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Universidade do Estado do Pará Centro de Ciências Sociais e Educação Programa de Pós-Graduação em Educação PRÁTICAS DE LETRAMENTO E EDUCAÇÃO NAS VOZES DE CRIANÇAS: LER E ESCREVER ENTRE OS SENTIDOS E OS BENS CULTURAIS NA ILHA DE CARATATEUA-PA Belém PA 2018

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Universidade do Estado do Pará Centro de Ciências Sociais e Educação Programa de Pós-Graduação em Educação

PRÁTICAS DE LETRAMENTO E EDUCAÇÃO NAS VOZES DE

CRIANÇAS: LER E ESCREVER ENTRE OS SENTIDOS E OS BENS

CULTURAIS NA ILHA DE CARATATEUA-PA

Belém – PA 2018

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NATÁLIA PASSOS FERNANDES

PRÁTICAS DE LETRAMENTO E EDUCAÇÃO NAS VOZES DE CRIANÇAS: LER E ESCREVER ENTRE OS SENTIDOS E OS BENS CULTURAIS NA ILHA DE CARATATEUA-PA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação – Mestrado, do CCSE, como requisito parcial para a obtenção de título de Mestre em Educação. Linha de Pesquisa: Saberes Culturais e Educação na Amazônia Orientadora: Profª. Dr. Maria do Perpétuo Socorro Cardoso da Silva

Belém-PA 2018

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NATÁLIA PASSOS FERNANDES

PRÁTICAS DE LETRAMENTO E EDUCAÇÃO NAS VOZES DE CRIANÇAS: LER E ESCREVER ENTRE OS SENTIDOS E OS BENS CULTURAIS NA ILHA DE CARATATEUA-PA

BANCA EXAMINADORA ______________________________________________________ Profª. Dr. Maria do Perpétuo Socorro Cardoso da Silva Orientadora – Universidade do Estado do Pará – UEPA

______________________________________________________ Profª. Dr. Laura Maria Silva Araújo Alves Examinadora – Universidade Federal do Pará – UFPA ______________________________________________________ Profº. Dr. José Anchieta de Oliveira Bentes Examinador – Universidade do Estado do Pará – UEPA

Apresentada em: ________/________/________

Conceito: __________________________

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Ao meu filho, Luiz Vicente, que me faz resgatar meus

“olhos de criança” e por meio de suas brincadeiras me

inspira a pensar pensamentos novos, e para as crianças

da Escola Bosque, que também me ensinam a ser

professora com exercícios de ser criança, com todo o meu

profundo amor!

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AGRADECIMENTOS

Ao iniciar estes agradecimentos, lembro-me das sábias palavras de meu avô,

quando dizia: “Filhinha, gratidão é a única dívida que não prescreve!”.

A Deus, pela dádiva da vida e pelas dificuldades e conquistas diárias que me

ensinam a ser mais humana.

Aos meus pais, Mauro Calandrini e Rosalina Fernandes, pelos valores ensinados,

incentivo e ajuda nessa caminhada acadêmica.

Aos meus avós, Vicente (in memorian) e Valentina (in memorian), por todo amor a

mim dedicado e pelos sábios ensinamentos.

Aos meus irmãos, Paula e Marcelo, por terem tornado minha infância mais alegre e

pela amizade e cumplicidade na vida adulta.

Ao meu tio Alexandre, sua esposa Fátima e meus primos Daniel e Giovanna, pelo

incentivo e palavras acolhedoras nos momentos de dificuldades e dúvidas.

A toda minha família, pelo carinho incondicional.

Ao meu grande companheiro e marido, Luís Alberto, que esteve nos momentos da

pesquisa de campo nas casas das famílias me ajudando e compartilhando ideias

para a pesquisa e, sem medir esforços, divide comigo a grande missão de educar

nosso filho Luiz Vicente, que nasceu durante o percurso do mestrado. Muitas vezes

ele o carregou sozinho para que eu pudesse concluir esta etapa de minha vida

acadêmica. Amo-te. O amor é infinitamente mais forte!

Às minhas amigas do coração, Fernanda, Andrea, Joana e Yasmin, que trabalham

comigo na Escola Bosque e fazem meus dias mais leves na difícil tarefa de ensinar

em uma instituição pública.

À professora Joana, em especial, que contribuiu com este trabalho, dando-me todo

apoio necessário e literalmente abrindo as portas de sua sala de aula!

A todos os meus colegas de turma, a qual carinhosamente convencionamos chamar

de Rio 12. Rio de águas quentes e acolhedoras, onde navegamos e partilhamos

muitos saberes e experiências que deixaram marcas indeléveis em mim.

À minha orientadora, mais do que orientadora e, sim, amiga, Socorro Cardoso, toda

minha profunda admiração e respeito pelo incentivo e saberes partilhados. Que

acreditou em mim muitas vezes mais do que eu mesma! E, nos momentos em que

pensei em desistir, seu incentivo foi fundamental para retomar a caminhada.

Obrigada, querida!

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Às professoras Denise, Josebel e Nazaré, pelas vivências e reflexões

proporcionadas na disciplina Saberes.

Ao Programa de Pós-graduação em Educação, em especial, aos secretários

Jorginho e Joaquim, por todo empenho em colaborar em todos os momentos que

precisei.

À Escola Bosque, sob a coordenação de Larina, por ter acolhido a minha pesquisa,

dando-me todo apoio necessário, e por ter concedido a licença total para cursar o

mestrado.

À UEPA, por ter concedido a licença parcial de estudo, sem a qual seria impossível

realizar este estudo.

Às crianças desta pesquisa e seus familiares, pela possibilidade de conhecer suas

práticas de letramento e por me tratarem com muito carinho e respeito, contribuindo

de forma fundamental para a execução deste trabalho.

A todos, GRATIDÃO!

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“Uma reconfiguração do letramento como prática social crítica exige que levemos em conta essas perspectivas históricas e também transculturais na prática de sala de aula e que auxiliemos os alunos a situar suas práticas de letramento.”

Brian Street

“As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.”

Carlos Drummond de Andrade

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RESUMO

Este estudo apresenta uma pesquisa sobre a temática do letramento como prática social. Tem-se como lócus a Ilha de Caratateua, mais conhecida como Outeiro. Esta investigação se justifica por pesquisar práticas que não foram descritas na ilha referida. A fim de responder ao questionamento: que práticas de letramento são vivenciadas pelas crianças na comunidade da Ilha de Caratateua-PA?, delimitou-se como objetivo geral analisar as práticas de letramento vivenciadas pelas crianças da referida comunidade para contribuir com as práticas pedagógicas escolares. Os objetivos específicos foram: mapear os eventos de letramento que as crianças vivenciam (nos domínios lazer, religião, escolar, comercial); identificar os gêneros e suportes presentes nas práticas de letramento das crianças; e registrar os dizeres das crianças sobre os sentidos atribuídos às suas práticas de letramento. Trata-se de uma pesquisa de campo, de abordagem qualitativa. Os sujeitos são 4 (quatro) crianças entre oito e dez anos, três meninos e uma menina, que estudavam no 3º ano do Ensino Fundamental (Ciclo I) na Escola Bosque. Os instrumentos utilizados na coleta de dados foram: observação participante; diário de campo; entrevista semiestruturada; entrevista em aberto e diário de letramento. Na análise dos dados, foram utilizados os estudos de Street (2010, 2012 e 2014), e os fundamentos teóricos da Sociologia da Infância vieram de Corsaro (2011), Spinelli e Quinteiro (2015), entre outros. Os resultados mostram que as crianças são agentes culturais ativos que vivenciam práticas culturais, além das práticas escolares, como práticas de letramento religiosa, práticas de letramento comercial, práticas de letramento digital, práticas de letramento voltadas para o entretenimento, lazer em família, comunicação interpessoal e atividades de organização da vida diária (listas de compras, pagamento de contas). Considera-se que os dados levantados e analisados colocam os educadores diante da possibilidade de ampliar as práticas de letramento escolares a partir dos letramentos vivenciados no ambiente familiar, na comunidade e em suas implicações ideológicas.

Palavras-chave: Práticas de letramento. Eventos de letramento. Leitura e escrita. Gênero textual.

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ABSTRACT

This study presents a research on the theme of literacy as a social practice. It has as a locus of research the Caratateua Island, better known as Outeiro. This research is justified by researching practices that were not described in the referred island. The dissertation problematized: what practice of literacy are experienced by the children in the community of Caratateua Island - PA? In order to answer this question, it was defined as a general objective to analyze the literacy practices experienced by the children of said community to contribute to the pedagogical practices of the school. The specific objectives were: to map the literacy events that children experience (in the different domains of leisure, religion, school, commercial); identify the genres and supports present in children's literacy practices; and record the words of children about the meanings attributed to their literacy practices. This is a field research, with a qualitative approach. The subjects are 4 (four) children between 8 and 10 years old, three boys and one girl, who studied in the 3rd year of elementary school (Cycle I) at Bosque School. The instruments used in the data collection were: participant observation; field journal; semi structured interview; open interview and literacy journal. In the analysis of the data, we used the studies of Street (2010, 2012 and 2014), and the theoretical foundations of Sociology of Childhood came from Corsaro (2011), Spinelli and Quinteiro (2015), among others. The results show that children are active cultural agents who experience cultural practices, in addition to school practices, such as religious literacy practices, commercial literacy practices, digital literacy practices, literacy practices oriented toward entertainment, family leisure, interpersonal communication and activities of organization of daily life (shopping list, payment of bills). We consider that the data collected and analyzed put educators before the possibility of expanding the school literacy practices from the literacies experienced in the family environment, in the community and in their ideological implications.

Key-words: Literacy practices. Literacy events. Reading and writing. Textual genre.

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LISTA DE QUADROS Quadro 1 – Panorama de produções acadêmicas do PPGED-UEPA 18 Quadro 2 – Panorama de produções acadêmicas (teses) da CAPES 19 Quadro 3 – Panorama de produções acadêmicas (dissertações) da CAPES 21 Quadro 4 – Perfil dos entrevistados 66 Quadro 5 – Exemplo do quadro síntese dos primeiros sentidos mapeados 80 Quadro 6 – Exemplo do quadro síntese dos eventos de letramento no ambiente familiar

81

Quadro 7 – Exemplo do quadro síntese dos eventos mapeados nos diários 82 Quadro 8 – Sentidos mapeados nas primeiras entrevistas 105 Quadro 9 – Práticas de letramento de Caleu 111 Quadro 10 – Evento “Honra teu pai e tua mãe” 113 Quadro 11 – Evento “A bíblia das criancinhas” 117 Quadro 12 – Leitura da bíblia pela avó 123 Quadro 13 – Registro do diário de Caleu 124 Quadro 14 – Práticas de letramento de Caleu 128 Quadro 15 – Práticas de letramento identificadas a partir do diário de Caleu 129 Quadro 16 – Quadro do diário de Amora 131 Quadro 17 – “Cartas ao pai” 134 Quadro 18 – Práticas de letramento identificadas a partir do diário de Amora 137 Quadro 19 – Transcrição da brincadeira “adedonha” de Bernardo 140 Quadro 20 – Práticas de letramento identificadas na 4ª entrevista na casa de Bernardo

142

Quadro 21 – Transcrição do diário de letramento de Davi 143 Quadro 22 – Práticas de letramento identificadas a partir do diário de Davi 147

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Placa sinalizando Outeiro 55 Figura 2 – Ilha de Caratateua 55 Figura 3 – Foto da ponte Enéas Pinheiro 56 Figura 4 – Vista do Rio Maguari 56 Figura 5 – 1ª Escola de Iniciação Agrícola Manoel Barata, em 1952 57 Figura 6 – Parada Matinal do CEFAP, em 1986, na ilha de Caratateua 58 Figura 7 – Mapa turístico de Outeiro 59 Figura 8 – Rua Manoel Barata 61 Figura 9 – Rua Paulo Costa 61 Figura 10 – Rua das Mangueiras 62 Figura 11 – Foto da entrada da Escola Bosque 64 Figura 12 – Capas dos livros da trilogia Minecraft 108 Figura 13 – Foto de Caleu lendo o livro “De volta ao jogo” 109 Figura 14 – Foto de Amora lendo sua bíblia 113 Figura 15 – Bernardo lendo “A Bíblia das criancinhas” 116 Figura 16 – “A Bíblia das criancinhas” aberta nas histórias de Jonas e Daniel 116 Figura 17 – Bíblias da avó de Davi 121 Figura 18 – Avó de Davi fazendo a leitura da bíblia para o neto 122 Figura 19 – Bíblia aberta nos textos lidos pela avó de Davi 123 Figura 20 – Jogos utilizados por Caleu e sua família 126 Figura 21 – Caleu jogando vídeo game 126 Figura 22 – Diário de letramento de Caleu 130 Figura 23 – Diário de letramento de Amora 131 Figura 24 – Carta feita por Amora para seu pai 133 Figura 25 – Página virtual de um catálogo Tupperware 135 Figura 26 – Frases registradas por Bernardo em um caderno velho 138 Figura 27 – Desenhos feitos por Bernardo 139 Figura 28 – Escrita de Bernardo na brincadeira “Nome, objeto” 139 Figura 29 – Jogo caça palavras (imagem da tela do celular) 141 Figura 30 – Diário de letramento de Davi 142 Figura 31 – Diário de letramento de Davi (continuação) 143

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LISTA DE SIGLAS FUNBOSQUE – Centro de Referência em Educação Ambiental Escola Bosque Professor Eidorfe Moreira ANA – Avaliação Nacional da Alfabetização PNAIC – Pacto Nacional de Alfabetização na Idade Certa UEPA – Universidade do Estado do Pará CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior ONU – Organização das Nações Unidas ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente BRT Belém – Sistema Bus Rapid Transit Belém CFAP – Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças da Polícia do Estado do Pará DAOUT – Distrito Administrativo do Outeiro EJA – Educação de Jovens e Adultos AMA – Agentes e Monitores ambientais PPGED-UEPA – Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade do Estado do Pará PPA – Projeto Pedagógico de Apoio ENCCEJA – Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos

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Sumário INTRODUÇÃO ....................................................................................................................... 14

Seção II ................................................................................................................................... 25

LETRAMENTO COMO PRÁTICA SOCIAL E O LUGAR DA CRIANÇA NAS PESQUISAS BRASILEIRAS NO ÂMBITO DA SOCIOLOGIA DA INFÂNCIA ............. 25

2.1. ABORDAGENS SOBRE LETRAMENTO ............................................................... 25

2.2 LETRAMENTOS SOCIAIS – A ABORDAGEM ANTROPOLÓGICA DE BRIAN STREET .............................................................................................................................. 29 2.2.1 Letramento colonial e letramento dominante ...................................................... 32

2.2.2 Práticas de letramento e eventos de letramento ................................................ 37

2.2.3 A teoria da “grande divisão” e alguns mitos sobre o letramento ...................... 40

2.2.4 A pesquisa de práticas letradas em uma perspectiva transcultural ................ 44 2.3 A CRIANÇA NA PESQUISA EDUCACIONAL BRASILEIRA ............................... 48

Seção III .................................................................................................................................. 53

PERCURSO METODOLÓGICO ......................................................................................... 53 3.1. ILHA DE CARATATEUA – BREVE HISTÓRICO ................................................. 54

3. 1. 2 Escola Bosque ....................................................................................................... 62 3.2 CARACTERIZAÇÃO DOS SUJEITOS DA PESQUISA ........................................ 64

3.3 PRODUÇÃO E ANÁLISE DE DADOS ..................................................................... 68

3.3.1 Observação participante e diário de campo ........................................................ 70 3.3.2 Entrevistas semiestruturadas com os sujeitos na escola .................................. 71

3.3.3 Entrevistas em aberto com as crianças e seus responsáveis no ambiente familiar ................................................................................................................................. 75 3.3.4 Diários de letramento: aplicação e recolhimento ................................................ 76

3.3.5 O processo de análise dos dados ......................................................................... 78 Seção VI .................................................................................................................................. 83

PRÁTICAS DE LETRAMENTO NA VOZ DE CRIANÇAS DA ILHA DE CARATATEUA-PA ................................................................................................................. 83

4.1 PRÁTICAS DE LETRAMENTO: OS SENTIDOS IDENTIFICADOS NOS PRIMEIROS ENCONTROS COM AS CRIANÇAS NA ESCOLA .............................. 83

4.1.1 Do ler e escrever ...................................................................................................... 84

4.1.2. Dos bens culturais: internet, cinema, circo e biblioteca ................................... 87

4.1.3. Do fenômeno religioso: a bíblia e as atividades na igreja ................................ 94

4.1.4 Da escola .................................................................................................................. 98

4.2 PRÁTICAS DE LETRAMENTO: EVENTOS DE LETRAMENTO REGISTRADOS NOS ENCONTROS COM AS CRIANÇAS EM SEU AMBIENTE FAMILIAR .......................................................................................................................... 105

4.2.1 Evento “De volta ao jogo” ................................................................................. 105 4.2.2 Evento “Honra teu pai e tua mãe” ................................................................... 110

4.2.3 Evento “A Bíblia das criancinhas” ....................................................................... 113

4.2.4 Evento “Leitura da bíblia pela avó” ................................................................. 117 4.3 DIÁRIOS DE LETRAMENTO .................................................................................. 123

4.3.1 Diário de Caleu ................................................................................................... 124 4.3.2 Diário de Amora ................................................................................................. 131

4.3.3 O não registro do diário de Bernardo ............................................................. 140 4.3.4 Diário de Davi ..................................................................................................... 145

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 151

REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 156

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INTRODUÇÃO

Letramento não é um gancho em que se pendura cada enunciado, não é treinamento repetitivo de uma habilidade, nem um martelo quebrando blocos de gramática. Letramento é diversão é leitura à luz de vela ou lá fora, à luz do sol. São notícias sobre o presidente, o tempo, os artistas da TV e mesmo Mônica e Cebolinha nos jornais de domingo. É uma receita de biscoito, uma lista de compras, recados colados na geladeira, um bilhete de amor, telegrama de parabéns e cartas de velhos amigos. É viajar para países desconhecidos, sem deixar sua cama, é rir e chorar com personagens, heróis e grandes amigos. É um atlas do mundo, sinais de trânsito, caças ao tesouro, manuais, instruções, guias, e orientações em bulas de remédios, para que você não fique perdido. Letramento é sobretudo, um mapa do coração do homem, uma mapa de quem você é, e de tudo o que você pode ser.

(Kate M Chong)

A presente dissertação, desenvolvida no Programa de Pós-graduação em

Educação da Universidade do Estado do Pará (PPGED-UEPA), tem centralidade nos

temas: letramento (s), educação e criança. A investigação analisou as práticas de

letramento vivenciadas pelas crianças da Ilha de Caratateua-PA para compreender

suas lações além das práticas de letramento escolares.

O interesse pessoal pela temática remonta às memórias de infância, de minha

inserção no mundo letrado e de meus primeiros contatos com a escrita e com os

livros da literatura infantil. Está relacionado a desejar compreender meu próprio

processo de letramento. Sendo assim, não posso prescindir de minha memória

pessoal nesse assunto.

Na infância, meu avô contava as lendas da região e lia livros de história para

mim. Havia vários de capa vermelha e toda noite escolhia um para ele ler; era a

coleção “Mundo da Criança”. Ouvia atenta a leitura dele. Em sua voz e performance,

as palavras ganhavam cores, sabores e eu podia ver sentimentos. Ficava encantada

e com vontade de entender aqueles rabiscos e ler sozinha. A escrita ganhava

sentidos por meio de toda a poesia que me era proporcionada viver.

Na escola, aprendi a decodificar a escrita na cartilha A Casinha Feliz, aos quatro

anos com a professora Eliana. Lembro-me que o primeiro livro que consegui ler

sozinha tinha por título A margarida friorenta, de Fernanda Lopes de Almeida.

Depois vieram A bolsa Amarela, O sofá estampado, O Pequeno Príncipe, Fábulas

de Monteiro Lobato, gibis de Maurício de Souza, O cortiço, poesias de Cecília

Meireles e muitos outros. Algumas dessas leituras foram cobradas pela escola, mas

também foram prazerosas.

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A rua também era um local de aprendizagem; era local para comprar

algodão doce, pipoca, picolés de frutas, com a “mesada” (dinheiro) que meus pais

me davam. Havia as brincadeiras de roda com as crianças vizinhas, pira-esconde,

pira-pega, cemitério, bandeirinha, amarelinha, brincar de professora e muitas outras.

Tínhamos momentos de contar histórias de assombração, lendas. São imagens,

sons e cores que foram permeando e constituindo o meu imaginário amazônico

desde minha infância e traçando minha trajetória enquanto leitora.

O mapa de meu letramento sofreu/sofre contínuos retoques à media que

passo a pertencer a novos grupos. Comecei a arriscar minhas primeiras escritas

com cartinhas de amor destinadas aos meus avós, anotando as receitas, segredos

de família, depois cartinhas às amigas, às professoras, na adolescência com um

diário. A partir da proliferação das tecnologias digitais, precisei desenvolver novas

linguagens e maneiras de me relacionar com a escrita, como ter endereço

eletrônico, aprender a redigir e-mail, utilizar correio eletrônico e redes sociais,

vinculadas à comunicação mediada por computador e outros recursos tecnológicos,

como o celular.

No ano de 1999, terminei o ensino médio e, portanto, tive que optar por um

curso para prestar vestibular. Escolhi o curso de Pedagogia, porque me chamou

atenção o fato de esta área estudar a aprendizagem humana. Mais do que isso, a

opção traduzia uma vontade despertada na tenra idade, ser professora. Considero

que meu percurso leitor foi/é o ponto de partida para formar leitores. Durante o

curso, deparei-me com uma nova forma de escrita que precisava aprender e uma

série de teorias sobre a aprendizagem que me faziam refletir cada vez mais sobre

meu percurso como estudante.

Na faculdade, as aulas permitiram meu encontro com os escritos do

educador Paulo Freire; dele marcou-me a frase “a leitura do mundo precede a leitura

da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da

leitura daquele” (FREIRE, 2001, p. 29). Passei a compreender cada vez mais minha

leitura de mundo, antes de ler a palavra, por meio de sons, gestos, olhares,

expressões, cheiro e tato nas minhas relações com os outros. Rememoro como

criava e produzia sentidos para escrita desde a infância. Isso me fez começar a

compreender a natureza política e social do letramento.

Meu interesse acadêmico em investigar letramentos sociais se deu de forma

mais precisa no início de minha carreira docente no serviço público, no ano 2008,

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como professora de séries iniciais da Fundação Centro de Referência em Educação

Ambiental Escola Bosque Professor Eidorfe Moreira (FUNBOSQUE), na Ilha de

Caratateua-PA. Por meio desta experiência como alfabetizadora, percebi a

importância de conhecer e considerar os diversos letramentos das crianças e não

apenas prepará-las para a decodificação da escrita.

As dificuldades na alfabetização de crianças, com considerável habilidade

letrada, sempre me deixavam intrigada e cada vez mais eu queria entender as

experiências que as mesmas tinham com a leitura e a escrita fora da escola, ou que

estruturas sociais e culturais faziam com que obtivessem determinadas experiências

e concepções sobre a escrita.

No exercício do magistério, sempre observei crianças com diversas

habilidades letradas, por exemplo, há crianças que sabem lidar com dinheiro,

ajudam seus pais a fazer vendas, participam de coral na igreja, sabem utilizar o

ônibus como meio de transporte, contam uma história com coerência, fazem

desenhos bem elaborados sobre suas narrativas, recontam uma história

identificando o assunto principal, personagens e relacionam com seu cotidiano,

mexem no celular com muita habilidade... mas não apresentavam bom desempenho

nas avaliações oficiais.

O Pacto Nacional de Alfabetização na Idade Certa (PNAIC), um compromisso

formal e solidário assumido pelos governos Federal, do Distrito Federal, dos Estados

e dos Municípios, desde 2012, para atender à Meta 5 do Plano Nacional da

Educação (PNE), estabelece a obrigatoriedade de “Alfabetizar todas as crianças, no

máximo, até o final do 3º (terceiro) ano do ensino fundamental”, ou seja, todas as

crianças devem ser alfabetizadas até os 8 anos de idade (PNAIC, 2017, p. 3). Para

exemplificar, os resultados do ano de 2015 da Avaliação Nacional da Alfabetização

(ANA), que é um instrumento de avaliação do PNAIC, revelaram que

aproximadamente 25% das crianças brasileiras aos oito anos de idade e no 3º ano

do ensino fundamental conseguem apenas ler palavras simples e isoladas, escrever

textos básicos e fazer operações matemáticas elementares.

Tal constatação gera muitas discussões a respeito da forma como são

produzidos esses dados, bem como das condições de aprendizagem das crianças.

E, principalmente, das aprendizagens e saberes das crianças que não podem ser

mensuradas pela referida avaliação, haja vista que tais índices de alfabetismo não

traduzem o fenômeno das práticas culturais, entre elas o(s) letramento(s). Pois, o

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maior esforço consiste apenas em avaliar o quê os alunos sabem sobre textos

escritos. Os números também “são fichas num jogo político sobre recursos”

(STREET, 2014, p. 34).

Outras situações também me intrigavam, por exemplo, a formação de

professores no PNAIC e a Provinha Brasil, na prática, possuem uma concepção

dominante que reduz letramento a um conjunto de capacidades cognitivas a serem

medidas nos sujeitos. Outra questão é a ausência de formação continuada de

professores, para fomentar discussões sobre letramento, promovida pela

FUNBOSQUE e voltada para sua realidade.

Essas constatações empíricas impulsionam-me cada vez mais a entender as

experiências que as crianças têm com a leitura e escrita dos diversos domínios

sociais além da escola e, para quê e em quê utilizam a escrita, mesmo sem serem

plenamente alfabetizadas.

No ano de 2010, assumi o cargo de assessora pedagógica na UEPA. Um

momento importante, porque fui lotada no curso de Letras, o que me permitiu o

contato com profissionais que estudam o Letramento, assim, pude conhecer outros

autores que não tive a oportunidade na graduação, como Rojo, Kleiman, Tfouni e,

principalmente, a teoria sobre o letramento como prática social de Brian Street.

A partir das conceituações e abordagens sobre o letramento autônomo e

ideológico, com base em Street (2014), compreendi que o campo dos estudos do

letramento adquiriu, nos últimos anos, uma perspectiva epistemológica teórica e

transcultural. E uma das teses centrais é compreendê-lo como prática social, como

as pessoas interagem com textos escritos nos diferentes contextos históricos e

culturais.

Todo letramento é ideológico. E se as crianças não tinham sucesso nas

avaliações oficiais, mesmo tendo habilidades letradas, havia um motivo ideológico

para isso. As avaliações da escola são pautadas na lógica do “letramento

autônomo”. Neste modelo, oralidade não tem nada a ver com a escrita, há uma

divisão. Por outro lado, o “modelo ideológico” rompe com o fosso epistemológico

entre essas duas modalidades, pois são duas atividades e dois discursos

entremeados, o oral e o escrito. Encontra-se escrita na oralidade e oralidade na

escrita (STREET, 2014).

Ao ingressar no Programa de Pós-graduação em Educação (PPGED) da

Universidade do Estado do Pará, tive a oportunidade de propor esse estudo com

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enfoque na natureza social do letramento. A relevância em pesquisar tal tema, no

âmbito pessoal, é motivada pelo meu trabalho como professora de educação infantil

e ensino fundamental. Academicamente, é importante compreender o letramento

como prática social e discutir sobre letramentos de crianças, contribuindo com as

práticas pedagógicas escolares. E, no âmbito social, torna-se imprescindível discutir

formas de ajudar os alunos a “se apoderarem” de práticas letradas relevantes para

seu contexto para lidar com as estruturas de poder na sociedade.

Assim, com o intuito de investigar o que está sendo discutido sobre práticas de

letramento de crianças, realizei busca no banco de dados das dissertações de

mestrado produzidas no PPGED-UEPA. Entre as dissertações concluídas e

disponibilizadas para consulta, entre os anos de 2007 até o ano de 2017, encontrei 7

(sete) trabalhos que possuem referência a “práticas de Letramento”. Conforme o

Quadro 1.

Quadro 1 – Panorama de produções acadêmicas do PPGED-UEPA

Nº TITULO AUTOR ANO

1. A formação dos professores: saberes e práticas de letramento na educação de jovens e adultos

Ioneli da Silva Bessa Ferreira

2007

2. Programa pró-letramento: a formação continuada de professores nas escolas multisseriadas do campo no planalto em Santarém

Waldenira Santos Guimarães

2011

3. Cenas de letramento e multiletramento na educação de crianças surdas em uma escola de Belém

Tatiana Cristina Vasconcelos Maia

2015

4. Letramento musical e suas repercussões no desenvolvimento da alfabetização: uma análise sobre alunos do 6º ano de duas escolas públicas de Belém-Pa

Douglas Guimarães Borges

2016

5. Práticas de alfabetização, letramento e educação: o que dizem os egressos do Mova Belém?

Jaqueline Teixeira Gomes

2017

6. Práticas de letramento de pessoas com deficiência em um bairro da Ilha de Caratateua/Pa

Josivan João Monteiro Raiol

2017

7. Letramento digital no cotidiano do bairro da Cremação Maiara Cardoso Xavier

2017

Fonte: elaboração pessoal, agosto de 2017.

Dos sete trabalhos, apenas três abordaram práticas de letramento

especificamente com crianças e, apenas esses, serão destacados. A dissertação

“Cenas de letramento e multiletramento na educação de crianças surdas em uma

escola de Belém” (MAIA, 2015) analisou as práticas educativas utilizadas na

alfabetização de crianças surdas no Instituto Felipe Smaldone pautadas nas

concepções de letramento e multiletramento.

A pesquisa “Letramento musical e suas repercussões no desenvolvimento

da alfabetização: uma análise sobre alunos do 6º ano de duas escolas públicas de

Belém-PA” (BORGES, 2016) investigou as repercussões do letramento musical

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sobre o processo de alfabetização, desenvolvido com estudantes do 6º ano de duas

escolas públicas.

A pesquisa “Letramento digital no cotidiano do bairro da cremação”

(XAVIER, 2017) analisou o letramento digital no cotidiano de crianças de 06 a 09

anos de idade e investigou as tecnologias digitais que elas utilizavam; a influência

dos meios culturais infantis para o processo do letramento digital; e as finalidades

das tecnologias na vida das crianças.

Também fiz o mapeamento das produções científicas no Banco de Teses e

Dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

(CAPES). No que diz respeito às pesquisas desenvolvidas, relacionadas ao que foi

produzido nos últimos três anos (2014-2016), averiguei por meio do descritor

“práticas de letramento”, dentro da área de conhecimento EDUCAÇÃO (avaliação,

concentração e nome do programa), 17 (dezessete) trabalhos, compondo três teses

e quatorze dissertações. Após a leitura dos resumos, observei que as pesquisas

abordam enfoques diferentes do letramento.

Importante destacar a tese “Educação formal x educação não formal:

diferentes práticas de ensino e a construção de identidades surdas” (GARE, 2014),

que possui um enfoque antropológico e que problematizou o ensino e investigou

práticas de letramento do surdo nos contextos de educação formal e não formal,

mas os sujeitos são adolescentes e adultos. A pesquisa “Estudo da Aprendizagem

Profissional de uma Comunidade de Professoras de Matemática em um contexto de

Práticas de Letramento Docente” (CRISTOVÃO, 2015) e o estudo “Os inéditos-

viáveis na e da formação continuada de professores que ensinam matemática nos

anos iniciais da educação de jovens e adultos” (ALVES, 2016) não foram estudos

com crianças; o primeiro investigou práticas de professores e o segundo, Educação

de jovens e adultos.

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No Quadro 2, apresento as três teses encontradas. Quadro 2 – Panorama de produções acadêmicas (teses) da CAPES

Nº TITULO AUTOR INSTITUIÇÃO ANO

1. Educação formal x educação não formal: diferentes práticas de ensino e a construção de identidades surdas

Ruth Maria Rodrigues Gare

Universidade São Francisco

2014

2. Estudo da Aprendizagem Profissional de uma Comunidade de Professoras de Matemática em um contexto de Práticas de Letramento Docente

Eliane Matesco Cristóvão

Universidade Estadual de Campinas

2015

3. Os inéditos-viáveis na e da formação continuada de professores que ensinam matemática nos anos iniciais da educação de jovens e adultos

Rejane De Oliveira Alves

Universidade de Brasília

2016

Fonte: elaboração pessoal, agosto de 2017.

A seguir, faço um resumo das quatorze dissertações encontradas. A pesquisa

“Essa mancha ficou!: memórias sobre práticas de letramento em cenário de

imigração alemã” (EDWALD, 2014) compreendeu práticas de letramento nas línguas

alemã e portuguesa em idosos. O estudo “Os gêneros jornalísticos nos livros

didáticos de 5º e 6ºano do ensino fundamental” (SILVA, 2014) investigou o ensino

dos gêneros jornalísticos nos livros didáticos de Língua Portuguesa destinados do

Ensino Fundamental I, 5º ano e 6º ano.

A pesquisa “Possibilidades, limites e contradições nas relações família e

escola (não) mediadas por política de governo” (ALVES, 2014) não teve crianças

como sujeitos. A dissertação “Formação continuada de professores alfabetizadores

na perspectiva do letramento: um (re) significar da prática docente?” (FERREIRA,

2014) também não teve crianças como sujeitos, mas abordou o alfabetizar letrando.

A dissertação “Os sentidos para as práticas de escrita em aulas de língua

portuguesa na voz de alunos do ensino fundamental” (SILVA, 2015) buscou

compreender os sentidos que alunos do 6º e 9º ano do Ensino Fundamental

constroem para as práticas de escrita nas aulas de Língua Portuguesa. A pesquisa

“Práticas de letramento matemático narradas por professoras que atuam nos anos

iniciais do ensino fundamental” (LUCIO, 2015) investigou a partir de vozes de

professoras.

O estudo “Práticas de letramento de uma turma de pré-escola em uma escola

do campo no município do Rio Grande-RS” (BUENO, 2015), pesquisa feita em

instituição formal de ensino, investigou as práticas de letramento desenvolvidas

pelas crianças e pela professora. A dissertação “Ensino Médio, Língua Portuguesa e

Portal Educacional: percepções emergentes das narrativas de alunos inseridos em

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práticas de letramento digital” (PERICO, 2015) não teve crianças como sujeitos e

também investigou em instituição formal de educação.

O trabalho “A sala de aula de matemática de um 1° ano do ensino

fundamental: contexto de problematização e produção de significados” (MOREIRA,

2015) é pesquisa voltada para o letramento escolar e investigou como as crianças

do 1° ano do Ensino Fundamental produzem significados matemáticos quando

inseridas em práticas de letramento matemático escolar com foco em resolução de

problema. A dissertação “Biblioteca Escolar: memórias e práticas de assistentes

técnicas pedagógicas” (MINATTI, 2015) não tem crianças como sujeitos.

A pesquisa “Os gestos didáticos nos processos de sistematização dos

conhecimentos linguísticos em 4.º e 5.º anos” (VIEIRA, 2016) também é voltada para

o letramento escolar e teve como propósito fundamental compreender as práticas de

sistematização da linguagem escrita nos processos de ensino nas interações entre

professor e alunos em 4.º e 5.º anos do Ensino Fundamental. O trabalho

“Letramentos em contexto de aprendizagem ativa nas engenharias: construindo o

edifício das palavras para nele ser inquilino” (SCHLICHTING, 2016) não teve

crianças como sujeitos.

Importante destacar a dissertação “Era uma vez um man e um menino e eles

montavam um schlitten: letra(s em anda)mento em cenário de língua de imigração

alemã” (ROSENBROCK, 2016), que buscou compreender que (inter)relações se

estabelecem entre práticas de leitura e escrita em alemão e em português de

crianças do 4º e 5º ano do ensino fundamental e o contexto intercultural em que

estão inseridas e discutir as relações entre as políticas de educação linguística

locais e os letramentos das crianças. O trabalho “Projeto de letramento matemático:

indicadores para a docência” (MEDEIROS, 2016) foi voltada para o letramento

escolar e teve como sujeitos alunos do 9° ano do ensino fundamental em uma

escola pública. No Quadro 3, apresento um panorama das dissertações

encontradas.

Quadro 3 – Panorama de produções acadêmicas (dissertações) da CAPES

Nº TITULO AUTOR INSTITUIÇÃO ANO

1. “Essa mancha ficou!”: memórias sobre práticas de letramento em cenário de imigração alemã

Luana Ewald Universidade Regional de Blumenau

2014

2. Os gêneros jornalísticos nos livros didáticos de 5º e 6º ano do ensino fundamental

Juliana Gava Bissoto e Silva

Universidade São Francisco

2014

3. Possibilidades, limites e contradições nas relações família e escola (não) mediadas por política de governo

Leandro Gaspareti Alves

Pontifícia Universidade Católica de Campinas

2014

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4. Formação continuada de professores alfabetizadores na perspectiva do letramento: um (re) significar da prática docente?

Grazielle Aparecida de Oliveira Ferreira

Universidade de Brasília

2014

5. Os sentidos para as práticas de escrita em aulas de língua portuguesa na voz de alunos do ensino fundamental

Elizangela Aparecida Mattes da Silva

Universidade Regional de Blumenau

2015

6. Práticas de letramento matemático narradas por professoras que atuam nos anos iniciais do ensino fundamental

Claudia Cristiane Bredariol Lucio

Universidade São Francisco

2015

7. Práticas de letramento de uma turma de pré-escola em uma escola do campo no município do Rio Grande-RS

Leticia de Aguiar Bueno

Universidade Federal do Rio Grande

2015

8. Ensino médio, Língua Portuguesa e Portal Educacional: percepções emergentes das narrativas de alunos inseridos em práticas de letramento digital

Lucivania Antonia da Silva Perico

Universidade Metodista de São Paulo

2015

9. A sala de aula de matemática de um 1° ano do ensino fundamental: contexto de problematização e produção de significados

Katia Gabriela Moreira Universidade São Francisco

2015

10. Biblioteca Escolar: memórias e práticas de assistentes técnicas pedagógicas

Graciela Juciane Minatti.

Universidade Regional de Blumenau

2015

11. Os gestos didáticos nos processos de sistematização dos conhecimentos linguísticos em 4.º e 5.º anos

Jonas Guilherme Vieira Universidade Regional de Blumenau

2016

12. Letramentos em contexto de aprendizagem ativa nas engenharias: “construindo o edifício das palavras para nele ser inquilino

Thais de Souza Schlichting

Universidade Regional de Blumenau

2016

13. “Era uma vez um man e um menino e eles montavam um schlitten”: letra(s em anda)mento em cenário de língua de imigração alemã

Emilia Rosenbrock Universidade Regional de Blumenau

2016

14. Projeto de letramento matemático: indicadores para a docência

Janio Elpidio de Medeiros

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

2016

Fonte: elaboração pessoal, agosto de 2017.

A partir do levantamento feito, identifiquei que a maioria das pesquisas é

voltada para o letramento escolar. Neste sentido, concordo com Soares (2010)

quando afirma a necessidade de estudos sob a perspectiva antropológica. Há muita

pesquisa na área da alfabetização, pois ainda são muitos os problemas sérios na

área da aquisição da tecnologia da escrita por crianças, jovens e adultos. No

entanto, há poucas pesquisas que complementariam ou elucidariam as pesquisas

sobre alfabetização, voltadas para identificar e buscar compreender as práticas de

leitura e escrita presentes desenvolvidas na escola em suas relações com as

práticas sociais de leitura e escrita para além das paredes da escola.

Diante disso, busquei responder ao seguinte problema: Que práticas de

letramento são vivenciadas pelas crianças da comunidade da Ilha de

Caratateua-PA?

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O objetivo da pesquisa, “Práticas de letramento e educação nas vozes de

crianças: ler e escrever entre os sentidos e os bens culturais na Ilha de Caratateua-

PA”, foi analisar as práticas de letramento vivenciadas pelas crianças para

compreender suas relações além das práticas pedagógicas escolares, visto que

ainda não tinham sido descritas tais práticas na ilha referida.

Em termos mais específicos, os objetivos desmembraram-se em: mapear os

eventos de letramento que as crianças vivenciam (nos domínios lazer, religião,

escolar, comercial); identificar os gêneros e suportes presentes nas práticas de

letramento das crianças; e registrar os dizeres das crianças sobre os sentidos

atribuídos às suas práticas de letramento.

A intenção é que o resultado deste estudo contribua para a discussão acerca

dos letramentos como práticas sociais das crianças a partir de um enfoque

antropológico, no âmbito da Linha de Pesquisa Saberes Culturais e Educação na

Amazônia no PPGED-UEPA. Além disso, que contribua para o processo de

formação de professores que atuam na Educação Infantil e séries iniciais do ensino

fundamental, e para a reflexão sobre as implicações para políticas de educação e a

construção de práticas sociais e educacionais inovadoras.

Assim, esta dissertação foi organizada em quatro seções. Nesta primeira

seção, fiz a introdução do trabalho. Na segunda seção, intitulada “Letramento como

prática social e o lugar da criança nas pesquisas brasileiras no âmbito da sociologia

da infância”, foram feitas considerações teóricas acerca da teoria de letramento

social que norteia este estudo com base em Street (2010, 2012 e 2014) e Corrêa

(2010).

Fiz um breve histórico sobre algumas abordagens acerca do letramento, em

especial, a partir do momento em que o termo chega ao Brasil a partir dos autores

Soares (2010, 2012), Rojo (2009, 2012) e Kleiman (2012) e ainda relaciono as

práticas de letramento com o campo da sociologia da infância, que também norteia a

análise da pesquisa com crianças com autores como Lajolo (2016), Corsaro (2011) e

Spinelli e Quinteiro (2015).

Na terceira seção, intitulada “Percurso metodológico”, apresento o tipo de

pesquisa e abordagem; trata-se de uma pesquisa de campo com abordagem

qualitativa; o lócus, a Ilha de Caratateua; os sujeitos, quatro crianças entre 8 e 10

anos que estudam no 3º ano do ensino fundamental da Escola Bosque. Delineio os

aportes metodológicos, que deram sustentação a este estudo com base em Chizzotti

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(2014), Minayo (2016a; 2016b), Neto (2002), Severino (2016) e Bath, Jones e Jones

(2012) e a produção e análise dos dados a partir dos instrumentos observação

participante, diário de campo, entrevista semiestruturadas, entrevista em aberto e

diário de letramento.

Na quarta seção, teci análises acerca das práticas de letramento das crianças

da Ilha de Caratateua com base nos estudos de Street (2014), Rizzini (2016),

Marcushi (2011; 2008), Munarim e Girardelo (2012) e Souza (2009; 2014), a partir

de 4 (quatro) eixos que surgiram dos enunciados das crianças: os sentidos do ler e

escrever; dos bens culturais, do fenômeno religioso e da escola. Registrei eventos

de letramento em seus ambientes familiares e em seus diários de letramento. Ao

final, trago algumas considerações e reflexões para continuar o ciclo da pesquisa.

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Seção II

LETRAMENTO COMO PRÁTICA SOCIAL E O LUGAR DA CRIANÇA NAS

PESQUISAS BRASILEIRAS NO ÂMBITO DA SOCIOLOGIA DA INFÂNCIA

É próprio do poder necessitar de um extraordinário esforço de ideologização para se legitimar; quando se despedaçarem as máscaras religiosas, construirá opulentas ideologias substitutivas. A fonte máxima das ideologias procede do esforço de legitimação do poder.

(Angel Rama)

Nesta seção, apresento um breve histórico sobre algumas abordagens acerca

do letramento, em especial, a partir do momento em que o termo chega ao Brasil

sob a perspectiva teórica esboçada por Street (2014), que norteou as análises desta

pesquisa sobre as singularidades das práticas de letramento das crianças da Escola

Bosque, na Ilha de Caratateua-PA. Tal teoria considera o letramento de um ponto de

vista antropológico, ou seja, como práticas sociais de leitura e escrita e os valores

atribuídos a estas pelos sujeitos de uma determinada cultura. Nesta seção, ainda

relaciono as práticas de letramento com o campo da sociologia da infância, que

também norteia a análise da pesquisa com crianças.

2.1. ABORDAGENS SOBRE LETRAMENTO

Há várias teorias e abordagens sobre letramento, é preciso situá-las no tempo e no

espaço. Segundo Bevilaqua (2013, p. 101),

A denominação Novos Estudos do Letramento foi cunhada por Gee (1991 apud STREET, 2003) quando da observação que emergiam, no final dos anos 1970 e início dos anos 1980, na América do Sul (Brasil), América no Norte (Estados Unidos) e Europa (Reino Unido), estudos que focavam muito mais o lado social do letramento do que seu lado cognitivo (STREET, 2003, p. 77). Logo, o atributo ‘novo’ está relacionado à ‘virada social’. Lankshear; Knobel (2011, p. 10-11), baseados em Gee (1996), reportam obras seminais que originaram, ou foram originadas, a partir da virada sociocultural.

Lankshear (1987) e Lankshear e Knobel (2003) desenvolveram o aparato

conceitual do que veio a se chamar os “Novos Estudos do Letramento” (NEL).

Alguns anos após o surgimento dos NEL, surgiu a abordagem sobre os múltiplos

letramentos, que foi firmada, pela primeira vez, em 1996, a partir de um colóquio do

Grupo de Nova Londres (GNL), um grupo de pesquisadores sobre letramento que

publicou um manifesto sobre a Pedagogia dos multiletramentos, termo cunhado pelo

grupo que abrange a multiculturalidade característica das sociedades globalizadas e

a multimodalidade dos textos por meio dos quais a multiculturalidade se comunica e

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informa. Diferente do conceito de letramentos múltiplos que aponta para a

multiplicidade de práticas letradas, valorizadas ou não na sociedade,

multiletramentos aponta para multiplicidade cultural e semiótica de constituição dos

textos (ROJO, 2012).

Sendo assim, é importante refletir sobre a história e o uso do conceito de

letramento no Brasil. Durante os mais de 500 anos de existência do Brasil, segundo

Soares (2010), a palavra alfabetização designava o ato inicial de escolarização, não

existia em nosso léxico a palavra letramento. O termo surgiu nos anos 1980, há

quase 40 anos, mas só foi dicionarizado no começo do século XXI, nos anos 2000.

Para a autora, os pesquisadores brasileiros têm se ocupado com duas ações:

esclarecer o conceito de letramento, mas ainda não há um consenso; a outra ação

é, mesmo sem chegar a um consenso sobre o que é letramento, traduzir o

letramento em atividades na escola, avaliação de níveis de letramento de alunos e

da população em geral.

Desta forma, mais do que definir o que é letramento, ou como desenvolvê-lo

na escola ou no país, é importante refletir sobre os usos feitos por pesquisadores

sobre a palavra. Pois é essa diferença de conceituação que traz implicações para as

pesquisas e para as políticas educacionais. Segundo Soares (2012), letramento

origina-se do termo inglês literacy e chegou ao vocabulário da educação, das

ciências linguísticas e no discurso dos especialistas dessa área no Brasil na

segunda metade de 1980.

Uma das primeiras ocorrências está no livro de Mary Kato, de 1986, No

mundo da escrita: uma perspectiva psicolinguística, que afirma que a língua falada

culta é consequência do letramento. Depois, em 1988, Leda Verdiani Tfouni, no livro

“Adultos não alfabetizados: o avesso do avesso”, distingue alfabetização de

letramento. Possivelmente, esse é o momento em que o letramento ganha estatuto

de termo técnico no léxico dos campos da Educação e das Ciências Linguísticas.

Assim, a palavra letramento surgiu nos campos da Linguística Aplicada e da

Educação, a partir dos estudos de autoras como Magda Soares, Mary Kato, Leda

Verdiani Tfouni que atribuem significados a letramento nem sempre concordantes.

Soares (2012, p. 18), na perspectiva da alfabetização linguística, define que

letramento é “o resultado da ação de ensinar ou de aprender a ler e escrever: o

estado ou a condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como

consequência de ter-se apropriado da escrita”. A autora considera que o letramento

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traz repercussões políticas, econômicas, culturais, dentre outras, para indivíduos e

grupos que se apropriam da escrita, fazendo com que esta se torne parte de suas

vidas como meio de expressão e comunicação.

O conceito de letramento, segundo Kleiman (2012), passou a ser utilizado na

academia para distinguir os estudos sobre o impacto social da escrita dos estudos

sobre alfabetização. Na perspectiva dos letramentos críticos, a autora afirma que a

escola, a mais importante das “agências de letramento”, não se preocupa com o

letramento como prática social, mas apenas com um tipo de prática de letramento, a

alfabetização, o processo de aquisição de códigos (alfabético, numérico). Entretanto,

outras “agências” que os alunos frequentam, como a família, a igreja, a rua, mostram

outras orientações de letramento. Importante destacar que a autora apresentou os

dois modelos de letramento, autônomo e ideológico de Brian Street no cenário

brasileiro.

Na perspectiva da dicotomização entre alfabetização e letramento, Tfouni

(2010, p. 22) afirma: “a alfabetização se ocupa da aquisição da escrita por um

indivíduo, ou grupo de indivíduos, o letramento focaliza os aspectos sócio-históricos

da aquisição de um sistema escrito por uma sociedade”. Assim, abrange

alfabetizados e não alfabetizados, investiga as consequências da escrita a nível

individual e social e as influências da estrutura social nesse processo. A autora

destaca que fatores como poder, dominação, participação e resistência devem ser

considerados quando se procura entender a escrita e seus decorrentes,

alfabetização e letramento.

Compreende-se que o traço em comum nos estudos das autoras supracitadas

é que os significados do letramento a princípio foram “contextualizados no campo do

ensino da língua escrita”, voltados para as instituições formais de ensino (SOARES,

2010, p. 60). Outra peculiaridade na introdução do conceito de letramento no Brasil

foi a estreita relação com o conceito de alfabetização.

Sobre a abordagem dos multiletramentos, no Brasil, tem-se como

representante Rojo (2009, p. 98), que conceitua letramento como “os usos e práticas

sociais de linguagem que envolvem a escrita de uma ou de outra maneira, sejam

eles valorizados ou não valorizados, locais ou globais, recobrindo contextos sociais

diversos (família, igreja, trabalho, mídias, escola etc.)”. Partindo desse enfoque, a

autora argumenta que um dos objetivos da escola é possibilitar que os alunos

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participem das várias práticas sociais que se utilizam da leitura e da escrita, de

maneira ética, crítica e democrática.

Assim, é preciso levar em conta hoje os multiletramentos que incluem outros

meios semióticos no uso da linguagem como cores, imagens, sons, design,

disponíveis no computador e em materiais impressos que tornam “o letramento

tradicional (da letra/livro) em um tipo de letramento insuficiente para dar conta dos

letramentos necessários para agir na vida contemporânea” (ROJO, 2009, p. 107).

Essa exigência, que a contemporaneidade impõe, requer multiplicar as práticas e

textos que circulam e são estudados na escola. Assim,

O letramento escolar tal como o conhecemos, voltado principalmente para as práticas de leitura e escritas de textos em gêneros escolares (anotações, resumos, resenhas, ensaios, dissertações, descrições, narrações e relatos, exercícios, instruções, questionários, dentre outros) e para alguns poucos gêneros escolarizados advindos de outros contextos (literário, jornalístico, publicitário) não será suficiente [...]. Será necessário ampliar e democratizar tanto as práticas e eventos de letramento que têm lugar na escola como o universo e a natureza dos textos que nela circulam (ROJO, 2009, 108).

É possível citar diferentes pontos de vista, sem esgotar possibilidades, sob os

quais o letramento tem sido considerado. De um ponto de vista antropológico,

letramento são as práticas sociais de leitura e escrita e os valores atribuídos a essas

práticas. Do ponto de vista linguístico, são os aspectos da língua escrita que a

diferenciam da língua oral. De um ponto de vista psicológico, são as habilidades

cognitivas necessárias para compreender e produzir textos escritos. E do ponto de

vista educacional ou pedagógico, são as habilidades de leitura e escrita dos sujeitos

em práticas sociais que envolvem a língua escrita (SOARES, 2010).

É a partir do ponto de vista antropológico, que tem como principal

representante Brian Street, que se define o quadro teórico que fundamenta as

análises desta pesquisa. Os estudos do autor são contemporâneos aos NEL, mais

precisamente em 1984, a partir de sua obra Literacy in Theory and Practice.

Importante ressaltar que, embora seja uma permanente referência nos estudos e

pesquisas no Brasil, o conceito utilizado não é idêntico ao que o autor considera

como “letramentos”.

Diga-se também que não foram as perspectivas antropológicas e históricas

que introduziram a palavra letramento e o conceito de letramento em nosso país. Ao

contrário, segundo Soares (2010), essas perspectivas, antropológicas e históricas,

são incipientes no Brasil e começaram a ser assumidas em decorrência da questão

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recente sobre a introdução da escrita em grupos indígenas remanescentes no

território brasileiro.

2.2 LETRAMENTOS SOCIAIS – A ABORDAGEM ANTROPOLÓGICA DE

BRIAN STREET

Brian Vincent Street atualmente é professor emérito do King’s College

London, vinculado ao setor de linguagem em educação, e professor visitante da

University of Pennsylvania. É formado em Letras, em um curso que envolveu

basicamente o estudo de obras literárias e a análise de estruturas linguísticas. Street

estava insatisfeito ao final do curso, que enfatizou mais o texto escrito do que as

práticas. Ele justifica que ao se fazer um curso de letras, lida-se com material

literário apresentado sob a forma de textos escritos e o estudo das obras envolve a

produção de inferências de diferentes naturezas. Para ele, deveria haver outras

formas de se chegar ao significado que as pessoas dão a tais textos (STREET,

2010).

Foi quando Street começou a trabalhar no Departamento de Antropologia

em Oxford e estava interessado em estudar, em vez do texto, as práticas. Assim, ele

começou a fazer investigações na área da etnografia e, em função da pesquisa de

campo que desenvolveu, centrou-se na área do letramento e posteriormente na

educação. Seus trabalhos são desenvolvidos em uma dimensão etnográfica, a partir

da tríade Linguagem, Antropologia e Educação. Essa trajetória contribuiu para que o

autor construísse “ideias e conceitos que têm a ver com a compreensão de

letramentos - no plural - através de contextos culturais” (STREET, 2010, p. 34).

Na década de 1970, Street desenvolveu trabalho de campo antropológico

em aldeias iranianas. A princípio, ele foi para pesquisar o processo de migração.

Entretanto, ao aprender a língua local, farsi, e acompanhar o movimento das

pessoas e a comercialização de seus produtos, ele começou a prestar atenção nas

práticas que envolviam a escrita. O pesquisador buscou suporte na literatura de

pesquisa para entender a complexidade dos usos e significados do letramento no

Irã. Entretanto, a literatura antropológica era ainda dominada pelo trabalho de

Goody, cujo livro Literacy in Tradicional Societies, de 1968, fortalece a noção da

“grande divisão” entre letramento e oralidade (STREET, 2010; 2014).

Foi na literatura dos “estudos culturais” que Street encontrou uma forma de

dar “um tratamento culturalmente mais sensível e afinado de como as pessoas usam

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o letramento e o que ele significava para elas em suas vidas diárias e suas relações

sociais” (STREET, 2014, p. 69), a partir da obra de Richard Hoggart, The Uses of

Literacy, de 1957, que se concentrava na vida operária britânica; o autor examinou

alguns princípios desse estudo e fez um elo transcultural aplicando-os no contexto

cultural do Irã, onde processos semelhantes estavam acontecendo.

Street esboça uma distinção entre modelo “autônomo” de letramento e

modelo “ideológico” de letramento e defende este último como abordagem

alternativa e já empregada por pesquisadores contemporâneos, cuja preocupação

tem sido ver as práticas letradas como inextrincavelmente ligadas a estruturas

culturais e de poder em uma sociedade (SREET, 2014).

A concepção autônoma abrange o letramento em termos técnicos,

independente do contexto social, como uma variável autônoma. De acordo com essa

visão, apenas o contato escolar com a escrita, por exemplo, faria com que o

indivíduo aprendesse gradualmente outras habilidades para alcançar níveis mais

elevados de desenvolvimento. As práticas de letramento que a escola oferece são

pautadas neste primeiro modelo que é o mais promovido e validado, em cuja

concepção a aprendizagem da escrita é vista como algo essencialmente escolar,

universal e neutro.

Para acrescentar à discussão, Corrêa (2010, p. 627) assevera que a escrita

não é autônoma em relação à oralidade, há diversos letramentos e a escrita também

é heterogênea e “a escrita pensada como autônoma, descontextualizada e pura na

sua relação com as práticas orais/faladas é fonte de numerosos equívocos no

ensino”.

Corrêa (2010), em contraposição às teorias de Olson (1977) – para quem o

surgimento da imprensa historicamente teria constituído uma modalidade escrita

inteiramente autônoma em relação à língua oral – e, também, à teoria de Ong (1998)

– autor da tese da “grande divisão” entre letramento e oralidade, teoria que ainda

tem seguidores –, discute sobre a falta de autonomia da escrita em relação à fala no

próprio processo de escrita:

O aspecto visual da escrita é mobilizado, a característica da íntima relação escrita/fala, presente em sua gênese, vem frequentemente à tona, fazendo intervir, além disso, outras vinculações entre diferentes práticas orais e letradas. Esse tipo de emergência da gênese da escrita, rotineiramente flagrado pelos professores e identificado como “interferência da fala na escrita”, mostra que, no processo de escrita, são retomados, com frequência, aspectos de sua gênese, marcando seu estatuto não autônomo em relação à fala e às práticas sociais em que a oralidade é requisitada. Ao

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evidenciar que sua estabilidade é contingencial, a consideração do processo de escrita põe, portanto, em xeque, a ideia de autonomia da escrita tal como defendem Ong e seus seguidores (CORRÊA, 2010, p. 628).

Em contrapartida, o “modelo ideológico” compreende o letramento em

termos de práticas concretas e sociais, ou seja, as práticas letradas são produtos da

cultura, da história e dos discursos. As discussões propostas pelo autor revelam que

os sujeitos estão mergulhados em um mundo de conceitos, convenções e práticas,

que são influenciadas por diversas ideologias e relações de poder, especialmente se

considerarmos as culturas locais, questões de identidade e as relações entre os

grupos sociais (STREET, 2014).

O enfoque ideológico do letramento considera as práticas de letramento

ligadas às estruturas culturais e de poder da sociedade e reconhece a variedade de

práticas culturais associadas à leitura e à escrita em diferentes contextos que os

alunos vivenciam e geralmente estão à margem da escola. Esse modelo

compreende a escrita não apenas do ponto de vista psico(linguístico), mas tem um

olhar histórico, antropológico e cultural mais abrangente. Street (2014) usa o termo

ideológico, em vez de cultural ou sociológico, para indicar que as práticas letradas

são aspectos não apenas da cultura, mas das estruturas de poder. E a ênfase da

neutralidade e autonomia dentro do “modelo autônomo” mascara essa dimensão do

poder.

Segundo (STREET, 2014, p. 150), textos escolares para crianças, questões

de interpretação de texto, a ênfase na escrita “correta”, têm um conteúdo ideológico:

Aprender distinções fonêmicas precisas não é somente um pré-requisito técnico de leitura e escrita, mas um modo fundamental de ensinar novos membros da pólis a como aprender e discernir outras distinções, a fazer discriminações culturais adequadas em sociedades cada vez mais heterogêneas. Esses discursos secundários, como Gee denomina os letramentos fornecidos por instituições oficiais, permitem a um estado centralizador afirmar a homogeneidade contra a heterogeneidade evidente na variedade de discursos primários dentro da qual as comunidades socializam seus membros (Gee, 1990). Ensinar a conscientização desses conflitos e os modos como as práticas letradas são lugares de disputas ideológicas já é em si um desafio ao modelo autônomo de dominante que mascara esses processos.

É direito de todo cidadão que frequenta a escola ter acesso a uma educação

linguística crítica, pois as práticas letradas estão situadas em lugares de disputas

ideológicas. Neste sentido, o modelo ideológico não nega a habilidade técnica ou os

aspectos cognitivos da leitura e da escrita, mas considera que estão “encapsulados

em todos culturais e em estruturas de poder” (STREET, 2014, p. 172). Deste modo,

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Street utiliza o termo ideológico no sentido empregado na antropologia, na

sociolinguística e nos estudos culturais contemporâneos, em que a ideologia é o

lugar de tensão entre autoridade/poder e resistência/criatividade individual. Essa

tensão ocorre por meio de práticas culturais, uma delas é o letramento.

2.2.1 Letramento colonial e letramento dominante

Há muitas maneiras pelas quais a aquisição do letramento afeta uma

sociedade. Para explicitar os modos como essa aquisição se vincula a questões

mais profundas de ideologia, cultura e epistemologia, Street (2014) traz para o

debate dois aspectos de aquisição: o letramento colonial e o letramento dominante.

O letramento “colonial” acontece quando uma determinada cultura transfere

seu letramento para outra cultura; o aspecto dominante da aquisição é o impacto da

cultura sobre os portadores desse letramento: aqueles que o recebem terão mais

consciência na natureza e do poder da outra cultura e não apenas dos aspectos

técnicos da leitura e da escrita. Assim, de certa forma, muitos valores “ocidentais”

têm sido transferidos para sociedades não ocidentais. Para exemplificar, Street

(2014) traz o exemplo de como os normandos introduziram o letramento na

Inglaterra medieval e como os missionários de Londres ensinaram os fijianos a ler

em Madagascar no contexto colonial.

Na Inglaterra medieval, houve uma mudança rumo à “mentalidade letrada”,

maneira de pensar, panorama cultural, ideologia e não apenas mudança de

procedimentos técnicos. Os membros da cultura passaram a compartilhar novas

opiniões sobre o status da palavra escrita. Por exemplo, no século XI, o direito à

terra e alegações de veracidade eram por meio de exibição de espada, uso de selo

ou testemunho oral. No século XIV, já havia cavaleiros e o patriarcado já se referiam

ao pipe rolls, documento validado por um tabelião ou cartas datadas (STREET,

2014, p. 46). Assim, é possível perceber profundas transformações no senso de

identidade e no que consideravam a base do conhecimento.

A difusão da documentação comercial exigiu sistema de datação, houve

choque contra crenças religiosas, pois na Inglaterra medieval a divisão do tempo era

fornecida pela teologia cristã. Isso era uma questão sacramental e não algo a ser

aplicado a matérias comerciais. Assim, “a datação secular foi organizada com

referências a eventos como coroação de um rei, enquanto o calendário religioso

permaneceu independente da prática comercial” (STREET, 2014, p. 47). A fronteira

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entre sagrado e profano ficou nítida entre as novas práticas letradas que se

acomodaram dentro do sistema de crenças da sociedade em que estavam sendo

introduzidas gradualmente.

No período pré-normando, o que conferia legitimidade a textos escritos era

sua associação à verdade cristã. A bíblia era objeto sagrado não apenas pelo

conteúdo, mas em sua forma e contexto material. “Algumas bíblias, ricamente

iluminadas e preservadas em mosteiros, eram objeto de estima na qualidade de

reflexos da glória de Deus, a requintada obra era apreciada não só em termos

estéticos, mas como prova da Beleza e da Bondade do Criador” (STREET, 2014, p.

47). Quando começaram a circular documentos comerciais, eles também foram

adornados como marcas de veracidade e status. Assim, o ornamento mostrava-se

tão importante quanto as palavras escritas.

Em Madagascar, Street (2014) aponta estudos que analisam quando os

missionários levaram prensas de Londres para ensinarem os fijianos somente a ler.

Houve a introdução do alfabeto latino e a imprensa, suplantando a escrita árabe. A

bíblia foi traduzida para o malgaxe. Quando a sociedade missionária de Londres foi

expulsa, o cristianismo foi banido, mas o letramento floresceu. Na cultura merina, os

anciãos passavam de forma oral o conhecimento aos mais jovens; isso afirmava

autoridade política, representava reinvindicação de poder dentro da estrutura de

poder através de sua genealogia e narrativas locais. O conhecimento era validado

por meio da transmissão de uma geração para outra.

Desta forma, os missionários com a bíblia, com relatos da história e dos

costumes dos ancestrais e genealogia dos missionários, eram visto como

reivindicando sua própria autoridade. Isso foi visto pelos merinas como um desafio e

uma forma mais poderosa, impressionante e eficiente do mesmo tipo de

conhecimento. Uma nova tecnologia fora empregada para um propósito antigo para

fazer reivindicações concorrentes. Depreendendo isso, os merinas “reagiram à bíblia

dos missionários escrevendo sua própria bíblia, com suas próprias narrativas,

genealogia e relatos de importantes eventos legitimadores (STREET, 2014, p. 50).

A adoção da forma escrita representou uma continuação da prática oral

tradicional por meio do letramento, um modo de revidar o ataque dos recém-

chegados com os recursos trazidos por eles mesmos. Eles “adotaram aspectos da

cultura forasteira em suas próprias convenções, ao mesmo tempo em que rejeitavam

a posição de superioridade implícita dos europeus em sua estrutura de poder”

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(STREET, 2014, p. 50). Usaram a escrita com propósitos administrativos e

ideológicos. Para reafirmar sua história e seus costumes contra a ameaça política

representada pelos missionários.

Os malgaxes acomodaram formas letradas dentro de seu um sistema de

relações sociais e foi em termos desse sistema que o letramento foi importante e

sua relação com o conhecimento ocorreu a partir dos novos usos. Tanto o uso da

bíblia cristã, como o uso da bíblia malgaxe “serviram para manter convenções

sociais relativas à afirmação de poder e à validação do conhecimento” (STREET,

2014, p. 51).

Portanto, o letramento colonial ocorre quando uma cultura estrangeira

introduz uma forma particular de letramento em meio a um povo colonizado como

parte de um processo mais amplo de dominação. Conforme os exemplos citados,

em Madagascar, foi para difundir religião e estabelecer estrutura burocrática para

governar, e, na Inglaterra medieval, foi para centralizar autoridade e transferir o

direito à terra para longe das fontes locais.

Importante ressaltar que as populações locais não foram passivas. Ao

contrário, adotaram elementos da nova ideologia ou das formas de letramento à

crenças e práticas nativas. Sempre há letramento local anterior a qualquer

colonização. A “novidade” são as formas particulares dos usos e não simplesmente

da presença do letramento. Nos processos de aprendizagem do letramento sempre

há adaptação, resistência e encapsulação em relação aos seus usos na cultura

subjugada.

Outro aspecto da aquisição é o letramento dominante, que acontece quando

há “um grupo dominante dentro de uma sociedade que se responsabiliza por difundir

o letramento a outros membros dessa sociedade e a subculturas dentro dela,

exercendo sua ‘dominação interna’” (STREET, 2014, p. 45). Um exemplo são as

campanhas de alfabetização no Irã durante os anos de 1960 a 1970.

Street (2014) explica que as campanhas foram dirigidas a mães e seus

filhos, meninos e meninas. Pois os pais trabalhavam e ficavam muito tempo fora de

casa. Eram as mães que passavam os valores às crianças. Portanto, entenderam

ser necessário educar as mães como o caminho para remover barreiras sociais,

culturais e psicológicas e avanço da nação. Ao terminar as últimas séries da escola

rural local, a meninas relutavam em se mudar para se formar como professoras.

Foram instaladas faculdades de formação de professores em comunidades locais

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para moradores da zona rural para voltarem às aldeias para ensinar seus

conterrâneos aldeões.

Mas as mulheres prosseguirem na educação era possibilidade remota,

porque precisavam de parentes na cidade para ficar e isso significa romper a

tradição de a mulher casar e cuidar dos filhos. O emprego mais provável seria o de

professora, mas não tinha status, “devido ao baixo salário e aos padrões de vida

medíocre das professoras que conheciam” (STREET, 2014, p. 55).

Para os meninos,

a principal imagem do novo emprego ao qual essa educação poderia conduzir era a que representava trabalho em grandes mesas de escritórios limpos e modernos, com altos salários e seguridade, em aberto contraste coma dependência rural dos caprichos do clima e com o desconforto geral de trabalhar na lavoura” (STREET, 2014, p, 55).

Entretanto, muitos ainda permaneceram na aldeia após cursar a escola rural

e não prosseguiram nas escolas urbanas. O autor ainda mostra “a importância de

compreender as crenças locais e as percepções locais de letramento, em vez de

impô-los de fora” (STREET, 2014, p. 56). Na aldeia onde ocorreu a pesquisa, muitos

garotos que tiveram “sucesso” no sistema educacional ficaram sem emprego do tipo

que almejaram com o declínio da economia em 1970. Assim, acharam melhor voltar

para os pomares e vendas de frutas que geravam lucro, mas sua educação não os

preparou para isso. Os que permaneceram na aldeia consideravam que sua

educação na maktab, escola corânica local, os preparava melhor para o novo

letramento comercial exigido pelos empresários na aldeia. Quem ficou na aldeia teve

a chance de permanecer mais rico e seguro do que os formados no letramento

moderno do sistema educacional do Estado.

Existiam formas de educação e letramento no Irã rural, as maktabs e grupos

de leituras nas casas para ler o alcorão com certa discussão, interpretação e crítica.

Esses eram os fundamentos do letramento local antes das intervenções estatais

ocidentais. Os alunos das maktab não eram iletrados, embora eram vistos assim nos

testes formais das escolas e do governo.

As habilidades e processos desenvolvidos dentro do letramento da maktab eram, em termos de pedagogia ocidental, mais “ocultos” do que explícitos, mas forneciam a base importante para que alguns aldeões construíssem, a partir dela, uma forma de letramento comercial (STREET, 2014, p. 57).

Não se pode comparar, segundo Street (2014), letramento da aldeia com

conservadorismo atrasado (estereótipo) e escolarização moderna com progresso e

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pensamento crítico. Foi o letramento da maktab a base para que os aldeões

construíssem o letramento “comercial” que lhes permitisse lucrar com a alta do

petróleo em 1970. Criaram infraestrutura para produção e distribuição das frutas da

aldeia para as áreas urbanas. Adaptaram seu letramento na maktab a novas

exigências: assinar cheque, emitir nota fiscal, catalogar clientes e contratos em livro-

caixa, calcular estoque de frutas. Surgiram habilidades elaboradas de novas

maneiras e adotaram novas convenções, específicas às empresas em expansão.

As percepções e usos locais do letramento podem diferir dos da cultura

dominante e devem ser levados em conta. Entretanto, os educadores só viram

atraso e ignorância na aldeia e por isso deixaram de identificar as características da

cultura e do letramento local capazes de facilitar a nova organização econômica.

Poderiam ter examinado a forma como os aldeões percebiam os diferentes

letramentos e como faziam adaptações de acordo com seus interesses. A realidade

é uma mescla de convenções orais e letradas, e a introdução de formas específicas

de letramento representa uma mudança nessas convenções e não um processo

inteiramente novo (STREET, 2014).

Alguns especialistas argumentam que as campanhas de alfabetização

devem considerar as pesquisas dos antropólogos sobre uma variedade de práticas

letradas em culturas diferentes e não impor valores culturais dos próprios

planejadores. Isso foi contestado e considerado como “relativismo cultural”, no qual

os letrados dizem ao terceiro mundo que seus iletrados são sábios, não ignorantes e

que é digno ser iletrado. Isso é visto como uma tentativa de congelar valores e

técnicas locais em detrimento de ensinar novas competências comunicativas que o

letramento proporciona. Mas essa contestação também é paternalista, já que

despreza as competências comunicativas e a formas de letramento já existentes.

Não se trata de congelar ou modernizar. Mas a questão “é a sensibilidade para com

as culturas locais e do reconhecimento do processo dinâmico de sua interação com

culturas e letramentos dominantes” (STREET, 2014, p. 59).

Para Street (2014), os exemplos da Inglaterra medieval, de Madagascar e do

Irã mostram que sempre há mescla de convenções novas e antigas nos processos

de letramento. Há interação e mudanças contínuas. Pessoas conservam diferentes

letramentos usando-os para diferentes propósitos. Assim, os letramentos locais não

podem ser acomodados em um único modelo autônomo. O letramento é parte da

prática ideológica e o modo como as “variações locais” se “acomodam” ao caráter

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hegemônico das campanhas levantará as questões do futuro do letramento que só

poderão ser respondidas em termos de um modelo ideológico.

2.2.2 Práticas de letramento e eventos de letramento

Street (2014) afirma que o modelo autônomo de letramento tem sido um

aspecto dominante no campo da educação; ele o chama de “autônomo”, porque é

uma postura que representa a si mesma como natural e que traz consequências

para o desenvolvimento pessoal e não ideologicamente situada. O autor estabelece

o modelo ideológico como contrapartida, que inclui os aspectos do processo escrito

e oral, mas estão encaixados em relações de poder. Existe uma variação de

letramento em diferentes práticas e Street define dois conceitos operacionais que

têm permitido aos pesquisadores aplicar este princípio geral a dados específicos:

eventos de letramento e práticas de letramento.

A autora Shirley Heath cunhou a expressão “eventos de letramento”,

baseada na teoria que analisa eventos de fala e é usada como ferramenta de

pesquisa para ter a noção de evento de letramento no qual se pode dizer que há ali

uma atividade, um evento (STREET, 2010, p. 38). Street utiliza o conceito de

práticas de letramento para se referir a aspectos que possibilitem ver padrões em

eventos de letramento. É essa padronização que carrega significado para os

participantes.

Para Heath, a expressão evento de letramento se refere “a qualquer ocasião

em que a escrita é essencial à natureza das interações dos participantes e a seus

processos interpretativos” (STREET, 2014, p. 18). Por exemplo, “palestra” é um

clássico evento de letramento: há escrita integrada na interação entre os

participantes, o palestrante tem anotações, pode haver projetores em que se

mostram informações, as pessoas podem fazer anotações sobre o que está sendo

dito, que podem ser arquivadas posteriormente ou utilizadas em outro momento ou

até jogadas fora. Esses são aspectos que fazem parte da descrição do evento

(STREET, 2014, p. 146).

No entanto, cada participante possui internalizadas convenções a respeito

de um evento de letramento. Uma palestra dentro de uma universidade faz parte de

práticas acadêmicas de letramento, pois as falas, os discursos, a escrita e os tipos

de texto e seus conteúdos que circulam neste evento sinalizam e atribuem o

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significado a natureza do evento acadêmico. É o padrão que permite comparar

conjuntos de práticas, por exemplo, diferenciar eventos de letramento dentro de

práticas acadêmicas de letramento de outras práticas como religiosas ou comerciais

(STREET, 2010).

O conceito de práticas de letramento é mais abstrato e se refere ao

comportamento e às conceitualizações sociais e culturais que conferem sentido aos

usos da leitura e/ou escrita. As práticas de letramento incorporam os eventos de

letramento, que são ocasiões empíricas às quais o letramento é essencial, e os

modelos populares desses eventos e suas preconcepções ideológicas (STREET,

2014, p. 18). Todos têm em suas mentes “modelos culturalmente construídos de

eventos de letramento” e a prática de letramento indica esse nível dos “usos e

significados culturais da leitura e da escrita”, envolve as concepções do processo de

leitura e escrita que as pessoas sustem quando estão engajadas no evento

(STREET, 2014, p. 147).

Entretanto, Street evita, ao examinar o aspecto cultural do letramento, criar

uma lista reificada: “aqui está um cultura, aqui está seu letramento; aqui está outra

cultura, aqui está seu letramento” (STREET, 2014, p. 147). A noção de

multiletramentos é crucial para contestar o modelo autônomo, entretanto requer

alguns cuidados. Pois, “quando se tem práticas de letramento social, há

subcategorias dessas práticas: práticas de letramento acadêmicas, práticas de

letramento comerciais, práticas de letramento religiosas, e talvez práticas de

letramento digitais” desde que não signifique a tecnologia está determinando a

prática, ao contrário é a prática que determina como o ser humano usa a tecnologia

(STREET, 2010, p. 44). Além disso, a proliferação de metáforas do letramento

também requer cuidado, por exemplo, termos como “letramento emocional”, “letrado

em filme”, podem esconder os sustentáculos ideológicos de significados e usos do

letramento.

Quanto mais esses usos se distanciam das práticas sociais, corre-se o risco

de usar o termo “letramento” em um sentido estrito, moral e funcional para significar

competências ou habilidades culturais. Não se esquecer o componente social. Para

evitar essa armadilha, Street (2014, p. 148) desenvolve a noção de “letramento

dominante” e letramento “marginalizado” ou “alternativo”, em analogia a alguns

trabalhos de sociolinguística. Quando se fala em língua dominante, questiona-se:

como se tornou dominante? Como se reproduz? Como concorre com outras línguas

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marginalizadas? Da mesma forma, dentro de um modelo ideológico de letramento,

seus usos e significados envolvem lutas em prol de identidades particulares contra

outras impostas.

Street (2014) pondera que o letramento está tão encaixado nas instituições

de ensino e aprendizagem na sociedade contemporânea que não é fácil reconhecer

que na maior parte da história e em vários setores da sociedade as práticas letradas

também estão em outros lugares por sua natureza ideológica e cultural. E a

variedade de letramento escolar passou a ser o tipo definidor. Para o autor, os

mecanismos por meio do qual os significados e usos do letramento assumem esse

papel é a pedagogização do letramento que faz com que ele fique associado ao

ensino e aprendizagem exclusivamente na escola.

O sentido de pedagogia aqui se refere não a habilidades e estratégias de

ensino dos professores, “mas no sentido mais amplo de processos

institucionalizados de ensino e aprendizagem, habitualmente associados à escola,

mas cada vez mais identificados em práticas domésticas associadas à leitura e a

escrita” (STREET, 2014, p. 122), por exemplo, nas interações adulto-criança,

brinquedos e softwares educativos, a pedagogia assumiu um caráter de uma força

ideológica que controla as relações sociais, em especial, as concepções de leitura e

escrita.

“O modelo ideológico de letramento se situa numa ideologia linguística mais

ampla, na qual as distinções entre eventos de escrita, leitura e oralidade são apenas

subcategorias, elas mesmas separadas e definidas dentro da ideologia” (STREET,

2014, p. 143) que abrange a relação entre o indivíduo, a instituição social e a

mediação da relação por meio da linguagem. É no cerne dessa linguagem na

sociedade contemporânea que é estabelecido um compromisso com a instrução e é

isso que emoldura e constrói o que Street chama de “pedagogização do letramento”.

O letramento pedagogizado torna-se, assim, um conceito organizador em

torno do qual se definem ideias de identidade e valor social; os tipos de identidade

coletiva a que se adere e o tipo de nação a que se quer pertencer que ficam

encapsulados nos discursos sobre função, propósito e a necessidade educacional

do letramento escolar. A conceituação de letramento que Street (2014) propõe

implica afastar-se da visão dominante de letramento como possuidor de

características “autônomas” distintivas, associadas exclusivamente à escolarização e

à pedagogia.

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2.2.3 A teoria da “grande divisão” e alguns mitos sobre o letramento

A “grande divisão” entre oralidade e letramento tem dominado a abordagem

do letramento tanto na academia quanto nas agências responsáveis por programas

contra o analfabetismo. Portanto, é preciso compreendê-la porque exerce influência

direta e indireta no campo dos estudos do letramento e tem como um de seus

formuladores Walter Ong (1998), que teve sua obra publicada no Brasil com o título

Oralidade e Cultura escrita.

Ong alega que o entendimento de cultura oral é distorcido pelo letramento.

Segundo ele, é necessário se imaginar dentro de um mundo puramente oral para

entender o significado do letramento e quando ele suplanta a oralidade. Ele

caracteriza o mundo oral como: formulaico, conservador, empático, homeostático,

situacional, envolve memorização. O mundo letrado é oposto: abstrato, analítico,

distanciado, objetivo, separativo. Assim, o teórico distingue duas formas culturais na

história: “verbomotoras” (orientada para palavra) e “altas tecnologias” (orientada

para objeto). O mundo oral é comunal, exteriorizado, menos introspectivo e a

explicação para essas diferenças reside no princípio básico que distingue oralidade

e letramento: o som só existe em sua emissão, não pode ser segurado, está sempre

em processo (interno). Por outro lado, a marca da escrita é isolável, dissecável,

analítica, fixa impressões incapazes de serem feitas pelo som (STREET, 2014, p.

164).

Para Ong, são essas diferenças entre escrita e oralidade que fazem com

que o letramento, dependente do visual, conduza a linguagem livre de contexto, o

discurso autônomo e o pensamento analítico. Por meio dele é possível realizar

potencialidades mais completas impossíveis no mundo oral. Para ele, a escrita

oferece a capacidade de examinar coisas separadas do contexto, diferenciar mito e

história e comunicação fica menos sujeita a pressões sociais. Considerando a

escrita como a representação de sons, ele passa de uma análise técnica da escrita

para histórica e social da mentalidade humana, afirmando que o letramento promove

mudança da mentalidade pré-lógica para lógica, “a distinção entre mito e história, o

florescimento da ciência, da objetividade, do pensamento crítico e da abstração”

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(STREET, 2014, p. 165). Esses pressupostos fundamentam a defesa em torno da

superioridade ocidental.

Essas análises estão envolvidas em termos políticos e ideológicos que

supõe o poder de definir e moldar o mundo, por isso merecem atenção, e Street

(2014) aponta algumas críticas à versão sobre a “grande divisão”. A metodologia

dedutiva e seus procedimentos dedutivos, utilizados por Ong, podem ter méritos se

o investigador tem muito em comum com as pessoas que está estudando, o

problema é quando não se sabe nada sobre a cultura e contexto dos que pretende

representar. Ong pouco sabe sobre a variedade das culturas que reúne com o rótulo

de “orais” e, de acordo com seu argumento, nunca saberá, pois pertence a uma

sociedade letrada, e, quando afirma que a escrita distorce visão da oralidade, ele se

torna refém de sua mentalidade letrada. Além do mais, existem poucas sociedades

orais, a maioria tem algum contato com letramento. O maior problema, dentro do

pensamento de Ong, é usar culturas orais de hoje (se é que existem) como

comprovação da natureza de sociedades passadas. Na antropologia social, a

riqueza e variedades em sociedades não tecnológicas são provas de múltiplas

direções da “evolução”, o modelo evolutivo unilinear tornou-se insustentável.

A principal fragilidade do argumento está no fato de considerar “sociedade

letrada” a partir de convenções de sua própria subcultura acadêmica ocidental. Por

exemplo, racionalidade, isenção, objetividade são metas científicas e não

consequências do letramento. Em sociedades com letramentos diferentes do que

conhecemos também há lógica e abstração. Em estudos antropológicos sobre

literatura “oral”, é possível observar tribunais, discursos políticos. “Todos os povos

possuem convenções para formalizar, distanciar, analisar, separar e manter certas

coisas constantes, agindo como se o mundo evanescente pudesse ser fixado”

(STREET, 2014, p. 167, grifo do autor).

Do ponto de vista teórico, é incorreto conceber o letramento isolado de

outros meios de comunicação, “práticas letradas estão sempre encaixadas em usos

orais, e as variações entre culturas são geralmente variações na mescla de canais

orais/letrados” (STREET, 2014, p. 168, grifo do autor). Por exemplo, na academia há

mescla de discurso oral e escrito: palestras, seminários. Assim, a escrita é

influenciada pelo contexto real em que se realiza. Para pesquisar práticas letradas, é

necessário um modelo que considere essa mescla.

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O cerne do argumento de Ong é que só a escrita é capaz de fixar o som.

Mas Street (2014) mostra que a língua já tem essa qualidade em sua dimensão oral.

Na relação entre palavra falada/som e seu referente os signos (orais ou escritos)

operam num nível de abstração na representação do significado. Fixação,

separação, abstração tudo isso ocorre sem escrita. Imagens, rituais, narrativas são

formas de fixar os acontecimentos, distanciam do imediato e elevam a consciência.

Ong alegaria que é próprio do sistema de decodificação a relação coerente entre

signo e som, mas até o alfabeto vocálico não é um sistema perfeito de codificação.

O contexto é necessário para interpretação. Desta forma, não há razão teórica,

metodológica e empírica que justifique traçar uma linha entre o sistema oral e

escrito. Por isso, para investigar as relações entre oralidade e letramento é preciso

buscar relações entre eventos e práticas de letramento e oralidade ou convenções

orais a partir de um modelo ideológico de letramento.

Há algumas afirmações ou mitos que se inserem implicitamente nesse

quadro da “grande divisão” e precisam ser discutidas. Street (2014, p. 178), elenca

três: 1 – o discurso escrito codifica significado pela lexicalização e gramática,

diferente do discurso oral que o faz por meio de aspectos paralinguísticos; 2 – o

discurso escrito é mais conectado e coeso, por outro lado o discurso oral é mais

fragmentado e desconexo; e 3 – a língua escrita entrega seu significado diretamente

e a língua oral é mais encaixada nas pressões sociais imediatas da comunicação

face a face.

Sobre o primeiro mito, o discurso escrito codifica significado pela

lexicalização e gramática, diferente do discurso oral que o faz por meio de aspectos

paralinguísticos, é um argumento que advém de um visão restrita de contexto social.

Abordando o contexto a partir de métodos baseados em teorias do poder e ideologia

e considerando a língua como essencialmente social, percebe-se que a escrita

também utiliza recursos paralinguísticos. Por exemplo, um texto de revista

acadêmica ou um livro recebe atenção e status diferentes do que uma pilha de

formulários, ainda que a lexicalização seja a mesma.

Também há outros exemplos: em Serra Leoa, os mendes transmitem

significados aos produtos escrito utilizando um papel elegante; texto datilografado,

envelope limpo e colorido são sinais de respeito para com o destinatário e elevação

do prestígio da mensagem. Quando querem mostrar desrespeito, a mensagem é

escrita com vermelho. Os mendes abordam alguém de status elevado para pedir

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favor com uma carta para evitar a vergonha face a face. “Vergonha, respeito e

status, portanto, podem ser veiculados por recursos paralinguisticos da escrita”

(STREET, 2014, p. 182).

A respeito do segundo mito – de o discurso escrito ser mais conectado e

coeso do que o discurso oral que é fragmentado e desconexo –, Street (2014, p.

184) dá exemplo mencionando pesquisa feita por Blank (1982), que gravou falas de

crianças para mostrar a coesão do discurso oral. Em um dos diálogos entre mãe e

filho, a genitora pede para seu filho: “Agora, coma suas cenouras”. Em seguida,

comenta aparentemente de forma incoesa: “Oh, me esqueci de plantar os tomates”.

A conversa segue. E num dado momento, a criança comenta: “Eu sei porque você

falou dos tomates. Quando você disse cenouras, isso fez você lembrar dos tomates,

foi por isso que você falou deles”. O pesquisador interpreta que a atitude da criança

demonstra que esperava que a conversa fosse coesa e que a junção de tomates e

cenouras deveria ter alguma lógica naquele contexto. O discurso oral, quando

pesquisado de forma apropriada, revela-se mais coeso.

Por outro lado, é preciso examinar a suposta coesão da escrita. Existem

diversos outros usos da escrita na vida diária aos quais se está exposto que

parecem mais fragmentos, por exemplo, placas, rótulos, listas, anúncios. Nesses

também há coesão, porém que pode ser encontrada em níveis mais profundos de

cultura e ideologia. Portanto, a coesão não pode ser usada como um critério para

contrastar letramento e oralidade.

Sobre o terceiro mito – a língua escrita entrega seu significado diretamente e

a língua oral é mais encaixada nas pressões sociais imediatas da comunicação face

a face –, Street (2014) relativiza esta ideia trazendo os estudos de Heath (1983). A

autora mostra como a língua oral e escrita atuam como intercâmbio em situações de

comunicação face a face. Ela estudou as pessoas de Piedmont (EUA) que abrem

uma carta, discutem seu significado com amigos e vizinhos e a respondem no

coletivo. Para entender esse contexto, faz-se necessário um conhecimento mais

profundo da cultura e ideologia dos participantes. As cartas “oficiais” representam

um exercício de poder sobre o destinatário, por exemplo, quando a direção de uma

escola determina para onde uma criança vai. A resposta à carta pode ser uma

resistência e autonomias locais aos ditames do poder central, uma prática letrada

que inclui relações políticas e de “poder” da palavra escrita.

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Por fim, o letramento não pode ser separado da oralidade com base na

coesão ou em recursos paralinguísticos e lexicais. Nem a língua oral é mais

encaixada em situações sociais e escrita, é independente e autônoma. Neste

sentido, é importante abordar o letramento em termos de um modelo ideológico.

2.2.4 A pesquisa de práticas letradas em uma perspectiva transcultural

Para Street (2014), a descrição das práticas letradas nas pesquisas deverá

ser conduzida em uma perspectiva transcultural, através do tempo e do espaço,

considerando que as consequências do letramento são diferentes em todas as

épocas e lugares e ele não vai se manifestar da mesma forma como nas culturas

ocidentais. Por isso, o estudo transcultural é complexo e impreciso. Ele aponta

alguns cuidados na investigação do letramento em diferentes épocas e lugares.

O autor mostra estudos antropológicos com base no procedimento dedutivo

que acabam por fortalecer a ênfase nas formas ocidentais particulares de letramento

em detrimentos da variedade de práticas autóctones. No Ocidente, o letramento é

visto como a fonte do “progresso” e da conquista científica na sociedade ocidental

desde o Iluminismo. Assim, infere-se que outras culturas são carentes do letramento

ocidental, da educação e do progresso e muitas vezes na história pretendeu-se

“iluminá-las”. Os que carecem de letramento são vistos como iletrado/analfabetos,

termos também empregados como sinônimo de ilógico/irracional. Porém, o que

Street (2014) raciocina é que isso faz parte, ideologicamente, de uma forma de

controle político.

Street (2014) descreve como alguns estudos antropológicos não

problematizaram as práticas letradas das populações autóctones e a analisaram

com base em um modelo autônomo ocidental de letramento. Um exemplo são os

relatos sobre os “cultos à carga” da Melanésia, no século XX, nos estudos do

antropólogo Clammer, de 1976, movimentos culturais em que os nativos visavam se

apoderar das cargas (bens e recursos europeus). Esses movimentos incluíram

certas práticas de letramento introduzidas pelos europeus por meio das escolas

missionárias.

O letramento foi levado a Fiji em 1835 por dois missionários metodistas, que

aprenderam a língua local para o êxito da conversão. Assim, eles produziram

material escrito, traduziram parte do catecismo para o fijiano. Aprender a ler

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implicava se familiarizar com o pensamento cristão e se colocar sob a tutela da

missão que envolvia usos do letramento com finalidades disciplinares e sociais.

Mas, neste contexto, por exemplo, cantos rituais foram adaptados à

aprendizagem escolar pelos fijianos, ou seja, estavam tomando algo estrangeiro e

adaptando aos seus padrões, pois os cânticos transmitiam história de geração em

geração. Porém, os antropólogos dão pouca ênfase para esse fato e destacam que

os missionários estavam interessados em converter e manter sua posição e tinham

opinião negativa sobre mentalidade nativa e ofereciam um nível educacional baixo,

ensinando habilidades básicas. Assim, os fijianos obtiveram experiência de

letramento com ensino insensível, autoritário em níveis superficiais do pensamento

cristão europeu. E é neste sentido que o letramento pode inserir “profundamente os

alunos na ideologia e controle da classe social do professor e impedi-los de alcançar

uma avaliação desapegada e crítica de sua situação real” (STREET 2014, p. 94).

Os nativos eram vistos pelos missionários como ingênuos e vinham à escola

porque queriam a prensa que faziam livros “maravilhosos” com marcas “estranhas”

para se comunicar a distância. Os antropólogos descrevem que a escrita era um

mistério para os nativos ao registrarem uma cena em que um missionário pede a um

chefe nativo que leve uma lasca de madeira com um recado para sua esposa:

Dei-lhe toda a explicação em meu poder; mas era uma circunstância envolta em tanto mistério que ele na verdade passou um cordão pela lasca, pendurou-a em torno do pescoço e assim a usou por algum tempo. Durante vários dias depois, eu frequentemente o via rodeado por uma multidão que escutava com algum interesse enquanto ele narrava as maravilhas que aquela lasca tinha realizado (CLAMMER, 1976 apud STREET, 2014, p. 96).

Essa cena, a partir de uma visão ideológica de letramento, pode ser

interpretada como prova de que os povos locais entenderam o potencial dele.

Porém, a mistificação das práticas era tentativa de estabelecer e manter uma

posição de superioridade sobre os nativos, em vez de relacionar a prática com o

aprendizado corriqueiro da escrita na escola missionária. Esse era o contexto do

contato com o letramento que os nativos tiveram. Uso do letramento para transmitir

ordem à mulher e a obediência dela indicam ao chefe o potencial do letramento para

o exercício do poder. Se o missionário podia usá-lo desse modo, os chefes também

podiam com relação aos seus súditos.

Houve multidões reunidas em torno do chefe para ouvir sobre “a lasca de

madeira que falava” e isso foi uma ameaça ao controle europeu. A cena da lasca foi

interpretada como espanto nativo frente ao “mistério” do letramento e, segundo

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Street (2014, p. 95), o antropólogo que transcreve o relato, reforça a representação

do espanto e temor nativo a respeito da escrita, fornecida pelos missionários,

quando introduz a passagem citada, falando sobre “a mística dos livros e o fascínio

pelo poder da escrita”.

A partir de um modelo ideológico de letramento, essa cena materializa o

surgimento da percepção ideológica e política do que é o letramento por parte dos

colonizados. Eles perceberam que para estabelecer seu comando, os europeus se

baseavam em aspectos da escrita para comunicação de mensagens e ordens no

tempo e no espaço em um quadro hierárquico.

Mas na escola recebiam uma versão mistificada de prática letrada, que servia

para manter sua subordinação em vez de abrir novas portas à riqueza. O espanto

dos nativos deriva do modo como a prática letrada lhe foi oferecida e não de

qualquer deficiência intelectual ou pensamento “místico”. Há subestimação do

aspecto ideológico das concepções locais de letramento por parte dos antropólogos

ao descreverem o evento. Sustentar esse “mistério” e ensinar apenas um pouco do

letramento para converter fazia parte controle político e para isso, por exemplo, o

significado de um texto e do próprio letramento deve ser diferente entre

colonizadores e súditos.

Outro relato é sobre como a prática real da escrita foi adquirida pelos nativos.

Como o suprimento de lousas era pequeno, eles aprendiam primeiro em quadros de

areia. Assim, eles passaram a produzir seus quadros e lápis com placas de pedras e

ouriços. Na visão do antropólogo relator, isso era em decorrência da falta de

familiaridade com o material. Entretanto, dentro de uma visão ideológica, era uma

tentativa dos nativos de controlar os meios de comunicação. Os professores

poderiam criar condições para que os alunos produzissem seus próprios textos e

material literário, mas havia uma ideologia diferente em que o letramento servia para

conversão e controle social. Ao descrever práticas letradas, deve-se atentar às

estruturas sociais dentro das quais os conceitos e filosofias de culturas específicas

se formam.

Foi nesse contexto que surgiram os “cultos à carga”, que passaram a se

apoderar do letramento por meio de cartas. Para Clammer, antropólogo relator, a

escrita é apenas substituição da comunicação oral e os nativos confundiam com

funções sociais e interpessoais do meio concreto de comunicação. Mas, por meio de

uma visão ideológica de letramento, é possível compreender que a utilização de

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cartas nesse contexto era um reconhecimento das implicações políticas e de status

da palavra escrita. E, para ele, os melanésios usavam o letramento de forma

“ritualizada” porque não conseguiam perceber a escrita de forma lógica e fora do

contexto, ou seja, uma referência antropológica que reflete ao modelo autônomo de

letramento que o considera desvinculado da oralidade.

Após a retirada dos europeus, houve retorno aos modos tradicionais de

comunicação com o sobrenatural para descobrir o paradeiro das cargas e trazê-las

de volta. A escrita também continuou servindo para entender o sobrenatural. Porém,

os cultos foram marginalizados como “místicos” e sua ideologia foi desprezada.

Parte dos sentidos da escrita, derivam da forma em que estão contextualizadas e

esse é um aspecto da prática letrada em geral e residem em aspectos

paralinguísticos e pragmáticos. Na verdade, os fijianos estavam empregando

características do letramento que os próprios missionários tinham ensinado: “uso da

forma para indicar significado; uso do status do texto escrito para manipular leitores;

e o jogo com a ambiguidade para reforçar a posição do autor numa estrutura de

poder” (STREET, 2014, p. 109).

A partir de um modelo ideológico de letramento, pode-se entender que a

“ritualização” da escrita pelos nativos foi ensinada pelos próprios europeus ao

oferecer livros limitados, focar apenas a leitura, técnicas de ensino com cópia e

repetição sem intenção de transmitir sentido ao aluno. Isso forneceu um modelo de

letramento aos melanésios que por sua vez tentaram usar o potencial político do

letramento da mesma maneira que os europeus para estabelecer sua autoridade e

posição política. Eles perceberam a ligação entre letramento, poder e riqueza.

A representação da escrita como inequívoca pode ser disfarce político para

manter a hegemonia. Os melanésios perceberam características do letramento,

forma, manipulação e ambiguidade, que se relacionam com a continuidade do poder

europeu. O escárnio dos europeus em relação aos cultos serve ideologicamente

para desviar a atenção dos aspectos políticos. A doutrinação por meio de um

modelo técnico era para evitar a contestação ao monopólio europeu, uma forma de

manter o status quo e restringir protesto político.

Os cultos à carga foram uma contestação da hegemonia europeia. Os nativos

estavam enfrentando o poder europeu, tentando controlar os meios de comunicação

para controle político e econômico. Faziam experimentos com língua, metodologias,

e as formas institucionais em que se manifesta a relação entre ideologia e poder.

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Entretanto, Street (2014) aponta que algumas narrativas antropológicas aceitam

acriticamente as teorias sobre letramento em termos de modelo autônomo em vez

de considerar a natureza social do letramento e as implicações políticas e

ideológicas das instituições.

Compreender como a oralidade e o letramento são construtos ideológicos e

que, portanto, a descrição das práticas letradas deve ser conduzida em uma

perspectiva transcultural e em termos de mudança social e encontro entre culturas,

conduz à reflexão sobre a perspectiva de descrição das práticas letradas em uma

cultura particular.

2.3 A CRIANÇA NA PESQUISA EDUCACIONAL BRASILEIRA

Trazer a criança como sujeito desta pesquisa e suas relações com práticas

de letramento é dar voz a esses sujeitos que foram de certa forma excluídos do

cenário da pesquisa, antes influenciada por uma linha adultocêntrica, tendo como

referência a voz do adulto, como pais e professores. Primeiramente, isso implica

uma reflexão sobre o porquê de essas vozes terem sido silenciadas. Segundo Lajolo

(2016, p. 323),

As palavras infante, infância e demais cognatos, em sua origem latina e nas línguas daí derivadas, recobrem um campo semântico estreitamente ligado à ideia de ausência de fala. Esta noção de infância como qualidade ou estado de infante, isto é, aquele que não fala, constrói-se a partir dos prefixos e radicais linguísticos que compõe a palavra: in= prefixo que indica negação; fante= particípio presente do verbo latino fari, que significa falar, dizer. Não se estranha, portanto, que esse silêncio que se infiltra na noção de infância continue marcando-a quando ela se transforma em matéria de estudo ou de legislação.

Assim, a criança não ocupou a primeira pessoa nas investigações sobre

infância. E por não ocupar esta primeira pessoa, por não estar no lugar de sujeito do

discurso, a infância foi definida de fora, especialmente na tradição científica

consolidada no século XIX, que toma a criança como objeto de estudo a partir da

medicina e da psicologia.

Corsaro (2011) discorre sobre a redescoberta da infância pela sociologia,

campo em que foram mais marginalizadas do que ignoradas, devido à sua posição

subordinada nas sociedades e às concepções teóricas de infância e de socialização:

É comum que os adultos vejam as crianças de forma prospectiva, isto é, em uma perspectiva do que se tornarão – futuros adultos, com um lugar na ordem social e as contribuições que a ela darão. Raramente as crianças são vistas de uma forma que contemple o que são – crianças com vidas em andamento, necessidades e desejos (CORSARO, 2011, p. 18).

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Com o ressurgimento do interesse pela infância, outras ideias estão sendo

apresentadas, reconsiderando, desafiando, refinando e até transformando as

abordagens tradicionais e teóricas sobre as crianças e a infância. Por exemplo, as

análises feministas de ideologias de gênero forneceram uma lente para a infância,

resultando em importantes estudos recentes sobre as crianças, gênero e identidade.

A feminidade tem sido equiparada à maternidade e isso não ocorre para os homens

e a paternidade (CORSARO, 2011). O discurso sobre o reconhecimento de funções

mais diversificadas e equitativas entre homens e mulheres tornou, simultaneamente,

relevante o estudo da história social da infância no Brasil a partir da luta das

mulheres e de outros movimentos que reivindicam a universalização de acesso a

bens, espaços e instituições.

Durante muito tempo, a doutrina individualista, que considera o

desenvolvimento social infantil unicamente como a internalização isolada dos

conhecimentos e habilidades de adultos pela criança, dominou as teorias

sociológicas da infância. Nos anos 80 e 90, o novo paradigma sociológico sobre a

infância começa a surgir também em decorrência da ascensão de perspectivas

teóricas interpretativas e construtivistas na sociologia. Corsaro (2011, p. 19) afirma

que

Nessas perspectivas, as suposições sobre a gênese de tudo, da amizade aos conhecimentos científicos, são cuidadosamente examinadas como construções sociais, em vez de simplesmente aceitas como consequências biológicas ou fatos sociais evidentes. Isso significa que a infância e todos os objetos sociais (incluindo aspectos como classe, gênero, raça e etnia) são vistos como sendo interpretados, debatidos e definidos nos processos de ação social. Em suma, são vistos como produtos ou construções sociais. Quando aplicadas à sociologia da infância, as perspectivas interpretativas e construtivistas argumentam que as crianças, assim como os adultos, são participantes ativos na construção social da infância e na reprodução interpretativa de sua cultura compartilhada. Em contraste, as teorias tradicionais veem as crianças como “consumidores” da cultura estabelecida por adultos.

Na perspectiva interpretativa, as crianças participam coletivamente na

sociedade. Desta forma, em uma perspectiva sociológica, a socialização passou a

ser vista como processo de apropriação, reinvenção e reprodução e não apenas

uma questão de adaptação e internalização. No caso das práticas de letramento de

crianças, objeto deste estudo, o foco é como as crianças se apropriam do letramento

e de que forma elas o reinventam; é o caráter ativo da criança na vivência de suas

práticas letradas. A partir disso, é fundamental reconhecer como as crianças

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negociam, compartilham e criam cultura com adultos e entre si. Dentro dessas

variedades de práticas culturais está o letramento.

Britto (2009) discute que o senso comum, influenciado pela indústria da

educação, considera uma obviedade a alfabetização formal de crianças com 4, 5 ou

6 anos. Mas pensar em pertencer à cultura escrita é muito mais que saber ler e

escrever, envolve um modo de organização e de produção social. A teoria do

letramento como prática social nos fornece uma visão mais ampla do fenômeno da

escrita.

Diferente do que se repercute no senso comum e no letramento escolar, as

funções da escrita, desde sua origem, não teve como função primordial a

comunicação. Ela foi produzida, como já abordado na seção II, em função da

necessidade de registro da propriedade e do fluxo do comércio. Depois a escrita

desenvolveu-se e sofisticou-se à medida que se expandiu.

A escrita surgiu com o poder. Surgiu para garantir a propriedade, a posse, a diferença o controle da mercadoria, o estabelecimento de normas e procedimentos. É tardia, na história da cultura escrita, a utilização deste instrumento escrita como veículo de comunicação. É certo que na atualidade, ela se presta a uma infinidade de funções, entre as quais está a comunicação [...] mas sua função primordial, a de produzir uma sociedade regrada e normatizada, continua sendo a de maior relevância. [...]. Há, portanto, um vínculo estrito entre a escrita e as formas de exercício do poder [...] uma técnica tão poderosa será sempre, na sociedade de classes, desigualmente distribuída e desigualmente possuída. Quem mais domina as formas e os objetos da escrita e mais faz uso dela são os grupos que detém o poder econômico e social. Em toda sua história, a escrita foi produzida e apropriada pelos grupos dominantes, ainda que sempre tenha havido muitas formas de ruptura e de disputa (BRITTO, 2009, p. 9-10).

Os grupos dominantes não detêm o poder graças ao letramento, ao

contrário, eles usam o letramento para manter e sustentar seu poder. Street (2014)

reconhece que ainda há muito a ser pesquisado sobre gêneros do poder. Mas é fato

que ensinar a escrita como um objeto neutro é reproduzir a própria lógica da

dominação e da fragmentação e, assim, ensinar um valor. A partir do modelo de

letramento ideológico é possível entender que o letramento em si não promove o

avanço cognitivo. Determinar uma idade para que a criança aprenda a ler e priorizar

isso na educação sem levar em conta o quanto há de ideológico no contexto,

também, é uma maneira apenas de reproduzir os valores e cultura dominantes.

Se uma criança aprende a ler com 3 ou com 10 anos, isso não determina

seus processos cognitivos. As implicações do modelo ideológico de letramento para

a pedagogia e educação escolar é a possibilidade de por a criança no mundo da

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escrita, para que transite pelos discursos da escrita e tenha condições de operar

criticamente com os modos de pensar e produzir da cultura escrita a partir do

letramento familiar, por exemplo. Como Street (2014, p. 40) aponta: “é provável,

portanto, que diferenças em habilidades cognitivas individuais decorram dessas

diferenças na experiência social e cultural, mais do que da presença ou ausência do

letramento”.

Segundo Mello (2009, p. 30), a criança se apropria da escrita apenas

quando a escrita faz sentido para ela, quando o resultado da escrita responde a uma

necessidade dela. “Da mesma forma que a linguagem oral é apropriada pela criança

naturalmente, a partir da necessidade nela criada no processo de sua vivência social

numa sociedade que fala, a escrita precisa fazer-se uma necessidade natural da

criança numa sociedade que lê e escreve”.

Sim, as crianças devem ser alfabetizadas, pois “não pertencer à cultura

escrita, numa sociedade que se impõe por ela, é ficar expulso das formas de espaço

real de existência e de legitimidade. Mas apenas se submeter à sua lógica é mais

uma forma perversa de alienação (BRITTO, 2009, p. 12). Isso implica a valorização

da cultura local, reconhecimento dos tempos de desenvolvimento humano e assumir

o princípio da diversidade que contrapõe a lógica de apenas um “modelo autônomo”

de letramento que não comporta “os letramentos locais [...] demasiado substanciais”

(STREET, 2014, p. 60).

Neste sentido, Corsaro (2011) propõe a noção de reprodução interpretativa,

que abrange os aspectos inovadores e criativos da participação infantil na

sociedade. As crianças criam e participam de suas próprias e exclusivas culturas de

pares quando selecionam ou se apropriam criativamente de informações do mundo

adulto para lidar com suas próprias e exclusivas preocupações. As crianças não se

limitam a internalizar a sociedade e a cultura, mas contribuem ativamente para a

produção e mudança culturais. No entanto, as crianças também estão vinculadas à

estrutura social existente e pela reprodução social e, desta forma, a criança e sua

infância são afetadas pelas sociedades e culturas que integram.

Spinelli e Quinteiro (2015) ponderam que a luta pelo direito da criança ao

respeito e pelas conquistas dos seus direitos civis e políticos está diretamente

relacionada às necessidades de uma ética universal de proteção à infância diante

das consequências da primeira e segunda guerras mundiais. Houve dois marcos

nessa conjuntura que deram visibilidade à criança e à infância nos debates e

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estudos acadêmicos e alavancaram os estudos dentro da sociologia a respeito da

infância como categoria social: a declaração do Ano Internacional da criança (1979),

pela Organização das Nações Unidas (ONU), e a Convenção das Nações Unidas

sobre os Direitos da Criança (1989), promovida pela Conferência Mundial sobre os

Direitos Humanos. Especificamente, no Brasil, foi o que contribuiu para a elaboração

do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990.

A incorporação da infância nas pesquisas educacionais brasileiras, segundo

Spinelli e Quinteiro (2015), abrange três períodos. No primeiro, em 1940,

predominam os estudos de natureza psicopedagógica, como a criança aprende e se

escolariza. Isso influenciou a expansão das escolas e do ensino dentro do modelo

de sociedade capitalista. O segundo período, época da Ditadura Militar, iniciada em

1960, centra-se na elaboração de uma política educacional para o país. A

investigação centrou-se nas condições culturais e escolares, houve influência da

sociologia. No terceiro período, em 1970, surgem os estudos de natureza

econômica. O foco eram investimentos, demanda profissional, recursos, técnicas de

ensino, mercado de trabalho e formação profissional. Após esses períodos, as

pesquisas se diversificam tanto nas temáticas como nas abordagens.

A partir do ano 2000, é que surge nas pesquisas brasileiras uma nova

perspectiva, que “busca conhecer a criança a partir dela mesma, com propostas

metodológicas em que o ‘ouvir’, o registrar, o entrevistar e o narrar tornam-se

procedimentos imprescritíveis para o conhecimento da infância em diferentes

contextos educacionais” (SPINELLI; QUINTEIRO, 2015, p. 355). Isso evidencia o

quanto ainda é recente e desafiador realizar pesquisa com crianças no que diz

respeito a teorias e metodologias e questões éticas, pois é um campo que se

encontra em construção. Uma tendência significativa em crescimento está “ouvir” a

criança, isso altera o lugar que a mesma ocupava nas pesquisas – de sujeito

silenciado passa a ser testemunha de sua própria história.

Assim, esta pesquisa também contribui para os trabalhos sobre sociologia e

para os estudos sobre a infância na região amazônica. Considerando que a criança

é produtora de cultura como um sujeito histórico que se desenvolve em suas

relações sociais com o meio e outros sujeitos e tem a capacidade cognitiva,

emocional e social para processar e responder questões sobre seus

comportamentos, percepções, crenças, sentimentos e outras coisas que lhe afetam,

ela é o melhor sujeito para falar, em primeira mão, sobre suas práticas letradas.

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Seção III

PERCURSO METODOLÓGICO

Ilha de Caratateua Os moradores antigos

Orgulhosos e com razão Falam para todo mundo,

Com muita satisfação Das trinta e nove, sou uma

Da grande constelação Ilha de brilho constante

Patrimônio da nação Caratateua a maravilha

Que deu esse nome à Ilha E para que fique na mente Ela vem de uma semente

Fértil e boa de plantar Chamada de Cára-inhâme

Planta forte e resistente Que ali chegou a brotar.

(Apolo da Caratateua)

Nesta seção, discorro sobre os procedimentos metodológicos utilizados nesta

pesquisa. Assim, apresento um histórico da Ilha de Caratateua, lócus geográfico

escolhido para realizar o estudo; a caracterização dos sujeitos da pesquisa; os

instrumentos para a produção de dados e os procedimentos de análise.

Há quase dez anos, percorro o mesmo caminho de 25 km de ida e volta,

todos os dias, para trabalhar na Escola Bosque, em Outeiro. Retornar à escola em

que trabalho, após um ano de afastamento desde o final de 2015, devido à licença-

estudo, foi um “divisor de águas”. Neste momento, eu tinha outra responsabilidade,

não deixei de ser professora, mas agora de fato era a professora-pesquisadora.

Foi necessário “estranhar” Outeiro, desvencilhar-me do que até então sabia

sobre as crianças e suas famílias, e exercitar um afastamento de ordem

metodológica para investigar de forma científica. As entrevistas me trouxeram outro

olhar sobre as crianças da comunidade e sobre a própria ilha, em termos de práticas

concretas e sociais. Foi semelhante a estar em um mirante onde descortinou-se um

panorama com um outro horizonte de possibilidades.

Não era tudo novo ou desconhecido, não se trata disso, apenas aprendi a

olhar por outra(s) perspectiva(s) como as crianças usam o letramento e o que fazem

com ele em seu contexto histórico e cultural, o que não conseguia perceber, talvez,

por estar tão “mergulhada” no cotidiano da escola e, em especial, pelas influências

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da concepção autônoma de letramento em minha própria formação, daí a dificuldade

de pensá-lo fora das instituições formais de ensino.

Ao iniciar este projeto de pesquisa sobre práticas letradas de crianças,

supunha que encontraria uma clara divisão entre as práticas na escola e na família.

Entretanto, quando inserida no campo de pesquisa, constatei que tais práticas na

escola, em casa e na comunidade se retroalimentam e a fronteira entre elas é bem

mais tênue do que dantes pensava. Assim, corroboro o pensamento de Street (2014,

p. 129), “subjacente ao letramento em todos esses contextos existe um traço

comum, derivado de processos culturais e ideológicos mais amplos”, e um deles se

refere aos processos de pedagogização do letramento.

Neste sentido, Minayo (2016a, p. 12) pondera que o labor científico caminha

em duas direções: “numa, elabora suas teorias, seus métodos, seus princípios e

estabelece seus resultados; noutra, inventa, ratifica, seu caminho, abandona certas

vias e encaminha-se para certas direções privilegiadas”. Durante esse percurso,

aprendi que é necessário cultivar a humildade como investigadora, reconhecendo

que qualquer conhecimento científico é passível de mudanças. Pois a realidade

social que abarca a vida individual e coletiva com sua abundância de significados “é

mais rica que qualquer teoria, qualquer pensamento e qualquer discurso que

possamos elaborar sobre ela” (MINAYO, 2016a, p.14), ou seja, a sistematização

científica é sempre um recorte da realidade, incompleto e incapaz de conter a

totalidade da vida social.

Assim, meu reencontro com a Ilha de Caratateua foi permeado por

surpresas e imprevistos. Além das contradições e incertezas próprias por ter que

repensá-la dentro de um campo científico e encontrar uma metodologia capaz de

fazer aproximar-me da realidade e articulá-la com a teoria do letramento como

prática social.

3.1. ILHA DE CARATATEUA – BREVE HISTÓRICO

O caminho para se chegar à Ilha de Caratateua hoje é muito longo e difícil,

em decorrência das obras do projeto do Sistema Bus Rapid Transit Belém (BRT

Belém) na via principal de acesso, chamada Augusto Montenegro. No trajeto

próximo, há várias placas de trânsito identificando o local como “Outeiro”, o que

reafirma o nome como é popularmente chamada, conforme a Figura 1.

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Figura 1 – Placa sinalizando Outeiro

Fonte: pesquisa de campo, fevereiro de 2018.

Na Figura 2, apresento o mapa da localização da ilha para apresentar

brevemente a história local a partir de sua referência geográfica.

Figura 2 – Ilha de Caratateua

Fonte: Google Maps (Acesso em março/2017).

Caratateua, quanto à sua localização, é um distrito pertencente ao município

de Belém-PA e compõe a região nordeste do estado do Pará. Sua forma lembra

uma taça, com a maior largura (10 km) voltada para a baía de Santo Antônio e a

menor (6 km) bordejada pelo furo do Rio Maguari, tendo este ligação com as baías

do Guajará e de Santo Antônio (MEDEIROS, 2007 apud PINHEIROS, 2017).

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A Ilha de Outeiro está localizada a aproximadamente 25 km do centro de

Belém, sendo a mais próxima da capital paraense, ligada ao continente pela Ponte

Governador Enéas Martins Pinheiro (Figura 3). Possui um pouco mais de 63.353

habitantes e 14.266 domicílios (BITTENCOURT, 2013).

Figura 3 – Foto da ponte Enéas Pinheiro

Fonte: pesquisa de campo, janeiro 2018.

O critério de escolha do lócus de pesquisa deu-se por eu ser professora

alfabetizadora na Escola Bosque na comunidade há nove anos, e desejar

compreender e contribuir para a prática docente e pedagógica na ilha.

A imagem que atravessa meus olhos todas as manhãs para trabalhar é a

mostrada na Figura 4, a vista para o Rio Maguari, um horizonte que me faz sentir

paz. Imagem que também me faz recordar minha infância, quando atravessava essa

ponte com meus pais e irmãos para desfrutar das praias na ilha. Era uma referência

de que a praia já estava próxima!

Figura 4 – Vista do Rio Maguari

Fonte: pesquisa de campo, fevereiro de 2018.

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Segundo Pinheiro (2017), antes da fundação de Belém, a Ilha de Caratateua

servia de cemitério para os índios. Etimologicamente, “Caratateua”, em tupi-guarani,

significa “lugar das grandes batatas” ou “das muitas batatas”, pois ali havia

plantações de batata-doce em grande quantidade. Os portugueses chamaram de

Outeiro, que significa “pequenos morros”. Nome dado pelo Rei de Portugal, D. João

VI, devido ao fato de a ilha ser de terra alta, muito bonita e com muitas praias.

A primeira fase oficial de colonização de Outeiro se deu no governo do

capitão Geral Alexandre de Souza Freire, em abril de 1731, quando houve a

concessão de terras a terceiros, por meio da Carta de Sesmarias, oficializando a

doação de terras a particulares com objetivo de ocupação. No ano de 1893, foi

criada pelo governador José Paes de Carvalho, a Colônia de Outeiro (ou núcleo

modelo de colonização) formada por retirantes nordestinos, italianos, espanhóis e

portugueses.

Foi construída uma hospedaria para receber imigrantes em Outeiro, criada

em meados do século XIX, como parte do processo de colonização que passou o

Pará nesse período. Posteriormente, em 1903, neste prédio foi implantado o Instituto

Orfanológico do Outeiro, um orfanato destinado a receber 100 meninos, na faixa

etária de cinco a oito anos de idade, que fossem desvalidos e órfãos de pai, a fim de

fornecer assistência, proteção e ensino elementar (PINHEIRO, 2017).

No ano de 1921, o prédio foi o Patronato Agrícola Manoel Barata (Figura 5),

que em 1973 foi transferido para Castanhal-PA.

Figura 5 – Patronato Agrícola Manoel Barata

Fonte: Museu Digital da Polícia Militar do Pará (acesso em abril/2017).

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O prédio, após ser desocupado, abrigou, ainda na década de 70, o Centro de

Formação e Aperfeiçoamento de Praças da Polícia do Estado do Pará – CFAP,

servindo para esse fim até o ano de 2008 (Figura 6). Foi tombado pelo Patrimônio

Histórico do estado do Pará e se encontra desocupado à espera de restauração

(PINHEIROS, 2017). Lembro que frequentava esse local quando criança, pois meu

pai comandou o CFAP nos anos de 1994 a 1997, e também participou da

construção da Escola Bosque, feita por iniciativa da comunidade. Lembro que nesse

centro havia muitas árvores de jambo; eu e meus irmãos degustávamos a fruta e

brincávamos entre as árvores.

A avó de um dos sujeitos da pesquisa, moradora da ilha há 24 anos,

comentou sobre o CFAP:

Mas eu lembro era muito bom, tinha cavalaria... eles ficavam, né, toda a tarde eles ficavam, né, fazendo treinamento, era muito bacana a gente se sentia assim... porque primeiramente Deus, né mas assim a gente se sentia assim mais seguro, né, porque naquela época era muito bom, hoje em dia tá tudo diferente, hoje em dia a violência tá muito grande aqui neste lugar, né, cada dia que se passa, né, uma ilha tão pequena, né, amada, mas tá sem controle, você tá entendendo (Avó de Davi, entrevista realizada em janeiro de 2018).

Ela considera que o CFAP trazia maior segurança para a ilha, porque havia

treinamento e cavalaria. Mas hoje ela afirma que a violência na ilha está

descontrolada.

Figura 6 – Parada Matinal do CEFAP, em 1986, na Ilha de Caratateua

Fonte: Museu Digital da Polícia Militar do Pará (acesso em abril/2017).

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Segundo Bittencourt (2013), até meados de 1990, Outeiro era subordinada à

Agência Distrital de Icoaraci. Porém, no dia 17 de maio 1995, foi sancionada a Lei

Ordinária N.º 7.753 que criou o Distrito Administrativo do Outeiro (DAOUT), órgão de

gestão regional, diretamente subordinada ao Chefe do Executivo Municipal. Dessa

forma, Outeiro passou a ser Distrito, com autonomia e é a única administração

regional legalizada. A DAOUT tem sua sede administrativa na Ilha de Caratateua,

sua criação teve como objetivo agregar as ilhas de Belém ao contexto administrativo

do município.

De acordo com a Lei 7.806 (PARÁ, 1996), de 30 de julho de 1996, a ilha tem

uma área em torno de 122,20 Km² e possui quatro bairros: Itaiteua, São João do

Outeiro, Brasília e Água Boa. As demais regiões: Fama, Fidelis e Tucumaeira são

zonas rurais, embora consideradas pela população como bairros. Já a DAOUT, que

administra as 26 ilhas situadas na área insular do município de Belém, considera a

existência de mais um bairro: Água Cristalina (BITTENCOURT, 2013).

Outeiro possui seis praias: Brasília, Prainha, dos Artistas, Grande, do Amor e

Ponta do Barro Branco. Além dos balneários: Paraíso dos Reis, Curuperé, Sítio de

Maré e do Zecão. Isso lhe confere a condição de balneário mais próximo da área

central do município de Belém-PA. Na Figura 7, estão identificadas as praias de

Outeiro por meio de um mapa turístico, elaborado pela Prefeitura Municipal de

Belém.

Figura 7 – Mapa turístico de Outeiro

Fonte: Prefeitura Municipal de Belém – janeiro de 2013.

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Nas andanças pela ilha durante a pesquisa, observei trabalhadores como:

carroceiro, mototaxista, motoristas e cobradores de transporte alternativo,

vendedores nas praias e nos comércios. Percebi que muitos moradores ainda vivem

do que produzem, como pesca, extrativismo, produção agrícola, do pequeno

comércio.

A ilha é um local povoado por comunidades ribeirinhas, artistas, artesãos de

diversos tipos de materiais, como cerâmica, sementes, raízes, palha, barro, madeira,

resíduos sólidos reciclados e crochê. E poetas que expressam seu amor pela ilha,

como o Apolo da Caratateua, cujo cordel está na epígrafe que inicia esta seção.

Também posso citar as escolas de samba tradicionais do carnaval em Outeiro, bem

como os grupos folclóricos da comunidade, como as quadrilhas da Escola Bosque e

Tradição Junina, o grupo de cordão de pássaro “Pipira da Água Boa” e o boi-bumbá

“Brilha Noite”, ricas tradições culturais.

Caratateua é um pedaço da Amazônia que possui uma fauna e flora

diversificadas em espécies, algumas registradas em inventários científicos e outras

transformadas em áreas de preservação, como a Escola Bosque, a Avenida Beira-

mar e os barrancos ou falésias. As crianças dessa localidade vivem entre a escola, a

igreja, a rua, o rio e a praia. Assim, foi a partir desta realidade social e cultural que

aprofundei os estudos sobre as práticas e os eventos de letramento delas.

Descreverei os bairros São João do Outeiro e Água Boa, por serem onde os

sujeitos da pesquisa moram. O primeiro é o bairro central, onde se localizam o posto

de saúde, a delegacia, correios, casa lotérica, farmácia, conselho tutelar, posto de

gasolina, Administração Regional e as duas principais escolas, Escola do Outeiro e

a Escola Bosque. É possível observar vários pequenos comércios, principalmente de

produtos alimentícios.

Na Figura 8, registrei uma das avenidas principais, chamada Manoel Barata,

transversal às ruas em que moram Amora e Davi, sujeitos desta pesquisa. A rua é

asfaltada e sinalizada; ainda observei muita arborização e, também, muitos templos

de várias denominações religiosas, como católica, evangélica, batista, assembleias

de Deus e Testemunhas de Jeová.

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Figura 8 – Rua Manoel Barata

Fonte: pesquisa de campo, fevereiro de 2018.

O bairro Água Boa possui maior diversidade de comércios de materiais de

construção, academias, produtos alimentícios e escolas particulares. Na Figura 9, há

o registro de sua rua principal, chamada Paulo Costa, paralela às ruas em que

moram Caleu e Bernardo, sujeitos da pesquisa.

Figura 9 – Rua Paulo Costa

Fonte: pesquisa de campo, fevereiro de 2018.

A rua é asfaltada e sinalizada, por onde passam as principais linhas de ônibus

da ilha. Neste bairro, também há vários templos religiosos, como os da Assembleia

de Deus, de católicos, adventistas e outras denominações evangélicas.

Na maior parte da ilha, as ruas ainda não são asfaltadas e isso dificulta

bastante o acesso e circulação em certos locais, principalmente em períodos

chuvosos, o que vivenciei em uma das etapas da pesquisa. A Figura 10 é uma parte

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da rua das Mangueiras, que dá acesso à casa de Bernardo, um dos sujeitos da

pesquisa, e evidencia a situação de dificuldade de trânsito nesta via.

Figura 10 – Rua das Mangueiras

Fonte: pesquisa de campo, fevereiro de 2018.

A partir, em especial, da construção da ponte Enéas Pinheiro, em 1986, deu-

se a expansão urbana desordenada na Ilha de Caratateua. A localidade possui

energia elétrica, transporte regular, pavimentação parcial das ruas principais. No

entanto, percebe-se a necessidade urgente de um plano de gestão ambiental e

turístico, para desenvolver e explorar o potencial da fauna e flora da ilha e oferecer

uma infraestrutura para mais qualificada para os serviços públicos básicos como

saneamento, educação e saúde.

3. 1. 2 Escola Bosque

Faz-se necessário falar um pouco da Escola Bosque, especialmente, por se

tratar de um dos símbolos da Ilha de Caratateua, lugar comumente frequentado

pelos sujeitos da pesquisa, fazendo parte do contexto das práticas letradas

pesquisadas e local dos primeiros encontros com os mesmos.

A Fundação Centro de Referência em Educação Ambiental Escola Bosque

Professor Eidorfe Moreira (FUNBOSQUE), ou simplesmente Escola Bosque, foi

criada pela Lei nº 7.747 (BELÉM, 1995a), de 02 de janeiro de 1995, alterada pela Lei

Delegada Nº 002 (BELÉM, 1995b), de 20 de novembro de 1995. Está localizada em

uma área preservada de floresta com 12 hectares. Iniciou suas atividades no mês de

agosto de 1995, em caráter experimental, e foi inaugurada em 26 de abril de 1996,

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oficialmente. A iniciativa para a criação da Escola Bosque, conforme os moradores

mais antigos da ilha contam, partiu das aspirações e da mobilização da comunidade.

O primeiro concurso público realizado para o quadro docente da escola

ocorreu no ano de 2008. Atualmente, a escola possui 200 professores efetivos e

1.976 alunos matriculados, conforme informações fornecidas pela secretaria da

escola. Em 2015, a escola alcançou 4,08 no indicador de aprendizado do Índice de

Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). De acordo com o Projeto Político

Pedagógico, um dos objetivos da escola é “garantir que a Educação Ambiental seja

o fio condutor do processo educativo” (ESCOLA BOSQUE, 1999, p. 1).

A Escola Bosque atende alunos da Educação Infantil, Ensino Fundamental,

Educação de Jovens e Adultos – EJA e o Ensino Médio Técnico Profissionalizante,

tendo como eixo norteador da prática pedagógica a Educação Ambiental. Sua área

de atuação abrange 5 ilhas e 6 Unidades Pedagógicas: Ilha de Caratateua (Outeiro),

onde ficam a sede da Escola Bosque e a Escola da Pesca; Ilha de Cotijuba, onde

fica a Unidade Pedagógica Faveira; Unidade Pedagógica Flexeira; Unidade

Pedagógica Seringal; Ilha de Jutuba, onde fica a Unidade Pedagógica Jutuba; Ilha

de Paquetá, onde fica a Unidade Pedagógica Jamaci; e Ilha Longa, onde fica a

Unidade Pedagógica Ilha Longa.

A FUNBOSQUE tem por missão, visão e valores:

Desenvolver educação, pesquisa e extensão, socializando conhecimentos a fim de contribuir para formação de indivíduos com visão sistêmica dos aspectos socioeconômicos e ambientais. Visão: tornar-se centro educacional de excelência na formação integral de cidadãos conscientes de seu papel histórico-social e ambiental, nesta perspectiva oportunizar o desenvolvimento humano em nível local e global de modo sustentável, a partir da região insular de Belém. Valores: ética, liberdade, democracia, integridade, valorização, sustentabilidade, responsabilidade social (ESCOLA BOSQUE, 2017).

A estrutura da escola é constituída pelo Conselho Consultivo, Conselho

Deliberativo, Presidência e Coordenadorias (de Desenvolvimento Comunitário, de

Pesquisa e Planejamento), Administração (de Educação Infantil, Ensino

Fundamental e Médio). Suas instalações físicas foram construídas de acordo com a

sua proposta pedagógico-ambiental. Na Figura 11, destaca-se a entrada da escola

que dá acesso a todos os espaços. A arquitetura das salas, que possuem nomes de

orquídeas, mamíferos, peixes, lendas e plantas, foram adaptadas às condições

ambientais na tentativa de permitir uma coexistência equilibrada entre o homem e o

meio ambiente.

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Figura 11 – Foto da entrada da Escola Bosque

Fonte: pesquisa de campo, março de 2017.

A escola possui diversos espaços educativos, como biblioteca, laboratório de

informática, brinquedoteca, horta, viveiro de mudas, auditório, refeitório, duas

quadras de areia, alojamentos, Casarão de cultura. Executa projetos, como

Ecomuseu da Amazônia; Agentes e Monitores ambientais (AMA) e Projeto Horta.

3.2 CARACTERIZAÇÃO DOS SUJEITOS DA PESQUISA

Participaram desta pesquisa 4 crianças de 8 a 10 anos, 1 menina e três

meninos, matriculados no 3º ano do Ciclo I do ensino fundamental da Escola

Bosque, no turno da manhã. Todos são paraenses, um nascido em Belém-PA e os

demais na Ilha de Caratateua-PA. A escolha da escola se deu em função de minha

atuação nela como professora, conforme já citado. Durante a trajetória de seleção

dos sujeitos pesquisados, fiz o levantamento quantitativo dos alunos matriculados no

ensino fundamental. Conforme informações da secretaria da escola, no ano de

2017, foram feitas 459 matrículas em todo o ensino fundamental, nos ciclos I, II e III,

na sede da escola em Outeiro. Isso corresponde às séries do 1º ao 9º ano do ensino

fundamental.

Diante desses dados, foi necessário estabelecer critérios para a escolha dos

sujeitos. Desta forma, os critérios foram: estar matriculado na Escola Bosque;

meninos ou meninas; na faixa etária entre oito e dez anos; residentes na Ilha de

Caratateua; ter o consentimento e disponibilidade da criança e posterior autorização

dos pais. Além disso, precisei contar com a colaboração dos pais e da professora,

cuja turma os selecionados para a pesquisa pertenciam.

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A escolha de crianças como sujeitos da pesquisa tem relação direta com

meu percurso acadêmico e profissional. E o recorte na faixa etária citada se deu em

função do meu trabalho nos últimos 6 anos com alunos do ensino fundamental, e há

dois anos estava atendendo alunos do 3º ano no projeto da sala de leitura. Com

base no critério idade, meus sujeitos estavam matriculados no 3º ano do Ciclo I do

ensino fundamental.

Em relação à definição do tamanho da amostra, é importante relatar alguns

fatos que me levaram a considerar o número representativo. No ano de 2017, havia

três turmas de 3º ano com um total de 90 crianças. Apesar da vontade de conhecer

as práticas de letramento de todas as crianças, precisava determinar um grupo

menor para que eu pudesse desenvolver a pesquisa, pois refleti e conclui que não

poderia comprometer a qualidade e objetividade da temática que escolhi investigar.

No dia em que fui à escola para me apresentar e cumprir a burocracia que a

pesquisa exigia, apresentar-me como aluna da UEPA para a coordenadora

responsável, com o encaminhamento da Profª Dr. Socorro Cardoso, orientadora

desta pesquisa, fiz o referido levantamento na secretaria escolar e decidi começar

por uma determinada turma em decorrência de ser a única que tinha a professora

presente no momento na escola; as demais estavam em formação continuada.

Conversei com a professora e apresentei os objetivos da pesquisa e dei

alguns esclarecimentos. A mesma abriu literalmente as portas de sua sala de aula e

pude contar com seu entusiasmo, amizade e profissionalismo. Combinamos que na

1º reunião anual de pais, que estava próxima, ela falaria de minha pesquisa. Nesta

reunião, os pais autorizaram que eu realizasse a primeira entrevista na escola e o

termo de compromisso (vide ANEXO) seria assinado por eles em dia a ser marcado

comigo após selecionar os sujeitos. Como inicialmente tinha a pretensão de

pesquisar práticas de letramento apenas analisando objetos de leitura que

circulavam nas casas dos alunos, pedi para que a professora solicitasse aos alunos

que trouxessem de suas casas esses materiais para a primeira entrevista.

No dia marcado para a primeira entrevista, quatro alunos trouxeram o que foi

solicitado e estavam dentro dos critérios estabelecidos e, assim, foram entrevistados.

Os dados dessa primeira coleta foram levados para a qualificação no PPGED-UEPA,

em maio de 2017. Após isso, entendi que já tinha o corpus da pesquisa, mas

precisava aprofundar várias questões com os entrevistados. Assim, decidi

permanecer somente com os 4 primeiros sujeitos entrevistados.

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Apresentarei os dados coletados na pesquisa de campo na seção IV e para

fazer a descrição utilizarei as seguintes identificações fictícias: Caleu, Amora,

Bernardo e Davi. A seguir, no Quadro 4, apresento o perfil das crianças

entrevistadas.

Quadro 4 – Perfil dos entrevistados

Nº Sujeito Sexo Idade inicial e final na pesquisa

Tempo de escolarização

Bairro Série

1. Amora Fem. 8 anos 6 anos São João do Outeiro

3º ano do

ciclo I

2. Caleu Masc. 8 anos 5 anos Água Boa

3. Bernardo Masc. 8anos 6 anos e meio Agua Boa

4. Davi Masc. 10 anos 9 anos São João do Outeiro

Fonte: elaboração própria, a partir dos dados coletados na pesquisa de campo.

A entrevistada Amora estava com oito anos completos de idade no início da

pesquisa; reside em casa própria, no bairro São Joao do Outeiro, com a mãe e seus

três irmãos: um de sete anos, outro de um ano e sete meses e o caçula de cinco

meses. Sua casa possui três compartimentos: sala, cozinha e banheiro, além de um

pequeno pátio na entrada e um quintal. Amora começou a estudar aos 3 anos, em

uma escola particular. Foi para a Escola Bosque aos 5 anos e aprendeu a ler aos 6

anos de idade.

A família de Amora mora na ilha desde quando sua mãe tinha em torno de

14 anos. Antes moravam no bairro Terra Firme, em Belém-PA, e em 2004 mudaram-

se para Caratateua. A principal fonte de renda da família é a bolsa-escola e as

vendas que sua mãe faz de roupas, de moda íntima e produtos da empresa

Tupperware. A genitora estudou até a oitava série e, durante o período desta

pesquisa, fez o Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e

Adultos (Encceja) para pleitear certificado de conclusão do ensino médio e

conseguiu sua certificação. E prestou vestibular para a UEPA, mas não foi aprovada.

No seu dia a dia, Amora ajuda nas tarefas domésticas e a cuidar dos irmãos;

de manhã frequenta a escola, de tarde faz o dever de casa e à noite vai à igreja. Não

é uma criança que brinca na rua. No final da pesquisa, a família mudou-se para

outra casa na mesma rua, em frente à casa anterior que moravam. A mãe trocou de

casa com sua avó. A nova residência é de alvenaria e possui 6 compartimentos:

pátio, sala, dois quartos, cozinha, banheiro e quintal, onde tem um chuveiro que as

crianças gostam de tomar banho e há árvores de acerola, coqueiro, bananeira,

cajarana e limoeiro, todas utilizadas para a alimentação da família.

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O entrevistado Caleu estava com oito anos de idade no início da pesquisa e

mora em casa própria com a mãe e com o padrasto, no bairro Água Boa. Sua casa é

grande e ainda está em construção. Tem sete compartimentos: sala, sala de jantar,

cozinha, dois quartos, um banheiro, um sótão, pátio na entrada e quintal. Sua mãe

trabalha no comércio, em uma farmácia e seu padrasto é vigilante; os dois possuem

ensino médio completo. A família mora na Ilha de Caratateua há um ano. Por isso, o

menino estuda há um ano na Escola Bosque, pois antes morava com sua família no

Telégrafo, um bairro de Belém-PA.

Caleu começou a estudar aos quatro anos de idade na pré-escola e aprendeu

a ler com seis anos com sua irmã, à época estudante de Pedagogia. Ele também

não é uma criança que brinca na rua. No seu dia a dia, geralmente, estuda pela

parte da manhã, faz os deveres de casa à noite, quando sua mãe chega do trabalho

e pode ajudá-lo, vai para a academia treinar muay thai e jiu-jítsu todos os dias pela

parte da tarde. Seu padrasto é responsável por deixá-lo e buscá-lo na escola de

moto.

O entrevistado Bernardo, no início da pesquisa, estava com oito anos de

idade e aprendeu a ler nessa idade. Mora em casa própria de alvenaria com a mãe,

o tio e a avó, no bairro Água Boa. A casa possui cinco compartimentos: dois quartos,

sala, cozinha e banheiro e fica centralizada em um terreno grande que tem um

quintal onde Bernardo brinca muito. Sua mãe é técnica em enfermagem e trabalha

cuidando de uma criança especial em Caratateua. Os pais dele se separaram há

seis anos e a guarda é compartilhada. A família mora na ilha há 17 anos; antes

moravam em Icoaraci. Fez educação infantil, estudou na creche do bairro Itaiteua,

em Caratateua, dos 2 aos 4 anos. Estudou em uma escola particular chamada

Vitória, no bairro Água Boa, até perceberem que ele não estava evoluindo e o

tiraram de lá.

Assim, Bernardo foi morar e estudar em Castanhal com o pai, que estava

trabalhando lá. Mas não se acostumou e voltou para Caratateua e ficou até julho de

2016 sem estudar, pois a mãe não conseguiu vaga em nenhuma escola. Em agosto

de 2016, a genitora conseguiu matriculá-lo na Escola Bosque. No geral, estuda pela

parte da manhã, de tarde fica em casa, à noite faz os deveres de casa com sua

mãe, que trabalha o dia todo. No ano de 2018, a criança ficou retida no 3º ano do

ensino fundamental.

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O entrevistado Davi, no começo da pesquisa, estava com 10 anos

completos. Ele estuda desde os 2 anos e fez creche até os 4 anos de idade.

Começou a estudar na Escola Bosque aos 5 anos. No ano de 2017, ficou retido no

3º ano, por ainda não decodificar a escrita e não ler fluentemente. Ele frequenta o

Projeto Pedagógico de Apoio (PPA) da Escola Bosque para crianças com

dificuldades de aprendizagem, desde o 2º ano do Ciclo I, em 2015. Mora em casa

própria com a mãe e irmão no bairro São João do Outeiro. Sua casa é de alvenaria e

possui dois compartimentos: quarto/sala e banheiro. Sua mãe é empregada

doméstica e trabalha de segunda a sábado. Os pais de Davi se separaram quando o

menino tinha dois anos e a guarda é compartilhada.

Assim, na ausência da mãe, Davi fica sob a responsabilidade da avó

materna, que mora em frente à sua casa e é pensionista. O imóvel em que a avó

reside é de madeira e possui quatro compartimentos: sala, quarto, cozinha e

banheiro e fica centralizada em um terreno no mesmo bairro. No seu dia a dia, Davi

geralmente vai para a escola pela parte da manhã e à tarde fica na casa de sua avó.

Davi é a criança que mais brinca na rua com outras crianças.

Embora os entrevistados morem em uma ilha com muitas praias, suas

famílias não costumam frequentá-las constantemente. São crianças que não se

locomovem sozinhas de ônibus ou van. Alguns ainda brincam um pouco na rua, mas

há muita preocupação com a segurança delas, por isso a rua também não é um local

muito frequentado. As crianças não costumam fazer grandes compras sozinhas. No

geral, compram pão para casa, lanche na escola. Os ambientes mais frequentados

pelas mesmas são a escola, a igreja e casas de parentes. Em todas as famílias, a

mãe e a avó materna são as principais referências das crianças e os pais são

separados. Nenhuma mora com o pai biológico. Mas todos, com exceção de Amora,

têm convivência e contato com o pai biológico.

3.3 PRODUÇÃO E ANÁLISE DE DADOS

Para realizar o estudo, optei pela pesquisa exploratória e abordagem

qualitativa, que, segundo Severino (2016, p. 132), busca “levantar informações sobre

um determinado objeto, delimitando assim um campo de trabalho, mapeando as

condições de manifestação desse objeto”.

A pesquisa qualitativa responde a questões particulares e se preocupa com

um nível de realidade que não pode ser quantificado. Ou seja, com significados,

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motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes. Isso abrange um espaço mais

profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser

reduzidos à operacionalização de variáveis (MINAYO, 2016a).

Corsaro (2011), ao tratar do estudo da criança e da infância, enfatiza que o

ressurgimento do interesse por crianças na sociologia deu origem a numerosos

estudos sobre crianças e infância, usando uma variedade de métodos. Uma

tendência geral ao longo dos últimos 20 anos tem sido um movimento de a pesquisa

ser “com” ou “para” crianças. A criança é reposicionada como sujeito em vez de

objeto de investigação. Desta forma, o processo de pesquisa deve refletir uma

preocupação direta em capturar as vozes infantis, suas perspectivas, seus

interesses e direitos como cidadãos.

“Os pesquisadores não desenvolveram novos métodos para o estudo de

crianças que difiram dos métodos tradicionais utilizados para estudar os adultos”

(CORSARO, 2011, p. 57). Eles defendem que os métodos para estudar qualquer

grupo inclui a aplicação rigorosa das técnicas ao grupo de acordo com suas

necessidades específicas e particularidades. Então, em vez de estudar adultos como

representantes de crianças por meio de falas ou relatórios de pais, professores ou

médicos, a criança passa a ser vista como ator social em seu próprio direito, e os

métodos são ajustados e aprimorados para obter a própria percepção da criança por

meio de sua voz. Nesta pesquisa, portanto, trago as crianças como sujeitos, tirando-

as da condição de silenciadas, reconhecendo sua capacidade de dizer sobre suas

práticas letradas.

Para Chizzotti (2014), os fenômenos humanos possuem características

específicas, pois se cria e atribui significados às coisas e às pessoas nas interações

sociais, portanto é possível investigar a realidade, descrevê-la e analisá-la. Assim,

no percurso metodológico desta investigação, com referência à natureza das fontes

utilizadas para abordagem e tratamento do objeto de estudo, utilizei a pesquisa de

campo, porque colhi as informações sobre os letramentos diretamente da realidade

na Ilha de Caratateua. Segundo Severino (2016, p. 131),

Na pesquisa de campo, o objeto/fonte é abordado em seu meio ambiente próprio. A coleta de dados é feita nas condições naturais em que os fenômenos ocorrem, sendo assim diretamente observados, sem intervenção e manuseio por parte do pesquisador. Abrange desde os levantamentos (surveys), que são mais descritivos, até estudos mais analíticos.

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Segundo Minayo (2016a, p. 14, 15), metodologia “é o caminho do

pensamento e a prática exercida na abordagem da realidade”. Isso inclui, segundo a

autora, a teoria da abordagem (o método), os instrumentos de operacionalização do

conhecimento (as técnicas) e a criatividade do pesquisador. Assim, “a metodologia é

muito mais que técnicas”.

Precisei, então, encontrar técnicas para alcançar os objetivos pretendidos.

Em especial, porque os sujeitos de minha pesquisa são crianças. Considerando que,

para Street (2014), as práticas de letramento são a face abstrata dos eventos de

letramento, porque veiculam pré-concepções relacionadas a atitudes, valores e

ideologias, referem-se a comportamentos e conceituações relacionados ao uso da

leitura e da escrita pelos sujeitos. Não é possível percebê-las apenas observando os

sujeitos; o autor exorta que, para compreender as práticas letradas, “temos de

começar a conversar com as pessoas, a ouvi-las e a ligar sua experiência imediata

de leitura e escrita a outras coisas que elas também façam” (STREET, 2012, p. 76).

Assim, foram combinadas as seguintes técnicas de produção de dados:

observação participante, diário de campo, entrevistas semiestruturadas (vide

APÊNDICE 1), entrevista aberta, entrevista com foco no diário de letramento (vide

APÊNDICE 2).

3.3.1 Observação participante e diário de campo

A observação participante é considerada, segundo Minayo (2016b),

essencial no trabalho de campo para a na pesquisa qualitativa, porque permite a

compreensão da realidade. É um processo em que o pesquisador se coloca como

observador de uma situação social para realizar uma investigação científica.

O observador, no caso, fica em relação direta com os seus interlocutores no espaço social da pesquisa, na medida do possível, participando da vida social deles, no seu cenário cultura, mas com a finalidade de colher dados e compreender o contexto da pesquisa” (MINAYO, 2016b, p. 64).

Foi com este olhar de observadora que redescobri a Ilha de Caratateua.

O principal instrumento de trabalho de observação é o diário de campo. Neto

(2002, p. 63-64) assinala que

É um instrumento ao qual recorremos em qualquer momento da rotina do trabalho que estamos realizando. Ele, na verdade, é um "amigo silencioso" que não pode ser subestimado quanto à sua importância. Nele diariamente podemos colocar nossas percepções, angústias, questionamentos e informações que não são obtidas

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através da utilização de outras técnicas. O diário de campo é pessoal e intransferível. Sobre ele o pesquisador se debruça no intuito de construir detalhes que no seu somatório vai congregar os diferentes momentos da pesquisa. Demanda um uso sistemático que se estende desde o primeiro momento da ida ao campo até a fase final da investigação. Quanto mais rico for em anotações esse diário, maior será o auxílio que oferecerá à descrição e à análise do objeto estudado.

Partindo desse conceito, desde minha primeira ida a campo, fiz in loco

observações e as registrei em um caderno e em um arquivo eletrônico. Escrevi

informações que não fizeram parte do material formal dos outros instrumentos

usados e foram utilizadas na análise qualitativa. Os registros envolveram

ocorrências, minhas impressões, inquietações, preocupações, contatos com os pais,

endereços, dia a dia dos moradores da ilha a respeito do transporte, trabalho,

festejos, clima, levantamento de matrículas, entre outros. Entretanto, não fiz um

roteiro de observação, apenas registrava os dados que julgava serem importantes.

3.3.2 Entrevistas semiestruturadas com os sujeitos na escola

Para primeiramente mapear os eventos de letramento que as crianças

vivenciam, escolhi como uma das técnicas de produção de dados a entrevista, que

“é acima de tudo uma conversa a dois, ou entre vários interlocutores, realizada por

iniciativa do entrevistador e sempre dentro de uma finalidade” (MINAYO, 2016b, p.

58).

Eder e Fingerson (2002 apud CORSARO, 2011) consideram que as

entrevistas, individuais e em grupo, com crianças são um bom método para explorar

suas interpretações sobre suas vidas. Na primeira entrevista com cada criança, optei

pela forma de organização semiestruturada “que combina perguntas fechadas e

abertas, em que o entrevistado tem a possibilidade de discorrer sobre o tema em

questão sem se prender à indagação formulada” (MINAYO, 2016b, p. 59). Organizei

um roteiro de entrevista com 20 perguntas (APÊNDICE 1), para identificar os usos

que as crianças fazem do letramento em vários âmbitos da sua vida.

No dia 3 de março de 2017, ocorreu a minha primeira entrada em campo

para realizar as entrevistas. A Escola Bosque funciona nos horários matutino (8h às

12h), vespertino (13h às 17h) e noturno (18h às 22h). Conforme já comentado, os

entrevistados são do turno matutino e já tinha a prévia autorização dos pais para

realizar a pesquisa, pois no levantamento que fiz sobre as matrículas, conversei com

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a professora regente da turma e a mesma falou sobre minha pesquisa na 1ª reunião

anual com os pais.

Também acordei com a professora regente que as entrevistas seriam feitas

nos dias de sua aula, pois durante a semana os horários de aula da turma também

eram preenchidos com aulas de Educação Física, Artes, Informática, Projeto Sala de

Leitura e Projeto Horta, e foi solicitado para as entrevistas que os alunos trouxessem

objetos de leitura de casa. A intenção era registrar eventos de letramento a partir

desses materiais. No entanto, as crianças informaram que os materiais circulavam

nas suas casas, mas não eram lidos por elas. Elas não mostram familiaridade com

tais objetos. Por isso, decidi não usá-los.

Fui recebida de forma amistosa pela turma. Apresentei-me e expliquei o

motivo de estar ali e que precisava da ajuda e disposição de alguns para conceder-

me uma entrevista. E informei que começaria pelos que haviam trazido os materiais

solicitados. Para que as crianças ficassem mais à vontade e desinibidas, solicitei

uma sala à coordenação pedagógica para realizar as entrevistas de forma individual.

As entrevistas foram gravadas em aparelho Sony ICD-PX240 e realizadas

na sala da educação especial; neste dia, os profissionais do local não estavam

fazendo atendimento. O tempo de gravação da entrevista com Amora durou 15

minutos e oito segundos; com Caleu, 12 minutos e 13 segundos; com Bernardo, 11

minutos e 26 segundos; e com Davi, 10 minutos e 54 segundos.

Eu buscava cada um em sala de aula e o conduzia para a sala onde realizei

a entrevista. No caminho, peguei na mão das crianças e já ia tentando estabelecer

uma conversa, o que foi muito natural porque elas comentaram que estavam me

esperando e que sua professora havia falado a meu respeito. Consideravam-me

uma repórter para a qual elas dariam uma entrevista, e estavam se sentindo

importantes por isso. Indagaram coisas da minha vida, como minha idade, se era

casada, se tinha filhos, se era professora da escola e para quem eu dava aula.

A sala de educação especial, onde foi realizada a primeira entrevista, é

climatizada e tem recursos como computadores, livros e jogos. As crianças me

fazeram perguntas a respeito da sala: para que servia e quem eram os alunos que a

frequentavam. Embora tivesse um roteiro de perguntas, aproveitei os comentários

das crianças a respeito da sala para conversar a respeito do que eu queria

investigar; algo que lhes chamou muito a atenção eram os computadores e os livros.

Caleu, por exemplo, comentou que a sala parecia uma biblioteca.

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Sobre as primeiras impressões que tive das crianças, Amora pareceu

risonha e extrovertida. A cada pergunta feita por mim, abordava outros assuntos, o

que evidenciou muita ansiedade para contar vários acontecimentos de sua vida.

Caleu, embora bastante disponível e pensativo para responder as perguntas,

pareceu-me um menino tímido e sério. Bernardo demonstrou ser uma criança alegre

e concentrada. E Davi pareceu bem desconfiado e de poucas palavras. Tinha que

refazer as perguntas várias vezes e dar exemplos para estabelecer uma conversa

com ele. Assim, consegui colher os primeiros dados.

Após a qualificação do projeto no PPGED-UEPA, entendi que já tinha parte

do corpus da pesquisa. Mas precisava aprofundar algumas questões com os

entrevistados. Por isso, retornei novamente na escola para entrevistar as crianças

no dia 17 de novembro de 2017. Entrevistei os quatro sujeitos da pesquisa também

de forma individual, em uma sala chamada, Araçari onde não estava tendo aula.

Esse segundo momento foi bem mais descontraído e as crianças ficaram bem

mais à vontade na conversa porque já tinham estabelecido um vínculo comigo.

Sempre relembrava da conversa anterior e elas recordavam das perguntas e do que

tinham me respondido no primeiro encontro. A segunda entrevista com Amora durou

13 minutos e quarenta e um segundos; com Caleu, sete minutos e oito segundos;

com Bernardo, 5 minutos e 12 segundos; e com Davi, 6 minutos e 16 segundos. Os

dados coletados nas entrevistas semiestruturadas serão analisados na Seção VI, no

item 4.1.

Importante ressaltar que as duas primeiras entrevistas com cada criança na

escola também foi para buscar o seu consentimento para a pesquisa, esclarecer os

objetivos, os procedimentos, os motivos para que as crianças pudessem

compreender a importância e o significado de seu envolvimento na pesquisa. Nesse

segundo momento, sinalizei para as crianças a possibilidade de ir fazer outros

encontros na casa delas, perguntei se estariam disponíveis e se achavam que os

pais concordariam; todas gostaram da ideia.

Neste sentido, Spinelli & Quinteiro (2015) reflete sobre o respeito à criança

na pesquisa para garantir sua autoria. As autoras questionam “se a autorização

quem dá é o adulto, e não a criança, cabe indagar mais uma vez: ela é sujeito da

pesquisa?” (KRAMER, 2002 apud SPINELLI; QUINTEIRO, 2015, p. 367). Portanto,

foi após o consentimento das crianças que solicitei a autorização dos pais de forma

oficial para utilizar os dados coletados.

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Tinha clareza de que, desde o início, precisava conhecer outros letramentos

na comunidade e analisar as práticas de letramento como fenômenos sociais,

independente do local em que elas acontecem e evitar, por exemplo, fazer juízo do

letramento escolar. Entretanto, meu interesse também era pesquisar outras práticas

de letramento além do âmbito escolar. Ao mesmo tempo, também fez-se necessário

atentar para o fato apontado por Corsaro (2011), que os pesquisadores devem

considerar, como em qualquer outro método de investigação, o aumento de

desequilíbrio de poder entre o pesquisador e a criança devido à diferença de idade e

status.

Há recursos para reduzir esse risco com a criação de um contexto natural, o

uso de vários métodos e o compromisso com a reciprocidade. Usei as primeiras

conversas para saber mais sobre os significados dos usos da escrita pela criança,

perguntando sobre várias atividades diárias na escola, em casa, na igreja. Embora

tenham parecido seguras em relação ao local da entrevista e às perguntas que tinha

previamente elaborado, senti a necessidade de criar um contexto mais natural para

registrar suas práticas letradas.

Importante ressaltar que os objetos de leitura trazidos pelas crianças não

corresponderam ao que elas citaram na entrevista, não sendo possível registrar os

sentidos atribuídos por elas aos materiais. Além disso, elas priorizaram textos

escritos. Também refleti que poderia pedir para que os alunos trouxessem para mim

os objetos de leitura que eles citaram nas entrevistas e continuar fazendo encontros

na escola.

No entanto, isso iria configurar uma atividade escolar, e eu perderia a chance

de ver os eventos de letramento enquanto eles acontecem, no local em que

acontecem e registrar nesse momento os sentidos sobre os usos da escrita e da

leitura para os sujeitos durante o evento e, também, registrar objetos de leituras em

outras mídias. Então, tomei a decisão de sair da escola para registrar outras práticas

que elas me relataram, que faziam em suas casas e conhecer os objetos de leitura

citados por elas nessas primeiras entrevistas.

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3.3.3 Entrevistas em aberto com as crianças e seus responsáveis no

ambiente familiar

Conversei com os pais dos entrevistados por meio de ligação telefônica,

cujos números de contato foram informados pela professora regente, para que eu

pudesse realizar outra entrevista na casa de cada um, para registrar eventos de

letramento no âmbito familiar e para assinar o termo de compromisso para que eu

pudesse utilizar os dados produzidos na entrevistas com as crianças.

A respeito do 3º encontro nas casas das crianças, compreendi que já não era

importante ter um roteiro semiestruturado de entrevista porque

muitas vezes não faz sentido fazer perguntas as pessoas apenas sobre o letramento [...] ou mesmo sobre leitura e escrita, porque o que pode dar sentido a eventos de letramento pode ser realmente alguma coisa que não seja pensada primeiramente em termos de letramento” (STREET, 2012, p. 76, 77).

Assim, optei por entrevista aberta ou em profundidade “em que o informante é

convidado a falar livremente sobre um tema e as perguntas do investigador, quando

são feitas, buscam dar mais profundidade às reflexões” (MINAYO, 2016b, p. 59).

A 3ª entrevista, com a participação dos responsáveis das crianças, ocorreu no

dia 30 de dezembro de 2017 nas casas de Amora e Caleu. E no dia 6 de janeiro de

2018, nas casas de Bernardo e Davi. Nesse momento, não tive dificuldades em

marcar os encontros. Mas, mesmo conhecendo a ilha há muitos anos, precisei da

ajuda dos pais via celular para achar os endereços de suas casas. Os encontros

com as famílias foram muito alegres, todos me esperaram com ansiedade e me

trataram muito bem. Ofereceram lanche e o momento se tornou uma agradável tarde

de conversa, que girou em torno da rotina de todos na família e foram abordados

aspectos como trabalho, escola, religião e lazer.

Neste momento, então, ligava o gravador apenas na ocasião em que julgava

importante nas conversas, e em outros momentos fiz registros no diário de campo.

Considerando que Street (2012, p. 76) argumenta que utiliza o conceito de “prática

de letramento” numa tentativa de lidar com os eventos e com os padrões de

atividade de letramento para relacioná-los a aspectos mais amplos de natureza

social e cultural. No entanto, não podemos compreender esses modelos apenas

filmando ou observando o que está acontecendo, “podemos fotografar eventos de

letramento, mas não podemos fotografar práticas de letramento”.

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Segundo Neto (2002, p. 63), as fotografias também se apresentam como

recursos de registro às quais podemos recorrer, “esse recurso visual amplia o

conhecimento do estudo porque nos proporciona documentar momentos ou

situações que ilustram o cotidiano vivenciado”. Por isso, fotografei os eventos de

letramento nas casas dos sujeitos.

A prática de letramento, em parte é abstrata, é possível registrar a partir do

momento em que conversamos com as crianças e as mesmas emitem seus

discursos, crenças, valorações sobre o uso que estão fazendo da escrita. Percebi

que, em seu ambiente familiar, as crianças envolveram-se mais nas discussões,

porque eram semelhantes a conversas “naturais” que já têm em casa com parentes,

amigos e vizinhos. As crianças apontaram assuntos para discussão e controlaram o

ritmo e a direção da conversa. Assim, fui capaz de entender as questões que eram

importantes para elas, em vez de continuar aplicando um roteiro estruturado de

entrevista (CORSARO, 2011).

Na casa de Amora, fui recebida pela menina e por sua mãe, que também foi

entrevistada; durou dezessete minutos e um segundo o tempo de gravação. Na casa

de Caleu, fui recebida por ele, sua mãe e seu padrasto, que também foram

entrevistados, e o tempo de gravação foi de dezessete minutos e vinte e quatro

segundos. Na casa de Bernardo, fui recebida pelo menino e por sua mãe. O tempo

de gravação da entrevista foi de 15 minutos e 36 segundos. A entrevista com Davi

ocorreu na casa de sua avó, que também foi entrevistada, e durou 18 minutos e 34

segundos. A avó foi a pessoa que nos recebeu e concedeu a entrevista em sua casa

com autorização via telefone da genitora da criança.

As entrevistas foram gravadas em aparelho Sony ICD-PX240 e os dados

produzidos serão analisados no item 4.2 da Seção VI.

3.3.4 Diários de letramento: aplicação e recolhimento

No dia das entrevistas na casa das crianças deixei o diário de letramento,

ferramenta metodológica proposta por Street (2014, p. 118), para entregar às

crianças e às suas famílias, para que pudessem registrar eventos familiares de

letramento na sequência em que ocorriam, e, após um período de no mínimo duas

semanas, eu entraria em contato para retornar às residência e recolher o diário e

fazer uma última entrevista, apenas com a criança, com foco no diário. Foi mais um

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recurso utilizado e que me possibilitou perceber os usos e noções reais de

letramento das crianças e, ainda, registrar outros eventos de letramento.

Ao propor o diário, eu sabia que os sujeitos não estavam familiarizados com a

prática de ter um diário escrito, então teria de adaptar-me ao modo de cada um

manter seu próprio diário ou mesmo buscar outras alternativas, caso não tivessem

feito o diário. Por isso, resolvi entregar uma estrutura simples em duas folhas de

papel A4, contento apenas espaço para registrar a data e três linhas para registrar o

acontecimento. Havia no total espaço para fazer 16 registros. Mas ao deixar o diário,

informei que caso acabassem as folhas de registros, eles poderiam continuar

fazendo em outro lugar. Se acontecesse algum dano às folhas originais, elas

poderiam ser substituídas por folhas de caderno, dentro da mesma estrutura

proposta com os dois itens: data e registro. Além disso, informei que as crianças

poderiam ter a ajuda dos responsáveis para fazer os registros. Todos aceitaram

fazer os diários.

Bhatt, Jones e Jones (2012) exploram o valor de usar diários de participantes

e entrevistas em pesquisas sobre letramentos como um meio de triangulação e de

verificação comparativa dos relatos próprios apresentados pelos sujeitos. Os autores

consideram que nas ciências sociais pouco se escreveu sobre o uso desse

instrumento. Assim, seu potencial para alcançar a percepção dos participantes sobre

a vida diária permanece inexplorado. Os autores argumentam que

Os diários de participantes podem ser usados em interações com as pessoas que participam da pesquisa e, assim, podem fornecer um meio de desenvolver uma abordagem de pesquisa crítica e dialógica que seja comprometida com as percepções e os valores do grupo. Recorrer diretamente ao conhecimento e à experiência de participantes é particularmente relevante à pesquisa sobre o letramento (BHATT; JONES; JONES, 2012, p. 112).

O recolhimento do diário de letramento ocorreu no dia 17 de fevereiro de

2018 nas casas de Amora e Davi. Soube antes, por contato telefônico, que a família

de Amora havia se mudado de casa. Fui recebida novamente pela menina e sua

mãe; elas revelaram estar muito felizes com a mudança para a nova casa. A

entrevista teve um tempo de gravação de onze minutos e cinquenta e nove

segundos. A entrevista com Davi ocorreu na casa de sua avó; o tempo de gravação

foi de 12 minutos e 45 segundos.

No dia 24 de fevereiro de 2018, retornei às casas de Bernardo e Caleu para

recolher os diários. Tive dificuldades para retornar as casas desses sujeitos porque

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era período de muita chuva em Belém e o trajeto para a ilha ficou com trânsito muito

intenso, então, a primeira tentativa de retorno foi fracassada. Em outro momento,

não foi possível porque Caleu passaria o fim de semana na casa da avó materna no

bairro do Telégrafo, e Bernardo viajou com o pai, pois era período de carnaval e o

genitor, que compartilha a guarda com a mãe, geralmente fica com a criança durante

os feriados.

Na 4ª entrevista na casa de Caleu, fui recebida pelo menino, sua mãe e seu

padrasto; recolhi o diário de letramento e a entrevista durou 14 minutos e 36

segundos de gravação. Na casa de Bernardo, fui recebida pelo menino e sua mãe; o

tempo de gravação foi de 18 minutos e cinquenta e quatro segundos; o objetivo era

recolher o diário e focar a entrevista no que foi registrado, entretanto não foi possível

recolhê-lo. Então, permaneci apenas com a entrevista aberta e tive a oportunidade

de registrar outros eventos de letramento da criança.

A combinação dos diários de letramento com entrevista aberta focada no

diário forneceu-me detalhes sobre a rotina dos sujeitos da pesquisa que não tinham

sido observadas nas primeiras entrevistas estruturadas, e minha participação nos

eventos de letramento registrados nas famílias deu-me suporte para relatar os

sentidos dos eventos para os sujeitos de forma mais precisa.

As entrevistas com foco no diário foram gravadas em aparelho Sony ICD-

PX240, os registros feitos pelas crianças foram transcritos e serão analisados no

item 4.3 da seção VI.

3.3.5 O processo de análise dos dados

Por meio da aplicação do conjunto de técnicas acima referidas, produzi um

volume considerável de dados verbais e objetos concretos de leitura escritos

impressos e outros em várias mídias. A partir da definição do objeto desta pesquisa,

práticas e eventos de letramento de crianças da Ilha de Caratateua, foi preciso

definir o quadro teórico em decorrência das muitas abordagens e teorias sobre

letramento. Assim, os dados produzidos foram analisados à luz da Teoria do

Letramento como prática social a partir de uma visão antropológica, com base em

Street (2014), abordada na seção I.

Nas análises, utilizei os dois conceitos operacionais esboçados por Street

(2014), ou dois dispositivos de análise, quais sejam: prática de letramento e evento

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de letramento. O primeiro é um conceito com um nível alto de abstração, porque

envolve comportamentos e conceituações sociais e culturais que conferem sentidos

aos usos da leitura e da escrita. Essas práticas incorporam os “eventos de

letramento”, segundo conceito, que são atividades particulares em que o letramento

tem um papel. Podemos entender que as práticas de letramento estão no âmbito

das relações sociais, por meio da forma como os sujeitos partilham seus

conhecimentos e saberes.

A distinção entre eventos e práticas de letramento é exclusivamente

metodológica, pois são duas faces de uma realidade, dois componentes básicos do

fenômeno do letramento. O conceito de eventos de letramento orienta o pesquisador

para a observação de situações que envolvem a língua escrita e para a identificação

das características dessas situações.

Segundo Street (2012, p. 76),

Há um problema se usarmos o conceito isolado, à medida que permanece descritivo e, do ponto de vista antropológico, não nos diz como os significados são construídos. Se observássemos um evento de letramento particular na condição de pessoa não-participante que não estivesse familiarizada com suas convenções, teríamos dificuldade de seguir o que estivesse acontecendo; por exemplo, como lidar com um texto que fornece o foco para o evento e como falar sobre isso. Claramente há convenções e pressupostos subjacentes sobre os eventos de letramento que fazem com que eles funcionem.

Para transpor a simples descrição do evento e revelar como são construídos,

em determinado evento, os sentidos e os significados, produtos das convenções e

concepções de natureza cultural e social, recorri ao uso do conceito de práticas de

letramento como instrumento de análise, que permite a interpretação do evento para

além de sua descrição. “Os conceitos de eventos e práticas de letramento [...]

configuram ferramentas particularmente fecundas para o campo da linguagem, na

medida em que potencializam a análise da dimensão sociocultural das interações

que acontecem nos diferentes âmbitos sociais” (SOARES, 2012, p. 38).

Como já explicitado na metodologia, realizei primeiramente duas entrevistas

semiestruturadas na escola; e duas entrevistas na casa de cada criança, uma com

roteiro em aberto e outra com foco no diário de letramento registrado por cada

criança. A partir dos dados recolhidos, identifiquei e analisei situações que

demandam letramentos e que exigem das crianças a mobilização de conceitos,

valores, procedimentos relacionadas ao uso da leitura e da escrita.

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Adotei a perspectiva do letramento como uma prática ideológica que,

segundo Street (2014, p. 17), abrange relações de poder e inserida em significados

e práticas culturais específicas:

A relação entre língua escrita e língua oral difere segundo o contexto – não existe nenhuma explicação universal sobre “o oral” e “o escrito”. As condições sociais e materiais afetam (se é que não determinam) a significação de uma dada comunicação, e é inadequado (senão impossível) deduzir do mero canal quais será os processos cognitivos empregados ou as funções que serão atribuídas à prática comunicativa.

Pautada nesse modelo ideológico de letramento, concentrei-me nas práticas

sociais específicas de leitura e escrita da criança e do significado que letramento

tem para a mesma na interação das modalidades oral e letrada. Assim, abordei o

contexto social em que tais práticas fazem sentido a partir de situações reais com

objetos impressos escritos ou citados no momento da verbalização dos sentidos

atribuídos a esses objetos pelos sujeitos.

Em relação ao sistema de transcrição da fala para a escrita das entrevistas

gravadas, optei pela escrita convencional. Tentei respeitar a informalidade da fala

dos sujeitos; foi necessário ouvir várias vezes as verbalizações gravadas para

transcrever fielmente o que foi dito. Considerando que a entrevista apresenta

informações de natureza verbal e não verbal, eu percebia o que estava acontecendo

e anotava as observações a respeito das reações do entrevistado, em especial,

quando respondia com gesto as perguntas feitas. Portanto, nos trechos das

entrevistas há observações em parênteses que sinalizam os gestos dos sujeitos ou

alguma explicação para melhor compreensão de sua fala. O símbolo [...] significa

que um trecho foi retirado, estava inaudível ou teve alguma interrupção durante a

entrevista.

Organizei a análise da seguinte forma: no item 4.1 da seção VI, a partir dos

dados das primeiras entrevistas semiestruturadas na escola, registrei os primeiros

sentidos atribuídos pelas crianças em suas práticas letradas, a partir de quatro eixos

temáticos que emergiram dos enunciados das crianças e são entrecruzados, apenas

desmembrei em subitens e destaquei alguns para efeito didático: do saber ler e

escrever; dos bens culturais; do fenômeno religioso; e da escola. Mapeei alguns

sentidos e gêneros textuais. Sumarizei os dados coletados por meio de um quadro,

conforme exemplo no Quadro 5, identifiquei o participante, os sentidos com trechos

de seus dizeres e os gêneros citados pelo mesmo.

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Quadro 5 – Exemplo do quadro síntese dos primeiros sentidos mapeados

Participante Sentidos [Práticas de letramento] Gênero/suporte

Caleu “as legendas são em português”; “pra ler os livros”; “assistir vídeos”; “Eu gosto de pesquisar”.

Jogos de Minecraft.

Fonte: elaboração própria, em abril de 2018.

No item 4.2, registrei os eventos de letramento produzidos no ambiente

familiar dos sujeitos; relatei cada evento de forma individual. Neste item,

contextualizei brevemente as entrevistas com a participação dos responsáveis.

Analisei os eventos de letramento na casa dos sujeitos a partir das entrevistas em

aberto. Criei um quadro como estratégia metodológica de análise, conforme exemplo

no Quadro 6.

Quadro 6 – Exemplo do quadro síntese dos eventos de letramento no ambiente familiar

Participante Prática de Letramento (sentidos)

Evento de letramento

Suporte/Gênero textual Subcategoria das práticas de

letramento social

Caleu

“Por causa que é uns da

minha coleção”; a leitura o

faz sentir “alegria”.

Leitura do livro “De volta ao jogo”.

Livro/Literário – Narrativa de aventura

Entretenimento

Fonte: elaboração própria, em abril de 2018.

Nesse quadro, identifico o sujeito, a prática de letramento ou o sentido

identificado, o evento de letramento e o gênero textual envolvido no evento, pois

todo letramento baseia-se em um gênero e a subcategoria das práticas de

letramento social. Para identificar os gêneros nas práticas de letramento, utilizei a

conceituação de gênero textual de Marcuschi (2008, p. 154), que defende a tese de

que “é impossível não se comunicar verbalmente por algum gênero, assim como é

impossível não se comunicar verbalmente por um texto”. Porque toda manifestação

verbal ocorre por meio de textos realizados em algum gênero, ou seja, “a

comunicação verbal só é possível por algum gênero textual”. Estamos imersos

constantemente numa variedade de gêneros textuais, a identificação pode parecer

difusa e aberta.

Marcuschi (2008) define que gêneros textuais são textos que encontramos

no nosso dia a dia, em situações comunicativas e têm padrões comunicativos. O

autor cita vários exemplos:

Gênero textual refere os textos materializados em situações comunicativas recorrentes. Os gêneros textuais são os textos que encontramos em nossa vida diária e que apresentam padrões sociocomunicativos característicos definidos por composições funcionais, objetivos enunciativos e estilos concretamente realizados na integração de forças históricas, sociais, institucionais e técnicas. [...] os gêneros são entidades empíricas em situações comunicativas

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e se expressam em designações diversa, constituindo em princípio listagens abertas. Alguns exemplos de gêneros textuais seriam: telefonema, sermão, carta comercial, carta pessoal, romance, bilhete, reportagem, aula expositiva, reunião de condomínio, notícia jornalística, horóscopo, receita culinária, bula de remédio, lista de compras, cardápio de restaurante, instruções de uso, inquérito policial, resenha edital de concurso, piada, conversação espontânea, conferência, carta eletrônica, bate-papo por computador, aulas virtuais e assim por diante. Como tal, os gêneros são formas textuais escritas ou orais bastante estáveis, histórica e socialmente situadas (MARCUSCHI, 2008, p. 155).

Não é possível abranger todos os gêneros identificados na pesquisa de

campo, pois eles se intercruzam e fazem parte do contexto e do cotidiano das

crianças, por isso nem todos serão abordados. Há ainda que se considerar que

alguns gêneros podem não ser de fácil percepção ou ainda não os reconhecemos

como tal. Para Street (2014, p. 86), a ênfase deve estar não no letramento em si,

mas no conteúdo e na ideologia, daí a importância de o pesquisador conhecer “o

conteúdo dos textos que seus sujeitos estão lendo – sejam livros didáticos, jornais,

histórias em quadrinhos, revistas, notícias ou qualquer outra coisa”. Considerando

essa premissa, comentei sobre o conteúdo dos objetos de leitura de cada evento de

letramento.

No item 4.3, último item da seção VI de análise, registrei os diários de

letramento. A transcrição dos diários de letramento foi feita por meio da escrita

convencional para melhor compreensão. E com base na entrevista focada no diário,

a criança explicava o que estava escrito, assim pude descrever os eventos e analisá-

los. Para sumarizar os eventos de letramento identificados a partir do diário de

letramento elaborei o Quadro 7.

Quadro 7 – Exemplo do quadro síntese dos eventos mapeados nos diários

Participante Subcategoria das práticas de letramento

social

Evento de letramento Gênero/suporte

Caleu

Digital Telefonou para a irmã Telefonema

Fonte: elaboração própria, em abril de 2018.

O referido quadro identifica o participante. Para cada prática de letramento

criei uma categoria que corresponde ao tipo de letramento com foco na prática social

que o determina. Também identifiquei o evento, gênero ou suporte que fazem parte

do evento.

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Seção VI

PRÁTICAS DE LETRAMENTO NA VOZ DE CRIANÇAS DA ILHA DE

CARATATEUA-PA

Se quisermos entender a natureza e os significados do letramento em nossas vidas, precisamos então de mais pesquisas focadas no letramento na comunidade – neste sentido mais amplo – e nas implicações ideológicas e não tanto educacionais das práticas comunicativas em que ele se inscreve.

Brian Street

Esta seção se estruturou a partir dos dados coletados por meio das

observações, diário de campo, entrevistas semiestruturadas, entrevista em aberto e

entrevista com foco no diário de letramento, que materializaram as práticas de

letramento que as crianças constituem no meio em que vivem. Assim, após a coleta

de dados, fiz a transcrição das entrevistas e dos diários de letramento e selecionei

alguns trechos para a análise.

As crianças foram vistas nesta pesquisa como atores sociais e suas falas

foram consideradas como fontes fidedignas para compor o corpus analisado, pois

são as mesmas que vivenciam as práticas de letramento evidenciadas. Destaco a

participação dos familiares, embora não sejam o foco deste estudo, no sentido de

contextualizar e descrever de forma mais detalhada as práticas de letramento

reveladas nas falas das crianças.

Conforme já desenvolvido na seção II, a teoria que norteia este estudo sobre

práticas de letramento é a de Brian Street (2014). Portanto, nas análises, o

letramento é considerado de um ponto de vista antropológico, como as práticas

sociais de leitura e escrita e os valores atribuídos a essas práticas pelas crianças

entrevistadas que constroem e vivenciam a cultura na Ilha de Caratateua-PA.

4.1 PRÁTICAS DE LETRAMENTO: OS SENTIDOS IDENTIFICADOS NOS

PRIMEIROS ENCONTROS COM AS CRIANÇAS NA ESCOLA

Neste item, reuni os dados coletados nas duas primeiras entrevistas na

escola, nos meses de março e novembro de 2017. Os dados foram organizados a

partir de quatro eixos temáticos que emergiram dos enunciados das crianças, tendo

como base o roteiro de entrevista proposto (APÊNDICE 1), quais sejam: do ler e

escrever; dos bens culturais; do fenômeno religioso e da escola.

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4.1.1 Do ler e escrever

Baseado em Street (2014), dentro do modelo ideológico de letramento,

busquei entender o que significava o letramento para as crianças que o adquirem.

Para compreender, especificamente, os sentidos da leitura e escrita em suas vidas,

perguntei as que declararam saber ler – Caleu e Amora – como se sentiram quando

aprenderam. Aos que revelaram que não sabiam ler – Bernardo e Davi – questionei

para quê eles desejam aprender. Nos trechos dos enunciados abaixo as crianças

revelaram:

CALEU – Me senti bem. Eu falei que era impossível ler quando era menor e não sabia ler [...] A minha irmã me ensinou. (entrevista realizada em março 2017)

AMORA – Me senti feliz. Eu não era crente quando eu não sabia ler. Quando eu nasci eu não era crente, a mamãe também não era. Então, quando meu irmãozinho nasceu [...] aí mamãe ficou crente. Porque meu irmão ele teve um acidente de ônibus. Ela (mãe) tava afastada da igreja. A vida dela quando não era crente era muito pior. [...] Ai ela ficou na igreja agora a vida dela melhorou mais. Porque ela tá junto com Deus. (entrevista realizada em março de 2017)

BERNARDO – Pra mim estudar [...] pra ler livro. (entrevista realizada em março de 2017)

DAVI – Não sei... [...] Só sei assoletrar [...] eu só vou aprender ler, escrever e ser um bom menino. (entrevista realizada em março de 2017)

Caleu diz que se sentiu bem quando aprendeu a ler, pois achava que era

impossível. Ele conta que não aprendeu a ler na escola, mas com sua irmã. Sobre

isso, esclareço que, na entrevista com os pais, a mãe de Caleu informou que a irmã

dele é formada em Pedagogia pela Universidade do Estado do Pará (UEPA) e na

época de sua graduação alfabetizou-o em casa.

Amora revela sua felicidade de aprender a ler e associa essa aprendizagem

à crença religiosa de sua genitora, que retornou para a igreja após um grave

acidente que teve com seu filho. E o sentido de a vida ter melhorado é porque agora

sua mãe está, segundo ela, “junto com Deus”. Percebemos que a ideia internalizada

pela menina é que a melhora na vida de sua família se deve ao fato de a mãe ter-se

tornado “crente”. Isso justifica que as práticas de letramentos vivenciadas por esta

criança estão, em sua maioria, voltadas para ler a bíblia e livros religiosos, pois com

isso a vida melhora. É esse o sentido que sustém os eventos de letramento

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vivenciados na igreja e em casa nas práticas de letramento religioso, conforme

veremos nos demais itens desta seção.

Bernardo declarou não saber ler na primeira entrevista e diz que gostaria de

aprender para estudar e ler livro. Davi contou que sabe “assoletrar”; foi o único dos

entrevistados que declarou não saber ler em todos os encontros durante a pesquisa.

Ele relacionou o sentido de ser “bom” com a aprendizagem da leitura e da escrita.

Segundo Street (2014, p. 40), o estigma do “analfabeto” e do “iletrado”

deriva de uma associação equivocada de dificuldades de leitura e escrita com ignorância, atraso mental e incapacidade social [...] muitos assim rotulados, seja por si mesmos ou por outros, têm na verdade pequenas dificuldades com ortografia, decodificação, estrutura da frase ou do parágrafo (ou simplesmente pronúncia não padrão!).

Para o autor, a origem disso está na prevalência da “grande divisão” entre

letramento e oralidade. “Pessoas não são tábuas rasas à espera da marca inaugural

do letramento” (STREET, 2014, p. 31). Percebi que em seu cotidiano Davi e

Bernardo usam uma mescla de escrita, imagens, sons e linguagem oral, utilizam o

celular e também estão habituados a formas de leituras de textos religiosos como

também veremos na descrição das cenas de letramento em seus ambientes

familiares na seção 4.2.

Sobre a importância da leitura e da escrita na sociedade, as crianças

revelaram o que pensam:

CALEU – Têm algumas coisas que é inglês, aí as legendas são em português [...] pra ler os livros também. Eu leio três páginas por dia (livro “Jogada final”)

(entrevista realizada em março de 2017) AMORA – A pessoa aprende e não fica burro. E a mamãe disse que quem fica burro cheira peido de cavalo. (entrevista realizada em Março de 2017)

BERNARDO – Porque se eu estudar muito eu vou conseguir um emprego [...] de policial [...] pega ladrão [...] É o certo. [...] Porque minha avó foi assaltada. (entrevista realizada em março de 2017)

DAVI – Se eu souber ler e escrever eu vou poder mexer no celular e o papai vai me dar um. (entrevista realizada em março de 2017)

Amora e Bernardo referiram-se à importância da leitura para perspectivas de

emprego. Caleu e Davi atribuem importância à leitura e escrita para realizar coisas

práticas na vida diária, como ler legendas e mexer no celular, e Davi tem a

esperança de ganhar um aparelho do pai, caso aprender a ler.

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As concepções de algumas crianças têm a influência do letramento

autônomo. Segundo Street (2014, p. 34), o modelo autônomo de letramento

considera a leitura e escrita desvinculada do contexto social e a partir desta

concepção, atribui-se a culpa de não ter um bom emprego aos “níveis” de letramento

de cada pessoa, estabelecendo uma fronteira entre “letrados” e “iletrados”. Em

momento de desemprego elevado, por exemplo, o “analfabetismo” é um modo

conveniente de desviar o debate da falta de emprego para a suposta inadequação

das pessoas ao trabalho, desviar a culpa das instituições para os indivíduos, das

estruturas de poder para a moral das pessoas. É possível perceber que esta ideia

está presente nas falas de Amora, que reproduz o discurso da mãe: “quem fica burro

cheira peido de cavalo”, ou seja, vai puxar carroça, não ter um bom emprego.

A pedagogização do letramento, segundo o autor, se torna a chave

simbólica para vários problemas graves na sociedade, mascara e naturaliza o papel

do letramento na contemporaneidade, e encapsula-se em discursos sobre propósito,

função e necessidade educacional. Street (2014) mostra estudos recentes que

discutem sobre “quando se trata de conseguir um emprego o nível de letramento é

menos importante do que aspectos de classe social, gênero e etnia: o baixo

letramento é mais provavelmente um sintoma de pobreza e de privação do que uma

causa”. Testes de letramento em empresas são pra filtrar certos grupos e tipos

sociais e não exatamente para averiguar habilidades letradas.

Importante ressaltar também que o autor mostra que o número de emprego

não cresce necessariamente com as taxas de alfabetização. Pessoas com

dificuldades de letramento podem estar revezando com outras em empregos

escassos. A falsa esperança criada em torno do que significa a aquisição do

letramento para perspectivas de trabalho, mobilidade social e realização pessoal,

mascara o aspecto ideológico do letramento e desvia a discussão do real problema

social: o desemprego.

Bernardo disse: “se eu estudar muito, eu vou conseguir um emprego”, ou

seja, tem uma ideia formalizada de que a aquisição do letramento lhe trará

perspectivas de emprego, ascensão econômica e participação na ordem social. O

menino quer ser policial, desejo que surgiu em decorrência de um trágico

acontecimento na família: sua avó foi assaltada.

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Constatei que a leitura faz parte da rotina de todas crianças; elas apontaram

o livro que mais leem ou que escutam a leitura em sua casa nos seguintes

enunciados:

CALEU - “De volta ao jogo” [...] Por causa que é uns da minha coleção [...] sobre Minecraft. (entrevista em março 2017)

AMORA - Eu leio a palavra (a bíblia). (entrevista em março de 2017)

BERNARDO - A vovó lê de Jesus. (entrevista em março de 2017)

DAVI – A bíblia. (entrevista em março de 2017)

Amora e Davi dizem que o livro que mais leem é a bíblia. Bernardo fala a

respeito de um livro “de Jesus” (“A Bíblia das criancinhas”) que sua avó lê para ele.

A única criança que citou um livro que não é religioso foi Caleu. Ele lê um livro

chamado “De volta ao jogo” e diz que ele é importante, porque faz parte de sua

coleção de jogos sobre Minecraft (é um jogo eletrônico que permite a construção

usando blocos dos quais o mundo é feito. Foi criado por Markus "Notch" Persson).

Nas casas das crianças, no item 4.2, tive a oportunidade de conhecer esses livros

citados por elas e registrar práticas de letramento com base na leitura desses

gêneros.

4.1.2. Dos bens culturais: internet, cinema, circo e biblioteca

Partindo do conceito de cultura de Brandão (2002, p. 22), “tudo aquilo que

criamos a partir do que nos é dado, quando tomamos as coisas da natureza e as

recriamos como objetos e os utensílios da vida social, representa uma das múltiplas

dimensões daquilo que em uma outra chamamos de: cultura”. Então, agrupei alguns

bens culturais identificados e comentados pelas crianças, como cinema, teatro,

biblioteca, circo, internet e redes sociais.

As culturas das crianças envolvem

atividades, rotinas, artefatos, valores e ideias produzidos e partilhados em interações com os seus pares. Estas atividades e formas culturais não nascem espontaneamente; elas constituem-se no mútuo reflexo das produções culturas dos adultos para as crianças e das produções culturais geradas pelas crianças nas interações (SARMENTO, 2005 apud SOUZA, 2009, p. 18).

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Munarim e Girardello (2012) discutem que os produtos culturais, sob a

perspectiva mercadológica, estão muito presentes na vida das crianças. A televisão

é um meio de comunicação importante na difusão das ideias mercadológicas. “Não

apenas por ser um meio presente em praticamente todo o mundo, mas também por

ser fundamental para a complexa rede de relações de mídia e consumo que envolve

a internet, as revistas, os games e outros veículos” (MUNARIM; GIRARDELLO,

2012, p. 337).

Todos os entrevistados possuem televisão em suas casas e assistem a

filmes, novelas e desenhos. Mas a internet já ocupa um grande espaço na

organização da vida das crianças. Elas contaram que acessam a internet por meio

do celular de parentes, como mãe, avó e irmão, e falaram o que fazem:

CALEU – Pra assistir vídeos de Minecraft de jogos. (entrevista realizada em março de 2017)

AMORA – Vídeo no YouTube da Pepa, do Minecraft [...] Eu uso pra baixar jogo pra ver vídeo na internet [...] Eu baixo jogo de cuidar de grávida, baixo jogo de corrida, jogo de veterinária, de bebezinho [...] Eu assisto Pequeno Reino, Quintal da cultura, Turma da Mônica [...] Eu gosto de ver os desenhos. (entrevista realizada em março de 2017)

BERNARDO - Tem os de jogo de policial. Eu faço baixar jogo ou ver vídeo [...] Goku [...] do Homem aranha, do... como é mesmo é... Naruto. (entrevista em março de 2017)

DAVI - Pra ver vídeos de jogos Minecraft. (entrevista realizada em março de 2017)

Caleu, Amora e Davi citaram que acessam a internet para baixar jogos e ver

vídeos de Minecraft. Caleu explica que se trata de um jogo em que se pode tanto

construir coisas como, também, lutar para sobrevivência, enfrentando um dragão,

por exemplo. “É tipo de construir coisas, pode sair matando o winter dragão [...] É o

winter que é um bicho que tem três cabeça (Caleu, entrevista realizada em março de

2017).

Além disso, Amora revela que utiliza a internet para ver vídeos no YouTube

(plataforma de compartilhamento de vídeos na internet) da “Pepa” (Peppa Pig é uma

série de desenho animado destinado ao público infantil, produzida por Astley Baker

Davies e Entertainment One); “Pequeno reino” (é uma série de desenho animado

exibida no canal de TV a cabo Nickelodeon destinada a crianças, e, no Brasil, é

exibida na TV Cultura desde 2016), “Quintal da cultura” (é um programa infantil onde

quatro amigos se encontram para brincar, se divertir e fazer diversas descobertas,

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exibido pela TV Cultura); e “Turma da Mônica” (é uma série de histórias em

quadrinhos criada pelo cartunista e empresário Mauricio de Sousa, desde 1959;

desde 2012 há um canal oficial da Turma da Mônica no YouTube).

Amora também baixa joguinhos de “cuidar de grávida”, “corrida”, “veterinária”

e “bebezinho”. Observei que a menina procura ver vídeos que correspondem às

suas vivências. Pois, deseja ser veterinária e sua mãe recentemente esteve grávida

e agora ela tem um irmão bebê que ajuda a cuidar. Aqui percebi uma mediação que

ocorre antes e depois de se ter acesso às mídias, onde se assiste a determinados

programas e as repercussões no espaço doméstico.

Bernardo usa para baixar jogos e ver vídeos do “Goku” (personagem

protagonista da franquia Dragon Ball, criada por Akira Toriyama; sua primeira

aparição ocorreu no primeiro capítulo do mangá Dragon Ball); “Homem-aranha” (um

super-herói fictício que aparece nas histórias em quadrinhos publicadas pela Marvel

Comics); e “Naruto” (uma série de mangá escrita e ilustrada por Masashi Kishimoto).

O fato é que

as mídias estão presentes na vida das crianças como nunca antes visto – basta dar uma volta por cidades grandes ou praças de povoados do interior: os celulares estão nas mãos e os computadores estão [...] nas lan houses “oficiais” ou improvisadas dentro de barbearias, mercearias ou postos de gasolina” (MUNARIM; GIRARDELLO, 2012, p. 335).

A autoras destacam também a necessidade de conhecer e refletir sobre as

maneiras como as crianças se relacionam com as mídias e a forma como atribuem

sentidos às suas brincadeiras nos mais variados contextos de vida.

Para Street (2014, p. 40), as diferenças em habilidades cognitivas individuais

decorrem de “diferenças na experiência social e cultural, mais do que da presença

ou ausência do letramento”. A possibilidade de vivenciar práticas em que a escrita

está presente no cotidiano se ampliou com o advento das novas tecnologias digitais,

que envolvem mais do que apenas dominar a leitura e a escrita. Verifiquei que

Bernardo e Davi utilizam a internet por meio do celular e o fato de ainda não

decodificarem plenamente a escrita, não os impede de usar a tecnologia digital de

forma autônoma. Eles participam de uma prática letrada em que usam a tecnologia

digital.

Street (2010, p. 45) defende que “as práticas sociais determinam como

usamos a tecnologia”, pois não se pode esquecer o componente social, a tecnologia

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isoladamente não determina a natureza do letramento. As crianças revelam a

importância da internet em suas vidas:

CALEU - Eu gosto de pesquisar. (entrevista realizada em novembro de 2017)

AMORA - Porque às vezes quando não tá passando desenho na televisão a gente entra na internet e vê os desenhos que tá passando

lá a gente apare.... escreve lá “turma da Mônica” ou fala pelo negócio que tem lá. (entrevista realizada em novembro de 2017)

BERNARDO - Eu fico jogando. (entrevista realizada março de 2017)

DAVI - Porque dá de estudar. (entrevista realizada em novembro de 2017)

Obtive o relato de quatro sentidos diferentes. A importância da internet para

Caleu está no fato de poder pesquisar. Bernardo diz que é importante para jogar.

Para Amora é importante para ver desenhos. E Davi diz que é importante para

estudar.

Amora e Davi revelaram também como fazem uso da rede social Facebook. Eles contam:

CALEU - Eu tinha uma conta só que ela foi hackeada [...] Eu escrevia um comentário no vídeo. (entrevista em março de 2017)

AMORA - Eu entro no Face mas eu só compartilho as coisas [...] da minha mãe [...] ela não deixa mas eu entro mesmo [..] Ela não gosta que ela tem medo de alguém descobrir [...] Ela tem medo de algum cara me... Ela disse pra mim se o Face for meu é ...aí se eu curtir as coisas do cara ele vai saber onde eu estudo, meu nome, a idade que eu tenho [...] eu entro no Face da vovó, só que eu curto as coisas só que o Face não é meu, é da minha avó, aí eles pensam que é minha avó que tá curtindo. (entrevista realizada em março 2017)

Caleu fala que já teve perfil na rede social, mas sua conta foi hackeada, ou

seja, invadida e roubada, e não foi possível obter mais acesso à mesma. Ele informa

que fazia comentários em vídeos. Amora explica que usa as redes sociais de sua

avó e de sua mãe, e foi alertada para os perigos de usar tais redes. Sua mãe não

gosta e justifica que a possibilidade de a criança entrar em contato com estranhos e

fornecer dados pessoais é um perigo. Entendi que o medo se refere à pedofilia. A

menina aponta, então, algo negativo em relação ao uso da internet.

O uso da internet pelas crianças revela os significados das práticas letradas

na sociedade contemporânea, que não estão associados apenas com a

escolarização. As crianças desenvolvem um modo de lidar com a internet, suporte

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de diversos gêneros textuais e discursivos, e adquirem convenções culturais, fazem

releituras e aprendem novas informações e novas maneiras de interagir.

Entretanto, a leitura de materiais impressos ainda é presente. As crianças

também fazem leituras de livros. Importante destacar o que as crianças revelaram

sobre o espaço da biblioteca Sapucaia da escola. Eles relatam:

CALEU – Sempre quando eu vou lá tá fechada. (entrevista realizada em março de 2017)

AMORA – Pego qualquer livro, menos aqueles que são lá dos adultos [...] Porque a gente aprende mais [...] se a gente lê a gente aprende a escrever, a gente fica mais inteligente, aí assim vai, né, porque a gente fica inteligente. (entrevista realizada em novembro de 2017)

BERNARDO – Eu peguei um livro uma vez pra tentar ler só que eu não consegui [...] Eu gostei da imagem da capa dele [...] tinha mulher estendendo roupa no varal, tinha menino empinando pipa e tinha também um carro [...] Li já alguma lenda [...] Do padre da igreja [...] da matinta do lobo [...] Porque o homem ele vira lobo e a matinta é uma... vira um pássaro. (entrevista realizada em março de 2017)

DAVI - Eu vejo livro [...] o da... das lendas [...] Da do curupira [...] Porque além dele não existe, eu gosto [...] da matinta [...] da cobra grande. (entrevista realizada em novembro de 2017)

Caleu conta que nunca frequentou a biblioteca porque sempre está fechada.

Amora, Bernardo e Davi dizem que frequentam a biblioteca de forma autônoma.

Bernardo conta que uma vez pegou um certo livro porque se interessou pela capa

que tinha uma mulher estendendo roupa, um menino brincando de pipa, brincadeira

que o menino revela gostar muito, como será relatado no item 4.3.3, e um carro.

Mas ele não conseguiu “ler” o livro. E também diz que “lê” livros de lenda e cita as

lendas do lobisomem e da Matinta Pereira.

Amora conta que pega “qualquer livro” para ler, menos os que são “dos

adultos”, fazendo uma classificação entre livros infantil e adulto. Os sentidos

atribuídos à leitura na biblioteca é para ficar “mais inteligente”. Street (2014, p. 41)

nos lembra que “o letramento em si mesmo não promove o avanço cognitivo”. Neste

sentido, observa-se que essa leitura na biblioteca feita pela entrevistada não tem um

caráter ritualizado para apenas atender a exercícios escolares, mas faz parte de sua

rotina dentro da concepção que revela ter sobre o domínio da leitura e a escrita, qual

seja, o de desenvolver mais inteligência, é essa prática de letramento que sustém o

seu engajamento no evento citado.

Amora revela que tipo de livros lê na biblioteca:

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Eu gosto da lenda da iara, eu gosto da lenda do saci pererê, eu gosto da lenda da matinta perera [...] porque essas lendas são assustadoras e eu gosto, né, mas quando é de noite eu fico morrendo de medo, aí eu vou lá pra cama da minha mãe e fico a noite toda até o amanhecer [...] a da matinta pereira é muito assustadora [...] dizem por aí que ela existe que ela fica na porta da pessoa com olho aberto esperando a noite toda, o cabelo dela é todo assim embaixo ela fica num galho de árvore de cabeça pra baixo esperando o homem dá um negócio pra ela [...] E se ele não dá, ela pode matar ele. (entrevista realizada em novembro de 2017)

A menina diz que gosta das lendas da Iara, do Saci Pererê e da Matinta

Pereira porque são assustadoras, o que lhe causa medo, especialmente, à noite,

quando precisa da mãe para poder dormir. Para ela, a mais assustadora é a da

Matinta que fica na porta da pessoa esperando um “negócio” e caso não receba da

pessoa, ela pode até matar.

Embora diga que não sabe ler nem escrever, Davi também frequenta a

biblioteca da escola. O menino diz que vê livro sobre lendas e cita as lendas do

Curupira, Matinta e Cobra Grande. A lenda que ele mais gosta e conhece é a do

Curupira. O sentido da lenda para ele está no enunciado “porque além dele não

existir eu gosto”. Davi realiza um evento de letramento em que busca prazer na

leitura. Ele se refere ao Curupira como um ser mitológico e afirma que ele “não

existe”. Por outro lado, Amora narrou a lenda sobre a Matinta em 3ª pessoa e diz

sentir “medo”, ela afirma “dizem por aí que ela existe”.

Para Street (2014, p. 51), “mito e história estão, ambos, encaixados em

convenções sociais particulares e que não se correlacionam necessariamente nem

diretamente com uma distinção entre verdade e falsidade, nem com a distinção entre

oralidade e letramento”. Assim, identifiquei mais um gênero textual presente do

cotidiano das crianças, a lenda. Segundo Marcuschi (2008), trata-se de um gênero

do domínio discursivo ficcional.

Importante ressaltar que na cultura amazônica, os encantados estão

presentes em todos os lugares e estão representados tanto no imaginário do índio

como no do caboclo. São seres que se revestem de uma força mágica e que

habitam o “fundo” ou a “mata”. Possuem “poderes” extraordinários. A convivência

com o sobrenatural é um traço característico da vida amazônica. E o repertório

verbal das crianças paraenses é cercado dos mesmos mistérios recorrentes no

imaginário do povo amazônico (ALVES, 2007).

Considerando que Street (2014, p. 44) afirma que o modelo ideológico de

letramento ressalta a importância do processo de socialização na construção do

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significado de letramento dos participantes e, portanto, se preocupa com as

instituições sociais gerais por meio das quais esse processo se dá, e não somente

com as instituições “pedagógicas”, identifiquei algumas vivências em outros espaços

além da escola que também oferecem às crianças um “modelo cultural” (STREET,

2014, p. 154), como cinema, teatro e circo.

As crianças revelam os espaços culturais que já frequentaram, conforme os

trechos das entrevistas selecionados abaixo:

DAVI – “A espada de prata” (teatro) [...] foi um dos “Os Minions” (cinema) (entrevista realizada em março de 2017)

BERNARDO – Eu vi um que é o... Muana, um mar de aventura, Pica-pau (cinema) [...] Tinha o homem de ferro, o homem aranha e o homem que anda de moto [...] o homem aranha que ele subia assim nas parede (circo) (entrevista realizada em novembro de 2017)

DAVI – “Pet, a vida secreta dos animais” (cinema) [...] Bosque (Bosque Rodrigues Alves) [...]. Porque é eu só vou quando tem passeio da escola. (entrevista realizada em março de 2017)

Caleu já foi ao teatro assistir a “A espada de prata”, gênero textual conto de

fadas, e ao cinema assistir ao filme “Minions”, comédia cinematográfica. Bernardo

lembra que seu pai já o levou ao cinema para assistir “Moana, um mar de

aventuras”, um filme musical de fantasia e aventura, e o filme do “Pica-pau”, filme de

animação do gênero comédia. Também já foi ao circo que tinha o “homem de ferro”,

“homem aranha” e o “homem que anda de moto”. O que ele mais gostou foi do

homem aranha que subia pelas paredes. Davi diz que já foi ao cinema ver “Pet, a

vida secreta dos animais”, seu pai o levou para assistir, e já foi ao Bosque Rodrigues

Alves, em Belém. Porém, frequenta mais esses lugares “quando tem passeio da

escola”.

Sobre a importância desses espaços em suas vidas, as crianças expressam

os seguintes sentidos:

CALEU – Pra se divertir, pra aproveitar a vida de criança. (entrevista em novembro 2017)

AMORA – A mamãe ela não tem dinheiro pra me levar [...] em vez dela levar a gente pra passear do dinheiro ela leva, ela vai compra comida pra nos sus...pra nos sustentar. (entrevista realizada em novembro de 2017)

BERNARDO – É porque é também pra ver o que tipo coisas engraçadas no cinema e os palhaço fica dando mortal fazendo um monte de palhaçada.

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(entrevista realizada em Novembro de 2017)

DAVI – Que é legal ver filme, legal ver os pa...os palhaço. (entrevista realizada em novembro 2017)

Caleu emitiu sua opinião, dizendo que acha importante ir para esses lugares

para se divertir e para viver plenamente a vida de criança. Davi atribui o sentido da

diversão. Bernardo diz que é importante ir para os locais comentados para ver

“coisas engraçadas” e “palhaçada”, ou seja, também confere o sentido de diversão,

lazer.

Amora revelou o motivo de nunca ter frequentado cinema, museu ou circo, e

indica sua situação socioeconômica. Na primeira entrevista, a menina falou que

tinha dois irmãos, e sua mãe, que está grávida do quarto filho, não tinha dinheiro

para levá-los ao circo, museu ou cinema. Na segunda entrevista, Amora contou que

seu irmão caçula havia nascido; embora atribua o sentido de “se divertir” para os

locais citados, não os frequenta porque sua mãe usa o dinheiro para sustentá-los em

vez de levá-los para passear.

Este contexto familiar da vida de Amora nos remete ao pensamento de

Street (2014, p. 97), sobre “o que o letramento é para qualquer grupo é o que ele é

nos contextos em que é vivenciado”. Amora ainda não teve a oportunidade de

vivenciar os letramentos nos locais citados porque a situação financeira de sua

família não permite, o sentido disso está na justificativa apresentada pela criança: “a

mamãe ela não tem dinheiro pra me levar”.

4.1.3. Do fenômeno religioso: a bíblia e as atividades na igreja

Entendo o fenômeno religioso a partir do conceito de Alves e Junqueira

(2011), que denominam tal fenômeno como um fato humano, portanto, pertencente à

cultura e presente na diversidade cultural brasileira; envolve as manifestações

religiosas e a forma de entender a vida diante da transcendência e é um conteúdo

importante para compreender e reconhecer as diferenças. O estudo do fenômeno

religioso deve possibilitar o diálogo marcado pelo respeito às diversas convicções

religiosas. Assim, neste item, agrupei práticas e eventos de letramento relatados

pelos sujeitos e materializados em suas manifestações religiosas, considerando que

as experiências religiosas percebidas no contexto dos sujeitos fazem parte de seus

letramentos.

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Todas as crianças entrevistadas já leram ou leem a bíblia, que é apontada

como o principal livro na igreja que elas frequentam. Sobre a importância da leitura

da bíblia, os sujeitos revelam:

CALEU - Eu lia a minha lá no Telégrafo [...] contava sobre um ...

senhor que tinha cento e alguma coisa de anos, aí foi contou também as primeiras pessoas que nasceu. (entrevista realizada em novembro de 2017)

BERNARDO - Porque é coisa marcada de Deus. (entrevista realizada em Março de 2017)

AMORA - Porque a gente vai aprendendo mais a saber de Deus, né, e assim a gente vai saber mais as perguntinhas que as pessoas falam pra gente de Deus e a gente vai ganhando as oportunidades e aprendendo mais sobre Deus, não vai pro caminho dos...não vai pro caminho sujo, tem que ir pro caminho limpo. (entrevista realizada em novembro 2017)

DAVI – Porque, às vezes, a minha avó, ela é evangélica e ela manda a mamãe ler pra mim. (entrevista realizada em Novembro 2017)

Caleu diz que não lê mais sua bíblia com frequência porque ficou na casa do

Telégrafo, bairro que ele morava antes. Ele atribui a importância da leitura da bíblia

à genealogia bíblica, a história dos primeiros humanos que nasceram, e de um

personagem que viveu mais de cem anos. No caso de Amora, a prática de

letramento que incorpora a leitura da bíblia com seus diversos gêneros na vida da

criança envolve a aprendizagem sobre Deus e saber responder perguntas sobre

Deus, com isso ganhar “oportunidades” e, assim, ir para o “caminho limpo” em vez

de ir para o “caminho sujo”.

O sentido atribuído à bíblia para Bernardo é “porque é coisa marcada de

Deus”, ou seja, a escrita serve para entender o sobrenatural. Davi conta que sua

avó, que é “evangélica”, manda sua mãe ler a bíblia para ele. A avó é considerada

uma autoridade na família, que deve ser obedecida. Aqui identifiquei um evento de

letramento que a criança participa em casa, a leitura da bíblia, o que foi registrado

em sua casa e em seu diário de letramento, descritos nos itens 4.2.4 e 4.3.4.

Identifiquei os usos do letramento nas práticas religiosas quando as crianças

contaram sobre os tipos de atividades que realizam na igreja e a importância disso

nas suas vidas. Elas explicam:

CALEU - Eu frequentava só que era lá no Telégrafo [...] Eu só brincava lá [...] lá tinha pra mim desenhar e pra mim pintar. (entrevista em março de 2017)

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AMORA - É quando é domingo é escola bíblica dominical. Eu leio a revista [...] pra criança. [...] a professora faz as perguntas lá. Aí a gente vai responde [...] Escrevo [...] Eu oro [...] como eu não sei orar direito então eu tiro as palavras da minha mente e vou lendo. Aí só que eu fico com a minha professora, fica atrás de mim. Eu fico na frente dela e o resto das criança ficam tudo na minha frente assim. (entrevista realizada em março de 2017)

BERNARDO - Porque a gente busca Deus [...] eu fico na escolinha, eu ouço um monte de história de Deus [...] Leiam a blíblia, cantam. É tudo separado. A de criança fica no alto, a escolinha e os adultos ficam no salão. E a nossa professora fica ensinando a gente, da coisa pra gente desenhar. A gente desenha, às vezes a gente vê vídeo, lê uma historinha de Jesus. (entrevista realizada em novembro de 2017)

DAVI - Pra orar... pra Jesus [...] Que Deus me guarde. [...] Começa orando e eles terminam cantando. (entrevista realizada em novembro de 2017)

Atualmente, a família de Caleu não costuma frequentar a igreja em

Caratateua, embora os pais se identifiquem como católicos. Mas ele frequentava a

igreja protestante com sua tia quando morava no bairro Telégrafo, em Belém-PA.

Sobre isso, ele recorda que fazia atividades de pintura e desenho com uma

“professora” que ficava apenas com as crianças enquanto os adultos faziam outra

atividade.

Os usos do letramento na prática religiosa é algo muito presente na vida de

Amora. Sua família frequenta a igreja Assembleia de Deus – Ministério de

Madureira. Todos os dias há culto na igreja, porém geralmente sua família frequenta

às quartas, sextas e domingo, pela parte da manhã e da noite. Mas, quando é

possível, ela revela que vai todos os dias com a mãe à igreja. A menina descreve

como é a rotina na igreja e diz que participa da “escola bíblica dominical”, um evento

feito só para crianças, no qual é utilizada uma revista sob a orientação de uma

“professora” da igreja. Assim, existem momentos de leitura, escrita e oração no

coletivo feita pela menina diante das outras crianças, embora afirme que não sabe

“orar direito”, mas tira “as palavras” da “mente”, ou seja, uma prática voltada para a

oralidade com o gênero textual oração.

A mãe de Bernardo frequenta a denominação cristã evangélica

Quadrangular e a avó e o tio frequentam a igreja Universal, uma denominação cristã

evangélica neopentecostal. Geralmente a criança vai à igreja com a avó e a mãe aos

domingos. Ele descreve a sua rotina no templo religioso dando ênfase à sua

participação na igreja Universal. Ele explica que na igreja as pessoas cantam, leem

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a bíblia e as atividades dos adultos são separadas das crianças. Os menores ficam

em uma “escolhinha” com uma “professora”, que os ensina a desenhar, mostra

vídeos e lê historinhas de Jesus, o sentido da prática letrada na igreja está em

“buscar Deus”.

O sentido de ir para a igreja, segundo Davi, é para “orar pra Jesus”; ele pede

em suas orações “que Deus o guarde”. Neste evento, também identifiquei o gênero

textual oração. A prática de letramento na igreja é para alcançar a proteção divina

por meio do diálogo com o sobrenatural, Deus. Essa igreja foi a única identificada na

pesquisa em que não há atividades diferenciadas para adultos e criança. O único

livro religioso utilizado é a bíblia. Ele comenta que frequenta com sua avó a igreja

Belo Monte, que fica no bairro Água Boa.

Em outro trecho da entrevista, Amora conta sobre um evento de letramento

que participou na igreja, um sorteio de brinquedo para crianças:

E uma vez eu tava na igreja e tavam fazendo um sorteio lá pra ganhar brinquedo e o meu nome tava na lista também. Aí eu tava na igreja e fiz assim “Oh, deixa eu ganhar esse sorteio” (levantou as mãos pro céu), aí depois quando falaram... “Amora”, aí eu [..] fui me embora na frente lá eu peguei e bati uma foto [..] eu ganhei um brinquedo. (entrevista realizada em março 2017)

Após já ter afirmado que a vida de sua mãe melhorou por ter retornado à

igreja e que saber sobre Deus faz com que ela tenha mais “oportunidades”, a

menina descreve o evento comentando sobre o gênero textual presente, a oração.

Seu nome estava escrito na lista para ser sorteado. Ela pediu para Deus que

ganhasse o sorteio e considera que teve seu pedido atendido, pois foi sorteada e

ganhou um brinquedo. Essa é a prática de letramento que engloba os eventos de

letramento voltados para a prática religiosa na igreja e no lar, a conquista de valores

materiais e imateriais na vida.

Segundo Street (2014, p. 81), para Goody, defensor da grande divisão entre

letramento e oralidade, a religião está no lado oral da “grande divisão”, e se torna um

obstáculo na sociedade para a distinção entre mito e lenda, por exemplo. Para este

estudioso, a religião, quando fica implicada em uma rede mais ampla de letramento,

deve mudar seu caráter e levar à generalização de valores, por exemplo, a regra

“não matarás teu próximo” se torna “não matarás”.

Entretanto, dentro de uma visão ideológica de letramento proposto por Street

(2014), percebi que nesses processos vividos pelas crianças e suas famílias, a

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relação entre os usos do letramento e a prática religiosa se tornam parte da textura

de suas vidas. A religião letrada e as crenças religiosas estão entrelaçadas na

estrutura social. Então, a rede de classificações implicadas nesses processos, tem

correspondência com aspectos da estrutura social.

Para Brandão (2002), tal como a educação, a religião é um território de

trocas de bens, de serviços e de significados entre as pessoas. As agências

culturais de trabalho religioso envolvem hierarquias, distribuição desigual do poder,

inclusões e exclusões, rotinas, programação de formação. É um cenário de criação e

de recriação de fatos sociais e de metáforas culturais, envolto pelo poder do rito, do

inesperado, do mito, da magia e do milagre.

As interpretações e estatutos locais dentro de uma religião variam no tempo

e no espaço entre culturas e em uma determinada cultura. Considerando que há

muitas denominações religiosas na Ilha de Caratateua, cada criança tem sua

interpretação e sentidos, tanto para os textos da bíblia, como para os

acontecimentos diários na vida. Em outras palavras, a prática local é o resultado do

modo como o ambiente, sempre em transformação, formado pela tradição (no caso

de denominações pentecostais e neopentecostais citados pelos sujeitos), se reflete

em circunstâncias particulares e com relação a outras tradições culturais presentes.

“É a prática social por inteiro, incluindo a forma de letramento, que serve para

produzir sentido” (STRETT, 2014, p. 106).

4.1.4 Da escola

Segundo Street (2014), na escola os estudantes são posicionados e

localizados em um espaço construído social e autoritariamente, por meio de um tipo

particular de linguagem evidente, nos discursos dos professores, no texto dos

materiais escritos que circulam nela, nas salas de aula, nas paredes e no fluxo de

papelada burocrática que constantemente a significa e reproduz. Nela, os alunos

estão situados em um universo particular de signos. Perceber o sentido que a

criança atribui à escola é fundamental para analisar seus processos letrados.

A pesquisa de Street (2014), que examinou os processos de pedagogização

do letramento na escola, aponta que na escola a língua é objetificada, tratada como

algo externo aos alunos, como se tivesse qualidades autônomas, não sociais. A

linguagem do ensino na escola ajuda a construir um distanciamento entre as

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crianças e sua língua. Assim, “muitos indivíduos, frequentemente contra sua própria

experiência, passam a conceituar o letramento como um conjunto separado,

reificado de competências ‘neutras’, desvinculado do contexto social” (STREET,

2014, p. 129).

Sobre os sentidos da escola, as crianças revelam:

CALEU – Pra estudar pra quando crescer se formar [...] Polícia federal e cientista [...] por causa que pra ser cientista eu vou precisar saber muita coisa... ler... vou escrever bastante. (entrevista realizada em novembro de 2017)

AMORA – Porque é importante é... que a gente aprende, é a gente fica inteligente, muito inteligente, a gente vai aprendendo mais [...] Eu quero ser veterinária. [...] quando eu era pixixita, pequena, eu tinha dificuldade ainda de ler, aí depois eu fui... eu fui melhorando [...] agora eu tô aqui no terceiro e tá chegando a nossa formatura e eu não sei se eu vou passar ou repetir, né. (entrevista realizada em novembro de 2015)

BERNARDO – É porque a gente aprende, a gente brinca na hora do recreio. (entrevista realizada em novembro de 2017)

DAVI – Porque a gente aprende mais[...] Vou poder trabalhar [...] Ser médico. (entrevista realizada em novembro de 2017)

Caleu, Amora e Davi depositam perspectivas de emprego e ascensão social

por meio da educação proporcionada pela escola. Percebi nas falas das crianças

uma convenção internalizada sobre formação; eles reconhecem na escola um meio

pelo qual podem alcançar seu objetivo de ser policial federal e cientista, veterinária e

médico. E que para isso também é necessário dominar a tecnologia da leitura e da

escrita e, assim, depositam no letramento escolar sua expectativa de formação para

obter um emprego.

Segundo Street (2014, p. 125), o que vem com o letramento escolar é

“produto de pressupostos ocidentais sobre a escolarização, poder e conhecimento,

mais do que algo necessariamente intrínseco ao próprio letramento”. Além disso, a

visão dominante na escola do letramento, como uma capacidade que pode ser

medida nos sujeitos, independente do contexto social, retroalimenta falsas

esperanças em torno do que significa a aquisição do letramento para perspectivas

de trabalho, mobilidade social e realização pessoal.

Práticas de letramento são intrínsecas ao contexto político e ideológico e as

consequências variam conforme tal contexto. Desta forma, a leitura e escrita por si

só não são a “passaporte” para ascensão econômica e social, embora o letramento

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contribua para que os sujeitos alcancem níveis de prosperidade. Neste sentido, o

modelo ideológico não nega a importância das habilidades técnicas e dos aspectos

cognitivos da leitura e escrita, mas os entende como inseparáveis dos contextos

culturais e das estruturas de poder.

Para Amora, a escola é importante para aprender e “ficar” inteligente. A

menina deseja ser veterinária. Ela releva que tinha dificuldade, mas foi “melhorando”

e passou em cada ano escolar; agora chegou o momento da formatura e está

aguardando o resultado dado pela escola se ela será aprovada ou não para concluir

o ciclo I. Esses sentidos atribuídos pela menina revelam um discurso de “prontidão”

escolar, uma versão do letramento associada à escolarização, voltada para o

sucesso e presteza escolares.

Neste sentido, Corsaro (2011) traz a noção da escolarização como um

trabalho da criança em que passa longos períodos e aponta para a natureza

burocrática da escola – o foco no funcionamento da escola como dispositivo que

transforma crianças imaturas e não qualificadas em adultos produtivos. Essa

interpretação da escola pode ser claramente relacionada às teorias tradicionais de

socialização e desenvolvimento infantil; o foco é preparar a criança para seu futuro

como adulto, em vez de apreciar suas contribuições no presente.

Segundo Street (2014, p. 143),

quando participamos da linguagem de uma instituição, seja como falantes, ouvintes, escreventes ou leitores, ficamos posicionados por essa linguagem; ao se dar esse assentimento, uma miríade de relações de poder, autoridade, status se desdobram e se reafirmam. No cerne dessa linguagem na sociedade contemporânea, existe um compromisso ininterrupto com a instrução. É ele que emoldura e constrói o que ele designa por pedagogização do letramento.

Isso ajuda a construir a relação da criança com a língua e com o mundo

escrito, fornecendo um modelo para ser absorvido.

Bernardo trouxe um sentido para a escola não registrado nas falas dos

outros entrevistados. Para ele, a escola é importante porque nela é possível

aprender e brincar; o sentido está na aprendizagem, mas também está na

brincadeira, em especial na hora do “recreio” citada por ele.

Souza (2009, p. 128) conclui que o recreio é um “palco favorável das

culturas infantis e espaço carregado de discurso ideológico”. Ainda Munarim e

Girardelo (2012, p. 342) refletem que, devido à perda do espaço lúdico em

decorrência da urbanização, a escola é um importante local onde as brincadeiras

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acontecem e “tem se tornado o principal, senão único, lugar onde as crianças se

reúnem, criando uma relação de interação e criação cultural entre pares”.

Segundo Street (2014), o letramento escolarizado contribui para um tipo

particular de cidadão, de identidade e de nação, versão construída, assimilada e

interiorizada em muitos outros contextos, não apenas na escola. Mas a própria

prática doméstica a retroalimenta. Percebi na fala da criança que as tarefas

escolares preenchem o espaço doméstico. Por exemplo, Amora afirma:

No dia a dia eu uso (leitura e escrita) pra estudar, pra aprender mais [...] na minha casa assim eu não faço dever, eu só faço quando eu tenho dever de casa [...] aí quando eu não tenho eu vou ajudar a mamãe a arrumar e a cuidar dos meus irmãos. (entrevista realizada em novembro de 2017)

A prática de escrita em casa envolve a realização do “dever de casa”; após

essa atividade, a menina deve ajudar a mãe nas tarefas domésticas e a cuidar dos

irmãos. Importante destacar que Amora é a única menina entrevistada e a única que

relatou que precisa ajudar a mãe nas tarefas domésticas. Percebi a materizalização

do discurso estereotipado de que as meninas devem aprender as tarefas

domésticas. Corsaro (2011, p. 49) aponta que

os estudos têm documentado consistentemente também as diferenças de gênero, com meninas contribuindo mais do que meninos no trabalho doméstico. Além disso, as tarefas eram altamente diferenciadas por gênero, com meninas cozinhando, limpando e fazendo outras tarefas dentro de casa”.

As crianças falam da importância atribuída ao dever de casa:

CALEU – Pra aprender a ler mais rápido a leitura. (entrevista realizada em dezembro de 2017)

AMORA – É importante assim, né, pra gente, porque a gente aprende mais. (entrevista realizada em Novembro de 2017)

BERNARDO – Porque a gente aprende mais do que a gente sabe. (entrevista em novembro de 2017)

DAVI – Pra mim poder saber ler e escrever. (entrevista realizada em novembro de 2017)

Constatei que o cuidado com as tarefas escolares desempenha um

importante papel na vida diária das famílias. A mãe, avó ou o irmão são as principais

pessoas que ajudam os filhos a cumprir as tarefas. Para Caleu, Amora e Bernardo, o

dever de casa é importante para a aprendizagem. Davi enfatiza que o dever é

importante para ele aprender a ler e escrever.

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Importante destacar, neste aspecto, as conclusões de Street (2014, p. 144)

sobre a pedagogização do letramento:

A comunidade num sentido mais amplo, incluindo a própria “nação”, participa dessas construções ideológicas através de processos também representados como politicamente neutros e meras questões educacionais. Os pais, seja ajudando os filhos nas tarefas escolares [...] reforçam a associação do letramento com ensino e pedagogia, a construção e preenchimento do espaço doméstico com matérias letrados se associam a teorias específicas de aprendizagem; os tipos de letramento que as crianças poderiam adquirir com grupos de amigos e na comunidade são marginalizados contra o padrão de letramento escolarizado. Esse fortalecimento do letramento escolarizado na comunidade contribui, junto com o da própria escola, para a construção da identidade e da personalidade no moderno estado-nação.

Os sujeitos Davi e Bernardo declararam não saber ler na primeira entrevista,

no mês de março de 2017. Na segunda entrevista, no mês de novembro de 2017,

questionei se algo a respeito disso mudou. Bernardo comenta:

P: Você acha que você sabe ler e escrever? Bernardo: Ainda falta um pouquinho. P: E o quê que falta?

Bernardo: Sei ler, escrever eu ainda não sei muito. Ainda falta faze... Não consigo fazer texto só consigo ler palavras simples. (entrevista realizada em novembro de 2017)

Soube pela professora que o conselho de ciclo decidiu que o menino não

avançaria e ficaria retido no 3º ano, em 2018. Entretanto, na última entrevista ele

declarou que aprendeu a ler, mas julga que ainda falta aprender a “fazer texto”

porque ele só consegue ler “palavras simples” e, por isso, foi reprovado. A situação

vivida com a reprovação de Bernardo exemplifica o que Street (2014) reflete: que em

meio a todos os diferentes letramentos praticados na comunidade, em casa e no

local de trabalho, a variedade associada à escolarização passou a ser o tipo

definidor, não só para firmar o padrão para outras variedades, mas também para

marginalizá-las, descartá-las da agenda do letramento.

Assim, letramentos não escolares passaram a ser vistos como tentativas

inferiores de alcançar a coisa verdadeira, tentativas a serem compensadas pela

escolarização intensificada. Isso faz com que a aquisição do letramento se torne

isomórfica a partir do desenvolvimento pela criança de identidades e posições

sociais específicas; seu poder na sociedade fica associado ao tipo e nível de

letramento que elas adquiriram e que podem ser medidas, uma ideia voltada para o

letramento autônomo que pode ser testado com mecanismos formais. Por outro

lado, a concepção de letramento como prática social de leitura e escrita evita juízo

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de valor acerca da suposta superioridade do letramento escolarizado com relação a

outros letramentos.

Os modelos “autônomo” e “ideológico” de letramento não estabelecem uma

dicotomia no campo. Todos os modelos de letramento têm um arcabouço ideológico.

No entanto, apenas em sua superfície, os modelos “autônomos” parecem ser

neutros e imparciais e, consequentemente, são responsáveis pela dicotomia. Street

(2014, p. 161) argumenta:

O modelo ideológico não exclui os aspectos técnicos da leitura e escrita como “decodificação, correspondência entre som/forma e “dificuldades” de leitura, mas sustentam que esses aspectos do letramento estão sempre encaixados em práticas sociais particulares – o processo de socialização por meio do qual a leitura e escrita são adquiridas e as relações de poder entre os grupos engajados em práticas letradas diferentes são cruciais para o entendimento de questões “problemas” específicos.

Neste aspecto, também, é importante destacar o pensamento de Spinelli e

Quinteiro (2015, p. 356):

considerar a criança como sujeito social em desenvolvimento permite evidenciar o caráter participativo de sua ação como um membro da sociedade que pensa, sente, age, interpreta, problematiza e cria seus próprios objetivos e interesses dentro das condições sociais, culturais e históricas que as constituem”.

No entanto, a forma de avaliação feita na escola oferece à criança um

modelo de que suas aprendizagens podem ser medidas, e quando não estão na

medida certa, ela não pode avançar nos anos escolares. Bernardo diz que vai

reprovar porque não consegue fazer texto, mas consegue ler palavras simples.

Desta forma, a criança é vista e avaliada pelo olhar do outro que detém o poder de

avaliá-la, pais e professores, a partir de um determinado modelo de letramento, no

caso o autônomo.

No caso de Davi, o menino vai avançar para o ano seguinte, mas com

ressalvas e continuará fazendo o Plano de Apoio Pedagógico (PPA), projeto para as

crianças com dificuldades de aprendizagem. Ele relata no trecho da entrevista

abaixo sua opinião sobre o porquê considera que ainda não aprendeu a ler:

P: E por que você não aprendeu, o que você acha que aconteceu? Davi: Tem que ter esforço. P: Você acha que você não se esforçou? Davi: Uhum (abaixa a cabeça e faz um gesto positivo) (entrevista realizada em novembro de 2017)

O menino pensa que não se esforçou para aprender. Percebi que Davi

carrega o peso emocional e cultural pelo fato de ainda não saber ler e escrever, e

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ele assume a culpa por isso, achando que ainda não aprendeu por falta de esforço

da sua parte. Para Street (2014, p. 35), “falar de ‘o analfabeto’ não só não faz

sentido intelectualmente como também é social e culturalmente nocivo”. Pessoas

“analfabetas” têm habilidades letradas e necessitam de ajuda em uma área

específica.

O estigma do “analfabetismo” é um fardo maior do que os verdadeiros

problemas com a leitura e a escrita. Todos na sociedade exibem alguma dificuldade

de letramento em alguns contextos, por exemplo, declaração do imposto de renda.

Soma-se a isso o fato de que os alunos devem desenvolver hábitos de leitura e

escrita encaixados em contexto de uso real. Porém, muitas vezes, na escola “a

passagem para a leitura e escrita plenas de significado fica adiada por tanto tempo

que os aprendizes, às vezes, desistem” (STREET, 2014, p. 151).

Como já bastante defendido aqui, o letramento em si não promove o avanço

cognitivo, a mobilidade social ou o progresso, porque as práticas letradas são

específicas ao contexto político e ideológico e suas consequências variam conforme

a situação. Assim, a tarefa política na escola também é desenvolver programas de

alfabetização/letramento que lidem com a variedade de necessidades letradas na

sociedade contemporânea e, para isso, deve levar em conta as habilidades e

percepções dos alunos e focar no caráter ideológico e específico ao contexto dos

diferentes letramentos (STREET, 2014). No Quadro 8, sumarizei, a partir das

primeiras entrevistas, os sentidos identificados nos letramentos que as crianças

revelaram vivenciar.

Quadro 8 – Sentidos mapeados nas primeiras entrevistas

Participante Sentidos [Práticas de letramento] Gênero/suporte

Caleu

“as legendas são em português”; “pra ler os livros”; “assistir vídeos”; “Eu gosto de pesquisar”; “foi hackeada [...] Eu escrevia um comentário no vídeo”; “Pra se divertir, pra aproveitar a vida de criança”; “contou também as primeiras pessoas que nasceu”; “ Pra estudar pra quando crescer se formar [...] polícia federal e cientista”; “aprender a ler mais rápido”; “uns da minha coleção [...] sobre Minecraft”.

Jogos de Minecraft; A espada de prata (teatro); Os Minions (cinema); bíblia; livro “De volta ao jogo”; livro “Jogada Final”; televisão, celular.

Amora

“a pessoa aprende e não fica burro”; “baixar jogo pra ver vídeo na internet”; “vê os desenhos”; “Eu entro no face mas eu só compartilho as coisas”; “se a gente lê a gente aprende a escrever, a gente fica mais inteligente”; “A mamãe ela não tem dinheiro pra me levar” “não vai pro caminho sujo tem que ir pro caminho limpo”; “Eu oro”; “Oh, deixa eu ganhar esse sorteio”.

Pepa; Minecraft; pequeno rei; quintal da cultura; turma da Mônica; desenhos; livros de lendas; bíblia; oração; televisão, celular.

Bernardo

“Pra mim estudar”; “pra ler livro”; “se eu estudar muito eu vou conseguir um emprego”; “baixar jogo ou ver vídeo”; “ver o que tipo coisas engraçadas”; “é coisa marcada de Deus”; “a gente busca Deus”; “a gente aprende, a gente brinca na hora do recreio”; “Não consigo fazer texto só consigo ler palavras simples”; livro “de Jesus”.

Goku; homem aranha; Naruto; jogo de policial; Muana, um mar de aventura (cinema); Pica–pau; jogos teatrais e encenações (circo); bíblia, lendas; televisão, celular.

Davi

“ser um bom menino”; “vou poder mexer no celular e o papai vai me dar um”; “Pra ver vídeos”; “Porque dá de estudar”; Porque além dele não existe eu gosto (curupira)”; “Porque é eu só vou quando tem passeio da escola”; “Que é legal ver filme”; “minha avo ,ela é evangélica e ela manda a mamãe ler pra mim”; “Pra orar... pra Jesus”; “Que deus me

Jogos de Minecraft; Pet, a vida secreta dos animais (cinema); bíblia, lendas; televisão, celular.

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guarde”; “Porque a gente aprende mais”; “Vou poder trabalhar [...] Ser médico”; “Tem que ter esforço (para aprender a ler e escrever)”.

Fonte: elaboração própria, agosto de 2017.

4.2 PRÁTICAS DE LETRAMENTO: EVENTOS DE LETRAMENTO

REGISTRADOS NOS ENCONTROS COM AS CRIANÇAS EM SEU

AMBIENTE FAMILIAR

Neste subitem, foram analisados os dados coletados com o instrumento

entrevista em aberto, com a presença dos responsáveis que também foram

entrevistados. Antes da descrição de cada evento, destaquei algumas partes das

conversas com os pais, não para análise, mas para contextualizar o ambiente vivido

pela criança.

4.2.1 Evento “De volta ao jogo”

Na casa de Caleu, fui recebida por sua mãe e seu padrasto. Ao explicar

sobre os objetivos da pesquisa, a mãe de Caleu comentou sobre a importância da

leitura e da escrita na sociedade:

Pois é, é questão até do, né, pra gente ficar mais éee antenado assim, e fazer o certo, née, a gente vê assim até pra questão política, né, da gente tá éee interagir e ver o que é realmente bom pra gente, pra nossa sociedade e a gente é... tando num grau de instrução a gente lógico vai optar pelas pessoas certas, né. (entrevista com a mãe de Caleu em dezembro de 2017)

Para ela, é importante aprender a ler e escrever para “ficar antenado” e

“fazer o certo”, optar pelas pessoas certas na política. A genitora reconhece o uso do

potencial político do letramento para estabelecer sua própria posição enquanto

cidadã e fazer escolhas dos governantes dentro da estrutura de poder.

Sobre a relação com a escola, a família revela o que pensa sobre a

importância da participação dos pais na escola, a preocupação com o “abandono”

físico por parte dos gestores e a relação com a professora:

Mãe: Eu acho de grande importância os pais se envolverem realmente é ne é no caso meu esposo é que não é o pai dele é padrasto mas ele se envolve inteiramente, agora que eu tô trabalhando ne [...] converso com a professora vejo como é que ele ta na escola, converso com ele em casa [..] eu ando um pouquinho triste com a escola bosque [...] seria bom assim os órgãos ne a prefeitura olhar um pouquinho [...] ta abandona assim entendeu [...]. Pai: Teve dias que eu cheguei lá, o chão só mato, só folhas [...] imunda [...] se acontece um acidente com a criança a dor de cabeça que vai [...] eu ia procurar meus direitos [...] a administradora faz tudo isso que tá acontecendo [...]. Mãe: Nem aparece na escola [...]. Pai: Os professores se esforçam o máximo eu vejo lá muitos professores são dedicados, a Carmem (nome fictício) então... sem comparação.

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Mãe: A Carmem é nota mil, essa professora é nota mil. (entrevista com a mãe e o padrasto de Caleu em dezembro 2017)

A mãe e o pai consideram que a escola está “abandonada”, “imunda”, o que

interfere diretamente na segurança das crianças, visto que as salas são rodeadas

por árvores, que sem manutenção podem causar acidentes. Eles revelam a

insatisfação com a atual gestora que, segundo eles, é muito ausente da escola. Os

pais reconhecem o esforço de alguns professores, inclusive da professora de Caleu.

Embora os pais não questionem o ensino e aprendizagem escolar de seu filho, eles

criticam a atitude de quem tem a autoridade para dirigir a aprendizagem na escola –

na pessoa da atual presidente – e reivindicam um melhor espaço escolar para as

crianças que frequentam a escola.

A mãe também conversa sobre o “dever de casa” e diz que é importante

porque muitas vezes os pais relaxam em fiscalizar os cadernos dos filhos e o dever

não deixa isso acontecer e faz com que os pais tenham compromisso diário com as

tarefas escolares dos filhos. Ela deseja que Caleu seja uma “pessoa do bem,

honesto e de muito sucesso na área que ele escolher” (mãe de Caleu, entrevista em

dezembro de 2017).

Atualmente, a família de Caleu não costuma frequentar a igreja, embora os

pais se identifiquem como católicos, sobre isso justificam como ensinam valores

religiosos para seu filho:

Mãe: O certo é se apegar a Deus e ter a fé ne que que vai melhorar, é... fazer o bem entendeu tudo isso a gente prega pra ele, que não é pra fazer o que é errado entendeu não pode julgar religiões entendeu a gente ensina isso muito pra ele, preconceito. Pai: Se ele tiver alguma dúvida também ele pergunta pra gente a gente explica, tenta explicar numa linguagem acessível [...] o tempo pouco que a gente tem a gente dedica mais a ele (Caleu), ne raramente a gente vai (igreja), mas em casa a gente coloca fé em Deus, o que vale é nossa fé aqui. (entrevista realizada com a mãe e padrasto de Caleu em dezembro de 2017)

Os pais relatam que raramente vão à igreja, pois não têm tempo e os valores

religiosos são ensinados à criança independente de a família frequentar algum

templo religioso ou da leitura da bíblia.

Na casa de Caleu circulam materiais escritos como jornais, revistas, livros de

ficção, bíblia, livros de autoajuda, livro didático, fichas de leitura da escola, revistas

de cruzadinhas e caligrafia. Dentre esses, o que Caleu mais utiliza são os livros de

sua coleção sobre Minecraft, que citou nas primeiras entrevistas na escola. Os pais

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relatam que a criança estava com atraso de linguagem, inclusive fez tratamento

fonoaudiológico, pois aos 4 anos ainda não era possível entender a sua fala.

Sobre a importância da internet na vida da criança, a mãe comentou:

Olha a internet eu posso dizer que a internet ajudou, porque logo quando ele nasceu, assim quando ele foi pra desenvolver a fala, ele teve um problema de atraso de linguagem, né, ainda cheguei a acompanhar pelo fono, mas o que ajudou mesmo ele foi a internet. Devido vídeos que ele assistiu, assistia, interagia assim com os “youtuber” [...] e ele conversava comigo e coisas que assim ele ficava assim retraído antes de tudo isso, entendeu, até mesmo pelo fono assim tava muito lento o processo. (entrevista com a mãe de Caleu em dezembro de 2017)

Por meio da internet, especificamente com vídeo do gênero jogos, os pais

perceberam que a criança era estimulada a se comunicar. Antes de aprender a ler e

escrever, Caleu já assistia a esses vídeos e após o domínio da leitura e escrita,

chegou a outro suporte, que é o livro com o mesmo tema, Minecraft. E, assim,

começou a montar sua coleção de livros sobre o assunto e dedica bastante tempo

para a leitura desses.

Os acervos ficam em um lugar reservado na estante no quarto da criança,

junto com seus brinquedos organizados e arrumados por ele mesmo. No primeiro

contato com Caleu, ele me disse com orgulho que era a criança que mais sabia ler

na sua sala e falou sobre os livros que estava lendo em casa e a importância deles.

Em sua casa, ele me revelou que terminou de ler os livros. Para ilustrar, apresento

na Figura 12 as capa dos livros da coleção de Caleu.

Figura 12 – Capas dos livros da trilogia Minecraft

Fonte: pesquisa de campo, dezembro de 2017.

Trata-se de uma coleção do gênero ficção juvenil, do autor brasileiro Pedro

Afonso Rezende, um “youtuber” (palavra utilizada para referir-se a pessoa que faz

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vídeo para o YouTube). Hoje, ele conta com mais de 6 milhões de inscritos no

YouTube e seu canal tem mais de 2 bilhões de visualizações. Está cotado entre os

youtubers mais vistos no mundo e trabalha de 15 a 17 horas por dia no canal

(http://www.eventim.com.br/rezende-evil).

O primeiro livro é Dois Mundos e um herói, que conta a história de Pedro

Afonso que é louco por videogames e se dedica a produzir vídeos para a internet

sobre seu jogo favorito: Minecraft. Um dia, ele acorda dentro do mundo virtual que

construiu e encontra uma versão de si mesmo, o RezendeEvil. Eles têm a missão de

salvar o vilarejo das mãos de inimigos usando sua criatividade (REZENDE, 2015).

De volta ao jogo, o segundo livro da trilogia de Pedro Afonso, traz uma nova

aventura para salvar o mundo virtual que criou no jogo Minecraft. Mas desta vez,

Pedro não reconhece muita coisa e não sabe onde estão seus amigos. Novamente,

Pedro e RezendeEvil precisam se unir para derrotar um vilão que ameaça a vida de

todos (REZENDE, 2016a).

Jogada Final é o último da trilogia que mostra a última grande batalha da saga

e a grande questão é se o herói duplo estará pronto para fazer sua jogada final

(REZENDE, 2016b).

No geral, o conteúdo ideológico dos livros também trata da máxima de que

“o bem sempre vence o mal” para o controle da ordem social. Caleu reserva

bastante tempo à leitura desses livros em seu ambiente familiar; isso também é uma

característica de sua prática letrada. Neste sentido, Street (2014) afirma que um

argumento central para o modelo ideológico de letramento é que aprender o

letramento não é aprender um conteúdo simplesmente, mas aprender um processo.

“Todo letramento é aprendido num contexto específico de um modo particular”

(STREET, 2014, p. 154) e as relações da criança na família também são

modalidades de aprendizagem, socialização e aculturação. Desta forma, é possível

afirmar que Caleu aprende um modelo cultural de identidade e personalidade.

Com o livro na mão, conforme registro na Figura 13, Caleu fala sobre o

conteúdo do livro e o que sente quando lê:

P: Ele fala do quê o livro? Caleu: De que ele fala do universo dele aí logo depois ele vai pra outro universo [...]. P: E o que acontece lá? Caleu: Ele, ele vai pra vários lugares procurar pessoas [...]. P: Por que tu gostas desse livro? Caleu: Eu assisto bastante os vídeos dele [...].

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P: Quê que tu sente quando tu lê? Caleu: Alegria. (entrevista em dezembro de 2017)

Figura 13 – Foto de Caleu lendo o livro “De volta ao jogo”

Fonte: pesquisa de campo, dezembro 2017

Registrei aqui um evento de letramento, ou seja, o momento em que a escrita

está integrada e faz parte de uma ocasião de interação da criança que é a leitura no

livro “De volta ao jogo” (título que usei para denominar o evento descrito): trata-se do

gênero literário narrativa de aventura (da Editora Suma de Letras). Observei o

comportamento e identifiquei os sentimentos de Caleu: ele diz que a leitura de sua

trilogia faz com que sinta “alegria”. Ele explica que o conteúdo dos livros trata de

universos paralelos em que o protagonista visita vários lugares e se relaciona com

várias pessoas. E ele relaciona a importância dessa leitura aos vídeos sobre

Minecraft que ele assiste.

No quarto de Caleu, identifiquei mais sentidos que o menino atribui para tal

leitura. O sótão da casa fica no quarto da criança, o acesso é por meio de uma

escada. É o local onde ele pretende gravar seus vídeos, pois pretende ser youtuber

com seu próprio canal na internet. Sobre isso ele explica:

P: Por que tu quer ser “youtuber”? Caleu: Porque é divertido. P: Mas o quê que tu quer ensinar pras pessoas, o que tu ensinaria no teu canal? Caleu: Aprender a jogar, pra elas aprenderem a jogar [...] treze milhões (inscritos no canal) pode ganhar até 30 mil por mês. (CALEU, entrevista em fevereiro de 2018)

O menino deseja ser youtuber para ter um canal onde vai ensinar as pessoas

a jogar. Identifiquei outros sentidos atribuídos à leitura da coleção sobre Minecraft

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que a criança faz: prepara-se para ser youtuber porque, por meio disso, ele pode

ganhar dinheiro, dependendo de quantas pessoas se inscrevam no canal. A criança

aponta que o seu saber produzido em suas práticas culturais de letramento dentro

da subcategoria digital é uma alternativa profissional para alcançar ascensão

econômica e estabilidade financeira.

As mudanças sociais, econômicas e tecnológicas afetam as práticas de

letramento e produzem mudanças não apenas na comunicação, mas nas relações

de poder. A complexidade das práticas de letramento contemporâneas convergem

para o que Street (1998; 2001 apud Carvalho, 2012, p. 229) chama de “nova ordem

da comunicação”, que abrange as práticas de letramento associadas à tecnologia da

informação e comunicação, compreende um amplo sistema semiótico, combinação

de signos, símbolos, imagens, palavras e sons. Sintetizei essa prática no Quadro 9.

Quadro 9 – Práticas de letramento de Caleu

Participante Prática de Letramento (sentidos)

Evento de letramento

Suporte/Gênero textual

Subcategoria das práticas de

letramento social

Caleu

“alegria”; “é divertido”; “pode ganhar até 30 mil por mês”; “pra elas aprenderem a jogar”.

Leitura do livro “De volta ao jogo”.

Livro/Literário – Narrativa de aventura.

Entretenimento / digital.

Fonte: Elaboração própria, 2018.

4.2.2 Evento “Honra teu pai e tua mãe”

Na casa de Amora, fui recebida pela menina e por sua mãe. A genitora

contou que mora sozinha com seus quatro filhos e falou de sua separação, que

ocorreu em 2016, quando seu ex-companheiro foi morar em Santa Maria do Pará.

Sobre a separação a mãe comenta:

Quando eu e meu esposo nos se separamos, ela mudou um pouco a Amora mudou um pouco, ela ficou assim muito rebelde ela ficava respondendo pra mim e ai eu chamei a professora e conversei com a professora falei o que tá acontecendo e até a professora mesmo conversou com ela e a gente foi trabalhando junto eu e a professora foi que ela foi parando com isso ai graças a Deus ela... foi um momento difícil que ela passou, mas ela superou isso até como uma maturidade pra ela, deu uma maturidade maior. (mãe de Amora, entrevista realizada em dezembro de 2017)

A mãe considera que a separação foi um momento difícil que a filha teve que

superar, mas que lhe trouxe mais maturidade.

A mãe falou um pouco sobre o que pensa a respeito da escola:

Na escola sim graças a Deus eu tenho uma satisfação dessa escola eu gosto de lá não penso em tirar eles de lá [...] não tenho do que

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reclamar até eu gosto da alimentação da escola bosque pra eles se bem que ela não gosta de certas merendas né mas eu gosto daquela alimentação eu acho saudável pra eles até o convívio com a professora ne eu gosto da Carmem ela é muito bacana sempre a gente conversa. (mãe de Amora, entrevista em dezembro de 2017)

Percebi que o dever de casa desempenha um importante papel na vida

diária da família. A mãe ajuda os filhos a cumprir as tarefas, segundo o seu relato:

Eu acho sim importante porque é um ato familiar até, aí já fica assim eu e ela temos aquele momento ne e ela ajuda também o outro irmão dela a fazer o dele também ne a gente fica tudo junto [...] é uma coisa que a gente fica nos três junto é um ato eu acredito que seja assim ate um dialogo melhor entre eu ela e o irmão dela. (Mãe de Amora, entrevista em dezembro de 2017)

O dever de casa é considerado pela genitora como “um ato familiar” no qual

eles têm “aquele momento” em que Amora também ajuda o irmão mais novo a fazer

seus deveres escolares. A mãe considera que isso traz “um diálogo melhor” na

família, ou seja, o dever de casa não é apenas para a demanda da escola, mas cria

e fortalece uma demanda doméstica. A mãe também considera que a igreja e a

escola se complementam e revela também a importância que atribui à religião na

vida da filha:

Falo pra ela que não é bom mentir [...], procura não brigar, fala de Deus na escola [...] eu acredito que um complementa o outro a escola complementa um pouco e a igreja um pouco [...] Assim pra que ela venha a conhecer ne as religião não só a nossa mas eu sempre falo pra ela de outras também la é falado também de outras religiões ne e eu acho isso importante ate como uma cultura. (mãe de Amora, entrevista realizada em dezembro de 2017)

Na visão da mãe, é importante que Amora conheça outras religiões e não

apenas a que a família frequenta. Assim, a igreja e a casa são locais em que se fala

sobre “outras religiões” e, nas palavras da mãe, a criança adquire assim “uma

cultura”.

A mãe incentiva a filha a trabalhar no que tem vontade, “ser veterinária”, e

que para isso ela deve “se esforçar”, “o foco é estudo” e não “pensa em namorar”. A

mãe também revela alguns desejos da criança de ter “uma casa boa”, “bonita” e

finaliza dizendo “o que ela quer pra ela, eu quero também” (mãe de Amora,

entrevista realizada em dezembro de 2017).

Constatei que na casa circulavam objetos de leitura como bíblia, livros, gibis,

revistas, livros didáticos. Entre esses o livro mais lido é a bíblia. Tive a oportunidade

de presenciar um evento de letramento recorrente na vida familiar da criança, a

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leitura da bíblia. Amora pegou sua bíblia e leu o texto que mais gosta para mim,

Efésios capítulo 6, versículos 1, 2 e 3:

Filhos obedecei aos vossos pais no Senhor, pois isto é justo, honra teu pai e a tua mãe que é o primeiro mandamento com promessa para que te vá bem e sejas de longa vida sobre a terra. P: Por que tu gostas desse texto, porque tu achas importante? Amora: Porque ele fala pra gente respeitar o pai e a mãe. (entrevista realizada em dezembro de 2017)

A bíblia é a tradução de João Ferreira de Almeida (publicada pela Sociedade

Bíblica do Brasil) e o texto lido pela entrevistada trata da obediência aos pais. O

sentido do texto para a criança está no enunciado “porque ele fala pra gente

respeitar o pai e a mãe”. Na Figura 14, registrei a página que foi lida; no texto os

parágrafos 2 e 3 estão marcados e circulados com caneta. Isso demarca também a

importância do conteúdo lido que deve sempre ser lembrado.

Figura 14 – Foto de Amora lendo sua bíblia

Fonte: pesquisa de campo, dezembro de 2017.

Na Figura 14 também registrei o momento em que Amora estava lendo sua

bíblia. Aplicando os “conceitos operacionais”, segundo Street (2014, p. 146), de

evento de letramento e prática de letramento, temos Amora como participante do

evento que denominei “Honra teu pai e tua mãe”; a escrita que integra este momento

de interação é a bíblia, especificamente um texto da carta aos Efésios, que se

configura como gênero textual literário epistolar. A prática de letramento, ou o

sentido que a criança tem ao estar engajada neste evento é “respeitar o pai e a

mãe”.

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No Quadro 10, sintetizei esse evento dentro da prática de letramento que a

criança revela em seu discurso.

Quadro 10 – Evento “Honra teu pai e tua mãe”

Participante Prática de Letramento Evento de letramento

Gênero Subcategoria das práticas de

letramento social

Amora “respeitar o pai e a mãe”. Leitura do texto bíblico da carta aos Efésios 6: 1, 2 e 3.

Bíblia – Literário epistolar

Religiosa

Fonte: elaboração própria, março de 2018

4.2.3 Evento “A Bíblia das criancinhas”

Na casa de Bernardo, fui recebida por ele e por sua mãe. Conversamos

sobre muitos assuntos, dentre os quais destaco o dever de casa e a reprovação de

Bernardo.

O dever de casa também é parte importante da prática familiar letrada no

cotidiano de Bernardo. Sobre essa atividade, a mãe comenta a importância:

Pra desenvolver ele melhor porque na escola a professora passa, mas assim ela tem que tomar conta de 30 crianças, 31 crianças então ela não tá com atenção voltada só pra uma criança e já em casa comigo não, eu tô ali só eu e ele, eu posso dar uma atenção melhor só pra ele, não tem tanto barulho, então ele pode se concentrar melhor e o Bernardo se distrai muito com barulho, o barulho dispersa muito ele. Então, acho que em casa ele consegue aprender mais rápido do que na escola assim diretamente. (mãe de Bernardo, entrevista realizada em dezembro 2017)

Na visão da mãe, o dever desenvolve melhor o filho, visto que na escola há

um número em torto de 30 crianças na sala e a professora precisa dividir sua

atenção entre todas. Mas em casa, segundo a mãe, ela pode dar “uma atenção

melhor”, visto que “Bernardo se distrai muito com barulho, o barulho dispersa muito

ele”. Então, na opinião da mãe, a criança em casa aprende “mais rápido do que na

escola”.

O menino não avançou de ano na escola em 2017; a mãe revela sua

insatisfação sobre avaliação feita pela escola:

Eu gosto sim da cobrança que eles estão tendo em relação a ele. Porém, eu não acho tão justo, porque eu acho assim que eu acho que eles poderiam tipo ter evoluído [...] continuar no PPA [...] porque pra mim ele tem condições pra isso, entendeu. Só que eles não entenderam assim. Porque o Bernardo... tá, como te falei, ele não redige um TCC, mas ele já escreve, ele constrói por ele mesmo frases completas, ele lê, assim não lê corrido ainda, mas ele já lê [..] Só que eu acho também que o que prejudica muito ele é porque ele

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fica nervoso na hora de ser avaliado [...] e isso impede com que ele mostre todo o potencial dele [...] eles não viram da mesma forma que eu vejo porque ele comigo aqui em casa é uma coisa e lá na frente deles é diferente, né. Eu acho que aí é que tá a diferença. (MÃE de Bernardo, entrevista em fevereiro de 2018)

A mãe contesta a avaliação feita pela equipe escolar, que decidiu que seu

filho repetiria o ano, pois, para ela, a criança estava em condições de avançar, tendo

suporte do Projeto Pedagógico de Apoio – PPA (programa feito pela escola no turno

ou contraturno para atender a crianças que apresentam dificuldades na

aprendizagem), visto que já consegue ler e formar frases autonomamente. Segundo

a mãe, o que prejudica seu filho de mostrar todo o seu potencial é o nervosismo com

a avaliação. Mas, em casa, Bernardo consegue.

Bernardo aprendeu a ler aos 8 anos. A mãe comenta que, no mês de

outubro de 2017, percebeu que a criança estava lendo. Sobre a mudança no

comportamento dele após a aprendizagem, comenta que melhorou autoestima, pois

antes ele ficava tentando adivinhar o que estava escrito e ficava triste quando errava

e se achava “burro”. A mãe o consolava dizendo a ele que apenas ainda não tinha

aprendido, mas que iria aprender porque “tudo tem seu tempo”.

Sobre as perspectivas do futuro de Bernardo, a mãe quer que o filho se

descubra, pois “tem muita gente que não sabe o que quer”. Então, ela quer que ele

“descubra o que realmente gosta de fazer”, porque ela vai incentivar e ajudar “a

seguir o caminho que ele trilhar pra ele”. Ela considera importante apoiar a decisão

da criança (Mãe de Bernardo, entrevista realizada em janeiro de 2018).

Na casa da família de Bernardo há livros didáticos da escola, livros religiosos

que são comprados na igreja, revistas, jornais e o jornal da igreja Universal. Dentre

esses, o mais lido pela família é a bíblia, inclusive Bernardo tem sua própria bíblia,

presente de sua avó no ano 2013, quando o menino tinha 3 anos.

Denominei o primeiro evento na casa de Bernardo como “A Bíblia das

criancinhas”, livro citado pelo menino como “de Jesus” nas primeiras entrevistas na

escola. Até o mês de outubro de 2017 ele ouvia a leitura desse livro feita pela avó ou

pela mãe. Hoje, ele consegue ler sozinho. Sobre a importância do livro o menino diz:

“Porque ensina a fazer bem e não o mal [...] porque tem Jonas, Daniel, ele ficou na

cova dos leões” (Bernardo, entrevista realizada em fevereiro de 2018).

Bernardo leu um pouco das histórias que citou. Ajudei-o a identificar as

páginas no sumário do livro. Ele leu uma frase da história: “Jonas foi outro

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mensageiro de Deus” (foto registrada na Figura 15), e pediu ajuda para pronunciar a

letra “G”. Após a leitura, perguntei sobre a importância da história e, no trecho da

entrevista abaixo, ele revela o sentido desta prática letrada:

P: O que foi que aconteceu com ele (Jonas)? Bernardo: Ele foi engolido pelo peixe. P: Cadê, tem essa imagem aí? (Ele me mostra a outra página mostrando Jonas na praia após o peixe o ter vomitado) [...] P: E como foi que ele saiu de dentro do peixe, por que ele não morreu se o peixe engoliu ele? Bernardo: Porque Deus mandou ele (peixe) soltar da boca dele. P: Ah tá, tu acha importante essa história? (Balança a cabeça em um gesto positivo) [...] Bernardo: Que nunca deve pecar. (entrevista em fevereiro de 2018)

O menino mostra o que sabe sobre a história lida, dizendo que Jonas foi

engolido pelo peixe e Deus mandou o peixe soltá-lo de sua boca. Perguntei por que

a história é importante, e o menino revelou o sentido de “que nunca deve pecar”.

Registrei a capa do livro “A Bíblia das criancinhas” também na Figura 15.

Figura 15 – Bernardo lendo “A Bíblia das criancinhas”

Fonte: pesquisa de campo, fevereiro de 2018.

Após essa primeira leitura, ajudei a criança a encontrar outra história: a de

Daniel. O menino mostrou no livro que Daniel foi atirado na cova dos leões e disse

que era outro mensageiro de Deus, que não morreu “porque Deus não deixou”

(Bernardo, entrevista em janeiro de 2017).

Nesse evento de letramento, temos Bernardo como participante; a escrita que

integra esse momento é o livro “A Bíblia das criancinhas”, da editora Sociedade

Bíblica do Brasil. Considerei esse livro como gênero textual narrativo literário infantil,

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pois cada história trazida no livro traz uma síntese das narrativas bíblicas, mas não

na linguagem original dos gêneros textuais bíblicos, como cânticos, poesias, cartas,

orações, entre outros.

Na Figura 16, registrei duas página do livro “A Bíblia das criancinhas” nas

histórias de Jonas e Daniel. Observa-se que o livro é bem ilustrado e as histórias

são narrativas curtas com uma linguagem simples.

Figura 16 – “A Bíblia das criancinhas” aberta nas histórias de Jonas e Daniel

Fonte: pesquisa de campo, fevereiro de 2018.

A mãe relata que essa bíblia é para ser lida apenas em casa, o menino não

pode levá-la para nenhum lugar, porque sempre que leva algo para a casa do pai,

por exemplo, não volta. Percebe-se que, para a família, a bíblia é um objeto

sagrado, que tem a verdade cristã que é irrefutável e os valores ensinados na família

são baseados nela.

Para Street (2014, p. 210), as abordagens culturais de letramento e

aprendizagem se constroem sobre a teoria nos campos do letramento como prática

social e da aprendizagem como prática social. Isso suscita em se concentrar em

como a criança na escola pode ser ajudada a “se apoderar” das práticas letradas

relevantes para seu contexto. Segundo o autor, “entre as implicações para as

políticas e as práticas está a mudança de foco: da educação formal centrada na

criança isoladamente para a aprendizagem familiar/intergeracional que se constrói

sobre o que as pessoas já conhecem e opera ao longo das relações e redes sociais

em que as pessoas se engajam com o letramento em suas vidas”. Observei que

Bernardo usa a “A Bíblia das criancinhas” e se engaja em práticas letradas

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associadas à religião e esse é um modelo cultural de identidade e personalidade que

a criança aprende, um tipo de convenção que interioriza.

Sintetizei o evento de letramento descrito “A Bíblia das criancinhas” no

Quadro 11.

Quadro 11 – Evento “A Bíblia das criancinhas”

Participante Prática de Letramento Evento de letramento

Gênero Subcategoria das práticas de letramento

social

Bernardo “Porque ensina a fazer bem e não o mal”; “que nunca deve pecar”; “porque Deus não deixou”.

Leitura das histórias de Jonas e Daniel no livro “A Bíblia das criancinhas”.

“A Bíblia das criancinhas” – literário narrativo infantil.

Religiosa.

Fonte: elaboração própria, março 2018.

4.2.4 Evento “Leitura da bíblia pela avó”

No ambiente familiar de Davi, fui recebida por sua avó, uma senhora viúva

muito religiosa, da igreja evangélica que aproveitou vários momentos para pregar a

“Palavra de Deus” para mim. Contou-me muito de sua história desde que chegou na

Ilha de Caratateua, inclusive a perda de dois dos seus cinco filhos, que se

envolveram com drogas e faleceram, em anos diferentes, no mesmo dia da morte do

pai, dia que Davi também completa idade.

Sobre a rotina de Davi, ela afirma que ele assiste muitos desenhos

impróprios; ela explica o porquê: “Principalmente esses desenhos que tão passando

isso é tudo diabólico que isso eu sei, negócio de pica-pau todo esses desenho tudo

isso ai mana, mas infelizmente né” (avó de Davi, entrevista realizada em janeiro de

2018). A avó considera a televisão um perigo por conter desenhos “diabólico”, e cita

o exemplo do desenho “pica-pau” e diz que infelizmente, para ela, seu neto assiste.

No momento Davi passa mais tempo na casa de sua avó que tem celular,

mas não há redes sociais nem internet, ela explica o porquê:

O meu mesmo é só pra ligar pra receber, não gosto dessas coisas [...] Com certeza, tem algo bom, mas as pessoas tão usando tudo... o contrário hoje ne, então pra criança realmente [...] Assim ficar se comunicando com as pessoas que não conhece ne, marcando assim encontro na rua como tem quer dizer as vezes nem sabe quem tá do outro lado não conhece a pessoa ne, e através daquilo ai vai se encontrar por ai ó ai vai acontecer coisa que não deve ne, é muito perigoso [...] o lado bom é a pessoa assim saber o que tá acontecendo assim no mundo a leitura essas coisas coisa interessante ne, que venha edificar nossa vida ne. (avó de Davi entrevista realizada em janeiro de 2018)

A avó de Davi tem o celular apenas para fazer ligações. Na opinião dela, há

perigos para as crianças na internet, que possibilita a comunicação e encontros com

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estranhos. Entendi que ela se referia à pedofilia. Mas, para ela, a internet também

tem um sentido importante para informações, coisas interessantes e edificantes.

Sobre o futuro de seu neto, ela revela as expectativas da família:

Eu espero mana que ele seja um bom filho ne que venha a ser uma pessoa assim, assim na vida ne venha a ter prosperidade ne pra no futuro pra ele vim ajudar a mãe dele ne e ele mesmo ter uma boa família [...] ai tá ao critério dele ne qual é o que ele quer se formar pra que é mas que seja assim que ele venha a ter o dele assim do suor ne venha a prosperar na vida tenha a sua família, ter o seu lar bem-sucedido. (avó de Davi, entrevista realizada em janeiro de 2018)

A avó citou a mesma palavra dita pelo neto: ela espera que ele seja um

“bom filho”, que tenha prosperidade e ajude sua mãe, que ele tenha uma boa

família. Deixa a “critério dele” no que ele quiser “se formar”, mas que prospere por

meio “do suor”, ou seja, do seu próprio trabalho. Constatei vários sentidos que a

família atribui à aprendizagem da criança para ser bom, trabalhar, ajudar sua mãe e

formar sua própria família.

Na visão da avó, é importante que o menino aprenda a ler e escrever para

realizar os sonhos dele. Segundo ela, antes ninguém dava crédito para a leitura,

mas hoje o mercado de trabalho está difícil até para quem é formado, “até pra puxar

uma carroça tem que ter um curso” (avó de Davi, entrevista realizada em janeiro de

2018). Ela falou que estudou até a 4ª série na Escola Bosque, na educação de

jovens e adultos. Mas chegava cansada do trabalho e não conseguiu prosseguir

com os estudos. Assim, se contentou em saber ler um pouco. Mas em relação ao

neto, deseja que ele aprenda porque “ele tem um futuro pela frente” (avó de Davi,

entrevista em janeiro de 2018). Ela ainda contou que é do município de Gurupi-MA,

na divisa entre o Pará e o Maranhão, e chegou à ilha Caratateua em 1991, onde

construiu sua família.

A avó falou das dificuldades na aprendizagem de Davi e conta sobre os

acidentes que a criança sofreu. Ela relaciona a dificuldade de aprendizagem da

leitura e da escrita do neto ao fato de ele ter batido a cabeça em três acidentes que

sofreu quando era menor. No primeiro, ele caiu em um poço; no segundo, caiu uma

ouriça de castanha-do-Pará em sua cabeça; e no terceiro, ele caiu de uma árvore e

teve coágulo na cabeça, ficou internado vários dias no hospital para se recuperar

desse último acidente.

A família tenta fazer exames no hospital Betina Ferro da Universidade

Federal do Pará, mas ainda não obteve sucesso. Ela relatou que o neto sente

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muitas dores de cabeça. Estão vendo a possibilidade de fazer os exames por

intermédio da “Sociedade”, um serviço funerário pago pela família que oferece

alguns serviços médicos e exames (avó de Davi, entrevista em janeiro de 2018).

Corsaro (2011, p. 318) aponta que um dos problemas mais difícil para

famílias pobres de classes trabalhadoras e seus filhos é a falta de cuidados de

saúde acessíveis. A saúde e bem-estar infantil são “‘investimentos nacionais’ tão

importantes quanto pontes, estradas e proteção ambiental”.

O dever de casa também faz parte das práticas letradas na família. Sobre as

tarefas escolares, a avó comentou: “Porque o dever de casa ajuda mais ne no tempo

que ta na rua ta fazendo dever de casa ta aprendendo mais” (avó de Davi, entrevista

realizada em janeiro de 2018). Para a avó, a importância do dever de casa é para

que a criança aprenda mais e não fique na rua.

Sobre a relação família e escola, a avó revelou sua concepção:

Os professores tão lá pra ensinar, então depende de cada aluno [...] vai depender da pessoa se esforçar porque hoje em dia tudo é pelo esforço do aluno [...] na minha época [...] ficava de joelho no caroço de milho, tinha umas, umas “talbinha” pra bater na mão[...] hoje em dia os aluno que já tão falando mais alto que os professores não existe mais respeito [...] mas a escola bosque é uma escola muito boa [...] eu já convivi muito lá quando eu cheguei pra cá, escola bosque foi inaugurada ne, na época do Hélio Gueiro, quer dizer que eu acompanhei todo o período. (avó de Davi entrevista realizada em Janeiro de 2018)

Na visão da avó, a função dos professores é ensinar. Então, depende de

cada aluno se esforçar para aprender. Ela utilizou a mesma palavra, relacionada ao

esforço, que Davi usou para justificar o fato de ainda não ter aprendido a ler.

Comentou sobre os castigos utilizados no ensino na sua época, como ficar de

“joelho no caroço de milho” e “bater na mão”. Para a avó, hoje não existe mais

respeito entre aluno e professor. A senhora contou que já conviveu muito na Escola

Bosque na época de sua inauguração, pelo prefeito Hélio Gueiros.

Davi contou que os livros existentes na sua casa são os didáticos da escola,

a bíblia, e jornais que sua mãe traz do trabalho. Na casa da avó, onde o menino

passa a maior parte do dia, os livros que tem são duas bíblias. Também observei

pregado na parede um calendário anual da Sociedade Recanto Verde, funerária que

a família paga. Os equipamentos eletrônicos disponíveis nas casas são rádio,

televisão e celular.

A avó é uma pessoa importante na direção e na pregação da igreja. Ela me

contou que é a segunda pessoa depois do pastor da igreja; a mãe do menino está

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“afastada” da igreja, mas seus netos frequentam. Ela me falou sobre a importância

da vestimenta como serva de Deus: as mulheres só podem usar saias e blusas de

manga compridas e cita o capítulo 22 do livro bíblico Deuteronômio, que prescreve

que a mulher não deve vestir roupa de homem e nem um homem pode usar roupa

de mulher. Outra característica que identifica a prática de letramento religioso que

Davi participa, além das “falas” e dos “discursos”, as “roupas” também sinalizam a

“natureza do evento” (STREET, 2010, p. 38).

Ela contou que há poucas crianças na igreja e todos fazem a mesma

atividade, a “leitura da palavra de Deus”. Em casa, todos os dias ela também lê a

bíblia para o neto e o incentiva a orar todas as manhãs. “Eu leio (bíblia), mando ele

orar, todo dia de manhã tem que orar” (avó de Davi, entrevista realizada em janeiro

de 2018).

Percebi o fenômeno religioso representado por meio de uma prática social

materializada em uma atitude proselitista e de caráter doutrinário, a leitura e escrita

são utilizadas para a conversão dentro da religião. Também percebi isso nos

eventos registrados na casa de Amora e Bernardo, no entanto, notei que esses

últimos têm maior oportunidade de discutir sobre a bíblia e manifestar sua opinião

tanto na igreja, inclusive com outras crianças, quanto na família.

Registrei as bíblias encontradas na casa (Figura 17). A primeira imagem é a

bíblia de Genebra. O livro parece conservado, tem capa vermelha e não há

marcações de caneta em suas páginas. A avó de Davi explica que na atual igreja

evangélica que frequenta ela aprendeu que a bíblia não pode ser riscada.

Figura 17 – Bíblias da avó de Davi

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Fonte: pesquisa de campo, janeiro de 2018.

A segunda versão trata-se de uma edição da tradução de João Ferreira de

Almeida. Essa bíblia já não possui mais capa e parece bastante usada, há muitos

textos marcados com caneta. A avó explica que é a sua primeira bíblia e riscou-a na

época em que não sabia que não se deve marcar nem escrever nada nesse livro.

Identifiquei que, agora, para ela, a bíblia é “objeto sagrado, não só por causa do

conteúdo das palavras na página, mas também em sua forma e seu contexto

material” (STREET, 2014, p. 47).

A avó de Davi revela a importância que a leitura da bíblia tem na sua vida:

Ah pra mim é ótimo porque é a Palavra de Deus mana, se você não tiver a Palavra de Deus, se a gente não conhecer essa Palavra, a gente não vai chegar em lugar nenhum, a gente tem que ter a intimidade com nosso Deus, pra mim é muito importante, melhor de que todas as coisas, a Palavra de Deus na nossa vida. (avó de Davi, entrevista realizada em janeiro de 2018)

Os sentidos desta prática letrada para a avó é que a bíblia é a “Palavra de

Deus” que deve ser conhecida para poder alcançar objetivos na vida. Ela ainda diz

que é preciso ter intimidade com Deus e que a Palavra de Deus é “melhor de que

todas as coisas”. Assim, registro um evento de letramento muito recorrente no

ambiente familiar da criança: a escuta da leitura da bíblia feita pela avó para o neto,

conforme a foto da Figura 18.

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Figura 18 – Avó de Davi fazendo a leitura da bíblia para o neto

Fonte: pesquisa de campo, janeiro de 2018.

A avó mostra os textos que mais gosta de ler para Davi:

Avó: É mais assim sobre a obediência né mana, é Efésios [...] Tá bem aqui o [...] “Antes seje uns para com os outros, benigno, compassivo, perdoai-vos uns aos outros como também Deus em cristo vos perdoou sede, pois imitadores de Deus como filho amado” aqui “andai em amor como também Cristo nos amou e se entregou a si mesmo por nós como afeta o sacrifício a Deus em aroma suave” agora eu quero procurar outro texto aqui, bem aqui Efésios 6 capítulo primeiro fala assim “filhinhos obedecei aos vossos pai no senhor, pois isto é justo, honra ao teu pai e a tua mãe que é o primeiro mandamento como promessa para que vá bem e seja de longa vida sobre a terra e vossos pais não provoquei os vossos filhos na ira mais cria na disciplina na demonstração do senhor”. P: Tu gosta desse texto, Davi? Davi: Uhum P: Por que tu gosta dele? Avó: Tem que gostar ne, tem que obedecer. P: Fala pra mim. Davi: Porque fala de Deus. (entrevista realizada com Davi e sua avó em janeiro de 2018)

Na Figura 19, registrei as páginas dos textos bíblicos lidos pela avó de Davi

em sua bíblia mais antiga. O texto está marcado com caneta no livro de Efésios

capítulo 4, versículo 32. Ainda registrei a página do segundo texto bíblico lido em

Efésios capítulo 6, versículos 1 a 4. O texto também está marcado com caneta e

lápis colorido. Importante ressaltar que um dos textos é o mesmo que Amora leu no

item 3.2.2 em sua casa.

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Figura 19 – Bíblia aberta nos textos lidos pela avó de Davi

Fonte: pesquisa de campo, janeiro de 2018.

A transcrição do diálogo em que a avó leu os textos bíblicos citados

materializa o evento que denominei “Leitura da bíblia pela avó”. Nele, tem-se como

participantes Davi e sua avó, o suporte utilizado é a bíblia, os textos lidos foram do

livro bíblico de Efésios, que se trata de um gênero textual literário epistolar. A prática

de letramento ou o sentido disso para Davi é “porque fala de Deus”. Importante

destacar a interação em que o texto bíblico está inserido e o papel da avó na

mediação com o texto e o seu significado. Isso transmite à criança um modelo, um

padrão dentro de uma tradição familiar ligada ao letramento como via de acesso à

religião e oferece uma experiência com a organização da linguagem escrita da bíblia

com suas características ritmos e estrutura. Sintetizei esse evento no Quadro 12.

Quadro 12 – Leitura da bíblia pela avó

Participantes Prática de Letramento

Evento de letramento Gênero Subcategoria das práticas de

letramento social

Davi e sua avó “porque fala de Deus”.

Leitura do texto bíblico de Efésios pela avó para Davi escutar.

Bíblia – literário epistolar.

Religiosa

Fonte: elaboração própria, março, 2018.

4.3 DIÁRIOS DE LETRAMENTO

Neste item, faço o registro dos diários de letramento das crianças. Solicitei

que fossem registradas situações em que foram utilizadas a escrita e/ou a leitura da

criança para identificar eventos familiares de letramento e a sequência em que

ocorreram. Destaco alguns fatos que julgo mais significativos nos diários. A partir da

entrevista focada no diário de letramento, pude observar detalhes sobre a rotina

registrada pelas crianças. As conversas abordaram o conteúdo do diário. As

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crianças explicaram o que tinham feito e eu pude perguntar detalhes sobre seus

escritos e ainda registrar outros eventos.

Sobre como foi fazer o diário as crianças comentaram:

CALEU - Fiquei com um pouco de preguiça. (entrevista em fevereiro de 2018)

AMORA - Foi fácil. (entrevista realizada em fevereiro de 2018)

DAVI - Achei difícil que eu quase nem fazia. (entrevista realizada em fevereiro de 2018)

Confirmei que as crianças não estava familiarizadas com a prática de ter um

diário cotidiano. Caleu diz que ficou com “preguiça” de fazer os registros, mas

gostou. Amora achou “fácil” fazer os registros e Davi disse que foi difícil e precisou

da ajuda da mãe e do pai, que foram seus escribas. Bernardo foi o único que não fez

o diário de letramento. As escritas revelaram as rotinas das crianças e relações

centrais aos seus processos sociais e à vida social. Assim, o diário foi um acesso à

compreensão das práticas sociais e experiências reais dos sujeitos da pesquisa, em

que eles puderam registrar práticas não identificadas nas entrevistas anteriores.

4.3.1 Diário de Caleu

O diário foi escrito de próprio punho pela criança, mas teve ajuda da sua

mãe em alguns momentos. Fiz a transcrição, para melhor compreensão no Quadro

13 abaixo:

Quadro 13 – Registro do diário de Caleu

DATA REGISTRO

31/12/2017 Eu e minha mãe combinamos de passa o ano novo na casa da minha avó. Me diverti muito

01/01/2018 Ficamos acordados a noite inteira Fizemos várias brincadeiras Mais tarde assisti um filme com minha mãe

03/01/2018 Eu e minha mãe fizemos sessão pipoca o filme que nós assistimos foi o Logan

04/01/2018 Minha mãe saiu pra trabalhar e fiquei com meu pai Eu fiquei brincando com meus cachorros Assisti desenhos

07/01/2018 Neste dia minha mãe e meu pai estavam de folga Nós fizemos um churrasco

14/01/2018 Neste dia nós fomos para praia Eu tomei banho, almoçamos e tomamos sorvete

18/01/2018 Hoje eu aprendi a fazer sorvete de chocolate pesquisando no google e minha irmã me ajudou e ficou muito gostoso.

Fonte: dados da pesquisa de campo, março 2018.

O menino fez sete registros, alternando entre a 1ª pessoa do singular (eu) e

1ª pessoa do plural (nós). No primeiro registro, do dia 31 de dezembro de 2017, ele

contou sobre uma tradição familiar: de passar o Ano Novo na casa da sua avó, no

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bairro do Telégrafo, e ele disse que se divertiu. No dia 1º de janeiro de 2018, Caleu

registrou que passou a noite acordado com sua família e participou de várias

brincadeiras; ele explicou-me que brincaram de adivinhações, piadas e desfile de

moda. A criança participou de uma prática letrada que envolve a oralidade a partir do

gênero textual piadas e advinhas com o objetivo de se divertir.

No dia 3 de janeiro, ele escreveu que fez uma sessão pipoca com sua mãe e

assistiu a um filme chamado “Logan” e explicou que costuma assistir a filmes

dublados ou legendados na TV a cabo. Assim, o menino utiliza seu letramento para

ver os filmes estrangeiros. Identifiquei outro gênero presente no cotidiano da criança:

filme.

No dia 4, Caleu registrou que sua mãe saiu para trabalhar e ele ficou com

seu pai, referindo-se ao padrasto. Também disse que brincou com seus cachorros –

na casa há dois desses animais domésticos; geralmente brinca de bola com eles e

com os brinquedos “pet” (próprios para cachorros), dando comandos e correndo com

os mesmos.

No dia 7 de janeiro, domingo, o menino escreveu que seus pais estavam de

folga e a família fez um churrasco. Nesses momentos de folga, o menino mostra que

a família brinca com jogos. Um desses jogos é o banco imobiliário, cujo objetivo é

comprar, ter posses e não falir. Os conteúdos são sobre as finanças do mundo real,

educação financeira, planejamento, estratégia e investimento. Também há os jogos

na TV a cabo, como dominó (clássico jogo de formar combinações entre números

inscritos em 28 “pedras”), jogo da forca (formar palavras) e jogo da memória

(encontrar pares de imagens). Percebi aqui a transferência do jogo físico para o jogo

virtual, preservando a maioria dos princípios dos jogos físicos.

Os pais de Caleu proporcionam ao seu filho um letramento alternativo com

os gêneros jogos ao lado do letramento “escolarizado”. Os pais jogam junto com o

filho. Para eles, isso é uma fonte de diversão. Eles usam o jogo segundo as

convenções culturais associadas ao lazer, descontração e infância. Portanto, não

estão posicionados em um quadro de ensino e aprendizagem para desenvolver

exclusivamente a “prontidão” escolar (STREET, 2014, p. 140). Nesse contexto, a

criança internaliza convenções culturais e sociais, orais e letradas, associadas aos

jogos e seus conteúdos, uma prática de letramento voltada para o uso da escrita e

da leitura como uma forma de entretenimento. Nas Figura 20, registrei cada um

desses jogos.

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Figura 20 – Jogos utilizados por Caleu e sua família

Fonte: elaboração própria em março de 2017.

O menino também revelou que joga vídeo game. Assim, registrei outro evento

de letramento recorrente na vida da criança, o qual denominei “Jogo do homem-

aranha no vídeo game”, cuja foto está registrada na Figura 21. Perguntei por que ele

joga vídeo game e o sentido que ele atribuiu foi “pra me divertir” (Caleu, entrevista

em fevereiro de 2018). O menino explicou que foi seu pai quem o ensinou a jogar e

que aprendeu com quatro anos, antes de aprender a ler.

Figura 21 – Caleu jogando vídeo game

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Fonte: pesquisa de campo, fevereiro 2018.

A cômoda onde ficam a televisão e o vídeo game é organizada pela criança.

Conforme se verifica na Figura 21, o menino organiza suas gavetas por nome. Caleu

contou que escreveu em um papel um nome para cada uma das oito gavetas da

cômoda, depois colou-os em cada uma para identificá-las. Assim, tem a “gaveta de

jogos e DVD”, “gaveta de documentos”, “gaveta de dvd de flash”, “gaveta de manual

de jogos”, “gaveta de dvd da supergirl e do Arrow”, “gaveta de passa tempos”,

“gaveta de Kinect e do “Banco Imobiliário” e “gavetas de cabos e dos controles”.

Enquanto Caleu colocava o DVD no vídeo game PLAYSTATION 3 (PS3) da

marca Sony, começou a jogar e me explicou sobre o jogo:

Caleu: A gente faz um monte de missões [...] de trabalho [...] tem um monte de missão, ai a gente escolhe as missões [...] P: Pode ser missão de salvar alguém? Caleu: Pode. P: Pode ser missão de matar algum inimigo? Caleu: Não, a gente só desmaia eles [..] Só que as missões aqui já estão muito difíceis. P: São difíceis por quê? Caleu: Tipo são muitos, tipo eles são muito, são bem mais for... os inimigos tao bem mais fortes [...] Sorte que eu já tô com homem aranha preto, homem aranha veno P: O que significa homem aranha preto?

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Caleu: É o veno quando ele...homem aranha 3, aí tem aquela gosma lá que infecta ele [...] depois que ele vai ficando mau, aqui ó. Mas ele é bem mais forte que o vermelho [...] homem aranha normal, ele é bem mais rápido. P: Essa missão aí é o que? [...] Caleu: É pra derrotar os bandidos. (CALEU, entrevista em fevereiro de 2018)

O menino revelou o que sabia sobre o jogo e explicou que, dentre várias

missões, ele deve escolher uma para realizar. Existem, por exemplo, missões de

salvar e missões de derrotar inimigos. Ele escolheu uma de “derrotar os bandidos” e

contou que as missões estavam difíceis porque os inimigos estavam mais fortes,

mas estava com “sorte” que agora tinha o “homem aranha preto” ou “homem aranha

veno”, infectado por uma gosma e se tornara mais forte e mais rápido que o “homem

aranha vermelho”, porém “vai ficando mau”.

Neste evento, tem-se como participante Caleu, utilizando o suporte e gênero

textual vídeo game ou jogos eletrônicos, especificamente o jogo do Homem-aranha,

que se trata de um jogo em que devem ser cumpridas missões escolhidas pelo

jogador. Segundo Marcushi (2011, p. 19 e 20),

Os gêneros não são classificáveis como formas puras, nem podem ser catalogados de maneira rígida. Devem ser vistos na relação com as práticas sociais, os aspectos cognitivos, os interesses, as relações de poder, as tecnologias, as atividades discursivas e no interior da cultura. Eles mudam, fundem-se, misturam-se para manter sua identidade funcional com inovação organizacional. Em suma, os gêneros não são superestruturas canônicas e deterministas, mas também não são amorfos e simplesmente determinados por pressões externas. São formações interativas, multimodalizadas e flexíveis de organização social e de produção de sentidos.

O autor argumenta que novos gêneros surgem como desmembramentos de

outros e também ocorre a mistura de gêneros ou hibridização. Assim, considerei,

dentro do evento de letramento descrito, o vídeo game como um gênero híbrido,

pois congrega diversos outros gêneros dentro do percurso de um jogo, por exemplo,

gêneros, instruções, manuais, anúncios, notícias, entre outros, inclusive gêneros

orais em diálogos.

O evento exigia do participante, Caleu, alguns letramentos específicos para a

sua recepção, como decodificação, compreensão e produção de significados. Cabe

destacar que o menino aprendeu a manusear o instrumento tecnológico antes de

dominar a leitura e a escrita, uma prática adquirida em seu contexto cultural na

família, que talvez exija mais atenção do que a própria aprendizagem da leitura e

escrita nas práticas escolarizadas. A prática de letramento que sustém tal evento é a

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busca da diversão que está dentro do domínio da ludicidade e interatividade própria

do jogo por meio do suporte eletrônico. Sintetizei esse evento no Quadro 14.

Quadro 14 – Práticas de letramento de Caleu

Participante Prática de Letramento (sentidos)

Evento de letramento

Suporte/Gênero textual

Subcategoria das práticas de

letramento social

Caleu “para me divertir”; “A gente faz um monte de missões”; “É pra derrotar os bandidos”.

Usar o vídeo game para jogar “Homem aranha”

Vídeo game, Jogos eletrônicos de missões e aventura

Digital/ entretenimento

Fonte: elaboração própria, março 2018.

No dia 14, também domingo, ele relatou que sua família foi à praia,

almoçaram, tomaram sorvete e ele tomou banho. A criança contou que ajudou a

escolher a comida no cardápio do restaurante, outro gênero presente em seu

cotidiano.

Para Street (2014, p. 168), deve-se conceber o letramento vinculado a

outros meios de comunicação, pois as “práticas letradas estão sempre encaixadas

em usos orais”. Para pesquisá-las, é necessário um modelo que considere a mescla

oral e escrito, haja vista que a escrita é influenciada pelo contexto real em que se

realiza.

Neste sentido, no último relato, dia 18 de janeiro, Caleu registrou um evento

de letramento em que aprendeu a fazer sorvete. O menino contou que pesquisou

receitas de sorvete no Google e para executar uma receita ligou para sua irmã que,

segundo ele, “ela foi minha guia” (Caleu, entrevista em fevereiro de 2018) para fazer

o sorvete por meio de uma conversa telefônica no celular. Pois sua mãe não estava

em casa.

No evento supracitado, identifiquei dois gêneros textuais: o telefonema e a

receita culinária. Para Marcuschi (2008, p. 161), o telefonema como gênero textual,

Trata-se de um evento falado muito claro e definido em suas rotinas. Identificável pela maioria dos indivíduos que vivem em culturas em que telefonar é uma prática usual. Caracteriza-se como um diálogo mediado pelo telefone, sem a presença física dos falantes. Contudo, do ponto de vista de tipo textual, um telefonema pode envolver argumentações, narrativas e descrições, ou seja, é heterogêneo.

Posso afirmar que Caleu utilizou o celular, suporte para gêneros orais, e o

gênero textual telefonema para tratar de outro gênero, a receita culinária sobre

sorvete, pesquisada no suporte internet e, para isso, utilizou o Google (empresa

multinacional americana de serviços on-line e software) para pesquisar. O menino

revelou que o sentido disso está no prazer de aprender a cozinhar sozinho e fazer

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surpresas para sua mãe quando esta chega do trabalho. A mãe comentou que

permite a criança utilizar a cozinha, mas a única coisa que não pode mexer é no

fogão. Percebi que o menino cozinha para se divertir e não para ajudar nas tarefas

domésticas.

Para Street (2014, p. 203), considerando-se o letramento como prática social,

“o letramento das crianças está intimamente associado à aprendizagem familiar” e o

letramento familiar é um aspecto do letramento em comunidade. Para o autor, o

letramento já é parte da relação de poder, e o modo como as pessoas se apropriam

é uma contingência de práticas sociais e culturais e não apenas de fatores

pedagógicos e cognitivos.

Assim, percebi que Caleu utilizou suas habilidades letradas e se apropriou

das novas práticas comunicativas, consequência das novas tecnologias da

informação e comunicação, para resolver questões em sua atmosfera da vida

cotidiana. Esse é um dos significados do letramento em sua vida diária e nas suas

relações sociais. Sintetizei no Quadro 15 os eventos de letramento e as

subcategorias mapeadas.

Quadro 15 – Práticas de letramento identificadas a partir do diário de Caleu

Participante Subcategoria das práticas de letramento social

Evento de letramento Gênero/suporte

Caleu

Digital/ comunicação interpessoal

Telefonou para a irmã Telefonema

Entretenimento Reunião de Ano Novo na família

Piada

Digital Pesquisar receitas na internet Receitas

Digital / entretenimento Jogar na televisão Jogo da forca, jogo da memória, jogo de dominó

Entretenimento Jogar banco imobiliário Jogo do banco imobiliário

Fonte: elaboração própria, em abril de 2018.

Na Figura 22, registrei o diário de letramento original feito por Caleu.

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Figura 22 – Diário de letramento de Caleu

Fonte: pesquisa de campo, fevereiro de 2018.

4.3.2 Diário de Amora

Quando fui recolher o diário de Amora, ela contou que começou a registrar

no primeiro diário de letramento entregue, porém uma goteira danificou o papel.

Então, ela começou a fazer um segundo registro em um caderno, mas em

decorrência da mudança de casa ela o perdeu. Assim, ela iniciou um terceiro diário.

Na Figura 16, transcrevi o diário para melhor compreensão.

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Nota-se que a menina fez 12 registros do dia 6 ao dia 17 de fevereiro, mas

preparou as datas até dia 26/02/2018. O terceiro diário foi realizado no período em

que havia começado as aulas escolares. A maioria dos registros foram feitos na 1ª

pessoa do plural (nós).

Quadro 16 – Quadro do diário de Amora

DATA REGISTRO

06/02/2018 Lemos um trecho de comercial

07/02/2018 Lemos um livro de matemática

08/02/2018 Nos assistimos um pouco de tv

09/02/2018 Lemos mensagem do celular

10/02/2018 Nós lemos placas. tipo vende-se chop

11/02/2018 Fazemos deveres de casa

12/02/2018 Vemos um catálogo de compras.

13/02/2018 Escrevo no caderno

14/02/2018 Lemos papel de energia

15/02/2018 Fizemos uma lista de compras

16/02/2018 Lemos uma caixinha de legumes

17/02/2018 Lemos uma revista da tupperware

Fonte: elaboração pessoal, fevereiro de 2018.

Na Figura 23, registrei o diário original de Amora. Figura 23 – Diário de letramento de Amora

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Fonte: Pesquisa de campo, fevereiro 2018

No dia 6 de fevereiro, a menina disse que leu um trecho de comercial;

refere-se a uma propaganda na televisão, um gênero textual bastante rotineiro no

domínio discursivo publicitário. No dia 7, ela contou que leu um livro de matemática

para fazer o dever de casa; considerei o livro didático como um suporte. No dia 8,

escreveu que assistiu à televisão; referindo-se aos desenhos e novelas. Dia 9, ela

registrou que leu mensagens no celular da mãe, que criou um grupo de Whatsapp

(aplicativo multiplataforma de mensagens instantâneas e chamadas de voz) com os

contatos das pessoas que são clientes nas suas vendas; a menina participou dessa

atividade com a mãe, lendo mensagens, contanto produtos, verificando preços, entre

outras coisas.

No dia 10, a menina contou que leu uma placa na rua de “vende-se chop”,

trata-se do gênero textual anúncio. A partir do diário, entendi que Amora observou

tudo que estava escrito ao seu redor, algo que faz desde que aprendeu a ler. No dia

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11, ela escreveu que fez dever de casa. No dia 12, a criança contou que viu um

catálogo de compras; referindo-se ao catálogo da empresa Tupperware que sua

mãe vende.

No dia 13, Amora registrou que escreveu no seu caderno – único registro

escrito na 1º pessoa do singular em seu diário – referência a um caderno “velho”,

onde faz desenhos, escreve cartas para seu pai, brinca de fazer o cabeçalho da

escola e inventar deveres, escreve músicas. Percebi a necessidade que a criança

sente de se expressar por meio da escrita. Assim, registrei uma escrita que

materializava uma prática letrada recorrente na vida de menina: escrever cartas para

seu pai (padrasto).

Denomino este evento de “Cartas ao pai”. Amora não teva contato com o pai

biológico e foi criada pelo padrasto desde os quatro meses de idade. Recordei-me

das primeiras entrevistas, em que a menina falou sobre a separação de seu

padrasto e de sua mãe: “Porque toda vez que a mamãe tem um filho, né, meu pai

vai embora e depois ele volta. Só que agora meu pai não quer voltar mais com ela.

Ai, eu não sei se ele vai voltar ou não” (Amora, entrevista em novembro de 2017).

Em 2016, seu padrasto e sua mãe separaram-se, ele foi morar em Santa Maria do

Pará, onde possui parentes.

Corsaro (2011) discute que a separação e o divórcio frequentemente

possuem consequências econômicas negativas severas para mulheres e crianças.

Os efeitos sociais e psicológicos do divórcio para as crianças são mais difíceis de

medir, interpretar e compreender do que as consequências econômicas. Há muita

pesquisa nessa área, porém os resultados são inconclusivos.

Existem vários obstáculos inter-relacionados ao se estimar os efeitos sociais e psicológicos do divórcio para as crianças. Primeiro, a maioria dos estudos mede os efeitos em um dado momento no tempo; contudo, o divórcio e suas consequências são processos que se desenrolam durante um longo período (CORSARO, 2011, p. 265).

Desde a separação, Amora se comunica com seu padrasto, que considera

seu pai, por meio de textos que chama de “carta”. Sua avó paterna, mãe de seu

padrasto, também mora em Santa Maria e quando vem para Belém fazer exames,

fica no bairro na Terra Firme. Antes de retornar para seu município, passa em

Outeiro para visitar os netos e leva as cartas que Amora faz para o pai. Sobre isso, a

menina explica:

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P: Amora por que tu faz essas cartinhas? Amora: É... não sei. P: Não tem um motivo? Amora: É porque eu gosto de fazer [...] P: E tu só faz essas cartinhas pro teu pai ou o quê, pra outra pessoa? Amora: É só pro papai [...] as vezes eu faço pra mamãe, as vezes eu faço pra minha avó. P: Mas ele leu essa cartinha? Amora: Não, ainda vou mandar pra ele. P: Ah e como é que tu manda pra ele? Amora: É que eu tenho a vó, que é a mãe dele que ela mora lá, ela tá aí na terra firma, ai não sei quando ela vai, quando ela vai, ela vem aqui visita a gente, aí eu mando essas cartinhas pra ela e ela dá pra ele. (entrevista em fevereiro de 2018)

Na Figura 24 há um exemplo dessas cartas; apaguei o nome verdadeiro da

criança ao escanear a carta para preservar sua identidade. A menina começou

escrevendo a lápis, depois apagou e escreveu com caneta. Transcrevi a carta, para

melhor compreensão, com escrita convencional, de acordo com a leitura e

explicação feita sobre a carta por Amora.

Ela escreve: “Papai até que enfim estou aqui com o senhor eu estava

morrendo de saudade, mas eu amo o senhor com amor ass: Amora”. Antes da

assinatura apareceu uma frase riscada. Amora disse que era uma pergunta que iria

fazer “o senhor vai pro meu aniversario?”. Depois deste texto, a criança desenhou

dentro de um coração a imagem de seu pai e de si mesma lado a lado e os

identificou com a seguinte escrita “pai e filha”. Ela fez ambos os desenhos com a

boca aberta de onde saem setas que apontam um diálogo. O pai disse “Feliz

aniversário!” e a filha respondeu “obrigada pai você veio”.

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Figura 24 – Carta feita por Amora para seu pai

Fonte: pesquisa de campo, fevereiro de 2018.

Amora explicou que no final da carta escreveu uma música para o pai. Trata-

se da letra da canção intitulada “Deixar a lágrima rolar”, da cantora evangélica Bruna

Carla. Uma prática recorrente na vida da família é ouvir músicas evangélicas por

meio da rádio no celular. Ela fala sobre o conteúdo da programação e identifica a

rádio: “fala de Jesus [...] rádio Boas Novas” (Amora, entrevista em fevereiro de

2018). Na verdade, a menina parafraseia a música. Transcrevi a última parte da

carta com escrita convencional: “tenho tantas coisas pra fazer tenho uma canção pra

você cantar eu só queria levantar deixar a lágrima rolar”.

Segundo Street (2014, p. 106, grifos do autor), “pôr o que é dito por escrito

numa forma tão convencional quanto uma carta altera, de fato, sua significação; a

carta não é um mero substituto de uma comunicação oral”. O evento “cartas ao pai”

atesta o uso do letramento por Amora em um contexto não escolar, como uma forma

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de comunicação com o pai. A significação da carta feita pela criança não pode ser

separada dos sentidos intrínsecos das palavras comunicadas dentro do contexto em

que foi produzida, revelado no discurso da criança, a separação dos pais.

A criança demonstrou, pelas características de sua escrita na carta, que tem

conhecimento sobre esse gênero, uma estratégia que usa para se corresponder.

Neste evento, Amora foi a emissora que identificou o destinatário, seu pai. A menina

assinou a carta após escrever a mensagem, que tinha como conteúdo informar a

saudade que sentia do pai, seu amor pelo pai, e o desejo de que o pai

comparecesse em seu aniversário, que estava próximo (no mês de abril). Sua avó

foi a mensageira.

Para Street (2014, p. 124), “a questão não é o impacto que o letramento tem

sobre as pessoas, mas como as pessoas afetam o letramento”. Amora acrescentou

o gênero carta no seu repertório comunicativo com uma escrita associada à

autoexpressão, sentimento e subjetividade. A prática letrada ou o sentido que

sustenta o evento em que a criança produz cartas é, nas palavras da menina,

“porque eu gosto de fazer” e “eu mando essas cartinhas pra ela e ela dá pra ele”.

Sumarizei este evento no Quadro 17.

Quadro 17 – “Cartas ao pai”

Participantes Prática de Letramento Evento de letramento

Gênero Subcategoria das práticas de letramento social

Amora Pai

Avó paterna

“porque eu gosto de fazer”; “eu mando essas cartinhas pra ela e ela dá pra ele”.

Escrever cartas para o pai

Carta pessoal Comunicação interpessoal

Fonte: elaboração própria, março de 2018.

No dia 14 de fevereiro, Amora registrou um gênero textual muito corriqueiro

no dia a dia, trata-se da conta de energia. Ela falou que leu a conta de energia,

identificou o valor cobrado e, junto com a mãe, raciocinou se correspondia ao que foi

utilizado pela família e se organizaram para fazer o pagamento na casa lotérica. No

dia 15, a menina escreveu que fez uma lista de compras com sua mãe para ir ao

mercado comprar alimentos que faltavam na casa; mais um gênero textual que

estrutura uma ação na família e faz a intermediação de uma prática social. No dia

16, a menina contou que leu uma caixinha de legumes; referindo-se a um momento

em que estava ajudando sua mãe a cozinhar e leu a receita da caixinha no rótulo da

lata de seleta de legumes. Aqui identifiquei mais dois gêneros textuais: a receita e o

rótulo.

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Destaca-se o evento do último dia registrado, 17 de fevereiro, porque foi

recorrente e é um dos mais importantes para a sobrevivência da família. A menina

registrou que leram a revista da “tupperware”, marca dos produtos que sua mãe

vende atualmente. Para executar as vendas, a mãe faz circular o catálogo impresso

entre seus clientes que marcam e escrevem seu nome nos produtos que querem

comprar, ou o catálogo virtual por meio do Whatsapp e os clientes mandam

mensagens sobre os produtos que desejam adquirir.

Registrei na Figura 25 um exemplo desse objeto de leitura. Figura 25 – Página virtual de um catálogo Tupperware

Fonte: pesquisa de campo, janeiro de 2017.

Após a escolha dos clientes, ela registra os produtos pedidos em um

caderno e faz os pedidos pela internet do celular no site da empresa. A genitora

explicou que, além dos produtos pedidos pelos clientes, ela faz pedidos de outros

que estão na promoção para fazer estoques de vendas. Isso lhe possibilita facilitar

para seus clientes vendas em parcelas. Como vendedora, ela tem vantagens de

pedi-los com descontos para seu próprio consumo também. Normalmente, são

preços bem abaixo dos divulgados nos catálogos, que advém de caixas de produtos

que foram devolvidas.

Ela criou um grupo de Whatsapp para seus clientes e neste grupo posta

propagandas de produtos que têm em seu estoque e promove alguns sorteios com o

objetivo de agradar e fidelizar seus clientes. Também possui uma conta bancária e é

por meio dela que faz transações com a empresa e com seus clientes, como

depósitos e transferências bancárias.

Embora a menina tenha citado “revista” da Tupperware, a nomenclatura

usual é catálogo de produtos. Para Marcuschi (2008, p. 173), a questão do suporte

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de gêneros textuais é “uma questão complexa que não tem uma decisão clara.

Ainda inexistem estudos sistemáticos a respeito do suporte dos gêneros textuais.

Apenas agora iniciam as investigações sistemáticas a este respeito e muitas são as

indagações”. O autor define o suporte como “um locus físico ou virtual com formato

específico que serve de base ou ambiente de fixação do gênero materializado como

texto” (MARCUSCHI, 2008, p. 174).

Considerei o catálogo de produtos como gênero textual porque tem um

padrão sociocomunicativo e uma importância comercial, cultural e histórica; possui

intensa circulação social nos mais diversos âmbitos familiar, escolar, na igreja, no

trabalho entre outros. O catálogo circula entre os consumidores e vendedores e

possui sumário, tema, conteúdo e estilo. Assemelha-se a uma vitrine com preços,

descrições de produtos e, às vezes, um texto para estimular a compra dos produtos.

Segundo Street (2014, p. 53), as práticas letradas são partes de todos

sociais e o modelo ideológico de letramento tenta “entender o que significa o

letramento para as pessoas que o adquirem”. Ressalto o modo que Amora “se

apodera” de um letramento em particular para ajudar sua mãe a fazer vendas. A

mãe de Amora desenvolveu relações comerciais a partir uma habilidade letrada, que

é uma competência específica a partir dos recursos disponíveis que tem, por

exemplo, utilizando o celular como a tecnologia para facilitar as vendas, visto que é

difícil sair com todos os filhos para visitar seus clientes.

Por meio disso, a mãe consegue um lucro para a família em torno de 26%

do valor total de suas vendas, que já alcançam R$ 1.700,00 por mês. Ela sustenta a

família com essas vendas, porque atualmente não tem ajuda do seu ex-marido.

Todas essas estratégias desenvolvidas pela mãe, Amora aprendeu em seu

cotidiano, pois participa ativamente nessa atividade, respondendo mensagens sobre

produtos no celular, contabilizando e verificando preços de produtos e registrando no

caderno destinado para a esse fim. O sentido dessa prática letrada está em vender e

aumentar as vendas, prospectando clientes para a sustentação financeira da família.

Desta forma, a família de Amora consegue seu sustento financeiro. Embora

sobrevivam com muitas privações, em nenhum momento a mãe se lamentou pelas

dificuldades enfrentadas. Ao contrário, revela muita felicidade com suas conquistas

recentes, como a nova casa, certificação de ensino médio e de suas metas

alcançadas com as vendas.

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As práticas letradas observadas na vida familiar de Amora não são

simplesmente um conjunto de habilidades funcionais, mas são práticas sociais

profundamente associadas à identidade e posição social. É possível ver padrões

nessas práticas de letramento social como práticas escolares, práticas religiosas e

práticas comerciais, algumas vinculadas à tecnologia e determinando a forma como

a tecnologia é utilizada. No Quadro 18, há síntese das principais práticas

identificadas a partir do diário de Amora.

Quadro 18 – Práticas de letramento identificadas a partir do diário de Amora

Participante Subcategoria das práticas de letramento

social

Evento de letramento

Gênero/suporte

Amora

Comunicação interpessoal Escrever cartas para o pai

Carta pessoal

Escolar Fazer dever de casa

Livro didático

Entretenimento/comercial Assistir à televisão Propaganda

Digital Ler mensagem no celular

Mensagem eletrônica

Comercial Ler conta de energia

Conta de energia

Ler revista da Tupperware

Catálogo

Vida diária Fazer lista de compras

Lista de compras

Ler rótulos e receitas

Rótulos e receitas

Ler anúncio Anúncio

Fonte: elaboração própria, março de 2018.

4.3.3 O não registro do diário de Bernardo

No dia marcado para recolher o diário de letramento de Bernardo, a família

revelou que não fez o diário porque esqueceu. Considerando o uso do diário nesta

pesquisa como uma das fontes de relato dos participantes e que seu valor depende

do uso combinado com a entrevista, resolvi manter apenas a entrevista em aberto.

Assim, a conversa girou em torno do lazer da família e da rotina da criança em casa.

Bernardo me apresentou um “caderno velho” que utiliza para fazer muitos

registros. A sua mãe o comprou para estudar, mas deu para a criança porque pegou

chuva e ficou manchado. Neste caderno, o menino treina formação de frases, faz

desenhos e brinca de uma brincadeira chamada de “nome, objeto”. Foi possível

materializar alguns usos e significados que a criança atribuiu para a leitura e a

escrita dentro de uma prática letrada voltada para o entretenimento em família e

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para a autoexpressão por meio de desenhos. Na Figura 26, registrei uma página em

que Bernardo estava treinando a formação de frases.

Figura 26 – Frases registradas por Bernardo em um caderno velho

Fonte: pesquisa de campo, fevereiro de 2018.

Ele escreveu para depois sua mãe verificar se estava correto. Transcrevi as

três frases: “A xícara caiu e quebrou”; “A foca é bonita” e “A pipa caiu e quebrou”.

Para Street (2014, p. 100), “escrever pode implicar um grau maior de controle

autoral sobre o que se escreve do que o leitor tende a ter sobre o que lê”. Neste

sentido, percebi que a criança tenta dominar a escrita tentando ser um produtor ativo

de sua própria prática letrada. E reproduz a forma como aprende na escola, escrever

para alguém corrigir.

Neste caderno, Bernardo gosta de fazer desenhos, uma escrita relacionada

à autoexpressão e subjetividade. Na Figura 27, registrei dois desenhos feitos por

ele. No primeiro desenho, Bernardo fez uma bicicleta. No segundo desenho, uma

casa, sol, árvore, montanhas e dois meninos empinando pipa, algo que ele sabe

fazer e gosta muito de brincar. Os desenhos foram feito a lápis e não foram

coloridos. Ele explicou que faz os desenhos de duas formas, sem modelo e com

modelo, colocando um papel por cima de um desenho pronto de alguma revista ou

livro e copia.

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Figura 27 – Desenhos feitos por Bernardo

Fonte: pesquisa de campo, fevereiro de 2018.

Bernardo também mostrou no caderno uma brincadeira que a família inteira

participa, mãe, avó e tio. Eles a chamam de “Nome, objeto”. Consiste em preencher

um quadro com vários itens como nome, objeto, fruta, animal, cor, lugar, novela, ator

ou atriz, cantor (a). Uma letra é sorteada e todos os jogadores devem preencher o

quadro com uma palavra que comece com tal letra, nenhum jogador pode ver o que

o outro está fazendo, apenas no final, quando houver a conferência dos pontos.

Ganha quem fizer a maior pontuação, contada e registrada no quadro dentro do item

“total”, quando todos apresentam o que escreveram. Se todos escreverem palavras

diferentes, cada um ganha 10 pontos, se as palavras escritas coincidirem cada

jogador ganhará 5 pontos.

Na Figura 28, registrei uma página em que Bernardo participou da

brincadeira pela primeira vez e estava sendo ensinado pela mãe.

Figura 28 – Escrita de Bernardo na brincadeira “Nome, objeto”

Fonte: pesquisa de campo, fevereiro de 2018

O menino fez uma tabela e em cada lacuna escreveu um item e atribuiu

pontuação 10 para tudo que escreveu, o que ele não conseguiu preencher ele

colocou um “X”. No item “total”, ele atribuiu 5 para as duas linhas que foram

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preenchidas e ainda fez mais duas linhas na tabela, preenchendo todas as lacunas

com o número 10.

Transcrevi no Quadro 19 a brincadeira escrita pela criança. Bernardo

escreveu os itens nome, objeto, cor, novela, animal, fruta e total. Ele colocou no

local correspondente as palavras cobra, cinza, Coração Indomável, caba, cacau,

Beto, bola, branco, baleia e banana. A mãe contou que o menino pediu para que lhe

ensinasse a brincadeira.

A família nomeia o jogo como “Nome, objeto”, mas Bernardo chama de

“Adedonha” porque as letras sorteadas são escolhidas por meio de um sorteio, em

que todos falam “Adedonha” e colocam um determinado número com os dedos. O

número total será o número da letra correspondente ao alfabeto. Ressalto que

“Adedonha” também é uma palavra de cunho popular, que faz parte do acervo lúdico

e é falada pelas crianças para se referirem a outras brincadeiras que envolvem

oralidade e adivinhação.

Quadro 19 – Transcrição da brincadeira “Adedonha” de Bernardo

Nome Objeto Cor Novela Animal Fruta Total

X cobra cinza Coração indomável

caba cacau 05

Beto bola branco X baleia banana 05

10 10 10 10 10 10 10

10 10 10 10 10 10 10

Fonte: elaboração própria com dados da pesquisa de campo, fevereiro de 2018.

Perguntei para o menino por que ele gostava de jogar, desenhar e escrever

no caderno. Ele disse simplesmente “porque é legal” (Bernardo, entrevista em

fevereiro de 2018). O sentido está na brincadeira, na diversão. Ele também contou

que brincava de “Adedonha” apenas na casa de sua mãe porque não lhe é permitido

brincar na rua. Às vezes, à tarde, Bernardo vai para a casa do pai, que fica no

mesmo bairro na ilha, lá ele brinca na rua e joga futebol em uma quadra.

Na Figura 28, registrei a escrita original no caderno feita pela criança. No

caderno há várias dessas brincadeiras escritas. A prática letrada que sustenta o

sentido dessa brincadeira com a escrita na família é a diversão, uma prática social

voltada para o lazer e a competição por meio do gênero jogo. Percebi o interesse e a

tentativa de a criança dominar o jogo realizado em seu ambiente familiar, usando a

escrita para reafirmar costumes familiares.

Pude presenciar também outro evento de letramento na casa de Bernardo, o

qual denomino de “Caça palavras no celular”. Durante a entrevista, o menino pegou

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o celular da mãe e começou a jogar. No trecho abaixo da conversa ele revelou o

sentido dessa prática:

P: Como é esse joguinho que tu joga? Bernardo: A gente tem que achar as palavras. P: Ai depois que tu acha o que acontece? Bernardo: A gente clica aqui e vai excluindo daqui. P: E tu gosta desse joguinho por quê? Bernardo: Porque ensina mais a aprender a escrever e a ler. (BERNARDO, entrevista em fevereiro de 2018)

Figura 29 – Jogo caça palavras (imagem da tela do celular)

Fonte: pesquisa de campo, fevereiro de 2018.

O menino demonstrou como era o jogo e apontou que devia arrastar o dedo

na tela e clicar na palavra que encontrou; esta será excluída da lista de palavras a

serem “caçadas”. Na Figura 29 mostrei a tela do celular com o jogo caça palavras

que Bernardo estava jogando. Neste evento, tem-se Bernardo como participante, o

gênero textual envolvido trata-se de um jogo por meio do suporte que é o celular e a

internet. Segundo Marcuschi (2008), os jogos estão dentro do domínio discursivo de

“lazer”.

Para Street (2012, p. 73 e 74), o foco deve ser a prática social no contexto em

que se constrói os usos e significados do letramento:

Se identificarmos um letramento com um modo ou canal –letramento visual, letramento do computador --, então cairemos na armadilha de reificá-lo de acordo com a forma, deixando de levar em contas práticas sociais ligadas à construção, aos usos e aos significados do letramento no contexto. Portanto, ao desenvolver uma abordagem de multiletramento, é importante evitar determinismo do canal ou da tecnologia, em que se considera que o letramento visual por si mesmo tenha determinados efeitos que possam ser diferentes do letramento do computador. Dessa forma, o foco estaria no modo, no visual e no computador, e não nas práticas sociais nas quais os computadores, a mídia visual e outros tipos de canais concretamente recebem significados.

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Considerei que Bernardo utilizou suas habilidades para operar com o celular,

mas não é esse instrumento tecnológico em si mesmo que produziu algum efeito, e

sim a prática social que atribuiu significados, revelada no discurso do menino qual

seja, “porque ensina mais a aprender a escrever e a ler”. O menino revelou que

utiliza o jogo para aprender a ler e escrever.

Constatei a utilização que Bernardo fez do recurso para aprendizagem e não

apenas para diversão e lazer. Neste sentido, Street (2014, p. 140) aponta o que tem

acontecido com a pedagogização do letramento:

um brinquedo é tratado não como fonte de “diversão”, a ser usado segundo convenções culturais associadas ao lazer, descontração, infância etc., mas, sim, posicionado dentro de um quadro de ensino e aprendizagem, servindo de andaime para o futuro progresso acadêmico da criança”.

Sintetizei os dois eventos de letramento descritos no Quadro 20.

Quadro 20 – Práticas de letramento identificadas na 4ª entrevista na casa de Bernardo

Participante Subcategoria das práticas de letramento social

Evento de letramento

Gênero/suporte

Bernardo

Entretenimento Jogar adedonha Jogo adedonha

Digital Jogando caça palavras no celular

Jogo caça palavras

Fonte: elaboração própria, março de 2018.

4.3.4 Diário de Davi

Davi foi a única criança que, além de ter preservado o material original

proposto e entregue, preencheu todos os espaços. Foram feitos 16 registros do dia 7

ao dia 21 de janeiro. Sendo que houve dois registros diferentes no dia 17. Pelo

diário, pude observar mais detalhes da realidade da criança vivida em seu ambiente

familiar. Os registros foram feitos durante o recesso escolar, tempo em que a guarda

de Davi fica compartilhada entre o pai e a mãe, por isso ele teve a ajuda dos dois na

execução da atividade. Nas figuras 30 e 31, registro o diário original de Davi.

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Figura 30 – Diário de letramento de Davi

Fonte: pesquisa de campo, fevereiro de 2018.

Figura 31 – Diário de letramento de Davi (continuação)

Fonte: pesquisa de campo, fevereiro 2018.

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No Quadro 21, fiz a transcrição do diário com escrita convencional.

Quadro 21 – Transcrição do diário de Davi DATA REGISTRO

07/01/2018 Eu Davi fui pega a draga para cavar buraco para fazer uma decoração para mamãe de garrafa pet e depois fui brincar

08/01/2018 Eu brinquei o dia todo fui pro trabalho da mãe e tomei banho de chuva depois fui dormir GN: 4:1

09/01/2018 Eu fiz de novo fui pro trabalho da mamãe e brinquei no celular dela

10/01/2018 Eu só vi televisão e dormir de tarde

11/01/2018 Eu brinquei no celular, almocei, brincou com primo, merendou, jantou, e fui dormir.

12/01/2018 Eu assisti televisão, brinquei com meu pai

13/01/2018 Eu fui pra pizzaria

14/01/2018 Só fui pra casa do meu pai e brinquei no celular do meu pai

15/01/2018 Na casa do papai brincando de peteca

16/01/2018 Eu trabalhei com meu pai carregava tijolo

17/01/2018 Eu fiquei no papai brincando

17/01/2018 Brinquei de peteca com meu primo na casa do papai

18/01/2018 Eu fiquei vendo filme com meu pai

19/01/2018 Eu fui brincar com meu colega no beco lá no meu pai

20/01/2018 Eu vi filme com meu pai de novo

21/01/2018 Eu estudei a bíblia

Fonte: elaboração própria com dados da pesquisa de campo, fevereiro de 2018.

Em 10 (dez) dias, Davi registrou no diário que brincou. Ele identificou

algumas brincadeiras: brincou no celular, brincou com o pai, fez dois registros que

brincou de peteca com o pai e o primo, brincou com um colega em um beco. Davi

explicou o que fez no celular: “usando a internet, facebook, wathsaap e jogos [...]

minecrafit que era de fazer coisas e mine militia” (Davi, entrevista em fevereiro de

2018). O menino explicou que o “minecrafit” é um jogo para construir coisas e o

“mine militia” é um jogo de tiro. Uma prática de letramento digital voltada para o

entretenimento.

Sobre o jogo de peteca, o menino disse que jogou no chão de terra e citou

três formas de jogar: acertar na peteca dos adversários e, dependendo da regra,

pode ficar com a peteca do outro; fazer buracos no chão para tentar arremessar as

petecas no buraco a uma determinada distância; ou desenhar a forma de um

triângulo no chão e colocar um determinado número de petecas, os jogadores

deverão laçar outras petecas nas que estão dentro do triângulo com o objetivo de

tirá-las do triângulo. Davi e seus pares criaram formas e regras para jogar de

maneiras mais variadas.

Importante destacar que o jogo de peteca ou bolinha de gude, segundo

Corsaro (2011, p. 230), é altamente complexo e contribui para o desenvolvimento de

estratégias de negociação das crianças e em seu desenvolvimento moral:

Envolve habilidade – isto é, mirar e arremessar as bolinhas em um buraco ou na bolinha de outro jogador, rapidamente antecipar o fluxo do jogo e gritar várias restrições com relação ao arremesso. Também é importante

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avaliar o valor das bolinhas de gude de uma competição e negociar um ponto de vista”.

Sobre as brincadeiras “no beco”, registradas no diário, Davi falou durante

quanto tempo brincou e citou outras brincadeiras: “começo de tarde vou terminar de

noite [...] taco, futebol, pira pega e pira se esconde” (Davi, entrevista em fevereiro de

2018). O menino ainda contou que gosta de brincar de empinar pipa e aprendeu a

fazer com um colega na rua; ele comprou a linha e o cerol e retirava varetas de uma

árvore do quintal da sua avó para fazer as pipas. Mas ele escondia o material de sua

avó porque ela jogaria fora. Davi foi o entrevistado que mais participava de

brincadeiras de rua com seus pares.

No dia 7, ele ajudou sua mãe a fazer uma decoração fazendo um buraco

com uma draga. Aqui identificamos que as tarefas são “altamente diferenciadas por

gênero” (CORSARO, 2011), cabe ao menino realizar tarefas tradicionalmente

definidas como masculinas.

Dia 8, ele foi para o trabalho da mãe e brincou no celular; há o registro de

“GN: 4:1”. Davi explicou que nessa noitea, uma segunda-feira em que tem culto

religioso na sua casa, ele e a mãe leram a bíblia, todo o capítulo 4 do livro de

Gênesis. Identifiquei um evento de letramento religioso: o “culto doméstico” (Davi,

entrevista realizada em janeiro de 2018). Davi explicou que às segundas-feiras é

realizado esse culto em sua casa, uma reunião com seus familiares e algumas

pessoas da igreja para fazer a leitura e conversas sobre os textos lidos da bíblia.

Assim, Davi participa de discussões e interpretações sobre a bíblia.

Por duas vezes, o menino escreveu que assistiu à televisão e duas vezes

assistiu a filme com o pai. Sobre isso ele disse que na televisão gosta de assistir a

“filme ou desenhos” (Davi, entrevista em fevereiro de 2018). Há um registro de um

passeio para uma pizzaria no dia 13. No dia 16, ele contou que trabalhou com seu

pai, pedreiro, carregando tijolo. Davi relatou que gosta de ajudar seu pai e aprende

muitas coisas: fazer medições e misturar massa, por exemplo. Mas não recebe

dinheiro por isso. Embora Davi participe de um tipo de letramento no trabalho de seu

pai, isso traz à tona a questão do trabalho infantil fora de casa em mais uma

atividade considerada masculina. No diário está escrito “trabalhei com meu pai

carregava tijolo”.

Embora não seja o foco desta pesquisa, é importante registrar que o

trabalho infantil ainda é uma realidade para muitas crianças da Ilha de Caratateua. É

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possível observar nas praias crianças vendendo bombons ou pedindo dinheiro.

Segundo Souza (2014), o trabalho infantil, uso e abuso da força infantil em famílias

de baixa renda é um tema bastante polêmico. A legislação brasileira proíbe o

trabalho infantil, entretanto, muitas vezes, as famílias o assimilam com naturalidade

e acham que seus filhos estão sendo preparados para enfrentar as dificuldades

futuras.

A autora afirma:

O trabalho infantil explora a força das crianças e dos adolescentes que cumpre função econômica no processo de reprodução do capital, expondo a infância a uma condição moralmente degradante e prejudicando-a na sua escolarização. Compreendemos também que o trabalho infantil é justificado pela ideologia liberal, que responsabiliza o indivíduo por seu sucesso econômico, e ainda aceito na contemporaneidade como alternativa à pobreza e ao ócio de crianças e de adolescentes da classe trabalhadora (SOUZA, 2014, p. 73).

Rizzini (2016, p. 389) aponta que os trabalhadores infantil, na maioria dos

casos, são vítimas da miséria. “A criança é socializada desde cedo para ocupar o

seu lugar em uma sociedade extremamente estratificada, onde lhe são reservadas

as funções mais subalternas. As famílias temem a sedução das drogas, do dinheiro

fácil”. A autora assinala que a polêmica de erradicar ou não o trabalho infantil é

gerada pela falta de comunicação entre os envolvidos na questão: as crianças, as

famílias e os planejadores de políticas sociais. E essa realidade não mudará sem

que assim desejem todas as partes envolvidas.

“Crianças e adolescentes que passam anos dentro da escola e que mal

conseguem escrever o próprio nome são comuns em todo o país, só restando a eles

uma vida de miséria, dependente do trabalho desqualificado e explorador” (RIZZINI

2016). Aqui retomo uma questão fundamental muito bem apontada por Street (2014),

a compreensão do letramento como prática social rejeita a teoria da “grande divisão”

e entende os letramentos como práticas culturais em que diversas ideologias,

estruturas e relações de poder operam. Neste sentido, o “baixo” letramento é

sintoma de pobreza e não uma causa.

No último dia, Davi escreveu que estudou a bíblia. Identifiquei uma rotina da

criança durante o período dos registros em seu diário, que envolveu: ajudar os pais,

ver televisão, brincar com o pai e com colegas, utilizar o celular para brincar e ler a

bíblia.

Nota-se que os pais, na maioria das vezes, registraram a fala da criança,

sem interferências, o que se percebe pela predominância da 1º pessoa do singular

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(eu). No dia 11/01/2018, depois de iniciar usando a 1ª pessoa do singular, altera o

discurso para a 3ª pessoa do singular; já dia 15, não evidencia a pessoa do discurso,

há apenas o uso da palavra “papai”, que indica afetividade. A partir de uma visão

autônoma de letramento, Davi poderia ser considerado como “não letrado”, ou

“analfabeto”.

Entretanto, a partir de uma visão ideológica, observei que suas práticas

sociais mostram como utiliza o letramento, o que pensa sobre a leitura e a escrita e

como realiza suas atividades em seu contexto cultural, por exemplo, pedindo para

outro ser escriba do seu diário, ideia que surgiu em resposta ao não domínio da

escrita. Street (2014, p. 140) aborda que “as novas etnografias do letramento nos

contam que as pessoas podem levar vidas plenas sem os tipos de letramento

pressupostos nos círculos educacionais”, pois o letramento é apenas uma habilidade

entre várias outras que se permutam.

Street (2010, p. 38) adota a noção de “prática de letramento” que se refere a

aspectos que possibilitam começar a ver padrões em eventos de letramento. É essa

padronização que carrega significados para os participantes e liga-os de forma mais

ampla à natureza cultural e social.

Percebi após todos os dados coletados, entrevistas e diário, que os eventos

de letramento que Davi participa são alimentados por alguns domínios de atividade

social: prática de letramento escolarizada; prática de letramento religiosa; práticas

de letramento digital; práticas de letramento relacionadas a trabalho; e práticas de

letramento relacionadas ao lazer e entretenimento. No Quadro 22, sintetizei as

subcategorias de práticas de letramento encontradas.

Quadro 22 – Práticas de letramento identificadas a partir do diário de Davi

Participante Subcategoria das práticas de letramento social

Evento de letramento Gênero/suporte

Davi

Religiosa Estudar a bíblia Bíblia no livro de gênesis

Digital Brincar no celular, usar a internet, Facebook e jogos

Jogo

Entretenimento Assistir à televisão Filme

Religiosa Culto doméstico Bíblia

Entretenimento Brincar de peteca Jogo

Fonte: elaboração própria, em abril de 2018.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na roda do mundo,

ao lado dos homens, lá vai o menino

rodando e cantando seu canto de amor. Um canto que faça

o mundo mais manso, cantigas que tornem

a vida mais limpa, um canto que faça

os homens mais crianças. O menino entrega ao mundo

o dom da sabedoria que nasce do coração.

Porque é de amor e de infância que o mundo tem precisão.

Thiago de Mello

Chego ao final com a certeza de que não é o fim. Ao chegar neste momento

a investigação, recordo das palavras de Minayo (2016a), de que a pesquisa é um

processo de trabalho em espiral que começa com uma pergunta e termina com uma

resposta ou produto que, por sua vez, dará origem a novas interrogações, ou seja, o

ciclo da pesquisa não se fecha.

Partindo da questão que foi a razão da existência desta pesquisa: Que

práticas de letramento são vivenciadas pelas crianças da comunidade da Ilha de

Caratateua-PA? Para responder a este questionamento, delimitou-se como objetivo

geral: analisar as práticas de letramento vivenciadas pelas crianças da comunidade

da referida ilha para compreender suas relações além das práticas pedagógicas

escolares. Para alcançá-lo busquei formas concretas por meio de objetivos

específicos, quais foram: mapear os eventos de letramento que as crianças

vivenciam; identificar os gêneros e suportes presentes nas práticas de letramento

das crianças; e registrar os dizeres das crianças sobre os sentidos atribuídos às

suas práticas de letramento.

Assim, construí um caminho metodológico a partir dos instrumentos

observação participante, diário de campo, entrevista semiestruturada, entrevista em

aberto e diário de letramento, que me possibilitaram ouvir as vozes infantis,

considerando a criança como testemunha de suas próprias práticas letradas como

produtora e consumidora de bens culturais.

Por meio de entrevista semiestruturada, mapeei os sentidos do ler e escrever.

Para as crianças, isso significa ler livros, legendas, não ser burro, ter um bom

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emprego ou ganhar um celular. Percebi, em algumas concepções, a influência do

modelo autônomo de letramento que considera o letramento para perspectivas de

trabalho, desvinculadas do contexto social.

Sobre os bens culturais, como cinema e circo, as crianças atribuem o sentido

da diversão e do lazer. Entretanto, pouco frequentam esses espaços. Também infiro

que é importante que a escola possibilite o acesso a outros espaços valorizados de

cultura, para além de seus muros. Pois, um de seus papéis é o de estabelecer a

relação entre as culturas e letramentos locais/globais dos alunos.

O livro impresso ainda se faz presente. A maioria das crianças frequenta a

biblioteca de forma autônoma e buscam ler livros de lendas, por exemplo. Algo que

envolve seu imaginário enquanto crianças amazônidas. E o sentido dessa leitura

tem significados, como ficar mais inteligente ou para diversão. Mas percebi que as

crianças cada vez mais utilizam a leitura em mídias, como celular, navegam na

internet, interagem em redes sociais como Facebook e têm acesso aos gêneros

como receitas, jogos, passa-tempo. A importância da internet está em pesquisar,

estudar, ver desenhos.

Não há mais como ignorar as novas linguagens proliferadas no mundo

contemporâneo, pois, a partir do surgimento das tecnologias digitais, novos desafios

são postos à escola, para além da prática de letramento fundamentada apenas no

uso da tecnologia da escrita. Na pesquisa, foi possível identificar que os alunos são

sujeitos protagonistas na construção de conhecimentos significativos, pois são

produtores e consumidores de bens culturais em novas mídias, a partir de uma

prática letrada específica na internet e nas redes sociais. Também identifiquei o

sentido de obter ascensão econômica por meio desses bens culturais.

Sobre os sentidos do fenômeno religioso, as crianças revelaram as atividades

que realizam nas igrejas que frequentam. Na maioria, há um local específico para as

crianças, em que um adulto, semelhante a uma professora, orienta e ensina as

crianças a orar, cantar, pintar, desenhar; também contam histórias bíblicas e

assistem a vídeos. Desta forma, a leitura e escrita com o objetivo de estudar a bíblia

são eventos rotineiros nas práticas de letramento religiosas nas vivências das

crianças, tanto em casa como na igreja. Entre os sentidos dessas práticas religiosas

estão: orar, ter a proteção de Deus, não pecar, saber o caminho certo e saber de

Deus.

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No discurso em torno das práticas letradas que participam, as crianças

revelaram também os sentidos que atribuem à escola. Para todos, é o lugar onde

irão conseguir se formar para ter um emprego ou profissão. E, neste sentido, os

resultados da pesquisa trazem à tona o grande desafio que se coloca aos

educadores: favorecer a conscientização de que as práticas letradas são lugares de

disputa ideológica e, desta forma, trazer para o debate quais letramentos estão

fornecendo o padrão e quais letramentos são marginalizados. A abordagem do

letramento como prática social tornam explícitos os pressupostos e relações de

poder em que o modelo autônomo e ideológico de letramento se fundam.

Dentro dessas práticas, as crianças participam de diversos eventos de

letramento com os mais variados tipos de gêneros textuais e os usos sociais da

leitura e da escrita são os mais diversos, como: ler livros literários, lendas, ler a

bíblia, fazer atividades escolares, utilizar jogos eletrônicos, ler legendas de filmes

estrangeiros, entre outros.

Para registrar os dizeres das crianças sobre os sentidos de suas práticas

letradas, fotografei e participei de eventos de letramento em seus ambientes

familiares a partir do livro apontado por elas como o mais lido. Foram registrados nas

entrevistas em aberto no ambiente famíliar das crianças (quatro eventos). Na casa

de Caleu, foi uma leitura de narrativa de aventura, com o sentido de colecionar livros

sobre Minecraft e preparar-se para ser youtuber, visando a ascensão econômica. Na

casa de Amora, foi a leitura da bíblia para adquirir valores, como respeitar os pais.

Na casa de Bernardo, foi a leitura do gênero narrativo infantil sobre as histórias da

bíblia com o sentido de aprender a não pecar e aprender a fazer o bem. Na casa de

Davi, foi a escuta da leitura da bíblia pela avó, com o sentido de saber de Deus.

Por meio do diário de letramento, ainda registrei mais eventos e sentidos que

não foram encontrados com as técnicas anteriores de coleta de dados, como:

pesquisar receitas na internet, jogar vídeo game, ler contas de energia , fazer cartas,

brincar de “adedonha” com a escrita, fazer lista de compras, participar de

brincadeiras tradicionais na família, participar de culto doméstico, usar jogos em

família, como banco imobiliário, dominó, jogo da memória, jogo da forca, vender

produtos por meio de catálogos impressos e virtuais, ler anúncios e comerciais,

entre outros.

Disso advém a reflexão de que a escola deve ter como ponto de partida os

gêneros que circulam nas práticas letradas vivenciadas pelos alunos em seu âmbito

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familiar e na comunidade. Os dados aqui levantados colocam-me, como educadora,

diante da possibilidade de ampliar as práticas de letramento escolares. “A noção de

práticas de letramento nos possibilita fazer uma reflexão que necessariamente traz

implicações para políticas de educação” (STREET, 2010, p. 40).

Para o “sucesso” ou “insucesso” na aprendizagem escolar das crianças

pesquisadas, não se identificou uma razão única que o origine, mas sim um conjunto

de fatores ideológicos inerentes ao contexto escolar e familiar, sobre os quais

constroem sua própria concepção e sentidos a respeito do letramento. Em suma, há

muitos letramentos acontecendo nas famílias, porém as ocorrências não são iguais

em todas, dependem e decorrem também da oportunidade de ter acesso a materiais

e suportes letrados. E é a ligação entre o contexto escolar com o que se passa fora

da escola que torna o letramento um instrumento significativo. Pois, todos, de

alguma forma, estão inseridos em um conjunto de práticas que estão integradas no

dia a dia de modo socialmente significativo.

Infero por meio dos dados analisados que as crianças são agentes culturais

ativos que vivenciam práticas culturais além das práticas escolares, como práticas

de letramento religiosas, práticas de letramento comerciais, práticas de letramento

digitais, práticas de letramento voltadas para o entretenimento, lazer em família,

comunicação interpessoal e vida diária, como fazer lista de compras e organizar

pagamento de contas. A pesquisa evidenciou leitores, objetos e práticas de leitura

para além do ambiente escolar, onde a concepção autônoma do letramento ainda

domina e acaba por deixar “invisíveis” outras práticas culturais, históricas e sociais.

“Usar a escrita é um componente para ajudar uma luta política mais ampla”

(STREET, 2010, p. 52). É o conhecimento das práticas de letramento da

comunidade articulado a questões mais amplas que permitirá aos educadores

desenvolverem um olhar e uma pedagogia culturalmente sensível. É preciso levar os

alunos a reconhecerem as identidades sociais que o formam.

Corroboro a reflexão feita por Corsaro (2011, p. 343): “culturas que apreciam

e celebram suas crianças pelo que são, bem como pelo que se tornarão, são as

culturas capazes de nos conduzir com mais êxito enquanto seguimos adiante neste

novo século”. Deve-se lembrar que os sujeitos da pesquisa são crianças com

desejos, com sonhos, seres sociais ativos produtores de cultura e muitas vezes o

enfoque sobre o futuro, sobre o que as crianças se tornarão, pode cegar em relação

a como são tratadas e cuidadas no presente.

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Por fim, ressalto que este estudo foi uma das formas possíveis de se

analisar os dados da pesquisa coletados e desejo que contribuam para tornarem

conhecidas práticas de letramento de grande valor social e cultural vivenciadas

pelas crianças da Ilha de Caratateua-PA e para políticas públicas. E, ainda, fomentar

outras pesquisas, para levantar outros questionamentos que, por ora, não foram

abrangidos, sob a égide do letramento como prática social das comunidades e em

suas implicações ideológicas, e que tais pesquisas valorizem a voz e ação das

crianças, no reconhecimento de sua cultura e de seu papel ativo nas práticas

sociais.

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ativa nas engenharias: construindo o edifício das palavras para nele ser inquilino.

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SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodologia do trabalho científico. 24. ed. ver. e atual. São Paulo: Cortez, 2016.

SILVA, Elizangela Aparecida Mattes da. Os sentidos para as práticas de escrita

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SILVA, Juliana Gava Bissoto e. Os gêneros jornalísticos nos livros didáticos de

5º e 6ºano do ensino fundamental. (Dissertação de mestrado), Universidade São

Francisco, 2014.

SOARES, Magda. Práticas de letramento e implicações para a pesquisa e para políticas de Alfabetização e letramento. In: MARINHO, Marildes; CARVALHO, Gilcinei Teodoro (Orgs.). Cultura escrita e letramento. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. 3 ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012.

SOARES, Patrícia Barros. Usos sociais da leitura e da escrita em uma comunidade quilombola Alto Jequitinhona/MG. (Dissertação de Mestrado). Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), 2012.

SPINELLI, Carolina Shimomura; QUINTEIRO, Jucirema. A criança na pesquisa educacional brasileira: da condição de “silenciada” à “testemunha da história”. In: REIS, Magali dos; GOMES, Lisandra Ogg (Orgs.). Infância: sociologia e sociedade. São Paulo: Edições Levana/ Attar Editorial, 2015.

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SOUZA, Ana Paula Vieira e. As Culturas infantis no espaço e tempo do recreio: constituindo singularidade sobre a criança. (Dissertação de mestrado), Universidade Federal do Pará, 2009.

_________. SOUZA, Ana Paula Vieira e. Trabalho infantil: uma análise do discurso de crianças e de adolescentes da Amazônia paraense em condição de trabalho. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal do Para (UFPA), Belém, 2014.

STREET, Brian. Letramentos sociais: abordagens críticas do letramento no desenvolvimento, na etnografia e na educação. Tradução Marcos Bagno. São Paulo: Parábola Editorial, 2014.

_________. Os novos estudos sobre o letramento: histórico e perspectivas. In: MARINHO: Marildes; CARVALHO, Gilcinei Teodoro (Orgs.). Cultura escrita e letramento. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

_________. Eventos de letramento e práticas de letramento: teoria e prática nos Novos Estudos do Letramento. In: MAGALHÃES, Izabel (Org.). Discursos e práticas de letramento: pesquisa etnográfica e formação de professores. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2012.

TFOUNI, Leda Verdiani. Letramento e alfabetização. 9 ed. São Paulo: Cortez, 2010.

VIEIRA, Jonas Guilherme Os gestos didáticos nos processos de sistematização

dos conhecimentos linguísticos em 4.º e 5.º anos. (Dissertação de mestrado),

Universidade Regional de Blumenau, 2016.

XAVIER, Maiara Cardoso. Letramento digital no cotidiano do bairro da

cremação. (Dissertação de mestrado), Universidade do Estado do Pará, 2017.

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ANEXO

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO PARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO – MESTRADO LINHA DE PESQUISA: “Saberes culturais e educação na Amazônia”

Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

Participante: _______________________________________ Data de nascimento: ____/____/____ Título da pesquisa: “Letramento e educação: um estudo sobre as práticas e eventos de letramento de crianças da comunidade da ilha de Caratateua-Pa”

O objetivo da pesquisa é analisar as práticas e eventos de letramentos extraescolares no cotidiano das crianças da ilha de Caratateua-Pa. Entrevistaremos as crianças, com a intenção de saber como ou de que forma as práticas de letramento se configuram no cotidiano das mesmas. Para validar os dados adquiridos, selecionaremos e mostraremos imagens e materiais de leitura que circulam em seu cotidiano. Se autorizar a sua participação neste estudo, deverá permitir a entrevista de seu(sua) filho(a), assinando este Termo. Ressalto que a entrevista será gravada em forma de áudio, para obter todas as informações necessárias. A participação neste projeto não apresenta nenhum risco de vida. A única questão que você deve considerar é a divulgação dos dados obtidos para apresentação em eventos de educação. Você não receberá nenhum pagamento, mas também não terá nenhum custo, pois a pesquisa acontecerá na instituição de ensino que seu filho frequenta. Este estudo beneficiará você indiretamente, podendo ajudar a sua comunidade a reivindicar melhorias na educação de seu(sua) filho(a). E há ainda dois motivos: em primeiro lugar, o estudo da produção vai nos ajudar a compreender melhor as interações que ocorrem entre(das) as crianças e as práticas de letramento, dentro e fora da escola; em segundo, o estudo de sua produção vai contribuir para estendermos estudos mais aprofundados sobre essas práticas na vida social da criança. Seu(sua) filho(a) receberá pseudônimos (um nome fictício) nas informações pessoais na gravação em áudio. Com seu consentimento específico, os pesquisadores que utilizarem os seus dados poderão fazer apresentações e publicações com os resultados do estudo, mas sem

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apresentar as informações pessoais do seu(sua) filho(a). Com relação à gravação em áudio da criança, ela poderá ser vinculada nessas apresentações e publicações, que serão como exemplos de discursos, sem comprometimento deste. Caso o áudio mostre alguma fala que causou constrangimento pessoal à criança, você poderá solicitar pessoalmente ou por e-mail aos pesquisadores do projeto – ver dados abaixo indicados -que não incluam esses dados no corpus e, com a solicitação documentada no e-mail, nós garantiremos que esses dados sejam apagados. Você poderá entrar em contato conosco a qualquer momento. Estaremos disponíveis para responder a qualquer dúvida que possa surgir sobre este estudo. Se você tiver mais perguntas sobre o projeto ou se tiver algum problema relacionado com a pesquisa, você pode entrar em contato com os pesquisadores deste estudo:

Profª. Natália Passos Fernandes. E-mail: [email protected] Celular: (91) 98115-8161 Profª. Maria do Perpétuo Socorro Cardoso da Silva E-mail: [email protected] Celular: 98262-0263

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TERMO DE CONSENTIMENTO

Após ter recebido todos os esclarecimentos e ciente dos meus direitos, autorizo meu

(minha) filho (a) _________________________________________________a

participar da pesquisa “Letramento e educação: um estudo sobre as práticas e eventos

de letramento de crianças da comunidade da ilha de Caratateua-Pa”.

Autorizo a divulgação e a publicação de toda informação coletada sobre meu(minha)

filho(a), no ambiente escolar, exceto dados pessoais, em publicações e eventos de

caráter científico.

Desta forma, assino este termo, juntamente com o pesquisador, em duas vias de igual

teor, ficando uma via sob meu poder e outra em poder do(s) pesquisador(es).

Local:______________________________. Data:____/____/____.

Nome do responsável do participante da Pesquisa

Profª. Natália Passos Fernandes

Profª. Maria do Perpétuo Socorro Cardoso da Silva

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APÊNDICE

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APÊNDICE 1

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO PARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO – MESTRADO LINHA DE PESQUISA: “Saberes culturais e educação na Amazônia”

ROTEIRO DE ENTREVISTA

Nome completo: Sexo: Idade: Bairro:

1- Sabe ler e escrever? Sim ou não?

2- Se sim, escreve e lê no seu dia a dia? Pra quê?

3- Se não, deseja aprender a ler e escrever? Pra quê?

4- Qual foi o livro que mais gostou de ler, ou que leram pra você? Por que esse

livro é importante?

5- Já foi ao teatro, cinema, museu, show, exposição de arte, circo?

6- Frequenta a biblioteca de sua escola? Já frequentou outras bibliotecas

públicas?

7- Tem acesso a internet? Onde? Pra que você usa internet?

8- Assiste televisão? Ouve rádio?

9- Quais são os locais que frequenta na ilha?

10-Utiliza algum meio de transporte sozinho?

11-Nestes locais que frequenta utiliza a leitura ou a escrita?

12-Que equipamentos eletrônicos têm em sua casa (televisão, aparelho de som,

computador, tablete, celular)?

13-Recebe convites escritos de aniversário, baby chá, casamento, outros?

14-Possui perfil em rede social ou acessa alguma rede social?

15-Como se sentiu quando começou a ler?

16-Ajuda seus pais/parentes a fazer vendas?

17-Ajuda seus pais/parentes a fazer compras ou faz compras sozinho?

18-Frequenta alguma igreja? Que tipos de leitura faz na igreja que frequenta?

Que outras atividades realiza?

19-Se sabe ler, como era sua vida antes de aprender a ler e depois de aprender

a ler e escrever?

20-Considera importante saber ler e escrever?

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APÊNDICE 2

MODELO DO DIÁRIO DE LETRAMENTO

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Universidade do Estado do Pará Centro de Ciências Sociais e Educação

Programa de Pós-Graduação em Educação Travessa Djalma Dutra, s/n – Telégrafo

66113-200. Belém-PA www.uepa.br/mestradoeducacao