igreja se

manifestou sobre diversos assuntos e não podia ser diferente em relação ao aborto. No

concílio Vaticano II, os Bispos de todo o mundo assinaram:

Tudo que atenta contra vida, como qualquer espécie de homicídio, o genocídio, o aborto, a eutanásia e o próprio suicídio voluntário [...] todas estas práticas e outras semelhantes são dignas de censura. Enquanto mancham a civilização humana, desonram mais os que as praticam do que aqueles que as sofrem como vítimas”. 4

Para a igreja a posição é totalmente contra o aborto, sendo necessário ou não,

declara que os homens não são donos da vida, mas apenas administradores desta 5. Este

posicionamento da Igreja interfere na decisão de muitas pessoas que seguem a religião

católica e pesa também na consciência de alguns juízes na hora de se manifestar

favoravelmente ou contra o alvará para retirada de feto anencefálico.

Diante do crescente número de alvarás para aborto de feto anencefálico, ocorreu

uma solicitação do conselho Nacional de Medicina para que se acrescentasse no artigo 128 do

Código Penal mais um inciso, permitindo o aborto em caso de feto anencefálico.

Esta solicitação ocorreu devido aos avanços tecnológicos, ao desenvolvimento

mundial de técnicas de medicina e exames juntamente com a mudança de comportamento das

sociedades. Houve uma alteração social com o passar dos anos e as mudanças foram

4 BELO, Warley Rodrigues. Aborto: Considerações Jurídicas e Aspectos Correlatos. 1. ed. v. 1. Belo Horizonte. Del Rey, 1999, p. 136 5 Ibid. p. 137

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inevitáveis, sendo assim, o aborto perdeu a condição de pecado e passou a ser uma escolha da

mulher, sendo autorizado em alguns países.

No Brasil se busca a legalização do aborto de forma geral, como uma opção da

mãe e familiares, sem a necessidade de uma autorização judicial, mas é possível em caráter

específico e de forma legal, como previsto no Código Penal.

É possível obter do Supremo Tribunal Federal o alvará para a realização do

procedimento médico com a autorização da mãe ou familiares sem ocorrer a criminalização

do ato. Para reforçar esta tese, segue jurisprudência do Tribunal de Alçada: Relator Juiz

Alvim Soares, apelação cível n. 219.008-9 – Autorização judicial – gravidez – interrupção –

anencefalia:

Tendo em vista o dever do Estado de assegurar o bem comum, promovendo a saúde e atendendo aos fins sociais da lei, admissível a interrupção da gravidez, comprovando-se que o feto é portador de má-formação congênita, caracterizada por anencefalia – ou ausência de cérebro- afecção irreversível que impossibilita totalmente a sobrevivência extra-uterina, hipótese em que, ao direito da gestante, não cabe opor interpretação restritiva da legislação penal. Relator: juiz Alvim Soares. 6

As pessoas que por motivo de fé religiosa não quiserem realizar a interrupção

desta gestação, têm toda a liberdade garantida pela Constituição Federal. Há de se respeitar os

dogmas religiosos, mas, o que não se pode admitir é que sejam estes, impostos através do

Estado Laico, a cidadãos com outras convicções.

Diante do exposto, verifica-se a necessidade da elaboração de um programa de

acompanhamento à gestante com diagnóstico de anencefalia antes, durante e após a realização

de uma interrupção da gestação.

1.3 Metodologia

1.3.1 Metodologia de Abordagem

O método de abordagem utilizado na presente pesquisa é o dedutivo, onde, a

partir da relação entre enunciados básicos, denominadas premissas, tira-se uma conclusão.

Serão analisadas várias legislações e pensamentos doutrinários, apontando-se os mais

adequados para aplicação ao caso concreto. 6 Ibid., p 98

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Conforme Lakatos e Marconi7, de tal o método dedutivo parte das teorias e leis, e

na maioria das vezes prediz a ocorrência dos fenômenos particulares (conexão descendente).

1.3.2 Metodologia de Procedimento

A presente pesquisa tem como base o procedimento monográfico, explorando-se a

legislação, a doutrina e artigos, fazendo-se após, uma análise comparativa e dialética, dos

pensamentos dos diversos estudiosos sobre o assunto.

1.3.3 Técnicas de Pesquisa

Os instrumentos utilizados no desenvolvimento deste trabalho caracterizam-se

pelas pesquisas bibliográfica, documental e legislativa, englobando os artigos de revista e

internet, além de vários outros meios e técnicas de pesquisa direta e indireta.

7LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Anfrade. Metodologia do Trabalho Científico: procedimentos básicos, pesquisa bibliográfica, projeto e relatório, publicações e trabalhos científicos. 7 ed. São Paulo: Atlas, 2007.

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2 REFERENCIAL TEÓRICO

Muito se tem discutido acerca dos aspectos criminais que envolvem a prática do

aborto quando constatada a anencefalia do feto. A proteção ao nascituro tem sido contraposta

aos danos psicológicos da mulher em suportar uma gravidez nestas circunstâncias. A questão

exige um profundo e merecedor debate nos aspectos médicos, jurídicos, morais e religiosos.

Muitas pesquisas vêm sendo realizadas e hoje a embriologia tem demonstrado que

o feto não deve ser considerado como parte integrante do corpo da mulher, isto é:

O feto é um ser independente, autônomo, com traços psicológicos, com patrimônio genético único e impossível de alteração, sendo assim, as fases seguintes são meramente para aperfeiçoamento e desenvolvimento, necessitando apenas de alimento e oxigênio. 8

Seguindo este raciocínio, parte da doutrina considera crime de aborto a

interrupção da gestação, independente da etapa em que se encontra. Como seria possível

desconsiderar os direitos previstos na Constituição Federal, no Código Civil, Código Penal e

tratados internacionais?

O que se discute em um alvará judicial de aborto de feto anencefálico não é sobre

uma coisa, ou algo substituível, mas vida humana, que tem sentimentos. Sendo a mulher um

receptáculo para desenvolvimento do feto, como pode ela, decidir sobre a vida do mesmo?

2.1 Aborto

O abortamento tem-se mostrado como um dos temas que mais suscitam discussão

e polêmica em nossa sociedade, encontrando desde os que defendem a descriminalização

completa da conduta até os que lutam pela sua proibição absoluta e incondicional.

Advém do latim abortus, onde ab significava privação e ortus, nascimento.

Considera-se aborto a interrupção da gravidez com a conseqüente destruição do produto da

concepção. Consiste na eliminação da vida intra-uterina. É a morte do ovo (até três semanas

de gestação), embrião (de três semanas a três meses de gestação) ou feto (após três meses de

gestação) pois em qualquer fase da gravidez está configurado o delito de aborto, quer dizer

entre a concepção e o início do parto.9

8Ibid., p. 80. 9 CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: Parte Especial. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2005, v. 2. p. 109.

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2.2 Conceito Histórico da Legislação Brasileira Referente ao Crime de Aborto

O Código Criminal do Império de 1830 não criminalizava o aborto praticado pela

própria gestante. Punia somente o realizado por terceiro, com ou sem o consentimento da

gestante. Então, não criminalizava o auto aborto (provocado) e criminalizava o aborto

consentido e sofrido. A punição somente era imposta a terceiros que interviessem no

abortamento; bem como no fornecimento de meios abortivos; mesmo dos atos preparatórios

havia criminalização.

O Código Penal de 1890, por sua vez, distinguia o crime de aborto caso houvesse

ou não a expulsão do feto, agravando-se se acometesse a morte da gestante. Este Código

criminalizava o aborto praticado pela própria gestante. Porém, o referido código autorizava o

aborto para salvar a vida da parturiente; nesse caso, punia eventual imperícia do médico ou

parteira que culposamente causassem a morte da gestante.10

O Código Penal de 1940, por sua vez, tipifica três figuras de aborto: a) no art. 124,

aborto provocado, “provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lhe provoque”; b)

no art. 125, aborto sofrido, “provocar aborto sem o consentimento da gestante”; e c) no art.

126, o aborto consentido, “provocar aborto com o consentimento da gestante”.

A este respeito, trata o professor Cezar Roberto Bitencourt, in verbis:

O Código Penal de 1940 foi publicado segundo a cultura, costumes e hábitos dominantes na década de 30. passaram mais de sessenta anos, e, nesse lapso, não foram apenas os valores da sociedade que se modificaram mas os avanços científicos e tecnológicos que produziram verdadeira revolução na ciência médica. No atual estágio a medicina tem condições de defenir com absoluta certeza a precisão eventual de anomalias do feto e, consequentemente, a inviabilidade de vida extra-uterina. Sendo, perfeitamente defensável a orientação do Anteprojeto de Reforma da Parte Especial do Código Penal, que autoriza o aborto quando o nascituro apresentar graves e irreversíveis anomalias físicas ou mentais, ampliando a abrangência do aborto eugênico ou piedoso.11

Para a legislação brasileira, “o direito à vida deve ser protegido desde a

concepção, porém se aceita que, quando ocorre conflito entre o direito à vida do feto e da

gestante, deve-se resolvê-lo em favor da mãe”12. O aborto legal ou permitido por lei está

inserido no art. 128, I e II do CP, onde está determinado que não se puna o aborto praticado

10 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Especial. 3 ed., São Paulo: Saraiva, 2003, v 2, p. 156-157. 11 Ibid., 156. 12 MOISÉS, Elaine Christine Dantas. et al. Aspectos Éticos e Legais do Aborto no Brasil. Ribeirão Preto: Fumpec, 2005, p. 24.

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16

por médico: I) aborto necessário ou terapêutico: “se não houver outro meio de salvar a vida da

gestante”; II) aborto no caso de gravidez resultante de estupro: “se a gravidez resulta de

estupro e o aborto for precedido do consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu

representante legal”.

Entende o Código Penal Brasileiro, juntamente com o artigo 196 defeso na

Constituição Federal, que refere ser dever do Estado, fornecer a estrutura e os recursos

necessários para a manutenção da saúde de todos. Sendo o caso de risco iminente de vida

decorrente de patologia agravada pela gravidez, devendo o Estado permitir a realização da

interrupção desta gestação para garantir a saúde materna. Assim dispõe o referido artigo da

Carta Magna:13

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantindo mediante políticas sociais e econômicas que visem á redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.14

As orientações e diretrizes legais brasileiras são embasadas na Constituição

Federal. No seu art. 5º, o direito à vida para todos; no Código Civil o art. 2º, que põe a salvo

desde a concepção os direitos do nascituro; e no estatuto da Criança e do adolescente, em seu

art. 7º que diz: toda criança tem direito à vida mediante a efetivação de políticas sociais e

publicas que permitam o nascimento.

2.3 Processo de Aborto

São diversos os processos abortivos empregados na ação que consiste na morte do

embrião. “Na visão do Professor Magalhães Noronha os métodos se dividem em três tipos:

químicos, físicos e psíquicos”.15

Meios químicos é a utilização de substâncias inorgânicas que estimulam as

contrações do útero, provocando a expulsão do feto, entre elas o fósforo, mercúrio, arsênico,

etc. e de substâncias orgânicas, como cautário, pituitrina, quimina, estricnina, ópio, etc. bem

como métodos populares como substâncias cáusticas (formol e lixinia-cloro) e várias outras.

13 Ibid., p. 25-27 14 Art. 196, da Constituição Federal do Brasil. Vade Mecum Saraiva. São Paulo: Saraiva. 2007, p. 61. 15 NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 1994, v. II, p. 60. apud BELO, Warley Rodrigues. Aborto: Considerações Jurídicas e Aspectos Correlatos. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 31.

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17

Estes métodos não são ditos propriamente para abortar, mas atuam primeiramente como

intoxicadores da gestante.16

O medicamento para tratamento de úlceras gastrointestinais, o Cytotec17 é um

eficaz abortivo, sendo este contra-indicado para mulheres grávidas.

Os meios físicos são os mecanismos via vaginal de inserção de objetos

perfurantes como colheres, agulhas de tricô, cabides, tesouras, antenas, etc. esquartejando o

feto ainda dentro do ventre materno.

E meios psíquicos são constituídos pelo susto “choque”, surpresa, terror, etc. os

quais são empregados normalmente sem a vontade especifica de abortamento; ocorrendo

culposamente pelo agente que infunde pânico, provocando descontrole no sistema nervoso da

mulher.18

2.4 Formas de Aborto

Aborto provocado pela própria gestante é o aborto consentido. Com previsão legal

no CP, art. 124, e a exceção legal à teoria monista da ação. O referido artigo em sua primeira

parte, descreve a chamado auto-aborto: “provocar aborto em si mesma”. Trata-se de crime

especial, só podendo praticá-lo a mulher gestante. Na segunda parte do artigo, é disciplinado o

aborto consentido, em que a agente é incriminada por “consentir que outrem lho provoque”.

Este que provoca o aborto responde pelo crime previsto no art. 126, em que se comina a pena

mais severa.19

Já o aborto provocado por terceiro, sem o consentimento da gestante, está previsto

no art. 125, do CP, tratando-se de forma mais gravosa do delito, com a previsão de uma pena

de 3 a 10 anos de reclusão.

O professor Fernando Capez traz um breve comentário sobre o dissentimento, que

pode ser real ou presumido, ipsis litteris:

O dissentimento é real quando o sujeito emprega contra a gestante (cf. 2ª parte do parágrafo único do art. 126): a) fraude: é o emprego de ardil capaz de induzir a gestante em erro; por exemplo: médico que, a pretexto de realizar exames de rotina na gestante, realiza manobras abortivas; b) grave ameaça contra a gestante: é a promessa de um mal grave, inevitável e

16 BELO, op. cit. p. 31. 17 A nomenclatura Cytotec é a usual, tendo como agente principal a Misoprostol, substância disponível em hospitais como abortivos nos casos em que há necessidade médica para praticá-lo. 18 BELO, op. cit. p. 32. 19 MIRABETE, Julio Fabrini. Manual de Direito Penal. 24 ed., São Paulo: Atlas, 2006. p. 65

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irresistível; por exemplo: marido desempregado que ameaça se matar se a mulher não abortar a criança, pai que ameaça expulsar a filha de casa se ela não abortar; c) violência: é o emprego de força física: por exemplo: homicídio de mulher grávida com conhecimento da gravidez pelo homicida. Dissentimento presumido. O art. 126, parágrafo único, 1ª parte, prevê hipóteses em que se presume o dissentimento da vítima na prática do aborto por terceiro. O legislador, em determinados casos, considera inválido o consentimento da gestante, pelo fato de não ser livre e espontâneo, de modo que ainda que aquele esteja presente, a conduta do agente será enquadrada no tipo penal do art. 125. o dissentimento é presumido se a vítima é menor de 14 anos, alienada ou débil mental.20

Aborto provocado por terceiro, com o consentimento da gestante, está

previsto no art. 126, do CP. Nesse artigo, define-se a provocação do aborto com o

consentimento da gestante, devendo ser válido, isto é, que ela tenha capacidade para

consentir. Ausente essa capacidade, o delito poderá ser outro (CP, art. 125). Fernando Capez

traz o seguinte quadro:

Consentimento válido: é necessário que a gestante tenha capacidade para consentir (...). leva-se em conta a vontade real da gestante, desde que juridicamente relevante. Consentimento inválido: consiste nas hipóteses elencadas no parágrafo único do art. 126, em que o dissentimento é real (emprego de fraude, grave ameaça ou violência contra a gestante) ou presumido (se a gestante não é maior de 14 anos, ou é alienada ou débil mental).21

Aborto qualificado está previsto no art. 127, do CP que prevê duas causas

específicas de “aumento de pena, para o crime de aborto praticado com ou sem o

consentimento da gestante: pela primeira, lesão corporal de natureza grave, a pena é elevada

em um terço; pela segunda, morte da gestante, a pena é duplicada”.22

Aborto necessário e aborto humanitário, previsto no art. 128, I e II, do CP, são

casos de aborto legal, quando ocorrem circunstâncias que tornam lícita a prática do fato.

Assim transcreve o artigo: “não se pune o aborto praticado por médico, I – se não há outro

meio de salvar a vida da gestante; II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido

do consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal”.23

O inciso I do Artigo 128 do CP, trata do aborto necessário ou terapêutico, que

segundo o professor Fernando Capez:

20 CAPEZ, op. cit. 119-120. 21 Ibid., p. 120-121. 22 BITENCOURT, op. cit. p. 167. 23 MIRABETE, op. cit. p. 68.

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É a interrupção da gravidez realizada pelo médico quando a gestante estiver correndo perigo de vida e inexistir outro meio para salvá-la. Trata-se de uma espécie de estado de necessidade, mas sem a exigência de que o perigo de vida seja atual. Assim, há dois bens jurídicos (a vida do feto e da genitora) postos em perigo, de modo que a preservação de um (vida da genitora) depende da destruição do outro (vida do feto). O legislador optou pela preservação do bem maior, que, no caso, é a vida da mãe.24

No que se refere ao inciso II do artigo 128 do CP, procura tipificar o aborto

sentimental, humanitário ou ético. “Trata-se de aborto realizado pelos médicos nos casos em

que a gravidez decorreu de um crime de estupro. Não se faz qualquer distinção entre o estupro

com violência real ou presumida”.25

O médico necessita do prévio consentimento da gestante para realizar o aborto ou

do seu representante legal. A lei não exige autorização ou processo judicial, “basta prova

idônea do atestado sexual (boletim de ocorrência, testemunhos colhidos perante autoridade

policial, atestado médico relativo às lesões próprias de submissão forçada à conjunção

carnal)”.26

Há, porém outras formas de aborto trazidas na doutrina de Fernando Capez, como:

Aborto natural, que consiste na interrupção espontânea da gravidez. Nesta hipótese não há crime. Aborto acidental e aquele que decorre de traumatismo ou outro acidente. Aqui também não há crime. Aborto eugenésico, eugênico ou piedoso é aquele realizado para impedir que a criança nasça com deformidade ou enfermidade incurável. Não é permitido pela nossa legislação e, por isso, configura crime. Aborto social ou econômico é aquele cometido no caso de famílias muito numerosas, em que o nascimento agravaria a crise financeira e social. Nosso ordenamento não o admite. Haverá crime, no caso. 27

2.5 Princípios e Direitos Constitucionais

A universalidade dos direitos fundamentais está expressamente reconhecida na

Constituição Federal de 1988. Assim, os direitos fundamentais cumprem, no dizer de

Canotilho:

A função de direitos de defesa dos cidadões sob uma dupla perspectiva: (1) constituem, num plano jurídico-objetivo, normas de competência negativa para poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na

24 CAPEZ, op. cit., p.124. 25 Ibid., p. 126. 26 Ibid., p. 126-127. 27 CAPEZ, op. cit., p. 127-128.

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esfera jurídica individual; (2) implicam, num plano jurídico subjetivo, o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa).28

O estabelecimento de Constituições escritas está diretamente ligado à edição de

declarações de direitos do homem. Com a finalidade de estabelecimento de limites ao poder

político, ocorrendo a incorporação de direitos subjetivos do homem em normas formalmente

básicas.

Assim, entre os direitos fundamentais previstos no “artigo 5º, da Carta Magna

temos o direito à vida; é o mais fundamental de todos os direitos, já que se constitui em pré-

requisito à existência e exercício de todos os demais direitos”.29

A Constituição Federal proclama o direito à vida cabendo ao estado assegurá-lo

em sua dupla acepção, sendo a primeira relacionada ao direito de continuar vivo e a segunda

de se ter vida digna quanto à subsistência.

O início da mais preciosa garantia individual deverá ser dado pelo biológico,

cabendo ao jurista, dar-lhe o enquadramento legal, pois do ponto de vista biológico a vida se

inicia com a fecundação do óvulo pelo espermatozóide, resultando um ovo ou zigoto. Assim a

vida viável, portanto, começa com a nidação, quando se inicia a gravidez. A Constituição

protege a vida de forma geral, inclusive uterina.30

Embora o direito do feto à vida tenha um valor elevado, não se estende a ponto de

banir os direitos fundamentais garantidos à gestante, havendo casos de permissão para o

aborto, conforme a antijuridicidade da conduta elencados no art. 128, do CP.

2.5.1 Os Princípios e o Aborto Anencefálico

O presente trabalho visa buscar a legalidade da antecipação do parto em gravidez

de feto anencefálico frente ao direito à vida, previsto na Constituição Federal, bem como a

relevância de certos princípios a seguir descritos.

Apesar de a vida ser consagrada como um direito fundamental do homem e

também como princípio; pressupõe-se que tenha um mínimo de qualidade e dignidade

humana. Nesse contexto, inclui-se a anomalia fetal incompatível com a vida extra uterina,

“pois levar a termo tal gestação, quando esta mulher fez a opção de interrompê-la, significa

28 CANOTILHO, apud MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 15 ed., São Paulo: Atlas, 2004, p 61. 29 MORAES, op. cit., p 65. 30 MORAES, op. cit. p. 66.

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agressão ao princípio da dignidade desta gestante, comparada aos efeitos de uma tortura,

restando prejudicada também sua saúde psíquica e conseqüentemente, a qualidade de vida”.31

Ressalta Débora Diniz, ao conceituar a interrupção seletiva da gravidez (ISG), que

corresponde à nomenclatura adotada por esta autora para designar a interrupção de gestação

de feto inviável:

A interrupção seletiva da gravidez caracteriza-se por um procedimento clínico de expulsão provocada do feto (a despeito das diferenças entre os estágios gestacionais e de seus correlatos no desenvolvimento embrionário, optei, aqui, por denominar por feto o objeto da ISG), em nome de suas limitações físicas e/ou mentais. Em geral, fala-se da incompatibilidade com a vida, ou de sua reduzida expectativa de vida extra-uterina.32

Dessa maneira, evidencia-se que a interrupção da gestação em nada se assemelha

ao aborto, uma vez que o pressuposto deste é que haja vida fetal, ao passo que na interrupção

seletiva da gravidez ocorre a antecipação do parto de um bebê que não terá possibilidade de

vida extra-uterina.

O poder judiciário e o Ministério Público têm examinado essa questão

concedendo os alvarás para o procedimento, reconhecendo o direito das gestantes em

submeterem-se à antecipação terapêutica do parto em casos como o da anencefalia, baseando-

se no direito à saúde, do direito à liberdade, do direito à preservação da autonomia da

vontade, da legalidade e acima de tudo da dignidade da pessoa humana.33

2.5.2 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana

Antes de iniciar a temática ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, faz-se

necessário uma explicação sobre o que se trata a palavra Princípio.

Os princípios gerais do direito para a professora Maria Helena Diniz, não são

preceitos de “ordem ética, política, sociológica ou técnica, mas elementos componentes do

direito. São normas de valor genérico que orientam a compreensão do sistema jurídico, em

sua aplicação e integração, estejam ou não positivadas”.34

31 TESSARO, Anelise. Aborto Seletivo: Descriminalização & Avanços Tecnológicos da Medicina Contemporânea. Curitiba: Juruá, 2006, p. 77. 32 DINIZ, Débora. Aborto Seletivo no Brasil e os Alvarás Judiciais. http://infojur.ccj.ufsc.br. Apud TESSARO, op. cit., p. 87. 33 Conselho Regional de Medicina do Estado da Bahia. Anencefalia e Supremo Tribunal Federal. Brasília: Letras Livres, 2004. p. 133. 34 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 464.

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Para Guy Durant, “os princípios são diretrizes e não respostas precisas aplicáveis

ao caso concreto, e que em alguns casos, podem ser tratados como complementares um do

outro, e não antagônicos”.35

Para o Conselho Regional de Medicina do Estado da Bahia o que se refere ao

princípio da dignidade da pessoa humana, ipsis litteris:

Identifica um espaço de integridade moral a ser assegurado a todas as pessoas por sua só existência no mundo. Relacionam-se tanto com a liberdade e valores do espírito quanto com as condições materiais de subsistência. O reconhecimento dos direitos da personalidade como os direitos autônomos de que todo indivíduo é titular, generalizou-se também após a Segunda Guerra Mundial e a doutrina descreve-os hoje como emanações da própria dignidade, funcionando como “atributos inerentes e dispensáveis ao ser humano”. Tais direitos reconhecidos a todo ser humano e consagrados pelos textos constitucionais modernos em geral, são oponíveis a toda a coletividade e também ao Estado. Uma classificação que se tornou corrente na doutrina é a que separa os direitos da personalidade, inerentes à dignidade humana, em dois grupos: a) direitos à integridade física, englobando o direito à vida, o direito ao próprio corpo e o direito ao cadáver; b) direitos à integridade moral, no qual se insere os direitos à honra, à liberdade, à vida privada, à intimidade, à imagem, ao nome e o direito moral do autor, dentre outros.36

A relevância desses direitos para a hipótese aqui em discussão (antecipação do

parto em gravidez de feto anencefálico) é simplesmente fácil de ser demonstrada. Impor à

mulher o dever de carregar por nove meses um feto que sabe, com plenitude de certeza, que

não sobreviverá, causando-lhe dor, angústia e frustração, importa em violação a sua dignidade

humana. A potencial ameaça à integridade moral e psicológica também são evidentes. A

convivência diuturna com a triste realidade e a lembrança ininterrupta do feto dentro do seu

corpo, que nunca poderá se tornar um ser vivo, podem ser comparados à tortura psicológica.

A Constituição Federal como se sabe, veda toda forma de tortura (art. 5º, III, da CF) e a

legislação infra-constitucional define a tortura como situação de intenso sofrimento físico ou

mental.

2.5.3 Princípio da Legalidade, Liberdade e Autonomia da Vontade

Diz o inciso II do art. 5º da CF, “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer

alguma coisa senão em virtude de lei”, flui por vertentes distintas em sua aplicação ao poder 35 DURANT, Duy. A Bioética: Natureza, Princípios, Objetivos. Trad. Porphírio Figueira de Aguiar Neto. São Paulo: Paulus, 1995. apud TESSARO, 2006. p. 75. 36 Conselho Regional de Medicina do estado da Bahia. op. cit., p. 89-90.

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público e aos particulares. Para o Poder Público, somente é facultado agir por imposição ou

autorização legal. Em relação aos particulares, esta é a cláusula constitucional genérica da

liberdade no direito brasileiro: se a lei não proíbe determinado comportamento ou se a lei não

o impõe, têm as pessoas a autodeterminação de adotá-lo ou não.

A liberdade consiste em ninguém ter de submeter-se a qualquer vontade que não a

da Lei, e, mesmo assim, desde que seja ela formal e materialmente constitucional.

Reverencia-se, dessa forma, a autonomia da vontade individual, cuja atuação somente deverá

ceder ante os limites impostos pela legalidade. “De tal formulação se extrai a ilação obvia de

que tudo aquilo que não está proibido por Lei é juridicamente permitido”.37

A antecipação terapêutica do parto em hipóteses de gravidez de feto anencefálico

“não está vedada no ordenamento jurídico. O fundamento das decisões judiciais que tem

proibido sua realização, data vênia de seus ilustres prolatores, não é a ordem jurídica vigente

no Brasil, mas sim outro tipo de consideração”. 38

A restrição à liberdade de escolha e a autonomia de vontade da gestante, nesse

caso, não se justifica, quer sob o aspecto do direito positivo, quer sob o prisma da ponderação

de valores.

Isso não significa que todas as mulheres tenham que tomar a mesma decisão. “É

uma questão de escolha e de decisão privada. Se houver mulheres que prefiram manter a

gestação, esta escolha deverá ser garantida pelo Estado. O que não se pode é dar uma ordem

igual para todas as mulheres”.39

2.5.4 Direito à Saúde

Os fundamentos básicos do direito à saúde no Brasil estão dispostos no art. 6º,

caput, e nos arts. 196 a 200 da Constituição Federal Brasileira. Preleciona o art. 196:

A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.40

37 Conselho Regional de Medicina do Estado da Bahia. op. cit., p. 91. 38 Ibid., p. 91. 39 ANIS: Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero. Anencefalia: O Pensamento Brasileiro em sua Pluralidade. Brasília: Anis, 2004, por SOARES, Gilberta, p. 65. 40 Art. 196, da Constituição Federal. Vade Mecum saraiva. Op. cit. 61.

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A previsão expressa do direito à saúde na Carta Magna de 1988 é reflexo da

elevação deste direito, no âmbito mundial, à categoria de direito humano fundamental. A

Organização Mundial da Saúde define a saúde como sendo o completo bem estar físico,

mental e social, e não apenas a ausência de doença. A antecipação do parto em gravidez de

feto anencefálico é o único procedimento médico cabível para obviar o risco e a dor da

gestante. Impedir a sua realização importa em indevida e injustificável restrição ao direito à

saúde.41

Uma gestação de feto com anencefalia acarreta riscos à saúde da mulher. Há

possibilidade de polidrâmnio, que é o excesso de liquido amnótico, ocorre em até 75% dos

casos, e hipertensão materna (elevação da pressão arterial) levando à Eclampsia, que é o

desenvolvimento hipertensivo além do excesso de proteína eliminada na urina. O risco de

eclampsia é aumentado em gestação com anencefalia. A eclampsia pode levar ao coma e

inclusive à morte. Os fetos anencefálicos por não terem o pólo cefálico, podem iniciar a

expulsão antes da dilatação completa do colo do útero, o que leva a distócia42; devido ao fato

do ombro ser grande ou maior que a média podendo haver um acidente obstético na

expulsão.43

Assim sendo, há inúmeras complicações em uma gestação cujo resultado é um feto

sem nenhuma perspectiva de sobrevida. Além da questão clínica, a maioria das gestantes

ficam bastante abaladas emocionalmente diante do diagnóstico44 e prognóstico45 da anomalia.

Para Débora Diniz, diretora da ANIS – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e

Gênero – sobre a interrupção da gravidez neste caso:

Mais da metade dos fetos anencefálicos morre ainda no útero, o que leva essas mulheres a risco de morte. Estamos falando de impor um risco absolutamente desnecessário, pois não há qualquer contraponto que justifique riscos à saúde, e inclusive riscos de morte. O direito à saúde é um direito fundamental e que deve ser garantido às mulheres grávidas de fetos com anencefalia, o que torna o procedimento da antecipação terapêutica de

41 Conselho Regional de Medicina do estado da Bahia. op. cit. p. 92-93. 42 Termo que indica parto difícil, devido a diversas causas. As distócias de causa fetal, verificam-se por exagerado desenvolvimento das dimensões do feto ou de sua posição anormal, ou ainda nos partos de gêmeos quando ambos se insinuam ao mesmo tempo. As distócias de causa materna dependem de vícios pélvicos, da retroversão ou de posição anormal do útero, de insuficiente força de contração da musculatura uterina ou de falta de dilatação do colo do útero. A distócia também se verifica quando o cordão umbilical é muito curto. – Grande Dicionário Brasileiro de Medicina. Ed. Maltese –. 43 ANIS: Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero. op. cit., por GOLLOP, Thomaz, p. 29-30 e 74. 44 Determinação de uma doença com base nos sintomas apresentados. O diagnostico se fundamenta no levantamento detalhado dos dados fornecidos pela anamnese, no exame físico dos doentes, na sintomatologia clinica e no emprego de todos as recursos da pesquisa cientifica. – Grande Dicionário Brasileiro de Medicina. Ed. Maltese –. 45 Previsão do médico a respeito da evolução e do êxito da moléstia (doença). – Grande Dicionário Brasileiro de Medicina. Ed. Maltese –.

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parto não somente um recurso para o bem-estar psicológico e espiritual, mas também físico.46

2.5.5. Direito à Vida

A Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, caput, assegura a inviolabilidade

do direito à vida, ou seja, a integralidade existencial. A vida é um bem jurídico tutelado como

direito fundamental básico desde a concepção, sendo por fecundação natural ou artificial do

óvulo pelo espermatozóide.

Além de ser garantida pelas normas constitucionais, recebe tutela civil, pois o art.

2º do novo Código Civil resguarda os direitos do nascituro desde a concepção. Porém, apenas

ao nascimento com vida considera o início da personalidade civil. Como leciona Maria

Helena Diniz:

A vida tem prioridade sobre todas as coisas, uma vez que a dinâmica do mundo nela se contém e sem ela nada terá sentido. Conseqüentemente, o direito à vida prevalecerá sobre qualquer outro, seja ela o de liberdade religiosa, de integridade física ou mental etc. Havendo conflito entre dois direitos, incidirá o princípio do primado mais relevante.47

Débora Diniz lembra que:

De fato a discussão desperta a busca de resposta cientifica a respeito de quando é caracterizado o início da vida. Se apelarmos para o direito brasileiro, não temos uma definição sobre “quando se inicia a vida humana”. Se formos buscar inspirações nas religiões, teremos várias possibilidades de respostas, para diferentes situações e para diferentes espécies de animais. Se formos ainda para a ética, teremos outra infinidade de respostas; como também será diferente a resposta na área biológica. (...) em que momento e por que passamos a considerar que um óvulo fecundado deve ser valorado, com interesses, direitos e proteções? Não temos consenso sobre quando inicia a vida, mas temos sim, consenso ético e factual sobre como se define a morte. A definição de morte que lhe proponho é simples: está morto quem não está vivo.48

No caso da anencefalia não há expectativa de vida, o feto não irá sobreviver, a

morte é certa em 100 % dos casos com agravante de não ter possibilidade de sobrevida.

“Segundo a legislação brasileira, a perda da atividade cerebral devido à má formação

46 ANIS: Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero. op. cit., por DINIZ, Débora, p. 74. 47 DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 27-28. 48 ANIS: Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero. op. cit., por DINIZ, Débora, p. 70.

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(ausência) cerebral no feto anencefálico qualifica-o como morto. Portanto, não há de que se

falar em vida neste feto”.49

Face as circunstância expostas, ao feto anencefálico não se pode atribuir a mesma

proteção jurídica conferida ao nascituro. Assim, não se pode chegar senão à conclusão pela

atipicidade da conduta da gestante que interromper a gestação de feto sabidamente acometido

pela anencefalia.50

2.6 Conceito Jurídico de Morte

Nascimento e morte são os dois fatos jurídicos mais importantes da vida do

homem. Do nascimento com vida começa a personalidade, e termina com a morte. Segundo a

enciclopédia jurídica da Academia Brasileira de Letras:

A morte extingue mandatos, cargos, funções, penalidade. De ambos os fatos, a morte é, sem dúvida, a mais importante, porque nossa vontade não pode atuar no nosso nascimento, mas pode atuar na nossa morte antecipando ou prolongando o seu momento. O nascimento com vida pode ocorrer ou não, mas da morte ninguém duvida. Tanto o nascimento como a morte pode o ser humano perder a vida por obra de outros: infanticídio, homicídio, pena de morte, ou ainda por efeito do acaso como nos casos de acidente. A morte pode ser também um ato de piedade como na eutanásia. Montaigne dizia que viver é preparar-se longamente para a morte, é morrer todos os dias um pouco. Desde Sêneca e Santo Agostinho que o problema do sentido da morte na vida humana vem preocupando a filosofia, mas foram os existencialistas que mais aprofundaram a matéria. Sartre, Heidegger, Camus, Ferreter Mora e outros, escreveram a respeito. É impressionante verificarmos como de um momento para outro o que era uma vida ou uma pessoa, passa ser simplesmente uma coisa (cadáver) para o direito.51

Ainda sobre morte, traz no dicionário jurídico:

Morte tem sua origem no latim morts, mortis de mori (morrer). Para o direito civil morte é um fato jurídico caracterizado no termo da existência da pessoa humana, tendo como conseqüência imediata a extinção da personalidade e dos direitos e obrigações personalíssimos.52

49 DINIZ, Débora. op cit. p. 71. 50 COSTA, Domingos Barroso. Sobre a atipicidade da interrupção de gestação de feto anencefálo. IBCCRIM, ano 13, n. 152, junho, 2005. p. 3. 51 LEIB SOIBELMAN. Enciclopédia Jurídica: Academia Brasileira de Letras Jurídicas. 4 ed. Rio de Janeiro: Editora Rio. V. III, p. 122. 52 SIDOV, J. M. Othon. Dicionário Jurídico: Academia Brasileira de Letras Jurídicas. 4 ed., Rio de Janeiro: Forense universitária, 1997, p. 524.

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Para a medicina legal:

É detectado morte, a parada dos processos vitais, biológicos, químicos, físico-químico no organismo. Nos animais superiores e no homem, a morte coincide com a parada da respiração e da circulação, através das quais o organismo é nutrido e oxigenado. Um individuo é tido como clinicamente morto quando o seu registro eletroencefalográfico53 é modo, sinal de que as células cerebrais cessaram de viver; ocasião em que é retirado órgãos, quando autorizados, para transplantes.54

Portanto, considera-se morte a cessação da atividade cerebral, isto é morte

encefálica. Conforme se vê na Lei 9.434/97, onde é compreendida a inatividade cerebral

como fator jurídico da morte, com o seguinte texto:

Art. 3º. A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resoluções do Conselho Federal de Medicina.55

2.7 A Legalidade do Aborto Anencefálico

Diversos penalistas brasileiros colocam seus posicionamentos referente ao tema do

aborto de feto anencefálico. Na maioria favorável à interrupção da gestação.

Cezar Roberto Bitencourt defende a posição da realização do aborto eugênico nos

casos em que “a criança nasça com deformidades ou enfermidades incurável, sustentando a

aplicação da excludente de culpabilidade e inexigibilidade de outra conduta (art. 24, do

CP)”.56

Como leciona Mirabete:

Não prevê a lei a excludente de criminalidade no chamado aborto eugenésico (ou eugênico) que é o executado ante a suspeita (prova) de que o filho virá ao mundo com anomalias graves, ou fatais (anencefalia ou acrania, por exemplo). Com o válido argumento de que não se deve impedir o aborto em caso de grave anomalia do feto que o incompatibiliza com a vida, de modo definitivo, já se têm concedido centenas de alvarás judiciais para abortos em casos de anencefalia (ausência ou má formação do

53 Registro da atividade elétrica cerebral. No exame distinguem-se quatro tipos de ondas: alfa, beta, desta, gama. – Grande Dicionário Brasileiro de Medicina. Ed. Maltese –. 54 Grande Dicionário Brasileiro de Medicina. Ed. Maltese. p. 241. 55 Art. 3º da lei 9.434/97. Vade Mecum Saraiva. op. cit., p. 1.562. 56 BITENCOURT, op. cit., p. 170.

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cérebro)(RT 756/652, JTJ 232/391, 239/375, JCAT 83-84/699, RDJ 22/264) má formação congênita do feto (RT 791/581), psicológicos, agenesia renal (ausência de rins), abertura da parede abdominal e síndrome de Patau (problemas renais, gástricos e cerebrais gravíssimos). A inviabilidade da vida extra-uterina do feto e os danos psicológicos à gestante justificam tal posição, merecendo reconhecimento da excludente de culpabilidade de inexigibilidade de conduta adversa.57

Ainda, segundo Capez:

Na hipótese do aborto eugênico, eugenésico ou piedoso, que é aquele praticado para evitar que a criança nasça com deformidade incurável, subsiste o crime de aborto, uma vez que, mesmo não tendo forma perfeita, existe vida intra-uterina, remanescendo o bem jurídico a ser tutelado penalmente. Eugenia é expressão que tem forte conteúdo discriminatório, cujo significado é purificação das raças. A vida intra-uterina perfeita ou não, saudável ou não, há que ser tutelada, não só por força do direito penal, mas por imposição direta da Carta Magna, que consagrou a vida como direito individual inalienável. No que toca ao abortamento do feto anencefálico, porém, entendemos que não existe crime, ante a inexistência de bem jurídico. O encéfalo é a parte do sistema nervoso central que abrange o cérebro, de modo que sua ausência implica inexistência de atividade cerebral, sem a qual não se pode falar em vida. A Lei 9.434/97, em seu art. 3º, permite a retirada post mortem de tecidos e órgãos do corpo humano depois de dignosticada a morte encefálica. Ora, isso significa que sem atividade encefálica não há vida, razão pela qual não se pode falar em crime de aborto, que é a supressão da vida intra-uterina. Fato atípico, portanto.58

Profissionais biomédicos, juristas representantes de diversas religiões e de

movimentos de mulheres, defendem a aprovação de um novo permissivo legal sobre o aborto

no Brasil, de forma a incluir os casos de má-formação fetal incompatível com a vida extra-

uterina. Há projetos de Lei, pareceres de promotores, alvarás judiciais e recomendações

profissionais que apontam para a possibilidade de modificação da legislação brasileira

visando contemplar a legalidade do aborto em casos de anomalias fetais incompatíveis com a

vida.

As evidências levam a crer que o primeiro alvará brasileiro autorizando a

realização de um “aborto por anomalia fetal (gestação de 26 semanas) foi proferido pela

Comarca de Rio Verde do Mato Grosso, no estado do Mato Grosso do Sul em 1991”.59 O

diagnóstico era de anencefalia, uma má-formação fetal incompatível com a vida extra-uterina,

em que o feto não apresenta os hemisférios cerebrais. O prognóstico para esses casos é o de

57 MIRABETE, op. cit., p. 70. 58 CAPEZ, op. cit., p. 111. 59 DINIZ, Débora; RIBEIRO, Diaulas Costa. Aborto por Anomalia Fetal. Brasília: Letras Livres, 2003, p. 44.

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sobrevida de, no máximo, algumas horas após o parto. Não há qualquer possibilidade de

tratamento ou reversão do quadro de anencefalia, o que torna a morte inevitável.

O juiz fundamentou a legitimidade desse primeiro aborto por anencefalia baseado

em que o princípio de proteção à vida não estaria sendo violado uma vez que, um feto

anencefálico não teria chance de sobrevida. Porém, o que o alvará reconheceu como legítimo

foi o pedido de aborto feito por uma mulher grávida de um feto inviável, pois a pretensão era

de solucionar o drama individual e familiar de uma mulher que gestava um feto anencefálico

cujo diagnóstico era letal e irreversível.60

Desde então inúmeras expedições de alvarás judiciais vem contemplando a

autorização para a antecipação do parto nos casos de anencefalia.

O Conselho Federal de Medicina (CFM) e os Conselhos Regionais emitem

pareceres favoráveis à pratica do aborto de feto portador de anencefalia desde a década de 80,

exigindo, portanto, a certeza quanto à exigência da anomalia, comprovada através de no

mínimo (2) duas ultra-sonografia, avaliação psicológica da gestante, consentimento desta e do

pai da criança e a autorização judicial.

No mesmo sentido, a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e

Obstetrícia (FEBRASGO) também se posiciona sendo favorável a possibilidade de escolha

dos pais quanto a interrupção da gravidez, estando, igualmente, a intervenção médica

condicionada à autorização judicial.

A vontade de suspender a gestação somente cabe a quem “carrega o fardo”,

ninguém mais que a mãe sabe a tristeza de trazer no ventre, um ser, sem uma provável vida.

Neste caso a saúde psíquica da gestante merece ser guarida, bem como a saúde física.61

Essencial lembrar que de uma gravidez frustrada podem advir danos psicológicos

graves, que influem diretamente na saúde da mulher.

De acordo com a exposição de Alfredo José de Oliveira Gonzaga, das decisões que

deferiram a realização do aborto em virtude de anomalias encontram-se o fundamento de que,

“apesar da legislação penal brasileira não prever expressamente o aborto para tais casos,

impõe-se o deferimento ante a comprovada inviabilidade da vida extra-uterina do feto e dos

danos psicológicos à gestante”,62 não se podendo censurar o comportamento por

inexigibilidade da conduta conforme o dever.

60 Ibid. p. 44-45. 61 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 580. 62 GONZAGA, Alfredo José de Oliveira. Do Aborto Eugênico. Revista Júris Síntese. Mai-jun, 2004, p. 47.

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O outro posicionamento afirma o dano psicológico à gestante, uma vez

comprovado a hipótese no aborto necessário. Afirma ainda Gonzaga, “algumas decisões

denegatória da autorização foram baseados na impossibilidade jurídica do pedido, uma vez

que o aborto, nestas hipóteses, não encontra respaldo na legislação penal pátria”.63

Na falta de previsão legal ante a lacuna da Lei, não pode o judiciário esquivar-se

de julgar a lide que lhe é apresentada, sob pena de ferir princípios básicos do Direito, em

especial, os princípios constitucionais da inafastabilidade do poder judiciário e do acesso à

justiça.

Contudo, ainda pode-se invocar o contido nos artigos 4º e 5º, da Lei de Introdução

ao Código Civil64, bem como o artigo 126, do CPC65. Sendo os princípios fonte do Direito,

cabe ao juiz interpretar e integrar a norma em que há lacuna proveniente da evolução dos

tempos.

2.8 Conceito de Anencefalia

Segundo o conselheiro do CFM, Jorge Luiz Sapucaia Calabuch,

A anencefalia é o mais severo grau de má-formação congênita do sistema nervoso central definida pela ausência de grande parte do cérebro, restando basicamente o tronco cerebral, que daria precária garantia das funções vitais basais; os hemisférios cerebrais mesmo com algum desenvolvimento são irreconhecíveis, visto que todo tecido origina uma massa fibrótica e hemorrágica basicamente formada de neurônios66 e glia67. Há ausência do crânio e do próprio couro cabeludo deixando ao nascer o encéfalo68 exposto, também existem anomalias faciais e palatinas bem como alterações em órgãos internos em até 30% das vezes. Sua gênese provém do primeiro mês de gravidez, com hipóteses conflitantes de origem poligênica e multifuncional. Metade dos fetos morre in-útero e os que nascem vivos, quase na sua totalidade, morrem ao 1º dia de vida. Apenas em torno de 0,5% a 2% sobrevivem uma semana. O diagnóstico é preciso e

63 Ibid., p. 47. 64 Art. 4º, da LICC. Quando a Lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito. Art. 5º, da LICC. Na aplicação da Lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum. 65 Art. 126, do CPC. O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da Lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais do direito. 66 Célula nervosa formada pelo corpo celular e por dois prolongamentos: dentritos e o axônio. – Grande Dicionário Brasileiro de Medicina. Ed. Maltese –. 67 (mesmo que neuroglia) tecido de sustentação das células nervosas. – Grande Dicionário Brasileiro de Medicina. Ed. Maltese –. 68 Parte do sistema nervoso contida na cavidade de crânio e que compreende o cérebro, o cerebelo e o bulbo raquiano. – Grande Dicionário Brasileiro de Medicina. Ed. Maltese –.

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precocemente confirmado por ultra-sonografia em torno da 10ª semana de gravidez, não existe possibilidade de cura, melhoria ou paliação.69

Pela literatura médica a anencefalia é definida como:

Má-formação fetal congênita por defeito de fechamento do tubo neural durante a gestação, de modo que o feto não apresenta os hemisférios cerebrais e o córtex70, havendo apenas resíduo do tronco encefálico. Conhecida vulgarmente como “ausência de cérebro”, a anomalia71 importa na inexistência de todas as funções superiores do sistema nervoso central-responsável pela consciência, cognição, vida relacional, comunicação, afetividade e emotividade. Restam apenas algumas funções inferiores que controlam parcialmente a respiração, as funções vasomotoras e a medula espinhal. Como é intuitivo a anencefalia é incompatível com a vida extra-uterina, sendo fatal em 100% dos casos.72

2.9 Aspectos Religiosos do Aborto Anencefálico

As abordagens religiosas nesse tema são complexas e sensíveis. Mas o Estado

brasileiro é laico, sendo importante ressaltar que uma possível decisão no plenário do STF não

será uma “imposição da prática de interrupção da gestação dos fetos anencefálicos, mas sim

uma autorização para que o procedimento médico, desde que autorizado pela gestante ou pela

família, seja realizado sem criminalização do ato”.73

Como dito anteriormente, a posição da igreja quanto ao aborto, é contraria

independente da necessidade deste ou não, e declara ainda que os homens são apenas

administradores da vida. A decisão ou não pelo aborto algumas vezes pode ter interferência

por este posicionamento da Igreja, o que faz com que a religião e a consciência tenha valores

de muita importância para alguns juízes na hora de se manifestar favoravelmente ou contra o

alvará para retirada de feto anencefálico.

É possível encontrar diversos posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais

quanto ao aborto por anencefalia na legislação brasileira. A questão é polêmica, gerando

69 BUENO, Silveira. Minidicionário da Língua Portuguesa. São Paulo: FTD, 2000. 70 Córtex é a camada de substância cinzenta que reveste a superfície do hemisfério cerebral. Área mias nobre que comandam praticamente todas as funções do organismo. In ANIS: Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero. Anencefalia: o pensamento brasileiro em sua pluralidade. Brasília: Anis, 2004. p. 94. 71 A anomalia é uma irregularidade ou disfunção no desenvolvimento fetal. In ANIS: Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero. op. cit., p. 91. 72 Conselho Regional de Medicina do estado da Bahia. op. cit., p. 74-75. 73 PRADO, Antonio. Sobre a interrupção da gestação de feto anencefálico. IBCCRIM, ano 12, n. 145, dezembro de 2004, p. 2.

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discussão e controvérsias em diversos aspectos tanto éticos, como religiosos, sociais,

jurídicos, políticos, e outros.

Apesar de se tratar de um Estado laico, a religião continua influenciando no meio

social, e dessa forma, no modo de pensar de todos que a compõem. Desse modo, a Igreja se

manifestou sobre diversos assuntos e não podia ser diferente em relação ao aborto. No

concílio Vaticano II, os Bispos de todo o mundo assinaram:

Tudo que atenta contra vida, como qualquer espécie de homicídio, o genocídio, o aborto, a eutanásia e o próprio suicídio voluntário [...] todas estas práticas e outras semelhantes são dignas de censura. Enquanto mancham a civilização humana, desonram mais os que as praticam do que aqueles que as sofrem como vítimas. 74

As pessoas, que por motivos religiosos não quiserem realizar a interrupção dessa

gestação, têm toda a liberdade garantida pela Constituição Brasileira.

O argumento da sacralidade da vida é significativo, sendo errado matar seres

descendentes da nossa espécie e portanto, matar seres que tem alma, mas errado ainda. A vida

para eles tem origem e sentido transcendental. Há que se respeitar os que defendem esses

dogmas, e se forem prejudiciais a terceiros, garantir seu exercício pleno.

Porém, não se pode admitir que dogmas religiosos sejam impostos através do

Estado laico, a cidadãos com outras convicções.

A decisão do Ministro Marco Aurélio Mello em liminar concedida pelo STF em

junho de 2004, em resposta à Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental

apresentada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, onde o relator do

processo já supracitado decidiu solitariamente pela concessão da liminar em resposta à

Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental.75

Liminar esta que reconheceu a tese ética médica e jurídica apresentada pela

Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde e desde sua concessão dezenas de

mulheres em todas as regiões do país já anteciparam o parto sem recorrer à justiça.

Diversos setores da sociedade de comunidades científicas e entidades de classe

consideram a liminar um avanço no campo dos direitos humanos, além da demonstração de

uma harmonia entre nosso ordenamento jurídico e os avanços científicos. Porém, esta atitude

74BELO, Warley Rodrigues. Aborto: Considerações Jurídicas e Aspectos Correlatos. 1 ed. V. 1. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 136. 75 Conselho Regional de Medicina do Estado da Bahia. op. cit. p. 10-11.

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na visão religiosa, ou seja, no posicionamento da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

(CNBB) foi manifestada em nota da sua presidência em julho de 2004, ipsis litteris:

Consideramos que essa decisão não é aceitável porque decide pela morte de seres humanos inocentes e indefesos. A Constituição brasileira veta isso. E a ética também, pois o direito à vida é o primeiro e mais fundamental de todos os direitos, a base de todos os demais. A condição em que se encontra o ser humano não importa: se ele está doente, se está em fim de vida, se gostamos dele, se sua existência nos faz sofrer, tudo isso é secundário em relação ao direito primário a vida. Fetos e bebês anencefálicos são seres vivos, são seres humanos: e esta convicção tem inquestionável base científica. Portanto, devem ser respeitados como seres humanos.76

A igreja católica está pronta para oferecer toda a compreensão pelo drama que tais

mães podem estar enfrentando. A discriminação e o preconceito em relação a elas seriam

totalmente injustos. “A mulher que assume a maternidade, mesmo quando seu feto tem

alguma anomalia ou deficiência, mostra uma dignidade e grandeza moral que merece toda

nossa admiração”77.

O Rabino Henry Sobel, Presidente do Rabinato da Congregação Israelita Paulista,

fala pela tradição judaica, defendendo que “a antecipação do parto em caso de anencefalia

deve ser permitida, pois obrigar uma mulher a manter a gestação nesse caso é sim compatível

a um ato de tortura”78.

O judaísmo tem alas diferentes. Tem uma ala conservadora e uma mais liberal.

Não existe uma posição do judaísmo. “Certamente o judaísmo liberal, de acordo com a minha

perspectiva vai apoiar a decisão do Supremo Tribunal Federal”.79

A Igreja Universal do Reino de Deus, pelas palavras do Bispo Marcelo Silva:

A posição da Igreja Universal é sempre a favor da qualidade de vida e do bem-estar das pessoas. Temos que analisar caso a caso e ouvir o que diz a medicina. Nos casos de anencefalia, onde o bebê não possui cérebro e a probabilidade de morte é de 100%, podemos gerar um risco de morte para a mãe; claro que somos a favor.80

A Associação Brasileira de Umbanda Cultos Afro-Brasileiros e Ameríndios,

representada por Lairton de Oxum, é da seguinte opinião:

76 ANIS: Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero. op. cit., por SCHERER, Dom Odilo Pedro. p. 45. 77 Ibid., 46. 78 ANIS: Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero. op. cit., por SOBEL, Henry, p. 47 79 Ibid., p. 47. 80 Ibid., por SILVA, Marcelo, p. 48.

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Como espiritualidade acho que não deve haver a antecipação do parto, pois acredito na reencarnação. Mas a opinião de nossa associação é favorável que o STF conceda essa liminar, pois, a decisão depende das próprias grávidas, do lado espiritual de cada uma (...). Nos damos o conforto explicando a ela a espiritualidade como um todo, através de orações, de preces, porque essa criança é um espírito, então como espírito nós temos também que olhar por este lado.81

De acordo com os ensinamentos budistas tibetanos, para que um ser venha a ter

uma completa existência são necessários 3 fatores: espermatozóide, óvulo e mente. Defendem

que:

Se um corpo veio a se formar sem um órgão, impossibilitando que este ser venha a ter uma existência independente (não morrer após o parto), é porque houve a falta de um ou mais dos três fatores. No budismo não há pecado. Há carma, isto é, lei de causa e efeito. A gestante que será responsável pelo efeito dos seus atos e a decisão de seus atos diz respeito apenas a ela. Por haver a consciência da condição do feto, com certeza será um motivo de grande tortura mental para a gestante. A expectativa é de que a decisão do STF seja em beneficio para ambos: mãe e feto.82

A Federação Espírita Brasileira representada por seu diretor Geraldo Campetti,

defende:

À luz da doutrina espírita, o único aborto que seria autorizado pela lei divina seria o aborto terapêutico em que a mãe pode estar correndo risco de vida, então, neste caso, seria preferível o aborto do feto do que a mãe correr risco de vida. A respeito da antecipação do parto é visto por nós como um tipo de aborto, e é um aborto provocado e, no nosso entendimento, não deve ser realizado. O STF já autorizou o procedimento, mas, no nosso entendimento, seria interessante suscitar o debate para uma melhor análise da situação. Entendemos que o embrião anencefálico tem vida que pulsa num coração e dessa maneira, existe uma vida que merece ser respeitada. Não entendemos que a mãe se sinta como sendo torturada mantendo uma criança, um feto nessas condições, porque ela pode ver a situação de uma forma diferente como mãe, abrigando em seu útero, em seu seio, uma criança, um ser que é filho e que, se está numa situação dessas, existe alguma razão, que possui uma perspectiva espiritual. Não podemos limitar a análise dessa questão meramente ao aspecto material da vida. O espiritualismo é a favor do não aborto. O aborto só deve ser provocado no caso de atentar contra a vida da mãe. Existe um princípio de vida. A ligação do espírito ao corpo no momento da concepção, essa união se dá através de um corpo espiritual que chamamos de perispírito. É a união que não se dá apenas pelo cérebro mas também pelo coração. Então não podemos interromper tirando o direito dessa vida, mesmo que temporariamente e mesmo que se alegar que irá utilizar esses órgãos para outras vidas, o que é muito nobre, não deixa de cometer um aborto.83

81 ANIS: Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero. op. cit., por OXUM, Lairton de., p. 49. 82 Ibid., por TARTCHIN, Lama, p. 50. 83 Ibid., por CAMPETTI, Geraldo, p. 51-52.

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O estado democrático é laico, conforme previsão constitucional, devendo legislar

sobre temas que permitam a ordem social e a convivência atingir as diversas escolhas morais

firmadas nas crenças de cada um. Uma vez originada e interpretada a Lei de acordo com

determinadas diretrizes religiosas, estar-se-á impedindo a liberdade de credo por meio de

normas imperativas e cogentes, ou seja, emanadas do Estado, quando há tempos está superada

a idéia de que a igreja deve se fazer valer dos aparelhos do Estado, para garantir que todos os

cidadões sigam suas diretrizes.84

A Constituição ressalva que a liberdade de convicção religiosa abrange inclusive o

direito de não acreditar ou professar nenhuma fé, devendo o Estado respeito ao ateísmo.

Para Diniz o aborto eugenésico é retrocesso, pois o compara à era pagã na Grécia

onde as crianças com deformidades eram sacrificadas, somente importava as perfeitas. O

aborto eugenésico é uma barbaria, onde se busca uma sociedade com pessoas perfeitas,

comparando ao nazismo. 85

Outro ponto que gera conflito de idéias é de onde se considera o feto um ser com

capacidade ou condições de obter, se nascer com vida, direitos previstos no Código Civil

como o de personalidade. No Brasil, se considera o momento da concepção o início da vida

intra-uterina.

As pessoas que por motivo de fé religiosa não quiserem realizar a interrupção

desta gestação, têm toda a liberdade garantida pela Constituição Federal. Há de se respeitar os

dogmas religiosos, mas, o que não se pode admitir é que sejam estes, impostos através do

Estado Laico, a cidadãos com outras convicções.

2.10 Aspecto Psicológico da Gestante de Fato Anencefálico

O supremo Tribunal Federal está reconhecendo sobretudo o direito de autonomia.

Tal decisão é de foro íntimo do casal. Cada gestante vai encarar a manutenção da gestação em

caso de feto inviável de forma diferente devido à cultura, religião, aspectos políticos e sociais.

Outras diante do prognóstico e da inviabilidade do feto, optam pela interrupção da

gestação, amenizando assim os riscos clínicos de hipertensão, polidrâmnio, eclâmpsia,

convulsões etc., bem como o sofrimento psicológico de passar todos os meses carregando um

feto para aguardar sua morte. Muitos verbalizam o desespero da situação: o fim de um sonho,

84 MORAES, op. cit. p. 75. 85 DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 54.

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vendo a barriga crescer, sentindo os movimentos fetais, traduzindo este processo como

tortura.86

Cabe, baseado no princípio da dignidade humana (direito fundamental), à gestante

a decisão tanto de manter quanto de interromper a gestação. É fundamental que tenha suporte

legal, apoio psicológico, social, tanto quanto retaguarda médica e hospitalar para tal

procedimento.

É preciso que haja sensibilização por parte das autoridades judiciais e operadores

do Direito sob a ótica do bom senso; visto que não há previsão legal expressa do aborto

anencefálico em nossa legislação penal. A sociedade clama por um modelo de

regulamentação jurídica da matéria; assegurando o direito da mulher de autonomia e decisão.

Estima-se que mais de 3.000 autorizações já foram concedidas no Brasil. É uma

violação da liberdade, da autonomia e dos direito humanos das mulheres proibirem as mesmas

de antecipar o parto. É necessário ajudar essas mulheres porque elas experimentarão uma

situação traumática em suas vidas.

Os métodos de prevenção para a anencefalia são pouco limitados, uma vez que se

trata de condição cuja etiologia é multifatorial, ou seja, envolve fatores genéticos e

ambientais. Não há cura para a anencefalia. “O trabalho de parto costuma demorar de 14 a 16

horas, enquanto os outros partos duram 6 horas.”87

2.11 Os Aspectos Psicológicos da Gestação x Gestação de uma Criança com Anencefalia

A gravidez é um período de transição que envolve a necessidade de reestruturação

e reajustamento. Trata-se de mudanças físicas e emocionais profundas, onde há ambivalência

de sentimentos. A gestante deseja a criança, ao mesmo tempo que a rejeita e a teme.

No caso de uma gravidez em que há riscos, as ansiedades e os medos da mãe são

potencializados. Além das expectativas ditas normais relacionadas a esse período, somam-se

sentimentos de punição e culpa por estar gerando uma criança malformada. Sentimentos de

regressão e fragilidade também são observados88.

Não se trata de desculpabilizar, mas desangustiar. É implicar e retificar. É fazer

perceber qual a sua parte na história. A mãe foi feita para dar vida, sendo sensível a qualquer

86 ANIS: Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero. op. cit., por ANDALAFT, Jorge., p. 29-30. 87 ANIS: Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero. op. cit., por ANDALAFT, Jorge., p. 31. 88 MALDONADO, Maria T.; DICKSTEIN, Júlio; NAHOUM, Jean Cloude. Nós Estamos Grávidos. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 1996.

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atentado à vida que sai dela. Gerar um ser imperfeito é estar atentando contra sua própria

natureza materna.

Segundo Vaucher, a mulher quando grávida passa a se olhar e ser olhada de um

modo diferente. Quando é sua primeira gestação, ao invés de ser apenas esposa, torna-se

também mãe. Mesmo não sendo sua primeira gestação, ocorre da mesma forma certa

mudança de identidade pois, ser mãe de um filho é diferente de ser mãe de dois ou mais, pois

a chegada de cada filho é diferente e interfere na composição familiar (pai, mãe e irmãos).

Algumas vezes toda esta sucessão de mudanças ocorre de maneira tumultuada e rápida89.

Conforme a mesma autora, quando espera o filho, a mulher precisa ajustar-se à

realidade de ser mãe de uma criança e esta nova decisão de assumir este novo papel pode

resgatar conflitos antigos de relacionamento entre mulher e esposo, pai e mãe, outros filhos.

Para Maldonado, numa sociedade como a atual, principalmente na área urbana, a

mulher usualmente trabalha fora, participa no orçamento familiar e desenvolve interesses

profissionais, sociais e econômicos, o fato de engravidar, ocasiona privações reais,

aumentando a tensão, intensificando a regressão e ambivalência, aumentando a preocupação

com o futuro e como conseqüência podendo gerar frustrações, sensação de raiva e

ressentimento, o que impede maior interação com a gravidez e assim torna-a menos

gratificante90.

Conforme Friesner e Raff, existem as manifestações emocionais comuns durante a

gravidez e podem ter ou não relação com fatores externos. Geralmente ocorre aumento da

irritabilidade e da sensibilidade, introversão e passividade, preocupação com o ego e com o

filho que vai nascer, como uma extensão do ego (narcisismo), alteração sexual, podendo

aumentar ou diminuir o apetite, aumento da vida fantasiosa e reação à imagem corporal91.

Segundo Soifer, citando Langer,

O maior ou menor grau de aceitação da gravidez por parte do ambiente social imediato reforça ou não a tendência da mulher para a maternidade. Essa autora afirma que toda a gravidez produz uma situação de maior ou menor conflito entre uma tendência maternal e outra de rejeição. 92

89 VAUCHER, Ana Luisa Issler. Alterações Fisiológicas e Psicológicas Durante o Período Gravídico-Puerperal. Monografia de Graduação do Curso de Enfermagem pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Cascavel, 1999. 90 MALDONADO, Maria T.. Psicologia da Gravidez. 5 ed. Petrópolis: Vozes, 1982 91 FRIESNER, Arlene; RAFF, Beverli. Enfermagem Obstétrica. Tradução J.C. Almeida Moura. São Paulo: Organização Andrei, 1978. 92 SOIFER, Raquel. Psicologia da Gravidez, Parto e Puerpério. Porto Alegre: Artes Médicas, 1980. p. 123.

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Dependendo do estado de equilíbrio emocional em que a mulher se encontra,

dependerá de como a mesma enfrentará sua gestação, bem como será o grau de conflito e

rejeição. O mecanismo de defesa mais útil para resolver o conflito é a negação.

Segundo Ziegel e Cranley, citando Rubin et al, durante os 9 (nove) meses de

gestação, a mulher deve desenvolver tarefas, ou seja mecanismos que possibilitem ela

alcançar objetivos que são descritos brevemente da seguinte maneira93:

1. A aceitação da gestação como uma simbiose com o feto e depois do bebê como indivíduo distinto dela própria numa preparação para a separação física que ocorre no momento do parto. 2. A aceitação do concepto pelos demais entes que lhe são significativos (RUBIN, 1975). 3. A passagem segura para si própria e para o bebê através da gestação, trabalho de parto e parto (RUBIN, 1975). 4. A adoção do papel de mãe.

Conforme Vaucher, a mulher formula estas tarefas ou desenvolve estes

mecanismos de maneira particular, durante o tempo de sua gestação, de modo que uma etapa

pode ser mais significativa que a outra. Deste modo, é necessário que a gestante formule cada

etapa de maneira bem elaborada em cada uma de suas gestações.94

Porém, quando há casos de gestações com anormalidades, como por exemplo a

anencefalia, torna-se mais difícil para a mulher criar estes mecanismos e há alguns em que a

mulher não consegue desenvolvê-los corretamente, tendo como conseqüências alterações

emocionais, necessitando em alguns casos de terapia familiar e em outros tratamentos com

drogas.

Segundo Lopes, tratando-se da saúde mental da mulher, existem riscos de

transtornos psíquicos com prolongamento da gravidez de feto anencefálico. Ainda cita Jorge

de Figueiredo, em comentário ano art. 142 do Código Penal lusitano, lembra que “o perigo de

lesão grave e duradoura pode voltar-se à saúde psíquica da mulher e, assim, a estados

neuróticos de depressão, de neurastenia, de perturbação da consciência...”95

93 ZIEGEL, Erna E.; CRANLEY, Mecca S. Enfermagem Obstétrica. 8 ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1985. 94 VAUCHER, op. cit. 95 LOPES, Silvia Regina Pontes. Vida Humana e Esfera Pública: contribuições de Hannah Arendt e de Jurgen Habermas para questão da anencefalia no Brasil. Belo Horizonte: Argumentum, 2008. p.172.

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Hoje em dia, grande parte dos diagnósticos de anomalias congênitas é realizada

através de ultra-sonografia. Os outros diagnósticos são efetuados em conjunto com exames

laboratoriais específicos96.

Nos anos de 1990 atingiu-se o grau atual de refinamento dos aparelhos ultra-

sonográficos com a aquisição da informática possibilitando as imagens tridimensionais e

avanços na biologia molecular; podendo-se diagnosticar muitas doenças genéticas no período

pré-natal e até mesmo pré-implantacional97.

A medicina é capaz de detectar um grande número de afecções em estágio precoce

da gravidez, mas apenas uma parte delas é passível de tratamento, outras incidirão sobre

anomalias incompatíveis com a vida extra-uterina, despertando discussões sobre o

abortamento. Existindo justificativas contrárias e favoráveis à interrupção da gravidez.

2.12 O Código Penal

No Brasil se busca a legalização do aborto de forma geral, como uma opção da

mãe e familiares, sem a necessidade de uma autorização judicial, mas é possível em caráter

específico e de forma legal, como previsto no código penal.

O Código Penal vigente prevê no seu Art. 128 duas hipóteses onde não se pune o

aborto praticado pelo médico, quais sejam:

I) se não há outro meio de salvar a vida da gestante;

II) se a gravidez resulta de estupro, o aborto é precedido de consentimento da

gestante, ou quando incapaz de seu representante legal;

Em 1990 foi proposta pelo conselho Federal de medicina a reformulação do

código penal. Especialmente no artigo 128, constando uma exclusão de antijuridicidade.

Não constitui crime o aborto praticado por médico: se comprova, através de diagnóstico pré-natal, que o nascituro venha nascer com graves e irreversíveis mal formações físicas e psíquicas desde que a interrupção da gravidez ocorra até a vigésima semana da gravidez e seja precedida do parecer de dois médicos diversos daquele que sob direção o aborto é praticado.98

96 FRIGÉRIO, Marcos Valentin. Aspectos bioéticos, médicos e jurídicos do abortamento por anomalia fetal grave no Brasil. Revista brasileira de ciências criminais - RT, São Paulo, ano 11, n.41, p. 273, 2003. 97 FRIGÉRIO, Marcos Valentin. Aspectos bioéticos, médicos e jurídicos do abortamento por anomalia fetal grave no Brasil. Revista brasileira de ciências criminais - RT, São Paulo, ano 11, n.41, p. 273, 2003. 98Ibid., p. 278.

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Diante do crescente número de alvarás para aborto de feto anencefálico, ocorreu

uma solicitação do Conselho Nacional de Medicina para que se acrescentasse no Art. 128 do

código penal mais um inciso, permitindo o aborto em caso de feto anencefálico.

Esta solicitação ocorreu devido aos avanços tecnológicos, ao desenvolvimento

mundial de técnicas de medicina e exames juntamente com a mudança de comportamento das

sociedades. Houve uma alteração social com o passar dos anos e as mudanças foram

inevitáveis, sendo assim, o aborto perdeu a condição de pecado e passou a ser uma escolha da

mulher, sendo autorizado em alguns países.

A medicina determina o feto anencéfalo como um ser que não tem vida, nem

condições de sobreviver extra-uterinamente, então como se explica o fato do feto respirar, se

alimentar e se movimentar no útero materno se não tem condições de se desenvolver? Este

feto não merece ser protegido? Talvez esteja se buscando uma raça sem deformidades, onde a

beleza se torna mais importante que a vida e as condições que cada ser pode ter de

desenvolvimento e vida.

O progresso científico existe para promover e facilitar a nossa vida com eqüidade

ética e justiça social, não para antecipar decisões sobre a vida de cada ser, também

constituindo a razão de ser do direito.

2.13 Requisitos para a Realização da Antecipação do Parto

O consentimento para o aborto de feto anencefálico será através da expedição de

Alvará - decisão judicial que garante a legalidade e a permissão de determinada ação. O

pedido de Alvará deverá ser por meio de advogado regularmente constituído, ao poder

judiciário (vara criminal) para a realização da antecipação do parto. Pareceres clínicos devem

ser elaborados por três médicos, devendo constar a descrição das anomalias encontradas,

juntamente com os exames (ultra-sonografias) realizados para se estabelecer o diagnóstico

inviabilizando sua vida extra-uterina.99

Deverá constar uma declaração da gestante/cônjuge, firmando o desejo de

interromper a gestação; parecer psicológico ou psiquiátrico da mesma, demonstrando o risco à

sua saúde psíquica. Depois de concedido o Alvará, poderá procurar uma unidade de saúde

para a realização do procedimento.

99 FRIGÉRIO, Marcos Valentin. Aspectos Bioéticos, Médicos e Jurídicos do Abortamento por Anomalia Fetal Grave no Brasil. Revista brasileira de ciências criminais, RT, ano 11, janeiro-março, 2003, p. 282.

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Vale lembrar que é direito do médico recusar a realização dos atos que embora

permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência (artigo 28 do Código de

ética Médica). Assim, como não há risco iminente de vida, nenhum médico poderá ser

obrigado a realizar o procedimento, podendo transferir a outro profissional esse atendimento.

2.14 Novas Tendências sobre a Autorização Jurídica da Interrupção de Gravidez de

Feto Anencefálico

Esta questão já vem sendo discutida há algum tempo, e os tribunais superiores

deixam de analisá-la por perda de objeto, conforme cita Lopes “o meritun causae, devido ao

superveniente nascimento do feto anencéfalo”100.

Por vezes, situações foram julgadas e com decisão favorável ao aborto de gestação

com anencefalia, e através de hábeas corpus, foi cassada a limiar, sob o argumento de que

apenas ao legislador caberia esta decisão.

Ainda segundo Lopes, em um destes casos o Ministro Relator Joaquim Barbosa

“considerou o feto anencéfalo um simples desenvolvimento biológico e não um vida

juridicamente tutelável. A ação restou, entretanto, prejudicada, em virtude do ulterior

nascimento do bebê.”

A partir de junho 2004, através da Confederação Nacional dos Trabalhadores de

Saúde – CNTS, com a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental, a ADPF nº 54-

8/DF, reiniciou-se a discussão pelo STF, onde a entidade autora pleiteia a atribuição de

interpretação conforme a Constituição vigente, aos arts. 124, 126, caput, e 128 nos incs. I e II,

do Código Penal, para que se reconheça a licitude do chamado “aborto de feto anecéfalo”, sob

a alegação de não se tratar de aborto, mas sim de “antecipação terapêutica do parto”.101

Conforme o mesmo autor, em julho de 2004 foi deferida a medida liminar

reconhecendo o direito da gestante à realização do aborto, desde que com laudo médico de

atestasse à má formação, onde, prevaleceria à dignidade da mulher sobre a vida do feto. Esta

liminar, deferida pelo Ministro Marco Aurélio foi cassada parcialmente, alegando-se que não

havia justificativa para manutenção da mesma, visto que há pendência de decisão quanto à

admissibilidade da ação.

Diversas entidades tentaram participar desta ação, porém, os pedidos de ingresso

foram negados, e segundo Lopes, até o momento a audiência pública ainda não foi realizada,

100 LOPES, op. cit. p.158 101 LOPES, op. cit. p. 158

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e que o controverso tratamento jurídico da conduta de interrupção da gravidez de feto

anencefálico, está prestes a alcançar o desfecho final.

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3. DISCUSSÃO

Com este trabalho foi possível confirmar, através do referencial bibliográfico, que

infelizmente, a obtenção de autorização para a interrupção de uma gestação de feto

anencefálico ainda fica sob a decisão da parturiente, quando o aborto não ocorre

espontaneamente enquanto aguarda decisão judicial. Esta gestante chega ao fim do período

gestacional, sendo necessário passar por todas as etapas de pré-parto, parto e pós-parto, porém

sem expectativa materna alguma, pois o ser que acaba de nascer, tem um prognóstico limitado

e pouco otimista.

O trabalho de parto e parto, que geralmente são as duas etapas mais dolorosas

para as gestantes, nestes casos, tornam-se mais dolorosas ainda, pois é sabido que controverso

ao cotidiano, esta mãe possivelmente não sairá com seu filho nos braços e o puerpério, que é

uma fase que muitas mulheres passam sem sentir as alterações que ocorrem, nestes casos,

tornam-se mais susceptíveis à agravos psicossomáticos, conforme citado no decorrer deste.

Com o objetivo de apresentar aspectos referentes ao bem jurídico tutelado pelos

tipos penais previstos nos artigos 124, 125, 126 e 128 do Código Penal relacionados à prática

do aborto, abordar o direito do embrião e do nascituro, ou seja, o direito de nascer previsto na

Constituição Federal e no Código Civil, foi possível verificar que ainda não se tem um

desfecho a respeito deste assunto, pois aguarda-se a decisão referente a ADPF 54-8/DF.

Através da fundamentação teórica acerca da anencefalia, abordando os aspectos

médicos, jurídicos, religiosos e psicológicos, constatou-se que existe muita controvérsia

acerca do aborto, independente da decisão tomada pois, existem valores agregados à cultura.

São preceitos que em alguns casos interferem nas tomadas de decisões tão difíceis para

mulher e que por questões morais, éticas e legais, acabam por ser impedidas.

Assim, enquanto não há uma decisão unânime, enquanto não ocorre a recontrução

do ordenamento jurídico brasileiro referente a interrupção da gestação em casos de feto

anencefálico, evidencia-se a necessidade de uma proposta para a elaboração de projeto e

implantação de um programa, visando o acompanhamento da mulher gestante ou puérpera,

quanto aos aspectos psicológicos e psiquiátricos quando couber, sendo subsidiado pelo

Sistema Único de Saúde (SUS).

Quaisquer pessoas podem passar por períodos muito difíceis de lidar,

possivelmente momentos de alegria, tristeza, euforia, medo do desconhecido, porém todos são

capazes de manejar eles de maneira a tentar resolvê-los, uns com maior facilidade, outros com

menor, necessitando diversas vezes de ajuda.

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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A implantação de um Programa de Atendimento às Mulheres com Gestação de

Feto Anencefálico teria por objetivo promover a superação da dor e estado de luto dos pais e

familiares, através do acompanhamento no atendimento hospitalar a estas gestantes e

próximos, desde o momento do diagnóstico, sendo estendido durante todo o processo

gestacional até a ocorrência da interrupção desta ou do parto, bem como dando continuidade

nas próximas seis (06) semanas após o parto, período conhecido por puerpério, onde a

susceptibilidade de desenvolver psicoses está aumentada.

A equipe prevista para subsidiar este programa seria composta pelos seguintes

profissionais:

- 01 Responsável Técnico e Administrativo, sendo um médico especialista em

obstetrícia, reconhecida pelo MEC, com carga horária de 40 horas semanais;

- 01 Responsável Técnico e Administrativo, devendo ser enfermeiro com carga

horária de 40 horas semanais;

- 01 Médico Psiquiatra, com regime de escala de 24 horas, no sistema de sobre-

aviso;

- 01 Assistente Social com regime de carga horária de 40 horas semanais;

- 01 Psicólogo com regime de carga horária de 40 horas semanais;

- 01 Representante de cada Entidade Dogmática, em regime de sobre-aviso;

- 01 Auxiliar Administrativo.

Esta composição de equipe multidisciplinar tem por objetivo qualificar o

atendimento à paciente, proporcionando-lhes fortalecimento psicológico, espiritual, bem com

reorganização estrutural de sua vida para a integração e convívio social, reduzindo assim

qualquer culpabilidade e traumas advindos da ocorrência natural do abortamento ou da

decisão tomada.

Com relação à área física e instalações, deverá se enquadrar nos critérios e normas

estabelecidas pela legislação objetivando o atendimento em acomodações privativas,

promovendo desta forma assistência direcionada e humanizada.

Quanto às rotinas de funcionamento e atendimento, os centros deverão possuir

normas e rotinas escritas e atualizadas, voltadas ao propósito do programa, realizadas pelos

responsáveis técnicos do programa.

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Os cadastramentos, avaliações e acompanhamentos deverão ser informados à

Coordenação do Sistema do Ministério da Saúde e à Secretaria Estadual de Saúde, por meio

de relatório anual.

Levando em consideração o dito acima, fica como proposta ao governo do estado

do Paraná, a elaboração do projeto para estruturação do referido programa, para que estas

mulheres que vem sofrendo com a culpa por optar pela interrupção da gestação ou pela

frustração em não gerar o feto perfeito, levando-a ao abortamento, tenham possibilidade de

obter ajuda visando restabelecer a saúde àquelas que não conseguiram suportar a dor e o

desequilíbrio desencadeados por esta árdua experiência.

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