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UNIVERSIDADE BANDEIRANTE DE SÃO PAULO ANDRÉA NEVES SOEIRO O IMPACTO DA EPILEPSIA SOBRE A VIDA E OBRA DE DOSTOIÉVSKI: Uma análise de “O Idiota” OSASCO 2006

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UNIVERSIDADE BANDEIRANTE DE SÃO PAULO ANDRÉA NEVES SOEIRO

O IMPACTO DA EPILEPSIA SOBRE A VIDA E

OBRA DE DOSTOIÉVSKI: Uma análise de “O Idiota”

OSASCO

2006

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ANDRÉA NEVES SOEIRO CURSO DE PSICOLOGIA

O IMPACTO DA EPILEPSIA SOBRE A VIDA E OBRA DE DOSTOIÉVSKI: Uma análise de “O Idiota”

Monografia apresentada como

exigência à Comissão Julgadora

da UNIBAN para obtenção do

grau de psicólogo orientado pela

Profa. Dra. Jurema Teixeira

OSASCO 2006

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FOLHA DE APROVAÇÃO Andréa Neves Soeiro O impacto da epilepsia sobre a vida e obra de Dostoiévski: Uma análise de “O Idiota” Trabalho de Conclusão de Curso

Universidade Bandeirante de São Paulo

Curso de Psicologia

Data de aprovação: ______ / ______ / ______

Orientador:

Nome: Jurema Teixeira

Titulação: Profª. Drª. Em Ciências Sociais

Assinatura: ________________________________

Instituição: Universidade Bandeirante de São Paulo

Banca Examinadora:

Nome: Jurema Teixeira

Titulação: Profª. Drª. Em Ciências Sociais

Assinatura: ________________________________

Instituição: Universidade Bandeirante de São Paulo

Nome: Luiz Carlos Tarelho

Titulação: Prof. Dr. Em Estudos Psicanalíticos

Assinatura: ________________________________

Instituição: Universidade Bandeirante de São Paulo

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Resumo

O presente trabalho tem como idéia central analisar o impacto da epilepsia na obra de Fyódor Mikhailovitch Dostoiévski (1821-1881), através da análise de um de seus romances, a obra “O Idiota” (1869). Para tanto, esta pesquisa se utiliza da Psicanálise, Neuropsicologia e da Literatura para a compreensão da inter-relação existente entre estes três ramos do conhecimento humano, que nos levarão a entender as conseqüências da epilepsia, sofrida por Dostoiévski (1869), em “O Idiota” (1869).

Palavras chave: Epilepsia. Dostoiévski, Mikhailovitch Fyódor, 1821-1881. Psicanálise.

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Parecer do Professor Orientador Este trabalho tem como objetivo uma compreensão psicanalítica do romance “O Idiota” de Dostoiévsky, partindo da hipótese que a epilepsia do autor é o ponto nevrálgico do principal personagem: o príncipe Míchkin. Ponto central e nevrálgico pois Andréa vai desvelando que para além, das questões neuróticas que cada ser humano enfrenta, outras da existência colocam o sujeito diante de si mesmo. As crises de epilepsias são , na verdade, expressões de nossas quedas e fraturas que expõe nossa condição de desamparo e orfandade. Herói, cavaleiro e vítima, Míchkin é a expressão de uma busca para poder encontrar-se. Andréa Soeiro fez um trabalho que merece destaque pois apresenta Míchkin como a expressão de nossa desterritorialização já descrita por Guattari, nossa própria estranheza cotidiana.

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1. Introdução

A aproximação entre Literatura e Psicanálise dá-se de maneira

profunda e diversa, o próprio Freud (SCLIAR, 2006)

inspirou-se em obras literárias na elaboração de suas teorias,

essa relação tem em si um ponto em comum: a palavra, a

palavra como matéria prima, Freud (STARTE, 2006) pensou

o sujeito a partir da palavra e partindo desse princípio pensou

uma prática onde os problemas psíquicos, conflitos, desejos,

pulsões etc, são expressos através das palavras, teoria e

prática expressam o campo das emoções através do discurso.

Entendemos a Psicologia através de uma de suas raízes na

Filosofia, assim os gregos já se preocupavam com as

conseqüências do poder da palavra sobre as pessoas, Platão

(na República) afirmava que o poeta conhecia o “segredo de

suscitar emoções” (MENESES, 1995, p.15), Freud

(MENESES, 1995) parodiou Shakespeare ao afirmar: “Os

poetas são aliados muito valiosos, cujo testemunho deve ser

levado em alta conta, pois costumam conhecer toda uma vasta

gama de coisas entre o céu e a terra com as quais o nosso

saber ainda não nos deixou sonhar, poetas e escritores estão

bem adiante de nós, gente comum, no conhecimento da

psique já que nos nutrem em fontes que ainda não tornamos

acessíveis à ciência” (MENESES , 1995, p.14).

Freud (STARTE, 2006) afirmou serem os escritores

psicanalistas “avant la lettre” (STARTE, 2006) antes de

existir a Psicanálise os escritores já intuíam com grande

precisão a dinâmica inconsciente, e não por acaso o próprio

Freud (STARTE, 2006) buscou em Sófocles o que este já

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havia intuído: a dinâmica da estruturação do sujeito na

tragédia Édipo rei, base da teoria psicanalítica sobre o

Complexo de Édipo.

Os grandes escritores intuíam, representavam e simbolizavam

facilmente o que Freud (STARTE, 2006) conseguia

penosamente através de seu trabalho clinico, nesse sentido as

artes, em especial a Literatura, criam sentido onde

aparentemente não existe e estão muito próximas da

Psicanálise pelo princípio de também esta, tentar dar um

sentido onde está o sem sentido, o caótico.

Os escritores, segundo Freud (MENESES, 1995) eram vistos

como pessoas incomuns, com habilidades especiais para

entrarem em contato com os afetos, com o mundo do id e

assim estão próximos das “fontes inconscientes” (STARTE,

2006), o conhecimento desses faz-se por via da intuição, eles

trazem para o plano da linguagem a imagem do desejo,

segundo o fundador da Psicanálise a arte é uma reconciliação

dos princípios do prazer e da realidade.

Num processo iniciado por Freud (MENESES, 1995) a

Literatura tornou-se fonte para a denominação de categorias

constituintes da Psicanálise: Édipo, narcisismo, sadismo, entre

outros, no entanto a Literatura chega a quase instituir

arquétipos de comportamento humano: “bovarysta,

quixotesco, macunaímico” (MENESES, 1995, p.15).

A Literatura revela uma realidade que é acima de tudo, a

realidade da alma humana, em ambas a relação sujeito/objeto

é uma relação de sobreposição onde o sujeito e o objeto

confundem-se: “o sujeito é o próprio objeto da busca”

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(MENESES, 1995, p.16).

A busca da verdade sobre si mesmo é o que move o homem,

Psicanálise e Literatura tem em comum a leitura do humano

sem deixar as nuances nas quais está envolvido o indivíduo, o

grupo social, o contexto sócio-econômico e nesse ponto a

Psicanálise tem mais uma função: a interpretação da cultura.

Psicanálise, Literatura e Inconsciente A Psicanálise, como já foi dito, oferece uma leitura do

humano, porém sob o ponto de vista da Literatura, a

Psicanálise promove um instrumento de leitura, considerando

a abordagem psicanalítica como recurso de interpretação,

revelação e desvendamento, origina-se de raízes semelhantes

às da leitura ideológica. Leituras desmascaradoras filiam-se a

uma preocupação com as causas e condicionamentos da obra

literária sejam elas sociais ou psíquicas; ambas levam a um

desvendamento do real.

A coerência entre a análise ideológica e a leitura psicanalítica

evidencia-se: “Assim como é nos atos falhos que aflora o

inconsciente de uma pessoa é nas fraturas e impasses da

consciência de um texto que se capta a sua ideologia”

(MENESES, 1995, p.18).

Da relação entre a arte da palavra e a ciência do inconsciente

dois conceitos devem ser considerados: a memória e a

eficácia da palavra.

Sobre a memória pode-se relacioná-la com a ficção de um

texto, em seu trabalho Lembranças Encobridoras (apud

MENESES, 1995), Freud mostra o quanto uma lembrança

pode ser uma construção, uma ficção, nesse texto ele conclui

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que a memória não é confiável porque nela também há o

desejo, daí depreende-se a relação entre o “rememorar” e o

inventar.

A importância do recordar no processo analítico faz-se através

da palavra, poder nomear o que anteriormente era sentido e

vivido, fazer a ligação com o mundo simbólico; A Literatura é

a “arte da palavra” (MENESES, 1995, p.36) e a Psicanálise

trabalha efetivamente com o discurso, a eficácia de um

tratamento se faz através da palavra, vinculando inteligência e

sensibilidade na encruzilhada do mental e do afetivo, a

palavra atua, “a palavra é mágica” (MENESES, 1995, p.36)

pois, para além da informação, há a criação de um mundo

(MENESES, 1995).

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1.1. Apresentação

A fim de corroborar a formação acadêmica por mim recebida ao longo do curso de Psicologia, fez-se importante ao escolher um tema para pesquisa a

delimitação de algo que sendo instigante, contemplasse Psicanálise e Literatura, dois assuntos

de grande interesse.

Deste modo nascia a idéia de relacionar Epilepsia, Psicanálise

e Literatura através da obra “O Idiota” (DOSTOIÉVSKI,

1869).

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1.2. Objetivo

Esta pesquisa tem como objetivo, estudar a epilepsia através

de uma das obras do escritor russo Fiódor Mikháilovitch

Dostoiévski. A obra escolhida, o romance “O Idiota” (1869),

o foi por este conter elementos essenciais na descrição dos

aspectos bio-psíquicos sociais a cerca da epilepsia, e pelo

papel que esta desempenha na trama.

Tem-se aqui um relato acerca do modo como a epilepsia é

descrita e tratada no romance, suas implicações para com a

Psicanálise através do estudo sobre alguns escritos de Freud

(1919) e também da biografia do próprio autor.

Assim temos neste estudo um instrumento de análise de uma

obra de ficção, mas com elementos muito verossímeis à

realidade dos portadores de epilepsia.

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1.3. Justificativa

O porquê da escolha da tríade: Epilepsia, Psicanálise e

Literatura através do exame de “O Idiota” (DOSTOIÉVSKI,

1869), está relacionado primeiramente, a preferências de

ordem pessoal, no caso, o gosto pela literatura, em especial

pela literatura de Dostoiévski (1869).

Já a escolha deste romance se faz, por ser esta a obra do autor

com mais referências à epilepsia.

A importância, para além da manifestação pessoal, do tema faz-se através da necessidade de contribuir

para a desmistificação da epilepsia e de seu portador, a fim de conscientizar os leitores sobre esta

condição, em que se vislumbra a informação e a ciência como instrumentos de diminuição do estigma.

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2. Desenvolvimento

2.1. Referencial Teórico

2.1.1. Dostoiévski e o Parricídio

A clínica e a literatura ensinam e formam discípulos pela

escuta e pela leitura e parecem opor-se na prática, mas as duas

formas unem-se no seu esforço de descrever o real impossível

de ser dito até ele ser derramado pelo discurso do analisando

ou pela escrita do escritor (WILLEMART, 1995).

Assim faz-se coerente citar Freud (apud SCLIAR, 2006) e sua

relação com a literatura, seja na elaboração de sua teoria ou

nas análises de personagens e ou autores sempre deixando

clara a idéia do não reducionismo da cultura à psicologia e da

mesma forma o unilateralismo do estudo da cultura deixando

alheia à psicologia.

Em seu ensaio sobre Dostoiévski (FREUD, 1927)

denominado: “Dostoiévski e o parricídio” (FREUD, 1927)

Freud (1927) analisa o escritor russo através da relação entre

indivíduo e o objeto paterno e suas particularidades

considerando a teoria psicanalítica.

O ensaio foi dividido em duas partes, a primeira fala da

personalidade do autor russo, de seu masoquismo e seu

sentimento de culpa relacionados à epilepsia.

A segunda parte trata da relação sobre a obra “Os irmãos

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Karamazov” (apud FREUD, 1996, p.193) e o vício de

Dostoiévski (FREUD, 1927) pelo jogo, Freud (FREUD, 1996)

lança luz sobre a gênese desse vício, mas, a fim de se ater ao

objetivo deste trabalho somente a primeira parte será citada.

Segundo a análise freudiana quatro facetas podem ser

distinguidas na personalidade de Dostoiévski (FREUD,

1927): o artista criador, o neurótico, o moralista e o pecador.

O artista criador é a mais perceptível e menos duvidosa dessas

e dificilmente qualquer valorização será suficiente para

exprimir a genialidade do escritor.

O moralista em Dostoiévski (FREUD, 1927) é o aspecto mais

facilmente acessível, o escritor passou pelas mais violentas

lutas para reconciliar as exigências instintuais individuais com

as reivindicações da comunidade e veio a cair na posição

retrógrada da submissão à autoridade temporal e à espiritual

de veneração pelo czar e pelo Deus dos cristãos, e de um

estreito nacionalismo russo. Segundo Freud (1927)

Dostoiévski (FREUD, 1927) jogou fora a oportunidade de se

tornar mestre e libertador da humanidade. Parece provável

que sua neurose o tenha condenado a isso, a grandeza de sua

inteligência e a intensidade de seu amor pela humanidade,

poderiam ter lhe aberto outro caminho de vida, um caminho

apostólico.

Para Freud (1927) o “Dostoiévski pecador” (FREUD, 1927,

p.184) resulta de a personalidade do escritor possuir dois

traços essenciais aos criminosos: um egoísmo sem limites e

um forte impulso destrutivo comum a ambos, e condição

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necessária para sua expressão é a ausência de amor, a falta de

uma “apreciação emocional” (FREUD, 1927, p.184) de

objetos (humanos), o instinto destrutivo muito intenso de

Dostoiévski (FREUD, 1927) que facilmente poderia tê-lo

transformado num criminoso foi em sua vida dirigido contra

sua própria pessoa manifestando-se através do masoquismo e

sentimentos de culpa.

Quanto ao aspecto neurótico da personalidade de Dostoiévski

(FREUD, 1927) cabe aqui o que Freud (1927) considerava

como neurose: um indício de que o ego não conseguira fazer

uma síntese (da complexa personalidade do autor, da

intensidade emocional de sua vida, sua disposição inata e

pervertida e seus incontestáveis dotes artísticos) e ao tentar

faze-la perdeu sua unidade, assim a neurose apresenta-se

(estritamente) sob a forma da epilepsia.

Dostoiévski (FREUD, 1927) considerava-se epilético e era

encarado como tal por outras pessoas devido às graves crises

acompanhadas por perda de consciência, convulsões

musculares e depressão subseqüente, Freud (1927) acreditava

que a epilepsia do autor nada mais era do que um dos

sintomas de sua neurose e a classificou como

“histeroepilepsia” (FREUD, 1927, p.185) (histeria grave)

porém não afirmou ter certeza absoluta do quadro pois os

dados anamnésicos do transtorno não eram confiáveis e, por

ele próprio não ter a perfeita compreensão do que chamou de

“estados patológicos combinados com crises epiletiformes”

(FREUD, 1927, p.187).

A “reação epilética” (FREUD, 1927, p.188) segundo a ótica

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freudiana estava à disposição da neurose cuja essência reside

em livrar-se através dos meios somáticos de quantidades de

excitação com as quais não se pode lidar psiquicamente, então

a crise epilética transforma-se num sintoma de histeria sendo

por ela adaptada e modificada tal como é pelos processos

sexuais de descarga.

Assim em seu artigo, Dostoiévski e o parricídio (FREUD,

1927) o autor distinguiu dois tipos de epilepsia, uma epilepsia

orgânica e outra afetiva, a epilepsia orgânica é aquela onde o

indivíduo acometido apresenta uma moléstia no cérebro, já na

epilepsia afetiva a causa é a própria neurose do indivíduo.

Freud (1927) considerava a hipótese de que a epilepsia

apresentada por Dostoiévski (FREUD, 1927) era a do tipo

afetivo (neurótica) e supunha que as crises remontavam à

infância do escritor e que seu lugar foi ocupado no início por

sintomas brandos e só assumiram a forma de crises epiléticas

após a experiência aterradora pela qual passou: o assassinato

do pai.

Do ponto de vista freudiano a hipótese sugerida é que a

reação de Dostoiévski (FREUD, 1927) à morte do pai foi o

ponto decisivo de sua neurose, ainda criança o escritor sofria

de crises que tinham a significação da morte e consistiam em

estados sonolentos, letárgicos, uma sensação de que iria

morrer naquele instante.

Para Freud (1927) essas crises significavam uma identificação

com uma pessoa morta fosse com alguém realmente morto ou

com alguém que ainda estivesse vivo e que o individuo

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desejasse que morresse, neste caso a crise tem então o valor

de uma punição, quero que a pessoa morra, agora sou eu essa

outra pessoa e estou morto, nesse ponto a psicanálise introduz

a afirmação de que para um menino essa outra pessoa é o pai

e de a crise constituir uma auto punição por um objeto de

desejo de morte contra um pai odiado.

“O parricídio é o crime principal e primevo da humanidade”,

(FREUD, 1927, p.190) é a fonte principal do sentimento de

culpa, embora não seja a única; O relacionamento de um

menino com o pai é marcado pela ambivalência há o ódio que

procura livrar-se do pai para conseguir exclusividade do amor

da mãe, mas há também ternura nessa relação, os dois modos

de operar o mundo interno se combinam para produzir a

identificação com o pai, o menino deseja estar no lugar do pai

porque o admira e quer ser como ele, mas também deseja tira-

lo do caminho na sua busca pelo amor materno.

Todo esse desenvolvimento se defronta com um obstáculo

poderoso, em determinado momento a criança vem a

compreender que a tentativa de afastar o pai como rival seria

punida por ele com a castração. Assim pelo temor à castração

a criança abandona seu desejo de possuir a mãe e livrar-se do

pai.

Na medida que esse desejo permanece no inconsciente

constitui-se a base do sentimento de culpa, Freud (1927) o

descreveu como destino normal do complexo de Édipo,

porém ampliou a discussão ao afirmar que devido à

bissexualidade, um menino sob ameaça de perder sua

masculinidade por meio da castração tem sua inclinação

fortalecida a divergir no sentido da feminilidade, a colocar-se

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no lugar da mãe e assumir o papel desta como objeto do amor

do pai. Mas o temor à castração torna essa solução

impossível, então o menino entende que deve submeter-se à

castração se deseja ser amado pelo pai como uma mulher.

Dessa maneira ambos impulsos, o ódio pelo pai e o amor pelo

pai, experimentam repressão há uma certa distinção

psicológica do fato de o ódio pelo pai ser abandonado por

causa do temor a um perigo externo (castração) ao passo que

o amor pelo pai é tratado como um perigo interno, embora,

remonte ao mesmo perigo externo.

O que torna inaceitável o ódio pelo pai é o temor a este, a

castração é terrível seja como punição seja como preço do

amor, desses dois o medo da punição era visto por Freud

(1927) como anormal e a intensidade da patologia parecia

surgir com o temor à atitude feminina, assim uma forte

disposição bissexual inata se torna uma das pré-condições do

reforço da neurose.

Essa disposição bissexual sugerida por Freud (1927) era

verificável através do papel desempenhado pelas amizades

masculinas na vida do escritor russo, de suas atitudes

complacentes com seus rivais no amor o que para a

psicanálise só são explicáveis pelo homossexualismo

reprimido.

Freud (1927) enfatiza e detalha o complexo de castração no

caso de Dostoiévski (FREUD, 1927) por que para ele esse era

a “chave” (FREUD, 1927, p.192) para o entendimento de toda

a neurose manifestada através da epilepsia do escritor.

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Ainda que muito tenha sido detalhado no ensaio sobre o

complexo de castração do escritor, Freud (1927) não se atém

a tríade: bissexualidade, ódio ao pai e medo da castração, ele

também detalha a formação do superego através do processo

de identificação com o pai, que é absorvido pelo ego e lá se

estabelece como uma parte cindida em contraste com o

restante do conteúdo do ego colocando assim o superego

como um verdadeiro “herdeiro” da influência parental, o

superego assume os atributos do pai na relação entre o ego e

ele.

Então no caso de Dostoiévski (FREUD, 1927) depreende-se

que o superego tornou-se sádico e o ego masoquista, uma

grande necessidade de punição desenvolve-se no ego, que em

parte se oferece como vítima e por outro lado encontra

satisfação nos maus tratos que lhe são dados pelo superego

(sentimento de culpa), pois toda punição, de acordo com a

psicanálise, é em última instância uma castração e assim uma

realização da antiga atitude passiva para com o pai.

Ao completar essa análise, deve-se considerar na identificação

parental do superego que o pai é temido em qualquer caso e,

especialmente no caso de Dostoiévski (FREUD, 1927), com

um pai agressivo e violento. Freud (1927) remonta ao imenso

sentimento de culpa do escritor bem como de sua conduta

masoquista, a um componente feminino intenso.

Assim, ele sintetiza a personalidade de Dostoiévski (FREUD,

1927) à de uma pessoa com uma disposição bissexual inata

intensa, que pode defender-se com intensidade especial contra

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a dependência de um pai severo. Seus sintomas de crise

semelhantes à morte podem ser compreendidos como uma

identificação paterna por parte de seu ego, a qual é permitida

pelo superego como punição, um mecanismo comum dos

sintomas histéricos.

Resumidamente, Freud (1927) coloca que a relação indivíduo

e seu objeto paterno no caso do escritor, transformou-se numa

relação entre ego e superego, reações infantis oriundas do

complexo de Édipo podem não florescer caso a realidade não

lhes proporcione meios, mas no caso de Dostoievski o caráter

do pai senão permaneceu o mesmo piorou ao longo do tempo

e assim o ódio de Dostoiévski (FREUD, 1927) para com o pai

e seu desejo de morte contra esse pai vil foram mantidos.

Portanto quando seu pai fora assassinado o escritor viu sua

fantasia tornar-se realidade e então suas defesas foram

reforçadas, daí as crises assumirem um caráter epilético ainda

que significassem uma identificação com o pai como punição,

mas eram terríveis como a própria morte violenta do pai.

Freud (1927) finalizando a primeira parte de seu ensaio

afirma que Dostoiévski (FREUD, 1927) nunca se libertou dos

sentimentos de culpa oriundos do seu desejo de matar o pai e

que tais sentimentos foram determinantes nas suas atitudes

para com a autoridade do Estado, para com a Igreja e

sobretudo na literatura.

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2.1.2. Apresentação do autor: Fiódor Mikháilovich

Dostoiévski

Em junho de 1812 a Rússia é invadida pelas tropas

napoleônicas, e a elas se rende após uma batalha sangrenta.

Após cinco semanas numa Moscou incendiada, abandonada

por seus moradores, tem início a famosa retirada do Grande

Exército, ordenada por Napoleão.

Mas as tropas russas seguem-lhes as pegadas até a Alemanha,

e nesse país travam diversas batalhas. A perseguição continua

até Paris, onde, no mês de março de 1814, Alexandre I entra

triunfalmente (OS IMORTAIS, 1971).

De volta à Rússia, jovens oficiais se impressionam com os

abusos da burocracia, com a arbitrariedade do governo, com o

sofrimento dos servos, com juízes corruptos, entre outros

desmandos. Algumas sociedades secretas começam a se

organizar para reverter a situação, e até 1820 ocorrem vários

movimentos revolucionários por todo o país.

E é nessa Rússia conturbada, na cidade de Moscou que nasce

Fiódor Mikháilovich Dostoiévski (OS IMORTAIS, 1971), em

outubro de 1821, descendente de uma aristocrática família

lituana, porém agora sem fortuna alguma (OBRAS PRIMAS,

2001).

O pequeno Dostoiévski (OS IMORTAIS, 1971) cresce em

meio à pobreza e a pessoas doentes; seu pai é médico em um

sanatório para pobres em Moscou, e é nesse local que reside a

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família (OS IMORTAIS, 1971).

Além das condições materiais bastante adversas, ainda lhe

amarguram a vida o temperamento despótico e brutal do pai

(DIEGUEZ, 2006). Pela casa toda ecoavam os gritos de

Mikhail a perseguir o filho, até sono adentro em pesadelos

cruéis, e a triste passividade de sua tuberculosa mãe, Maria

Fiodoróvna Nietcháieva (OS IMORTAIS, 1971).

Martirizado, Dostoiévski (OS IMORTAIS, 1971) alimenta a

esperança de que o pai morra, o que chega a pedir a Deus em

suas preces, contudo quem morre é a mãe que não resiste a

tantos sofrimentos.

Viúvo, Mikhail dedica-se com mais afinco ao trabalho e

resolve mandar o filho, na época com 16 anos, para a escola

militar de engenharia de São Petersburgo, e é ali entre

exercícios de campanha e cálculos matemáticos que o

adolescente Fiódor (OS IMORTAIS, 1971) descobre o prazer

da literatura (OBRAS PRIMAS, 2001).

Em Byron (1788-1824) encontra a exaltação dos sentimentos,

o arroubo emocional, a paixão da liberdade, a angústia pelos

problemas da existência. Em Victor Ugo (1802-1885) o culto

às tradições populares, o ardor patriótico, a preocupação

social. Shakespeare (1564-1616) dá-lhe a certeza de que os

sofrimentos são falhas da natureza humana, não envolvendo,

como na tragédia grega, determinação divina (OS

IMORTAIS, 1971).

Em Cervantes (1547-1616) revela-lhe o perfil do homem

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bom, tão bom que não se ajusta a este mundo, e Homero

(século VII a.C.) empresta-lhe o símbolo da coragem: Ulisses

enfrenta uma existência repleta de padecimentos para

conquistar a felicidade, todas essas idéias encontram no

temperamento de Dostoiévski solo propício para germinar

mais tarde.

Desse encontro com os grandes escritores vem tirá-lo a

inesperadamente a morte, por assassinato, do pai em 1839.

Esse fato acaba atormentando a consciência do jovem Fiódor

(OS IMORTAIS, 1971) que rezara tanto para ver-se livre

dele, amargurado, angustiado pelo remorso (não rezara tanto

ele para que o pai morresse? não pretendera ver-se livre dele?

não seria essa morte a realização do seu desejo?), sentindo-se

responsável por toda a miséria do ser humano ele busca se

redimir por meio da criação literária (OS IMORTAIS, 1971).

Então aos 20 anos começa a escrever Boris Godunov (1841) e

Maria Stuart (1841) que não só refletem a preocupação de

seguir a moda romântica como também sua problemática

pessoal: o primeiro é a história de um tirano, como seu pai, e

o segundo é o drama de uma rainha infeliz e injustiçada, como

sua mãe. Fiódor (OS IMORTAIS, 1971) não conclui nenhuma

das duas obras.

Em 1844 ainda tentando seguir os padrões do romantismo

Dostoiévski começa a elaborar Pobre Gente (1845), novela

que descreve o ambiente medíocre em que vive, por fim cada

vez mais fascinado pela literatura, demite-se do cargo público

para dedicar-se inteiramente à carreira de escritor.

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Publicada em 1845, Pobre Gente transforma-se em sucesso de

público e crítica, o que o encoraja a escrever com mais afinco,

em 1847, ano em que sai a segunda edição de Pobre Gente

(1845) sofre uma séria crise de epilepsia, no ano seguinte

publica o Duplo (1848), romance em que não obtém sucesso.

A fase de glória parece estar chegando ao fim, a fama começa

a declinar: os críticos e autoridades literárias russas que tanto

o haviam elogiado chegam a confessar de público que se

enganaram a respeito de seu talento literário.

Tão inesperada mudança isola Dostoiévski do convívio geral,

é tomado então por repentinas dúvidas a respeito da própria

capacidade e de qual seria sua real vocação.

Em 1848 Dostoiévski começa a freqüentar um grupo

socialista de idéias radicais em São Petersburgo do qual

passou a fazer parte, mais tarde, no entanto no livro Os

Possessos (1871), denunciaria o clima de violência e niilismo

vigente entre os revolucionários, acusando-os de agir

sobretudo movidos pelo tédio e de viverem inutilmente à

custa dos servos.

Antes do rompimento com o grupo, porém, o escritor já se

havia comprometido em favor do socialismo em seus

discursos públicos, denunciado juntamente com os

companheiros de grupo é preso e condenado à morte por

fuzilamento.

Já no patíbulo, no momento em que se iria cumprir a

sentença, um toque de clarim interrompe a cerimônia,

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Dostoiévski passa pela macabra “falsa execução”

(DOSTOIÉVSKI, 1996) uma experiência que descreve de

maneira vigorosa em seu romance O Idiota (1869).

Ao invés da execução a pena fora comutada em prisão

perpétua com trabalhos forçados na Sibéria.

Dostoiévski parte para a Sibéria na véspera do Natal de 1849,

na bagagem leva apenas um exemplar do Evangelho e nele

encontra alento, força e a certeza de que seus sofrimentos são

o preço necessário da redenção, estava expiando não só o

crime político, mas a condição humana de imperfeição (OS

IMORTAIS, 1971).

É do Evangelho também que advém a crença de que os

pobres, as crianças, os que estão no limite entre a razão e a

loucura, os que ouvem mais o raciocínio, os indefesos, os

humilhados e ofendidos, os puros, os ingênuos, são esses os

prediletos do coração de Deus.

Em suas meditações conclui que tais qualidades que atraem o

favor divino, são as mesmas do povo russo, através do

desenvolvimento e da perseveração delas, os russos haverão

de se redimir, de se unir fortemente para, coesos e puros,

promover a coligação de todos os povos eslavos, sob a

liderança do czar e da Igreja Ortodoxa (OS IMORTAIS,

1971).

Na convivência com ladrões, criminosos e prostitutas no

exílio Dostoiévski jamais põe em dúvida a bondade humana,

ainda que nesse período tenha passado por grandes

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dificuldades físicas e emocionais, além de vários ataques de

epilepsia, a partir dessa experiência escreve Recordações da

Casa dos Mortos (1862) e em um trecho do livro diz: “Posso

afirmar que no ambiente mais ignorante e mesquinho

encontrei sinais incontestáveis de uma espiritualidade

extremamente viva” (OS IMORTAIS, 1971, p.155).

A experiência carcerária na Sibéria foi importante para sua

evolução como escritor, em um dos seus romances o

protagonista é o moderno “anti-herói” (o príncipe Míchkin de

“O Idiota”, 1869, tema deste trabalho) com a ambivalência

entre a moral tradicional e as virtudes sociais (BROCA, 1960;

MENDES, 1995).

Após cinco intermináveis anos de trabalhos forçados, em

1854 aos 33 anos Dostoiévski é incorporado como soldado

raso em uma guarnição siberiana onde passa outros cinco

anos, não tem amigos, nem família, nem tampouco dinheiro,

na fria solidão da Sibéria apaixona-se por uma mulher casada,

Maria Dimitriévna Issáievna (OBRAS PRIMAS, 2001).

Seu sofrimento aumenta quando ela muda-se para outra

cidade, mas depois de alguns meses, para sua alegria, ele

vislumbra uma esperança pois Maria ficara viúva, e então em

menos de um ano passado o período de luto, eles se casam em

1857.

O casamento não tem um bom começo, na noite de núpcias

Dostoiévski sofre uma violenta crise de epilepsia, a mulher

apenas o observa com espanto (OBRAS PRIMAS, 2001).

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Na fria Sibéria a desolação da paisagem o deprime, sua saúde

é péssima, o casamento revela-se um fracasso, tudo que lhe

resta é escrever um novo romance e esperar que o czar lhe dê

permissão para voltar a São Petersburgo.

Então em 1859 Alexandre I lhe concede permissão para

retornar a cidade, que tantas vezes iria retratar em seus

romances, porém, o retorno é solitário e melancólico os

amigos já o esqueceram e o público também.

Recorre então a seu irmão Mikhail com quem funda o jornal

O Tempo, e sem perder o ânimo publica Recordações da

Casa dos Mortos (1862) que faz com que seu nome ressurja e

desperta o público da apatia, no entanto a fama não lhe é

suficiente para livrá-lo das graves dificuldades financeiras,

tudo o que ganha o escritor gasta com a mulher doente,

contrai empréstimos que não consegue pagar, e por fim ao

ver-se ameaçado por credores foge para o exterior.

Dostoiévski deixa Maria em São Petersburgo, e com recursos

obtidos na Caixa de Socorros para Escritores Necessitados

percorre a Alemanha, Itália, Suíça, França e Inglaterra

levando consigo uma jovem estudante partidária do

feminismo, entusiasta da literatura e candidata a romancista,

Polina Súslova, (OS IMORTAIS, 1971) que posteriormente

seria imortalizada nas protagonistas de vários de seus

romances entre eles: a protagonista de O Jogador, a Aglaia de

O Idiota (1868), a Lisa de Os Possessos (1871), a Catarina

Ivanôvna de Os Irmãos Karámazov (1880), no entanto o

escritor gasta no jogo tudo o que lhe resta e mais o que

consegue ganhar com a penhora de seus pertences e os de

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Polina que empresta-lhe alguns rublos para que pudesse voltar

a São Petersburgo (OS IMORTAIS, 1971).

Na volta a São Petersburgo em 1863, Dostoiévski encontra

sua esposa agonizante e o jornal que fundara com o irmão,

antes de sua partida, fechado por ordem do governo.

No ano seguinte encontra ânimo e funda então outro

periódico, “A Época” (1864). Ainda em 1864, num período de

três meses morrem sua esposa e seu irmão Mikhail, ficando a

seu encargo a sobrevivência da cunhada viúva e dos

sobrinhos. É em meio a esse sentimento de angústia que

Dostoiévski inicia a redação de Memórias do Subterrâneo

(1864), obra em que o autor registra a desintegração da

personalidade, que marca o completo amadurecimento

literário do autor superando modismos românticos que

marcavam as obras anteriores, passando a interessar-se pela

sondagem dos mistérios da existência e da complexidade da

alma humana, sobretudo daqueles recantos sombrios e

tortuosos por onde ronda, ameaçador, o espectro da loucura

(DOSTOIÉVSKI, 1996).

Dostoiévski está em busca do homem bom, do “Dom Quixote

russo” (BROCA, 1960) nos romances posteriores a Memórias

do Subterrâneo (1864) ele delineia seus traços em Aliócha e

Zósima, de Os Irmãos Karamázovi (1880), e em Míchkin de

O Idiota (1868).

Se todos os russos fossem iguais a Zósima ou Míchkin, a

Rússia estaria salva, e assim poderia estender a salvação a

todos os povos eslavos, unidos numa grande família,

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perseverando o amor à pátria e a Deus, esse ideal presente de

modo obscuro nas primeiras obras afirma-se constantemente

nos últimos escritos do escritor (OS IMORTAIS, 1971;

MENDES, 1995).

Embora tenha encontrado o caminho para realizar-se como

escritor, Dostoiévski é um homem solitário e infeliz à

semelhança de sua personagem de Noites Brancas (1851), as

mulheres ou o recusam ou lhe concedem rápidas aventuras,

ele foge novamente para o exterior e pede Polina em

casamento, mas ela o recusa (OBRAS PRIMAS, 2001).

Após essa negativa o escritor afunda-se ainda mais no jogo e,

conseqüentemente em suas dívidas, então seu editor exige-lhe

que cumpra o prazo para a conclusão de Crime e Castigo

(1867) assim Dostoiévski contrata uma estenógrafa, Ana

Grigoriévna (OS IMORTAIS, 1971), para ajuda-lo.

Ele encanta-se com a paciência e dedicação de Ana e expõe-

lhe um suposto problema de seu novo romance: a personagem

principal, um romancista velho e doente deseja casar-se com

uma jovem cheia de vida, mas, pergunta ele a Ana, “não será

inverossímil que essa jovem o ama? Poderiam casar-se? Que

diria você a esse homem?” ao que Ana responde: “Eu lhe

diria que o amo e vou amá-lo a vida inteira” (OS IMORTAIS,

1971, p.162). Assim, esse foi o modo de o escritor em 1867

aos 46 anos de idade pedir a jovem em casamento, a mulher

que andara buscando durante toda a vida, finalmente a

encontrara (OS IMORTAIS, 1971).

Fixa-se com Ana em Genebra, dedica-se ao seu novo

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trabalho as coisas parecem ganhar uma certa calma, aparente,

pois a paixão pelo jogo, porém só faz lhe aumentar as dívidas,

mas o vício o persegue e tudo empenha (da aliança ao capote)

e tudo perde (OBRAS PRIMAS, 2001).

Ana dá a luz a uma menina que morre três meses depois. A

solidão o atormenta e a morte da filha ameaça sua sanidade

mental o que é agravado pelo sentimento de culpa de privar a

amada esposa do conforto e dos bens materiais, nesse ano de

1868 o escritor publica O Idiota (1869) onde criou seu mais

enigmático herói, o enfermo e alienado príncipe Míchkin,

cercado por uma galeria de vilões, vagabundos, de santas e

pecadoras (BROCA, 1996).

Nesse romance deve-se considerar o substrato auto-biográfico

do autor, no príncipe Míchkin há muito do escritor, epilético

como ele o escritor sublima o sentimento idêntico que devia

experimentar, transferindo sua própria moléstia para um de

seus heróis (BROCA, 1960; MENDES, 1995).

Sem a filha o casal abandona Genebra e a literatura, vagueia

pela Itália e curte as penas da saudade dupla: a da criança

morta e da pátria distante, mas com a ajuda de amigos e do

editor, o escritor recebe uma ajuda financeira que mais uma

vez esvai-se em cassinos.

Tendo como única opção voltar a escrever ele o faz sem cessar, procurando ganhar o mínimo para o

sustento doméstico. O nascimento de sua segunda filha em 1869 vem atenuar um pouco a rudeza da

vida (OS IMORTAIS, 1971).

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No verão de 1871 o casal retorna à Rússia e publica Os

Possessos, dois anos depois em 1873 o escritor assume o

cargo de redator-chefe em “O Cidadão” e foi a partir dessa

época que escreve algumas de suas maiores obras primas (OS

IMORTAIS, 1971).

Em 1874 publica O Adolescente e Diário de um Escritor, e

em 1880 Os Irmãos Karamázov, torna-se ídolo de seus

leitores e exemplo de força e coragem, o escritor da Rússia

que ao retratar alma de seu povo evidenciara a própria

condição humana.

As aspirações de Dostoiévski estavam enfim realizadas:

encontrara o amor que sofridamente buscara, os filhos que

quisera, porém num dia nevado de 1881 vítima de uma

hemorragia, morre aos sessenta anos, consagrado até hoje

como um dos grandes escritores da literatura universal (OS

IMORTAIS, 1971; OBRAS PRIMAS, 2001; DIEGUEZ,

2006 et al. , 1995).

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2.1.3. Epilepsia

Histórico

A palavra epilepsia, de origem grega, significa “tomar de

surpresa” (BEARZOTI E FONSECA, 1986, p.17) “ser

atacado”, “ser pego de surpresa” (DONOHOE, 1982, p.3),

“ser invadido”, “ser possuído” (MANTOVANI, 2006, p.7).

Tais significados revelam como essa condição está cercada de

mitos e preconceitos.

De acordo com Topczewski (2003), na antiguidade os povos

consideravam serem as questões ligadas à saúde relacionadas

com a religião e a feitiçaria. A doença era tida como um

castigo divino, aplicado por conta de algum pecado cometido

pela pessoa, ou por algum familiar.

A epilepsia era considerada a “doença sagrada” (DONOHOE,

1982, p.3) ou o “mal sagrado” (DIEGUEZ, 2006) a ela era

atribuída à possessão por espíritos. Na Roma antiga era dado

o nome de “mal comicial” (TOPCZEWSKI, 2003, p.15) pelo

fato de que muitas pessoas eram acometidas pelas crises

durante os comícios.

Em 1500 a.C., na Índia a epilepsia não era considerada uma

doença do espírito, mas uma espécie de retardo mental. Tal

como no folclore russo o epiléptico era considerado

acometido pela “idiotia” (BROCA, 1960) que por sua vez era

vista como uma doença divina.

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Hipócrates, 460 a.C. afirmara ser a epilepsia uma doença de

origem cerebral, já no século dezenove, considerava-se que

ela era causada por excesso de relações sexuais ou

masturbação.

Infelizmente, a epilepsia é vista ainda hoje como decorrente

de processos mágicos ou mitológicos, persistem ainda crenças

como o fato de ela estar relacionada ao ciclo lunar entre

outros conceitos obtusos, estas idéias só servem para

dificultar a detecção, o tratamento e o cotidiano das pessoas

com epilepsia.

Conforme Topczewski (2003) o primeiro estudo completo

sobre a epilepsia foi publicado em 1770 por Samuel A. Tissot,

a ampliação dos conceitos de Tissot foi feita por John H.

Jackson (1835-1911) descrevendo manifestações epilépticas

utilizadas ainda hoje como base para pesquisas.

A descoberta do eletroencefalograma (EEG) pelo psiquiatra

alemão Hans Berger (TOPCZEWSKI, 2003) muito contribuiu

para o avanço do estudo da epilepsia através do registro da

atividade cerebral. Os pesquisadores Frederick Gibbs, Erna

Gibbs e Willian Lenox (TOPCZEWSKI, 2003) cunharam em

1937 o termo “disritimia cerebral paroxística”, considerado

por alguns autores um eufemismo, que contribui para o

mascaramento da epilepsia.

Conceituação e caracterização

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Segundo Niedermeyer (1991) não se pode considerar a

epilepsia uma doença, “Não se trata de uma doença e sim de

uma reação anormal do cérebro” (NIEDERMEYER, 1991,

p.4). “A epilepsia (crises que se repetem) é um sintoma (...) é

conseqüência e não causa” (BEARZOTI E FONSECA, 1986,

p.20). Sendo assim neste trabalho consideraremos tais

conceitos e não classificaremos a epilepsia como doença, mas

sim como uma condição, mesmo que existam outros autores

que não a considerem como tal, assim a entendemos, pois

consideramos que os conceitos que a caracterizam como

doença, induzem ao estigma e ao preconceito em relação aos

portadores.

A epilepsia não se reduz às crises com perda de consciência,

espuma nos lábios, convulsões e contrações musculares, estas

são apenas algumas das características relativas às crises

generalizadas.

A classificação das crises epiléticas faz-se através de três

grandes grupos: crises focais ou parciais, crises generalizadas

e ausências.

A crise não é uma doença, mas um sintoma que poderá

ocorrer em várias doenças de origem neurológica ou não

(TOPCZEWSKI, 2003). Nem todo indivíduo que fora

acometido por uma crise é portador de epilepsia, vários

fatores como febres, infecções, drogas ou alterações

metabólicas podem desencadear convulsões.

As crises ou convulsões epilépticas são caracterizadas por

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descargas elétricas anormais na atividade dos neurônios

(MANTOVANI, 2006). Conforme Dieguez (2006) o cérebro

suporta apenas que um determinado número de componentes

funcione ao mesmo tempo, portanto quando ocorre a crise, o

processo de excitação entre os neurônios se acelera e a

transmissão se propaga de um neurônio a outro sem que nada

possa pará-lo, uma espécie de “tempestade cerebral” de

“curto circuito cerebral” (MANTOVANI, 2006, p.8).

Assim, quando este “curto circuito” atém-se a uma parte específica do cérebro recebe o nome de crise

ou convulsão parcial ou focal, também conhecida por “pequeno mal” (NIEDERMEYER, 1991, p.5).

Caso a região atingida for a responsável pelo controle dos

movimentos, poderá ocorrer repuxamento dos dedos de uma

das mãos, ou dos músculos da boca. (BEARZOTI E

FONSECA, 1996). Os sintomas podem variar muito:

alucinações auditivas, oftaltivas, visuais, ações involuntárias,

paralisias, dores e até mesmo orgasmos (DIEGUEZ, 2006).

Nas crises generalizadas a descarga ocorre em todo o cérebro,

tais crises também são chamadas de crises tônico-clônicas e

também de crises de “grande mal” (NIEDERMEYER, 1991).

Segundo Niedermeyer (1991) há um equívoco na

classificação das crises parciais como “pequeno mal”, e as

crises generalizadas serem chamadas de “grande mal”

(NIEDERMEYER, 1991, p.5). Segundo o autor, estas

denominações não auxiliam, e pelo contrário prejudicam os

portadores, aumentando o estigma em torno dos mesmos.

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Nas crises generalizadas a pessoa perde repentinamente os

sentidos, há enrijecimento do corpo (fase tônica), seguida da

apresentação repetida de movimentos bruscos (fase clônica).

Durante a convulsão poderá ocorrer incontinência urinária ou

fecal, salivação e a respiração tornar-se ruidosa, é importante

ressaltar que a pessoa não sente dor durante a crise, e não se

lembra do que ocorrera durante a mesma.

A recuperação do acesso vai se dando aos poucos, a pessoa

poderá mostra-se confusa, queixar-se de dores de cabeça,

náuseas, apresentar ânsia de vômito, mal estar e sono

(DONOHOE, 1982).

Com relação ao terceiro tipo de crise epilética, conhecida

como “ausência” (NIEDERMEYER, 1991, p.5), tratam-se de

crises caracterizadas por breves lapsos de consciência de

duração de cinco a vinte segundos cada. Embora rápidas essas

crises podem ser numerosas ocorrendo várias vezes ao dia.

As ausências são mais comuns em crianças e idosos, nesses

casos a pessoa não sabe o que acontece ao redor, o olhar fica

parado e não há queda ao chão (BEARZOTI E FONSECA,

1982).

Etiologia

Cerca de meio por cento da população sofre de crises

epilépticas que se repetem cronicamente, para ser considerado

portador é preciso que a crise não tenha sido desencadeada

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por febre, alterações metabólicas, uso de drogas,

hipoglicemia, uso abusivo de álcool, trauma crânio-

encefálico, tumores cerebrais entre outros.

Além dos fatores já acima citados, para a crise ser

considerada epiléptica esta deverá ser recorrente, vale

recordar que a epilepsia é um distúrbio crônico recorrente e

que muitos outros distúrbios, mesmo que tenham origem fora

do sistema nervoso central, podem provocar alterações

cerebrais que culminem num fenômeno idêntico àquele

causado pela epilepsia. Assim qualquer pessoa, nas condições

adequadas, está sujeita a ter uma convulsão.

A epilepsia pode ser provocada por vários fatores, que quando

suficientemente ativos, podem influenciar a evolução da

mesma. No entanto são raros os estudos epidemiológicos,

devido ao preconceito os portadores freqüentemente a

escondem alimentando assim à desinformação e dificultando

o tratamento (NIEDERMEYER, 1991).

Nos países subdesenvolvidos estima-se que a incidência de

epilepsia na população seja de aproximadamente de dois por

cento, nos países desenvolvidos de um por cento, a diferença

está ligada ao serviço público de saúde dos países

subdesenvolvidos ser deficitário, ocorrendo então maior

incidência de doenças infecciosas nestes países

(MANTOVANI, 2006).

Há entre os fatores desencadeantes o fator hereditário, porém

o mesmo responde por um número muito baixo do total dos

casos. Dentre os demais fatores que põem provocar as

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convulsões estão a lesão cerebral, a lesão pode ocorrer

durante a gravidez (rubéola, toxoplasmose) em partos

complicados e por doenças infecciosas como encefalite,

meningite, tumores, doenças degenerativas e alterações

metabólicas.

Segundo BEARZOTI E FONSECA (1991) no Brasil uma

causa muito comum de epilepsia está ligada a cisticercose

cerebral, adquirida através de alimentos contaminados com os

ovos da taenia sollium (solitária), estes ovos se transformam

em larvas e as mesmas se transferem para o cérebro e

provocam lesões que vão dar origem às convulsões.

Há também os fatores que favorecem o surgimento da crise,

embora pessoais, os mais comuns são: uso irregular da

medicação, estresse, dormir pouco, uso abusivo do álcool,

ansiedade, período menstrual e estímulos visuais repetitivos.

Aspectos psicossociais

Segundo Topczewski (2003) um dos principais fatores a

serem considerados no estudo da epilepsia é o papel dos

fatores psicossociais que circundam o epiléptico.

O preconceito traduz-se de várias formas no plano social, e é

considerado por vários estudiosos do tema “o principal fator

responsável pelo desajustamento emocional do paciente”

(COELHO, 1980, p.27).

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A dificuldade de aceitação pela qual passam muitos

portadores está freqüentemente associada ao desequilíbrio

emocional do paciente. Assim no relacionamento familiar a

pessoa defronta-se com atitudes que vão da superproteção,

como forma de minimizar o sofrimento da pessoa, ao

abandono, sendo freqüentes no caso de crianças que um dos

pais responsabilize o outro pela condição do filho.

No ambiente escolar, na maioria dos casos a pessoa é tratada

de forma estigmatizada, que podem gerar dificuldades de

aprendizagem e problemas na socialização da criança.

No caso dos adultos, o medo de que ocorram crises em

público faz com que as pessoas escondam sua condição pelo

temor da perda, do emprego, do afeto de outras pessoas e

dessa forma mantém-se um ciclo de desinformação que

corrobora o preconceito e o estigma frente a essa condição.

É grande segundo Mantovani (2006), a incidência de

depressão entre os portadores de epilepsia, além do fator

psicossocial (o temor de ser “descoberto”, ter uma crise em

público faz com que as pessoas se afastem do convívio

social); Há também o fator de origem orgânica como a local

da lesão no cérebro que gerou a epilepsia, e os efeitos

colaterais de alguns medicamentos anti-epilépticos.

Também deve ser considerado segundo a mesma autora, o

índice de transtornos mentais tais como a psicose, esta é por

sua vez dez vezes mais freqüente em portadores de epilepsia

do que em não epiléticos.

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2.2. Dostoiévski e “O Idiota”

Em setembro de 1867, em Genebra na Suíça, Dostoiévski

(BROCA, 1949) então com quarenta e oito anos começa a

escrever “O Idiota” (DOSTOIÉVSKI, 1869), romance de

perfil auto-biográfico finalizado em Florença, Itália em 1869.

O romance originalmente publicado sob a forma de folhetins

no periódico “O Mensageiro Russo” (BROCA, 1949), foi

redigido em meio a várias adversidades: falta de dinheiro,

violentas crises epiléticas e a morte de sua primeira filha com

apenas três meses de idade.

“O Idiota” (DOSTOIÉVSKI, 1869) teve uma elaboração

“difícil e torturada” (BROCA, 1949, p.19) o autor o re-

escreveu várias vezes antes de decidir-se por uma narrativa

definitiva, perante a todas as adversidades decorridas no

transcurso do trabalho do escritor no romance, curiosamente

quando ele já concluía sua obra, sua esposa Ana Grigoriévna

(BROCA, 1949) lhe dá a grata notícia de que ele seria pai

novamente.

A obra, um romance denso, tortuoso, envolto num clima de

mistério, paixões lancinantes, loucura, tragédia e uma certa

aura evangélica (MENDES, 1995); Possui uma extensa gama

de tipos e tem como personagem central à figura de um

príncipe, Líev Nicoláievitch Míchkin, aqui citado como

príncipe Míchkin (DOSTOIÉVSKI, 1869).

Inspirado em Cervantes (Dom Quixote), Dickens (As

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aventuras do Sr. Pickwick) e Voltaire (Pangloss) (BROCA,

1949), Dostoiévski (BROCA, 1949) escreveu “O Idiota”

(DOSTOIÉVSKI, 1869) não como um tipo ridículo e

burlesco, comum ao três anteriormente citados, até porque

não tinha o escritor no humor o seu traço característico, mas

nele havia a habilidade de mostrar “o mais profundo amargor

sob uma aparência cômica” (BROCA, 1949, p.19).

O perfil auto-biográfico do romance define-se na

caracterização do protagonista, onde é visível elementos da

personalidade do autor, bem como aspectos marcantes de sua

vivência. O fato de o príncipe ser epilético como ele, ter

vivido o episódio da falsa execução pelo qual passara na

Sibéria, suas críticas ao Catolicismo, suas preferências

artísticas, como na cena em que o príncipe descreve o que

sentiu diante do quadro de Holbein (MENDES, 1995).

À época que antecedeu a redação de “O Idiota”

(DOSTOIÉVSKI, 1869), o escritor encontrava-se a pensar na

corrupção política e espiritual do Ocidente, sabe-se por meio

de sua biografia que o autor foi um dos mais ardorosos

defensores de um forte sentimento eslavo, para ele os povos

eslavos seriam os redentores dos povos ocidentais.

Dostoiévski (DIEGUEZ, 2006) quando esteve na Sibéria

afirmou ter descoberto a “alma russa” (DIEGUEZ, 2006,

p.78), essa muito bem explorada no perfil do protagonista do

romance.

Míchkin é apresentado como a “personificação do ideal

eslavófilo” (BROCA, 1949, p.19), o russo na pureza de sua

essência, sem ser contaminado pelas deformações ocidentais,

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um homem simples e puro, de uma bondade incompreendida

pelos que o cercam, mas que os afeta, e não os deixam

incólumes à presença do mesmo.

O príncipe Míchkin era um homem totalmente diferente dos

demais, com atitudes e pensamentos inteiramente contrários

aos seus contemporâneos. Enquanto a maior parte das pessoas

não o compreendem e o tomam como a um idiota, ele por sua

sensibilidade e poder de observação incomuns, as percebe em

essência, por detrás das aparências, das máscaras usadas

socialmente.

O próprio Dostoiévski (BROCA, 1949) era visto aos olhos de

muitos como uma pessoa complexa e absurda, no período que

corresponde a elaboração do romance ele passou por três

países (Alemanha, Suíça e Itália) devido aos problemas

ocasionados pelo seu incorrigível vício.

Vários adiantamentos, em dinheiro, lhe foram concedidos por

parte do editor, para a elaboração da obra, mas ele os

desperdiçava, vez após vez, colocando sua família em

delicadas situações. Nessas ocasiões o escritor prostrava-se

diante da esposa pedindo-lhe perdão e tão logo o tinha voltava

ao jogo, por analogia agia como a um idiota (BROCA, 1949).

A inspiração para fazer do protagonista, um herói idiota,

adveio do folclore russo onde “a idiotia era considerada uma

doença divina” (BROCA, 1949, p.18) pela inocência em que

coloca quem a sofre.

Não somente no folclore russo, mas também no folclore de

outros povos figura a idéia de que os simplórios e doentes

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mentais são tidos como seres eleitos da vontade divina, por

serem consideradas criaturas abençoadas, dotadas de uma

sabedoria natural, instintiva que os distingue dos demais.

Em várias passagens do livro o príncipe apresenta um

discurso “profundo e iluminado” (BROCA, 1949, p.18),

despertando dúvidas nas pessoas que o rodeiam de que ele se

tratava ou não de um idiota; A simplicidade, a pureza e a

inocência consistem para o autor dons divinos capazes de

despojar do homem os preconceitos que “lhes encurtam a

vista e lhes envenenam a existência” (BROCA, 1949, p. 18).

Sabe-se que o escritor somente após vários esboços decidiu-se

sobre o conteúdo do romance, porém, um destes esboços (o

oitavo) merece destaque à medida que há nele uma

identificação do protagonista com o sentimento cristão do

autor.

O protagonista era descrito como príncipe Cristo, tal

colocação é importante para entender o perfil traçado pelo

autor para o seu herói.

“Ele é um idiota, mas é um príncipe” (BROCA, 1949)

escrevera Dostoiévski (BROCA, 1949) no referido esboço,

“É um idiota, mas é um ser superior e nobre, a pureza e a

inocência produzidas pela doença estão igualmente

condicionadas à fina estirpe desse homem diferente da

maioria” (BROCA, 1949, p.20).

No período em que esteve preso na Sibéria, Dostoiévski (OS

IMORTAIS, 1971) aprofundou-se na leitura dos evangelhos

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(a única permitida) e conforme as várias passagens presentes

nos evangelhos há a frase do Cristo: “Meu reino não é deste

mundo” (BROCA, 1949), no romance o autor também sugere

que os príncipes não foram feitos para reinar neste mundo.

Míchkin humilha-se a todo instante, após ser agredido na face

perdoa seu agressor, ouve insultos e os recebe com atitudes

compreensivas para com os agressores... porque assim está

escrito “os humilhados serão exaltados e os exaltados serão

humilhados” (BROCA, 1949, p.21).

A “eslavofilia” (BROCA, 1949, p.21) do autor confunde-se

com seu cristianismo, assim o príncipe possui a imagem e

semelhança do modelo russo idealizado e apresentado ao

Ocidente.

Ao final do romance o príncipe mergulha definitivamente na

“idiotia”, ante a realidade demasiadamente adversa, Míchkin

sucumbe à força da realidade, das circunstâncias e da

insanidade.

“Agora completamente idiota, para sempre! (...) não poderia

haver outro fim” (BROCA, 1949, p.21) dissera o autor a

respeito do final concedido ao seu herói, como para que selar

seu destino infinitamente.

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2.3. Epilepsia, Psicanálise e Literatura:

Uma análise de “O Idiota”

A fim de analisar o impacto da epilepsia de Dostoiévski

(DIEGUEZ, 2006) em sua obra, este trabalho se propõe ao

exame do romance “O Idiota” (DOSTOIÉVSKI, 1869).

“O Idiota” (DOSTOIÉVSKI, 1869) romance iniciado em

setembro de 1867 e finalizado em janeiro de 1869 é a sexta

publicação do escritor, tendo ele 48 anos de idade na ocasião.

Nesta obra Dostoiévski (DIEGUEZ, 2006) analisa com

“sensibilidade e profundeza as manifestações psicológicas do

epilético” (COELHO, 1980, p.26) através da figura do

protagonista da obra, príncipe Míchkin.

O príncipe nos é apresentado como um “indivíduo retraído,

desajeitado, que mantém uma ligação precária com a

realidade, mas que revela extremo refinamento em seus

sentimentos” (COELHO, 1980, p.26). Míchkin “é incapaz de

se nortear segundo as normas convencionais do meio onde

vive, é um homem inteiramente diferente dos outros, é mal

compreendido e freqüentemente considerado ridículo e

infantil; porém estabelece ligações afetivas mais profundas do

que os demais...” (COELHO, 1980, p.26).

Dostoiévski (DIEGUEZ, 2006) nos mostra as primeiras

impressões do que iremos encontrar em sua obra, quando,

como narrador, discorre sobre a aparência do príncipe:

“Através dele transparecia algo gentil, mas com uma

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expressão afatigada e tão esquisita que muita gente ao

primeiro relance reconheceria estar defronte dum epilético”

(DOSTOIÉVSKI, 1869, p.2).

Ironia e ambigüidades permeiam o romance no que tange à

epilepsia e a relação das pessoas que de alguma forma se

relacionam com o príncipe. Em um dos encontros do príncipe

com Rogójin (antagonista de Míchkin), este ao falar de sua tia

exprime a veia cáustica do escritor: “Ora minha tia cozinha

uma viuvez há mais de trinta anos e passa a vida com os

iuródivii, uns romeiros malucos” (DOSTOIÉVSKI, 1869,

p.8,9).

Iuródivii, segundo nota do tradutor, é o nome dado, em russo,

aos “simples de espírito, muitas vezes epiléticos que

passavam por ter os atributos de santos e um certo dom

profético” (apud VIEIRA, DOSTOIÉVSKI, 1869, p.9).

A relação entre epilepsia e estigma social permeia todo o

romance, mas, começa a aparecer no episódio em que o

general Epantchkín, parente de Míchkin, ao descrevê-lo à sua

esposa usa das seguintes palavras: “Que freqüentes ataques

duma moléstia tinham feito dele um idiota. (Empregou

pessoalmente essa palavra “idiota”)” (DOSTOIÉVSKI, 1869,

p.28).

O mesmo general ainda a descrever o príncipe à esposa, conta

como o príncipe houvera sido tratado no exterior: (...)

“Encontrara em Berlin o professor Schneider, um especialista

suíço em tais doenças... cuidava de doentes que sofriam de

idiotia e de loucura, tratando-os por métodos próprios, com

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duchas frias e ginástica, educando-os superintendendo o

desenvolvimento mental deles” (DOSTOIÉVSKI, 1869,

p.28).

“(...) Imaginem lá se existe algum tratamento para a idiotia!”

(DOSTOIÉVSKI, 1869, p.270).

Segundo BEARZOTI E FONSECA (1996) um dos motivos

que levam à rejeição do portador de epilepsia é a crença de

que ele deva ter retardo mental. Em alguns casos, segundo os

autores, a lesão cerebral que origina as convulsões é externa e

atinge partes importantes do cérebro e podem provocar além

da convulsão, distúrbios de memória e deficiência intelectual.

O preconceito está na crença de que TODO portador de

epilepsia tenha tais deficiências, quando na realidade apenas

uma pequena porcentagem dos portadores as apresenta.

O preconceito ante a epilepsia é segundo Coelho (1980) o

principal responsável pelo desajuste emocional do portador.

No romance vemos vários exemplos de situações onde o

príncipe enfrenta velada ou abertamente, constrangimentos

gerados por conta do estigma social que variam da piedade,

do desprezo ao tratamento agressivo.

Entre tais situações está o diálogo entre a Sra. Epantchína e o

general, onde a mesma fica apreensiva pensando tratar-se o

príncipe de um “pobre idiota” (DOSTOIÉVSKI, 1869, p.51),

após o general descrever Míchikin como uma pessoa incapaz

de responder por si própria: “É completamente uma criança,

tem um feitio quase patético! Imagina tu que lhe dão ataques,

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de vez em quando” (DOSTOIÉVSKI, 1869, p.51), ao que sua

esposa responde: “Tu me apavoras! (...) tem ataques! Mas que

espécie de ataques?” (DOSTOIÉVSKI, 1869, p.51).

Em outros episódios:

“Ora aí está uma coisa que não entendo... como foi que o

senhor (um idiota ajuntou mentalmente) se tornou de repente

depositário da confiança dela...” (DOSTOIÉVSKI, 1869,

p.89).

“Veja bem! Não terá o senhor omitido alguma coisa? Que raio

de idiota! (...) não sabe nem contar as coisas direito”

(DOSTOIÉVSKI, 1869, p.91); “Em primeiro lugar este

príncipe é um doente, um idiota, e em segundo lugar - um

louco.” (DOSTOIÉVSKI, 1869, p.519).

Além das idéias pré-concebidas, maculadas pelo estigma, em

relação à epilepsia demonstrada pelas pessoas que circundam

o príncipe, há na obra também o modo como, segundo

Dieguez (2006), Dostoiévski via-se como epilético, ou seja,

um modo ambíguo.

A auto-depreciação aliada ao humor cáustico do autor faz-se

presente em algumas passagens do romance: “Contou-lhe que

estivera fora da Rússia; que o tinham mandado para o

estrangeiro por causa da saúde, duma certa moléstia nervosa

fora do comum, do gênero assim da epilepsia ou da dança de

São Guido” (DOSTOIÉVSKI, 1869, p.2,3). Na fala do

príncipe: “Todo mundo me toma por um idiota e isso também

pela mesma razão. Outrora estive tão doente que realmente

parecia um idiota” (DOSTOIÉVSKI, 1869, p.76).

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Conforme alguns autores “epilepsia não deve ser motivo de

vergonha como não é ter enxaqueca, reumatismo, asma...”

(BEARZOTI E FONSECA, 1996, p.74), no entanto muitos

dos portadores escondem a sua condição de outras pessoas,

revoltam-se, punem a si próprios de forma a dificultar um

convívio harmonioso com essa condição.

A rejeição ou desqualificação do indivíduo para consigo

mesmo é, muitas vezes, reflexo de atitudes discriminatórias de

outras pessoas, mas que acabam por interferir na auto-imagem

e na auto-estima do portador (TOPCZEWSKI, 2003).

“Perdoe-me, mas acho que o senhor se engana no que disse de

Márfa... Era severa, mas... como não haveria de perder a

paciência com um idiota da marca que eu era naquele tempo?

(...) O senhor sabe muito bem que eu era um completo idiota”

(DOSTOIÉVSKI, 1869, p.551).

Com relação às crises, Dostoiévski (DIEGUEZ, 2006)

descreve de forma magistral como estas acontecem. O que as

precede, como estas se dão e quais são suas conseqüências.

Vale lembrar que, de acordo com os diários deixados pelo

autor e pelos registros de biógrafos, Dostoiévski (DIEGUEZ,

2006) sofria de crises generalizadas, da epilepsia do lobo

temporal, chamadas erroneamente de crises de grande mal e, é

a respeito do modo como tais crises ocorrem que trata o livro.

A tendência à epilepsia no lobo temporal é maior do que a dos

demais lobos cerebrais (NIEDERMEYER, 1991), as crises

generalizadas são a manifestação mais recorrente deste tipo de

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epilepsia. O lobo temporal engloba várias funções tais como

fala, emotividade, memória, olfato, gustação e audição,

portanto em tais crises mais de uma área do lobo temporal é

atingido, e assim há comprometimento de no mínimo duas

dessas funções concomitantemente (NIEDERMEYER, 1991).

Períodos Pré-Crise

Quanto aos precedentes, segundo Topczewski (2003) existem

alterações sensoriais que podem ser visuais, auditiva,

oftaltivas, etc. Alterações comportamentais como depressão,

inquietude, irritabilidade, ansiedade entre outras.

Há também um tipo de alteração, descrito ricamente no livro,

denominado “aura” (TOPCZEWSKI, 2003, p.79); Dieguez

(2006) fala em “aura extática” (p.79) devido às sensações de

plenitude, alegria, êxtase, “muitas vezes com clara denotação

mística e religiosa” (DIEGUEZ, 2006, p.79).

A aura para Niedermeyer (1991) designa fenômenos que

anunciam a chegada da crise, como descreveu Dostoiévski

(DIEGUEZ, 2006) neste trecho do romance:

“Lembrou-se ... que sempre um minuto antes do ataque

epilético... lhe iluminava o cérebro, em meio à tristeza, ao

abatimento e a treva espiritual, um jorro de luz e logo, com

extraordinário ímpeto, todas as suas forças vitais se punham

a trabalhar em altíssima tensão. A sensação de vivência, a

consciência do eu decuplicavam naquele momento, que era

como um relâmpago de fulguração. O seu espírito e o seu

coração se inundavam com uma extraordinária luz. Todas as

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suas inquietações, todas as suas dúvidas, todas as suas

ansiedades ficavam desagravadas imediatamente.Tudo

emergia calma e suave, cheia de terna e harmoniosa alegria

e esperança. Tal momento, tal relâmpago era apenas o

prelúdio desse único segundo (não era mais do que um

segundo) com que o ataque começava. (...) Que tem que seja

doença? Que mal faz que seja uma intensidade anormal, se o

resultado desse fragmento de segundo, recordado e

analisado depois, na hora da saúde, assume o valor de

síntese da harmonia e da beleza, visto proporcionar uma

sensação desconhecida e não adivinhada antes? Um estado

de ápice, de reconciliação, de inteireza e de êxtase

devocional, fazendo a criatura ascender à mais alta escala da

vivência? (DOSTOIÉVSKI, 1869, p.232) (...) “Se, nesse

segundo, ou melhor, bem no último momento consciente

anterior ao taque, ele tivesse tempo para dizer a si mesmo,

clara e lucidamente: Sim, por este só momento se daria

toda a vida!” (DOSTOIÉVSKI, 1869, p.233).

Outra alteração que acomete a alguns epiléticos antes ou não,

da crise generalizada, é a chamada “ausência” (BEARZOTI E

PEREIRA, 1996, p.28) (TOPCZEWSKI, 2003, p.40). A

ausência já é na realidade a crise “as crises de ausência são

manifestações breves de perda de consciência (desligamentos)

com duração de 5 a 20 segundos” (TOPCZEWSKI, 2003,

p.40) “as ausências podem ser numerosas repetindo-se várias

vezes por dia” (BEARZOTI E PEREIRA, 1996, p.28).

Eis como o autor relata uma das ausências de Míchkín:

“Ah! Sem dúvida não estava se sentindo bem, hoje, a

bem dizer se achando quase no estado em que

outrora se sentia quando estava para vir um dos

ataques da sua antiga moléstia. Sabia que em tais

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ocasiões costumava se sentir excepcionalmente

“ausente” de tudo, e que então confundia coisas e

pessoas, caso não se esforçasse por prestar bastante

atenção nelas” (DOSTOIÉVSKI, 1869, p.231).

Manifestações de caráter sensorial e comportamental, além

da aura e das ausências, foram descritas no livro, momentos

antes de uma crise generalizada do protagonista.

Com base em Dieguez (2006) é provável que Dostoiévski

(DIEGUEZ, 2006) também tenha sofrido de tais

manifestações. No romance, alusões à alucinação, confusões a

cerca da identidade de pessoas, distorções de pensamento,

sensação de perseguição, de dejá vú e fenômenos equivalentes

são mostrados na passagem anterior ao primeiro ataque,

quando Míchkín erra pelas ruas de São Petersburgo:

“Perambulou por praças e pontes, esteve parado em

esquinas admirando a fachada dos prédios. (...) De

quando em quando dava para prestar a atenção nos

transeuntes com muito interesse; depois esqueceu

essa gente das calçadas, seguiu a esmo. Sentia-se

constrangido e aflito ansiando ao mesmo tempo por

solidão.

(...) Reagiu à idéia de prestar atenção às questões que

surgiam do seu coração e do seu espírito,

murmurando para si mesmo, confusamente: “Que

culpa tenho eu de tudo isso em que me baralhei?”

(DOSTOIÉVSKI, 1869, p.230).

O estado angustiante em que se encontrava o príncipe é

descrito com detalhes mais adiante no romance:

(...)“Já na rua, se recordou subitamente de qualquer

coisa. Foi como se tivesse enfim agarrado uma

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preocupação angustiosa e que desde muito o

molestava. E então percebeu que viera até ali imerso

em qualquer preocupação que já durava tempo;

(...) Durante horas e horas antes, (...) estivera a

procurar não sabia o que; as vezes se esquecia dessa

preocupação mas daí a meia hora, se tanto, ela

voltava transformada ora em angústia, ora em

apreensão” (DOSTOIÉVSKI, 1869, p.231).

Sobre os episódios de dejá vú:

“Mal acabara exatamente de verificar este mórbido e

até então inconsciente impulso de busca, de angústia,

de cuidado por qualquer coisa difusa, quando lhe

surgiu uma recordação que o interessou sobremodo...

Resolveu já agora verificar se deveras tinha estado

diante de tal loja cinco minutos antes, talvez; ou se

não teria sido sonho; ou se, se teria enganado”

(DOSTOIÉVSKI, 1869, p.231).

Crises

Há no romance a descrição de duas crises epiléticas, a

primeira ocorre na tentativa de Parfión Rogójin, o já citado

antagonista do príncipe, assassinar Míchkin, e a segunda já no

final do romance, na residência do casal de generais.

Eis a descrição do primeiro ataque de Míchkin:

“Os olhos de Rogójin faiscaram e um sorriso de fúria

lhe contorceu a face. A sua mão direita estava

erguida e uma coisa fulgurava nela; Míchkin nem

pensou em resistir. Apenas se recordou de que

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pensou ter gritado: “Parfión não acredito!” E nisto

alguma coisa pareceu girar em partículas diante dele!

Toda a sua alma se inundou de intensa claridade

interior. Durante esse momento, o que? Meio

segundo talvez; mas ainda assim, clara e

conscientemente, se lembrou do começo do primeiro

som do pavoroso grito que rompeu do seu peito e que

não pode evitar de modo algum.Depois a sua

consciência instantâneamente se extinguiu e trevas

completas se seguiram .

Era um ataque epilético, o primeiro que tinha depois

duma longa pausa” (DOSTOIÉVSKI, 1869, p.241).

Logo em seguida Dostoiévski (DOSTOIÉVSKI, 1869)

descreve o ataque como narrador do romance:

“É bem conhecido que o ataque epilético sobrevém

inesperadamente. Nesse momento o rosto se deforma

horrivelmente, de modo particular os olhos. Não só o

corpo inteiro como os traços do rosto trabalham com

sacudidelas convulsivas e contorções. Um terrível e

indescritível grito, que não se assemelha a coisa

alguma, é emitido pela vítima. Nesse grito tudo

quanto é humano fica obliterado; e é impossível, ou

dificílimo, ao observador imaginar e admitir que seja

um homem quem o desfere.

É como se um outro ser estivesse gritando dentro do

homem. Pelo menos é assim que muita gente tem

descrito a impressão que isso dá. A cena dum homem

acometido de ataque epilético enche os que o

testemunham de verdadeiro e irreprimível horror,

tanto no acesso como no horror resultante havendo

um elemento de mistério”(DOSTOIÉVSKI, 1869, p.

241,242).

Segundo Dieguez (2006), conforme biógrafos de Dostoiévski

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(DIEGUEZ, 2006) o próprio autor emitia um estranho grito

sempre que perdia a consciência, no início de uma crise. Ana

Grigoriévna, segunda esposa do autor, quando notava a

respiração do marido rouca e vacilante, temia pelo grito, que

classificara de “inumano” (DIEGUEZ, 2006, p.80) por que já

sabia, pelo prenúncio, que era iniciada a crise.

“Só assim se explica que o príncipe não tivesse sido

apunhalado. Decerto Rogójin bem naquele instante

foi surpreendido com a cena do ataque, ouvindo o

uivo e vendo o príncipe cambalear, cair e bater com a

cabeça violentamente num degrau”

(DOSTOIÉVSKI, 1869, p.242).

A crise descrita nesta passagem de “O Idiota”

(DOSTOIÉVSKI, 1869) nos remete, novamente à epilepsia

do lobo temporal. Dostoiévski, segundo Dieguez (2006)

chegou a escrever a seu irmão que sofria de “todos os tipos de

crise” (DIEGUEZ, 2006, p.80), esta sensação possivelmente

era devida ao modo como se dão as crises generalizadas

típicas da epilepsia do lobo temporal.

A crise descrita no romance também é, conforme Dieguez

(2006), uma crise do tipo generalizada do lobo temporal.

Estas crises dão-se com o comprometimento das partes

profundas dos lobos temporais, seguidas de descargas

sincrônicas que propagam-se para outras áreas do cérebro até

atingi-lo como um todo, provocando perda de consciência e

convulsões.

Conforme Mantovani (2006) a crise epilética é caracterizada

por “descargas elétricas anormais na atividade dos neurônios,

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uma espécie de curto-circuito cerebral” (MANTOVANI,

2006, p.7), os locais dessas descargas apontam para as

características das crises. Caso a descarga tenha sido numa

região cerebral responsável pelo controle da visão, o paciente

poderá ver alterações de luz, flashes, caso seja uma região

responsável pelo sentir a pessoa poderá ter sensações de dejá

vú, etc. Todos os registros deixados pelo autor apontam,

segundo neurologistas, para este tipo de crises, assim

justifica-se o que o autor escrevera ao irmão sobre sentir

“todo o tipo de crise”.

A segunda crise dá-se de maneira mais branda, mas não

menos desconcertante:

“Ergue-se por um instante, enquanto falava. De

repente o ancião o olhou estupefato, sendo que

Lizaveta Prokófievna(1), erguendo os braços,

aturdida, exclamou: “Deus do Céu!”, pois fora a

primeira a perceber a terrível surpresa. Nisto,

Aglaia(2) se precipitou donde ele estava para ele e

ainda chegou a tempo de tomá-lo nos braços,

ouvindo com terror, a face repuxada pela angústia,

aquele uivo selvagem do “espírito que dilacera e

rasga um desgraçado” ” (DOSTOIÉVSKI, 1869,

p.564, 565).

“O cérebro funcionava bem, apesar da alma estar

inquieta e aflita” (DOSTOIÉVSKI, 1869, p.566).

Intervalo entre as crises

Cabe aqui um registro do que é conhecido como

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“sintomatologia interictal” (DIEGUEZ, 2006, p.80), esta

corresponde ao conjunto de sintomas que se manifestam entre

uma crise e outra. Tais sintomas apontam na direção de um

tipo de personalidade próprio dos portadores de epilepsia do

lobo temporal (DIEGUEZ, 2006).

Mesmo controvertida, esta teoria já foi várias vezes aplicada a

Dostoiévski (DIEGUEZ, 2006), chegando mesmo ao ponto de

alguns neurologistas a classificarem de “epilepsia de

Dostoiévski” (DIEGUEZ, 2006, p.81).

Este “tipo” de epilepsia seria caracterizado por:

“(...) aderência excessiva a determinadas idéias,

detalhes ou pessoas; tendência compulsiva a

escrever, alto senso de moralidade e preocupação

com questões éticas relativas ao bem e ao mal,

acompanhada de idéias místicas e religiosidade,

seriedade excessiva, sentimento de culpa e

perseguição, grande emotividade; falta de interesse

pela sexualidade; convicção num destino pessoal fora

do comum”(DIEGUEZ, 2006, p.81).

Conforme Coelho (1980) algumas reações psicológicas são

consideradas, por alguns autores, particulares ao epilético.

Alguns chegam a falar em “personalidade epilética”

(COELHO, 1980, p.27), que seria o conjunto de

manifestações emocionais que surgem ante as dificuldades

que enfrentam os portadores para alcançar uma razoável

adaptação ao ambiente.

Ainda assim, conforme a autora já acima citada, toda tentativa

de simplificação, no caso da “personalidade epilética”, dos

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aspectos psicopatológicos a alguns traços de personalidade

oferecem reduzida contribuição à complexidade dos

dinamismos psíquicos no estudo da epilepsia e da

personalidade.

Períodos pós-crise

Com relação ao que acomete a pessoa no período pós-crise,

também conhecido como período “pós-crítico” (DIEGUEZ,

2006, p.80), os sintomas variam conforme o tipo de convulsão

(parcial ou generalizada) e a duração da mesma.

Nesse período a pessoa poderá ficar inconsciente por alguns

instantes, confusa ou sonolenta. Nesses casos, segundo

Mantovani (2006); Donohoe (1982), deve-se informar a

pessoa do ocorrido, permitir que a pessoa descanse em

posição confortável; E, não há necessidade de alarmar-se caso

a convulsão apresentar duração menor que um ou dois

minutos, não for seguida por outras crises e certamente se a

pessoa não se machucar, não for diabética, não estiver grávida

ou doente.

No romance, Dostoiévski (DOSTOIÉVSKI, 1869), através de

seu herói, descreve quais os sintomas que o acometiam nos

períodos do pós-crise. Segundo Dieguez (2006) o autor levava

vários dias para se recuperar de uma crise e neste período

sofria de distúrbios de memória, depressão, sentindo-se tão

confuso a ponto de ter dificuldades para escrever.

“Eu acabara de ter uma série violenta e lancinante de

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ataques da minha doença. Sempre que piorava e os

acessos vinham com mais freqüência eu caía numa

estupefação. Perdia a memória e embora o meu

cérebro trabalhasse, parecia que a seqüência lógica

das minhas idéias se tinha quebrado. Era incapaz de

ligar mais do que dois ou três pensamentos. Pelo

menos é a impressão que me dava. (...) Lembro-me

que vivia permanentemente assustado e com pavor.

O mais chocante era tudo me parecer estranho. Tudo

me parecia alheio e isso me oprimia”

(DOSTOIÉVSKI, 1869, p.56).

“O príncipe alquebrado, deprimido e fisicamente

incapacitado (...) isto é três dias depois do ataque,

parecia estar bem, embora sentisse ainda, por dentro,

as conseqüências do mal” (DOSTOIÉVSKI, 1869,

p.244).

Vemos nestas duas passagens o quanto o autor projetava seus

sintomas no príncipe, ou seja, o quanto ele reproduziu no

príncipe aspectos que lhe eram próprios.

A diferença na sintomatologia, dependendo do tipo e do grau

da crise é ilustrada na segunda crise de Míchkin, esta um

pouco mais branda e por isso mesmo com sintomas

ligeiramente diferentes da primeira:

“O ataque da noite anterior fora de pouca

importância, só lhe permanecendo agora, sem contar

a depressão e o enfado, dores de cabeça e pelos

membros. O cérebro funcionava bem, apesar da alma

inquieta e aflita” (DOSTOIÉVSKI, 1869, p.566).

_______________ (1) Nome completo da Sra. Epantchína. (2) Heroína do romance.

A fim de finalizarmos esta análise, faz-se importante citar o

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caráter de ambivalência revelado por esta. Dostoiévski (1869)

em todo o romance ao se referir à epilepsia o faz de modo

ambíguo, ora associando-a a dor e sofrimento, ora

relacionando-a a êxtase e magnitude da alma.

Em seu artigo “O Estranho” (FREUD, 1919) Freud (1919)

nos direciona a compreensão da ambivalência e, nos

aproveitando de alguns trechos do romance finalizaremos esta

análise sob este viés.

O modo como Míchkin era visto entre os que o circundavam,

variava da compaixão ao desprezo pelo fato de ser ele

epilético. O modo como o próprio príncipe via-se, muitas

vezes complacente com seus pares, também ambíguo por não

se considerar doente, mas ao mesmo tempo não revidar as

injúrias que lhe eram direcionadas, apontam para o fato de ele

também não saber, ao certo de quem ele se tratava.

“Em boa hora lhe confesso, (...) que em tempos

estive tão doente, que realmente fiquei quase um

idiota. Mas já há muito tempo que me restabeleci, e

portanto não admito que me chamem de idiota no

rosto. Conquanto eu, em consideração à sua má sorte

de hoje, lhe possa perdoar isso, pois compreendo o

que seja confusão;” (DOSTOIÉVSKI, 1869, p. 91)

“Sim, sou um idiota, verdadeiramente um idiota,

disse para si mesmo, num paroxismo de vergonha e

de mal estar” (DOSTOIÉVSKI, 1869, p.284).

Em outro trecho do romance após Míchkin ter sido

apresentado a Sra. Epantichína, esta sentencia:

“Verifico, com prazer, que o senhor não se aproxima

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da criatura estranha que me foi descrita como sendo

o senhor!” (DOSTOIÉVSKI, 1869, p.54).

Mais adiante outro personagem se dirige ao príncipe:

“Não concordo e até me indigno quando alguém o

chama de idiota. O senhor é inteligente demais para

merecer essa classificação. Mas o senhor é tão

estranho que não se assemelha a nós outros...”

(DOSTOIÉVSKI, 1869, p.589).

Em “O Estranho” Freud (1919) nos fala sobre a ambivalência

através desta categoria aleatória do que nos causa estranheza,

do que nos é estranho e do caráter duplo que permeia este

conceito.

Freud (1919) parte do princípio de que o estranho é “tudo

aquilo que desperta medo em geral” (FREUD, 1919, p.86), e a

partir desta colocação ele realiza um extenso estudo

lingüístico no qual analisou o significado, as origens da

palavra em vários idiomas, e ao que a ela está relacionado.

Em sua pesquisa o autor nada encontra que possa relacionar

ao que é estranho algo que seja belo, atraente ou sublime

(FREUD, 1919), ou seja, a sentimentos de natureza positiva.

Pelo contrário, às estranhezas estão relacionados sentimentos

de “repulsa e aflição” (FREUD, 1919, p.86). Para o autor o

estranho é “aquela categoria do assustador, que remete ao que

é conhecido, de velho e há muito familiar” (FREUD, 1919,

p.87), mas por outro lado, algo precisa ser acrescentado ao

que não é novo e não familiar para torná-lo estranho.

No trecho do romance, referente a Sra. Epantchína já citado,

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vemos que a personagem revela que antes mesmo de conhecer

o príncipe já o tinha como “criatura estranha”

(DOSTOIÉVSKI, 1869, p.54). A teoria freudiana sobre o

estranho afirma que a origem do sentimento de estranheza

está relacionada à “incerteza intelectual, de maneira que o

estranho seria sempre algo que não se sabe abordar” (FREUD,

1919, p.87).

O encontro com a Sra. Epantchína denota a aflição da mesma

em lidar com algo que ela não conhece, mas que ao mesmo

tempo mobiliza sentimentos hostis em relação a esse “algo”

que numa análise mais aprofundada poderíamos dizer se tratar

de sua própria estranheza. Do que nela é familiar e

desconhecido ao mesmo tempo. Familiar por que lhe é

próprio e desconhecido por ser recalcado.

Assim, no romance podemos compreender o porquê de

Dostoiévski (1869) colocar-se através de seus personagens –

em especial Míchkin, de modo ambíguo com relação à

epilepsia.

Se o estranho é algo que nos é ao mesmo tempo familiar e que

não sabemos como lidar, depreende-se que o autor demonstra

em “O Idiota” (DOSTOIÉVSKI, 1869) o quanto lhe era caro,

ainda que o fosse vulgar, lidar com sua condição de epilético.

Desta forma o caráter duplo desta condição revela-se, entre

outros aspectos, no modo como Dostoiévski (1869)

descrevera as crises epiléticas. Ao mesmo tempo em que estas

deixavam-no deprimido e debilitado, era também através

delas que ele de próprio punho escrevera, que pelos

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momentos de êxtase (auras) que provocavam, ele seria capaz

de dar a própria vida.

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3. Conclusão

Em suma, a análise do romance “O Idiota” (DOSTOIÉVSKI,

1869) demonstra o quanto a epilepsia sofrida por Dostoiévski

(1869) permeou, influenciou e até mesmo determinou o cerne

desta obra.

Em todo o romance a epilepsia aparece de modo a ser mais do

que um acessório do protagonista - ela cumpre função na

trama. Através das minuciosas descrições a cerca das

convulsões e do modo como o epilético era visto socialmente

se desenvolve a trama, bem como o modo como o próprio

autor se colocava em função destes aspectos.

Assim conclui-se que a epilepsia do autor, na obra “O Idiota”

(DOSTOIÉVSKI, 1869) é mais do que impacto, mas sim o

próprio enredo, o próprio romance.

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