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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTES Merina Três Inflorescências: Palavra, Som, Ritmo Filipa Pereira Saraiva de Almeida MESTRADO EM ARTE MULTIMÉDIA - Audiovisuais 2014

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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE BELAS-ARTES

Merina

Três Inflorescências: Palavra, Som, Ritmo

Filipa Pereira Saraiva de Almeida

MESTRADO EM ARTE MULTIMÉDIA - Audiovisuais

2014

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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE BELAS-ARTES

Merina

Três Inflorescências: Palavra, Som, Ritmo

Filipa Pereira Saraiva de Almeida

MESTRADO EM ARTE MULTIMÉDIA – Audiovisuais

Dissertação orientada pela Professora Doutora Maria João Gamito

2014

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Agradecimentos

A Maria João Gamito, Leonor Lains, Isabel Pires,

Rosana Sancin, Dudu, Nuno, Sofia e Samuel, Maja.

Pais e irmãos.

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Resumo: O presente trabalho teórico-prático, intitulado Merina, pretende apresentar

as possíveis relações, sob uma perspectiva rítmica, entre a fenomenologia de uma

imagem poética e a temporalidade de uma imagem fotográfica. O cerne da questão é a

forma como o instante poético – constituído por elementos como a palavra, o som e o

ritmo – actua enquanto vector estrutural da construção da obra videográfica Merina.

Nesta dissertação, defende-se que os instantes simbólicos influenciam directamente a

dimensão temporal da imagem. A simbologia presente nas sonoridades tem uma

relação directa com a poesia de Cesário Verde, que vai operar como factor

influenciador na imagem, agindo na “densidade temporal” da duração do vídeo,

originando uma duração simbólica. De modo a ilustrar as questões referidas, a

metodologia utilizada consiste num primeiro momento, na relação rítmica entre o

conceito de instante a partir da tese de Gaston Bachelard, e o simbolismo do tempo

proposto por Mircea Eliade. Num segundo momento, outro objectivo proposto neste

trabalho teórico-prático, é uma leitura do objecto videográfico que compõe o trabalho

prático desta dissertação, a partir do conceito de ritmanálise cunhado pelo filósofo

Luís Pinheiro dos Santos e desenvolvido por Bachelard.

Palavras-chave: Duração, espaço sagrado, tempo sagrado, instante poético,

ritmanálise.

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Abstract: This theoretical and practical work, titled Merina, intends to present the

possible relationships under a rhythmic perspective, between the phenomenology of a

poetic image and temporality of a photographic image. The point is how the poetic

moment - consisting of elements such as word, sound and rhythm - act as vector of

the structural construction of the video work Merina. In this dissertation, it is argued

that symbolic moments influence the temporal dimension of the image directly. This

sound symbology have a direct relationship with the poetry of Cesário Verde,

operating and shaping the image, acting in the "temporal density" of the video length

factor, yielding a symbolic term. In order to illustrate the mentioned issues, the

methodology used is at first, the rhythmic relationship between the concept of time

from Gaston Bachelard thesis, and the time symbolism proposed by Mircea Eliade.

Secondly, another objective proposed in this theoretical and practical work, is a

reading of the video object that makes up the practical work of this thesis, from the

concept of rhythmanalysis coined by the philosopher Luis Pinheiro dos Santos, and

developed by Bachelard.

Keywords: Duration, sacred space, sacred time, poetic moment, rhythmanalysis.

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Índice

Resumo.......................................................................................... iv

Abstract...................................................................................... v

Índice de figuras........................................................................... vii

Introdução................................................................................... 1

1. Espaço e tempo sagrado................................................... 4

1.1. Tempo Sagrado................................................................. 5

1.2. Espaço Sagrado................................................................. 8

2. O Instante Simbólico

2.1. Instante e Duração............................................................. 16

2.2. Ritmanálise.................................................................... 22

3. Merina: Três Inflorescências

3.1. Contextualização do vídeo Merina................................. 27

3.2. Merina............................................................................... 34

Conclusão..................................................................................... 44

Referências.................................................................................. 46

Filmografia................................................................................. 47

Anexo........................................................................................... 48

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Índice de figuras

Figura 1 – Filipa Almeida, Merina (2013), still de vídeo.

Figura 2 – Meshes of the Afternoon (1943), filme 16 mm. Still captado da Internet.

Figura 3 – Meshes of the Afternoon (1943), filme 16 mm. Still captado da Internet.

Figura 4 – Margarida Cordeiro e António Reis, Ana (1982), filme 35 mm. Still

captado da Internet.

Figura 5 – Margarida Cordeiro e António Reis, Ana (1982), filme 35 mm. Still

captado da Internet.

Figura 6 – Maya Deren, Ritual in transfigured time (1946), filme 16 mm. Still

captado da Internet.

Figura 7 – Maya Deren, Ritual in transfigured time (1946), filme 16 mm. Still

captado da Internet.

Figura 8 – Maya Deren, At Land (1944), filme 16 mm. Still captado da Internet.

Figura 9 – Maya Deren, At Land (1944), filme 16 mm. Still captado da Internet.

Figura 10 – Filipa Almeida, Somnus (2008), fotograma da instalação.

Figura 11 – Filipa Almeida, Somnus (2008), fotograma da instalação.

Figura 13 – Filipa Almeida, Somnus (2008), fotograma da instalação.

Figura 14 – Filipa Almeida, Somnus (2008), fotograma da instalação.

Figura 15 – Filipa Almeida, Somnus (2008), fotograma da instalação.

Figura 16 – Filipa Almeida, Interpelar o Tempo (2010), still de vídeo.

Figura 17 – Filipa Almeida, Interpelar o Tempo (2010), still de vídeo.

Figura 18 – Filipa Almeida, Interpelar o Tempo (2010), still de vídeo.

Figura 19 – Filipa Almeida, Interpelar o Tempo (2010), still de vídeo.

Figura 20 – Filipa Almeida, Cadeira Sonora (2011), técnica mista.

Figura 21 – Filipa Almeida, Cadeira Sonora (2011), fotograma/performance.

Figura 22 – Filipa Almeida, Cadeira Sonora (2011), fotograma/performance.

Figura 23 – Filipa Almeida, t´ (2011), still de vídeo.

Figura 24 – Filipa Almeida, H.Q.S.C.L.M.S. (2013), still de vídeo.

Figura 25 – Filipa Almeida, O outro lado do espectáculo (2013), still de vídeo.

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Introdução

Instante

Som velado. Beijo

calmo. E a chama

de uma árvore. O

verde

imóvel. Lâmina

irradiante. Sol, o som,

obscura luz de sílaba

interiormente

Tréguas com o espaço.

Interrupção contínua.

Não sei porquê a luz

se lê

na folha verde calma.

António Ramos Rosa, A Nuvem sobre a Página, Lisboa, 1978

Apenas por uns breves momentos da nossa vida é possível percepcionar

alguns dos instantes que constituem a realidade. Um dos meios para isso é através da

imagem fotográfica. A partir de uma fotografia é possível reconhecer um instante,

cuja duração é definida pelo acto contemplativo de cada pessoa. Tal também sucede

com a poesia, cuja imagem final é concretizada individualmente e – como se se

tratasse de um reconhecimento da imagem fotográfica que é contemplada com uma

determinada duração – a imagem poética adquire igualmente uma duração, um tempo

simbólico, que ocorre no movimento do pensamento.

Merina: Três Inflorescências: Palavra, Som, Ritmo é uma dissertação de

natureza teórico-prática realizada no âmbito do curso de Mestrado em Arte

Multimédia. A presente dissertação tem, como objectivo fundamental, o estudo das

questões da temporalidade da imagem fotográfica em relação com a poesia, neste caso

específico, o poema “Merina” de Cesário Verde.

Para cumprir esse objectivo, num primeiro momento centra-se na questão do

tempo e espaço sagrado, sempre sob a perspectiva de Mircea Eliade, cujo estudo do

simbolismo do tempo (mitos cosmogónicos), abordados no primeiro capítulo (“1.,

Espaço e tempo sagrado”), é utilizado na argumentação da tese. Tal autor revela-se

importante devido à forma como o seu trabalho aborda a necessidade de compreender

a própria estrutura temporal, como o tempo foi interpretado, que o autor identifica

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como pertencente a um imaginário colectivo que algumas obras de arte

contemporânea recuperaram. A questão central da peça Merina incide na

temporalidade de uma imagem, assim como na funcionalidade das sonoridades

perante a mesma; o tempo da imagem como elemento estrutural (simbólico) presente

na construção de uma obra videográfica; na relação entre palavra e ritmo. Neste

contexto, faço referência a uma obra cinematográfica que se preocupa com noções

temporais e simbólicas: Meshes of the Afternoon (1943), um filme de Maya Deren,

cuja narrativa possui diversas dimensões simbólicas, onde a autora demonstra como

as imagens oníricas se relacionam directamente com as imagens do inconsciente.

Numa segunda fase apresentada no sub-capítulo “2.1., Instante e duração”,

desenvolvo a análise a partir do conceito de instante poético de Bachelard sob os

conceitos de instante e duração. Este capítulo centra-se nos estudos sobre a filosofia

do instante e sobre a dialéctica da duração, a partir de uma análise da duração

“simbólica” sempre à luz dos conceitos de Gaston Bachelard.

No sub-capítulo “2.2., Ritmanálise”, analiso o instante poético no poema “Merina” de

Cesário Verde, tendo por base o conceito de ritmanálise cunhado pelo filósofo

português Luís Pinheiro dos Santos. Foi desta relação entre instante e duração / tempo

sagrado e tempo profano que surgiu um novo ritmo, Merina. O trabalho videográfico

pretende articular a experiência visual com a consciência auditiva, com o objectivo de

criar uma nova experiência auditiva. Neste contexto faço referência a algumas obras

cinematográficas como: Ana (1982), filme de Margarida Cordeiro e António Reis,

Ritual in Transfigured Time (1946) e At Land (1944), ambos filmes de Maya Deren.

O último capítulo está igualmente subdividido em duas partes, das quais a primeira

serve para contextualizar o trabalho prático Merina, onde apresentei peças realizadas

em anos anteriores, desde 2008 até 2013, que me conduziram a Merina. Com

referência aos conceitos abordados segue-se o subcapítulo “3.2. Merina”, destinado à

análise do trabalho prático que faz parte desta dissertação.

Merina, peça videográfica que dá título ao trabalho artístico desta dissertação,

começa por ser uma interpretação simbólica do poema “Merina” de Cesário Verde.

Três Inflorescências: Palavra, Som, Ritmo corresponde ao subtítulo desta dissertação,

que anuncia a inter-relação existente entre palavra, som e ritmo, que simbolicamente

pretende ilustrar a noção de instante simbólico como processo de construção e

transformação de uma imagem poética: processo esse que partiu do princípio da

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reactualização de uma imagem que é o poema e de uma imagem fotográfica. As

imagens “silenciosas” adquiriram um novo ritmo e tornaram-se um novo objecto.

Optei por não seguir as normas do novo Acordo Ortográfico da Língua

Portuguesa na presente dissertação.

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1. Espaço e tempo sagrado

“Sobre a cabana de mítica terra que nos encima,

os espíritos deixam-se rolar pelo telhado,

os espíritos deixam-se cair ao longo da ombreira

– pesadamente as flores curvam-se nos caules.”

– Os espíritos – ( Wintus)

Herberto Helder, Poemas Ameríndios, Lisboa, 1997.

Interessa, no contexto deste trabalho, aprofundar a dimensão do tempo

reflectida nas variadas formas de criação artística, mais especificamente, na obra

Merina (Fig. 1). Por conseguinte, há que reflectir sobre a relação entre palavra, som e

ritmo. A distância temporal entre as imagens possibilita, numa perspectiva simbólica,

um novo ritmo na própria obra. Passo a explicar: o tempo está relacionado com o

ritmo; ao ordenar e reintegrar imagens e sonoridades num novo contexto, o de hoje,

estou a recriar um novo ritmo e, assim, a criar um espaço de reciprocidade entre as

sonoridades e as imagens. O próprio dinamismo do símbolo tornou-se o fio condutor

do desenvolvimento do processo artístico uma vez que, operar sobre a memória e o

tempo dos objectos, é semelhante a recriar um novo movimento. O trabalho artístico

partiu do princípio da reactualização de uma imagem fotográfica, num determinado

espaço e tempo, de acordo com um ritmo.

Neste contexto, o vídeo Merina ilustra uma manifestação simbólica

caracterizada por várias temporalidades; representa uma reflexão sobre um passado

recente e um tempo presente, através do efeito de distanciamento. Com efeito,

trabalhar o tempo como construtor de uma imagem, através da memória existente na

relação entre tempos, é de certa forma, reanimar esse mesmo objecto, no ritmo do

próprio tempo. Neste sentido, será útil uma analogia com as várias metamorfoses dos

símbolos. O símbolo é a linguagem do mito, pois as circunstâncias históricas, que

envolvem o primeiro, mudam de forma constante ao longo dos séculos. Por outras

palavras, a sua condição histórica é a-temporal, mas a sua função mantém-se igual:

“temos apenas de levantar suas novas máscaras.” (Eliade, 2002: 13). O contexto

histórico de um mito modifica a sua própria imagem, adaptando-se ao seu tempo,

metamorfoseando-se, pois “não existe facto religioso “puro”, fora da história, fora do

seu tempo” (Eliade, 2002: 27).

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No desenvolvimento deste capítulo irei definir tempo sagrado, tempo profano e

abolição do tempo, assim como as funções do mito cosmogónico que representam a

dimensão do tempo e do espaço sagrado, pois é através do mito cosmogónico que o

homem das sociedades arcaicas se “encontra” com os deuses. “Será necessário

lembrar como a poesia lírica retoma e prolonga o mito?” (Eliade, 1989: 24). A

questão evocada por Mircea Eliade remete para a poesia como um acto criativo do

poeta perante o mundo; uma forma de arte, em que a criatividade é moldada através

das faculdades do espírito do poeta. É nessa direcção que Eliade se refere à criação

poética: “implica a abolição do tempo, da história concentrada na linguagem – e tende

à recuperação da situação paradisíaca primordial, no tempo em que se criava

espontaneamente” (Eliade, 1989: 24).

Antes de analisar o tempo profano, sempre à luz dos conceitos de Mircea Eliade,

irei antecipar algumas definições sobre a estrutura e função do mito nas sociedades

arcaicas, sendo que o mito nasce de uma necessidade espiritual nestas sociedades,

como forma de alcançar os deuses e também como forma de adquirir o conhecimento

do mundo, como “ tradição sagrada, revelação primordial, modelo exemplar.” (Eliade,

1989: 9). Assim, começo por apresentar a função dos mitos cosmogónicos que, tal

como Eliade afirmou, só é possível analisar e compreender sob uma perspectiva

histórico-religiosa.

1.1. Tempo sagrado

A investigação dos mitos nas sociedades tradicionais revela-nos, por um lado,

um conhecimento do pensamento humano num determinado tempo histórico e por

outro, a história da própria criação do universo. O estudo do simbolismo cosmogónico

surge da necessidade de compreender a importância da estrutura do tempo e a sua

criação, transformadas em expressão simbólica. A compreensão do mito cosmogónico

permite uma aproximação, ao nível do conhecimento, do homem religioso perante a

natureza e os deuses. O mito narra um acontecimento sagrado, conta a história

sagrada dos deuses. Entende-se assim a importância do estudo dos mitos nas

sociedade arcaicas, pois ainda conservam a estrutura da sua origem, ou seja, da

criação. Antes da existência do tempo, eles contam como tudo aconteceu ab originae,

pois como afirma Eliade, “conhecer os mitos é aprender o segredo das coisas” (Eliade,

1989: 19)

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É possível conhecer o “segredo das coisas” através do simbolismo do tempo e

do espaço sagrado. Uma construção física de um objecto (habitação, templo, etc) pode

tornar-se um espaço sagrado. Esse conhecimento pode ser revelado através do

simbolismo cosmogónico, como exemplo de transmissão de conhecimento sobre o

tempo sagrado. Sendo assim, torna-se necessário definir o tempo profano e o tempo

sagrado. Por sua vez, o último dos quais está relacionado com o mito cosmogónico.

O homem conhece os períodos de “tempo sagrado”, tal como conhece a saída

do tempo profano através da reactualização dos ritos que acontecem periodicamente.

Por exemplo, nas festas religiosas. Neste sentido, “a festa não é a comemoração de

um acontecimento mítico (e portanto religioso), mas sim sua reactualização” (Mircea,

1992: 44). No tempo profano, o tempo é cronológico, é constituído por sucessões

temporais organizadas de acordo com um espaço e um tempo histórico (khronos).

Para além do tempo profano, o homem conhece também o tempo “mágico-religioso”,

no qual a duração temporal, por pertencer ao espaço sagrado, é diferente da duração

profana. Trata-se de um tempo a-histórico, aeon, um tempo que não segue qualquer

forma de organização temporal, ou seja, o tempo sagrado. É neste espaço que se torna

sacro, a que pertence o mito, reactualizado através da narração, que transporta o

narrador e os ouvintes, metaforicamente, para um tempo sagrado, um tempo circular,

reversível. Trata-se do tempo das festas religiosas: “reencontra-se na festa a primeira

aparição do Tempo Sagrado, tal qual ela se efectuou ab origine, in illo tempore”

(Eliade, 1992: 38). O mito da criação, ou mito cosmogónico, começa no princípio, na

origem antes da criação do tempo. O narrador recita o mito com as palavras, ab

origine, in illo tempore; usa-as como uma espécie de fórmula para “entrar” no

território do sagrado. O mito cosmogónico remete-nos para um espaço onde o tempo

e a vida foram obras criadas pelos deuses, os seres sobrenaturais, o lugar de origem

das coisas.

Para algumas culturas arcaicas, como por exemplo, os Yokut1, o tempo é

renovado anualmente: “os Yokut dizem: o mundo passou, para exprimir que um ano

passou” (Eliade, 1992: 40). Para este povo, quando o ano termina, o cosmos termina

também, ou seja, o ano tem um começo e um fim, voltando a nascer quando o novo se

inicia, evoluindo ao longo da passagem do tempo. Como afirma Eliade: “o Ano era

um círculo fechado, tinha um começo e um fim, mas possuía a particularidade de

1 Nativos Americanos (Califórnia), cujas imagens conhecemos pelo trabalho fotográfico e etnográfico do artista

Edward S. Curtis.

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poder “renascer” sob a forma de um Ano Novo” (Eliade, 1992: 41). No final do ano o

cosmos volta a extinguir-se, e assim sucessivamente, eternamente circular. É através

da reactualização do mito cosmogónico que o espaço e o tempo se tornam sagrados;

por instantes permanece “real” apenas o tempo sagrado2. Ambos os tempos, sagrado e

profano, coexistem para o homem religioso e não religioso, mas somente para o

primeiro o tempo sagrado é a realidade, conclui Mircea Eliade. Para este autor, a

importância do estudo sobre os mitos é determinante para conhecer melhor o homem.

Tal como refere, “As imagens, os símbolos e os mitos não são criações irresponsáveis

da psique; elas respondem a uma necessidade e preenchem uma função: revelar as

mais secretas modalidades do ser.” (Eliade, 2002: 8). Em Imagens e Símbolos, Eliade

convoca o psicólogo, C. G. Jung, como investigador da psique humana, defendendo a

causa dos “dramas do mundo moderno resultarem de um desequilíbrio da psique,

causado na maioria dos casos, pela esterilização crescente da imaginação” (Eliade,

2002: 16). Esta reflexão vai ao encontro do conceito de arquétipo do inconsciente

colectivo da humanidade, pelo qual o psicólogo defende que o homem encontra nos

sonhos um espaço de comunicação entre a alma e os seus arquétipos, tal como

acontece nos mitos, onde as imagens inatas, primordiais, são manifestadas através das

narrativas.

As imagens, os símbolos, os mitos remetem-nos para outro tempo, um tempo

sagrado, explica Eliade, a propósito da mitologia cosmogónica; teve as suas origens

em rituais característicos das sociedades arcaicas, pois nestas sociedades havia uma

necessidade de renovar o tempo, apagando o passado através de vários rituais. Parece-

me relevante referir a importância da função dos mitos cosmogónicos para as

sociedades arcaicas, pois estes são transmissores de conhecimentos a vários níveis: “a

função soberana do mito é revelar os modelos exemplares de todos os ritos e de todas

as actividades humanas significativas: tanto a alimentação como o casamento, o

trabalho, a educação, a arte ou a sabedoria” (Eliade, 1989: 15). O mito da criação, ou

o mito cosmogónico, recria o que aconteceu num instante primordial, ab originae, in

illo tempore. O homem esquece a sua condição profana a partir do momento em que

começa a ouvir a voz que narra o mito: o ouvinte e o narrador “entram” noutro tempo,

o tempo sagrado. Assim decorre a passagem da condição profana humana para um

tempo mítico porque “(...) um mito retira o homem de seu tempo (...) e o projecta,

2 Como lembra Eliade: “o mito é considerado como uma história sagrada, e portanto uma história verdadeira,

porque se refere sempre a realidades.” (Eliade, 1989: 13)

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pelo menos simbolicamente, no Grande Tempo, num instante paradoxal que não pode

ser medido por não ser constituído por uma duração” (Eliade, 2002: 54).

Existe uma ruptura com o tempo provocada pela voz do narrador ao contar o

mito, que nos transporta para um tempo mágico-religioso ou sagrado. Será esse tempo

sagrado o tempo cronológico? Para as sociedades arcaicas onde o mito continua vivo,

o tempo sagrado é um transmissor de conhecimento, concluíu Mircea Eliade. Nesta

escuta, o homem religioso acredita no mito em si, acredita que se encontra com os

deuses, e é através da reactualização do mito que o homem consegue transportar-se

para um espaço sagrado; depois de pronunciadas as palavras, ab originae, in ill

tempore, o homem deixa de pertencer a uma duração contínua (profana) e passa a

pertencer a um tempo primordial.

Valerá a pena recordar alguns dos aspectos da realidade do espaço mágico-

religioso para o homem das sociedades arcaicas; um espaço onde o homem se

encontra com os deuses e revive a criação. O que lhe permite cultivar, por instantes

(nas festas religiosas), a existência no tempo sagrado e assim viver na realidade,

deixando de viver na duração profana. Como acontece com o homem contemporâneo,

não-religioso, ao experienciar uma criação artística ou através das suas recordações

(os exemplos são inumeráveis), consegue “abolir” o tempo e entrar no tempo sagrado.

A conjugação dos vários factores referidos contribuem, para melhor entender o que

permite ao homem contemporâneo (não-religioso) “abolir” o tempo. Através do seu

imaginário e das suas recordações, o homem contemporâneo consegue transportar-se

para “outro tempo”, o tempo da sua imaginação, correspondendo ao tempo sagrado do

homem religioso. Parece-me importante acrescentar que, tal como o homem

contemporâneo, o homem religioso das sociedades arcaicas também recorre ao seu

imaginário, pois necessita de recordar e de imaginar para reactualizar o mito

cosmogónico.3 Assim, para recriar o mito, o homem religioso precisa de imaginar

como foi no tempo dos deuses, para reactualizar no presente e reproduzir, imitor, a

origem da formação do universo, o mito cosmogónico. O homem religioso encontra-

se com os deuses, sendo transportado para o mesmo espaço e tempo dos deuses.

Para concluir, regresso à pergunta de Eliade colocada no início desta

exposição: “Será necessário lembrar como a poesia lírica retoma e prolonga o mito?”

(Eliade, 1989: 24). A resposta a esta questão reside principalmente no facto de o

3 “(…) a imaginação imita modelos exemplares – as Imagens -, reproduzindo-os, reactualizando-os, repetindo-os

infinitamente” (Eliade, 2002: 16).

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homem ser um “animal simbólico”, utilizando a expressão de Ernst Cassirer. Assim,

da mesma forma que a poesia é simbólica, o conhecimento que é transmitido

simbolicamente é dotado de uma transmissão instantânea de sentido.4 O valor e a

compreensão do símbolo é variável e cultural.5

Contudo, as suas múltiplas

significações contêm uma estrutura que forma um sistema, sendo por esta razão

possível comparar culturas diferentes, assim como perpetuar a comunicação das

várias “histórias” entre culturas. Quando Eliade afirma que a poesia lírica retoma e

prolonga o mito, está também a referir-se ao imaginário simbólico do homem, pois é

através dos sonhos e dos devaneios e dos símbolos “(…) que projectam o ser humano

historicamente condicionado num mundo espiritual infinitamente mais rico que o

mundo fechado do seu “momento histórico” (Eliade, 2002: 9). Segundo Eliade,

existem inúmeros exemplos de “mitologias privadas”, sonhos, devaneios, fantasias, já

que os símbolos nelas voltam a aparecer inconscientemente,6 numa tentativa de, na

expressão do autor, “realizar o arquétipo”. É de referir a hipótese analisada por Eliade,

quando afirma que as estruturas e valores referentes a certas zonas do subconsciente e

do consciente são semelhantes. Partindo dessa hipótese, rapidamente se conclui que

determinadas zonas do subconsciente e do consciente são “dominadas” pelos mesmos

arquétipos. Assim, os factores referidos em relação ao consciente e ao subconsciente,

contribuem para entender melhor a origem do conceito de “mitologias privadas”, no

fundo, são um modo de transmissão simbólico dos nossos arquétipos, realizada

através dos sonhos, dos mitos, da criação artística, etc.

4 A função do símbolo é sempre a mesma como lembra Eliade: “...transformar um objecto ou um acto em qualquer

coisa diferente daquilo por que este objecto ou este acto são tidos na experiência profana” (Eliade, 1997: 524). 5 “ Se as imagens não fossem ao mesmo tempo uma “ abertura” para o transcendente, acabaríamos por sufocar

qualquer cultura” (Eliade, 2002: 176) 6 Segundo Eliade “...os monstros do inconsciente também são mitológicos” (Eliade, 2002: 10).

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1.2. Espaço Sagrado

Conforme referi no sub-capítulo anterior, a (re)actualização do mito

cosmogónico, através dos seus rituais, transporta por instantes os ouvintes para um

tempo sagrado. Para os povos das sociedades arcaicas, ao recriar a história sagrada, o

homem vive no tempo sagrado; ao repetir o mito cosmogónico o homem recria o que

considera ser a realidade. O tempo sagrado, vivido através da recriação do mito

cosmogónico, corresponde à realidade para estes povos. Em suma, para o homem

destas sociedades, o verdadeiro conhecimento do universo é adquirido através do mito

cosmogónico.

Em seguida irei desenvolver, sempre de acordo com os conceitos de Mircea

Eliade, outro aspecto referente à reactualização dos mitos cosmogónicos: a construção

de um espaço sagrado, assim como o simbolismo do “centro”. Segundo o autor, é

através do ritual que o mito cosmogónico aproxima o homem dos deuses. Tal é feito

por via da recriação e repetição do mito, transportando-o para um tempo sagrado.

Segundo Eliade: “(…) a cosmogonia é o arquétipo de toda a “criação”, o tempo

cósmico que a cosmogonia faz brotar é o modelo exemplar de todos os outros

tempos” (Eliade, 1992:41).

Por conseguinte, é através de um ritual ou de uma hierofania que o espaço

sagrado é construído. Há que considerar o termo hierofania, usado por Mircea Eliade

para definir uma manifestação da realidade sagrada.7 Entende-se por hierofania tudo o

que é uma manifestação do sagrado. O significado etimológico, remetendo para as

palavras gregas hieros e faneia, significa sagrado e manifestação, respectivamente.

Essa manifestação pode acontecer através de um ser vivo, um objecto ou uma pedra.

Estas são denominadas hierofanias elementares; já as hierofanias supremas reportam-

se ao mundo dos deuses. Um exemplo da primeira é o da árvore indiana Açvatha.8

Simboliza a Árvore Cósmica, pois, apesar de serem manifestações locais, as

hierofanias possuem um simbolismo universal. A sua estrutura e função são sempre as

mesmas. Segundo Mircea Eliade, esta Árvore desempenha um papel relevante nos

7 Trata-se, segundo o autor: “(…) de uma realidade que não pertence ao nosso mundo” (Eliade, 1989: 110). 8 “(…) esta hierofania não somente é histórica (aliás, como toda a hierofania), mas é também local” (Eliade, 1977:

25).

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rituais do “centro”, como irei demonstrar de seguida. Trata-se de um dos simbolismos

do centro mais conhecidos entre todas as culturas do mundo.

Antes de prosseguir a reflexão, afigura-se importante fazer referência a uma

distinção fundamental entre o espaço sagrado e o espaço profano. Para o homem das

sociedades arcaicas, o espaço necessita de um “ponto fixo” ou de um “centro”. Trata-

se de uma orientação na homogeneidade do mundo (espaço sagrado), ao contrário do

homem profano, que habita o espaço homogéneo, sem orientação, sem “ponto fixo”,

caótico (espaço profano). A descoberta do “centro” ou do “ponto fixo”, para o homem

das sociedades arcaicas, realiza-se através de hierofanias, tornando-se num local

sacralizado. Descoberto o território sagrado, o homem arcaico procede à construção

(habitação, templo, santuário), sendo esta concebida através da ritualização dos mitos

cosmogónicos.

A experiência de um mito cosmogónico, através do ritual pelo qual este se

manifesta, transforma um local ou um objecto num espaço sagrado ou num amuleto.

Assim, para as culturas arcaicas, existe sempre a ligação entre o céu e terra. O facto

de estes se percepcionarem como os que habitam o “centro”9 leva-os a considerar que

estão em comunicação com os deuses. Existem três níveis cósmicos: céu, terra e

mundo subterrâneo. A reactualização dos mitos cosmogónicos assegura a

comunicação com os deuses e, por conseguinte, consagra o território. Não surpreende,

por isso, a relevância, para o homem religioso, relativamente ao aspecto do regresso

às origens, realizado pela reencenação do mito cosmogónico. Para estas sociedades,

tudo o que se encontra para além do seu o território sagrado pertence ao “caos”.10

Logo, o espaço da sua habitação, imago mundi, é um lugar sagrado, um universo que,

para ser habitado, tem de ser concebido ritualmente, de acordo com os mitos

cosmogónicos. Segundo o autor que tenho vindo a citar: “É importante compreender

que a cosmização dos territórios desconhecidos é sempre uma consagração:

organizando um espaço, reitera-se a obra exemplar dos deuses” (Eliade, 1992: 23). A

recitação do ritual do mito, desempenhada pelo narrador, tem uma função muito

importante nessa construção do espaço sagrado. É através do mito cosmogónico que

um determinado espaço a habitar se torna “cosmicizado”, ou seja, torna-se um espaço

sagrado, pronto a habitar. De acordo com Eliade, o acto de construir, por exemplo, 9 “(…) pois o centro é justamente o lugar onde se efectua uma rotura de nível, onde o espaço se torna sagrado, real

por excelência” (Eliade, 1997: 28). 10 Como lembra o autor: “As sociedades arcaicas e tradicionais concebem o mundo que as cerca como um

microcosmos. Nos limites desse mundo fechado começa o domínio do desconhecido, do não-formado” (Eliade,

2002: 34).

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uma casa, ou um templo pertence ao plano do sagrado, pois é uma criação realizada

de acordo com os mitos cosmogónicos, tratando-se portanto de uma cosmogonia.

A igreja é um dos exemplos de uma construção sagrada onde o espaço sagrado

e o espaço profano são claramente delimitados. A porta de uma igreja é sempre o

local de passagem entre espaço profano e espaço sagrado. Voltando às sociedades

arcaicas, por exemplo, os Achilpa11 consideram o tronco de uma árvore, o eixo ou

pilar cósmico que permite a comunicação com os deuses. Assim, ao longo das suas

viagens, este povo transporta sempre este tronco sagrado para sua orientação na

descoberta do próximo território sagrado. Eliade convoca Spencer e Gillen para

explicar a importância deste tronco para os Achilpa: “contam Spencer e Gillen que,

tendo se quebrado uma vez o poste sagrado, toda a tribo foi tomada de angústia; seus

membros vaguearam durante algum tempo e finalmente sentaram-se no chão e

deixaram-se morrer” (Eliade, 1997: 23).

Analisou-se, até aqui, um dos aspectos da função dos mitos cosmogónicos na

construção do espaço sagrado; de seguida, será possível constatar que se encontra no

simbolismo da árvore cósmica, a mesma estrutura simbólica usada na construção das

habitações, imago mundi e dos templos (espaço sagrado).

A árvore do universo, a montanha ou o eixo cósmicos serão porventura as

imagens arcaicas mais utilizadas para simbolizar o “centro”, pois quase todos os

templos, cidades e palácios derivam destas estruturas; ou seja, são réplicas deste

simbolismo do centro, estando assim situados no centro do universo. Estas réplicas

são consideradas “portas dos deuses”12, usando a expressão de Mircea Eliade, fazendo

assim a comunicação entre o céu e a terra, dur-na-ki, denominação também usada

para os santuários babilónicos.

A partir desta exposição, torna-se cada vez mais clara a função da reactualização

do mito cosmogónico, enquanto reprodução da obra dos deuses. Para as sociedades

arcaicas, trata-se da única forma de conceber a construção das suas habitações,

templos ou santuários. É precisamente no “centro”, onde a comunicação entre o céu e

a terra é efectuada, que o espaço se torna sagrado,13 permitindo ao homem encontrar o

seu “centro”, a sua orientação, como irei demonstrar de seguida.

11 Trata-se da tribo Arunta. 12 Como lembra Eliade: “Babilônia era um Bâb-ilânî, uma “porta dos deuses”, pois era lá que os deuses desciam à

Terra” (Eliade, 2002: 38). 13 Como lembra Eliade: “ o sagrado revela a realidade absoluta e , ao mesmo tempo, torna possível a orientação,

funda o mundo, no sentido de que fixa os limites e, assim, estabelece a ordem cósmica.” ( Eliade, 1992: 21).

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Eliade considera a Árvore Cósmica o símbolo do centro mais conhecido entre

culturas, uma vez que representa a unificação dos três níveis do Cosmos: céu, terra e

mundo subterrâneo. A árvore cósmica unifica os três níveis cósmicos, representando o

pilar central que suporta o mundo, o axis mundi. Por exemplo, no xamanismo central

e norte-asiático, a árvore xamânica simboliza a árvore cósmica, cujos galhos

representam os sete ou nove céus da árvore cósmica (sete ou nove céus planetários).

Eliade apresentou-o de forma notável, a propósito do simbolismo da árvore cósmica:

A subida numa tal árvore, para o xamã tártaro, simboliza a sua ascensão ao céu.

Realmente, fazem-se sete ou nove galhos na árvore e, escalando-os, o xamã declara

claramente que ele sobe ao céu. Ele descreve aos outros tudo o que vê em cada um dos

níveis celestes que atravessa. No sexto céu ele venera a Lua, no sétimo céu, o Sol.

Finalmente, no nono, ele se prosterna diante de Bai Ulgan, o Ser Supremo, e lhe oferece

a alma do cavalo sacrificado (Eliade, 2002: 42).

É a partir dos galhos da Árvore Cósmica que, em termos simbólicos, os

tambores dos xamãs são construídos, pois é devido à transmissão do som realizada

por estes instrumentos que, durante o ritual xamânico, os xamãs são transportados

para os céus. É precisamente essa duplicidade de simbolismo dos galhos da árvore

xamânica que é fecunda: por um lado os galhos são utilizados para a ascensão

(escalada) do xamã; por outro, os mesmos galhos são utilizados para construir o

tambor que, ao ser tocado, permite igualmente ao xamã subir ao céu, atingindo o seu

êxtase. Trata-se, em suma, de uma participação no mito da árvore cósmica: a

experiência é simultaneamente vivida e narrada pelo xamã. Nas palavras de Eliade:

“(…) só ele obtém a ruptura dos níveis cósmicos que lhe permitirá a ascensão ou voo

extático através dos Céus por se encontrar no próprio Centro do Mundo” (Eliade,

2002: 43).

Segundo o autor, outro exemplo relacionado directamente com o simbolismo da

árvore xamânica encontra-se na mitologia budista. Trata-se do mito da natividade, os

sete passos de Buda. Destaco o texto que o autor transcreveu na sua obra Mitos,

Sonhos e Mistérios:

Logo que nasce, o Boddhisattva põe os pés em pontas sobre o solo e, voltado para o

norte, dá sete passadas, abrigado por um guarda-sol branco...” e diz “sou o mais alto do

mundo, sou o melhor do mundo, sou o mais velho filho do mundo; este é o meu último

nascimento; para mim já não haverá mais existências novas (Majjhima-Nikàya, III, pág.

123) (Eliade, 1989: 97).

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Em síntese, segundo Eliade, as semelhanças com o simbolismo da árvore

xamânica tornam-se mais claras: sete passos de Buda correspondem aos sete galhos

escalados, ou seja, aos sete céus planetários atravessados pelo xamã, atingindo o

ponto mais alto. Buda, ao atingir o ponto mais alto do mundo encontra-se num estádio

cósmico, onde tudo começou, a origem do universo. Quando Buda diz: “sou o filho

mais velho do mundo”, quer dizer que regressou ao instante anterior ao instante

primordial, ou seja, ao tempo antes da cosmogonia. Assim Buda consegue “abolir” o

tempo e o espaço, atingindo uma supra-temporalidade espacial.14 O simbolismo da

ascensão de Buda, de acordo com o autor, possui uma estrutura idêntica ao

simbolismo da árvore cósmica, pois os templos, as cidades, as habitações são

construídos num território sagrado, isto é, têm um “ centro”, uma comunicação com o

céu, sendo que tais construções são sempre réplicas do universo habitado pelos deuses.

O mesmo acontece nos ambientes realizados em Meshes of the Afternoon

(1943), um filme de Maya Deren (Fig. 2 a 3), cuja narrativa é toda ela simbólica.

Neste filme, a artista apresenta-nos o seu espaço sagrado; somos transportados para

outro tempo, o tempo do sonho, do inconsciente. Neste, não existe qualquer estrutura

de duração temporal. Segundo Maria Zambrano: “enquanto a temporalidade é a

privação de tempo no movimento, os sonhos são a imobilidade de um movimento: há

movimento neles, mas não há tempo” (Zambrano, 1994: 66). Destaco, a este respeito,

o simbolismo da escada e da composição sonora, por estarem directamente

relacionados com os exemplos que referi. A acção de subir as escadas surge várias

vezes ao longo do filme, o que remete para o simbolismo da árvore xamânica. As

várias escaladas de Maya Deren podem ser interpretadas como um acto de encontrar o

seu centro, a acção de subir as escadas, tal como os sete passos dados por Buda ou a

escalada do xamã pelos sete galhos; todas estas acções simbolizam uma ascensão ao

céu. Um outro factor relevante na construção da narrativa é o modo como as figuras

vão surgindo nas várias cenas da escada. Ao chegar ao fim dos degraus, Deren

depara-se com figuras misteriosas, sempre ambíguas, humanas, não humanas; por

vezes, uma das figuras é a própria artista. Segundo a minha leitura, em Meshes of the

Afternoon, as imagens oníricas traçam uma relação directa com as imagens do

inconsciente da autora; porventura uma pesquisa da própria identidade da artista para

que, no final (da subida) o desejo de encontrar as origens seja realizado e por fim ela

14 “ as duas imagens exprimem uma ultrapassagem total do Mundo e a reintegração num estado “absoluto” e

paradoxal, para além do Tempo e do Espaço” (Eliade, 1989:99).

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possa renascer. Por outro lado, a composição sonora transporta de imediato o

espectador para o universo onírico: os silêncios, as sonoridades dos tambores e da

flauta transmitem o estado do sonho. O que não deixa de remeter igualmente para o

ritual xamânico, principalmente devido às sonoridades arcaicas e fluidas da flauta,

assim como o ritmo cíclico do tambor. Em relação aos aspectos formais, em Meshes

of the Afternoon é possível presenciar uma analogia com a própria manipulação de

tempo e espaço na edição das imagens e sons, com intenção de provocar uma “saída

do tempo”, mediante uma entrada num outro tempo, o onírico. Através dos vários

recursos de edição como, por exemplo a repetição sonora, a câmara lenta, as

mudanças bruscas de plano, é dada a hipótese de experienciar várias temporalidades,

para além das que se integram, da experiência do tempo vivido cronologicamente, o

khronos.

O filme Meshes of the Afternoon, demonstra como o homem contemporâneo

conserva no seu imaginário “figuras” mitológicas visto que, de acordo com Eliade, o

nosso inconsciente contém semelhanças com as imagens mitológicas. Usando a

expressão deste autor, este filme é um exemplo de uma “mitologia privada”, ou seja,

representa em si os sonhos e os devaneios do homem moderno. Em Meshes of the

Afternoon, toda a narrativa possui diversas dimensões simbólicas, como já referi. Fica,

assim, patente a relação existente entre os mitos cosmogónicos das sociedades

arcaicas e as “mitologias privadas” do homem das sociedades modernas.

Os mitos modernos camuflados da nossa sociedade, tal como Eliade afirma,

encontram-se sobretudo nos sonhos, na literatura e na poesia. Em termos globais,

existe uma busca da identidade através das mitologias privadas que encontra o seu

expoente máximo na criação artística. Em síntese, as mitologias privadas são formas

de conhecimento que sobrevivem no inconsciente, onde as imagens não têm tempo e,

por conseguinte, se torna possível viver na “supra-temporalidade”. Num “espaço

artístico” onde os conceitos Eliadianos de espaço e tempo sagrados podem encontrar

os seus equivalentes contemporâneos.

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2. O Instante simbólico

2.1. Instante e duração

“Lá onde acaba a montanha,

nos cimos, nem eu sei onde,

vagueei por onde a minha cabeça

e o meu coração pareciam perdidos,

vagueei ao longe.”

– Canto do sonho – (Papagos)

Herberto Helder, Poemas Ameríndios, Lisboa, 1997.

É importante relembrar a prática da repetição dos rituais cosmogónicos

realizados nas sociedades arcaicas, actualizados nas tradições com determinados

valores e significados, assim como a relevância cultural dos rituais como

transmissores de conhecimento ao longo de gerações. O tempo sagrado, vivido

através dos rituais cosmogónicos, é considerado pelos povos arcaicos como realidade

única e suprema. De acordo com Eliade, “um mito é a repetição de um fragmento do

tempo original (...) onde todos os rituais têm a propriedade de se passarem agora,

neste instante, nuc stans” (Eliade, 1977: 467). Tudo o resto passa para o plano do

tempo profano e é considerado ilusão para estes povos. Em suma, “a periodicidade

significa sobretudo um tempo mítico tornado presente” (Eliade, 1977: 464), é

indefinidamente repetível, um tempo circular, reversível, recuperável; trata-se de um

eterno presente, nuc stans, que o homem reintegra pela acção dos mitos, com o

objectivo de unir-se aos deuses, e assim, ficar mais próximo da eternidade.

No seguimento deste trabalho, pretendo explorar a relação entre o nuc stans

do pensamento de Eliade com o conceito de instante, definido por Gaston Bachelard

(1884-1962), assim como o conceito de dimensão vertical, começando por distinguir

tempo vertical e tempo horizontal.

A distinção entre o tempo sagrado e o tempo profano advém da relação entre

ser (na sua plenitude) e não-ser. O ser nas sociedades arcaicas existe apenas num

tempo sagrado. Através da repetição dos rituais o ser vive e aprende, a sua construção

realiza-se pela repetição. O valor e significado da dimensão temporal existente nestas

sociedades podem ser equiparados, em parte, ao sentido atribuído à dimensão

temporal defendida por Bachelard. A dimensão do tempo, que procuro explorar neste

capítulo, prende-se com uma dualidade temporal, a do instante e duração. Neste

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contexto, a reflexão sobre a dimensão temporal centra-se em dois momentos

interrelacionados. Na primeira parte deste estudo, irei definir o conceito de instante,

segundo a perspectiva de Bachelard. Na segunda parte, sugiro uma abordagem da

dialéctica da duração, a partir de uma análise da duração (simbólica), sempre à luz

dos conceitos de Bachelard.

Gaston Bachelard apresenta, na sua obra A Intuição do Instante, a partir do

pensamento de Gaston Roupnel, uma teoria sobre o tempo descontínuo. Antes de

prosseguir, é necessário distinguir as diferenças entre o conceito de instante e o de

duração. Na análise de Bachelard, o instante corresponde à realidade do tempo. A

duração seria apenas um prolongamento do instante.

Bachelard começa por ilustrar de uma forma clara os dois conceitos com os

dois exemplos seguintes: um ponto branco numa linha preta e um ponto preto numa

linha branca, sendo que a linha corresponde à duração e o ponto corresponde ao

instante. Este último é representado por um ponto branco e a duração por uma linha

preta, numa ilustração das ideias de Bergson; já o instante representado pelo ponto

preto numa linha branca corresponde à tese defendida por Bachelard. O ponto preto é

figurado por essa cor, uma vez que é complexo, inteiro, tem conteúdo, sendo a linha

branca a representação da duração do instante. Com efeito, para o autor, a duração é o

instante que dura. O autor defende uma filosofia do descontínuo, o tempo é

constituído por instantes, ao contrário da filosofia do tempo contínuo e fluído

defendida por Bergson.

Os povos das sociedades arcaicas, segundo a leitura de Mircea Eliade levada a

cabo no capítulo anterior, acreditam experienciar a realidade através dos rituais dos

mitos cosmogónicos, pelos quais a realidade temporal (sagrada) é considerada

verdadeira porque imita a realidade dos deuses. Por outras palavras, os vários

instantes sucessivos, vividos através dos rituais são considerados reais e únicos, em

contraste com a realidade temporal (profana) vivida para além dessa fronteira, tida

como uma ilusão. Faço em seguida uma analogia com a tese de Bachelard, defensor

da realidade temporal representada por uma sucessão de instantes presentes, únicos e

reais. Na leitura deste autor, o acto presente é considerado o instante, ou seja, o

presente é uma sucessão de actos, onde os mesmos terminam para recomeçar outros

instantes.

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Bachelard defende uma filosofia do acto. Compreende-se assim, a importância

que dá ao instante presente, pois este contém toda a temporalidade: o instante presente

é inteiro, sagrado e transcendental. Saliente-se que a duração não passa de um

prolongamento inalterado de um determinado instante. Tal teoria contrapõe-se à

filosofia da duração de Bergson, já referida. Para a intuição bergsoniana, “a

verdadeira realidade do tempo é a sua duração; o instante é apenas uma abstração,

desprovida de realidade” (Bachelard, 1988: 269). Neste sentido, o pensamento de

Bergson corresponde a uma filosofia da acção.

Bachelard considera que a composição ou ordenação dos instantes referidos

cria uma ilusão, a do tempo contínuo, pois “o tempo tem várias dimensões; o tempo

tem uma espessura. Só parece contínuo graças à superposição de muitos tempos

independentes” (Bachelard, 1988: 87). Os vários tempos independentes, referidos

pelo autor, são os instantes presentes. A dimensão do tempo é assim, constituída pelo

conteúdo complexo de cada instante, conferindo-lhe a sua espessura. Paralelamente a

ordenação, ou a composição dos instantes, cria a ilusão de continuidade. Para

Bachelard, “o Tempo é o instante, e é o instante presente que tem toda a carga

temporal. O passado é tão vazio quanto o futuro.” (Bachelard, 2010: 48-49). Adiante

acrescenta, em relação à duração: “Um ritmo que continua inalterado é um presente

que tem uma duração; esse presente que dura compõe-se de múltiplos instantes (...)”

(Bachelard, 2010: 50). Uma vez definidos os traços da estrutura da dimensão

temporal (instante e duração), torna-se necessário definir a sua espessura.

Verificou-se até aqui, a dimensão do tempo correspondente a uma continuidade

ilusória do tempo, composta por vários instantes. Os vários elementos referidos

contribuem para entender a essência da dimensão temporal. Porém, é igualmente

possível constatar a dimensão do tempo na trama dos sonhos, nos devaneios e nas

variadas formas de criação artística. Somos transportados para outro tempo, através

dos símbolos, da literatura ou da poesia, da imagem ou das sonoridades. Estes, por

sua vez, contêm uma dimensão temporal muito próxima da dimensão, por exemplo,

do tempo sagrado, demonstrando que o pensamento é constituído pela dimensão

afectiva da temporalidade. É portanto legítimo esperar que o tempo que decorre no

pensamento represente um papel distinto actuando em vários planos temporais. Nas

palavras do autor:

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E se quisermos partir do axioma schopenhaueriano fundamental – o mundo é minha

representação – parecerá plausível inscrever os fins no âmbito da representação da

representação e as formas constituídas por essas actividades de espírito que implicam

coisa e afim no âmbito da representação da representação da representação.

Psicologicamente falando, ao seguir o eixo da liberação, quando o desligamento material

for obtido, não nos determinaremos mais por uma coisa, nem mesmo por um pensamento,

mas, finalmente, pela forma de um pensamento. A vida espiritual se tornará estética pura

(Bachelard, 1988: 94).

A forma de um pensamento, citando Bachelard, é influenciada pela dialéctica da

dimensão temporal, na qual os instantes simbólicos são parte constituinte da dimensão

temporal do pensamento. Cada instante apresenta uma duração simbólica que difere

da estrutura adquirida no tempo da vida. O tempo existente no pensamento representa

antes uma duração simbólica, relacionando-se naturalmente com as várias formas de

criação artística. No contexto deste trabalho, procuro relacionar os instantes

simbólicos, entendidos como influenciadores directos da dimensão temporal, na

imagem em movimento ou na poesia. Como factor influenciador, o símbolo vai agir

directamente no tempo que ocorre no pensamento (duração simbólica). A duração

simbólica referida corresponde à criação pessoal de sucessivos instantes, compostos

por uma determinada ordem.

A verticalidade no instante poético rompe a continuidade da ordem sucessiva

dos instantes; é com efeito, um tempo construído por vários instantes sobrepostos. O

uso de tempos justapostos remete para um tempo vertical, termo usado por Bachelard,

um tempo que se distingue do tempo horizontal que se rege por sucessões e controla

as cadências das sonoridades. O autor defende três ordens de experiência da duração,

criadoras de uma ruptura com o tempo horizontal, permitindo assim, a verticalidade, o

tempo vertical. São elas:

1) habituar-se a não referir o tempo próprio ao tempo dos outros - romper os contextos

sociais da duração;

2) habituar-se a não referir o tempo próprio ao tempo das coisas - romper com os

contextos fenomênicos da duração;

3) habituar-se – duro exercício – a não referir o tempo próprio ao tempo da vida; não

mais saber se o coração bate, se a alegria avança - romper com os contextos vitais da

duração. ( Bachelard, 2010: 96)

No seguimento desta reflexão, passo a apresentar uma leitura do filme de

Margarida Cordeiro e de António Reis, intitulado Ana (1982). A escolha da obra é

pertinente, uma vez que releva a presença da verticalidade simbólica, sobre a qual me

tenho vindo a debruçar (Fig. 4 e 5). Escolhi dois exemplos retirados desta obra, por

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ambos estarem relacionados com o facto do espectador ser transportado para outro

tempo, o tempo do seu pensamento, tanto através da dimensão afectiva das imagens e

das sonoridades, como do silêncio. É certo que as imagens escolhidas foram

realizadas a partir de um plano fixo e aparentemente imutável, que imediatamente

induzem o espectador a um estado de contemplação.

O primeiro caso representa a cena da mãe com o filho. A acção passa-se numa

sala, onde se encontra uma mulher a amamentar o filho. Num ambiente sagrado,

como se de um ritual se tratasse, a mulher recebe o filho nos braços para o alimentar,

rodeada por vários elementos da família que a observam. O instante é simbólico,

Maria a figura feminina mais velha, representa o factor influenciador constituinte da

dimensão temporal existente nesta cena. Representa o instante presente, o acto de

entregar o filho e posteriormente o leite à jovem mulher, cria movimento, provocando

uma mudança, prolongando o instante simbólico. O instante simbólico ou instante

presente tornado simbólico, devido ao acto, foi prolongado pela figura Maria,

revelando assim uma duração simbólica: a questão da vida, criada pelas várias

sobreposições temporais. Compreende-se que a duração é psíquica.

É possível descobrir instantes simbólicos em Ana, uma dimensão mitológica

construída por várias camadas, que permite desvendar parte da nossa memória

colectiva, construída em tempos longínquos através da narração da origem do mundo,

através da repetição dos mitos. O segundo caso, a cena do novelo de lã, aborda

novamente a relação entre mãe e filha, assim como a questão da vida e da morte. A

protagonista encontra-se numa sala perto de uma janela, sentada numa cadeira a

separar um pedaço de lã. A filha entra em cena e senta-se a ajudar a mãe a separar o

resto da lã. A acção é simbólica, corresponde ao acto de passar o testemunho, ou seja,

a passagem de conhecimento. A acção centra-se na questão de transmissão cultural

entre gerações, tal como acontece nos rituais dos mitos cosmogónicos, referido no

capítulo anterior.

De formas diferentes, o mesmo efeito é obtido em Ritual in Transfigured Time

(1946), filme realizado por Maya Deren (Fig. 6 e 7), onde o simbolismo e as

influências da dimensão temporal estão igualmente presentes. Escolhi a cena do

novelo de lã, semelhante à cena referida em Ana, por se tratar de uma cena com um

simbolismo directamente relacionado com o tempo do sonho e da poesia. Simbolismo

este, por sua vez relacionado com o ritual, e com o acto da repetição, neste caso do

movimento. O tempo de enrolar o novelo lã ou de o desenrolar, em câmara lenta,

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remete para o tempo dos sonhos, onde a dimensão temporal se aproxima da

temporalidade da poesia, onde não existe um tempo linear, ou um tempo horizontal,

mas sim um tempo vertical. No sub-capítulo seguinte irei desenvolver o conceito de

ritmanálise, fundado pelo filósofo Lúcio Pinheiro dos Santos (1884-1962), a partir da

noção de verticalidade.

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2.2. Ritmanálise

No capítulo anterior, apresentei a relação entre o conceito de instante e duração,

formulada, sobretudo, a partir da tese de Bachelard. Do ponto de vista da psicologia

da duração defendido por Bachelard, a dimensão temporal é, como já referido,

descontínua, sendo composta por vários instantes presentes com determinadas

durações, ou seja, é composta pelos instantes que duram.

Neste capítulo, pretendo desenvolver o conceito denominado ritmanálise,

pensado pelo filósofo Lúcio Pinheiro dos Santos e apresentado por Gaston Bachelard.

Pretendo de seguida, aprofundar o conceito de instante poético, a partir da noção de

tempo vertical e tempo horizontal abordada no sub-capítulo anterior. Interessa

igualmente no contexto deste trabalho realizar a ritmanálise do poema “Merina”, de

Cesário Verde.

A ritmanálise, modelo de conhecimento fundado pelo filósofo Lúcio dos Santos,

é uma filosofia do ritmo, influenciada directamente pela filosofia criacionista de

Leonardo Coimbra15

. A ritmanálise tem como base o estudo fenomenológico do ritmo,

sob uma perspectiva transversal e abrange três matrizes fundamentais: física,

biológica e psicológica. Interessa para este trabalho aprofundar o conceito de instante

poético a partir destas matrizes, sob o ponto de vista de uma psicologia da duração e

biológica, por estarem ambas relacionadas directamente com a realidade metafísica.

A complexidade da dimensão temporal advém da dialéctica entre o tempo do

pensamento (tempo do eu) e do tempo vivido (tempo do mundo). É sob esta

perspectiva psicológica que, de acordo com Bachelard, o ser humano tem a

possibilidade de criar mecanismos de ruptura entre os tempos referidos, através do seu

imaginário e da sua inteligência, formando assim uma dimensão vertical. Torna-se

necessário referir a base fundamental da ritmanálise, que consiste numa procura

constante de “motivos de dualidade para a actividade espiritual” (Bachelard, 2010:

47). Quando o autor afirma: “a vida, nos seus êxitos, é feita de tempos bem

ordenados; é feita, verticalmente, de instantes sobrepostos ricamente orquestrados;

religa-se a si mesma, horizontalmente, pela justa cadência dos instantes sucessivos

unificados numa função” (Bachelard, 2010: 45-46), refere-se à nossa percepção

15 Leonardo José Coimbra (1883-1936), filósofo português, ensaísta, professor e político. Criacionismo (Esboço

de um sistema filosófico), Criacionismo (síntese filosófica), Do Amor e da Morte, A questão Universitária, são

algumas obras de referência para uma filosofia da liberdade, onde o homem é a figura central das suas reflexões. O

criacionismo enquanto filosofia da liberdade criadora do pensamento, tem como base a actividade científica.

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visual, sob o ponto de vista biológico; o pensamento do tempo vivido referido é uma

imagem com uma dimensão temporal horizontal, a duração é monótona. A ritmanálise

encontra-se relacionada com o duplo movimento do psiquismo, usando uma expressão

de Bachelard, sendo que a verticalidade depende da relação dialéctica entre o tempo

vivido e o tempo do pensamento. Por conseguinte, Bachelard considera “a poesia o

meio mais próprio para ritmanalizar a vida espiritual, para tornar a dar ao espírito a

mestria das dialécticas da duração” (Bachelard, 2010: 56-59).

Jacques Prévert escreve: “descrevo as coisas que estão atrás das coisas” (citado

por Bachelard,1990:69), indo ao encontro do pensamento de Bachelard. Trata-se da

dialéctica do tempo da poesia, ou do tempo vertical. Na poesia, a dimensão temporal é

vertical dialecticamente. O tempo vivido e o tempo do pensamento são unificados

pelo imaginário, num eixo vertical. Existe uma relação entre a doutrina espiritual da

ritmanálise, que defende que “todo o esforço da vida se dialectiza, que toda a

actividade espiritual é a passagem de um nível a outro mais elevado, com a técnica

pan-indiana, pranâyâma” (Bachelard, 2010: 52-54)

Segundo o ponto de vista ritmanalítico, a técnica pan-indiana, denominada

pranâyâma, enquadra-se nas teorias da filosofia do ritmo. O pranâyâma, ou uma

técnica pan-indiana de saída do Tempo consiste sobretudo na ritmização da

respiração. Trata-se de uma técnica de abolir o tempo no pensamento; através da

prática do yoga é possível parar o fluxo temporal. O yogi controla a respiração com

um determinado compasso, os exercícios respiratórios são cadenciados de tal forma

que consegue manipular o tempo vivido. É através de inspirações seguidas de

retenções da respiração, designadas Kunbaka, e prolongando os intervalos de tempo

existentes entre a expiração e a inspiração, que o praticante “consegue controlar o

tempo (...) pelo seu próprio ritmo respiratório, o iogue, repete e de certa forma revive

o Grande Tempo Cósmico, as criações e as destruições periódicas do Universo”

(Eliade, 2002: 84). Ao criar o seu próprio tempo, o praticante de yoga, transcende o

universo e o tempo, vivendo na eternidade, ou no nunc stans (eterno presente). A

saída do tempo do mundo para entrar no tempo do espírito, através da técnica de

abolição do tempo já referida, remete para o tempo da poesia (instante poético). O

tempo sagrado pode ser comparável à dimensão temporal da poesia: “é para construir

um instante complexo que o poeta destrói a continuidade do tempo encadeado”

(Bachelard, 2010: 94), que o poeta cria rupturas entre os tempos referidos, e consegue

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sair do tempo do mundo, khronos, e entrar na dialéctica do tempo do espírito, da

ordem do imaginário, criando novos mundos.

A poesia, as imagens, os mitos, remetem para um tempo vertical equivalente ao

tempo sagrado, tal como nos rituais realizados nas sociedades arcaicas, analisado no

capítulo anterior. Durante a narração do mito cosmogónico dá-se, pela voz do

narrador, uma ruptura com o tempo, ao recitar o mito, transportando os ouvintes para

um tempo sagrado. Será o tempo sagrado o tempo real? Será no inconsciente, onde

habitam imagens abandonadas e mitos semi-esquecidos, que o homem recupera o seu

tempo? É certo que, no espaço do símbolo ocorre o movimento da consciência, no

qual o tempo se torna real. Não é, no fundo, muito diferente da noção de reflexo,

apresentada por Bachelard: “o reflexo que parece ser mais real que o real, porque é

mais puro. Como a vida é um sonho dentro de um sonho, o universo é um reflexo

dentro dum reflexo, onde está o real?” (Bachelard, 2002: 50).

É disso exemplo, At Land (1944), filme de Maya Deren. Numa analogia com o

tempo do sonho, o filme aborda a ideia de reflexo sugerida por Bachelard: não será a

vida um sonho dentro de um sonho? Em At Land (Figs. 8 e 9), a autora opta pela

ausência de indicadores espaciais e pelo uso de mudança de planos, recriando um

tempo onírico e poético. Existe uma relação directa entre a estrutura do filme e a

poesia, recorrendo a autora a uma narrativa simbólica. O uso de tempos sobrepostos é

demonstrado, por exemplo, através de dois ambientes distintos: as imagens de uma

sala de jantar (mesa) intercaladas com as imagens de uma praia (árvore). São

interligadas pelo mesmo acto simbólico, o de alcançar um fim, uma meta. A primeira

cena começa com Maya Deren na praia, a subir a uma árvore. No final da subida

existe uma mudança de ambiente; Deren encontra-se, noutra cena, a subir a uma mesa

onde se realiza um jantar. Os contextos mudaram: apenas permaneceu o movimento

de alcançar algo. Chegando ao limite da mesa, a cena volta a mudar, sendo a

protagonista transportada para outro plano, para outro contexto.

Na minha leitura do filme, At Land é construído por uma estrutura simbólica,

presente ao longo da narrativa. Maya Deren opta por uma verticalidade, de ordem

simbólica, tal como acontece nos sonhos. O conceito de verticalidade encontra uma

ilustração na ordem dinâmica dada às imagens, na justaposição de vários ambientes,

bem como nas cenas intercaladas de diferentes contextos: por exemplo, as cenas da

árvore/mesa. A cena da mesa representa uma acção simbólica, o acto de percorrer a

mesa como se se tratasse de um ser invisível, que pode equivaler ao instante poético,

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marcado pelo ritmo das imagens intercaladas. Em At Land, a autora manipula de uma

forma poética a dinâmica do filme, pelo uso de símbolos e justaposição de acções,

recriando a realidade abstracta do sonho, tal como os poetas. Remetendo para a

dimensão poética, referida por Bachelard: “a substância fluente dos nossos sonhos, os

poetas nos ajudam a canaliza-la, a mantê-la num movimento que recebe leis. O poeta

conserva muito distintamente a consciência de sonhar para dominar a tarefa de

escrever o seu devaneio” (Bachelard, 2001: 53).

Passo agora à análise de um poema de Cesário Verde, que serviu de base ao

trabalho artístico desta dissertação, de modo a poder desenvolver o conceito de

instante poético apresentado por Bachelard. Em ”Merina” (1878) o instante poético

tem como base a comparação simbólica entre duas realidades, campo e cidade:

Rosto comprido, airosa, angelical, macia,

Por vezes, a alemã que eu sigo e que me agrada,

Mais alva que o luar de inverno que me esfria,

Nas ruas a que o gás dá noites de balada;

Sob os abafos bons que o Norte escolheria,

Com seu passinho curto e em suas lãs forrada,

Recorda-me a elegância, a graça, a galhardia

De uma ovelhinha branca, ingénua e delicada.

Logo no início do poema, é perceptível a imagem de uma figura feminina, a

sua figura central. Cesário começa por apresentar Merina, descrevendo-a num

ambiente urbano. Uma cadência dialéctica romântica entre os dois ambientes percorre

todo o poema, criando um ritmo próprio. Da mesma forma, o uso da primeira pessoa é

determinante para a noção temporal decorrente no poema. Desta maneira, é

perceptível a dimensão temporal dialéctica do pensamento de Cesário Verde,

transmitindo uma duração equivalente do tempo da cidade e do tempo do campo.

Segundo Lao Tse: “o número das palavras é limitado, mas as ideias sugeridas

são inumeráveis (Lao Tse, 1996: 8), ideia que pode aplicar-se a uma das

características fundamentais da poesia de Cesário Verde: o picturialismo preciso dos

adjectivos. Com o recurso ambivalente de imagens, o poeta cria vários tempos

justapostos. Por outro lado, as imagens criam uma dicotomia entre o tempo da cidade

e o tempo do campo. É possível observar em ”Merina” as várias camadas temporais,

de forma similar à da montagem cinematográfica. Pelo facto de transportar para

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tempos e espaços diversos, é possível assistir, no poema, ao desvendar do instante

poético.

No verso “Nas ruas a que o gás dá noites de balada” são sugeridas várias

sensações em simultâneo: o cheiro, as cores e os sons, que elevam o leitor até à

percepção do instante poético. Esta passagem, descreve bem o contraste do ambiente

campestre, da noite natural, com a vida urbana, a noite artificial, enjoativa do gás. É

precisamente neste contexto que se enquadra o poema16

. Em Nas ruas a que o gás dá

noites de balada, Cesário faz uma referência directa a um tipo de iluminação pública

existente no final do séc. XIX, os candeeiros a gás. Este tipo de iluminação produzia

um vapor de cor amarelada, enjoativo, criando um ambiente fantasmagórico. Por

outro lado, a palavra balada está associada a uma dimensão temporal rítmica,

transportando o leitor para o ambiente romântico de uma composição musical. Na

segunda parte do poema, Merina é apresentada como recordação do campo, a

ovelhinha branca, ingénua e delicada, opondo-se ao mundo urbano. O instante poético

cria um ritmo particular no poema. O leitor pode assim ver, ao mesmo tempo, como

afirma Helder Macedo: “o que lhe é mostrado e como lhe é mostrado” (Macedo,

1999: 26), revelando a oposição para Cesário, entre cidade e campo, ambientes

distintos, no mesmo plano. Ora, isto não deixa de ir ao encontro do pensamento de

Bachelard quando afirma que: “a poesia é uma metafísica instantânea. Num curto

poema, ela deve dar uma visão do universo e o segredo de uma alma, um ser e

objectos, tudo ao mesmo tempo” (Bachelard, 2010: 93). No próximo capítulo irei

apresentar e analisar a obra artística Merina que teve como base o poema homónimo

de Cesário Verde.

16 Importa ler a passagem de Joel Serrão, de forma a contextualizar o ambiente descrito em “Merina”: “Em vez dos

largos horizontes do campo, as ruas sujas, movimentadas e rumorosas; em lugar da noite natural, de Lua e estrelas,

a noite artificial, enjoativa do gás; em vez do ritmo estacional e dos anos, o galopar dos dias e das horas, numa

pressa, numa «febre» que contagiava tudo e todos. Desse choque entre hábitos ancestrais e necessidades novas,

resultam a instabilidade, o desajustamento, acre percepção da solitude. Solitude essa que, umas vezes, se condensa

afectivamente no spleen, no tédio próprio das cidades, outras, em sonhos de evasão, ou de uma nova comunhão

humana a construir peça a peça, desde o princípio” (Serrão, 1980: 146).

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3. Merina: Três Inflorescências

3.1. Contextualização do vídeo Merina

Tendo como ponto de referência a análise teórica apresentada nos capítulos

anteriores proponho, no primeiro momento do presente capítulo, contextualizar os

meus trabalhos artísticos anteriores que conduziram aos conceitos abordados em

Merina. Num segundo momento, pretendo analisar o trabalho artístico realizado no

âmbito do Mestrado em Multimédia, na relação entre palavra, som e ritmo, como

forma de exploração dos limites de uma imagem fotográfica, assim como da análise

estrutural do vídeo Merina. Tendo como modelo teórico as teorias de Bachelard e

Eliade, a imagem-Merina foi construída numa relação rítmica de opostos: entre

instante e duração, sagrado e profano, verticalidade e horizontalidade. Nesta relação

rítmica de opostos surge um movimento final: o vídeo Merina.

Desde 2008 que o meu trabalho artístico se tem vindo a debruçar sobre as várias

questões que a dimensão temporal evoca. Torna-se necessário proceder à análise das

peças realizadas entre o ano de 2008 e 2013, de forma a contextualizar o vídeo

Merina. A este respeito, escolhi seis peças, das quais duas são instalações e as

restantes, obras videográficas.

A peça Somnus (2008) (Fig. 10 a 15) consiste numa instalação fotográfica e

videográfica onde é abordada a noção de tempo onírico. A instalação está dividida em

dois momentos: o primeiro é um momento fotográfico, relacionado com as imagens

em movimento, que retrata todo o processo artístico; o segundo momento inclui uma

projecção de dois vídeos. A instalação percorre várias histórias relacionadas com

sonhos (meus e ficcionados), temas como a morte, transfigurações da realidade,

acidentes e universos paralelos, misturados com cenas cinematográficas pré-existentes

(representadas e interpretadas por mim), tal como o lugar-comum referente à posição

do morto em certos filmes policiais. Aqui, o simbolismo da morte apresenta-se como

um acto de consciência da própria morte onde a mesma pode sugerir um recomeço. A

sonoplastia em Somnus é pouco manipulada, apenas existindo sonoridades pontuais,

como por exemplo as de uma betoneira a trabalhar, prevalecendo uma dimensão

silenciosa que percorre os vídeos na sua quase totalidade.

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Figuras 10 a 15 – Filipa Almeida, Somnus (2008), fotogramas da instalação.

As sequências das imagens são um cruzamento das várias realidades referidas,

montadas de uma forma não-cronológica, como se se tratasse de uma manipulação do

estado de alerta, onde o estar acordado remete para um inconsciente condensado; ao

contrário da realidade do sonho, onde o inconsciente se encontra num estado fluido.

Originando uma sensação de estranheza e confusão, remete para o estado entre sonho

e realidade denominado “lucid dream.”17

A peça Interpelar o Tempo (2010) (Fig. 16 a 19) consiste num conjunto de

quatro vídeos nos quais é abordada a noção de temporalidade: Time (2,06``),

Cisnemático (4,52``), Tempo de formiga (3,46``) e Interpelar o Tempo (2,53``). O

primeiro é um vídeo de curta duração, de plano fixo, sem som, onde o tempo é

manipulado através de uma numeração de 0 a 9, remetendo para uma contagem

infinita de um relógio imaginário, onde o tempo desliza. Os números sugerem uma

passagem de tempo, tal como a contagem feita por um relógio que marca essa

passagem. As variações de velocidade entre os números originam novas sequências,

tornando-se perceptíveis as infinitas combinações possíveis, e porventura um

reconhecimento de tentativa falhada de controlar o tempo. Os diferentes ritmos

provocam várias metamorfoses nos números, tornando-os objectos abstractos. A

repetição e a variação rítmica, imposta aos números através da edição, são

mecanismos utilizados para retratar o simbolismo presente no vídeo, causando uma

influência directa na noção de tempo percepcionado: o tempo cronológico, entre

tempo pessoal (abstracto) e khronos.

17 Denomina-se lucid dream, a experiência semelhante a um estado de semi-consciência durante o sonho, no qual

o sonhador “controla” ou pensa controlar o desenrolar do sonho.

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Tal como no exemplo anterior, Cisnemático é um vídeo sem som e de plano

fixo, cuja duração é também manipulada através da velocidade. Porém, em

Cinesmático a duração temporal do plano é prolongada, tornando a imagem em

movimento mais lenta, o que por sua vez torna perceptíveis certos movimentos

camuflados pela velocidade original da imagem. Aqui, o cisne é o símbolo do tempo

do universo subaquático, onde os movimentos prolongados pela acção do aumento da

duração ganharam outro sentido, como se de uma dança se tratasse. A percepção é

alterada pela fluidez lenta dos movimentos.

Em Tempo de formiga, o plano é fixo e invertido 45º. A imagem encontra-se

em sincronização com o som. Ao contrário dos dois vídeos referidos em Tempo de

formiga, não existe manipulação da imagem, bem como das sonoridades. Nesta

experiencia videográfica, procurei provocar alguma ambiguidade através do plano

invertido, como se as formigas trespassassem o plano do vídeo para outro plano, do

microcosmos existente debaixo de terra para o espaço expositivo. O trabalho articula

a experiência visual com a consciência auditiva do ambiente sonoro, com o objectivo

de criar uma nova experiencia auditiva.

Figuras 16 a 19 – Filipa Almeida, Interpelar o Tempo (2010), stills de vídeo.

Por último, Interpelar o Tempo, que dá o título ao conjunto dos quatro vídeos,

é o único que não apresenta um plano fixo; pelo contrário, utiliza três planos em

movimento numa sequência fluida. Os três planos são realizados em movimentos

circulares, em cada um dos quais foram aplicados três filtros diferentes: vermelho,

verde e azul (RGB). As velocidades são semelhantes entre si, com o objectivo de criar

um estado hipnótico. O título do vídeo sugere, um diálogo com o tempo, mas sem

qualquer espécie de narrativa: as interrogações transformam-se numa elipse sem

respostas. Por outro lado, o movimento em forma de elipse teve como objectivo

recriar uma nova imagem que por arrastamento (da imagem da árvore) se iria

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transformar numa nova imagem. Por acidente, converteu-se numa imagem semelhante

a uma ecografia. Esta, por sua vez, parece remeter para uma passagem, talvez para

outra realidade, o devir de um ser. Por outro lado, a árvore simboliza o tempo, ao ser a

criatura que melhor o representa. Com efeito, é possível observar nos nós da madeira

de um tronco as várias camadas temporais, constituindo uma homenagem à obra

cinematográfica Vertigo (1958) de Hitchcock. Trata-se de uma alusão à cena da

árvore. Neste episódio do filme, Kim Novak e James Stewart analisam a história

ilustrada em cada nó do tronco da árvore. Outra associação possível seria com a cena

de um momento alucinogénico provocado por um sonho, onde James Stewart é

envolvido pelas cores verde e vermelho, representando um momento vertiginoso, de

confusão e hipnose.

Com a obra Cadeira Sonora (2011) ( Fig. 20) iniciou-se um novo ciclo ao

nível do processo de instalação e vídeo, explorando e dando mais relevância às

sonoridades ao nível da composição. Isso deu origem a uma nova perspectiva da

relação entre narrativa sonora e imagem, que irá influenciar os trabalhos futuros.

Cadeira Sonora é um trabalho em progresso, baseado na história do objecto cadeira

desde o Egipto, passando pela Grécia Antiga, até aos nossos dias. Interessou-me

abordar o relacionamento entre o objecto e o tempo, dando maior relevância aos

períodos marcantes da evolução do objecto e da sua influência sociocultural,

nomeadamente na 2ª e 4ª dinastias no Egipto. Interessou-me o caminho da

apropriação da matéria histórica da cadeira e, num segundo momento, a sua

manipulação.

Figura 20 – Filipa Almeida, Cadeira Sonora (2011), Técnica mista.

Para esta performance, decidi explorar o objecto Cadeira Sonora (Fig. 21 a

22), ou seja, usei a cadeira como instrumento para a criação de uma coreografia. A

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interacção entre intérprete e objecto pretende recriar um instrumento musical cujas

sonoridades seriam manipuladas por três músicos. Escolhi um vídeo de minha autoria

para ser projectado em palco ao mesmo tempo que a performance decorre. Na edição

deste trabalho de vídeo optei pelo uso da repetição de vários planos-sequência,

descontextualizando as próprias imagens, sendo o resultado final uma composição de

fragmentos do próprio vídeo. Assim como a coreografia da cadeira sonora é composta

por várias repetições de acções, a performance consiste numa repetição de

movimentos minimalistas à volta da cadeira, tendo como pano de fundo a projecção

do vídeo referido.

Figuras 21 e 22 – Filipa Almeida, Cadeira Sonora (2011), fotogramas/performance.

Continuando a pesquisa na relação entre sonoridades e imagem, os seguintes

trabalhos consistem em três peças de vídeo independentes, realizadas entre 2011 e

2013. Estas obras intitulam-se t´ (2011) (Fig. 23), H.Q.S.C.L.M.S. (2013) ( Fig. 24), e

O outro lado do espectáculo (2013) (Fig. 25).

t´ é um vídeo de curta duração que apresenta uma exploração simbólica da

noção de repetição e de temporalidade. Também neste vídeo optei por um plano fixo

de curta duração. Porém, ao contrário dos vídeos realizados até ao momento, onde

tinha explorado mais a manipulação da imagem, neste vídeo a manipulação sonora é

relevante e está relacionada com o entendimento da unidade videográfica. A

composição sonora não só reforça a ideia ilustrada como demarca o ritmo do vídeo

imposto pela repetição, remetendo para uma forma de composição musical. Surge

uma radiação electromagnética (relâmpago) que está simbolicamente relacionada com

a repetição de uma acção interrompida.

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Figura 23 – Filipa Almeida, t´ (2011), still de vídeo.

A curta acção existente no vídeo, onde é possível observar várias pessoas a

deslocarem-se em direcções diferentes, termina com a deslocação de um casal com

um carrinho de bebé. A repetição é simbólica, tendo uma duração de breves

momentos, remetendo para a duração de meio segundo percepcionada pelo olho

humano referente ao clarão cintilante (trovão). Por outro lado, o acto de andar é

interrompido constantemente, voltando sempre ao início, em forma circular. Por

último, O outro lado do espectáculo e H.Q.S.C.L.M.S. são dois trabalhos

videográficos que antecedem o vídeo Merina, ambos realizados em 2013.

Fig.24 – H.Q.S.C.L.M.S. (2013). Fig.25 – O outro lado do espectáculo (2013).

Trata-se de dois vídeos com a duração de dois minutos aproximadamente (em

loop), adoptando a exploração da fotografia analógica, assim como a utilização do

som sintetizado como matéria plástica. O outro lado do espectáculo é um exercício

que se apoia na construção de universos sonoros, realizado a partir de uma fotografia

analógica, onde se vê uma plateia vazia composta por algumas cadeiras de veludo

vermelho pertencentes ao antigo teatro Paulo Claro, localizado no Bairro Alto.

H.Q.S.C.L.M.S apresenta uma fotografia analógica de uma calçada em Lisboa. Esta

funciona como imagem-base da estrutura que se irá desenvolver sobre a mesma. O

som é constituído por acordes prolongados, sugerindo uma tensão e uma mudança. A

imagem seguinte aparece em fade in com velocidade lenta e em sintonia com as

sonoridades que parecem indicar um compasso. Surge uma nova imagem, um par de

sapatos pretos de salto alto provavelmente usados por uma mulher desconhecida, já

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que a imagem é cortada um pouco acima dos tornozelos. Após breves momentos,

surge uma imagem quase imperceptível, como se se tratasse de uma imagem-flash.

Trata-se de uma imagem subliminar, cujo conteúdo não tem leitura, devido à sua

curta duração. As opções formais escolhidas, que compõem o vídeo, sugerem certos

movimentos alotópicos, criando uma sensação ambígua, suscitando curiosidade e

estranheza. Ambos os vídeos enunciam, portanto, ideias que vão ser aprofundadas em

Merina.

O vídeo Merina (2013) (Ver Anexo. Fig.1) é uma continuação do mecanismo

estrutural utilizado em O outro lado do espectáculo e em H.Q.S.C.L.M.S., cujo

modelo é focalizado nas narrativas sonoras. Nos vídeos referidos, as narrativas são

curtas e fluidas, ao contrário de Merina, cuja composição é constituída por vários

fragmentos de narrativas deambulantes e dispersas no espaço e no tempo. Este

trabalho vai explorar, de forma mais aprofundada, as narrativas sonoras. Estas

residem num plano ficcional e factual ao mesmo tempo. Tanto Love Story como A

invasão dos marcianos, narrativas que fazem parte do vídeo Merina, são baseadas em

factos reais. Na verdade, elas questionam a fronteira entre real e ficção, sagrado e

profano, como irei demonstrar no subcapítulo seguinte dedicado à análise da peça

Merina.

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3.2. Merina

A peça videográfica Merina (2013) tem uma duração de aproximadamente

seis minutos e é realizada a partir de uma fotografia analógica. Trata-se de uma

fotografia encontrada, transferida para um contexto artístico. O seu contexto tornou-se

ficcional, integrando várias narrativas. O vídeo começa com uma imagem estática de

cor negra. Após breves segundos apresenta-se um fotograma de um pátio rodeado de

casas e árvores, com um automóvel estacionado no primeiro plano, acompanhada pela

voz off. A imagem começa a ganhar densidade temporal, decorrente da voz da

narradora e do aparecimento de três novos elementos: a janela, a própria figura

feminina e o segundo automóvel estacionado junto da árvore. Estes elementos, agindo

simbolicamente como três inflorescências, vão crescendo muito subtilmente na

imagem com diferentes durações cada um.

O plano sequência, sem mutações bruscas, provoca na imagem tensão e

espectativa. O prolongamento do tempo altera a duração da imagem fotográfica. O

que era insignificante ou imperceptível torna-se um dos elementos principais da

imagem. A imposição da duração reflecte-se na imagem, cuja narrativa sonora

ilumina e obscurece. A construção da imagem, realizada a partir das sonoridades que

actuam como elemento estrutural, irá influenciar directamente a percepção visual. É a

estrutura sonora que sustenta o vídeo, influenciando directamente a interpretação da

sucessão sequencial dos vários instantes (fotogramas). É a partir daqui que se instaura

o movimento, remetendo para o principio do princípio do próprio cinema, criando um

tempo na imagem. O movimento da imaginação e da percepção visual e auditiva

funcionam como uma influência dinamizante, para usar uma expressão de Bachelard,

despoletando novas moções que se traduzem em novas narrativas.

A figura de Merina surge como uma personagem pertencente a várias narrativas

que se cruzam no plano do vídeo. A figura surge lentamente, de acordo com o

movimento das partículas sonoras que revela a personagem. Tais partículas sonoras

são compostas pela voz feminina e por sequências de notas musicais. As sonoridades

são periódicas, criando novos movimentos e novos ritmos à medida que as narrativas

se desenrolam. A manifestação da figura transmite um ténue movimento temporal.

Torna-se perceptível o decorrer do tempo. Portanto, é a partir da animação da figura

que é possível constatar a passagem do tempo e contá-lo, mas existem outros tempos.

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O tempo de Merina é, também ele, um tempo simbólico. O movimento

controlado da figura é simbólico e sugere vários movimentos do imaginário, como por

exemplo, uma criatura viajante no tempo que atravessa várias temporalidades; por

outro lado também simboliza uma flor ou uma árvore, tal como acontece na dança

butoh18

, cujo performer pode imaginar que ele próprio é uma flor que cresce e que

morre como forma de incorporar a personagem e de ser bem sucedido na sua

performance.

Aprofundo em seguida a questão da relação com o poema. Homónimo do

poema de Cesário Verde o título da peça Merina está directamente relacionado com

este poema. A ambiguidade da imagem fotográfica e o encontro do poema

funcionaram, no início do processo, como guião para a construção da personagem

Merina. A relação entre o tempo que parece suspenso da fotografia e o poema criou

uma nova forma de representar a temporalidade da imagem-Merina. Mas a relação

mais forte é a que se estabelece entre o instante poético do poema e o instante que

dura do vídeo Merina por via da fenomenologia da imaginação. Quando a figura

feminina surge, cria uma analogia com o aparecimento de uma imagem poética

construída no imaginário do leitor do poema, que corresponde à “aparição” da figura

feminina. Remetendo para a questão da possibilidade de analisar o instante poético no

poema, tal como a imagem fotográfica, este possibilita várias interpretações, assim

funcionando o “estatuto” do instante poético em questão. Logo, é através do ponto de

vista pessoal que o instante poético se deixa abordar, sendo que a imagem

representada no vídeo é uma representação de uma representação minha do instante

poético de Cesário. Com as devidas variações, articulei duas narrativas com o instante

poético já referido, aumentando assim a sua espessura, segundo o conceito de

Bachelard. Parece-me importante referir que tanto Love Story como A Invasão dos

Marcianos são também uma representação de uma representação, sendo que a

primeira é uma ficção baseada numa história de amor, e a segunda é uma adaptação

de uma adaptação.

O momento da “aparição” da figura feminina é simbólico representa uma

analogia com o surgimento ou a construção de uma imagem poética no imaginário do

leitor. O simbolismo da “aparição” também representa um ser viajante no tempo,

onde a sua condição histórica desaparece para dar lugar a um ser atemporal, habitante 18 Butoh: trata-se de uma dança de origem japonesa criada por Tatsumi Hijikata e Kazuo Ono. A dança butoh

caracteriza-se como uma forma de expressão individual do corpo e do espírito do bailarino (butoka), manifestando

o que o ser humano contém de mais verdadeiro no seu espírito.

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de um tempo incerto. A qualidade de ser atemporal foi adquirida ao longo da

transição pelas várias narrativas (temporalidades) que formam o vídeo Merina. Como

viajante no tempo a personagem atravessa várias temporalidades, tornando o seu

aparecimento não controlável, tal como o tempo.

A informação dada pela fotografia, através de elementos como os automóveis

e o vestuário da figura feminina, define uma determinada época: entre as décadas de

50 e 70. O valor temporal do vídeo Merina é uma sinestesia entre imagem e

sonoridades, sendo importante referir o facto de a imagem e as sonoridades não

corresponderem directamente à mesma época. Existe uma dessincronização entre

imagem e som, provocando um sentimento de estranheza. Essa sensação vai

diminuindo no decorrer do vídeo quando a figura começa a ganhar forma no ecrã,

tornando possível um relacionamento entre imagem e som, como se ambas

coexistissem no mesmo espaço e tempo: o plano do vídeo.

O primeiro simbolismo, que remete para o estudo do fenómeno da imagem

poética, está directamente relacionado com a manifestação da figura feminina no

vídeo Merina, em sintonia com a voz do narrador que complementa toda a imagem,

dando-lhe forma e conteúdo. A analogia do fenómeno com a imagem poética prende-

se com dois factores principais: está relacionada com a “aparição” inesperada da

figura no vídeo. Tal como acontece com uma imagem poética, é impossível

determinar o seu surgimento, tal como se afigura impossível detectar o início do

surgimento da figura feminina no vídeo Merina. Em segundo lugar, suscitar no

espectador um sentimento de ambiguidade, curiosidade ou surpresa, sem que lhe

tenha sido disponibilizado um background para a figura feminina, implica a ausência

de elementos que possam definir uma contextualização. Assim acontece com a leitura

de um poema: o leitor apropria-se desde logo das imagens poéticas, mesmo antes de

questionar ou de tentar contextualizar o poema em si.

Num primeiro momento o instante poético do poema de Cesário Verde

transformou-se numa imagem inconsciente no meu imaginário (imagem simbólica),

que se traduziu posteriormente no vídeo Merina. Todas as manipulações realizadas de

seguida já fazem parte de um processo de construção da própria imagem, processo

idêntico ao da imagem inconsciente referida, ou seja, o vídeo acaba por ser uma

representação de uma representação de uma representação do instante poético de

Cesário Verde.

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Desta forma e sob o ponto de vista ritmanalítico, são realizadas construções no

vídeo e descobertas novos ritmos na relação entre a imagem (de Merina) e o poema.

Trata-se do aprofundamento de um jogo de ordenação dos vários instantes, que

derivam da relação entre instante poético, que se pode encontrar no poema, e

composição visual da imagem. Por outras palavras, num instante-simbólico que

consiste num valor orgânico, que advém da interacção entre o instante-poético e o

instante fotográfico, originando o vídeo Merina ou o instante simbólico.

Analisando o lado orgânico da imagem fotográfica inicial, parece sugerir uma

necessidade de pertencer a um momento suspenso sem espaço e tempo determinados.

A acção congelada pela máquina fotográfica tornou-a numa imagem ambígua, o

movimento da figura contém em si várias possibilidades de futuro. Por conter uma

acção aberta, a imagem adquire um estatuto ambivalente. A ambivalência da imagem

age como factor influenciador da potencialidade do imaginário do espectador, tanto

ao nível sonoro como ao nível visual. É precisamente esta acção em aberto, o

caminhar suspenso, com várias possibilidades (para onde irá a figura feminina que se

vê a andar?), que me permitiu construir ou reconstruir uma continuidade da acção

“congelada” no tempo. Por outro lado, a acção interrompida do acto de andar pelo

instante da máquina fotográfica, complementa-se no dinamismo do imaginário,

adquirido pela experiência temporal que ocorre no imaginário do espectador obtida

pelo ritmo das sonoridades, na relação entre a voz ouvida (voz off) e a voz imaginada.

No vídeo Merina não existe um tempo lógico e perceptível, provocando desde

logo um desconforto causado pela tentativa de interpretação da imagem-Merina. Em

Merina não existe uma linha de tempo definida, simplesmente uma sucessão de

imagens e sons com um determinado ritmo, tal como acontece nos sonhos e na poesia.

A utilização da repetição das frequências sonoras (voz off e notas sintetizadas), remete

para um ritual, quebrar o khronos (tempo profano), para activar o tempo da poesia e

da musicalidade (tempo sagrado), tal como acontece no ritual da árvore xamânica, por

exemplo, no qual os sons-arquétipos são transmitidos pelos tambores. A partir de

então é perceptível uma analogia entre a voz da narradora (Rosana Sancin)19

e a voz

do narrador dos mitos que transportam os ouvintes para outro tempo. No vídeo a voz

off da actriz transforma a imagem; a figura feminina surge de outro tempo, como se se

tratasse de uma “invocação sonora” cujo movimento é conduzido pelas sonoridades

ao longo do vídeo. 19 Rosana Sancin; actriz eslovena convidada para representar o papel da personagem Merina.

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Conforme discutido no segundo capítulo desta tese, o instante simbólico está

directamente relacionado com o tempo que, existente no pensamento, contém uma

duração simbólica. O tempo da imagem-Merina é constituído por vários instantes com

determinadas características, tais como frequências representadas pela voz off e

sonoridades de vários sons sintetizados. A composição ou ordenação dos instantes

referidos sugere vários ritmos e variações na imagem-Merina, conferindo-lhe um

valor simbólico, revelado também pelas próprias narrativas que a compõem. A

repetição de palavras e sons sintetizados funciona como instrumento influenciador da

criação de novos objectos sonoros, cujos instantes simbólicos fazem parte da estrutura

que compõe a imagem-Merina.

O instante simbólico começa a ganhar forma na imagem-Merina, noção que

nos é dada pela variação de frequências sonoras e luminosas. A percepção da

mudança é sempre muito subtil, quase imperceptível. Após breves momentos, uma

figura sonora começa a aparecer, são as vozes moduladas, as frequências sonoras, que

vão moldando a figura feminina; existe aqui uma relação directa com a propagação

das ondas sonoras com a construção da figura. A imagem-Merina manifesta-se porque

é formada por partículas sonoras. Uma onda é considerada uma perturbação que se

propaga através de um meio, neste caso, o ar. A propagação através de ondas implica

a interacção entre partículas. Não havendo meio transmissor, não há propagação de

som. Assim, a alteração gradual da imagem-Merina é influenciada pelo uso de certas

notas prolongadas, seguidas de ausência de som, que transmite a sensação de um

espaço vazio ou de um espaço habitado. Ao longo do vídeo, as frequências das notas

prolongadas vão criar uma tensão, em contraste com a fluidez da voz off . A imagem-

Merina surge de uma relação de opostos, tensão/fluidez.

Efectuada uma decomposição da imagem-Merina é possível observar vários

instantes (várias camadas) que, pela sua sucessão e ordem, reflectem várias

temporalidades: existem várias sobreposições de narrativas sem ordem espacial ou

temporal. Elas apenas seguem um ritmo, onde o passado pode ser o futuro e vice-

versa, ou seja, um jogo de tempos não cronológico. Esta questão permite introduzir a

das narrativas. O subtítulo desta tese, Três Inflorescências: palavra, som, ritmo,

pretende ser uma alusão às três narrativas na imagem-Merina que contêm, cada uma

delas, uma densidade temporal diferente. No vídeo Merina existe um tempo

construído pelas três histórias onde cada uma cresce a seu ritmo, movimentando-se

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com compassos distintos e singulares que num determinado momento se encontram e

unem, fazendo assim parte de um todo.

A relação entre as narrativas não é explícita, ambas se situando em espaços e

tempos diferentes, tendo apenas em comum a personagem Merina. Esta é uma figura

que viaja no tempo e que adquire diferentes personalidades, consoante o espaço e

tempo em que se encontra. Sendo Merina uma viajante, na primeira narrativa (2012),

representa “a memória da pessoa amada”; na segunda, uma mulher enfermeira,

locutora e música; por último, a terceira narrativa é referente ao tempo do espectador.

A narrativa da história de amor passada em Lisboa, Love Story, é articulada com o

poema de Cesário Verde, tendo servido de base para a construção da imagem-Merina.

Ambas as histórias são ficcionadas a partir de factos reais, confundindo-se no

plano do vídeo. Esta metamorfose produz uma nova narrativa, para cujo entendimento

não é relevante distinguir ficção e factualidade. Existe um momento no qual a

primeira narrativa se cruza com a segunda, confundindo-se as duas, como se se

tratasse de uma inflorescência. Love Story, a primeira história, mistura ficção com

uma história real. Adaptada da memória da actriz convidada (voz de Merina), retrata

uma história de amor baseada em factos reais e ficcionados.

Quando convidei a actriz Rosana Sancin para este projecto, foi com a intenção

de usar a sua voz como matéria plástica. Comecei por lhe enviar por e-mail o poema

de Cesário Verde, de modo a que ela o traduzisse para esloveno. Posteriormente, foi

gravada a voz da actriz declamando o poema. A partir deste encontro, resultou a

primeira narrativa, Love Story20

, uma história de amor sobre uma mulher que imagina

uma paixão21

. A narrativa ficcionada, construída a partir da memória da narradora,

teve como base o poema de Cesário Verde.

A segunda narrativa incide sobre um episódio ocorrido na década de cinquenta.

Merina é uma mulher de 35 anos, enfermeira, música e locutora de rádio. Trabalha na

Rádio Renascença com o locutor Matos Maia e juntos reescrevem o guião de A

invasão dos Marcianos. No dia 25 de Junho de 1958, Merina e o seu colega decidem 20 Transcrição de excertos traduzidos para português que integram a narrativa: “(…) acerca da memória: aqui

gostava de referir-me a um filme, La jettée do cineasta Chris Marker que começa assim: "this is a story of a man

who was marked by the image from his past... " e continua com as imagens do aeroporto de Orly por trás e uma

mulher que depois reaparece no fim como também esta frase (ou será no inicio?): "at that moment he knew that

what he saw was the moment of his death", sou capaz de confundir algo, a memoria transforma as coisas que

vivemos e torna-as mais bonitas às vezes. O pior será um dia esquecer este amor, mesmo que a capacidade de

esquecimento ajude a sobreviver. (...) Qual e a memória que tenho dela? é a sua sensualidade, lembro-me de cada

momento que passei com ela ou a vi passar na rua, lembro-me da conversa que tivemos há dez anos atrás, palavra

a palavra (...).” (Rosana Sancin, 2012). 21 As partículas melódicas respeitantes à voz feminina transmitem uma sensação de nostalgia de um tempo quieto,

trata-se de uma história de amor passada em Lisboa, uma memória de lugares e a ausência da pessoa amada.

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pôr no ar o programa radiofónico de ficção científica A invasão dos Marcianos,

adaptado do romance A guerra dos mundos de H.G.Wells. A rádio nos anos cinquenta,

período em que decorre a acção, tinha um papel bastante importante na vida dos

portugueses. A maioria da população só ouvia rádio, pois era um meio mais

económico e rápido de informação22

. Merina, como locutora, tinha conhecimento do

valor da rádio; como música, gravou uma cassete com várias sequências de

frequências sonoras, formando um código que, amplificado em simultâneo com o

programa radiofónico, transformava as frequências das sonoridades (ficcionadas) da

emissão em frequências factuais, provocando vários incidentes e comportamentos

bizarros na população portuguesa.

A distância temporal existente entre as duas narrativas começa a diminuir à

medida que o tempo decorre, permitindo o surgimento da figura feminina. A partir

desse momento, o espectador começa a aproximar-se psicologicamente da

personagem feminina, criando assim um espaço propício ao diálogo. As novas

narrativas, que surgem da relação entre as pré-existentes, são da criação do imaginário

do espectador, originando uma terceira história. A estrutura temporal das duas

narrativas permite que elas cresçam e se cruzem entre si, reproduzindo várias

hipóteses ou possibilidades de narrativas, tantas como as flores que nascem numa

inflorescência. É através deste processo narrativo que se torna perceptível a dimensão

temporal adquirida pela imagem-Merina, a sua vida dinâmica, para recorrer a uma

expressão de Bachelard.

Por último, a terceira narrativa é completada pela relação espectador/Merina,

que tem um papel fundamental, sendo formada na relação directa existente entre o

tempo que decorre no imaginário do espectador (invisível) e o tempo das frequências

sonoras e luminosas (visível). O vídeo Merina é, com efeito, um convite dirigido ao

espectador para construir a sua narrativa de uma forma livre, num lugar onde os sons

coexistem num espaço e tempo que pode ser considerado um receptáculo de novas

realidades. Trata-se de um espaço onde a interpretação das sonoridades se irá

desenvolver, adquirindo o seu novo lugar-próprio. O tempo do imaginário do

espectador e o instante poético encontram-se no mesmo plano, isto é, o vídeo Merina; 22

O episódio da transmissão da Invasão dos Marcianos passa-se em 1958, mas o impacto da emissão deste

episódio em Portugal foi bastante diferente do que se passou nos Estados Unidos. A inovadora obra de H.G.Wells

foi levada mais a sério pelos ouvintes da CBS do que pelos ouvintes da R.R., até porque em Portugal a emissão foi

interrompida e, nos Estados Unidos Orson Welles pode levar até ao fim a sua história, criando situações diversas

de pânico e até de algumas mortes. Mas os cenários sociais e políticos eram bastante diferentes em relação aos dois

países: Portugal encontrava-se fechado numa ditadura fascista, enquanto que os E.U.A encontravam-se a recuperar

da Grande Depressão.

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unem-se numa verticalidade, por meio da qual a imagem-ausente é descoberta. Tal

não deixa de remeter para o conceito de verticalidade.23

O desenho acústico criado pelas gravações existentes, nomeadamente a

narração do poema, cria um espaço psicológico na imagem. Os sinais sonoros usados

no início de cada intervenção da voz off funcionam como indicadores do começo de

narrativas. Sugerem uma atenção ou preparação pela parte do ouvinte/espectador, tal

como as três pancadas no chão do palco (bastão de Moliére), usadas no teatro para

anunciar o início do espectáculo.

O uso da repetição de sonoridades, como a manipulação da voz off, constitui,

entre outros efeitos, mecanismos de montagem utilizados na composição do vídeo

Merina. Tais mecanismos associam-se directamente a uma estrutura poética ou

musical, de alguma forma semelhante à estrutura encontrada no poema de Cesário

Verde, no qual se recorre à justaposição de imagens. Da mesma forma, a imagem-

Merina estrutura-se por justaposições de imagens e de sonoridades com um

determinado ritmo. As várias camadas de imagens e sonoridades vão criar um novo

movimento, um objecto videográfico.

A narração realizada em língua eslovena manipulada, é determinante para o

ouvinte poder entrar num nível semelhante ao do sonho, num plano mais abstracto e

simbólico. As partículas sonoras e luminosas, correspondentes às narrativas,

influenciam-se mutuamente, ao ponto de adquirirem um novo valor simbólico. O

tempo em Merina é simbólico; composto pelas partículas sonoras da voz do narrador,

assim como pelas partículas luminosas que formam a imagem, os vários instantes por

sua vez contêm múltiplas durações e ritmos. Certas sonoridades transmitem vários

significados intrínsecos, por exemplo, os sons de sinos de uma igreja, sintetizados,

que surgem periodicamente, contém um significado cultural e seu valor musical.

A própria língua eslovena, é modulada e usada plasticamente, originando

novas experiências sonoras. Funciona como descoberta de um novo instrumento

sonoro. O seu significado deixa de existir gradualmente, transformando-se em matéria

plástica. A opção de não usar legendas prende-se com a intenção de usar a voz off

como matéria plástica semelhante à matéria musical (notas musicais). No momento

final do vídeo, ouvem-se apenas acordes musicais, indicando o final da narrativa,

acompanhados por três “falhas” na imagem sendo que a terceira “falha” serve para

23 “A meta é a verticalidade, a profundidade ou a altura; é o instante estabilizado em que as simultaneidades,

ordenando-se, provam que o instante poético tem uma perspectiva metafísica” (Bachelard, 2010: 94).

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indicar o início da terceira narrativa, remetendo novamente para o simbolismo do

bastão de Molière. No início, a voz é semelhante à voz natural mas, ao tratar a língua

como matéria plástica, aos poucos deixa-se de ouvir a voz inicial. Materializar a voz

permitiu-me desenvolver um novo instrumento sonoro, cujas sonoridades ao serem

manipuladas possibilitou jogar com os limites da percepção auditiva.

O vídeo Merina também se define pela sua descontinuidade, o que permite

verificar a constante confrontação da língua (esloveno) e a sua musicalidade. A voz

manipulada torna-se uma sonoridade, vai modular a imagem, criando um aparente

movimento, sendo este apenas uma ilusão, visto que o movimento reside na voz, pois

são as frequências sonoras que provocam movimento nas frequências luminosas,

convidando o espectador a uma escuta plástico-sonora.

A repetição e a sobreposição de vários fragmentos sonoros são igualmente

parte constituinte dos mecanismos usados com o objectivo de intensificar o valor

poético e rítmico da imagem-Merina. Os instantes-simbólicos (constituídos pelas

frequências sonoras e visuais) funcionam como elementos organizadores da imagem-

Merina, recriadores de um tempo que parece ser contínuo devido à sobreposição das

várias frequências, que por sua vez vão iluminar e escurecer as narrativas, como, por

exemplo, o efeito de sombra produzido por uma árvore, que esconde e revela ao

mesmo tempo.

A descontinuidade do tempo e do espaço é manipulada, ou seja, construída por

vários instantes. Os instantes referidos são constituídos por partículas luminosas

(imagens) e por partículas sonoras (frequências). As partículas luminosas operam de

acordo com a ordem temporal fornecida pelas partículas sonoras, originando uma

sequência e provocando, assim, uma ilusão de continuidade na imagem fotográfica. O

movimento das partículas sonoras está inter-relacionada e influencia o movimento das

partículas luminosas, percepcionado aos dois níveis através do vídeo Merina. As

partículas sonoras são determinantes para a criação de ilusão de continuidade, ou de

tempo contínuo, no vídeo Merina, pois são as frequências sonoras (voz) com

determinada duração e pausas (silêncio, ou a ausência ilusória de som), que

transformam a realidade do instante numa realidade contínua (ilusória).

Para finalizar a análise da estrutura do vídeo Merina, não se pode deixar em

claro um elemento: a moldura. Esta separa dois tempos distintos no vídeo, parte

integrante da imagem que delimita duas realidades, tal como a separação Eliadiana

entre o sagrado e do profano. Para este autor, tal separação é simbolizada pela porta

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de um local sagrado, onde o interior é sagrado e tudo o que está para além desse

limite seria considerado profano ou o caos.

A moldura da imagem-Merina funciona como separador de realidades paralelas,

a realidade do interior e a restante, fora da moldura. O tempo decorrente no interior da

moldura corresponde à realidade da imagem-poema (tempo vertical), enquanto que o

tempo fora da moldura corresponde à realidade profana, ao tempo horizontal. É

importante referir que ambas as realidades existentes, fora e dentro da moldura, se

equilibram mutuamente. A moldura em Merina baseia-se nestas duas realidades: por

um lado, dentro dos limites da moldura, encontram-se as narrativas ficcionadas,

correspondentes a um tempo vertical: Love Story contada pela actriz Rosana Sancin,

assim como, a segunda narrativa, A invasão dos marcianos, e por último a terceira

narrativa produzida pelo espectador. O que se encontra fora dos limites da moldura

corresponde ao tempo que decorre exteriormente à imagem ou o tempo do mundo,

onde outras narrativas vão nascendo. Embora aparentemente ausentes, essas

narrativas existem e fazem parte da imagem-Merina, para além dos limites da

moldura, noutro plano, num tempo horizontal. Merina surge como ser simbólico, que

opera no interior e exterior da moldura. É precisamente para reforçar a ideia de

passagem para outra dimensão que mantive a moldura na imagem-Merina.

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Conclusão:

Da articulação de dois momentos principais nesta investigação teórica –

prática, resultam num primeiro momento os conceitos de tempo sagrado e tempo

profano, segundo o pensamento de Mircea Eliade, assim como a pesquisa referente ao

conceito de instante e duração defendidos por Gaston Bachelard. Ambos os conceitos

são referentes à temporalidade da imagem em movimento e do som. Por conseguinte

conclui-se que o simbolismo da imagem age como factor influenciador da

potencialidade do imaginário cujos símbolos, existentes tanto ao nível sonoro como

ao nível visual, tornam a obra Merina simbólica.

O segundo momento incide sob uma perspectiva ritmanalítica, na questão das

narrativas simbólicas (imagem–poema). Merina, como instante simbólico é um

símbolo do tempo. O instante simbólico, enquanto como elemento estrutural da

construção da imagem-Merina, tornou-se um factor importante na estrutura desta obra

videográfica. Sob a perspectiva ritmanalítica, a obra Merina, reflecte uma “duração

simbólica” noção transmitida pelo instante poético e pela densidade temporal

adquirida pela imagem em movimento, relacionada também com o tempo sagrado e o

tempo profano, criando assim uma espessura no vídeo.

A duração é uma metáfora, expressão de Bachelard, que se pode aplicar à

peça Merina, que corresponde ao instante que dura em Merina quer isto dizer que o

tempo do objecto videográfico é imposto pelos instantes simbólicos que, por sua vez,

contêm uma duração própria. A duração é simbólica. Existem três símbolos

importantes referentes à “aparição” da imagem-Merina, são eles: o simbolismo

correspondente ao surgimento da imagem poética, o simbolismo correspondente à

figura sonora, e por último o simbolismo correspondente à criatura viajante no tempo.

O objecto de estudo da imagem-Merina concentrou-se em dois momentos;

1. tempo sagrado — acto, instante — tempo vertical — imagem poética

2. tempo profano — ilusão, continuidade — tempo horizontal — imagem em

movimento.

O vídeo Merina é composto por ambos os tempos, sagrado e profano. No que

diz respeito à poesia de Cesário e às narrativas, Love story e Invasão dos Marcianos

referenciadas no capítulo “3.2., Merina”, há uma equivalência ao tempo vertical,

equivalendo a imagem em movimento de Merina ao tempo horizontal. A ilusão de

continuidade reflecte-se sobretudo na “aparição“ da personagem, correspondendo ao

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tempo horizontal e ao tempo profano, conferindo-lhe uma densidade temporal em

relação ao khronos, à noção de passagem do tempo. Por outro lado, as sonoridades de

Merina acrescentam-lhe uma densidade temporal na “duração metafórica.”

Correspondendo ao instante poético, a densidade temporal em Merina ilustra a

duração construída pela poesia, directamente relacionada com o imaginário; é uma

duração metafórica porque é uma relação entre o instante poético e o tempo que

ocorre no imaginário. Tal não deixa de estar relacionado com o ritmo das sonoridades

como fenómeno intrínseco para o desenvolvimento do vídeo Merina.

O vídeo termina com três “falhas” na imagem, que simbolizam os três toques

do bastão de Molière, sendo que a última “falha” serve para dar início à terceira

narrativa realizada pelo espectador, em sintonia com os acordes prolongados que

sugerem igualmente uma passagem para outras histórias. A ideia do acto de escutar

como um acto de composição, é apresentada pelo músico John Cage e, pode ser

aplicada neste contexto, em relação ao objectivo proposto para a terceira narrativa,

onde o espectador é convidado a construir/compor através das sonoridades, a sua

própria história.

Em jeito de conclusão, penso que a reflexão teórica levada a cabo durante o

percurso do processo da obra Merina, foi ao encontro do trabalho prático, onde existe

uma forte relação entre a palavra e o ritmo. Daqui resultou um interesse em

aprofundar sob uma perspectiva rítmica, a densidade temporal da espessura das

sonoridades e das imagens. No futuro, será relevante explorar mais aprofundadamente

esta relação mútua entre som, ritmo e palavra, que tem, como objectivo principal,

construir novas realidades e temporalidades, assim como desenvolver novos estudos

relacionados com a acústica musical e sound ecology em trabalhos futuros.

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Referências:

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Martins Fontes.

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Martins Fontes.

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Filmografia:

DEREN, Maya. (1943). Meshes of the Afternoon. EUA.

DEREN, Maya. (1946). Ritual in transfigured time. EUA.

DEREN, Maya. (1944). At Land. EUA.

CORDEIRO, Margarida e REIS, António. (1982). Ana. Portugal.

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Anexos:

Figura 1 – Filipa Almeida, Merina (2013), still de vídeo.

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Figura 2 – Meshes of the Afternoon (1943), still de vídeo.

Figura 3 – Meshes of the Afternoon (1943), still de vídeo.

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Figura 4 – Margarida Cordeiro e António Reis, Ana (1982),

still de vídeo.

Figura 5 – Margarida Cordeiro e António Reis, Ana (1982),

still de vídeo.

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Figura 6 - Maya Deren, Ritual in transfigured time (1946),

still de vídeo.

Figura 7 - Maya Deren, Ritual in transfigured time (1946),

still de vídeo.

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Figura 8 – Maya Deren, At Land (1944), still de vídeo.

Figura 9 – Maya Deren, At Land (1944), still de vídeo.

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