112
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA MARIANA LEME BELCHIOR A NOVA INTERPRETAÇÃO PLATÔNICA: AS CONTRIBUIÇÕES DE SCHLEIERMACHER À ESCOLA DE TÜBINGEN-MILÃO Brasília DF 2011

UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA - core.ac.uk · 1. O PRINCÍPIO DA TRADIÇÃO HERMENÊUTICA 18 1.1. A contribuição de Schleiermacher: uma nova prática hermenêutica 21 1.1.1. Perspectiva

Embed Size (px)

Citation preview

UNIVERSIDADE DE BRASLIA

INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA

MARIANA LEME BELCHIOR

A NOVA INTERPRETAO PLATNICA: AS CONTRIBUIES DE

SCHLEIERMACHER ESCOLA DE TBINGEN-MILO

Braslia DF

2011

2

MARIANA LEME BELCHIOR

A NOVA INTERPRETAO PLATNICA: AS CONTRIBUIES DE

SCHLEIERMACHER ESCOLA DE TBINGEN-MILO

Dissertao apresentada ao Programa de

Ps-Graduao em Filosofia do

Departamento de Filosofia do Instituto de

Cincias Humanas da Universidade de

Braslia, como requisito para obteno do

ttulo de Mestrado em Filosofia.

Orientador: Prof. Dr. Gabriele Cornelli

Braslia DF

2011

3

Belchior, Mariana L.

A nova interpretao platnica: as contribuies de Schleiermacher escola de

Tbingen-Milo/ Mariana Leme Belchior. 2011.

112 f.

Orientador: Prof. Dr. Gabriele Cornelli

Dissertao (Mestrado) Programa de Ps-Graduao em Filosofia do Departamento

de Filosofia. rea de Concentrao: filosofia Antiga. Instituto de Cincias Humanas da

Universidade de Braslia.

1. Histria da Filosofia Antiga; 2. Plato; 3. Hermenutica; 4. Escola de Tbingen-

Milo.

4

MARIANA LEME BELCHIOR

A NOVA INTERPRETAO PLATNICA: AS CONTRIBUIES DE

SCHLEIERMACHER ESCOLA DE TBINGEN-MILO

Banca Examinadora

........................................................................................ Prof. Dr. Gabriele Cornelli (UnB)

........................................................................................ Prof. Dr. Dennys Garcia Xavier (UFU)

........................................................................................ Profa. Dra. Loraine Oliveira (UnB)

5

Aos meus maiores incentivadores,

minha me e meu amor.

6

AGRADECIMENTOS

Ao meu estimado orientador Prof. Dr. Gabriele Cornelli, pela dedicao, pacincia e

orientao constante destes (quase) onze anos de amizade.

compreenso, o companheirismo e a ternura diria de meu grande amor, Richard.

As mulheres de minha vida, minha me e irms (Fernanda e Clara), que sempre me

deram todo o amor e apoio necessrio para a vida.

Ao grande amigo Jonatas Rafael, pela dedicao, apoio e amizade nesta etapa final.

As queridas amigas Talita Flor e Ana Beth, pelas indicaes precisas sobre forma e

contedo e, especialmente, pela amizade verdadeira.

Ao atencioso Gerson Bra por me apresentar as leituras de Schleiermacher.

Ao grupo Archai, pelas oportunidades acadmicas e pessoais.

Aos professores Maurizio Migliori, que gentilmente me enviou muitos textos sobre a

pesquisa, e Dennys Xavier, pelas conversas informais e indicaes precisas.

7

Lembro que Bernard Shaw disse que Plato foi o

dramaturgo que inventou Scrates [...]

Mas podemos dizer que Plato tinha saudades de

Scrates, Depois da morte de Scrates ele ter dito a si

mesmo: Ora, o que Scrates diria sobre essa minha

dvida especfica?. E ento, a fim de ouvir mais uma

vez a voz do mestre a quem amava, escreveu os

dilogos. Em alguns desses dilogos, Scrates

representa a verdade. Em outros, Plato dramatizou os

seus vrios humores. E alguns no chegam a concluso

alguma, porque Plato estava pensando medida que

escrevia; ele no sabia qual seria a ltima pgina

quando escreveu a primeira.

Jorge Luis Borges.

8

RESUMO

A historiografia platnica, a partir dos anos 50, se concentrou numa questo de ampla

relevncia para a compreenso da filosofia de Plato, que diz respeito ao fato de que h certa

discrepncia entre a imagem que Plato oferece em sua filosofia nos dilogos e aquela que

seus discpulos nos transmitiram. Este problema historiogrfico j havia sido abordado por

Schleiermacher no sculo XIX ao elaborar uma teoria do dilogo como uma forma de

representao, que vincula a filosofia de Plato a uma comunicao direta e indireta, capaz de

influenciar diversos autores ao longo dos sculos XIX e XX. Este debate recebeu uma

instigante soluo pela assim chamada escola de Tbingen-Milo, representada por

comentadores como Gaiser, Krmer e Szlzk que indicam uma possvel soluo a esta

questo hermenutica. Recentemente esta proposta da escola de Tbingen-Milo foi

encabeada por Reale, que prope uma complexa teoria que tende a demonstrar que nas

doutrinas orais de Plato que se deve procurar uma filosofia mais original. Assim, a

dissertao buscar investigar a relao entre a hermenutica schleiermacheriana e a

compreenso histrica da figura de Plato, a partir da influncia do mtodo de Schleiermacher

ao novo paradigma hermenutico proposto pela Escola de Tbingen-Milo.

Palavras-chave: Histria da Filosofia Antiga; Plato; Hermenutica; Escola de Tbingen-

Milo.

9

ABSTRACT

Dating from the 50s, platonic historiography has concentrated on a question of great relevance

for the comprehension of Platos philosophy, concerning the fact that there is a discrepency

between the image which Plato gives his philosophy in the dialogues and the one which his

disciples handed down to us. This historiographic problem has already been addressed by

Schleiermacher in the XIX century when he elaborated a theory of the dialogue as a form of

representation, which links Plato's philosophy to a direct and indirect communication, capable

of influencing several authores through the XIX and XX centuries. This debate had an

instigating solution by the so called school of Tbingen-Milan, represented by

commentators such as Gaiser, Krmer and Szlezk, who point to a possible solution to this

hermeneutic question. This proposal by the school of Tbingen-Milan has recently been

headed up by Reale, who proposes a complex theory, which intends to show that it is in

Platos spoken doctrines that a more original phylosophy should be sought out. Thus, the

dissertation will investigate the relation between the Schleiermacherian hermeneutics and the

historical comprehension of Plato, starting with the influence of Scheiermachers method to

the new hermeneutic paradigma proposed by the school of Tbingen-Milan.

Keywords: History of ancient philosophy; Plato; Hermeneutic; School of Tbingen-Milan.

10

LISTA DE QUADROS

Quadro 1: Trilogia dos dilogos de Plato 38

Quadro 2: Paradigma Tradicional x Paradigma Alternativo 58

Quadro 3: O escrito x A oralidade 88

11

SUMRIO

INTRODUO

12

1. O PRINCPIO DA TRADIO HERMENUTICA

18

1.1. A contribuio de Schleiermacher: uma nova prtica hermenutica

21

1.1.1. Perspectiva histrica da origem da hermenutica

22

1.1.2. Schleiermacher e o mtodo hermenutico

23

1.2. Os dilogos platnicos: Schleiermacher e a Introduo aos dilogos de Plato

29

1.3. Uma nova interpretao platnica: as contribuies schleiermacherianas

40

2. OS PARADIGMAS HERMENTICOS E AS DOUTRINAS NO ESCRITAS

42

2.1. A Escola de Tbingen-Milo e os fundamentos do paradigma alternativo

47

2.1.1. A crtica ao paradigma schleiermacheriano

50

2.1.2. A tradio oral e os testemunhos

54

2.1.3. Os autotestemunhos de Plato e a autonomia dos dilogos 55

2.2. A oposio a Escola de Tbingen-Milo

61

2.2.1. A crtica a novo paradigma da Escola de Tbingen-Milo

63

2.2.2. Fedro e Carta VII: um problema interpretativo?

65

3. A ANLISE DOS DILOGOS: FEDRO E CARTA VII

68

3.1. A questo sobre oralidade e escrita nos dilogos 71

3.2. A comunicao no Fedro e na Carta VII

95

CONSIDERAES FINAIS

99

REFERNCIAS 104

12

INTRODUO

Na Grcia antiga do sculo VIII a.C., possvel identificar o desenvolvimento e a

expanso gradual da palavra escrita em uma sociedade fundamentalmente oral.

Segundo Thomas (1992, pp.79-81), no se pode indicar qual foi o fator determinante

da admisso da escrita para os gregos, ou seja, se foi para uso comercial ou para escrever

poesias. O que se pode rastrear a maneira como este tipo de comunicao se dissemina

rapidamente nas comunidades gregas. A escrita grega seguramente no era esotrica, pois

devido ampliao de seu uso em inscries pblicas a grafitos, dedicatrias e cermicas,

pode-se concluir que no era de uso limitado dos escribas.1 Entretanto, no possvel

distinguir sobre o mpeto da escrita sem avaliar a essncia do no-escrito.

A relao entre oralidade e escrita, na Grcia antiga, se desenvolve de maneira

gradativa a partir das interaes com os fencios. Apesar de a introduo da escrita ser, de

fato, gradativa na Grcia, foi certamente fundamental para os primeiros pensadores helnicos,

entre eles, Plato.

Plato foi o primeiro filsofo a demonstrar uma produo escrita quantitavivamente

extensa, seja atravs de seus dilogos ou por meio de suas cartas. Enquanto que, dos pr-

socrticos, foram identificados apenas fragmentos, em Plato foi possvel determinar grande

parte de sua produo escrita, seja pelos prprios textos que temos, seja pelos relatos de

discpulos e comentadores antigos.2

A filosofia platnica sempre foi um dos poucos pontos de referncias fixados aos

demais intrpretes ou comentadores. A partir das ideias platnicas, se distribuem de forma

ordenada outros filsofos e outras escolas de pensamento como, por exemplo, o Liceu de

1 Em Atenas, foram encontrados pelo menos 154 grafitos com datas referentes apenas ao sculo VII (THOMAS

1992, p.81). A datao da obra refere-se primeira verso de publicao, mas utilizo nas citaes a traduo de

Raul Fiker, mantendo a paginao da edio de 2005. 2 Os escritos de Plato chegaram-nos integralmente. So trinta e cinco dilogos e doze cartas: Eutfron, Apologia

de Scrates, Crton, Fdon, Crtilo, Teeteto, Sofista, Poltico, Parmnides, Filebo, Banquete, Fedro, Alcebades

I, Alcebades II, Hiparco, Amantes, Teages, Crmides, Laqus, Lisis, Eutidemo, Protgoras, Grgias, Menon,

Hpias menor, Hpias maior, on, Menexeno, Clitofonte, Repblica, Timeu, Crtias, Minoxe, Leis, Epnomis e

Cartas (REALE 1975-1980, p.9). No falaremos do debate sobre a autoria de dilogos, como Leis, ou sobre a

autoria das cartas, exceto a discusso que cerca a Carta VII, um dos objetos necessrios a este texto. A datao

da obra refere-se primeira verso de publicao, mas utilizo nas citaes a traduo de Henrique C. De Lima

Vaz e Marcelo Perine, mantenho a paginao da traduo da edio revisada de 2007.

13

Aristteles.3 As diferentes maneiras de como se relaciona a figura de Plato ao contexto

filosfico tm, muitas vezes, representado um importante instrumento avaliativo s

colocaes de um terico da filosofia.

Neste sentido, afirma Reale (1975-1980, pp. 9-10), a filosofia de Plato pode ser

considerada a mais estimulante e influente por mais de um milnio. Os ensinamentos

platnicos, sobre como interpretar a realidade atravs de seus mtodos inovadores, so

capazes de ensinar um novo olhar sobre a realidade.

No entanto, desde a antiguidade - e j com seus primeiros discpulos - a compreenso

da filosofia, do prprio Plato, uma atividade bastante complexa, tanto pelos contedos

filsoficos apresentados em seus dilogos, quanto pelas questes metodolgicas e

epistemolgicas que a obra do grande filsofo fazem emergir. Assim, ao longo dos sculos, a

filosofia de Plato foi reinterpretada sob as diferentes vertentes metodolgicas propostas por

seus intrpretes e comentadores e, como no poderia ser diferente, novas interpretaes da

filosofia e da fgura de Plato surgiram na histria da filosofia.

De acordo com Santos (2008, pp. 19-21), a problemtica que envolve a interpretao

do corpus platnico deve-se a uma ampla diversidade de fatores como o conhecimento da

literatura e da cultura grega e os fatores estilsticos e literrios de sua obra. A filosofia e a

obra de Plato sempre constituram realidades distintas, por dois motivos: primeiro porque

a leitura de seus dilogos s gradualmente pode proporcionar a compreenso da filosofia

platnica. Ou seja, possvel encontrar mitos, interldios, amalgados num todo impossvel

de sintetizar numa concepo unitria. E, consequentemente, encontramos o segundo

motivo: a viso unitria da filosofia platnica mais facilmente colhida a partir das obras de

seus comentadores e intrpretes atravs da doutrina ou pensamento platnico.

A tradio platnica pode ser, portanto, interpretada a partir de duas fontes: a tradio

direta, aquela apresentada em seus Dilogos, e a tradio indireta platnica, transmitida pelos

seus discpulos mais prximos, como Aristteles, Xencrates e Espusipo. O primeiro grande

comentador da filosofia de Plato foi seu ilustre discpulo Aristteles. Sua leitura de Plato,

no decorrer dos sculos, tem-se apresentado como um dos pontos de discordncia entre as

diferentes anlises interpretativas do pensamento platnico. Sabe-se que o estagirita, alm de

fazer vrias crticas ao seu mestre, teria compartilhado com os colegas de Academia e,

tambm, com seus discpulos, um conjunto de concepes, teorias e doutrinas que os

3 Para Reale (1975-1980, pp.8-9), o prprio Aristteles depende estruturalmente das ideias de Plato. Aps a

era helenstica e durante os prximos seis sculos, tudo que influenciou ou contribuiu de maneira significativa ao

estudo filosfico advm do pensamento de Plato, mesmo que de maneira indireta.

14

dilogos no revelariam ou identificariam como sendo de Plato. J a questo estilstica e

literria est interligada linguagem e forma de escrita adotada por Plato: o dilogo. O

pensamento platnico deve ser interpretado com base nos seus dilogos e atravs de seus

intrpretes e comentadores. Contudo, para Santos (2008, p.21), aqui que identificamos um

dos problemas centrais que envolvem a interpretao do corpus platnico: o lugar da tradio

indireta no pensamento platnico.

De acordo com Trabattoni (1994, pp. 03-10), necessrio que sejam analisadas

cuidadosamente as vrias facetas interpretativas atribudas a Plato e sua escola.

certamente o caso da identificao de Plato enquanto pai da metafsica clssica e defensor

do dualismo ontolgico que foi reconhecido especialmente no mundo anglo-saxo, onde a

tradio v um trao comum que une Plato a Descartes, e, em seguida, um determinado

realismo epistemolgico que se tornou referncia na Inglaterra na virada do sculo XX. J nos

dois ltimos sculos, surgem outros modelos interpretativos de Plato: o proposto pela escola

Neo-kantiana de Marburg, o Plato Poltico do Novo Humanismo Alemo, a releitura de

Plato luz do existencialismo de Jaspers, a hermenutica moderna de Schleiermacher e, por

fim, a filosofia analtica contempornea.

No decorrer desta dissertao, portanto, buscaremos elementos metodolgicos que

apontem para uma anlise do pensamento platnico, em seus textos e interpretaes ao longo

da histria.

De maneira especial, a interpretao proposta pelo alemo Schleiermacher no sculo

XIX fundamenta-se em uma anlise metodolgica hermenutica que vincula a filosofia de

Plato a uma comunicao direta e indireta. O mtodo hermenutico schleiermacheriano foi

capaz de influenciar diversos autores ao longo dos sculos XIX e XX.

A partir desta imagem de Plato e das novas possibilidades interpretativas, vem tona

um velho problema historiogrfico j detectado por estudiosos como Robin (1908), Stenzel

(1924), Gomperz (1930) e Cherniss (1935). Assim, em um primeiro momento, o grande

impasse encontra-se na relao entre os dilogos de Plato e as doutrinas no escritas

apresentadas pelos seus primeiros discpulos, especialmente Aristteles. Segundo os

testemunhos destes, Plato teria apresentado uma srie de doutrinas matemticas e

ontolgicas. O problema que no parece haver vestgios delas nos dilogos. Assim, diante

dos relatos dos discpulos, surgiu uma polmica entre os vrios estudiosos sobre o tema com

relao ao valor a ser dado a estes testemunhos para a compreenso da filosofia de Plato.

Uma primeira tentativa de superar o impasse representada pela tese de Cherniss (1935) ao

15

afirmar que a tradio indireta teria sido mal interpretada pelos antigos discpulos de Plato,

notadamente por Aristteles.

Surge, no final dos anos cinquenta, na Universidade de Tbingen, com Gaiser e

Krmer, a proposta de uma nova interpretao de Plato. Para eles, a tradio indireta deveria

ser considerada o vrtice da filosofia de Plato, enquanto os seus dilogos deveriam ser

considerados instrumentos preparatrios e introdutrios filosofia de Plato.

Na dcada de oitenta, Thomas Szlezk, que pode ser considerado o terceiro membro

da escola de Tbingen, acrescentou novos argumentos s crticas apresentadas por Gaiser e

Krmer. Em 1982, os tubingueses despertam a ateno de Giovanni Reale, que contribui de

maneira significativa a esta nova interpretao, ao ponto de a escola tornar-se conhecida como

Escola de Tbingen-Milo.4

A base da tese dos tubingueses fundamenta-se em trs paradigmas. O paradigma

originrio, nascido dentro da prpria Academia platnica, com seus discpulos e intrpretes

mais prximos, baseava-se na natureza teortica do conhecimento e priorizava as doutrinas

no escritas ou os ensinamentos orais de Plato.5 O segundo paradigma, o moderno, que

tambm foi denominado pela escola de Tbingen-Milo como romntico e apresentado por

Schleiermacher, prioriza os dilogos como fonte de referncia filosofia platnica.6 E, por

ltimo, o novo paradigma hermenutico proposto pelos tubingueses: para eles, o eixo de

sustentao da filosofia de Plato estaria nas doutrinas no escritas, e no em seus dilogos.

Estaria de fato contida no Fedro e na Carta VII7 uma dura crtica utilizao da escrita. A

crtica tomaria a forma de testemunhos do prprio Plato, por este motivo denominados de

autotestemunhos (REALE 1984, pp.26-51).

O objetivo dos tubingueses era invalidar a proposta hermenutica apresentada por

Schleiermacher, visando sua superao atravs da incorporao da nova proposta

hermenutica por eles apresentada.

Desde as primeiras publicaes da Escola de Tbingen-Milo dedicadas a este novo

paradigma hermenutico e proposta de uma nova interpretao de Plato, a maioria dos

4 Somente com a publicao de 1997 da traduo de Para uma nova interpretao de Plato, de Reale, que o

pblico brasileiro teve acesso mais diretamente a esta teoria e a um debate que envolve os maiores centros de

pesquisa platnicos europeus h, pelo menos, vinte anos. (PERINE 2009). 5Os principais representantes desta interpretao seriam Aristteles, Espeusipo e Xencrates. Entretanto, apesar

de priorizar os dilogos como base para o pensamento terico, tambm os neoplatnicos podem ser enquadrados

aqui pela proximidade histrica e conceitual. Entre eles pode-se citar Albino, Plotino, Proclo, Santo Agostinho e

at Ficino (REALE 1984, p.27; HSLE 2004, pp.39-55). 6 Schleiermacher (1804, pp. 41-46) defende a autarquia dos dilogos, deixando em segundo plano a tradio

indireta. 7 Mantenho nas notas de referncia o nome cannico de Phaedrus para a obra Fdro, bem como Epistola VII, e

sua abreviao Epist., para a Carta VII.

16

comentadores no se posicionaram sobre tal iniciativa (TRABATTONI 1994, pp. 01-09).

Entretanto, hoje encontramos diversos opositores escola, como Isnardi Parente, Brisson,

Trabattoni, Gonzalez, entre outros.

De acordo com Trabattoni (1998, pp.25-27), a negao das doutrinas no escritas

apresenta-se dividida em trs sub-hipteses: a) a maioria dos testemunhos que fundamenta

a tradio indireta advm de Aristteles e seus discpulos mais prximos, como Teofrasto,

Aristxeno e, consequentemente, de seus comentadores, especialmente Alexandre de

Afrodisia e Simplcio. Aristteles, porm considerado por alguns comentadores como

fonte no confivel; b) a tradio indireta apresenta doutrinas elaboradas no interior do

"ambiente acadmico por meio da exposio de Plato e de outros pensadores como

Espusipo e Xencrates; c) as doutrinas apresentadas pela tradio indireta so de fato

platnicas, mas, se analisadas com cautela, demonstram ser apenas mera reelaborao das

doutrinas consignadas por Plato. Assim, para Trabattoni, fica evidente que as possveis

diferenas entre as doutrinas escritas e orais, transmitidas por Aristteles, devem ser

compreendidas como uma evoluo da anlise feita por Aristteles.

Mediante a verificao historiogrfica de dados tericos sobre a tradio platnica e a

comparao dos primeiros testemunhos platnicos com relao escrita apresentada nos

dilogos, e s diferentes interpretaes e posies dos estudiosos ao longo dos anos sobre a

questo da oralidade no pensamento platnico, a presente dissertao procurar traar novas

possibilidades de articulao das linhas fundamentais do pensamento de Plato, a partir da

anlise da discusso contempornea sobre a oralidade e a escrita na obra de Plato. Dada a

importncia da filosofia de Plato para a compreenso no somente da filosofia antiga, e sim

do prprio desenvolvimento do pensamento ocidental como tal, uma abordagem cautelosa e

crtica teoria das doutrinas no escritas de Plato se faz necessria. De problema

estritamente historiogrfico, de fato, a questo da relao entre escrita e oralidade em Plato

assume os contornos de um problema fundamental para a compreenso do prprio fazer-se

da filosofia como tal, em busca de definies descontnuas e frgeis de seus mbitos e de sua

metodologia, entre dilogo aberto e tese definida.

Neste sentido, a pesquisa se dividir em trs captulos. No primeiro captulo,

retomaremos os fundamentos tericos e filosficos do estudo hermenutico apresentado por

Schleiermacher, tanto como instrumento metodolgico de interpretao atravs da

emancipao do estudo hermenutico como de uma disciplina independente das outras, alm

de sua contribuio para a interpretao da filosofia de Plato.

17

J no segundo captulo, abordaremos a influncia do mtodo de Schleiermacher sobre

os comentadores dos sculos XIX, XX e XXI. A proposta hermenutica apresentada por

Schleiermacher ser considerada como um importante ponto de partida para as novas

interpretaes do pensamento platnico, uma vez que os estudiosos da escola de Tbingen-

Milo utilizam-se de seus fundamentos tericos para a criao de um novo paradigma

hermenutico, ainda que se oponham ao paradigma schleiermacheriano. Da mesma forma, os

que criticam a Escola e seu paradigma, de vrias maneiras, fazem referncia s indicaes

metodolgicas apresentadas pelo mesmo Schleiermacher.

Por fim, no terceiro captulo, com base na proposta apresentada pela Escola de

Tbingen-Milo, em como reinterpretar o pensamento platnico sob este novo paradigma

hermenutico, analisaremos passagens centrais da obra de Plato, notadamente da Carta VII e

Fedro, a fim de ilustrar em que medida, ainda hoje, as premissas metodolgicas utilizadas por

Schleiermacher encontram-se presentes no debate contemporneo sobre estes textos e a obra

platnica mais em geral.

18

CAPTULO I O PRINCPIO DA TRADIO HERMENUTICA

As inquietaes de Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher, sobre a importncia de se

pensar a relao entre o autor e o leitor na obra de Plato, associavam-se diretamente falta

de uma metodologia especfica que interpretasse os ensinamentos platnicos, fossem eles

orais ou escritos, e no mais atravs da utilizao da comunicao oral e escrita como

instrumentos de representao das alegorias e mitos na Grcia antiga.8

O homem grego pensava e escrevia tendo como base o dilogo, o que permitia

diversas formas de interpretao de um mesmo texto,9 mesmo com a ampla utilizao dos

textos escritos, da qual temos como exemplo o relato de Digenes Larcio sobre Filolau, onde

se diz que Plato mandou comprar livros deste (Filolau).10

Esse fato mostra uma ampla

propagao da escrita ao menos no interior da Academia Platnica e entre outras escolas de

8 Na Grcia antiga do sculo VIII a.C., pode-se observar o desenvolvimento gradual da palavra escrita numa

sociedade muito mais oral. A escrita alfabtica chega ao mundo grego na primeira metade do sculo VIII a.C..

De acordo com Thomas (1992, pp. 73-80), a escrita e o alfabeto foram adotados dos fencios da costa do

Levante com quem os gregos mantinham contato. A regio de Creta, Chipre, Al Mina, na Sria, e outras, nas

quais os eubeus comercializavam, so regies onde possvel comprovar uma escrita mais antiga e prxima s

formas da escrita fencia. O mercador grego, j familiarizado com a escrita fencia, incorpora o sistema bsico a

fim de tornar a escrita fencia mais adaptvel. Segundo Thomas, estudiosos do Oriente Mdio tendem a

recuar a data para o incio do sculo IX ou X a. C. atravs da anlise das formas das letras, contudo, as

descobertas recentes sobre os materias dos escritos so arqueologicamente datados para o sculo VII a. C. A

utilizao do alfabeto pelos gregos no transformou suas vidas. Em algumas reas, sua utilizao foi para

propsitos bem limitados e, em outras, demoraram dcadas para sua incorporao. A datao da obra refere-

se primeira verso de publicao, mas utilizo nas citaes a traduo de Raul Fiker, mantendo a paginao da

edio da traduo de 2005. 9 Para Reale (2009, pp. 211-213), entre o sculo V e a metade do sculo IV a. C, ocorre na Grcia uma das

maiores revolues culturais com o nascimento da civilizao da escrita e com a consequente superao da

cultura da oralidade potico-mimtica. A vitria da escrita sobre a oralidade corresponde ao perodo de vida

de Plato. Neste sentido, a questo que envolve o problema da oralidade e escrita nos textos platnicos se torna

ainda mais delicada. Afinal, para que se possa realizar uma anlise criteriosa sobre os aspectos filosficos de sua

obra, deve-se tambm considerar os fatores histricos como agentes determinantes da sua postura de filsofo-

escritor. De fato, afirma Trabattoni (1998, pp. 103-104), as obras de Plato no possuem as caractersticas de

tratados cientficos, pois no se trata de um texto impessoal. Ao contrrio, o intrprete se depara com

momentos de um discurso que podem ser esclarecidos unicamente luz do conjunto de ideias, aluses e

alegorias que foram apresentadas em seus dilogos, uma vez que, diferentemente dos grandes pensadores de sua

poca, Plato optou por utilizar as diferentes formas de comunicao, tanto oral quanto escrita, como

instrumentos de mediao e insero ao estudo filosfico, dentro ou fora da Academia. Ou seja, o mtodo

filosfico proposto nos dilogos platnicos deve ser descritos como um organismo argumentativo escrito em

vista de um certo objetivo.As datas das obras citadas referem-se data da primeira verso de publicao, mas

utilizo nas citaes a traduo de Fernando E. de Barros Rey Puente e Roberto Bolzani Filho, mantendo a

paginao da edio da traduo de 2003, para a obra de F. Trabattoni; e a traduo de Rossano Pecoraro de

2009 para o texto de G. Reale. 10 Nas notas de referncia, abreviaremos Digenes Larcio por D.L., e sua obra, Vidas e doutrinas de filsofos

ilustres, por Vidas. Assim, a referncia do trecho D.L., Vidas, VIII, 84. A traduo das citaes de Vidas de

Mrio da Gama Kury, Editora UnB, 2008.

19

pensadores ao longo da Grcia. Em muitos aspectos, a Grcia antiga pode ser considerada

uma sociedade oral, deixando a palavra escrita em segundo plano, pois o que deveria vir em

primeiro lugar, tanto na Academia quanto nas gorai, era o discurso falado, ou seja, o

proferimento de ensinamentos orais transmitidos por mestres e sbios. As comunicaes orais

e escritas so elaboradas de formas distintas, talvez complementares, se pensadas como

prticas discursivas, todavia ambas so expresses dos pensamentos interiores do indivduo.11

Este captulo tem por finalidade observar em que medida a discusso sobre o conceito

de hermenutica, presente na anlise de Schleiermacher, pode permitir a delimitao de dois

universos distintos, da exegese e da anlise filosfica, atravs de uma metodologia sistemtica

proposta pelo estudo hermenutico dos Dilogos de Plato.12

O estudo hermenutico proposto por Schleiermacher no s assinalou uma diferena

de valores entre os gregos e os pensadores modernos, como tambm ilustrou em que medida

era possvel estabelecer uma constncia relativa aos elementos que integravam a conceituao

do termo ao longo deste processo.13

Diante da necessidade de fundamentao de alguns

princpios tericos e prticos, a reflexo hermenutica de Schleiermacher acabou tornando-se

elemento indispensvel no cenrio filosfico, pois evidenciou a importncia de se considerar

determinadas situaes e elementos - tericos ou prticos - que permeiam o processo

interpretativo e alteram o sentido de algumas reflexes filosficas. O autor contribui assim

11 Encontramos tal idia em GRONDIN (1991, pp.52-53). A datao da obra refere-se primeira verso de

publicao, mas utilizo nas citaes a traduo de Benno Dischinger, mantendo a paginao da edio da

traduo de 1999. 12 Os manuscritos medievais que apresentam os dilogos platnicos incluem 24 dilogos e, ainda, 13 cartas que

foram atribudas autoria de Plato. O corpus platnico totaliza 37 ou mesmo 38 ttulos, sendo 24 consideradas

obras autnticas e 13 duvidosas. Haveria ainda mais 6 ou 7 seguramente apcrifas, elevando-se o nmero total a

44 ttulos. 13 Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher, telogo, fillogo e filsofo alemo, nasceu em Breslau em 12 de

novembro de 1768. A primeira publicao sobre Plato data de 1801, sendo uma resenha annima que criticava

um livro de F. Ast sobre o Fedro. Temos ainda as seguintes obras: Grundlinien einer Kritik des bisherigen

Sittenlehre (1803); discursos Sobre a religio (1806; 1821; 1831); Monlogos (1822; 1829); Die

Weihnachtsfeier (1806); Der christliche Glaube nach den Grundstzen der evangelischen Kirche (1822; 1831);

Introduo aos dilogos de Plato (1804); as monografias: Herclito, o obscuro de fesos (1808); Digenes de

Apolnia (1814); Sobre Anaximandro (1815); Sobre as obras ticas de Aristteles (1817); Sobre os comentrios

gregos tica a Nicmaco e Sobre o valor de Scrates (1819). Contudo, os textos sobre filosofia e

hermenutica permaneceram no publicados at que amigos e admiradores, aps sua morte em 12 de fevereiro

de 1834, encarregam-se de editar seus manuscritos sobre o tema: A. Schweizer, Entwurf einer System der

Sittenlehre (1835); F. Lcke, Hermeneutik und Kritik (1838); L. Jonas, Dialektik (1839), H. Ritter, Geschichte

der Philosophie (1839); A. Testen, Grundriss der philosophischen Ethik (1841) ; C. Lommatzsch, sthetik

(1842); C. A. Brandis, Die Lehre vom Staat (1845); C. Platz, Erziehungslehre (1849); L. George, Psychologie

(1864). E no ano de 1864 a publicao das Obras completas (Smtliche Werke) com 33 volumes organizados

em: I Zur Theologie, vol 1-13; II Predigten, vol. 14-23 e III Zur Philosophie und vermischte Schriften, vol.

24-33.

20

para estabelecer uma nova teorizao de ideias e conceitos platnicos, como sugerem suas

leituras dos dilogos de Plato conforme veremos a seguir.14

Para o alcance desse objetivo, recorreremos a trs passos ao longo deste primeiro

captulo. O primeiro passo consistir em discutir como, medida que nos aproximamos da

ideia de civilizao e identidade apresentada na cultura do sculo XX, nos distanciamos ainda

mais desta universalizao interpretativa que designa toda a cultura do mundo antigo.

Conforme afirma Hsle (2004, pp.43-46), de fato, o filsofo antigo no busca apenas

explicaes, mas sim a compreenso do todo.15

Buscaremos neste primeiro momento uma

lente hermenutica capaz de permitir que enxerguemos o mundo antigo, compreendendo as

alteraes que fazemos nele por sermos indivduos em tempos e espaos distintos.

No segundo passo, examinaremos a postura filosfica moderna, na qual pode se

constatar que a filosofia busca novas formas de aprimoramento e o estudo hermenutico deixa

de ser uma atividade auxiliar ao estudo filosfico. A partir dessa nova postura da filosofia,

busca-se recuperar a hermenutica, assumindo-se que no pode ser considerada apenas como

um conceito normativo que se caracteriza como um lugar vazio a ser preenchido pela

compreenso.

Por fim, ser abordada a relao do paradigma hermenutico proposto por

Schleiermacher e as interpretaes que dele derivamou seja, de que maneira Schleiermacher

se utiliza do estudo hermenutico como instrumento interpretativo para a anlise dos dilogos

platnicos.

1.1 A contribuio de Schleiermacher: uma nova prtica hermenutica

O perodo de transio entre os sculos XVIII e XIX foi marcado por mudanas

radicais, tanto no campo sociopoltico quanto no cultural por toda a Europa, e em especial na

Alemanha.

14 De acordo com Szlezk (1985, p.338), a teoria de Schleiermacher ficou conhecida como a teoria moderna do

dilogo platnico, pois suas ideias tiveram destaques nos sculos XIX e XX. A datao da obra refere-se

primeira verso de publicao, mas utilizo nas citaes a traduo de Milton Camargo, mantendo a paginao da

edio da traduo de 2009. 15 A datao da obra refere-se primeira verso de publicao, mas utilizo nas citaes a traduo de Antonio

Celiomar Pinto de Lima, mantendo a paginao da edio da traduo de 2004.

21

A Alemanha j demonstrava suas primeiras alteraes e novidades nos mbitos

cultural e literrio, desde a superao do Iluminismo, notadamente atravs do movimento

esttico literrio conhecido como Strm und Drang.16

Tal movimento romntico recebeu

influncia de grandes poetas, intelectuais e importantes pensadores como Macpherson,

Shakespeare, Rousseau, Lessing, Klopstock, Winckelmann, Goethe, Schiller, Jacobi, Herder,

Hrderlin, Schleiermacher, Novalis, entre outros (MOURA 2009, pp.166-168).17

1.1.1 Perspectiva histrica da origem da hermenutica

O termo romantismo passa a indicar o renascimento da emoo que o racionalismo

predominante do sculo XVIII no conseguiu extinguir.18

Assim, at o final do sculo, a

definio tradicional que constitua o termo clssico estava sendo desafiada pelos

romnticos, que dissolveram a categorizao convencional de formas literrias e recorreram

ao estabelecimento de um novo conjunto de regras que pudessem ser determinadas no pela

poca ou gnero, mas pela prpria poesia. Segundo Reale (1986, p. 16):

16 Segundo Reale (1986, pp.20-26), esta denominao advm de um drama escrito por Fred. M Klinger e pode

significar Tempestade e Assalto ou Tempestade e mpeto. A expresso foi utilizada por Schlegel como

smbolo deste movimento no incio do sculo XIX. O movimento Strm und Drang foi considerado por alguns

estudiosos da poca uma revoluo verbal em terras alems, que posteriormente viria a fundamentar a Revoluo

Francesa no campo poltico, conforme demonstra SAFRANSKI (2010). Em contrapartida, outros pensadores

consideravam este movimento uma reao antecipada prpria Revoluo Francesa e ao Iluminismo. A datao

da obra refere-se primeira verso de publicao, mas utilizo nas citaes a traduo para o portugus de

Marcelo Perine, mantendo a paginao da edio da traduo de 2005. 17 A figura de Winckelmann foi determinante para a nova postura de se pensar os gregos, adotada pelos

modernos. Suas ideias foram marcantes, tanto por sua concepo da arte grega clssica quanto pelo modo como

influenciou a nova posio adotada pelos artistas alemes em relao ao seu posicionamento sobre a arte grega,

pois distingue o imitar do copiar. Para Machado (2006, pp. 09-22), esse projeto de criao de um teatro

nacional representa o desenvolvimento de uma poltica nacionalista cultural inaugurado por Winckelmann no

sculo XVII. Segundo ele (Machado ou Winckelmann), esta poltica cultural buscava uma nova forma de se

pensar e compreender os gregos e sua proposta de ideal esttico baseado no conceito clssico de beleza. Neste

sentido, Winckelmann pode ser considerado um dos fundadores da teoria moderna sobre a histria da arte por ter

iniciado uma nova atitude em relao histria da arte. Goethe, por sua vez, foi profundamente influenciado

pelo projeto de Winckelmann. Contudo, somente aps sua viagem pela Itlia, entre os anos de 1786 e 1788,

comea a valorizar a noo de bela forma. E Schiller encontra na pea de Goethe a serenidade e a grandeza da

arte antiga. Schlegel, em virtude de conflitos com Schiller, se muda para Berlim em 1797, onde faz contato com

Schleiermacher, e passa a publicar a revista Athernaeum, smbolo do movimento. J Novalis morreu jovem, mas

foi considerado por muitos a voz potica do romantismo. Schleiermacher, por sua vez, alm de colaborar com a

revista de Schlegel entre os anos de 1804 e 1828, traduz os dilogos platnicos inserindo introdues e notas

comentadas sobre cada obra (GRONDIN 1991, pp.117-123). 18 Reale (1986, pp.07-25) apresenta uma srie de solues para a escolha deste termo, dentre as quais destaca as

formas historiogrfica (e geogrfica) como fatores determinantes, j que o romantismo designa o movimento

espiritual que envolveu no somente a poesia e a filosofia, mas tambm as artes figurativas e a msica, que se

desenvolveu na Europa entre os fins do sculo XVIII e a primeira metade do sculo XIX.

22

Com efeito, o classicismo tem grande importncia na formao do esprito da

poca [...], e pouco a pouco, se impe no apenas como antecedente, mas at como

componente do prprio romantismo ou at como um de seus plos dialticos.

Nessa fase de transio, a utilizao do classicismo se tornou elemento indispensvel

ao romantismo, pois agiu como corretivo do caos e da descompostura ocasionada pela

revoluo verbal provocada pelos Strmer. Ao mesmo tempo em que esta nova fase alem

colocava o culto ao clssico tradicional iluminista em xeque, os pensadores desta poca

tambm criticavam o clssico repetitivo que advinha do modismo grego. De certa forma, o

classicismo desejava levar a srio as origens gregas da arte e do pensamento alemo. Desta

forma, a Alemanha do sculo XVIII assistiu um renascimento dos estudos clssicos, em que

os gregos foram traduzidos e recuperados em sua originalidade. Neste sentido, o

desenvolvimento da lngua alem era em si alimentado pelo novo historicismo.19

Aps a Reforma, a Alemanha destacou-se por seu mtodo inovador de interpretao.20

Deste modo, a redescoberta do esprito alemo na busca por novos paradigmas interpretativos

resultou no neoclassicismo romntico.21

Segundo Reale (1986, p.23), podemos destacar dois

pontos fundamentais para tal transformao: primeiro, os pensadores como Herder, Schiller e

Goethe que foram fundamentais para este processo de reorganizao, j que a

tempestuosidade e impetuosidade de Strm e o limite (marca do clssico) deram origem ao

momento romntico. E, como segundo ponto, para alm do campo das artes, o renascimento

19 Segundo Machado (2006, pp.23-49), no foi por acaso que, a partir deste movimento cultural existente na

Alemanha desde o sculo XVIII, a poca moderna trouxe tona o interesse em se pensar filosoficamente o

trgico e a tragdia. Pois, na sequncia desse movimento atravs da valorizao do ideal grego de beleza e por

meio da necessidade de sua retomada pela arte alem, iniciado por Winckelmann e tendo Goethe como seu

principal expoente, surge no cenrio filosfico alemo, principalmente com Schelling, Hslderlin e Hegel, uma

reflexo sobre a essncia do trgico de modo totalmente autnoma em relao tragdia. 20

No cnone romntico, estavam Plato, o antigo filsofo, que tinha atacado os poetas e podia ser considerado um poeta romntico'' e um artista, Shakespeare, considerado um poeta moderno, e Espinosa, um filsofo racionalista moderno. Esta reclassificao romntica foi profundamente comprometida com a nova crtica alem. Tudo isso apresentou fortes implicaes para os estudos de Plato, pois houve um crescente consenso de que o mtodo histrico-crtico tinha de ser aplicado obra de Plato, enquanto o mesmo havia sido largamente negligenciado na Alemanha, especialmente em comparao com Inglaterra e Frana. Consequentemente, houve uma mudana fundamental nas diretrizes sobre a filosofia de Plato, uma mudana que espelha o trabalho realizado na interpretao do Novo Testamento. Isso significava, em primeiro lugar, que as alegaes sobre a filosofia de Plato tinham de ser fundamentadas nos prprios escritos sem influncias dogmticas, teolgicas ou relacionadas a outros sistemas filosficos. Em segundo lugar, os escritos tinham de ser fixados no contexto histrico. Para que isso fosse concretizado, foi necessrio, em terceiro lugar, que a sequncia cronolgica e as datas dos dilogos fossem determinadas. Este recm-indicado ideal ainda no havia sido alcanado em 1800, quando entrou em cena Schleiermacher com seus estudos sobre Plato (LAMM 2005, pp.92-93). 21 O neoclassicismo romntico pode ser considerado uma sntese do culto ao clssico imposto pelo perodo

iluminista, mas sem o modismo repetitivo dos clssicos gregos, conhecido como classicismo Winckelmann

(REALE 1986, p.26).

23

dos ideais gregos receberam uma importante contribuio de Schleiermacher, que traduziu os

dilogos platnicos e os reintroduziu na cultura alem sob uma nova tica. Ou seja, sem os

componentes desta reapropriao do perodo clssico no se poderia explicar a poesia e a

filosofia desta poca.

1.1.2 Schleiermacher e o mtodo hermenutico

De acordo com Grondin (1991, p.119), o incio do sculo XIX representa um dos

recortes histrico-filosficos mais marcantes deste perodo, pois se encontrava separado por

um abismo, estando, de um lado, o racionalismo de dcadas anteriores e, do outro,

Schleiermacher e sua definio da hermenutica como arte da compreenso. A tarefa da

hermenutica anterior a Schleiermacher era a de apreender a verdade atravs da interpretao

textual, como pode ser destacada na posio adotada por Spinoza em seu Tractatus

theologico-politicus.22

Segundo Perine (2007, p.20), era comum na antiguidade a interpretao de um

filsofo antigo com base na tradio indireta. No sculo XIX, Schleiermacher teria inovado

seus mtodos com a sua traduo alem da obra platnica.23

O estudo de Schleiermacher

sobre Plato foi determinante para os estudos filosficos, pois, com seu paradigma

hermenutico ele, pela primeira vez, se props a transcender os limites bblicos da disciplina

hermenutica.24

Para Jaeger (1888-1961, p.583).25

, Schleiermacher foi certamente um pensador

audacioso. Antes dele, a filosofia platnica havia sido sintetizada em um simples sistema de

busca por referncias sobre metafsica e tica

22 O primeiro registro histrico da palavra hermenutica com esta inteno de natureza normativa - no sentido

conceitual da palavra como conhecemos - foi aplicado somente no sculo XVII na poca moderna (GRONDIN

1991, pp.47-89). De acordo com Machado (2006, p.07), podemos caracterizar o perodo iniciado em meados de

XVII, com a filosofia de Descartes, como modernidade. 23 As pesquisas atuais realizadas por historiadores comprovaram que a obra de Schleiermacher no foi a primeira

a desenvolver um estudo hermenutico, contudo, seu estudo e sua obra, ainda hoje, so considerados os mais

influentes. O estudo de Schleiermacher sobre Plato influenciou sua prpria filosofia (HSLE 2004, pp.56-64). 24 De acordo com Hsle (2004, pp.57-58), Schleiermacher rompe radicalmente com a doutrina do qudruplo

sentido da Escritura: h apenas uma forma de interpretao, a histrica, que vincula um autor com a linguagem e

as ideias de seu prprio tempo. 25 A datao da obra refere-se primeira verso de publicao, mas utilizo nas citaes a traduo de Artur M.

Parreira, mantendo a paginao da edio de traduo de 2001.

24

Anteriormente s inquietaes de Schleiermacher, prevalecia uma ideia generalizada

de que a exegese deveria reproduzir apenas uma apreciao de textos antigos e clssicos.26

Pode-se dizer que este mesmo perodo representa a passagem de um estudo pr-filosfico para

a consolidao do estudo filosfico, enquanto exerccio interpretativo e reflexivo de carter

epistemolgico e filolgico sobre determinadas reas do saber.

Para Dilthey, a hermenutica schleiermacheriana pode ser relacionada ao fundamento

geral das cincias humanas (ou do esprito) em oposio s cincias naturais e experimentais

(BRADA 2006, pp. 07-09).27

De acordo com Xavier (2005, pp.25-26), todas as diretrizes metodolgicas utilizadas

por Schleiermacher advinham de um momento de transio da cultura alem que no

poderiam ser ignoradas ou deixar de ser mencionadas, pois as influncias e as expectativas

deste perodo foram fundamentais para Schleiermacher e sua concepo da figura de Plato.28

Neste sentido, em meados do sculo XIX, o cenrio filosfico passa a ter uma nova

viso sobre questes interpretativas relacionadas ao campo da hermenutica, como aquelas de

Schleiermacher, Ast e Wolf.

Como comum entre os comentadores da obra platnica, a investigao de

Schleiermacher tem como motivao inicial a impresso de que Plato teria sido previamente

mal entendido. No incio de seu texto sobre hermenutica, Schleiermacher (1829, pp.27-33),

apresenta os motivos que o conduziram ao campo investigativo hermenutico e cita as obras

de Wolf e Ast como o que foi editado de mais importante nesse domnio. Aps uma breve

apresentao das obras, ele se volta contra a ideia, difundida nos escritos de Wolf e Ast, de

que a hermenutica, em conjunto com a crtica e a gramtica, constituiria um estudo

preparatrio, um conhecimento complementar ou apenas um apndice filologia e teologia

crist. Para ele, a restrio ao mtodo hermenutico como instrumento interpretativo

destinado somente s obras da antiguidade clssica e aos textos das Sagradas Escrituras foi

seu objeto de contraposio a Ast e Wolf. Segundo Schleiermacher, a obra de Wolf representa

26 O modelo exegese foi trado por suas prprias regras e pela falta de metodologia para sustentao de uma

anlise mais rigorosa (XAVIER 2005, p.147). Entretanto, afirma Hsle (2004, pp.44-45), este paradigma foi

fundamental para a transformao da filologia clssica em cincia objetivante do mundo antigo e, por outro

lado, para a emancipao desta nova disciplina. 27 Segundo Brada (2006, pp.07-09), a partir desta oposio apresentada por Dilthey, ficou evidente que as

cincias naturais podiam ser compreendidas como cincia explicativa, quantitativa e indutiva, que buscava

determinar as condies das causas atravs da quantificao. As cincias humanas, ao contrrio, podiam ser

consideradas compreensivas, pois visavam apreenso dos significados atravs das intenes e atividades

histricas e concretas do homem, ou seja, estabelece a apreenso do sentido. 28 Schleiermacher, atravs de seu mtodo, procura conceder um status mais racional filologia, visando

deduo a priori das categorias fundamentais deste mbito, parecido com o idealismo alemo (HSLE 2004,

p.57).

25

o esprito mais sutil da filologia e, por evitar a forma sistemtica em seu ensaio, acaba

tratando a hermenutica como estudo preparatrio para outras disciplinas. J Ast tenta

proceder como um fillogo que opera as combinaes filosoficamente e, apesar de

considerar fundamental a filosofia para a explicao cientfica, trata a hermenutica como

apndice de filologia. Assim, a partir desta anlise, Schleiermacher contrape as ideias dos

autores como distantes e, ao mesmo tempo, complementares para uma nova proposta

hermenutica.29

Segundo Hsle (2004, p.57):

Schleiermacher tem por objetivo conceder um status mais racional

filologia, na qual ele v apenas um agregado de observaes, e se esfora por

realizar uma deduo mais ou menos a priori das categorias fundamentais deste

mbito (em um modo que manifestamente semelhante ao procedimento do

prprio idealismo alemo). Enquanto articulao lingustica do pensamento

interior, uma exteriorizao pode ser interpretada tanto de modo gramatical como

psicolgico.

possvel notar que Schleiermacher prope a concesso da filologia ao romper

radicalmente com a ideia da interpretao da escritura. Para ele, possvel reconhecer que um

autor pode ser original e desenvolver novos conceitos.30

A leitura de Schleiermacher utilizada como instrumento de incurso interpretativa

sobre a histria da hermenutica, indicando uma nova dimenso filosfica proposta por este

grande pensador. O mtodo apresentado por Schleiermacher tinha como objetivo fornecer

instrumentos viveis a todo o tipo de texto.

Muitas, talvez a maioria, das atividades que compem vida humana

suportam uma gradao trplice em relao maneira como elas so executadas:

uma, o de modo inteiramente mecnico e sem esprito; outra se apoia em uma

riqueza de experincias e observaes e, finalmente, outra que, no sentido literal da

palavra, o segundo as regras das disciplinas. Entre estas me parece incluir-se

tambm a interpretao (SCHLEIERMACHER 1829, p.25).

29 A datao da obra refere-se data da primeira verso do autor no incio de seu captulo Discursos Acadmicos

de 1829, mas utilizo nas citaes a traduo de Celso Reni Brada, mantendo a paginao da edio da traduo

de 2006. 30 Schleiermacher, afirma Hsle (2004, p.58), reconhece que um autor pode ter ideias originais e possa vir a

desenvolver um novo conceito. Contudo, existem limites e, por isso, Schleiermacher rejeita a ideia de uma

interpretao alegrica da Bblia, pois admite que certas alegorias devem ser interpretadas como tais, mas no

deixa de distinguir rigorosamente interpretao da alegoria de interpretao alegrica.

26

A relao destes trs elementos foi decisiva para que Schleiermacher sentisse a

necessidade de desenvolver um novo processo de interpretao e compreenso, visto que a

compreenso indispensvel para a reconstruo e reinterpretao do pensamento antigo,

pois imprescindvel que se pondere sobre quais teriam sido os elementos determinantes de

tal processo mental.

Para Schleiermacher (1829, pp.25-64), a base desta reconstruo se desenvolve atravs

do crculo hermenutico.31

Deve-se buscar no universal a singularidade como ponto de partida

deste processo, pois a compreenso um processo circular que define o sentido, ou seja, um

determinado conceito deve ser analisado em relao aos elementos que determinam seu

contexto.

Assim, Schleiermacher cria um novo modelo de racionalizao. Mediante

interpretao de textos, ele determina a apreenso do sentido como essncia do mtodo.32

Aponta ento no panorama filosfico uma hermenutica fundamentada em questes

relacionadas s tcnicas utilizadas como instrumento de resoluo de problemas

interpretativos e que, de alguma maneira, se contrape s ideias anteriores de uma

hermenutica exclusivamente tcnica.

A proposta de Schleiermacher fundamenta-se em uma nova operao hermenutica

baseada em experimentos e observaes sobre a pluralidade existente nas diferentes maneiras

de se conceber a compreenso a partir da relao leitor/autor. Para ele, um dos fatores

decisivos que devem constituir uma anlise hermenutica no se resume simples

interpretao textual, mas sim metodologia que leva compreenso do texto analisado.

De acordo com Puente (2002, pp.14-15), este processo pode ser considerado como a

fundamentao do mtodo hermenutico, pois a reconstruo da experincia mental do

autor do texto em estudo. Logo, essencial precaver-se contra possveis mal-entendidos,

que podem estar associados a fatores qualitativos ou quantitativos. O primeiro est associado

aos possveis equvocos em relao ao contedo de uma obra, enquanto o segundo estaria

vinculado a uma falsa compreenso. Segundo ele, o mtodo schleiermacheriano baseia-se em

dois aspectos importantes: a obra literria e a linguagem. O estilo utilizado no uso da

linguagem, para Schleiermacher, apresenta-se entrelaado com a prpria obra, isto , as

31 O processo de entendimento pode ser compreendido como o responsvel por fornecer o sentido geral s partes individuais, ou, o contrrio, s partes que constituem o sentido geral. Ou seja, s se consegue compreender o

sentido de determinada palavra na medida em que esta palavra encontra-se includa no restante da frase e vice-

versa. 32 Para Brada (2006, pp.07-08), esta apreenso do sentido coloca em questionamento o conceito de

objetividade cientfica da poca, pois se insere tal metodologia nas cincias naturais.

27

condies e as alternativas viveis s possibilidades de mediao entre o autor e o leitor esto

integradas, sendo impossvel considerar apenas um dos aspectos no exerccio hermenutico.

Neste sentido, a inseparabilidade existente entre o sujeito e o objeto e a viso de

totalidade entre o texto e o contexto, que antecedem anlise hermenutica, so elementos

essenciais para uma pr-compreenso da leitura.33

Consequentemente, a partir desta teoria,

depreende-se que no possvel compreender um texto em sua ntegra, a no ser que se

compreenda de modo singular o significado das palavras e frases que foram apresentadas,

levando-se compreenso de que no seria possvel entender uma palavra ou frase a menos

que se considere o todo, como destaca Puente (2002, p.15):

O objetivo central da hermenutica para Schleiermacher reside, pois, na

compreenso do estilo de uma obra. Aqui preciso entender que, para ele, o estilo

no diz respeito apenas e to-somente ao uso da linguagem (Behandlung der

Sprache) [...] A fim de chegar a essa compreenso, Schleiermacher recomenda dois

mtodos diversos, mas indissociveis entre si, a saber, o mtodo divinatrio e o

comparativo.

O mtodo divinatrio apreende o individual imediatamente; em contrapartida, o

mtodo comparativo parte do genrico para o particular. Portanto, a hermenutica de

Schleiermacher empenha-se, precisamente, na tentativa de contornar os dilemas que

envolvem as questes estruturais de abordagem e interpretao. Para ele, a unio dos mtodos

um dos pressupostos fundamentais para a compreenso de qualquer texto que contemple um

discurso representativo entre o referencial proposto pelo autor e a linguagem utilizada.

Na viso de Schleiermacher (1829, pp. 41-42), a interpretao gramatical e a tcnica

so complementares, sendo impossvel separ-las. A relao entre a receptividade do sujeito e

os termos de linguagem aplicados pelo autor so denominados gramaticais. O vocabulrio,

sintaxe, gramtica, morfologia e fontica de uma linguagem so recebidos pelo sujeito do

objeto-mundo, e eles podem ser mecanizados.J o aspecto espontneo se refere tcnica

e psicologia, e est relacionado forma com a qual o sujeito emprega uma linguagem para

seus prprios fins individuais, uma vez que o discurso aplicado pelo autor pode servir como

fonte de interpretao, tendo em vista que somente atravs da apropriao da linguagem

33 Segundo Brada (2006, p.07), Schleiermacher inserido tanto na tradio exegtica da teologia protestante

como no renascimento dos estudos de filologia clssica, ou seja, um ideal exegtico de reconstruo do sentido

originrio do texto, ao contrrio da extrao kantiana de reinterpretao adotada no perodo iluminista. Para

Schleiermacher, era necessrio analisar as condies gerais em que a compreenso acontecia, de que maneira e

por quais razes resultava neste processo interpretativo.

28

adotada pelo autor torna-se possvel estabelecer uma aproximao com aquilo que o autor

teve a inteno de comunicar.

Assim, afirma Puente (2002, p.10), a obra de Schleiermacher foi fundamental para o

cenrio contemporneo, j que, atravs do seu mtodo interpretativo, conseguiu estabelecer

uma relao entre hermenutica, filosofia, teologia e filologia.34

A filologia e a filosofia

passaram a ser vistas como elementos inseparveis da histria, e os estudiosos desta poca

passaram a desenvolver um novo mtodo histrico-crtico de anlise.35

1.2 Os dilogos platnicos: Schleiermacher e a Introduo aos dilogos de Plato

O grande renascimento dos escritos platnicos, afirma Reale (1986, p. 26), foi

promovido na Itlia, impulsionado pelo movimento espiritual do Humanismo e pelo

Renascimento. Foi justamente durante a era moderna que todos os dilogos de Plato foram

traduzidos em lngua latina ao longo do sculo XV. As primeiras edies dos dilogos de

Plato para o alemo foram traduzidas por Schleiermacher e Ast (SANTOS 2008, p.21).36

De acordo com Lamm (2005, p.94), Schleiermacher foi o responsvel por elevar o

estudo de Plato alm dos crticos modernos e romnticos, com a ajuda que recebeu dos

intrpretes mais importantes de sua poca: Immanuel Kant, Wilhelm Gottlieb Tennemann, e

Friedrich Schlegel, que foi seu amigo e colaborador no projeto de traduo das obras de

Plato.37

34 Schleiermacher inicia seus estudos filolgicos atravs da traduo da obra aristotlica tica a Nicmacos.

Contudo, a partir deste interesse em traduzir os clssicos gregos, se prope a utilizar mtodos sistemticos de

anlise, com base nas experincias teolgicas da exegese dos textos bblicos. Assim, ele consegue aproximar a

filologia, a teologia e a filosofia ao seu trabalho interpretativo dos dilogos platnicos atravs da aplicabilidade

prtica de seu mtodo interpretativo (Puente 2002, pp.07-26). 35 Antes de Schleiermacher, a autenticidade dos escritos se dava com base em dois critrios: a especificidade da

linguagem e a amplitude, segundo a extenso, do assunto. 36

Schleiermacher se dedicou a traduzir toda a obra de Plato entre 1804 e 1828. Mas, infelizmente, no conseguiu completar seu trabalho, pois ficaram faltando o Timeu e as Leis.

37 Obras de Plato (Platons Werke) surgiu em seis volumes, com os primeiros cincos aparecendo entre 1804 e

1809, uma realizao grandiosa do ponto de vista acadmico. Originalmente, o projeto de traduzir toda a obra de

Plato, em conjunto, com a escrita de um ''trabalho'' sobre Plato, tinha resultado de uma colaborao entre

Friedrich Schlegel e Schleiermacher, que haviam sido companheiros de casa por um tempo. Schlegel, um terico

de renome literrio e fillogo, pela primeira vez, mencionou o projeto de Schleiermacher em 1799, pouco depois

de Schleiermacher ter acabado de escrever seus discursos sobre a Religio (1806). No muito tempo depois de

terem comeado seu projeto colaborativo, Schlegel levantou a questo em uma carta a seu colaborador, na qual

dizia que para ele no seria possvel realizar tal atividade junto com seu colega Schleiermacher. Assim sendo, em

1803, a ideia original tornou-se um projeto solitrio de Schleiermacher. O primeiro volume foi bem aceito pelo

meio acadmico e chegou a ser considerado como uma obra de gnio (LAMM 2005, p.95).

29

Para Szlezk (1993, pp.17-18), no por acaso que os dois assuntos, a hermenutica

filosfica e a hermenutica das obras de Plato, se encontram, pois um dos aspectos

importantes que fundamentaram este estudo foi exatamente a escolha de Plato pela utilizao

dos dilogos como forma de escrita.38

A forma dialgica que estrutura todos os escritos

platnicos pode ser compreendida como um instrumento que favorece o desenvolvimento da

reflexo entre a palavra escrita e a linguagem.39

Segundo Xavier (2005, p.147), este modelo apresentado por Schleiermacher,

denominado como critrio tradicional de interpretao das obras platnicas, foi considerado

revolucionrio em sua poca.40

A ideia de Schleiermacher no consistia em simplesmente

invalidar antigas interpretaes ou mesmo regras que direcionassem a tais compreenses, mas

sim em apresentar novas diretrizes que pudessem possibilitar novos entendimentos acerca das

prprias interpretaes que j haviam sido adotadas anteriormente.

As principais dificuldades hermenuticas encontradas por Schleiermacher no estudo

interpretativo de Plato, afirma Hsle (2004, pp.59-64), estariam relacionadas a trs teses

originais. A primeira refere-se forma de escrita escolhida por Plato, a forma dialgica.41

A

segunda tese seria recusar a crena de um esoterismo platnico.42

A terceira consiste na ordem

cronolgica dos dilogos: Schleiermacher teria refletido sobre o estilo, forma e contedo dos

dilogos para a proposta de uma nova ordenao deles.

Schleiermacher (1804, pp.27-45) inicialmente relaciona as fontes existentes sobre a

vida de Plato, examinando cuidadosamente quais notcias biogrficas apresentadas sobre o

pensador mereciam destaque, e concluiu que a melhor opo Digenes Larcio.43

Segundo

Schleiermacher, o objetivo do estudo hermenutico constitui-se a partir de uma leitura

38 A datao da obra refere-se primeira verso de publicao, mas utilizo nas citaes a traduo de Milton

Camargo, mantendo a paginao da edio de 2005. 39 Os dilogos platnicos, para Schleiermacher, estariam cheios de passagens em que pressentiramos que ele

estaria aludindo a algo sem que estivssemos em condio de descobrir o que realmente tem em mente (HSLE

2004, p.59). 40 Este tipo de interpretao hermenutica utilizado em vrias universidades, inclusive aqui no Brasil, como

ressalta Xavier (2005, p.147). 41 Para Schleiermacher, a forma do dilogo deve ser distinta ao sistema e a sua fragmentao. Pois, somente

atravs desta reflexo seria possvel se distanciar de dois possveis equvocos interpretativos: crer que Plato

no havia tido uma doutrina prpria ou aceitar a distino entre dimenso exotrica e dimenso esotrica

(HSLE 2004, p.61). 42 De acordo com Schleiermacher (1804, pp.42-47), difcil chegar a uma compreenso mais elaborada dos

dilogos, devido a sua complexibilidade. Assim, para que houvesse uma distino entre esotrico e exotrico,

caberia a Plato relacionar tal distino capacidade do leitor. Logo, os defensores das doutrinas no escritas

teriam imensa dificuldade para reconstruir de forma coerente com a escrita de Plato essa doutrina. E no

existem os documentos que comprovem essas doutrinas, nem mesmo de Aristteles. 43 Para Digenes Larcio, no possvel referir-se verdadeira natureza dos discursos platnicos, ou aos

dilogos e ao mtodo de raciocnio apresentado por Plato, de maneira elementar e sumria, uma vez que o

verdadeiro apreciador de Plato deve procurar com cautela as doutrinas deste filsofo e de todos os outros

pensadores (D.L., Vidas, III, 102).

30

fundamentada em uma nova postura interpretativa, capaz de estabelecer uma linha conceitual

das principais caractersticas platnicas, uma vez que, ao seu entender, as vias tradicionais

de interpretao do pensamento de Plato pareciam equivocadas.

Segundo Lamm (2005, pp.94-99), no incio de sua introduo geral dos dilogos,

Schleiermacher identificou duas sentenas incorretas sobre a interpretao dos dilogos

platnicos, como se pode ler a seguir:

Os julgamentos duplamente errneos sobre Plato e seus escritos foram

emitidos quase desde sempre. Um, o que diz ser intil procurar em seus escritos

algo completo, ou at mesmo os traos fundamentais de um modo de pensar e de

uma doutrina que fossem idnticos [...] e, em muitos casos, uma coisa estaria em

contradio com a outra, porque Plato seria, na verdade, mais um dialtico audaz

do que um filsofo coerente. [...] Por isso, outros, em sua parte, com a mesma falta

de compreenso, [...] formaram a opinio de que a verdadeira sabedoria de Plato

no estaria contida de modo algum em seus escritos, ou ento estaria presente

apenas em aluses secretas, difceis de serem detectadas. Essa ideia, em si mesma

totalmente indefinida, configurou-se atravs das formas mais variadas e separou

ora mais, ora menos dos escritos de Plato o seu contedo, procurando sua

verdadeira sabedoria, em doutrinas secretas, as quais ele quase nunca integrou a

esses escritos (SCHLEIERMACHER 1804, pp.34-36).

A primeira sentena refere-se ao fracasso completo dos leitores em compreender a

viso de Plato como um pensador dialtico que preocupava-se mais em derrubar os

argumentos do que em construir sua prpria argumentao sobre um tema.44

A segunda

sentena diz respeito tradio esotrica, ou seja, o possvel mal-entendido em decorrncia da

suposta tradio platnica indireta.

Alm das dificuldades habituais que se tenha na compreenso profunda de

qualquer outro autor que no seja o nosso correligionrio, no caso de Plato haja

ainda, como motivo peculiar, seu total distanciamento das formas usuais da

comunicao filosfica. Pois existem principalmente duas formas nas quais se

move com o mximo de prazer maior parte daquilo que normalmente chamado de

filosofia. Primeiro, aquela que chamada de sistemtica, por dividir toda rea em

44 De acordo com Hsle (2004, p.40), isto tem a ver com a forma dialgica que Plato utilizava atravs da escrita

para comunicar suas idias, bem como a distino ligada a sua filosofia, entre as doutrinas exotricas e

esotricas. Estes dois aspectos contriburam para o mtodo hermenutico schleiermacheriano, pois do ponto de

vista da hermenutica moderna, esta distino se assemelha aos comentrios patrticos e medievais a Bblia

aparecem a exegetas bblicos modernos. Por outro lado, Plato no pode ser interpretado da mesma maneira

que Aristteles.

31

vrios saberes especiais, dedicando a cada uma dessas partes definidas do todo sua

obra particular ou captulos [...] A segunda forma, no menos usada e no menos

preferida, a fragmentria, que apenas lida com anlises individuais e procura

tornar a filosofia compreensvel a partir de fragmentos soltos, dos quais

dificilmente pode-se ter certeza se so realmente membros ou apenas partes

separadas arbitrariamente e contra sua natureza (SCHLEIERMACHER 1804, pp.

32-33).

A partir deste equvoco interpretativo sobre a filosofia, o mtodo e a figura de Plato,

Schleiermacher procurou desenvolver sua prpria interpretao. A proposta hermenutica de

Schleiermacher considerou os dilogos platnicos como uma estrutura independente na

relao entre a forma e o contedo.45

O esquema metodolgico utilizado por ele reduziu os

componentes do texto, como alegoria, aforismos e analogias, a uma nica unidade estrutural

dentro do campo semntico que constituiu a compreenso literal do que estava escrito

(XAVIER 2005, pp.25-30).

Schleiermacher (1804, pp.27-46) iniciou o seu grande estudo sobre Plato se referindo

na primeira parte ao estudo biogrfico de Tennemann sobre A Vida de Plato. Tanto

Tennemann quanto Schlegel estavam comprometidos com a ideia de aproximar Plato atravs

do novo historicismo. Tennemann apresentava um carter mais histrico e filosfico e

Schlegel um sentido mais literrio e filolgico. As falhas de ambos demonstraram a

Schleiermacher a fraqueza de uma abordagem unilateral.46

De acordo com Lamm (2005, pp.94-95), Schleiermacher utiliza-se da fora e da

fraqueza do sistema de Tennemann a respeito da filosofia platnica, conforme o prprio

Tennemann apresenta em System der Philosophie platonischen em 1792, como base de

sustentao para o seu mtodo histrico, aquele que Schleiermacher se refere como um

mtodo externo. No entanto, Schlegel e Schleiermacher divergiram sobre o que envolveria

um suposto mtodo interno.47

45 Para Schleiermacher, a partir das leituras dos dilogos, era necessrio pensar o texto como um todo

indissocivel a forma e o contedo. Para compreender corretamente as concepes filosficas de Plato, no

bastava somente analisar sua linguagem, forma ou contedo,pois Plato, atravs do seu dilogo, pretendia

instigar e provocar as ideias em seus leitores (PUENTE 2002, p.19). 46 O que definiu a pesquisa de Tennemann como sendo verdadeiramente moderna que ele tinha vasculhado

todos os estudos anteriores e tinha resolvido o problema da conjectura histrica. Como resultado, foi capaz de

isolar determinadas datas e fatos sobre a vida e obras de Plato. 47 Para Schleiermacher, o mtodo interno era uma referncia ao estilo adotado pelo autor atravs da sua

escolha pelo mtodo literrio, como no caso de Plato ao utilizar a forma dilgica como instrumento da

comunicao escrita.

32

Embora Schlegel tivesse iniciado o projeto de traduo de Plato comprometido com o

historicismo, Schleiermacher estava preocupado com as intenes de Schlegel que lhe

pareciam muito mais relacionadas s questes tericas. A apresentao de Tennemann no

conseguia preservar a unidade entre forma e contedo, consideradas por Schleiermacher a

assinatura de Plato.

Schleiermacher havia considerado tal viso to autoritria que no via necessidade de

revisit-la. Para ele, a grande fraqueza do mtodo externo de Tennemann consistia no no-

cumprimento de seus prprios objetivos, como a ordenao dos dilogos e a falta de

fundamentao substancial sobre a filosofia de Plato. No haviam indicadores externos

suficientes, o que criou um problema para Tennemann, que foi incapaz de resolver ou no

estava disposto a abandonar a noo de um sistema platnico. Logo, acabou traindo seus

prprios ideais metodolgicos, pois assegurou que Plato deveria ter tido uma filosofia

dupla: a externa, encontrada nos seus escritos, qual Schleiermacher se referia como

tradio exotrica, e uma outra secreta, chamada de tradio esotrica.

O sistema de anlise utilizado por Tennemann para os dilogos de Plato no era,

portanto, baseado exclusivamente na anlise dos textos, desviando assim da nova crtica.

Portanto, no abandonou as tendncias dogmticas e, apesar de suas intenes, no encontrou

nenhum sistema nos dilogos escritos. Schleiermacher props que, dada a escassez de

evidncia histrica, o mtodo externo deveria ser completado por um mtodo interno, que

ele denominava como mtodo literrio. Schlegel tambm estava convencido de que um

mtodo interno era necessrio, porm centrou-se mais na ironia socrtica como fator

determinante da autenticidade e da ordem dos dilogos. Schleiermacher, por sua vez, advertiu

que essa abordagem produziria apenas fragmentos e inconsistncias, e no um argumento em

si.

Tennemann extrapola os textos autnticos para uma no-escrita ou tradio esotrica, a

fim de encontrar o sistema platnico. Schlegel, embora tenha apresentado uma postura anti-

sistemtica, tambm partiria das crticas ao texto para seguir a sua teoria literria, uma teoria

que lhe rendeu concluses equivocadas quanto autenticidade de certos textos.

Apesar de Tennemann e Schlegel apresentarem dois dos fundamentos desta nova

abordagem moderna para o estudo de Plato, suas respectivas formas de unilateralidade

chegaram ao mesmo resultado problemtico: a imposio de suas prprias filosofias sobre

Plato (LAMM 2005, pp.94-95). Em resposta, Schleiermacher afirma para Tennemann que o

histrico deve ser balanceado pelo interno (ou literrio) e para Schlegel afirma que a literatura

deveria ser equilibrada por investigaes histricas e detalhes filolgicos. Em ambos os casos,

33

Schleiermacher considerou que a nova crtica estava contida na filosofia idealista de seus

textos.

Ora, se Plato tivesse feito uma apresentao separada das respectivas

cincias filosficas, ento pressupor-se-ia que ele tambm tivesse desenvolvido

cada uma por si e em sequncia, e seria necessrio procurar duas sries diferentes

de dilogos, uma tica e uma fisca. Mas, uma vez que as apresenta como todo

interligado e uma vez que prprio dele pens-las sempre como essencialmente

ligadas e inseparveis, tambm os preparativos para elas so unidos com base na

considerao de suas razes e leis comuns, e por isso no h vrias sries de

dilogos que correm paralelamente, mas apenas uma nica que abrange tudo em si

(SCHLEIERMACHER 1804, p.46).

De acordo com Schleiermacher, a compreenso e a crtica aos dilogos platnicos

envolvem partes gramaticais e trabalho comparativo dentro do texto, no qual cada pea

trabalhada com preciso e rigor. Sendo assim, a interpretao correta da filosofia de Plato

depender da correta relao entre os dilogos. Portanto, ele se prope a orden-los

corretamente.

Entretanto, uma ordenao dos dilogos j havia sido apresentada por Digenes

Larcio, segundo o qual os dilogos platnicos poderiam ser distinguidos em dois tipos

principais de dilogos: o primeiro, responsvel pela apresentao da questo e o segundo,

pelo aspecto prtico. O primeiro tipo de dilogo estaria relacionado tica, apresentada nas

obras de Plato (Apologia, Criton, o Fdon, o Fedro e o Banquete), poltica (Repblica,

as Leis, Minos, Epnomis e o Crtias) e tambm ao terico, que estaria subdivido em dilogos

que tratavam dos aspectos fsicos (Timeu) e dos aspectos lgicos (Poltico, Crtilo,

Parmnides e o Sofista). O segundo tipo de dilogo, apontado por Digenes Larcio, diz

respeito ao mtodo maiutico e tentativo: a obstetrcia mental (Alcibades, o Teages, o

Lsis e o Laqus) e o mtodo tentativo (Eutfron, o Mnon, o on, o Carmides e o Teeteto).

E, por fim, o mtodo de objeo (Protgoras) e o mtodo refutativo (Eutdemos, o

Grgias e os dois Hpias).48

Para Lamm (2005, pp.104-105), a primeira tarefa crtica de Schleiermacher, em

relao ordem dos dilogos, foi conseguir identificar os dilogos da primeira fase, que so

aqueles que formam o corpo principal e , em seguida, identificar os dilogos da segunda

48 D. L., Vidas, III, 49-51.

34

fase, que apresentam as maiores dificuldades em relao a sua datao, uma vez que a marca

registrada de Plato no estava to clara quanto na primeira fase de seus escritos.

Ora, reconstruir essa sequncia natural , como cada um v, uma inteno

muito distante de todas as tentativas feitas at hoje para uma ordenao das obras

platnicas, tentativas estas que, em parte, acabaram em ocupaes fteis, em parte

resultaram em uma separao e composio sistemtica de acordo com as divises

convencionais da filosofia (SCHLEIERMACHER 1804, p.46).

A ordenao sequencial dos dilogos era o objetivo central da nova crtica proposta

por Schleiermacher, que estava comprometido com a restaurao da ordem original dos

dilogos. Todavia tinha suas dvidas quanto a originalidade de uma ordem estritamente

cronolgica, baseada em datas, dilema que acabou obrigando Schleiermacher a utilizar o

mtodo externo, isto , a considerar os indicadores externos para limitar e comparar as

descobertas segundo a aplicao do mtodo interno. Segundo ele, no havia evidncia

histrica suficiente ou um nmero significativo de dilogos ou datas que comprovassem a

organizao cronolgica. Assim, Schleiermacher busca outra forma de determinar a sequncia

original dos dilogos, uma sequncia no necessariamente fixada em datas.49

Os dilogos Fedro, Protgoras e Parmnides foram agrupados juntos, pois

representam a parte fundamental da obra platnica. Da mesma forma, a Repblica, Timeu e

Crtias permanecem no mesmo grupo devido a sua apresentao cientfica. Estes dois grupos

constituem os suportes de livros que formaram a ordem progressiva do corpo das obras de

Plato. Os dilogos de primeira classe seriam Fedro e Parmnides, pela progresso

atravs da utilizao do mtodo dialtico e da exposio. Na segunda parte, predomina a

explicao do saber e encontramos no pice o Teeteto, seguido pelo Sofista, Fdon e o

Filebo. Na terceira diviso, as Leis, pois, apesar do rico contedo filosfico, este escrito

pode ser considerado de segunda ordem. Em relao aos dilogos intermedirios, estes so

considerados transies entre os dilogos maiores, como o caso do Grgias, do Mnon e

do Eutidemo. O mesmo ocorre com os dilogos da segunda parte que, assim como o Teeteto,

so preldios ao Poltico (SCHLEIERMACHER 1804, pp.60-75).

49 Segundo Puente (2002, p.22), foi comprovada a inexatido de Schleiermacher em relao cronologia e

ordenao dos dilogos.

35

Ao considerar estes trs grupos, Schleiermacher apresenta as obras de Plato juntas,

formando trilogias dos dilogos:50

Quadro 1: Trilogia dos dilogos de Plato

Primeira trilogia Segunda trilogia Terceira trilogia

(incompleta)

1. Fedro 1. Teeteto 1. A Repblica

2. Protgoras 2. Sub trilogia do Sofista,

Poltico, e Banquete

(Dilogos da segunda

classificao)

2. (Timeu)

3. Parmnides 3. Fdon 3 Filebo (Critias)

No quadro acima, nota-se que os dilogos de primeira ordem so determinados

segundo trs caractersticas presentes ao longo do texto de Plato: a linguagem, o contedo e

a forma. Nesta fase de interpretao, o critrio da forma presente nos dilogos tornou-se a

referncia central para tal anlise, mesmo que de modo secundrio, o que sugere que Plato

deveria ter sempre utilizado este tipo de arte em suas lies da Academia, fossem elas

escritas por ele ou um estudo realizado por ordem de algum.

Os dilogos anteriores seriam aqueles que despertavam e estimulavam atravs do uso

do mito e, especialmente, da utilizao da forma de dilogo, enquanto os posteriores seriam os

que apresentavam os mesmos temas de forma sistemtica, cientfica, conectando-os em duas

categorias principais: tica e cincia. Entretanto, afirma Lamm (2005, pp.105-106), existe um

grupo de dilogos que poderia fazer parte do grupo do meio, mas este agrupamento no

apresenta um desenvolvimento metodolgico em relao evoluo de ideias filosficas de

maneira to concisa quanto os outros dois grupos.

Pode-se dizer que Schleiermacher prope a trilogia da trilogia, uma vez que a

discusso proposta por Schleiermacher, no sentido de reinterpretar os dilogos de Plato, nos

remete a uma discusso ainda mais complexa, pois cria novas alternativas metodolgicas a

respeito de como o leitor deve se posicionar perante o texto, ou seja, quais seriam as outras

formas de se aventurar nesta leitura (LAMM 2005, pp.106-107).

Deste modo, Plato pode ser considerado um dos maiores filsofos devido

pluralidade de significados e eficcia alegrica que apresentou em seus dilogos.51

Assim,

50 Quadro apresentado por Lamm (2005, p.106).

36

tanto a filosofia de Plato como seus dilogos podem ser considerados uma forma de arte,

como sinaliza Digenes Larcio.52

Esta viso da figura de Plato como um artista considerada romntica por alguns

autores.53

Entretanto, afirma Lamm (2005, pp. 97-98), o problema de se denominar a

interpretao schleiermacheriana como uma interpretao romntica se deve ao fato de que

o termo romntico carrega diferentes significados e, muitas vezes, estes significados so

utilizados para aferi-lo a um mtodo divinatrio de interpretao que poderia impor um tipo

ideal, independentemente das evidncias histricas.

Neste sentido, tanto para Digenes Larcio quanto para Schleiermacher, a arte de

compreender Plato comea, em particular, com um estudo filolgico, mesmo que estas

pesquisas necessitem de um pouco de arte, seguido de uma anlise criteriosa dos dilogos

atravs do mtodo hermenutico apresentados por Schleiermacher, pois somente com a

reconstruo dos fatores tcnicos e psicolgicos possvel compreender a filosofia platnica

contida em seus textos. No que diz respeito aos dilogos platnicos, isso significa que o

intrprete deve ser capaz de interagir com o autor atravs de seu texto.

J no ensino real, porm mais ainda na sua imitao escrita, quando se

considera que Plato tambm queira conduzir o leitor ignorante ao saber ou que, em

relao a este, pelo menos tinha que se prevenir para que no causasse uma fantasia

vazia do saber [...] o principal para ele deve ter sido conduzir cada estudo desde o

incio e calcul-lo de maneira que o leitor fosse obrigado gerao interior prpria

do pensamento intencionado (SCHLEIERMACHER 1804, p.44).

Assim, o dilogo pode ser reinterpretado a cada nova leitura, revelando novas etapas e

diferentes sentidos e, a partir deste processo interpretativo, a forma dilogica seria capaz de

proporcionar ao seu leitor as respostas necessrias, desde que este leitor seja apropriado para

tal leitura. Para Schleiermacher, os dilogos deveriam ser compreendidos como instrumentos

utilizados por Plato para favorecer, atravs da analogia dos temas especficos, o

desenvolvimento das doutrinas e das ideias apresentadas em seus dilogos.

51 Essa imediatez, essa multiplicidade e essa fora simblica dos dilogos, j visveis nas primeiras aluses,

fizeram de Plato o autor que, a despeito das diferenas das culturas nacionais, considerado hoje em toda parte

o mais eficaz instigador do interesse filosfico (SZLEZK 1993, p.15). 52 D. L., Vidas, III, 46. 53 Conferir Szlezk (1985).

37

Vejamos alguns exemplos: a necessidade de contextualizar as concepes de

Plato no interior de sua obra como um todo e de relacion-la a outras ideias

presentes em contemporneos de Plato; a importncia do conhecimento das

particularidades lingsticas do grego do sculo V a. C. e mais especificamente dos

limites expressivos desse idioma com o qual Plato teve de lutar; o cuidado em no

produzir um mal-entendimento sobre a filosofia de Plato ao discorrer, previamente

leitura dos dilogos, sobre as concepes filosficas de Plato; a necessidade de

pensar como um todo indissocivel a forma (no caso o dilogo) e o contedo

presentes em Plato; a importncia de compreender plenamente o carter dialgico

do texto de Plato, ou seja, de compreender que nele Plato no pretendia apenas

apresentar aos outros as suas ideias de modo vivo, mas principalmente, instigar e

provocar ideias em seus leitores por meio de um dilogo vivo com os mesmos

(PUENTE 2002, p.19).

De acordo com Puente (2002, p. 19), o estudo interpretativo dos dilogos de Plato,

proposto por Schleiermacher, considera a forma dialgica um instrumento capaz de induzir o

leitor a formular suas prprias ideias, partindo das referncias indiretas ao longo do texto e

induzindo-o as suas prprias concluses ou possveis equvocos interpretativos. Segundo

Lamm (2005, p. 104), para Schleiermacher, Plato era um artista cujo objetivo deveria ser

considerado de cunho pedaggico, pois seus dilogos no eram, apenas, para explicar seu

pensamento aos outros de uma forma animada, mas justamente o contrrio, por isso ele

buscava animar e elevar, a partir deles, uma forma viva. De acordo com Schleiermacher

(1804, p. 45),

Plato consegue, com a quase totalidade dos seus leitores, alcanar aquilo que

deseja, ou pelo menos evitar o que teme. De modo que esse seria o nico sentido no

qual se poderia falar aqui do esotrico e do exotrico, isto , no sentido que estes

apenas apontam para uma qualidade do leitor, dependendo do fato deste elevar-se

ou no condio de um verdadeiro ouvinte do interior; ou ento, caso se deva

relacion-lo com o prprio Plato, poder-se-ia dizer apenas que o ensino imediato

teria sido seu agir esotrico; a escrita, contudo, o exotrico.

A diferena entre o esotrico e exotrico estaria relacionada s qualidades do

leitor em sua anlise textual, uma vez que a incompreenso dos dilogos pode ser relacionada

a duas possveis vias de interpretao da relao autor/leitor: na primeira, o leitor no

38

compreenderia a obra de Plato, tendo uma apreenso superficial do texto, o que para

Schleiermacher seria a via exotrica, enquanto que na segunda, a esotrica, o fator que

determinaria a capacidade do leitor em compreender as aluses feitas por Plato em seus

dilogos estaria relacionada ao prprio saber deste.

Neste sentido, a ordem cronolgica dos dilogos teria como objetivo publicar os

dilogos de maneira didtica, ou seja, os dilogos posteriores poderiam ser melhores

compreendidos aps a leitura dos primeiros. Para Schleiermacher, os Dilogos so autnomos

e auto-suficientes e no necessitam de finalizao por parte de Plato para que as ideias

apresentadas ao longo de sua obra sejam compreendidas pelo seu leitor, pois o dilogo

consegue afastar os leitores inapropriados e aproximar os verdadeiros leitores.

Na viso de Schleiermacher, para que este processo de interpretao e compreenso se

realize, no seria necessrio que o dilogo apresentasse as possveis concluses; ao contrrio,

o leitor deveria ser capaz de buscar sua(s) resposta(s) de forma autnom