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UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE ANÁLISE DA SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO SOB A ÓTICA CONSTITUCIONAL NO CONTEXTO DA INSTRUMENTALIDADE GARANTISTA: CRÍTICA AO ENTENDIMENTO DA DOGMÁTICA POSITIVISTA Área de Concentração: Acesso à Justiça e Efetividade do Processo Rio de Janeiro 2006

UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ - estacio.br · o acusado, investigam-se os desvios funcionais que o direito penal e o processo penal sofrem, com o apontamento das funções que eles

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UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ

ANÁLISE DA SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO SOB A

ÓTICA CONSTITUCIONAL NO CONTEXTO DA

INSTRUMENTALIDADE GARANTISTA: CRÍTICA AO ENTENDIMENTO

DA DOGMÁTICA POSITIVISTA

Área de Concentração:

Acesso à Justiça e Efetividade do Processo

Rio de Janeiro

2006

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ANGÉLICA KARINA DE AZEVEDO CAÚLA E SILVA

ANÁLISE DA SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO SOB A

ÓTICA CONSTITUCIONAL NO CONTEXTO DA

INSTRUMENTALIDADE GARANTISTA: CRÍTICA AO ENTENDIMENTO

DA DOGMÁTICA POSITIVISTA

Dissertação de Mestrado apresentada ao

Departamento de Ciências Jurídicas da

Universidade Estácio de Sá, como requisito

parcial para a obtenção do grau de Mestre em

Direito.

Orientador: Professor Dr. Geraldo Prado

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2006

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ANGÉLICA KARINA DE AZEVEDO CAÚLA E SILVA

ANÁLISE DA SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO SOB A ÓTICA

CONSTITUCIONAL NO CONTEXTO DA INSTRUMENTALIDADE GARANTISTA:

CRÍTICA AO ENTENDIMENTO DA DOGMÁTICA POSITIVISTA

Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento

de Ciências Jurídicas da Universidade Estácio de Sá,

como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre

em Direito.

Aprovada em de de 2006.

BANCA EXAMINADORA

_________________________

Prof. Dr. Geraldo Luiz Mascarenhas Prado

__________________________

Prof. Dr. Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho

__________________________

Prof. Dr. Maurício Zanoide de Moraes

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Meus agradecimentos

a Universidade Estácio de Sá, pela Bolsa de Estudos recebida.

a meu orientador, Geraldo Prado, pelas inesquecíveis

lições. a Linda Dee, pelo companheirismo e pelo incentivo em todos os momentos. a Luciana Paula, Paulo Roberto e Fábio Prior, pelos constantes apoio, profissionalismo e amizade. a mestranda Angelissa Tatyanne, pelas idéias que tanto contribuíram para esta dissertação.

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Aos meus pais, Paz e Ângela, e a meu esposo, Alexandre

Caúla: vocês são tudo em minha vida!

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“ Acima do direito formal, da legalidade estrita, existe um direito,

mais positivo do que esse, porque é, a um tempo, mais legítimo e

mais forte: o direito que resulta do desenvolvimento humano.”

Rui Barbosa

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RESUMO

Esta dissertação examina em que medida a suspensão condicional do processo

realmente representa uma expressão de maior acesso à justiça para o acusado e

até que ponto contribui para a efetividade do processo penal, enquanto medida

despenalizadora não adstrita ao âmbito dos Juizados Especiais Criminais. Para uma

melhor compreensão do tema, traçam-se as linhas sobre as quais está assentado o

processo penal no Estado Democrático de Direito, instituído pela Constituição

Federal de 1988, sob uma perspectiva normativa e dogmática. Examinam-se os

princípios norteadores correlatos e procede-se a uma investigação dos desvios que

o Direito Penal e o Processo Penal sofrem, com o apontamento das funções que

exercem na sociedade. Como linha diretriz, leva-se em conta a importância do

processo penal como instrumento de contenção do poder punitivo estatal e de

garantia dos direitos fundamentais, empreendendo-se uma crítica do instituto, à luz

da teoria do garantismo penal. No desvelamento das reais práticas, põem-se a nu as

deficiências e as vantagens desse instituto, o qual é apontado como meio eficaz de

controle social, embora muitas vezes exercido mediante a supressão das garantias

tradicionais do processo penal.

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ABSTRACT

This dissertation examines in that measured the conditional suspension of the

process really represents an expression of larger access to the justice for the

accused and what extent contributed to the effectiveness of the criminal proceeding,

while measured no linked to the extent of the Criminal Special Courts. For a better

understanding of the theme, the lines are drawn on which the criminal proceeding is

seated in the Democratic State of Right, instituted by the Federal Constitution of

1988, under a normative and dogmatic perspective. The correlated beginnings are

examined and we proceed to an investigation of the deviations that the criminal law

and the criminal proceeding suffer, with the note of the functions that exercise in the

society. As line guideline, is taken into account the importance of the criminal

proceeding as instrument of contention of the state punitive power and of warranty of

the fundamental rights, being undertaken a critic of the institute, at the light of the

theory of the penal assecurity. In the unveiling of the real practices, we put to nude

the deficiencies and the advantages of that institute, which it is pointed as half

effective of social control, although a lot of times exercised by the suppression of the

traditional warranties of the criminal proceeding.

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Sumário

Introdução.....................................................................................................................9

1. O processo penal no Estado Democrático de Direito.............................................12

1.1 A efetividade das normas constitucionais: um sistema aberto de regras e

princípios12

1.1.1 A distinção entre princípios e regras jurídicas..........................................15

1.1.2 A constitucionalização dos princípios e seu papel hermenêutico.............19

1.2 O princípio da dignidade da pessoa humana...................................................27

1.2.1 O conteúdo do princípio da dignidade humana........................................28

1.2.2 Direitos e garantias fundamentais............................................................33

1.2.3 O princípio da dignidade humana e o sistema acusatório........................37

1.3 Princípios e garantias constitucionais do processo penal................................44

1.3.1 A garantia do devido processo legal.........................................................45

1.3.2 O princípio da igualdade...........................................................................48

1.3.3 O princípio da proporcionalidade..............................................................58

1.3.4 As garantias do contraditório e da ampla defesa......................................66

1.3.5 O princípio da presunção de inocência.....................................................79

1.3.6 A garantia da motivação das decisões judiciais.......................................91

2. Análise funcional do sistema penal sob a perspectiva normativa.................................98

2.1 Conceito, funções e missões do Direito Penal..............................................100

2.1.1 O conceito de Direito Penal....................................................................100

2.1.2 As funções do Direito Penal....................................................................102

2.1.3 As missões do Direito Penal...................................................................106

2.2 Conceito, funções e missões do Processo Penal..........................................111

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2.2.1 O conceito de Processo Penal..............................................................111

2.2.2 As funções do Processo Penal..............................................................113

2.2.3 As missões do Processo Penal..............................................................116

2.3 O poder punitivo na sociedade pós-industrial................................................133

2.4 A atividade probatória e a posição do acusado.............................................146

2.5 A demora do processo...................................................................................154

3. Da suspensão condicional do processo...............................................................167

3.1 Origem, previsão legal e fundamentos..........................................................167

3.2 Das necessárias definições do instituto.........................................................177

3.2.1 Definição e natureza jurídica..................................................................178

3.2.2 Aproximação com outros institutos.........................................................183

3.2.3 Âmbito de admissibilidade......................................................................191

3.2.4 Requisitos, homologação e condições para a suspensão......................197

3.2.5 Prazo da suspensão, revogação obrigatória e facultativa......................208

3.2.6 Efeitos do decurso de prazo de suspensão sem revogação..................211

3.2.7 Ampliação da definição de delitos de menor potencial ofensivo e os

efeitos sobre a suspensão condicional do processo.......................................213

3.3 A suspensão condicional e o discurso do controle racional..................................219

Conclusão................................................................................................................230

Referências

bibliográficas...................................................................................................238

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INTRODUÇÃO

O processo penal sintetiza, de forma bastante evidente, o conflito que decorre da

intervenção estatal na esfera de liberdade do indivíduo. Desse modo, deve-se pensá-lo como

forma justa e legítima para a solução dos conflitos sociais, qualidade que só poderá ser

assegurada se funcionar como garantia da preservação dos direitos fundamentais dos

indivíduos.

A suspensão condicional do processo interessa justamente por ter sido apontada pelo

meio jurídico como instituto inovador e revolucionário, que suspende o processo com

vantagens substanciais para o acusado. Os argumentos utilizados se referiam ao consenso, à

autonomia da vontade e à não-necessidade da fase instrutória e de julgamento, o que, por

conseqüência, livraria o acusado de uma espécie de pena antecipada, que decorre

simplesmente do próprio processo penal. Apesar da autoridade dos argumentos apresentados,

prevalecia o sentimento de que algo não se encaixava, pois a abreviação do processo levada a

efeito pela suspensão condicional do processo não representava, ao menos sob o ponto de

vista prático, uma real vantagem para o acusado.

A linha de pesquisa em que se insere o presente trabalho é a do acesso à justiça e da

efetividade do processo. Assim, sua proposta pretende investigar em que medida a suspensão

condicional do processo representa (realmente) uma expressão de maior acesso à justiça para

o acusado, e até onde ela contribui (ou não) para a efetividade do processo penal. O método

empregado realiza uma análise crítica, a partir de um levantamento da bibliografia e da

jurisprudência produzidas, destacando-se até que ponto o discurso dogmático coincide com as

funções desempenhadas pelo instituto.

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Nesse percurso, considerado pela doutrina tradicional como um instituto que

suspende o processo, entende-se que, inicialmente, devem ser traçadas as linhas pelas quais

está caracterizado o processo penal no Estado Democrático de Direito instituído pela

Constituição Federal de 1988, sob uma perspectiva normativa e dogmática. Assim, no

primeiro capítulo, analisa-se o princípio da dignidade como um dos fundamentos do Estado

brasileiro, a opção do sistema acusatório pela Lei Maior e alguns princípios e garantias

constitucionais que são assegurados ao processo penal, especialmente aqueles diretamente

afetados pela suspensão condicional do processo.

Num segundo momento, com o propósito de analisar os argumentos da doutrina

tradicional sobre as vantagens que a abreviação de algumas fases processuais pode trazer para

o acusado, investigam-se os desvios funcionais que o direito penal e o processo penal sofrem,

com o apontamento das funções que eles exercem na sociedade, apesar das missões que eles

devem ter por escopo.

Dessa forma, no segundo capítulo, empreende-se uma análise funcional (sem aderir a

qualquer ideologia funcionalista) na perspectiva dogmática, observando-se que o sistema

punitivo (decorrente do direito e do processo penais) representa apenas uma vertente das

diversas formas pelas quais se exerce o poder na sociedade. Não obstante, é a sua face mais

violenta, daí a importância do processo penal como instrumento de contenção do poder

punitivo estatal e de garantia dos direitos fundamentais. Aborda-se, ainda, a importância da

atividade probatória na construção da verdade processual, cuja busca deve ser um dos

objetivos do processo, uma vez que ela legitima a própria atividade jurisdicional. Também

não são esquecidas as reflexões sobre a demora do processo, que só é justificada enquanto

meio de proteção do acusado, tornando-se ilegítima quando, não sendo razoável, enseja a

violação de seus direitos e garantias.

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Construído o referencial teórico sobre as bases do garantismo penal, passa-se, em um

terceiro momento, à análise da suspensão condicional do processo. Desse modo, no terceiro

capítulo, apontam-se os contornos jurídicos do instituto, estabelecidos pela doutrina e pela

jurisprudência, destacando-se aspectos de sua origem e introdução no ordenamento jurídico

brasileiro, e sua aproximação com outros institutos estrangeiros e nacionais. Analisa-se sua

natureza jurídica, seu âmbito de admissibilidade, os requisitos para a concessão, a natureza da

decisão que a homologa, as condições que devem ou podem ser fixadas, as causas de

revogação e a natureza da decisão que extingue a punibilidade. Por fim, empreende-se uma

crítica do instituto, à luz da teoria do garantismo penal, revelando-se as deficiências que são

encobertas pelas supostas vantagens anunciadas pela doutrina tradicional.

Por fim, o quarto capítulo sintetiza as conclusões do trabalho, destacando-se, em

especial, as que ressaltam a importância do processo penal concebido sob a ótica garantista, e

os riscos que os mecanismos de aceleração do processo – dentre os quais se insere a

suspensão condicional – podem ensejar para as garantias e os direitos fundamentais

conquistados ao longo da história.

Durante todo o estudo, busca-se demonstrar que o processo penal deve servir de

instrumento para a garantia dos direitos fundamentais do indivíduo contra os abusos do poder

estatal. Assim, tratando-se a suspensão condicional do processo de instituto processual que

lhe suprime algumas de suas importantes fases – vale dizer, essenciais mesmo –, sua

aplicação deve ser realizada com cautela, interpretando-se o instituto sob a ótica

constitucional. As reflexões empreendidas, que de modo algum pretendem esgotar o tema,

visam contribuir para a discussão e o aperfeiçoamento do instituto.

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1

O PROCESSO PENAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Esta investigação tem por objeto a suspensão condicional do processo, instituto que

se insere como categoria geral do Processo Penal. Trata-se, como se verá adiante, de um outro

caminho trilhado pelas partes no curso do processo, no qual são suprimidas algumas de suas

fases, especialmente a produção de provas. Pode-se dizer, então, que consiste em uma forma

de abreviação do processo penal. Desse modo, antes de adentrar a discussão do tema

específico, faz-se necessário inicialmente apontar como está caracterizado, do ponto de vista

normativo, o processo penal no Estado Democrático de Direito. Somente será possível

compreender o instituto, e as reais vantagens e desvantagens que encerra, caso estejam bem

assentadas as noções a respeito do próprio processo penal.

Nesse sentido, é imprescindível iniciar a abordagem pelas normas constitucionais,

especialmente os princípios afetos ao processo penal. Neste capítulo, busca-se traçar um

panorama de alguns dos princípios constitucionais relacionados ao processo penal, de modo a

caracterizar as garantias trazidas pela Constituição Federal de 1988. É importante registrar,

contudo, que nem todos os princípios constitucionais serão abordados, mas apenas aqueles

considerados mais importantes para a análise que será empreendida sobre a suspensão

condicional do processo.

1.1 A efetividade das normas constitucionais: um sistema aberto de regras e princípios

O termo “princípios” provavelmente foi usado pela primeira vez em geometria, com

o significado de “verdades primeiras”. Mais tarde, veio a ser utilizado pelo Direito, também

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designando uma verdade a priori, as premissas do sistema jurídico.1 Luiz Gustavo Grandinetti

Castanho de Carvalho os conceitua como “idéias fundamentais que constituem o arcabouço

do ordenamento jurídico; são os valores básicos da sociedade que se constituem em princípios

jurídicos”.2

Os princípios constitucionais constituem ponto fundamental e se mostram a chave de

todo o sistema jurídico atual.3 Desse modo, é importante uma breve análise de sua evolução

desde a sua concepção mais remota, quando possuíam caráter secundário e função supletiva,

sendo chamados de princípios gerais de direito até os dias atuais, quando então está

reconhecida sua normatividade e sua importância como fundamento da constituição da ordem

jurídica do Estado Democrático de Direito.

A atual teoria constitucional, conforme aponta Paulo Bonavides, encontra-se numa

fase denominada pós-positivismo, referente às últimas décadas do século XX, e marcada, nas

palavras do autor, “pela hegemonia axiológica dos princípios, convertidos em pedestal

normativo sobre o qual assenta todo o edifício jurídico dos novos sistemas constitucionais”.4

Dessa maneira, resta consagrada a plena eficácia jurídica dos princípios, num

movimento de superação de uma visão formalista, que lhes relegava caráter subsidiário,

“meramente supletivo das regras legais, cingindo sua incidência às hipóteses de lacuna”,

conforme aponta Daniel Sarmento.5

A superação da visão formalista foi proporcionada pelo esforço crítico de vários

autores ao positivismo normativista kelseniano, que buscavam estabelecer uma Teoria Geral

do Direito que o vislumbrasse como algo mais do que exclusivamente um sistema de regras,

no qual se destinava ao papel secundário de colmatação de lacunas e de orientação da

1 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 13 ed. São Paulo: Malheiros, 2003, pp. 255-6. 2 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho. Processo penal em face da Constituição. 3 ed. reescrita e ampliada. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 7. 3 BONAVIDES, Paulo, op. cit., p. 258. 4 Idem, p. 264. 5 SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 41.

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atividade interpretativa.6 O conteúdo teórico dessa nova corrente de pensamento denuncia a

insuficiência da subsunção como método de aplicação de normas, e concebe o ordenamento

jurídico como um conjunto de regras e princípios, em que estes estabelecem a conexão entre

Direito e Moral, tendo como expoentes Ronald Dworkin e Chaïm Perelman.7

Nesse sentido, a obra de Chaïm Perelman consiste em uma crítica à lógica formal de

matriz positivista, ao buscar uma argumentação racional sobre valores. Insurgindo-se contra

as premissas básicas do normativismo kelseniano, destaca o papel secundário atribuído aos

princípios gerais de direito, ao afirmar:

Cada vez mais, juristas vindos de todos os cantos do horizonte recorreram

aos princípios gerais de direito, que poderíamos aproximar do antigo ius

gentium e que encontrariam no consenso da humanidade civilizada seu

fundamento efetivo e suficiente. O próprio fato de esses princípios serem

reconhecidos, explícita ou implicitamente, pelos tribunais de diversos

países, mesmo que não tenham sido proclamados obrigatórios pelo poder

legislativo, prova a natureza insuficiente da construção kelseniana que faz a

validade de toda regra de direito depender de sua integração num sistema

hierarquizado e dinâmico, cujos elementos tirariam, todos, sua validade de

uma norma suprema pressuposta.8

Nas palavras do autor, os princípios gerais de direito são considerados lugares

específicos do Direito, que podem servir de ponto de partida para o processo argumentativo

de fundamentação das decisões judiciais:

6 GONÇALVES PEREIRA, Jane Reis e LUCAS DA SILVA, Fernanda Duarte. “A estrutura normativa das normas constitucionais: notas sobre a distinção entre princípios e regras”. In: PEIXINHO, Manoel Messias; GUERRA, Isabella Franco e NASCIMENTO FILHO, Firly (orgs.). Os princípios da Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 5. 7 Ibidem. 8 PERELMAN, Chaïm. Ética e direito. São Paulo: Martins Fontes, 1996, pp. 395-6.

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Se os princípios gerais de direito nada mais são do que lugares específicos

do Direito, afirmações de ordem muito geral, como as que Aristóteles

analisou nos Tópicos, e que analisamos no Tratado da argumentação (§§ 21

a 25), fornecem os princípios iniciais a um pensamento especializado.9

Atualmente, já não se rechaçam a normatividade e a força obrigatória dos princípios,

mas se estabelece a distinção entre estes e as regras, pois seriam ambos espécie de normas que

formam o ordenamento jurídico. Nesse sentido, J. J. Gomes Canotilho, ao analisar o sistema

jurídico do Estado português, concebe-o como um “sistema normativo aberto de regras e

princípios”. Esse autor explica que se trata de um sistema jurídico por ser um sistema

dinâmico de normas; aberto, por ter uma estrutura dialógica, que possibilita a flexibilidade das

normas constitucionais em apreenderem os conceitos cambiantes de “verdade e justiça”;

normativo, porque a estruturação de expectativas referentes a valores, programas, funções e

pessoas é feita por meio de normas; e sistema de regras e princípios, pois as normas que

compõem o sistema podem apresentar-se tanto sob a forma de princípios, como sob a forma

de regras.10

1.1.1 A distinção entre princípios e regras jurídicas

Daniel Sarmento também aponta, na doutrina brasileira, que “as normas jurídicas que

compõem o ordenamento positivo podem assumir duas configurações básicas: regras (ou

disposições) e princípios”.11 O autor destaca a importância dos princípios, denominando-os de

9 PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica. Trad. Virgínia K. Puppi. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 159. O autor, em sua obra Ética e direito (op. cit., p. 493 e seguintes), desenvolve a idéia do auditório livre, que poderá aderir às idéias do orador, o qual deverá conhecer ou presumir as idéias do auditório e empreender um esforço argumentativo racional para convencê-lo. Na Lógica jurídica (p. 170), ele destaca que a utilização dos princípios no processo de argumentação judicial implica uma escolha, por parte do magistrado, que leva em conta seu potencial justificador e racionalizador da decisão. 10 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 6 ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 1145. 11 SARMENTO, Daniel, op. cit., p. 42.

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“traves-mestras” do sistema jurídico, em que seus efeitos incidem sobre diferentes normas e

norteiam a interpretação de todo o setor do ordenamento do qual são originários.

A importância dos princípios enquanto marcos de orientação na atividade de

concretização do Direito foi destacada por Karl Larenz, que utilizou o termo “idéia

directiva”.12 Alerta o autor que os princípios são dotados de um grau de generalidade e de

abstração superior ao das regras, e que possuem menor grau de determinabilidade de sua

aplicação. Registre-se, ainda, que é possível observar neles, de modo mais acentuado do que

nas regras, os valores jurídicos e políticos que condensam.

Karl Larenz destaca também o processo de concretização sucessiva pelo qual passam

os princípios, por intermédio de princípios mais específicos e subprincípios, até adquirirem

grau e densidade de regras. Esse processo de concretização não ocorre por um processo de

subsunção, mas por meio de um processo dialético, recíproco, nas palavras do autor:

É decisivo, por outro lado, que o pensamento não procede aqui

“linearmente”, só num sentido, mas é sempre de sentido duplo: o princípio

esclarece-se pelas suas concretizações e estas pela união perfeita com o

princípio. A formação do “sistema interno” ocorre através de um processo

de “esclarecimento recíproco”, que identificamos como estrutura

hermenêutica fundamental do “processo do compreender”, em sentido

estrito.13

Outra distinção fundamental, apontada por Claus Wilhelm Canaris, entre princípios e

regras reside no fato de que os princípios não permitem a subsunção, pela insuficiência de seu

grau de concretização, ao contrário do que se passa com as regras. O autor situa, no plano da

fluidez, os princípios entre os valores e as regras. Para ele, os princípios excedem os valores

em termos de concretização, uma vez que neles já encontramos indícios sobre suas

12 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Trad. José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983, p. 579.

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conseqüências jurídicas, embora ainda não alcancem o grau de densidade normativa das

regras, por não possuírem precisamente delimitadas as hipóteses de incidência.14

Daniel Sarmento, citando Jean Boulanger, aponta outro traço distintivo entre

princípio e regra, relacionado à própria natureza de ambos. Afirma que a generalidade da

regra reside no fato de que ela é criada tendo em vista um número indeterminado de atos ou

fatos, mas especial, na medida em que se destina a regular apenas aqueles atos ou fatos que

especifica.15

Nesse ponto, cumpre apontar os ensinamentos de Ronald Dworkin, um dos juristas

cuja teoria pugna pela normatividade dos princípios, e que perfilha grandes críticas ao

positivismo ortodoxo:16

A diferença entre princípios e regras jurídicas é de natureza lógica. Os dois

conjuntos de padrões apontam para as decisões particulares acerca da

obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto

à natureza da orientação que oferecem. As regras são aplicadas à maneira do

tudo ou nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é

válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é

válida, e neste caso em nada contribui para a decisão.17

13 Ibidem. 14 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. Trad. A. Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983, pp. 86-7. 15 SARMENTO, Daniel, op. cit, p. 44. 16 BONAVIDES, Paulo, op.cit., p. 265. 17 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 39. O autor desenvolve uma acirrada crítica à concepção positivista, em especial ao positivismo jurídico de Herbert Hart, que concebe o Direito como uma união de regras primárias e secundárias de obrigação, e admite a existência de um âmbito pragmático de aceitação de uma regra jurídica, não necessariamente atrelado à moral. Critica também a teoria dos “casos difíceis” desenvolvida por Hart, quando este afirma que determinadas regras, por possuírem textura aberta, num determinado caso concreto, podem tornar impossível ao Direito determinar uma resposta. Nessa última questão, a preocupação de Dworkin paira sobre a idéia de Hart de que seria possível a retroatividade de uma decisão posterior ao caso, supostamente criada de acordo com a discricionariedade de que é dotado o juiz (cf. p. 127). Para uma melhor compreensão das teses mencionadas, cf. HART, Herbert. O conceito de direito. 3 ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, [s.d.], pp. 107-9 e p. 315.

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Os princípios, a seu turno, atuam de maneira diversa, uma vez que, presentes as

condições de fato enunciadas como necessárias à sua incidência, não há obrigatoriedade de

sua aplicação ao caso concreto. Por serem dotados de uma dimensão de peso, portanto

valorativa, quando dois princípios, em determinado caso, entram em colisão, buscar-se-á a

solução do conflito levando-se em conta o peso assumido por cada um deles, a fim de que se

possa precisar em que medida cada um cederá espaço ao outro.18

Nesse caso, há uma ponderação entre os princípios, e não a aplicação da regra à

maneira do tudo ou nada, concebida por Dworkin para as regras jurídicas, não havendo opção

por um deles em detrimento do outro. Aí reside um ponto fundamental da distinção ora

apontada. Quando se constata que duas regras jurídicas, aparentemente, incidem sobre

determinado caso concreto, a solução é obtida pela adoção de uma delas, com a completa

desconsideração da outra, utilizando-se critérios hierárquicos, cronológicos ou, ainda, de

especialidade.

Daniel Sarmento, citando Robert Alexy, complementa a distinção entre princípios e

regras ressaltando a importante contribuição desse autor, que, sem divergir de Dworkin,

acrescenta que os princípios encerram “mandados de otimização” e que o conflito entre regras

é resolvido de modo completamente diferente do conflito entre princípios. No primeiro caso, a

solução vem por meio da introdução de uma cláusula de exceção, ou do reconhecimento da

invalidade de uma das regras apresentadas. Já na hipótese de conflito entre princípios, em

função da dimensão de peso de que são dotados, a questão não é resolvida no campo da

validade, mas sim no da ponderação.19

Sarmento ressalta, ainda, que a classificação de uma norma como regra ou princípio

deve ter em conta não apenas o elemento literal, que consiste apenas no que chama de “‘ponta

18 SARMENTO, Daniel, op. cit., p. 45. 19 Idem, pp. 46-7.

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do iceberg’ normativo”, mas também a transcendência do texto legal e a análise do bem

jurídico protegido pela norma, além do domínio empírico sobre o qual ela se projeta.20

Assim, as diferenças qualitativas entre princípios e regras jurídicas podem ser

sintetizadas com as idéias de J. J. Gomes Canotilho, o qual aponta que os princípios são

normas jurídicas que impõem uma otimização, compatíveis com vários graus de

concretização, de acordo com os condicionantes fáticos e jurídicos. Já as regras são normas

que prescrevem imperativamente uma exigência (imposição, permissão ou proibição) que é

ou não cumprida. Alerta, ainda, que a convivência das regras é antinômica, ao passo que os

princípios coexistem. Conclui que, sendo mandados de otimização, os princípios permitem o

balanceamento de valores e interesses, segundo seu peso e a ponderação de outros princípios

porventura conflitantes. Por outro lado, as regras devem ser cumpridas ou não cumpridas, não

havendo espaço para outra solução. Por fim, observa que, na presença de conflito entre

princípios, eles podem ser objeto de ponderação e harmonização, pois contêm apenas

exigências a priori e devem ser realizados, não sendo possível, contudo, realizar a ponderação

entre regras conflitantes, porque elas contêm fixações normativas definitivas, o que não

permite admitir a validade concomitante de regras contraditórias.21

1.1.2 A constitucionalização dos princípios e seu papel hermenêutico

A força normativa da Constituição foi anunciada por Konrad Hesse, que afirmou que

a Constituição não deve configurar apenas um “ser”, mas também um “dever ser”. O autor

esclarece que, devido à sua pretensão de eficácia, “a Constituição procura imprimir ordem e

conformação à realidade política e social”.22

20 Idem, p. 48. 21 CANOTILHO, J. J. Gomes, op. cit., p. 1147. 22 HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991, p. 15.

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Sobre essa força normativa, o autor referiu-se ao que chamou de “vontade de

Constituição” nos seguintes termos:

Embora a Constituição não possa, por si só, realizar nada, ela pode impor

tarefas. A Constituição transforma-se em força ativa se essas tarefas forem

efetivamente realizadas, se existir a disposição de orientar a própria conduta

segundo a ordem nela estabelecida, se, a despeito de todos os

questionamentos e reservas provenientes dos juízos de conveniência, puder

identificar a vontade de constituir essa ordem. Concluindo-se, pode-se

afirmar que a Constituição converter-se-á em força ativa se se fizerem

presentes, na consciência geral – particularmente, na consciência dos

principais responsáveis pela ordem constitucional –, não só a vontade de

poder (Wille zur Macht), mas também a vontade de Constituição (Wille zur

Verfassung).23

Lênio Luiz Streck, após advertir que o Estado Democrático de Direito possui como

pilares a democracia e os direitos fundamentais,24 sustenta o caráter dirigente e

compromissário do texto constitucional brasileiro. O autor realça que, em Estados como o

Brasil, em que promessas de modernidade e de Estado Social ainda não chegaram a ser

concretizadas, sustentar a força normativa da Constituição é possibilitar que os mecanismos

constitucionais, dos quais dispõem os cidadãos e as instituições, sejam utilizados de forma

eficaz, como instrumentos aptos a evitar que os poderes públicos disponham livremente da

Lei Maior. Destaca, ainda, especialmente, o potencial transformador da Constituição

brasileira de 1988, para concluir que o constitucionalismo dirigente-compromissário não deve

ser tido por esgotado, porque a Carta Magna, além de seu papel de assegurar os

procedimentos da democracia, deve ser entendida como algo substantivo, porque detém

23 Idem, p. 19. 24 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 104.

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valores (direitos sociais, fundamentais, coletivos latu sensu) estabelecidos pelo pacto

constituinte como passíveis de realização. Alerta, por fim, que, no Brasil, o núcleo essencial

sequer chegou a ser cumprido, representando um conjunto de promessas da modernidade que

deve ser resgatado.25

Reconhecidos a força normativa da Constituição e seu potencial transformador (no

caso brasileiro), assumem importante papel os princípios que, atualmente, constituem o

coração das constituições, conforme aponta Paulo Bonavides:

De antiga fonte subsidiária de terceiro grau nos códigos, os princípios

gerais, desde as derradeiras constituições da segunda metade do século XX,

tornaram-se fonte primária de normatividade, corporificando do mesmo

passo na ordem jurídica os valores supremos ao redor dos quais gravitam os

direitos, as garantias e as competências de uma sociedade constitucional.

Os princípios são, por conseguinte, enquanto valores, a pedra de toque ou

critério com que se aferem os conteúdos constitucionais em sua dimensão

normativa mais elevada.26

O autor aponta-lhes, ainda, três funções de extrema importância: ser “fundamento da

ordem jurídica”, detentor de “eficácia derrogatória e diretiva”, à qual confere maior

relevância, assinalando o enorme prestígio de que desfruta no Direito Constitucional

Contemporâneo; “a função orientadora do trabalho interpretativo”; e, por derradeiro, “a de

fonte em caso de insuficiência da lei e do costume”.27

No salto dos códigos para as constituições, uma vez reconhecida sua normatividade,

os princípios se convergem em fundamento de toda a ordem jurídica, na qualidade de

princípios constitucionais. Assim, resta assegurada sua supremacia material na pirâmide

normativa como a mais alta expressão da normatividade que fundamenta a organização do

25 Idem, pp. 115-6 e p. 126. 26 BONAVIDES, Paulo, op. cit., p. 283.

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poder na ordem constitucional dos ordenamentos jurídicos. Paulo Bonavides destaca, ainda, a

importante função hermenêutica que exsurge dessa proeminência jurídico-normativa:

Os princípios fundamentais da Constituição, dotados de normatividade,

constituem, ao mesmo tempo, a chave de interpretação dos textos

constitucionais. Mas essa importância decorre, em grande parte, de um

máximo poder de legitimação que lhes é inerente.28

J. J. Gomes Canotilho propõe a compreensão da Constituição como um sistema

aberto de regras e princípios, que, por meio de “processos judiciais, procedimentos

legislativos e administrativos, iniciativa dos cidadãos, passa de uma law in the books para

uma law in action para uma living constitution”.29 Esclarece o autor português que o sistema

constitucional deve ser admitido sob essa perspectiva, com índole tendencialmente

principialista, não apenas porque fornece suportes rigorosos para solucionar certos problemas

de método, como na colisão de direitos fundamentais, mas também porque permite “respirar,

enraizar e caminhar o próprio sistema”. Vejam-se suas idéias acerca do desenvolvimento do

sistema constitucional assim concebido:

A respiração obtém-se através da “textura aberta” dos princípios; a

legitimidade entrevê-se na idéia de os princípios consagrarem valores

(liberdade, democracia, dignidade) fundamentadores da ordem jurídica e

27 Ibidem. 28 Idem, p. 292. 29 CANOTILHO, J. J. Gomes, op. cit., p. 1149. Sobre uma construção teórica da “Constituição Aberta”, é importante conferir a obra de Peter Häberle, cuja teoria propugna por uma democratização do processo interpretativo, fundada, como aponta Paulo Bonavides, em três pontos principais: o alargamento do círculo de intérpretes da Constituição; o conceito de interpretação como um processo aberto e público; e a Constituição concebida como realidade constituída e proposta de “publicização”. Apesar do enorme valor da proposta de Peter Häberle, Paulo Bonavides ressalta que o método concretista proposto exige, para uma eficaz aplicação, a presença de um sólido consenso democrático, base social estável, pressupostos institucionais firmes, cultura política bastante ampliada e desenvolvida, fatores que não são encontrados em nações subdesenvolvidas ou em desenvolvimento, como o Brasil. Cf. HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional – a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição.

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disporem de capacidade deontológica de justificação; o enraizamento

perscruta-se na referência sociológica dos princípios a valores, programas,

funções e pessoas; a capacidade de caminhar obtém-se através de

instrumentos processuais e procedimentos adequados, possibilitadores da

concretização, densificação e realização prática (política, administrativa,

judicial) das mensagens normativas da constituição. Por último, pode-se

dizer que a individualização de princípios-norma permite que a Constituição

possa ser realizada de forma gradativa, segundo instâncias factuais e legais

(Bin). A compreensão principal da Constituição serve de arrimo à

concretização metódica, quer se trate de um texto constitucional garantístico

(ex.: a leitura principal de um R. Dworkin em face da Constituição

americana), quer se trate de um texto constitucional pragmático (ex.:

Constituição portuguesa de 1976, Constituição brasileira de 1988).30

Entre nós, Daniel Sarmento também aponta que os princípios constitucionais, em

função de “sua acentuada carga axiológica e proximidade do conceito de justiça”, assumem a

função de “fundamento de legitimidade da ordem jurídico-positiva”, porque consistem em

valores supremos que vão nortear a organização social, constituída sob a forma de Estado

Democrático de Direito.31 Destaca também seu importante papel hermenêutico com as

seguintes palavras:

[...] os princípios constitucionais desempenham um papel hermenêutico

essencial, configurando-se como genuínos vetores exegéticos para a

compreensão e aplicação das demais normas constitucionais e

infraconstitucionais. Neste sentido, os princípios constitucionais

representam o fio condutor da hermenêutica jurídica, dirigindo o trabalho do

intérprete em consonância com os valores e interesses por ele abrigados.32

Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1997 [reimpressão 2002] e BONAVIDES, Paulo, op. cit., p. 516. 30 CANOTILHO, J. J. Gomes, op. cit., pp. 1149-50.

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Desempenham os princípios, assim, a importante função supletiva, regulando

imediatamente o comportamento de seus destinatários diante da ausência de regras

constitucionais específicas sobre determinada matéria. Além disso, aponta-se como

fundamental a função argumentativa dos princípios constitucionais, ligada ao caráter

valorativo do qual são dotados e, na medida em que, constituindo apenas mandamentos a

priori, podem eventualmente ceder, em razão da ponderação de outros princípios. Assim,

tratados como argumentos, apontados por Daniel Sarmento como pontos de vista (ou topoi),

devem ser considerados na solução dos casos difíceis levantados por Dworkin, quando então

as prescrições juspositivas não oferecerem apenas uma decisão correta para o caso.33

Para a solução dos casos concretos, Daniel Sarmento indica o método da ponderação

de interesses, alertando que ele não representa apenas uma técnica puramente procedimental

para a solução dos conflitos entre princípios constitucionais, mas possui uma irredutível

dimensão substantiva, na medida em que seus resultados devem estar orientados para a

promoção de valores humanísticos superiores, valores esses sintetizados no princípio da

dignidade humana, como se verá mais adiante.34

Embora Daniel Sarmento não admita que a ponderação de interesses possa “implicar

amesquinhamento da dignidade humana”,35 Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho

ressalta que o direito processual penal é a própria essência da colisão de princípios

constitucionais, apontando como exemplos o princípio da liberdade e o da segurança pública,

ambos assegurados no art. 5º da Constituição Federal. Assim, afirma que, destinando-se a

técnica da ponderação de interesses a resolver a colisão entre princípios, seu limite será a

existência de regras jurídicas que os concretizem. Existindo tais regras e sendo elas

constitucionais, deverão ser aplicadas às situações fáticas, sem a realização da ponderação

31 SARMENTO, Daniel, op cit., p. 54. 32 Idem, p. 55. 33 Ibidem. 34 Idem, p. 57.

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entre princípios. As regras, para o autor, prestam-se a balizar a colisão entre princípios,

categorizando em que medida um dado princípio deve ceder diante de outro, num

determinado caso concreto.36

Desse modo, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho propõe,37 com base na

doutrina de Daniel Sarmento,38 etapas metodológicas para atingir a ponderação de bens e

solucionar os conflitos entre princípios. A primeira etapa seria verificar a delimitação

constitucional dos direitos envolvidos, pois pode ocorrer que determinado direito ou garantia

fundamental não abrigue ou proteja a situação de fato apresentada. Aponta como exemplo o

réu que pretende não ser citado na presença de seus familiares, alegando ofensa ao direito

fundamental à dignidade ou à intimidade.

A segunda etapa do método de ponderação consiste em identificar o significado dos

conceitos contidos nos princípios em colisão, pois pode ocorrer que determinado conceito seja

restritivo, não abrangendo a situação fática. Como exemplo, mostra que o princípio da

intimidade não protege documentos nem ambientes públicos.

A terceira etapa consiste em verificar se, no confronto, o legislador já estabeleceu

uma ponderação, hipótese em que restará pouco espaço para a ponderação judicial,

registrando que essa ponderação normalmente é realizada por regras que concretizam

determinados princípios e apontando como exemplo a vedação constitucional para a utilização

de prova ilícita no processo.39

Por último, a quarta etapa exige que, tratando-se realmente de uma colisão de direitos

fundamentais e não havendo uma ponderação previamente realizada pelo legislador, passe-se

à ponderação judicial de bens constitucionais, sustentando o autor que nenhum direito

35 Idem, p. 76. 36 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho, op. cit., p. 17. 37 Idem, pp. 17-18. 38 SARMENTO, Daniel, op. cit., pp. 97 e ss. 39 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho, op. cit., p. 19.

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fundamental é absoluto ou ilimitado, pois encontra limitação nos demais direitos

fundamentais.40

Ressalta o autor, por fim, que, em sendo necessário realizar uma ponderação,

recorrer-se-á ao método próprio elaborado por Daniel Sarmento. Inicialmente, deve-se

realizar o confronto do peso que a Constituição atribui aos direitos em colisão genericamente,

esclarecendo que, no processo penal, esse confronto normalmente se dá entre a segurança

pública e a liberdade, com preponderância constitucional dessa última.

Depois, numa segunda fase, deve-se confrontar o peso específico que a Constituição

atribui aos direitos em colisão, tendo em vista o caso concreto. Luis Gustavo Grandinetti

Castanho de Carvalho indica um exemplo esclarecedor: a colisão entre a segurança do bem

jurídico patrimônio, de um lado, e o direito à intimidade, de outro, em que o princípio de

segurança pública – cujo conteúdo na hipótese concreta é a função específica de proteção do

bem jurídico patrimônio – deve ser confrontado com o do bem jurídico constitucional da

intimidade.41

Finalmente, estabelecidos os pesos genéricos e específicos de cada um dos direitos

em colisão, passa-se à última fase: atribuir o valor preponderante no caso concreto e o grau de

restrição ao outro direito não-preponderante, utilizando-se dos subprincípios da adequação ou

idoneidade, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito,42 os quais serão vistos

mais adiante, na seção referente ao princípio da proporcionalidade.

Ao reconhecer que o método não evita uma valoração subjetiva do intérprete, afirma

que tal não é seu objetivo, mas sim o de permitir controlar tal valoração subjetiva, de modo

que seja a mais transparente e a mais racional possível.

40 Ibidem. Também no sentido de não existirem princípios absolutos, cf. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 3 ed. revista, atualizada e ampliada. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 73, nota 157. 41 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho, op. cit., p. 20.

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1.2 O princípio da dignidade da pessoa humana

O valor do homem como um fim em si mesmo, ou a dignidade da pessoa humana, é

hoje um dos poucos consensos teóricos da sociedade contemporânea. A consagração da

dignidade da pessoa humana nos planos internacional e interno como valor máximo dos

ordenamentos jurídicos e princípio orientador da atuação estatal e dos organismos

internacionais se deu, especialmente, após a Segunda Guerra Mundial, como forma de reação

aos horrores do nazismo e do fascismo.43

A Constituição Federal de 1988 introduziu a dignidade da pessoa humana como

fundamento do Estado Democrático de Direito, em seu art. 1º, inciso III,44 e dela tratou de

forma analítica ao longo de seu texto. Por outro lado, vários países também o fizeram e, no

plano internacional, foram firmados pactos e declarações,45 além de terem sido criadas cortes

para protegê-los, conforme aponta Ana Paula de Barcellos.46

Desse modo, tendo assumido papel de relevância na organização da sociedade

contemporânea, com destacado papel no ordenamento jurídico, cumpre traçar uma breve

delimitação de seu conteúdo, abordando algumas das várias correntes existentes sobre o tema.

42 Idem, pp. 20-1. 43 BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, pp. 103 e 108. 44 Art. 1º: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III – a dignidade da pessoa humana; [...].” 45 O reconhecimento universal pode ser inclusive deduzido do art. 1º da Declaração Universal de Direitos do Homem, da ONU, de 1948, que estabelece: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados de razão e consciência, devem agir uns com os outros em espírito de fraternidade”.

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1.2.1 O conteúdo do princípio da dignidade humana

Estabelecer um conceito para a dignidade da pessoa humana não é tarefa fácil,

conforme aponta a doutrina.47 Isso porque, como afirma Luis Gustavo Grandinetti Castanho

de Carvalho, embora seja relativamente fácil compreender seu sentido, difícil é traduzi-lo em

palavras, pela enorme carga de sentimentos de que é dotado.48

Apesar da dificuldade apontada e até de se tratar de um conceito que está em

permanente construção e desenvolvimento (como, aliás, outros valores e princípios jurídicos

de carga axiológica aberta nas sociedades democráticas contemporâneas),49 Ingo Sarlet

estabelece uma definição que será adotada neste trabalho, por permitir extrair as

conseqüências jurídicas do princípio. Veja-se:

Assim sendo, temos por dignidade humana a qualidade intrínseca e

distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo

respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando,

nesse sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que

assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e

desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas

para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa

e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão

com os demais seres humanos.50

46 BARCELLOS, Ana Paula de, op. cit., p. 111, nota 178. 47 Cf. GARCIA, Emerson. “Dignidade da pessoa humana: referenciais metodológicos e regime jurídico”. Revista da EMERJ, n. 28, v. 7, Rio de Janeiro, 2004, pp. 271-300. O autor atribui à noção de dignidade da pessoa humana a classificação de conceito jurídico indeterminado, afirmando: “Diz-se que o conceito é indeterminado quando a estrutura normativa, em razão do emprego de expressões vagas ou de termos que exijam a realização de uma operação valorativa para a sua integração, apresenta uma fluidez mais acentuada, do que resulta uma maior mobilidade do operador do direito”. Esclarece, mais adiante, que “a indeterminação da dignidade inerente à noção de dignidade humana resulta, claramente, da necessidade de integração por um juízo de valor, temporal e espacialmente localizado, primordialmente realizado à luz da situação concreta”. 48 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho, op. cit., pp. 20-6. 49 SARLET, Ingo, Wolfgang, op. cit., p. 41. 50 Idem, pp. 59-60.

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Ingo Sarlet alerta que a nossa Constituição de 1988 foi a primeira na história do

constitucionalismo pátrio que inseriu um título próprio destinado aos princípios fundamentais,

situado na parte inicial do texto, logo após o preâmbulo, e antes dos direitos fundamentais, em

homenagem ao seu especial significado e função, e como forma de reação ao período

autoritário que a antecedeu. Ressalta que essa disposição revela a intenção do constituinte em

“outorgar aos princípios fundamentais a qualidade de normas embasadoras e informativas de

toda ordem constitucional”, principalmente das normas que definem os direitos e garantias

fundamentais, as quais integram, juntamente com aqueles, o núcleo essencial de nossa

Constituição formal e material.51

Ao analisar as conseqüências da opção do legislador constituinte em erigir a

dignidade humana como um dos fundamentos do nosso Estado, o autor afirma que ele se

torna princípio normativo fundamental de nossa ordem jurídico-constitucional, e alerta que se

reconheceu “categoricamente que é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o

contrário, já que o ser humano constitui uma finalidade precípua, e não meio da atividade

estatal”.52

Atribuindo-lhe o caráter de princípio e valor fundamental, Ingo Sarlet esclarece que o

princípio da dignidade da pessoa humana consiste não apenas em fundamento de posições

jurídico-subjetivas, ou seja, norma definidora de direitos e garantias, mas também de deveres

fundamentais. Afirma que esse princípio impõe ao Estado, “além do dever de respeito e

proteção, a obrigação de promover as condições que viabilizem e removam toda a sorte de

obstáculos que estejam a impedir as pessoas de viverem com dignidade”.53

No que tange ao seu conteúdo, embora Ingo Sarlet advirta que o princípio da

dignidade não deva ser confundido com os direitos fundamentais (e ressalta especialmente a

51 Idem, p. 61. 52 Idem, p. 65. 53 Idem, p. 111.

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nossa ordem constitucional positiva),54 admite o autor que “os direitos e garantias

fundamentais podem – em princípio e ainda que de modo e intensidade variáveis – ser

reconduzidos de alguma forma à noção de dignidade da pessoa humana”.55 Isso porque todos

remontam à idéia de proteção e desenvolvimento de todas as pessoas. Assim, reconhece que o

princípio da dignidade humana possui uma função instrumental integradora e hermenêutica,

na medida em que serve de parâmetro para a aplicação, a interpretação e a integração não

apenas dos direitos fundamentais e das demais normas constitucionais, mas de todo o

ordenamento jurídico.56

Também Ana Paula de Barcellos reconhece que o conteúdo jurídico da dignidade da

pessoa humana se relaciona com “os chamados direitos fundamentais e direitos humanos”.57

Nesse sentido, afirma que “terá respeitada a sua dignidade o indivíduo cujos direitos

fundamentais forem observados e realizados, ainda que a dignidade não se esgote neles”.58 E,

mais adiante, ressalta que o princípio da dignidade humana, assim como os demais princípios

constitucionais, manifestam decisões fundamentais do constituinte que deverão vincular o

intérprete e, especialmente, o poder público. Sobre a importante função que esse princípio

desempenhará na interpretação das demais normas, afirma que “o princípio da dignidade

humana há de ser o vetor interpretativo geral, pelo qual o intérprete deverá orientar-se em seu

ofício”.59

54 Idem, p. 79, nota 172; p. 119, nota 298. 55 Idem, p. 79. 56 Idem, p. 80. 57 Vale ressaltar que, embora a autora utilize os termos “direitos fundamentais” e “direitos humanos” como sinônimos, adverte que alguns autores atribuem sentidos diversos aos dois termos: a expressão “direitos fundamentais” seria empregada àqueles reconhecidos por uma ordem jurídica positiva e a expressão “direitos humanos”, ao conjunto de direitos ideais, metafísicos, derivados da natureza do homem. Cf. BARCELLOS, Ana Paula de, op. cit., p. 110, nota 175. Uma ampla classificação dos termos utilizados para designar direitos fundamentais e seus diferentes significados pode ser encontrada em CANOTILHO, J. J. Gomes, op. cit., pp. 393 e ss, e também SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 10 ed. São Paulo: Malheiros, 1995, pp. 174-7. 58 BARCELLOS, Ana Paula de, op. cit., p. 111. 59 Idem, p. 146.

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Além da função instrumental integradora e interpretativa destacada, Ingo Sarlet

extrai, ainda, outra importante conseqüência do princípio da dignidade humana: a proteção do

núcleo essencial dos direitos fundamentais (o conteúdo da dignidade em cada direito

fundamental), que permanece imune a restrições.60 A função protetiva do princípio da

dignidade consiste na proibição de retrocesso em matéria de direitos fundamentais,

destacando o autor (embora não exclusivamente) a esfera dos direitos fundamentais sociais de

cunho prestacional.61

No que tange aos direitos fundamentais, Luigi Ferrajoli afirma que tais direitos

“correspondem a valores e a carências vitais da pessoa historicamente e culturalmente

determinados”. E adverte que “é de sua qualidade, quantidade e grau de garantia que pode ser

definida a qualidade de uma democracia e pode ser mensurado o progresso”.62

Em nossa ordem constitucional, José Afonso da Silva afirma que eles correspondem

a “situações jurídicas, objetivas e subjetivas, definidas no Direito positivo, em prol da

dignidade, igualdade e liberdade da pessoa humana”, e estabelece uma classificação

(agrupando-os com base no critério de seu conteúdo, na natureza do bem protegido e objeto

da tutela, de acordo com a Constituição Federal de 1988) em: direitos individuais, direitos

coletivos, direitos sociais, direitos à nacionalidade e direitos políticos.63 Nesse sentido, Luis

Roberto Barroso também aponta os direitos fundamentais como um conjunto composto pelas

60 SARLET, Ingo, Wolfgang, op. cit., p. 119. 61 Idem, p. 121. “A idéia nuclear – que aqui não poderá ser desenvolvida – é a de que eventuais medidas supressivas ou restritivas de prestações sociais implementadas (portanto, retrocessivas em matéria de conquistas sociais) pelo legislador haverão de ser consideradas inconstitucionais por violação do princípio da proibição de retrocesso sempre que, com isso, restar afetado o núcleo essencial legislativamente concretizado dos direitos fundamentais, especialmente, e acima de tudo, nas hipóteses em que resultar uma afetação da dignidade da pessoa humana (já que também aqui não há uma identidade necessária entre as noções de conteúdo essencial e conteúdo em dignidade), no sentido de um comprometimento das condições materiais indispensáveis para uma vida com dignidade, no contexto daquilo que tem sido batizado como mínimo existencial.” 62 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flavio Gomes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 733. 63 SILVA, José Afonso da, op. cit., p. 181.

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categorias: direitos individuais, direitos políticos, direitos sociais e direitos coletivos ou

difusos.64

Diante do tema objeto da presente investigação, assinala-se que, apesar da função

protetiva, o princípio da dignidade serve também como justificativa para a imposição de

restrições aos direitos fundamentais, atuando, desse modo, como elemento limitador destes.

Isso porque é preciso assegurar igualmente a dignidade de todos. Assim, Ingo Sarlet esclarece

que mesmo o princípio da dignidade da pessoa humana estará sujeito a uma necessária

relativização, devido à sua própria condição principiológica, e quando tivermos, no caso

concreto, a dignidade de um indivíduo contraposta à igual dignidade de terceiros.65

Assim, embora uma parte expressiva da doutrina não admita que a dignidade da

pessoa humana esteja sujeita à ponderação,66 Ingo Sarlet explica que, nas tensões observadas

no relacionamento entre pessoas igualmente dignas, não poderá ser dispensada uma certa

ponderação (ou hierarquização, como prefere o autor), que não poderá ter como resultado o

sacrifício da dignidade como valor intrínseco e insubstituível de cada ser humano (que, como

tal, deverá ser sempre protegido e reconhecido). Para o autor, essa ponderação (ou

relativização) decorre da necessidade de solucionar o caso concreto, e da circunstância de os

direitos fundamentais não possuírem o mesmo conteúdo em dignidade, uma vez que estes

constituem exigências e concretizações em maior ou menor grau daquele.67

A idéia do autor é traduzida com inegável clareza num exemplo em que mostra,

justificando a afirmativa da necessária ponderação, ser admissível ter-se por imprescindível,

até que se vislumbre alternativa igualmente eficaz e com menor ofensa à dignidade, a

imposição da pena de prisão em regime fechado, assegurando-se, mesmo assim, um mínimo

de dignidade e direitos fundamentais ao preso. Esse mínimo seria, na maioria dos Estados

64 BARROSO, Luiz Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. 3 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, pp. 99 e ss. 65 SARLET, Ingo Wolfgang, op. cit., p. 130. 66 Nesse sentido, cf. SARMENTO, Daniel, op. cit., p. 76.

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Democráticos de Direito, a vedação das penas cruéis e desumanas, da tortura, de certos meios

de provas – como o “soro da verdade” –, e a observância das garantias da individualização da

pena, da progressão no cumprimento da pena de prisão, no direito de receber visitas e

outros.68

1.2.2 Direitos e garantias fundamentais

Falou-se acima que a doutrina considera que o conteúdo do princípio da dignidade

humana está relacionado aos direitos fundamentais, tendo sido apontadas algumas definições.

Na verdade, correspondendo os direitos fundamentais a valores e carências vitais do indivíduo

histórico e culturalmente determinado, como afirma Ferrajoli, é necessário haver instrumentos

que possam assegurar aos seus titulares seu pleno exercício. É o que a doutrina chama de

garantias, que, inegavelmente, fazem parte do texto constitucional. Nesse sentido, o estudo

metodológico do processo, instrumento de inegável missão garantista, exige que se estabeleça

ainda uma outra distinção: a que se dá entre direitos e garantias constitucionais.

A doutrina reconhece a distinção entre direitos e garantias, tendo sido Rui Barbosa69

aquele que, entre nós, foi provavelmente quem primeiro abordou o tema. Esclarece o jurista

que direitos são “aspectos, manifestações da personalidade humana em sua existência

subjetiva, ou nas situações de relação com a sociedade, ou os indivíduos que a compõem”. Já

a garantia seria a condição de segurança política ou judicial dos direitos assegurados pela

67 Cf. SARLET, Ingo, Wolfgang, op. cit., p. 131. 68 Idem, p. 133. 69 BARBOSA, Rui. Atos inconstitucionais. Atualização Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: Russell Editores, 2003. Ao analisarem as origens do controle judicial difuso de constitucionalidade no STF, Alexandre de Moraes e Lenio Luiz Streck apontam Rui Barbosa como o primeiro jurista que demonstrou e provocou o STF no sentido de estar expressa, na Constituição de 1891, a competência da Justiça Federal e, em última instância, do próprio STF, para realizar o controle de constitucionalidade dos atos do Executivo ou do Legislativo incompatíveis com a Constituição, debatendo a matéria numa causa que patrocinava. Cf. MORAES, Alexandre de. Jurisdição constitucional e tribunais constitucionais: garantia suprema da constituição. São Paulo: Atlas, 2000, p. 250; e STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 343.

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Constituição, chamando-se de garantias stricto sensu as “solenidades tutelares de que a lei

circunda alguns desses direitos contra os abusos de poder”.70

Alerta o autor que a confusão que muitas vezes ocorre entre direitos e garantias se

desvia do rigor científico que deve presidir a interpretação dos textos e adultera o sentido

natural das palavras, afirmando que direito “é a faculdade reconhecida, natural ou legal, de

praticar ou não praticar certos atos” e “garantia ou segurança de um direito é o requisito de

legalidade, que o defende contra a ameaça de certas classes de atentados, de ocorrência mais

ou menos fácil”.71

Vejamos as palavras do autor sobre a distinção no texto constitucional daquela

época:

Verdade é que também não se encontrará, na Constituição, parte ou cláusula

especial que nos esclareça quanto ao alcance da locução “garantias

constitucionais”. Mas a acepção é óbvia, desde que separemos, no texto

fundamental, as disposições meramente declaratórias, que são as que

imprimem existência legal aos direitos reconhecidos, e as disposições

assecuratórias, que são as que, em defesa dos direitos, limitam o poder.

Aquelas instituem os direitos; estas, as garantias; ocorrendo não raro juntar-

se, na mesma disposição constitucional ou legal, a fixação da garantia com a

declaração do direito. Essa discriminação se produz, naturalmente, de um

modo material, pela simples enunciação de cada cláusula...72

Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho aponta, além dos direitos

fundamentais e garantias, também as garantias institucionais, esclarecendo que os direitos

fundamentais podem ser apontados como “declarações de imprescindibilidade de um rol de

situações jurídicas de vantagem que corresponderia a um núcleo mínimo de direitos

70 BARBOSA, Rui, op. cit., p. 154. 71 Idem, p. 156. 72 Idem, p. 157.

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necessários, essenciais e fundamentais para o desenvolvimento do homem”. Garantias, a seu

turno, seriam os mecanismos de proteção aos referidos direitos. E, por fim, as garantias

institucionais seriam aquelas que “protegeriam certas instituições às quais corresponderiam

determinadas funções ou tarefas que o Estado se propõe a cumprir”.73

José Afonso da Silva analisa de forma detalhada a distinção entre direitos

fundamentais e garantias. Ao tratar do conceito de direitos fundamentais, afirma que

considera como melhor expressão para designá-los “direitos fundamentais do homem”, que

“não significa esfera privada contraposta à atividade pública, como simples limitação ao

Estado ou autolimitação deste, mas limitação imposta pela soberania popular aos poderes

constituídos do Estado que dela dependem”.74 Refere-se ainda aos direitos fundamentais

como um fim em si, constituindo um “conjunto de faculdades e prerrogativas que asseguram

vantagens e benefícios diretos e imediatos ao seu titular”. Classifica-os, como já mencionado,

correlacionando-os com os dispositivos da Constituição Federal de 1988, em direitos

individuais, direitos coletivos, direitos sociais, direitos à nacionalidade e direitos políticos.75

Mais adiante, após esclarecer que seu estudo terá enfoque nas garantias dos direitos

fundamentais, divide-as em dois grupos. Ao primeiro, denomina de garantias gerais aquelas

“destinadas a assegurar a existência e a efetividade (eficácia social) daqueles direitos”.

Adverte o autor que elas “se referem à organização da comunidade política, e que poderíamos

chamar condições econômico-sociais, culturais e políticas que favorecem o exercício dos

direitos fundamentais”. Afirma que “o conjunto dessas garantias gerais formará a estrutura

social que permitirá a existência real dos direitos fundamentais”.76

73 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho, op. cit., p. 13. 74 SILVA, José Afonso da, op. cit., p. 177. O autor critica a concepção dos direitos fundamentais como categorias de direito público subjetivo, apontando tal concepção como atrelada a um conceito técnico-jurídico do Estado Liberal, já superado (cf. pp. 175-6). 75 Idem, pp. 186 e 181. 76 Idem, p. 185.

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Ao segundo grupo, chama de garantias constitucionais, “que consistem nas

instituições, determinações e procedimentos mediante os quais a própria Constituição tutela a

observância ou, em caso de inobservância, a reintegração dos direitos fundamentais”. Dentro

desse último grupo, o autor reconhece dois subgrupos: as garantias constitucionais gerais, que

consistem em “imposições positivas ou negativas, aos órgãos do poder público, limitativas de

sua conduta, para assegurar a observância ou, no caso de violação, a reintegração de direitos

fundamentais”; e as garantias constitucionais especiais, que “são normas constitucionais que

conferem aos titulares dos direitos fundamentais meios, técnicas, instrumentos ou

procedimentos para impor o respeito ou a exigibilidade de seus direitos”.77

Afirma o autor que esta última categoria, as garantias constitucionais especiais, são

normas que constituem também direitos (conexos com os direitos fundamentais), porque são

permissões concedidas pelo Direito Constitucional objetivo ao indivíduo para a defesa desses

outros direitos principais e substanciais, e conclui que elas, e não os direitos fundamentais,

são os autênticos direitos públicos subjetivos, no sentido elaborado pela doutrina clássica,

“porque efetivamente são concedidas pelas normas jurídicas constitucionais aos particulares

para exigir o respeito, a observância, o cumprimento dos direitos fundamentais em concreto”.

Nesse caso, aí sim, impõem ao poder público atuações ou vedações destinadas a fazer valer os

direitos garantidos.78

Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho também registra as críticas que

foram feitas à associação entre direito público subjetivo e direito fundamental, especialmente

a formulada por Luigi Ferrajoli.79 Com efeito, como bem percebido pelo autor, Luigi Ferrajoli

esclarece que a formulação dos direitos fundamentais foi concebida como se referindo a

direitos naturais, anteriores mesmo ao Estado, ao passo que a doutrina dos direitos subjetivos

é modelada sob a figura do potestas agendi e/ou do interesse sobre os bens, que explica o

77 Idem, p. 186. 78 Ibidem.

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direito de propriedade. E que a transposição da teoria do direito subjetivo para os direitos

fundamentais deu origem aos direitos públicos subjetivos, que seriam uma autolimitação ou

auto-imposição do Estado, subordinados ao interesse geral, devido à natureza pública dos

interesses em jogo.80 Assim se insurge Ferrajoli: “Em todos os casos, a tese liberal clássica

segundo a qual são direitos vitais ou ‘fundamentais’ que fundam e justificam o Estado é

invertida na oposta tese segundo a qual é o Estado que funda os direitos vitais dos cidadãos,

neste ponto não mais ‘fundamentais’”.81

Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho finaliza apontando que é possível

admitir-se a limitação de alguns direitos fundamentais mesmo no campo processual penal, o

que poderá ser feito com o apoio da teoria da ponderação de interesses,82 no que se concorda

com o autor, apesar da opinião de Luigi Ferrajoli, que admite a existência de direitos

fundamentais absolutos, os quais não poderiam sofrer qualquer limitação.83

1.2.3 O princípio da dignidade humana e o sistema acusatório

O presente trabalho está centrado na intervenção do Estado na esfera de liberdade do

indivíduo, por meio do sistema punitivo e, em especial, do instrumento para essa intervenção

– o processo penal. Desse modo, ao se tratar do princípio da dignidade humana, faz-se

necessário abordar os reflexos de sua adoção como fundamento do Estado brasileiro na

eleição de nosso sistema processual.

No âmbito do Direito Processual Penal, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de

Caravalho ressalta que o princípio da dignidade humana ensejou o surgimento das teorias que

passaram a conceber o processo como relação jurídica, em que o acusado – assim como o

79 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho, op. cit., p. 15. 80 FERRAJOLI, Luigi, op. cit., p. 731. 81 Ibidem. 82 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho, op. cit., p. 16. 83 FERRAJOLI, Luigi, op. cit., p. 734.

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autor da ação – passou a ser reconhecido como sujeito de direitos, deveres, faculdades e ônus

processuais.84

Nesse sentido, registra que o desenvolvimento histórico do Direito Processual Penal

permite identificar a existência de três sistemas de processo distintos: o acusatório, o

inquisitivo e o misto. O sistema acusatório seria caracterizado por uma maior publicidade dos

atos processuais, pela tripartição das funções de acusar, defender e julgar em três pessoas

distintas, pela presença de contraditório e por um grau maior de isenção do magistrado na

condução do procedimento.

Com efeito, Geraldo Prado define o sistema acusatório como o conjunto de “normas

e princípios fundamentais, ordenadamente dispostos e orientados a partir do principal

princípio, qual seja, aquele do qual herda o nome: acusatório”.85 Aponta como núcleo do

princípio acusatório a existência de um processo no qual há divisão entre três sujeitos

distintos, das tarefas de acusar, defender e julgar. 86

Geraldo Prado registra como características do sistema acusatório: o poder de

decisão entregue a um órgão estatal, distinto daquele que tem o poder exclusivo de iniciativa

do processo; o impulso oficial da persecução penal desenvolvida conforme os princípios do

contraditório, com paridade de armas, oralidade e publicidade; a livre apreciação judicial das

provas, não havendo necessidade de fundamentação da decisão; a irrecorribilidade da decisão,

tendo em vista a legitimidade do órgão que a profere; a liberdade do acusado até a sentença

condenatória definitiva.87

Jacinto Nelson de Miranda Coutinho entende que, no sistema acusatório, o processo

continua sendo um instrumento de descoberta de uma verdade histórica. Todavia, ressalta que

84 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho, op. cit., pp. 29-30. O autor se refere às teorias de Wach e Bülow, que, no século XIX, passaram a conceber o processo como uma relação jurídica na qual o acusado, assim como o autor da ação, são admitidos como sujeitos de direitos, deveres, faculdades e ônus processuais. 85 PRADO, Geraldo. Princípio acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 3 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 104. 86 Ibidem.

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a característica fundamental do sistema consiste no fato de a gestão da prova estar nas mãos

das partes, e que o juiz dirá, com base exclusivamente nessas provas, o direito a ser aplicado

ao caso concreto. Aponta ainda outras características do processo acusatório: o órgão julgador

é uma assembléia ou um grupo de jurados populares (júri); há igualdade entre as partes, sendo

o juiz um árbitro, sem iniciação de investigação; nos delitos públicos, a acusação é

desencadeada por ação popular, ao passo que, nos delitos privados, a atribuição é do ofendido;

o processo é oral, público e contraditório; a prova é avaliada dentro da livre convicção; a

sentença passa em julgado; e a liberdade do acusado é regra antes da condenação.88

O sistema inquisitivo para Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho seria

caracterizado pelo sigilo dos atos processuais, pela concentração das funções de acusar e

julgar no juiz, pela ausência de contraditório e pela ampla participação do magistrado na

obtenção das provas, o que implica total parcialidade do julgador. Relata o autor que

predomina a tortura como meio de obtenção da prova principal, que é a confissão,

considerada a prova absoluta do fato.89

Nesse sentido, cumpre registrar que Jacinto Nelson de Miranda Coutinho e Geraldo

Prado apontam que a terminologia do sistema deve ser inquisitório, sendo inquisitivo o

princípio que o rege. Assim, Jacinto aponta a definição de princípio como sendo o “motivo

conceitual sobre o(s) qual(is) funda-se a teoria geral do processo penal, podendo estar

positivado (na lei) ou não”.90 Esclarece o autor que motivo conceitual, nos termos

apresentados, quer significar mito, que, para ele, “pode ser tomado como a palavra que é dita,

para dar sentido, no lugar daquilo que, em sendo, não pode ser dito”.91

87 Idem, pp. 102-3. 88 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. “Introdução aos princípios gerais do direito processual penal brasileiro”. Revista de Estudos Criminais. Porto Alegre: Nota Dez/ITEC, 2001 [Separata doutrinária. Processo Penal], p. 4. 89 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho, op. cit., p. 28. 90 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda, op. cit., p. 1. 91 Ibidem.

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Assentada essa noção de princípio, e admitida que sua significação é antes, um mito,

pois não é possível, nesse momento, desvendar aquilo que as palavras não podem, por si só,

expressar, reconhece o autor a enorme importância dos princípios, advertindo que muitas

vezes, embora os operadores do Direito saibam de sua importância, não conseguem apreender

seu sentido, o que dificulta seu manejo, e, de forma perigosa, possibilita um efeito alienante,

que consiste em risco quando estão em jogo valores fundamentais.

No que tange à função dos princípios gerais do processo penal, Jorge de Figueiredo

Dias ressalta que eles “dão sentido à multidão das normas, orientação ao legislador e

permitem à dogmática não apenas explicar, mas verdadeiramente compreender, os problemas

do Direito Processual e caminhar com segurança ao encontro da solução”.92 Nesse sentido,

Jacinto destaca que, para estabelecer o que sejam os princípios fundamentais, é necessário

iniciar o estudo pela análise dos princípios referentes à organização dos sistemas

processuais.93

Jorge de Figueiredo Dias aponta ainda que o sistema inquisitório, regido pelo

princípio inquisitivo, caracteriza-se pela gestão da prova confiada essencialmente ao

magistrado que detém o domínio do processo, para se informar o mais amplamente dos fatos

penalmente relevantes e, em regra, recolhê-la inclusive de forma secreta.94

Gustavo Badaró ressalta que o sistema inquisitório é baseado num princípio de

autoridade segundo o qual a verdade é tanto melhor acertada quanto maiores forem os poderes

atribuídos ao investigador. Enfatiza que, em relação ao método probatório, “há uma

substituição da concepção argumentativa por uma concepção demonstrativa da prova baseada

nos modelos científico-experimentais”. Aponta como principais características do processo

inquisitório: concentração das funções de acusar, defender e julgar numa única pessoa, o juiz

92 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito processual penal. Coimbra: Coimbra, 1974, p. 113. 93 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda, op. cit., p. 3. 94 DIAS, Jorge de Figueiredo, op. cit., p. 247. Também nesse sentido, cf. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda, op. cit., p.3.

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acusador; o réu não é parte, mas um objeto do processo; a ação inicia-se ex officio, por um ato

do juiz; não há contraditório; a investigação cabe unilateralmente ao inquisidor; o processo é

escrito e secreto, não sendo possível falar-se em relação jurídica processual; ampla liberdade

do juiz inquisidor na colheita das provas; o acusado normalmente permanece preso durante o

processo; utilização da tortura para se alcançar a confissão.95

O sistema misto seria, para Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho, aquele

que aproveita características de ambos os sistemas, em fases distintas do processo.96

Entretanto, Gustavo Badaró e Jacinto Nelson de Miranda Coutinho alertam para a inexistência

de um sistema misto. Nesse sentido, este último autor afirma que, embora muito se fale

atualmente em sistemas processuais mistos, não existe um princípio misto, e por isso é

importante ter em mente que o “sistema misto” será, em essência, inquisitório ou acusatório.

Apreendidas as noções das principais características de cada sistema, é importante

registrar uma breve evolução dos sistemas processuais. Luis Gustavo Grandinetti Castanho de

Carvalho relata que o processo acusatório vigorou inicialmente até o século XII, quando

cedeu lugar ao sistema inquisitivo (na concepção adota neste trabalho, inquisitório), devido às

críticas que lhe culpavam por dificultar a apuração da verdade e a punição dos culpados. O

sistema inquisitivo (inquisitório) se fortaleceu gradativamente até o século XIV, quando,

então, se espalhou pela legislação de outros povos, impulsionado pelo Direito Canônico.

O século XVIII ensejou os primeiros movimentos contrários ao sistema inquisitório,

que teve no Direito Penal sua primeira expressão. A Escola Clássica contestava o arbítrio e

postulava a restauração da dignidade humana e a humanização do direito de punir. Essa

necessidade de valorização do homem foi dirigida ao Direito Processual Penal, cuja

95 BADARÓ, Henrique Righi Ivahy, Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, pp. 104-5. Henrique Badaró sustenta que o princípio nuclear do sistema acusatório é o princípio dispositivo, mas não associado à gestão da prova pelas partes, como o faz Jacinto Coutinho. Afirma que, em sentido amplo, “o princípio dispositivo pode ser entendido como senhorio ilimitado das partes, tanto sobre o direito substancial, debatido no processo, como sobre todos os aspectos vinculados com o início, a marcha e o término do processo” (Cf. p. 66).

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autonomia em relação ao Direito Penal ainda não era reconhecida, modificando o sistema

inquisitório para o acusatório ainda no século XVIII. Luis Gustavo Grandinetti Castanho de

Carvalho assinala que, embora esse movimento da Escola Clássica tenha coincidido com o

Iluminismo – que tinha como principais características “a racionalidade e a existência de um

senso moral que deve guiar as ações humanas” –, não deve ser creditada exclusivamente a

este último a valorização do princípio da dignidade humana no âmbito do Direito e do

Processo Penal, embora não se negue que pensadores da Escola Clássica tenham sido

influenciados por filósofos iluministas.97

Desse modo, no século XIX, o autor registra que as teorias que passaram a admitir o

processo como relação jurídica, sobretudo com as idéias de Wach e Bülow, foram

extremamente importantes, porque consistiram no reconhecimento de que o acusado deixava

de ser definitivamente objeto do processo para se tornar sujeito da relação processual, titular

de direitos processuais, apto a exercê-los em igualdade de condições com o autor da

demanda.98

Assim, afirma que a valorização da dignidade humana, que teve na Revolução

Francesa sua grande expressão, possibilitou a construção das bases teóricas da volta ao

sistema acusatório, que hoje é abrigado pelo princípio (e fundamento) constitucional da

dignidade humana, que abrange ainda todas as demais garantias processuais elencadas no

texto constitucional, como o contraditório e a ampla defesa.

Com efeito, Geraldo Prado também sustenta a tese de que o sistema acusatório foi

adotado pela Constituição Federal de 1988, ainda que não de forma expressa, embora advirta

que prevalece também a “teoria da aparência acusatória”. As palavras do autor esclarecem a

opção constitucional pelo sistema acusatório, embora os estatutos processuais ainda estejam

bastante impregnados por dispositivos afinados com o sistema inquisitório:

96 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho, op. cit., p. 28. 97 Idem, pp. 28-9.

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Assim, se aceitarmos que a norma constitucional que assegura ao Ministério

Público a privatividade do exercício da ação penal pública, na forma da lei,

a que garante a todos os acusados o devido processo legal, com ampla

defesa e contraditório, além de lhes deferir, até o trânsito em julgado da

sentença condenatória, a presunção de inocência, e a que, aderindo a tudo,

assegura o julgamento por um juiz competente e imparcial, chegaremos à

conclusão de que, embora não o diga expressamente, a Constituição da

República o adotou.

Verificando que a Carta Constitucional prevê, também, a oralidade no

processo, pelo menos como regra para as infrações penais de menor

potencial ofensivo, e a publicidade, concluiremos que se filiou, sem dizer,

ao sistema acusatório.

Porém, se notarmos o concreto estatuto jurídico dos sujeitos processuais e a

dinâmica que entrelaça todos esses sujeitos, de acordo com as posições

predominantes nos tribunais (principalmente, mas não com exclusividade,

no Supremo Tribunal Federal), não nos restará alternativa, salvo admitir,

lamentavelmente, que prevalece, no Brasil, a teoria da aparência

acusatória.99

Ainda sobre a opção constitucional pelo sistema acusatório, são extremamente

importantes as observações de Geraldo Prado quando analisa as relações entre Estado,

processo e democracia. Afirma o autor que a democracia consiste e se desenvolve não só com

a garantia dos direitos individuais, mas também com a dos direitos sociais, diminuindo-se a

marginalização e tornando possível a participação pública responsável, no duplo sentido que

encerra: na gestão de todas as atividades concernentes ao governo e à sociedade, incluindo-se

a produção legítima do direito regulador das relações sociais, e no exercício do controle

legítimo da atividade processual.100 Assinala, ainda, que a democracia contamina o processo

98 Idem, p. 29. 99 PRADO, Geraldo, op. cit., p. 195. 100 Idem, pp. 31-2.

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penal, constatando que a assertiva de que a estrutura de um processo penal democrático é

aquela em que se deve respeitar sempre o método dialético, reservando ao juiz a função de

julgar “sintetizando”, mas com a colaboração das partes, despindo-se, contudo, da persecução

penal (donde surge a relação triangular, trave-mestra do processo acusatório), deve ser

atribuída à concepção ideológica de um processo penal democrático.101

Conclui o autor que “a eleição ideológica do sistema acusatório é uma conseqüência

natural das influências do princípio democrático em relação ao Direito”.102 É que, projetando-

se a separação de poderes como mecanismo de viabilização da soberania popular, “identifica

nas atuações legislativa e judicial esferas distintas quanto à origem das respectivas

investiduras, de sorte a conceber também modos diferentes de captação e orientação

epistemológica e normativa das ações desenvolvidas em ambos os campos”.103

1.3 Princípios e garantias constitucionais do processo penal

A consolidação do Estado moderno e seu fortalecimento trouxeram a necessidade de

normas que garantissem os direitos fundamentais da pessoa humana contra o forte poder

estatal intervencionista na relação Estado-indivíduo. Desse modo, normas que impõem ao

Estado e à própria sociedade o respeito aos direitos individuais passaram a fazer parte das

constituições. No Processo Penal, manifesta-se o conflito entre o poder de punir do Estado e o

direito de liberdade do indivíduo, motivo pelo qual as normas processuais devem ter por

escopo a proteção aos direitos fundamentais, limitando o poder punitivo estatal. Assim, as

normas constitucionais de garantia processual penal ganham especial relevo, especialmente os

princípios, por seu papel orientador e diretor de todo o sistema normativo.

101 Idem, pp. 32-4. 102 Idem, p. 34. 103 Ibidem.

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A Constituição Federal brasileira de 1988 também possui em seu texto diversas

normas garantistas. Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho observa que ela “é

extremamente caprichosa, minuciosa, ao demarcar, de forma precisa, os limites da

intervenção estatal na esfera das liberdades individuais – melhor dizer, liberdades

públicas”.104

Os princípios e as garantias constitucionais do Processo Penal têm sido identificados

e estudados pela doutrina,105 sendo várias as normas que expressam seu conteúdo. Entretanto,

apesar de se tratar de tema tão sedutor, abordar-se-á apenas aqueles julgados mais importantes

para fundamentar a crítica que será empreendida no presente trabalho, cujo objeto de

investigação é a suspensão condicional do processo.

1.3.1 A garantia do devido processo legal

Antes de examinar o tema, é preciso advertir que se optou pelo termo garantia, como

utilizado por Antonio Scarance Fernandes, por se entender que melhor se ajusta à distinção

empreendida no item 1.2 do presente trabalho, embora autores como Luis Gustavo

Grandinetti Castanho de Carvalho106 e José Afonso da Silva107 utilizem o termo princípio.

O processo é o meio pelo qual o juiz, como órgão do Estado, exerce a atividade

jurisdicional, buscando a solução mais justa para o caso concreto. Antonio Scarance

Fernandes aponta que tal atividade deve desenvolver-se, em estruturação equilibrada e

cooperadora, nas atividades do Estado (jurisdição) e das partes (autor e réu), não devendo

haver predominância de nenhuma delas.108 O autor, citando Greco Filho, registra que o

processo é garantia ativa e passiva. Ativa porque permite à parte utilizar-se dele para corrigir

104 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho, op. cit., p. 3. 105 Cf. CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho, op. cit.; FERNANDES, Antonio Scarance, op. cit.; TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e garantias no processo penal brasileiro. 2 ed. revista e atualizada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. 106 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho, op. cit., p. 125. 107 SILVA, José Afonso da, op. cit., p. 411.

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alguma ilegalidade, citando como exemplos o habeas corpus e o mandado de segurança. E o

processo como garantia passiva porque, primeiro, impede os excessos do Estado de impor

coativamente sua pretensão punitiva restringindo a liberdade individual, senão por meio de

competente processo legal, evitando-se, assim, a justiça pelas próprias mãos. E, segundo,

porque impede também a justiça privada, assegurando que o direito de alguém não seja

submetido ao de outrem senão pela atividade jurisdicional, cabendo ao Estado-juiz examinar o

cabimento e a legitimidade da pretensão.109

O antecedente remoto da garantia do devido processo legal é apontado como o art. 39

da Magna Carta, outorgada em 1215 por João Sem-Terra a seus barões na Inglaterra, e

utilizado inicialmente o termo law of the land. A garantia representava a limitação ao

absolutismo e suas práticas. Posteriormente, a expressão foi substituída por due process of

law, tendo sido incorporada à Constituição dos Estados Unidos da América do Norte nas

emendas n°s V e XIV e, mais tarde, às Constituições européias.110

Antonio Scarance Fernandes relata que, a princípio, na primeira metade do século

XX e em parte da segunda, essa garantia foi marcada por uma visão individualista que admitia

o devido processo legal como destinado a resguardar os direitos públicos subjetivos das

partes. Posteriormente, essa visão cedeu à preponderância de uma ótica publicista, que admite

as regras do devido processo legal como garantias, não direitos, das partes e do justo

processo. Essa garantia continua, não está adstrita ao âmbito estritamente processual, tendo

caráter substancial, por meio do qual se exige um processo legislativo de elaboração de lei

regular e previamente definido, bem como a razoabilidade e a justiça de seus dispositivos, que

devem estar em consonância com o texto constitucional.111

108 FERNANDES, Antonio Scarance, op. cit., p. 31. 109 Idem, p. 32. 110 Ibidem. 111 Idem, p. 43.

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Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho comenta que o due process of law

teve nos Estados Unidos seu grande desenvolvimento doutrinário e substancial, tendo sido

investigado pela jurisprudência daquele Estado o sentido substantivo do princípio: o

substantive due process (neste trabalho, garantia). Entendido o due process of law “como

expressão de um processo estritamente legal em que se dão às partes as oportunidades amplas

de alegar e de provar”, ele foi utilizado para “examinar a razoabilidade e a racionalidade de lei

ou de ato normativo do poder público, a ponto de impedir sua vigência se evidenciada

qualquer arbitrariedade”, vale dizer, “quando não forem consentâneos com a law of the land

ou com o substantive due process”, apontando o autor que, no direito substantivo, assumiu a

denominação de princípio da razoabilidade, importante instrumento no controle de

constitucionalidade das leis e atos normativos.112

O autor se refere também ao amplo significado que está atrelado ao devido processo

legal, englobando vários outros princípios processuais. Aponta que ele deve ser admitido

como uma norma de encerramento se, por acaso, os demais princípios não forem suficientes

para resguardar determinada garantia processual, não prevista de modo expresso na lei. E que

constituem aspectos complementares do devido processo legal as garantias do contraditório,

da ampla defesa, da publicidade, da motivação e do juiz natural.113

Com efeito, como será visto mais adiante, de forma detalhada, o processo penal é

encarado pela moderna doutrina como instrumento para a garantia de proteção dos direitos

fundamentais. Nesse sentido, a garantia do devido processo legal se estende ao processo

penal, havendo quem fale em devido processo penal.114 Em nossa Constituição, a garantia está

prevista no art. 5º, inciso LIV.115

112 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho, op. cit., pp. 126-7. 113 Idem, p. 125. 114 FERNANDES, Antonio Scarance, op. cit., pp. 42-3. 115 “Art. 5º [...] inciso LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.”

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Quanto à análise do sentido substantivo do devido processo legal em face das

medidas cautelares no processo penal, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho ensina

que há estreita associação entre o devido processo legal e o princípio da proporcionalidade e

da razoabilidade, pois o primeiro permite ao juiz aferir se a imposição de uma medida coativa

processual penal “é legal, teleologicamente justificável, necessária, idônea e preenche os

demais requisitos de motivação e jurisdicionalidade”. Nas palavras do autor:

A importância da aplicação prática do devido processo legal está em se

discutir, à luz da proporcionalidade ou da razoabilidade, a conveniência das

custódias corporais cautelares, como a prisão temporária, preventiva,

provisória, decorrente de flagrante de sentença condenatória. A manutenção

dessas formas de prisão só se admite no limite exato do devido processo

legal (princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade). Tudo que

exceder à justa medida afigura-se inconstitucional e deve ser rejeitado pelos

tribunais.116

A delimitação do conteúdo substantivo do princípio assume, desse modo, grande

relevo quando se admite o processo como garantia dos direitos fundamentais, e representa um

marco importante para o estudo que será realizado sobre o instituto da suspensão condicional

do processo.

1.3.2 O princípio da igualdade

O princípio da igualdade, consagrado no art. 5º, caput,117 da Constituição Federal,

deve nortear a atividade não só do legislador, mas também do intérprete e do aplicador do

Direito.

116 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho, op. cit., p. 129. 117 “Art. 5º: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.”

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Carmen Lúcia Antunes Rocha aponta a liberdade e o princípio da igualdade como os

dois grandes pilares sustentadores da democracia, enquanto princípio maior da aspiração

política, cuja realização é buscada pelo Estado contemporâneo.118 A autora esclarece que o

princípio jurídico da igualdade exige não apenas que se tratem igualmente os iguais e, ao

contrário, desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade, mas também que ele

seja instrumento para erradicar as desigualdades criadas pela própria sociedade, estabelecendo

“até onde e em que condições as desigualdades podem ser acompanhadas por tratamentos

desiguais sem que isso constitua a abertura de uma fenda legal maior e uma desigualação mais

injusta”.119

No processo de consolidação do Estado moderno, Carmen Lúcia Antunes Rocha

aponta que o primeiro texto normativo que o abordou de modo firme e com uma função

determinante foi a Constituição da Virgínia de 12 de junho de 1776, seguida pela Constituição

da Pensilvânia de 12 de novembro de 1776, após o que passou a ser adotada em outros textos

constitucionais.120 Nesse processo, são apontadas três fases históricas da formulação do

princípio da igualdade:121 a primeira delas corresponde a um período no qual a constituição da

sociedade se deu sob o influxo de desigualdades artificiais, fundadas especialmente nas

diferenças entre ricos e pobres, sendo legitimadas e expressas a distinção e a discriminação.

Tal período teve como preponderantes os regimes despóticos.

A segunda fase corresponde ao momento no qual a sociedade estatal reconheceu as

desigualdades como matéria difícil e que necessitava ser regulamentada para se circunscrever

aos limites que atendessem às pretensões dos burgueses – que eram os novos autores das

normas –, mas que também assegurasse um certo arcabouço contra os ataques dos

118 ROCHA, Carmen Lucia Antunes Rocha. O princípio constitucional da igualdade. Belo Horizonte: [s.l.], 1990, p. 30. 119 Idem, p. 34. 120 Idem, p. 31. 121 A respeito das três fases históricas da formulação do princípio da igualdade, cf. ROCHA, Carmen Lucia Antunes Rocha, op. cit., p. 35.

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privilegiados em títulos de nobreza e outras regalias no poder. Naquele período, estabeleceu-

se um Direito que se fundava no reconhecimento da igualdade dos homens, em sua dignidade,

em sua condição essencial de ser humano, positivando-se, assim, o princípio da igualdade.

Trata-se do período no qual o princípio da igualdade foi formulado em sua concepção formal.

A terceira fase corresponde ao momento no qual a sociedade, compreendendo a

fragilidade do princípio jurídico da igualdade formal e a sua ineficácia, bem como o seu

afastamento da realidade plural e diversa, empreende uma tentativa de reconstrução do

princípio jurídico da igualdade, que traria um novo balizamento para o Direito. Em tal fase, o

princípio da igualdade foi formulado em sua concepção material.

Com efeito, ao estudarmos a natureza e a extensão do princípio jurídico da igualdade,

é necessário ter assentada a distinção entre igualdade formal e igualdade material. A fórmula

legal adotada na maioria das legislações – “todos são iguais perante a lei” –, também chamada

de isonomia, teve seu significado admitido, num primeiro momento, como “a lei tem

aplicação igual para todos”.122 Segundo tal interpretação, adotada no período do Estado

Liberal, havendo tratamento igualitário aos sujeitos amparados pela norma jurídica aplicada,

estar-se-ia cumprindo o princípio da igualdade perante a lei. Esse entendimento possibilitou,

como aponta Carmen Lúcia Antunes Rocha, situações nas quais havia separação dos

desigualados dentro da estrutura social, como, por exemplo, nos Estados Unidos, onde a

existência de escolas separadas para negros não era considerada afronta ao princípio da

igualdade, desde que ali fossem tratados igualmente, situação que perdurou até o julgamento

do caso Broen versus Board of Education pela Suprema Corte norte-americana.123

Ressentindo-se a doutrina e a jurisprudência de um entendimento ao princípio

jurídico da igualdade que permitisse ao Direito funcionar como um instrumento de

transformação e harmonização social e de justiça das relações entre os membros da sociedade

122 Idem, p. 36. 123 Idem, p. 37.

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política, passaram a atribuir a expressão assinalada “iguais na lei”, isto é, a própria norma

jurídica deve conferir tratamento igual aos iguais, não lhe sendo permitido atentar contra o

princípio e propiciar desigualação entre pessoas que se encontrem em situações de igualdade.

Com esse novo entendimento, buscava-se obrigar o próprio legislador a observar o

princípio da igualdade em sua obra, de modo que a lei não pudesse abrigar desigualdades sem

qualquer fundamentação de justiça. Embora tal enfoque dispensado ao princípio da igualdade

representasse, pelo menos no plano formal, um óbice à construção e à manutenção de

privilégios, tal obstáculo não impedia que existissem distinções admitidas como legítimas

pelo sistema normativo, tampouco criava a obrigação de superar e remover as diferenças

socioeconômicas.124

Passou-se, então, ao atual estágio da interpretação constitucional do princípio da

igualdade, no qual a lei deve ser instrumento criador das igualdades possíveis e necessárias à

formação de uma sociedade na qual haja relações justas e equilibradas entre seus membros.

Ela deve, ainda, vencer as desigualdades encontradas na sociedade por deturpação

socioeconômica, o que, às vezes, exige a desigualação de iguais sob o enfoque tradicional.

Reivindica-se, assim, um comportamento positivo do Estado, que, além de não poder criar

legalidades discriminatórias e desigualadoras, também não pode se abster de criar situações de

igualação visando eliminar as desigualdades que se criaram na realidade social em detrimento

das condições iguais de dignidade humana.125

Dessa imposição de uma atuação não só negativa, mas também positiva do Estado,

Carmen Lúcia Antunes Rocha extrai a função social do princípio jurídico da igualdade: a “de

transformar, por seu vigor impositivo, as condições sociais, de modo a torná-las mais

niveladas no plano socioeconômico para a plena eficácia da norma principiológica”.126

124 Idem, p. 38. 125 Idem, pp. 39-41. 126 Idem, p. 44.

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Assim, para exercer tal função social, faz-se necessário estabelecer critérios para a

aplicação do princípio. Com efeito, a autora alerta que há grande dificuldade em se

estabelecer um critério perfeito, porquanto nenhum deles pode ser considerado, de forma

abstrata e definitiva, “como impossível de se erigir como critério diferenciador, nem há

qualquer um que possa ser considerado, também aprioristicamente e em caráter terminativo,

como sempre justo para ser aproveitado como diferenciador”.127

Desse modo, primeiramente, é preciso estabelecer o que é vedado adotar como

critério. Na verdade, não se admite que fatores resultantes de atitudes discriminatórias por

preconceito sejam elevados a critério normativo de desigualação em função dessa condição.

Nesse sentido, Carmen Lúcia Antunes Rocha sustenta que, na verificação da validade do

critério desigualador das pessoas e situações, deve-se estar atento à sua natureza intrínseca, e

a estrita correspondência existente entre ele e o interesse legítimo que se pretende proteger no

sistema jurídico. Assim, deve-se inicialmente emitir um juízo de validade do critério, levando

em conta sua própria condição, sua essência, e não apenas uma condição externa a ele. E, a

seguir, deve-se indagar sobre a correspondência entre ele e o interesse ao qual se visa proteger

pelo sistema jurídico, se realmente há uma correlação imprescindível entre ambos, de modo

que o sistema jurídico possa ser alterado em sua positivação e eficácia em razão do critério

adotado.128

Analisando a Constituição Federal de 1988, a autora realça que todo fator que não

“guarde coerência imediata, lógica e substancial com o interesse justo resguardado pelo

sistema e posto à concretização por uma norma jurídica, refoge à validação constitucional”.129

Entretanto, embora a Constituição tenha elencado, exemplificativamente, de acordo

com a autora, alguns fatores que não poderão ser usados como elementos de discriminação,

ela os admite quando houver correspondência constitucionalmente validadora entre o seu uso

127 Idem, p. 45. 128 Idem, pp. 46-7.

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e o resultado de proteção ao interesse jurídico. Aponta, como exemplo, a vedação de

desigualdade pelo fator sexo, e a hipótese de concurso para a polícia feminina no qual

somente sejam admitidas candidatas do sexo feminino, o que não representaria afronta ao

princípio da igualdade.130 Outro exemplo mencionado por Celso Antônio Bandeira de Mello,

que também ilustra as considerações apresentadas, é o da hipótese de concurso público para

selecionar candidatos a exercícios físicos, controlados por órgãos de pesquisa, que sirvam de

base ao estudo e à medição da especialidade esportiva mais adequada às pessoas da raça

negra, no qual os indivíduos da raça branca não poderiam concorrer. Esclarece o autor que tal

discriminação não representaria afronta ao princípio da isonomia,131 uma vez que a pesquisa

proposta, perfeitamente válida, justificaria a distinção estipulada.132

Assim, também Celso Antônio Bandeira de Mello, ao analisar o conteúdo jurídico do

princípio da igualdade, chama a atenção para o fato de que, para estabelecer o conteúdo desse

princípio, não é suficiente recorrer à lição de Aristóteles, que afirma que a igualdade consiste

em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais. A tal assertiva, faz a seguinte

pergunta: “Quem são os iguais e quem são os desiguais?”133 As idéias de igualdade e

isonomia se complementam, sendo impossível conceber uma sem a outra. A partir desse

questionamento, o autor estabelece requisitos para que as discriminações levadas a cabo pela

lei não ofendam o princípio da isonomia.

Afirma que as discriminações realizadas pela lei somente poderão ser admitidas

como compatíveis com a cláusula igualitária quando existe um vínculo de correlação lógica

entre a peculiaridade diferencial acolhida por residente no objeto e a desigualdade de

129 Idem, p. 74. 130 Idem, pp. 74-6. O exemplo também é utilizado por MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3 ed. atualizada. São Paulo: Malheiros, p. 17. 131 Conforme já assinalado, a fórmula legal adotada em grande parte das legislações “todos são iguais perante a lei” é também chamada de isonomia, segundo o modelo grego. Aqui, são adotados os termos utilizados pelos autores, para guardar fidelidade à idéia original, mas as referências são, em ambos os casos, ao princípio jurídico da igualdade, previsto na Constituição Federal de 1988. 132 MELLO, Celso Antônio Bandeira de, op. cit., p. 16. 133 Idem, pp. 10-1.

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tratamento em função dela conferida, e, ainda, desde que tal correlação não seja incompatível

com os interesses prestigiados na Constituição.134 Ressalta que a discriminação, para ser

válida, deve recair sobre pessoas, situações ou coisas mediante traço diferencial que esteja

nelas mesmas presentes, concluindo que o princípio da isonomia preceitua que sejam tratadas

igualmente as situações iguais e desigualmente as desiguais, não havendo como desequiparar

pessoas quando nelas não se encontrem fatores desiguais.135

Aponta o autor que há ofensa ao princípio da igualdade quando o fator diferencial

adotado para qualificar os atingidos pela regra não guarda relação de pertinência lógica com a

inclusão do benefício deferido ou com a inserção ou afastamento da desvantagem imposta.

Realça, ainda, que a lei não pode atribuir efeitos valorativos ou depreciativos a critério

especificador, em desconformidade ou contradição com os valores presentes no sistema

constitucional ou nos padrões ético-sociais acolhidos pelo ordenamento. Conclui, assim, que

há ofensa ao princípio constitucional da isonomia, entre outras hipóteses, quando “a

interpretação da norma extrai dela distinções, discriminações ou desequiparações que não

foram professadamente assumidas por ela de modo claro, ainda que por via implícita”.136

No plano jurisdicional, a Constituição Federal de 1988 assegura a todos o igual

direito de receber do Estado a prestação jurisdicional plena e satisfativa. Além do direito de

petição aos poderes públicos, independentemente do pagamento de taxas, previsto no art. 5º,

inciso XXXIV, da CRFB/1988, e o direito de buscar o pronunciamento do Poder Judiciário

sobre qualquer lesão ou ameaça a direito, previsto no art. 5º, inciso XXXV, da CRFB/1988,

Carmen Lúcia Antunes Rocha aponta que a garantia constitucional da igualdade de – e na –

jurisdição se manifesta especialmente: pela vedação a juízos e tribunais de exceção, o que

prevalece no princípio do juiz natural (art. 5º, inciso XXXVII); pela garantia do juízo (art. 5º,

inciso LIII); pela garantia do devido processo legal (art. 5º, inciso LIV) e do princípio do

134 Idem, p. 17. 135 Idem, p. 29.

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contraditório e da ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, em processo judicial

ou administrativo (art. 5º, inciso LV); e, por fim, pela garantia de jurisdição gratuita àqueles

que demonstrarem insuficiência de recursos (art. 5º, inciso LXXIV).137

Por derradeiro, a autora ressalta que a igualdade no tratamento jurisdicional das

partes não significa, contudo, que todos serão julgados pelos mesmos tribunais ou juízos

regularmente constituídos pelo Poder Judiciário, havendo casos de competência de foros por

prerrogativa de função, estabelecidos em condição incomum, como no caso daquele que é

competente para julgar o presidente da República, em crimes de responsabilidade, e

governadores e prefeitos.138 Acrescenta que o tratamento paritário das partes processuais não

significa identidade. Isto porque a desigualdade econômica entre elas gera dificuldades de

resultado de justiça igual para ambas, havendo que se fazer, eventualmente, distinção de

tratamento, para que ocorra o equilíbrio almejado pelo princípio da igualdade.139

Nesse sentido, e referindo-se ao processo penal, Antonio Scarance Fernandes ressalta

que, para os acusados menores ou com problemas mentais, o código previa140 a nomeação de

curador (arts. 151 e 262 do Código de Processo Penal), no intuito de se compensar a

inferioridade física ou psicológica com maiores chances de defesa. Também aos acusados que

não podem arcar com as despesas do processo, ou constituir defensor, prevê o art. 5º, inciso

LXXIV, da Constituição Federal a garantia da isenção de custas e a assistência judiciária

gratuita.141

136 Idem, pp. 43 e 48. 137 ROCHA, Carmen Lucia Antunes Rocha, op. cit., p. 78. 138 Sobre a competência de foro por prerrogativa de função, cf. FERNANDES, Antonio Scarance, op. cit., p. 48, na qual o autor ressalta que a competência especial somente “pode ser aceita como prerrogativa de função quando, em virtude da profissão exercida ou do cargo político ocupado pelo agente, seja necessária para a garantia de correta aplicação da justiça”. 139 ROCHA, Carmen Lucia Antunes Rocha, op. cit., p. 78. 140 Contudo, a Lei n. 10.792/2003 revogou expressamente o art. 194 do Código de Processo Penal, que assegurava que o acusado menor deveria ser interrogado na presença de curador. Desse modo, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça reconheceu que, após o advento da referida norma, não mais subsiste a exigência de curador ao acusado menor de 21 anos, motivo pelo qual estariam derrogados tacitamente os arts. 15, 262 e 564, inciso III, alínea “c”, parte final, do Código de Processo Penal. Cf. RHC 16947/PR; 5ª TURMA, Rel. Min. Gilson Dipp, publicada no DJ 28/03/2005 p. 291. 141 FERNANDES, Antonio Scarance, op. cit., p. 47.

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Conforme esclarece Rogério Lauria Tucci, a garantia de acesso à justiça criminal,

prevista no art. 5º, e também na Lei n. 1.060, de 05/02/1950, compreende a acessibilidade

econômica e a acessibilidade técnica,142 abrangendo a totalidade dos atos do “procedimento

(tanto no processo extrapenal, como no penal – neste, desde a iniciação da persecutio criminis

ou de processo de conhecimento não-condenatório) até o trânsito em julgado de ato decisório

final”, abrangendo, segundo o autor, os seguintes custos: taxas judiciárias; emolumentos e

custas; despesas com publicações indispensáveis na Imprensa Oficial; indenizações devidas às

testemunhas que, “quando empregados, receber do empregador salário integral, como se em

serviço estivessem” e honorários de advogado e de peritos.143

Ainda no que se refere ao tratamento paritário das partes, Antonio Scarance

Fernandes aponta que, no processo penal, o tratamento diferenciado dispensado à acusação e à

defesa, com privilégio desta, se justifica em função de alguns princípios relevantes, quais

sejam, in dubio pro reo e favor rei. Com efeito, a acusação normalmente é exercida por órgão

oficial, dotado de todo um aparato estatal para o exercício da função, ao passo que o acusado

atua somente com seus próprios esforços, com o auxílio de seu advogado.144

Outrossim, destaca o autor que o interesse em jogo no processo penal é a própria

liberdade, que só pode ser restrita quando o órgão jurisdicional estiver plenamente convencido

de que tenha ficado completamente demonstrada a prática do crime e sua autoria, motivo pelo

qual a Constituição Federal assegurou ao acusado a ampla defesa, cujo significado será visto

mais adiante. Conclui o autor, apontando situações encontradas no Código de Processo Penal

em que é dispensado tratamento distinto para a acusação e a defesa, e que não ofendem o

princípio da isonomia: somente é permitida a revisão criminal (arts. 621 a 631) para a defesa,

não sendo admitida a revisão pro societate; apenas o réu pode interpor embargos infringentes

e de nulidade (art. 609, parágrafo único); o réu pode utilizar o habeas corpus para se insurgir

142 TUCCI, Rogério Lauria, op. cit., pp. 85 e 99. 143 Idem, pp. 87-8.

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contra decisões interlocutórias que não comportam apelação ou recurso em sentido estrito, o

que não é permitido ao Ministério Público, que, em tais situações, somente pode se valer da

correição parcial ou da reclamação, e assim mesmo, em hipóteses bem restritas.

Maria Lúcia Karam, ao tratar da abrangência do princípio da isonomia, ressalta que

toda lei penal ou processual penal que venha a ser introduzida no ordenamento jurídico e traga

dispositivos mais favoráveis ao réu deverá alcançar todos aqueles que estiverem em situação

idêntica, sendo o tratamento diferenciado admitido somente quando é a desigualdade da

situação que produz a necessidade da lei especial, o que, conforme muito bem adverte, não

ocorre quando se lida com matérias relativas à teoria do crime ou da pena. Nesses casos, a lei

terá de ser sempre geral e abstrata.145

Por derradeiro, Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho, analisando a

jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, aponta uma questão importante a respeito do

princípio da isonomia, na qual houve flagrante contradição daquela Corte: é a que trata das

sentenças aditivas, ou seja, da possibilidade de extensão das situações jurídicas de vantagem

por força do princípio da isonomia. O Supremo Tribunal Federal entrou em contradição, no

que tange a tal possibilidade, conforme se depreende da análise dos acórdãos proferidos no

HC 76.543 – DJU 17/04/98 (em que, a um condenado por tráfico, foi negado o regime de

cumprimento de pena instituído pela Lei n° 9.455/97, lei que define os crimes de tortura, sob

o argumento de que inexistiu ofensa ao princípio da isonomia, e que, ainda que houvesse, se a

lei mais benigna fosse inconstitucional, o Judiciário não poderia estender seus efeitos, só lhe

sendo permitido atuar como legislador negativo); e no ROMS 22.307-7-DF (em que estendeu

aos servidores civis reajuste concedido a servidores militares, atuando, portanto, como

legislador positivo e concedendo vantagens a uma categoria não-amparada pela lei nova, em

144 FERNANDES, Antonio Scarance, op. cit., pp. 49-50. 145 KARAM, Maria Lucia. “Anotações sobre aspectos penais e processuais penais das Leis n. 9.099/95 e n. 10.259/2001 – Lei dos Juizados Especiais”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 10, jul.-set./2002. São Paulo: Revista dos Tribunais, pp. 148-74.

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respeito ao princípio da isonomia). O autor se posiciona favorável à possibilidade de, em tese,

ser deferido ao Poder Judiciário atuar como legislador positivo, tendo em vista a garantia do

princípio da isonomia, apontando como exemplo a ampliação de competência dos juizados

criminais.146

1.3.3 O princípio da proporcionalidade

O princípio da proporcionalidade, nos moldes formulados pela doutrina atual, tem

suas origens ligadas ao advento do Estado moderno, afirmando Suzana de Toledo Barros que

seu germe inicial teria sido “a idéia de dar garantia à liberdade individual em face dos

interesses da administração”, e que estaria ligado às “teorias jusnaturalistas formuladas na

Inglaterra dos séculos XVII e XVIII”.147

Ressalta a autora que, inicialmente, a idéia de proporcionalidade estava restrita às

penas. Daí o princípio da proporcionalidade ter sido consagrado no Direito Administrativo

como uma evolução do princípio da legalidade. Contudo, sua migração para o Direito

Constitucional somente se deu com a formação dos Estados modernos, realçando a autora que

se estabeleceram diferenças jurídicas em virtude dos movimentos de proteção dos direitos

humanos ocorridos na Europa continental e na América no século XVIII.148

Com efeito, Daniel Sarmento registra que o desenvolvimento do princípio da

proporcionalidade no Direito Administrativo teria ocorrido em princípio na França, que

elaborou a doutrina do desvio de finalidade, a partir de julgamentos de recours pour excès de

pouvoir, instrumento processual que permitia ao cidadão postular reforma de decisões

administrativas em caso de excesso de poder. Entretanto, a inexistência de um controle de

146 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti, op. cit., pp. 48-50. 147 BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. 2 ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2000, p. 35. 148 Idem, pp. 36-7.

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constitucionalidade a posteriori teria obstado a constitucionalização do princípio naquele

país.149

Assim, foi após a Segunda Guerra Mundial que se deu a constitucionalização do

princípio da proporcionalidade, na Alemanha, como reação aos excessos cometidos pelo

legislador nazista. Antonio Scarance Fernandes registra que as “idéias de que a limitação da

liberdade individual só se justifica para a concretização de interesses coletivos superiores” e,

no campo do Direito Administrativo, de “que o exercício de poder de polícia só estaria

legitimado se não fosse realizado com excesso de restrições a direitos individuais”

influenciaram a doutrina e a jurisprudência daquele país, que sistematizou o princípio da

proporcionalidade, denominado, então, princípio da proibição de excesso.150 Também teriam

contribuído para a sistematização os julgamentos do Tribunal Europeu de Direitos Humanos,

e atualmente vários outros países o adotam.151

Suzana de Toledo Barros aponta que o princípio da proporcionalidade se

desenvolveu como o princípio da razoabilidade nos Estados Unidos da América.152 A origem

remota do princípio da razoabilidade na common law estaria na cláusula law of the land,

inscrita no art. 39 da Magna Carta de 1215, embora o Direito inglês não o tenha desenvolvido,

provavelmente por não ter adotado, ao longo de sua história, qualquer sistema de controle de

constitucionalidade, como afirma Daniel Sarmento.153

Entretanto, os Estados Unidos, herdeiros da common law, “acolheram o princípio da

razoabilidade, a partir de uma interpretação evolutiva da claúsula do due process of law

(devido processo legal), abrigada na 5ª e na 14ª Emendas à Constituição norte-americana”. O

autor faz uma análise das três fases da trajetória histórica do devido processo legal naquele

país, ressaltando que foi a partir da terceira fase (final da década de 30, do Século XX) que o

149 SARMENTO, Daniel, op. cit., pp. 79-80. 150 FERNANDES, Antonio Scarance, op. cit., p. 51. 151 SARMENTO, Daniel, op. cit., p. 81. 152 BARROS, Suzana de Toledo, op. cit., p. 57.

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eixo do devido processo legal substantivo se deslocou das liberdades econômicas para os

direitos fundamentais, quando, então, se transformou em importante instrumento para que o

Poder Judiciário norte-americano pudesse exercer controle sobre a razoabilidade e a

racionalidade das leis, especialmente as que tratam de direitos fundamentais.154

Daniel Sarmento, assim como Suzana de Toledo Barros, considera os princípios da

proporcionalidade e da razoabilidade fungíveis, porque visam ao mesmo fim, qual seja, o de

“coibir o arbítrio do poder público, invalidando leis e atos administrativos caprichosos,

contrários à pauta de valores abrigada pela Constituição”.155

Registra o autor que San Tiago Dantas teria sido o primeiro a tratar do princípio da

proporcionalidade, em artigo publicado em 1948, no qual já defendia a inconstitucionalidade

da lei desarrazoada ou caprichosa com fundamento no princípio da igualdade.156 Mesmo antes

da Constituição Federal de 1988, destaca que o Supremo Tribunal Federal já havia acolhido,

de forma implícita, o princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade como critério para

valoração da constitucionalidade das leis.157 Mas foi principalmente após a carta

constitucional que aquela Corte vem reconhecendo o princípio da proporcionalidade ou

razoabilidade no Direito brasileiro, situando sua sede na cláusula do devido processo legal,

prevista no art. 5º, inciso LIV, do texto fundamental.158

Antonio Scarance Fernandes registra que a doutrina nacional diverge ao tratar da

sede constitucional do princípio, havendo autores que o situam na cláusula ampla do devido

processo legal, e outros que o situam no contexto normativo dos direitos fundamentais e de

seus mecanismos de proteção.159

153 SARMENTO, Daniel, op. cit., pp. 81-2. 154 Idem, pp. 83-6. 155 Idem, p. 87; BARROS, Suzana de Toledo, op. cit., p. 57. 156 SARMENTO, Daniel, op. cit., p. 91. 157 Idem, pp. 91-2. 158 Idem, p. 95. 159 FERNANDES, Antonio Scarance, op. cit., p. 53.

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Sobre o conteúdo do princípio da proporcionalidade, Suzana de Toledo Barros

esclarece que, embora o termo “proporcionalidade” tenha um sentido literal restrito, deve ser

entendido em sentido amplo, envolvendo “considerações sobre a adequação entre meios e fins

e a utilidade de um ato para a proteção de um determinado direito”. Complementa no sentido

de que, devido ao caráter restrito da expressão, em sua utilização é necessário distinguir a

proporcionalidade em sentido estrito da proporcionalidade em sentido lato e que corresponde

ao princípio constitucional.160

A autora aponta ainda os subprincípios que integram o princípio da

proporcionalidade, conforme desenvolvido pelo Direito alemão, quais sejam: a adequação ou

idoneidade, a necessidade ou exigibilidade e a proporcionalidade em sentido estrito.161

Utilizando o princípio da proporcionalidade como parâmetro do legislador quando estejam em

questão as limitações de direitos fundamentais, esclarece que “a adequação dos meios aos fins

traduz-se em uma exigência de que qualquer medida restritiva deve ser idônea à consecução

da finalidade perseguida”, sob pena de ser considerada inconstitucional.162 Quanto à

necessidade, afirma que seu pressuposto é que a medida de restrição “seja indispensável para

a conservação do próprio ou de outro direito fundamental, e que não possa ser substituída por

outra igualmente eficaz, menos gravosa”.163 No que tange à proporcionalidade em sentido

estrito, em complemento aos dois outros subprincípios, realça que “é de suma importância

para indicar se o meio utilizado encontra-se em razoável proporção com o fim perseguido”,164

enfatizando a idéia de equilíbrio entre valores.

A autora explica que o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito deve

pautar a atividade do legislador, sob a ótica de uma exigência equânime da distribuição de

160 BARROS, Suzana de Toledo, op. cit., p. 73. 161 Idem, p. 75. 162 Idem, p. 76. 163 Idem, p. 79. 164 Idem, p. 83.

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ônus, reconhecendo, entretanto, que, por si só, ele não indica a justa medida no caso concreto,

o que só pode ser obtido por meio da técnica da ponderação de bens.165

Indica, acompanhando a segunda corrente apontada por Antonio Scarance Fernandes,

o fundamento do princípio da proporcionalidade nas várias idéias jurídicas fundantes da

Constituição, sobretudo no contexto normativo no qual estão inseridos os direitos

fundamentais decorrentes do fundamento da dignidade humana, previstos no art. 5º, e cuja

expansão foi assegurada pelo § 2º daquele mesmo dispositivo. Assim se expressa:

Sua aparição se dá a título de garantia especial, traduzida na exigência de

que toda a intervenção estatal nessa esfera se dê por necessidade, de forma

adequada e na justa medida, objetivando a máxima eficácia e otimização dos

vários direitos fundamentais concorrentes (Hesse).166

E ainda que ele complementa o princípio da reserva legal, previsto no art. 5º, inciso

II, da Constituição Federal, ao delimitar a matéria de direitos fundamentais à lei formal,

incorporar o princípio da reserva legal e dar origem ao princípio da reserva legal proporcional

ou ao devido processo legal substancial.167

Percebe-se, desse modo, que o princípio da proporcionalidade decorre da própria

noção de Estado Democrático de Direito, cuja atuação tem por parâmetro, numa perspectiva

dialética, a garantia dos direitos fundamentais e uma mínima intervenção regulada por lei, e

tão-somente necessária e eficaz para se alcançarem os fins pretendidos.

Por fim, alerta a autora que, se um ou mais direitos fundamentais estão em jogo num

caso concreto, devem sofrer uma ponderação em razão do bem ou valor que se pretende

tutelar, sendo tal relativização decorrente da existência de várias possibilidades jurídicas de

realização dos direitos fundamentais. Afirma, ainda, que a solução de um conflito entre

165 Idem, p. 85. 166 Idem, p. 95. 167 Idem, p. 75.

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princípios será regida pela proporcionalidade em sentido estrito, sendo tal elemento intrínseco

da proporcionalidade um consectário lógico da natureza da norma de direito fundamental.168

Indaga-se sobre a aplicação do princípio da proporcionalidade ao processo penal.

Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho esclarece, com fundamento na doutrina

espanhola, que ele é aplicável ao processo penal, e menciona também a construção da

jurisprudência alemã nesse sentido.169

A análise da aplicação do princípio da proporcionalidade ao processo penal deve ser

acompanhada da compreensão dos pressupostos e requisitos do princípio, apontados por Luis

Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho e Antonio Scarance Fernandes.170 Com efeito,

ambos ressaltam que há dois pressupostos da intervenção estatal sob o prisma do princípio ora

em estudo: um formal, o da legalidade, e outro material, o da justificação teleológica. Desse

modo, Antonio Scarance Fernandes ressalta, a respeito do pressuposto formal, que, devido ao

“princípio da legalidade, estendido ao Direito Processual Penal, não poderia a restrição a

direito individual ser admitida sem prévia lei, elaborada por órgão constitucional competente,

imposta e interpretada de forma escrita”.171 O pressuposto da justificação teleológica exige, a

seu turno, que qualquer restrição aos direitos fundamentais deve estar limitada aos fins

objetivados pela lei que a instituiu, e este fim deve efetivar valores relevantes do sistema

constitucional.

Além dos pressupostos, os autores apontam os requisitos do princípio da

proporcionalidade, que, em parte, já foram tratados quando mencionada a doutrina de Suzana

de Toledo Barros. Afirmam que há três requisitos intrínsecos que justificam e autorizam a

restrição aos direitos individuais: sua adequação, sua necessidade e a prevalência do valor

168 Idem, pp. 157-8. 169 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti, op. cit., pp. 38-9. 170 FERNANDES, Antonio Scarance, op. cit., p. 53. Cf. também CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti, op. cit., p. 40. 171 FERNANDES, Antonio Scarance, op. cit., p. 53.

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protegido na ponderação dos interesses em confronto.172 Já os requisitos extrínsecos seriam de

ordem formal – a judicialidade – e substancial – a motivação –, e exigem que a restrição seja

imposta por juiz e mediante decisão motivada.173

O requisito intrínseco da adequação exige que se verifique se a medida constritiva

processual é idônea, apta a atingir o fim pretendido. Antonio Scarance Fernandes ensina que a

adequação deve ser analisada empiricamente, de maneira objetiva (quantitativa e

qualitativamente), e de forma subjetiva (no que diz respeito ao sujeito passivo). Deve-se,

assim, perquirir se a via é a mais indicada, qual duração ou intensidade é suficiente para

atingir o fim pretendido, e se ela é a mais indicada para alcançar aquele fim naquele sujeito

passivo específico. O autor cita um exemplo interessante que ilustra bem as considerações

apresentadas:

Assim, nada justificaria prender alguém preventivamente para garantir a

futura aplicação da lei penal se, em virtude do crime praticado, a provável

pena a ser imposta não será privativa de liberdade ou, se privativa, será

suspensa. O meio, a prisão, consistente em restrição à liberdade individual,

não se revelaria adequado ao fim objetivado com o processo, pois dele não

resultará privação de liberdade.174

O segundo requisito intrínseco do princípio da proporcionalidade é o da necessidade,

também denominado de intervenção mínima, ou de subsidiariedade, e exige que o meio seja

não apenas adequado ao fim pretendido, mas também que ocasione a menor restrição

possível. Assim, “para impor uma sanção ao indivíduo, colocam-se, a quem exerce o poder,

várias possibilidades de atuação, devendo ser escolhida a menos gravosa”.175 Exemplo desse

requisito é a situação na qual o juiz deixa de expedir um mandado de busca domiciliar para

172 Idem, p. 54. 173 Ibidem. Cf. também CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti, op. cit., p. 40. 174 FERNANDES, Antonio Scarance, op. cit., p. 54.

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obter determinado documento, que pode ser suprido por uma requisição a órgão público ou

instituição financeira, ou até por meio de prova testemunhal.176

O terceiro requisito intrínseco é o da proporcionalidade em sentido estrito, que exige

a contraposição dos valores em conflito, para se estabelecer qual deles deve prevalecer. Luiz

Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho leciona que esse requisito consiste no “exame do

confronto direto entre os interesses individuais e estatais, a fim de se estabelecer se é razoável

exigir-se o sacrifício do interesse individual em nome do interesse coletivo”.177

No que tange à aplicação do princípio da proporcionalidade ao processo penal,

Antonio Scarance Fernandes levanta o tema de sua aplicação também em favor da acusação,

especialmente no que se refere à prova ilícita, ou se sua utilização é possível apenas em

benefício da defesa. Explica que, tendo em vista que o princípio foi concebido como forma de

garantir o indivíduo contra os excessos na atuação dos órgãos detentores do poder, “não se

trata, portanto, de invocar o princípio contra ou a favor do acusado, mas de constatar, em cada

caso, se a restrição ao indivíduo é necessária, adequada e se justifica pelo valor que

protege”.178

Por derradeiro, Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho extrai, do princípio

da proporcionalidade, o subprincípio da proibição de excessos, afirmando que a lógica

processual (de natureza instrumental) deve seguir a lógica do Direito Penal, de modo que as

medidas processuais devem, também, pautar-se na estrita necessidade e, conseqüentemente,

na proibição de excessos. Conclui que “também qualquer medida processual que constrinja

além do extremamente necessário, se não for devidamente justificada, deve ser evitada”.179

Por fim, deve-se ressaltar que a técnica da ponderação de bens, mencionada quando

da abordagem do princípio da dignidade humana, está intimamente ligada ao princípio da

175 Idem, p. 55. 176 Ibidem. 177 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti, op. cit., pp. 40-1. 178 Idem, p. 56.

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proporcionalidade. Sobre o tema, Daniel Sarmento afirma que, “na verdade, ponderação e

proporcionalidade pressupõem-se reciprocamente, representando duas faces da mesma

moeda”, e que esse princípio é essencial para a realização da ponderação porque “o raciocínio

que lhe é inerente, em suas três fases subseqüentes, é exatamente aquele que se deve utilizar

na ponderação”. Vejam-se as palavras do autor:

Com efeito, na ponderação, a restrição imposta a cada interesse em jogo,

num caso de conflito entre princípios constitucionais, só se justificará na

medida em que: (a) mostrar-se apta a garantir a sobrevivência do interesse

contraposto; (b) não houver solução menos gravosa; e (c) o benefício

logrado com a restrição a um interesse compensar o grau de sacrifício

imposto ao interesse antagônico.180

1.3.4 As garantias do contraditório e da ampla defesa

Optou-se por tratar as garantias do contraditório e da ampla defesa num mesmo

tópico por se comungar do entendimento de Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho,

que afirma que “contraditório e ampla defesa perfazem uma mesma garantia processual, pois

não pode existir ampla defesa sem contraditório e vice-versa”.181 Elas estão previstas no art.

5º, inciso LV,182 da Constituição Federal de 1988, num único dispositivo. Também estão

previstas, juntamente com outras, no art. 8º da Convenção Americana sobre Direitos

Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 1969, promulgada pelo Brasil por meio do

Decreto n. 678, de 06/11/1992.183

179 Idem, p. 42. 180 SARMENTO, Daniel, op. cit., p. 96. 181 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti de, op. cit., p. 131. Também defendendo a íntima relação entre o contraditório e o direito de defesa, cf. FERNANDES, Antonio Scarance, op. cit., p. 267. 182 “Art. 5º: [...] LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.” 183 “Art. 8º, 1: Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.

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No que tange ao contraditório, Antonio Scarance Fernandes esclarece que são seus

elementos essenciais a necessidade de informação e a necessidade de reação. Adota o autor a

noção clássica de Joaquim Canuto de Almeida, que define contraditório como a “ciência

bilateral dos atos e termos processuais e possibilidade de contrariá-los”.184

Nesse sentido, acrescenta aquele autor que, no processo penal, é necessário que esses

elementos – a informação e a possibilidade de informação – possibilitem um contraditório

pleno e efetivo. A plenitude é assegurada na medida em que se exige a observância do

contraditório durante toda a tramitação do processo, até seu término. Já a efetividade decorre

da circunstância de que, no processo penal, não basta conferir à parte a possibilidade formal

de se pronunciar sobre os atos da parte contrária, sendo necessário proporcionar-lhe meios

para que tenha reais condições de contrariá-los. Ressalta, enfim, que o contraditório liga-se,

nesse aspecto, ao princípio da paridade de armas, exigindo-se, para um contraditório efetivo,

que as partes estejam munidas de forças similares.185

Cumpre, então, estabelecer a distinção do contraditório no processo penal e no

processo civil. Como já visto, no processo penal faz-se necessário um contraditório pleno e

efetivo, porque deve ser observado durante todo o desenrolar da causa, o que nem sempre

2: Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: a) direito do acusado de ser assistido gratuitamente por tradutor ou intérprete, se não compreender ou não falar o idioma do juízo ou tribunal; b) comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada; c) concessão ao acusado do tempo e dos meios adequados para a preparação de sua defesa; d) direito do acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor; e) direito irrenunciável de ser assistido por um defensor proporcionado pelo Estado, remunerado ou não, segundo a legislação interna, se o acusado não se defender ele próprio nem nomear defensor dentro do prazo estabelecido pela lei; f) direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos; g) direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada; e h) direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior. 3: A confissão do acusado só é válida se feita sem coação de nenhuma natureza. 4: O acusado absolvido por sentença passada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos. 5: O processo penal deve ser público, salvo no que for necessário para preservar os interesses da justiça. 184 MENDES DE ALMEIDA, Joaquim Canuto. Princípios fundamentais do processo penal. RT, 1972, p. 81. 185 FERNANDES, Antonio Scarance, op. cit., p. 58.

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ocorre no processo civil. Neste, “admite-se, em caso de revelia, o seguimento da causa sem

ciência ao réu dos atos e termos realizados no processo após a declaração de contumácia”.186

Assim, Antonio Scarance Fernandes afirma que, no processo civil, o contraditório

também deve ser observado, mas admite-se como suficiente a oportunidade de reação

proporcionada pela citação, garantindo-se ao réu o direito de, querendo, comparecer e

contraditar os atos da parte contrária e defender-se no processo.187

Com efeito, Rogério Lauria Tucci ressalta que, no processo civil, “delineia-se

satisfatória, com a citação inicial válida, a possibilidade de contraditório; até porque o réu,

instado a comparecer e atuar, não tem o dever, mas apenas o ônus de defender-se, podendo,

conseqüentemente, o procedimento tramitar à sua inteira revelia”.188 Porém, no processo

penal, afirma que a “contraditoriedade [...] deve ser efetiva, real, em todo o desenrolar da

persecução penal, a fim de que, perquirida à exaustão a verdade material, reste devidamente

assegurada a liberdade jurídica do indivíduo enredado na persecutio criminis”.189

Antonio Scarance Fernandes menciona que a doutrina chega a distinguir, no processo

civil, o princípio do contraditório (neste trabalho, a garantia) do princípio da bilateralidade de

audiência. No processo civil, seria suficiente observar o princípio da bilateralidade de

audiência (que seria a necessidade de dar conhecimento ao réu daquilo que contra ele se pede,

proporcionando-lhe a possibilidade de defesa), além de ser admitido um conceito restrito ao

princípio do contraditório, “que se expressa pela ciência inicial da ação e a oportunidade dada

ao réu de, se quiser, defender-se”.190

Não obstante, mesmo no processo civil, é preciso lembrar que nem sempre o

contraditório formal será suficiente. Assim, Cândido Rangel Dinamarco ressalta que a

186 Idem, p. 59. 187 Ibidem. 188 TUCCI, Rogério Lauria, op. cit., p. 179. 189 Idem, p. 181. 190 FERNANDES, Antonio Scarance, op. cit., pp. 60-1.

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efetividade do contraditório será tão mais exigida conforme o grau de indisponibilidade do

direito substancial em conflito. Vejam-se as palavras do autor:

A efetividade do contraditório é exigência inerente à própria garantia deste e

graduada segundo o teor de indisponibilidade do direito substancial em

conflito. Os dois pólos dessa garantia, a informação e a reação,

correspondem afinal, como num microcosmos, a dois postulados de maior

espectro do Estado Democrático, que são a liberdade de informação e a

participação da sociedade. Tem-se informação, é claro, para poder-se

melhor participar. No processo, é assegurada a informação sempre (citação,

intimações) e, quando o direito é disponível, a reação aos atos do adversário

e do próprio juiz dependerá das opções da parte, que cumprirá os ônus ou

sofrerá as conseqüências (v.g., efeito da revelia); na medida da

indisponibilidade do direito substancial, estreita-se a disponibilidade das

situações ativas do processo, de modo que da não-participação deixam de

decorrer as conseqüências mais graves que se tem de direitos disponíveis.

Por outro lado, o contraditório há de ser equilibrado, combatendo os

litigantes em paridade de armas; essa é uma projeção processual do

princípio constitucional da isonomia, que ilumina todo o procedimento

mediante o qual se exterioriza a participação contraditória.191

Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho ressalta que, embora o amparo ao

contraditório e à ampla defesa não seja novo em nosso ordenamento jurídico, o atual

dispositivo constitucional se distingue “dos anteriores por estender o contraditório aos

procedimentos administrativos e por não limitá-lo à instrução criminal, como ocorria sob a

vigência da Constituição de 1969”.192

Analisando a garantia do contraditório no processo penal, Antonio Scarance

Fernandes registra que tal garantia só é exigida na fase processual, conforme se depreende do

191 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 11 ed. revista e atualizada. São Paulo: Malheiros, 2003, pp. 163-4.

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teor do dispositivo constitucional, que impõe sua observância nos processos administrativos e

judiciais, apontando não estar abrangido entre eles o inquérito policial, cujas características,

segundo afirma junto com Rogério Lauria Tucci, sequer o qualificam como procedimento.193

Também Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho registra a natureza inquisitiva do

inquérito (tratando-o como procedimento) em virtude de seu caráter instrumental, ou seja, o

de servir “de base para a propositura de eventual ação penal”.194

Sem embargo, apesar de os autores mencionados afirmarem que o texto

constitucional não exige que o contraditório seja observado no inquérito policial, por lhe faltar

a qualidade de processo, ressaltam que há necessidade de se admitir a atuação da defesa nessa

fase, a despeito do teor do art. 20 do Código de Processo Penal, que assegura o sigilo

necessário à investigação. Nesse sentido, Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho

afirma que não se pode mais admitir o sigilo dos autos de inquérito perante a defesa, a

respeito das diligências já realizadas e formalizadas.195 Com efeito, Rogério Lauria Tucci

afirma que se trata de “contraditório denominado posticipato, ou diferito”, em que não

ocorreria violação à garantia da bilateralidade de audiência, que restaria adiada para momento

posterior à realização de ato decisório liminar, seguindo-se regularmente o procedimento

instaurado.196

Durante a fase de investigação policial, não é raro haver necessidade de medidas

cautelares restritivas de ordem patrimonial ou pessoal (exame de corpo de delito, perícia

complementar, exame do local do crime). A respeito do tema, Antonio Scarance Fernandes

ressalta que, atualmente, exige-se que tais medidas sejam determinadas por autoridades

judiciais, com a presença das partes, salvo aquelas que impossibilitam a presença do acusado.

E que é comum em nosso sistema que as medidas cautelares e também as perícias sejam

192 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti, op. cit., p. 131. 193 Cf. FERNANDES, Antonio Scarance, op. cit., p. 64 e TUCCI, Rogério Lauria, op. cit., pp. 195-6. 194 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti, op. cit., p. 145. 195 Idem, pp. 145-6.

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realizadas durante a investigação sem a audiência do suspeito ou indiciado e sem a

participação do advogado, sendo-lhe conferida posteriormente a oportunidade de contestar a

medida cautelar ou atacar a prova pericial, configurando-se, então, o mencionado

contraditório diferido ou postergado.197

Sobre a legitimidade do contraditório diferido, Ada Pellegrini Grinover, Antonio

Scarance Fernandes e Antônio Magalhães Gomes Filho apontam que nem sempre ele será

admitido, podendo ensejar a nulidade da perícia realizada durante a investigação policial.

Defendem que apenas nos casos em que há urgência, ou porque há riscos de desaparecerem os

sinais do crime, ou porque é difícil ou impossível conservar a coisa a ser examinada, ou ainda

porque inexiste suspeita contra pessoa determinada, poderá ser realizada a perícia sem que a

autoridade policial dê oportunidade ao indiciado de apresentar quesitos para maior garantia de

defesa. Do contrário, não sendo a perícia necessária na fase de investigação, porque inexiste

perigo de que desapareçam os sinais do crime ou de que se percam os elementos probatórios,

ou porque não servirá de justificativa para a instauração do processo, esta deverá ser realizada

na fase processual, com contraditório prévio e participação da autoridade judicial.198

No que tange ao conceito da ampla defesa, Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de

Carvalho afirma que ele decorre da própria noção de contraditório e consiste na “possibilidade

de contraditar as provas produzidas, contraprovar, tomar conhecimento das alegações da parte

contrária, contra-alegar, e, finalmente, tomar ciência dos atos e decisões judiciais para poder

impugná-los”.199

Entende-se, ainda, que a proteção do dispositivo constitucional deve abranger o

direito à defesa técnica e direito à autodefesa, durante todo o processo, mencionando Antonio

Scarance Fernandes que tais fatores guardam uma relação de diversidade e

196 TUCCI, Rogério Lauria, op. cit., p. 194. 197 FERNANDES, Antonio Scarance, op. cit., p. 65. 198 GRINOVER, Ada Pellegrini, FERNANDES, Antonio Scarance e GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As nulidades no processo penal. 7 ed. revista e atualizada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, pp. 153-4.

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complementaridade.200 Destaca o autor que a defesa técnica, para ser ampla, deve apresentar-

se no processo como defesa necessária, indeclinável, plena e efetiva, e que não representa

apenas uma garantia, mas também um direito do acusado, o que lhe permite escolher um

defensor de sua confiança.201

A defesa técnica é necessária para que se assegure a paridade de armas. Nesse

sentido, sendo o Ministério Público, normalmente, órgão dotado de membros altamente

qualificados que atuam com o auxílio da polícia judiciária, a outra parte da relação processual,

o acusado, merece estar amparado também por profissional habilitado, o advogado. Assim,

exige o art. 261 do Código de Processo Penal a necessidade de defensor ao acusado, ainda que

ausente, e prevêem os arts. 263 e 265 daquele diploma a nomeação de defensor pelo juiz, o

qual não poderá renunciar à defesa. Também para que fosse assegurado o equilíbrio entre as

partes, garante-se ao acusado pobre a assistência judiciária gratuita, conforme dispõe o art. 5º,

inciso LXXIV, da Constituição Federal de 1988.202

A defesa técnica é indeclinável, não sendo deferido ao acusado renunciá-la. Entende-

se que ela é não apenas direito e garantia do acusado, mas também da própria justiça. Há

interesse público em que todos os acusados sejam defendidos, o que proporcionará uma

decisão justa, à qual se terá chegado com a observância do contraditório efetivo.

A defesa técnica deve ser plena, manifestando-se durante todo o iter processual,

sobretudo nos momentos do processo denominados “culminantes”,203 como ocorre nas

alegações finais e nas razões de recurso, ou quando se produza prova relevante. Dessa forma,

não sendo possível ao defensor de confiança praticar algum desses atos, deverá o juiz nomear

substituto, mesmo que provisoriamente ou só para aquele ato, aplicando-se o art. 265,

199 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti, op. cit., pp. 132-3. 200 FERNANDES, Antonio Scarance, op. cit., p. 270. 201 Idem, pp. 270-4. 202 Sobre a importância da Defensoria Pública e a atual deficiência na prestação da assistência judiciária, cf. TUCCI, Rogério Lauria, op. cit., pp. 93-8. 203 Expressão utilizada por Antonio Scarance Fernandes, op. cit., p. 272.

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parágrafo único, do Código de Processo Penal. Outrossim, a defesa deve estar assegurada

desde a fase policial. Rogério Lauria Tucci sustenta que a assistência de advogado deve ser

deferida “não só ao preso, como ao indiciado, durante o desenrolar da informatio delicti, não

significa assistência passiva, de mero espectador dos atos praticados pela autoridade policial e

seus agentes, mas, sim, assistência técnica, na acepção jurídica do termo [...]”.204

Sobre esse aspecto, Antonio Scarance Fernandes ensina que, embora não se refute a

possibilidade de atuação da defesa na fase policial, ela não deverá ocorrer em contraditório,

mas sim proporcionando-se ao advogado o direito à ampla ciência das atividades de

investigação desenvolvidas, sendo-lhe permitido requerer e utilizar dos mecanismos do

sistema em favor do investigado, como o pedido de relaxamento de prisão, pedido de

liberdade provisória, impetração de habeas corpus.205

Por derradeiro, a defesa técnica deve ser efetiva, sendo necessário constatar uma

atuação real do advogado no processo, na assistência do acusado. Não basta a aparência de

defesa. Nesse sentido, a Lei n. 10.792/2003 incluiu um parágrafo no art. 261 do Código de

Processo Penal, exigindo que a defesa técnica, quando realizada por defensor público ou

dativo, seja sempre exercitada por meio de manifestação fundamentada. Sobre a matéria, há

ainda a Súmula 523 do Supremo Tribunal Federal, que dispõe: “No processo penal, a falta de

defesa constitui nulidade absoluta, mas sua deficiência só o anulará se houver prova de

prejuízo para o réu”.

Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho sugere que a admissibilidade de

recurso interposto pela defesa contra a vontade do réu é desdobramento natural do princípio

da ampla defesa, entendimento que vem sendo perfilhado pelo Supremo Tribunal Federal: em

caso de conflito, aquela Corte admite a vontade manifestada pela defesa técnica.206

204 TUCCI, Rogério Lauria, op. cit., pp. 104-5. 205 FERNANDES, Antonio Scarance, op. cit., p. 273. 206 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti, op. cit., p. 147.

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O autor aponta, ainda, dois pontos importantes acerca da defesa efetiva. O primeiro

deles trata da obrigatoriedade de recurso do defensor dativo. Defende o autor que, quando o

réu é defendido por defensor dativo, a interposição de recurso é obrigatória como modo de

materializar o preceito constitucional. Não obstante, comenta que o Supremo Tribunal Federal

firmou entendimento em sentido contrário, embora já tenha decidido naquele sentido. O

segundo se refere à observância da similitude entre a acusação e a sentença condenatória, nos

termos dos arts. 383 e 384 do Código de Processo Penal, que tratam da emendatio libelli e da

mutatio libelli. O autor critica a redação dos dispositivos que demandam uma interpretação

sistemática para a sua aplicação e defende que, em virtude do princípio da correlação entre a

sentença e o pedido, faz-se imprescindível que, no caso de emendatio ou de mutatio, o

Ministério Público sempre adite o pedido, e que, para que seja observada a garantia da ampla

defesa, o acusado se manifeste especificamente, devendo ser citado e interrogado.207

Cumpre registrar a proteção legal que estava prevista ao acusado menor, mediante a

assistência de curador, nos termos dos arts. 15 e 262 do Código de Processo Penal. Antonio

Scarance Fernandes esclarece que, embora o art. 564, inciso III, letra “c”, do Código de

Processo Penal estabelecesse a nulidade do processo em que não fosse nomeado curador ao

réu menor, como todo acusado, necessariamente, deve ter defensor, constituído ou nomeado,

sempre estaria presente algum profissional habilitado para os atos de instrução, acumulando

este advogado as funções de defensor e de curador, conforme entendimento expresso na

Súmula 352 do Supremo Tribunal Federal: “Não é nulo o processo penal por falta de

nomeação de curador ao réu menor que teve assistência de defensor dativo”.208

Assim, o autor vislumbrava duas situações em que subsistia o interesse na figura do

curador. A primeira delas era no auto de prisão em flagrante delito, na qual sua ausência

poderia levar à nulidade do referido auto, ocorrendo a necessidade de relaxamento da prisão e

207 Idem, pp. 147-8. 208 FERNANDES, Antonio Scarance, op. cit., p. 276.

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liberação do preso. Nessa hipótese, a nomeação de curador deveria recair sobre pessoa que

tivesse “condições de exercer o munus com eficiência, atuando de forma a proteger o

menor”.209 A segunda referia-se ao interrogatório judicial, no qual não se exigia a presença

obrigatória de defensor.

Contudo, com o advento da Lei n. 10.792/2003, foi introduzido o art. 185, § 2º, do

Código de Processo Penal, que assegura ao acusado o direito de se entrevistar com seu

defensor antes do interrogatório. Ademais, a nova redação do art. 188 do Código de Processo

Penal prevê que o juiz, após o interrogatório, pergunte às partes se há algum ponto a ser

esclarecido. Depreende-se claramente, dos dispositivos apontados, que agora é necessária a

presença de defensor no ato de interrogatório.210 Assim, pelo entendimento jurisprudencial da

Corte Suprema brasileira, no sentido de que o defensor pode acumular tal função com a de

curador, desaparece o interesse manifestado pelo autor nesse ato.

Ademais, a lei referida revogou expressamente o art. 194 do Código de Processo

Penal, que assegurava que o acusado menor deveria ser interrogado na presença de curador.

Desse modo, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça reconheceu que, após o advento

da referida norma, não mais subsiste a exigência de curador ao acusado menor de 21 anos,

209 Idem, p. 277. 210 Esse parece ser o entendimento adotado pelo Supremo Tribunal Federal, conforme se depreende da Ementa do Acórdão proferido no RHC 84178/RS, 2ª Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, publicado no DJ 04/02/2005: “1. Recurso ordinário em habeas corpus. 2. Ausência do defensor no interrogatório. 3. O interrogatório foi realizado em data anterior ao advento da Lei n. 10.792, de 2003, quando vigorava no Supremo Tribunal Federal o entendimento de que a ausência de advogado no interrogatório não invalidava o processo. Precedentes. 4. Inexistência de nulidade. 5. Recurso improvido”. Assim também é o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, na ementa do Acórdão proferido no HC 41101/RS, 5ª Turma, Rel. Min. Laurita Vaz, publicada no DJ 20/06/2005 p. 317: “HABEAS CORPUS. ROUBO QUALIFICADO. INOCÊNCIA. REVOLVIMENTO DE MATÉRIA FÁTICA INCABÍVEL NA VIA ELEITA. INTERROGATÓRIO JUDICIAL REALIZADO ANTES DA LEI N. 10.792/2003. AUSÊNCIA DE DEFENSOR. NULIDADE. INEXISTÊNCIA. ATO PERSONALÍSSIMO DO JUIZ. IMPOSSIBILIDADE DE INTERVENÇÃO DO DEFENSOR OU DO MINISTÉRIO PÚBLICO. 1. O habeas corpus não pode, como se fosse um segundo recurso de apelação, analisar a argüida inocência do acusado ou a pretensa falta de provas da materialidade e autoria do crime para efeito da sua condenação, uma vez que descabida na via eleita ampla dilação probatória. 2. O interrogatório judicial, antes da vigência da Lei n. 10.792/2003, consistia em ato personalíssimo do magistrado, que não estava sujeito ao contraditório, o que obstava a intervenção da acusação ou da defesa. Assim, a ausência de defensor no interrogatório judicial não caracterizava, segundo o entendimento desta Corte e do STF, a existência de qualquer nulidade. 3. Writ parcialmente conhecido e, nessa parte, denegada a ordem”.

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motivo pelo qual estariam derrogados tacitamente os arts. 15, 262 e 564, inciso III, alínea “c”

parte final do Código de Processo Penal.211

Falou-se antes que a garantia da ampla defesa abrange, além da defesa técnica, a

autodefesa. Trata-se da defesa exercida pelo próprio acusado, em momentos fundamentais do

processo. Antonio Scarance Fernandes alerta que, embora não possa ser desprezado pelo juiz,

o direito à autodefesa é renunciável pelo acusado, que não pode ser obrigado a comparecer ao

interrogatório, ou à realização de outros atos processuais. Afirma o autor que esse direito se

manifesta no processo sob três formas: direito de audiência, direito de presença e direito de

postular pessoalmente.212

A primeira é aquela que assegura ao acusado o direito de apresentar pessoalmente a

sua defesa ao juiz da causa. Manifesta-se no interrogatório, quando o acusado deve, se quiser,

em contato direto com juiz, apresentar sua versão dos fatos. Normalmente, o interrogatório

ocorre logo após a citação. Contudo, a Lei dos Juizados Especiais Criminais, em seu art. 81,

caput, prevê que ele será realizado após a prova de acusação e defesa, esclarecendo Antonio

Scarance Fernandes que a modificação está atrelada à supressão do inquérito policial naqueles

juízos. Alega que o inquérito permite ao acusado ter um prévio conhecimento do que

disseram, na fase investigatória, as testemunhas ouvidas. Assim, como nos Juizados não há

211 Cf. RHC 16947/PR ; 5ª TURMA, Rel. Min. Gilson Dipp, publicada no DJ 28/03/2005, p. 291: “CRIMINAL. RHC. PORTE ILEGAL DE ARMA. NULIDADE DO FLAGRANTE. AUSÊNCIA DE NOMEAÇÃO DE CURADOR AO RÉU MENOR. INOCORRÊNCIA. LEI N. 10.792/03. EXIGÊNCIA AFASTADA. LIBERDADE PROVISÓRIA. INDEFERIMENTO. AUSÊNCIA DE CONCRETA FUNDAMENTAÇÃO. GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. APLICAÇÃO DA LEI PENAL. MOTIVAÇÃO FULCRADA EM CONJECTURAS. NECESSIDADE DA CUSTÓDIA NÃO DEMONSTRADA. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. Não se reconhece nulidade do auto de prisão em flagrante, decorrente da falta de nomeação de curador ao réu menor, se o ato foi realizado após a vigência da Lei n. 10.792/03, que extinguiu a figura do curador com a revogação do art. 194 do CPP. Derrogação tácita dos arts. 15 e 262 e da parte final da alínea “c” do inciso III do art. 564, todos do CPP. Exige-se concreta motivação para o indeferimento do pedido de liberdade provisória, com base em fatos que efetivamente justifiquem a excepcionalidade da medida, atendendo-se aos termos do art. 312 do CPP e da jurisprudência dominante. Precedentes. As elucubrações sobre a possível instauração de inquéritos para apurar outros supostos delitos atribuídos ao recorrente não podem respaldar a medida constritiva. Deve ser concedido o benefício da liberdade provisória ao recorrente, determinando-se a imediata expedição de alvará de soltura em seu favor, se por outro motivo não estiver preso, mediante condições a serem estabelecidas pelo Julgador de 1º grau, sem prejuízo de que venha a ser decretada novamente a custódia, com base em fundamentação concreta. Recurso parcialmente provido”. 212 FERNANDES, Antonio Scarance, op. cit., p. 280.

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inquérito, a providência visa propiciar que o acusado tome conhecimento do teor dos

depoimentos, e seja ouvido após a produção da prova oral, para uma maior garantia de

defesa.213

O autor registra, ainda, que o acusado que não houver sido interrogado em momento

próprio, se no curso do processo for preso ou comparecer espontaneamente perante a

autoridade judiciária, deverá ser ouvido a qualquer momento, sob pena de nulidade,

providência que deverá ser observada ainda que se encontrem os autos em fase recursal.

Sendo ato de defesa renunciável, sustenta que o acusado não está obrigado a comparecer, mas,

se o fizer ou for requisitado, poderá se valer do direito ao silêncio, previsto no art. 5º, inciso

LXIII,214 da Constituição Federal, não estando obrigado a responder às perguntas feitas pela

autoridade policial, na fase investigatória, ou pela autoridade judicial, na fase processual.215

Sobre o direito ao silêncio, Antonio Scarance Fernandes esclarece que ele decorre do

princípio de que ninguém é obrigado a se auto-incriminar, não podendo o suspeito ou o

acusado ser forçado a produzir prova contra si mesmo. Além de ter assento constitucional, o

princípio está previsto no art. 8º, n. 2, letra “g”, da Convenção Americana sobre Direitos

Humanos (Pacto de São José da Costa Rica, de 1969), inserida no ordenamento jurídico

brasileiro pelo Decreto n. 678, de 06/11/1992, conforme já mencionado. E acrescenta que está

intimamente relacionado à cláusula constitucional que assegura a ampla defesa.216

A segunda forma sob a qual se manifesta a garantia da autodefesa é o direito de

presença, mediante o qual “se assegura ao acusado a oportunidade de, ao lado de seu

defensor, acompanhar os atos de instrução, auxiliando-o na realização da defesa”.217

213 Idem, p. 280. 214 “Art. 5º [...] LXIII – o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a presença da família e de advogado”. A doutrina ressalta que tal garantia, prevista no dispositivo constitucional apenas para o preso, deve ser estendida também para o acusado solto. Cf. FERNANDES, Antonio Scarance, op. cit., p. 279, e CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti, op. cit., p. 145. 215 FERNANDES, Antonio Scarance, op. cit., p. 280. 216 Idem, pp. 278-9. 217 Idem, p. 281.

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A terceira forma é a possibilidade que se defere ao acusado ou sentenciado de

postular pessoalmente, em sua própria defesa. Assim, Antonio Scarance Fernandes aponta

situações em que o acusado ou sentenciado, por ato próprio, dá impulso oficial a atos

processuais, sendo-lhe, logo a seguir, garantida a assistência de defensor. São as hipóteses de:

interposição de recursos, impetração de habeas corpus, formulação de pedidos em relação à

execução da pena, como o da progressão de regime.218

A inobservância do direito que o acusado possui de exercer sua própria defesa

configura nulidade, apontando o autor que, se estiver presente, deverá: ser interrogado, sob

pena de nulidade do feito, conforme dispõe o art. 564, inciso III, letra “e”, segunda parte do

Código de Processo Penal; que deverá ser intimado para os atos processuais, a fim de que

possa acompanhá-los, o que só será dispensado quando for revel, conforme dispõe o art. 367

daquele diploma; e que deverá ser intimado das decisões, para que, se quiser, possa recorrer

pessoalmente das decisões, direito assegurado pelo art. 577 daquela mesma norma.219

Ainda no que tange às garantias do contraditório e da ampla defesa, cumpre apontar

um ponto julgado importante. Ele diz respeito à ordem dialética da apresentação das peças

processuais pelas partes, especialmente sobre o momento de manifestação da defesa nas

apelações e nos recursos em sentido estrito, hipóteses em que o Ministério Público se

manifesta após a defesa, nos casos em que este recorre.

Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho explica que, quando o processo

atinge a fase recursal, por força de recurso do Ministério Público, é este quem fala por último,

conforme dispõem os arts. 610 e 613 do Código de Processo Penal. Alerta que, no segundo

grau, além de o Ministério Público manifestar-se depois da defesa, esta normalmente nem

sequer tem vista dos autos, a não ser que requeira ou lhe seja concedida. O autor critica esta

previsão normativa, sustentada por parte da doutrina sob o argumento de que, na segunda

218 Ibidem. 219 Ibidem.

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instância, o Ministério Público atua como fiscal da lei, e defende que, seja qual for a

qualidade em que aquele órgão atue (como parte ou fiscal da lei), o que importa, entretanto, “é

que o processo é uma marcha dialética: à alegação de uma parte, cabe a contra-alegação da

outra e assim sucessivamente. Ora, se o recurso é do Ministério Público, a defesa deve ser a

última a falar nos autos”.220 Defende, ainda, que o mesmo tratamento deve ser dispensado no

primeiro grau, no que tange à ordem de apresentação das alegações finais: “A defesa deve,

sempre, em qualquer circunstância, manifestar-se por último”.221 Concorda-se aqui com o

autor e acredita-se que, para que sejam asseguradas as garantias constitucionais do

contraditório e da ampla defesa, se houver uma manifestação contrária à defesa, deve-lhe ser

concedida a oportunidade de contra-argumentar.

1.3.5 O princípio da presunção de inocência

A origem do princípio é apontada pela doutrina222 no Direito romano, embora o

processo inquisitivo da Idade Média o tenha atacado e avultado seriamente. Foi consagrado

com as idéias liberais, apontando-se sua primeira aparição em um texto legal na Constituição

da Virgínia, em 1776.223 Posteriormente, constou no art. 9º da Declaração dos Direitos do

Homem e do Cidadão, em 1789, na França .224

Não obstante, registra-se que, no século seguinte, sofreu acirradas críticas, sobretudo

da Escola Positiva, por Garofalo, Ferri e Manzini, sendo novamente atacado e ofuscado.225

220 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti, op. cit., pp. 141-2. 221 Idem, p. 149. 222 Nesse sentido, cf. FERRAJOLI, Luigi, op. cit., pp. 441-2; CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti, op. cit., p. 149; LOPES JÚNIOR, Aury. Introdução crítica ao processo penal: fundamentos da instrumentalidade garantista. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 174. 223 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti, op. cit., p. 149. 224 “Sendo todo homem presumido inocente, se for julgada indispensável sua prisão, todo rigor desnecessário à sua segregação deve ser severamente reprimido pela lei.” Cf. tradução livre de TUCCI, Rogério Lauria, op. cit., p. 379. 225 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti, op. cit., p. 149, e LOPES JÚNIOR, Aury, op. cit., p. 174.

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Voltou a ser reabilitado, mais tarde, passando a constar no art. XI226 da Declaração Universal

dos Direitos Humanos da ONU, em 1948, após o que passou a integrar várias Constituições

modernas. Está previsto também no art. 8º, n° 2, da Convenção Americana sobre Direitos

Humanos (Pacto de São José da Costa Rica, de 1969), inserida no ordenamento jurídico

brasileiro pelo Decreto nº 678, de 06/11/1992.227

O princípio está previsto no art. 5º, inciso LVII,228 da Constituição Federal de 1988,

e assegura ao acusado o direito de ser considerado inocente até que sentença penal

condenatória venha a transitar em julgado. Trata-se, nas palavras de Aury Lopes Júnior, do

“princípio fundante, em torno do qual é construído todo o processo penal liberal,

estabelecendo essencialmente garantias para o imputado frente à atuação punitiva estatal”,229

acrescentando que “podemos verificar a qualidade de um sistema processual através do seu

nível de observância (eficácia)”.230

Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho aponta que parte da doutrina registra

a distinção entre os termos presunção de inocência e de não-culpabilidade, sustentando-se que

não se pode presumir a inocência do réu se contra ele houver sido instaurada ação penal, pois,

nessa hipótese, haverá sempre um suporte probatório mínimo.231

Assim, o que se poderia presumir é sua não-culpabilidade, até que o contrário seja

declarado judicialmente. Valendo-se da doutrina italiana, refuta tal entendimento e esclarece

que o princípio está ligado a um outro tipo de presunção, distinta da presunção judicial (na

qual o juiz deduz fato desconhecido daquele que é conhecido). Tratar-se-ia de uma presunção

de natureza política, mais afeta às funções judiciais do que às presunções judiciais. O

226 “Todo homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.” Cf. TUCCI, Rogério Lauria, op. cit., p. 380. 227 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti, op. cit., p. 150. 228 “Art. 5º [...] LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.” 229 LOPES JÚNIOR, Aury, op. cit., p. 177. 230 Idem, p. 175. 231 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti, op. cit., p. 150.

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princípio da presunção de inocência seria, assim, princípio político que liga o processo penal

às escolhas político-constitucionais que o regem e dentro das quais está previsto. Revela-se,

portanto, muito mais direcionado à própria função jurisdicional do que ao estabelecimento de

uma verdade processual.232 Conclui, enfim, que não há qualquer diferença entre presunção de

inocência e presunção de não-culpabilidade.233

Ressalta Aury Lopes Júnior234 que a presunção de inocência seria uma decorrência

do princípio da jurisdicionalidade, como explica Luigi Ferrajoli. Com efeito, este último autor

estabelece uma relação de vinculação entre o princípio de submissão à jurisdição e a

presunção de inocência, nos seguintes termos:

Se a jurisdição é a atividade necessária para obter a prova de que um sujeito

cometeu um crime, desde que tal prova não tenha sido encontrada mediante

um juízo regular, nenhum delito pode ser considerado cometido e nenhum

sujeito pode ser reputado culpado nem submetido à pena. Sendo assim, o

princípio de presunção de submissão à jurisdição – exigindo, em sentido

lato, que não haja culpa sem juízo (axioma A7), e, em sentido estrito, que

não haja juízo sem que a acusação se sujeite à prova e à refutação (Tese

T63) – postula a presunção de inocência do imputado até prova contrária

decretada pela sentença definitiva de condenação.235

Luigi Ferrajoli ressalta, ainda, que se trata de um princípio fundamental de

civilidade, que representa o resultado de uma opção garantista a favor da tutela da imunidade

dos inocentes. Esclarece que, algumas vezes, essa opção representa o custo da impunidade de

algum culpado, mas que, para o corpo social, é suficiente que os culpados sejam geralmente

punidos, pois o mais importante é que todos os inocentes, sem exceção, sejam protegidos. E

232 Ibidem. 233 Idem, p. 151. Também, nesse sentido, cf. TUCCI, Rogério Lauria, op. cit., p. 378. 234 LOPES JÚNIOR, Aury, op. cit., p. 175. 235 FERRAJOLI, Luigi, op. cit., p. 441.

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acrescenta que sobre essa opção está fundamentado o nexo entre a liberdade e a segurança dos

cidadãos:

Disso decorre – se é verdade que os direitos dos cidadãos são ameaçados

não só pelos delitos, mas também pelas penas arbitrárias – que a presunção

de inocência não é apenas uma garantia de liberdade e de verdade, mas

também uma garantia de segurança ou, se quisermos, de defesa social: da

específica “segurança” fornecida pelo Estado de direito e expressa pela

confiança dos cidadãos na justiça, e daquela específica “defesa” destes

contra o arbítrio punitivo.236

Cumpre registrar que as assertivas acima, no Estado Democrático de Direito, devem

ser interpretadas sob uma ótica que lhes atribua uma diferença qualitativa. Com efeito,

Afrânio Silva Jardim ressalta que elas tratam de valores diversos e que não podem ser

colocados em pé de igualdade. Desse modo, afirma que mais vale absolver um culpado do que

condenar um inocente, “até porque uma moderna concepção crítica do Direito Penal vem

demonstrando que a sanção supressiva da liberdade não pode mais ser reputada como um

meio eficaz de controle social”.237 Alerta, ainda, que uma condenação injusta traria muito

mais malefícios, o que exige que tais erros sejam analisados, atribuindo-se-lhes dimensões

distintas.

Representando uma das mais importantes garantias para o acusado, o princípio da

presunção de inocência, sob a ótica do julgador, assume relevante papel, conforme aponta

Aury Lopes Júnior.238 Esclarece o autor que ele se reflete principalmente no tratamento

processual que deve ser dispensado pelo juiz ao acusado, exigindo-lhe não só uma postura

236 Ibidem. 237 JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal. Rio de Janeiro: Forense, 2003, pp. 200-1. 238 LOPES JÚNIOR, Aury, op. cit., p. 176.

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negativa (de não considerá-lo culpado), como também uma postura positiva (tratando-o

efetivamente como inocente).

Assim, extrai quatro importantes conclusões do princípio: a primeira delas é a de que

ele predetermina a adoção da verdade processual, a qual é relativa, mas dotada de um razoável

nível de certeza prática, uma vez que é obtida segundo determinadas condições. A segunda é

conseqüência da primeira, e se refere ao tipo de processo, regido pelo sistema acusatório,

decorrente da obtenção da verdade processual. Esse tipo de processo, como visto, impõe a

estrutura dialética e mantém o juiz em estado de alheamento. A terceira corresponde às regras

para o julgamento, que deverão orientar a decisão judicial sobre os fatos, e está ligada à

questão da carga da prova, que será examinada a seguir. E, por fim, a quarta está relacionada

às regras para o tratamento do acusado, uma vez que a intervenção do processo penal estará

ocorrendo sobre um inocente.239

Antes de continuar, é preciso registrar que, após a consagração do princípio da

presunção de inocência na Constituição Federal de 1988, duas correntes se firmaram no

Direito brasileiro, acerca de seus reflexos no processo penal, conforme aponta Antonio

Scarance Fernandes.240 A primeira delas, mais restritiva, vincula o princípio ao ônus probandi

e sustenta que, por possuir o réu o status de inocente até decisão final, impõe-se ao Ministério

Público ou ao querelante o ônus de demonstrar os fatos descritos e imputados na denúncia ou

queixa. Assim, “não é o réu que deve demonstrar sua inocência, mas o Ministério Público é

que deve provar sua culpa”.241 Já a segunda,242com a qual perfilha este trabalho, sustenta que,

além de estar relacionado ao ônus de provar, o princípio da presunção de inocência também

estabelece uma regra fundamental sobre a prisão cautelar. Pois se o preceito constitucional só

permite que o acusado seja considerado culpado após sentença condenatória transitada em

239 Idem, p. 176. 240 FERNANDES, Antonio Scarance, op. cit., pp. 300-1. 241 Idem, p. 300. A essa corrente, filia-se, entre outros, JARDIM, Afrânio Silva, op. cit., pp. 280-2.

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julgado, “a prisão-pena não pode ocorrer antes de afirmada definitivamente sua culpa, o que

representaria indevida antecipação de pena”.243 Desse modo, a prisão durante o curso do

processo só estaria legitimada quando tivesse natureza cautelar, vale dizer, quando as

circunstâncias concretas do caso assim exigissem.

Sendo assim, no que se refere aos reflexos do princípio da presunção de inocência

sobre o tratamento processual que deve ser dispensado ao acusado, é importante tecer

algumas considerações, ainda que breves, sobre as modalidades de prisões previstas em nosso

Direito Processual Penal. Registra-se, contudo, que não se pretende, nesse tópico, tratar

detalhadamente de tema tão abrangente, mas apenas pontuar as questões julgadas mais

importantes ao desenvolvimento do raciocínio sobre o princípio ora em estudo.

Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho esclarece que, no sistema

processual, admitem-se duas modalidades de prisão, quais sejam a definitiva, em virtude de

uma condenação, e a cautelar, decorrente de uma cognição provisória e para resguardar os

fins do processo. Com efeito, Afrânio Silva Jardim ressalta que a prisão provisória, de modo

geral, “é tipicamente uma forma de atividade jurisdicional cautelar, pois tem como finalidade

precípua tutelar os fins e os meios do processo penal de conhecimento”.244

No que tange à prisão cautelar, a doutrina reconhece, de modo geral, dois requisitos

ou pressupostos para que ela ocorra: o fumus boni iuris e o periculum in mora.245 O fumus

242 Seguem essa orientação Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho e Antonio Scarance Fernandes. Cf. CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti, op. cit., p. 152, e FERNANDES, Antonio Scarance, op. cit., p. 314. 243 FERNANDES, Antonio Scarance, op. cit., p. 301. 244 JARDIM, Afrânio Silva, op. cit., p. 247. O autor reconhece a natureza cautelar da prisão provisória prevista no Código de Processo Penal vigente, tendo em vista as características que considera mais marcantes do processo ou das medidas cautelares, elencadas em sua obra: a acessoriedade (decorrente de a medida ou o processo cautelar estarem sempre vinculados ao resultado do processo principal); a preventividade (uma vez que se destina a prevenir a ocorrência de danos enquanto o processo principal não chega ao fim); a instrumentalidade hipotética (porque a tutela cautelar pode incidir sem que o seu beneficiário, findo o processo principal, tenha o direito alegado efetivamente reconhecido, o qual aparece apenas como viável ou provável); e a provisoriedade (o que implica que sua manutenção depende da persistência dos motivos que demonstraram a urgência da medida demandada para a tutela do processo). Op. cit., pp. 246-7. 245 Nesse sentido, cf. JARDIM, Afrânio Silva, op. cit., p. 247; CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti, op. cit., p. 151; FERNANDES, Antonio Scarance, op. cit., p. 301. Para este último autor, o periculum in mora também pode ser chamado de periculum libertatis. Aury Lopes Júnior discorda da doutrina tradicional criticando a transposição literal da doutrina desenvolvida no processo civil, para o processo penal, no que tange aos

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boni iuris exige que o juiz verifique se no inquérito ou processo encontra-se provada a

existência material da infração e se há indícios de sua autoria.246 Já o periculum in mora ou

periculum libertatis representa o risco de que o acusado, se solto, possa impedir a correta

solução da causa ou frustrar a aplicação da sanção punitiva.247

Assim, apreendidos os requisitos necessários à decretação da medida cautelar, é

possível afirmar com Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho que a prisão decorrente

de sentença condenatória recorrível e de pronúncia não possui natureza de prisão cautelar.248

Isto porque, no primeiro caso, explica Afrânio Silva Jardim, ela “não apresenta natureza

cautelar. A rigor, nada mais é do que uma verdadeira execução provisória, conforme se

depreende dos arts. 393, inciso I, e 669, inciso I, do Código de Processo Penal”.249

No que tange à prisão decorrente de pronúncia, afirma Luis Gustavo Grandinetti

Castanho de Carvalho que ela não pode ser enquadrada “na espécie cautelar, nem na de

requisitos das medidas cautelares, matéria na qual defende a necessidade de observância de categorias próprias do processo penal. Assim, reputa uma impropriedade jurídica e semântica a utilização do termo fumus boni iuris, defendendo que o requisito para a decretação de uma prisão cautelar não é a probabilidade de existência do direito da acusação, mas sim de um fato aparentemente punível, utilizando o termo fumus comissi delicti, que, na sistemática de nossa lei processual, representa a prova do crime e os indícios de autoria. No que tange ao periculum in mora, afirma tratar-se não de um requisito, mas do fundamento das medidas cautelares, e que a utilização do termo decorre de um equívoco, já que no processo penal o fator determinante não é o tempo, mas a situação de perigo criada pela conduta do imputado, tratando-se, nesses casos, de perigo ao normal desenvolvimento do processo (perigo de fuga, destruição da prova), em virtude do estado de liberdade do sujeito passivo. Por essa razão, o autor sustenta que o fundamento não é o periculum in mora, mas sim o periculum libertatis, enquanto perigo que decorre da liberdade do acusado, representado no sistema do nosso Código de Processo Penal pelo risco para a ordem pública, ordem econômica, conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal. Cf. LOPES JÚNIOR, Aury, op. cit., pp. 189-90 e 195. 246 Cf. JARDIM, Afrânio Silva, op. cit., p. 247 e FERNANDES, Antonio Scarance, op. cit., p. 301. 247 FERNANDES, Antonio Scarance, op. cit., p. 301. No caso da prisão preventiva, aponta o autor que o periculum encontra-se previsto nas quatro hipóteses autorizadoras da prisão, constantes na parte inicial do art. 312 do Código de Processo Penal: prisão para a garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal. 248 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti, op. cit., p. 151. Também nesse sentido, cf. JARDIM, Afrânio Silva, op. cit., pp. 253-7; 266-9; 279-81. 249 JARDIM, Afrânio Silva, op. cit., p. 241. Explica o autor que a prisão decorrente de sentença condenatória recorrível não apresenta quaisquer das características das medidas cautelares elencadas (vide nota 243 retro): não possui qualquer vínculo de acessoriedade com o resultado pretendido na ação condenatória, sendo o próprio acolhimento da pretensão punitiva; não visa prevenir danos prováveis (periculum in mora), observando-se apenas os pressupostos do art. 594 do Código de Processo Penal; não há qualquer conotação de instrumentalidade, pois se outorga a própria prestação jurisdicional requerida na denúncia ou na queixa, além de a sentença investigar o mérito da causa, não estando restrita ao exame superficial do direito punitivo alegado (fumus boni iuris), reconhecendo-o expressamente; e, por fim, não possui a marca da provisoriedade, pois a sentença de mérito é definitiva no sentido processual, não se fundamentando apenas em situações eventuais ou passageiras (Cf. pp. 266-7).

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execução provisória, pois não há ainda condenação, visto que a sentença de pronúncia tem

natureza processual”.250 Com efeito, Afrânio Silva Jardim explica que, “não sendo um juízo

de condenação, mas mera admissibilidade da acusação, a pronúncia, por si só, não deve levar

o réu à prisão”.251

Desse modo, são reconhecidas por Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho

como espécies de prisão cautelar: a prisão em flagrante, a prisão preventiva e a prisão

temporária.252 Ao analisar o princípio da presunção de inocência, o autor ressalta a

inconstitucionalidade da prisão decorrente de sentença condenatória recorrível e a da prisão

por pronúncia, alegando que a Constituição Federal de 1988 somente previu e autorizou a

prisão sob dois fundamentos: a cautelaridade e a pena. Desse modo, como nessas duas

hipóteses ainda não ocorreu o trânsito em julgado da condenação e, por outro lado, também

não estão presentes o fumus boni iuris e o periculum in mora, tais prisões não estariam

legitimadas pelo texto constitucional. Nesse sentido, afirma:

Assim, só pode existir prisão, além das hipóteses de flagrante

expressamente admitidas pela Constituição, naqueles casos em que o juiz,

para decretá-la, tenha de buscar fundamento no fumus boni iuris e no

periculum in mora, residentes no art. 312 do Código: a prisão preventiva e a

prisão temporária. Afora esses casos, a Constituição não admite a prisão.253

Além de extrair tal orientação do texto constitucional, o autor busca no próprio

Código de Processo Penal argumentos para sustentá-la. Aponta que o art. 617 do Código de

Processo Penal veda a chamada reformatio in pejus, isto é, a vedação de piorar a situação do

250 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti, op. cit., pp. 151-2. 251 JARDIM, Afrânio Silva, op. cit., p. 255. 252 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti, op. cit., p. 152. 253 Ibidem. Afrânio Silva Jardim também sustenta a inconstitucionalidade da prisão obrigatória exclusivamente pela decisão de pronúncia. Não concorda, contudo, com a inconstitucionalidade da prisão decorrente de sentença condenatória recorrível, que aponta como um dos efeitos da condenação. Cf. JARDIM, Afrânio Silva, op. cit., pp. 257 e 281.

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réu em recurso exclusivo deste, quando não houver recurso da acusação. E que, com

fundamento neste dispositivo, a doutrina e a jurisprudência desenvolveram a noção da

reformatio in pejus indireta, que representa a vedação de piorar a situação do réu, em caso de

anulação do processo, por força de recurso deste, quando não houver recurso da acusação.

Assim, afirma que a idéia básica que fundamenta a existência e a permanência desse

princípio em sua forma original e evoluída é exatamente a de se afastar qualquer inibição à

faculdade de recorrer que assiste ao acusado. Daí, conclui-se que o princípio da ampla defesa

é o que serve de fundamento ao princípio da reformatio in pejus. Dessa forma, questiona

como é possível que duas idéias totalmente contraditórias possam coexistir num mesmo

ordenamento: uma mitigando a faculdade recursal e a outra garantindo-a amplamente e

afastando qualquer receio de que o recurso possa agravar a situação do recorrente.254

Reconhecendo que, nesse caso, estar-se-ia diante de uma antinomia de princípios,

Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho sustenta que o princípio da presunção de

inocência deve ser utilizado para solucioná-la, reforçando a idéia de ampla defesa e ensejando

a derrogação do art. 393, inciso I, e a revogação dos arts. 393, inciso II, 408, § 1º, e 594 do

Código de Processo Penal, dispositivos que autorizam o recolhimento obrigatório do acusado

ao cárcere para que possa recorrer, e o lançamento de seu nome no rol dos culpados.255

Explica o autor, no que se refere ao art. 393, dispositivo que trata dos efeitos da

sentença condenatória recorrível, que o inciso I prevê dois efeitos: ser o acusado preso ou

conservado na prisão. Quanto a ser o acusado preso, afirma que há uma revogação de tal

norma pelo princípio da presunção de inocência. Contudo, no que tange ao segundo efeito, de

ser conservado na prisão, sustenta que não há qualquer alteração, uma vez que, se o réu está

preso, os motivos que determinaram sua prisão (fundamentados nos requisitos do fumus boni

iuris e do periculum in mora) ficam ainda mais reforçados com a prolação da sentença

254 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti, op. cit., p. 153. 255 Ibidem.

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condenatória, ainda que recorrível.256 Por derradeiro, ressalta que o inciso II autorizava o

lançamento do nome do acusado no rol dos culpados, norma cuja revogação reconhece, por

força do princípio da presunção de inocência.257

Quanto ao art. 408, § 1º (dispositivo que permite que, na sentença de pronúncia, o

juiz determine a captura do réu, como se esta fosse título bastante para a captura de alguém,

salvo se for primário e de bons antecedentes, ou se puder prestar fiança), defende sua

revogação.258

Afrânio Silva Jardim também ressalta que a decisão de pronúncia, tratada por nosso

Código de Processo Penal como título autônomo legitimador da prisão do réu, de lege

ferenda, não deveria produzir qualquer efeito sobre a situação pessoal do acusado no

processo, pois os institutos da prisão em flagrante e da prisão preventiva já atenderiam

perfeitamente à necessária proteção social.259 Assim, sustenta a inconstitucionalidade da

prisão em decorrência de pronúncia, alegando que os maus antecedentes, na verdade, não

caracterizam o periculum in mora, e que “a prisão processual que prescinda do princípio da

necessidade viola injustificadamente o direito de liberdade, privilegiado pela Constituição

Federal de 1988”.260

256 Idem, pp. 153-4. Antonio Scarance Fernandes também reconhece que o art. 393, inciso I, restou prejudicado, mas não com base no princípio da presunção de inocência, e sim com a edição da Lei n. 5.941/1973, que modificou o art. 594 do Código de Processo Penal, permitindo que o acusado primário e de bons antecedentes pudesse apelar em liberdade. Outrossim, ressalta que, se o acusado foi liberado sob fiança, o fato de não ser primário e possuir maus antecedentes não pode, por si só, ser óbice para apelar em liberdade, alegando que só se justifica nova prisão cautelar se houver motivo para a revogação da fiança. Afrânio Silva Jardim é contra a tese esposada por Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho, sustentando que a prisão decorrente de sentença condenatória recorrível é uma verdadeira execução provisória, não possuindo natureza cautelar, e que “os maus antecedentes do réu retiram os efeitos suspensivos de sua eventual apelação, daí porque os efeitos da sentença penal condenatória se operam desde logo, nos termos do art. 393, inciso I, do Código de Processo Penal. Caso contrário, possuindo o recorrente bons antecedentes, sua apelação é dotada de efeitos suspensivos”. Cf. JARDIM, Afrânio Silva, op. cit., p. 279. O autor chega a tal conclusão a partir de uma análise sistemática do art. 393, inciso I, com o art. 594 do Código de Processo Penal. Nesse sentido, cf. JARDIM, Afrânio Silva, op. cit., pp. 268-9. 257 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti, op. cit., p. 154. 258 Ibidem. 259 JARDIM, Afrânio Silva, op. cit., pp. 254-5. 260 Idem, p. 257. Também nesse sentido cf. GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance e GOMES FILHO, Antônio Magalhães, op. cit., p. 296.

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Quanto ao art. 594, que proíbe o acusado de recorrer sem recolher-se à prisão, salvo

se for primário e de bons antecedentes, ou se puder prestar fiança ou livrar-se solto, Luis

Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho sustenta sua revogação pela Constituição Federal,

por entender que ele contraria, além do princípio da presunção de inocência, o princípio do

contraditório, por cercear a liberdade de recorrer.261 Contudo, esse não foi o posicionamento

adotado pelas Cortes Superiores, alertando Antonio Scarance Fernandes262 que o Supremo

Tribunal Federal entendeu constitucional o dispositivo, orientação seguida pelo Superior

Tribunal de Justiça, que a assentou, por meio da Súmula n° 9: “A exigência da prisão

provisória para apelar não ofende a garantia constitucional da presunção de inocência”.

Não obstante, aponta Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho que,

atualmente, o Superior Tribunal de Justiça tem atenuado tal interpretação, propondo uma

releitura dos arts. 594 e 595, segundo a qual a apelação não poderia deixar de ser recebida

pelo fato de estar o acusado foragido.263

Outra questão relativa ao princípio da presunção de inocência que se julga

importante abordar é a de até quando o marco temporal deve prevalecer. O texto

constitucional o assegura até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Desse

modo, ao estabelecer o marco processual que define o trânsito em julgado, Luis Gustavo

Grandinetti Castanho de Carvalho defende que ele só ocorrerá com o conhecimento do

recurso extraordinário e do recurso especial, com sua não-interposição, ou com o julgamento

261 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti, op. cit., pp. 138-9 e 154. Também sustenta a inconstitucionalidade do art. 594, do Código de Processo Penal, Antonio Scarance Fernandes, op. cit., p. 314. 262 Cf. FERNANDES, Antonio Scarance, op. cit., p. 314, nota 6. 263 “RHC – Processual Penal – Sentença condenatória – Réu foragido – Apelação – Processamento – Devido processo legal – Presunção de inocência – Cautelares processuais penais – O princípio constitucional da presunção de inocência, hoje, está literalmente consagrado na Constituição da República (art. 5º, LVII). Não pode haver, assim, antes desse termo final, cumprimento da sanção penal. As cautelares processuais penais buscam, no correr do processo, prevenir o interesse público. A Carta Política, outrossim, registra-o. Devido processo legal compreende o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. Não se pode condicionar o exercício de direito constitucional – ampla defesa e duplo grau de jurisdição – ao cumprimento de cautela processual. Impossibilidade de não receber a apelação, ou declará-la deserta, porque o réu está foragido. Releitura do art. 594, CPP em face da Constituição. Processe-se o recurso, sem sacrifício do mandado de prisão.” (RHC n. 6.110/96 – SP, decisão em 18/02/97, 6ª Turma, rel. Min. Vicente Cernicchiaro) Apud CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti, op. cit., pp. 139-40.

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e a rejeição do agravo interposto para o recebimento dos referidos recursos, fundamentando

sua argumentação na interpretação extensiva que sustenta deva ser dispensada ao princípio

constitucional.264 Contudo, ressalta que esse não foi o entendimento adotado pelo Supremo

Tribunal Federal. Ademais, a Lei n° 8.038, de 29/05/1990, reafirmou, em seu art. 27, § 2º, que

o recurso extraordinário e o recurso especial não possuem efeito suspensivo, conforme já

dispunha o art. 637 do Código de Processo Penal, a respeito do recurso extraordinário.265

Por derradeiro, um último ponto merece destaque no que tange ao princípio da

presunção de inocência: a questão do ônus da prova. Afrânio Silva Jardim, ao analisar a

abrangência do princípio nos termos impostos pela Constituição Federal de 1988, esclarece:

“O que ela proíbe é que o legislador ordinário inverta o ônus da prova, exigindo que o réu

tenha que provar sua inocência, sob pena de condenação em razão da dúvida”.266 Para o autor,

isso exige que o Ministério Público ou o querelante aleguem e provem efetivamente que o réu

praticou uma infração penal, que define como uma conduta objetiva e subjetivamente típica,

264 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti, op. cit., pp. 155-6. 265 Nesse sentido, cf. jurisprudência do STF: “Habeas corpus. Processual Penal. Cerceamento de defesa. Composição da turma julgadora. Violação ao art. 617 (sic) do CPP. Presunção de inocência, Improcedência das alegações ... 3 – Não há que se cogitar de reformatio in pejus, já que o juiz assegurou tão-somente o direito de apelar em liberdade, não sendo extensível essa faculdade aos demais recursos porventura cabíveis após o julgamento do apelo. Precedentes. 4 – O princípio constitucional da não-culpabilidade do réu não impede a efetivação imediata da prisão, quando o recurso por ele interposto não possua efeito suspensivo, como ocorre com o recurso extraordinário e com o recurso especial. Precedentes. 5 – Habeas corpus indeferido.” (HC 81.964-SP; 2ª Turma, DJU 28/02/2003, Min. Gilmar Mendes), apud CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti, op. cit., pp. 155-6. Contudo, essa não parece ser a atual orientação do STJ, conforme se depreende no Acórdão a seguir: “Prescrição da Pretensão Punitiva e Marcos Interruptivos. Não tendo fluído o prazo de dois anos (CP, art. 109, VI) entre os vários marcos interruptivos (data do crime, recebimento da denúncia e sentença condenatória recorrível) e sobrevindo acórdão confirmatório da condenação, antes do decurso do período fixado em lei, está exaurida a chamada prescrição da pretensão punitiva. Com base nesse entendimento, a Turma indeferiu habeas corpus impetrado em favor de condenado à pena de quatro meses de detenção pela prática do crime de lesões corporais dolosas (CP, art. 129), em que se pleiteava o reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva. Considerou-se irrelevante que tenha decorrido prazo superior a dois anos entre a data da publicação da sentença e o trânsito em julgado da decisão monocrática que negara seguimento a agravo de instrumento interposto contra o despacho que indeferira recurso extraordinário. Salientando que o trânsito em julgado da condenação é marco divisório de duas espécies de prescrição – a da pretensão punitiva, que termina com o trânsito em julgado, e a da prescrição executória, que se inicia com ele –, asseverou-se que o condenado pode obstar a formação da coisa julgada com a interposição de recursos especial e extraordinário. Entretanto, deve-se ter em conta que o recurso capaz de impedir essa qualidade da sentença é o recurso admissível, mas, se o STF e o STJ reconhecem a inadmissibilidade, confirmando o que foi decidido no juízo a quo, os efeitos desse reconhecimento retroagem.” (HC 86125/SP, rel. Min. Ellen Gracie, 16.08.2005, grifo aposto). 266 JARDIM, Afrânio Silva, op. cit., p. 280. Como já se teve a oportunidade de assinalar (nota 240), o autor se filia à corrente que sustenta que o princípio da presunção de inocência tem influência direta apenas sobre o ônus da prova.

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ilícita e reprovável. Finaliza-se com as palavras do autor, que demonstram os reflexos do

princípio da presunção de inocência sobre o ônus da prova:

Assim, não pode mais ter guarida o entendimento jurisprudencial e

doutrinário de que basta à acusação provar a tipicidade da conduta praticada

pelo réu para que o mesmo seja condenado, nada obstante a dúvida razoável

sobre um excludente de ilicitude ou culpabilidade, pois tal dirimente

decorreria de fato alegado pela defesa. A dúvida sobre esta matéria

defensiva não laboraria em favor do acusado, pois a tipicidade seria um

indício de antijuridicidade, que seria presumida em face de ausência de

prova em contrário. Agora, a expressa presunção de inocência faz com que o

ônus da prova seja todo da acusação.267

1.3.6 A garantia da motivação das decisões judiciais

A doutrina268 registra uma evolução na concepção da garantia da motivação das

decisões judiciais. Inicialmente, ela estaria atrelada a uma visão tecnicista, sendo entendida

como uma garantia técnica do processo, com objetivos endoprocessuais: de proporcionar às

partes conhecimento da fundamentação para impugnar decisões; e de permitir que os órgãos

de segundo grau de jurisdição pudessem avaliar a legalidade e a justiça da decisão.

Atualmente, ela é admitida como garantia de ordem política, garantia da própria

jurisdição. Tem como destinatários não apenas as partes e os órgãos jurisdicionais de segundo

grau, mas também a comunidade, que, por meio da motivação, possui elementos que lhe

permitam verificar se o juiz – portanto, a própria justiça – decide de forma imparcial e com

conhecimento da causa. Serve, ainda, às partes, que podem verificar se todas as suas razões

foram examinadas pelo juiz; e ao próprio juiz, que evidencia, por meio dela, sua atuação

imparcial e justa.

267 JARDIM, Afrânio Silva, op. cit., p. 281. 268 FERNANDES, Antonio Scarance, op. cit., p. 129.

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Luigi Ferrajoli ressalta que a garantia da motivação tem suas origens no período do

Estado Moderno, com fundamentos no pensamento iluminista, tendo sido sancionada pela

primeira vez na Pragmática de Ferdinando IV, de 27 de setembro de 1774; a seguir, no art. 3

da Ordonannce Criminelle de Luis XVI, de 1º de maio de 1778; posteriormente, pelas leis

revolucionárias de 24 de agosto e 27 de novembro de 1790; e, por fim, consagrada, por meio

da codificação napoleônica, em quase todos os códigos oitocentistas europeus.269

Em nosso Direito, Antonio Scarance Fernandes270 aponta que a visão tecnicista

influenciou os diplomas processuais, sendo citada nas Ordenações Filipinas (Livro III, Título

LXVI, § 7º), nos Códigos do Império, no Regulamento n° 737 de 1850, nos Códigos de

Processo Civil de 1939 e 1973, no Código de Processo Penal comum (art. 381, inciso III) e

Militar (art. 438, alínea c). Finalmente, já concebida como garantia da própria jurisdição,

passou a figurar na Constituição de vários países, inclusive em nossa Constituição Federal de

1988, em seu art. 93, inciso IX.271

No que tange à abrangência da motivação exigida às decisões judiciais, alerta Luis

Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho sobre a importância do tipo de verdade que deve

ser revelada pela motivação judicial. Aponta que a questão está ligada ao modelo de Direito

Penal adotado e que, no caso brasileiro, em que se optou pelo modelo formalista ou

convencionalista (para a definição do tipo penal), a verdade a ser buscada pelo processo penal

não é uma verdade completa, inteira, mas apenas uma verdade limitada à medida do objeto

que se visa demonstrar, ou seja, a infringência ou não de um tipo penal, devidamente descrito

na lei, ou as causas que justifiquem a conduta do agente.272

269 FERRAJOLI, Luigi, op. cit., p. 497. 270 FERNANDES, Antonio Scarance, op. cit., p. 130. 271 “Art. 93. [...] IX – todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei, se o interesse público o exigir, limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes.” 272 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti, op. cit., p. 197.

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As observações do autor são fundadas na obra de Luigi Ferrajoli, que se refere à

verdade formal ou processual como aquela buscada pelo modelo formalista como fundamento

de uma condenação, e que é alcançada mediante regras precisas, e relativa apenas a fatos

penalmente relevantes.273 As palavras de Luigi Ferrajoli revelam a limitação que esta verdade

encerra:

Esta verdade não pretende ser a verdade; não é obtida mediante indagações

inquisitivas alheias ao objeto pessoal; está condicionada em si mesma pelos

procedimentos e às garantias da defesa. É, em suma, uma verdade mais

controlada quanto ao método de aquisição, porém mais reduzida quanto ao

conteúdo informativo do que qualquer hipotética “verdade substancial”, no

quádruplo sentido de que se circunscreve às teses acusatórias formuladas de

acordo com as leis, de que deve estar corroborada por provas colhidas por

meio de técnicas normativamente preestabelecidas, de que é sempre uma

verdade apenas provável e opinativa, e de que na dúvida, ou na falta de

acusação ou de provas ritualmente formadas, prevalece a presunção de não-

culpabilidade, ou seja, de falsidade formal ou processual das hipóteses

acusatórias.274

O autor justifica a limitação da verdade processual esclarecendo que ela será sempre

uma inferência indutiva, pois o juiz não terá como experimentar os fatos delituosos que são

objetos do juízo porque já fazem parte do passado e são, por isso, inacessíveis. Ele terá acesso

apenas às suas provas, que são experiências produzidas no presente, ainda que se possa

interpretá-las como sinais dos fatos passados. Assim, afirma:

Como em todas as inferências indutivas, também na inferência

historiográfica e judicial a conclusão tem, portanto, o valor de uma hipótese

de probabilidade na ordem da conexão causal entre o fato aceito como

273 FERRAJOLI, Luigi, op. cit., p. 38.

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provado e o conjunto dos fatos adotados como probatórios. Sua verdade não

está demonstrada como sendo logicamente deduzida das premissas, mas

somente comprovada como logicamente provável ou razoavelmente

plausível de acordo com um ou vários princípios de indução.275

Assim, Ferrajoli afirma que a motivação do juiz para uma condenação só será

adequada se, “além de apoiar a hipótese acusatória com uma pluralidade de confirmações não

contraditadas por qualquer contraprova, estiver em condições de desmentir com adequadas

contraprovas todas as contra-hipóteses formuladas e formuláveis”.276 E ressalta o valor

fundamental da garantia: ela “exprime e ao mesmo tempo garante a natureza cognitiva, em

vez da natureza potestativa do juízo, vinculando-o, em direito, à estrita legalidade, e, de fato, à

prova das hipóteses acusatórias”.277 Assim, permite o controle das decisões tanto do ponto de

vista jurídico, por violação da lei ou defeito de interpretação ou subsunção, quanto do posto

de vista fático, por defeito ou insuficiência de provas ou por explicação inadequada do nexo

entre convencimento e provas.278

As idéias do autor sobre os limites aos quais está adstrita a verdade processual

tornam ainda mais evidente a impossibilidade de subsistência do antigo contraponto entre a

verdade formal (com a qual se contentava o processo civil) e a “verdade real” (buscada no

processo penal). Nesse sentido, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho afirma que,

“também no Processo Penal, o que se busca é a verdade processual, devidamente controlada,

legitimada, porque não haverá nunca uma verdade absoluta”.279 Alerta, ainda, que a atenuação

da dicotomia apontada traz reflexos importantes para o processo penal. O primeiro deles diz

respeito a uma mudança de atitude dos operadores do Direito, que passariam a compreender a

274 Ibidem. 275 Idem, p. 44. 276 Idem, p. 122. 277 Idem, p. 497. 278 Idem, pp. 197-498. 279 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti, op. cit., p 199.

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limitação que existe na recuperação do fato a ser provado; e o segundo está relacionado à

compreensão da limitação da extensão da atividade probatória, que deverá estar circunscrita

por lei.280

Com efeito, a garantia da motivação se reveste de especial importância, na medida

em que assegura a racionalidade e o controle dos atos judiciais, como assinalado. O art. 93,

inciso IX, da Constituição Federal de 1988 a assegura a todas as decisões emanadas dos

órgãos do Poder Judiciário, definindo sua amplitude.281 Contudo, denuncia Antonio Scarance

Fernandes que, apesar da clareza do texto constitucional, “continuaram a não ser

fundamentadas as decisões de recebimento da denúncia, mantendo-se a praxe existente antes

de 1988”.282

Ressalta o autor que as decisões interlocutórias restritivas à liberdade individual

exigem, de forma expressa, a motivação, conforme previsto no art. 315 do Código de

Processo Penal (para a prisão preventiva) e no art. 2º, § 2º, da Lei n° 7.960, de 21 de

dezembro de 1989 (para a prisão temporária). No entanto, os tribunais, inclusive o Supremo

Tribunal Federal, assim não entendem com relação ao recebimento da denúncia, sob os

argumentos de que: não há decisão, mas simples despacho; de que mesmo que se admita que

há uma decisão, ela possui carga decisória distinta da que possuem as sentenças condenatórias

ou absolutórias; e de que a exigência constitucional não atinge todas as decisões.283

Argumenta o autor, com o que se concorda, que não se trata de mero despacho de

expediente, uma vez que o juiz, ao receber a denúncia, verifica a presença dos pressupostos

280 Ibidem. 281 Cumpre assinalar a ressalva que está prevista no próprio texto constitucional, no que se refere à decisão dos jurados, que não é motivada, nos termos do disposto no art. 5º, inciso XXXVIII, alínea b, da Constituição Federal de 1988: “Art. 5º [...] XXXVIII – É reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: b) o sigilo das votações”. Contudo, é importante ressaltar que os julgamentos do Tribunal do Júri deverão ser fundamentados, conforme dispõe o art. 439 do Código de Processo Penal. Depreende-se, da leitura do dispositivo, que, embora o veredicto dos jurados não exija a motivação, “faz-se parte integrante e orientadora da ratio decidendi ínsita ao pronunciamento do juiz togado, necessariamente motivado”. Cf. TUCCI, Rogério Lauria, op. cit., p. 241. 282 FERNANDES, Antonio Scarance, op. cit., p. 131. 283 Ibidem.

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processuais e das condições da ação, e que há carga decisória, na medida em que, a partir

desse momento, é instaurado o processo e o indiciado passa à condição de acusado.284

Reiterando a necessidade da motivação da decisão que recebe a denúncia, Rogério

Lauria Tucci assinala que é absolutamente necessário que o órgão jurisdicional justifique,

ainda que de forma concisa, o fundamento razoável da acusação e o legítimo interesse do

acusador, público ou privado, “em consonância e perfeita harmonia com os elementos

colhidos nos autos de investigação criminal ou constantes das peças de informação”.285 Aqui,

concorda-se com os autores, diante da evidente carga decisória da qual está dotada a

denúncia, sobretudo no que tange à análise da presença dos pressupostos processuais e das

condições da ação. Ademais, a mudança no status quo de indiciado para acusado atinge a

esfera dos direitos individuais daquele que está sendo denunciado, o que demanda seja ela

acompanhada da respectiva motivação.

A garantia da motivação está assegurada no texto constitucional, sob pena de

nulidade. Assim, Antonio Scarance Fernandes ressalta que, para que ela atenda à finalidade da

norma, deve ser clara, coerente e completa, reconhecendo como principal dificuldade atinente

ao tema analisar sua suficiência.286 Ele apresenta ainda alguns pontos que podem ser úteis à

solução de casos concretos. O primeiro se refere à necessidade de que todas as teses

levantadas pelas partes sejam analisadas pelo órgão julgador.287 Já o segundo está relacionado

284 Ibidem. 285 Cf. TUCCI, Rogério Lauria, op. cit., pp. 244-5. 286 FERNANDES, Antonio Scarance, op. cit., p. 132. 287 Cf. nesse sentido o Acórdão do STF: “HABEAS CORPUS – ACÓRDÃOS PROFERIDOS EM SEDE DE APELAÇÃO E DE EMBARGOS DECLARATÓRIOS – IMPUTAÇÃO DE ROUBO DUPLAMENTE QUALIFICADO – DECISÕES QUE NÃO ANALISARAM OS ARGUMENTOS SUSCITADOS PELA DEFESA DO RÉU – EXIGÊNCIA CONSTITUCIONAL DE MOTIVAÇÃO DOS ATOS DECISÓRIOS – INOBSERVÂNCIA – NULIDADE DO ACÓRDÃO – PEDIDO DEFERIDO EM PARTE. A FUNDAMENTAÇÃO CONSTITUI PRESSUPOSTO DE LEGITIMIDADE DAS DECISÕES JUDICIAIS. – A fundamentação dos atos decisórios qualifica-se como pressuposto constitucional de validade e eficácia das decisões emanadas do Poder Judiciário. A inobservância do dever imposto pelo art. 93, IX, da Carta Política, precisamente por traduzir grave transgressão de natureza constitucional, afeta a legitimidade jurídica do ato decisório e gera, de maneira irremissível, a conseqüente nulidade do pronunciamento judicial. Precedentes. A DECISÃO JUDICIAL DEVE ANALISAR TODAS AS QUESTÕES SUSCITADAS PELA DEFESA DO RÉU. – Reveste-se de nulidade o ato decisório, que, descumprindo o mandamento constitucional que impõe a qualquer Juiz ou Tribunal o dever de motivar a sentença ou o acórdão, deixa de examinar, com sensível prejuízo para o

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à análise da profundidade exigível à questão, levando-se em conta a maior ou menor

complexidade da matéria analisada.

Menciona também que a falta de motivação não poderá ser considerada suprida pela

motivação implícita, pois esta seria insuficiente e não estaria apta a atender à exigência

prevista no art. 93, inciso XI, da Constituição Federal. Além da motivação implícita, Rogério

Lauria Tucci ressalta que também não podem ser admitidas a motivação aliunde e a per

relationem. Este autor define a motivação implícita como “aquela em que a fundamentação do

julgado carece de um raciocínio lógico e direto, reclamando para a sua compreensão a análise

conjunta de argumentos principais e subsidiários”.288 Já a motivação aliunde seria aquela na

qual há apenas referência a atos produzidos em outro processo. E, por fim, a motivação per

relationem seria aquela que se refere à outra fundamentação, “porém constante do mesmo

processo, sendo mais freqüente a hipótese em que o órgão recursal se reporta aos argumentos

decisórios expendidos pelo inferior, no julgamento recorrido”.289

Desse modo, diante do mandamento constitucional que assegura a garantia da

motivação, não se pode admitir a motivação implícita,290 ou ainda as apontadas por Rogério

Lauria Tucci como aliunde e per relationem. A norma exige clareza e precisão do órgão

jurisdicional, que deverá acolher ou refutar todos os argumentos das partes, de forma expressa

e coerente, e com a profundidade exigida pelo fato sub judice. Seu não-atendimento ensejará a

declaração de nulidade da decisão na qual esteja ausente a motivação.

réu, fundamento relevante em que se apóia a defesa técnica do acusado”. (HC 74073/RJ, 1ª Turma, rel. Min. Celso de Mello, DJ 27.06.1997). 288 TUCCI, Rogério Lauria, op. cit., p. 236. 289 Idem, p. 237. 290 Cf. nesse sentido, Acórdão do STF: “HABEAS CORPUS. ACÓRDÃO QUE SE LIMITOU A MANTER DECISÃO CONDENATÓRIA DO PACIENTE SEM SE MANIFESTAR SOBRE A ALEGAÇÃO DE ERRO MATERIAL SUSCITADA NA APELAÇÃO. Hipótese em que a decisão carece da indispensável fundamentação exigida pela Constituição Federal em seu art. 93, IX. Habeas Corpus deferido”. (HC 80678/RS rel. Min. ILMAR GALVÃO, 1ª Turma, DJ 18.06.2001).

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2

ANÁLISE FUNCIONAL DO SISTEMA PENAL SOB A PERSPECTIVA NORMATIVA

A investigação da dogmática jurídica sobre o processo penal desenvolvida no

presente trabalho pretende se dar por meio de uma análise crítica. E, como alerta Geraldo

Prado, a dogmática crítica “é fruto da combinação, do diálogo entre diversas disciplinas”.291

Desse modo, o que se busca no presente capítulo é empreender um estudo do funcionamento

concreto do sistema penal,292 ressaltando os pontos em que as garantias asseguradas

normativamente ao acusado no processo penal293 são ou deixam de ser observadas, ou seja, de

realizar uma análise funcional.294

Contudo, é importante advertir ao leitor que o trabalho não adere a qualquer

ideologia funcionalista,295 e utiliza a análise funcional apenas para entender o sistema penal.

Geraldo Prado esclarece que as ideologias funcionalistas, tomadas no sentido negativo do

termo (como encobrimento da realidade), exigem “certo grau de adesão acrítica aos conceitos

e valores ‘revelados’ pela ideologia”;296 e “o convencimento (muitas vezes a fé mesmo) de

que somente obedecendo com fidelidade aos paradigmas da ideologia o sistema social

291 PRADO, Geraldo, op. cit., p. 3. 292 Adoto aqui a definição de sistema utilizada por Nilo Batista, que se depreende como sendo o conjunto de instituições estatais (representadas pela instituição policial, pela instituição judiciária e pela instituição penitenciária), que “segundo regras jurídicas pertinentes, se incumbe de realizar o direito penal”. Cf. BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 9 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 25. 293 Mais uma vez, é necessário ressaltar que este estudo está centrado nas garantias que se julgam estar relacionadas à suspensão condicional do processo, tema central deste trabalho, não sendo sua pretensão abordar todas as garantias asseguradas normativamente ao acusado no processo penal. 294 PRADO, Geraldo, op. cit., p. 3. 295 Adoto a definição de André-Jean Arnaud e María Jose Farinas Dulce, que apontam como ideologia funcionalista “uma ‘filosofia social’ ou uma ‘teoria global da sociedade’, que tende a formular explicações ontológicas, apriorísticas e até metafísicas, no que diz respeito às funções desenvolvidas num sistema social por seus elementos”. Cf. ARNAUD, André-Jean e DULCE, Maria José Farinas. Introdução à análise sociológica dos sistemas jurídicos. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, pp. 141-2. 296 PRADO, Geraldo, op. cit., p. 4.

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funcionará adequadamente”.297 Nesse sentido, a conseqüência prática seria atribuir ao sistema

prioridade sobre as pessoas, registrando Eugênio Raul Zaffaroni e Nilo Batista298 que a

principal característica dessas ideologias é a estabilidade, ou seja, “a manutenção das coisas

como estão”.299

Assim, faz-se necessário estabelecer a distinção entre ideologia funcionalista e

análise funcional. Admite-se como análise funcional um método de conhecimento científico

que, concretamente, analisa e explica o Direito, “estudando as ‘funções’ ou tarefas que o

Direito realiza para a sociedade, as que ele deveria realizar e como ele as realiza ou deveria

realizá-las”.300

Desse modo, ressalta-se, conforme Geraldo Prado, que nem sempre a análise

funcional estará fatalmente atrelada à ideologia funcionalista, sendo possível utilizá-la “para

negar a validade da ideologia funcionalista e revelar como, por que e para quem funciona o

Sistema de Justiça Criminal”.301 Nesse sentido, Eugênio Raul Zaffaroni e Nilo Batista

lembram que alguns textos marxistas correspondem a esse tipo de análise, concluindo os

autores que, “embora toda concepção orgânica da sociedade tenda a ser antidemocrática e

reacionária, não é possível dizer a mesma coisa das análises funcionais, que representam

apenas um método paralelo às explicações causais e intencionais nas ciências sociais”.302

No primeiro capítulo, buscou-se estudar a configuração do processo penal assegurada

pela Constituição e pelas normas infraconstitucionais, além da produção da dogmática

jurídica sobre o tema. O que se pretende neste segundo capítulo é justamente investigar como

essas garantias têm sido (ou não) asseguradas na prática, sob a perspectiva dogmática, de

297 Ibidem. 298 ZAFFARONI, E. Raul et al. Direito penal brasileiro. 2 ed. Rio de Janeiro: [s.l.], 2003, v. 1, p. 622. 299 PRADO, Geraldo, op. cit., p. 4. 300 Cf. ARNAUD, André-Jean e DULCE, María Jose Farinas, op. cit., p. 141. 301 PRADO, Geraldo, op. cit., p. 5. 302 ZAFFARONI, E. Raul et al., op. cit., p. 622.

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modo a empreender uma crítica sobre as reais virtudes e deficiências que a suspensão

condicional do processo penal podem representar para o acusado.

2.1 Conceito, funções e missões do Direito Penal

A complexidade da sociedade pós-moderna, marcada pelo ambiente de conflitos,

torna necessário o Direito Penal como um instrumento institucionalizado de controle social.

Entretanto, à vista dos ditames instituídos pela Constituição Federal de 1988, é preciso

reconhecer que sua legitimidade está atrelada à obediência ao sistema de direitos e garantias

fundamentais assegurados pela Magna Carta.

O processo penal consiste no instrumental para a efetivação das normas instituídas

pelo Direito Penal. Desse modo, a análise das funções e missões do processo penal no Estado

Democrático de Direito exige, antes, uma investigação, ainda que breve, das funções e

missões do próprio Direito Penal.

2.1.1 O conceito de Direito Penal

É necessário delimitar, já de início, o próprio significado do termo Direito Penal.

Alguns autores303 apontam, sob um aspecto formal, o conceito de Direito Penal como um

conjunto de normas que definem as infrações penais (os crimes e as contravenções penais),

prevendo, para as condutas que representem sua inobservância, as sanções correspondentes

(penas e medidas de segurança). Paulo de Souza Queiroz formula um conceito mais completo,

abarcando não só as normas que tratam da definição de comportamentos delituosos, e que lhes

cominam sanções, mas também aquelas que delimitam o âmbito de vigência, critérios de

303 BUSATO, Paulo César e HUAPAYA, Sandro Montes. Introdução ao direito penal: fundamentos para um sistema penal democrático. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 1; QUEIROZ, Paulo de Souza. Direito penal: introdução crítica. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 3; TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 14.

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aplicação e interpretação das leis penais, bem como as que definem as bases e os princípios do

Direito Penal:

Conclusivamente, pode-se conceituar o Direito Penal, sob o aspecto formal,

como o conjunto das normas jurídicas que, materializando o poder punitivo

do Estado, define as infrações penais (crimes – ou delitos – e

contravenções), com a indicação das sanções correspondentes (penas,

medidas de segurança ou outra conseqüência legal), fixando,

simultaneamente, os princípios e garantias fundamentais do cidadão perante

o exercício desse poder, ao tempo em cria os pressupostos da punibilidade e

delimita o nível de participação da vítima no conflito.304

Paulo Busato e Sandro Montes Huapaya apontam um conceito que vai além do

aspecto formal, mais amplo, e que não se preocupa com o grau de legitimação do sistema

penal, descrevendo a função política desempenhada pela dogmática jurídico-penal. Afirmam

os autores que “o Direito Penal é um instrumento jurídico configurado pelos que detêm o

poder de representação da sociedade no Legislativo e que se aplica àqueles que o

contrariam”.305

Já Raul Zaffaroni e Nilo Batista advertem sobre o equívoco no qual a doutrina

freqüentemente incide ao identificar o uso da expressão “direito penal” com o objeto do saber

do Direito Penal, que é a lei penal.306 Afirmam que o Direito Penal é um saber cujos limites

devem ser estabelecidos a fim de que seja possível identificar o conjunto de entes que nele se

inserem, e aqueles que ficam excluídos.307 E conceituam o Direito Penal como o ramo do

saber jurídico que, ao realizar a interpretação das leis penais, oferece aos juízes um sistema

304 QUEIROZ, Paulo de Souza, op. cit., pp. 5-6. Nilo Batista também formula um conceito mais abrangente de direito penal (entendendo-se a definição de direito penal no sentido objetivo, conforme apontado pelo autor): “É o conjunto das normas jurídicas que, mediante a cominação de penas, estatuem os crimes, bem como dispõem sobre seu próprio âmbito de validade, sobre a estrutura e os elementos do crime e sobre a aplicação e execução das penas e outras medidas nelas previstas”. Cf. BATISTA, Nilo, op. cit., p. 50. 305 BUSATO, Paulo César e HUAPAYA, Sandro Montes, op. cit., p. 3.

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orientador de decisões que contém e reduz o poder punitivo, com o objetivo de impulsionar o

progresso no Estado Constitucional de Direito.308 Com efeito, filia-se aqui à posição adotada

pelos autores, entendendo que o conceito de Direito Penal apontado é o que reflete de modo

mais fiel a essência desse ramo do conhecimento jurídico. Trata-se de um conceito mais

completo porque abrange não só a legislação penal em si, mas também antecipa algumas de

suas missões.309

2.1.2 As funções do Direito Penal

Delimitada a noção de Direito Penal, cumpre identificar as funções ou missões que

este ramo do saber jurídico desempenha ou deve desempenhar na sociedade. Logo de início, é

importante registrar a advertência de Paulo Busato e Sandro Montes Huapaya, quando tratam

da distinção dos termos: “funções” e “missões”. Afirmam que, embora a doutrina

tradicionalmente empregue o termo “funções” para justificar aquilo que o Direito Penal

deveria refletir no plano do “dever ser”, na linguagem sociológica o termo “função” significa

a soma das conseqüências objetivas de algo. No âmbito do Direito Penal, seriam tais funções

os efeitos reais do sistema, ainda que não fossem os desejados. Desse modo, optam pelo

termo “missões” para denominar as conseqüências desejadas e buscadas pelo sistema do

Direito Penal.310 Acredita-se, assim como os autores, que é mais aconselhável o uso do termo

missões para designar o que o Direito Penal “deve ser”, sem embargo de ser necessário ao

estudo do referido sistema ter bem claro também quais são as reais funções que ele

306 ZAFFARONI, E. Raul et al., op. cit., p. 38. 307 Ibidem. 308 Idem, p. 40. 309 Nesse sentido, são esclarecedoras as palavras dos autores, na obra citada, quando explicam os elementos da definição. A noção do direito penal como um saber que tem por escopo propor aos juízes um sistema apto a orientar decisões racionais, que reduzam e contenham o poder punitivo, de modo a permitir o desenvolvimento do Estado Constitucional de Direito, permite identificar a distinção entre o direito penal enquanto saber, e a norma penal enquanto seu objeto de conhecimento. Cf. ZAFFARONI, E. Raul et al., pp. 40-2. 310 BUSATO, Paulo César e HUAPAYA, Sandro Montes, op. cit., p. 31.

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desempenha. Com efeito, o estudo do Direito Penal deve sempre buscar a máxima

aproximação das funções exercidas às missões desejadas.

Antônio García-Pablos de Molina e Luiz Flávio Gomes, ao comentarem as

tendências da moderna Criminologia, e os avanços que ela permite no que tange a uma

investigação das funções objetivas do Direito Penal, no sentido abordado no presente

trabalho, afirmam:

Finalmente, as numerosas investigações levadas a cabo nos últimos anos

sobre a efetividade do Direito Penal e suas conseqüências jurídicas – antes

de tudo, sobre a pena privativa de liberdade (“desviação secundária”,

“reincidência” etc.) – têm desmistificado o suposto impacto bem-feitor,

reabilitador e ressocializador da pena-rainha, e com ele, o princípio da

prevenção da Criminologia tradicional. Tais investigações têm demonstrado,

ao contrário, que não castigamos para ressocializar. Que não é este o motivo

de que se criminalizem certos comportamentos desviados. Todo o oposto:

que a pena não ressocializa, senão que estigmatiza; não limpa, senão suja

(como tantas vezes lembraram os expiacionistas!) E que, comumente, é mais

o fato de ter cumprido uma pena que a própria prática do delito o que

implica o maior demérito aos olhos da sociedade. Que devia ser esta, na

verdade, não o delinqüente, a necessitada de ressocialização.311

Antes da abordagem específica das missões do Direito Penal segundo as teorias que

se firmaram no campo dogmático, é importante registrar algumas considerações da

Criminologia crítica, no que diz respeito às funções objetivas do Direito Penal. Paulo Busato e

Sandro Montes Huapaya examinam algumas teorias que revelaram algumas das funções

311 GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio e GOMES, Luiz Flavio. Criminologia: introdução aos seus fundamentos teóricos – introdução às bases criminológicas da lei n. 9.099/1995 – lei dos juizados especiais criminais. 4 ed. revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, pp. 577-8.

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exercidas pelo Direito Penal, demonstrando que ele serve à manutenção de uma estrutura de

poder social vigente.312

Dentre elas, vale destacar a teoria do labelling approach, que nega a vigência do

princípio da igualdade, sustentando que não há conduta criminosa per se, por sua nocividade

social, mas sim uma escolha discriminatória do comportamento que deve ser considerado

criminoso. Para essa teoria, as condutas seriam neutras. Entretanto, o aparato judicial elegeria,

dentre as camadas mais humildes da população, aquelas condutas que deveriam ser

estigmatizadas com o rótulo de criminosas.313 Os autores advertem que, sem embargo das

críticas feitas a essa teoria – que possuem como argumento central o fato de o Direito Penal

não ser dotado de poder suficiente para suportar a manutenção de todo o sistema social

vigente –, é importante sublinhar a constatação de que mais de 90% da população carcerária

na América Latina provém das camadas sociais mais carentes econômica e socialmente.314

Eugênio Raul Zaffaroni ressalta a contradição entre a programação normativa que os

discursos jurídico-penais professam e a operacionalidade objetiva dos sistemas penais. Aponta

que, na América Latina, essa contradição se mostra mais evidente, e que os órgãos dos

sistemas penais de nossa região “operam com um nível tão alto de violência que causam mais

mortes do que a totalidade dos homicídios dolosos entre desconhecidos praticados por

particulares”.315

312 BUSATO, Paulo César e HUAPAYA, Sandro Montes, op. cit., pp. 32-3. Os autores destacam as teorias do conflito, o pensamento marxista e o labelling aproach, explicando em especial esta última, pela grande importância de dois pontos por ela abordados: a evidência de o sistema penal ser estigmatizante, e a constatação da existência de uma desigualdade social que produz decisões díspares e injustas no âmbito do aparato judicial. 313 Ibidem. Nesse sentido, Loïc Wacquant denuncia que a maior parte da população carcerária nas prisões americanas é oriunda “das parcelas precarizadas da classe trabalhadora e, sobretudo, das famílias do subproletariado de cor das cidades atingidas diretamente pela transformação conjunta do trabalho assalariado e da proteção social”. Cf. WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 83. 314 Idem, p. 33. Ao que parece, E. Raul Zaffaroni e Nilo Batista apontam tal fenômeno como a orientação seletiva da criminalização secundária. Cf. ZAFFARONI, E. Raul et al., op. cit., pp. 44-51 . 315 ZAFFARONI, E. Raul. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Trad. Vânia Romano Pedrosa e Amir Lopez da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991, pp. 12-3.

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Nesse sentido, a busca de um Direito Penal mais justo passa por um necessário

esforço de que seja assegurado um trato efetivamente igualitário. Só assim se mostra possível

garantir a liberdade. As missões do Direito Penal seriam o “filtro” necessário à manutenção da

igualdade e da liberdade, permitindo o progresso humanitário e a efetiva realização do ideal

democrático.316

Ainda no tema das funções do Direito Penal, são de especial valor as observações de

Eugênio Raul Zaffaroni e Nilo Batista, ao alertarem que a tentativa de isolar as funções reais

da pena do poder punitivo constitui uma formalização jurídica artificial. Isto porque sustentam

que “o maior poder do sistema penal não reside na pena, mas sim no poder de vigiar,

observar, controlar movimentos e idéias, obter dados da vida privada e pública, processá-los,

arquivá-los, impor penas e privar de liberdade sem controle jurídico”, além de controlar e

fazer desaparecer dissidências, ou ainda, neutralizar eventuais coalizões entre

desfavorecidos.317

Alertam também que “o poder punitivo não resolve os conflitos porque deixa uma

parte (a vítima) fora de seu modelo. No máximo pode aspirar a suspendê-los, deixando que o

tempo os dissolva, o que está muito longe de ser uma solução [...]”. Para os autores, a

suspensão apenas fixa o conflito, que vai ser “erodido” pela dinâmica social. Assim, a força

de um Estado Democrático de Direito será medida por meio da análise da quantidade de

conflitos suspensos – e, portanto, não resolvidos – que ele encerra. É o que concluem ao

afirmarem que “o volume de conflitos suspensos por um Estado será o indicador de sua

vocação de provedor de paz social e, por conseguinte, de sua força como Estado de

Direito”.318

Dessa forma, ao estudar as funções do Direito Penal nos termos aqui propostos, serão

encontrados desvios objetivos das missões almejadas. É importante reconhecer esses desvios,

316 BUSATO, Paulo César e HUAPAYA, Sandro Montes, op. cit., p. 35. 317 ZAFFARONI, E. Raul et al., op. cit., pp 98-9.

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a fim de se ter uma correta percepção de sua verdadeira missão dentro do ideal democrático

traçado pela Constituição Federal.

2.1.3 As missões do Direito Penal

Na análise das missões do Direito Penal, a doutrina majoritária aponta que elas se

referem “à proteção de bens jurídicos ante a possíveis lesões ou perigos”.319 Tais bens

jurídicos garantem os aspectos principais e indispensáveis à vida em comunidade, e a sua

proteção visa, em última análise, garantir as condições mínimas de sobrevivência da própria

sociedade.320

Sem embargo da posição majoritária, outras se firmaram no que se refere às missões

do Direito Penal. Paulo Busato e Sandro Montes Huapaya apontam quatro posições

diferentes, as quais abordaremos a seguir.

A primeira delas é a que sustenta a missão de reforço dos valores ético-sociais da

atitude interna. Segundo os autores, Welzel atribui ao Direito Penal uma dupla missão. Além

da proteção de bens jurídicos, o Direito Penal teria ainda a missão de proteger os valores

elementares da consciência de caráter ético-social.321 Os autores apontam para a fragilidade de

tal concepção, uma vez que são tarefas distintas a proteção de bens jurídicos fundamentais,

mediante a punição de lesões ou perigo de lesões, e a intenção de incutir tais convicções nas

pessoas. Concluem afirmando que seria ingenuidade admitir a missão do Direito Penal como

uma tarefa pedagógica, uma vez que tal função compete a outras esferas do controle social

como a família, a escola, a universidade, recorrendo-se a ele apenas como ultima ratio.322

318 Idem, pp. 41-2. 319 Cf. BUSATO, Paulo César e HUAPAYA, Sandro Montes, op. cit., p. 36, nota 59, em que os autores citam vários outros juristas que apontam essa missão para o Direito Penal. 320 Idem, pp. 36-7. 321 WELZEL, Hans. Derecho penal alemán. Parte general. 11 ed. Trad. Juan Bustus Ramírez e Sergio Yánes Pérez. Santiago: Editorial Jurídica de Chile, 1997, p. 2. Apud BUSATO, Paulo Cesar e HUAPAYA, Sandro Montes, op. cit., p. 37. 322 BUSATO, Paulo Cesar e HUAPAYA, Sandro Montes, op. cit., pp. 38-9.

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A segunda posição apontada é a missão de confirmação do reconhecimento

normativo, defendida por Jakobs, para quem a missão do Direito Penal é a busca da

estabilidade normativa, por meio da confirmação de vigência da norma que foi atacada pelo

comportamento delitivo, o que é feito com a aplicação da pena.323 Os autores criticam essa

posição argumentando que, em primeiro lugar, o Direito Penal deve ter como elemento central

o indivíduo, e não a norma. E, em segundo lugar, que admitir a missão do Direito Penal como

confirmação do reconhecimento normativo pode ensejar e justificar a atuação de qualquer tipo

de sistema estatal, inclusive de regimes de Estados de Polícia.324

A terceira posição admite como missão do Direito Penal a defesa de bens jurídicos e,

como assinalado, goza de um certo prestígio entre a doutrina majoritária. Os autores apontam,

contudo, que há grande dificuldade quando se pretende identificar o conteúdo dessa função

protetora. É que a complexidade da sociedade contemporânea e seu desenvolvimento, aliados

à proliferação legislativa de novas tendências do Direito Penal, fizeram com que fossem

tutelados bens jurídicos que antes não eram concebidos como tais, como, por exemplo, o meio

ambiente.325

No entanto, apesar das dificuldades apontadas, pensa-se aqui como os autores, que

optam por considerar tal missão como a mais legítima dentre as que foram examinadas.326 Em

primeiro lugar porque, devido ao caráter fragmentário do Direito Penal, ele só intervém

quando os bens jurídicos essenciais para a sobrevivência ou o desenvolvimento pessoal do

cidadão estão sendo atingidos por alguém. Ressaltam que a intervenção penal na vida social é

323 Cf. JAKOBS, Günter. Derecho penal parte general: fundamentos e teoría de la imputacíon. 2 ed. corrigida. Trad. Joaquin Cuello Contrearas e José Luis Serrano González de Murillo. Madri: Marcial Pons, 1997, p. 14. Apud BUSATO, Paulo Cesar e HUAPAYA, Sandro Montes, op. cit., pp. 39-41. 324 BUSATO, Paulo Cesar e HUAPAYA, Sandro Montes, op. cit., pp. 40-1. 325 Idem, p. 41. 326 Ibidem.

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sempre violenta e produz efeitos não-desejados. Em segundo lugar, porque o Direito Penal

deve ser a última instância de controle social buscada, a ultima ratio.327

Paulo Busato e Sandro Montes Huapaya, no entanto, refutam as duas teorias

anteriores, afirmando que não se deve buscar o que chamam de “um adiantamento preventivo

do controle das convicções internas”, tampouco se deve tentar estabelecer padrões éticos.

Alertam que a evolução jurídica só é possível quando há a possibilidade de as pessoas

pensarem contra o Direito, questionando a vigência e a validez da norma.328

Admitindo que a missão do Direito Penal é a defesa dos bens jurídicos, é importante

estabelecer ao menos a noção que se adota de bem jurídico. Prefere-se, assim como os

autores, a teoria monista personalista, que considera bens jurídicos sob a tutela do Direito

Penal, em regra, aqueles individuais, pertencentes à pessoa, como a vida e a saúde; e, de

forma excepcional, os coletivos, como o meio ambiente, a segurança no tráfego etc., apenas

na medida em que servem ao desenvolvimento pessoal do indivíduo.329 Os bens jurídicos

penalmente tutelados derivam dos direitos e deveres fundamentais constitucionalmente

assegurados, embora com eles não se confundam. É que os direitos e deveres fundamentais

regulam as relações entre a sociedade política e a sociedade civil, ao passo que os bens

jurídicos possuem a função mais ampla de regular as relações sociais concretas entre os

indivíduos sobre todos os possíveis sujeitos e objeto de tais relações, inclusive o Estado.330

Nesse sentido, a identificação dos bens jurídicos penalmente tutelados deverá estar

pautada nos ideais e princípios democráticos, como os de igualdade e liberdade, somente se

admitindo aqueles que representem a manifestação de garantias desses princípios.331

Depreende-se daí a importante função garantidora que exerce o bem jurídico, na medida em

327 Idem, p. 42. 328 Ibidem. 329 Idem, pp. 66-8. 330 Idem, pp. 58-60. 331 Idem, p. 62.

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que serve de critério para se verificarem a validez e a legitimidade de um norma penal: ela só

será válida e legítima se refletir a tutela de um bem jurídico.332

A quarta e última missão apontada pelos autores é a simbólica. Eles mencionam que

a quebra de garantias tem sido a marca do Direito Penal moderno. A evolução do Direito

Penal decorre da necessidade de sua adaptação a mudanças sociais. Fatores como a eleição de

novos bens jurídicos a tutelar e mudanças do discurso jurídico-penal quanto aos fins

declarados da pena têm gerado a ruptura do sistema de garantias construídas dogmaticamente

a partir dos ideais iluministas.333

Assim, registram que a interferência da política-criminal no Direito Penal tem sido

cada vez maior, apontando como exemplos a ampliação de delitos de perigo abstrato e a

aparição de legislação “simbólica”, cujas possibilidades jurídico-penais freqüentemente não

estão aptas a oferecer a solução necessária ao problema real.334 No caso brasileiro, podemos

apontar a Lei n° 8.072/1990 (Lei dos Crimes Hediondos) como um exemplo desse tipo de

legislação.

Além dos casos anteriores, mencionam o aumento de pena por delitos que têm sua

valoração mais atrelada à quantidade de vezes em que é praticado do que em relação à lesão

que efetivamente infringem ao bem jurídico. E advertem que os meios de comunicação

exercem grande influência sobre tais fenômenos.

Com efeito, Vinícius de Toledo Piza Peluso analisou a “sensação social de

insegurança”, característica do modelo de sociedade pós-industrial, que, reforçada pelos

meios de comunicação, converte-se em pretensão social coletiva de que o Direito Penal

deveria dar uma resposta aos anseios por segurança. Os meios de comunicação possuem nos

fatos violentos sua principal mercadoria, o que altera a construção social da realidade da

criminalidade e gera a expectativa de que o Direito Penal é o único apto a solucionar todos os

332 Idem, p. 66. 333 Idem, p. 43.

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problemas sociais relacionados com a segurança coletiva. Isso gera efeitos patológicos no

Direito Penal. O autor destaca, dentre tais efeitos, a funcionalização do sistema penal, o que

provoca a utilização do Direito Penal e de seu instrumental repressor para a consecução de

fins políticos.335

Aponta o autor que essa funcionalização geralmente se dá mediante redução ou

eliminação das tradicionais garantias materiais e processuais do acusado, pois elas podem

constituir empecilhos para a consecução dos fins políticos desejados. Além disso, outros

efeitos da funcionalização podem ser percebidos como um abuso de construção de tipos

penais, como os já mencionados crimes de perigo abstrato, na antecipação de momentos

consumativos clássicos, na penalização de condutas irrelevantes, na utilização de legislação

simbólica, no agravamento de penas, na ampliação dos sistemas de interesses preventivos,

entre outros.336

A funcionalização, para Vinícius de Toledo Piza Peluso, ocorre por meio da

utilização da função simbólica e da função promocional. No que tange à função simbólica,

adverte que o efeito de sua utilização pelo legislador na sociedade é meramente psicológico,

não modificando a realidade exterior, dando uma falsa impressão de que o problema da

criminalidade está sob controle. Desse modo, o Direito Penal passa a ser utilizado para

produzir impacto psicossocial, e não para proteger bens jurídicos fundamentais para a

convivência social. Assim, o sistema penal é pervertido, passando a ter uma missão educativa

ou ético-social, e que, conforme assinalado, cabe a outras esferas de controle social. Tal

recurso é utilizado com mais freqüência em momentos de crise econômica, social e política,

334 Idem, p. 44. 335 PELUSO, Vinícius de Toledo Piza. “Sociedade, mass media e direito penal: uma reflexão”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 10, jul.-set./2002. São Paulo: Revista dos Tribunais, pp. 175-87. Ainda sobre a influência da mídia no sistema penal, cf. BATISTA, Nilo. “Mídia e sistema penal no capitalismo tardio”. Discursos Sediciosos: crime, direito, sociedade, ano 7, n. 12. Rio de Janeiro: Revan, 2004, pp. 271-88. 336 PELUSO, Vinícius de Toledo Piza, op. cit., pp. 175-87.

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quando é ampliado o sentimento de insegurança. Como não resolve as causas das crises,

geram, a médio prazo, o descrédito do próprio sistema penal.337

Embora se reconheça que, de fato, exista a utilização do Direito Penal para atender

ao clamor público, não se entende, compartilhando da opinião de Paulo César Busato e

Sandro Montes Huapaya, que sua missão deva ser simbólica. O escasso âmbito de controle

social que lhe cabe, com intervenção mínima e somente na medida necessária, afasta por

completo sua utilização com caráter simbólico. Fatores como desigualdades socioeconômicas

e ausência de valores ético-sociais devem ser providos por outras agências de controle social,

como o Estado, as escolas, a família etc.338

2.2 Conceito, funções e missões do Processo Penal

Assentadas as premissas apontadas sobre o Direito Penal, cumpre agora investigar o

conceito, as funções e as missões do processo penal, objeto deste estudo. Tratando-se a

suspensão condicional do processo de categoria geral do processo penal, mostra-se

extremamente importante, antes de analisar o instituto, estabelecer o marco teórico que vai

nortear o olhar da pesquisa. Daí a importância de empreender as definições a seguir.

2.2.1 O conceito de Processo Penal

Apontou-se na Seção 2.1.3 que o Direito Penal possui a missão de defesa dos bens

jurídicos que assegurem a sobrevivência da própria sociedade. Desse modo, com a violação a

tais bens jurídicos, surge para o Estado o poder-dever de punir os agentes violadores,

utilizando-se, para tanto, do instrumento de coerção do qual dispõe o Direito Penal: a pena.

Surge, então, o conflito entre o jus puniendi do Estado e o jus libertatis do apontado como

337 Ibidem. 338 BUSATO, Paulo César e HUAPAYA, Sandro Montes, op. cit., pp. 45-6.

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autor de um crime. Entretanto, para aplicar a pena, o Estado precisa fazê-lo processualmente.

Frederico Marques aponta o processo como uma das formas de solução do conflito de

interesses, e o processo penal como um “conjunto de princípios e normas que disciplinam a

atuação da jurisdição penal”.339 Na obra do autor, já é possível perceber a função garantidora

do processo penal, quando afirma que, “para melhor garantir a defesa do acusado e tutelar,

assim, eficazmente, o seu jus libertatis, o Estado tornou obrigatória a aplicação do Direito

Penal pelas vias processuais”.340

Hélio Tornaghi, por sua vez, define o processo penal como “uma seqüência ordenada

de fatos, atos e negócios jurídicos que a lei impõe (normas imperativas) ou dispõe (regras

técnicas e normas puramente ordenatórias) para a averiguação do crime e da autoria e para o

julgamento da ilicitude e da culpabilidade”.341

Afrânio Silva Jardim aponta o conceito de processo penal como o “conjunto orgânico

e teleológico de atos jurídicos necessários ao julgamento ou atendimento prático da pretensão

do autor, ou mesmo de sua admissibilidade pelo juiz”.342

A definição utilizada por Antonio Scarance Fernandes analisa a relação entre o

processo e o Estado Liberal: “O processo penal é uma oposição de interesses (portanto, de

uma lide, disputa ou controvérsia) entre o Estado que quer punir os crimes e o indivíduo que

quer afastar de si quaisquer medidas privativas ou restritivas de sua liberdade”.343

Da definição acima, fica evidente a missão garantidora do processo penal. Como

apontaram Eugênio Raul Zaffaroni e Nilo Batista, e mencionamos na Seção 2.1.2, o Direito

339 FREDERICO MARQUES, José. Elementos de direito processual penal. Rio de Janeiro/São Paulo: Forense, 1961, v. 1, pp. 14-5. 340 Idem, p. 14. 341 TORNAGHI, Hélio. Curso de processo penal. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 1990, v. 1, p. 3. Segundo Antonio Scarance Fernandes, Tornaghi em sua obra A relação processual penal, concebe o processo como relação jurídica adotando a teoria de Bülow, e demonstrando sua aplicabilidade ao processo penal, o que teve grande importância, porque passou a tratar o réu como sujeito de direitos processuais, e não mais como um objeto do processo. Cf. FERNANDES, Antonio Scarance, op. cit., pp. 34-5. 342 JARDIM, Afrânio Silva, op. cit., p. 23. O autor aponta que a lide não é essencial ao processo, seja civil, seja penal, afirmando que há casos em que o conflito de interesses não se faz presente e a existência de processo é indiscutível (cf. p. 22).

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Penal deve conter o poder punitivo das agências estatais, e o processo penal vai ser

exatamente o instrumental para a realização dessa missão.

Assim como ocorre no Direito Penal, a investigação das missões garantistas do

processo penal não deve ser desacompanhada de uma constatação das reais funções que ele,

de fato, desempenha. O processo penal, como instrumental do Direito Penal, também é

afetado pelos desvios objetivos inerentes a todo o sistema penal ao qual pertence. Desse

modo, no tópico seguinte, traçaremos algumas considerações sobre as funções que o processo

penal desempenha.

2.2.2 As funções do processo penal

O processo penal no Estado Democrático de Direito deve perseguir a missão

garantidora. Entretanto, é cediço que o “ser” do processo penal muitas vezes se afasta do

“dever ser”. Assim, longe de desempenhar uma função garantidora, o processo penal se

converte numa espécie de tortura, de “pena antecipada”, sujeitando aquele que deveria ser o

titular de direitos, o acusado, em protagonista de um amargo espetáculo de condenação

pública. A dignidade e a intimidade dos acusados são amplamente exploradas pela mídia,

garantindo-se uma condenação antecipada pelos delitos supostamente praticados: se a justiça

não conseguir provar sua culpa, ele já estará condenado pela sociedade.

Carnelutti já alertava para esse problema da degeneração do processo penal como um

dos sintomas mais graves de nossa civilização. Sobre os graves danos causados ao acusado

pelo interesse da sociedade pela crônica judiciária e pela literatura policial, fomentada pela

mídia, afirmou: “Infelizmente, a justiça humana é feita assim, que nem tanto faz sofrer os

homens porque são culpados quanto para saber se são culpados ou inocentes”. E continuou

constatando que essa “é uma necessidade à qual o processo não se pode furtar, nem mesmo se

343 FERNANDES, Antonio Scarance, op. cit., p. 16.

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seu mecanismo fosse humanamente perfeito”.344 Sobre esses efeitos da invasão da esfera

privada do acusado no processo penal, e fazendo referência ao artigo da Constituição italiana

que resguardava o direito do acusado de não ser considerado culpado até ser condenado por

uma sentença definitiva, Carnelutti, citando Santo Agostinho, escreveu:

[...] a tortura, nas formas mais cruéis, está abolida, ao menos sobre o papel;

mas o processo por si mesmo é uma tortura. Até um certo ponto, dizia, não

se pode fazer por menos; mas a assim chamada civilização moderna tem

exasperado de modo inverossímil e insuportável esta triste conseqüência do

processo. O homem, quando é suspeito de um delito, é jogado às feras,

como se dizia uma vez dos condenados oferecidos como alimento às feras.

A fera, indomável e insaciável fera, é a multidão. O artigo da Constituição

que se ilude de garantir a incolumidade do acusado é praticamente

inconciliável com aquele outro que sanciona a liberdade de imprensa. Logo

que surge o suspeito, o acusado, a sua família, a sua casa, o seu trabalho são

inquiridos, investigados, despidos na presença de todos. O indivíduo, assim,

é feito em pedaços. E o indivíduo, assim, relembremo-nos, é o único valor

da civilização que deveria ser protegido.345

Aproximando-se mais de nossa realidade, Nilo Batista analisa os efeitos da mídia

sobre o sistema penal no capitalismo tardio, afirmando que sua lógica a respeito da equação

penal significa: “Se houve delito, tem que haver pena”, sendo a equação penal “a lente

ideológica que se interpõe entre o olhar da mídia e a vida privada”. Afirma o autor que a

mídia crê que a pena é o rito sagrado para a solução de conflitos, pouco importando seu

fundamento legitimador. E aponta que uma das graves conseqüências para o processo penal

pode ser percebida pela sensação transmitida pela mídia, do “incômodo gerado pelos

procedimentos legais que intervêm para a atestação judicial de que o delito efetivamente

344 CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. Trad. José Antonio Cardinalli. Campinas: Bookseller, 2001, p. 47.

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ocorreu e de que o infrator deve ser responsabilizado penalmente por seu cometimento”.

Observa o autor que o delito-notícia exige uma pena-notícia, fazendo surgir graves tensões

diante do devido processo legal (que é visto como um estorvo), da plenitude de defesa, da

presunção de inocência e outras garantias do Estado Democrático de Direito.346

Não se pode esquecer também das medidas cautelares, inclusive as restritivas de

liberdade, das quais muitas vezes os juízes e promotores lançam mão, não tanto por uma

efetiva necessidade, mas como uma forma “preventiva” de evitar os riscos à instrução

criminal e à aplicação da lei penal, riscos muitas vezes inexistentes. Numa legislação

processual penal marcada por um forte traço inquisitivo, concebida num período de regime

autoritário, como é a nossa,347 mostra-se extremamente importante uma leitura constitucional,

esforço que nem sempre é empreendido, ocasionando inegáveis prejuízos ao acusado.

Por fim, podemos mencionar ainda a demora para o desfecho do processo penal. O

tema é de tal relevância que a recente Emenda Constitucional de n° 45, de 8 de dezembro de

2004, modificou o art. 5º da Constituição Federal de 1988, incluindo-lhe o inciso LXXVIII,

que assegura a razoável duração do processo, no âmbito judicial e administrativo, bem como

os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.348 Também Aury Lopes Júnior já havia

registrado os graves prejuízos que a demora do processo penal traz para o acusado. Nesse

sentido, vejamos as palavras do autor:

O processo penal encerra em si uma pena (la pena de banquillo), ou

conjunto de penas se preferirem, que, mesmo possuindo natureza diversa da

345 Idem, pp. 47-8. 346 BATISTA, Nilo, op. cit., pp. 272-3. 347 Sobre o momento em que foi concebida a nossa legislação processual penal, cf. CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de, op. cit., p. 1. 348 “Art. 5º [...] LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantem a celeridade de sua tramitação”. Cf. BRASIL. “Emenda Constitucional n. 45, de 8 de dezembro de 2004. Altera dispositivos dos arts. 5º, 36, 52, 92, 93, 95, 98, 99, 102, 103, 104, 105, 107, 109, 111, 112, 114, 115, 125, 126, 127, 128, 129, 134 e 168 da Constituição Federal, e acrescenta os arts. 103-A, 103-B, 11-A e 130-A, e dá outras providências”. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília/DF, 08 dez. 2004. Acesso em 17 jan. 2005.

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prisão cautelar, inegavelmente cobra(m) seu preço e sofre(m) um sobrecusto

inflacionário proporcional à duração do processo. Em ambas as situações

(com prisão cautelar ou sem ela), a dilação indevida deve ser reconhecida,

ainda que os critérios utilizados para aferi-la sejam diferentes, na medida em

que, havendo prisão cautelar, a urgência se impõe a partir da noção de

tempo subjetivo.349

O tema voltará a ser abordado mais adiante, quando nos detivermos na análise das

conseqüências que sofre o acusado, decorrentes da demora do processo.

2.2.3 As missões do processo penal

Com a supressão da justiça privada pelo Estado, pelos inegáveis perigos que encerra

a autodefesa para a sobrevivência do corpo social, este assume o monopólio da justiça,

proibindo aos particulares realizarem a justiça por suas próprias mãos. Diante da violação a

um bem juridicamente protegido, deverá o particular invocar a tutela jurisdicional. O processo

judicial surge, assim, como a estrutura preestabelecida pelo Estado, onde, mediante um

terceiro imparcial – cuja designação não cabe à vontade das partes, resultando de uma

estrutura institucional – será solucionado o conflito e punido o autor da conduta delituosa. A

jurisdição penal consiste, como apontou Frederico Marques, numa atividade substitutiva, na

qual “o juiz criminal atua, para fazer justiça, substituindo-se as partes em conflito”.350 Assim,

Aury Lopes Júnior defende que “o processo, como instituição estatal, é a única estrutura que

se reconhece legítima para a imposição da pena”.351

349 LOPES JÚNIOR, Aury, op. cit., p. 95. O autor explica que a expressão “pena de banquillo” é “consagrada no sistema espanhol para designar a pena processual que encerra o ‘sentar no banco dos réus’. É uma pena autônoma, que cobra um alto preço por si mesma, independente de futura pena privativa de liberdade (que não compensa nem justifica, senão que acresce o caráter punitivo de todo o ritual judiciário)” (cf. nota 250). 350 FREDERICO MARQUES, José, op. cit., p. 15. 351 LOPES JÚNIOR, Aury. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. 2 ed. revista, ampliada e atualizada. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 3.

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Nesse sentido, para investigar as missões que se espera do processo penal, deve-se

antes reconhecer a interação entre o processo e o Estado. Os conceitos dos institutos

fundamentais do direito processual serão relativos à predominância que se dê ao indivíduo

frente ao Estado ou, do contrário, ao Estado em face do indivíduo. Assim, Antonio Scarance

Fernandes afirma que “a concepção dominante no Estado condiciona o tratamento dispensado

aos direitos e às garantias do indivíduo”.352

Jorge de Figueiredo Dias353 aponta como as orientações políticas típicas

historicamente afirmadas influenciaram nas características e na estrutura do processo penal,

sendo apontadas três concepções de Estado e as suas relações com o processo penal.

Na concepção autoritária de Estado, Antonio Scarance Fernandes, valendo-se da obra

de Jorge de Figueiredo Dias, afirma que o processo penal é dominado exclusivamente pelo

interesse do Estado, que desconsidera por completo os interesses do indivíduo, com ampla

liberdade discricionária ao julgador (exercida sempre em favor do poder oficial). O argüido é

visto não como sujeito co-atuante no processo, mas como objeto de mera inquisição.354 Trata-

se de forma política na qual predomina o processo inquisitório.

No Estado Liberal, aponta o autor que o centro das considerações é o indivíduo

autônomo, com todos os seus direitos naturais originários e inalienáveis. Nele, o processo

penal é uma oposição de interesses (portanto, de uma lide, disputa ou controvérsia) entre o

Estado, com a pretensão de punir, e o indivíduo, com a pretensão de liberdade. Realça que,

nessa forma de Estado, a lide supõe a paridade de armas das partes e a disponibilidade tanto

quanto possível, sendo o indivíduo um sujeito do processo, armado com seu direito de defesa

e com suas garantias individuais.355

352 FERNANDES, Antonio Scarance, op. cit., p. 15. 353 FIGUEIREDO DIAS, Jorge. Direito processual penal. Coimbra: Coimbra Ed., 1974, v. 1, pp. 58-69. 354 FERNANDES, Antonio Scarance, op. cit., p. 15. 355 Idem, p. 16.

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Aponta o autor ainda uma terceira forma: o Estado de Direito Social, no qual o

processo penal representa uma função comunitária, sendo ele próprio uma parte da ordenação

comunitária. Nessas formas de Estado, afirma que “o processo penal trata primariamente de

um assunto da comunidade jurídica, em nome e no interesse do qual se tem de esclarecer,

perseguir e punir o criminoso”.356

Viu-se que a Constituição Federal de 1988 optou pela forma de Estado Democrático

de Direito, deferindo inegável deferência às garantias do indivíduo em sua relação com o

Estado. Desse modo, diante das formas apontadas, pode-se dizer que o processo penal no

Estado brasileiro deve se aproximar daquele existente no Estado Liberal apontado por

Antonio Scarance Fernandes, no qual predomina o indivíduo como centro das considerações.

Assim, passa-se agora à análise das missões apontadas pela doutrina que devem ser

perseguidas pelo processo penal, como conseqüência da opção constitucional pelo Estado

Democrático de Direito, que tem como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa

humana.

Numa aproximação inicial, pode-se dizer que o processo deve servir de instrumento

de garantia de solução do conflito de interesses. Vimos que o Direito Penal funciona como um

instrumento importante para a manutenção da paz social, ao proteger os valores mais

elementares do grupo social e garantir a paz jurídica. Quando essa função preventiva é afetada

pela prática de um delito, que ofende tais bens jurídicos e atrai para si um desvalor sobre

conduta praticada e seu resultado, o Direito Penal atua em sua função repressiva, mediante a

aplicação de uma pena ou uma medida de segurança. Mas, para exercer essa função

repressiva, é necessário que o faça por meio do processo, pois, como aponta Aury Lopes

Júnior, o Direito Penal não possui coação direta e nem existe fora do processo

correspondente. Assim, continua o autor, “a pena não só é efeito jurídico do delito, senão que

356 Ibidem.

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é um efeito do processo; mas o processo não é efeito do delito, senão da necessidade de impor

a pena ao delito por meio do processo”.357

Desse modo, o autor defende que a pena exige, para a sua imposição, a existência

efetiva e total do processo penal. Se ele terminar antes de se desenvolver completamente (pelo

arquivamento ou pela suspensão condicional do processo), ou se não se desenvolver de forma

válida (pela existência de nulidade), não pode ser imposta uma pena. Com efeito, delito, pena

e processo estão inafastavelmente relacionados, apontando Aury Lopes Júnior que o processo

penal garantista corresponde ao atual modelo de Direito Penal mínimo. O processo penal,

assim, deve minimizar os espaços de discricionariedade judicial, em garantia dos direitos do

acusado, oferecendo um fundamento sólido para a independência da magistratura e controle

da legalidade do poder.358

Frederico Marques já alertava para a necessidade de o processo penal buscar uma

decisão justa. Reconhecendo que jurisdição e processo eram termos correlatos, esclareceu que

“jurisdição e processo se apresentam com funções destinadas, no campo penal, a aplicar, de

maneira justa, as normas penais”.359 Sobre os fins almejados pelo processo, asseverou:

“Donde a conclusão que se procura, no processo penal, a aplicação justa das normas de

Direito Penal a uma pretensão fundada em fato penalmente relevante, que constitua objeto da

função jurisdicional”.360

Afrânio Silva Jardim também aponta como missão361 do processo penal a de

satisfazer pretensões, isto é, “uma construção jurídica destinada a resolver, através do direito,

357 LOPES JÚNIOR, Aury, op. cit., 2003, p. 2. 358 Ibidem. 359 FREDERICO MARQUES, José, op. cit., p. 60. 360 Idem, p. 61. 361 Embora o autor utilize o termo “função”, ao que parece, o faz no significado do termo “missão” na forma como foi empregado no presente trabalho. Cf. op. cit., p. 28.

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reclamação em juízo de uma pessoa frente a outra”, alertando que a satisfação de pretensões é

utilizada em seu sentido jurídico, e não intersociológico.362

No entanto, do ponto de vista sociológico, afirma ser o processo um meio de

composição de conflitos e instrumento hábil de pacificação social. Relata-nos que a evolução

da civilização nas formas primárias de composição do conflito de interesses (a autotutela e a

autocomposição) chegou ao processo judicial, por meio do qual o Estado substitui-se à

atividade das partes, impõe a regra jurídica que deve regular o caso concreto, de forma segura

e imparcial, resolvendo o litígio e restabelecendo a ordem jurídica na vida social.363 O autor

extrai, então, dessa concepção sociológica do processo como forma de absorver o conflito de

interesses existente no plano social, trazido à sua presença pelas partes interessadas, outra

importante missão para o processo penal: a garantia dos cidadãos:

Porém, tem outra finalidade relevante o processo. A sua escolha como meio

para a concretização da atividade jurisdicional, em si mesma, implica juízo

de valor. Ao utilizar-se do processo estruturado tal qual se encontra hoje, o

Estado procura atingir aquele escopo já referido da melhor forma possível,

vale dizer, atuando de forma autoritária sem violentar as garantias

individuais. Sob esse aspecto, o processo é um fator de garantia dos

cidadãos, pois limita e disciplina a forma de intervenção estatal na

composição das lides. Este aspecto é mais saliente no processo penal.364

E, complementando os ensinamentos de Frederico Marques acerca da busca pela

solução justa, acrescenta que o conflito de interesses a que se propõe absorver o processo

penal só será “extirpado das relações da sociedade se o juiz atingir, na medida do possível, a

justa composição da lide”. Realça a necessidade do conhecimento da verdade dos fatos

362 JARDIM, Afrânio Silva, op. cit., p. 28. 363 Idem, pp. 59-61. 364 Idem, p. 63.

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alegados e o importante papel do método dialético adotado na estrutura processual “como

único capaz de permitir o melhor conhecimento da verdade”.365

Aury Lopes Júnior adverte que “o processo penal não pode ser considerado como um

fim em si mesmo, pois sua razão de existir está no caráter de instrumento-meio para a

consecução de um fim”.366 Reconhece que a instrumentalidade do processo penal é o

fundamento de sua existência, e registra aí uma característica principal: consiste num

instrumento de proteção das garantias individuais. O autor denomina esse caráter de

instrumentalidade garantista, apontando que ela só se refere ao processo penal, pois este serve

como instrumento ao Direito Penal, à pena, às garantias constitucionais e aos fins políticos e

sociais do processo.367

O autor aponta uma dupla missão368 para o processo penal como instrumento de

realização do Direito Penal: “de um lado, tornar possível a aplicação da pena e, de outro,

servir como efetivo instrumento de garantia dos direitos e liberdades individuais, assegurando

os indivíduos contra os atos abusivos do Estado”.369

Atualmente, adverte ainda o autor, faz-se necessária uma postura mais liberal, porque

nas relações entre indivíduo e Estado deve preponderar o indivíduo. O Estado já não é um fim

em si mesmo, mas apenas um meio que tem como fim a tutela do homem, de seus direitos

fundamentais de liberdade e de segurança coletiva. Acrescenta ainda um fundamento

histórico-político para sustentar a dupla função apontada para o processo penal: é que a

proteção do indivíduo também resulta de uma imposição do Estado Liberal, pois o liberalismo

impôs que o homem tivesse uma dimensão jurídica que o Estado ou a coletividade não pode

sacrificar ad nutum. Realça que, mesmo em sua origem, o Estado de Direito já representava

365 Idem, p. 64. 366 LOPES JÚNIOR, Aury, op. cit., 2003, p. 9. 367 Idem, p. 10. 368 Como já se disse, utilizou-se o termo “missão” para apontar os fins que deve buscar o processo penal, o seu “dever ser”, tratando como funções aquelas que efetivamente desempenha. Cumpre registrar, contudo, que o

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uma relevante superação das estruturas do Estado de Polícia, que negava ao cidadão toda a

garantia de liberdade, lembrando o que se deu na Europa após um período de arbitrariedades

que antecedeu a Declaração dos Direitos do Homem, de 1789.370

No que tange à democracia, Aury Lopes Júnior também registra que ela consiste num

sistema político-cultural que valoriza o indivíduo perante o Estado, e que se manifesta em

todas as esferas da relação Estado-indivíduo, o que, infastavelmente, se reflete também no

processo penal, com a valorização do sujeito passivo. Assim, registra que o princípio que

primeiro impera no processo penal é o da proteção dos inocentes. Tal princípio está positivado

na Constituição Federal de 1988, e exige a presunção desse estado de inocência até que exista

uma sentença penal condenatória transitada em julgado,371 como se viu na Seção 1.3.5.

Dessa forma, após advertir que o processo penal é uma das expressões mais típicas

do grau de cultura alcançado por um povo no curso de sua história, o autor conclui que os

princípios de política processual de uma nação são, na verdade, segmentos da política estatal

em geral. Afirma, ainda, que um processo penal regido por uma Constituição democrática

deve ter por objeto primordial de tutela não só os interesses da coletividade, mas também a

liberdade processual do imputado e o respeito à sua dignidade como pessoa, como efetiva

parte do processo. Assim, assinala que a “estrutura do processo penal deve ser tal que se

reduza ao mínimo possível o risco de erro e, em segundo lugar, o sofrimento injusto que dele

deriva”.372

Aury Lopes Júnior afirma que a proposta de democratização substancial da justiça

encontra no garantismo penal de Luigi Ferrajoli um importante referencial teórico. Desse

autor na obra parece utilizar o termo funções para significar os fins que devem ser buscados pelo processo penal. Cf. LOPES JÚNIOR, Aury, op. cit., 2003, p. 24. 369 Ibidem. 370 Idem, p. 25. 371 Idem, p. 26. 372 Idem, pp. 26-7.

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modo, mostra-se importante investigar, ainda que em breve e apertada síntese, os principais

fundamentos da teoria do garantismo penal.

Aury Lopes Júnior adverte que o garantismo penal não deve ser confundido com

mero legalismo, procedimentalismo ou processualismo. Comenta que o garantismo visa à

tutela dos direitos fundamentais, como a vida, a liberdade pessoal, as liberdades civis e

políticas, as expectativas sociais de subsistência, os direitos individuais e coletivos, sendo tais

direitos fundamentais os valores, os bens e os interesses que fundam e justificam a existência

do Direito e do Estado, e cujo desfrute por parte de todos constitui a base substancial da

democracia.373 As palavras de Ferrajoli são precisas nesse sentido:

“Garantismo”, com efeito, significa precisamente a tutela daqueles valores

ou direitos fundamentais, cuja satisfação, mesmo contra os interesses da

maioria, constitui o objetivo justificante do Direito Penal, vale dizer, a

imunidade dos cidadãos contra a arbitrariedade das proibições e das

punições, a defesa dos fracos mediante regras do jogo iguais para todos, a

dignidade da pessoa do imputado, e, conseqüentemente, a garantia de sua

liberdade, inclusive por meio do respeito à sua verdade.374

A seguir, Aury Lopes Júnior reconhece que o grande problema enfrentado

atualmente diz respeito à efetividade e à normatividade do Direito, e que a efetividade da

proteção dos direitos fundamentais depende em muito da atividade jurisdicional, principal

responsável por dar-lhes ou negar-lhes a tutela. Assim, aponta que “o fundamento da

legitimidade da jurisdição e da independência do Poder Judiciário está no reconhecimento de

sua função de garantidor dos direitos fundamentais”.375

373 Idem, p. 11. 374 FERRAJOLI, Luigi, op. cit., p. 271. 375 LOPES JÚNIOR, Aury, op. cit., 2003, p. 11.

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Com efeito, Ferrajoli afirma que o juízo penal, como toda atividade judicial, é um

“saber-poder”, uma combinação de conhecimento (veritas) e de decisão (autoritas), e que,

nesse entrelaçamento, quanto maior é o poder, tanto menor será o saber, e vice-versa. Aponta,

ainda, que, no modelo ideal de jurisdição, tal como concebido por Montesquieu, o poder é

nulo e, ao contrário, no modelo autoritarista, há predominância do poder sobre o saber.

Ressalta, ainda, que as garantias legais e processuais, além de garantias de liberdade, são

também garantias de verdade, e que saber e poder concorrem em medida inversa no juízo,

segundo aquelas sejam mais ou menos realizáveis ou satisfeitas.376 Exsurge dessa afirmativa

do autor o importante papel do juiz, que passa a assumir uma função de protetor e garantidor

dos direitos fundamentais de todos e de cada um. Sobre o papel do juiz, e sua sujeição às

normas constitucionais, enquanto garantia dos direitos fundamentais, Luigi Ferrajoli afirma:

Em esta sujeición del juez a la Constitución, y, em consecuencia, em su

papel de garante de los derechos fundamentales constitucionalmente

establecidos, está el principal fundamento actual de la legitimación de la

jurisdicción y la independencia del poder judicial de los demás poderes,

legislativo y ejecutivo, aunque sean – o precisamente porque son – poderes

de mayoría. Precisamente porque los derechos fundamentales sobre los que

se asienta la democracia sustancial están garantizados a todos y a cada uno

de manera incondicionada, incluso contra la mayoría, sirven para fundar,

mejor que el viejo dogma positivista de la sujeición a la ley, la

independencia del poder judicial, que está específicamente concebido para

garantia de los mismos.377

Norberto Bobbio aponta no prefácio da obra de Luigi Ferrajoli as linhas mestras de

um modelo geral do garantismo:

376 FERRAJOLI, Luigi, op. cit., p. 39.

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Antes de tudo, elevando-o a modelo ideal do Estado de Direito, entendido

não apenas como Estado Liberal, protetor dos direitos de liberdade, mas

como Estado Social, chamado a proteger também os direitos sociais; em

segundo lugar, apresentando-o como uma teoria do direito que propõe um

juspositivismo crítico, contraposto ao juspositivismo dogmático; e, por

último, interpretando-o como uma filosofia política, que funda o Estado

sobre os direitos fundamentais dos cidadãos e que, precisamente, do

reconhecimento e da efetiva proteção (não basta o reconhecimento!) destes

direitos se extrai sua legitimidade e capacidade de se renovar, sem recorrer à

violência subversiva.378

Os princípios básicos que sustentam o sistema garantista proposto por Ferrajoli

foram sintetizados por Aury Lopes Júnior.379 O primeiro deles seria o da jurisdicionalidade

(nulla pena, nulla culpa sine iudicio):380 sendo o acesso à jurisdição a premissa material e

lógica para a efetividade dos direitos fundamentais, trata-se da garantia da jurisdicionalidade

do ponto de vista interno, que se refere à garantia da exclusividade dos tribunais para impor a

pena e o processo como caminho necessário, mas não somente disso. Devem-se ter em conta

também as garantias orgânicas da magistratura, “de modo a orientar a inserção do juiz no

marco institucional da independência, pressuposto da imparcialidade, que deverá orientar sua

relação com as partes no processo”.381

O segundo seria o da inderrogabilidade do juízo:382 alerta o autor que a

inderrogabilidade deve ser entendida como infungibilidade e indeclinabilidade da jurisdição.

E critica a justiça negociada e consensuada, por representarem violação a esse princípio.

Afirma que essa violação decorre da circunstância de a violência repressiva da pena não

377 FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantias: la ley del más débil. Madri: Editorial Trotta, 1999, p. 26. 378 FERRAJOLI, Luigi, op. cit., 2002, pp. 9-10. 379 LOPES JÚNIOR, Aury, op. cit., 2003, p. 13. O autor aponta seis princípios, alertando, contudo, que Ferrajoli entende tratar-se apenas de cinco. 380 FERRAJOLI, Luigi, op. cit., 2002, pp. 432-9. 381 LOPES JÚNIOR, Aury, op. cit., 2003, p. 13. 382 FERRAJOLI, Luigi, op. cit., 2002, pp. 450-1.

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passar mais pelo controle jurisdicional, tampouco submeter-se aos limites da legalidade,

estando apenas nas mãos do Ministério Público e submetida à sua discricionariedade.383

O terceiro seria o da separação das atividades de julgar e acusar (Nullum iudicium

sine accusatione):384 tal princípio exige que o Ministério Público atue como agente exclusivo

da acusação, garantindo a imparcialidade do juiz e submetendo sua atividade à invocação

prévia por meio da ação penal. Realça que, na fase processual, o juiz, para ter preservada sua

imparcialidade, não deve ter iniciativa probatória, ficando essa restrita às partes. Afirma que

há quebra de igualdade entre as partes, do contraditório e da própria estrutura dialética do

processo, quando são deferidos ao juiz poderes instrutórios, como o faz o art. 156 do nosso

Código de Processo Penal. Conclui afirmando que “o sistema acusatório exige um juiz

expectador, e não um juiz ator (típico do modelo inquisitório)”.385

O quarto seria o da presunção de inocência:386 Aury Lopes Júnior o aponta como o

princípio reitor do processo penal garantista, e alerta que a garantia de que será mantido o

estado de inocência até o trânsito em julgado da sentença condenatória representa várias

conseqüências no tratamento do sujeito passivo do processo penal, sobretudo no que se refere

ao ônus da prova e à exigência de que a constatação de que houve o delito e a aplicação da

pena se dê por meio de um processo, com todas as garantias, e mediante uma sentença.

Alerta o autor que tal princípio exige do juiz a manutenção de uma postura negativa

(não considerando o réu culpado), e também positiva (tratando-o efetivamente como

inocente). A seguir, aponta algumas conclusões que podem ser extraídas da presunção de

inocência: em primeiro lugar, que ela predetermina a adoção da verdade processual relativa,

mas com um bom nível de certeza prática. Em conseqüência, a obtenção da verdade nesses

383 LOPES JÚNIOR, Aury, op. cit., 2003, pp. 13-4. 384 FERRAJOLI, Luigi, op. cit., 2002, pp. 454-5. 385 LOPES JÚNIOR, Aury, op. cit., 2003, p. 14. O autor cita Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, para quem o princípio unificador que permitirá identificar se o sistema processual é inquisitório ou acusatório é a gestão da prova. Cf. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda, op. cit. Para uma concepção do princípio acusatório como sendo a distinção de funções entre acusar, defender e julgar, cf. PRADO, Geraldo, op. cit., 2005, pp. 126-7.

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termos determina um tipo de processo que é o orientado pelo sistema acusatório, que impõe a

estrutura dialética e o juiz num estado de alheamento. No âmbito do processo, esse princípio

representa regras para o julgamento, que orientam a decisão judicial sobre os fatos (com

ênfase na carga da prova). E, por fim, que ele se traduz em regras para o tratamento do

acusado, tendo em vista que a intervenção do processo penal se dá sobre um inocente.387

O quinto seria o do contraditório, ou contradição (Nulla probatio sine defensione):388

o autor aponta que esse princípio é um método de confrontação da prova e comprovação da

verdade, fundado não apenas sobre um juízo potestativo, mas também sobre o conflito,

disciplinado e ritualizado, entre partes contrapostas. Tais partes são a acusação, a qual

representa o interesse punitivo do Estado, e a defesa, que representa o interesse do acusado

em ficar livre de acusações infundadas e de penas arbitrárias e desproporcionais. E acrescenta

que não se trata apenas de um eficaz instrumento técnico do qual o Direito se utiliza para a

descoberta de fatos relevantes para o processo, mas também de uma verdadeira exigência de

justiça da qual devem estar dotados os sistemas de administração da justiça.389

E o sexto, acrescentado pelo autor, embora não expressamente referido por Luigi

Ferrajoli, seria o da fundamentação das decisões judiciais: Aury Lopes Júnior aponta que esse

princípio exige que as decisões judiciais estejam suficientemente motivadas, para que se possa

realizar o controle da contradição e de que existe prova suficiente para a condenação.

Somente a fundamentação torna possível avaliar se a racionalidade da decisão predomina

sobre o poder.

O autor esclarece que o processo se destina a comprovar se um determinado ato

realmente aconteceu na realidade empírica, sendo o saber sobre o fato o fim a que se destina o

processo, que deverá ser um instrumento eficaz para a sua obtenção. Assim, o juiz detém o

386 FERRAJOLI, Luigi, op. cit., 2002, pp. 441-2. 387 LOPES JÚNIOR, Aury, op. cit., 2003, pp. 15-6. 388 FERRAJOLI, Luigi, op. cit., 2002, p. 490. 389 LOPES JÚNIOR, Aury, op. cit., 2003, p. 17.

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poder de dizer o direito no caso concreto, e exercer o seu papel de pacificador, e, para fazê-lo,

precisa estar calcado no saber, que deve predominar.

Afirma que “o poder somente está legitimado quando calcado no saber judicial, de

modo que não mais se legitima por si mesmo”. E conclui que “a motivação serve para o

controle da racionalidade da decisão judicial”. Alerta, por fim, que a motivação deve consistir

em demonstrar e explicar o porquê da decisão judicial e o que levou o juiz a concluir pela

autoria e pela materialidade. E finaliza registrando que a motivação sobre a matéria de fato

“demonstra o saber que legitima o poder, pois a pena somente pode ser imposta a quem –

racionalmente – pode ser considerado autor do fato criminoso imputado”.390

As palavras de Luigi Ferrajoli concluem como deve ser a imposição da pena no

sistema garantista:

Segundo este modelo, não se admite qualquer imposição de pena sem que se

produza a comissão de um delito, sua previsão legal como delito, a

necessidade de sua proibição e punição, seus efeitos lesivos para terceiros, o

caráter externo ou material da ação criminosa, a imputabilidade e a

culpabilidade de seu autor, e, além disso, sua prova empírica produzida por

uma acusação perante um juiz imparcial, em um processo público e

contraditório em face da defesa e mediante procedimentos legalmente

estabelecidos.391

Aury Lopes Júnior aponta, ainda, uma profunda relação entre o Direito Penal mínimo

e o processo penal garantista. Com efeito, Luigi Ferrajoli afirma que o Direito Penal mínimo

significa limitação e condicionamento ao máximo, e corresponde não só ao grau máximo da

tutela das liberdades dos cidadãos frente ao arbítrio punitivo, mas também a um ideal de

racionalidade e certeza, de modo que seja excluída a responsabilidade penal quando sejam

390 Idem, pp. 18-9. 391 FERRAJOLI, Luigi, op. cit., 2002, p. 83.

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incertos ou indeterminados seus pressupostos.392 Trata-se, como aponta Aury Lopes Junior, de

uma técnica de tutela dos direitos fundamentais e configura a proteção do mais débil contra o

mais forte, e não apenas do débil ofendido ou ameaçado pelo delito, mas também do débil

ofendido ou ameaçado pela vingança, contra o mais forte. No delito, o mais forte é o

delinqüente; na vingança, é a parte ofendida, ou os sujeitos públicos ou privados solidários a

ele.393 E essa proteção adviria do monopólio estatal da pena e da necessidade do prévio

processo judicial para a sua imposição, processo esse que deve ser dotado de instrumentos e

limites que evitem os abusos do Estado na tarefa de perseguir e punir.

Assim, aponta Luigi Ferrajoli que a discricionariedade judicial deve ser dirigida para

restringir, ao invés de estender, a intervenção penal quando esta não estiver motivada por

argumentos cognitivos seguros, dos quais se possa determinar a verdade processual. E aponta

que, em casos de incerteza sobre os pressupostos cognitivos da pena, deve-se optar pela

intervenção do critério do favor rei, ao qual estão associadas instituições como a presunção de

inocência do acusado até a sentença definitiva, o ônus da prova a cargo da acusação, o

princípio do in dubio pro reo, a absolvição em caso de incerteza acerca da verdade fática, a

analogia in bonam partem, a interpretação restritiva dos tipos penais e a extensão das

circunstâncias excludentes ou atenuantes em caso de dúvida acerca da verdade jurídica.394

Conclui o autor que a certeza de que no Direito Penal mínimo nenhum inocente será

punido é garantida com a aplicação do princípio in dubio pro reo, apontado como um critério

pragmático de solução das incertezas jurisdicionais. Afirma que a incerteza é, na realidade,

resolvida por uma presunção legal de inocência em favor do acusado, porque a única certeza

que se pretende no processo penal é afeta dos pressupostos das condenações e das penas, e

não das absolvições e da ausência de penas.395

392 Idem, pp. 83-4. 393 LOPES JÚNIOR, Aury, op. cit., 2003, p. 20. 394 FERRAJOLI, Luigi, op. cit., 2002, p. 84. 395 Idem, pp. 85-7.

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O Direito Penal máximo representa a antítese do Direito Penal mínimo e significa

incondicionado e ilimitado, sendo caracterizado por sua excessiva severidade, pela incerteza e

pela imprevisibilidade das condenações e das penas, e que, por isso, configura-se como um

sistema de poder não-controlável racionalmente em face da ausência de parâmetros certos e

racionais de convalidação e anulação. Tal sistema possui como instrumentos o

substancialismo penal e a inquisição processual. Como já apontado, o modelo de processo

inquisitório é aquele no qual o juiz tem funções acusatórias e a acusação, funções

jurisdicionais, de modo que ficam comprometidas a imparcialidade do juiz e também a

publicidade e a oralidade do processo. Aponta Aury Lopes Júnior que “a carência dessas

garantias debilita todas as demais e, em particular, as garantias processuais do estado de

inocência, do ônus da prova, do contraditório e da defesa”.396

Luigi Ferrajoli destaca que a certeza do Direito Penal máximo de que nenhum

culpado fique imune se baseia no critério subjetivo, oposto ao do Direito Penal mínimo, do in

dubio contra reum, que indica uma aspiração autoritária. Essa aspiração torna necessário que

o juiz seja dotado de um poder arbitrário e imoderado, no qual a presteza da execução exclui

as formalidades e substitui o processo pela vontade absoluta do executor. A investigação do

delito oculto se faz por meio desse poder ilimitado, da violência necessária e dos atentados

sobre a liberdade de um inocente, não se submetendo a um processo regular. Além disso, o

modelo do Direito Penal máximo tem uma estrutura lógica oposta à do Direito Penal mínimo:

ele “se preocupa em estabelecer não as condições necessárias, mas aquelas suficientes para a

condenação, e não as condições suficientes, mas as necessárias à absolvição”.397

A investigação inquisitiva e sua busca pela verdade substancial conduz, assim, ao

predomínio das opiniões subjetivas, dos preconceitos irracionais e incontroláveis dos

396 LOPES JÚNIOR, Aury, op. cit., 2003, p. 21. 397 FERRAJOLI, Luigi, op. cit., 2002, pp. 85-6.

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julgadores, sendo a condenação e a pena incondicionadas, dependendo exclusivamente de

uma suposta sabedoria e eqüidade dos julgadores.398

O sistema garantista propugna ainda pela adoção do critério da verdade processual

como verdade jurídica, em detrimento do critério da verdade substancial. A verdade

substancial ou material significa uma “verdade absoluta e onicompreensiva em relação às

pessoas investigadas, carentes de limites de confins legais, alcançável por qualquer meio para

além das rígidas regras procedimentais”.399 Luigi Ferrajoli aponta que essa verdade

substancial, por ser perseguida fora de regras de controle e, sobretudo, de uma precisa

determinação empírica das hipóteses de indagação, degenera em juízo de valor, amplamente

arbitrário de fato, assim como o cognoscitivismo ético que serve de base ao substancialismo

penal, e resulta inafastavelmente solidário com uma concepção autoritária e irracionalista do

processo penal.400

Já a verdade processual, perseguida pelo modelo formalista como fundamento para a

condenação, é obtida mediante o respeito a regras precisas e referentes somente a fatos e

circunstâncias tidos como penalmente relevantes. Aponta Luigi Ferrajoli que ela não pretende

ser a verdade porque não é obtida por meio de inquisições alheias ao objeto pessoal. Ela está

condicionada em si mesma pelo respeito aos procedimentos e às garantias da defesa.

Por tudo isso, a verdade processual é mais controlada quanto ao método de aquisição,

porém mais reduzida quanto ao conteúdo informativo, do que qualquer hipotética verdade

substancial. Luigi Ferrajoli ressalta que essa limitação de conteúdo informativo pode ser

verificada em quatro sentidos: em primeiro lugar, as teses acusatórias devem estar formuladas

de acordo com as leis. Além disso, ela deve estar corroborada por provas colhidas mediante

técnicas normativamente preestabelecidas. A verdade deve ser, ainda, sempre apenas provável

e opinativa. E, por fim, na dúvida, ou na ausência de acusação ou de provas ritualmente

398 Idem, p. 84. 399 Idem, p. 38.

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formadas, deve prevalecer a presunção de não-culpabilidade, ou seja, da falsidade formal ou

processual das hipóteses acusatórias.401

O mérito do formalismo consiste, assim, em presidir normativamente a indagação

judicial, protegendo, no processo penal, a liberdade dos cidadãos contra a introdução de

verdades substanciais tão arbitrárias quanto intoleráveis.

Conforme já apontado na seção relativa às funções do processo penal, há alguns

problemas que fazem com que ele represente uma pena antecipada para os acusados. Aury

Lopes Júnior, ao tratar desses problemas, indica ainda um novo fator que constitui uma das

antíteses ao garantismo: o utilitarismo processual. Destaca o autor que ele é sinônimo de

exclusão e supressão de direitos fundamentais, com vistas a alcançar a máxima eficiência, e

que “está relacionado à idéia de combate à criminalidade a qualquer custo”, mediante um

processo penal mais célere e eficiente, no qual sejam diminuídas as garantias processuais do

cidadão em nome do interesse estatal de mais rapidamente apurar e apenar as condutas.402

O autor reconhece a violência do processo penal tanto em sua face mais rigorosa, nas

prisões cautelares – cujos efeitos aflitivos em muito se assemelham àqueles da prisão

decorrente de sentença definitiva –, quanto em outros atos igualmente punitivos, que podem

ser comparados a ações delitivas. Aponta como exemplo a busca e apreensão domiciliar em

relação ao crime de invasão de domicílio, se levada em conta apenas a materialidade das

condutas. Afirma que a violência dos atos é igual, e que a legitimidade praticada pelo Estado

reside no profundo respeito às garantias processuais, na necessidade e na proporcionalidade,

na natureza e na importância do bem jurídico tutelado.403 Daí a importante missão do juiz

garantidor da eficácia do sistema de garantias constitucionais e processuais, que deve estar

400 Ibidem. 401 Ibidem. 402 LOPES JÚNIOR, Aury, op. cit., 2003, p. 23. 403 Ibidem.

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atento aos critérios de necessidade e proporcionalidade, buscando sempre o menor sofrimento

possível ao sujeito passivo do processo.

2.3 O poder punitivo na sociedade pós-industrial

Um estudo analítico das funções e missões do processo penal no Estado Democrático

de Direito também exige uma abordagem sócio-histórica do papel do Direito Penal nas

relações de poder que se formaram na sociedade capitalista. Como as práticas sociais

influenciaram a formulação do Direito Penal? Qual foi a utilidade do Direito Penal como

instrumento de controle social? Quais os estigmas dessa relação?

É preciso advertir, contudo, que a abordagem que se fará a seguir da obra de Michel

Foucault não significa adesão irrestrita do presente trabalho às ideologias que defendem o

abolicionismo penal.404 Entretanto, conforme Salo de Carvalho, entende-se que os argumentos

do abolicionismo são úteis na medida em que revelam os desvios funcionais do sistema penal

e fornecem propostas viáveis do ponto de vista político-criminal, especialmente as que dizem

respeito à abolição da pena privativa de liberdade cumprida em regime carcerário fechado,405

aos processos de descriminalização e à negativa da ideologia do tratamento.406

404 Eugenio Raul Zaffaroni aponta que “o abolicionismo nega a legitimidade do sistema penal como atual na realidade social contemporânea e, como princípio geral, nega a legitimação de qualquer outro sistema penal que se possa imaginar no futuro como alternativa a modelos formais e abstratos de solução de conflitos, postulando a abolição radical dos sistemas penais e a solução dos conflitos por instâncias ou mecanismos informais”. Mais adiante, ressalta que, embora as idéias do autor não ofereçam “considerações táticas para avançar rumo ao abolicionismo, permitem entrevê-las quando aconselha a ‘técnica do judoca’, ou seja, quando se refere à debilidade que sofre o poder ao utilizar-se de violências, que o deixa apoiado em um só pé”. Cf. ZAFFARONI, E. Raul, op. cit., pp. 89 e 102. 405 Sobre os problemas que a pena privativa de liberdade cumprida em regime carcerário encerra, cf. BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2004, especialmente pp. 153-232. 406 CARVALHO, Salo de. “Considerações sobre as incongruências da justiça penal consensual: retórica garantista, prática abolicionista”. In: CARVALHO, Salo de e WUNDERLICH, Alexandre (orgs.). Diálogos sobre a justiça dialogal: teses e antíteses sobre os processos de informalização e privatização da justiça penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 144.

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Assim, serão apontados a seguir alguns aspectos funcionais do poder punitivo nas

relações de poder que se firmaram no período de formação da sociedade capitalista analisados

por Michel Foucault.

O autor produziu um estudo bastante apurado a respeito das relações de poder entre

Estado e sociedade. Nos anos 60, Foucault foi fortemente marcado pelo contexto geral das

ciências humanas na França e pelo paradigma estruturalista.407 A capacidade de historicizar os

objetos de análise abre novos caminhos e rompe com o desenvolvimento linear e contínuo da

produção do saber/poder.

Sua abordagem do poder afasta-se da concepção instrumentalista do marxismo-

leninismo e procede à pluralização. Segundo Foucault, o poder não é uma “coisa” que uma

determinada classe detém sobre as demais, mas sim uma relação. Foucault faz o aspecto

político refluir a partir do alargamento da definição do campo do poder e o Estado desaparece

como centro nervoso que irradia o corpo social. Em suas análises, o poder não é considerado

como uma realidade de natureza definida, unívoca, e sim formas díspares, heterogêneas e em

constante transformação. “O poder já não tem centro, ele circula, é o esquema relacional

maior [...]”, adverte.408 Deixando de ser atribuível a uma classe, Foucault dilui o poder

fazendo-o circular entre os indivíduos, funcionar em teias. Não existe mais o lugar do poder e,

por conseguinte, não pode existir o lugar de resistência a ele. Essa análise rompe com a

perspectiva que confundia poder e Estado. O poder, sendo uma relação, ganha positividade,

pois o autor alega que

407 Seu êxito se deu principalmente na França entre os anos 50 e 60. O fenômeno obteve a adesão da maior parte da intellegentsia. As razões desse êxito espetacular dependeram essencialmente do fato de que o estruturalismo apresentou-se como um método rigoroso que podia ocasionar esperanças a respeito de certos progressos decisivos no rumo da ciência; mas também, simultaneamente, do fato de que o estruturalismo constituiu um momento particular da história do pensamento suscetível de ser qualificado como o tempo de forte consciência crítica. Expressão de contestação, o estruturalismo corresponde a um momento da história ocidental enquanto expressão de uma certa dose de auto-aversão, de rejeição da cultura ocidental tradicional, cf. DOSSE, François. História do Estruturalismo: o campo do signo – 1945/1966. vol 1. Tradução: Alvaro Cabral. São Paulo: Ensaio, 1993, p. 13 e ss. 408 DOSSE, François. A história à prova do tempo: da história em migalhas ao resgate do sentido. São Paulo: Editora da UNESP, 2001, p. 233.

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[...] quando se definem os efeitos do poder pela repressão, tem-se uma

concepção puramente jurídica deste mesmo poder; identifica-se o poder a

uma lei que diz não. O fundamental seria a força da proibição. Ora, creio ser

esta uma noção negativa, estreita e esquelética do poder que curiosamente

todo mundo aceitou. Se o poder fosse somente repressivo, se não fizesse

outra coisa a não ser dizer não, você acredita que seria obedecido? O que faz

com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não

pesa como uma força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz

coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso. Deve-se considerá-lo

como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do

que uma instância negativa que tem por função reprimir [...].409

Foucault inverte a linha de análise por não perceber mais o poder como algo

negativo, mas como onipresente em todas as relações sociais. Além disso, desmonta a visão

progressista que vê no Iluminismo um momento maior da libertação e da emancipação

ocorrido na modernidade. Para além dessa emancipação, para além do reino das liberdades,

Foucault aponta a progressão do controle dos corpos, a extensão das práticas disciplinares, o

fortalecimento de uma sociedade repressiva. Ao se referir a esse novo sistema social, Foucault

aponta para o modelo dado por Bentham e seu panóptico, que, nos anos de 1830-1840, se

tornou a base para as construções de prisões. Foucault observa que

[...] cada um, em seu lugar, está bem trancado em sua cela de onde é visto

de frente pelo vigia; mas os muros laterais impedem que entrem em contato

com seus companheiros. É visto, mas não vê; objeto de uma informação,

nunca sujeito numa comunicação. [...] Se os detentos são condenados, não

há perigo de complô, de tentativa de evasão coletiva, projeto de novos

crimes para o futuro, más influências recíprocas; crianças não há “cola”,

409 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Organização e tradução: Roberto Machado. 19 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p. 8.

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nem barulho, nem conversa, nada dessas distrações que atrasam o trabalho,

tornam-no menos perfeito ou provocam acidentes. A multidão, massa

compacta, local das múltiplas trocas, individualidades que se fundem, efeito

coletivo, é abolida em proveito de uma coleção de individualidades que se

fundem separadas [...].410

A partir dessas considerações, urge perguntar: Como o Direito Penal se insere nesse

sistema social apontado por Foucault? Qual seu papel na sociedade? Que relações –

dispositivos – produzem efeitos de sentido na legitimação do Direito Penal? É novamente

Foucault que, examinando as relações entre o poder, o saber e o corpo na sociedade, aponta

uma nova proposta metodológica. Sua análise articula o campo do saber com as práticas

relacionadas a este saber, e estas com instâncias sociais como a política, a família e a Igreja,

generalizando a análise até as causas econômicas e sociais da modificação. A pergunta central

é: Como determinadas práticas sociais podem produzir domínios de saber que propõem novos

objetos, novos conceitos e técnicas que transformam os sujeitos do conhecimento? Foucault

relaciona a produção do saber/poder às práticas sociais. Dessa forma, ao tratar das funções e

missões do processo penal, adota-se aqui esta perspectiva, pensando este instrumento de

efetivação das normas do Direito Penal não como um saber estanque, mas como produto de

práticas sociais que engendraram e produziram sentidos para legitimar esse ramo do saber

jurídico.

Foi a partir do século XIX que um certo saber do homem, de individualidade, de

regra, trabalho e disciplina foi gerado a partir de práticas de controle e de vigilância com a

formação da sociedade capitalista. No entanto, remonta-se aqui ao final do século XVIII, mas

especificamente ao período revolucionário francês, dada a influência ideológica e política que

este exerceu nas formações das instituições modernas. Entendida como a revolução que

410 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. A história da violência nas prisões. Tradução: Lígia M. Pondé Vassallo. 25 ed. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 166.

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engendrou o vocabulário e os temas de política liberal e radical democracia para a maior parte

do mundo, faz-se necessária uma breve análise de suas contribuições. Foi em um ambiente de

crítica e crise de dicotomia entre moral e política e de disputa entre Estado e sociedade que

uma nova forma de ler o mundo se consolidou – particularmente na Europa Ocidental, mas

também com ecos na América –, concretizando, assim, o “grande projeto” dos iluminados.

Emanados pela concepção progressista da história, os iluminados estavam em aliança com o

futuro. Um futuro clarividente. O progresso era apontado como o verdadeiro sentido da

história.

No que tange à atuação penal, é a partir da segunda metade do século XVIII que se

encontra um protesto efetivo contra os suplícios, que passam a ser considerados algo

intolerável. Influenciados pela atmosfera de crítica ao poder soberano do rei, e identificando

os suplícios como expressão da tirania e do prazer de punir, os reformadores anunciavam a

necessidade de um castigo sem suplício, “pois, no pior dos assassinatos, uma coisa pelo

menos deve ser respeitada quando punimos: sua humanidade”.411 A questão seria, a partir

dessa crítica à ação punitiva, como propor um castigo que tivesse a “humanidade como

medida”.

Essa reforma pode ser inserida num processo de duplo movimento, pois as punições

parecem perder a violência, reduzindo parte de sua intensidade, mas à custa de múltiplas

intervenções. Essa reforma também pode ser analisada se retornarmos às alterações no jogo

das pressões econômicas de uma elevação geral do nível de vida, do crescimento

demográfico, da multiplicação das riquezas e das propriedades. São essas demandas por

segurança e direito dos bens que vão fazer deslizar a ilegalidade, criando novos padrões de

crime, tornando-os passíveis de repressão. Foucault aponta que

411 Idem, p. 63.

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a passagem de uma criminalidade de sangue para uma criminalidade de

fraude faz parte de todo um mecanismo complexo, onde figuram o

desenvolvimento da produção, o aumento das riquezas, uma valorização

jurídica e moral maior das relações de propriedade, métodos de vigilância

mais rigorosos, um policiamento mais estreito da população, técnicas mais

bem ajustadas de descoberta, de captura de informação; o deslocamento das

práticas ilegais é correlato de uma extensão e de um afinamento das práticas

punitivas.412

É notável a consonância estratégica dos discursos dos reformadores. Atacam o

excesso de castigo, mas um excesso que está mais ligado a uma irregularidade do que a um

abuso do poder de punir. É a dicotomia entre moral e política que está manifesta. Os

reformadores discriminavam moralmente os déspotas, acusando-os de manter politicamente

um poder usurpado, um poder que se manifestava de forma irregular e corrupta. Para Thouret,

que, em maio de 1790, abre na Constituinte a discussão sobre o aparato judiciário, este poder

pode ser qualificado como “desnaturado” na França. Em primeiro lugar, pela apropriação

privada; pela confusão entre dois tipos de poder: o que presta justiça e o que formula uma

sentença aplicando a lei, e o que faz a própria lei; e, em última instância, pela teia de

privilégios que torna incerto o exercício da justiça. A questão se desloca do excesso de

práticas punitivas para uma crítica à condução do Poder Judiciário. Nesse aspecto, Foucault

mostra que

a má economia do poder e não tanto a fraqueza ou a crueldade é o que

ressalta a crítica dos formuladores. Poder excessivo nas jurisdições

inferiores que podem – ajudadas pela pobreza e pela ignorância dos

condenados – negligenciar as apelações de direito e mandar executar sem

controle sentenças arbitrárias; poder excessivo do lado de uma acusação à

qual são dados quase sem limites meios de prosseguir, enquanto que o

412 Idem, p. 66.

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acusado está desarmado diante dela, o que leva os juízes a ser, às vezes

severos demais, às vezes, por reação, indulgentes demais.413

Dessa forma, os objetivos da reforma estariam pautados não em fundar um novo

direito de punir a partir de princípios mais igualitários, mas de consolidar uma nova

“economia” do poder de castigar, alargando seu campo de ação, de forma que possa ser

exercido em toda parte e de forma contínua por todo o corpo social. Portanto,

a reforma do Direito Criminal deve ser lida como uma estratégia para o

remanejamento do poder de punir, de acordo com as modalidades que o

tornam mais regular, mais eficaz, mais constante e mais bem detalhado em

seus efeitos; enfim, que aumente os efeitos diminuindo o custo econômico

(ou seja, dissociando-o do sistema de propriedade, das compra e vendas, da

venalidade tanto dos ofícios quanto das próprias decisões) e seu custo

político (dissociando-o do arbitrário poder monárquico). A nova teoria

jurídica da penalidade engloba na realidade uma nova “economia política”

de poder de punir. Compreende-se então porque essa “reforma” não teve um

ponto de origem único.414

Portanto, não se pode pensar essa conjuntura como uma nova sensibilidade, mas sim

como outra política em relação às ilegalidades, uma nova estratégia de exercício de poder de

castigar. A proposta não se pautava em punir menos, mas punir melhor, de forma atenuada,

punir com mais universalidade e necessidade; inculcar na sociedade o poder de punir.

Foucault considerava as práticas judiciárias como uma das formas mais importantes

para se localizar a emergência de novas formas de subjetividade. Isto porque o saber jurídico

é apontado como um dos vários lugares de verdade existentes em nossas sociedades, em que

413 Idem, p. 68. 414 Idem, p. 69.

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um certo número de regras do jogo é definido – regras a partir das quais surgem novas formas

de subjetividade, certos tipos de saber/poder. Citando o autor:

As práticas judiciárias – a maneira pela qual entre os homens se arbitram os

danos e as responsabilidades, o modo pelo qual na história do Ocidente se

concebeu e se definiu a maneira como os homens podiam ser julgados em

função dos erros que haviam cometido, a maneira como se impôs a

determinados indivíduos a reparação de algumas ações e a punição de

outras, todas essas regras ou, se quiserem, todas essas práticas regulares, é

claro, mas também modificadas sem cessar através da história – me parecem

uma das formas pelas quais nossa sociedade definiu tipos de subjetividade,

formas de saber e, por conseguinte, relações entre o homem e a verdade que

merecem ser estudadas.415

Foucault procede à historicização do desenvolvimento carcerário, estudando as

condições de aparecimento da prisão. Mas, além desta, ele tem em vista um sistema de

aprisionamento cuja positividade se expressa em todos os níveis da realidade social: na

escola, na fábrica ou na caserna. É o advento da razão punitiva, que disciplina os corpos,

diversificando os dispositivos de poder. Da expiação do crime no tempo do castigo-espetáculo

com suplícios públicos até a correção por meio de pena de prisão do condenado, o processo

continua a circular por meio da extensão dos campos disciplinares. Foucault alega que a

punição, a partir do século XIX – é importante ressaltar que este processo não se deu de forma

homogênea em todos os lugares –, vai-se tornando a parte mais velada do processo penal,

saindo da percepção quase diária com os suplícios e execuções e entrando na consciência

abstrata. Analisando esta mudança aponta que

415 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Tradução: Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Moraes. 3 ed. Rio de Janeiro: NAU, 2003, p. 11.

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a certeza de ser punido é que deve desviar o homem do crime e não mais o

abominável teatro. [...] Por essa razão, a justiça não mais assume

publicamente a parte da violência que está ligada a seu exercício. [...] é a

própria condenação que marcará o delinqüente com o sinal negativo. É

indecoroso ser passível de punição, mas pouco glorioso punir. Daí esse

duplo sistema de proteção da justiça que a justiça estabeleceu entre ela e o

castigo que ela impõe. A execução da pena vai-se tornando um setor

autônomo, em que um mecanismo administrativo desonera a justiça, que se

livra desse secreto mal-estar por um enterramento burocrático da pena

[...].416

Foucault aponta para uma moral nova no ato de punir: não se trata mais de punir,

mas o essencial é procurar corrigir, reeducar, “curar”. As práticas punitivas foram se tornando

cada vez mais pudicas, a punição no corpo é então abandonada, pois

[...] o corpo encontra-se aí em posição de instrumento ou intermediário;

qualquer intervenção sobre ele pelo enclausuramento, pelo trabalho

obrigatório, visa privar o indivíduo de sua liberdade considerada ao mesmo

tempo como um direito e como um bem. Segundo essa penalidade, o corpo

é colocado num sistema de coação e de privação, de obrigações e de

interdições. O sofrimento físico, a dor do corpo não são mais elementos

constitutivos da pena. O castigo passou de uma arte das sensações

insuportáveis a uma economia de direitos suspensos [...].417

Ainda com relação a essa transformação no ato de punir, o autor aponta que o

afrouxamento da severidade penal foi entendido por muitos historiadores do Direito como um

fenômeno quantitativo em prol das garantias alcançadas pelas revoluções francesa e burguesas

de mais dignidade e “humanidade” nas penas. No entanto, para Foucault, esse deslocamento

não se relaciona apenas a uma redução de intensidade da ação punitiva, mas sim a uma

416 Idem, p. 13.

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mudança de objetivo. É a realidade que define a qual aparato punitivo deve ater-se. Seria uma

“substituição de objetos”:

O objeto “crime”, aquilo que se refere à prática penal, foi profundamente

modificado: a qualidade, a natureza, a substância, o modo de que se

constitui o elemento punível, mais do que a própria definição foral. A

relativa estabilidade da lei obrigou a um jogo de substituições sutis e

rápidas. Sob o nome de crimes e delitos, são sempre julgados corretamente

os objetos jurídicos definidos pelo Código. Porém, julgam-se também as

paixões, os instintos, as anomalias, as enfermidades, as inadaptações, os

efeitos de ambiente ou de hereditariedade. Punem-se as agressões, mas

também a agressividade e, ao mesmo tempo, as perversões, os assassinatos

que são, também, impulsos e desejos [...].418

Essas “circunstâncias atenuantes” introduzem no veredicto não apenas elementos

circunstanciais do ato, mais coisa bastante diversa, como a apreciação que se faz do

criminoso, suas relações, seu passado e suas perspectivas futuras, que não passam de formas

de qualificar o indivíduo. A punição é então parte constitutiva de uma consciência abstrata.

Foucault atenta que

a alma do criminoso não é invocada no tribunal somente para explicar o

crime e introduzi-la como um elemento na atribuição jurídica; se ela é

invocada com tanta ênfase, com tanto cuidado de compreensão e tão grande

aplicação “científica”, é para julgá-la, ao mesmo tempo que o crime, e fazê-

la participar da punição. Em todo ritual penal, desde a informação até a

sentença e as últimas conseqüências da pena, se permitiu a penetração de

um campo de objetos que vêm duplicar, mas também dissociar, os objetos

juridicamente definidos e codificados [...].419

417 Idem, p. 14. 418 FOUCAULT, Michel, op. cit., 2002, p. 19. 419 Idem, p. 20.

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A partir desses pressupostos, o autor aponta uma modificação no ato de julgar. Foi

em meados da Idade Média que o inquérito surgiu como forma de pesquisa da verdade no

interior da ordem jurídica. As questões eram conhecer a infração, determinar o autor e

conhecer a lei, três condições constitutivas de uma verdade bem fundada. No século XIX, as

questões centrais foram alteradas, surgindo novas formas de análise. Não se pauta mais em

saber se o fato é delituoso ou não, mas sim: O que é realmente esse fato? O que significa essa

violência ou crime? Quais são suas relações com o próprio autor? Onde estão sua origem,

instinto, inconsciente, meio ou hereditariedade? Como prever a evolução do sujeito? Foucault

verifica que essa nova forma de análise nasce em ligação direta com a formação de um certo

número de controles políticos e sociais no momento da formação da sociedade capitalista, no

final do século XIX. Um conjunto de diagnósticos, prognósticos, pareceres sobre o criminoso

encontrou significação no sistema jurídico penal.

Em Vigiar e punir, Foucault analisa os métodos punitivos não como simples regras

de direito, mas como técnicas que têm sua especificidade no campo mais geral dos outros

processos.

Em primeiro lugar, aponta o fato de o suplício (pena corporal, dolorosa) não poder

ser percebido como um ritual irregular e selvagem. Este método cumpria uma função social.

Além disso, estava baseado em três critérios: produzir uma certa quantidade de sofrimento

que se possa comparar, e hierarquizar; a morte é um suplício, pois não se trata apenas de

privação da vida; e o suplício correlaciona o tipo de sofrimento físico à gravidade do crime.

Desse modo, o suplício não é apenas uma produção diferenciada de sofrimentos, mas,

sobretudo, uma manifestação do poder que pune.

No entanto, tal manifestação do poder punitivo não era realizada sem procedimentos

anteriores à execução da pena. Na França, todo o processo criminal, até que se declarasse a

sentença, permanecia secreto. O processo se desenrolava sem o acusado. Na ordem da justiça

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criminal, o saber era privilégio da acusação. O magistrado construía, sozinho, uma verdade

com a qual investia o acusado. A constituição da verdade era, para os juízes e soberanos, um

direito absoluto e inalienável. Contudo, a construção da verdade não era realizada sem regras.

Citando Foucault:

Ainda no século XVIII encontravam-se regularmente distinções como as

seguintes: as provas verdadeiras, diretas ou legítimas (os testemunhos, por

exemplo) e as provas indiretas, conjeturais, artificiais (por argumento); ou

ainda as provas manifestas, as provas consideráveis, as provas imperfeitas

ou ligeiras; ou ainda: as provas “urgentes e necessárias” que não permitem

duvidar da verdade do fato [...]; os indícios próximos ou provas semiplenas

que se podem considerar verdadeiras enquanto o acusado não as destruir

com uma prova contrária [...]; enfim, indícios longínquos ou “adminículos”

que consistem apenas no parecer dos homens. [...] Ora, essas distinções não

são simplesmente sutilezas teóricas. Elas têm uma função operatória [...].420

Essas regras podem ser consideradas uma verdadeira aritmética penal meticulosa em

muitos pontos, que tinha por função definir como se pode construir uma prova judicial. Esse

sistema complexo de “provas legais” tinha como resultado a construção de verdade penal

mesmo na ausência do acusado. Foucault aponta que tal procedimento vai necessariamente

tender à confissão, embora no estrito Direito isso não fosse necessário. Mas a confissão

funcionava de duas formas: em primeiro lugar, porque constituía uma prova tão forte que

dispensava acrescentar outras; e, por último, porque era esta a forma pela qual o procedimento

perdia a autoridade unívoca e se tornava efetivamente uma vitória sobre o acusado. A

verdade, então, exercia todo o seu poder: “O criminoso que confessa vem desempenhar o

420 Idem, p. 33.

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papel da verdade viva. [...] Pela confissão, o próprio acusado toma lugar no ritual de produção

da verdade penal”.421

O valor da confissão na produção da verdade penal explica os dois grandes meios

que o Direito Criminal clássico utiliza para obtê-lo: de um lado, com o juramento do acusado

antes do interrogatório, e pela tortura. Foucault atenta que este último tem seu lugar estrito

num mecanismo penal complexo em que o processo do tipo inquisitorial tem um lastro de

elemento do sistema acusatório. O interrogatório funcionava como suplício da verdade. Uma

pena que funcionava como meio para a construção da verdade penal, um mecanismo

regulamentado de uma prova. “Sofrimento, confronto e verdade estão ligados uns aos outros

na prática da tortura [...]”, afirma o autor.422 A utilização do castigo como forma de fazer valer

um processo de demonstração é explicado pela forma como, na época clássica, a justiça

criminal fazia funcionar a demonstração da verdade. Segundo Foucault,

as diferentes partes da prova não constituíam outros tantos elementos

neutros; não lhes cabia serem reunidas num feixe único para darem a certeza

final da culpa. Cada indício trazia consigo um grau de abominação. A culpa

não começava uma vez reunidas todas as provas: peça por peça, ela era

constituída por cada um dos elementos que permitiam reconhecer um

culpado. Assim, uma meia-prova não deixava inocente o suspeito enquanto

não fosse completada: fazia dele um meio-culpado; o indício, apenas leve,

de um crime grave, marcava alguém como um “pouco” criminoso. Enfim, a

demonstração em matéria penal não obedecia a um sistema dualista;

verdadeiro ou falso, mas um princípio de gradação contínua: um grau

atingido na demonstração já formava um grau de culpa e implicava

conseqüentemente um grau de punição. O suspeito, enquanto tal, merecia

sempre um certo castigo; não se podia ser inocentemente objeto de suspeita.

A suspeita implicava, ao mesmo tempo, da parte do juiz, um elemento de

demonstração; da parte do acusado, a prova de uma certa culpa e, da parte

421 Idem, p. 34.

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da punição, uma forma limitada de pena. Um suspeito que continuasse

suspeito não estava inocentado por isso, mas era parcialmente punido.

Salo de Carvalho423 aponta que a pesquisa de Michel Foucault sobre a questão

carcerária e sobre os sistemas de construção da verdade no sistema penal revela que todo o

sistema de poder (inclusive o penal) se legitima por meio de um discurso científico. A

criminologia tradicional se prestou, assim, a justificar as práticas punitivas por meio de um

discurso ressocializador.

Outra conclusão que se pode extrair das idéias do autor leva ao rompimento de uma

noção de “sistema” punitivo, na medida em que sustenta que as relações de poder não podem

ser visualizadas sob um ponto de vista macroscópico, uma vez que se exercem de forma

complexa, em instâncias freqüentemente ínfimas de controle, de vigilância, de proibições, de

coerções. Afirma Foucault que “onde há poder, ele se exerce. Ninguém é, propriamente

falando, seu titular; e, no entanto, ele se exerce em determinada direção, com uns de um lado

e outros de outro; não se sabe ao certo quem o detém; mas se sabe quem não o possui”.424

Por fim, outra conseqüência do pensamento de Foucault apontada por Eugênio Raul

Zaffaroni se refere à demonstração que ele realizou da forma como o poder “expropriou os

conflitos no momento da formação dos Estados nacionais e, por outro, nega o modelo de uma

parte sobreposta ao litigante, como instância superior decisória”.425

As reflexões do autor, assim, contribuem para que se apreenda o efetivo

funcionamento do sistema penal, “forma em que o poder como poder se mostra de maneira

mais manifesta”.426

422 Idem, p. 37. 423 CARVALHO, Salo de, op. cit., p. 132. 424 FOUCAULT, Michel, op. cit., 1979, p. 75. 425 ZAFFARONI, E. Raul, op. cit., p. 102. As idéias de Michel Foucault nesse sentido podem ser conferidas em FOUCAULT, Michel, op. cit., 1979, pp. 39-68. 426 FOUCAULT, Michel, op. cit., 1979, p. 72.

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2.4 A atividade probatória e a posição do acusado

A atividade probatória é tema que se reveste de grande importância quando se propõe

uma investigação funcional do processo penal. Isto porque, como se verá a seguir, um dos fins

a que se propõe o processo é a busca da verdade processual, limitada e relativa, como se

afirmou com Luigi Ferrajoli, na Seção 2.2.3, o que se realiza por meio da produção das

provas.

Outro aspecto importante a ressaltar diz respeito à relação entre a garantia da

motivação e a atividade probatória. Viu-se na Seção 1.3.6 que a garantia da motivação das

decisões judiciais representa um importante instrumento de controle das decisões judiciais,

permitindo aferir sua justiça e sua legitimidade. Nesse sentido, a atividade probatória está

intimamente relacionada à garantia da motivação, na medida em que serão justamente os fatos

provados pelas partes que serão considerados pelo órgão julgador e servirão à motivação das

decisões judiciais.

A prova judiciária, objeto de estudo nesta seção, não tem por finalidade estabelecer

uma verdade absoluta, e nem circunscrita ao processo, como adverte Antônio Magalhães

Gomes Filho.427 Ressalta o autor que, não sendo o processo um fim em si mesmo, mas um

instrumento de solução de conflitos sociais,428 para que alcance esta finalidade, “a produção

do convencimento judicial deve obedecer a determinados padrões e rituais através dos quais a

coletividade possa reconhecer-se”.429

O autor destaca, ainda, que a prova se destina à reconstituição dos fatos realizada no

processo, estando impregnada por fatores sociais, políticos, culturais etc., variáveis no tempo

427 GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Direito à prova no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 18. 428 Ver discussão acerca da missão do processo, no sentido de servir como garantia e solução do conflito de interesses. 429 GOMES FILHO, Antônio Magalhães, op. cit., p. 18.

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e no espaço, e que as concepções sobre o papel do processo e da prova estão diretamente

relacionados aos escopos do próprio Estado:

[...] assim, num Estado que pretenda organizar a vida dos indivíduos e

conduzir a sociedade, o procedimento probatório tenderá a exercer uma

função de maior investigação dos fatos; ao contrário, para uma organização

estatal preocupada somente em manter o equilíbrio social, preservando a

autodeterminação dos indivíduos, o modelo certamente se limitará a

disciplinar o encontro entre os interessados e, como conseqüência, a

atividade probatória estará menos afetada pelos interesses do próprio

Estado.430

A análise da relação entre prova e verdade no campo processual exige que se

apontem os limites com os quais se depara o juiz na obtenção da verdade. No âmbito do

processo, pode-se dizer que obter uma reconstituição dos fatos que corresponda exatamente à

realidade parece uma tarefa impossível, por meio dos mecanismos probatórios.431

Uma primeira dificuldade com a qual se depara o juiz na busca dos fatos verdadeiros

é a impossibilidade de observação direta dos mesmos; sua observação se dá por meios

indiretos.432 Outra questão está relacionada à delimitação dos fatos: o juiz busca a

reconstituição de um fragmento de realidade, vinculando-se ao que tiver sido objeto de

postulação das partes no processo, traço que também se encontra no processo penal, apesar de

uma maior liberdade do juiz na atividade probatória.433 Uma terceira dificuldade enfrentada

pelo julgador diz respeito à obrigatoriedade de que ele chegue a uma conclusão, qualquer que

seja o material recolhido no processo, produzindo uma decisão que se tornará imutável com o

430 Idem, p. 19. 431 Nesse sentido, em matéria de prova judiciária, várias teorias não admitem a verdade no processo civil, cf. TARUFFO, Michele. La prueba de los hechos. Trad. Jordi Ferrer Beltrán. Madri: Editorial Trotta, 2002, pp. 27-56. 432 GOMES FILHO, Antônio Magalhães, op. cit., p. 44. 433 DIAS, Jorge de Figueiredo, op. cit., p. 145.

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trânsito em julgado. Um último obstáculo enfrentado pelo juiz na obtenção da verdade está

relacionado aos métodos utilizados na colheita dos elementos probatórios no processo. Sua

atuação está disciplinada por regras legais que determinam o modo de obtenção, produção e

avaliação de tais elementos.434

Sem embargo das dificuldades apontadas, Michele Taruffo aponta que a busca da

verdade processual (ao menos da verdade possível) é viável sob o ponto de vista teórico435 e

prático,436 além de ser ideologicamente oportuna e necessária.437 Assim, “a busca da verdade

processual traduz um valor que legitima a atividade jurisdicional penal”.438 Nesse sentido,

vejam-se as palavras do autor:

Es, pues, evidente que la afirmación del principio de verdad de los hechos

em la decisión judicial es, como se ha dicho anteriormente, el fruto de una

elección ideológica o – si se prefiere – valorativa. Esta elección puede

situarse a niveles distintos (en el plano de las definiciones generales de la

justicia o en el plano más específico de los objetivos o de las garantías del

proceso civil o penal) y, en consecuencia, puede tener distintas

formulaciones. En todo caso, no parece fácil evitarla, al menos si se parte de

ideas conscientes y racionalizadas acerca de las funciones del proceso,

precisamente porque parece muy difícil romper el nexo que vincula la

verdad de los hechos y la justicia de la decisión y hace de la primera una

condición necesaria de la segunda.439

434 GOMES FILHO, Antônio Magalhães, op. cit., p. 45. 435 TARUFFO, Michele, op. cit, pp. 57-62. 436 Idem, pp. 71-80. 437 Idem, p. 62. 438 GOMES FILHO, Antônio Magalhães, op. cit., p. 54. 439 TARUFFO, Michele, op. cit., pp. 69-70.

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Assim, ao se admitir que a busca da verdade relativa no processo é viável e

necessária, pode-se afirmar, em apertada síntese, que a prova seria o instrumento para chegar

até ela.440

No Estado Democrático de Direito, o modelo cognitivo de justiça penal exige que a

acusação seja confirmada por provas, e também e principalmente, que sejam reconhecidos os

poderes à defesa do acusado durante o procedimento probatório, sobretudo o de produzir

provas contrárias às da acusação. Como afirma Antônio Magalhães Gomes Filho, “a verdade

processual, nessa ótica, não é a verdade extorquida inquisitoriamente, mas uma verdade

obtida a partir de provas e desmentidos”.441

Superada a questão da relevância da busca pela verdade (relativa) no processo, e

admitindo-se a prova como instrumento para chegar até ela, produzindo-se, por conseguinte,

decisões justas, cumpre investigar a delimitação normativa do direito à prova.

No sistema anglo-americano, que adotou o sistema adversary, a iniciativa da

atividade probatória é, preponderantemente, dos próprios litigantes, aos quais compete obter,

selecionar e apresentar ao júri, para convencer os jurados da veracidade dos fatos que servem

de fundamento à suas pretensões. Em tais sistemas, o juiz tem um papel moderador, raramente

se valendo de poderes instrutórios. As partes, por sua vez, são dotadas de poderes

relacionados à introdução de material probatório no processo, e o direito fundamental de ser

ouvido em juízo corresponde não apenas ao direito de apresentar provas, mas também ao de

confrontar e reinquirir as testemunhas trazidas pelo adversário.442

Já nos sistemas da Europa continental, Antônio Magalhães Gomes Filho reconhece

que o direito à prova tem sido matéria difícil e tortuosa, reputando tais dificuldades ao peso da

tradição inquisitória, que consagrou a proeminência da figura do juiz e a posição secundária e

440 Idem, p. 87. Embora o autor partilhe, ao que parece, dessa teoria, adverte, contudo, que mesmo essa concepção da atividade probatória não está livre de críticas e problemas dos quais padecem as teorias que a refutam. 441 GOMES FILHO, Antônio Magalhães, op. cit., p. 54.

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subalterna das partes na obtenção do material probatório. Também são apontadas como causas

dessa dificuldade de reconhecimento do direito à prova o dogma da verdade real, a

preocupação com a economia processual e, principalmente, uma concepção peculiar do livre

convencimento, que passou a ser visto como liberdade absoluta na condução do procedimento

probatório, e não como fora originalmente formulado: de valoração desvinculada de regras

legais, mas realizada sobre um material constituído por provas admissíveis e regularmente

incorporadas ao processo. Contudo, ressalta o autor que, após a Segunda Guerra Mundial,

com a constitucionalização das garantias processuais, a legislação e a jurisprudência dos

países têm evoluído para um reconhecimento desse direito.443

Nos documentos internacionais, pode-se apontar o direito à prova no art. 11, n. 1 da

Declaração Universal dos Direitos do Homem, firmada em Paris em 1948: “Toda pessoa

acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se prove sua

culpabilidade, conforme a lei, e em juízo público no qual sejam asseguradas todas as garantias

necessárias à sua defesa”.444

Também está previsto de maneira mais clara no Pacto Internacional sobre Direitos

Civis e Políticos, aprovado pela Assembléia Geral da ONU em 16 de dezembro de 1966, que

inclui, entre os direitos mínimos assegurados às pessoas acusadas de delito, o de “inquirir ou

fazer inquirir as testemunhas de defesa, nas mesmas condições que as de acusação”.445

Por fim, está previsto, de forma expressa, nos documentos sobre direitos humanos

firmados no continente europeu e no continente americano. A Convenção Européia (firmada

em Roma, em 1950) estabelece em seu art. 6º, n° 3, alínea “d”, que todo acusado tem o direito

de “inquirir ou fazer inquirir as testemunhas de acusação, e obter o comparecimento e

442 Idem, pp. 59-60. 443 Idem, p. 63. 444 Idem, p. 73. 445 Ibidem.

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inquirição das testemunhas de defesa nas mesmas condições que as de acusação”.446 A

Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica, de 1969)

também assegura à defesa o direito de “inquirir as testemunhas presentes no tribunal e de

obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar

luz sobre os fatos”.447

Na legislação brasileira, Antônio Magalhães Gomes Filho informa que o direito à

prova já era regulado no Código de Processo Criminal de 1832, nos arts. 84, 262 e 264, que

previam inclusive a inquirição direta das testemunhas pelas partes, o que só é mantido hoje

nos crimes de competência do Júri.448

Em nosso atual Código de Processo Penal (1941), a iniciativa probatória é

reconhecida às partes, em diversas ocasiões, como assinala o autor: é facultado à acusação e à

defesa a indicação de testemunhas, conforme dispõem os arts. 41 e 395; as partes podem

requerer diligências, conforme prevê o art. 399; documentos podem ser oferecidos pelas

partes em qualquer fase do processo, conforme estabelece o art. 400; ao término do

procedimento ordinário, o art. 499 prevê nova oportunidade de requerimento de diligências;

tais faculdades no procedimento do Júri são reguladas no art. 417, § 2º, e no art. 421,

parágrafo único. No que tange às perícias, sua aquisição fica submetida a uma apreciação

judicial, que poderá decidir de forma negativa, conforme admite o art. 184.449

No que se refere à produção da prova, o Código de Processo Penal de 1941 também

garante a participação das partes, mas sob o controle do juiz, como se observa a teor do art.

219, que trata da inquirição das testemunhas, submetendo as perguntas das partes ao juiz, que

446 Ibidem. 447 Ibidem. 448 Idem, pp. 77-8. 449 Idem, pp. 78-9.

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deverá formulá-las às testemunhas, havendo a inquirição direta apenas no procedimento do

Júri, conforme estabelece o art. 467.450

Na Constituição Federal de 1988, Antônio Magalhães Gomes Filho extrai o direito à

prova das garantias do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, inciso LV); do devido processo

legal (art. 5º, inciso LIV); e da presunção de inocência (art. 5º, inciso LVII), afirmando que

deles decorre o direito de “defender-se provando, que não somente é pressuposto de um

processo justo e eqüitativo, mas também condição indispensável para que se possa obter,

validamente, a prova da culpabilidade”.451

E finaliza apontando que a consagração expressa do direito à prova no ordenamento

jurídico brasileiro se deu com a incorporação ao nosso ordenamento jurídico das garantias

contidas no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos de 1966,452 e na Convenção

Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 1969.453

Uma vez assegurado no ordenamento jurídico pátrio o direito à prova, faz-se

importante delimitar, conforme Antônio Magalhães Gomes Filho,454 sua natureza, seus

titulares e seu conteúdo.

O autor aponta que a prova guarda a natureza de “um verdadeiro direito subjetivo à

introdução do material probatório no processo, bem como de participação em todas as fases

do procedimento respectivo”.455 O direito de apresentar ao órgão jurisdicional as suas

pretensões inclui também todas as garantias que permitam influir de modo positivo sobre o

convencimento da autoridade judicial.

450 Idem, p. 79. 451 Idem, p. 80. 452 Cujo cumprimento foi determinado pelo Decreto n° 592, de 6 de julho de 1992, cf. GOMES FILHO, Antônio Magalhães, op. cit., p. 82, nota 62. 453 Cujo cumprimento foi determinado pelo Decreto n° 678, de 6 de novembro de 1992, cf. GOMES FILHO, Antônio Magalhães, op. cit., p. 82, nota 63. 454 GOMES FILHO, Antônio Magalhães, op. cit., p. 83. 455 Idem, p. 84.

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Quanto à titularidade, como é intuitivo, e decorrendo o direito à prova dos próprios

direitos de ação e defesa, seriam suas detentoras as mesmas pessoas às quais o ordenamento

reconhece tais direitos, ou seja, não só o acusado, mas também a acusação.456

No que tange ao conteúdo, o autor realça que o exercício do direito à prova deve

ocorrer em todo fenômeno probatório em sua integralidade, não ficando adstrito aos atos

produzidos no curso do processo. Assim, há de ser “reconhecido antes ou fora do processo,

até como meio de se obterem elementos que autorizem a persecução, ou possam evitá-la”.457

Nesse sentido, identifica como conteúdo do direito à prova: o direito à investigação,

uma vez que a faculdade de procurar e de descobrir provas é condição indispensável para

exercer o direito à prova;458 o direito de proposição (indicação, requerimento) de provas, que

corresponde à iniciativa das partes em relação à introdução do material probatório;459 o direito

à expressa disciplina legal das hipóteses de rejeição das provas, com a exigência de decisões

motivadas, e adotadas após o debate contraditório, questão que está ligada à admissão das

provas no processo;460 o direito sobre o meio de prova, que está relacionado ao procedimento

pelo qual a prova é formada ou introduzida no processo;461 e, por fim, o direito à valoração

das provas existentes no processo, pois, como afirma o autor, “somente a concreta apreciação

da prova, verificável pela motivação da sentença, assegura a efetividade do direito à

prova”.462

As reflexões sobre a atividade probatória, realizadas nesse tópico, não têm a

pretensão de esgotar tema tão vasto e atraente, restringindo-se a apontamentos julgados

importantes para o estudo da suspensão condicional do processo. Por se tratar de instituto que

suprime uma das fases do processo penal (a fase instrutória), julgou-se necessário demonstrar

456 Ibidem. 457 Idem, pp. 85-6. 458 Idem, p. 86. 459 Idem, p. 88. 460 Idem, pp. 88-9. 461 Idem, p. 89.

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como está caracterizado o direito à prova no processo penal do Estado Democrático de

Direito, especialmente em nosso ordenamento jurídico, e destacar os limites e as virtudes que

envolvem a busca pela verdade processual.

2.5 A demora do processo

A análise funcional do processo penal demanda, ainda, a abordagem de um tema que

assume grande importância: a questão do tempo, conforme assinalado no item 2.2.2.

Apontou-se que a recente alteração no art. 5º (acrescentando-se o inciso LXXVIII)463 da

Constituição Federal de 1988 passou a assegurar a todos, no âmbito judicial e administrativo,

a duração razoável do processo, bem como os meios que garantam a celeridade de sua

tramitação. Também foi mencionado, com Aury Lopes Júnior, que o processo penal contém

uma pena em si próprio, independentemente da prisão cautelar, e que a demora ocasiona um

“sobrecusto inflacionário proporcional à duração do processo”.464

Com efeito, o autor ressalta a distinção entre o tempo da sociedade e o tempo do

direito (especialmente o tempo do processo), reconhecendo o grande paradoxo existente entre

a noção do tempo do direito e as expectativas de uma sociedade com uma dinâmica

fortemente acelerada e acostumada com a velocidade da informação virtual, e que, por isso,

não deseja esperar pelo processo.465 Afirma o autor que “o tempo do direito será sempre

462 Ibidem. 463 “Art. 5º [...] LXXVIII – A todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. Cf. BRASIL. “Emenda Constitucional n° 45, de 8 de dezembro de 2004. Altera dispositivos dos arts. 5º, 36, 52, 92, 93, 95, 98, 99, 102, 103, 104, 105, 107, 109, 111, 112, 114, 115, 125, 126, 127, 128, 129, 134 e 168 da Constituição Federal, e acrescenta os arts. 103-A, 103-B, 11-A e 130-A, e dá outras providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília/DF, 08 dez 2004. Disponível em: <http://senado.gov.br>. Acesso em 17 jan. 2005. 464 LOPES JÚNIOR, Aury, op. cit., 2005, p. 95. 465 Idem, p. 27. Leonel Severo Rocha também aponta o paradoxo existente entre a noção de tempo da dogmática jurídica, que possui a idéia de longa duração, e a noção de tempo na pós-modernidade, quando a sociedade passa a ter uma noção de tempo instantânea, rápida, presente nos meios de comunicação, informática, Internet, incompatível com o tempo do Direito. Há uma grande defasagem entre o tempo do Direito e o tempo da sociedade, sendo que o primeiro busca a longa duração das normas, e o segundo, devido a constantes mudanças sociais, faz com que as decisões do Direito, tomadas com ênfase na repetição, não atendam aos anseios sociais,

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outro, por uma questão de garantia”,466 e que não se pode abrir mão da reflexão e da

tranqüilidade que devem nortear o ato de julgar, tão importantes na esfera penal, tampouco

acelerar o processo negligenciando os direitos e garantias do acusado, porque “o processo

nasce para demorar (racionalmente, é claro), como garantia contra julgamentos imediatos,

precipitados e no calor da emoção”.467

A impossibilidade da existência de uma justiça extremamente rápida e, ao mesmo

tempo, segura também é observada por José Rogério Cruz e Tucci, que a reputa ao fato de o

processo judiciário de cognição reclamar, em “homenagem a um elementar postulado de

segurança jurídica, o respeito a uma série de garantias das partes (due process of law em senso

processual), cuja observância se faz incompatível com a precipitação”.468

Ana Messuti ressalta que, no processo, um terceiro (o juiz) se interpõe entre o

passado (ligado ao delito) e o futuro (conseqüência penal), ligando-os no presente (por meio

da solução para o conflito), e que ele proporciona um distanciamento entre as partes em

conflito não apenas sob a dimensão espacial, mas também sob a dimensão temporal,

estabelecendo outro ritmo para o acontecimento dos fatos.469 Ele interrompe o binômio

ação/reação e substitui a reação imediata de uma das partes por sua intervenção, além de

dilatar o tempo da reação.470 O processo, assim, existe para retardar o tempo da reação.

Desse modo, Aury Lopes Júnior defende que, no processo penal, a aceleração com

vistas à duração razoável do processo deve ter como objetivo principal a proteção do acusado,

grande prejudicado pela demora. Vejamos as palavras do autor:

uma vez que frustram a produção de diferenças e, conseqüentemente, a produção de tempo, afastando cada vez mais o tempo do Direito do tempo da sociedade, levando o primeiro a um processo de alienação. Cf. ROCHA, Leonel Severo. “O direito na forma de sociedade globalizada”. In: Epistemologia jurídica e democracia. 2 ed. São Leopoldo: Editora da UNISINOS, 2003, p. 196. 466 LOPES JÚNIOR, Aury, op. cit., 2005, p. 28. 467 Ibidem. 468 CRUZ E TUCCI, José Rogério. Tempo e processo: uma análise empírica das repercussões do tempo na fenomenologia processual (civil e penal). São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, pp. 27-8. 469 Sobre a caracterização do tempo do processo e sua separação do tempo cotidiano, cf. CRUZ E TUCCI, José Rogério, op. cit., pp. 26-7.

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No que tange à duração razoável do processo, entendemos que a aceleração

deve produzir-se não a partir da visão utilitarista, da ilusão de uma justiça

imediata, destinada à imediata satisfação dos desejos de vingança. O

processo deve durar um prazo razoável para a necessária maturação e

cognição, mas sem excessos, pois o grande prejudicado é o réu, aquele

submetido ao ritual degradante e à angústia prolongada da situação de

pendência. O processo deve ser mais célere para evitar o sofrimento

desnecessário de quem a ele está submetido. É uma inversão na ótica da

aceleração: acelerar para abreviar o sofrimento do réu.471

O autor concebe, com base na teoria da relatividade de Einstein, o tempo como “algo

relativo, variável conforme a posição do observador, pois, ao lado do tempo objetivo, está o

tempo subjetivo”.472 Assim, reconhece a existência de um tempo objetivo e de um tempo

subjetivo, ressaltando a percepção do tempo e de sua dinâmica de forma completamente

distinta para cada observador. E chama a atenção, mais uma vez, para o grave paradoxo que

se apresenta quando se observa a concepção jurídica de tempo, uma vez que o direito não

reconhece a relatividade ou mesmo o tempo subjetivo. Afirma que “o Direito só reconhece o

tempo do calendário e do relógio, juridicamente objetivado e definitivo”.473

Essa constatação adquire grande importância quando se fala em Direito Penal,

apontando Ana Messuti que, “assim como há uma ruptura no espaço marcada pelos muros da

prisão, há uma ruptura no tempo”.474 Explica a autora que a pena apresenta uma duração

qualitativamente distinta de tempo e espaço, em comparação com o tempo social, e que a

prisão se destina a imobilizar o tempo da pena, separá-lo do tempo que transcorre no espaço

470 MESSUTI, Ana. O tempo como pena. Trad. Tadeu Antônio Dix Silva e Maria Clara Veronesi de Toledo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 103. 471 LOPES JÚNIOR, Aury, op. cit., 2005, p. 33. 472 Idem, pp. 90-1. 473 Idem, p. 93. 474 MESSUTI, Ana, op. cit., p. 33.

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social. Menciona o tempo no qual transcorre a vida social como um tempo relativo, e o tempo

da pena como possuindo um caráter absoluto.475

Também o processo penal é afetado pelo tempo, fazendo parte de sua “própria

concepção, enquanto concatenação de atos que se desenvolvem, duram e são realizados numa

determinada temporalidade”.476 Desse modo, a duração do processo influenciará diretamente

a maior ou a menor medida das “penas processuais”.477 Concorda-se com Aury Lopes Júnior

quando este autor ressalta que o processo em si mesmo é uma pena. De acordo com ele, isso

se mostra claro especialmente quando se tem a prisão cautelar, mas não somente nessa

hipótese. Mesmo quando está livre do cárcere, o acusado está sujeito à angústia e ao estigma,

pois o fato de estar submetido a um processo penal autoriza a ingerência estatal em uma série

de direitos e garantias fundamentais, além da liberdade de locomoção, sendo exemplos:

restrições à livre disposição dos bens, à privacidade das comunicações, à inviolabilidade do

domicílio e à própria dignidade do acusado.478

Com efeito, a duração do processo além do tempo necessário para que sejam

assegurados os direitos fundamentais do acusado enseja a violação de todas as garantias que

deveriam protegê-lo. Dentre elas, Aury Lopes Júnior destaca algumas. A primeira é a da

jurisdicionalidade, pois o processo acaba se tornando pena que antecede a sentença, por meio

da estigmatização, da angústia prolongada, da restrição de bens e das prisões cautelares,

contrariando a máxima nulla poena, nula culpa sine iudicio.479

A seguir, a presunção de inocência é violada, uma vez que a demora excessiva para o

desfecho do processo acaba fragilizando a versão do acusado, reconhecendo o autor “uma

475 Ibidem. 476 LOPES JÚNIOR, Aury, op. cit., 2005, p. 92. 477 Expressão utilizada por Aury Lopes Júnior. Cf. LOPES JÚNIOR, Aury, op. cit., 2005, p. 93. 478 Idem, p. 95. 479 Idem, pp. 95-6.

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relação inversa e proporcional entre a estigmatização e a presunção de inocência, na medida

em que o tempo implementa aquela e enfraquece esta”.480

Aury Lopes Júnior ressalta, ainda, a violação do direito de defesa e do contraditório,

tendo em vista que a perpetuação indeterminada do processo traz graves dificuldades para o

exercício da resistência processual, “bem como implica um sobrecusto financeiro para o

acusado não apenas com os gastos em honorários advocatícios, mas também pelo

empobrecimento gerado pela estigmatização social”.481

Conclui-se, assim, que, embora o processo penal deva ser concebido, neste trabalho,

como forma de traduzir garantias para o acusado, não se pode negar a existência de uma

“pena processual” mesmo quando não existe prisão cautelar. E, como aponta o autor, ela será

maior quando ocorrer duração excessiva.

Embora se reconheça que o problema da demora do processo não seja recente,482 foi

após a Segunda Guerra Mundial que o direito a ser julgado num prazo razoável passou a ser

tratado com maior preocupação. Aury Lopes Júnior483 aponta que a previsão normativa do

direito coincidiu com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de dezembro de

1948, e cujo art. 10 serviu de fonte direta para o art. 6.1 da Convenção Européia dos Direitos

Humanos e das Liberdades Fundamentais,484 de 4 de novembro de 1950, como também dos

arts. 7.5 e 8.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos, de 22 de novembro de 1969 (à

qual aderiu o Direito brasileiro, por meio do Decreto n° 678, de 6 de novembro de 1992).

480 Idem, p. 97. 481 Ibidem. 482 CRUZ E TUCCI, José Rogério, op. cit., pp. 14-7. 483 LOPES JÚNIOR, Aury, op. cit., 2005, p. 98-9. 484 “Art. 6, n. 1: Qualquer pessoa tem direito a que sua causa seja examinada, eqüitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de caráter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação de matéria penal dirigida contra ela”. Cf. PORFIRIO, Geórgia Bajer Fernandes de Freitas. “Celeridade do processo, indisponibilidade da liberdade no processo penal e prescrição retroativa”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 11, out.-dez./2003. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 116.

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Geórgia Bajer registra que algumas Constituições européias acolhem o direito à celeridade do

processo, destacando as Constituições italiana, espanhola e portuguesa.485

Antes de prosseguir na investigação da regulamentação do direito à celeridade do

processo no Direito brasileiro, é preciso registrar, com Geórgia Bajer,486 que as reflexões

sobre a rapidez do processo não estão adstritas à sua delimitação temporal. Também a busca

pela efetividade está ligada ao fenômeno, o que não passou despercebido por José Rogério

Cruz e Tucci487 e Cândido Rangel Dinamarco.488 A autora aponta como expressão desse

fenômeno a tutela jurisdicional preventiva, por meio de medidas cautelares,489 antecipando-se,

ainda que provisoriamente, a prestação jurisdicional ou a proteção de um direito. E que,

embora no Direito brasileiro este seja um fenômeno do processo civil, o mesmo acaba

ocorrendo também na esfera de jurisdição penal.490

Assim, são pertinentes as observações de Aury Lopes Júnior sobre o equívoco de se

admitir uma teoria geral do processo, pois o processo penal demanda uma concepção

diferente de celeridade:

Processualmente, o direito a um processo sem dilações indevidas insere-se

num princípio mais amplo, o de celeridade processual. Não obstante, uma

vez mais evidencia-se o equívoco de uma “teoria geral do processo”, na

medida em que o dever de observância das categorias jurídicas próprias do

processo penal impõem uma leitura da questão de forma diversa daquela

realizada no Processo Civil. No Processo Penal, o princípio de celeridade

485 PORFIRIO, Geórgia Bajer Fernandes de Freitas, op. cit.. 486 Idem, p. 117. 487 CRUZ E TUCCI, José Rogério, op. cit., pp. 61-2. 488 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 11 ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 330. Sobre a questão da celeridade, a obra de Mauro Cappelletti e Bryant Garth analisa a questão da efetividade do processo como um dos aspectos do acesso à justiça, apontando o tempo como um dos obstáculos a superar. Cf. CAPPELLETTI, Mauro e GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 20. 489 Cândido Rangel Dinamarco aponta as medidas cautelares como um instrumento que deve ser utilizado contra o tempo, quando este puder tornar ineficazes as decisões e os provimentos jurisdicionais. Cf. DINAMARCO, Cândido Rangel, op. cit., pp. 318-9 e 370. 490 PORFIRIO, Geórgia Bajer Fernandes de Freitas, op. cit., pp. 117-8.

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processual deve ser reinterpretado à luz da epistemologia constitucional de

proteção do réu, constituindo, portanto, um direito subjetivo processual do

imputado.491

No Direito brasileiro, a doutrina492 já apontava sua recepção pelo art. 5º, § 2º, da

Constituição Federal de 1988.493 Com efeito, o dispositivo que assegura os direitos e as

garantias previstos na Constituição não exclui outros que sejam decorrentes dos princípios e

do regime por ela adotado, ou dos tratados internacionais dos quais o Brasil faça parte. Assim,

com fundamento nesse dispositivo, Aury Lopes Júnior já afirmava não apenas que os arts. 7.5

e 8.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos haviam sido recepcionados pela

Constituição, mas também que o direito de ser julgado num prazo razoável estaria amparado

na garantia fundamental de respeito à dignidade humana, bem como na expressa vedação à

tortura, ao tratamento desumano e degradante (conforme previsto no art. 5º, inciso III da

Constituição Federal).494

491 LOPES JÚNIOR, Aury, op. cit., 2005, p. 97. Também José Rogério Cruz e Tucci ressalta a distinção de valores e exigências que o processo penal enseja na análise da celeridade (op. cit., p. 65). 492 Nesse sentido, cf. LOPES JÚNIOR, Aury, op. cit., 2005, p. 102; CRUZ E TUCCI, José Rogério, op. cit., p. 86. 493 “Art. 5º [...] § 2º – Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.” 494 LOPES JÚNIOR, Aury, op. cit., 2005, p. 102. Também reconhecia a sua recepção no direito brasileiro o Supremo Tribunal Federal, conforme se verifica no seguinte Acórdão: EMENTA: HABEAS CORPUS – CRIME HEDIONDO – CLAMOR PÚBLICO – DECRETAÇÃO DE PRISÃO CAUTELAR – INADMISSIBILIDADE – PRISÃO CAUTELAR QUE SE PROLONGA DE MODO IRRAZOÁVEL – EXCESSO DE PRAZO IMPUTÁVEL AO PODER PÚBLICO – VIOLAÇÃO À GARANTIA CONSTITUCIONAL DO DUE PROCESS OF LAW – DIREITO QUE ASSISTE AO RÉU DE SER JULGADO DENTRO DE PRAZO ADEQUADO E RAZOÁVEL – PEDIDO DEFERIDO. A ACUSAÇÃO PENAL POR CRIME HEDIONDO NÃO JUSTIFICA A PRIVAÇÃO ARBITRÁRIA DA LIBERDADE DO RÉU. – A prerrogativa jurídica da liberdade – que possui extração constitucional (CF, art. 5º, LXI e LXV) – não pode ser ofendida por atos arbitrários do Poder Público, mesmo que se trate de pessoa acusada da suposta prática de crime hediondo, eis que, até que sobrevenha sentença condenatória irrecorrível (CF, art. 5º, LVII), não se revela possível presumir a culpabilidade do réu, qualquer que seja a natureza da infração penal que lhe tenha sido imputada. O CLAMOR PÚBLICO NÃO CONSTITUI FATOR DE LEGITIMAÇÃO DA PRIVAÇÃO CAUTELAR DA LIBERDADE. – O estado de comoção social e de eventual indignação popular, motivado pela repercussão da prática da infração penal, não pode justificar, só por si, a decretação da prisão cautelar do suposto autor do comportamento delituoso, sob pena de completa e grave aniquilação do postulado fundamental da liberdade. O clamor público – precisamente por não constituir causa legal de justificação da prisão processual (CPP, art. 312) – não se qualifica como fator de legitimação da privação cautelar da liberdade do indiciado ou do réu, não sendo lícito pretender-se, nessa matéria, por incabível, a aplicação analógica do que se contém no art. 323, V, do CPP, que concerne, exclusivamente, ao tema da fiança criminal. Precedentes. EXCEPCIONALIDADE DA PRISÃO CAUTELAR. –

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Afirmava, outrossim, que o direito poderia ser extraído também da conjugação de

tais direitos fundamentais, como o direito à tutela efetiva (art. 5º, inciso XXXV, da

Constituição Federal de 1988); o direito ao devido processo legal (art. 5º, inciso LIV, da

Constituição Federal de 1988); e o direito à ampla defesa e ao contraditório (art. 5º, inciso

LV, da Constituição Federal de 1988).495

Com a inclusão do inciso LXXVIII no art. 5º da Constituição Federal, por meio da

Emenda n° 45, de 8 de dezembro de 2004, o direito à duração razoável do processo foi

previsto expressamente na norma fundamental, consolidando-se entre os direitos

fundamentais. Contudo, faz-se necessário estabelecer critérios para identificar as violações ao

direito constitucionalmente assegurado.

Aury Lopes Júnior registra que as primeiras iniciativas nesse sentido partiram do

Tribunal Europeu de Direitos Humanos, que, no julgamento do caso “Wemhoff” (em 27 de

junho de 1968), estabeleceu sete critérios para valorar a duração do processo como

indevida.496 São eles: a duração da prisão cautelar; a duração da prisão cautelar em relação à

natureza da infração, à pena prevista e à pena que será provavelmente aplicada no caso

A prisão cautelar – que tem função exclusivamente instrumental – não pode converter-se em forma antecipada de punição penal. A privação cautelar da liberdade – que constitui providência qualificada pela nota da excepcionalidade – somente se justifica em hipóteses estritas, não podendo efetivar-se, legitimamente, quando ausente qualquer dos fundamentos legais necessários à sua decretação pelo Poder Judiciário. O JULGAMENTO SEM DILAÇÕES INDEVIDAS CONSTITUI PROJEÇÃO DO PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. – O direito ao julgamento, sem dilações indevidas, qualifica-se como prerrogativa fundamental que decorre da garantia constitucional do ‘due process of law’. O réu – especialmente aquele que se acha sujeito a medidas cautelares de privação da sua liberdade – tem o direito público subjetivo de ser julgado, pelo Poder Público, dentro de prazo razoável, sem demora excessiva e nem dilações indevidas. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 7º, n. 5 e 6). Doutrina. Jurisprudência. – O excesso de prazo, quando exclusivamente imputável ao aparelho judiciário – não derivando, portanto, de qualquer fato procrastinatório causalmente atribuível ao réu –, traduz situação anômala que compromete a efetividade do processo, pois, além de tornar evidente o desprezo estatal pela liberdade do cidadão, frustra um direito básico que assiste a qualquer pessoa: o direito à resolução do litígio, sem dilações indevidas e com todas as garantias reconhecidas pelo ordenamento constitucional. O EXCESSO DE PRAZO, NOS CRIMES HEDIONDOS, IMPÕE O RELAXAMENTO DA PRISÃO CAUTELAR. – Impõe-se o relaxamento da prisão cautelar, mesmo que se trate de procedimento instaurado pela suposta prática de crime hediondo, desde que se registre situação configuradora de excesso de prazo não imputável ao indiciado/acusado. A natureza da infração penal não pode restringir a aplicabilidade e a força normativa da regra inscrita no art. 5º, LXV, da Constituição da República, que dispõe, em caráter imperativo, que a prisão ilegal ‘será imediatamente relaxada’ pela autoridade judiciária. Precedentes” (HC 80.379/SP, 2ª Turma, rel. Min. Celso de Mello, DJ. 25/05/2001). 495 LOPES JÚNIOR, Aury, op. cit., 2005, pp. 102-3. 496 Idem, pp. 104-5.

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concreto; os efeitos pessoais materiais, morais ou de outra natureza que o acusado sofreu; a

conduta do acusado e sua influência sobre a demora do processo; as dificuldades para a

investigação do fato (complexidade dos fatos, quantidade de acusados e testemunhas,

dificuldades); o modo como se realizou a investigação; e, por fim, a conduta das autoridades

judiciais.497

Vale ressaltar que os critérios “deveriam ser apreciados em conjunto, com valor e

importância relativas, admitindo-se, inclusive, que um deles fosse decisivo na aferição do

excesso de prazo”,498 tendo sido reconhecido por um dos juízes que participou do julgamento

que a iniciativa da comissão de estabelecer uma lista de sete critérios era certamente válida e

útil, mas que o Tribunal não poderia recomendar que ela fosse observada sem restrições, uma

vez que ela dificilmente seria atendida em todos os seus itens.499

Assim, aponta Aury Lopes Júnior500 que a “doutrina dos sete critérios” foi utilizada

pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos em diversos casos posteriores, embora não tenha

sido acolhida expressamente como referencial definitivo. E que ela deu origem à teoria dos

três critérios para a valoração da dilação como indevida: a complexidade do caso, o

comportamento da acusação e da defesa e a atuação do órgão jurisdicional.501

Os três critérios assinalados têm sido invocados, como assinala o autor, tanto pelo

Tribunal Europeu de Direitos Humanos quanto pela Corte Americana de Direitos Humanos,

sem, contudo, eliminar a discricionariedade que está atrelada à definição da dilação como

indevida.502 Nesse sentido, José Rogério Cruz e Tucci reconhece a noção de dilação indevida

497 José Rogério Cruz e Tucci também aponta os sete critérios fixados na decisão do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (cf. CRUZ E TUCCI, José Rogério, op. cit., pp. 83-4). 498 LOPES JÚNIOR, Aury, op. cit., 2005, p. 105. 499 Também nesse sentido, cf. CRUZ E TUCCI, José Rogério, op. cit., pp. 84-5. 500 LOPES JÚNIOR, Aury, op. cit., 2005, p. 105. 501 Também apontados por CRUZ E TUCCI, José Rogério, op. cit., pp. 67-8. 502 LOPES JÚNIOR, Aury, op. cit., 2005, p. 105.

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“como um conceito indeterminado e aberto, que impede de considerá-la como a simples

inobservância dos prazos processuais pré-fixados”.503

Com efeito, Aury Lopes Júnior ressalta a dificuldade de estabelecer uma noção de

dilação indevida:

Por dilação entende-se a (de)mora, o adiamento, a postergação em relação

aos prazos e termos (inicial-final) previamente estabelecidos em lei, sempre

recordando o dever de impulso (oficial) atribuído ao órgão jurisdicional (o

que não se confunde com poderes instrutórios-inquisitórios). Incumbe às

partes o interesse de impulsionar o feito (enquanto carga no sentido

empregado por James Goldschimdt), e um dever jurisdicional em relação ao

juiz.

Já o adjetivo “indevida”, que acompanha o substantivo “dilação”, constitui o

ponto nevrálgico da questão, pois a simples dilação não constitui o

problema em si, eis que pode estar legitimada. Para ser “indevida”, deve-se

buscar o referencial “devida”, enquanto marco de legitimação, verdadeiro

divisor de águas (para isso, é imprescindível o limite normativo, conforme

tratado a continuação).504

A jurisprudência recente das Cortes Superiores de nosso país já registra

expressamente o direito ao processo sem dilações indevidas, embora adotando critérios

discricionários, como assinalado, diante da ausência de limites legais predefinidos.505

503 CRUZ E TUCCI, José Rogério, op. cit., p. 68. 504 LOPES JÚNIOR, Aury, op. cit., 2005, p. 107. 505 Nesse sentido, cf. Acórdão de Habeas Corpus do STF: EMENTA: PROCESSO PENAL – PRISÃO CAUTELAR – EXCESSO DE PRAZO – INADMISSIBILIDADE – OFENSA AO POSTULADO CONSTITUCIONAL DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA (CF, ART. 1º, III) – TRANSGRESSÃO À GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL (CF, ART. 5º, LIV) – “HABEAS CORPUS” CONHECIDO EM PARTE E, NESSA PARTE, DEFERIDO. O EXCESSO DE PRAZO, MESMO TRATANDO-SE DE DELITO HEDIONDO (OU A ESTE EQUIPARADO), NÃO PODE SER TOLERADO, IMPONDO-SE, AO PODER JUDICIÁRIO, EM OBSÉQUIO AOS PRINCÍPIOS CONSAGRADOS NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA, O IMEDIATO RELAXAMENTO DA PRISÃO CAUTELAR DO INDICIADO OU DO RÉU. – Nada pode justificar a permanência de uma pessoa na prisão, sem culpa formada, quando configurado excesso irrazoável no tempo de sua segregação cautelar (RTJ 137/287 – RTJ 157/633 – RTJ 180/262-264 – RTJ 187/933-934), considerada a excepcionalidade de que se reveste, em nosso sistema jurídico, a prisão meramente processual do indiciado ou do réu, mesmo que se trate de crime hediondo ou de delito a este equiparado. – O

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José Rogério Cruz e Tucci critica a inexistência de limites temporais normativamente

estabelecidos no Direito brasileiro para o término da investigação criminal e das prisões

cautelares, apontando a necessidade de limites positivos, sobretudo no que tange ao prazo de

duração da prisão cautelar.506 Nesse sentido, também se posiciona Aury Lopes Júnior,507 que

reivindica a fixação, pelo Legislativo, de limites temporais das prisões cautelares, e do

processo penal como um todo, a partir do qual a segregação seria ilegal, além da exigência de

que a medida seja revisada periodicamente.508 Este último autor ressalta que “dar ao réu o

direito de saber previamente o prazo máximo de duração do processo ou de uma prisão

cautelar é uma questão de reconhecimento de uma dimensão democrática da qual não

podemos abrir mão”.509

Assim, apresenta o modelo do Código de Processo Penal do Paraguai (Ley

1286/1980), que oferece instrumentos de controle para evitar a dilação indevida: a) fixa o

prazo máximo do processo penal em três anos, após o que o juiz deve declarar extinto o

excesso de prazo, quando exclusivamente imputável ao aparelho judiciário – não derivando, portanto, de qualquer fato procrastinatório causalmente atribuível ao réu – traduz situação anômala que compromete a efetividade do processo, pois, além de tornar evidente o desprezo estatal pela liberdade do cidadão, frustra um direito básico que assiste a qualquer pessoa: o direito à resolução do litígio, sem dilações indevidas (CF, art. 5º, LXXVIII) e com todas as garantias reconhecidas pelo ordenamento constitucional, inclusive a de não sofrer o arbítrio da coerção estatal representado pela privação cautelar da liberdade por tempo irrazoável ou superior àquele estabelecido em lei. – A duração prolongada, abusiva e irrazoável da prisão cautelar de alguém ofende, de modo frontal, o postulado da dignidade da pessoa humana, que representa – considerada a centralidade desse princípio essencial (CF, art. 1º, III) – significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso País e que traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo. Constituição Federal (art. 5º, incisos LIV e LXXVIII). EC 45/2004. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 7º, n. 5 e 6). Doutrina. Jurisprudência. – O indiciado ou o réu, quando configurado excesso irrazoável na duração de sua prisão cautelar, não pode permanecer exposto a tal situação de evidente abusividade, ainda que se cuide de pessoas acusadas da suposta prática de crime hediondo (Súmula 697/STF), sob pena de o instrumento processual da tutela cautelar penal transmudar-se, mediante subversão dos fins que o legitimam, em inaceitável (e inconstitucional) meio de antecipação executória da própria sanção penal. Precedentes. (HC 85237/DF, Tribunal Pleno, rel. Min. Celso de Mello, DJ 29/04/2005). Cf. ainda, Acórdão de Habeas Corpus do STJ: Instrução criminal. Prazo (excesso). Coação (ilegalidade). 1. Há prazos para a instrução criminal, estando preso o réu, estando solto ou afiançado. 2. Estando preso o réu, impõe-se seja rápido tal procedimento, isto é, que a instrução se encerre dentro de prazo razoável. 3. Quando alguém estiver preso por mais tempo do que determina a lei, o caso é de coação ilegal. 4. Havendo prisão provisória por mais de um ano e tramitado o processo em comarca interiorana, o caso enquadra-se no art. 648, II, do Código de Processo Penal. 5. Habeas corpus deferido. (HC 35910/BA, 6ª Turma, rel. Min. Nilson Naves, DJ 29/08/2005). 506 CRUZ E TUCCI, José Rogério, op. cit., pp. 80-3 e 85. 507 LOPES JÚNIOR, Aury, op. cit., 2005, pp. 107-10. 508 Idem, p. 111. 509 Idem, p. 113.

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processo; b) fixa limite para a fase investigatória (pré-processual), que, se for superada,

implicará a extinção da ação penal; e c) estabelece a resolução ficta (arts. 141 e 142 do

Código de Processo Penal do Paraguai), que, segundo o autor, resume-se em duas situações:

na primeira, se um recurso contra uma prisão cautelar não for julgado no prazo previsto

legalmente, o acusado poderá exigir um despacho em 24 horas, que, se não for proferido,

entender-se-á como lhe tendo sido concedida a liberdade; na segunda situação, se a Corte

Suprema não julgar um recurso no prazo devido, sendo o recorrente o acusado e superado o

prazo previsto, entender-se-á pelo provimento do pedido. Caso o recorrente seja a acusação,

superado o prazo sem julgamento, o recurso será automaticamente considerado improvido.510

Certamente, a legislação paraguaia pode servir de exemplo ao nosso legislador nos

projetos de reforma da norma processual. A fixação de prazos bem definidos, e de efeitos em

caso de descumprimento, permite dar efetividade ao preceito constitucional que assegura o

direito ao processo sem dilações indevidas. No entanto, entende-se que tal medida não deve

vir desacompanhada da previsão de sanções às autoridades judiciais que derem causa à

demora processual injustificada.

510 Idem, pp. 113-5.

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3

DA SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO

3.1 Origem, previsão legal e fundamentos

A promulgação da Constituição Federal de 1988 estabeleceu uma grande ruptura no

sistema do Código de Processo Penal de 1941. É verdade que o sistema do código, instituído

sob a égide do Estado Novo e, portanto, atento aos princípios norteadores da Constituição de

1937, já havia sido bastante recortado por diversas leis que estabeleceram reformas parciais.

Mas a Constituição de 1988 trouxe profunda modificação daquele sistema de 1941,

sobretudo ao instituir o Brasil como Estado Democrático de Direito, e especialmente

estabelecer o princípio da dignidade da pessoa humana como um de seus fundamentos, e o

princípio da presunção de inocência como um de seus dogmas, o que, no campo processual,

como já visto, deve ser entendido como forma de tratamento dispensada ao acusado.511

A década de 1990 foi marcada por um “aumento da criminalidade” e pela sensação

de insegurança, fomentadas por um discurso da mídia que proporciona a funcionalização do

Direito Penal e de seu instrumental, como o processo penal, que passam a ser a solução para

todas as formas de conflitos sociais, quase sempre à custa de uma redução e até eliminação

das tradicionais garantias constitucionais, conforme esclarece Vinicius de Toledo Piza

Peluso.512

Nesse contexto, duas fortes tendências se mostraram presentes nos Direitos Penal e

Processual Penal brasileiros, dispensando tratamento diferenciado às diversas formas de

criminalidade, conforme aponta Luiz Flávio Gomes: de um lado, o espaço de consenso,

511 Cf. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 18 ed. revista e atualizada, principalmente em face da Constituição de 05/10/1988. São Paulo: Saraiva, 1997, v. 1, pp. 63-72.

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destinado à pequena e média criminalidade; e de outro, o espaço de conflito, vinculado à

criminalidade grave.513

Geraldo Prado aponta que a própria Constituição de 1988 esteve atenta a essas duas

tendências quando previu, no art. 98, inciso I, a instituição dos Juizados Especiais Criminais

para o julgamento dos delitos de menor potencial ofensivo, que não exigem a imposição de

graves sanções, ao passo que, em relação às infrações de especial ou maior gravidade, referiu-

se expressamente aos crimes hediondos, à tortura, ao tráfico ilícito de entorpecentes, ao

terrorismo, à prática de racismo e à ação de grupos armados, civis ou militares, contra a

ordem constitucional e o Estado Democrático, em seu art. 5º, XLII.514 A Leis n° 9.099/1995 e

n° 8.072/1990 constituem exemplos da primeira e da segunda tendências anteriormente

apontadas, respectivamente. Em ambos os casos, repise-se, as formas processuais para

solucionar os conflitos desprezam uma série de garantias constitucionais, conquistadas ao

longo da história.

No contexto abordado, de tratamento diferenciado da criminalidade, foi editada a Lei

n° 9.099/1995, que criou os Juizados Especiais Criminais e o instituto da suspensão

condicional do processo, tornando efetivo o comando do art. 98, inciso I, da Constituição

Federal, destinada a regular o espaço de consenso.

Geraldo Prado aponta que ela foi recepcionada pela maior parte “da comunidade

jurídica brasileira como instrumento capaz de revolucionar o sistema de justiça criminal

vigente”, que, até então, se tinha como regido pelas regras do Código de Processo Penal de

1941.515

512 PELUSO, Vinícius de Toledo Piza, op. cit., pp. 175-7; também nesse sentido, BATISTA, Nilo, op. cit., pp. 271-88. 513 GOMES, Luiz Flávio. Suspensão condicional do processo penal: e a representação nas lesões corporais, sob a perspectiva do novo modelo de justiça criminal. 2 ed. revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, pp. 29-30. 514 PRADO, Geraldo, op. cit., p. 221. 515 PRADO, Geraldo. Elementos para uma análise crítica da transação penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, pp. 1-2. O autor aponta vários doutrinadores e os comentários sobre a revolução e os avanços que a Lei n° 9.099/1995 instituiu, ao criar um inovador espaço de consenso para os crimes de pequena e média lesividade,

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A Lei n° 9.099/1995 estabeleceu o critério de definição das infrações de menor

potencial ofensivo e o procedimento a ser aplicado em tais espécies de delitos, além de

instituir outro mecanismo também fundado no consenso: a suspensão condicional do

processo, por meio da qual o acusado da prática de infração de pequeno ou médio potencial

ofensivo poderá aceitar e deverá cumprir determinadas condições, durante um certo prazo,

suspendendo o curso do procedimento condenatório instaurado. Tal “acordo” poderá evitar a

instrução criminal ou a prolação de sentença, evitando-se a condenação e resultando na

extinção da punibilidade, caso ao término de tal período não haja prática de novo crime ou

revogação do benefício.

Ao estabelecer a definição das infrações de menor potencial ofensivo, a Lei n°

9.099/1995 utiliza o critério da quantidade da pena aplicada, combinado com o do

procedimento previsto para o delito, dispondo que serão consideradas infrações de menor

potencial ofensivo os delitos cuja pena máxima seja igual ou inferior a um ano, excluindo de

tal definição aqueles que, mesmo possuindo tais penas previstas, tivessem para si um

procedimento especial regulado por lei. Já no que tange à suspensão condicional do processo,

a lei estabeleceu também o critério da quantidade de pena aplicada, sem excluir de seu âmbito

de admissibilidade os delitos para os quais estivesse previsto procedimento especial,

utilizando, contudo, o limite da pena mínima: serão passíveis de suspensão condicional do

processo os delitos cuja pena mínima cominada seja igual ou inferior a um ano.

Geraldo Prado aponta o desacerto de tal escolha do legislador, que deveria ter

recorrido ao critério do bem jurídico para definir a infração de menor potencial ofensivo.

ressaltando, contudo, que as expressões utilizadas para caracterizar a inovação produzida possuem um viés estratégico, no sentido de dar legitimidade e estimular certas atitudes de interpretação e aplicação das leis (op. cit, pp. 7-9). No sentido de que a Lei dos Juizados Especiais Criminais representou uma “revolução no processo penal brasileiro” ou um significativo “avanço em matéria de procedimentos”, cf. GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Juizados especiais criminais: comentários à Lei n. 9.099, de 26/09/1995. 5 ed. atualizada e ampliada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, pp. 41 e 49-50; GOMES, Luiz Flávio, op. cit., pp. 95-6; FIGUEIRA JUNIOR, Joel Dias e LOPES, Mauricio Antonio Ribeiro. Comentários à lei dos juizados especiais cíveis e criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais: 1995, p. 380; BATISTA, Weber Martins e FUX, Luiz. Juizados

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Afirma que foram “postos de lado o interesse penalmente tutelado, a conduta dirigida a atingi-

lo e o resultado antijurídico, em troca de uma medida única, fundada no tamanho da pena”.516

A suspensão condicional do processo está prevista na Lei n° 9.099/1995, em seu art.

89, por uma questão de política criminal.517 Sem precedentes no Direito brasileiro, trata-se, na

verdade, de categoria geral do processo penal. Ela é uma medida despenalizadora,518 assim

como o é a transação penal. O instituto foi idealizado pelo professor Weber Martins Batista,

inspirado no probation, decorrente da plea bargaining americana, e na condenação por

decreto italiana, e era reivindicado desde 1981.519

Embora esteja previsto na Lei n° 9.099/1995, sua aplicação não está adstrita aos

crimes de competência dos Juizados Especiais Criminais, sendo cabível, como apontado, nos

delitos em que a pena mínima seja igual ou inferior a um ano, ainda que não sejam abrangidos

pela definição de menor potencial ofensivo.

Veja-se o teor do dispositivo que trata do instituto:

Lei n° 9.099/1995

Art. 89. Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a

1 (um) ano, abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao

oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por 2 (dois) a 4

(quatro anos), desde que o acusado não esteja sendo processado ou não

tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que

autorizariam a suspensão condicional da pena (art. 77 do CP).

§1º. Aceita a proposta pelo acusado e seu defensor, na presença do Juiz,

este, recebendo a denúncia, poderá suspender o processo, submetendo o

acusado a período de prova, sob as condições seguintes:

I – reparação do dano, salvo impossibilidade de fazê-lo;

especiais cíveis e criminais e suspensão condicional do processo penal: a Lei n. 9.099/1995 e sua doutrina mais recente. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 287, entre outros. 516 PRADO, Geraldo, op. cit., 2003, p. 126. 517 BATISTA, Weber Martins e FUX, Luiz, op. cit., p. 364. 518 Nesse sentido, cf. GOMES, Luiz Flávio, op. cit., pp. 98-9, 102-3, 113 e 118. 519 BATISTA, Weber Martins e FUX, Luiz, op. cit., pp. 354-61.

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II – proibição de freqüentar determinados lugares;

III – proibição de ausentar-se da comarca onde reside, sem autorização do

Juiz;

IV – comparecimento pessoal e obrigatório a juízo mensalmente, para

informar e justificar suas atividades;

§2º. O Juiz poderá especificar outras condições a que fica subordinada a

suspensão, desde que adequadas ao fato e à situação pessoal do acusado.

§3º. A suspensão será revogada se o beneficiário vier a ser processado por

outro crime ou não efetuar, sem motivo justificado, a reparação do dano.

§4º. A suspensão poderá ser revogada se o acusado vier a ser processado, no

curso do prazo, por contravenção, ou descumprir qualquer outra condição

imposta.

§5º. Expirando o prazo sem revogação, o Juiz declarará extinta a

punibilidade.

§6º. Não correrá a prescrição durante o prazo de suspensão do processo.

§7º. Se o acusado não aceitar a proposta prevista neste artigo, o processo

prosseguirá em seus ulteriores termos.

No que tange ao seu fundamento constitucional, há posições divergentes na doutrina.

Ada Pellegrini Grinover et al.520 sustentam que a suspensão condicional do processo possui

como fundamento o art. 98, inciso I, e o art. 129, inciso I, da Constituição Federal de 1988.

Alegam os autores que a suspensão condicional é também uma forma de transação, e que a

atuação do Ministério Público está regulada pelos limites fixados na lei.

Luiz Flávio Gomes, a seu turno, afirma que o assento constitucional do instituto está

no art. 129, inciso I, da Constituição Federal de 1988, tendo em vista que a suspensão

condicional do processo não é instituto idêntico à transação penal, embora com ela guarde

algumas semelhanças, e que seu objeto é a “criminalidade média”, e não a de menor potencial

ofensivo. Além disso, aponta que ela é uma via alternativa para a propositura da ação penal

pelo Ministério Público, que passa a ter uma certa discricionariedade, regulada pela própria

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lei. Por fim, ressalta que a transação a que se refere o art. 98, inciso I, da Constituição Federal

é a de natureza penal (material), que tem como objeto imediato o ius puniendi estatal, ao

passo que a transação que ocorre na suspensão condicional do processo é de natureza

processual e atinge, portanto, a relação processual.521

Filio-me aqui à segunda corrente, por entender que a suspensão condicional do

processo é, na verdade, uma das formas do exercício do direito da ação penal, nos termos

legais em que foi definida, e, portanto, possui seu fundamento constitucional no art. 129,

inciso I, da Constituição Federal. Ademais, a natureza penal da transação e a expressa

remissão às infrações de menor potencial ofensivo a que se refere o art. 98, inciso I, da

Constituição Federal fazem com que se refutem os argumentos da primeira corrente.

Além dos fundamentos constitucionais, podem ser apontados outros fundamentos

para a suspensão condicional do processo, cuja investigação já antecipa a controvérsia que se

verá na seção seguinte acerca de sua natureza jurídica.

Ada Pellegrini Grinover e al. Apontam, dentre os fundamentos da suspensão

condicional do processo, o princípio da oportunidade ou discricionariedade regulada ou

regrada.522 Pode-se dizer, em breves linhas, que o princípio da obrigatoriedade consiste no

dever legal que possui o Ministério Público de propor a ação penal condenatória.523 Os

autores ressaltam que, embora a regra no ordenamento jurídico brasileiro continue sendo a do

princípio da obrigatoriedade da ação penal, excepcionalmente, em hipóteses taxativamente

reguladas em lei, e sob o controle jurisdicional, o Ministério Público pode dispor da

520 GRINOVER, Ada Pellegrini et al., op. cit., p. 260. 521 GOMES, Luiz Flávio, op. cit., pp.150-2. 522 GRINOVER, Ada Pellegrini et al., op. cit., p. 259. 523 Embora alguns autores se refiram ao princípio da obrigatoriedade como “princípio da legalidade”, preferiu-se aqui, com azo na doutrina de Afrânio Silva Jardim, o termo “obrigatoriedade”, pois, como esclarece o autor, esta última expressão torna mais claro que “o dever legal de o Ministério Público exercitar a ação penal é, na verdade, uma decorrência do próprio princípio da legalidade, que, numa perspectiva mais ampla, informa a atuação dos órgãos públicos no chamado Estado Democrático de Direito” (Cf. JARDIM, Afrânio Silva, op. cit., pp. 50-1).

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persecutio criminis para propor alguma medida alternativa, o que chamam de princípio da

oportunidade regrada ou discricionariedade regulada ou controlada.524

Alertam, ainda, que o princípio da oportunidade regrada, instituído pela Lei n°

9.099/1995, não estaria isento de limites, sendo vedado ao Ministério Público deixar de atuar

pura e simplesmente. Não se permite que ele deixe de atuar por razões de oportunidade;

presentes os requisitos legais, deve atuar em favor da via alternativa oferecida pelo

legislador.525

Afrânio Silva Jardim refuta a tese sustentada acerca da introdução no Direito

brasileiro do princípio da oportunidade. Ao ressaltar a importância do princípio da

obrigatoriedade do exercício da ação penal, e de seu caráter democrático, assim se pronuncia

o autor:

Na verdade, antes mesmo de louvar diretamente este princípio processual,

podemos ressaltar a sua importância, dialeticamente, desmistificando o falso

aspecto liberal do princípio oposto, qual seja, o da oportunidade. Para nós,

não há nada de liberal na autorização do membro do Ministério Público para

decidir, no caso concreto, se invoca ou não a aplicação do Direito Penal: não

faz qualquer sentido, em uma sociedade democrática, outorgar tal poder a

um órgão público. A aplicação inarredável da norma penal cogente,

realizado o seu suporte fático, não pode ser afastada pelo agente público à

luz de critérios pessoais ou políticos.526

524 GRINOVER, Ada Pellegrini et al., op. cit., pp. 259-60. Também nesse sentido, cf. GOMES, Luiz Flávio, op. cit., pp. 64, 69 e 145; LIMA, Flávio Augusto Fontes de. Suspensão condicional do processo penal no direito brasileiro: doutrina, jurisprudência, modelos de formulários, legislação. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 18; FIGUEIRA JUNIOR, Joel Dias e LOPES, Mauricio Antonio Ribeiro, op. cit., pp. 380-1; FOLGADO, Antônio Nobre. Suspensão condicional do processo penal como instrumento de controle social. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002, pp. 87-8; DEMERCIAN, Pedro Henrique e MALULY, Jorge Assaf. Juizados especiais criminais: comentários. Rio de Janeiro: Aide Editora, 1996, p. 101. 525 GRINOVER, Ada Pellegrini et al., op. cit., p. 261. Esse entendimento também é amparado pela jurisprudência do STJ: “A suspensão condicional do processo, como reconheceu o STJ (HC 5.027-RJ, rel. Min. Cid Flaquer Scartezzini, DJU de 28/04/1997, p. 15.881), ‘se circunscreve no princípio da discricionariedade regulada, da vontade consciente do acusado e seu defensor, e da desnecessidade da aplicação da pena privativa de liberdade de curta duração, tendo em vista o menor potencial ofensivo da infração’” (Cf. Idem, p. 260). 526 Cf. JARDIM, Afrânio Silva. Ação penal pública: princípio da obrigatoriedade. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense: 2001, pp. 58-9.

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O autor sustenta que a Lei n° 9.099/1995 não mitigou o princípio da obrigatoriedade

do exercício da ação pública condenatória porque o legislador não deu ao Ministério Público a

possibilidade de requerer o arquivamento do termo circunstanciado e das peças de informação

que o instruírem, quando estiverem presentes todas as condições da ação penal. Nesse caso,

não lhe é lícito postular o arquivamento por motivos de política criminal.527

Acrescenta que, ao apresentar em juízo a proposta de aplicação de pena não-privativa

de liberdade prevista no art. 76 da Lei n° 9.099/1995 (na transação penal), o Ministério

Público está, na verdade, exercendo a ação penal, “pois deverá, ainda que de maneira informal

e oral – como a denúncia –, fazer uma imputação ao autor do fato e pedir a aplicação de uma

pena, embora esta aplicação imediata fique na dependência do assentimento do réu”.528

No que tange à suspensão condicional do processo, o autor reconhece que houve uma

mitigação ao princípio da indisponibilidade (e não da obrigatoriedade) da ação penal pública

condenatória, na qual o Ministério Público possui a faculdade jurídica “de sugerir ao réu a

suspensão da relação processual mediante determinadas condições”.529 Realça que, se

estiverem presentes os requisitos legais, o Ministério Público passa a ter a discricionariedade

para aceitar que sua pretensão condenatória deixe de ser julgada pelo juiz, pretensão essa que

já terá sido deduzida. Esclarece, ainda, que “a indisponibilidade da ação penal é uma

conseqüência lógica, embora não absolutamente necessária, do princípio da

obrigatoriedade”.530

Também Geraldo Prado ressalta que a Lei dos Juizados Especiais Criminais não teve

o condão de instituir o princípio da oportunidade no exercício da ação penal pública. O autor

alerta que a pretensão acusatória pode ser deduzida de várias maneiras e que, sendo deduzida,

não impõe ao Ministério Público o dever de perseguir incessantamente a condenação do

527 JARDIM, Afrânio Silva, op. cit, 2003, p. 127. 528 Idem, p. 128. 529 Idem, p. 129. 530 Idem, p. 134.

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acusado, havendo, inclusive, a previsão legal em nosso Código de Processo Penal, no art. 385,

de que possa se descomprometer com a condenação.531

Assim, sustenta que persiste, em relação às infrações de menor potencial ofensivo, o

princípio da obrigatoriedade, cuja articulação ocorre de maneira distinta da tradicional, e que

não há incompatibilidade absoluta entre a decisão de não oferecer a proposta de transação e o

tal princípio, uma vez que ele servirá de fundamento tanto à decisão de transacionar quanto à

de denunciar.532

O argumento do autor, dirigido à transação penal prevista no art. 76 da Lei n°

9.099/1995, é perfeitamente aplicável ao instituto da suspensão condicional do processo, pois,

como afirma, “a proposta de suspensão condicional do processo constitui uma modalidade

alternativa do exercício da ação penal pública. Assim, estará o Ministério Público obrigado a

exercitá-la, sempre que presentes os requisitos legais”.533 Opta-se, dessa forma, pelo

entendimento no sentido de que a suspensão condicional do processo não se fundamenta no

princípio da oportunidade, na medida em que subsiste a obrigatoriedade de que o Ministério

Público deduza a pretensão punitiva em juízo, admitindo-se apenas que ela ocorra de modo

distinto da tradicional.534

Outro fundamentado apontado pela doutrina consagrada é o princípio da autonomia

da vontade do acusado, pelo qual não há possibilidade de suspensão condicional do processo

sem a aceitação do acusado.535 Os defensores desse princípio como fundamento da suspensão

531 PRADO, Geraldo, op. cit., 2003, p. 154. 532 Idem, pp. 155-6. 533 PRADO, Geraldo, op. cit., 2005, p. 228. 534 Também se posicionam no sentido de não haver possibilidade de disposição da ação penal por parte do Ministério Público, muito embora sob argumentos até certo ponto distintos dos apresentados, que os levam a concluir que a suspensão condicional do processo tem natureza jurídica de direito subjetivo do acusado, como se verá mais adiante: cf. NICOLITT, André Luiz. Juizados especiais criminais: temas controvertidos. 2 ed. revista, ampliada e atualizada. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, pp. 32-3; e KARAM, Maria Lucia. Juizados especiais criminais: antecipação do poder de punir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, pp. 92 e 174. 535 GRINOVER, Ada Pellegrini et al., op. cit., pp. 261-2; BATISTA, Weber Martins e FUX, Luiz, op. cit., p. 360; DEMERCIAN, Pedro Henrique e MALULY, Jorge Assaf, op. cit., p. 102; GOMES, Luiz Flávio, op. cit., p. 128; TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Comentários à Lei dos Juizados Especiais Criminais. 3 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2003, pp. 169-70; FOLGADO, Antônio Nobre, op. cit., pp. 88-9; JESUS, Damásio E. de. Lei dos juizados especiais criminais anotada. 9 ed. revista e atualizada. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 116,

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condicional do processo alegam que, embora o acusado efetivamente renuncie a direitos e

garantias fundamentais, a exigência de defesa técnica no ato de consentimento expressaria “a

preocupação da comunidade” com seus direitos e garantias fundamentais. Desse modo,

entendem que a aceitação da suspensão seria nada mais do que expressão da ampla defesa

assegurada pela Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, inciso LV.536

É verdade que a necessária aceitação do acusado é exigência expressa que consta do

art. 89, § 1º, da Lei n° 9.099/1995. E, como se viu no Capítulo 1, trata-se de um dos

componentes da ampla defesa: a autodefesa. Contudo, não se pode admitir sem ressalvas que,

na suspensão condicional do processo, assim como na transação penal prevista no art. 76 da

Lei n° 9.099/1995, vigore, de forma absoluta, o princípio da autonomia da vontade. Nesse

sentido, Maria Lúcia Karam observa que a suposta autonomia e a considerada igualdade das

partes estão longe de ser os elementos inspiradores da negociação introduzida pela Lei n°

9.099/1995.537

A autora destaca a posição de proeminência da acusação e de inferioridade do réu, o

que demonstra uma desigualdade entre as partes que se revela, afinal, numa tentativa de

persuasão do réu a renunciar ao exercício de forma ampla, das garantias do devido processo

legal, “para, desde logo, receber uma pena que, ‘vendida’ como mais vantajosa ou mais

indulgente, sempre estará satisfazendo à pretensão do Estado de fazer valer seu poder de

punir”.538 Apesar das observações, a autora reconhece a possibilidade de renúncia a direitos

fundamentais539 e, em especial, às garantias próprias do devido processo legal. Nesse sentido,

sendo que este último autor aponta a jurisprudência do STJ também nesse sentido: “‘Com a supressão do processo’, o autor do fato ‘renuncia a algumas garantias e a alguns direitos para usufruir inúmeras vantagens do instituto” (STJ, HC 6.618, 5ª Turma, rel. Min. José Arnaldo, j. 27/10/1997, DJU 4 mai. 1995, p. 192). 536 GRINOVER, Ada Pellegrini et al., op. cit., p. 262. 537 KARAM, Maria Lucia, op. cit, p. 39. 538 Idem, p. 40. 539 Concorda-se com Geraldo Prado, que refuta a tese da autora sobre a possibilidade de renúncia aos direitos fundamentais sem ressalvas. Explica o autor que a autonomia não autoriza o Estado a exigir a renúncia ao exercício de direitos fundamentais que comprometam as condições de vida digna do indivíduo: “Assim, parece claro que a autonomia pessoal, como resultado da emancipação, contém a autonomia jurídica e não nega a potencialidade dos juízos de vantagens ou benefícios que eventual comportamento poderá gerar para o sujeito,

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sublinha que nosso ordenamento jurídico a admite, inclusive por norma constitucional (art.

98, inciso I, da Constituição Federal de 1988).540

Mais adiante, o tema será abordado novamente. Vale, entretanto, deixar consignado

que a autonomia da vontade a que se refere a doutrina tradicional apontada não está livre de

críticas, em razão dos defeitos que encerra.

3.2 Das necessárias definições do instituto

A suspensão condicional do processo foi instituída pela Lei n° 9.099/1995, não

havendo antecedente semelhante na legislação brasileira. A disciplina legal é lacônica ao

tratar do instituto, tendo sido as definições jurídicas realizadas sobretudo pela doutrina e pela

jurisprudência.

Desse modo, esta seção se dedica à delineação do instituto da suspensão condicional

do processo. Aponta sua definição e sua natureza jurídica, a aproximação com outros

institutos, o âmbito de admissibilidade, os requisitos para a concessão, os casos de revogação

obrigatória e facultativa, além dos efeitos do decurso do prazo de suspensão sem que tenha

havido revogação, destacando-se alguns de seus aspectos controvertidos. Por fim, será

abordada a controvérsia que se formou com a ampliação das infrações consideradas de menor

potencial ofensivo e seus efeitos sobre a suspensão condicional do processo.

mas é incompatível com regras de limitação das garantias fundamentais. Mercantilizado o direito penal, a princípio faz parte das ‘regras do jogo’ trocar o processo por medidas penais que não restrinjam as liberdades fundamentais do indivíduo. São inaceitáveis aquelas trocas que envolvem as condições de vida digna, como foi dito, por perpetuarem as distinções clássicas quanto ao exercício de direitos fundamentais”. Cf. PRADO, Geraldo, op. cit., 2003, pp. 190-1. 540 KARAM, Maria Lucia, op. cit., p. 44.

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3.2.1 Definição e natureza jurídica

A suspensão condicional do processo consiste, genericamente, numa forma de

composição do conflito de interesses penal que não dependa de ficar demonstrada a existência

de infração penal e responsabilidade do processado (pela produção de provas). Trata-se de

medida consensual em que o réu se compromete a adotar determinadas atitudes que o autor

julga suficiente e que resolve definitivamente o conflito.541

Objetivamente, afirma a doutrina tratar-se de uma proposta formulada pelo

Ministério Público ao réu, visando obter dele determinados comportamentos positivos e

negativos ao longo de prazo determinado, de modo a ver declarada extinta a punibilidade do

acusado pelo crime que funda a causa de pedir da ação penal. É necessário que o acusado,

orientado por seu patrono, aceite a proposta e o juiz a homologue. As provas não serão

produzidas e o acordo somente será válido se aperfeiçoado depois de recebida a denúncia,

com a constatação da existência de justa causa para a ação penal. Só cabe para um

determinado número de infrações penais, e a extinção da punibilidade decorre do decurso ou

período de prova sem revogação.542

No que tange à natureza jurídica do instituto, a análise merece ser realizada em

relação a dois aspectos: quanto à formulação da proposta e quanto à decisão que a homologa.

Inicialmente, em relação à formulação da proposta pelo Ministério Público, há

basicamente duas grandes correntes no Direito brasileiro. A primeira delas, defendida por

Weber Martins Batista,543 Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho,544 pelo STJ (RHC

n. 6.410-PR, rel. Min. Vicente Leal, maioria), pelo STF (HC n. 75.197-1-PR, rel. Min.

Moreira Alves, j. 19/08/1997, 1ª Turma, unânime), por Luiz Flávio Gomes,545 Maria Lúcia

541 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de, e PRADO, Geraldo, op. cit., pp. 258-62. 542 Idem, p. 259. 543 BATISTA, Weber Martins e FUX, Luiz, op. cit., pp. 372-5. 544 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de, e PRADO, Geraldo, op. cit., p. 264, nota 365. 545 GOMES, Luiz Flávio, op. cit., p. 153.

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Karam,546 Damásio Evangelista de Jesus,547 Antônio Nobre Folgado,548 Flávio Augusto

Fontes de Lima549 e Silvia Cives Seabra,550 afirma tratar-se de Direito Público Subjetivo do

Acusado.

São muitos e distintos os argumentos apresentados por esta corrente. Pode-se dizer

que, de maneira sintética, para quase todos, a proposta não pode ser de iniciativa exclusiva do

Ministério Público, e que o verbo “poderá” no caput art. 89 da Lei n° 9.099/1995 significa, na

verdade, “deverá”, ou seja, quando estiverem presentes os requisitos para a concessão da

proposta, ele deve oferecê-la. Isto porque a proposta não estaria ao alvedrio do Ministério

Público e de sua discricionariedade, tratando-se de ato vinculado. Para tal corrente, em caso

de recusa ou inércia do Ministério Público no oferecimento da proposta de transação penal, o

juiz poderia concedê-la (após proposta formulada pelo réu ou de ofício).

Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho551 afirma que a suspensão

condicional do processo é diferente da transação penal, em que há efetiva disposição de

direitos entre o Ministério Público e o autor do fato. Ressalta que, na suspensão, o Ministério

Público deduz a pretensão (oferece a denúncia), que deve ser recebida pelo juiz antes de

deferir a suspensão. Uma vez entregue ao Judiciário a pretensão, cabe a este dar-lhe destino

conforme a lei dispuser. Como a lei a prevê, o autor entende que o juiz pode conceder a

suspensão mesmo sem oferta do Ministério Público, no que estaria atuando o juiz dentro da

esfera da reserva de jurisdição.

546 KARAM, Maria Lucia, op. cit., pp. 172-6. 547 JESUS, Damásio E. de, op. cit., p. 114. 548 FOLGADO, Antônio Nobre, op. cit., pp. 84-5. 549 LIMA, Flávio Augusto Fontes de, op. cit., pp. 60-1. 550 SEABRA, Silvia Cives. Suspensão condicional do processo penal: lei n. 9.099/1995, de 26 de setembro de 1995. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1998, p. 64. 551 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de, e PRADO, Geraldo, op. cit., p. 264, nota 365.

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André Luiz Nicolitt, embora não reconheça a suspensão condicional do processo

como um direito público subjetivo do acusado, defende que o juiz pode concedê-la de ofício,

por se tratar de direito ao devido processo legal.552

Geraldo Prado553 critica essa corrente afirmando que a suspensão condicional do

processo nada suspende de modo efetivo, ao contrário do que ocorre nos casos previstos no

art. 366 do Código de Processo Penal, dispositivo que prevê a paralisação do curso do

processo de conhecimento e das demais situações de suspensão processual derivadas da

necessidade de se aguardar a decisão de questão prejudicial (art. 92 do Código de Processo

Penal), de incidente de falsidade (art. 145 do Código de Processo Penal) ou de insanidade (art.

149 do Código de Processo Penal). Ressalta o autor que ela paralisa apenas a marcha do

processual destinada à produção de prova pelas partes, e que se trata, na verdade, de outro

percurso processual tomado pelas partes, mas também orientado para a decisão definitiva do

conflito de interesses penal.

Aponta que as condições da proposta e da suspensão não são uma pena criminal e a

sentença homologatória não tem natureza de condenação. Ademais, observa que a instauração

do processo penal de condenação não pode ser considerada direito do acusado, assim como

um indivíduo ainda não processado não pode sofrer sanção penal. Mas o acusado terá direitos,

deveres, ônus e faculdades no processo penal, e a submissão do réu ao processo é

compulsória, desde que presentes os requisitos da ação e do processo. Conclui afirmando não

se tratar de direito público subjetivo do acusado.

552 NICOLITT, André Luiz, op. cit., p. 38. O autor refuta a tese de Geraldo Prado, de que a suspensão condicional do processo é um dos elementos do direito de ação, afirmando que “não há disponibilidade da ação penal, pois, em princípio, a suspensão atinge tão-somente a categoria de processo”, e que “em momento algum o promotor desiste da ação. Ao contrário, haverá ação, processo e jurisdição, ainda que esta última somente declare a extinção da punibilidade, o que será, inclusive, uma sentença de mérito por equiparação” (Cf. pp. 33 e 37-8, respectivamente). Aqui não se perfilha, contudo, da idéia do autor, como se verá mais adiante, muito embora se reconheçam a autoridade e o refinamento dos argumentos. 553 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de, e PRADO, Geraldo, op. cit., p. 259; PRADO, Geraldo, op. cit, 2005, pp. 227-9.

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A segunda corrente – defendida por Geraldo Prado,554 pelo STF (HC 74.153-3-SP,

rel. Min. Sydney Sanches, j. 03/12/1996; e RESP 539770/SP, rel. Min. José Arnaldo da

Fonseca, j. 16/10/2003, no qual afirma expressamente não se tratar de direito público

subjetivo do acusado), por Ada Pellegrini Grinover et al.555 e por Afrânio Silva Jardim –556

afirma tratar-se de parte integrante do direito de ação (faculdade do titular da ação penal

pública).

Basicamente, esta corrente garante tratar-se do direito do Ministério Público de estar

em juízo e pedir ao juiz uma solução diferente da pena criminal, nos casos em que a lei

autoriza esta solução. Geraldo Prado declara que essa posição guarda coerência com o

processo acusatório estruturado constitucionalmente, velando pela autonomia da ação em face

da jurisdição e reservando à defesa a tarefa de resistir à pretensão, além de ser a única que

assimila por inteiro a idéia de solução consensual do conflito de interesses penal. Ademais,

acrescenta que não haveria autonomia da vontade se uma das partes fosse obrigada a transigir.

Defende ser necessária a iniciativa do Ministério Público, que pratica ato discricionário

(regrado) ao oferecer a proposta.557

Considera-se, conforme o autor, que a proposta de suspensão constitui “modalidade

alternativa de exercício da ação penal pública, estando o Ministério Público obrigado a

exercitá-la sempre que presentes os requisitos legais”.558

Se, no caso concreto, o Ministério Público não formular a proposta sem justificativa,

afirma o autor559 que, tratando-se de modalidade alternativa de exercício da ação penal

554 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de, op. cit.; PRADO, Geraldo, op. cit., p. 263. 555 GRINOVER, Ada Pellegrini et al., op. cit., p. 315. Embora os autores reconheçam que se trata de ato de iniciativa do Ministério Público, não sendo permitido ao juiz agir de ofício, sob pena de contrariar o sistema acusatório, ressaltam que essa iniciativa não confere àquele órgão uma atuação arbitrária, nem de ato meramente discricionário ou de uma faculta agendi (cf. pp. 315-7). Em outra passagem, chegam mesmo a reconhecer a suspensão condicional como direito público subjetivo do acusado, aceitando que o juiz a conceda de ofício, se presentes todos os requisitos legais (cf. p. 341). 556 JARDIM, Afrânio Silva, op. cit., 2001. pp. 108-9. 557 PRADO, Geraldo, op. cit., 2005, pp. 228-9. 558 Idem, p. 228. 559 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de, e PRADO, Geraldo, op. cit., p. 263.

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pública, o oferecimento da proposta pelo Ministério Público não é ato vinculado. Trata-se de

ato discricionário (leva-se em conta não só a conduta, mas também um juízo prévio sobre a

culpabilidade do acusado – art. 77, inciso II, do Código Penal), mas que deve ser

fundamentado, sob pena de se tornar arbitrário. Assim, se não o tiver sido, e o juiz entender

cabível, defende o autor a aplicação, por analogia, do art. 28 do Código de Processo Penal –

remessa ao procurador-geral, que o enviará a outro promotor ou insistirá no não-cabimento da

proposta.

O STF adotou essa posição no RESP 539770/SP (rel. Min. José Arnaldo da Fonseca,

j. 16/10/2003) e, recentemente, pacificou a matéria por meio da Súmula n° 696: “Reunidos os

pressupostos legais permissivos da suspensão condicional do processo, mas se recusando o

Promotor de Justiça a propô-la, o juiz, dissentindo, remeterá a questão ao procurador-geral,

aplicando-se por analogia o art. 28 do Código de Processo Penal”. Opta-se aqui por esta

posição, entendido ser necessária a intervenção do Ministério Público para a concessão do

benefício, a fim de resguardar o princípio acusatório, que, como se viu no Capítulo 1, foi o

adotado pela Constituição Federal de 1988 ao instituir o Estado Democrático de Direito, o

qual, por sua vez, possui como um de seus fundamentos a dignidade humana.

Cumpre apontar, uma vez admitido o entendimento acima mencionado, que se trata

de ato bilateral,560 exigindo não só a iniciativa do Ministério Público, mas também a aceitação

do acusado e de seu defensor, conforme preceitua o art. 89, § 1º, da Lei n° 9.099/1995. Em

caso de divergência entre o acusado e seu defensor, concorda-se com Ada Pellegrini Grinover

et al.,561 que sustentam que deverá prevalecer a posição do acusado, por força do que dispõe o

art. 89, § 7º, da Lei n° 9.099/1995, que se refere apenas ao acusado, não mencionando seu

defensor.

560 GRINOVER, Ada Pellegrini et al., op. cit., p. 256. 561 Idem, pp. 334-55.

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Aponta-se,562 ainda, que a natureza jurídica da suspensão condicional do processo se

assemelha ao nolo contendere, referindo-se à distinção que existe no Direito norte-americano

entre a guilty plea e o nolo contendere, que recai sobre os efeitos civis. Nesse caso, a resposta

do acusado tem a seguinte repercussão: da guilty plea, em que o acusado admite a culpa,

decorre o efeito civil de ter de indenizar. Tal efeito não decorre do nolo contedere, forma de

defesa na qual o acusado não contesta a acusação, mas não admite a culpa, nem declara sua

inocência. Neste, a indenização deverá ser discutida.

3.2.2 Aproximação com outros institutos

Quando as origens do instituto foram apontadas, falou-se que ele teria sido inspirado

no probation decorrente da plea bargaining americana, e na condenação por decreto italiana.

O movimento que deu origem à edição da Lei n° 9.099/1995 também se fez presente em

outros países.563 Na presente seção, serão mostrados alguns pontos de contato com outros

institutos estrangeiros, sem a pretensão de se fazer um estudo de Direito comparado, pelos

limites que se impõem neste trabalho. Também serão destacadas algumas distinções entre

suspensão e outros institutos presentes em nosso sistema: o sursis e a transação penal.

A suspensão condicional do processo não se confunde com a probation, embora esse

instituto tenha sido sua fonte de inspiração. O probation system, presente no Direito anglo-

saxão, é um instituto no qual se impede a prolação de uma sentença condenatória ao réu.564

Há dois momentos distintos naquele sistema e, em primeiro lugar, há uma declaração de

culpabilidade (conviction), e só depois vem o momento da sentença (sentence), na qual se

impõe a pena ou a medida adequada ao caso.565 Assim, o que se suspende é a prolação da

sentença condenatória, após o término da instrução criminal, mas há efetivamente a

562 Idem, p. 256. 563 Sobre os movimentos de política criminal de despenalização na Europa, cf. DELMAS-MARTY, Mireille. Os grandes sistemas de política criminal. Trad. Debise Radanovic Vieira. Barueri: Manole, 2004, pp. 344 e ss. 564 FOLGADO, Antônio Nobre, op. cit., p. 72.

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declaração da culpabilidade do réu, a quem são impostas condições para evitar a aplicação da

pena criminal. Distingue-se, assim, da suspensão condicional do processo, na medida em que

nesta última não há instrução criminal, tampouco juízo sobre a culpabilidade do réu.

Também não se confunde com os institutos da guilty plea e da plea bargaining do

Direito anglo-saxão e do norte americano. A guilty plea do Direito anglo-saxão “consiste

numa forma de defesa perante o juízo em que o imputado admite que cometeu o fato a ele

atribuído”.566 O acusado confessa a culpa para que possa obter uma pena reduzida. No Direito

norte-americano, essa admissão de culpabilidade pode se dar de três maneiras distintas:

voluntariamente (uninfluenced plea), quando o acusado confessa sua culpabilidade porque ela

se mostra tão evidente que a absolvição se mostra praticamente impossível; induzida

(structurally induced plea), porque a lei pune de modo mais grave aqueles que insistem numa

sentença de mérito, ou porque se acredita que os juízes apliquem uma pena mais leve àqueles

que admitem sua culpa;567 e a negociada (plea bargaining), que consiste numa confissão de

culpa à qual se chega mediante um acordo entre a acusação e o acusado, antes do processo.568

Elas se dão numa fase anterior ao processo em juízo.569

O plea bargaining norte-americano é instituto no qual “há uma ampla possibilidade

de transação: sobre os fatos, sobre a qualificação jurídica, sobre as conseqüências penais

etc.”,570 é, portanto, uma espécie de admissão de culpa (guilty plea), em que há uma transação

565 GRINOVER, Ada Pellegrini et al., op. cit., p. 253. 566 GOMES, Luiz Flávio, op. cit., p. 129. 567 Nicolas Rodríguez Garcia aponta que esta modalidade também se denomina implicit ou tacit plea bargaining, uma vez que não há uma negociação real entre a acusação e a defesa, e o acusado possui uma “expectativa razoável” de obter um tratamento favorável, expectativa essa que dificulta muito um controle efetivo da atividade desenvolvida na plea bargaining pelo órgão jurisdicional. Reconhece, por fim, que essa crença de tratamento mais benéfico acaba tendo algum respaldo: “Esa es la clave de la existencia de esta modalidad, que el acusado crea que el Juez jusgará com más benevolencia a los acusados que pleads guilty que a los condenados después del juicio. De hecho, muchos Jueces se muestran propensos a tratar más favorablemente a éstos cuando deciden la setencia a imponer en cada caso”. Cf. GARCÍA, Nicolas Rodríguez. El consenso em el processo penal español. Barcelona: José Maria Bosch Editor, 1997, pp. 90-1, nota 205. 568 FOLGADO, Antônio Nobre, op. cit., p. 73. 569 Cf. GARCÍA, Nicolas Rodríguez, op. cit., p. 90, nota 205. 570 GOMES, Luiz Flávio, op. cit., p. 129.

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entre a acusação e a defesa, cuja finalidade é a imposição de pena referente a delito de menor

potencialidade ofensiva, e diferente do que foi inicialmente imputado ao réu.571

Distinguem-se, assim, esses institutos da suspensão condicional do processo, pois,

como se viu, nesta não há admissão de culpa pelo acusado, evitando-se a prolação de sentença

condenatória. Ademais, no Direito norte-americano, o Ministério Público tem amplo poder

discricionário, em virtude do princípio da oportunidade, e, como se defendeu na Seção 3.1,

subsiste em nosso sistema o princípio da obrigatoriedade. Outro traço distintivo se refere ao

fato de que, no Direito norte-americano, a transação põe fim ao processo sem exigir que o

acusado tenha obrigações a serem cumpridas, o que não ocorre na suspensão condicional do

processo.572

Instituto semelhante à suspensão condicional do processo é o arquivamento

provisório do processo previsto no Direito alemão (§ 153a do StPO).573 O arquivamento

provisório (ou suspensão) pode ser da acusação ou do processo penal. Na primeira hipótese, a

ação penal deixa de ser proposta pelo Ministério Público caso o acusado concorde em cumprir

algumas condições previstas na lei.574 Sendo cumpridas, extingue-se a punibilidade do delito,

arquivando-se o procedimento definitivamente.

Na segunda hipótese, a ação penal já foi proposta e o que será suspenso pelo acordo é

o próprio processo penal, a fim de que o acusado cumpra as condições pactuadas. Satisfeitas

as condições, arquiva-se definitivamente o processo. Assim como no Direito brasileiro, não há

decisão sobre a culpabilidade do acusado e, uma vez cumpridas as condições, extingue-se a

punibilidade pelo fato praticado.575

571 FOLGADO, Antônio Nobre, op. cit., p. 73. 572 Idem, pp. 73-4. 573 Idem, p. 63. 574 Idem, p. 63, nota 114: “StPO, § 153a: ‘1. Cumprir uma determinada prestação para a reparação do dano ocasionado pelo ato; 2. Pagar um montante em favor de uma instituição de interesse comum ou do Tesouro Público; 3. Cumprir outras prestações de interesse comum, ou 4. Cumprir com deveres de alimentos de um determinado valor [...]’”. 575 Idem, p. 64. Nicolas Rodríguez García aponta que o arquivamento provisório do processo no direito alemão também enseja o cumprimento de condições e regras de conduta (op. cit., pp. 95-6).

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Outro instituto que se assemelha à suspensão condicional do processo é a suspensão

provisória do processo, também denominada de arquivamento contra injunções e regras de

conduta, prevista no Direito português (arts. 281 e 282 do Código de Processo Penal

Português).576 Trata-se de instituto no qual o Ministério Público pode decidir pela suspensão

do processo, com a concordância do juiz e do acusado, impondo-lhe algumas das condições

previstas em lei, desde que o crime seja punido com pena de prisão não superior a cinco anos,

ou com outro tipo de sanção penal. Assim como aqui, não há decisão judicial sobre a

culpabilidade do acusado.577

Nícolas Rodríguez Garcia registra que, na suspensão provisória do processo no

Direito português, exige-se uma concorrência de vontades, o que implica uma dimensão

estrita e reduzida do princípio da oportunidade no processo penal português, já que o

Ministério Público deverá, para suspender o processo, obter necessariamente a aceitação do

acusado, do assistente (nas hipóteses em que a vítima se habilita como tal) e também da

homologação do juiz de instrução, “que no se limita a verificar el cumplimiento de los

576 Idem, pp. 64-5. “Art. 281 – Suspensão provisória do processo: 1 – Se o crime for punível com pena de prisão não superior a cinco anos ou com sanção diferente da prisão, pode o Ministério Público decidir-se, com a concordância do juiz de instrução, pela suspensão do processo, mediante a imposição ao argüido de injunções e regras de conduta, se se verificarem os seguintes pressupostos: a) concordância do argüido e do assistente; b) ausência de antecedentes criminais do argüido; c) não haver lugar a medida de segurança de internamento; d) caráter diminuto da pena; e e) ser de prever que o cumprimento das injunções e regras de conduta responda suficientemente às exigências de prevenção que no caso se façam sentir; 2 – São oponíveis ao argüido as seguintes injunções e regras de conduta: a) indenizar o lesado; b) dar ao lesado satisfação moral adequada; c) entregar ao Estado ou a instituições privadas de solidariedade social certa quantia; d) não exercer determinadas profissões; e) não freqüentar certos meios ou lugares; f) não residir em certos lugares ou regiões; g) não acompanhar, alojar ou receber certas pessoas; h) não ter em seu poder determinados objetos capazes de facilitar a prática de outro crime; i) qualquer outro comportamento especialmente exigido pelo caso. 3 – Não são oponíveis injunções e regras de conduta que possam ofender a dignidade do argüido. 4 – Para apoio e vigilância do cumprimento das injunções e regras de conduta, podem o juiz e o Ministério Público, consoante os casos, recorrer aos serviços de reinserção social, a órgão de polícia criminal e às autoridades administrativas. 5 – A decisão de suspensão, em conformidade com o n. 1, não é susceptível de impugnação. Art. 282 – Duração e efeitos da suspensão: 1 – A suspensão do processo pode ir até dois anos. 2 – A prescrição não corre no decurso do prazo de suspensão do processo. 3 – Se o argüido cumprir as injunções e regras de conduta, o Ministério Público arquiva o processo, não podendo ser reaberto. Se as não cumprir, o processo prossegue e as prestações feitas não podem ser repetidas”. Nicolas Rodríguez García também aponta que a suspensão provisória do processo no direito português enseja o cumprimento de condições e regras de conduta (Cf. op. cit., pp. 95-6). 577 FOLGADO, Antônio Nobre, op. cit., p. 65.

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respectivos pressupostos, sino que tiene que realizar in juicio de valor sobre las obligaciones o

reglas de conducta que el Ministerio Publico entiende que deben ser aplicadas al acusado”.578

O Direito italiano contempla instituto que, embora não se assemelhe à nossa

suspensão condicional do processo, guarda semelhanças com a transação penal do Direito

brasileiro, e cuja abordagem breve se faz apenas por ter sido ele um dos inspiradores de nosso

instituto: trata-se do patteggiamento, que valorizou o direito premial, no qual o acusado,

aceitando um rito mais simplificado, tem sua pena reduzida ou substituída. O Código de

Processo Penal italiano de 1988 prevê cinco mecanismos ou ritos que visam abreviar o

procedimento processual penal: o procedimento monitório ou por decreto, o juízo diretíssimo,

o juízo imediato, o juízo abreviado e a proposta de aplicação de pena, constituindo-se numa

ordem do rito mais simplificado até o que mais se aproxima do julgamento e da instrução.579

O procedimento por decreto ou monitório se aplica nas hipóteses em que o

Ministério Público pode propor pena até a metade do mínimo cominado. Em seguida, vem o

juízo diretíssimo, previsto nos arts. 449 a 452 do Código de Processo Penal italiano, que

possui como requisito a existência de prova por intermédio da prisão em flagrante e da

confissão.580 Não sendo possível o juízo diretíssimo, pela complexidade do caso, o Ministério

Público renuncia ao direito de uso deste procedimento e passa ao juízo imediato, previsto nos

arts. 443 a 448 do Código de Processo Penal italiano, no qual há permissão para a conclusão

das investigações no prazo de noventa dias.581

Nas três hipóteses, não haverá audiência preliminar.582 Caso esta seja necessária, o

Ministério Público pode se valer do juízo abreviado, previsto nos arts. 443 a 448 do Código

578 GARCIA, Nicolas Rodríguez. Op. cit., p. 94. 579 ISHIDA, Valter Kenji. A suspensão condicional do processo. São Paulo: Saraiva, 2003, pp. 20-1. 580 Idem, p. 21. 581 Ibidem. 582 Valter Kenji Ishida ressalta que é necessário conhecer o procedimento processual penal italiano para entender os institutos ora estudados: “Para se entender a reforma processual penal italiana, mister conhecer o seu procedimento. Inicia-se por meio do inquérito preliminar; passa pela acusação do Ministério Público, em não havendo arquivamento; segue para a audiência preliminar; e finaliza-se com o julgamento. Este inclui a instrução. É um procedimento longo e custoso”. Cf. op. cit., p. 20.

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de Processo Penal daquele país, no qual há permissão de aplicação de qualquer tipo de pena,

salvo a de prisão perpétua; é exigida a homologação judicial; e o acusado pode condicionar

sua aceitação à cumulação do pedido de suspensão condicional da pena, conforme permite o

art. 444, § 3º, daquele diploma legal. Por fim, se houver necessidade de instrução e

julgamento, o Ministério Público poderá utilizar-se da proposta de aplicação de pena.583

Nos procedimentos italianos, o acordo celebrado entre as partes deve ser analisado

pelo juiz, por meio de uma sentença que aplica a pena. Não se trata de mera homologação,

uma vez que o juiz, antes de aplicá-la, observa se há causas de extinção da punibilidade; se a

qualificação jurídica do fato está correta; se as circunstâncias do delito foram adequadamente

formuladas; e se há voluntariedade do acusado no acordo.584

Embora a sentença não tenha a natureza de decisão de condenação, acaba por ser a

ela equiparada, conforme preceitua o art. 445 do Código de Processo Penal italiano, podendo

servir de pressuposto à reincidência e à declaração da habitualidade delitiva.585 Distingue-se,

assim, da nossa transação penal, uma vez que nesta última a sentença que a homologa não tem

natureza de decisão condenatória. E, como já se assinalou, não guarda semelhança com a

suspensão condicional do processo.

No Direito espanhol, também pode ser encontrado instituto relacionado à suspensão

condicional do processo. Trata-se da conformidad, ato processual, consistente na declaração

de vontade que emite o acusado, assistido por seu advogado, pela qual se conforma com a

acusação mais grave feita pelos órgãos de acusação, e com a pena solicitada, desde que ela

não exceda a seis anos de privação de liberdade, o que provoca o encerramento do

583 ISHIDA, Valter Kenji, op. cit., p. 21. Nicolas Rodríguez Garcia ressalta que o patteggiamento italiano possui, assim como no direito norte-americano, a bilateralidade como um traço característico, na medida em que o procedimento abreviado tem como um de seus requisitos a proposta de uma das partes, com o consentimento da outra, ou a proposta conjunta. Cf. op. cit., p. 92, nota 207. 584 FOLGADO, Antônio Nobre, op. cit., p. 70. 585 Ibidem.

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procedimento, sem a celebração do juízo oral e mediante uma sentença com todos os efeitos

de coisa julgada.586

Há controvérsia na doutrina espanhola acerca da natureza jurídica do instituto,

havendo uma corrente que entende tratar-se de uma transação entre as partes; outra que a

admite como uma confissão do réu; e a majoritária, que entende tratar-se de ato de disposição

do réu, que se conforma com a acusação e a pena proposta.587

Uma particularidade da conformidade, prevista nos arts. 655.1 e 688.2 da Ley de

Enjuiciamento Criminal espanhola, é o fato de tratar-se de ato voluntário unilateral do

acusado,588 no qual ele concorda com a acusação e a pena pretendida, evitando o processo nos

crimes cuja pena privativa de liberdade seja de até seis anos. Note-se que será sempre

necessário o controle do órgão judicial, não se tratando a sentença de imposição de pena de

mero ato homologatório, uma vez que a manifestação da defesa “no priva al órgano

jurisdiccional de sus facultades de control sobre la concurrencia de los efectos reconocidos em

la Ley, estando facultado para rechazar ese acto cuando no los reúna”.589

Desse modo, pode-se afirmar que embora a conformidad possua alguma semelhança

com a transação penal do Direito brasileiro, dela se distingue por não se tratar de um acordo

entre a acusação e a defesa, uma vez que se trata, conforme se posiciona a doutrina espanhola

majoritária, de ato unilateral de disposição sobre o objeto do processo.590 Também não se

assemelha à suspensão condicional do processo, uma vez que não se exige que o acusado

cumpra condições ou regras de conduta, tratando-se apenas de uma imposição da pena aceita,

abreviando-se o procedimento.591 Essa última característica enseja a observação de Nícolas

Rodríguez García, de que, apesar de no Direito espanhol não estar prevista expressamente

586 GARCÍA, Nicolas Rodríguez, op. cit., p. 97. 587 Idem, pp. 100-13. 588 Idem, p. 92. 589 Idem, p. 173. 590 Idem, p. 97. 591 Idem, pp. 95-6.

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qualquer espécie de prêmio aos acusados que decidem conformar-se, como o é na Itália, a

conformidad acaba fazendo com que a responsabilidade exigida e as penas impostas aos

acusados sejam bem reduzidas.592

No que se refere aos institutos nacionais, cumpre apontar que a suspensão

condicional do processo não se confunde com o sursis, ou suspensão condicional da pena.

Trata-se de instituto tradicional em nosso Direito, no qual, após o processo de instrução e a

declaração da sentença condenatória, o juiz suspende a execução da pena privativa de

liberdade, impondo-se ao condenado o cumprimento de algumas condições, e desde que

presentes os requisitos previstos no art. 77 do Código Penal Brasileiro. Expirando-se o prazo

sem revogação, extingue-se a pena que havia sido suspensa.593

Embora alguns autores utilizem a expressão sursis processual594 ou sursis

antecipado595 para designar a suspensão condicional do processo, não parece adequada, como

aponta Cezar Roberto Bitencourt, pois a importância do instituto e suas características

peculiares justificam a atribuição de uma denominação própria.596

Por fim, a suspensão condicional do processo se distingue da transação penal, como

já se viu. A transação penal está prevista no art. 76 da Lei n° 9.099/1995 e consiste num

acordo entre o suposto autor do fato e a acusação, “a respeito do cumprimento de sanção não

privativa de liberdade, que é aplicada sem a instauração de um processo penal, e sem a análise

da culpabilidade do infrator”,597 ao passo que a suspensão condicional do processo não

consiste tecnicamente em um acordo sobre a imposição de uma pena, mas sim sobre a

imposição de condições que deverão ser cumpridas em determinado lapso temporal,

suprimindo-se, desse modo, a fase probatória e o julgamento. A primeira incide sobre o

592 Idem, pp. 96-7. 593 GRINOVER, Ada Pellegrini et al., op. cit., p. 252. 594 Nesse sentido, cf. JESUS, Damásio E. de, op. cit., p. 113. 595 Cf. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa, op. cit., 2003, p. 166.

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direito material, ou seja, sobre a pena, ao passo que a segunda incide sobre o processo, não se

transigindo diretamente sobre a pretensão punitiva estatal, que será atingida indiretamente

caso sejam cumpridas as condições pactuadas.598 Outro traço distintivo é o momento da

aplicação dos institutos, uma vez que a transação penal, em regra, será celebrada entre as

partes numa fase preliminar, antes de instaurado o processo. Já a suspensão condicional do

processo só poderá ser celebrada se for recebida a denúncia, ou seja, caso seja instaurado

formalmente o processo.

3.2.3 Âmbito de admissibilidade

O art. 89 da Lei n° 9.099/1995 preceitua que a suspensão condicional do processo

pode ser proposta nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano,

abrangidas ou não por aquela lei. Desse modo, e como já se afirmou ao longo do trabalho, a

suspensão condicional do processo abrange não apenas os delitos de competência dos

Juizados Especiais Criminais, mas também todos os outros cuja pena mínima prevista

abstratamente esteja nos limites fixados pelo dispositivo apontado. O indicador fundamental é

a pena mínima cominada, aplicando-se no juízo comum, tanto no estadual como no federal.

Embora o dispositivo se refira a crime, também se admite a suspensão condicional do

processo nos casos de contravenção, bem como nos crimes em que for prevista,

596 BITENCOURT, Cezar Roberto. Juizados especiais criminais federais: análise comparativa das leis n. 9.099/1995 e n. 10.259/2001. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 141. Também nesse sentido cf. GRINOVER, Ada Pellegrini et al., op. cit., p. 252. 597 FOLGADO, Antônio Nobre, op. cit., p. 69. 598 GOMES, Luiz Flávio, op. cit., p. 126. Maria Lúcia Karam critica a concepção da transação penal como mero acordo entre as partes, admitindo-a como via alternativa estabelecida pelo legislador para concretizar uma antecipada reação estatal às infrações de pequeno potencial ofensivo, presentes os requisitos legais exigidos (cf. pp. 91-2 e 174). Afrânio Silva Jardim também defende que a proposta de transação penal do Ministério Público prevista na Lei n° 9.099/1995 tem natureza de ação penal pública condenatória, pois nela se manifesta uma verdadeira pretensão punitiva, ainda que ela dependa do consentimento do acusado. Cf. JARDIM, Afrânio Silva, op. cit., 2003. p. 133.

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alternativamente, pena de prisão ou multa, desde que a pena mínima não ultrapasse o patamar

fixado.599 Aplica-se, outrossim, aos procedimentos de competência originária dos tribunais.600

O art. 61 da Lei n° 9.099/1995 estabelecia a definição de infrações de menor

potencial ofensivo, mas excluía dela aqueles para os quais estivesse previsto procedimento

especial. Tal ressalva não se aplica, contudo, à suspensão condicional do processo, tendo sido

silente a esse respeito o art. 89, anteriormente mencionado.601 Assim, a suspensão condicional

do processo é aplicável aos crimes previstos em leis especiais, como a eleitoral, a de

entorpecentes, a de trânsito,602 a falimentar, a que estabelece o estatuto do desarmamento

(caso estejam presentes as demais condições), a de imprensa603 e outras, exceto quando se

tratar de crime militar, tendo em vista o que dispõe o art. 90-A da Lei n° 9.099/1995, que

excluiu expressamente do âmbito da Justiça Militar as disposições daquela norma.

Tal dispositivo foi inserido pela Lei n° 9.839/1999 e é apontado por Maria Lúcia

Karam como inconstitucional, por violação ao princípio da isonomia.604 Explica a autora que

a razão permite afirmar que as regras dos arts. 88 e 89 da Lei n° 9.099/1995 não eram o

silêncio do legislador de 1995, ou a ausência de regra que vedasse aquela aplicação. Tal razão

residia no desdobramento do princípio da isonomia, que exigia a igualdade de tratamento

penal à igualdade de situações que se apresentassem entre os que fossem apontados como

autores de crimes de lesões corporais leves ou culposas, comuns ou militares, ou os que

fossem apontados autores de crimes, comuns ou militares, que tivessem pena mínima

cominada igual ou inferior a um ano. E essa situação não se modificou com a edição da regra

que previu expressamente a proibição.

599 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de, op. cit.; PRADO, Geraldo, op. cit., pp. 274-5; GRINOVER, Ada Pellegrini et al., op. cit., p. 276. 600 GRINOVER, Ada Pellegrini et al., op. cit., pp. 268-9. 601 Idem, p. 267. 602 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de, e PRADO, Geraldo, op. cit., p. 275. 603 JESUS, Damásio E. de, op. cit., p. 119. 604 KARAM, Maria Lucia, op. cit., pp. 80-1. Também defende a inconstitucionalidade do dispositivo, contudo, somente em relação aos crimes militares próprios (aqueles que só estão previstos no Código Penal Militar, sem idêntica definição na lei penal comum). Cf. JESUS, Damásio E. de, op. cit., p. 117.

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Com efeito, antes da alteração normativa, parte da doutrina se posicionou

favoravelmente à aplicação dos arts. 88 e 89 no âmbito da Justiça Militar, tendo sido

orientação predominante no Supremo Tribunal Federal, conforme se verifica no Acórdão

proferido no Habeas Corpus n° 77.037-6 (rel. Min. Carlos Velloso, j. 16/06/1998).605

Contudo, apontam Geraldo Prado e Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho que os

argumentos contrários ao entendimento majoritário alertavam para a peculiaridade do Direito

Penal Militar, que lhe conferia caráter especial em relação ao Direito Penal comum (e não

apenas que o Código Penal Militar fosse considerado como lei especial). Suas regras

formariam uma estrutura particular fundada nos princípios de hierarquia e disciplina, que não

comportariam as regras de exclusão das penas previstas nos arts. 88 e 89 da Lei n°

9.099/1995.

Desse modo, concorda-se com os autores no sentido de que a alteração legislativa

realizada não contraria o princípio constitucional da igualdade, já que a desigualdade de

tratamento conferida pela legislação decorre da desigualdade de situações e regras tuteladas

pelo Direito Penal comum e pelo Direito Penal Militar.606 Vale ressaltar que a Lei n°

9.839/1999 não é retroativa, não incidindo sobre infrações penais cometidas antes de sua

vigência.607

Outro aspecto importante relacionado à admissibilidade diz respeito a eventuais

modificações operadas sobre as formas básicas de determinados tipos penais legais que

ensejariam tipos derivados, sendo estes configurações especiais daqueles, conforme aponta

Maria Lúcia Karam.608 Ressalta a autora que, em se tratando de crime tentado, a pena mínima

605 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de, e PRADO, Geraldo, op. cit., p. 299. 606 Idem, p. 300. 607 JESUS, Damásio E. de, op. cit., p. 119. 608 KARAM, Maria Lucia, op. cit., pp. 162-3.

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a ser considerada para a admissibilidade da suspensão seria a resultante da maior redução

(dois terços) abstratamente prevista na regra do art. 14 do Código Penal.609

Geraldo Prado e Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho acrescentam que,

também nas hipóteses de continuidade delitiva, de concurso formal e material, deveriam ser

excluídos os acréscimos, aplicando-se analogicamente o art. 119 do Código Penal, uma vez

que, nessas hipóteses, ao menos teoricamente, a culpabilidade é atenuada.610

Contudo, esse não tem sido o entendimento das Cortes Superiores de nosso país,

tendo o Supremo Tribunal Federal editado a Súmula n° 723, cujo verbete assenta: “Não se

admite a suspensão condicional do processo por crime continuado se a soma da pena mínima

da infração mais grave com o aumento mínimo de um sexto for superior a um ano”.611

Também o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula n° 243, com o seguinte verbete:

O benefício da suspensão do processo não é aplicável em relação às

infrações penais cometidas em concurso material, concurso formal, ou

continuidade delitiva, quando a pena mínima cominada, seja pelo somatório,

seja pela incidência da majorante, ultrapassar o limite de um (01) ano.612

No caso de haver pluralidade de crimes e um deles não admitir a suspensão

condicional do processo pela pena mínima fixada abstratamente, Maria Lúcia Karam propõe

como solução romper o processo formalmente uno, para que aquele referente ao delito que

comporta a suspensão seja condicionalmente suspenso, ao passo que o outro deverá

prosseguir normalmente com a instrução e o julgamento.613

609 Idem, p. 163. 610 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de, op. cit.; PRADO, Geraldo, op. cit., p. 276. 611 KARAM, Maria Lucia, op. cit., p. 164. 612 Ibidem. 613 Idem, p. 165. Nesse sentido também se posiciona Geraldo Prado, de quem discorda Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho, que sustenta “que a conexão entre infração de menor potencial ofensivo e de maior potencial ofensivo impede o desmembramento, firmando-se a competência do juízo a que corresponder a infração mais grave. Cf. CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de, e PRADO, Geraldo, op. cit., p. 276, nota 371.

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Alega a autora que a corrente que se insurge contra esse entendimento o faz sob o

argumento de que o caput do art. 89 estabelece como um dos requisitos para a concessão da

suspensão não estar o acusado “sendo processado por outro crime” e que esse entendimento

levaria à conclusão de que, em nenhuma hipótese de alegação da prática de mais de um crime,

seja em concurso formal, material ou em continuidade, seria possível a suspensão condicional

do processo, qualquer que fosse a pena mínima cominada, e ainda que a soma das penas

mínimas, ou as penas mínimas aumentadas, não fossem superiores a um ano.614

Ademais, a vedação apontada viola o princípio da presunção de inocência, que se

reveste em regra de tratamento do acusado, como se viu no Capítulo 1, devendo ser, portanto,

afastada. Assim, concorda-se com Maria Lúcia Karam, quando esta afirma que, no juízo de

admissibilidade da suspensão condicional do processo, na presença de uma certa pluralidade

de tipos legais de infrações penais, deve-se levar em conta o limite de um ano da pena

mínima, considerado isoladamente em relação a cada uma das infrações penais

configuráveis.615

A admissibilidade da suspensão condicional do processo nos crimes de ação penal

exclusivamente privada é tema que também suscita controvérsia. Ada Pellegrini Grinover et

al. consideram que a suspensão condicional do processo pode ser admitida nas ações penais

exclusivamente privadas, sob o argumento de que o instituto não possui a mesma natureza de

perdão (pois afeta diretamente o ius puniendi) nem da perempção (que consiste na sanção

processual ao querelante inerte). Explicam os autores que, ao propor a suspensão condicional

do processo, o querelante estaria agindo positivamente, postulando uma resposta estatal

punitiva alternativa, ato sujeito ao deferimento judicial. Já no perdão e na perempção, tratar-

614 KARAM, Maria Lucia, op. cit., p. 166. 615 Ibidem.

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se-ia de indulgência ou inércia do querelante atos de causação, que geram o encerramento do

processo sem margem para indeferimento judicial.616

Maria Lúcia Karam aponta que o art. 89 da Lei n° 9.099/1995 somente previu a

possibilidade de concessão da suspensão condicional do processo nas ações penais

condenatórias de iniciativa do Ministério Público, excluindo, portanto, de seu âmbito de

incidência as ações penais condenatórias de iniciativa exclusiva do ofendido.617 Também

Geraldo Prado618 sustenta a inadmissibilidade da suspensão condicional do processo nos

crimes de ação penal privada. O primeiro argumento apontado pelo autor é o princípio da

legalidade ao qual deve estar submetido o instituto, uma vez que o dispositivo legal se refere

expressamente ao oferecimento da proposta pelo Ministério Público. Alega, outrossim, que as

composições processuais previstas nas hipóteses de ações penais de iniciativa exclusiva do

ofendido estão satisfatoriamente reguladas no Código de Processo Penal, e um acordo entre as

partes durante o prazo terá o efeito de pôr fim ao litígio.

Ademais, continua o autor, impor ao querelante a obrigação de propor a suspensão

condicional do processo seria negar-lhe a condição de parte, da mesma maneira que não se

pode fazê-lo em relação ao Ministério Público, o que, como já se afirmou, não se coaduna

com o sistema acusatório. Por fim, ressalta o autor a inutilidade prática da suspensão

condicional do processo para o querelante, pois a única vantagem que poderia ter seria a

reparação do dano, que pode ser obtida no âmbito civil com independência das condições da

suspensão condicional do processo, após o que o querelante pode perdoar o acusado, desistir

da ação proposta ou dar causa à perempção. Nega a legitimidade de eventual interesse do

616 GRINOVER, Ada Pellegrini et al., op. cit., pp. 282-3. Também admitindo o cabimento da suspensão condicional do processo nos crimes de iniciativa privada, cf. GOMES, Luiz Flávio, op. cit., pp. 229-30; NICOLITT, André Luiz, op. cit., p. 39; FOLGADO, Antônio Nobre, op. cit., pp. 99-102; LIMA, Flávio Augusto Fontes de, op. cit., pp. 65-73; TOURINHO FILHO, Fernando da Costa, op. cit., 2003, pp. 180-1. 617 KARAM, Maria Lucia, op. cit., pp. 1166-9. Também não admitem a suspensão condicional do processo nos crimes de ação penal privada: JESUS, Damásio E. de, op. cit., p. 120; FIGUEIRA JUNIOR, Joel Dias e LOPES, Mauricio Antonio Ribeiro, op. cit., pp. 379-80; BITENCOURT, Cezar Roberto, op. cit., pp. 146-7. 618 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de, e PRADO, Geraldo, op. cit., pp. 268-70.

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querelante em obter, por meio das condições impostas na suspensão, alguma espécie de

reparação moral, uma vez que não deve ser função do Direito Penal a tutela de tal interesse.

Com efeito, não seria razoável que o Estado legitimasse exclusivamente o ofendido

para postular a condenação do réu, e posteriormente, lhe negasse a possibilidade de perseguir

essa condenação, impondo-lhe a obrigação de propor a suspensão condicional do processo.

Desse modo, concorda-se com os autores e não se considera admissível a suspensão

condicional do processo nos crimes de ação exclusivamente privada. Já nos crimes de ação

privada subsidiária da pública, entende-se não haver dúvida quanto à sua aplicabilidade, tendo

em vista que a ação é originariamente uma ação penal pública.

Sem embargo dos argumentos apontados pela doutrina, com a qual se concorda, a

jurisprudência de nossas Cortes Superiores se firmou no sentido da admissibilidade dos

crimes de ação penal privada.619

3.2.4 Requisitos, homologação e condições para a suspensão

Os requisitos para a concessão da suspensão condicional do processo estão presentes

no caput do art. 89 da Lei n° 9.099/1995, que remete expressamente ao art. 77 do Código

Penal. Além do requisito de pena mínima não superior a um ano, já analisado na seção

anterior, são eles: não estar respondendo a processo criminal; não haver condenação anterior

por crime; e a presença dos demais requisitos previstos no art. 77 do Código Penal.

No que tange ao primeiro requisito, referente à inexistência de processo criminal em

andamento, viu-se no Capítulo 1 que o princípio constitucional da presunção de inocência está

619 Nesse sentido, cf. “Suspensão condicional do processo instaurado mediante ação penal privada: acertada, no caso, a admissibilidade, em tese, da suspensão, a legitimação para propô-la ou nela assentir é do querelante, não do Ministério Público” (STF, HC 81.720-SP, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 26/03/2002); “I – Queixa-crime que imputou ao paciente a prática de delito de concorrência desleal. II – O habeas corpus constitui-se em meio impróprio para a análise de questões que exijam o exame do conjunto fático-probatório – como a aduzida tese negativa de autoria e de ausência de dolo na conduta do paciente –, tendo em vista a incabível dilação que se faria necessária. III – A Lei dos Juizados Especiais incide nos crimes sujeitos a procedimentos especiais, desde que obedecidos os requisitos autorizadores, permitindo a transação e a suspensão condicional do processo

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previsto na Constituição Federal de 1988 (art. 5º, inciso LVII) e que se reveste em regra que

incide diretamente sobre o tratamento processual que deve ser dispensado ao acusado,

exigindo não apenas uma postura negativa (de não considerá-lo culpado), mas também uma

postura positiva (de tratá-lo efetivamente como inocente). Reflete, outrossim, sobre a

atividade probatória, impondo à acusação o ônus de provar todo o alegado. Tais decorrências

do princípio da presunção de inocência visam evitar uma antecipação dos efeitos que

ocorreriam com o reconhecimento de que o acusado cometeu a infração penal imputada antes

da sentença condenatória.620

Desse modo, não é possível admitir que o simples fato de haver processo em curso

contra o acusado seja fato impeditivo para a concessão da suspensão condicional do processo,

pois tal regra está em evidente contradição com a norma constitucional. Somente condenação

transitada em julgado poderia constituir óbice à concessão da suspensão. Geraldo Prado e

Luis Gustavo Gradinetti Castanho de Carvalho esclarecem que o princípio da

proporcionalidade deve ser observado pelo legislador ao realizar suas escolhas, as quais

devem ser justificadas sob a ótica do controle da proporcionalidade de atos legislativos que

impliquem restrições de direitos fundamentais. Isto porque, como se viu no Capítulo 1, um

dos subprincípios extraídos do princípio da proporcionalidade é o da proibição de excessos.

Assim, concorda-se com os autores quando afirmam:

Há de existir relação de adequação entre a suspensão condicional do

processo e o requisito que a viabiliza ou interdita. E, no caso da pendência

de processo criminal não definitivamente julgado, a relação se estabelece

em virtude da suposição de que a pessoa que responde a processo anterior

não é merecedora de uma alternativa legal à prisão, enfoque flagrantemente

inclusive nas ações penais exclusivamente privadas. (...)” (STJ, HC 33.929-SP, rel. Min. Gilson Dipp, j. 19/05/2004). Cf. GRINOVER, Ada Pellegrini et al., op. cit., pp. 285-6. 620 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de, e PRADO, Geraldo, op. cit., p. 278.

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em contradição com a regra de tratamento pessoal que se extrai da

presunção de inocência.621

Contudo, apesar do preceito constitucional, a jurisprudência predominante em nossas

Cortes Superiores tem entendido que a existência de outro processo em curso impede a

concessão da suspensão condicional do processo.622

Tendo sido concedida a suspensão condicional do processo, e tomando conhecimento

o juízo durante o período de prova de que o acusado havia sido condenado por sentença

transitada em julgado em outro processo, ou já era beneficiário de outra suspensão no

momento da concessão, nada obsta que a decisão seja invalidada,623 ou cassada.624

Tratando-se da existência de processo anterior no qual tenha sido concedida

suspensão condicional do processo, discorda-se da posição de Ada Pellegrini Grinover et

al.625 e Luiz Flávio Gomes,626 que afirmam ser possível a suspensão condicional do processo,

ao menos em tese, também no segundo processo, ressaltando que o juiz deverá ser mais

cuidadoso na análise das condições subjetivas do acusado. Em primeiro lugar, entende-se que

a análise das condições subjetivas do acusado tem de ser realizada pelo Ministério Público,

parte legítima para propor a suspensão, e não pelo juiz, em observância ao sistema acusatório.

Em segundo lugar, porque, dessa forma, permitir-se-iam inúmeros e sucessivos casos de

621 Ibidem. Também consideram a regra inconstitucional: GRINOVER, Ada Pellegrini et al., op. cit., p. 306; TOURINHO FILHO, Fernando da Costa, op. cit., 2003, p. 175; FIGUEIRA JUNIOR, Joel Dias e LOPES, Mauricio Antonio Ribeiro, op. cit., p. 391. 622 Nesse sentido, cf. STF, HC 73.793-5, rel. Min. Maurício Correa, DJU de 20/09/1996, p. 34.536; RHC 5571-RS, STJ, rel. Min. Edson Vidigal, DJU de 25/11/4996, p. 46.212; STF, HC 83.725-SC, rel. Min. Marco Aurélio, j. 20/04/2004, cf. GRINOVER, Ada Pellegrini et al., op. cit., p. 307. Também consideram legítima a regra que impede a suspensão a acusado que responde a outro processo: BITENCOURT, Cezar Roberto, op. cit., pp. 143-4; BATISTA, Weber Martins e FUX, Luiz, op. cit., p. 370, embora Weber Martins Batista reconheça que a princípio chegou a entender que a regra era inconstitucional, revendo posteriormente essa posição. 623 Nesse sentido, e fundamentada a invalidação no princípio da lealdade processual: CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de, e PRADO, Geraldo, op. cit., p. 280. 624 GRINOVER, Ada Pellegrini et al., op. cit., pp. 304 e 307. 625 Idem, pp. 306-7. 626 GOMES, Luiz Flávio, op. cit., p. 289.

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suspensão, desde que todos os delitos possuíssem pena mínima cominada igual ou inferior a

um ano, como alertam Geraldo Prado e Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho.627

O segundo requisito consiste na inexistência de condenação anterior por crime. Cabe

ressaltar que aqui, para a validade da norma, faz-se necessário que a condenação, para impedir

a concessão, deverá estar transitada em julgado. Ademais, não é razoável o entendimento de

que qualquer condenação anterior, ainda que já não possa ser considerada para efeito de

reincidência, seja óbice à suspensão condicional do processo. Concorda-se com Ada

Pellegrini Grinover et al.,628 quando propõem a aplicação analógica do art. 64, inciso I, do

Código Penal, devendo ser observado o limite de cinco anos para que a condenação anterior

por crime possa impedir a concessão da suspensão.

Também não obsta a suspensão condicional do processo a condenação anterior por

contravenção penal,629 uma vez que o dispositivo legal se refere tão-somente a “crimes”, e em

observância ao princípio da legalidade.

No que tange à condenação por multa, ainda que por outro crime, alertam Ada

Pellegrini Grinover et al.630 que devem ser aplicadas à suspensão condicional do processo,

subsidiariamente, as regras do Código Penal e do Código de Processo Penal, em virtude do

que dispõe o art. 92 da Lei nº 9.099/1995, no que não forem, com esta, incompatíveis. Assim,

aplicando-se a regra do art. 77, § 1º, do Código Penal, que estabelece que as condenações à

pena de multa não serão impeditivas para a concessão do sursis, conclui-se que também não o

627 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de e PRADO, Geraldo, op. cit., p. 279. 628 GRINOVER, Ada Pellegrini et al., op. cit., p. 308. Também sustenta a aplicação da regra BITENCOURT, Cezar Roberto, op. cit., pp. 143-5. 629 Nesse sentido, cf. BITENCOURT, Cezar Roberto, op. cit., p. 144; TOURINHO FILHO, Fernando da Costa, op. cit., 2003, p. 175. 630 GRINOVER, Ada Pellegrini et al., op. cit., p. 309. Também nesse sentido: TOURINHO FILHO, Fernando da Costa, op. cit., 2003, p. 176.

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serão para a concessão da suspensão.631 A regra também se aplica à reincidência em crime

doloso, quando a condenação for somente à pena de multa.

O terceiro requisito, como já apontado, refere-se ao art. 77 do Código Penal, que

estabelece os requisitos para a suspensão condicional da pena. O inciso I do dispositivo

impede o benefício quando o acusado for reincidente em crime doloso. Como já se apontou,

de acordo com a regra do § 1º do referido art. 77 do Código Penal, a reincidência em crime

doloso que tenha ensejado condenação apenas à pena de multa não constituirá óbice à

suspensão condicional do processo.

O art. 77, inciso II, do Código Penal se assemelha ao art. 59 daquela norma, que trata

das circunstâncias judiciais. Cezar Roberto Bitencourt se refere ao requisito como “prognose

de não voltar a delinqüir”632 e aponta que os elementos definidores da medida da pena –

culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade do réu, motivos e circunstâncias do

crime – irão servir de critério determinante da conveniência ou não da suspensão do processo.

O autor acaba por reconhecer que tais elementos possuem uma função delicada: a de subsidiar

um juízo de probabilidade sobre a futura conduta do acusado:

Esses elementos têm a delicada função de subsidiar a previsão da conduta

futura do condenado [sic], que, se for favorável, isto é, de que

provavelmente não voltará a delinqüir, autorizará a suspensão condicional

do processo, mediante o cumprimento de determinadas condições. Se, ao

contrário, essas condições demonstrarem que provavelmente voltará a

praticar infrações penais, a tramitação do processo não deverá ser

suspensa.633

631 Cf. jurisprudência do STJ nesse sentido: “Não obsta a suspensão condicional do processo a condenação anterior, por contravenção penal, de que resultou exclusivamente pena de multa” (STJ, RHC, 7.878-RJ, rel. Min. Anselmo Santiago, DJU de 14/12/1998, p. 304), GRINOVER, Ada Pellegrini et al., op. cit., p. 309. 632 BITENCOURT, Cezar Roberto, op. cit., p. 150. 633 Ibidem.

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Trata-se, como afirmam Geraldo Prado e Luis Gustavo Grandinetti Castanho de

Carvalho, de “um juízo provisório e antecipado da culpabilidade do processado, juízo a rigor

equivalente ao da justa causa para a propositura da ação penal”.634 É necessário, portanto, que

seja realizado com cautela por parte do órgão julgador, a fim de evitar injustiças, e

observando as informações disponíveis nos autos de investigação. Isto porque, no sursis, o

acusado já foi definitivamente condenado após processo cognitivo com atividade probatória

desenvolvida sob o contraditório, no qual lhe deverão ter sido assegurados todos os meios e

recursos necessários à sua defesa da forma mais ampla. Os elementos fáticos trazidos aos

autos, que servirão de critérios para a análise das circunstâncias judiciais, certamente superam

em muito, tanto em quantidade quanto em qualidade, os elementos disponíveis na

investigação, desenvolvida inquisitoriamente, e suficientes apenas para a propositura da ação

penal.635

Por isso mesmo, deve-se ter especial atenção ao significado dos maus antecedentes

criminais, que, como ressaltam Ada Pellegrini Grinover et al.,636 só estarão configurados

quando houver condenação irrecorrível precedente, que não é apta a gerar reincidência (ou

seja, de cinco anos para trás).

O art. 77, inciso III, do Código Penal não é passível de aplicação à suspensão

condicional do processo, uma vez que prevê que será concedido o sursis quando não seja

indicada ou cabível a substituição prevista no art. 44 do Código Penal (que trata das penas

restritivas de direito). É que, como registra Cezar Roberto Bitencourt,637 no Direito brasileiro,

as penas restritivas de direito são admitidas como mais benéficas do que o sursis, o que

evidentemente não se pode dizer em relação à suspensão condicional do processo. Nesta, ao

634 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de e PRADO, Geraldo, op. cit., p. 281. 635 Trata-se de um juízo fundado em probabilidade, que, como tal, pode conduzir a profundas injustiças, conforme aponta GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Direito à prova no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, pp. 47-52. 636 GRINOVER, Ada Pellegrini et al., op. cit., p. 305. Nesse sentido, a jurisprudência do STF: Informativo STF 234, HC, rel. Ellen Gracie, 25 a 29/06/2001.

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menos formalmente, não há a aplicação de pena alguma, e as condições obrigatórias são mais

favoráveis do que as condições do sursis, não repercutindo sobre a primariedade do acusado.

Por isso, assim como o autor, considera-se que o requisito previsto no art. 77, inciso III, do

Código Penal é incompatível com a suspensão condicional do processo.638

A decisão que homologa a suspensão condicional do processo está prevista no art.

89, § 1º, da Lei n° 9.099/1995, e tem natureza de decisão interlocutória, visto que não põe fim

ao processo. Para Ada Pellegrini Grinover et al., o recurso cabível será o de apelação,

aplicando-se o art. 593, inciso II, do Código de Processo Penal, tendo em vista tratar-se de

decisão interlocutória não prevista no art. 581 do Código de Processo Penal, alegando tais

autores que a decisão tem força de definitiva, por suspender o processo.639 Ressaltam, ainda,

que, em caso de indeferimento da suspensão, o recurso cabível será o de Habeas Corpus

dirigido ao Tribunal competente.640 Contudo, não se concorda aqui com tal entendimento,

pois, como ficou consignado ao se tratar da natureza jurídica da suspensão condicional do

processo, entende-se, assim como Geraldo Prado, que o instituto não suspende o processo,

mas apenas altera o curso do procedimento, modificando os atos que serão praticados pelas

partes.641 Dessa forma, o recurso cabível, por uma interpretação analógica, é o recurso em

sentido estrito, por se tratar de meio destinado à impugnação das decisões interlocutórias.642

637 BITENCOURT, Cezar Roberto, op. cit., pp. 148-9. 638 Também nesse sentido, cf. GRINOVER, Ada Pellegrini et al., op. cit., p. 304; CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de e PRADO, Geraldo, op. cit., p. 282. 639 GRINOVER, Ada Pellegrini et al., op. cit., pp. 339-40. A jurisprudência do STJ é nesse sentido: cf. STJ, HC 163.77-SP, rel. Min. Hamilton Carvalhido, DJU de 04/02/2002, p. 561, j. 20/09/2001. Também o STF: “em face do princípio da fungibilidade, não é suscetível de causar prejuízo ao paciente a controvérsia acerca do cabimento, na espécie, de correição parcial ou de apelação” (STF, HC 76.437-1. rel. Min. Octavio Galloti, DJU de 21/08/1998, p. 4). 640 Idem, p. 340. Também nesse sentido: JESUS, Damásio E. de, op. cit., p. 143; FIGUEIRA JUNIOR, Joel Dias e LOPES, Mauricio Antonio Ribeiro, op. cit., p. 394. Contra, e considerando que na hipótese de indeferimento o recurso cabível seria a correição parcial, cf. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa, op. cit., 2003, pp. 188-9. 641 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de e PRADO, Geraldo, op. cit., pp. 287-8. Cumpre ressaltar que adotou-se, como foi dito, a noção de processo apresentada por Afrânio Silva Jardim, que ao distingui-lo do procedimento, afirma que este é “uma coordenação sucessiva de atos que exteriorizam o processo”, e esclarece: “o processo cria uma relação entre as pessoas (autor, juiz, réu), enquanto o procedimento é uma mera relação entre atos”. Cf. JARDIM, Afrânio Silva, op. cit., p. 27. 642 Também nesse sentido cf. BATISTA, Weber Martins e FUX, Luiz, op. cit., p. 388.

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O momento adequado para a propositura da suspensão condicional é o do

oferecimento da denúncia, muito embora a redação do art. 89, § 1º, da Lei n° 9.099/1995 leve

a crer que a aceitação da proposta ocorrerá em momento anterior ao recebimento da denúncia.

Desse modo, o juízo de admissibilidade da denúncia é pressuposto necessário da designação

de audiência para a proposta de suspensão condicional do processo. Caso o juiz constate

desde logo que a denúncia não apresenta justa causa643 para a propositura da ação penal,

deverá rejeitá-la de plano, sem sequer marcar audiência de suspensão.644

Embora normalmente a propositura da suspensão condicional do processo deva

ocorrer no momento do oferecimento da denúncia,645 nada obsta que ela possa e até deva se

dar durante o curso do processo. Isso ocorrerá nas hipóteses de desclassificação para delito

sujeito à suspensão, o que pode acontecer como previsto no art. 384 do Código de Processo

Penal. Nesse caso, o juiz deverá ouvir obrigatoriamente o Ministério Público sobre a proposta,

o que também se dará nas ações penais originárias, com processo iniciado diretamente no

Tribunal.646

Nesse sentido, posiciona-se a jurisprudência de nossas Cortes Superiores, conforme

se verifica nos excertos a seguir:

Informativo 332 do STF (RE-190313):

643 Sobre as diversas concepções da justa causa na doutrina e na jurisprudência, e propondo uma definição da justa causa em consonância com os preceitos constitucionais, cf. CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho et al. Justa causa penal constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. 644 Nesse sentido: CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de e PRADO, Geraldo, op. cit., pp. 273-4; GRINOVER, Ada Pellegrini et al., op. cit., p. 336. Também a jurisprudência: STF: Suspensão condicional do processo e recebimento ou não da denúncia. 1. O recebimento ou não da denúncia deve preceder a audiência do réu e à deliberação judicial sobre a suspensão condicional do processo, que ficará prejudicada se rejeitada a inicial acusatória. 2. Não cabe cogitar de suspensão condicional do processo, antes da instauração deste, que só ocorre com o recebimento da denúncia” (STF, HC 81.968-SP, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 18/06/2002); STJ: “A apreciação da suspensão condicional do processo é, nos termos da lei, precedida pelo recebimento da exordial acusatória” (STJ, RHC 7.059-SP, rel. Min Felix Fischer, DJU de 23/03/1998). 645 Pois como ressaltam Geraldo Prado e Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho, “trata-se de exercício de ação penal que comporta dois pedidos alternativos – de suspensão e de condenação –, o primeiro deles depende da aceitação do acusado para que possa ser homologado pelo Juiz, impedindo a princípio o julgamento do segundo”. Cf. CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de e PRADO, Geraldo, op. cit., p. 271. 646 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de e PRADO, Geraldo, op. cit., pp. 271-2.

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Reunidos os requisitos objetivos à admissibilidade da suspensão condicional

do processo, ainda que após a prolação da sentença monocrática, deve o juiz

instar o Ministério Público para que se pronuncie a respeito. Com base nesse

entendimento, e tendo em conta, ainda, a orientação firmada no Enunciado

696 da Súmula, a Turma deu provimento a recurso ordinário em habeas

corpus para – interposto em favor de denunciado pela prática dos crimes

previstos nos arts. 343, parágrafo único, e 344 do CP, que, absolvido em

primeira instância, fora condenado em segundo grau apenas com relação ao

primeiro delito – cassar acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio

Grande do Sul que, embora cominando pena mínima inferior a um ano,

entendera inviável a concessão do citado benefício após a prolação de

sentença. Considerou-se que a vedação decorrente da denúncia deixou de

existir com a confirmação da absolvição, quanto a um dos delitos, em

segundo grau de jurisdição, tornando possível, assim, a suspensão

processual prevista no art. 89 da Lei n. 9.099/1995. Precedente citado: HC

75984/SP (DJU de 23/08/2002). RHC 83771/RS, rel. Min. Sepúlveda

Pertence, 02/12/2003 (RHC-83771).

STJ:

Ementa: Recurso Especial. Suspensão condicional do processo. Art. 89 da

Lei n. 9.099/1995. Oferecimento da Proposta após a desclassificação do

crime ocorrida em sede de apelação. Possibilidade. Precedentes. Recurso

desprovido. (Resp 733590/SP, 5ª Turma, rel. Min. José Arnaldo da Fonseca,

j. 08/11/2005, DJ 05/12/2005, p. 373).

Ementa: Processual penal. Habeas Corpus. Art. 121, § 3º, do Código Penal.

Reconhecimento ex officio de nulidade em desfavor do réu em recurso

exclusivamente defensivo. Ausência de possibilidade de proposta de sursis

processual. Constrangimento ilegal configurado. I – “É nula a decisão do

Tribunal que acolhe, contra o réu, nulidade não argüida no recurso da

acusação, ressalvados os casos de recurso de ofício” (Súmula 160 do

Pretório Excelso). II – Operada a desclassificação de homicídio simples para

homicídio culposo pelo Conselho de Sentença, e uma vez presentes os

requisitos legais, deve ser concedida ao Ministério Público oportunidade

para propor o sursis processual (Precedentes do STJ e do Pretório Excelso).

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Ordem concedida (HC 44160/PA, 5ª Turma, rel. Min. Felix Fischer, j.

20/10/2005, DJ 12/12/2005, p. 403).

As condições da suspensão condicional do processo estão previstas no art. 89, §§ 1º e

2º, da Lei n° 9.099/1995. O § 1º estabelece como condições: I – a reparação do dano, salvo

impossibilidade de fazê-lo; II – a proibição de freqüentar determinados lugares; III – a

proibição de ausentar-se da comarca onde reside, sem autorização do juiz; e IV – o

comparecimento pessoal e obrigatório a juízo, mensalmente, para informar e justificar suas

atividades.

As condições não são consideradas formalmente como pena criminal, que só pode

ser imposta depois de um processo no qual sejam asseguradas todas as garantias

constitucionais, apontadas no Capítulo 1.647

No que tange às condições previstas no § 1º, aponta-se que seriam as condições

legais, e de imposição obrigatória, pois que estão previstas expressamente na norma.648 Maria

Lúcia Karam ressalta que “o juiz estará autorizado a se afastar dos estritos limites dados pelas

definições vindas nas regras do § 1º do art. 89 da Lei n° 9.099/1995 somente nas hipóteses em

que aquelas definições se mostrarem inadequadas à situação do réu”.649

647 Idem, p. 284. 648 Nesse sentido, cf. BITENCOURT, Cezar Roberto, op. cit., p. 152. Ressalva o autor que, apesar de se falar em obrigatória, não é necessário que todas sejam aplicadas conjuntamente, nem que tenham de ser aplicadas juntamente com as previstas no parágrafo 2º, embora acabe por reconhecer que a imposição de pelo menos uma das condições do parágrafo 1º é obrigatória (cf. pp. 154-5). 649 KARAM, Maria Lucia, op. cit., p. 177. A autora aponta, como exemplo de hipótese de flexibilização, a proibição de se ausentar da Comarca de residência, que poderá ser dispensada nos casos de acusado que tenha de se deslocar com freqüência para outra Comarca ou por Comarcas contíguas. Admitindo de forma mais ampla a flexibilização das condições, cf. GRINOVER, Ada Pellegrini et al., op. cit., pp. 350-1. Também a jurisprudência do STF admite a flexibilização das condições: Inquérito 641-6, rel. Min. Marco Aurélio, DJU de 05/06/1998. No TJ do Estado do RJ: “Crime falimentar. Suspensão condicional do processo. Cumprimento da condição imposta no sursis processual. Extinção da punibilidade. Recurso do Ministério Público objetivando a cassação da sentença, pois ainda não adimplida a obrigação de comparecimento mensal e obrigatório pelo prazo de 2 anos. Tendo o apelado cumprido a única condição imposta na suspensão condicional do processo, correta a decisão que extingue a punibilidade, não sendo necessário aguardar o transcurso do prazo do período de prova se não acordado expressamente na proposta. Recurso improvido”. (Apelação Criminal n. 2005.050.05299, 8ª Câmara Criminal, rel. Des. Marcus Quaresma Ferraz, j. 01/12/2005.)

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Geraldo Prado e Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho, a seu turno,

registram que o recurso às condições previstas no art. 89, § 1º, mencionado, deve ser

cauteloso, especialmente no que se refere à reparação do dano. Lembram que a obrigação de

reparar o dano vai depender das condições concretas do acusado de fazê-lo, pois, de outro

modo, estar-se-ia antecipando indevidamente um dos efeitos da condenação, previsto no art.

91, inciso I, do Código Penal, e que ela deve incidir quando o delito seja de dano, e este tenha

se verificado efetivamente.650

No que respeita à proibição de freqüentar determinados lugares, os autores apontam

que essa condição “resvala na inconstitucionalidade, porquanto se traduz em limitação ao

direito de ir e vir”.651 Assim, para que seja considerada constitucional, é preciso que se

indiquem claramente os lugares cuja freqüência é vedada, devendo a restrição estar fundada

no caráter preventivo e em consonância com o princípio da proporcionalidade.

Já as condições previstas no art. 89, § 2º, da Lei n° 9.099/1995 – dispositivo que

estabelece que “o juiz poderá especificar outras condições a que fica subordinada a suspensão,

desde que adequadas ao fato e à situação pessoal do acusado” – são chamadas de judiciais e

de imposição facultativa.652 A regra repete a disposição prevista no art. 79 do Código Penal,

que se refere à suspensão condicional da pena, e, como aponta Maria Lúcia Karam, é

manifestamente incompatível com o princípio da legalidade:

Admitir que, ao alvedrio do juiz, possam ser impostas condições, ditas

“judiciais, indefinidas, não previstas em lei”, a que o réu deva se submeter

para que seja suspenso o processo ou a execução da pena privativa de

liberdade – condições que, a toda evidência, importem em restrições de

liberdade –, é desconsiderar que ninguém poderá ter tolhida sua liberdade de

ação sem que a lei taxativamente preveja não só a restrição a esta liberdade

650 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de e PRADO, Geraldo, op. cit., p. 285. 651 Ibidem. 652 BITENCOURT, Cezar Roberto, op. cit., p. 154.

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de ação (e, assim, a qualquer direito), mas ainda os limites em que esta

restrição se dará.653

Faz-se necessário advertir, assim como o fez a autora, que este não é o entendimento

predominante na doutrina. Entretanto, vários autores registram o cuidado que o juiz deverá ter

ao fixar as condições judiciais, exigindo-se que elas guardem relação com as circunstâncias de

fato que supostamente envolveram a infração penal e, sobretudo, que respeitem a dignidade

humana do acusado e as demais garantias previstas na Constituição Federal.654

Por fim, no que tange às condições, cumpre assinalar que o juízo processante será o

responsável por sua fiscalização, uma vez que a Vara de Execuções Penais só possui

competência após o trânsito em julgado da sentença, conforme estabelecem os arts. 105, 147 e

outros da Lei n° 7.210/1984 (Lei de Execução Penal).655 Outro não poderia ser o

entendimento, ante o silêncio da Lei n° 9.099/1995, até porque não existe sentença de mérito

e, ao menos formalmente, pena criminal aplicada.

3.2.5 Prazo da suspensão, revogação obrigatória e facultativa

O prazo da suspensão condicional do processo está previsto no caput do art. 89 da

Lei n° 9.099/1995, que o fixou entre dois e quatro anos. Quando se tratou do âmbito de

653 KARAM, Maria Lucia, op. cit., p. 177. 654 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de e PRADO, Geraldo, op. cit., p. 286. Os autores ressaltam também que ela não pode ser equivalente a uma sanção penal, motivo pelo qual não admitem como condição legítima o fornecimento de cestas básicas. Também alertando sobre os cuidados que deve ter o órgão julgador na imposição das condições judiciais, cf. BITENCOURT, Cezar Roberto, op. cit., p. 155; JESUS, Damásio E. de, op. cit., pp. 139-40; FIGUEIRA JUNIOR, Joel Dias e LOPES, Mauricio Antonio Ribeiro, op. cit., pp. 395-6, este último registrando a ilegitimidade, a inadequação, a insuficiência de várias condições impostas para a suspensão condicional da pena, encontradas na jurisprudência. 655 GRINOVER, Ada Pellegrini et al., op. cit., p. 357. Em sentido contrário, Cézar Roberto Bitencourt sustenta que a fiscalização ficaria a cargo da Vara de Execuções Penais, ou de outros órgãos sociais aos quais fosse destinada a fiscalização. Cf. BITENCOURT, Cezar Roberto, op. cit., p. 155. STJ Ementa: Criminal. HC. Execução. Crime contra a ordem econômica. Suspensão condicional do processo. Condições impostas pelo magistrado da causa. Modificação pela Vara de Execução. Incompetência do juízo. Atribuição de fiscalizar o cumprimento das condições. Majoração dos gravames impostos. Inovações. Impossibilidade. Constrangimento ilegal evidenciado. Ordem concedida. (STJ, HC 43366/PE, 5ª Turma, rel. Min. Gilson Dipp, j. 06/12/2005, DJ 19/12/2005, p. 449); “A competência para a fiscalização é do juízo do beneficiário (Conflito de Competência 17.826-RJ, rel. Luiz Vicente Cernicchiaro, DJU de 08/06/1998, p. 10).

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admissibilidade do instituto, sustentou-se sua aplicação também nas hipóteses de

contravenção penal. Assim, é coerente sustentar a aplicação analógica da regra contida no art.

11 do Decreto-lei n° 3.688/1941 (Lei de Contravenções Penais), estabelecendo um período de

prova de um a três anos, conforme o referido dispositivo fixou para a aplicação do sursis nas

condenações por contravenção penal.656

As causas de revogação da suspensão condicional do processo estão previstas no art.

89, §§ 3º e 4º, da Lei nº 9.099/1995, dizendo-se que as previstas no primeiro dispositivo são

causas de revogação obrigatória, ao passo que as constam no segundo seriam causas de

revogação facultativa.657

O art. 89, § 3º, acima apontado, estabelece que “a suspensão será revogada se, no

curso do processo, o beneficiário vier a ser processado por outro crime ou não efetuar, sem

motivo justificado, a reparação do dano”. No que tange ao fato de o acusado vir a ser

processado por outro crime, como já se assinalou ao tratar dos requisitos para a suspensão,

entende-se tratar de norma inconstitucional, visto que ofende o princípio da presunção de

inocência. Somente a condenação transitada em julgado seria causa apta para a revogação da

suspensão concedida.658 Quanto à reparação do dano, também já se assinalou que ela só seria

cabível nos delitos de dano nos quais ele tenha efetivamente se configurado, seguindo a

posição de Geraldo Prado e Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho.659 Nessa última

hipótese, diante da alegação do acusado de impossibilidade de fazê-lo, caberá à acusação

comprovar o contrário, tendo em vista que as regras sobre o ônus da prova, que decorrem do

656 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de e PRADO, Geraldo, op. cit., p. 282. 656 Idem, p. 282. 657 GOMES, Luiz Flávio, op. cit., pp. 340-1. 658 Contudo, esse não tem sido o entendimento do STJ: “Não é inconstitucional a revogação do benefício em razão do surgimento de outro processo” (STJ, HC 11.698-RS, rel. José Arnaldo da Fonseca, DJU de 23/02/2000, p. 150). 659 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de e PRADO, Geraldo, op. cit., p. 285. Discorda-se, portanto, de Ada Pellegrini et al., que defendem a reparação do dano como condição para a declaração da extinção da punibilidade em todos os delitos, salvo nos casos de impossibilidade de fazê-lo o acusado, que deverá comprová-lo (cf. op. cit, pp. 359-61).

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princípio da presunção de inocência, aplicam-se não só no processo penal tradicional, como

também na suspensão condicional do processo, como ressaltam os autores.660

Deve-se ressaltar ainda, no que tange às causas ditas obrigatórias, que, embora

obrigatória, a revogação não deve ser automática,661 ou seja, deve ser submetida ao

contraditório, sendo imperativo ouvir o acusado, e a decisão no sentido da revogação deve

estar devidamente fundamentada, atendendo à garantia da motivação das decisões judiciais,

estudada no Capítulo 1, e prevista no art. 93, inciso IX, da Constituição Federal.

As causas facultativas constam no art. 89, § 4º, da Lei n° 9.099/1995, que dispõe: “a

suspensão poderá ser revogada se o acusado vier a ser processado no curso do prazo por

contravenção, ou descumprir qualquer outra condição imposta”. No que se refere à primeira

causa, aplicam-se inteiramente os comentários dispensados à hipótese de o acusado que vem

ser processado por outro crime e isso constituir causa obrigatória de revogação, ou seja,

somente a condenação definitiva por contravenção penal poderá ser avaliada pelo juiz como

causa facultativa para a revogação da suspensão. Observe-se – conforme se sustentou ao tratar

dos requisitos para a suspensão – que a condenação anterior por contravenção à pena de multa

não poderá ser óbice à concessão do benefício, por aplicação analógica do art. 77, § 1º, do

Código Penal, e também não permite que ela possa ser considerada como causa facultativa

para a revogação da suspensão condicional do processo.662

No que toca à segunda causa, que diz respeito ao descumprimento de qualquer outra

condição imposta, cumpre ressaltar que também deverão ser observadas as regras referentes

660 Idem, p. 286. 661 Nesse sentido, cf. Maurício Antônio Ribeiro Lopes, que assinala a necessidade de pronunciamento judicial a respeito, devidamente fundamentado, e sujeito ao contraditório. Cf. FIGUEIRA JUNIOR, Joel Dias e LOPES, Mauricio Antonio Ribeiro, op. cit., pp. 396-7. Também assim já se pronunciou o STJ: “Ementa: Penal. Recurso Especial. Crime de Apropriação Indébita. Suspensão condicional do processo. Necessidade de cumprimento integral dos compromissos assumidos para a extinção da punibilidade. Decurso do período do prova sem revogação expressa. Irrelevância. A revogação deve orientar-se pelos princípios da ampla defesa e do contraditório. Recurso provido” (STJ, Resp. 736845/RS, 5ª Turma, rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 20/10/2005, DJ 05/12/2005, p. 373). 662 GRINOVER, Ada Pellegrini et al., op. cit., pp. 361-2.

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ao contraditório e à motivação, conforme se ressaltou quando apontado que a revogação

obrigatória não é automática.

3.2.6 Efeitos do decurso de prazo de suspensão sem revogação

O art. 89, § 5º, da Lei n° 9.099/1995 estabelece as conseqüências da fruição do

período de prova sem que tenha ocorrido a revogação: “Expirado o prazo sem revogação, o

juiz declarará extinta a punibilidade”. A leitura do dispositivo permite afirmar que a sentença

que reconhecer a extinção da punibilidade é meramente declaratória, visto que ela ocorrerá

tão-somente com o decurso do lapso temporal estabelecido como período de prova, sem

revogação.663 E, ocorrendo seu trânsito em julgado, reveste-se da natureza de coisa julgada

material, vedando que o acusado venha a ser novamente processado pelo crime que foi objeto

da suspensão.

Admitindo-se que a sentença é meramente declaratória, não se mostra possível que,

chegando ao conhecimento do juízo circunstância que possa ensejar a revogação da

suspensão, após o decurso do período de prova, possa ser ela revogada, mesmo que ainda não

tenha sido proferida a sentença declaratória.664 O não-conhecimento de causa ensejadora da

revogação não se terá dado por culpa do acusado e, se o aparelho estatal não foi capaz de

trazê-la aos autos durante o período de prova, mesmo com todos os recursos disponíveis, não

há outra medida legítima, a não ser declarar extinta a punibilidade.

663 Nesse sentido, cf. GRINOVER, Ada Pellegrini et al., op. cit., p. 369; CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de e PRADO, Geraldo, op. cit., p. 288. Também a jurisprudência reconhece a natureza declaratória da sentença que extingue a punibilidade na suspensão condicional do processo: “A sentença que extingue a punibilidade, após o período de suspensão do processo, sem que ocorra sua expressa revogação, tem natureza meramente declaratória e, pois, simplesmente reconhece o fato jurídico da extinção no prazo final do sursis processual (art. 89, § 5º, da Lei n. 9.099/1995: “expirado o prazo sem revogação, o juiz declarará extinta a punibilidade”)” (STJ, Resp. 447.783-PB, rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, j. 14/09/2004). Maria Lúcia Karam, contudo, sustenta que a sentença não extingue a punibilidade, mas sim o processo, pois entende que a conduta do acusado já teria sido punida pelo cumprimento das condições estabelecidas na suspensão. Afirma que: “Embora, repita-se, formalmente não se possa falar em punição, ou seja, em formal aplicação de uma pena, a reação estatal à alegada prática da infração penal, na realidade, antecipadamente se concretizou, com as restrições de liberdade sofridas pelo réu, conducentes à satisfação da pretensão punitiva”. Cf. KARAM, Maria Lucia, op. cit., p. 179. 664 Nesse sentido, cf. BATISTA, Weber Martins e FUX, Luiz, op. cit., p. 411; GRINOVER, Ada Pellegrini et al., op. cit., pp. 363-5; KARAM, Maria Lucia, op. cit., pp. 180-3.

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Nesse sentido, Maria Lúcia Karam ressalta que os princípios inerentes ao Estado

Democrático de Direito ditam a prevalência da tutela da liberdade sobre o poder de punir e,

por isso, exigem uma interpretação estrita e rigorosa de quaisquer disposições repressivas,

“vedando interpretação que, acrescentando expressões não constantes do texto legal para

dilatar-lhe o alcance, acarrete prejuízo à situação jurídica do indivíduo que figure como réu

em ação penal”.665 Contudo, esse não tem sido o entendimento de nossas Cortes Superiores,

que admitem a revogação mesmo após o término do período de prova.666

O § 6º do art. 89 da Lei n° 9.099/1995 estabelece que não flui prazo prescricional

durante o período de suspensão do processo. Entende que a decisão que homologa a

suspensão condicional do processo é causa de suspensão da prescrição.667 Assim, ocorrendo a

revogação da suspensão, o prazo volta a correr normalmente. Repise-se que, na hipótese de

revogação, assim como na de não-aceitação da proposta, o processo prosseguirá em seus

ulteriores termos, com atividade probatória, até a fase de julgamento, conforme estabelece o

art. 89, § 7º, da Lei n° 9.099/1995.

665 KARAM, Maria Lucia, op. cit., p. 183. 666 Cf. STF: “A suspensão condicional do processo pode ser revogada, mesmo após o termo final do seu prazo, e antes que tenha sido proferida a sentença extintiva da punibilidade, se constatado o não-cumprimento de condição imposta durante o curso do benefício. Com base nesse entendimento, ao retornar o julgamento sobrestado em 19/10/2004 – v. informativo 366, a Turma indeferiu habeas corpus em que se pretendia fosse declarada a extinção da punibilidade em processo no qual a suspensão condicional, anteriormente concedida, fora revogada, após ultrapassado o período de prova, com base no § 3º do art. 89 da Lei n° 9.099/95, em razão de o paciente estar sendo processado por outro crime no curso do prazo do sursis. Ressaltou-se descaber cogitar de prorrogação do período de prova, tendo em conta não ser a regra do art. 81, § 2º, do CP, extensível, analogicamente, a ponto de se alcançar situação que possui regência especial (Lei n° 9.099/95, art. 89), até porque, no primeiro caso, tem-se pena em execução. HC 84746/SP, rel. Min. Marco Aurélio, 04/10/2005. (Informativo 404 do STF – HC 84746, Título: Revogação de “Sursis”. Período de prova. Extinção da Punibilidade – 2). STJ: “A suspensão condicional do processo pode ser revogada, mesmo após o termo final de seu prazo, se constatado o não-cumprimento de condição imposta durante o curso do benefício, desde que não tenha sido proferida a sentença extintiva da punibilidade (Precedentes do Pretório Excelso e do STJ)” (TSJ, Resp. 515.081-SP, rel. Min. Felix Fischer, j. 05/08/2004). 667 Nesse sentido, cf. JESUS, Damásio E. de, op. cit., p. 143; BITENCOURT, Cezar Roberto, op. cit., p. 159; LIMA, Flávio Augusto Fontes de, op. cit., pp. 119-20. Em sentido contrário, e considerando a decisão que

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3.2.7 Ampliação da definição de delitos de menor potencial ofensivo e os efeitos sobre a

suspensão condicional do processo

A Lei n° 9.099/1995 criou os Juizados Especiais Criminais e estabeleceu o conceito

de infrações de menor potencial ofensivo em seu art. 61,668 considerando como tais as

contravenções penais e os crimes cuja pena máxima não ultrapassasse o limite de um ano,

excetuando de tal definição aqueles para os quais a lei previsse procedimento especial.

Com a criação dos Juizados Especiais Criminais Federais, pela Lei n° 10.259/2001,

houve nova definição das infrações de menor potencial ofensivo. Seu art. 2º669 passava a

considerar como sendo de tais espécies os crimes a que a lei cominasse pena máxima não

superior a dois anos, ou multa, nada dispondo acerca do procedimento especial.

A doutrina se dividiu em relação ao tema, apontando Luiz Gustavo Grandinetti

Castanho de Carvalho e Geraldo Prado as três correntes que se firmaram.670 A primeira

defende que os conceitos são independentes e se destinam a juizados distintos. A segunda, de

que a definição da Lei n° 10.259/2001 prevalece no que tange ao tempo da pena, mas convive

com a exclusão dos crimes para os quais estiver previsto procedimento especial, por não ser

incompatível tal restrição. E uma terceira corrente entende que prevalecem as disposições da

Lei n° 10.259/2001, por ser norma posterior e tendo em conta o princípio da isonomia.

Os autores se filiam a esta última corrente, ressaltando que o sistema do Direito

Penal e Processual Penal é construído pela valoração de condutas realizada de modo prévio e

abstrato pelo legislador, que o faz por meio da cominação abstrata de penas. A partir de tal

cominação, é possível identificar as infrações graves mediante a imposição de sanções graves,

homologa a suspensão como causa interruptiva da prescrição, cf. FIGUEIRA JUNIOR, Joel Dias e LOPES, Mauricio Antonio Ribeiro, op. cit., p. 398; BATISTA, Weber Martins e FUX, Luiz, op. cit., pp. 408-9. 668 O art. 61 da Lei n° 9.099/1995 dispõe: “Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 1 (um) ano, excetuados os casos em que a lei preveja procedimento especial”. 669 O art. 2º da Lei n° 10.259/2001 dispõe: “Compete ao Juizado Especial Federal Criminal processar e julgar os feitos de competência da Justiça Federal relativos à infração de menor potencial ofensivo. Parágrafo único. Consideram-se infrações de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, ou multa”.

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e as menos graves, que ensejarão as sanções mais ou menos severas. Afirmam que depende

dessa construção o regime mais ou menos liberal para a prisão ou a liberdade provisória, o

procedimento mais ou menos simples, e a pena privativa de liberdade mais ou menos severa a

ser aplicada. Concluem, então, que crimes idênticos com o mesmo tipo e a mesma sanção não

poderão receber tratamentos diferenciados, com soluções diferenciadas. Além disso, alegam

que a Constituição não previu conceitos diferenciados para a infração de menor potencial

ofensivo, não sendo razoável fazê-lo.671

Concorda-se com os autores, sendo importante enfatizar o ponto central apontado por

eles, com esteio em Aníbal Bruno, de que todo o sistema do direito punitivo se move em torno

do crime e da pena, esta última utilizada inclusive como critério diferenciador dos crimes de

grande, média e pequena gravidade, ou, como preferiu o legislador, de pequeno potencial

ofensivo.

Assim, a Lei n° 10.259/2001 ampliou o conceito de infração de menor potencial

ofensivo, não consignando, entretanto, qualquer referência à suspensão condicional do

processo. Conforme já se assinalou, a suspensão condicional do processo é medida que surgiu

com a Lei n° 9.099/1995, mas que não se confunde com a transação penal, além de não estar

adstrita apenas aos feitos da competência dos Juizados Especiais Criminais. Luiz Flávio

Gomes672 e Maria Lúcia Karam673 se referem às infrações de médio potencial ofensivo, que

seriam aquelas cuja pena mínima fosse inferior ou igual a um ano, e que seriam passíveis de

suspensão condicional do processo, conforme preceitua o art. 89 da Lei n° 9.099/1995.

A questão sobre a ampliação do conceito das infrações de médio potencial ofensivo

foi levada à apreciação do Superior Tribunal de Justiça por meio do HC 12.033-MS, cujo

relator foi o Ministro Felix Fischer. A decisão se deu por unanimidade, no sentido do

670 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de e PRADO, Geraldo, op. cit., p. 10. 671 Idem, p. 11. 672 GOMES, Luiz Flávio, op. cit., p. 144. 673 KARAM, Maria Lucia, op. cit., pp. 155-6.

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estabelecimento do limite de dois anos para a concessão da suspensão condicional do

processo, embora tenha sido modificada posteriormente, como se verá seguir. O Acórdão, de

13 de agosto de 2002, foi assim ementado:

PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO DE

HABEAS CORPUS. LEI N. 9.099/95. LIMITE DE 01 (UM) ANO.

SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO. MAJORANTE (CRIME

CONTINUADO). LEI N. 10.259/01. LIMITE DE 02 (DOIS) ANOS.

SÚMULA 243/STJ.

I – Para verificação dos requisitos da suspensão condicional do processo

(art. 89), a majorante do crime continuado deve ser computada.

II – “O benefício da suspensão condicional do processo não é aplicável em

relação às infrações penais cometidas em concurso material, concurso

formal ou continuidade delitiva, quando a pena mínima cominada, seja pelo

somatório, seja pela incidência da majorante, ultrapassar o limite de um

(01) ano.” Súmula 243/STJ.

III – A Lei n. 10.259/01, ao definir as infrações de menor potencial

ofensivo, estabeleceu o limite de dois (2) anos para a pena mínima

cominada. Daí que o art. 61 da Lei n. 9.099/95 foi derrogado, sendo o limite

de um (01) ano alterado para dois (2) anos, o que não escapa do espírito da

Súmula 243 desta Corte.

Recurso provido para afastar o limite de (01) ano, e estabelecer o de dois

(02) anos, para a concessão do benefício da suspensão condicional do

processo.674

No acórdão acima mencionado, duas questões importantes foram analisadas: de um

lado, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu a alteração do conceito de infração de menor

potencial ofensivo, em decorrência da superveniência da Lei n° 10.259/2001, que ampliou o

limite da pena (máxima) para dois anos. De outro lado, reconheceu também o reflexo dessa

674 STJ. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS N. 12.033-MS (2001/0129618-4). Disponível em: <www.stj.gov.br>. Acesso em 16 mai. 2004.

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ampliação na suspensão condicional do processo. Utilizou como fundamentos os argumentos

doutrinários apresentados por Luiz Flávio Gomes, que expressamente defendia a ampliação,

com azo no conceito de sistema (único) dos Juizados Especiais Criminais e, ainda, em razão

do princípio da igualdade (ou do tratamento isonômico), do princípio da razoabilidade ou

proporcionalidade e por se tratar de lei nova com conteúdo penal favorável.

Os fundamentos se referiam também à adoção do método da ponderação (decorrente

do princípio da proporcionalidade), que deve nortear o trabalho do jurista atual, em

detrimento do método formalista, tendo em conta uma maior justiça das decisões.

Assim, com a ampliação do conceito de infração de menor potencial ofensivo – cuja

pena máxima em abstrato passou de um para dois anos –, admitiu-se a extensão no que tange

à suspensão condicional do processo – que passou a ser possível nos delitos cuja pena mínima

em abstrato fosse igual ou inferior a dois anos.

Observa-se que o Tribunal, ao reconhecer a ampliação do conceito de infração de

menor potencial ofensivo, incorreu em confusão, ao defender a ampliação sob o mesmo

fundamento dos conceitos de infrações de pequena e de média lesividade. Isto porque o

legislador ordinário, ao definir, com a Lei n° 9.099/1995, as infrações de menor e de médio

potencial ofensivo, embora tenha utilizado a quantidade de pena em abstrato prevista para o

crime, recorreu a critérios distintos: no caso das infrações de menor potencial ofensivo,

referiu-se à pena máxima, ao passo que, nas infrações de médio potencial ofensivo (passíveis

de suspensão), referiu-se à pena mínima. Ademais, tratando-se a suspensão de categoria geral

do processo penal, que veio inserida na Lei n° 9.099/1995 apenas para se aproveitar de uma

questão de política legislativa,675 não se justifica a alteração do limite, nos termos propostos

no Acórdão, o que só poderia ocorrer por outra lei que viesse a fazê-lo expressamente.

Desse modo, são pertinentes as observações de Maria Lúcia Karam:

675 Cf. CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de e PRADO, Geraldo, op. cit., p. 277.

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Remarque-se que, como já assinalado, este esvaziamento seria a única

conseqüência da omissão do legislador em reavaliar também a definição das

infrações penais ditas de médio potencial ofensivo, não se verificando

qualquer afetação de princípios constitucionais, como o princípio da

isonomia ou outros de igual envergadura, que pudessem ferir as exigências

constitucionais e implicar estado de inconstitucionalidade.676

Corrigindo sua posição anterior, a mesma 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça,

julgando Embargos de Declaração interpostos no referido Acórdão, voltou atrás, também em

voto unânime. Vejamos:

PENAL. PROCESSUAL PENAL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO.

RECURSO ORDINÁRIO. INFRAÇÃO DE MENOR POTENCIAL

LESIVO. SURSIS PROCESSUAL PENAL. LEI N° 10.259/01 E LEI N°

90.091/95. EFEITOS INFRINGENTES.

I – A Lei n. 10.259/01, em seu art. 2º, parágrafo único, alterando a

concepção de infração de menor potencial ofensivo alcança o disposto no

art. 61 da Lei n° 9.099/95.

II – Entretanto, tal alteração não afetou o patamar para o sursis processual

(Aplicação da Súmula n° 243 – STJ). Contradição reconhecida com efeito

infringente. Embargos acolhidos, ensejando o desprovimento do recurso

ordinário.677

O Superior Tribunal de Justiça afirmou que efetivamente o Acórdão embargado

apresentava contradição, uma vez que partiu da simetria entre o conceito de menor potencial

ofensivo e o patamar previsto para o sursis processual, que “de lege lata, permanece

676 KARAM, Maria Lucia, op. cit., p. 162. 677 STJ. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS N. 12.033-MS (2001/0129618-4). Disponível em: <www.stj.gov.br>. Acesso em 16 mai. 2004.

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inalterado”. Após reconhecer a contradição, afirmou que se tratava de pura e simples

aplicação da Súmula n° 243 daquela Corte.

A questão foi levada ao Supremo Tribunal Federal, por meio do HC 83.104-4-RJ,

cujo relator foi o Ministro Gilmar Mendes, que também não reconheceu a ampliação do limite

de pena mínima para a concessão da suspensão condicional do processo de um para dois anos.

A ementa do Acórdão dispôs:

EMENTA: HABEAS CORPUS. 2 – PROCESSO PENAL. 3 – LEI Nº

10.259/01, ART. 2º, PARÁGRAFO ÚNICO. 4 – SUSPENSÃO

CONDICIONAL DO PROCESSO. 5 – A LEI DOS JUIZADOS

ESPECIAIS FEDERAIS NÃO AMPLIOU O LIMITE PARA O SURSIS

PROCESSUAL PREVISTO NO ART. 89 DA LEI N. 9.099/99. 6 –

HABEAS CORPUS INDEFERIDO.678

O Supremo Tribunal Federal fundamenta seu voto no parecer da Procuradoria-Geral

da República, no qual afirma que:

Note-se que, se o legislador pretendesse que se guardasse um liame

entre o “quantum” de pena para a suspensão condicional do processo e

o “quantum” para determinar a competência do Juizado Especial, não

teria estipulado critérios diferenciados (pena MÍNIMA, não superior a

um ano, para um e pena MÁXIMA, não superior a um ano, para o

outro). Ademais, expressamente prevê o artigo que a suspensão não é

cabível apenas aos crimes que atendam às condições do art. 61, mas a

todos os que preenchem os requisitos do art. 89 (pena menor ou igual

a um ano, bons antecedentes, não-reincidência, preenchimento dos

requisitos para a suspensão da pena), o que também denota a clara

distinção.679

678 STF. HABEAS CORPUS N° 83.104/RJ. Disponível em: <www.stf.gov.br>. Acesso em 16 mai. 2004. 679 Ibidem.

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Concorda-se com Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho e Geraldo Prado

quando apontam a correção da posição das Cortes Superiores, reconhecendo a liberdade de

conformação do legislador e, portanto, a necessidade de outra lei para alterar o referido

patamar. E também quando afirmam que, atendendo-se a questões de política criminal, com

azo no princípio da intervenção mínima, é razoável defender-se a alteração do limite para dois

anos, a fim de compatibilizar o instituto com as demais medidas substitutivas da pena

privativa de liberdade, o que entendem que só poderá ser realizado pela edição de nova lei.680

3.3 A suspensão condicional e o discurso do controle racional

Falou-se, no início deste capítulo, que não apenas a suspensão condicional do

processo, mas também a criação dos Juizados Especiais Criminais – nos quais seria possível a

transação penal –, foram saudadas por grande parte da doutrina nacional como uma grande

revolução e avanço no processo penal, devido aos benefícios que encerra. Geraldo Prado

aponta que os adjetivos empregados possuem o viés estratégico de atrair a adesão do meio

jurídico (juristas e operadores jurídicos) para as teses que vieram a se firmar, nas quais se

discutiam um dos principais problemas da dogmática do processo penal brasileiro: o limite

constitucional da consensualidade em face da possibilidade de resolver casos criminais

empregando-se a técnica do consenso.681

Com efeito, algumas das virtudes do instituto apontadas por alguns autores

representam verdadeiro retrocesso nas garantias constitucionais do Processo Penal, como se

demonstrará a seguir. É que, como adverte Fauzi Hassan Choukr, a suspensão condicional do

processo está inserida no contexto do subsistema de emergência,682 cuja presença no sistema

repressivo tradicional, apresenta como características “a mitigação, direta ou indireta, de

680 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de e PRADO, Geraldo, op. cit., p. 264. 681 PRADO, Geraldo, op. cit., 2003, pp. 3-5.

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garantias fundamentais estabelecidas no pacto de civilidade”, que servem de base ao sistema,

e que lhe regulam a “legitimidade operacional ao nível normativo e interpretativo”.683

No Capítulo 2, Seção 2.1.2, ao se investigarem as funções do Direito Penal, afirmou-

se que ele se presta à manutenção de uma estrutura de poder social vigente. Viu-se, ainda, que

há autores que sustentam que o maior poder do sistema penal não se circunscreve à pena, mas

na ampla gama de atividades de vigilância e controle sobre os indivíduos, o que lhe permite

controlar e pôr fim às dissidências, ou neutralizar eventuais coalizões entre desfavorecidos.684

A pesquisa realizada por Michel Foucault, analisada na Seção 2.3, bem demonstra

que os objetivos da reforma no Direito Penal, impulsionada pelas idéias iluministas a partir da

segunda metade do século XVIII, estariam pautados não em fundar um novo direito de punir a

partir de princípios mais igualitários, mas de consolidar uma nova “economia” do poder de

castigar, alargando seu campo de ação, de modo que pudesse ser exercido sobre todo o corpo

social.685

A nova moral do ato de punir consistia em corrigir, reeducar o indivíduo, mas a

manifestação do poder punitivo não se dava sem procedimentos anteriores à pena. Tais

procedimentos eram realizados por meio do processo penal, apontando Michel Focault a

forma como se dava a construção da verdade, realizada pelos magistrados, no processo

inquisitório: por um complexo sistema de provas legais, que continham quase sempre a

confissão do acusado e a tortura como meio para obtê-la. A confissão representava a vitória

do processo sobre o acusado, consistindo na “prova da verdade viva”.686

Como se ressaltou na Seção 2.3, não se está a aderir ao abolicionismo penal quando

se faz referência às idéias do autor. Trata-se apenas de reconhecer que elas denunciam a

transferência da punição à vigilância disciplinar, demonstrando que o poder atua sobre todo o

682 CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal de emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 6. 683 Ibidem. 684 ZAFFARONI, E. Raul et al., op. cit., pp. 98-9. 685 FOUCAULT, Michel, op. cit., 2002, p. 69.

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corpo social de forma constante e imperceptível, representando o sistema punitivo apenas uma

de suas vertentes.687

Também o processo penal, como instrumento do Direito Penal, certamente sofre de

desvios funcionais, como se registrou na Seção 2.2.2, apontado como uma espécie de

antecipação da pena, como percebeu Carnelutti.688 Entretanto, é tarefa dos operadores do

Direito buscar a efetividade das normas que dispõem sobre as garantias do processo penal,

algumas delas analisadas no Capítulo 1. Como adverte Salo de Carvalho, “abdicar do

processo penal em prol do Direito Administrativo seria abdicar do único momento do controle

formal em que as garantias são minimamente respeitadas”.689

Nesse sentido, entende-se que a solução para os problemas que o processo penal

encerra não se apresenta em sua pura e simples eliminação, e muito menos em sua abreviação,

se ela implicar a supressão de fases importantes, nas quais são asseguradas as garantias

assinaladas. Parece que, no caso da suspensão condicional do processo, é isso que ocorre.

Quando se analisou a atividade probatória desenvolvida no processo, na Seção 2.4,

afirmou-se sua importância na construção de uma verdade processual (a verdade possível,

limitada),690 verdade que legitima a atividade jurisdicional penal e,691 em última análise, a

própria intervenção do sistema punitivo na esfera de liberdades do indivíduo. Apontou-se que

a suspensão condicional do processo, na verdade, não suspende o processo, tratando-se de

uma via alternativa ao exercício do direito de ação, em que o Ministério Público formula a

pretensão punitiva e, optando-se pela suspensão, alteram-se os procedimentos, não se

686 Idem, p. 34. 687 Cf. CARVALHO, Salo de, op. cit., p. 133. 688 CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. Trad. José Antonio Cardinalli. Campinas: Bookseller, 2001, p. 47. 689 Cf. CARVALHO, Salo de, op. cit., p. 155. O autor ressalta que os limites ao poder punitivo que o próprio Estado se impõe não estão presentes nas fases pré (inquérito) e pós (execução) processual, momentos específicos da intervenção penal, pautados pelo viés administrativo, e não jurisdicional (cf. pp. 155-6). 690 Trata-se da verdade processual, a que se refere Luigi Ferrajoli (Cf. FERRAJOLI, Luigi, op. cit., 2002, p. 38). 691 Cf. GOMES FILHO, Antônio Magalhães, op. cit, p. 54; TARUFFO, Michele, op. cit., pp. 69-70.

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realizando a fase probatória. Ora, uma das virtudes da suspensão condicional do processo

apontada por Ada Pellegrini et al. é justamente não haver instrução, nem sentença.692

As palavras dos autores reputam tal circunstância inclusive como benefício para o

acusado:

Não haverá a reprodução dos fatos e isso significa uma economia

incalculável para a justiça e um benefício para o acusado (que não se

submete à cerimônia degradante do julgamento), vítima, testemunhas (que

tampouco devem ir ao fórum, perdendo dia de trabalho, procedendo a

reconhecimento) etc.693

A afirmação dos autores não revela, contudo, que nosso Estado Democrático de

Direito consagrou o princípio da presunção de inocência. No processo penal, esse princípio

enseja regras sobre o tratamento do acusado e sobre o ônus da atividade probatória, como

assinalado na Seção 1.3.5, que impõem ao órgão acusador o ônus de provar efetivamente a

acusação que funda a pretensão punitiva, e ao acusado o direito de fazer contraprova,

refutando os argumentos trazidos pela acusação. Frise-se que a dúvida sempre prevalecerá em

favor do acusado, em virtude do princípio do favor rei.694 Desse modo, a vantagem apontada

pelos autores parece muito mais afeta ao Ministério Público do que ao acusado.

A afirmação anterior pode ser feita na medida em que, como percebe Maria Lúcia

Karam, ao examinar a transação penal:

Se esta enganosa negociação chegar a “bom termo”, o Ministério Público

terá obtido, sem maior esforço (dispensado que estará do ônus de provar a

veracidade da acusação formulada), a satisfação da pretensão punitiva por

ele deduzida com a imediata imposição da pena. Se, no entanto, a

692 GRINOVER, Ada Pellegrini et al., op. cit., p. 264. 693 Ibidem.

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negociação não chegar a “bom termo”, isto é, se o réu não aceitar receber,

desde logo, a pena oferecida, apenas terá de reformular a acusação,

podendo, ao final do processo regularmente desenvolvido, uma vez

conseguindo provar a veracidade da acusação, igualmente obter a satisfação

de sua pretensão punitiva.695

Embora as observações da autora sejam destinadas à transação penal, podem ser

aplicadas também à suspensão condicional do processo, com a única diferença de que nesta

não será imposta, ao menos formalmente, uma pena, mas sim restrições à liberdade do

acusado, consubstanciadas nas condições que lhes são impostas durante o período de prova.

Neste caso, a vantagem do Ministério Público é ainda maior: se não houver acordo, o

processo segue normalmente e aí, sim, terá o ônus de provar a acusação. Outrossim, caso a

suspensão seja revogada, também será retomado o curso do processo e o órgão da acusação só

terá de fazer aquilo que já era seu ônus antes, isto é, provar a acusação que funda a pretensão

punitiva.

Outra vantagem do instituto apontada por Weber Martins Batista é a de colocar num

regime de prova semelhante ao da suspensão condicional da pena o acusado que, desde logo,

possuísse condições que autorizassem a concessão de tal benefício, sem que, no entanto,

tivesse de esperar por toda a demora do processo penal.696 Ocorre que, entre os dois institutos,

existe uma diferença fundamental: a suspensão condicional da pena se dá após a condenação,

depois de um processo no qual devem ser observadas todas as garantias constitucionalmente

asseguradas, e que deve ser fruto da construção da verdade processual (por meio da atividade

probatória – ônus da acusação e direito do acusado).

Assim, mais uma vez, a suspensão condicional do processo se revela vantajosa para a

acusação, uma vez que, dispensando-se o ônus da atividade probatória, ela obtém os mesmos

694 Cf. FERRAJOLI, Luigi, op. cit., 2002, p. 84. 695 KARAM, Maria Lucia, op. cit., p. 40.

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resultados que teria caso houvesse efetivamente uma condenação: as restrições de sua

liberdade, que se transferem das condições da suspensão condicional da pena para as

condições da suspensão condicional do processo. Trata-se, como ressalta Maria Lúcia Karam,

de “antecipada reação estatal à alegada ocorrência de violação da lei penal, desde que haja

anuência do réu da ação penal condenatória”.697 Não é por outro motivo que Antônio Nobre

Folgado reconhece a suspensão condicional do processo como meio eficaz de controle social,

na medida em que “evita os efeitos deletérios do cárcere e o estigma da condenação penal,

aplicando, com a concordância do acusado, obrigações que operam como ‘equivalentes

penais’”.698 O que não se revela, entretanto, é que o controle social exercido por meio dessa

reação antecipada ocorre por meio da supressão das garantias asseguradas ao processo

tradicional.

Outrossim, a solução para os inconvenientes na demora do processo (examinados na

Seção 2.4) deve ser buscada não na eliminação de fases em que se asseguram garantias ao

acusado, mas sim na fixação de limites precisos no ordenamento jurídico para a realização dos

atos processuais, e de sanções efetivas para o seu descumprimento pelos órgãos que fazem

parte do sistema punitivo estatal, obviamente favorecendo o acusado. Não se pode olvidar que

o direito ao processo sem dilações indevidas é garantia constitucional.

Outro fundamento da suspensão condicional do processo, apontado por Luiz Flávio

Gomes, é a autonomia da vontade. Afirma o autor que a aceitação do acusado nada mais é

senão “expressão da ampla defesa”, e que “aceitar ou não a suspensão do processo passa a ser

estratégia de defesa”.699 Ora, a suposta autonomia da vontade do acusado no momento da

suspensão condicional do processo foi refutada por Maria Lúcia Karam,700 como se apontou

na Seção 3.1, na medida em que a acusação estará sempre numa posição de proeminência em

696 BATISTA, Weber Martins e FUX, Luiz, op. cit., p. 355. 697 KARAM, Maria Lucia, op. cit., pp. 166-7. 698 FOLGADO, Antônio Nobre, op. cit., pp. 154-5. 699 GOMES, Luiz Flávio, op. cit., p. 189.

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relação ao acusado. As limitações da busca do consenso no processo penal também são

observadas por Geraldo Prado quando da análise da transação penal. As palavras do autor

demonstram a fragilidade da autonomia da vontade sustentada por Luiz Flávio Gomes:

A ameaça de sanção inerente a todo processo acusatório é, queiram ou não

os defensores da transação, um elemento de coação que desequilibra a

posição jurídica dos contratantes e tende a ser tomado como limitador do

consenso como livre manifestação de vontade. Se isso é certo, em termos de

transação sobre penas restritivas de direitos, com a transação em torno da

prisão acentua-se o caráter coativo, e a forma com que se reveste o processo

é apenas uma aparência, irreal como a roupa do rei da fábula, pois não há

consenso de fato, somente imposição da vontade de quem detém o

monopólio do exercício legítimo da força sobre aquele que se apresenta na

qualidade de imputado, suspeito da prática de uma infração penal, todavia

tutelado pelo princípio constitucional da presunção de inocência.701

Um último argumento indicado como vantagem da suspensão condicional do

processo merece ser abordado: evitar-se a estigmatização decorrente da condenação final.702

Maria Lúcia Karam ressalta que a suspensão condicional do processo submete o acusado a

determinadas condições que, em tudo, se assemelham às que são impostas como resultado de

condenação que implique a suspensão condicional da execução da pena privativa de

liberdade.703 Isto equivale a dizer que, se a condenação realmente tivesse ocorrido, o resultado

concreto da intervenção penal seria muito parecido com o que decorre da aplicação do

700 KARAM, Maria Lucia, op. cit., pp. 40-1. 701 PRADO, Geraldo, op. cit., 2003, p. 205. Também denuncia a fragilidade da suposta “igualdade entre as partes” na conformidad do Direito espanhol Teresa Armenta Deu: “La igualdad entre as partes negociadoreas, ya que en tanto una se mueve libremente en los márgenes del arbitrio legaly com la capacidad para generar asentimiento que deriva de su ‘status’, para el imputado el objeto de la negociación es su própria libertad; lo que convierte el pretendido consenso en un compromiso al que la parte más débil deberá adherirse, a al vez que pone seriamente en entredicho la libre voluntad de aquél que consensúay del procedimiento a través del cual se llega al acuerdo, generalmente carente de regulación y garantias suficienes (al igual que acontece en muchos casos de ADR)”. Cf. DEU, Teresa Armenta. “El proceso penal: nuevas tendências, nuevos problemas”. Ciencias Penales (13), San Jose: Asociación de Ciencias Penales de Costa Rica, 1997. 702 GRINOVER, Ada Pellegrini et al., op. cit., p. 262.

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instituto. Embora não seja admitido pela doutrina que o acusado, ao aceitar a suspensão,

reconheça sua culpabilidade, a verdade é que, para o grupo social e, muitas vezes, para os

próprios operadores do Direito, fica a impressão de que o “beneficiário” da suspensão

assumiu uma certa parcela de culpa.704

Não se está admitindo que as condições da suspensão condicional do processo

representam formalmente pena criminal, como já se assinalou no início deste capítulo. Apenas

se observa que a impressão social causada pelo regime a que fica submetido o acusado acaba

por identificá-lo com uma espécie de “reconhecimento da culpa”, cujas sanções são distintas

da pena tradicional apenas pelo fato de tratar-se de conduta menos grave, e não pelo fato de

não se ter certeza acerca da culpabilidade do acusado. Percebe-se que o efeito estigmatizador

da medida prevalece, embora mais brando do que na condenação tradicional.

No que tange à virtude da medida de evitar a pena de prisão de curta duração,705

cumpre assinalar que a pena privativa de liberdade de curta duração já não seria aplicada, uma

vez que sendo o acusado possuidor de condições que autorizem a suspensão, certamente

também o é daquelas que autorizariam a suspensão condicional da pena. Lembre-se que um

dos requisitos para a concessão da suspensão é que estejam presentes os requisitos

autorizadores da suspensão condicional da pena. Ademais, os outros requisitos necessários

(primariedade, não reincidência, os previstos no art. 77, inciso II do Código Penal), caso

presentes, certamente não permitiriam que uma condenação por crime com pena mínima igual

ou inferior a um ano viesse a ser fixada muito além do mínimo abstrato, sendo passível,

portanto, da suspensão condicional da pena.

703 KARAM, Maria Lucia, op. cit., p. 49. 704 As observações sobre a admissão de certa parcela de culpa na transação penal são feitas por Marco Aurélio Gonçalves Ferreira e, embora se refiram àquele instituto, são pertinentes também quando se analisa a suspensão condicional do processo. Cf. “Direito de acesso à prestação jurisdicional: uma análise comparada entre os sistemas judiciários criminais dos EUA e do Brasil”. In: LIMA, Roberto Kant de; BURGOS, Marcelo Baumann; AMORIM, Maria Stella de (orgs.). Juizados especiais criminais, sistema judicial e sociedade no Brasil: ensaios interdisciplinares. Niterói: Intertexto, 2003, p. 62. 705 GRINOVER, Ada Pellegrini et al., op. cit., pp. 262 e 264.

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Acredita-se que essas são as principais observações que se pode fazer às virtudes

apontadas pela doutrina tradicional acerca da suspensão condicional do processo. Como uma

das formas de sumarização dos procedimentos penais, não se pode esquecer, como adverte

Salo de Carvalho, que “optar por imprimir velocidade ao processo significa, necessariamente,

irromper com sua estrutura formal garantidora”.706 Por outro lado, não oferece em troca

grandes vantagens, pois, como aponta Fauzi Hassan Choukr, “a emergência tira o que

arduamente a normalidade conquista e nada lhe dá em troca, nem no campo teórico, nem na

prática”.707

Por derradeiro, para que a suspensão condicional do processo esteja em consonância

com os preceitos constitucionais instituídos pela Constituição Federal de 1988, faz-se

necessário, no mínimo, que sejam asseguradas mínimas garantias: o juízo de admissibilidade

da denúncia deve ser realizado observando a garantia da motivação das decisões judiciais; a

fixação das condições impostas na suspensão deve atender ao princípio da legalidade; os

requisitos e as condições da suspensão devem atender ao princípio da presunção de inocência.

No que se refere ao juízo de admissibilidade da denúncia, é necessário que ele atenda

à norma que assegura a garantia da motivação das decisões judiciais, analisada na Seção

1.3.6, que permite aferir a racionalidade das decisões judiciais e está prevista expressamente

no art. 93, inciso IX, da Carta Magna, para todas as decisões judiciais.

706 Cf. CARVALHO, Salo de, op. cit., p. 103. Alberto M. Binder, ao tratar das premissas que devem ser estabelecidas para uma teoria unitária das nulidades no processo penal, ressalta a importância das formas processuais para a proteção das garantias do acusado, e dos princípios de verificação do juízo penal (do qual decorrem o princípio da imparcialidade, de contradição igualitária, de publicidade). Cf. BINDER, Alberto M. O descumprimento das formas processuais: elementos para uma crítica da teoria unitária das nulidades no processo penal. Trad. Ângela Nogueira Pessoa, revisão Fauzi Hassan Coukr. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, pp. 55-7. 707 CHOUKR, Fauzi Hassan, op. cit., p. 65, nota 159. Embora o autor se refira ao discurso da emergência no combate à criminalidade organizada em suas mais variadas formas, como o narcotráfico, terrorismo, lavagem de dinheiro, prostituição em escala supranacional, tráfico de armamentos, comercialização clandestina de material e dados genéticos etc., neste trabalho, reputam-se inteiramente pertinentes as observações mencionadas também na análise das supostas “grandes vantagens” obtidas com a suspensão condicional do processo. É que, se elas existem, não se pode dizer que sejam tão grandes assim.

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Não obstante, a prática judiciária e até a jurisprudência de nossa Corte Superior

ignoram o preceito normativo e consideram desnecessária a fundamentação da decisão que

recebe a denúncia. Ora, se o recebimento da denúncia é pressuposto da suspensão condicional

do processo, e reconhece que estão presentes os requisitos autorizadores da proposição da

pretensão punitiva pela acusação, é evidente que deve ser fundamentada, a fim de permitir o

controle pela parte contrária.

No que tange à necessidade de a fixação das condições impostas na suspensão

atender ao princípio da legalidade, como já assinalado na Seção 3.2.4, a fixação de condições

pelo juiz (judiciais) que importem em restrições de liberdade deve atender ao princípio da

legalidade, assegurado no art. 5º, inciso II, da Constituição Federal de 1988, pelo qual se

exige que a lei preveja não só a restrição à sua liberdade de ação, mas também os limites em

que ela se dará.708 Desse modo, entende-se, assim como a autora, como inconstitucional a

regra contida no art. 89, § 2º, da Lei n° 9.099/1995, não sendo possível a aplicação de

condições, durante o período de prova da suspensão condicional do processo, sem que estejam

expressamente previstas na lei.

Por fim, no que diz respeito à necessidade de os requisitos e as causas de revogação

da suspensão obedecerem ao princípio da presunção de inocência, faz-se viável a exclusão das

circunstâncias de “não estar o acusado respondendo a processo por outro crime ou

contravenção penal” ou “de não ter sido condenado por outro crime” como requisito, ou causa

obrigatória ou facultativa da revogação da suspensão. Também aqui há ofensa ao preceito

constitucional da presunção de inocência, como se ressaltou nas seções 3.2.4 e 3.2.5.

Afirmou-se, em diversas ocasiões, que o princípio da presunção de inocência não

permite que o acusado seja tratado como culpado antes do trânsito em julgado de sentença

penal condenatória. Ora, vedar a concessão da suspensão, ou impor sua revogação pelo

708 KARAM, Maria Lucia, op. cit., p. 177.

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simples fato de vir o acusado a responder a outro processo, evidentemente corresponde a

antecipar os efeitos do reconhecimento de sua culpabilidade. Assim, não podem subsistir as

normas que constam no art. 89, caput, §§ 3º e 4º, da Lei n° 9.099/1995, quando se referem ao

fato de o acusado ser processado por outro crime ou contravenção penal, ou de ter sido

condenado por outro crime.

O estudo empreendido acerca da suspensão condicional do processo teve por

objetivo analisar o instituto à luz dos preceitos constitucionais vigentes, e revelar, sem a

pretensão de esgotar o tema, alguns aspectos que a dogmática tradicional omitia. Espera-se

que as observações apontadas – provisórias e sempre sujeitas à revisão – possam contribuir

para a discussão sobre o instituto e seu aperfeiçoamento.

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CONCLUSÃO

1 – Os pilares do Estado Democrático de Direito são a democracia e os direitos

fundamentais. Os princípios constitucionais constituem o ponto fundamental do sistema

jurídico atual e são dotados de normatividade e força obrigatória.

2 – As normas jurídicas podem se apresentar sob duas espécies: os princípios e as

regras. Os princípios se distinguem das regras pelo grau de generalidade e abstração de que

são dotados, encerrando mandados de otimização. O traço fundamental da distinção consiste

na maneira pela qual o conflito entre as espécies de normas é solucionado: o conflito entre

princípios é resolvido no campo da ponderação, ao passo que o conflito entre regras é

resolvido no campo da validade.

3 – Os princípios constitucionais, dotados de força normativa, possuem importantes

funções: servir de fundamento da ordem jurídica; possuir eficácia derrogatória e diretiva;

orientar o trabalho interpretativo; servir de fonte em caso de insuficiência da lei ou do

costume. A Constituição é um sistema aberto de regras e princípios.

4 – O processo penal é a essência da colisão entre princípios constitucionais, que será

solucionada pela técnica da ponderação de interesses, cuja limitação será a existência de

regras jurídicas.

5 – O princípio da dignidade humana consiste na qualidade inerente e peculiar

reconhecida em cada indivíduo, que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por

parte do Estado e de toda a sociedade, assegurando-lhe um complexo de direitos e deveres

fundamentais.

6 – A Constituição Federal de 1988 erigiu o princípio da dignidade humana como um

dos fundamentos do Estado brasileiro. Embora com eles não se confunda, o conteúdo da

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dignidade humana se relaciona com os direitos fundamentais, uma vez que estes remontam à

idéia de proteção e desenvolvimento das pessoas. O princípio da dignidade humana é vetor

interpretativo geral que deverá orientar o intérprete e servir de proteção do núcleo essencial

dos direitos fundamentais, a fim de permanecer imune a restrições.

7 – Os direitos fundamentais consistem nos valores e carências vitais da pessoa

humana, histórica e culturalmente determinados. Distinguem-se das garantias fundamentais:

os direitos fundamentais são declarações que tutelam um determinado rol de situações

jurídicas de vantagem, que correspondem a um núcleo mínimo de direitos essenciais e

fundamentais para o desenvolvimento humano, ao passo que as garantias fundamentais são

mecanismos de proteção a tais direitos.

8 – A adoção do sistema acusatório no Direito Processual Penal brasileiro decorre da

adoção do princípio da dignidade humana como um dos fundamentos do Estado. A opção

constitucional pelo sistema acusatório se revela, ainda, na privatividade do exercício da ação

penal pública pelo Ministério Público; nas garantias do devido processo legal, da ampla

defesa e do contraditório; no princípio da presunção de inocência; no princípio do juiz natural,

entre outros. O sistema acusatório é caracterizado pelo exercício das funções de acusar,

defender e julgar em pessoas distintas, sendo conseqüência natural do princípio democrático

aplicado ao Direito.

9 – As normas processuais penais devem ter por escopo a proteção dos direitos

fundamentais, limitando o poder punitivo estatal e sua intervenção na esfera de liberdades do

indivíduo. Desse modo, os princípios e as garantias constitucionais se dirigem também, e

especialmente, ao processo penal, destacando-se: a garantia do devido processo legal; o

princípio da igualdade; o princípio da proporcionalidade; as garantias do contraditório e da

ampla defesa; o princípio da presunção de inocência; e a garantia da motivação das decisões

judiciais.

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10 – O Direito Penal é o ramo do saber jurídico que, realizando a interpretação das

leis penais, oferece aos juízes um sistema orientador de decisões que contém e reduz o poder

punitivo, com o objetivo de impulsionar o progresso no Estado Democrático de Direito. Sem

embargo, uma análise funcional revela que o Direito Penal exerce as funções estigmatizadora,

seletiva, disciplinadora e neutralizadora, servindo à manutenção de uma estrutura de poder

social vigente. Não obstante, possui como missão a defesa dos bens jurídicos que assegurem a

sobrevivência da própria vida em sociedade.

11 – O processo penal, sob uma perspectiva dogmática, é um conjunto orgânico e

teleológico de atos jurídicos necessários ao julgamento da pretensão punitiva deduzida pelo

autor. Sob o ponto de vista sociológico, consiste, ainda, na oposição de interesse entre o

Estado, que quer punir os crimes, e o indivíduo, que quer afastar de si quaisquer medidas que

imponham restrição de sua liberdade. Sem embargo, uma análise funcional revela que o

processo penal exerce a função de antecipar a pena que seria imposta numa eventual

condenação, mediante violação a uma série de direitos e garantias fundamentais. Essa pena

processual é potencializada na sociedade moderna pelas medidas cautelares e pelas pressões

da mídia.

12 – A imposição de uma pena exige o desenvolvimento completo e válido do

processo. Assim, o processo penal possui como missão minimizar os espaços de

discricionariedade judicial em garantia dos direitos do acusado, servindo de fundamento para

a independência da magistratura e para o controle da legalidade de poder. Possui, ainda, a

missão de servir de meio de composição de conflitos e instrumento hábil de pacificação

social. Em suma, pode-se dizer que a principal missão do processo penal é servir de

instrumento de proteção dos direitos e garantias individuais contra atos abusivos do Estado.

13 – Uma proposta de democratização do processo penal pode usar como referencial

teórico o garantismo penal de Luigi Ferrajoli. Os princípios básicos do sistema garantista são:

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jurisdicionalidade; inderrogabilidade do juízo; separação das atividades de acusar, defender e

julgar; presunção de inocência; contraditório; e fundamentação das decisões judiciais.

14 – As relações de poder que se formaram na sociedade capitalista tiveram no

Direito Penal sua expressão mais evidente, embora não tenha sido a única. A ampliação da

sociedade repressiva e de suas práticas de controle estava fundada em discursos reformadores,

que, estrategicamente, foram aplicados ao Direito Penal: não se tratava de punir menos, mas

de punir melhor, de forma mais atenuada, porém com mais universalidade e necessidade,

internalizando na sociedade o poder de punir.

15 – A ampliação do poder punitivo se deu por novas técnicas de produção da

verdade, encoberta por um suposto discurso científico: o inquérito consistia no meio pelo qual

o discurso era elaborado. O processo inquisitório e o sistema de provas legais são apontados

como características da nova forma de produção da verdade penal da França do século XIX.

A confissão era a principal prova da “legitimidade” da punição aplicada, e justificava o

discurso científico.

16 – A atividade probatória é instrumento para a construção da verdade processual

(limitada e relativa) no processo penal. A busca da verdade processual traduz um valor que

legitima a atividade jurisdicional. O direito à prova deve ser assegurado com ampla

participação das partes, e está previsto expressamente no ordenamento jurídico brasileiro,

especialmente nas normas constitucionais que asseguram o contraditório e a ampla defesa, o

devido processo legal, a presunção de inocência; e pelo Decreto n° 678/1992, que determinou

o cumprimento do Pacto de São José da Costa Rica.

17 – A ruptura entre o tempo da sociedade e o tempo do direito (especialmente do

processo) implica uma natural e necessária demora do processo, a fim de garantir os direitos

do acusados e a segurança jurídica. O processo existe para retardar o tempo da ação. Contudo,

essa demora só é legítima enquanto se presta à proteção do acusado, podendo prejudicar-lhe

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quando não for razoável e justificada, potencializando a “pena processual”. O direito ao

processo sem dilações indevidas está previsto expressamente na Constituição Federal de

1988, podendo ser extraído de vários dispositivos e, recentemente, do art. 5º, inciso LXXVIII.

A previsão normativa de critérios para identificar a noção de dilação indevida, e de

instrumentos para seu controle, é requisito imprescindível para que o direito ao processo sem

dilações indevidas seja assegurado com efetividade.

18 – A suspensão condicional do processo foi introduzida pela Lei n° 9.099/1995,

editada seguindo uma das duas tendências observadas nos Direitos Penal e Processual Penal

brasileiros na década de 1990: a do consenso para a criminalidade pequena e média. As

formas processuais introduzidas, assim como no caso de sua antítese – a do conflito, destinada

à criminalidade média e grave –, desprezam uma série de garantias constitucionais,

historicamente conquistadas.

19 – A suspensão condicional do processo é categoria geral do Processo Penal.

Trata-se de medida despenalizadora que não está adstrita ao âmbito dos Juizados Especiais

Criminais, sendo aplicável a todos os crimes cuja pena mínima cominada seja igual ou

inferior a um ano. Possui como fundamento constitucional o art. 129, inciso I, da Constituição

Federal de 1988, por ser uma das formas de exercício da ação penal pública. A suspensão

condicional do processo não introduziu no Direito brasileiro o princípio da oportunidade

“regrada”. Subsiste o princípio da obrigatoriedade da ação penal pública condenatória.

20 – A suspensão condicional do processo é uma forma de composição de interesse

penal, na qual o acusado se compromete a adotar determinadas atitudes que o autor julga

suficientes, e cujo cumprimento dará ensejo à solução definitiva do conflito, sem que seja

necessário ficar demonstrada a existência da infração penal e da responsabilidade do acusado

(pela produção de provas).

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21 – A suspensão condicional do processo é faculdade do titular da ação penal

pública, consistindo numa modalidade alternativa de exercício da ação penal pública, ato

discricionário do Ministério Público.

22 – A suspensão condicional do processo é admissível também para os crimes

previstos em leis especiais, desde que observado o patamar legal fixado, exceto quando se

tratar de crime militar. Nas hipóteses de continuidade delitiva, concurso formal e material,

devem ser excluídos os acréscimos legais, aplicando-se analogicamente o art. 119 do Código

Penal, admitindo-se a suspensão caso a pena mínima prevista, isoladamente, observe o

patamar legal. Na pluralidade de crimes, se um deles for passível de suspensão, devem-se

desmembrar os processos. A suspensão não é admitida nos crimes de ação penal

exclusivamente privada. Entendimento em sentido contrário ofende o princípio da legalidade

e o sistema acusatório.

23 – O requisito para a suspensão que exige a “inexistência de processo criminal em

andamento” ofende o princípio da presunção de inocência, e a norma que o exige fere o

princípio da proporcionalidade. Na análise do requisito da “não existência de condenação

anterior”, deve-se admitir que, para impedir a suspensão, a condenação deve estar transitada

em julgado, embora não seja apta a gerar reincidência.

24 – A decisão que homologa a suspensão condicional do processo tem natureza de

decisão interlocutória; o recurso cabível é o recurso em sentido estrito. A suspensão em si não

suspende o processo, mas apenas altera o curso do procedimento.

25 – As condições legais ou obrigatórias da suspensão condicional do processo,

previstas no art. 89, § 1º, da Lei n. 9.099/1995, não devem necessariamente ser aplicadas

conjuntamente, mas atender ao princípio da proporcionalidade. As condições judiciais ou

facultativas, previstas no art. 89, § 2º, da Lei n° 9.099/1995, são inconstitucionais, por

ofenderem o princípio da legalidade.

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26 – A causa de revogação obrigatória da suspensão de “vir o acusado a ser

processado por outro crime”, prevista no art. 89, § 3º, da Lei n° 9.099/1995, é

inconstitucional, por contrariar o princípio da presunção de inocência. Embora obrigatória, a

revogação não é automática, sendo imprescindível assegurar ao acusado o contraditório e a

garantia da motivação das decisões judiciais.

27 – A causa de revogação facultativa da suspensão de “vir o acusado a ser

processado por contravenção penal”, prevista no art. 89, § 4º, da Lei n° 9.099/1995, é

inconstitucional, por contrariar o princípio da presunção de inocência. Também é requisito da

revogação facultativa que seja observado o contraditório e a motivação da decisão judicial.

28 – Decorrido o prazo de suspensão sem que tenha havido a revogação, deve ser

declarada extinta a punibilidade: trata-se de sentença declaratória, não se admitindo que

eventual causa de revogação, que venha a chegar ao conhecimento do juiz após o término do

período de prova, impeça a declaração de extinção da punibilidade. Tal entendimento está em

consonância com o princípio da legalidade.

29 – A Lei n° 10.259/2001 não ampliou o âmbito de admissibilidade da suspensão

condicional do processo, não alterando o patamar fixado no art. 89 da Lei n° 9.099/1995. A

suspensão condicional do processo não suspende o processo, constituindo uma alternativa

para o exercício da ação penal pública condenatória, alterando-se os procedimentos com a

supressão da fase probatória e do julgamento. Revela-se, desse modo, mais vantajosa para o

Ministério Público do que para o acusado, uma vez que, sendo aceita a suspensão, terá aquele

obtido, sem o ônus da atividade probatória, a antecipação de restrições à liberdade do

acusado, consubstanciadas nas condições que lhe são impostas durante o período de prova.

Por outro lado, se não houver acordo, ou a suspensão for revogada, o Ministério Público terá

apenas de fazer aquilo que já deveria ter feito antes, isto é, provar a acusação que funda a

pretensão punitiva.

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30 – A suspensão é vantajosa para o Ministério Público, na medida em que, sob o

pretexto de evitar a demora do processo, antecipa os efeitos de eventual condenação a delito

passível de suspensão condicional da pena, sem que a acusação tenha suportado o ônus da

atividade probatória. Por isso, é apontada como eficaz meio de controle social, controle esse

exercido por meio da supressão das garantias tradicionais do processo penal.

31 – Não subsiste a autonomia da vontade na suspensão condicional do processo,

uma vez que a condição de proeminência da acusação (decorrente do elemento de coação que

está contido na ameaça de sanção) desequilibra a posição jurídica dos contratantes e consiste

em limite do consenso como livre manifestação de vontade.

32 – A suspensão condicional do processo não evita a estigmatização, na medida em

que permanece uma impressão social de que houve o reconhecimento de certa parcela de

culpa, por parte do acusado. Outrossim, não evita a pena privativa de liberdade de curta

duração, pois, em caso de condenação, ela já não seria aplicada, uma vez que o acusado

possuidor de condições que autorizem a suspensão condicional do processo necessariamente

também o seria para ser beneficiado pela suspensão condicional da pena.

33 – Para que a suspensão condicional do processo esteja em consonância com os

preceitos constitucionais instituídos pela Constituição Federal de 1988, faz-se necessário que

sejam asseguradas as seguintes garantias: o juízo de admissibilidade da denúncia deve ser

realizado sob a garantia da motivação das decisões judiciais; a fixação das condições impostas

na suspensão deve atender ao princípio da legalidade; os requisitos e as causas de revogação

da suspensão devem atender ao princípio da presunção de inocência.

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