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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE EDUCAÇÃO SUPERIOR – CES VII CURSO DE DIREITO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA COORDENAÇÃO DE MONOGRAFIA
A ATIVIDADE ADMINISTRATIVA NO ESTADO CONSTITUCIONAL DE DIREITO
Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito na Universidade do Vale do Itajaí
ACADÊMICA: ALINE OLIVEIRA DA COSTA
São José (SC), junho de 2004
UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE EDUCAÇÃO SUPERIOR – CES VII CURSO DE DIREITO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA COORDENAÇÃO DE MONOGRAFIA
A ATIVIDADE ADMINISTRATIVA NO ESTADO CONSTITUCIONAL DE DIREITO
Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito, sob orientação do Prof. Dr. Luiz Henrique Urquhart Cademartori.
ACADÊMICA: ALINE OLIVEIRA DA COSTA
São José (SC), junho de 2004
UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE EDUCAÇÃO SUPERIOR – CES VII CURSO DE DIREITO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA COORDENAÇÃO DE MONOGRAFIA
A ATIVIDADE ADMINISTRATIVA NO ESTADO CONSTITUCIONAL DE DIREITO
ALINE OLIVEIRA DA COSTA
A presente monografia foi aprovada como requisito para a obtenção do grau de Bacharel em Direito no curso de Direito na Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI.
São José, 07 de julho de 2004.
Banca Examinadora:
____________________________________________________________ Prof. Dr. Luiz Henrique Urquhart Cademartori - Orientador
____________________________________________________________ Prof. Luiz Magno Pinto Bastos Júnior - Membro
____________________________________________________________ Profª. Fernanda Sucharski Matzenbacher - Membro
DEDICATÓRIA
Dedico este texto:
Aos meus pais, dos quais muito me orgulho, em agradecimento por todo o apoio e incentivo e por sempre acreditarem na minha capacidade.
AGRADECIMENTOS
Aos meus irmãos, pela amizade, força e incentivo.
Ao meu noivo, pela compreensão, carinho, paciência, apoio e, principalmente, pelo seu amor.
Aos meus amigos, pela torcida e, especialmente, pela amizade verdadeira.
Ao meu orientador, sempre tão solícito e disponível, cuja contribuição foi fundamental para a elaboração deste trabalho.
A todos que estiveram presentes durante este período acadêmico e que de alguma forma contribuíram para meu crescimento profissional e pessoal.
“Os defensores dos direitos humanos (...) iluminam, com a luz brilhante dos direitos humanos, os recantos mais escuros onde dominam a tirania e a violência. Esforçam-se por salvaguardar o primado do direito, reduzir a violência, a pobreza e a discriminação e construir as estruturas de sociedades mais livres, eqüitativas e democráticas”.
Kofi Annan, Secretário-Geral da ONU, por ocasião do Dia dos Direitos Humanos (10 de dezembro de 2003)
SUMÁRIO
RESUMO
ABSTRCAT
INTRODUÇÃO................................................................................................................... 01
1 A IDÉIA DO ESTADO CONSTITUCIONAL DE DIREITO..................................... 03
1.1 DO ESTADO DE DIREITO AO ESTADO CONSTITUCIONAL............................... 03
1.2 O PAPEL DOS PRINCÍPIOS NO ESTADO CONSTITUCIONAL DE
DIREITO...............................................................................................................................
11
1.2.1 As fases da teorização dos princípios.......................................................................... 11
1.2.2 A normatividade dos princípios................................................................................... 14
1.2.3 A teoria contemporânea dos princípios – a constitucionalização dos princípios......... 18
2 A TEORIA DO GARANTISMO COMO FUNDAMENTO DO ESTADO
CONSTITUCIONAL DE DIREITO.................................................................................
20
2.1 ANÁLISE DA TEORIA DO GARANTISMO............................................................... 20
2.1.1 Definição da expressão garantias................................................................................ 22
2.1.2 O garantismo jurídico como tutela dos direitos fundamentais..................................... 23
2.2 DEMOCRACIA FORMAL E DEMOCRACIA SUBSTANCIAL................................ 25
2.3 A VALIDADE DAS NORMAS NO ESTADO CONSTITUCIONAL DE
DIREITO...............................................................................................................................
29
3 A ATIVIDADE ADMINISTRATIVA DO ESTADO................................................... 32
3.1 CARACTERIZAÇÃO DO DIREITO ADMINISTRATIVO......................................... 32
3.2 A ATIVIDADE ADMINISTRATIVA DO ESTADO................................................... 35
3.2.1 Atos vinculados e atos discricionários......................................................................... 38
3.3 OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA............ 40
4 FORMAS DE CONTROLE DA ATIVIDADE ADMINISTRATIVA........................ 45
4.1 CONTROLE INTERNO................................................................................................. 47
4.2 CONTROLE EXTERNO................................................................................................ 49
4.2.1 Controle Legislativo..................................................................................................... 49
4.2.1.1 Controle parlamentar direto...................................................................................... 50
4.2.1.2 Controle pelo Tribunal de Contas............................................................................. 51
4.2.2 Controle Jurisdicional.................................................................................................. 52
4.2.2.1 Medidas judiciais para correção da conduta administrativa..................................... 54
4.2.2.2 Controle jurisdicional da atividade administrativa discricionária............................ 56
4.2.2.2.1 Controle jurisdicional da atividade administrativa discricionária no modelo
garantista...............................................................................................................................
60
4.2.2.3 Lei de Improbidade Administrativa – uma forma de controle jurisdicional............. 63
CONSIDERAÇÕES FINAIS.......... .................................................................................. 65
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.............................................................................. 67
RESUMO
Através desta pesquisa, procurou-se avaliar a possibilidade de existência de um novo
enfoque acerca da atividade administrativa em função da consolidação do Estado de Direito sob a
atual configuração de Estado Constitucional. A hipótese inicialmente apresentada é que a
evolução do Estado de Direito, corroborada na forma do Estado Constitucional, viria sim trazer
uma nova visão da atividade administrativa através da concretização de um sistema de garantias
que permitisse a defesa dos direitos e interesses individuais constitucionalmente protegidos.
Depois de realizada a presente investigação científica, chegou-se ao juízo de que esta nova
perspectiva realmente se dá, essencialmente porque no Estado Constitucional de Direito se afirma
o caráter plenamente normativo dos princípios constitucionais como forma de assegurar a
máxima vinculação ao Direito de todos os poderes do Estado e sua produção normativa. Deste
modo, as constituições passam a integrar um plano de juridicidade superior, vinculante e
indisponível para todos os poderes do Estado, o que configura esse modelo normativo como um
sistema garantista por excelência. Em decorrência disto, a atividade administrativa passa a estar
submetida a varias formas de controle, inclusive na produção de atos discricionários. Portanto,
esse sistema de controles e garantias, procedente do Estado Constitucional de Direito, permite,
efetivamente, uma defesa dos direitos e interesses individuais, tratando de assegurar a submissão
da Administração ao Direito e de tornar efetivo e operante o princípio de legalidade.
RESUMEN
A través de esta investigación, se buscó apreciar la posibilidad de existencia de un nuevo
enfoque sobre la actividad administrativa en virtud de la consolidación del Estado de Derecho en
la actual configuración de Estado Constitucional. La hipótesis inicialmente presentada es que la
evolución del Estado de Derecho, corroborada en la forma del Estado Constitucional, vendría sí
traer una nueva visión de la actividad administrativa a través de la concretización de un sistema
de garantías que permitiese la defensa de los derechos y intereses individuales
constitucionalmente protegidos. Después de concretizada la presente investigación científica, se
llegó al juicio de que esta nueva perspectiva realmente ocurre, esencialmente porque en el Estado
Constitucional de Derecho se afirma el carácter plenamente normativo de los principios
constitucionales como forma de garantizar la máxima vinculación al Derecho de todos los
poderes del Estado y su producción normativa. De este modo, las constituciones pasan a integrar
un plano de juridicidad superior, vinculante e indisponible para todos los poderes del Estado, lo
que configura ese modelo normativo como un sistema garantista por excelencia. En consecuencia
de eso, la actividad administrativa pasa a estar sometida a varias formas de controle, incluso en la
producción de actos discricionarios. Por lo tanto, ese sistema de controles y garantías, procedente
del Estado Constitucional de Derecho, permite, efectivamente, una defensa de los derechos e
intereses individuales, tratando de garantizar la sumisión de la Administración al Derecho y de
tornar efectivo y operante el principio de la legalidad.
INTRODUÇÃO
A presente pesquisa buscará analisar a possibilidade de existência de uma nova
perspectiva sobre a atividade administrativa do Estado em decorrência da evolução do Estado de
Direito corroborado na atual forma de Estado Constitucional e de que forma esta transformação
repercute na posição jurídica dos administrados.
A hipótese inicialmente levantada é que a consolidação do Estado Constitucional de
Direito implica, efetivamente, uma nova perspectiva acerca da atividade administrativa do Estado
e sua relação com os administrados, através da concepção de um sistema de garantias que
permita, efetivamente, a defesa dos direitos e interesses individuais, tratando de assegurar a
submissão da Administração ao Direito.
O tema é atual, tendo em vista o constante incremento da atuação pública e a necessidade
de controle cada vez maior da Administração, na medida em que as práticas desviadas existem de
fato, especialmente porque este poder tem uma maior margem de permeabilidade em relação à
incidência de interesses particulares ou setoriais não generalizáveis, além de uma forte propensão
à desviação das determinações que o afetam.
Deste modo, oportuna se apresenta a elaboração deste estudo, quem vem conjeturar o
atual sistema de garantias de que dispõe o administrado frente à atuação administrativa, tendo por
base a Teoria Geral do Garantismo como forma de aplicação efetiva dos princípios
constitucionais do Estado Constitucional de Direito.
Ressalta-se que a pretensão desta pesquisa restringe-se a traçar um panorama geral sobre
as atividades administrativas do Estado Contemporâneo e as garantias que nas diversas esferas de
poder podem caracterizá-lo, não se pretendendo, em hipótese alguma, esgotar tais análises.
Esta pesquisa tem como objetivos: institucional, produzir uma monografia para obtenção
do grau de bacharel em Direito, pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI; geral, analisar
a atividade administrativa do Estado sob a perspectiva do Estado garantista; específicos, realizar
um estudo sobre o Estado Constitucional de Direito, seus princípios e características
fundamentais; sopesar a teoria do garantismo, a sua efetiva aplicação no contexto normativo atual
e a redefinição que acaba por implicar em algumas categorias operacionais; identificar a atividade
administrativa do Estado; e analisar as formas de controle da atividade administrativa como
garantia dos direitos dos cidadãos.
Com este propósito, esta monografia está estruturada em quatro capítulos. O primeiro
capítulo abordará a evolução do Estado de Direito ao Estado Constitucional, as características
deste novo modelo normativo, bem como o papel que os princípios constitucionais passam a
desempenhar neste novo contexto.
No segundo capítulo, analisar-se-á a teoria geral do garantismo como fundamento do
Estado Constitucional de Direito, através da definição de alguns conceitos fundamentais
relacionados ao tema, assim como a redefinição de algumas categorias operativas, que se torna
necessária em vista da mudança paradigmática operada por esse modelo normativo.
No terceiro capítulo identificar-se-á a atividade administrativa do Estado. Para tanto,
proceder-se-á à caracterização do Direito Administrativo como ramo autônomo do Direito, sua
origem e o sistema administrativo adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro, além da análise
da atividade administrativa de modo geral e dos princípios constitucionais que regem a
Administração Pública.
No quarto e último capítulo far-se-á um estudo acerca das formas de controle da atividade
administrativa, essenciais à garantia dos direitos e interesses dos cidadãos. Com este propósito,
abordar-se-á as formas de controle interno e externo da Administração Pública, este último
dividido em controle legislativo, que por sua vez se subdivide em controle parlamentar direto e
controle pelo Tribunal de Contas, e controle jurisdicional.
No que tange ao estudo do controle jurisdicional da atividade administrativa, dar-se-á
destaque ao controle dos atos discricionários, vez que estes compreendem uma margem de
liberdade conferida pela própria lei, razão pela qual defronta-se com certa discussão acerca do
alcance da interferência do Judiciário nessa atuação impregnada de discrição. Nesse ponto,
abordar-se-á o controle jurisdicional da atividade administrativa no modelo garantista, o qual
propõe uma nova visão a esse respeito.
Como instrumento jurídico-político de controle jurisdicional da Administração Pública,
abordar-se-á, finalmente, a chamada Lei de Improbidade Administrativa, que trouxe significativo
avanço a complementar os mecanismos de controle e fiscalização da atuação administrativa já
existentes.
1 A IDÉIA DO ESTADO CONSTITUCIONAL DE DIREITO
Para que se possa analisar o sistema de garantias de que dispõem os administrados frente
à atuação administrativa, com base na Teoria Garantista, é imprescindível que se proceda ao
estudo do contexto no qual esta teoria se manifesta, reconhecido como Estado Constitucional de
Direito.
Dito de outro modo, para que se possa compreender o sentido e a abrangência dessa teoria
e se possa aplicá-la à atividade administrativa do Estado, é essencial que se proceda à análise do
modelo normativo1 em que ela se exprime.
Ao classificar a “garantia”, Peña Freire a define como um “macroconceito da Teoria Geral
do Direito e como elemento e função de sistemas jurídicos complexos”2. Assim sendo, segundo
ele, pode ser entendida como uma categoria jurídica e sendo as categorias jurídicas realidades
contextuais, nasce a partir de um modelo jurídico-político determinado no qual se configura e
fora do qual não tem sentido.
Este modelo jurídico-político no qual a Teoria do Garantismo adquire forma e sentido é
justamente o chamado Estado Constitucional de Direito, entendido por muitos como uma
evolução do Estado de Direito, como se verá na seqüência, e que representa o resgate e eficácia
das constituições contemporâneas.
1.1 DO ESTADO DE DIREITO AO ESTADO CONSTITUCIONAL
O Estado sobre o regime de direito consolidou-se no século XIX, distinguindo-se do
Estado sobre o regime da força. Foi concebido para expressar o Estado da razão, cuja idéia estava
de acordo com o Despotismo Ilustrado. Indicava a eliminação da arbitrariedade no âmbito da
atividade estatal com relação aos cidadãos e possuía o sentido de inversão da relação entre poder
e direito do Estado absolutista. Representou, historicamente, um dos elementos básicos das
concepções constitucionais liberais3.
1 Para PEÑA FREIRE, Antonio Manuel. La garantía en el Estado Constitucional de Derecho. Madrid: Trotta, 1997, o modelo político de Estado de Direito é um modelo normativo. 2 PEÑA FREIRE, Antonio Manuel. La garantía en el Estado Constitucional de Derecho, p. 19. Original: “macroconcepto de la Teoría General del Derecho y como elemento y función de sistemas jurídicos complejos”. 3 ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Ley, derechos, justicia. 4ª ed. Madrid: Trotta, 2002. op. cit. p. 21-22.
Conforme Zagrebelsky, o conceito Estado de Direito é “tão aberto que todas as épocas,
em função de suas exigências, puderam preenchê-lo de conteúdos diversos mais ou menos
densos, mantendo, deste modo, a sua validade de forma contínua”. Devido a esta carência de
conteúdo do conceito, seria possível aplicá-lo a qualquer situação em que se excluísse, em linha
de princípio, a eventual arbitrariedade pública e privada e se garantisse o respeito à lei, qualquer
que fosse esta4.
Segundo o mencionado jurista, “o próprio Estado constitucional, que é a forma de Estado
típica do nosso século, é representado com freqüência como uma versão particular do Estado de
direito” 5.
De fato, muitos doutrinadores consideram o Estado Constitucional de Direito como uma
evolução do Estado de Direito, mais precisamente, um aperfeiçoamento deste. É o caso do jurista
espanhol Peña Freire, que entende que, o Estado Constitucional não significa nenhuma ruptura ou
superação radical dos princípios básicos do Estado de Direito, senão uma reestruturação dos
postulados mais característicos desse modelo normativo6.
Zagrebelsky explica que o Estado de Direito “assumia um significado que compreendia a
representação eletiva, os direitos dos cidadãos e a separação de poderes; um significado
particularmente orientado à proteção dos cidadãos frente à arbitrariedade da Administração” 7.
Representava, de tal modo, a supremacia da lei frente à Administração, à jurisdição e aos
próprios cidadãos, que se configurava como a expressão da centralização do poder político, a
partir de suas instituições, tais como o Parlamento.
O Estado de Direito firmava-se, portanto, no princípio da legalidade, entendido como ato
normativo supremo do qual nenhum direito era mais forte.
A lei, como instância soberana, conforme preleciona Luiz Henrique Cademartori, não
obedecia a nenhuma limitação de conteúdo, fazendo com que o princípio da legalidade assumisse
4 ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Ley, derechos, justicia, p. 21. Original: “ tan abierto que todas las épocas, en función de sus exigencias, han podido llenarlo de contenidos diversos más o menos densos, manteniendo así continuamente su vitalidad”. 5 ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Ley, derechos, justicia, p. 21. Original: “ el propio Estado constitucional, que es la forma de Estado típica de nuestro siglo, es presentado con frecuencia como una versión particular del Estado de Derecho”. 6 PEÑA FREIRE, Antonio Manuel. La garantía en el Estado constitucional de derecho, p. 37. 7 ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Ley, derechos, justicia, p. 23. Original: “ asumía un significado que comprendía la representación electiva, los derechos de los ciudadanos y la separación de poderes; un significado particularmente orientado a la protección de los ciudadanos frente a la arbitrariedad de la Administración”.
um caráter substancial debilitado em contraposição a um acentuado formalismo8. Neste norte,
destacou que:
diante da divergência entre o mundo do dever ser e a realidade social e econômica do mundo do ser, optou-se pela formalização absoluta da legislação como tentativa de separar, taxativamente, essas duas esferas da realidade, a fim de evitar qualquer conexão material entre o social e o Direito9.
E assinalou ainda que, “como conseqüência dessa dissociação, esvaziou -se do Direito
qualquer referência substancial, tornando-se ele um simples receptáculo de quaisquer decisões
adotadas via processo legislativo” 10.
Isto reflete a idéia do modelo de Estado Liberal de Direito, onde a posição da
Administração frente à lei se diferenciava essencialmente da posição dos particulares. Para os
órgãos do Estado não se reconhecia nenhuma autonomia originária, ou seja, tudo o que não
estava permitido estava proibido. A lei representava, assim, um limite positivo à atuação
administrativa.
Nesse contexto, o princípio da legalidade, conforme Montaner, “era entendido como a
necessidade de que qualquer atuação interventora do Poder Executivo estivesse previamente
regulada por uma Lei” 11. Ao contrário, para os particulares, cuja autonomia era reconhecida
como regra, tudo o que não estava proibido estava permitido.
Deste modo, a ausência de leis era um impedimento para a atuação administrativa, quando
afetasse os direitos dos cidadãos. No entanto, era como uma implícita autorização para a
atuação dos particulares12.
Além disso, no contexto do Estado Liberal de Direito, a lei era geral e abstrata. Sua
generalidade estava relacionada ao fato de que o Estado de Direito era incompatível com os
excessos, melhor dizendo, a lei, neste contexto normativo, comportava uma normatividade
média, feita para todos, o que pressupunha uma garantia contra o uso desmedido do poder
8 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade Administrativa no Estado Constitucional de Direito. Curitiba: Juruá, 2001, p. 61. 9 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade Administrativa no Estado Constitucional de Direito, p. 61-62. 10 CADEMARTORI, Luiz Henrique, Urquhart. Discricionariedade Administrativa no Estado Constitucional de Direito, p. 62. 11 MONTANER, Luis Cosculluela. Manual de Derecho Administrativo I. 13ª ed. Madrid: Civitas, 2002, p. 26. Original: “ el principio de legalidad se entendía como la necesidad de que cualquier actuación interventora del Poder Ejecutivo estuviera previamente regulada por una Ley”. 12 ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Ley, derechos, justicia, p. 28.
legislativo. Caso as leis pudessem dirigir-se aos sujeitos individualmente, substituiriam os atos
administrativos e as sentenças judiciais e o legislador concentraria em si todos os poderes do
Estado. Desta forma, a generalidade das leis apresenta-se como premissa fundamental para a
separação de poderes13.
No que tange à abstração das leis, caracterizava-se pela “generalidade no tempo”, ou seja,
consistia em prescrições destinadas a valer indefinidamente. Tratava-se de garantir a estabilidade
da ordem jurídica e, conseqüentemente, a certeza e previsibilidade do direito14.
No plano da organização jurídica do Estado, o princípio da legalidade representava o
anacronismo do Executivo e do Judiciário que passavam a estar subordinados à lei. A jurisdição
passava à categoria de mera aplicadora de um direito elaborado pelo legislativo; a Administração
perdia sua posição privilegiada perante os administrados15.
Acontece que as premissas constitucionais que derivavam de raízes absolutistas não
admitiam a situação de paridade entre a Administração e outros sujeitos não públicos, fato este
que dificultou, durante todo o século XIX, a concretização do princípio da legalidade em relação
à Administração16.
Entretanto, apesar das dificuldades na efetivação do princípio da legalidade em relação ao
Judiciário e, principalmente, ao Executivo, havia uma certa coerência nas manifestações da
vontade do Estado, na medida em que vinham uniformizados pelo necessário respeito à lei. O
problema de unidade da Administração e da jurisdição se resolvia recorrendo-se ao princípio da
legalidade17.
Por outro lado, não havia a exigência de assegurar também a coerência do conjunto das
leis entre si e, apesar disto, não se verificava problemas de unidade e coerência com relação à
legislação, ao passo em que sua sistematicidade estava assegurada pela unidade e homogeneidade
das forças políticas que se expressavam através dela, sem necessidade de instrumentos
constitucionais, baseada apenas em alguns princípios e valores do Estado Liberal. A lei
13 ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Ley, derechos, justicia, p. 29. 14 ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Ley, derechos, justicia, p. 29. 15 ZAGREBELSKY Gustavo. El derecho dúctil. Ley, derechos, justicia, p. 30. 16 ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Ley, derechos, justicia, p. 30. 17 ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Ley, derechos, justicia, p. 30-31.
representava os interesses da sociedade liberal (burguesa), que incorporava em si as regras de sua
própria ordem18.
Enquanto isso, as forças adversas apareciam neutralizadas, não encontrando amparo na
legislação. “O proletariado e seus movimentos políticos eram mantidos afastados do Estado
mediante a limitação do direito de voto” 19.
Contudo, apesar de toda a hegemonia conferida pela coerência das forças políticas
responsáveis pelo conteúdo da legislação, não foi possível evitar a crise do Estado Liberal.
A lei, longe de ser o produto da vontade geral, era produzida por uma maioria
contingente, com interesses específicos e dispersa no espectro social, ressaltando, deste modo, o
caráter conflitivo da realidade social. Além disso, o excessivo relativismo axiológico da lei e seu
acentuado formalismo, terminaram por deixá-la isolada da práxis social e econômica20.
Perante estas novas percepções da lei, paulatinamente, consolidou-se um modelo
normativo que foi restabelecendo a eficácia do direito, do ponto de vista substancial. Trata-se do
Estado Constitucional de Direito, entendido por muitos, conforme mencionado, como uma
evolução do Estado de Direito, no qual se afirma o caráter plenamente normativo das
constituições, como forma de assegurar a máxima vinculação a direito de todos os poderes do
Estado e sua produção normativa. Para Cademartori, esse:
Estado Constitucional de Direito não foi nada além do que uma tentativa de realizar uma otimização dos mesmos valores que, inicialmente, inspiraram o Estado de Direito na sua versão pós-revolucionária ainda permeada pelo espírito racional-iluminista do século XVIII e que se traduziu na garantia dos direitos dos cidadãos e sua centralidade com relação ao poder político21.
18 ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Ley, derechos, justicia, p. 31-32. Original: “ las fuerzas antagónicas, en lo esencial, aparecían neutralizadas y no encontraban expresión en la ley. El proletariado y sus movimientos políticos eran mantenidos alejados del Estado mediante la limitación del derecho de voto”. 19 ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Ley, derechos, justicia, p. 32. Original: “ El proletariado y sus movimientos políticos eran mantenidos alejados del Estado mediante la limitación del derecho de voto”. 20 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade Administrativa no Estado Constitucional de Direito, p. 63. 21 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade Administrativa no Estado Constitucional de Direito, p. 64.
A principal inovação contida na fórmula do Estado Constitucional refere-se à posição da
lei que, “pela primeira vez na época moderna, vem submetida a uma relação de adequação e,
portanto, de subordinação, a um estrato mais alto de direito estabelecido pela Constituição” 22.
Portanto, a lei cede lugar à Constituição, é destronada em favor de uma instância mais
alta, que assume a importantíssima função de manter a unidade, através de um conjunto de
princípios e valores constitucionais superiores sobre os quais, apesar de tudo, existe um consenso
social suficientemente amplo23.
Na concepção de Peña Freire, as constituições passam a integrar um plano de juridicidade
superior, vinculante e indisponível, em linha de princípio, para todos os poderes do
Estado, o que configura esse modelo como um sistema garantista por excelência24.
No contexto do Estado Constitucional, torna-se possível pressupor uma nova concepção
de Direito que, segundo Cademartori, seria “capaz de harmonizar -se com o Estado
Constitucional, o qual passará a ser entendido como o conjunto, não somente de normas
de cunho geral e individual, no sentido kelseniano, como também de princípios,
diretrizes, garantias e instituições capazes de restaurar-lhe a sua operacionalidade” 25.
Dos ensinamentos de Peña Freire, extrai-se o que, segundo ele, são as três características
fundamentais deste modelo normativo: “(a) a supremacia constitucional e dos direitos
fundamentais, b) a consagração do princípio de legalidade como submissão efetiva a
direito de todos os poderes públicos e c) a funcionalização de todos os poderes do Estado
à garantia do desfrute dos direitos de caráter liberal e a efetividade dos direitos de caráter
social” 26.
22 ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Ley, derechos, justicia, p. 34. Original: “ por primera vez en la época moderna, viene sometida a una relación de adecuación, y por tanto de subordinación, a un estrato más alto de derecho establecido por la Constitución”. 23 ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Ley, derechos, justicia, p. 40. 24 PEÑA FREIRE, Antonio Manuel. La garantía en el Estado constitucional de derecho, p. 37. 25 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade Administrativa no Estado Constitucional de Direito, p. 67. 26 PEÑA FREIRE, Antonio Manuel. La garantía en el Estado constitucional de derecho, p. 37. Original: “ a) la supremacía constitucional y de los derechos fundamentales, b) la consagración del principio de legalidad como sometimiento efectivo a derecho de todos los poderes públicos y c) la funcionalización de todos los poderes del Estado a la garantía del disfrute de los derechos de carácter liberal y la efectividad de los derechos de carácter social”.
A configuração do Estado Constitucional de Direito opera um redimensionamento do
princípio de legalidade, reconhecendo, ademais dos vínculos formais (ou procedimentais),
vínculos materiais (ou de conteúdo) como condições de validade normativa27.
De acordo com esta nova formulação, o princípio de legalidade é entendido como fonte
jurídica tanto dos modelos de legalidade como dos modelos de legitimação, em que a lei
condiciona a determinados conteúdos substanciais a legitimidade de qualquer poder por
ela instituído, razão pela qual nesse princípio descansa a função garantista do direito28.
Cademartori, neste sentido, dispõe que a idéia da centralidade das pessoas e a garantia dos
seus direitos, que formam a base do Estado Constitucional de Direito, não são apenas
valores externos ou condições axiológicas, mas também vínculos estruturais de toda a
dinâmica que nele se perfaz29.
Nesses termos, pode-se dizer que ocorre uma incorporação de valores ao sistema jurídico
através da Constituição, tornando possível a formulação de “juízos de valor” que
repercutem de forma significativa no ordenamento, podendo chegar a alterar a validade
das normas30.
Desse modo, a mudança paradigmática operada pelo Estado Constitucional supõe a
redefinição de algumas categorias operacionais, ou melhor, uma drástica revisão do sentido da
validade, relacionada esta com outras categorias referentes aos critérios de valoração das normas,
assim como uma reestruturação do modelo de democracia. Estas questões serão tratadas no
capítulo segundo, no qual estudar-se-á, detidamente, a Teoria do Garantismo, entendida como
uma nova concepção que representa o resgate e a valorização da Constituição como documento
constituinte da sociedade.
Ainda como atributo deste novo contexto, ressalta-se o fato de que já não vale como antes
a distinção entre a posição da Administração e a dos administrados frente à lei. A situação de
vinculação da atuação administrativa à lei prévia é superada pela sua função eminentemente
garantidora, ou seja, pela sua “função de garantia concreta das regras jurídicas gerais e abstratas
27 PEÑA FREIRE, Antonio Manuel. La garantía en el Estado constitucional de derecho, p. 58. 28 PEÑA FREIRE, Antonio Manuel. La garantía en el Estado constitucional de derecho, p.59. 29 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade Administrativa no Estado Constitucional de Direito, p. 30 PEÑA FREIRE, Antonio Manuel. La garantía en el Estado constitucional de derecho, p.39.
mediante atos aplicativos individuais e concretos (...) e a absorção de tarefas de gestão direta de
grandes interesses públicos” 31.
Afirma-se, deste modo, um
princípio de autonomia funcional da Administração que, no âmbito de leis que simplesmente indicam tarefas, restabelece situações de supremacia necessárias para o desempenho das mesmas, atribuindo implicitamente, em cada caso, os poderes necessários para sua realização32.
A lei, no contexto do Estado Constitucional de Direito, limita-se a identificar a autoridade
pública e a facultá-la para atuar em prol do interesse público. A Administração passa a atuar
fazendo uso de uma certa autonomia instrumental, cujos limites aparecem essencialmente
imprecisos. Cabe à Administração, e não à lei, individualizar a área sobre a qual recairá seus
efeitos no momento de sua aplicação, assim como corresponde também à Administração
estabelecer a linha de separação entre a sua autoridade e a liberdade dos sujeitos33.
Portanto, ocorre também uma “perda da posição originária dos particulares frente à lei em
muitos setores do direito que já não se inspiram na premissa liberal da autonomia como regra e
do limite legislativo como exceção” 34. Frente ao risco de uma liberdade sem responsabilidade,
surge a chamada a um protecionismo do Estado. A regra liberal, segundo a qual as atividades
privadas eram sempre lícitas desde que não houvesse uma proibição expressa, inverte seu sentido
em alguns casos e, em qualquer caso, já não pode ser afirmada com caráter geral35.
Ademais destas transformações, no contexto do Estado Constitucional, observa-se um
desgaste das características de generalidade e abstração da lei, tão fortalecidas no antigo Estado
Liberal. Tais mudanças são determinadas por uma ampla diversificação de grupos sociais que
passaram a participar na elaboração das leis, no chamado mercado das leis, como denominou
31 ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Ley, derechos, justicia, p. 34. Original: “ función de garantía concreta de las reglas jurídicas generales y abstractas mediante actos aplicativos individuales y concretos (...) y de la asunción de tareas de gestión directa de grandes intereses públicos”. 32 ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Ley, derechos, justicia, p. 35. Original: "principio de autonomía funcional de la Administración que, en el ámbito de leyes que simplemente indican tareas, restablece situaciones de supremacía necesarias para el desempeño de las mismas, atribuyendo implícitamente, en cada caso, las potestades que se precisan para su realización”. 33 ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Ley, derechos, justicia, p. 35. 34 ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Ley, derechos, justicia, p. 35. Original: "pérdida de la posición originaria de los particulares frente a la ley en numerosos sectores del derecho que ya no se inspiran en la premisa liberal de la autonomía como regla y del límite legislativo como excepción”. 35 ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Ley, derechos, justicia, p. 36.
Zagrebelsky, exigindo tratamento diferenciado para cada situação e substituição das leis que
perdem seu sentido com as novas necessidades36.
Nesse sentido, destaca-se a, cada vez mais evidente, contratualização dos conteúdos da
legislação, como conseqüência da participação de grupos de pressão, sindicatos, partidos
políticos, no processo de elaboração das leis. O resultado deste processo plural vem marcado pela
ocasionalidade, que representa justamente a perfeita contradição da generalidade e abstração das
leis37.
Como conseqüência desta contratualização da lei, aparece o caráter cada vez mais
comprometido do produto legislativo.
As leis pactuadas, para poder conseguir o acordo político e social a que aspiram, são contraditórias, caóticas, obscuras e, sobretudo, expressam a idéia de que – para conseguir o acordo – tudo é suscetível de transação entre as partes, inclusive os mais altos valores, os direitos mais inatingíveis38.
Esse pluralismo de forças políticas e sociais acaba por conduzir à heterogeneidade dos
conteúdos da lei, dos valores e interesses nela expressados. Neste momento, a lei não mais
representa um ato impessoal, geral e abstrato; ao contrário, representa um ato personalizado que
persegue interesses particulares. Enfim, a lei deixa de ser garantia de estabilidade, convertendo-
se, ela mesma, em instrumento e causa de instabilidade.
As Constituições contemporâneas vêm tentando combater esses efeitos destrutivos do
ordenamento jurídico, causados pela perda de sentido e incoerência da lei, através da
previsão de um direito mais alto, dotado de força obrigatória para todos os poderes do
Estado.
Na seqüência, proceder-se-á ao estudo dos princípios, à apreciação de sua função nos
ordenamentos jurídicos cuja importância é fundamental para que se possa compreender a
natureza, a essência e os rumos do constitucionalismo contemporâneo.
1.2 O PAPEL DOS PRINCÍPIOS NO ESTADO CONSTITUCIONAL DE DIREITO
36 ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Ley, derechos, justicia, p. 37. 37 ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Ley, derechos, justicia, p. 37. 38 ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Ley, derechos, justicia, p. 38. Original: “ Las leyes pactadas, para poder conseguir el acuerdo político y social al que aspiran, son contradictorias, caóticas, oscuras y, sobre todo, expresan la idea de que – para conseguir el acuerdo – todo es susceptible de transacción entre las partes, incluso los más altos valores, los derechos más intangibles”.
No contexto do Estado Constitucional de Direito, conforme analisado no tópico anterior, a
Constituição representa mais do que uma norma que vincula outra inferior, ao contrário da “visão
kelseniana de ordenamento escalonado e gradualmente constituído”, onde a Constituição
limitava-se, basicamente, a regular a produção das normas gerais e individuais, sem levar em
consideração o seu conteúdo.39
Nesse novo modelo normativo, a Constituição estrutura-se como um “complexo programa
que visa à ordenação ou à constitucionalização social, política, econômica, cultural e assim por
diante”, no qual os princípios constitucionais passam a de sempenhar um “papel fundamental
como reflexos normativos dos valores constitucionais” 40.
A inserção constitucional dos princípios ultrapassa a fase hermenêutica das chamadas normas programáticas. Eles operam nos textos constitucionais da segunda metade deste século41 uma revolução de juridicidade sem precedente nos anais do constitucionalismo. De princípios gerais se transformaram, já, em princípios constitucionais42.
1.2.1 As fases da teorização dos princípios
A juridicidade dos princípios passa por três distintas fases: a jusnaturalista, a positivista e
a pós-positivista43.
Na fase jusnaturalista, a mais antiga e tradicional, “os princípios habitam ainda esfera por
inteiro abstrata e sua normatividade, basicamente nula e duvidosa, contrasta com o
reconhecimento de sua dimensão ético-valorativa de idéia que inspira os postulados de justiça” 44.
A corrente jusnaturalista concebe os princípios gerais de Direito em forma de ‘axiomas jurídicos’
ou normas estabelecidas pela reta razão. São os princípios de justiça, constitutivos de um Direito
ideal45.
39 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade Administrativa no Estado Constitucional de Direito, p. 79-80. 40 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade Administrativa no Estado Constitucional de Direito, p. 80. 41 Leia-se do século XX, pois a obra citada é datada de 1997. 42 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed., rev. atual. e ampl. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 231-232. 43 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 232-238. 44 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 232. 45 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 234.
Neste período, os princípios não se encontravam inscritos em nenhum corpo normativo.
De acordo com Luiz Henrique Cademartori, “foi na fase do jusnaturalismo iluminista (segunda
metade do século XVIII) que estas máximas jurídicas gradualmente começaram a ser
mencionadas nas diversas codificações de normas de Direito” 46.
Conforme Enterría,
a diferença mais destacada entre a tendência histórica ou positivista e a jusnaturalista radica em que esta última afirma a insuficiência dos princípios extraídos do próprio ordenamento jurídico positivo, para preencher as lacunas da lei, e a necessidade conseqüente de recorrer aos do Direito Natural (...), enquanto que a corrente positivista entende que se pode manter dentro do ordenamento jurídico estatal, com os princípios que deste se podem obter por analogia47.
Na fase positivista ou juspositivista ou, ainda, histórica, os princípios já se encontram
inseridos nos códigos como fonte normativa subsidiária, assegurando o reinado absoluto da lei.
Funcionam como “válvula de segurança”, e não como algo que fosse anterior à lei ou mesmo se
sobrepusesse a ela, mas apenas foram introduzidos ali para impedir o vazio normativo48.
Esta concepção “sustenta basicamente que os princípios gerais de Dir eito equivalem aos
princípios que informam o Direito Positivo e lhe servem de fundamento” 49.
No entanto, ao fazer dos princípios gerais na ordem constitucional meras pautas
programáticas supralegais, o positivismo assinalava a sua carência de normatividade,
estabelecendo assim a sua irrelevância jurídica50.
Este positivismo, que tomou o lugar do jusnaturalismo, era tão forte, tão imperial, que
doutrinadores da época, como Berger, sugeriam a substituição da expressão princípio de Direito
Natural por idéia de Direito, manifestando que era de bom tom menosprezar a Filosofia do
Direito e fazer do Direito Natural uma aberração51.
A terceira fase, a do pós-positivismo ou positivismo contemporâneo, é exaltada pelas
novas Constituições promulgadas nas últimas décadas, “que acentuam a hegemonia axiológica
46 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade Administrativa no Estado Constitucional de Direito, p. 85. 47 ENTERRÍA, García de. Apud BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 234-235. 48 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 235. 49 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 235. 50 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 236. 51 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 232-233.
dos princípios, convertidos em pedestal normativo sobre o qual assenta todo o edifício jurídico
dos novos sistemas constitucionais” 52.
Bobbio aponta uma fase neopositivista, precedente ao positivismo contemporâneo, que
teria se iniciado em 1920, com o art. 38 do Estatuto da Corte Permanente de Justiça Internacional,
que declarou ‘os princípios gerais de Direito, reconhecidos pelas nações civilizadas’, como aptos
ou idôneos a solverem controvérsias, ao lado dos tratados e dos costumes internacionais. Fórmula
que seria consagrada e incorporada em 1945 pelo art. 38, 1, “c”, do estatuto da Corte
Internacional de Justiça e, a seguir, pelo art. 215, 2 do tratado que instituiu a Comunidade
Econômica Européia, em 195753.
Nesta terceira fase, tanto a doutrina do Direito Natural quanto a do velho positivismo
ortodoxo vêm abaixo, proveniente de uma reação intelectual implacável, liderada principalmente
por Dworkin, jurista de Harvard, cuja obra teve fundamental importância na caracterização da
nova concepção de normatividade definitiva reconhecida aos princípios54.
Conforme Bonavides, Dworkin aponta a “necessidade de tratar -se os princípios como
direito, abandonando, assim, a doutrina positivista e reconhecendo a possibilidade de que tanto
uma constelação de princípios quanto uma regra positivamente estabelecida podem impor
obrigação legal” 55.
A partir daí, os estudos acerca da normatividade dos princípios vão se desdobrando até os
posicionamentos mais recentes do constitucionalismo contemporâneo, onde se destacam juristas
receptivos aos progressos da Nova Hermenêutica e às tendências axiológicas de compreensão do fenômeno constitucional, cada vez mais atado à consideração dos valores e à fundamentação do ordenamento jurídico, conjugando, assim, em bases axiológicas, a Lei com o Direito, ao contrário do que costumavam fazer os clássicos do positivismo, preconceitualmente adversos à juridicidade dos princípios e, por isso mesmo, abraçados, por inteiro, a uma perspectiva lastimavelmente empobrecedora da teoria sobre a normatividade do Direito 56.
52 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 237. 53 BOBBIO, Norberto. Apud BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 237. 54 Obras de Dworkin a esse respeito: DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002; Uma Questão de Princípio, São Paulo: Martins Fontes, 2000; O Império do Direito, São Paulo: Martins Fontes, 1999; e Domíno da Vida, São Paulo: Martins Fontes, 2003. 55 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 238. 56 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 238.
Dentre esses, destaca-se o jurista alemão Alexy, cuja obra reflete o teor da doutrina pós-
positivista57.
Percorridas essas fases, rumo à inserção constitucional dos princípios, estes levam a cabo
uma verdadeira revolução de juridicidade. “Ao serem reconhecidos como normas da Lei
Suprema, o fizeram como prescrições de primeiro grau, de suma importância e, de imediato, as
mais qualificadas dentre as normas constitucionais, ou seja, tornou-se patente a sua supremacia
no ordenamento jurídico” 58.
1.2.2. A normatividade dos princípios
Embora no início, quando se começou a conceituar princípio, não se considerasse a sua
normatividade, de acordo com Paulo Bonavides, a normatividade dos princípios é
qualitativamente o passo mais largo dado pela doutrina contemporânea para a sua
caracterização59.
Da obra do aludido jurista, destaca-se a síntese feita por Ricardo Guastine, através de uma
investigação doutrinária e jurisprudencial, dos conceitos de princípio, todos vinculados a
disposições normativas. Encontra-se, inicialmente, o conceito de princípio como normas providas
de um alto grau de generalidade; em segundo lugar, princípio como normas providas de um alto
grau de indeterminação, requerendo, assim, concretização por via interpretativa; em terceiro, o
temos como normas de caráter programático; em quarto lugar, como normas cuja posição na
hierarquia das fontes de Direito é muito elevada; em quinto lugar, como normas que
desempenham uma função importante e fundamental no sistema jurídico ou político; e por fim,
como normas dirigidas aos órgãos de aplicação, cuja específica função é fazer a escolha dos
dispositivos ou normas aplicáveis nos diversos casos60.
Como se pode observar, a normatividade dos princípios é o traço comum a todas estas
acepções.
57 Sobre a normatividade dos princípios, tratar-se-á na seqüência, utilizando-se, dentre outras, da obra Teoría de los Derechos Fundamentales, de Alexy. 58 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade Administrativa no Estado Constitucional de Direito, p. 83. 59 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 299. 60 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 230-231.
Alexy desenvolveu uma teoria própria dos princípios, baseada na tutela dos direitos
fundamentais61, e estabeleceu uma distinção entre regras e princípios, compreendendo ambas
modalidades como espécies do conceito de norma. Em suas palavras:
tanto as regras como os princípios são normas porque ambos dizem o que deve ser. Ambos podem ser formulados com a ajuda de expressões deônticas básicas do mandato, a permissão e a proibição. Os princípios, assim como as regras, são razões para juízos concretos de dever ser, ainda quando sejam razões de um tipo muito diferente62.
Diante desta nova acepção, a distinção relevante não é, como nos primórdios da doutrina,
entre princípios e normas, mas entre regras e princípios, sendo as normas o gênero, e as regras e
os princípios espécies.
Conforme Alexy, os critérios para distinção entre ambos são numerosos, no entanto,
aponta como o mais freqüente, o da generalidade. Nesse sentido, afirma que “os princípios são
normas dotadas de um grau de generalidade relativamente alto, e as regras normas com nível
relativamente baixo de generalidade” 63.
De acordo com a tese adotada por Alexy, entre os princípios e as regras não impera tão
somente uma distinção gradual (grau de generalidade), mas também de qualidade, e é justamente
este critério gradualista-qualitativo o ponto determinante do reconhecimento dos princípios como
normas.
Nesse sentido, esclarece que os princípios são mandamentos de otimização,
caracterizados pelo fato de que podem ser cumpridos em diferente grau e que a medida devida de
seu cumprimento não só depende das possibilidades reais como também das jurídicas, ou seja, os
princípios são normas que determinam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro
das possibilidades jurídicas e reais existentes. Por outro lado, as regras são normas que somente
podem ser cumpridas ou não64.
No entanto, onde a distinção entre regras e princípios mostra-se com maior nitidez, no
entendimento de Alexy, é ao redor da colisão de princípios ou conflito de regras. Afirma que
61 Sobre direitos fundamentais, tratar-se á no tópico 2.1.2. 62 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. (Versión castellana: Ernesto Garzón Valdés. 1ª ed. 1986, 3ª reimpresión 2002) Madrid: CEPC, 2002, p.83. Original: “ tanto las reglas como los principios son normas porque ambos dicen lo que debe ser. Ambos pueden ser formulados con la ayuda de expresiones deónticas básicas del mandato, la permisión y la prohibición. Los principios, al igual que las reglas, son razones para juicios concretos de deber ser, aun cuando sena razones de un tipo muy diferente”. 63 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. p. 83. Original: “ los principios son normas de un grado de generalidad relativamente alto, y las reglas normas con un nivel relativamente bajo de generalidad”. 64 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. p. 86-87.
um conflito entre regras somente pode ser solucionado introduzindo-se em uma das regras uma cláusula de exceção que elimine o conflito ou declarando inválida, pelo menos uma das regras65.
De outro modo, a colisão de princípios deve ser solucionada de maneira totalmente
distinta. Assim, quando dois princípios entram em colisão, “não significa que se tenha que
declarar inválido o princípio do qual se abdica, nem que nele se deva introduzir uma cláusula de
exceção” 66. O que ocorre, conforme Alexy, é que em certas circunstâncias um dos princípios
precede ao outro, ou seja, nos casos concretos os princípios têm pesos diferentes, prevalecendo
aquele com maior peso67.
Portanto, os conflitos de regras se desenrolam na dimensão da validade, enquanto a
colisão de princípios transcorre na dimensão do peso, do valor68. Ou seja, as regras vigem, os
princípios valem.
Cumpre ressaltar ainda, a respeito da normatividade dos princípios, a questão de haver ou
não um caráter normativo nos princípios implícitos. Para isso, é necessário que se faça uma breve
elucidação acerca de duas ordens de princípios: implícitos e explícitos.
Conforme Luiz Henrique Cademartori, de um lado estão os princípios “que se encontram
objetivamente explicitados no ordenamento jurídico como, por exemplo, os princípios da
Administração Pública, constantes no art. 37, caput, da Constituição” e, de outro, os “que se
encontram implícitos no sistema”, sendo assim considerados por estarem expressos na doutrina
ou porque se consagram de forma consuetudinária69.
Segundo ele, para que se possa compreender com maior clareza a questão, é necessário
tecer considerações acerca de duas categorias de princípios: abertos e normativos. Nos termos do
mencionado doutrinador, são entendidos como princípios abertos “aqueles que se constituem em
idéias jurídicas tidas como diretrizes na aplicação do Direito, sendo elas ratio legis (ou seja, a
razão das leis, portanto, máximas jurídicas invocadas para justificar a aplicação de certas leis,
mas não sendo elas normas e sim, meras orientações jurídicas sem imediata incidência)”. Já como 65 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. p. 88. Original: “ un conflicto entre reglas sólo puede ser solucionado o bien introduciendo en una de las reglas una cláusula de excepción que elimine el conflicto o declarando inválida, por lo menos, una de las reglas”. 66 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. p. 89. Original: “ no significa declarar inválido al principio desplazado ni que en el principio desplazado haya que introducir una cláusula de excepción”. 67 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. p. 89. 68 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. p. 89. 69 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade Administrativa no Estado Constitucional de Direito, p. 84.
princípios normativos, entende-se “aqueles princípios que, por serem lex, possuem caráter
normativo e, portanto, aplicação imediata” 70.
Nesse passo, tem-se, em relação à eficácia dessas duas categorias de princípios: a eficácia
imediata para os princípios normativos (aqueles já consolidados como normas jurídicas) e uma
eficácia mediata ou programática para os princípios abertos (os que não foram ainda
reconhecidos como normas)71.
Estes últimos apresentam maior dificuldade na sua delimitação e aplicação no Direito e
uma das formas de aplicá-los é através da sua função interpretativa e integrativa, entendendo-se
como interpretativa, “quando a utilização dos princípios seja feit a pelo jurista no momento de
orientá-lo na extração do sentido das leis de teor obscuro ou impreciso e se diria também que,
neste caso, ela também assume uma função argumentativa como discurso de persuasão ou
convencimento”; e como função integrativa, “na medida em que o jurista possa utilizar os
princípios para suprir o silêncio das leis”, como ocorria antes da incorporação dos princípios aos
ordenamentos constitucionais e antes, inclusive, de serem mencionados nos códigos civis sob a
denominação de “princ ípios gerais do direito” 72.
Feita esta apreciação, cabe agora a análise acerca da existência ou não de caráter
normativo naqueles princípios não diretamente estatuídos nos ordenamentos jurídicos, e se, caso
considerados normas jurídicas, podem ter aplicação imediata, superando a idéia que concebe os
princípios implícitos como meras normas programáticas.
Nesse ponto, a discussão recai no fato de que as normas programáticas, ao longo da
história, sofreram uma alteração no seu papel e na sua incidência. Em função do seu alto grau de
generalidade, essas normas assumem um caráter jurídico de princípio geral de ordem
constitucional. Assim sendo, “o vínculo programático contido no seu texto não somente obriga
como também prevalece sobre quaisquer normas de caráter infraconstitucional, já que as normas
programáticas, por serem princípios, também possuem eficácia interpretativa sobre as suas
normas cativas” 73.
70 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade Administrativa no Estado Constitucional de Direito, p. 84. 71 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade Administrativa no Estado Constitucional de Direito, p. 85. 72 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade Administrativa no Estado Constitucional de Direito, p. 85. 73 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade Administrativa no Estado Constitucional de Direito, op. cit. p. 86-87.
Da obra de Luiz Henrique Cademartori, destaca-se a argumentação desenvolvida por
Crisafulli, enfatizando a normatividade dos princípios:
se são normas aquelas das quais os princípios gerais são extraídos, através de um procedimento de generalização sucessiva, não se vê por que não devam ser normas também eles: se abstraio da espécie animal, obtenho sempre animais e não flores ou estrelas. Em segundo lugar, a função para a qual são extraídos e empregados é a mesma cumprida por todas as normas, isto é, a função de regular um caso74.
Luiz Henrique Cademartori destaca que, em se tratando da esfera do Direito Público,
“ essas normas implícitas assumem um papel de destaque, contando com uma aceitação já
consolidada, tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência”. E acrescenta que essas normas,
“embora estejam implícitas no ordenamento jurídico, mostram -se decisivas para o controle
jurisdicional da atividade discrionária estatal servindo, então, de salvaguarda aos direitos dos
cidadãos” 75.
1.2.3. A teoria contemporânea dos princípios – a constitucionalização dos princípios
Com a entrada dos princípios no corpo das Constituições e sua proclamada
normatividade, chega-se a uma tendência que conduz à valoração e eficácia dos princípios como
normas-chave de todo o sistema jurídico, das quais se retirou o conteúdo inócuo de
programaticidade, mediante o qual se costumava neutralizar a eficácia das Constituições
frustrando, por conseguinte, as garantias solenemente proclamadas.
“Em verdade, os princípios são o oxigênio das Constituições na época do pós -positivismo.
É graças aos princípios que os sistemas constitucionais granjeiam a unidade de sentido e auferem
a valoração de sua ordem normativa” 76.
Os princípios gozam de superioridade e hegemonia na pirâmide normativa. Supremacia
não apenas formal, mas, sobretudo, material e que só se torna possível se compreendidos como
valores fundamentais, que regem a Constituição, a ordem jurídica.
74 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade Administrativa no Estado Constitucional de Direito, p. 96. 75 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade Administrativa no Estado Constitucional de Direito, p. 97. 76 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 259.
A importância vital que os princípios assumem para os ordenamentos jurídicos se torna cada vez mais evidente, sobretudo se lhes examinarmos a função e presença no corpo das Constituições contemporâneas, onde aparecem como os pontos axiológicos de mais alto destaque e prestígio com que fundamentar na Hermenêutica dos tribunais a legitimidade dos preceitos da ordem constitucional77.
A partir da tão mencionada constitucionalização dos princípios, convertendo-os em
fundamento de toda a ordem jurídica, a Constituição passa a incorporar uma “ordem objetiva de
valores”, fazendo transparecer com os princípios uma “supralegalidade material” e se torna,
simultaneamente, “fonte primária do ordenamento jurídico e fon te subordinada do mesmo: ao
obter este sua primária expressão reflexa, se declara derivado e subordinado à ordem dos valores
socialmente professados” 78.
Na esfera juscivilista os princípios serviam à lei e possuíam o mais baixo grau na
hierarquização positiva como fonte secundária de normatividade. Postos na esfera
jusconstitucional, as posições se inverteram e os princípios passaram a encabeçar o sistema,
guiando e fundamentando todas as demais normas que a ordem jurídica institui79.
Deste modo, os princípios ocupam, no Direito Positivo contemporâneo, um espaço tão
vasto que já se admite falar em Estado principial, nova fase caracterizadora das transformações
por que passa o Estado de Direito80.
A teoria dos princípios chega, conforme dispõe Bonavides, à atual fase do pós-
positivismo, com os seguintes resultados já consolidados:
a passagem dos princípios da especulação metafísica e abstrata para o campo concreto e positivo do Direito, com baixíssimo teor de densidade normativa; a transição crucial da ordem jusprivatista (sua antiga inserção nos Códigos) para a órbita juspublicista (seu ingresso nas Constituições); a suspensão da distinção clássica entre princípios e normas; o deslocamento dos princípios da esfera da jusfilosofia para o domínio da Ciência Jurídica; a proclamação da sua normatividade; a perda de seu caráter de normas programáticas; o reconhecimento definitivo de sua positividade e concretude por obra sobretudo das Constituições; a distinção entre regras e princípios, como espécies diversificadas do gênero norma, e, finalmente, por expressão máxima de todo esse desdobramento doutrinário, o mais significativo de seus efeitos: a total hegemonia e preeminência dos princípios81.
77 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 260. 78 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 261. 79 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 263. 80 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 264. 81 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 265.
Assim sendo, os princípios, atualmente elevados à categoria de princípios constitucionais,
estando proclamada a sua normatividade, fazem o equilíbrio e a essencialidade de um sistema
jurídico legítimo. Elevados ao grau de norma das normas, tornam-se qualitativamente a base do
ordenamento jurídico, o fundamento das constituições.
No capítulo seguinte, far-se-á uma análise da teoria do garantismo como fundamento do
Estado Constitucional de Direito, a qual representa, de forma concisa, o resgate e valorização da
Constituição, e a conseqüente efetivação dos postulados constitucionais. Este estudo se dará
através da definição de alguns conceitos fundamentais relacionados ao tema, bem como da
redefinição de algumas categorias operativas, que se torna necessário em vista da mudança
paradigmática operada pelo Estado Constitucional de Direito.
2 A TEORIA DO GARANTISMO COMO FUNDAMENTO DO ESTADO
CONSTITUCIONAL DE DIREITO
2.1 ANÁLISE DA TEORIA DO GARANTISMO
A expressão garantismo designa uma orientação jurídica que nasceu no campo penal
como uma resposta à crescente divergência entre a normatividade do modelo em nível
constitucional e sua ausência de efetividade nos níveis inferiores, assim como às culturas
jurídicas e políticas que a avalizaram, ocultaram e alimentaram 82.
Segundo Ferrajoli83, é possível distinguir três acepções da palavra garantismo. Na
primeira delas, temos que o garantismo designa um modelo normativo de direito, ou seja, é
entendido no sentido de “Estado Constitucional de Direito”, melhor dito, é o principal traço
funcional dessa formação moderna específica que é o Estado de Direito.
Numa segunda acepção, o garantismo designa uma teoria jurídica da ‘validade’ e da
‘efetividade’ como categorias distintas não só entre si, senão também respeito da ‘existência’ ou
‘vigência’ das normas. Trata-se de uma perspectiva interna, científica, jurídica.
Numa terceira acepção, designa uma filosofia política que impõe ao direito e ao Estado a carga da
justificação externa conforme os bens e interesses cuja tutela e garantia constitui precisamente a
finalidade de ambos. Nesse sentido, pressupõe a separação entre direito e moral, entre validade e
justiça, e equivale à assunção de um ponto de vista unicamente externo.
Estas acepções, apesar de que tenham uma conotação penal, segundo Ferrajoli, podem ter um
alcance teórico e filosófico geral, delineando, assim, os elementos de uma Teoria Geral do
Garantismo, na qual se destacam os seguintes:
o caráter vinculado do poder público no Estado de direito; a divergência entre validade e vigência produzida pelos desníveis de normas e um certo grau irredutível de ilegitimidade jurídica das atividades normativas de nível inferior; a distinção entre ponto de vista externo (ou ético-político) e ponto de vista interno (ou jurídico) e a correspondente divergência entre justiça e validade; a autonomia e a precedência do primeiro e um certo grau irredutível de ilegitimidade política das instituições vigentes com respeito a ele84.
82 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón. Teoría del garantismo penal. Madrid: Editorial Trota, 1995, p. 851. 83 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón. Teoría del garantismo penal, p. 851-855 84 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón. Teoría del garantismo penal, p. 854. Original: “ el carácter vinculado del poder público en el estado de derecho; la divergencia entre validez y vigencia producida por los desniveles de normas y un cierto grado irreductible/ de ilegitimidad jurídica de las actividades normativas de nivel inferior; la
Nas palavras de Luiz Henrique Cademartori, por Teoria Geral do Garantismo “entende -se
a teoria do Direito e da Política que, do ponto de vista jurídico, estuda os conceitos e categorias
gerais do Direito sem desconsiderar a sua realidade externa”. Conforme explica, as condições
externas, entendidas como aquelas que advêm do entorno social, outorgam sentido às normas,
perpassando todo o Direito85.
Do ponto de vista político, segundo preleciona o aludido doutrinador, a Teoria do
Garantismo:
visa uma análise da estrutura normativa, axiológica e institucional do Estado contemporâneo, tendo como objetivo a recuperação e consolidação das suas atividades legislativas, jurisdicionais e administrativas na medida em que elas possam ser condizentes com o que por esta teoria é conhecido como Estado Constitucional de Direito86.
Pode-se se dizer, também, de forma sucinta, que a Teoria do Garantismo representa o
resgate e valorização da Constituição, compreendida esta no contexto do Estado Constitucional
de Direito.
Esse resgate Constitucional, nas palavras de Alexandre Morais da Rosa:
decorre justamente da necessidade da existência de um núcleo jurídico irredutível/fundamental capaz de estruturar a sociedade, fixando a forma e a unidade política das tarefas estatais, os procedimentos para resolução de conflitos emergentes, elencando os limites materiais do Estado, as garantias e direitos fundamentais e, ainda, disciplinando o processo de formação político/jurídico do Estado 87.
A Constituição, nessa concepção garantista, deixa de ser meramente normativa,
resgatando o seu próprio conteúdo formador, indicativo do modelo de sociedade que se
pretende e apontando os limites e obrigações do Estado.
distinción entre punto de vista externo (o ético-político) y punto de vista interno (o jurídico) y la correspondiente divergencia entre justicia y validez; la autonomía y la precedencia del primero y un cierto grado irreductible de ilegitimidad política de las instituciones vigentes con respecto a él” 84. 85 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade Administrativa no Estado Constitucional de Direito, p. 29. 86 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade Administrativa no Estado Constitucional de Direito, p. 30. 87 ROSA, Alexandre Morais da. Direito à Educação. Disponível em: <http://conjur.uol.com.br/textos/19209/>. Acesso em: 17 de nov. de 2003.
A implementação concreta da teoria do garantismo já começa a ser observada. Cada vez
mais, a aplicação desta nova concepção, que representa o resgate e a valorização da
Constituição como documento constituinte da sociedade, vem sendo posta em prática.
Com enorme acuidade, encontra-se a decisão do juiz Alexandre Morais da Rosa,
anteriormente citado, o qual concedeu liminar em ação civil pública, proposta por representante
do Ministério Público, ordenando que a prefeitura de Joinville (SC) abrisse vaga para 2.948
crianças em fila de espera por educação infantil, no prazo de 45 dias, sob pena de multa mensal
de um salário mínimo por vaga não preenchida88.
O aludido magistrado, fundamentando a sua decisão, faz um estudo primoroso acerca da
violação dos direitos fundamentais a partir do garantismo jurídico de Luigi Ferrajoli. Na
seqüência, analisa a chamada democracia material89, procedente da legitimação do
Estado Constitucional de Direito, através da qual os direitos fundamentais devem ser
respeitados, efetivados e garantidos, sob pena de deslegitimação paulatina das instituições
estatais.
Como se pode observar, esta nova concepção deixa o plano teórico e passa à
fundamentação de decisões judiciais de forma expressa. Este é apenas um exemplo das muitas
decisões que hoje vêm garantir a tutela dos direitos fundamentais estabelecidos pela ordem
constitucional vigente.
2.1.1 Definição da expressão garantias
Para o estudo da teoria do garantismo é de suma importância que se proceda a análise da
expressão garantias, evitando a confusão terminológica com direitos, o que impediria a
efetivação dos direitos em face das garantias que lhe servem justamente de elemento
“garantidor”.
88 ROSA, Alexandre Morais da. Direito à Educação. 89 Este novo conceito – democracia material ou democracia constitucional – que surge com o advento do Estado Constitucional de Direito, será apreciado ainda neste capítulo.
Sérgio Cademartori ressalta que a própria Constituição Federal de 1988 favorece a
confusão entre as expressões ao não consignar regra que separe essas duas categorias, nem
mesmo adotando terminologia precisa a respeito das garantias90.
Conforme Peña Freire, na tentativa de classificar a garantia, pode-se dizer que se trata de
um “macroconceito da Teoria Geral do Direito e como elemento e função de sistemas jurídicos
complexos” 91, ou seja, é entendida como uma categoria jurídica e sendo as categorias jurídicas
realidades contextuais, nasce a partir de um modelo jurídico-político determinado no qual se
configuram e fora do qual não tem sentido. É nos procedimentos jurídicos, sejam judiciais,
legislativos ou administrativos que a garantia se define e o contexto que a dá sentido é o modelo
jurídico-político denominado Estado Constitucional de Direito.
Luiz Henrique Cademartori, em sua tão mencionada obra, apresentando o conceito
operacional de garantia, a define como “técnica de limitação da atuação do Estado no que se
refere aos direitos fundamentais de liberdade e como técnica de implementação no que se refere
aos direitos sociais”. Segundo ele, “uma organização jurídica será garantista quando possuir
estruturas e institutos aptos a oferecer reparo, sustentação e defesa das liberdades individuais e
dos direitos sociais” 92.
As garantias funcionam, portanto, como técnicas de tutela dos direitos, exercitáveis em
face do Estado.
Sérgio Cademartori esclarece que:
no léxico político, quando se fala em garantia, e em garantismo, pretende-se indicar as tutelas e defesas que protegem um bem específico, e este bem específico é constituído pelas posições dos indivíduos na sociedade política, isto é, pelas liberdades individuais e direitos sociais e coletivos93.
O mencionado doutrinador afirma que a tradição jurídica opera uma ulterior restrição do
significado e, neste sentido, declara que:
as garantias das liberdades e direitos que surgem sob o rótulo de ‘garantismo’ são defesas e tutelas de caráter jurídico; são, pois, os instrumentos com os quais o direito
90 CADEMARTORI, Sérgio. Estado de Direito e Legitimidade. Uma abordagem garantista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 84. 91 PEÑA FREIRE, Antonio Manuel. La garantía en el Estado constitucional de derecho, p. 19. Original: “macroconcepto de la Teoría General del Derecho y como elemento y función de sistemas jurídicos complejos”. 92 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade Administrativa no Estado Constitucional de Direito, p. 27-28. 93 CADEMARTORI, Sérgio. Estado de Direito e Legitimidade. Uma abordagem garantista, p. 86.
assegura um certo número de liberdades e direitos, que são precisados, definidos ou instituídos pelo próprio direito94.
Finalmente, expõe que o leque de garantias parte de dois princípios básicos: o princípio
da legalidade e o princípio de jurisdicionalidade, entendido, este último, como a possibilidade
concreta de deduzir em juízo a pretensão emanada dos direitos sociais95.
2.1.2 O garantismo jurídico como tutela dos direitos fundamentais
Os direitos fundamentais representam a essência da democracia material-constitucional96.
Significam a extensão de liberdades e de direitos sociais direcionados à realização das promessas
constitucionais. Indicam, de acordo com Rosa, “por um lado, obrigações positivas ao Estado no
âmbito social, e de outro, limitam negativamente a atuação estatal, privilegiando a liberdade dos
indivíduos, jamais alienados pelo pacto social” 97.
Bobbio defende, do ponto de vista teórico, que os direitos do homem98, por mais
fundamentais que sejam, “são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias,
caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes e nascidos de modo
gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas” 99.
Para Bobbio, o grave problema de nosso tempo, com relação aos direitos do homem, não
é o de fundamentá-los, mas sim de protegê-los, de garanti-los. Sintetizando esta convicção,
declara:
Não se trata de saber quais e quantos são estes direitos, qual é a sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados100.
Segundo afirma, o problema do fundamento dos direitos humanos teve sua solução atual
na Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembléia-Geral das Nações
94 CADEMARTORI, Sérgio. Estado de Direito e Legitimidade. Uma abordagem garantista, p. 86. 95 CADEMARTORI, Sérgio. Estado de Direito e Legitimidade. Uma abordagem garantista, p. 87. 96 Esta expressão será esclarecida no tópico subseqüente. 97 ROSA, Alexandre Morais da. Direito à Educação. 98 Direitos do homem é a expressão utilizada por Bobbio para designar os direitos fundamentais. 99 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 05. 100 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos, p. 25.
Unidas, em 1948, a qual representa a maior prova histórica até hoje dada do consenso geral sobre
um determinado sistema de valores101.
Luiz Henrique Cademartori reconhece como direitos fundamentais, as liberdades públicas
concebidas como possibilidades jurídicas de exigir do Estado, em juízo, aquilo que se encontra
expresso na Constituição ou nas leis102.
Nesse passo, pode-se arrazoar que o garantismo jurídico consiste na tutela de todos esses
direitos fundamentais – liberdades e direitos sociais – estabelecidos pela ordem constitucional
vigente, os quais representam os alicerces da existência do Estado Democrático de Direito. Logo,
“a democracia entendida como garantista significa o Estado de Direito munido tanto de direitos
liberais (direitos de) como de direitos sociais (direitos a), próprios, esses últimos, dos Estados
intervencionistas como o Brasil” 103.
Apresentam, os direitos fundamentais, um caráter jurídico-constitucional, estando
positivados no texto constitucional e, nos termos de Luiz Henrique Cademartori, referidos sempre
a princípios. Esses direitos foram sendo incorporados às cartas constitucionais gradativamente,
em sucessivas ordens, dividindo-se em direitos de primeira, segunda, terceira e quarta
dimensões104.
No ordenamento jurídico brasileiro, esses direitos se acham positivados na Constituição
Federal de 1988, principalmente, no Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais. Todavia,
esta relação não é exaustiva, já que ao longo do texto constitucional verificam-se garantias
implícitas, as quais, segundo Sérgio Cademartori, são “decorrentes tanto do modelo de Estado
Constitucional de Direito, na medida em que este é entendido como sistema de garantias, quanto
de preceito constitucional expresso”105. O próprio art. 5°, § 2° estabelece que “ os direitos e
garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos
princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do
Brasil seja parte” 106.
101 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos, p. 26-27. 102 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade Administrativa no Estado Constitucional de Direito, p. 71-72. 103 ROSA, Alexandre Morais da. Direito à Educação. 104 Sobre essa divisão dos direitos fundamentais ver CADEMARTORI, Luiz Henrique, op. cit. p. 24-26. 105 CADEMARTORI, Sérgio. Estado de Direito e Legitimidade. Uma abordagem garantista, p. 172. 106 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
Os direitos fundamentais – liberdades e direitos sociais – estabelecidos pela ordem
constitucional, representam, conforme explicitado, elementos limitadores do Poder Estatal, e o
grau de garantia desses direitos possibilita avaliar o nível de legitimidade e qualidade de uma
democracia.
2.2 DEMOCRACIA FORMAL E DEMOCRACIA SUBSTANCIAL
No marco do Estado Constitucional de Direito ocorre uma reestruturação do modelo de
democracia, ou seja, a partir de alguns critérios de decisão é possível referir-se a um
modelo formal e outro substancial de democracia.
No modelo teórico da democracia formal, e seu correspondente modelo político
denominado Estado político representativo, o princípio majoritário é fonte absoluta de legalidade,
e estabelece a validade de qualquer decisão, seja do conteúdo que seja, adotada por maioria 107.
De outro modo, o modelo da democracia substancial, segundo preleciona Peña Freire:
está formado pelo conjunto de regras que determinam como e quem decide, no marco de um Estado de Direito e, portanto, vinculado estrutural e funcionalmente à tutela dos direitos e interesses dos indivíduos. Estas regras condicionam a validade das normas jurídicas e as possibilidades de decisão política democrática. Enuncia-se primeiro aquilo sobre o que não se pode decidir assim como aquilo sobre o que não se pode deixar de decidir e, em definitivo, o que poderá ser objeto de decisão108.
Luiz Henrique Cademartori explica que, “no Estado Constitucional de Direito, as regras e
limites que o definem, precedem à determinação e funcionamento do seu regime democrático”.
Segundo ele, isso significa, portanto, que “a idéia de centralidade das pessoas e a garantia de seus
direitos, que formam a base deste Estado, não são apenas valores externos, ou condições
axiológicas, mas também vínculos estruturais de toda a dinâmica que nele se perfaz” 109.
Em outras palavras, como o Estado Constitucional precede ao regime democrático, ou
seja, nasce primeiro como Monarquia Constitucional para limitar os poderes do monarca, 107 PEÑA FREIRE, Antonio Manuel. La garantía en el Estado constitucional de derecho, p. 74. 108 PEÑA FREIRE, Antonio Manuel. La garantía en el Estado constitucional de derecho, p. 74. Original: “ el modelo de democracia sustancial está formado por el conjunto de reglas que determinan cómo y quién decide, en el marco de un Estado de derecho y, por lo tanto, vinculado estructural y funcionalmente a la tutela de los derechos e intereses de los individuos. Estas reglas condicionan la validez de las normas jurídicas y las posibilidades de decisión política democrática. Se enuncia primero aquello sobre lo que no se puede decidir así como aquello sobre lo que no se puede dejar de decidir y, en definitiva, lo que sí podrá ser objeto de decisión”. 109 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade Administrativa no Estado Constitucional de Direito, p. 67.
e só depois como democracia representativa, as normas limitadoras do poder se
manifestam com maior relevância do que as normas a respeito das fontes e exercício
desse mesmo poder. Contudo, ressalta-se que este fator não implica uma relação de
subordinação, mas sim de reciprocidade entre esses dois tipos de normas.
Alexandre Morais da Rosa destaca que:
os vínculos no Estado Democrático de Direito, de viés garantista, são de tal forma substanciais/materiais que impedem a preponderância da concepção de democracia vinculada à vontade da maioria, em franca opressão à minoria, articulando a esfera do indecidível. Em outras palavras, nem mesmo por maioria pode-se violar/negar os Direitos Fundamentais dos indivíduos que não foram alienados no momento da criação do Estado Civil110.
Luiz Henrique Cademartori, referindo-se ao tema, afirma existir, no Estado Constitucional
e Democrático,
um âmbito básico de organização jurídico-política em conexão com os valores fundamentais e fins valorativos que lhe outorgam um sentido primordial e estão destinados a preservar aqueles direitos, tidos como vitais” e que, portanto, “seja qual for o procedimento de decisão adotado pelo regime político do Estado Constitucional, o mesmo haverá de garantir sempre a preservação dos direitos fundamentais111.
Ferrajoli chama a esse novo modelo de “democracia constitucional”, o qual seria fruto de
uma radical mudança de paradigma produzido no papel do direito nos últimos anos.
Indica os anos 1945-1949 como a data na qual se dá esta mutação, tanto na estrutura do
direito como na natureza da democracia112.
E menciona que:
no ambiente cultural e político no qual nasce o constitucionalismo – a Carta da ONU de 1945, a Declaração Universal de Direitos de 1948, a Constituição italiana de 48, a Lei Fundamental alemã de 49 – se compreende que o consenso de massas sobre o qual se haviam fundado as ditaduras fascistas, ainda que seja majoritário, não pode ser a única fonte de legitimação do poder113.
110 ROSA, Alexandre Morais da. Direito à Educação. 111 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade Administrativa no Estado Constitucional de Direito, p. 69. 112 FERRAJOLI, Luigi. El garantismo y la filosofía del derecho. Universidad Enternado de Colombia. Serie de Teoría Jurídica y Filosofía del Derecho nº 15, 1ª ed., Colombia, 2000, p. 161. 113 FERRAJOLI, Luigi. El garantismo y la filosofía del derecho, 2000, p. 161. Original: “ en el ambiente cultural y político del cual nace el constitucionalismo – la Carta de la ONU de 1945, la Declaración Universal de Derechos de 1948, la Constitución italiana de 48, la Ley Fundamental alemana de 49 – se comprende que el consenso de masas sobre el que se habían fundado las dictaduras fascistas, aunque sea mayoritario, no puede ser la única fuente de legitimación del poder”
Assim, diante da complexidade contemporânea, a legitimação do Estado Democrático de
Direito deve suplantar a mera democracia formal, para alcançar a democracia material, na qual os
direitos fundamentais devem ser respeitados, efetivados e garantidos, sob pena da deslegitimação
gradativa das instituições estatais.
A aplicação de qualquer norma jurídica precisa sofrer a preliminar oxigenação
constitucional de viés garantista, para aferição da constitucionalidade material e formal da norma
jurídica. A Constituição não pode ser infringida ou modificada ao arbítrio dos governantes,
mesmo em nome da maioria.
Nessa linha, a noção de democracia substancial possui um determinado grau de
operacionalidade, restando inserido no Estado Democrático do Direito a esfera do decidível e do
não-decidível, por maioria ou mesmo por unanimidade. Portanto, não se pode legitimamente
afrontar os direitos individuais, assim como se deve garanti-los na sua máxima extensão114.
Na esfera do não-decidível encontram-se justamente os direitos fundamentais,
funcionando como verdadeiro marco divisório, impeditivo do avanço do Legislativo. O Poder
Legislativo, assim, encontra limitações substanciais no tocante à matéria a ser objeto da
legislação.
Nesse sentido, Luiz Henrique Cademartori explica que:
de acordo com a visão garantista, a execução da Constituição por parte do Legislativo deve ser realizada através de uma série de opções e ponderações entre os valores e princípios, sendo que disso resultará uma orientação ou sentido político para o ordenamento jurídico do Estado Constitucional de Direito115.
No que tange à relação entre valores e princípios, Alexy esclarece que, de certa forma, os
princípios e os valores são iguais quanto ao seu conteúdo qualitativo, sendo a diferença
entre eles, o fato de que os princípios estão ligados à dimensão do dever ser enquanto que
os valores estão relacionados à dimensão daquilo que é bom, ou seja, “os princípios e os
valores se diferenciam somente em virtude de seu caráter deontológico e axiológico,
respectivamente” 116.
114 ROSA, Alexandre Morais da. Direito à Educação. 115 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade Administrativa no Estado Constitucional de Direito, p. 73. 116 ALEXY, Robert. Teoria de los Derecho Fundamentales, p. 147.
Assim sendo, ressalta que, como no âmbito do Direito, do que se trata é justamente do que
é devido, essa esfera da realidade pronuncia-se mais em favor da utilização dos
princípios” 117.
A aproximação entre valores e princípios, entendidos estes últimos como uma espécie de
normas jurídicas, conforme explicitado no capítulo anterior, não sugere uma subordinação
do Direito à Moral, conforme pretendem alguns juristas.
É o que declara Luiz Henrique Cademartori, ao afirmar que “pretender uma conexão entre
valores morais e Direito não significa que as normas jurídicas sejam inferíveis das regras
morais”. O que ocorre, segundo assevera, é:
uma condensação jurídico-normativa de certos valores tidos como conquistas civilizatórias que, ao passarem a integrar as cartas constitucionais, afirmarão a legitimidade dos Estados que os acolham, caso sejam efetivamente reconhecidos pelas instituições estatais118.
Ante o exposto, reconhece-se que o modelo da democracia substancial representa o
modelo de decisão política que corresponde às exigências e princípios do Estado
Constitucional de Direito, onde o poder político democrático está sempre vinculado
constitucionalmente à garantia dos direitos e interesses dos cidadãos.
2.3. A VALIDADE DAS NORMAS NO ESTADO CONSTITUCIONAL DE DIREITO
Num contexto jurídico complexo como o Estado Constitucional de Direito, apresenta-se
de extrema importância a revisão do sentido da validade, que deixa de ser um atributo
estável das normas para se converter numa relação complexa, que pode variar em cada
momento.
Para muitos dos mais reputados doutrinadores, como bem esclarece Sérgio Cademartori, a
noção de validade corresponde a uma noção simplificada, procedente da tradição positivista que
117 ALEXY, Robert. Teoria de los Derecho Fundamentales, p. 147. 118 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade Administrativa no Estado Constitucional de Direito, p. 76.
a identifica com sua existência jurídica, ou seja, como sendo produto do procedimento previsto
em norma superior119.
Em seu estudo sobre a relação validade/eficácia na teoria jurídica contemporânea, afirma
o mencionado autor que:
para a maioria dos juristas contemporâneos, uma norma é válida quando pertence a um ordenamento jurídico por haver sido produzida pelo órgão competente e de acordo com o procedimento regular. De seu lado, a eficácia é considerada como decorrente do efetivo comportamento dos destinatários em relação à norma posta, bem como a sua aplicação pelos tribunais em caso de descumprimento120.
Ao equiparar-se a validade à eficácia ou à existência jurídica não se está levando em conta
o fato de que “o moderno Estado Constitucional de Direito incorporou diversos princípios ético -
políticos a seus estatutos fundamentais, os quais determinam valorações ético-políticas e de
justiça das normas por ele e nele produzidas” 121.
Nesse sentido, a validade, no contexto do novo modelo normativo, passa a atuar como
função integrante do sistema jurídico complexo e fragmentado em diferentes planos de
normatividade, entre os quais se estabelecem relações que vão além da simples atribuição de
competência pela norma superior, a determinação de um procedimento para a produção
normativa ou a reiteração de determinados aspectos materiais vinculantes desde os planos
superiores.122
Desse modo, aos três critérios tradicionais de valoração das normas – validade, justiça e
eficácia – acrescenta-se o conceito de vigência, elaborado a partir da distinção entre validade e
vigência das normas.
Nessa percepção garantista, o juízo de vigência se refere à constatação da simples
existência de uma norma no ordenamento jurídico. É um juízo de fato ou técnico, pois se limita a
constatar que a norma cumpre os requisitos formais exigidos.123
Por sua parte, o juízo de validade, ou seja, a validade propriamente dita, não se refere à
forma da norma, senão a seu conteúdo, e afeta à relação da norma com as determinações
119 CADEMARTORI, Sérgio. Estado de Direito e Legitimidade. Uma abordagem garantista, p. 77. 120 CADEMARTORI, Sérgio. Estado de Direito e Legitimidade. Uma abordagem garantista, p. 44. 121 CADEMARTORI, Sérgio. Estado de Direito e Legitimidade. Uma abordagem garantista, p. 78. 122 PEÑA FREIRE, Antonio Manuel. La garantía en el Estado constitucional de derecho, p. 96. 123 PEÑA FREIRE, Antonio Manuel. La garantía en el Estado constitucional de derecho, p. 98.
existentes em níveis superiores do ordenamento, vinculada a valores e princípios
constitucionais.
Em conseqüência disto, torna-se possível dividir a legitimidade interna do sistema em
legitimidade jurídica formal, referida à vigência, e legitimidade jurídica substancial, referida aos
conteúdos prescritos pelas normas superiores124.
É de se ressaltar que, tanto as condições formais de vigência quanto as substanciais de
validade encontram-se incorporadas em normas colocadas num nível superior125.
Entretanto:
enquanto as condições formais da vigência constituem requisitos de fato em ausência dos quais o ato normativo é imperfeito e a norma ditada por ele não chega a existir, as condições substanciais da validade, e de maneira especial as da validade constitucional, consistem normalmente no respeito de valores – como a igualdade, a liberdade, as garantias dos direitos dos cidadãos – cuja lesão produz uma antinomia, melhor dizendo, um conflito entre normas de conteúdo ou significado incompatível126.
Diante do exposto, frente à teoria garantista, pode-se falar nos seguintes critérios de
valoração das normas: justiça, eficácia, vigência e validade.
Acolhendo a distinção feita por Sérgio Cademartori, tem-se que: a) uma norma é justa
quando atende positivamente a determinado critério de valoração ético-político (logo,
extrajurídico); b) uma norma é vigente quando não possui vícios formais, ou seja, quando tenha
sido emanada por órgão competente e de acordo com o procedimento prescrito; c) uma norma é
válida quando não possui vícios materiais, ou seja, não está em contradição com nenhuma norma
hierarquicamente superior; d) uma norma é eficaz quando é efetivamente observada pelos seus
destinatários (e/ou pelos órgãos de aplicação)127.
Dando seqüência a presente pesquisa, far-se-á, no capítulo subseqüente, uma análise da
atividade administrativa do Estado, a fim de se verificar a possibilidade de aplicação dessa nova
concepção, advinda do Estado Constitucional de Direito e que tem como fundamento a Teoria do
Garantismo, à atuação da Administração Pública. Esse estudo será realizado mediante a 124 CADEMARTORI, Sérgio. Estado de Direito e Legitimidade. Uma abordagem garantista, p. 78. 125 CADEMARTORI, Sérgio. Estado de Direito e Legitimidade. Uma abordagem garantista, p. 83. 126 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón. Teoría del garantismo penal, p. 874. “ mientras las condiciones formales de la vigencia constituyen requisitos de hecho en ausencia de los cuales el acto normativo es imperfecto y la norma dictada por él no llega a existir, las condiciones sustanciales de la validez, y de manera especial las de la validez constitucional, consisten normalmente en el respeto de valores – como la igualdad, la libertad, las garantías de los derechos de los ciudadanos – cuya lesión produce una antinomia, es decir, un conflicto entre normas de contenido o significado incompatible”. 127 CADEMARTORI, Sérgio. Estado de Direito e Legitimidade. Uma abordagem garantista, p. 81-82.
caracterização do direito administrativo, da análise desta atividade de modo geral e abordando-se,
também, os princípios constitucionais que regem a Administração Pública.
3 A ATIVIDADE ADMINISTRATIVA DO ESTADO
3.1 CARACTERIZAÇÃO DO DIREITO ADMINISTRATIVO
Para adentra-se ao estudo da atividade administrativa do Estado, oportuno se apresenta
tecer breves considerações acerca do direito administrativo como ramo autônomo do
Direito, sua origem e os diferentes sistemas existentes.
Nesse norte, encontra-se referência da doutrina a uma lei francesa de 1800 como sendo o
ato de nascimento do direito administrativo. Essa lei disciplinou, de modo sistemático, a
organização administrativa francesa, com base na hierarquia e na centralização.
Na segunda metade do século XIX foi-se consolidando a sistematização do direito
administrativo, com a contribuição, principalmente, da jurisprudência e obras de autores
franceses, italianos e alemães128.
A partir daí foi-se formando um núcleo básico com alguns elementos principais, como:
autoridade do Estado, direitos subjetivos públicos, jurisdição administrativa, poder de polícia.
Com algumas variações em tais matrizes temáticas, o direito administrativo expandiu-se na
Europa continental, desenvolvendo-se também na Espanha, Portugal, Bélgica129.
No Brasil, de acordo com Medauar, o ponto de partida da elaboração do direito
administrativo “situa -se na criação da cátedra da matéria na Faculdade de Direito de São Paulo e
do Recife, em 1.851” 130.
Obras de direito administrativo passaram a ser editadas no Brasil, sempre com referência
a autores estrangeiros, percebendo-se a grande influência francesa, portuguesa, espanhola e belga,
não somente pela bibliografia citada, mas em virtude do teor dos temas propostos.
No que tange aos sistemas administrativos existentes, ou seja, aos diferentes sistemas de
controle jurisdicional da Administração, referentes ao regime adotado pelo Estado para a
correção dos atos administrativos ilegais praticados pelo Poder Público, pode-se falar em dois
128 MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 4. ed. rev. atual. e ampl. – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 32. 129 MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno, p. 32. 130 MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno, p. 33.
grandes ramos: “o do contencioso administrativo, também chamado sistema francês, e o sistema
judiciário ou jurisdição única, conhecido por sistema inglês” 131
Conforme Meirelles, “o que caracteriza o sistema é a predominância da jurisdição comum
ou da especial, e não a exclusividade de qualquer delas, para o deslinde contencioso das questões
afetas à Administração” 132.
O sistema do contencioso administrativo foi originariamente adotado na França, de onde
se propagou para outras nações. Firmou-se, ali,
o sistema do administrador-juiz, vedando-se à Justiça Comum conhecer de atos da Administração, os quais se sujeitam unicamente à jurisdição especial do contencioso administrativo, que gravita em torno da autoridade suprema do Conselho de Estado, peça fundamental do sistema francês133.
Tecendo considerações sobre esse sistema, dispõe Hely Lopes Meirelles:
(...) entre outros inconvenientes sobressai o do estabelecimento de dois critérios de justiça: um da jurisdição administrativa, outro da jurisdição comum. Além disso, o Estado moderno, sendo um Estado de Direito, deve reconhecer e garantir ao indivíduo e à Administração, por via da mesma Justiça, os seus direitos fundamentais, sem privilégio de uma jurisdição especial constituída por funcionários saídos da própria Administração e sem as garantias de independência que se reconhecem necessárias à Magistratura134.
O outro sistema administrativo atualmente adotado é o sistema de jurisdição única,
também denominado sistema judiciário ou, ainda, sistema de controle judicial. Neste sistema,
“todos os litígios – de natureza administrativa ou de interesse exclusivamente privado – são
resolvidos judicialmente pela Justiça Comum, ou seja, pelos juízes e tribunais do Poder
Judiciário” 135. Tal sistema é originário da Inglaterra, de onde se transplantou para os Estados
Unidos, Bélgica, Romênia, México, Brasil e outros países.
O Brasil adotou, portanto, o sistema da jurisdição única, ou seja, o do controle da atuação
administrativa pela Justiça Comum.
Conforme Meirelles, este sistema “é o da separação entre o Poder Executivo e o Poder
Judiciário, vale dizer, entre o administrador e o juiz” 136. E ressalta que
131 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 18 ed., atual.. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 48. 132 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, p. 48. 133 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, p.49. 134 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, p. 51. 135 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, p. 51. 136 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, p. 54.
com essa diversificação entre a Justiça e a Administração é inconciliável o contencioso administrativo, porque todos os interesses, quer do particular quer do Poder Público, se sujeitam a uma única jurisdição conclusiva: a do Poder Judiciário. Isto não significa, evidentemente, que se negue à Administração o direito de decidir. Absolutamente, não. O que se lhe nega é a possibilidade de exercer funções materialmente judiciais, ou judiciais por natureza, e de emprestar às suas decisões força e definitividade próprias dos julgamentos judiciários (res judicata)137.
Identificados os sistemas administrativos existentes, constata-se que o sistema de
jurisdição única é o que mantém maior relação com a garantia dos direitos e interesses dos
administrados, estando em consonância com as prerrogativas do Estado Constitucional de
Direito, vez que assegura a submissão efetiva ao direito de todos os poderes públicos.
Nesse sentido, Moraes salienta que
a moderna supremacia do Estado de Direito e das Constituições escritas sobre todas as espécies e atos normativos impõe a necessidade de acesso total e irrestrito ao Poder Judiciário, cujas garantias constitucionalmente deferidas possibilitam maior independência e imparcialidade perante a Administração Pública138.
Feitas essas considerações acerca da origem do Direito Administrativo e dos diferentes
sistemas existentes, pode-se, enfim, definir um conceito sobre esse ramo do Direito.
Fábio Medina Osório define o Direito Administrativo brasileiro como:
ramo do Direito Público, constituído por normas de organização e normas de comportamento, que se aplicam às Administrações Públicas, ao poder Executivo, em todas as esferas, regulando suas relações entre si, com os demais Poderes, órgãos estatais e com os administrados, bem como incidindo sobre a função materialmente administrativa de qualquer entidade pública ou privada139.
Mencionado autor aponta os critérios mais razoáveis na caracterização do Direito
Administrativo:
a) presença formal, direta ou indireta, da Administração Pública na relação jurídica; b) presença de uma atividade administrativa, permeada por aparente interesse público que a justifique aprioristicamente (...); c) previsão de regime jurídico publicista a essa relação, dotando a Administração Pública de poderes públicos, direta ou indiretamente, na tutela dos valores em jogo140.
137 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, p. 54. 138 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional Administrativo. São Paulo: Atlas, 2002, p.88. 139 OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 54. 140 OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador, p. 52.
Estando, portanto, caracterizado o Direito Administrativo como ramo autônomo do
Direito, passar-se-á ao estudo da atividade administrativa do Estado.
3.2 A ATIVIDADE ADMINISTRATIVA DO ESTADO
“O conjunto de atividades inseridas no âmbito do Poder Executivo, as quais dinamizam a
burocracia e a organização interna do Estado” para Luiz Henrique Cademartori, é o
próprio conceito de Administração Pública141.
Estas atividades irradiam-se também no âmbito externo estatal, materializando-se da
seguinte forma: a) intervenção direta na esfera econômica; b) fomento ou intervenção
indireta na mesma esfera através de atividade fiscal e extrafiscal; c) execução direta ou
indireta de serviços públicos para a população; d) exercício do poder de polícia visando
regulamentar as liberdades públicas142.
Não obstante, com a complexidade cada vez maior dos Estados, estas atividades não
resumem todas as funções administrativas, podendo-se, por essa razão, identificar a
atividade administrativa também por exclusão com respeito às funções precípuas dos
poderes Legislativo e Judiciário143.
A atividade administrativa do Estado é levada a efeito através da expedição de atos
administrativos, entendidos estes como instrumentos de veiculação da manifestação do
poder-dever dos agentes públicos na implementação de providências administrativas,
sujeitos a parâmetros normativos superiores quanto à sua expedição e abrangência144.
141 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade Administrativa no Estado Constitucional de Direito, p. 21. 142 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade Administrativa no Estado Constitucional de Direito, p. 21. 143 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade Administrativa no Estado Constitucional de Direito, p. 21-22. 144 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade Administrativa no Estado Constitucional de Direito, p. 22.
Cretella Júnior entende que a Administração é a produtora do ato administrativo,
gravitando as duas noções, em torno do serviço público145, e que, portanto, o ato
administrativo constitui noção fundamental do direito administrativo146.
O ato administrativo é, desse modo, a forma como a Administração se expressa no mundo
jurídico, conforme explica Cretella Júnior:
se a comunicação do Poder Legislativo com o mundo jurídico se faz mediante a lei, se o Poder Judiciário se expressa mediante a sentença, o Poder Executivo, ou melhor, a Administração, nos Três Poderes, faz sentir sua presença no mundo jurídico por meio do ato administrativo147.
Celso Antônio Bandeira de Mello conceitua “ato administrativo”, em sentido amplo,
como:
declaração do Estado (ou de quem lhe faça as vezes – como, por exemplo, um concessionário de serviço público), no exercício de prerrogativas públicas, manifestada mediante providências jurídicas complementares da lei a título de lhe dar cumprimento, e sujeitas a controle de legitimidade por órgão jurisdicional148.
Ressalta-se, entretanto, conforme os ensinamentos do formular do conceito supra citado,
que existe diferença entre “atos da Administração” e “atos administrativos”. Nesse
sentido, destaca que a Administração pratica inúmeros atos que não interessa considerar
como atos administrativos, quais sejam: os atos regidos pelo Direito Privado; os atos
materiais, que na verdade se denominam “fatos administrativos”, e os atos políticos ou de
governo, praticados em obediência direta à Constituição e não à lei, o que lhes confere
fisionomia própria149.
De outro modo, há aqueles atos que não são praticados pela Administração Pública, mas
que devem ser incluídos como atos administrativos, por estarem submetidos à mesma
disciplina jurídica aplicável aos demais atos da Administração. Como exemplo, Mello
145 Cumpre ressaltar que serviço público, hoje, é apenas uma das funções da Administração Pública, ao lado de atividades como exercício do poder de polícia, intervenção direta e indireta na ordem econômica, por exemplo. 146 CRETELLA JÚNIOR, José. Controle jurisdicional do ato administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1993, p. 112. 147 CRETELLA JÚNIOR, José. Controle jurisdicional do ato administrativo, p. 113. 148 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 352. 149 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 351-352.
menciona os atos relativos à vida funcional dos servidores do Legislativo e do Judiciário,
praticados pelas autoridades desses Poderes150.
Deste modo, tem-se que a noção de ato administrativo não depende, ou não deve
depender, da noção da Administração Pública, posto que nem todo ato da Administração é
ato administrativo, assim como nem todo ato administrativo provém da Administração
Pública.
Nessa mesma linha, Moraes diferencia o ato administrativo dos demais atos da
Administração, os quais, segundo ele, podem ser entendidos como “todo ato praticado no
exercício da função administrativa, sejam atos de direito privado (...), sejam atos materiais
de execução (...), sejam, ainda, os atos políticos, os contratos ou atos normativos” 151.
Feitas essas considerações acerca dos atos administrativos e da atividade administrativa
em geral, embora se reconheça que esta não se resume à expedição de tais atos, tratar-se-á
da atividade administrativa do Estado a partir da análise dos seus atos administrativos e
suas formas de controle, quer sejam, interna, externa, legislativa, jurisdicional, conforme
se verá no capítulo subseqüente.
Neste norte, compete apontar as características do ato administrativo, que conforme
Moraes são as seguintes: “declaração de vontade expressa ou tácita do Estado (...);
sujeição ao regime jurídico de direito público; produção de efeitos jurídicos imediatos;
possibilidade de controle jurisdicional” 152.
Com relação aos elementos necessários à formação do ato administrativo, costuma-se
assinalar os seguintes: sujeito; forma; objeto (conteúdo); motivo e finalidade.
Mello prefere distinguir entre os elementos e os pressupostos e, nesse sentido, relaciona
como elementos do ato, o conteúdo e a forma. Como pressupostos, faz ainda uma
separação entre pressupostos de existência e pressupostos de validade. Enquadrados na
primeira classificação estão o objeto e a pertinência à função administrativa e, na segunda,
estão o sujeito (pressuposto subjetivo), motivo e requisitos procedimentais (pressupostos
objetivos), finalidade (pressuposto teleológico), causa (pressuposto lógico), e
formalização (pressuposto formalístico)153.
150 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 352. 151 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional Administrativo, p. 122. 152 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional Administrativo, p. 122-123. 153 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 358-377.
De qualquer maneira, pese a considerar esta especificação dos elementos e pressupostos,
far-se-á uma breve exposição dos elementos conforme a divisão habitualmente utilizada,
visando-se, apenas, uma noção geral a esse respeito.
Assim sendo, tem-se como sujeito, o autor do ato; aquele que detém os poderes jurídico-
administrativos necessários para produzi-lo. Doutrinadores como Moraes referem-se a
este elemento como agente competente ou competência, referindo-se a que o ato
administrativo somente será válido se editado por autoridade do Poder Público com
atribuição previamente fixada em lei154; Como forma, entende-se o revestimento externo
do ato: sua exteriorização. Como objeto, a disposição jurídica expressada pelo ato: o que
ele estabelece (segundo Mello, correto seria denominá-lo conteúdo). Como motivo, a
situação objetiva que autoriza ou exige a prática do ato. E, finalmente, como finalidade, o
bem jurídico a que o ato deve atender155.
Referente à classificação dos atos administrativos, salienta-se que estes podem ser objeto
de inúmeras classificações, de acordo com o critério em função do qual sejam agrupados.
Entretanto, a classificação dos atos administrativos que merece atenção, tendo em vista a
possibilidade de controle desses atos, através das diferentes formas que serão
apresentadas no capítulo seguinte, é a que se refere ao grau de liberdade que possui o seu
emissor para expedi-los. Desse modo, tem-se: atos administrativos discricionários e atos
administrativos vinculados.
3.2.1 Atos vinculados e atos discricionários
Os atos administrativos vinculados dependem da ocorrência de todos os pressupostos
previstos em lei. Trata-se, segundo Moraes, da chamada vontade objetiva da
Administração, inexistindo, portanto, qualquer vontade subjetiva da Administração na
formação do ato, vez que sua atuação é vinculada à ocorrência dos pressupostos fáticos.156
154 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional Administrativo, p. 127. 155 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 358. 156 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional Administrativo, p. 132.
Para Mello, os atos vinculados são aqueles “que a Administração pratica sem margem
alguma de liberdade para decidir-se, pois a lei previamente tipificou o único possível
comportamento diante da hipótese prefigurada em termos objetivos” 157.
Estes atos são inteiramente passíveis de exame pelo juiz, já que sua conformação
encontra-se estritamente regulada por lei, “único aspecto em que o Judiciário, em tese,
poderia intervir no que se refere à apreciação da conduta do administrador público” 158.
Por esta razão, o problema central reside no controle da atividade discricionária da
Administração Pública, pois esta pressupõe uma liberdade de atuação frente à lei.
Os atos administrativos discrionários, que para Mello melhor se denominam atos
praticados no exercício de competência discrionária, são aqueles “que a Administração
pratica dispondo de certa margem de liberdade para decidir-se, pois a lei regulou a
matéria de modo a deixar campo para uma apreciação que comporta certo
subjetivismo” 159.
Estes, como se disse, pressupõem uma liberdade maior de agir. Neste caso,
a lei, apesar de estabelecer regramentos básicos para a edição de determinado ato administrativo, concede de modo explícito ou implícito, maior liberdade de escolha ao administrador, permitindo à Administração Pública uma atuação impregnada de vontade subjetiva160.
A diferença nuclear, conforme Mello, esta em que nos atos vinculados a Administração
não dispõe de liberdade alguma, porquanto “a lei já regulou antecipadamente em todos os
aspectos o comportamento a ser adotado”, ao passo em que n os atos discrionários
a disciplina legal deixa ao administrador certa liberdade para decidir-se em face das circunstâncias concretas do caso, impondo-lhe e simultaneamente facultando-lhe a utilização de critérios próprios para avaliar ou decidir quanto ao que lhe pareça ser o melhor meio de satisfazer o interesse público que a norma legal visa realizar161.
Segundo esclarece, discricionariedade refere-se à liberdade dentro da lei, nos limite da
norma legal, e a define como:
157 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 389. 158 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade Administrativa no Estado Constitucional de Direito, p. 23. 159 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 389. 160 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional Administrativo, p. 132. 161 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 394.
a margem de liberdade conferida pela lei ao administrador a fim de que este cumpra o dever de integrar com sua vontade ou juízo a norma jurídica, diante do caso concreto, segundo critérios subjetivos próprios, a fim de dar satisfação aos objetivos consagrados no sistema legal162.
Reforça Moraes, que o poder discricionário das autoridades administrativas consiste no
poder de escolher entre duas ou mais decisões ou dois ou mais comportamentos
igualmente conformes à legalidade. A Administração deve total obediência à Constituição
e à legalidade, pois “discrionariedade administrativa não se confunde com arbitrariedade
administrativa” 163.
Neste sentido, Mello esclarece que “ao agir arbitrariamente o agente estará agredindo a
ordem jurídica, pois terá se comportado fora do que lhe permite a lei”. Se u ato seria ilícito
e, por conseguinte, passível de correção judicial. De outro modo,
ao agir discricionariamente o agente estará, quando a lei lhe outorga tal faculdade (que é simultaneamente um dever), cumprindo a determinação normativa de ajuizar sobre o melhor meio de dar satisfação ao interesse público por força da indeterminação legal quanto ao comportamento adequado à satisfação do interesse público no caso concreto164.
Portanto, a liberdade que a norma confere em seu mandamento ao administrador ao lhe
atribuir alternativas de conduta, não é outorgada em seu proveito ou para que faça dela o
uso que bem entenda. Ao contrário, “a discrionariedade existe, por definição, única e tão-
somente para proporcionar em cada caso a escolha da providência ótima, isto é, daquela
que realize superiormente o interesse público almejado pela lei aplicada” 165.
A esse respeito, ou seja, acerca da discricionariedade na atividade administrativa, tratar-
se-á ainda no próximo capítulo, no tópico que versa sobre “o controle juris dicional da
atividade administrativa discricionária”.
Na seqüência, serão abordados os princípios consagrados na Constituição Federal de 1988
relacionados à Administração Pública, os quais representam formas de proteção da
posição jurídica do administrado frente ao Estado e impedem as arbitrariedades dos
poderes públicos.
162 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 396. 163 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional Administrativo, p. 132-133. 164 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 396. 165 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 400.
3.3 OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
Com a proclamada normatividade dos princípios (onde se conjugou as regras e os
princípios como espécies do gênero norma) e a entrada dos princípios no corpo das
Constituições, elevando-os à categoria de princípios constitucionais, conforme estudado
no primeiro capítulo, chega-se a uma tendência que conduz à valoração e eficácia dos
princípios como normas-chave de todo o sistema jurídico.
Ao se lhes retirar o conteúdo inócuo de programaticidade, mediante o qual se costumava
neutralizar a eficácia das Constituições frustrando, por conseguinte, as garantias
solenemente proclamadas, restabeleceu-se o equilíbrio e a essencialidade de um sistema
jurídico legítimo.
Assim sendo, também os princípios que regem a atividade da Administração Pública
foram incorporados ao texto constitucional, tornando-se o fundamento da atuação
administrativa, regendo toda conduta emanada do Poder Público.
Luiz Henrique Cademartori afirma, neste sentido, que
na esfera do Direito Público, certos princípios assumem a missão de não somente compensar a desigualdade que deriva da posição jurídica do particular frente ao Estado, mas também são formas de proteção tendentes a impedir as arbitrariedades dos poderes públicos que ocorrem com uma certa freqüência166.
Estes princípios, também chamados “princípios básicos da Administração Pública” estão
previstos no art. 37, caput, da Constituição Federal, com redação dada pela Emenda
Constitucional n° 19, de 04 de junho de 1998, quais sejam: legalidade, impessoalidade,
moralidade, publicidade e eficiência.
É de se ressaltar, que esse dispositivo constitucional não esgota em si todos os princípios
jurídicos que informam a atuação administrativa. Destarte, são também princípios que
informam a atividade da Administração Pública, conforme Lazzarini,
o da preponderância do interesse público sobre o interesse particular, o da indisponibilidade do interesse público, o da proporcionalidade, o da continuidade, o da presunção de legalidade e veracidade, o da auto-executoriedade, o da autotutela administrativa, além de tantos outros (...)167
166 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade Administrativa no Estado Constitucional de Direito, p. 109-110. 167 LAZZARINI, Álvaro. Temas de Direito Administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 57.
Para Mello, até mesmo estes princípios não elencados no caput do art 37 da Constituição,
merecem consagração constitucional,
uns, por constarem expressamente da Lei Maior, conquanto não mencionados no art 37, caput; outros, por nele estarem abrigados logicamente, isto é, como conseqüências irrefragáveis dos aludidos princípios; outros, finalmente, por serem implicações evidentes do próprio Estado de Direito e, pois, do sistema constitucional como um todo168.
Sem a pretensão de esgotar o tema, convém discorrer, ainda que simplificadamente,
acerca desses princípios constitucionais que informam a atividade administrativa,
incluindo-se nessa explanação, os elencados no art. 37, caput e os princípios da
razoabilidade e proporcionalidade, os quais mantém estreita ligação com o controle da
atividade administrativa do Estado.
Neste norte, tem-se o princípio da legalidade, princípio capital para a configuração do
regime jurídico-administrativo, previsto nos artigos 5°, II, 37, caput, e 84, IV da
Constituição Federal, que tradicionalmente era aplicado de forma mais rigorosa
justamente na Administração Pública, como no entendimento Moraes,
o administrador público somente poderá fazer o que estiver expressamente autorizado em lei e nas demais espécies normativas, inexistindo incidência de sua vontade subjetiva, pois na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza169.
No entanto, está é a percepção do princípio da legalidade típica do Estado Liberal,
conforme explicitado no primeiro capítulo. Com o advento do Estado Constitucional de Direito,
operou-se uma reformulação deste princípio. A principal inovação contida na fórmula do Estado
Constitucional refere-se exatamente à posição da lei que, “pela primeira vez na época moderna,
vem submetida a uma relação de adequação e, portanto, de subordinação, a um estrato mais alto
de direito estabelecido pela Constituição” 170.
Assim sendo, o princípio de legalidade passou a ser entendido como fonte jurídica tanto
dos modelos de legalidade como dos modelos de legitimação, em que a lei condiciona a
168 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 86. 169 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional Administrativo, p. 99. 170 ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Ley, derechos, justicia, p. 34. Original: “ por primera vez en la época moderna, viene sometida a una relación de adecuación, y por tanto de subordinación, a un estrato más alto de derecho establecido por la Constitución”.
determinados conteúdos substanciais, determinados por uma instância superior, a
legitimidade de qualquer poder por ela instituído.
Por sua vez, o princípio da impessoalidade traduz a idéia de que “a Administração tem
que tratar a todos os administrados sem discriminações, benéficas ou detrimentosas”. De acordo
com este princípio, favoritismos ou perseguições, simpatias ou animosidades pessoais, políticas
ou ideológicas não podem interferir na atuação administrativa. De acordo com Mello, este
princípio seria o próprio princípio da igualdade ou isonomia171
O princípio da moralidade indica que os agentes públicos devem atuar na conformidade
de princípios éticos. Compreende, em seu âmbito, os princípios da lealdade e boa-fé, pelos quais
a Administração deverá proceder em relação aos administrados com sinceridade e lhaneza, sendo
proibido qualquer comportamento eivado de malícia, produzido de maneira a confundir ou
dificultar o exercício de direitos por parte do cidadão172.
Moraes afirma que este princípio representa um vetor da atuação administrativa, não
bastando ao administrador o estrito cumprimento da legalidade, devendo ele, no exercício da
função pública, respeitar os princípios de razoabilidade e justiça173.
O princípio da publicidade está consagrado no dever do administrador de manter plena
transparência em seus comportamentos. Na esfera administrativa “faz -se pela inserção do ato no
Diário Oficial ou por edital afixado no lugar próprio para divulgação de atos, para conhecimento
do público em geral e, conseqüentemente, início da produção de seus efeitos” 174, somente
podendo ser excepcionada a publicidade, quando o interesse público assim determinar, nos
termos do art. 5°, XXXIII da Constituição.
O princípio da eficiência foi acrescentado aos princípios constitucionais da
Administração Pública pela Emenda Constitucional n°19/98. Para Mello apresenta-se
“juridicamente tão fluido e tão difícil controle ao lume do direito, que mais parece um simples
adorno agregado ao art. 37” 175.
Pode-se entendê-lo como aquele princípio que impõe à Administração
a persecução do bem comum, por meio do exercício de suas competências de forma imparcial, neutra, transparente, participativa, eficaz, sem burocracia, e sempre em busca
171 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p 104. 172 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p 109. 173 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional Administrativo, p.101. 174 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional Administrativo, p. 104. 175 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 112.
da qualidade, primando pela adoção dos critérios legais e morais necessários para a melhor utilização possível dos recursos públicos, de maneira a evitar desperdícios e garantir maior rentabilidade social176.
Dentre os princípios que regem a atividade administrativa, dois deles possuem estreita
relação com as atividades discricionárias, cuja inobservância acarreta a ilegitimidade das
condutas, sendo, por conseguinte, jurisdicionalmente invalidáveis. São eles: o princípio
da razoabilidade e o princípio da proporcionalidade.
Segundo Luiz Henrique Cademartori, estes princípios operam como balizadores do
controle jurisdicional sobre a atuação discricionária estatal177.
Como princípio da razoabilidade, tem-se
aquele que exige proporcionalidade, justiça e adequação entre os meios utilizados pelo Poder Público, no exercício de suas atividades (...) e os fins por ela almejados, levando-se em conta critérios racionais e coerentes178.
De outra maneira, mais bem se entende com este princípio, que
a Administração, ao atuar no exercício de discrição, terá de obedecer a critérios aceitáveis do ponto de vista racional, em sintonia com o senso normal de pessoas equilibradas e respeitosa das finalidades que presidiram a outorga da competência exercida179.
O fato de a lei conferir ao administrador certa margem de discrição, característica das
atividades administrativas discricionárias, não significa que lhe haja outorgado o poder de agir
como bem entenda, ao sabor de seus humores e paixões, nem que liberou a Administração para
manipular a regra de Direito de maneira a obter dela efeitos não pretendidos nem assumidos pela
lei aplicada. Significa, sim, que a lei lhe deferiu o encargo de adotar, ante a diversidade de
situações a serem enfrentadas, a providência mais adequada a cada qual delas, visando à obtenção
da medida ideal, que atenda de modo perfeito à finalidade da lei180.
Por fim, tem-se o princípio da proporcionalidade, o qual enuncia a idéia de que
176 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional Administrativo, p. 108. 177 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade Administrativa no Estado Constitucional de Direito, p. 113. 178 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional Administrativo, p. 114. 179 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 99. 180 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 99.
as competências administrativas só podem ser validamente exercidas na extensão e intensidade proporcionais ao que seja realmente demandado para cumprimento da finalidade de interesse público a que estão atreladas181.
Por conseguinte, ficam maculados de ilegitimidade aqueles atos cujos conteúdos excedam
o necessário para alcançar o objetivo que justifica o uso da competência, posto que superam os
limites que naquele caso lhes correspondiam182.
Mello esclarece que o princípio da proporcionalidade é uma faceta do princípio da
razoabilidade, e que recebe destaque próprio “para que se tenha maior visibilidade da fisionomia
específica de um vício que pode surdir e entremostrar-se sob esta feição de desproporcionalidade
do ato” 183.
Com base nesse mesmo entendimento, Luiz Henrique Cademartori, explica que “tanto a
razoabilidade como a proporcionalidade, são padrões, não somente limitadores, como também de
modulação das liberdades individuais e direitos coletivos ou ainda difusos” 184.
Feita essas considerações acerca dos princípios constitucionais que regem a atuação
administrativa, peças chaves do Estado Constitucional de Direito, e após a caracterização do
Direito Administrativo e da atividade administrativa em geral, passar-se-á, no capítulo seguinte,
ao estudo das formas de controle desta atuação, as quais são essenciais à garantia dos direitos e
interesses dos cidadãos e representam a efetivação dos postulados constitucionais.
181 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p.101. 182 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p.101. 183 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p.101. 184 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade Administrativa no Estado Constitucional de Direito, p. 120.
4 FORMAS DE CONTROLE DA ATIVIDADE ADMINISTRATIVA
Com o advento do Estado Constitucional de Direito, a atividade pública passa a ser pressuposto
de bem-estar e de efetividade de muitos direitos constitucionalmente reconhecidos. Nesse
sentido, a atividade administrativa apresenta-se como um fator básico de garantia para esses
direitos.
Porém, embora a atuação administrativa seja um fator de garantia de muitos direitos, fala-
se também na garantia frente aos atos da Administração, ou seja, a garantia da posição jurídica do
administrado, que será tratada neste capítulo.
Diante do constante incremento da ação pública, no contexto normativo atual, a
necessidade de controle da Administração se faz cada vez mais peremptória, na medida em que
as práticas desviadas existem de fato. Deste modo, para tornar efetiva sua submissão ao Direito e
à lei, é necessário articular procedimentos de controle que ponham em prática os princípios
constitutivos do Estado Constitucional.
Uma das características mais relevantes do direito administrativo é justamente seu caráter
garantidor. Nas palavras de Montaner:
O testemunho desta nota garantidora do Direito Administrativo é, essencialmente, a possibilidade de recorrer contra as Administrações Públicas perante os Tribunais e que estes, em suas sentenças, possam – se for o caso – anular as decisões administrativas e condenar a Administração185.
Ressalta-se, porém, que esta não é a única forma de garantia e controle da posição do
administrado frente à atuação administrativa. Conforme o mesmo autor, como manifestações
dessa garantia tem-se:
a obrigada submissão da atuação administrativa a um rigoroso procedimento de elaboração das suas decisões; o obrigado trâmite de audiência ao interessado nas decisões que o afetam; a submissão ao princípio de igualdade nas técnicas de seleção de seus funcionários; as técnicas de controle do gasto público; o sistema de responsabilidade administrativa, etc186.
185 MONTANER, Luis Cosculluela. Manual de Derecho Administrativo I, p. 43. Original: “ El testigo de esta nota garantizadora del Derecho Administrativo es, esencialmente, la posibilidad de recurrir contra las Administraciones públicas ante los Tribunales y que éstos, en sus sentencias, puedan – en su caso – anular las decisiones administrativas y condenar la Administración”. 186 MONTANER, Luis Cosculluela. Manual de Derecho Administrativo I, p. 43. Original: “ la obligada sumisión de la actuación administrativa a un riguroso procedimiento de elaboración de sus decisiones; el obligado trámite de audiencia al interesado en las decisiones que le afectan; la sumisión al principio de igualdad en las técnicas de
Segundo Enterría187, essas garantias que permitem a defesa dos direitos e interesses
individuais, ou seja, que tratam de assegurar a submissão da Administração ao Direito e de tornar
efetivo e operante o princípio de legalidade, podem ser divididos em três círculos.
O primeiro desses círculos de garantias se refere ao procedimento administrativo, na
medida em que supõe que a atividade da Administração deve canalizar-se obrigatoriamente
através de limites determinados como requisito mínimo para que possa ser qualificada de
atividade legítima188.
No Brasil, regulando o processo administrativo189 e “visando, em especial, à proteção dos
direitos dos administrados e ao melhor cumprimento dos fins da Administração” 190, encontra-se a
Lei n° 9.784 de 29 de janeiro de 1999.
Embora estabeleça regras básicas sobre o processo administrativo no âmbito da
Administração Federal, os preceitos dessa lei aplicam-se também aos órgãos dos Poderes
Legislativo e Judiciário da União, quando no desempenho de função administrativa.
O segundo círculo de garantias considerado por Enterría, seria o sistema de recursos
contra os atos e disposições emanadas da Administração, posto que permite aos administrados
reagirem contra os atos e disposições lesivas aos seus interesses e obter, eventualmente, sua
anulação, modificação ou reforma191.
Por último, e segundo Enterría o mais importante, estão os Juízes e Tribunais
pronunciarem-se definitivamente sobre a legalidade da atuação administrativa, bem revisando a
posteriori dita atuação e anulando, se for o caso, aqueles atos administrativos e disposições
generalizáveis que sejam desconformes com o ordenamento jurídico, através dos correspondentes
recursos contencioso-administrativos, bem pondo freio pela via interdictal àquelas atuações da
Administração que constituam vias de fato192.
selección de sus funcionarios; las técnicas de control del gasto público; el sistema de responsabilidad administrativa, etc.”. 187 ENTERRÏA, Eduardo García y FERNÄNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de Derecho Administrativo II. Octava edición, Civitas Ediciones, S. L., Madrid, 2002, p. 442. 188 ENTERRÏA, Eduardo García y FERNÄNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de Derecho Administrativo II, p. 442. 189 Neste trabalho, serão consideradas sinônimas as expressões “processo administrativo” e “procedimento administrativo”. 190 BRASIL. Lei n° 9.784 de 29 de janeiro de 1999. Disponível em: <http://www.stf.gov.br>, acesso em: 06 mai 04. 191 ENTERRÏA, Eduardo García y FERNÄNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de Derecho Administrativo II, p. 442. 192 ENTERRÏA, Eduardo García y FERNÄNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de Derecho Administrativo II, p. 442.
Esse terceiro círculo de garantias refere-se ao controle externo da atividade administrativa, o
qual, no ordenamento jurídico brasileiro, é exercido também pelo Poder Legislativo, com enorme
auxílio dos Tribunais de Constas, através das competências inovadoras que lhe foram atribuídas
pela Constituição Federal de 1988.
Montaner fala da existência de:
outros muitos controles da atuação da Administração Pública que, reflexamente, também têm um significado de garantia para o cidadão, enquanto perseguem a total adequação da atuação administrativa ao ordenamento jurídico que a regula193.
Nesse sentido, faz referência, no plano político, ao fundamental controle do Parlamento sobre a
Administração Pública através do Governo que a dirige; no âmbito interno da própria
Administração, às distintas técnicas de inspeção e controle; à garantia procedimental (à qual
Enterría reservou um dos três círculos de garantias da posição jurídica do administrado); e, por
fim, aos direitos fundamentais que fazem valer suas pretensões no plano político – procedimentos
eleitorais, partidos políticos, direitos de manifestação, expressão etc.
Contudo, pese a considerar todas estas formas de controle da atuação administrativa como
garantias efetivas para o cidadão, seguir-se-á o panorama de controle da Administração
Pública elaborado por Celso Antônio Bandeira de Mello, o qual, segundo ele, pode ser
dividido em: controle interno e controle externo194.
4.1 CONTROLE INTERNO
O controle interno a que está sujeita a Administração Pública, direta, indireta ou
fundacional, representa o controle exercido por órgãos da própria Administração, ou seja, por
integrantes do Poder Executivo195.
Em relação às entidades da Administração indireta e fundacional, ademais dos controles
externos, conforme esclarece Mello, haveria um duplo controle interno: aquele efetuado por
193 MONTANER, Luis Cosculluela. Manual de Derecho Administrativo I, p. 471. Original: “ otros muchos controles de la actuación de la Administración Pública que, reflejamente, también tienen un significado de garantía para el ciudadano, en cuanto persiguen la total adecuación de la actuación administrativa al ordenamiento jurídico que la regula”. 194 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 827-840. 195 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 827.
órgãos que lhe compõem a intimidade e aos quais compete esta função e aquele outro procedido
pela própria Administração direta196.
O assunto conduz à questão da descentralização e desconcentração, e suas
particularidades em relação ao controle interno da atuação administrativa.
Entende-se que a desconcentração consiste em meras distribuições internas de plexos de
competência, ou seja, se dá quando o Estado atua diretamente por meio dos seus órgãos, das suas
unidades, que são simples repartições interiores de sua pessoa e que por isso dele não se
distinguem197.
De forma diversa, a descentralização se caracteriza pela transferência, por parte do
Estado, do exercício de atividades que lhe são pertinentes, bem para particulares, bem para
pessoas auxiliares criadas pelo próprio Estado. Logo, a atividade administrativa exercida por uma
dessas formas será descentralizada198.
Percebe-se, portanto, que a desconcentração está sempre referida a uma só pessoa,
havendo apenas distribuição de competências na sua intimidade, enquanto que a descentralização
pressupõe pessoas jurídicas diversas.
Assim sendo, quando há desconcentração, fala-se em poder hierárquico, ou em hierarquia,
que pode ser definida como “vínculo de autoridade que une órgãos e agentes, através de escalões
sucessivos, numa relação de autoridade” 199.
“Os poderes do hierarca conferem-lhe uma contínua e permanente autoridade sobre toda
a atividade administrativa dos subordinados”, poderes estes que consistem em: a) poder de
comando, b) poder de fiscalização, c) poder de revisão, d) poder de punir, e) poder de dirimir
controvérsias, e f) poder de delegar200.
Essa sistematização hierárquica, expressada na desconcentração da atividade
administrativa, representa uma forma de controle interno desta atuação, vez que ao
hierarca cumpre comandar e fiscalizar a atividade dos subalternos, revisar os atos
praticados, dirimir controvérsias e, inclusive, punir os subalternos faltosos.
Por sua vez, o controle exercido quando da existência de descentralização, consiste no
poder de que dispõe a Administração Central de influir sobre a pessoa descentralizada.
196 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 827. 197 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 139. 198 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 139. 199 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 140. 200 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 140-141.
O texto constitucional dispõe expressamente quanto ao controle interno da Administração
Pública, em seu artigo 74, o qual prescreve que, assim como os demais poderes, o Executivo
manterá, de forma integrada, sistemas de controle interno com a finalidade de: avaliar o
cumprimento das metas previstas no plano plurianual, a execução dos programas de governo e
dos orçamentos da união; comprovar a legalidade e avaliar os resultados quanto à eficácia e
eficiência da gestão orçamentária, financeira e patrimonial; exercer o controle das operadoras de
crédito, avais e garantias, bem como dos direitos e haveres da União; e apoiar o controle externo
no exercício de sua missão institucional.
Regulamentando esta forma de controle, encontra-se: o Decreto-lei federal 200 de 25.2.67
que tem como principais objetivos assegurar, em cada Ministério, a observância da legislação e
dos programas de Governo, coordenar as atividades dos distintos órgãos, avaliar a atuação dos
órgãos supervisionados, fiscalizar a aplicação dos recursos públicos e sua economicidade; a Lei
4.320 de 17.3.64 que estabelece as normas gerais de Direito Financeiro para elaboração e
controle de orçamentos e balanços; e a Lei Complementar 101 de 4.5.2000, conhecida como Lei
de Responsabilidade Fiscal201, tratando de matéria financeira202.
4.2 CONTROLE EXTERNO
Controle externo da Administração Pública é, por conseguinte, aquele efetuado por órgãos
alheios à Administração, compreendendo: o controle legislativo, que pode ser dividido em
controle parlamentar direto e controle exercido pelo Tribunal de Contas; e o controle
jurisdicional, como se verá.
4.2.1 Controle Legislativo
Conforme salientado, o controle da Administração Pública exercido pelo Poder Legislativo pode
ser exercido através do tradicional controle parlamentar, exercido pelo Congresso Nacional, e
também pelos Tribunais de Contas, através das competências que lhe foram atribuídas pela
Constituição Federal de 1988.
201 Muito embora seja questionada a sua constitucionalidade em alguns aspectos. 202 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 829.
Este controle é exercido por meio das fiscalizações político-administrativas e financeiro-
orçamentárias. Assim sendo, por meio de fiscalização político-administrativa, o Poder
Legislativo tem a possibilidade de
questionar os atos do Poder Executivo, tendo acesso ao funcionamento de sua máquina burocrática, a fim de analisar a gestão da coisa pública e, conseqüentemente, tomar as medidas que entenda necessárias203.
Já por meio da fiscalização financeiro-orçamentária, o Legislativo poderá exercer
fiscalização contábil, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da Administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, além dos sistemas internos de cada Poder204.
Moraes ressalta que o exercício dessa função constitucional típica do Congresso Nacional
abrange, além das contas das entidades públicas no âmbito dos Poderes de Estado e do Ministério
Público, também
as contas das pessoas físicas ou entidades públicas ou privadas que utilizem, arrecadem, guardem, gerenciem ou administrem dinheiro, bens, valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária205.
4.2.1.1 Controle parlamentar direto
Como controle parlamentar direto entender-se-á, a fim de sistematizar este estudo, o
controle exercido diretamente pelo Congresso Nacional, em virtude de que o controle pelo
Tribunal de Contas será analisado separadamente.
Neste norte, destaca-se como competência exclusiva do Congresso Nacional, conforme o
artigo 49, inciso X da Constituição Federal de 1988, “fiscalizar e controlar, diretamente, ou por
qualquer de suas Casas, os atos do Poder Executivo, incluídos os da administração indireta”.
De acordo com Mello, o controle parlamentar direto será exercido através de: a) sustação
de atos e contratos do Executivo (art. 49, V, CF); b) convocação de Ministros e requerimentos de
informações (art. 50, CF); recebimento de petições, queixas e representações dos administrados
(art. 58, §2°, IV, CF) e convocação de qualquer autoridade ou pessoa para depor (art. 58, V, CF); 203 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional Administrativo, p. 249. 204 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional Administrativo, p. 250. 205 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional Administrativo, p. 250.
c) Comissões Parlamentares de Inquérito, com poderes de investigação próprios das autoridades
judiciais (art. 58, §3/, CF); d) autorizações ou aprovações do Congresso necessárias para atos
concretos do Executivo (art. 49, incisos I, XII, XIII, XVI e XVII, CF); e) poderes controladores
privativos do Senado (art. 52, incisos III a IX, CF); f) julgamento das contas do Executivo (art.
49, IX, CF; g) suspensão e destituição (impeachment) do Presidente ou de Ministros, pela prática
de crimes de responsabilidade (Lei 1.079/50)206.
4.2.1.2 Controle pelo Tribunal de Contas
A Constituição Federal de 1988 atribui aos Tribunais de Contas, competências
inovadoras. Os artigos 70 e 71 estabelecem estas competências, declarando que o controle
externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da
União.
Ressalta -se que as disposições constitucionais referentes ao Tribunal de Contas da União
aplicam-se também aos Tribunais de contas dos Estado e do Distrito Federal, bem como aos
Tribunais e Conselhos de Contas dos Municípios, no que couber, por disposição expressa do
artigo 74.
A regras de compostura e composição do Tribunal de Contas da União estão elencadas no
artigo 73, donde se extrai que será integrado por nove Ministros que atendam aos requisitos
prescritos no §1°, escolhidos na forma do §2°. Terão as mesmas garantias, prerrogativas,
impedimentos, vencimentos e vantagens dos Ministros do Superior Tribunal de Justiça, conforme
o §3°, gozando, portanto, de vitaliciedade.
Dentre as competências elencadas no artigo 71, está a de apreciar as contas prestadas
anualmente pelo Presidente da República (inciso I). No entendimento de Mello, contas do
Presidente são,
além dos documentos relativos à gestão anual que este é obrigado a exibir (...) para análise meramente dos aspectos formais, as que concernem aos atos ou indevidas omissões próprios e específicos do Chefe do poder Executivo, de responsabilidade pessoal dele, vale dizer, que lhe sejam direta e pessoalmente imputáveis e que, estas sim, terão de passar por um crivo substancial207.
206 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 830-832. 207 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 834.
No inciso II do artigo 71, tem-se a competência do Tribunal de Contas da União para julgar as
contas dos administradores (da Administração direta, indireta e fundacional) e demais
responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos, bem como daqueles que derem causa a
perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público. Dispõe, ainda,
de outras tantas competência, dispostas nos incisos III a XI do artigo 71.
Convém destacar, de modo inclusivo, a possibilidade de o Tribunal de Contas
aplicar sanções legais aos administradores e demais responsáveis pela gestão de recursos públicos, diante de ilegalidades verificadas, infrações a normas de administração financeira ou por dano causado ao erário.
Inclusive, quando o responsável for julgado em débito, além do ressarcimento a que está obrigado, poderá o Tribunal aplicar-lhe multa de até 100% do valor do dano causado aos cofres públicos208.
Gustavo Fontana Pedrollo entende que a atividade de controle do Tribunal de Contas e do
Poder Legislativo em si é muito semelhante (materialmente) à função jurisdicional, pois serve de
parâmetro para a atuação da Administração Pública, ou seja, traduz o exercício de adequação das
normas ao caso concreto (juízo concreto de dever-ser) 209.
Pelo exposto, constata-se que o controle da atuação administrativa exercido pelos Tribunais de
Contas, em virtude das inúmeras competências que lhe foram atribuídas pela Constituição, é,
atualmente, uma forma de controle cada vez mais efetiva, proporcionando maior garantia para os
interesses dos cidadãos.
Na seqüência, depois de analisadas as formas de controle da Administração Pública
exercidas pelo Poder Legislativo através do controle parlamentar direto e do controle pelos
Tribunais de Contas, passar-se-á ao estudo do controle jurisdicional, compreendido no controle
externo da atividade administrativa.
4.2.2 Controle Jurisdicional
208 Tribunal de Contas de Santa Catarina. Sanções. Disponível em: http://www.tce.sc.gov.br/site/instituicao/instituicao/sancoes.htm, acesso em: 02 jun 04. 209 PEDROLLO, Gustavo Fontana. Controle Externo da Administração Pública a partir dos Princípios Constitucionais. In: Fórum de Controle Externo da Administração Pública. Florianópolis: TCE/SC, 2004.
Para Enterría, a possibilidade de os Juízes e Tribunais pronunciarem-se definitivamente
sobre a legalidade da atuação administrativa constitui o mais importante círculo de garantias da
posição do administrado210.
Do mesmo juízo compartilha Mello, que afirma que “dentre todos os controles o mais
importante, evidentemente, é o que se efetua, a pedido dos interessados, por meio do Poder
Judiciário” 211.
Destaca-se que a função jurisdicional é um dos pontos chave da teoria do garantismo, já
que frente aos outros poderes, o judicial está precisamente caracterizado por sua exclusiva
vinculação ao direito, à tutela dos direitos e interesses lesionados.
No contexto normativo do Estado Constitucional de Direito, a função jurisdicional se
converte em guardiã por excelência do direito em sua expressão constitucional. Segundo Peña
Freire, dois são os vetores através dos quais se opera a garantia jurisdicional:
mediante a correção jurídica do ordenamento conforme o seu sentido constitucional e a garantia de uma solução a partir do direito para cada conflito entre direito e interesse legítimo que se planteie212.
Pelo fato de o Brasil ter adotado, como sistema administrativo de controle jurisdicional da
atividade administrativa, o sistema de jurisdição única, conforme salientado no terceiro capítulo,
todos os litígios, sejam de natureza administrativa ou de interesse exclusivamente privado, são
resolvidos judicialmente pela Justiça Comum.
Portanto, cabe exclusivamente ao Poder Judiciário decidir, com força de definitividade,
toda questão sobre a adequada aplicação do Direito a um caso concreto, sejam quais forem os
litigantes ou o caráter da relação jurídica contestada213.
Esta prerrogativa está expressa no artigo 5°, inciso XXXV da Constituição Federal de
1988, que prescreve que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão o u
ameaça a direito”.
O controle jurisdicional da atividade administrativa, no direito brasileiro, pode ser feito
por meio de remédios específicos, conforme denominou Cretella Júnior214. Mello chama a
210 ENTERRÏA, Eduardo García y FERNÄNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de Derecho Administrativo II, p. 442. 211 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 826. 212 PEÑA FREIRE, Antonio Manuel. La garantía en el Estado constitucional de derecho, p. 233. Original: “ mediante la corrección jurídica del ordenamiento conforme a su sentido constitucional y la garantía de una solución desde el derecho para cada conflicto entre derecho e interés legítimo que se plantee”. 213 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 836.
esses remédios de medidas judiciais intentáveis para correção da conduta administrativa,
específicas para enfrentar atos ou omissões de “autoridade pública”, elencando as
seguintes: o habeas corpus; o mandado de segurança, individual ou coletivo; o habeas
data; o mandado de injunção, a ação popular, a ação civil pública e a ação direta de
inconstitucionalidade, por ação ou omissão215.
Já na percepção de Moraes, esses “mecanismos essenciais no controle jurisdicional da
transparência, legalidade, moralidade e probidade na gestão da res pública pelo servidor”
seriam: o direito de certidão, direito de petição, habeas data, ação popular, mandado de
segurança e ação civil pública por ato de improbidade administrativa.
Na seqüência, far-se-á uma compilação desses remédios, medidas, mecanismos
específicos de controle da atividade administrativa, abordando, sucintamente, alguns
aspectos característicos.
4.2.2.1 Medidas judiciais para correção da conduta administrativa
O ‘habeas corpus’, previsto no art. 5°, LXVIII, da Constituição, é “um remédio destinado
a tutelar o direito de liberdade de locomoção, liberdade de ir, vir, para e ficar” 216. Como
bem salienta José Afonsa da Silva, não está circunscrito aos casos de constrangimento
corporal, ao contrário,
se estende a todos os casos em que um direito nosso, qualquer direito, estiver ameaçado, manietado, impossibilitado no seu exercício pela intervenção de um abuso de poder ou de uma ilegalidade217.
Sua impetração dispensa a constituição de procurador judicial e prescinde de qualquer
formalidade sempre que, frente às circunstâncias, esta possa ser obstativa de sua ampla
utilização218.
214 CRETELLA JÚNIOR, José. Controle jurisdicional do ato administrativo, p. 340. 215 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 837. 216 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 16 ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 446. 217 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 445. 218 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 837.
O mandado de segurança está contemplado no art. 5°, LXIX e LXX, da Constituição, nas
modalidades individual e coletivo. De acordo com Cretella Júnior, “é o remédio
específico mais eficiente e mais utilizado entre nós (...) para suscitar, perante o Poder
Judiciário, o controle jurisdicional da Administração” 219.
Esse autor reserva todo um capítulo para discorrer sobre este remédio específico de
controle jurisdicional do ato administrativo, face à sua importância, e o define como:
ação civil de conhecimento, de rito sumaríssimo, pela qual todo aquele que, por ilegalidade ou abuso de poder, proveniente de autoridade pública ou de delegado do poder público, sofra violação de direito líquido, certo e incontestável, não amparável por habeas corpus, ou tenha justo receio de sofrê-la, tem o direito de suscitar o controle jurisdicional do ato ilegal editado, ou a remoção da ameaça coativa, a fim de que se devolva, in natura, ao interessado, aquilo que o ato ameaçou tirar ou efetivamente tirou220.
De forma mais resumida, Mello o conceitua como,
a providência sumamente expedita adequada para proteger direito líquido e certo não amparável por habeas corpus e habeas data, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder seja autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições públicas221.
O ‘habeas data’, previsto no art. 5°, LXXII, da Constituição Federal,
é o instrumento processual cabível para assegurar o conhecimento ou a retificação de informações relativas à vida do impetrante constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público222.
Este remédio constitucional tem por objeto, conforme Silva,
proteger a esfera íntima dos indivíduos contra: a) usos abusivos de registros de dados pessoais coletados por meios fraudulentos, desleais ou ilícitos; b) introdução nesses registros de dados sensíveis (assim chamados os de origem racial, opinião política, filosófica ou religiosa, filiação partidária e sindical, orientação sexual etc.); c) conservação de dados falsos ou com fins diversos dos autorizados em lei223.
O Mandado de injunção, instituído no art. 5°, LXXI, da Constituição, apresenta-se como
um meio de controle da inércia do Poder Público em expedir as regras necessárias à
219 CRETELLA JÚNIOR, José. Controle jurisdicional do ato administrativo, p. 341. 220 CRETELLA JÚNIOR, José. Controle jurisdicional do ato administrativo, p. 345-346. 221 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 837. 222 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 838. 223 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 453.
aplicabilidade dos direitos e liberdades constitucionais ou as prerrogativas inerentes à
nacionalidade, à soberania e à cidadania224.
Para Silva, “não importa a natureza do direito que a norma constitucional confere; desde
que seu exercício dependa de norma regulamentadora e desde que esta falte, o interessado
é legitimado a propor o mandado de injunção” 225.
O direito de certidão, previsto no art. 5°, XXXIV, é consagrado como “o direito líquido e
certo de qualquer pessoa à obtenção de certidão para defesa de um direito, desde que
demonstrada a razoabilidade do pedido e seu legítimo interesse” 226.
Serve para obtenção de informações e elementos para instruir a defesa de direitos e para
esclarecimento de situações. No entanto, esta é uma garantia que muitas vezes acaba por
ser realizada através de outro remédio: o mandado de segurança, quando o pedido é
negado ou mesmo quando não é decidido227.
O direito de petição nasceu na Inglaterra, durante a Idade Média, por meio do right of
petition. Está consignado no art. 5°, XXXIV, a, da Constituição, e pode ser definido como
“o direito que pertence a uma pessoa de invocar a atenção dos poderes públicos sobre uma
questão ou uma situação” 228. Constitui uma prerrogativa democrática, de caráter
essencialmente informal, e independe do pagamento de taxa.229.
A ação popular, contemplada no art. 5°, LXXIII, da Constituição,
é o instrumento deferido a qualquer cidadão para anular atos lesivos ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, ou à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural230.
Segundo Mello, esta talvez seja “a única providência judicial realmente temida pelos
administradores”, porquanto, nos termos da Lei 4.717/65 (lei que regula a ação popular),
se a ação for julgada procedente, vindo a ser decretada a invalidade do ato impugnado, a
sentença “condenará ao pagamento de perdas e danos os responsáveis pela sua prática e
os beneficiários dele” 231.
224 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 838-839. 225 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 453. 226 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional Administrativo, p. 251-252. 227 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 453. 228 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 443. 229 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional Administrativo, p. 253. 230 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 839. 231 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 839.
A ação civil pública, aludida no art. 129 da Constituição, o qual se reporta à competência
do Ministério Público232 para promovê-la,
é um instrumento utilizável, cautelarmente, para evitar danos ao meio ambiente, ao consumidor, aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico, paisagístico, ou, então, para promover a responsabilidade de quem haja causado lesão a estes mesmos bens233.
Após esta breve exposição acerca das medidas judiciais intentáveis para correção da
conduta administrativa, passar-se-á à análise do controle da atividade administrativa
discrionária, temática que enseja um estudo mais consistente, vez que permite à
Administração Pública uma atuação impregnada de vontade subjetiva, razão pela qual
emerge certa discussão acerca da possibilidade de controle desta atividade.
4.2.2.2 Controle jurisdicional da atividade administrativa discricionária
Conforme se levantou, a dificuldade de controle da atividade administrativa recai na
atividade discricionária. Isto se dá porque os elementos que constituem os atos
administrativos vinculados vêm determinados pela lei, tendo assim um controle
jurisdicional pleno, já que inexiste vontade subjetiva da Administração em sua edição. De
outro modo, os atos administrativos discricionários possuem uma margem de liberdade
conferida pela própria lei, explícita ou implicitamente, permitindo-lhe a escolha da
conveniência e oportunidade para a decisão do ato234.
A esse respeito, Mello dispõe que,
quando se trata de contrastar a conduta administrativa vinculada com as normas que a presidem, não se propõem dificuldades jurídicas de monta. Quando, todavia, a Administração atuou fundada em norma da qual decorria algum espaço de discrição administrativa, o exame da legitimidade de sua ação pode se tornar tormentoso235.
A problemática acerca da questão incide, verdadeiramente, no alcance do controle
exercido pelo Poder Judiciário em relação a esta atividade discrionária.
232 Convém esclarecer que não somente o Ministério Público é competente para propor Ação Civil Pública. 233 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 840. 234 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional Administrativo, p. 136. 235 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 826.
Os doutrinadores espanhóis Tomás Ramón Fernándes e Eduardo García de Enterría
defendem um tipo de controle jurisdicional intenso da atividade administrativa, inclusive
substitutivo da conduta da autoridade administrativa, baseado em que os conceitos
indeterminados (urgente, necessário, de relevante interesse público), motivadores da
atuação administrativa discrionária, somente apresentam este caráter subjetivo quando
considerados em abstrato236.
Significa dizer que, diante de situações concretas, ou seja, no momento da expedição de
atos que comportem um juízo subjetivo (baseado em conceitos indeterminados), será
sempre possível reconhecer objetivamente qual a conduta adequada, tornando-se unívocos
e objetivos aqueles conceitos inicialmente indeterminados. Sendo assim, caberá ao Poder
Judiciário “interpretar e aplicar a lei enunciadora de tais conceitos a serem invocados na
expedição do ato” 237.
Luiz Henrique Cademartori esclarece que, “nessa linha de entendimento, não existe uma
zona indeterminada ou de incerteza a ser trilhada no momento da expedição de atos
discricionários, por parte do Poder Público” 238.
Mello concorda que, em inúmeros casos, a discrição que havia na norma em abstrato, no
caso concreto deixa de existir, conduzindo uma dada situação concreta, na apreciação de
um ato administrativa discrionário, a uma zona de certeza. Entretanto, para ele, há
também aqueles casos em que este procedimento somente será possível até um certo
ponto, além do qual as dúvidas não podem ser eliminadas, e o juízo subjetivo
administrativo deverá prevalecer, resistindo, nesses casos, a zona de incerteza que confere
a quem expede o ato discricionário, margem de liberdade para fazê-lo com imunidade de
mérito239 frente ao exame judiciário240.
236 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade Administrativa no Estado Constitucional de Direito, p. 132-133. 237 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade Administrativa no Estado Constitucional de Direito, p. 133. 238 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade Administrativa no Estado Constitucional de Direito, p. 133. 239 O Mérito do ato, para Mello, é imune à apreciação do Poder Judiciário, pois representa “o campo de liberdade suposto na lei e que efetivamente venha a remanescer no caso concreto, para que o administrador, segundo critérios de conveniência e oportunidade, decida-se entre duas ou mais soluções admissíveis perante a situação vertente, tendo em vista o exato atendimento da finalidade legal, ante a impossibilidade de ser objetivamente identificada qual delas seria a única adequada”, MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 847-848. 240 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade Administrativa no Estado Constitucional de Direito, p. 134.
Trata-se de avaliar se, no caso concreto, segue existindo aquela margem de discrição
conferida pela lei. Para Mello, discricionariedade existe, de fato, nas hipóteses em que
mais de uma opinião for razoavelmente admissível sobre a medida apropriada para dar a
melhor satisfação ao objetivo da lei241. Nesses casos, o juízo de conveniência e
oportunidade do responsável pela expedição do ato não estará sujeito a exame pelo Poder
Judiciário.
Por outro lado, nos casos em que, em juízo equilibrado, segundo os padrões de
razoabilidade, convenha que determinada providência seja seguramente a melhor ou que
seguramente não o seja, deverá ser reconhecida a inexistência de discricionariedade242.
Nessas hipóteses, o juiz poderá, a instâncias da parte e em face da argumentação por ela
desenvolvida, verificar, em exame de razoabilidade, se o comportamento
administrativamente adotado, inobstante contido dentro das possibilidades in abstracto
abertas pela lei, revelou-se, in concreto, respeitoso das circunstâncias do caso e deferente
para com a finalidade da norma aplicada243.
Em conseqüência desta ponderação, o Judiciário poderá concluir que, naquele caso
específico submetido a seu exame, à toda evidência, a providência adotada era incabível,
face as circunstâncias presentes e a finalidade da lei invocada244.
Na análise da discrionariedade, esse mencionado doutrinador esclarece que a lei confere
ao administrador certa discricionariedade para que seja possível adotar em cada caso
concreto a providência capaz de atender com precisão à finalidade que a inspirou245.
A diversidade de soluções comportadas na regra, conforme esclarece Mello, não significa
que todas elas sejam igualmente adequadas para todos os casos de sua aplicação.
Significa, ao contrário, que a lei considera que algumas delas são adequadas para certos
casos e outras para outros casos246.
Como se vê, Mello admite que caberá ao Judiciário apreciar a legalidade daqueles atos
administrativos que, no caso concreto, não mais comportem uma margem de
discricionariedade. Porém, quando no caso concreto não seja possível identificar-se
241 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 847. 242 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 847. 243 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 846. 244 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 846. 245 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 845. 246 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 846.
apenas uma solução possível, sendo mais de uma opinião razoavelmente admissível sobre
a medida apropriada para dar a melhor satisfação ao objetivo da lei, persistindo, portanto,
discrionariedade, não caberá ao Judiciário contestar a medida utilizada pelo
administrador.
Este entendimento corresponde à doutrina clássica, que entendia que, “quando puramente
discricionário, o ato não poderia ser atingido pelo exame judiciário, ou pelo menos,
naquilo que se chama de mérito administrativo” 247
Conforme esta corrente, na apreciação da existência ou não de discricionariedade no caso
concreto, levar-se-á em conta o princípio da razoabilidade, o qual se constitui em um dos
principais limites à discricionariedade administrativa.
Esse princípio, segundo Maria Sylvia Di Pietro, opera uma relação de adequação jurídica
entre o motivo e o conteúdo do ato administrativo, levando em conta uma finalidade de
interesse público. Assim, a única maneira de comprovar o efetivo atendimento a este
princípio, será o exame da motivação (justificativa formal do motivo) que determinou a
expedição do ato.248
Mello ressalta, ainda, que a discricionariedade administrativa, embora se reconheça sua
verdadeira densidade, consistente numa margem de liberdade e indeterminação conferidas
pela norma. Trata-se, necessariamente, “de um poder demarcado, limitado, contido em
fronteiras requeridas até por imposição racional, posto que, à falta delas, perderia o cunho
de poder jurídico” 249.
Com base nessa corrente tradicional, como forma de localizar os confins da
discricionariedade, utiliza-se “os próprios pressupostos legais justificadores do ato, a
finalidade normativa – ainda que expressos mediante conceitos algo imprecisos – e a
causa do ato” 250.
Porém, num Estado onde não há poderes imunes a um controle e onde a garantia
jurisdicional contra os atos administrativos tende, assim como as outras garantias
jurisdicionais, à tutela dos direitos e interesses dos cidadãos, Luiz Henrique Cademartori
247 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade Administrativa no Estado Constitucional de Direito, p. 22. 248 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988. São Paulo: Atlas, 1991, p. 149. 249 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 855-856. 250 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 856.
afirma que o tipo de controle tradicionalmente exercido sobre a legalidade do ato, ao
decompô-lo estruturalmente nos seus elementos e pressupostos, a fim de verificar se
algum desses requisitos está em desconformidade com a lei, revela-se insuficiente 251.
Assim sendo, numa visão garantista do controle da atividade administrativa discrionária,
outros serão os meios pelos quais se exercerá o controle desta atividade.
4.2.2.2.1 Controle jurisdicional da atividade administrativa discricionária no modelo
garantista
A metodologia de apreciação jurisdicional do ato administrativo, tradicionalmente
utilizada, baseada na decomposição estrutural dos elementos (conteúdo e forma) e
pressupostos (motivo, agente competente, causa, objeto e finalidade) do ato
administrativo para averiguar-se se estão em conformidade com a lei, segundo a teoria
garantista, revela-se incompleta252.
De acordo com a visão garantista, um determinado ato poderá conter todos os requisitos
legais de forma adequada e, no entanto, estar ferindo um direito merecedor de tutela.
Nessa perspectiva, como salienta Luiz Henrique Cademartori, estende-se o âmbito restrito
das regras (leis e atos normativos) para adentrar-se à esfera dos princípios, tidos como
normas que deverão verificar a adequação ou não do ato em questão ao ordenamento
jurídico do Estado Constitucional253.
Nesse sentido, ao se realizar a apreciação judicial de um determinado ato administrativo,
seja qual for seu grau de discricionariedade, não se tratará de constatar a legalidade de
todas as partes do ato para, ao cabo disto, concluir que não há lesão ao Direito. Conforme
esse doutrinador,
deve-se considerar que cada parte componente do ato somente adquire sentido jurídico-normativo quando relacionada logicamente com os demais requisitos que compõem sua
251 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade Administrativa no Estado Constitucional de Direito, p. 149. 252 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade Administrativa no Estado Constitucional de Direito, p. 149. 253 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade Administrativa no Estado Constitucional de Direito, p. 150.
estrutura, através da ação cimentadora dos princípios constitucionais e, portanto, sob um enfoque eminentemente axiológico254.
Assim sendo, a análise a ser feita acerca da legalidade do ato administrativo discricionário
deverá levar em consideração a adequação estrutural desse ato às normas superiores e, de
forma integrada, aos princípios.
Se na doutrina corrente, para que um ato administrativo seja considerado válido basta que
atenda às exigências formais do ordenamento jurídico, o procedimento estabelecido em
normas superiores e os requisitos estabelecidos pela ordem normativa, numa visão
garantista, estes requisitos não são suficientes.
Com o advento do Estado Constitucional de Direito, contexto normativo onde se opera o
garantismo jurídico, os direitos fundamentais passaram a ser reconhecidos como a viga
mestra de todo o sistema jurídico vigente. Logo, o controle dos atos administrativos,
operado através de uma apreciação garantista, não os considerará somente sob a ótica da
estrita legalidade. Ao contrário, um juiz garantista, ao julgar um ato administrativo ainda
que expedido no exercício de certa discrição, deverá observar, “acima de tudo, a
adequação que ele deve ter em relação aos princípios escorados nos direitos fundamentais
e nos respectivos valores morais e políticos que eles traduzem” 255.
Nas palavras de Luiz Henrique Cademartori:
uma análise estrutural do ato administrativo, condizente com a teoria garantista, deverá considerar como elo de conexão lógica e como observação primacial e geral na estruturação do ato administrativo, os princípios e diretrizes constitucionais, orientados por uma concepção axiológica de validade, além de uma concepção procedimental e formal de vigência256.
Nesse passo, a redefinição dos requisitos validade e vigência operada pela Teoria do
Garantismo em relação às normas em geral, explicitada no segundo capítulo deste
trabalho, aplicar-se-á também aos atos administrativos, posto que a acepção tradicional
desses requisitos acarreta uma série de dificuldades quanto à sistemática do controle
jurisdicional sobre esses atos.
254 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade Administrativa no Estado Constitucional de Direito, p. 150. 255 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade Administrativa no Estado Constitucional de Direito, p. 158. 256 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade Administrativa no Estado Constitucional de Direito, p. 151.
O gradativo avanço do controle jurisdicional sobre aspectos dos atos administrativo como
razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, que denotam fundamentalmente valores,
denotam a incompatibilidade do tradicional entendimento de validade que expurgue da
sua concepção qualquer idéia de valoração257.
Pela teoria garantista, à idéia tradicional de validade, acrescenta-se o conceito de vigência.
Assim sendo, os juízos de vigência das normas “assentam sobre bases eminentemente
descritivas, posto que se referem a fatos concretos” 258. Com relação aos juízos de
validade, “por pretenderem verificar processos de adequação valorativa, são portadores de
uma forte carga axiológica” 259.
A concepção juspositivista tradicional, de caráter essencialmente formalista, dá lugar a
novas correntes de pensamento jurídico que observam uma idéia de legalidade em
sentindo amplo, baseado na tríade normativa formada pelas regras, princípios e valores260.
Ante esse atual paradigma, torna-se possível equacionar uma
sistemática garantista de apreciação judicial dos atos administrativos no seu aspecto interno, delimitando nos seus componentes estruturais, os âmbitos da vigência e da validade que conformam o ato, respeitando e adequando-se também aos fatores externos261.
De acordo com esta sistemática,
o ato administrativo será vigente quando sua forma e sujeito competente corresponderem procedimentalmente com o estatuído em normas superiores; e será válido quando o seu motivo, finalidade e causa forem axiologicamente condizentes com os direitos fundamentais262.
257 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade Administrativa no Estado Constitucional de Direito, p. 160. 258 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade Administrativa no Estado Constitucional de Direito, p. 160. 259 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade Administrativa no Estado Constitucional de Direito, p. 160. 260 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade Administrativa no Estado Constitucional de Direito, p. 161-163. 261 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade Administrativa no Estado Constitucional de Direito, p. 163. 262 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade Administrativa no Estado Constitucional de Direito, p. 164-165.
Nesse sentido, deverá ser desenvolvida uma argumentação263 baseada em dispositivos
como os princípios e garantias constitucionais, para dar sustentação à validade axiológica das
normas em geral.
4.2.2.3 Lei de Improbidade Administrativa – forma de controle jurisdicional
Ante todo o exposto, resulta inquestionável a necessidade de acesso cada vez mais amplo
ao Poder Judiciário visando o controle dos atos administrativos. Fábio Medina Osório ressalta
que “há de se ampliar o controle jurisdicional da Administração Pública, mesmo porque é através
desse controle que se chega, eventualmente, a caminhos de combate rigoroso da improbidade
administrativa” 264.
Com este propósito, encontra-se a Lei 8.429, de 02 de junho de 1992, conhecida como Lei
de Improbidade Administrativa, que prevê a competência das autoridades judiciárias para aplicar
sanções aos agentes públicos, observado o devido processo legal.
Através da aplicação destas sanções, impostas no âmbito de um processo judicial, a Lei de
Improbidade Administrativa visa
aprimorar o controle de qualidade da esfera administrativa, já realizada pela lei penal sancionadora dos crimes contra a Administração Pública. Assim, ao lado daquelas penas privativas de liberdade previstas no estatuto repressivo, o dispositivo em pauta alinha potente reprimenda pecuniária e a própria suspensão dos direitos políticos do agente público que afronta os princípios administrativos265.
Esta lei consagra proteção às chamadas relações de sujeição especial, em que os agentes
públicos estão subordinados a normas específicas, a sistemas estruturados no âmbito da própria
Administração Pública. Praticado um fato ilícito atentatório aos princípios que presidem a
263 Nesse sentido, de acordo com as teorias jurídicas contemporâneas, chamadas, por alguns, de pós-positivistas, a ponderação e aplicação de princípios constitucionais de cunho jusfundamental remetem-se a uma teoria da argumentação jurídica da qual são exemplos os já mencionados trabalhos de autores como Alexy (Teoría de los Derechos Fundamentales) Dworkin (Levando os Direitos a Sério; Uma Questão de Princípio; O Império do Direito). 264 OSÓRIO, Fábio Medina. Improbidade Administrativa. Observações sobre a Lei 8.429/92. Porto Alegre: Síntese, 1997, p. 191. 265 PAZZAGLINI FILHO, Marino; ROSA, Márcio Fernando Elias e FAZZIO JR., Waldo. Improbidade Administrativa. Aspéctos Jurídicos da Defesa do Patrimônio Público. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 1999, p. 124.
Administração Pública, nasce ao Estado o poder-dever de punir o infrator, legitimando-se o
exercício desse poder por vários e, eventualmente, simultâneos caminhos processuais,
procedimentais e materiais.
Em um primeiro momento, a configuração de uma típica infração administrativa autoriza
a Administração Pública ao exercício de seu específico poder punitivo, através de um
procedimento administrativo disciplinar. De outro lado, nasce, ainda, ao Estado um poder
punitivo judicial, uma vez que os fatos se enquadrem na categoria de atos de improbidade
administrativa. Destaca-se que o exercício da pretensão punitiva pela Administração Pública não
vincula o Poder Judiciário, negativa ou positivamente.
É incabível pensar que a Lei 8.429/92 necessite de processo criminal para aplicação de
suas sanções, visto que o próprio legislador, no âmbito de sua soberana discricionariedade, previu
o veículo da ação civil de improbidade para imposição das conseqüências jurídicas decorrentes
dos atos de improbidade administrativa.
A própria lei, textualmente, prescreve que “ independentemente das sanções penais, civis e
administrativas, previstas na legislação específica, está o responsável pelo ato de improbidade
sujeito às seguintes cominações (...)” 266.
Constata-se, portanto, que a natureza das sanções por ato de improbidade administrativa,
aplicadas pela Lei 8.429/92, não é penal, nem civil, nem administrativa. De acordo com
Lazzarini, “as sanções pela improbidade administrativa são de natur eza política, não se
confundindo com a de ordem penal que da improbidade possam resultar” 267.
Outros aspectos estão relacionados à aplicação de sanções administrativas aos atos de
improbidade administrativa. Convém mencionar, neste ponto, algumas medidas processuais e
instrumentais postas à disposição das partes e da sociedade no combate à improbidade dos
agentes públicos. Têm-se os seguintes tópicos procedimentais: quebra do sigilo bancário;
bloqueio dos bens; afastamento liminar do agente público de seu cargo para garantia da instrução
processual268.
Cumpre abordar, ainda, as sanções da legislação repressora dos atos de improbidade
administrativa, a saber: suspensão dos direitos políticos; ressarcimento integral do dano e perda
266BRASIL. Lei n° 8.429 de 02 de junho de 1992. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/legisla.htm>, acesso em: 17 mai 04. 267 LAZZARINI, Álvaro. Temas de Direito Administrativo, p. 68. 268BRASIL. Lei n° 8.429 de 02 de junho de 1992. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/legisla.htm>, acesso em: 17 mai 04.
dos bens acrescidos ilicitamente ao patrimônio; pagamento de multa civil; perda da função
pública; proibição de contratar com a Administração Pública e de receber benefícios ou
incentivos fiscais ou creditícios269.
Este é, portanto, o caminho escolhido pela sociedade brasileira, por seus representantes
constitucionais, para o combate rigoroso à improbidade administrativa. O alcance e os efeitos
múltiplos da Lei 8.429/92 na sociedade são altamente construtivos, podendo proporcionar
respostas adequadas ao problema do controle e fiscalização da atuação administrativa.
269BRASIL. Lei n° 8.429 de 02 de junho de 1992. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/legisla.htm>, acesso em: 17 mai 04.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ante todo o exposto, levando-se em consideração a pretensão inicialmente
revelada de que seria realizado apenas um panorama geral acerca da atividade
administrativa no Estado Constitucional de Direito, sem esgotar as análises sobre o tema,
pode-se tecer algumas considerações.
Com a consolidação do Estado Constitucional de Direito, afirma-se o caráter
plenamente normativo das constituições contemporâneas. A lei cede lugar à Constituição,
que passa a integrar um plano de juridicidade superior, vinculante e indisponível, não
somente através de vínculos formais, como também materiais, de conteúdo, tendo como
base os princípios constitucionais.
A inserção constitucional dos princípios e a sua proclamada normatividade
operam uma revolução de juridicidade, onde os princípios passam a ser considerados
normas-chave de todo o sistema, as mais qualificadas dentre as normas constitucionais.
Esta supremacia não é apenas formal, mas, sobretudo, material e somente se torna
possível se compreendidos como valores fundamentais que regem a Constituição, a ordem
jurídica.
Esse novo modelo normativo tem como fundamento da Teoria do Garantismo,
criada por Ferrajoli, e que representa justamente o resgate e valorização da Constituição e
dos direitos fundamentais compreendidos como princípios.
Essa teoria, conforme elucidado no decorrer do trabalho, pressupõe, basicamente,
o caráter plenamente vinculado do Poder Público no Estado Constitucional de Direito; a
divergência entre validade, vigência e eficácia das normas devido à incorporação de
valores ao sistema jurídico; uma reestruturação do modelo de democracia, a partir de
alguns critérios de decisão, referindo-se a um modelo formal e outro substancial, no qual
os direitos fundamentais devem ser efetivados e garantidos, sob pena de deslegitimação
das instituições estatais.
Neste novo contexto, a atividade administrativa passa a ser pressuposto de bem-
estar e de efetividade de muitos direitos constitucionalmente reconhecidos, apresentando-
se como fator básico de garantia para esses direitos. Além disso, os administrados passam
a dispor de uma série de garantias frente à atuação administrativa, através da consecução
de mecanismos de controle (controle interno, externo, legislativo, jurisdicional) que visam
pôr em prática os princípios constitutivos do Estado Constitucional de Direito.
Mesmo no que tange à atividade administrativa discrionária, conforme se buscou
demonstrar, é possível que o Judiciário exerça um certo controle, tendo como fundamento
os princípios da razoabilidade e proporcionalidade. Esta possibilidade de controle
jurisdicional da atuação administrativa discricionária vem reforçada pela teoria garantista,
que leva em consideração a adequação do ato discricionário às normas superiores e aos
princípios constitucionais.
Portanto, com o advento do Estado Constitucional de Direito, que tem como
fundamento a Teoria do Garantismo, emerge uma nova perspectiva acerca da atividade
administrativa através da concretização de um sistema de garantias e controles desta
atuação, tendo como base os princípios constitucionais, possibilitando a defesa dos
direitos e interesses dos cidadãos.
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