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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE DIREITO MESTRADO EM DIREITO PENAL, CRIMINOLOGIA E MEDICINA FORENSE NICOLE TRAUCZYNSKI GESTÃO FRAUDULENTA E CONCURSO DE NORMAS NA LEI DOS CRIMES CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL SÃO PAULO 18 de janeiro de 2014

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE DIREITO … · de seus dispositivos legais, por vezes dispostos em situação de conflito aparente de normas. Nesses termos, o crime de gestão

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE DIREITO

    MESTRADO EM DIREITO PENAL, CRIMINOLOGIA E MEDICINA FORENSE

    NICOLE TRAUCZYNSKI

    GESTO FRAUDULENTA E CONCURSO DE NORMAS NA LEI DOS CRIMES

    CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL

    SO PAULO

    18 de janeiro de 2014

  • NICOLE TRAUCZYNSKI

    GESTO FRAUDULENTA E CONCURSO DE NORMAS NA LEI DOS CRIMES

    CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL

    Dissertao apresentada no curso de ps-graduao da

    Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo, como

    exigncia parcial para a obteno do ttulo de Mestre em

    Direito, na rea de concentrao de Direito Penal,

    Criminologia e Medicina Forense, sob orientao da Prof.a

    Dr.a Helena Regina Lobo da Costa.

    SO PAULO

    18 de janeiro de 2014

  • 2

    RESUMO

    O presente trabalho visa analisar as implicaes e desafios impostos ao direito penal na tutela

    da criminalidade econmica atual, especialmente no que tange ao delito de gesto fraudulenta

    de instituio financeira, previsto no caput do artigo 4 da Lei 7.492/86, delito mais

    severamente apenado na Lei dos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional. Em razo de

    sua descrio absolutamente genrica e da gravidade da sano cominada buscar-se-

    interpretar suas elementares tpicas de forma conectada aos motivos que ensejaram a sua

    edio, bem como relacionada ao bem jurdico tutelado pela norma, aplicando-se redutores

    teleolgicos no desiderato de conferir ao tipo uma identidade prpria, agregando coerncia

    interna na prpria lei e minimizando os recorrentes problemas quanto ao mbito de incidncia

    de seus dispositivos legais, por vezes dispostos em situao de conflito aparente de normas.

    Nesses termos, o crime de gesto fraudulenta de instituio financeira ser decomposto em

    todos os seus elementos tpicos, objetivos e subjetivos, observando-se sua objetividade

    jurdica, objeto material, sujeitos ativos, passivos, concurso de pessoas, consumao e

    tentativa. Posteriormente, ser adentrado problemtica do concurso aparente de normas

    entre o crime estudado gesto fraudulenta de instituio financeira e os demais tipos

    penais previstos na Lei 7.492/86, especialmente em relao aos tipos penais previstos nos

    artigos 5, 6, 9, 10, 11, 16, 17, 21 e 22. A anlise ser feita com base nas relaes lgico-

    conceituais entre os preceitos normativos, seguida de uma interpretao teleolgica e

    valorativa, com base nos critrios de resoluo de conflito aparente de normas propostos pela

    doutrina especialidade, subsidiariedade, consuno e alternatividade. Ao final, as

    concluses encontradas sero confrontadas com o recorte jurisprudencial dos julgados

    atinentes matria, proferidos pelo Tribunal Regional Federal da 3 Regio nos ltimos 10

    anos (01/01/2003 a 31/12/2013).

    Palavras-chave: Criminalidade econmica. Gesto fraudulenta de instituio financeira.

    Conflito aparente de normas na Lei dos Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional.

  • 3

    ABSTRACT

    This work intends to analyze the implications and challenges imposed on criminal law for the

    defense of current economic crimes, especially in regards to the crime of mismanagement of

    financial institutions provided for in the main provision of Article 4 of Law No. 7492/86, a

    crime punished by maximum sentence in the Law of Crimes against the National Financial

    System. As a result of its completely general description and the severity of the sanction

    imposed, the interpretation of its typical elements shall be made in connection with the

    motives which originated the enactment thereof, as well as relating to the legal interest

    protected by the rule, while applying teleological reducers for the purpose of conferring a

    proper identity to the definition of the crime, adding internal consistency to the law itself and

    minimizing recurring problems regarding the scope of incidence of the legal provisions

    thereof, at times applied in situations of apparent conflict of rules. This way, the crime of

    mismanagement of financial institutions will be decomposed into all its typical objective and

    subjective elements, addressing legal objectivity, material object, perpetrators, victims, co-

    perpetration, consummation and attempt. Next, it will address the issue of the apparent joinder

    of rules between the crime examined - mismanagement of financial institution - and other

    criminal offenses established by Law 7492/86, especially in relation to criminal offenses

    provided for in Articles 5, 6, 9, 10, 11, 16, 17, 21 and 22. The analysis will be based on

    logical-conceptual relations between the normative precepts, followed by a teleological and

    judgmental interpretation, based on the solution criteria of apparent conflict of rules proposed

    by the jurists - specialty, subsidiarity, merger and alternativity. Finally, the conclusions

    reached will be confronted with case law clippings of decisions regarding the matter granted

    by the Federal Regional Court of the third Region in the past 10 years (01/01/2003 to

    12/31/2013).

    Keywords: Economic Crime. Mismanagement of financial institution. Apparent conflict of

    rules in the Law of Crimes against National Financial System.

  • 4

    SUMRIO

    INTRODUO .......................................................................................................................... 6

    1. EVOLUO DO ESTADO E BEM JURDICO PENAL ............................................. 10

    1.2 TUTELA DA ORDEM ECONMICA E SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL .......... 15

    1.3.1 Escopo da Lei 7.492/86 ................................................................................................... 23

    2. O CRIME DE GESTO FRAUDULENTA DE INSTITUIO FINANCEIRA ....... 31

    2.1 CONSIDERAES PRELIMINARES ............................................................................. 31

    2.1 BEM JURDICO ................................................................................................................ 33

    2.2 SUJEITOS ATIVO, PASSIVO E CONCURSO DE PESSOAS ....................................... 35

    2.3 TIPO OBJETIVO: ADEQUAO TPICA ...................................................................... 39

    2.5. TIPO SUBJETIVO: ADEQUAO TPICA ................................................................... 50

    2.6 CONSUMAO E TENTATIVA ..................................................................................... 52

    3. CONFLITO APARENTE DE NORMAS PENAIS ......................................................... 55

    3.1 CONSIDERAES PRELIMINARES ............................................................................. 55

    3.2 Das relaes lgico-conceituais entre preceitos ................................................................. 62

    3.3 Dos Princpios auxiliadores para soluo do conflito aparente de normas ........................ 66

    4. DA ANLISE DOS POSSVEIS CONCURSOS APARENTES DE NORMAS ENTRE

    O DELITO DE GESTO FRAUDULENTA E OS DEMAIS TIPOS PENAIS DA LEI

    7.492/86 LUZ DA DOUTRINA ESTUDADA .................................................................. 75

  • 5

    4.1. CONSIDERAES PRELIMINARES ............................................................................ 75

    4.2 CONFLITO ENTRE O ART. 4 E 5 ................................................................................. 77

    4.3 CONFLITO ENTRE O ARTIGO 4, 6, 9, 10 e 11 DA LEI 7.492/86 ............................. 88

    4.4 DA INCOMPATIBILIDADE ENTRE OS ARTIGOS 4 E 16 DA LEI 7.492/86 ............ 93

    4.5 CONFLITO ENTRE O ART. 4 E 17 ................................................................................ 95

    4.6 CONFLITO ENTRE O ARTIGO 4, 21 e 22 .................................................................... 98

    5. DA ANLISE JURISPRUDENCIAL LUZ DA DOUTRINA ESTUDADA ........... 105

    5.1 RESULTADOS QUANTITATIVOS ............................................................................... 105

    5.2 RESULTADOS QUALITATIVOS .................................................................................. 113

    6. CONCLUSO ................................................................................................................... 134

    7. APENSO FORMAO DO BANCO DE DADOS .................................................... 139

    7.1 SELEO DAS DECISES ........................................................................................... 139

    7.2 CODIFICAO DAS DECISES .................................................................................. 143

    8. REFERNCIAS................................................................................................................146

  • 6

    INTRODUO

    Com a maximizao da economia, tanto financeiramente quanto tecnologicamente, e a

    sua elevao a propores globais com a interpenetrao dos mercados, as condutas delituosas

    perpetradas no mbito econmico financeiro ganharam contornos de gravidade singular. Isso

    porque podem atingir a sociedade como um todo, repercutindo sobre uma pluralidade de

    vtimas e implicar danos, muitas vezes, irreparveis.

    Sobremodo, num contexto de crises econmicas que afligiram a economia global nos

    ltimos anos, tem-se observado que uma economia slida no apenas aferida pela sua

    capacidade de gerar riqueza, seno tambm pela transparncia e controlabilidade de seus

    fluxos econmicos, do que decorre a legitimidade do estado de atuar nessa esfera de direitos.

    No entanto, h que se ter em vista o papel e o conceito de bem jurdico penal, que se

    qualifica com relao mera ideia de bem jurdico tutelvel, quando se analisa a ordem

    econmica.

    Com efeito, muito embora o legislador constituinte haja outorgado ao legislador

    ordinrio a tarefa de realizar a incriminao de condutas, no deixaram de existir restries

    e/ou imposies ao poder de legislar, notadamente quanto aos tipos penais voltados

    regulamentao e interveno do domnio econmico.

    A interveno penal por ser a forma mais gravosa de interferncia, tanto no que diz

    respeito ao infrator quanto sociedade deve estar alerta para se ater a fatos que atinjam,

    efetivamente, de forma ofensiva os bens constitucionalmente assegurados. E mais, que

    possuam a necessria carncia e dignidade de tutela penal1, sem olvidar de critrios como

    adequao do meio, ultima ratio, fragmentariedade, subsidiariedade, proporcionalidade,

    eficincia, dentre outros.

    A complexidade na descrio e comprovao dos crimes econmicos, muitas vezes,

    pela prpria complexidade a eles inerente, no pode servir como justificativa a violar

    garantias fundamentais do cidado.

    1 Pressupostos mencionados por Manuel da Costa Andrade na anlise da legitimidade da incidncia penal.

    ANDRADE, Manuel da Costa. A Dignidade Penal e a Carncia de Tutela Penal como referncias de uma

    doutrina teleolgico-racional do crime. Revista Portuguesa de Cincia Criminal, ano 2. Fasc. 2. abr./jun. 1992.

  • 7

    O que se verifica na prtica, porm, um perodo de profuso de leis elaboradas e

    aprovadas, muitas vezes, ao sabor poltico da situao. A interveno criminal na sociedade

    tem acontecido de forma desorganizada, por intermdio de tipos genricos, ou abertos demais,

    ou ainda, de forma fracionada, tipificando a mesma conduta em vrias etapas, em manifesta

    ofensa ao princpio do non bis in idem, bem como segurana jurdica que deve nortear o

    jurisdicionado. O Poder Legislativo Nacional tem seguido em sentido oposto ao indicado

    pela melhor doutrina e so vrios os tipos que alargam a incidncia do sistema penal a um

    inseguro mbito pr-lesivo.

    A falta de critrio na tcnica legislativa de criao de tipos penais acaba por gerar

    espao para arbtrio do rgo acusatrio e do julgador, prejuzo defesa e complexas

    discusses quanto aplicao e interpretao dos tipos penais. Nesse particular, inafastvel a

    ponderao de KARL LARENZ sobre essa caracterstica contempornea:

    Se hoje o pndulo se inclina muito claramente para o lado da justia do caso, isto

    tambm tem relao com a perda da autoridade do legislador actual, que s raras

    vezes se ocupa o tempo necessrio e faz o esforo de tornar a examinar

    cuidadosamente as suas formulaes, e no raro omite em absoluto uma regulao,

    quando esta pode e deve esperar-se dele. Ambos os fenmenos so graves em larga

    medida. O Estado de Direito no pode renunciar, sobretudo nas complexas relaes

    de nosso tempo, nem s leis bem pensadas, nem a uma magistratura que tome a srio

    a sua vinculao lei e ao Direito2.

    Por essa razo, no so poucos os desafios encontrados para conferir uma adequada

    produo de sentido Lei dos Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional e, mais

    especificamente, ao delito de gesto fraudulenta, cujos limites objetivos e subjetivos, passados

    vinte e oito anos da edio da lei, ainda so imprecisos.

    De fato, o tipo conciso, de apenas quatro palavras gerir fraudulentamente instituio

    financeira , instiga o tratamento dogmtico com complexos problemas. A comear por sua

    objetividade jurdica, que, por sua generalidade, pode levar a um abstrato centro de riscos

    financeiros, passando por sua indefinio quanto aos sujeitos ativos e at mesmo quanto aos

    2 LARENZ, Karl. Metodologia da cincia do direito. 5. ed. Trad. J. Lamego. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1983,

    p. 421.

  • 8

    critrios pelos quais se pode identificar uma instituio financeira propriamente dita. Alm

    disso, passa por questes quanto pluriofensividade e natureza da lesividade, alcanando, por

    fim, questes quanto proporcionalidade da resposta penal conduta eventualmente

    perpetrada no caso concreto.

    Observa-se uma situao de casusmo que beira a arbitrariedade e a ausncia de

    critrios punitivos seguros e racionais despreza as mais bsicas conquistas do Estado

    Moderno.

    Alm disso, o artigo 4 da Lei 7.492/86, em virtude de sua generalidade, acaba por ser

    aparentemente aplicvel de maneira concomitante a outros delitos, tais como os artigos 5, 6,

    7, 9, 10, 11, 16, 17, 21 e 22 sem prejuzo de outros tipos penais , tendo em vista que estes

    tambm se executam mediante atos fraudulentos, induzindo o intrprete a imaginar a

    possibilidade de um concurso formal ou material entre tais normas.

    Contudo, tal soluo no seria a mais adequada, pois a concorrncia para os mesmos

    fatos de tipos penais distintos representaria uma inequvoca duplicidade punitiva, imputando-

    se ao aplicador do direito a difcil tarefa de enfrentar esses conflitos na anlise dos casos

    concretos.

    O presente trabalho pretende densificar o estudo nesse sentido, visando contribuir com

    a interpretao e aplicao da lei, com vistas justa soluo de casos concretos.

    A metodologia utilizada no trabalho, inicialmente, ser a mais tradicional em termos

    de abordagem de tipos penais, bem como nos textos que analisam crimes em espcie.

    A fim de seguir linha de raciocnio lgico, o objeto de pesquisa ser situado dentro de

    sua temporalidade. Ser apresentando um breve relato histrico a evoluo do Estado e a

    legitimidade da tutela penal do sistema financeiro, o contexto da criao da Lei 7.492/86 e a

    sua importncia na sociedade atual, bem como a prxis relativa definio pela doutrina dos

    bens jurdicos por ela tutelados.

    Em virtude da complexidade e importncia do tema, buscar-se- uma abordagem na

    anlise da tipicidade do crime de gesto fraudulenta, a conferir-lhe a necessria densidade

    normativa e segurana ao jurisdicionado, de modo que se concretize com fundamento em

    postulados dogmticos mais slidos, compatveis com a operacionalizao de um direito

    penal vinculado aos ditames do Estado Democrtico de Direito.

  • 9

    Sero aplicados redutores teleolgicos visando conferir ao tipo uma identidade

    prpria, com vistas a agregar coerncia interna na prpria lei e solucionar os recorrentes

    problemas quanto ao mbito de incidncia de seus dispositivos legais dispostos, por vezes, em

    situao de conflito aparente de normas.

    Uma vez estabelecido o contexto no qual se insere o tema, bem como as premissas

    envolvendo a compreenso normativa sobre o delito estudado, sero analisados os conceitos

    dogmticos a respeito de resoluo de concursos aparente de normas sobre os quais se

    fundamentaro as discusses envolvendo o delito previsto no artigo 4 da Lei 7.492/86 e os

    demais tipos penais do mesmo diploma legal.

    Pautando-se por guias doutrinrios, a abordagem partir da observncia da relao

    lgico-conceituais entre os preceitos3 e de sua relao com os critrios da especialidade,

    consuno, subsidiariedade e alternatividade.

    Posteriormente, tendo em vista a natureza sui generis do delito em estudo, ser

    dedicado um especial cuidado na anlise do concurso aparente de normas entre ele e os

    demais tipos da Lei n 7.492/86, especialmente em relao aos artigos 5, 6, 9, 10, 11, 16,

    17, 21 e 22.

    Por fim, a partir do mtodo de anlise de contedo de decises judiciais4, buscar-se-

    verificar como o Tribunal Regional Federal da 3 Regio rgo do Poder Judicirio com

    jurisdio sobre o principal centro financeiro do pas , tem abordado a matria nos ltimos

    10 (dez) anos, no perodo de 01/01/2003 a 31/12/2013, a fim de verificar os critrios

    utilizados e eventual soluo encontrada quando da imputao do delito de gesto fraudulenta

    em conjunto com demais tipos penais da Lei 7.492/86, confrontando-os com as premissas

    adotadas no presente estudo e os critrios anteriormente abordados.

    Finalmente, sero apresentadas as concluses do presente trabalho.

    3 Conforme sistematizao proposta por Ulrich Klug, na qual a anlise do concurso de normas parte da

    observao das relaes entre os conceitos sob quatro critrios: heterogeinadade, identidade, subordinao e

    interferncia. In KLUG. Ulrich. Sobre el Concepto de Concurso de leys. Problemas de la filosofia y la Pragmtica del Derecho. Cidade do Mxico: Distribuiciones Fontamara, 2002. p. 62. 4 O detalhamento do processo de seleo de acrdos para formao do banco de dados e mtodos de anlise

    consta no apenso do presente trabalho.

  • 10

    1. EVOLUO DO ESTADO E BEM JURDICO PENAL

    Em uma pesquisa acerca da criminalidade econmica e dos vetores interpretativos que

    devem norte-la, indispensvel que nos situemos a respeito da evoluo histrica e das

    rupturas paradigmticas que contextualizam o fenmeno estudado, especialmente sobre os

    reflexos do direito constitucional penal moderno na eleio e conformao dos bens jurdicos

    a serem objeto de tutela penal.

    A evoluo do direito durante o sculo XX trouxe sensveis transformaes. O Estado

    Liberal assumiu a feio de Estado Social e passou a se desincumbir de atividades

    qualificadas por uma funo assistencial sociedade. Houve o abandono de um modelo

    abstencionista, dando origem a um modelo marcado por prestaes positivas derivadas de

    exigncias impostas por novos marcos constitucionais5. Embora a gnese do Estado Social

    esteja situada na passagem do sculo XIX ao XX, imprescindvel referir o incremento

    qualitativo ocorrido a partir das Cartas Constitucionais do segundo ps-guerra, com o qual se

    ampliou significativamente a articulao com o princpio democrtico6.

    LUIZ LUISI menciona que as constituies modernas, ao incorporarem e conciliarem os

    princpios do Estado Liberal e do Estado Social, renovaram, de um lado, as garantias

    individuais, e de outro inseriram normas a tornarem concretas a liberdade e a igualdade dos

    cidados, tutelando valores de interesse geral como os pertinentes ao trabalho, sade,

    assistncia social, atividade econmica, ao meio ambiente, educao, cultura, dentre

    outros7.

    O constitucionalismo8 baseado em valores de democracia e direitos fundamentais

    assumiu, dessa forma, o novo aspecto de norma direta fundamental, que dirige os poderes

    5 As constituies do Mxico, de 1917, e da Alemanha, de 1919, denominada Constituio de Weimar,

    constituem os primeiros marcos desse modelo de Estado. 6 STRECK, Maria Luiza. Direito Penal e Constituio: a face oculta da proteo dos direitos fundamentais.

    Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009. p. 20. 7 LUISI, Luiz. Os Princpios Constitucionais Penais. 2. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003. p. 12.

    8 Nesse sentido adota-se a concepo de constitucionalismo de Joaquim Gomes Canotilho, qual seja: a teoria

    (ou ideologia) que ergue o princpio do governo limitado indispensvel garantia dos direitos em dimenso

    estruturante da organizao poltico-social de uma comunidade. Neste sentido, o constitucionalismo moderno

    representar uma tcnica especfica de limitao do poder com fins garantsticos. In CANOTILHO, Jos

    Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituio. 7. ed. Almedina, 2003, p. 51.

  • 11

    pblicos e condiciona os particulares de forma a assegurar a realizao de valores

    constitucionais.

    Rompeu-se, pois, com a concepo tradicional do perfil normativo negativo das

    funes do Estado, ou seja, dos direitos fundamentais encartados na constituio apenas como

    garantia dos cidados contra as arbitrariedades do Estado, para um perfil tambm normativo

    positivo, ou seja, a Lei fundamental como programa normativo do Estado e da sociedade.

    Nesses moldes, o Estado ganhou ares de efetivador e garantidor desses direitos9.

    Em outros termos, no desenvolvimento histrico dos direitos fundamentais,

    abandonou-se o prisma eminentemente liberal e individualista, restrito proteo do

    indivduo em face do Estado, para uma concepo mais ampla, na qual tambm se incluram,

    minimamente, questes de ordem social, econmica e cultural.

    Nesse contexto, a Constituio Brasileira de 1988, ao proclamar a Repblica

    Federativa do Brasil como Estado Democrtico de Direito, fundando seus pilares sob a

    soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho, a livre

    iniciativa e o pluralismo poltico, bem como sob os poderes do povo, a ser exercido

    diretamente ou por meio de representantes eleitos, elegeu esse pilares de acordo com a lio

    de JOS AFONSO DA SILVA, como princpios constitucionais fundamentais do ordenamento

    jurdico brasileiro10

    .

    Decorre imediatamente desse carter estruturante que todas as demais normas

    constitucionais e infraconstitucionais devem ser interpretadas de acordo com esses princpios,

    de modo a buscar-se a harmonia do ordenamento jurdico brasileiro, atribuindo-lhes a

    necessria densidade normativa.

    O direito penal no fica imune a esses novos parmetros constitucionais. A

    interpretao do contedo e o alcance dos direitos e garantias fundamentais previstos na

    Constituio de 1988 passam a servir de viga mestre de sustentao dos necessrios avanos

    no regime de proteo do ser humano, necessariamente fundado na prevalncia incondicional

    da dignidade da pessoa humana.

    9 CANOTILHO, Joaquim Gomes. Constituio dirigente e vinculao do legislador. Coimbra: Coimbra, 1994,

    p. 166-168. 10

    AFONSO DA SILVA, Jos. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24. ed. So Paulo: Malheiros, 2005. p.

    93.

  • 12

    As transformaes histricas e axiolgicas que culminaram na adoo do

    constitucionalismo dirigente acabaram por refletir na dogmtica penal, impondo-se um

    redesenhamento dos bens jurdicos sob guarida da tutela penal, a fim de adequ-los

    necessria dependncia material constitucional.

    Imps-se, tambm na esfera penal, a superao da concepo de bem jurdico

    tradicionalmente de cariz liberal-individualista para uma acepo mais ampla, a fim de

    abranger, tambm, bens jurdicos de carter supraindividual (ou coletivos).

    Essa acepo de suma relevncia para o direito penal econmico, eis que os

    interesses protegidos nesse mbito, ainda que interfiram em direitos individuais, em grande

    parte, apresentam-se em uma dimenso supraindividual.

    Ressalta-se, desde logo, que o desenvolvimento histrico do bem jurdico, bem como

    o panorama doutrinrio contemporneo da discusso sobre o tema no ser objeto de anlise,

    tendo em vista extrapolarem os limites objetivos do presente trabalho, bem como j terem

    sido amplamente abordados em estudos especficos11

    .

    Por outro lado, em que pese no se alcance um conceito fechado para tal instituto na

    dogmtica penal, parte-se do pressuposto, na linha do que sustenta HELENA REGINA LOBO DA

    COSTA, de que o instituto do bem jurdico no pode ser abandonado, seja como critrio de

    limitao material das incriminaes, seja como norte teleolgico na interpretao dos tipos

    penais12

    Assim, parte-se da aceitao da Constituio como critrio material negativo eleio

    do bem jurdico-penal e da observao de que a tutela de tais bens no pode vir dissociada dos

    demais pressupostos penais, devendo apenas ser considerada legtima se efetivamente for

    socialmente necessria13

    .

    11

    HEFENDEHL, Roland (Ed.). La teora del bien jurdico: fundamento de legitimacin del derecho penal o

    juego de abalorios dogmtico? Madrid: Marcial Pons, 2007; PRADO, Luiz Regis. Bem Jurdico-Penal e

    Constituio. 5. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2011; BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Da teoria

    do bem jurdico como critrio de legitimidade do direito penal. 2010. Tese (Livre-Docncia). Faculdade de

    Direito, USP, So Paulo. 12

    COSTA, Helena Regina Lobo. Direito penal econmico e direito administrativo sancionador: ne bis in idem

    como medida de poltica sancionadora integrada. 2013. Tese (Livre-Docncia). Faculdade de Direito, USP, So

    Paulo. p. 87. 13

    PRADO, Luiz Regis. Bem Jurdico-Penal e Constituio. 5. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 72.

  • 13

    Ou seja: quando imprescindvel para assegurar as condies de vida, o

    desenvolvimento e a paz social, tendo em vista o postulado maior da liberdade verdadeira

    presuno de liberdade e da dignidade da pessoa humana14

    .

    Corroborando tal entendimento, ARNALDO MALHEIROS FILHO, com apoio no esclio

    de BRICOLA, sustenta que o ilcito penal somente pode se concretizar diante de uma

    ofesividade significativa de um bem constitucionalmente relevante, in verbis:

    A sano penal somente pode ser adotada diante da violao de um bem, o qual,

    caso no seja do mesmo grau em comparao ao valor (liberdade pessoal)

    sacrificado, deve ao menos ser dotado de relevncia constitucional (...). Relevncia

    constitucional de um bem no significa simplesmente ausncia de carter antitico

    do mesmo ante a constituio, mas a assuno do mesmo pelos valores explicita ou

    implicitamente garantidos pela Carta Constitucional15

    .

    A interveno penal por se constituir na forma mais gravosa de interferncia, tanto

    no que diz respeito ao infrator, como sociedade deve ater-se aos fatos que atinjam

    efetivamente de forma ofensiva os bens constitucionalmente assegurados, ou seja, deve ser

    aquela necessria e imprescindvel para a afirmao do bem tutelado, a fim de garantir a paz e

    a justia social, preservando-se direitos e garantias fundamentais.

    Em outros termos, a determinao de bens jurdico-penais e sua eleio como dignos

    interveno penal devem ter por base critrios como os da adequao do meio,

    fragmentariedade, ultima ratio, subsidiariedade, proporcionalidade16

    desdobramentos do

    princpio constitucional da interveno mnima e corolrios do prprio Estado Democrtico

    de Direito.

    Desse modo, a constituio deve servir como limite material negativo e no como

    norma propulsora da interveno penal, sob a forma de determinao: Nem todo bem,

    interesse ou valor estabelecido na constituio pode ser considerado um bem jurdico com

    dignidade penal. De outro lado, nem todo bem jurdico necessita de tutela penal, bastando

    14

    PRADO, Luiz Regis. Bem Jurdico-Penal e Constituio. 5. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p.

    72. 15

    MALHEIROS, Arnaldo Filho. Direito Penal Econmico e Crimes de Mero Capricho. In Direito penal

    Econmico: Anlise Contempornea. So Paulo: Saraiva, 2009. 16

    COSTA, Helena Regina Lobo. Proteo Penal Ambiental: viabilidade efetividade tutela por outros ramos

    do direito. So Paulo: Saraiva, 2010. p. 17.

  • 14

    muitas vezes a proteo por outros ramos do direito 17

    . ANA ELISA BECHARA bem sintetiza

    tal contexto:

    Nessa perspectiva, o direito penal legitima-se democraticamente quando voltado

    proteo da sociedade e, em ltima anlise, dos interesses dos indivduos que a

    compe. Justifica-se, ento, a interveno penal apenas na medida da necessidade

    para o fim de evitar delitos, conforme o princpio da interveno mnima

    (desdobrado nas vertentes subsidiria e fragmentria), como decorrncia da

    dignidade humana e do direito liberdade, expressos constitucionalmente. Do

    mesmo modo, apenas se verifica a necessidade da interveno jurdico-penal num

    contexto democrtico quando esta seja realmente til para cumprir seu objetivo

    protetor, e no um efeito meramente simblico18

    .

    Para que se possa exercer a funo crtica do instituto do bem jurdico, essencial que

    seja usado como limite incriminao e no como sua legitimao19. Significa dizer, como

    pondera HELENA REGINA LOBO DA COSTA, que todo o tipo penal deve ter como substrato a

    leso ou ameaa a um bem jurdico (alm do atendimento aos demais princpios), mas nem

    todo bem jurdico deve ser tutelado pela via penal. Somente como critrio negativo pode o

    bem jurdico prestar alguma contribuio crtica ao direito penal20

    .

    Decorre de tal constatao, que o simples fato do bem jurdico conceber ao tipo penal

    certo contedo material no significa que ele diferencie, ontologicamente, o ilcito penal de

    outros tipos de ilcitos21

    . Bens jurdicos dignos de tutela jurdica podem ser tutelados por

    vias no penais. A interveno jurdico-penal deve ser desenvolver de forma fragmentria, a

    17

    BECHARA, Ana Elisa Liberatore S. Critrios poltico criminais da interveno penal no mbito econmico-

    financeiro: uma lgica equivocada. In Direito Penal Econmico: questes atuais/Coordenao Alberto Silva

    Franco; Rafael Lira. So Paulo: RT, 2011. p. 66. 18

    BECHARA, Ana Elisa Liberatore S. Critrios poltico criminais da interveno penal no mbito econmico-

    financeiro: uma lgica equivocada. In Direito Penal Econmico: questes atuais/Coordenao Alberto Silva

    Franco; Rafael Lira. So Paulo: RT, 2011. p. 44-45. 19

    COSTA, Helena Regina Lobo. Proteo Penal Ambiental: viabilidade efetividade tutela por outros ramos

    do direito. So Paulo: Saraiva, 2010. p. 16. 20

    Nesse sentido leciona Helena Regina Lobo da Costa, vide: COSTA, Helena Regina Lobo. Proteo Penal

    Ambiental: viabilidade efetividade tutela por outros ramos do direito. So Paulo: Saraiva, 2010. p. 16. 21

    COSTA, Helena Regina Lobo. Proteo Penal Ambiental: viabilidade efetividade tutela por outros ramos

    do direito. So Paulo: Saraiva, 2010. p. 16.

  • 15

    partir de critrios como adequao do meio, ultima ratio, subsidiariedade, proporcionalidade,

    eficincia, dentre outros22

    .

    A grande questo que se coloca o que deve ser entendido como bem jurdico

    econmico e quais deles devem ser declarados dignos e carentes da tutela penal23

    , buscando-

    se harmonizar os princpios constitucionais penais, limitadores do jus puniendi estatal, com as

    exigncias de proteo dos valores transindividuais.

    Partindo das premissas acima expostas, vejamos seus reflexos sobre a tutela da esfera

    econmico-financeira.

    1.2 TUTELA DA ORDEM ECONMICA E SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL

    O discurso da represso criminal acompanhou o movimento constitucional e as

    transformaes decorrentes do modelo de Estado adotado, contexto no qual o bem jurdico

    penal ampliou seu perfil tradicional de proteo de bens de carter individual, para abarcar,

    tambm, bens de carter transindividual (ou coletivos).

    Essa forma de desenvolvimento social, na qual se inserem as condutas socialmente

    danosas na esfera econmico-financeira, passou ser tutelada e controlada pelo direito penal,

    buscando-se meios de tambm proteger bens jurdicos universais aqueles que apresentam

    um potencial risco a uma pluralidade de vtimas.

    A criminalidade econmica no um fenmeno recente, tendo em vista estar atrelada

    prpria evoluo da economia24

    . Contudo, como a esfera econmico-financeira maximizou-

    se, adquirindo propores globais com a interpenetrao dos mercados, a globalizao e as

    quedas de barreiras, as aes delituosas nesse mbito ganharam contornos de gravidade

    22

    COSTA, Helena Regina Lobo. Proteo Penal Ambiental: viabilidade efetividade tutela por outros ramos

    do direito. So Paulo: Saraiva, 2010. p. 16. 23

    Pressupostos mencionados por Manuel da Costa Andrade na anlise da legitimidade da incidncia penal.

    ANDRADE, Manuel da Costa. A Dignidade Penal e a Carncia de Tutela Penal como referncias de uma

    doutrina teleolgico-racional do crime. Revista Portuguesa de Cincia Criminal, ano 2. Fasc. 2. abr./jun. 1992. 24

    RIOS, Rodrigo Sanches. Reflexes sobre o Delito Econmico e sua delimitao. Revista dos Tribunais, maio

    de 2000. vol. 775, p. 432.

  • 16

    singular, j que com a velocidade das operaes e as repercusses internacionais as leses ao

    bem jurdico poderiam se mostrar irreparveis25

    .

    Segundo MANUEL DA COSTA ANDRADE e FIGUEIREDO DIAS:

    A criminalidade econmica, nas suas formas clssicas ou modernas, um tema de

    marcada atualidade. Pela dimenso dos danos materiais e morais que provoca, pela

    sua capacidade de adaptao e sobrevivncia s mutaes sociais e polticas, pela

    sua aptido para criar defesas frustrando as formas de luta que lhe so dirigidas, a

    criminalidade econmica uma ameaa sria a minar os alicerces de qualquer

    sociedade organizada. Da a inveno de formas eficazes de luta seja hoje

    preocupao das instncias governativas, judiciais, policiais, etc. de todos os

    pases26

    .

    No obstante, a referncia constitucional incriminao de condutas censurveis nessa

    esfera de direitos j encontrava respaldo no ordenamento brasileiro desde a Constituio de

    1934, mas ganhou especial relevncia na atual ordem constitucional, justamente por seu

    carter dirigente27

    .

    o que se infere da redao do artigo 170 da Constituio de 1988, no qual se

    estabelecem os fundamentos da ordem econmica brasileira, pautada na valorizao do

    trabalho humano e na livre iniciativa, buscando assegurar a todos uma existncia digna,

    conforme os ditames da justia social, observados diversos princpios, dentre os quais o da

    livre concorrncia e o tratamento diferenciado para empresas de pequeno porte; bem como do

    quanto disposto no pargrafo quarto do artigo 173, no qual se estabelece que a lei reprimir o

    abuso do poder econmico que vise dominao dos mercados, eliminao da concorrncia

    e ao aumento arbitrrio dos lucros; e ainda, previso do artigo 192, na qual se determina que

    25

    Salienta Juliano Breda: Nas ltimas dcadas, inegavelmente, o poderio econmico aumentou sensivelmente,

    tornando o Estado dependente de grandes grupos financeiros. Ao lado deste fenmeno, novas condutas danosas

    foram surgindo, colocando em risco todo o sistema econmico. A atuao do direito penal passou ento a

    regulamentar esse subsistema BREDA, JULIANO. Gesto Fraudulenta de Instituio Financeira e Dispositivos

    Processuais da Lei 7.492/86. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 01. 26

    FIGUEIREDO DIAS, Jorge de; ANDRADE, Manoel Da Costa. Problemtica Geral das Infraces contra a

    Economia Nacional. In Temas de Direito Penal Econmico. So Paulo: RT, 2000. p. 64-65. 27

    BECHARA, Ana Elisa Liberatore S. Critrios poltico criminais da interveno penal no mbito econmico-

    financeiro: uma lgica equivocada. In Direito Penal Econmico: questes atuais/Coordenao Alberto Silva

    Franco; Rafael Lira. So Paulo: RT, 2011. p. 50.

  • 17

    o Sistema Financeiro Nacional ser estruturado de forma a promover o desenvolvimento

    equilibrado do pas e a servir aos interesses da coletividade.

    Em decorrncia das necessidades vislumbradas, notadamente nos perodos ps-guerras

    e nas crises que lhe seguiram28

    , bem como pela globalizao, esmaecimento de fronteiras e

    gravidade das repercusses de eventuais prticas delitivas no mbito econmico-financeiro, o

    direito penal econmico passou a tutelar valores essenciais preservao da ordem

    econmica e garantia de sua efetivao, buscando-se uma situao de equilbrio, liberdade

    de iniciativa e competio.

    Essa nova perspectiva de direito, para alguns, deu ensejo ampliao do direito penal,

    por vezes chamada de expanso29

    , modernizao30

    ou administrativizao31

    da tutela penal,

    pretensamente ancorados na busca de maior eficcia diante da demanda social e valendo-se da

    constituio no s como limite, mas tambm como norma propulsora do direito penal32

    .

    Contudo, como j antecipado, o reconhecimento de valores e interesses expressos na

    constituio no implica na obrigao da tutela penal, sendo o bem jurdico e o princpio da

    ofensividade os critrios mnimos de legitimidade dessa interveno. Tal constatao no

    escapa definio do mbito de interveno penal na esfera econmico-financeira.

    ANA ELISA BECHARA pondera que a necessria ofensividade a um bem jurdico

    condiciona, conforme j verificado, toda a justificao utilitria do direito penal como

    instrumento de tutela, constituindo seu principal limite externo 33

    . Alm disso, aduz que a

    partir do reconhecimento de que determinado interesse constitui um bem jurdico, de se

    28

    Sobre o legado do desenvolvimento histrico da legislao para a percepo atual pelo direito penal

    econmico, vide: COSTA, Helena Regina Lobo. Direito penal econmico e direito administrativo sancionador:

    ne bis in idem como medida de poltica sancionadora integrada. 2013. Tese (Livre-Docncia). Faculdade de

    Direito, USP, So Paulo. p. 21 e ss. 29

    Expresso de Jess Maria Sanches. In La expansion Del derecho penal. Aspectos de la poltica criminal em ls

    sociedades ponstindustrialis. Madrid: Civitas, 1999. p. 21. 30

    Sobre o tema conf. Eduardo Correia. Notas Criticas Penalizao de Actividades Econmicas. In Direito

    Penal Econmico. Coimbra: CEJ, 1985, p. 11 e ss. 31

    Expresso encontrada na obra de Miguel Reale Junior. In Instituies de Direito Penal. Rio de Janeiro:

    Forense, 2002. v. 1, p. 21. 32

    Adotando a concepo da constituio como fundamento normativo do direito penal (zonas de obrigatria

    interveno do legislador penal) a doutrina de Antonio Carlos da Ponte. In DA PONTE, Antonio Carlos.

    Crimes Eleitorais. So Paulo: Saraiva, 2008. p. 147-151; e Luciano Feldens In FELDENS, Luciano. A

    Constituio Penal: a dupla face da proporcionalidade no controle de normas penais. Porto Alegre: Livraria do

    Advogado, 2005. p. 39. 33

    BECHARA, Ana Elisa. Critrios poltico criminais da interveno penal no mbito econmico-financeiro:

    uma lgica equivocada. In Direito Penal Econmico: questes atuais/Coordenao Alberto Silva Franco; Rafael

    Lira. So Paulo: RT, 2011. p. 57.

  • 18

    proceder, ainda, a um juzo valorativo sobre a justificao de sua tutela por meio do

    instrumento mais extremo, que a pena34

    .

    Ou seja, no se trata de tutelar penalmente toda e qualquer conduta ligada ao direito

    econmico, mas aquelas que realmente sejam ofensivas ao bem jurdico tutelado, isto , que

    sejam dotadas da necessria dignidade penal e carncia da tutela penal35

    , sem olvidar dos

    cnones do direito penal clssico, como os critrios da subsidiariedade, fragmentariedade,

    ultima ratio, dentre outros.

    A legitimidade da interveno penal nessa esfera, assim como no mbito do direito

    penal clssico, demanda no s a demonstrao do bem jurdico tutelado pela norma e seu

    respectivo referencial constitucional, mas tambm a verificao da necessidade da tutela penal

    desse interesse social de natureza econmica para sua efetiva proteo36

    .

    No por outro motivo, NILO BATISTA salienta que especial cuidado deve ter o

    legislador da interveno econmica do Estado, evitando-se a tentao de socorre-se

    permanentemente do direito penal; essa tendncia penalstica inflacionria, como determinou

    BRICOLA, pode questionar o princpio da interveno mnima37

    .

    Sobremodo em um contexto de esmaecimento das fronteiras nacionais, ressurgimento

    dos controles estatais (crise nos EUA) e indevidas apostas do poder punitivo para satisfazer as

    pretenses de investidores e populao de se recordar que a tutela da seara econmico-

    financeira no pode descurar dos demais postulados do direito penal.

    JULIANO BREDA alerta que relegar a funo do direito penal a um mero auxiliar ou um

    agente de reforo disciplina de subsistemas jurdicos significa incompatibiliz-lo com a sua

    moderna concepo de protetor subsidirio de bens jurdicos fundamentais ao

    desenvolvimento da coletividade38

    .

    34

    BECHARA, Ana Elisa. Critrios poltico criminais da interveno penal no mbito econmico-financeiro:

    uma lgica equivocada. In Direito Penal Econmico: questes atuais/Coordenao Alberto Silva Franco; Rafael

    Lira. So Paulo: RT, 2011. p. 57. 35

    Pressupostos mencionados por Manuel da Costa Andrade na anlise da legitimidade da incidncia penal.

    ANDRADE, Manuel da Costa. A Dignidade Penal e a Carncia de Tutela Penal como referncias de uma

    doutrina teleolgico-racional do crime. Revista Portuguesa de Cincia Criminal, ano 2. Fasc. 2. abr./jun. 1992. 36

    BECHARA, Ana Elisa. Critrios poltico criminais da interveno penal no mbito econmico-financeiro: uma

    lgica equivocada. In Direito Penal Econmico: questes atuais/Coordenao Alberto Silva Franco; Rafael Lira.

    So Paulo: RT, 2011. p. 57. 37

    BATISTA, Nilo. Introduo Crtica ao Direito Penal Brasileiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 1996. p. 89-90. 38

    BREDA, JULIANO. Gesto Fraudulenta de Instituio Financeira e Dispositivos Processuais da Lei 7.492/86.

    Rio de janeiro: Renovar, 2002. p. 51.

  • 19

    Sobre a caracterizao dos bens jurdicos econmicos, MANUAL DA COSTA ANDRADE

    pondera que para alm de sua ndole supraindividual aspecto formal, comum a outros

    grupos de bens jurdicos como os relativos sade pblica, ao ambiente, etc. os bens jurdicos

    tutelados pelo direito penal econmico caracterizam-se materialmente pela sua relevncia

    direta para o sistema econmico cuja sobrevivncia, funcionamento ou implementao se

    pretende assegurar39

    .

    Segundo aludido autor, essa qualificao indispensvel, pois possibilita a

    diferenciao entre duas ordens de valores ou interesses, a saber: de um lado as que relevam a

    vida comunitria como sistema econmico com seus conflitos reais; e de outro as que se

    exaurem no interior da prpria administrao, como interesse cognitivo especfico, voltado a

    garantir certa transparncia da vida econmica por intermdio dos deveres de comunicao,

    informao e registro, impostos aos operadores econmicos40

    .

    Aludida distino, ainda que metodolgica, serve para delimitar a tutela penal apenas

    quando da violao das primeiras, enquanto na outra, observa-se somente uma transgresso

    ou contraordenao41

    .

    No h dvidas de que o mercado financeiro e a economia podem e, por vezes devem,

    ser objetos de disciplina jurdica, porm a regulamentao deve se voltar tutela de valores

    fundamentais de cada um dos subsistemas que compe a poltica econmica de governo

    adotada42

    , o que no implica, necessariamente, a interveno jurdico-penal.

    ANDREI ZENKNER SCHMIDT destaca que h que se ter em mente a clara distino entre

    a ordem econmica enquanto bem jurdico tutelvel e a mesma ordem econmica como bem

    jurdico penalmente tutelvel43

    .

    39

    ANDRADE, Manuel da Costa. A nova lei dos crimes contra a economia (dec.-lei n. 28/84, de 20 de janeiro)

    luz do conceito de Bem jurdico. In DIREITO penal econmico e europeu: textos doutrinrios: volume I -

    problemas gerais. Coimbra: Coimbra, 1998. v. 1. p. 402. 40

    ANDRADE, Manuel da Costa. A nova lei dos crimes contra a economia (dec.-lei n. 28/84, de 20 de janeiro)

    luz do conceito de Bem jurdico. In DIREITO penal econmico e europeu: textos doutrinrios: volume I -

    problemas gerais. Coimbra: Coimbra, 1998. v. 1. p. 402. 41

    Idem. 42

    BREDA, Juliano. Gesto Fraudulenta de Instituio Financeira e Dispositivos Processuais da Lei 7.492/86.

    Rio de janeiro: Renovar, 2002. p. 51. 43

    SCHMIDT, Andrei Zenkner. A Delimitao do Direito Penal Econmico a Partir do Objeto do Ilcito. In

    VILARDI, Celso Sanchez; PEREIRA, Flavia Rahal Bresser; DIAS NETO, Theodomiro (coordenadores) Direito

    Penal Econmico: crimes financeiros e correlatos. So Paulo: Saraiva, 2011. p. 49.

  • 20

    Desse modo, a criminalizao de condutas que afetem o regular funcionamento da

    ordem econmica deve ser submetida a uma dupla relao de fragmentariedade, tendo em

    vista que a regra entre Estado e economia no a interveno, mas sim o oposto. Decorre de

    tal constatao que nem toda relao econmica (desviada ou no) passvel de tutela

    jurdica; nem todo o desvio econmico passvel de tutela jurdica comporta, s por essa razo,

    tutela penal44

    .

    Em outros termos, se o Estado pode se municiar de instrumentos adequados para

    proteger a correta execuo da poltica econmica adotada, tendo em vista que os princpios

    reitores de um estado economicamente vivel, alm de abrangerem a gerao de renda e a

    promoo da igualdade social, tambm esto direcionados transparncia dos seus fluxos

    econmicos45

    , isso no significa dizer que a legitimidade dessa tutela, per si, resulte na

    legitimidade da interveno jurdico-penal.

    Tais pressupostos mostram-se indispensveis principalmente na esfera da represso

    criminal, tendo em vista que ao incidir sobre a liberdade e a dignidade das pessoas, a

    atividade estatal s pode ser exercida com obedincia aos parmetros estabelecidos pelas

    garantias fundamentais do cidado, corolrias do prprio Estado de Direito.

    As dificuldades na descrio e comprovao dos crimes econmicos, muitas vezes

    pela prpria complexidade a eles inerente, no pode servir como justificativa a violar tais

    garantias. A atuao do direito penal somente estar justificada e legitimada, seja no mbito

    econmico ou em qualquer outra esfera de direitos, quando a proteo ordenada pela

    constituio no puder ser alcanada de outra forma: a tipificao penal, para ser vlida,

    precisa, necessariamente, atender aos princpios da legalidade, fragmentariedade,

    subsidiariedade, imprescindibilidade, racionalidade e proporcionalidade.

    Cumpre mencionar que aludidos princpios, bem como as garantias deles decorrentes,

    no se limitam ao processo de elaborao das leis, mas tambm sua interpretao. Com

    efeito, entre diversas interpretaes possveis, o exegeta deve optar por excluir do mbito de

    incidncia da norma penal aquelas condutas que no apresentem real ofensividade sobre o

    44

    SCHMIDT, Andrei Zenkner. A Delimitao do Direito Penal Econmico a Partir do Objeto do Ilcito. In

    VILARDI, Celso Sanchez; PEREIRA, Flavia Rahal Bresser; DIAS NETO, Theodomiro (coordenadores) Direito

    Penal Econmico: crimes financeiros e correlatos. So Paulo: Saraiva, 2011. p. 49. 45

    SCHMIDT, Andrei Zenkner. A Delimitao do Direito Penal Econmico a Partir do Objeto do Ilcito. In

    VILARDI, Celso Sanchez; PEREIRA, Flavia Rahal Bresser; DIAS NETO, Theodomiro (coordenadores) Direito

    Penal Econmico: crimes financeiros e correlatos. So Paulo: Saraiva, 2011. p. 48.

  • 21

    bem jurdico tutelado pelo preceito incriminador46

    .

    Nessa senda, observa-se que o bem jurdico penal desempenha dupla funo:

    condiciona tanto a validade da norma penal quanto sua aplicao casustica, sendo que esta

    ltima ainda pressupe a demonstrao emprica de que o bem jurdico tutelado foi lesionado

    ou potencialmente colocado em perigo. Deslegitima-se, assim, a incriminao de atos de mera

    desobedincia a funes, polticas de gesto, controle ou regulao do Estado sobre a ordem

    econmica, posto que destitudas de qualquer substancialidade47

    .

    No obstante, tal perspectiva do bem jurdico penal deve estar atrelada ainda a

    referenciais individuais, luz das especificidades do mbito de atuao do direito penal

    econmico48

    . dizer, o bem jurdico de cariz supraindividual no possui legitimidade

    prpria e autnoma, mas sim em funo de interesses individuais relevantes neles

    diretamente representados, como por exemplo, o patrimnio49

    .

    So essas as premissas fundamentais interpretao do tipo penal de gesto

    fraudulenta, objeto do presente trabalho, inserido na subpoltica monetria voltada regulao

    da oferta de moeda e, consequentemente, de crdito, no mbito do sistema financeiro

    nacional, especialmente afetado no caso de abusos e fraudes nas instituies financeiras que o

    constituem50

    .

    Sem descurar das inmeras crticas no sentido de que mencionado tipo penal aberto

    demais, o que poderia ser entendido como violao garantia da taxatividade51

    46

    MALAN, Diogo. Bem jurdico tutelado pela Lei 7.492/1986. In BOTTINO Thiago. Direito penal e economia.

    Rio de Janeiro: Elsevier/GV, pp.37-58, 2012. p. 45. 47

    MALAN, Diogo. Bem jurdico tutelado pela Lei 7.492/1986. In BOTTINO Thiago. Direito penal e economia.

    Rio de Janeiro: Elsevier/GV, pp.37-58, 2012. p. 45. 48

    COSTA, Helena Regina Lobo. Direito penal econmico e direito administrativo sancionador: ne bis in idem

    como medida de poltica sancionadora integrada. 2013. Tese (Livre-Docncia). Faculdade de Direito, USP, So

    Paulo. p. 87. 49

    Nesse sentido alerta Diogo Malan pautado na teoria personalista. MALAN, Diogo. Bem jurdico tutelado pela

    Lei 7.492/1986. In BOTTINO Thiago. Direito penal e economia. Rio de Janeiro: Elsevier/GV, pp.37-58, 2012.

    p. 44. 50

    Sobre a caracterizao de aludida subpoltica econmica, vide: SCHMIDT, Andrei Zenkner. A Delimitao do

    Direito Penal Econmico a Partir do Objeto do Ilcito. In VILARDI, Celso Sanchez; PEREIRA, Flavia Rahal

    Bresser; DIAS NETO, Theodomiro (coordenadores) Direito Penal Econmico: crimes financeiros e correlatos.

    So Paulo: Saraiva, 2011. p. 55. 51

    Princpio da taxatividade ou da determinao (nullum crimen sine lege scripta): diz respeito tcnica de

    elaborao de lei penal, que deve ser suficientemente clara e precisa na formulao do contedo do tipo legal e

    no estabelecimento da sano para que exista real segurana jurdica. Tal assertiva constitui postulado

    indeclinvel no Estado de Direito material democrtico e social (Cf. arts. 1 a 6, CF). Procura-se o arbitrium

    judicis atravs da certeza da lei com a proibio da utilizao excessiva e incorreta de elementos normativos, de

    casusmos, clusulas gerais e de conceitos indeterminados ou vagos. (....) Como bem se esclarece, a exigncia de

  • 22

    desdobramento do princpio da legalidade e da interveno mnima algo que a doutrina, em

    grande medida, j pontuou, parte-se dessa constatao como elemento motivador busca da

    recuperao do tipo penal em estudo, reinserindo-o no contexto que determinou a edio da

    Lei 7.492/86 e interpretando-o de acordo com os limites impostos pelo bem jurdico penal a

    cuja proteo fora criado.

    Tal abordagem parece oportuna na medida em que, como visto, o bem jurdico penal

    cumpre dupla funo, tanto de legitimao da norma, como limite teleolgico interpretativo

    do preceito incriminador. Junte-se a isso a constatao de que a Lei 7.492/86, em cujo

    diploma o tipo penal est encartado, anterior Constituio Federal ora em vigor, o que

    tambm impe sua reinterpretao luz das garantias fundamentais do cidado, corolrias do

    prprio Estado de Democrtico de Direito. E finalmente porque, a partir da teoria econmica

    e do conceito de instituio financeira adotado por mencionada lei, possvel vislumbrar que

    o sistema financeiro nacional no um fim em si mesmo, mas um meio para realizao de

    interesses individuais52

    .

    Tambm no se ignoram os inmeros projetos de lei relacionados ao tema53

    . Contudo,

    como tambm partem de redaes deficitrias que no auxiliam uma melhor compreenso do

    determinao se refere no s a descrio de condutas delitivas, mas tambm a fixao dos marcos ou margens

    penais, que quando excessivamente amplos colidem com o princpio da legalidade. PRADO, Luiz Regis. Curso

    de direito penal brasileiro, volume I: parte geral. 3. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 114. 52

    Nesse sentido so as ponderaes de Diogo Malan ao abordar o bem jurdico tutelado pela lei dos crimes

    contra o sistema financeiro nacional. MALAN, Diogo. Bem jurdico tutelado pela Lei 7.492/1986. In BOTTINO

    Thiago. Direito penal e economia. Rio de Janeiro: Elsevier/GV, pp.37-58, 2012. p. 38. 53

    Existem diversos projetos de lei no Congresso Nacional que versam sobre o delito de gesto fraudulenta, cuja

    anlise detida dependeria de pesquisa especfica que ultrapassa os limites desde estudo. Todavia pode se

    mencionar os seguintes projetos atualmente em andamento na Cmara dos Deputados: Projeto de Lei 5139/13,

    do Deputado Camilo Cola (PMDB-ES), que ainda aguarda parecer da Comisso de Constituio e Justia e de

    Cidadania (CCJC), define os crimes de gesto fraudulenta e gesto temerria de instituio financeira. Incorreria

    no primeiro delito quem utiliza-se de ardil para dissimular a natureza de um negcio ou operao financeira ou

    a situao contbil da instituio, com o fim de ludibriar autoridade monetria, autoridade fiscal, correntista,

    poupador ou investidor. J como temerria seria classificada a gesto caracterizada pelo risco extremamente

    elevado e injustificado dos negcios e das operaes financeiras; Projeto de Lei 6984/06, do Deputado

    Demstenes Torres, pronto para pauta, mas cujo parecer da Comisso de Constituio e Justia e de Cidadania

    (CCJC) foi pela inconstitucionalidade e injuridicidade, altera a Lei n 7.492, de 16 de junho de 1986, para

    agravar penas, proibir a fiana e o recurso em liberdade, exigir o cumprimento mnimo de metade da pena para

    obteno de benefcios penais, alm de especificar o tipo penal de gesto fraudulenta de instituies financeiras

    nos seguintes termos: Art. 4 Gerir fraudulentamente instituio financeira, dando causa decretao da

    interveno, liquidao extrajudicial ou da falncia: Pena recluso de 6 (seis) a 15 (quinze) anos, e multa.

    Disponvel em:

    http://www.camara.gov.br/internet/sileg/Prop_lista.asp?formulario=formPesquisaPorAssunto&Ass1=gest%C3%

    A3o+fraudulenta&co1=+AND+&Ass2=&co2=+AND+&Ass3=&Submit2=Pesquisar&sigla=&Nmero=&Ano=

    &Autor=&Relator=&dtInicio=&dtFim=&Comissao=&Situacao=&pesqAssunto=1&OrgaoOrigem=todos.

    Acesso em 16-01-2014. No Senado Federal, o nico projeto de Lei atinente matria (SF PL 170/2004),

    encontra-se na secretaria de arquivo. Disponvel em:

    http://www.camara.gov.br/internet/sileg/Prop_lista.asp?formulario=formPesquisaPorAssunto&Ass1=gest%C3%A3o+fraudulenta&co1=+AND+&Ass2=&co2=+AND+&Ass3=&Submit2=Pesquisar&sigla=&Nmero=&Ano=&Autor=&Relator=&dtInicio=&dtFim=&Comissao=&Situacao=&pesqAssunto=1&OrgaoOrigem=todoshttp://www.camara.gov.br/internet/sileg/Prop_lista.asp?formulario=formPesquisaPorAssunto&Ass1=gest%C3%A3o+fraudulenta&co1=+AND+&Ass2=&co2=+AND+&Ass3=&Submit2=Pesquisar&sigla=&Nmero=&Ano=&Autor=&Relator=&dtInicio=&dtFim=&Comissao=&Situacao=&pesqAssunto=1&OrgaoOrigem=todoshttp://www.camara.gov.br/internet/sileg/Prop_lista.asp?formulario=formPesquisaPorAssunto&Ass1=gest%C3%A3o+fraudulenta&co1=+AND+&Ass2=&co2=+AND+&Ass3=&Submit2=Pesquisar&sigla=&Nmero=&Ano=&Autor=&Relator=&dtInicio=&dtFim=&Comissao=&Situacao=&pesqAssunto=1&OrgaoOrigem=todos

  • 23

    tema, bem como diante de sua inaplicabilidade atual, opta-se por buscar uma abordagem do

    tipo penal densa o bastante para lhe conferir identidade prpria, agregar coerncia interna na

    prpria lei e minimizar os recorrentes problemas quanto ao mbito de incidncia

    concomitante com os demais tipos penais previstos no mesmo diploma legal, dispostos, por

    vezes, em situao de conflito aparente de normas54

    .

    1.3.1 Escopo da Lei 7.492/86

    A Lei 7.492/86 Lei dos crimes contra o Sistema Financeiro Nacional foi editada

    num contexto de crise e aps um processo conturbado de elaborao legislativa. O clamor

    pblico existente poca, diante dos sucessivos escndalos financeiros e agudas crises

    econmicas e inflacionrias, fez com que o Estado adotasse medidas a assegurar a

    normalidade dos mercados e os interesses de investidores e depositantes, injetando volumosos

    recursos oriundos da arrecadao fiscal. Tal poltica deu ensejo regulamentao prevista

    pelo Decreto Lei 1.342/74, alterando-se a Lei 5.143/66, cujo teor do artigo 12 passou a ter a

    seguinte redao:

    http://www.senado.gov.br/atividade/materia/consulta.asp?Tipo_Cons=8&orderby=6&hid_comissao=TOD++TO

    DAS&hid_status=TOD++TODAS&str_tipo=&selAtivo=&selInativo=&radAtivo=S&txt_num=&txt_ano=&sel_

    tipo_norma=&txt_num_norma=&txt_ano_norma=&sel_assunto=&sel_natureza=&sel_tipo_autor=&txt_autor=

    &sel_partido=&sel_uf=&txt_relator=&ind_relator_atual=S&sel_comissao=&txt_assunto=gest%E3o+fraudulent

    a&tip_palavra_chave=T&rad_trmt=T&sel_situacao=&ind_status_atual=A&dat_situacao_de=&dat_situacao_ate

    =&txt_tramitacao=&dat_apresentacao_de=&dat_apresentacao_ate=.Acesso em 16-01-2014.

    Vale mencionar, por fim, o Projeto de Novo Cdigo Penal, cujo relatrio do Senador Pedro Taques, foi

    aprovado no ltimo dia 17 de dezembro de 2013 na Comisso Especial do Senado e agora segue para o plenrio

    do Senado e da Cmara. Disponvel em: http://www.pedrotaquesmt.com.br/uploads/downloads/Relatorio-Novo-

    Codigo-Penal-10-12-13.pdf. Nesse projeto, o crime de gesto fraudulenta passaria a ter a seguinte redao:

    Fraude na gesto - Art. 354. Praticar ato fraudulento na gesto de instituio financeira. Pena - priso, de um a

    quatro anos. Gesto fraudulenta 1 Se a conduta for habitual: Pena - priso, de um a cinco anos. 2 Se da

    conduta decorrer prejuzos para terceiros. Pena - priso, de dois a seis anos. 3 Se da conduta decorrer

    interveno, liquidao extrajudicial ou falncia da instituio financeira. Pena - priso, de trs a sete anos. 4

    Se a fraude, ainda que reiterada, exaurir-se na gesto, sem outra potencialidade lesiva, fica por esta absorvida.

    Nesse particular, valem as crticas de Miguel Reale Junior em reportagem ao Jornal Gazeta do Povo: a gesto

    fraudulenta est mal definida na Lei dos Crimes Financeiros, mas est pior definida no projeto [do novo Cdigo

    Penal]. Diz que gesto fraudulenta praticar ato fraudulento na gesto de instituio financeira. Ato fraudulento

    qualquer ato, por exemplo, um diretor que d fraudulentamente a presena para a secretria que est ausente.

    Ele frauda sem que com isso tenha atingido o sistema financeiro. O tipo penal tem de estar voltado para

    proteo do bem jurdico que a instituio financeira.

    Disponvelem:http://www.gazetadopovo.com.br/vidapublica/justicadireito/entrevistas/conteudo.phtml?id=12966

    -54. Acesso em 16-01-2014. 54

    No mesmo sentido, busca a proposta apresentada por Luciano Feldens em: FELDENS, Luciano. Gesto

    fraudulenta e temerria de instituio financeira: contornos identificadores do tipo. In VILARDI, Celso Sanchez;

    PEREIRA, Flavia Rahal Bresser; DIAS NETO, Theodomiro (coordenadores) Direito Penal Econmico: crimes

    financeiros e correlatos. So Paulo: Saraiva, 2011. p. 82.

    http://www.senado.gov.br/atividade/materia/consulta.asp?Tipo_Cons=8&orderby=6&hid_comissao=TOD++TODAS&hid_status=TOD++TODAS&str_tipo=&selAtivo=&selInativo=&radAtivo=S&txt_num=&txt_ano=&sel_tipo_norma=&txt_num_norma=&txt_ano_norma=&sel_assunto=&sel_natureza=&sel_tipo_autor=&txt_autor=&sel_partido=&sel_uf=&txt_relator=&ind_relator_atual=S&sel_comissao=&txt_assunto=gest%E3o+fraudulenta&tip_palavra_chave=T&rad_trmt=T&sel_situacao=&ind_status_atual=A&dat_situacao_de=&dat_situacao_ate=&txt_tramitacao=&dat_apresentacao_de=&dat_apresentacao_atehttp://www.senado.gov.br/atividade/materia/consulta.asp?Tipo_Cons=8&orderby=6&hid_comissao=TOD++TODAS&hid_status=TOD++TODAS&str_tipo=&selAtivo=&selInativo=&radAtivo=S&txt_num=&txt_ano=&sel_tipo_norma=&txt_num_norma=&txt_ano_norma=&sel_assunto=&sel_natureza=&sel_tipo_autor=&txt_autor=&sel_partido=&sel_uf=&txt_relator=&ind_relator_atual=S&sel_comissao=&txt_assunto=gest%E3o+fraudulenta&tip_palavra_chave=T&rad_trmt=T&sel_situacao=&ind_status_atual=A&dat_situacao_de=&dat_situacao_ate=&txt_tramitacao=&dat_apresentacao_de=&dat_apresentacao_atehttp://www.senado.gov.br/atividade/materia/consulta.asp?Tipo_Cons=8&orderby=6&hid_comissao=TOD++TODAS&hid_status=TOD++TODAS&str_tipo=&selAtivo=&selInativo=&radAtivo=S&txt_num=&txt_ano=&sel_tipo_norma=&txt_num_norma=&txt_ano_norma=&sel_assunto=&sel_natureza=&sel_tipo_autor=&txt_autor=&sel_partido=&sel_uf=&txt_relator=&ind_relator_atual=S&sel_comissao=&txt_assunto=gest%E3o+fraudulenta&tip_palavra_chave=T&rad_trmt=T&sel_situacao=&ind_status_atual=A&dat_situacao_de=&dat_situacao_ate=&txt_tramitacao=&dat_apresentacao_de=&dat_apresentacao_atehttp://www.senado.gov.br/atividade/materia/consulta.asp?Tipo_Cons=8&orderby=6&hid_comissao=TOD++TODAS&hid_status=TOD++TODAS&str_tipo=&selAtivo=&selInativo=&radAtivo=S&txt_num=&txt_ano=&sel_tipo_norma=&txt_num_norma=&txt_ano_norma=&sel_assunto=&sel_natureza=&sel_tipo_autor=&txt_autor=&sel_partido=&sel_uf=&txt_relator=&ind_relator_atual=S&sel_comissao=&txt_assunto=gest%E3o+fraudulenta&tip_palavra_chave=T&rad_trmt=T&sel_situacao=&ind_status_atual=A&dat_situacao_de=&dat_situacao_ate=&txt_tramitacao=&dat_apresentacao_de=&dat_apresentacao_atehttp://www.senado.gov.br/atividade/materia/consulta.asp?Tipo_Cons=8&orderby=6&hid_comissao=TOD++TODAS&hid_status=TOD++TODAS&str_tipo=&selAtivo=&selInativo=&radAtivo=S&txt_num=&txt_ano=&sel_tipo_norma=&txt_num_norma=&txt_ano_norma=&sel_assunto=&sel_natureza=&sel_tipo_autor=&txt_autor=&sel_partido=&sel_uf=&txt_relator=&ind_relator_atual=S&sel_comissao=&txt_assunto=gest%E3o+fraudulenta&tip_palavra_chave=T&rad_trmt=T&sel_situacao=&ind_status_atual=A&dat_situacao_de=&dat_situacao_ate=&txt_tramitacao=&dat_apresentacao_de=&dat_apresentacao_atehttp://www.senado.gov.br/atividade/materia/consulta.asp?Tipo_Cons=8&orderby=6&hid_comissao=TOD++TODAS&hid_status=TOD++TODAS&str_tipo=&selAtivo=&selInativo=&radAtivo=S&txt_num=&txt_ano=&sel_tipo_norma=&txt_num_norma=&txt_ano_norma=&sel_assunto=&sel_natureza=&sel_tipo_autor=&txt_autor=&sel_partido=&sel_uf=&txt_relator=&ind_relator_atual=S&sel_comissao=&txt_assunto=gest%E3o+fraudulenta&tip_palavra_chave=T&rad_trmt=T&sel_situacao=&ind_status_atual=A&dat_situacao_de=&dat_situacao_ate=&txt_tramitacao=&dat_apresentacao_de=&dat_apresentacao_atehttp://www.pedrotaquesmt.com.br/uploads/downloads/Relatorio-Novo-Codigo-Penal-10-12-13.pdfhttp://www.pedrotaquesmt.com.br/uploads/downloads/Relatorio-Novo-Codigo-Penal-10-12-13.pdfhttp://www.gazetadopovo.com.br/vidapublica/justicadireito/entrevistas/conteudo.phtml?id=12966-54http://www.gazetadopovo.com.br/vidapublica/justicadireito/entrevistas/conteudo.phtml?id=12966-54

  • 24

    Art. 12. A receita lquida do imposto se destinar formao de reservas monetrias,

    as quais sero aplicadas pelo Banco Central do Brasil na interveno nos mercados

    de cmbio e de ttulos, na assistncia a instituies financeiras, particularmente ao

    Banco Nacional do Desenvolvimento Econmico, e em outros fins, conforme

    estabelecer o Conselho Monetrio Nacional.

    1 Em casos excepcionais, visando a assegurar a normalidade dos mercados

    financeiro e de capitais ou a resguardar os legtimos interesses de depositantes,

    investidores e demais credores acionistas e scios minoritrios, poder o Conselho

    Monetrio Nacional autorizar o Banco Central do Brasil a aplicar recursos das

    reservas monetrias.

    a) na recomposio do patrimnio de instituies financeiras e de sociedades

    integrantes do sistema de distribuio no mercado de capitais, referidas nos incisos I,

    III e IV do artigo 5 da Lei n 4.728, de 14 de julho de 1965, com o saneamento de

    seus ativos e passivos;

    b) no pagamento total ou parcial do passivo de qualquer das instituies ou

    sociedades referidas na alnea precedente, mediante as competentes cesses e

    transferncias dos correspondentes crditos, direitos e aes, a serem efetivadas

    pelos respectivos titulares ao Banco Central do Brasil, caso decretada a interveno

    na instituio ou sociedade ou a sua liquidao extrajudicial, nos termos da

    legislao vigente

    2 Na hiptese da alnea a do pargrafo anterior, poder o Banco Central do Brasil

    deixar de decretar a interveno na instituio ou sociedade, ou a sua liquidao

    extrajudicial, se entender que as providncias a serem adotadas possam conduzir

    completa normalizao da situao da empresa55

    .

    No obstante essa interveno setorizada, a sentida ineficincia das medidas

    administrativas da Lei 6.024/1974 e a incapacidade de subsuno das condutas daqueles

    gestores de instituies financeiras da poca que malversavam o patrimnio investido de

    terceiros s normas previstas pela Lei 1.521/51, tendo em vista o surgimento das novas

    espcies de instituies, que no se encontravam no rol taxativo previsto por referida norma,

    incitaram a aprovao do PL 273/1982 que culminou na redao prevista na Lei dos Crimes

    Contra o Sistema Financeiro Nacional56

    .

    55

    Disponvel em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5143.htm. Acesso em 12-01-2014. 56

    FELDENS, Luciano. A estrutura material dos delitos de gesto fraudulenta e temerria de instituio

    financeira. Revista Brasileira de Cincias Criminais, So Paulo, v. 18, n. 86, p. 170-200, set./out. 2010. p. 176.

    http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L4728.htm#art5ihttp://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L4728.htm#art5iiihttp://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L4728.htm#art5ivhttp://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5143.htm

  • 25

    Segundo constata ELA WIECKO DE CASTILHO, havia um sentimento generalizado de

    impunidade, tendo em vista que os administradores no eram sancionados penalmente

    porque suas condutas no se enquadravam na definio de crimes ou a responsabilidade

    pessoal era de difcil comprovao, dissimulada em deliberaes coletivas da empresa57

    . Tal

    sensao acaba expressamente consignada na exposio de motivos de mencionado PL

    273/1982:

    O presente projeto representa a velha aspirao das autoridades e do povo no sentido

    de reprimir com energia as constantes fraudes observadas nos sistema financeiro

    nacional, especialmente no mercado de ttulos e valores mobilirios.

    Os cofres pblicos, em funo da preocupao governamental de preservar a

    confiana no sistema, vm sendo largamente onerados com verdadeiros escndalos

    financeiros sem que os respectivos culpados recebam a punio adequada, se que

    chegam a receb-la.

    A grande dificuldade do enquadramento desses elementos inescrupulosos, que lidam

    fraudulentamente ou temerariamente, com valores do pblico, reside na inexistncia

    de legislao especfica para as irregularidades que surgiram com o advento de

    novas e mltiplas atividades no sistema financeiro nacional, especialmente aps

    196458

    .

    O projeto foi aprovado ignorando anteprojetos anteriores elaborados por comisses

    tcnicas, o que acabou por prejudicar sobremaneira a qualidade de seus dispositivos. A pressa

    com que a lei foi aprovada visava o seu alto carter simblico na punio dos ricos e

    poderosos e a necessidade de se romper com as ms relaes entre o regime militar e os

    grupos financeiros nesse perodo de redemocratizao59

    .

    De todo modo, a Lei foi proposta e aprovada no intuito de reforar a tutela tendente a

    assegurar a normalidade do sistema financeiro nacional, resguardando os interesses da

    57

    CASTILHO, Ela Wiecko Volkmer de. O controle Penal nos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional.

    Belo Horizonte: Del Rey, 1998. p. 126. 58

    FELDENS, Luciano. Gesto fraudulenta e temerria de instituio financeira: contornos identificadores do

    tipo. In VILARDI, Celso Sanchez; PEREIRA, Flavia Rahal Bresser; DIAS NETO, Theodomiro (coordenadores)

    Direito Penal Econmico: crimes financeiros e correlatos. So Paulo: Saraiva, 2011. p. 84. 59

    CASTILHO, Ela Wiecko Volkmer de. O controle Penal nos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional.

    Belo Horizonte: Del Rey, 1998. p. 133.

  • 26

    coletividade (depositantes e demais usurios)60

    , tendo em vista a marcada ineficincia

    regulatria em mbito administrativo, que no obteve xito em estancar os abusos e fraudes

    gerenciais, implicando a aplicao de vultuosos recursos na conteno dos efeitos negativos

    de aludidas manobras lanavam ao restante do sistema61

    .

    A precria tcnica legislativa, contudo, levou estruturao de seus dispositivos

    pautados no desvalor do agente e no no desvalor da ao, criando-se a presuno de perigo

    ao sistema financeiro nacional, como se este ltimo fosse o bem jurdico protegido62

    .

    No por outra razo, grande parte da doutrina comumente assinala que os bens

    jurdicos tutelados pela Lei 7.492/86 seriam a boa execuo da poltica de governo63

    ; a

    credibilidade do Sistema Financeiro Nacional e de suas instituies64

    , dentre outras

    expresses afins.

    Assinalava JOO MARCELO DE ARAJO, referindo-se ao diploma em geral: a despeito

    da leso ao patrimnio individual que possam causar, a tnica da reprovao social est

    centrada na ameaa do dano que representam para o sistema financeiro, que se caracteriza

    como um interesse jurdico supraindividual65

    .

    JOS CARLOS TRTIMA, ao abordar o artigo 4 de mencionado diploma legal, principal

    delito e mais severamente apenado, destaca que o objeto de tutela , em primeiro plano, a

    estabilidade e a higidez do Sistema Financeiro Nacional, indispensveis boa execuo da

    poltica econmica de governo, concretamente avaliados. E, secundariamente, a proteo dos

    investidores e o prprio mercado financeiro, tanto do risco moral quanto sistmico,

    decorrentes de gestes passveis de ofender a confiabilidade e a higidez do Sistema Financeiro

    como um todo66

    .

    60

    FELDENS, Luciano. A estrutura material dos delitos de gesto fraudulenta e temerria de instituio

    financeira. Revista Brasileira de Cincias Criminais, So Paulo, v. 18, n. 86, p. 170-200, set./out. 2010. p. 177. 61

    FELDENS, Luciano. Gesto fraudulenta e temerria de instituio financeira: contornos identificadores do

    tipo. In VILARDI, Celso Sanchez; PEREIRA, Flavia Rahal Bresser; DIAS NETO, Theodomiro (coordenadores)

    Direito Penal Econmico: crimes financeiros e correlatos. So Paulo: Saraiva, 2011. p. 84. 62

    MALAN, Diogo. Bem jurdico tutelado pela Lei 7.492/1986. In BOTTINO Thiago. Direito penal e economia.

    Rio de Janeiro: Elsevier/GV, pp. 37-58, 2012. p. 52. 63

    PIMENTEL, Manoel Pedro. Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional: Comentrios Lei 7.492/86, de

    16.6.86. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1987. p. 34, 44, 50. 64

    MAIA, Rodolfo Tigre. Dos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional. So Paulo: Malheiros, 1996. p. 48. 65

    ARAJO JUNIOR, Joo Marcello. Dos Crimes contra a ordem econmica. So Paulo: Revista dos Tribunais,

    1995. p. 145-146. 66

    TRTIMA, Jos Carlos. Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional. Rio de Janeiro: Lmen Jris, 2000. p.

    51.

  • 27

    CEZAR BITENCOURT, por seu turno, aduz que as instituies financeiras enquanto

    entidades individualmente relevantes no sistema financeiro, tambm so objeto de tutela

    penal, inclusive aquelas pertencentes iniciativa privada. Nesse sentido, sustenta que a lei

    visa proteger a lisura, a correo e a honestidade das operaes atribudas e efetivadas pelas

    instituies financeiras e assemelhadas, posto que o bom funcionamento do sistema financeiro

    como um todo repousa na confiana que a coletividade lhes deposita. Assim sendo, concluem

    que a credibilidade um atributo que assegura o regular e exitoso funcionamento do sistema

    financeiro como um todo67

    .

    DIOGO MALAN, com preciso dogmtica, alerta para o fato de que todos esses

    conceitos partilham de duas caractersticas essenciais: impreciso terico conceitual e tutela

    de polticas estatais ou funes da administrao pblica. A consequncia direta de tal

    constatao o esvaziamento do contedo material do conceito de bem jurdico penal e o

    subsequente recrudescimento do poder punitivo estatal68

    .

    Com efeito, possibilita-se um juzo de subsuno puramente formal s normas, pela

    simples soma de suas elementares tpicas, descontextualizado dos pressupostos que

    justificaram a interveno penal no mbito econmico financeiro e da verificao da real

    potencialidade lesiva sobre o bem jurdico tutelado por esse diploma legal.

    Aludidas concepes descaracterizam completamente o instituto do bem jurdico-

    penal, lhe suprimindo toda carga de concretude e utilidade prtica na legitimao e

    interpretao de preceitos incriminadores69

    .

    No h dvidas que os interesses da coletividade (depositantes e demais usurios do

    sistema financeiro nacional), sua destinatria por disposio constitucional, conforme artigo

    192 desse diploma legal70

    , como j antes mencionado, podem ser bens jurdicos, mas a sua

    eleio categoria de bens jurdico-penais exige uma carga maior de preciso e contedo

    valorativo, a possibilitar o exerccio das funes de aludido instituto.

    67

    BITENCOURT, Cezar Roberto; BREDA, Juliano. Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional & contra o

    Mercado de Capitais. Rio de Janeiro: Lmen Jris, 2010. p. 80. 68

    MALAN, Diogo. Bem jurdico tutelado pela Lei 7.492/1986. In BOTTINO Thiago. Direito penal e economia.

    Rio de Janeiro: Elsevier/GV, pp. 37-58, 2012. p. 38.. 69

    MALAN, Diogo. Bem jurdico tutelado pela Lei 7.492/1986. In BOTTINO Thiago. Direito penal e economia.

    Rio de Janeiro: Elsevier/GV, pp. 37-58, 2012. p. 51. 70

    Art. 192 "Art. 192 - O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento

    equilibrado do Pas e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compe, abrangendo as

    cooperativas de crdito, ser regulado por leis complementares que disporo, inclusive, sobre a participao do

    capital estrangeiro nas instituies que o integram".

  • 28

    De fato, sustentar a tipificao de condutas no mbito do sistema financeiro nacional

    visando promover o desenvolvimento equilibrado do pas e a servir aos interesses da

    coletividade, contribui apenas para que toda e qualquer criminalizao tenha aparente

    compatibilidade vertical com a Lei Maior71

    , exigindo-se um maior aprofundamento dos

    valores a serem protegidos, sob pena de violao, como dito, das funes de garantia a serem

    desempenhadas pelo bem jurdico.

    Nesse contexto, h que se diferenciar a ratio legis da tutela pretendida, do bem

    jurdico-penal pretensamente tutelado. Nesses termos, a boa execuo da poltica de

    governo72

    ; a credibilidade do Sistema Financeiro Nacional e de suas instituies73

    , a

    estabilidade e a higidez do Sistema Financeiro Nacional74

    , so a razo da tutela legal, mas

    no, necessariamente, o bem jurdico-penal por ela tutelado75

    O mercado financeiro e a economia podem ser objetos de disciplina jurdica, porm a

    regulamentao deve se voltar tutela de valores fundamentais do subsistema que compe

    essa subpoltica econmica sem olvidar de seu referencial individual quando da interveno

    jurdico-penal.

    Nessa senda, partindo do mbito de incidncia tutelado pela Lei 7.492/86

    instituies financeiras importa verificar seu contedo conceitual e valorativo, bem como

    seus eventuais reflexos no bem jurdico a ser eleito digno de tutela penal.

    Nesses termos, partindo da acepo terico-conceitual disposta no artigo 1 de

    mencionada lei, verifica-se que instituio financeira, para fins jurdico-penais, toda a

    pessoa jurdica de direito pblico ou privado que tenha como atividade principal ou acessria,

    cumulativamente ou no, a captao, intermediao ou aplicao de recursos financeiros de

    terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, ou a custdia, emisso, distribuio, negociao,

    intermediao ou administrao de valores mobilirios.

    71

    BREDA, Juliano. Gesto Fraudulenta de Instituio Financeira e Dispositivos Processuais da Lei 7.492/86.

    Rio de janeiro: Renovar, 2002. p. 50. 72

    PIMENTEL, Manoel Pedro. Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional: Comentrios Lei 7.492/86, de

    16.6.86. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1987. p. 34, 44, 50. 73

    MAIA, Rodolfo Tigre. Dos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional. So Paulo: Malheiros, 1996. p. 48. 74

    TRTIMA, Jos Carlos. Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional. Rio de Janeiro: Lmen Jris, 2000. p.

    51. 75

    MALAN, Diogo. Bem jurdico tutelado pela Lei 7.492/1986. In BOTTINO Thiago. Direito penal e economia.

    Rio de Janeiro: Elsevier/GV, pp. 37-58, 2012. p. 52.

  • 29

    Tambm so a instituies financeiras equiparadas a pessoa jurdica que capte ou

    administre seguros, cmbio, consrcio, capitalizao ou qualquer tipo de poupana, ou

    recursos de terceiros; II - a pessoa natural que exera quaisquer das atividades referidas neste

    artigo, ainda que de forma eventual.

    Decorre de tal constatao que o mbito de incidncia da norma est atrelado s

    atividades das instituies financeiras voltadas gesto profissional, mediante oferta pblica,

    de ativos financeiros de terceiros (propriedade alheia), do que possvel concluir que esses

    ativos consistam, efetivamente, no bem jurdico tutelado pela norma, como bem apontado por

    DIOGO MALAN76

    .

    Se se busca a tutela da seara econmico-financeira e dos riscos sistmicos a ela

    inerentes, considerando que seu principal mbito de atuao a gesto de ativos de

    propriedade alheia, no h dvidas que o referencial individual de tal tutela, no outro seno

    o patrimnio pblico e privado investidos nessas instituies77

    .

    Como antes mencionado, o sistema financeiro nacional no um fim em si mesmo,

    mas um meio para concretizao de um fim individual relevante, ainda que em sua acepo

    coletiva (ou supraindividual).

    A interpretao segundo o contexto de edio da Lei 7.492/86 tambm corrobora tal

    assertiva, eis que a preocupao estava voltada aos prejuzos decorrentes das fraudes

    perpetradas no mbito econmico-financeiro, fazendo meno expressa a episdio

    especfico78

    , cujos danos patrimoniais foram considerveis a diversos investidores. De tal

    constatao, possvel supor que a proteo desse patrimnio foi o intuito precpuo do

    legislador.

    Alm disso, reinterpretando a lei conforme os postulados constitucionais de 1988 se

    verifica que tal acepo de bem jurdico encontra respaldo tanto no mandamento

    constitucional para que sejam responsabilizados individualmente os dirigentes da pessoa

    76

    MALAN, Diogo. Bem jurdico tutelado pela Lei 7.492/1986. In BOTTINO Thiago. Direito penal e economia.

    Rio de Janeiro: Elsevier/GV, pp. 37-58, 2012. p. 40. 77

    MALAN, Diogo. Bem jurdico tutelado pela Lei 7.492/1986. In BOTTINO Thiago. Direito penal e economia.

    Rio de Janeiro: Elsevier/GV, pp. 37-58, 2012. p. 52. 78

    Segundo menciona Diogo Malan, trata-se do caso Tieppo: fraude financeira de grandes propores

    envolvendo operaes no mercado paralelo de cmbio e com obrigaes reajustveis do tesouro nacional

    (ORTNs). Tal fraude supostamente causou prejuzo total de Cr$ 1.5000.000,00 (um milho e meio de cruzeiros)

    a cerca de 1.000 (mil) investidores quela poca. MALAN, Diogo. Bem jurdico tutelado pela Lei 7.492/1986. In

    BOTTINO Thiago. Direito penal e economia. Rio de Janeiro: Elsevier/GV, pp. 37-58, 2012. p. 54.

  • 30

    jurdica pelos atos praticados contra a ordem econmico e financeira, consoante disposio

    contida no artigo 173, 3, da Constituio de 1988. Como tambm, na proteo conferida

    propriedade privada, princpio reitor da ordem econmica jurdico constitucional, consoante

    artigo 170, II, do mesmo diploma legal.

    Em sntese, parte-se do pressuposto que a Lei 7.492/86, na linha do entendimento

    expressado por DIOGO MALAN, visa, em ltima anlise, tutelar o patrimnio pblico e privado

    investido nas instituies financeiras inseridas no mbito econmico-financeiro.

    Tal constatao tem singular importncia na anlise do delito de gesto fraudulenta,

    principal tipo penal e delito mais severamente apenado por mencionado diploma legal. Com

    efeito, tal reflexo hermenutica delimita o legtimo exerccio punitivo estatal quelas

    condutas que realmente sejam ofensivas ao bem jurdico tutelado pela norma, fixando-o como

    norte interpretativo do dispositivo legal a seguir abordado.

  • 31

    2. O CRIME DE GESTO FRAUDULENTA DE INSTITUIO FINANCEIRA

    Gerir fraudulentamente instituio financeira:

    Pena Recluso, de 3 (trs) a 12 (doze) anos, e multa

    2.1 CONSIDERAES PRELIMINARES

    A conduta delituosa prevista no artigo 4 da Lei 7.492/86 j estava contemplada na

    ainda vigente Lei de Economia Popular (Lei 1.521/51), sendo esta a antecedente mais genuna

    do crime em questo.

    O inciso IX do artigo 3 de aludida Lei dispe que:

    Gerir fraudulentamente ou temerariamente bancos ou estabelecimentos bancrios, ou

    de capitalizao, sociedades de seguros, peclios ou penses vitalcias; sociedades

    para emprstimos ou financiamento de construes e vendas de imveis a

    prestaes, com ou sem sorteio ou preferncia por meio de pontos ou quotas; caixas

    econmicas; caixas Raiffeisen; caixas mtuas, de beneficncia, socorros ou

    emprstimos, caixas de peclios, penso e aposentadoria; caixas construtoras,

    cooperativas; sociedades de economia coletiva, levando-as falncia ou

    insolvncia, ou no cumprindo qualquer das clusulas contratuais com prejuzo dos

    interessados.

    Referida norma, ainda que muito anterior edio da Lei 7.492/86, apresenta duas

    grandes vantagens em sua estrutura tpica, caracterizadas pela exigncia de satisfao de duas

    elementares tpicas, que funcionam como verdadeiras condicionantes, quais sejam: levando-

    as falncia ou insolvncia, ou no cumprindo qualquer das clusulas contratuais com

    prejuzo dos interessados.

    Ocorre que, como h muito asseverou MANOEL PEDRO PIMENTEL, o novo texto legal

    que culminou na redao prevista na Lei dos Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional

    ignorou o anteprojeto da Comisso de Reforma da Parte Especial, e respectivas emendas,

  • 32

    preferindo uma redao concisa e sem elementares79

    . Nesse passo, o tipo do art. 4 da Lei

    7.492/86, justamente em face de sua abertura conceitual, passou a ser alvo de severas crticas,

    ainda mais porque, alm de genrico, o tipo legal que prev a maior sano dentre aquelas

    abstratamente cominadas na Lei 7.492/86.

    Ao retirar tais elementos, o legislador criou um tipo genrico, exigindo-se unicamente

    o emprego de fraudes na administrao da instituio, desconectadas de qualquer resultado,

    mas mantendo a grave sano de 03 a 12 anos de recluso.

    Ne