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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ECONOMIA ANA PAULA DA SILVA BUENO CAUSAS DA INSEGURANÇA JURÍDICA DA PROPRIEDADE DE TERRAS NO BRASIL: O ESTUDO DE CASO DE SANTANA DE PARNAÍBA/SP CAMPINAS 2018

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ECONOMIA

ANA PAULA DA SILVA BUENO

CAUSAS DA INSEGURANÇA JURÍDICA DA PROPRIEDADE DE

TERRAS NO BRASIL:

O ESTUDO DE CASO DE SANTANA DE PARNAÍBA/SP

CAMPINAS

2018

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ECONOMIA

ANA PAULA DA SILVA BUENO

CAUSAS DA INSEGURANÇA JURÍDICA DA PROPRIEDADE DE

TERRAS NO BRASIL:

O ESTUDO DE CASO DE SANTANA DE PARNAÍBA/SP

Prof. Dr. Bastiaan Philip Reydon – orientador

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento

Econômico da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Mestra em

Desenvolvimento Econômico, área de concentração Desenvolvimento Econômico, Espaço e Meio

Ambiente.

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO DA

DISSERTAÇÃO DEFENDIDA POR ANA PAULA DA

SILVA BUENO E ORIENTADA PELO PROF. DR.

BASTIAAN PHILIP REYDON.

CAMPINAS

2018

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Dissertação de Mestrado

Aluno: ANA PAULA DA SILVA BUENO

Causas da insegurança jurídica da propriedade de terras no

Brasil: o estudo de caso de Santana de Parnaíba/SP

Defendida em:

28-03-2018

COMISSÃO JULGADORA

Prof. Dr. Bastiaan Philip Reydon

Orientador – IE/UNICAMP

Dr. José de Arimatéia Barbosa

UMSA

Prof. Dr. José Heder Benatti

UFPA

A Ata de Defesa, assinada pelos membros da

Comissão Examinadora, consta no processo de

vida acadêmica do aluno.

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Dedico este trabalho ao meu orientador, Bastiaan Philip Reydon, em

agradecimento à confiança em mim depositada quando me convidou

para percorrer os caminhos e mistérios que envolvem o caos fundiário

de nosso Brasil.

Naquele momento, foi como se abrissem as cortinas de um novo

espetáculo que eu iria vivenciar. O mais impressionante é que muitos

dos mistérios, das perguntas, dos fatos, dos atos já haviam passado

pela minha vida sem que eu suspeitasse que seriam parte dela no

futuro. Aos poucos, a percepção do passado e as novidades do

presente foram tomando seus lugares de forma que trouxessem luz aos

meus pensamentos.

Essa luz foi a motivação para tantas decisões importantes, como a de

ingressar neste mestrado e me propor percorrer mares nunca

navegados no mundo dos economistas.

Todos os ensinamentos acrescentaram um tanto de conhecimento e

também um tanto de dúvidas, que me fazem caminhar atrás de

respostas que podem nunca chegar, mas, com toda certeza, me fazem

sentir o pulsar da vida.

O pulsar de cada dia de trabalho misturado com estudo, com os vários

projetos que estavam acontecendo, com aqueles que estavam por

iniciar-se e por aqueles que perambulavam na cabeça inquieta de meu

orientador. Sem dúvida, apesar do desgaste ocasionado por um

mestrado, misturado à rotina de trabalho, viagens, advocacia e

maternidade, cada momento valeu a pena e, se me perguntassem se eu

faria tudo de novo, minha resposta seria um grande ecoar de “sins”.

Aos meus filhos, Vitor e Renan, por me fazerem mãe. Sem vocês, eu

nunca teria coragem de dizer tantos “sins”. O amor que sinto é o

motor que fez e faz a minha vida acontecer.

Minha eterna gratidão ao meu orientador amigo, Bastiaan, e aos meus

filhos.

Que as bênçãos de Deus iluminem vossas vidas porque vocês

iluminaram a minha.

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AGRADECIMENTOS

Posso dizer que meu mestrado tenha se iniciado com o convite que recebi no dia

do meu aniversário no ano de 2013 para trabalhar com meu atual orientador no caso do Sítio

Barreiro. Foi um presente!

A partir daquele momento, a vida nunca mais foi a mesma. Os dias eram

diferentes, os locais, os afazeres, os objetivos e as pessoas. As pessoas que começaram a fazer

parte dos meus dias e estarão sempre nas minhas lembranças pelos momentos vividos.

Meu agradecimento e apreço a Vitor Bukvar Fernandes. Meu amigo e

companheiro de trabalho, de tantos relatórios e viagens de campo que acabaram por fortalecer

nossa amizade.

Rendo gracias ao meu amigo polivalente, Marcelo Messias. Nunca conheci uma

pessoa que pudesse fazer tantas coisas ao mesmo tempo de forma tão serena e sempre

sorrindo. Quando eu crescer, quero ser igual a você!

Diz o ditado que os últimos serão os primeiros. Pois o ditado está certo. Foi assim

com o amigo Gabriel Siqueira, que chegou um pouco depois para somar e me ensinar como

ser mais prática.

Às pessoas que fizeram parte do Grupo de Governança de Terras, meus colegas de

sala no mestrado.

Aos meus professores, que contribuíram para que esta etapa da minha vida fosse

concluída, por todo o ensinamento compartilhado e pela paciência de explicar diversas vezes

o mesmo conteúdo para a advogada que resolveu ingressar no mundo da economia.

Ao senhor Lorivaldo Malara, pela oportunidade de compartilhar dias infindáveis

na tentativa de entender onde o Sítio Barreiro se perdeu. À Dona Claúdia Malara, dona de

uma educação, gentileza, competência e amor por tudo e por todos.

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RESUMO

Este trabalho tem como objetivo demonstrar algumas causas da insegurança jurídica da terra

no Brasil. É consenso que o Brasil ainda enfrenta problemas relacionados à questão fundiária.

A evidência disso são os recorrentes conflitos agrários que vemos desde a época da colônia.

Estes conflitos ocorrem por diversas razões, dentre elas, porque ao longo dos anos o Estado

brasileiro não conseguiu criar um cadastro de terras eficiente, que organizasse seu território,

não discriminou as terras públicas das terras privadas e não conseguiu acabar com o sistema

de apossamento da terra, de forma que mantivesse a posse e a propriedade coexistindo. Essas

três hipóteses são tidas como causas da insegurança jurídica da terra no país e são

evidenciadas no caso do Sítio Barreiro. Localizado em Santana de Parnaíba/SP, o Sítio

Barreiro é uma das áreas mais valorizadas do estado de São Paulo, tendo em vista a gama de

incorporações imobiliárias de alto custo existentes no local, como Alphaville e Tamboré. Este

é o caso do presente estudo, que nasce de uma demanda para compreender como pode haver,

no local onde está localizado o Sítio Barreiro, sobreposição das seguintes áreas: o sítio em si,

que é uma área de posse, diversas propriedades com matrículas registradas em Cartório de

Registro de Imóveis e, ao que tudo indica, um aforamento instituído pela Coroa portuguesa

em 1732. A existência de diferentes tipos de direitos sobre a mesma área ocasionou uma série

de conflitos fundiários sobre a terra, trazendo insegurança jurídica às pessoas detentoras de

direitos sobre a terra.

Palavras-chave: Cadastro. Registro. Terras públicas, posse e propriedade. Insegurança

jurídica.

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ABSTRACT

This paper aims to demonstrate some causes of land insecurity in Brazil. It is a consensus that

Brazil still faces problems related to the land issue. Evidence of this is the recurrent agrarian

conflicts we see since the colony. These conflicts occur for several reasons, among them,

because over the years the Brazilian State has not been able to create an efficient land

cadastre, that organizes its territory; did not discriminate against the public lands of private

lands and was unable to end the land grab system in order to keep possession and property

coexisting. These three hypotheses are taken as causes of legal insecurity of land in the

country. These hypotheses are evidenced in the case of Sítio Barreiro, located in Santana de

Parnaíba / SP, one of the most valued areas of the state of São Paulo, considering that the

range of high-cost real estate developments in the area, such as Alphaville and Tamboré. This

is the case of the present study, which arises from a demand to understand how, in the place

where the Barreiro site is located, there may be overlapping areas: the site itself which is an

area of possession; several properties with registrations registered in a registry of real estate

and, apparently, a settlement established by the Portuguese Crown in 1732. The existence of

different types of rights over the same area caused a series of land conflicts over land,

bringing legal insecurity persons holding land rights.

Keywords: Cadastre. Registry. Public lands, possession and property. Insecurity land rights.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Áreas reconhecidas da União e extensão territorial da Amazônia Legal

.................................................................................................................................................. 49

Figura 2 – Mapa de localização do município de Barueri/SP ...................................................

54

Figura 3 – Planta do Sítio Barreiro ...........................................................................................

57

Figura 4 – Planta delimitando apenas a região litigiosa (perímetro externo) ...........................

58

Figura 5 – Mapa de localização do Sítio Barreiro ....................................................................

59

Figura 6 – Planta da situação geral de Alphaville/Tamboré; produção de setores por

incorporação ............................................................................................................................ 60

Figura 7 – Sobreposição do mapa de Campos (2008) com o mapa do processo nº 2.567/2008

da 4ª Vara Cível de Barueri ......................................................................................................

61

Figura 8 – Sobreposição do mapa de Campos (2008) ao mapa do processo nº 0044129-

03.2011.8.26.0068 ................................................................................................................... 62

Figura 9 – Mapa do Sítio Barreiro ............................................................................................

67

Figura 10 – Certidão expedida pelo Ministério da Fazenda atestando a existência de um

aforamento denominado Itahim ...............................................................................................

75

Figura 11 – Ocupação e implantação dos loteamentos Gênesis II, Tamboré 2, 3 e 10; posse

indireta e direta da SPE CNC com suas respectivas guaritas ...................................................

85

Figura 12 – Aerofoto de 1962 da área do Sítio Barreiro ..........................................................

87

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LISTA DE SIGLAS

CC Código Civil

CNIR Cadastro Nacional de Imóveis Rurais

CPI Comissão Parlamentar de Inquérito

CRI Cartório de Registro de Imóveis

Emplasa Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano

FAO Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura

Funai Fundação Nacional do Índio

Gegran Grupo Executivo da Grande São Paulo

GPS Global Positioning System

Incra Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

ITR Imposto Territorial Rural

LGAF Land Governance Assessment Framework

Siapa Sistema de Administração Patrimonial

SNCR Sistema Nacional de Cadastro Rural

SPU Secretaria do Patrimônio da União

SRI Serviço de Registro de Imóveis

UMC Unidades Municipais de Cadastramento

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 12

1 PERIODIZAÇÃO DA OCUPAÇÃO TERRITORIAL DO BRASIL: OS ASPECTOS

LEGAIS DA POSSE E A INDEFINIÇÃO DA PROPRIEDADE COMO

DETERMINANTES DOS PROBLEMAS DE DEBILIDADE DA GOVERNANÇA

FUNDIÁRIA ........................................................................................................................... 17

1.1 Regime sesmarial e de apossamento ........................................................................... 18

1.2 A Lei de Terras de 1850 .............................................................................................. 19

1.3 A República e a destinação das terras públicas aos estados .................................... 21

1.4 O registro obrigatório e os cartórios .......................................................................... 25

1.5 O Estatuto da Terra ..................................................................................................... 29

1.6 A redemocratização e a Constituição de 1988 ........................................................... 30

1.7 A Lei nº 10.267 de 2001 e o georreferenciamento ..................................................... 32

2 CAUSAS DA INSEGURANÇA JURÍDICA DA TERRA NO BRASIL ........................ 34

2.1 Cadastro e registro ....................................................................................................... 34

2.2 Posse e propriedade ..................................................................................................... 41

2.3 Ausência de demarcação das terras públicas e privadas ......................................... 48

3 CASO DO SÍTIO BARREIRO .......................................................................................... 54

3.1 Aspectos históricos da região e questão fundiária da localização do sítio Barreiro

.................................................................................................................................................. 57

3.1.1 Aspectos históricos da região ................................................................................... 58

3.1.2 Localização do Sítio Barreiro .................................................................................. 60

3.1.3 Questão fundiária ..................................................................................................... 66

3.1.4 Histórico do Sítio Barreiro ....................................................................................... 69

3.1.5 Histórico documental da propriedade até 1956 ....................................................... 69

3.2 Empreendimentos Itahyê ............................................................................................ 72

3.2.1 Histórico da Fazenda Itahyê .................................................................................... 72

3.2.2 Das retificações judiciais de área da Fazenda Itahyê ............................................. 75

3.2.3 Desapropriações na Fazenda Itahyê ........................................................................ 78

3.3 Das correições no Cartório de Registro de Imóveis de Barueri .............................. 83

3.4 Das demandas judiciais ............................................................................................... 83

3.5 As invasões sobre a área do Sítio Barreiro: um novo processo, um novo

proprietário ............................................................................................................................. 89

3.6 A posse no caso do Sítio Barreiro ............................................................................... 96

CONCLUSÕES ..................................................................................................................... 101

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 103

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INTRODUÇÃO

A definição da propriedade é essencial para que seus direitos sejam estabelecidos

de modo que proporcionem segurança jurídica ao cidadão, capacidade de organização e

gestão do território ao Estado e desenvolvimento econômico à Nação, já que a propriedade é

um meio fundamental para a produção de riqueza. Dessa forma, a propriedade deve estar

definida na lei e organizada no cadastro para que o registro de direitos seja inequívoco e

seguro. Foi a partir dessa premissa que Napoleão Bonaparte (apud HAMPEL, 1978, p. 42-43)

pensou que o cadastro das terras do seu Império iria complementar o seu Código Civil para

alcançar a ordem e garantir os direitos de propriedade:

A good cadastre will be the best complement of my civil law code to achieve

systematic order in the area of real estate property. The plan must be so

developed and be made so exact that will permit at any time to define and

record the boundaries of land property limits and to prevent the confusion or

law suits otherwise arising. The cadastre just by itself could have been

regarded as the real beginning of the Empire, for it meant a secure guarantee

of land ownership, providing for every citizen certainty of independence.

Once the cadastre has been complied […] every citizen can for himself

control his own affairs, and need not fear arbitrariness of the authorities.

A gestão ou administração da propriedade e posse da terra ainda é um tema

negligenciado pela administração pública brasileira, que, até os dias atuais, não foi capaz de

desenvolver um sistema de administração fundiária eficiente que tornasse possível conhecer o

território nacional para enfrentar os problemas, proporcionar justiça social e desenvolvimento

econômico amplo.

O enfrentamento dos problemas com a terra começa com a governança fundiária

responsável como elemento essencial, como preconiza a Organização das Nações Unidas para

a Alimentação e a Agricultura (FAO, 2007, p. v):

A governança fundiária responsável é um elemento crucial para determinar

se as pessoas, as comunidades e outros grupos conseguem conquistar os

direitos e os deveres conexos que lhes permitem utilizar e controlar a terra e

os recursos pesqueiros e florestais, de acordo com as formas pelas quais

conseguem acesso a esses deveres e direitos. Muitos problemas relacionados

à posse surgem como consequência de uma governança fraca, e as tentativas

de abordar os problemas fundiários são afetadas pela qualidade da

governança. Uma governança fraca tem efeitos adversos na estabilidade

social, na utilização sustentável do meio ambiente, nos investimentos e no

crescimento econômico (Prefácio DVGT).

Historicamente, a realidade fundiária brasileira foi marcada pela existência de

regulação formal, mas não aplicada integralmente, fazendo com que as regras do acesso à

terra sejam bastante frágeis e incipientes. A Lei de Terras, de 1850, já apresentava os

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seguintes objetivos, que buscavam regularizar a propriedade: ordenar a apropriação territorial

no Brasil, acabar com a posse, fazer um cadastro de terras e tornar a terra uma garantia

confiável para empréstimos. Contudo não foi isso que aconteceu: a terra, quer rural, quer

urbana, permanece até o presente apenas com controles frágeis que procuram garantir a

propriedade e que, dependendo da situação fundiária, nem mesmo regulam tal propriedade,

muito menos seu uso. Até o presente, não há cadastro dos imóveis privados ou das terras

públicas (devolutas ou outras), quanto mais alguma forma de regulação social adequada.

Tampouco se tem noção das terras pertencentes ao Estado pelos vários mecanismos

existentes. Nem mesmo as terras devolutas, definidas na Lei de Terras, de 1850, foram

discriminadas. Assim sendo, a pergunta formulada para a presente pesquisa é: por que existe

insegurança jurídica da propriedade de terras no Brasil?

A hipótese para responder à pergunta formulada é composta de três tópicos: 1) os

aspectos históricos e legais que contribuíram para que não alcançássemos a segurança jurídica

nos assuntos relacionados à terra pela ausência de um cadastro capaz de organizar o território;

2) a existência de dois direitos concomitantes, a posse e a propriedade, que não permitem que

o conjunto de instituições administrativas e legais sejam eficientes, sendo a insegurança

jurídica uma recidiva; 3) a indefinição jurídica e fática da propriedade, que impossibilita a

organização do território brasileiro.

Desde o descobrimento do Brasil, as administrações de Estado e até mesmo de

governo não se preocuparam em estabelecer a definição jurídica e física da propriedade.

Ainda assim, foi criado um sistema de direitos sobre um objeto não definido e delimitado.

Dado este quadro da fragilidade da governança fundiária brasileira, a terra é

passível de qualquer tipo de utilização pelos posseiros e proprietários, desde a especulativa,

passando pela produtiva, até a predatória. As consequências desse processo são bastante

abrangentes, desde estabelecer fronteira entre ricos e pobres, definindo regiões urbanas e

rurais mais ou menos valorizadas e/ou preservadas, até determinar o desenvolvimento

tecnológico setorial, a organização da produção etc. Pode-se afirmar que toda e qualquer

política de desenvolvimento territorial, seja esta rural ou urbana, necessita que a propriedade

esteja com suas regras bem definidas.

Dentre os sintomas que mostram a inexistência de uma boa governança fundiária

no Brasil, é possível citar: os constantes conflitos pela terra, a existência de posses com a

possibilidade de novos apossamentos de terras, as grandes possibilidades de fraudes nos

processos de registros de terras e a ausência de controle sobre as terras. Esses fatos mostram

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uma faceta da questão agrária que se associa à insegurança jurídica relacionada à propriedade

da terra.

O principal problema do país é a ausência de mecanismos concretos que regulem

a propriedade, o uso e a ocupação do solo rural e urbano brasileiros. Também é notório que as

regras que visavam à efetiva regulação desses mercados por meio de legislações foram

burladas ou não fiscalizadas, gerando condições mais propícias à especulação e ao uso

inapropriado da terra.

Esse é o caso do presente estudo, que nasce de uma demanda para compreender

como, do ponto de vista econômico e jurídico, é possível haver a sobreposição de títulos

registrados e posse sobre um imóvel de mais de 1.000 ha no município de Santana de

Parnaíba.

Os principais objetivos deste estudo são:

Compreender as dinâmicas legais e institucionais que foram formadas

historicamente e que acarretam a deficiência estrutural que gera os conflitos fundiários atuais,

ou seja, a não construção de um cadastro, a não delimitação das terras públicas e privadas e a

existência da posse e da propriedade;

Relatar o estudo de caso do Sítio Barreiro para compreender sua relação com as

causas apontadas como geradoras da insegurança jurídica no Brasil.

Para atender a esses objetivos, no capítulo 1, será mostrado como, historicamente,

a questão agrária brasileira não foi solucionada. O Estado brasileiro não foi capaz de regular a

propriedade da terra devido, principalmente, à ausência de um cadastro de propriedades

públicas e privadas e posses da terra. Muitas foram as tentativas de criar um cadastro

nacional, contudo a lei era editada, mas não implementada, em decorrência da importância

que a posse sempre teve para os interesses privados. Sem um cadastro, é possível usurpar as

terras públicas, já que não há um controle porque elas não estão discriminadas das privadas,

como deveria ter acontecido desde a Lei de Terras.

Com base na periodização histórica da ocupação territorial nacional, o capítulo 2

tratará das causas da insegurança jurídica da terra no Brasil. Essas causas são históricas, uma

vez que as questões fundiárias seguem indeterminadas na atualidade. A priori, serão tratadas

questões sobre o cadastro e o registro. Sem um cadastro eficiente que ordene as terras

públicas e privadas, não há como organizar o território. E a construção de um sistema de

registro de propriedades sobre áreas não delimitadas ou sem cadastro é frágil, dando margem

à possibilidade de fraudes na criação de títulos de domínio, fazendo com que os Cartórios de

Registro de Imóveis, guardiões do direito de propriedade, não sejam instituições tão

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confiáveis como deveriam ser. A posse e a propriedade serão objeto do mesmo capítulo, tendo

em vista que o fato de a posse ser sempre admitida e, até mesmo, protegida no direito pátrio

ocasiona uma série de confusões, já que temos a sobreposição de direitos de posse e

propriedade sobre áreas idênticas. O último ponto do capítulo 2 tratará da ausência de

demarcação das terras públicas e privadas, que decorre da ausência do cadastro. Isso faz com

que a administração pública não seja capaz de controlar e gerir as terras públicas. Assim,

como no caso do Sítio Barreiro, é possível que terras públicas da União que foram aforadas

desde 1580 tenham sido transferidas para o patrimônio de pessoas privadas, obedecendo, em

tese, aos meios legais.

O caso do Sítio Barreiro será tratado no capítulo 3, que relatará os aspectos

históricos da ocupação territorial da região onde está localizado geograficamente o sítio. O

imóvel, que data de 1856, sempre existiu na esfera da posse. Essa posse nunca foi convertida

em propriedade por razões desconhecidas. Em 2011, uma empresa adquiriu e cercou a área e

iniciou os trâmites para transformar sua posse em propriedade, entretanto, ao dar início a esse

processo, a empresa foi surpreendida por uma situação fundiária altamente complexa que já

estava envolvida em diversas demandas judiciais. Os conflitos envolvem pessoas que se

dizem possuidoras e outras que se dizem proprietárias com base em matrículas existentes no

Cartório de Registro de Imóveis de Barueri. No decorrer desta narrativa, questões como a

sobreposição do sítio com terra da Fazenda Itahyê foram objeto de diversas controvérsias,

tendo em vista que pairavam dúvidas sobre a legalidade das matrículas apresentadas pela

Fazenda Itahyê. Vários são os indícios de que essas matrículas, apesar de terem sido

confeccionadas aparentemente obedecendo às normas legais, estão eivadas de vícios que as

tornam nulas. Os vícios foram constatados por perícias judiciais realizadas em diferentes

processos judiciais que coincidentemente apontaram as mesmas falhas.

O estudo de caso é um exemplo real que demonstra a fragilidade da questão

fundiária brasileira, que vem desde a época do descobrimento até os dias atuais, como no sítio

Barreiro. As causas da insegurança jurídica da terra estão presentes no estudo de caso.

Podemos ver como a questão do apossamento de terras fragiliza todo o sistema. Atrelado a

isso, a ausência de um cadastro confiável gerou a falta de discriminação das terras públicas e

de delimitação das terras privadas, o que fez com que o registro de direitos da propriedade

fosse construído sobre “castelos de areia”, que despencam com facilidade e são passíveis de

fraude.

Mediante o estudo de caso do sítio Barreiro e os dados pesquisados para este

trabalho, conclui-se que as hipóteses propostas são causas da insegurança jurídica da terra no

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Brasil. Mas como tudo que está relacionado à terra no Brasil não é passível de certeza, dada a

falta de informações e a incapacidade de gestão da administração pública, restou a dúvida: a

área onde está localizado o sítio Barreiro é um aforamento ou não?

Essa pergunta não obteve resposta. Várias foram as solicitações à Secretaria de

Patrimônio da União (SPU) sobre os terrenos aforados em Barueri e Santana de Parnaíba.

Contudo a secretaria enviou apenas uma listagem de imóveis urbanos aforados, como as casas

nos condomínios Alphaville, prédios públicos cedidos para outros fins etc. Houve também a

tentativa de acessar os mapas que estão na Delegacia Fiscal do Estado de São Paulo. As

solicitações não foram respondidas a contento e, quando houve alguma resposta, a burocracia

exigida foi tamanha que inviabilizou a busca documental.

A metodologia utilizada na realização do trabalho foi baseada na pesquisa de

documentos, como transcrições, matrículas, registros paroquiais, mapas e processos judiciais.

Todos os documentos foram solicitados no decorrer da pesquisa para que estivessem sempre

atualizados, a fim de evitar que as informações pudessem ter sido modificadas. Alguns

processos, como os de desapropriação da Petrobras, da Sabesp e as retificações, foram

desarquivados, assim como o inquérito que apurou as irregularidades cometidas pelo oficial

de registro do Cartório de Imóveis de Barueri, senhor Geraldo Luppo.

Foram realizadas algumas entrevistas com pessoas relacionadas ao caso, como

proprietários e funcionários dos cartórios envolvidos e representantes das empresas. Houve

até uma visita à Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano (Emplasa) para apurar as

irregularidades apontadas pelo perito, contudo o representante da empresa que forneceu a

entrevista não teve como dar informações, tendo em vista que os fatos ocorridos e as

irregularidades apontadas haviam acontecido há muitos anos e eram desconhecidos de todos.

A pesquisa para este trabalho iniciou-se em 2013 e teve acompanhamento até o

ano de 2016.

As demandas judiciais continuam em andamento, contudo sem solução concreta

que dê a certeza da posse ou da propriedade para alguém ou que resolva a complexa questão

fundiária da região onde está o sítio Barreiro. A certeza que se tem é a de que, enquanto o

Brasil não assumir seu papel de protagonista na organização do território que compõe o

Estado, conflitos fundiários irão existir e serão de difícil solução porque não se tem dados que

forneçam segurança jurídica à terra.

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1 PERIODIZAÇÃO DA OCUPAÇÃO TERRITORIAL DO BRASIL: OS ASPECTOS

LEGAIS DA POSSE E A INDEFINIÇÃO DA PROPRIEDADE COMO

DETERMINANTES DOS PROBLEMAS DE DEBILIDADE DA GOVERNANÇA

FUNDIÁRIA

Este primeiro capítulo apresenta a periodização da ocupação territorial e do

desenvolvimento da legislação na tentativa de organizar o território brasileiro. A análise é

feita abordando dois tipos de direito que coexistem na legislação brasileira: a posse e a

propriedade.

A importância dessa análise consiste na percepção de que a existência desses dois

direitos contribuiu e contribui para que a governança fundiária brasileira seja débil. Para tanto,

são abordados os aspectos legais da legitimação da posse e a indefinição da propriedade como

determinantes dos problemas de debilidade da governança fundiária no país.

Para entender a dinâmica de ocupação territorial brasileira, é importante destacar

que, sem a definição da parcela de forma clara e inequívoca quanto a sua localização,

dimensão, limites e confrontações mediante a construção de um cadastro de terras que

represente as parcelas territoriais, não é possível ter a propriedade definida e, por

consequência, seus direitos. Outro ponto crucial para tal dinâmica é perceber que,

historicamente, a ocupação territorial ocorreu sempre pelo apossamento das terras, ou seja, os

particulares apossavam-se das terras que originalmente eram do Estado e, depois de algum

tempo, transformavam a posse em propriedade. A posse é um direito fático que existe desde o

descobrimento do Brasil e que foi convalidado com o tempo, tornando-se um modo originário

de aquisição da propriedade.

Dada a importância que a legitimação da posse possui como determinante da

ausência da governança fundiária brasileira, este capítulo discorre acerca dos aspectos legais

associados à posse que foram instituídos ao longo da história e a consequência dessa

legislação para a situação fundiária nacional. Ibraim Rocha et al. (2010, p. 143) explicam e

definem a legitimação da posse:

A legitimação de posse é um instituto genuinamente brasileiro e é

empregada para transferir o patrimônio público para domínio particular. Tem

sua origem histórica na necessidade de regularizar situações que não

encontravam amparo jurídico. Legitimação de posse é o ato administrativo

pelo qual o Poder Público reconhece ao particular, outorgando ipso facto1, o

formal domínio pleno.

1 Ipso facto é uma frase latina que significa que um certo efeito é uma consequência direta da ação em causa, em

vez de ser provocada por uma ação subsequente, como o veredicto de um tribunal.

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A regularização fundiária brasileira foi, historicamente, limitada. Esse processo

sempre esbarrou na função da Colônia em atender à acumulação primitiva na Europa e aos

interesses de um pequeno grupo privilegiado – os grandes proprietários de terras.

Consequentemente, a terra, que poderia ser um bem para o desenvolvimento econômico

nacional, deixou de cumprir essa função, dada a distribuição fundiária desorganizada e

antidemocrática que fez parte da história do nosso país. Ao longo desta seção, será visto que

as regras de acesso à terra sempre foram frágeis e incompletas. O descumprimento da

legislação e a fraca capacidade administrativa de implantação podem ser observados desde o

período colonial até os dias atuais, demonstrados nos pontos a seguir.

Historicamente a legislação fundiária brasileira está dividida em períodos

distintos: o regime sesmarial (1500 a 1821), o regime de posse (1821 a 1850), o regime de Lei

de Terras (1850 a 1889) e o período republicano (1889 até os dias atuais) (ROCHA et al.,

2010).

1.1 Regime sesmarial e de apossamento

Com o início da ocupação do nosso território em 1530, a Coroa portuguesa trouxe

para o Brasil o regime sesmarial. A concessão das sesmarias era feita por meio do repasse de

uma área de terras do patrimônio público da Coroa portuguesa para o sesmeiro (particular),

ato normatizado por cláusulas contratuais. Dentre estas cláusulas da carta de sesmaria,

estavam a obrigatoriedade de aproveitamento da terra, a medição e a demarcação, o registro

da carta em livro próprio, o pagamento de foro e a necessidade de confirmação da carta pelo

rei. Contudo as cláusulas não eram, necessariamente, cumpridas, sobretudo quanto à medição

e demarcação. O não cumprimento das cláusulas ocasionava a devolução das terras ao

patrimônio público. Alguns doutrinadores atribuem a essa “devolução” o nascimento do

instituto jurídico das terras devolutas (ROCHA et al., 2010).

A falta de um cadastro das terras em posse de particulares e de cumprimento das

obrigações geraram conflitos fundiários que levaram a Coroa portuguesa a suspender o

sistema sesmarial mediante a Resolução nº 76, de 17 de julho de 1822, fazendo com que o

apossamento passasse a ser o sistema hegemônico. Nesse sistema, o posseiro explorava e

beneficiava a terra e só poderia legalizá-la posteriormente à benfeitoria, tendo seu direito

reconhecido pelo poder público (ROCHA et al., 2010). Em linhas gerais, o sistema de posse

operava de forma similar ao regime sesmarial: a efetividade da posse só seria confirmada por

meio da ocupação, benfeitoria, beneficiamento e exploração da terra. De forma análoga, sofria

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do mesmo mal: a dificuldade da autoridade imperial em fiscalizar a legitimidade da posse, o

que permitia uma ampla margem de incerteza jurídica e econômica com relação à propriedade

da terra.

Mesmo após a proclamação da Independência, não houve inovações significativas

na legislação, operando o Estado imperial a partir dos mesmos termos estabelecidos com o

ordenamento jurídico português. A primeira Constituição Brasileira (BRASIL, 1824) não

fazia menção à posse ou a qualquer outro mecanismo de acesso à propriedade, mas garantia,

em contrapartida, o direito de propriedade em toda sua plenitude (art. 179, §22). Nesse

sentido, a categórica afirmação de Silva (2008, p. 146) esclarece a dimensão dos dilemas da

propriedade no campo em meados do século XIX: “no Brasil o sistema de propriedade

territorial estava em completa balbúrdia e quase que em parte alguma se podia dizer com

certeza se o solo era particular ou público”.

Entre o fim do sistema sesmarial e a Lei de Terras criou-se, pela Lei Orçamentária

nº 317 de 21 de outubro de 1843 (BRASIL, 1843), o registro hipotecário com a finalidade

restrita de inscrever hipotecas. Vê-se, assim, que a lei criada se preocupava com o título de

crédito, e não com a propriedade, sua existência e características. Concluindo, na vigência do

sistema sesmarial e de apossamento, não houve definição da propriedade. A posse era o modo

como se adquiria a propriedade, modo este em que não havia controle sobre a demarcação das

terras privadas e públicas, possibilitando que as terras públicas fossem facilmente

transformadas em privadas.

1.2 A Lei de Terras de 1850

A problemática sobre a apropriação da terra pública evoluiu juridicamente em

1850 com a promulgação da Lei de Terras, a qual eliminou a possibilidade de concessão

gratuita de terras pelo Estado, impondo a compra como meio de apropriação das terras do

governo. Porém ainda valeria a revalidação das cartas de sesmaria e a legitimação das posses

que não tivessem sido demarcadas e confirmadas, desde que tivessem utilização efetiva e

demarcação.

Os principais objetivos da Lei de Terras de 1850 eram:

a) Organizar o acesso à terra;

b) Inviabilizar o acesso à terra não ocupada;

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c) Estabelecer um cadastro de terras para definir áreas devolutas2;

d) Transformar a terra em um ativo confiável para uso como garantia para

empréstimos.

A Lei de Terras foi regulamentada pelo Decreto nº 1.318 de 1854, que propôs um

modo de operacionalização para cumprimento dos objetivos estabelecidos em 1850. O decreto

criou uma repartição de terras públicas para medir, dividir e descrever as terras devolutas,

fiscalizar a distribuição das terras devolutas, regular as operações de venda, promover a

colonização do território, promover o registro das terras possuídas, enfim, promover todas as

medidas necessárias para o bom desempenho e execução da Lei de Terras (BRASIL, 1854).

Para operacionalizar a legislação, todos os possuidores de terras, qualquer que

fosse o título de sua propriedade ou possessão, seriam obrigados a registrar suas terras dentro

dos prazos marcados pelo decreto. As declarações para o registro seriam feitas pelos

possuidores, que as escreveriam conforme sua descrição, sendo que os vigários das

localidades existentes seriam os responsáveis por receber as declarações de registro de terras e

anotá-las em livro. Esse tipo de registro foi chamado de “registro do vigário”, sendo a forma

encontrada para saber quais terras estavam na posse dos privados e quais ainda eram públicas,

tentando, assim, organizar o território brasileiro, que não possuía qualquer tipo de informação

sobre suas terras. O registro paroquial ou registro do vigário remonta ao sistema da Lei de

Terras, pois estava previsto no art. 97 do decreto supracitado, que obrigava os possuidores de

qualquer título a registrar suas terras perante os vigários das paróquias.

Rocha et al. (2010) assevera que os vigários teriam que simplesmente transcrever

as declarações (que eram cobradas em réis, por letra, conforme o número de palavras, por

isso, na maioria dos casos, eram bem resumidas, quase “telegráficas”, e confusas, pois

omitiam detalhes importantes sobre a exata localização do imóvel), sem poder contestá-las ou

corrigi-las (ROCHA et al., 2010). Vale ressaltar que, a não ser nos casos citados

anteriormente, estava proibido se apossar de terras, fossem elas públicas ou particulares. O

apossamento indevido foi elevado ao patamar de crime com sanções de prisão e multa.

Assim sendo, o registro paroquial era de caráter autodeclaratório, feito pelo

possuidor de terra, o qual tinha a liberdade de definir o conteúdo do registro que seria

2 A Lei Imperial nº 601 (BRASIL, 1850), no seu art. 3º, dá o seguinte conceito de terras devolutas: “as que não

se acharem aplicadas a algum uso público nacional, provincial ou municipal” (§ 1º); “as que não se acharem no

domínio particular por qualquer título legítimo, nem forem havidas por sesmarias e outras concessões do

Governo Geral ou Provincial, não incursas em comisso por falta do cumprimento das condições de medição,

confirmação e cultura” (§ 2º); “as que não se acharem dadas por sesmarias, ou outras concessões do Governo,

que, apesar de incursas em comisso, forem revalidadas por esta Lei” (§ 3º); “as que não se acharem ocupadas por

posses, que, apesar de não se fundarem em título legal, forem legitimadas por esta Lei” (§ 4º) (todas as citações

tiveram sua ortografia atualizada).

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transcrito pelo pároco. Este registro não foi capaz de reorganizar a estrutura fundiária e nem

de discriminar as terras públicas das particulares em todo o território nacional, especialmente

quando analisado ante as especificidades e fragilidades do registro. Os vigários eram

obrigados a aceitar as declarações da maneira que fossem prestadas, mesmo que faltassem

informações requeridas. Ante essa fragilidade na autodeclaração feita pelos possuidores aos

párocos da época, o registro do vigário nunca foi tido como um tipo de sistema registral, mas

como um cadastro, não sendo válido como título que comprovasse a propriedade de um

cidadão. Esses “registros” são facilmente impugnados quando utilizados como prova da

propriedade e não servem para transferir domínio no Cartório de Registro de Imóveis, mas

apenas para comprovar a posse sobre a área descrita.

A necessidade de se utilizar a terra como uma garantia a empréstimos e outros,

principalmente pelo setor privado e pelos proprietários de terras, fez com que, em 1864, a Lei

nº 1.237 criasse o cartório de registros geral e hipotecas, que reformava a legislação

hipotecária de 1843 e estabelecia as bases das sociedades de crédito real. O registro geral

criado compreendia “a transcrição dos títulos de transmissão dos imóveis suscetíveis de

hipoteca e a instituição de ônus reais” (BRASIL, 1864).

Em função da incapacidade administrativa de implementar a Lei de Terras e dos

interesses dos grandes proprietários do país, esta lei manteve a possibilidade de regularização

das posses, abrindo espaço para a continuidade na ocupação de terras públicas, o que

inviabilizou o estabelecimento de um cadastro efetivo, tendo em vista que havia uma

indefinição das propriedades ante sua não demarcação.

1.3 A República e a destinação das terras públicas aos estados

Com a proclamação da República, em 1889, foi necessário elaborar um novo

modelo político-administrativo para organizar o Estado. Nesse contexto, um ato pouco

comentado na historiografia é a promulgação do Decreto nº 451-B, de 31 de maio de 1890,

que estabelece o registro e transmissão de imóveis pelo sistema Torrens, regulamentado pelo

Decreto nº 955-A de 1890. Isto é, seria criado um sistema de cadastramento a partir das

transmissões dos imóveis, como exatidão de localização e presunção absoluta de domínio.

Esse tipo de sistema proporciona o conhecimento da propriedade em sua dimensão territorial

e geográfica, bem como quem exerce os direitos sobre ela, não havendo possibilidade de

contestação.

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O sistema Torrens3, utilizado inicialmente na Austrália, caracteriza-se por

cadastrar os imóveis a partir da sua situação num dado momento. O fato interessante é que

este sistema não foi aplicado no Brasil, tendo o país adotado a continuidade da alienação das

terras públicas e o sistema de posse como modo de adquirir a propriedade.

Na Constituição Federal de 1891, foi inaugurado o modelo federativo, como

temos até os dias de hoje, no qual se instituiu a figura dos estados federados, cada qual com

sua autonomia. Tratando especificamente da débil governança fundiária, é na Constituição de

1891 que se deu início à confusão acerca da legitimidade administrativa e da responsabilidade

sobre as terras devolutas4, que, até então, havia sido da Coroa portuguesa e do Império

exclusivamente. O art. 64 de Constituição de 1891 estabeleceu que pertenciam aos estados as

minas e terras devolutas situadas nos seus respectivos territórios, cabendo à União somente a

porção do território que fosse indispensável para a segurança nacional, fortificações,

construções militares e estradas de ferro federais (BRASIL, 1891).

Assim, parte das terras devolutas passou a ser de responsabilidade dos estados

federados. Ainda que essa desfederalização tenha sido mais intensa em algumas unidades do

que em outras, o fato central é a criação de mais uma ambiguidade na concessão de títulos5 e,

consequentemente, na incapacidade de regular o acesso à terra, uma vez que não se tinha

conhecimento do que era terra pública e privada e muito menos das públicas federais e

estaduais. Isto se deu pela divisão das atribuições sobre essas áreas sem a correspondente

demarcação, de modo que o traço de distinção entre os territórios em questão era nada mais

que uma linha imaginária criada pela lei. Somada a essa indefinição acerca do conceito de

terras devolutas (federais e estaduais) e sua localização está a ausência de um cadastro que

3 O registro Torrens é um sistema registrário especial originário da Austrália. Desde sua criação, em 1858,

passou a ser conhecido pelo nome de seu idealizador, o irlandês Sir Robert Richard Torrens. O registro Torrens,

no Brasil, foi disciplinado pela primeira vez em 31 de maio de 1890, pelo Decreto nº 451-B, que fora

regulamentado pelo Decreto nº 955-A, de 5 de novembro de 1890. Trata-se de um instituto de registro

imobiliário muito importante e seguro para os imóveis rurais, porém de pouco uso no Brasil. Atualmente, esse

registro está disposto nos artigos 277 a 288 da Lei de Registros Públicos nº 6.015/73. Ele é facultativo, porém

oferece ao proprietário do imóvel rural a presunção absoluta de domínio. No Brasil, esse tipo de registro foi

instalado no Rio Grande do Sul, Mato Grosso, Goiás, Minas Gerais, Bahia e Pará (PAIVA, [2011]). 4 O conceito de terra devoluta compreende como espécie do gênero terras públicas, ao lado de tantas outras,

como os terrenos reservados, terrenos de marinha etc. Segundo a Lei Imperial nº 601, de 1850, devolutas são as

terras que não se acham no domínio particular, por qualquer título legítimo, e aquelas que não são utilizadas pelo

poder público, nem destinadas a fins administrativos. Di Pietro (2002) diz que devoluta é a terra não incorporada

ao domínio particular e também aquela que já se incorporou ao domínio público, mas não é afetada a uma

finalidade ou uso públicos. 5 Até os dias de hoje, podemos encontrar processos administrativos e judiciais acerca da validade ou não de

títulos emitidos pelos estados em área de terras devolutas da União e vice-versa. Para disciplinar a questão da

dominialidade federal das terras devolutas em faixa de fronteira, criou-se o instituto da ratificação dominial que é

um instrumento jurídico de que se serviu o legislador ordinário para confirmar o domínio federal sobre a faixa

fronteiriça e, ao mesmo tempo, proteger a posse exercida pelo possuidor de boa-fé.

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identifique as terras sob domínio privado, tendo em vista que as terras devolutas são

conhecidas a partir da exclusão do que é terra privada.

Os próprios estados, em alguns momentos históricos, dotaram-se da capacidade de

concessão de propriedades com ou sem títulos. Esse é o mecanismo básico que fez e faz com

que nunca fosse estabelecido um cadastro efetivo que permitisse definir, de forma clara, as

áreas devolutas, passíveis de utilização por outros tipos de políticas fundiárias.

Até o início do século XX, ainda não se dispunha de nenhum sistema de registro e

cadastro que possibilitasse a identificação das terras públicas e privadas de modo que

organizasse o acesso e o uso da terra no Brasil. As intenções de criação de um sistema de

registro de imóvel antecederam a criação de cadastros territoriais, sendo evidente que o

registro de direitos não se importou com a delimitação espacial do imóvel e sua localização na

porção do território.

Foi no estado de São Paulo que ocorreu o principal passo para o sistema hoje

vigente de registro de imóveis em cartórios, com a institucionalização do registro público de

terras, em 1900. Logo após a determinação da Constituição Federal de 1891, que atribuiu

titularidade das terras devolutas aos estados, São Paulo editou a Lei nº 323, de 22 de junho de

1895 (SÃO PAULO, 1895), que dispôs sobre as terras devolutas, sua medição, demarcação e

aquisição, sobre legitimação ou revalidação das posses e concessões, discriminação do

domínio público do particular e outras providências. Em sua regulamentação pelo Decreto nº

734, de 5 de janeiro de 1900, fica evidente a preocupação com os vários aspectos da gestão de

terras, do registro das terras privadas e públicas até os problemas de transmissão dos imóveis.

Para sintetizar, cita-se Bastiaan P. Reydon (2007, p. 34):

A institucionalização do Registro Público de Terras, em 1900, é,

possivelmente, o principal passo para o sistema hoje vigente de registro de

imóveis em cartórios. Nesta regra, todos precisam demarcar e registrar seus

imóveis, quer rurais quer urbanos, mas sem qualquer fiscalização, e sem que

haja um cadastro. O Estado, como também precisaria demarcar e registrar as

suas terras (devolutas), o que é impraticável – pois estas são definidas por

exclusão –, age portanto ilegalmente. Esta obrigatoriedade acaba por

potencializar as possibilidades de fraudes nos registros nos cartórios

públicos.

Concluindo, a proclamação da República, apesar de modificar a organização em

estados, não foi capaz de criar e de definir a propriedade a partir da identificação das terras

privadas e das terras públicas – que determinaria as terras devolutas federais e estaduais –, o

que dificultou ainda mais a gestão do território. Um sistema de registro de direitos foi criado

sem ter o cadastro para definir a propriedade sobre a qual esses direitos recairiam, o que

continuou permitindo a posse como modo de aquisição da propriedade.

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1.4 O registro obrigatório e os cartórios

A promulgação do Código Civil (CC) de 1916 (Lei nº 3.071, de 1 de janeiro de

1916) gerou a incapacidade de regulação efetiva sobre o acesso à terra no Brasil tanto por

reafirmar o cartório como a instituição de registro como por tornar obrigatório o registro para

ser titular de domínio, estendendo ao Estado a obrigação civil de registrar suas terras6 e

possibilitando que as terras públicas que não estivessem registradas fossem objeto de

usucapião7 (BRASIL, 1916). Nas considerações de Silva (1996, p. 324) sobre a inovação

trazida pelo CC de 1916, nota-se que a legislação, mais uma vez, causou confusão ao

transformar o Estado em um proprietário como os outros:

Aceitando-se a tese de que o Estado estava sujeito às normas do direito civil

nas operações de alienações de terras devolutas, isso significava, como

observou Cirne Lima, a obrigatoriedade da transcrição do ato de compra e

venda no Registro Geral de Imóveis. Azevedo Marques sustentava mesmo a

ideia de que a lei estadual que fazia concessão de terras devolutas aos

municípios dependia de transcrição no registro, para ser válida. Com isso

completava-se o quadro para a transformação do Estado num proprietário

como os outros. E assim ficava sustentada a doutrina da prescritibilidade das

terras devolutas. Ou, em outras palavras, a possibilidade da usucapião das

terras devolutas.

O CC de 1916 estabeleceu-se como um marco fundamental da institucionalidade

do acesso à terra no Brasil ao definir que o registro em cartórios de imóveis era necessário

para comprovar sua titularidade. Da análise dos institutos legais e jurídicos, destaca-se a

preocupação com o direito individual de propriedade sobre a terra e a possibilidade de dispor

de seu uso e gozo, beneficiando apenas o detentor de seu direito.

Neste cenário de confusão acerca da legitimidade na gestão das terras devolutas e

de indefinição de localização das áreas sob responsabilidade dos estados, do governo federal e

do interesse privado, foi editada a Lei de Registros Públicos nº 6.015/73 (BRASIL, 1973). No

início dos anos 1970, a lei em questão acabou por consolidar o registro no Cartório de

Imóveis8 como elemento essencial para comprovação da titularidade e único modo de

6 Há inúmeros técnicos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e de outros órgãos

ligados à problemática que entendem que não haveria necessidade de o órgão registrar seus imóveis no cartório,

mas a lei em vigor estabelece isso. Portanto se se achar que não há a necessidade não apenas há que se mudar a

lei assim como encontrar outro mecanismo para registrar os imóveis governamentais. Outros países, como nos

Países Baixos, as terras públicas também têm que ser registradas no sistema de registro. 7 A jurisprudência brasileira não é unânime quanto à possibilidade de usucapir terras devolutas. Contudo, em

alguns casos, há o entendimento de que não basta alegar que a terra é devoluta, é necessário, à União ou ao

estado, comprovar a titularidade sobre a terra exigida pela legislação civil com o registro no Cartório de Registro

de Imóveis. 8 Para melhor entendimento, faz-se as seguintes considerações sobre o registro de imóveis, suas atribuições e a

matrícula: o registro de imóveis é um serviço público, de organização técnica e administrativa, exercido em

caráter privado, por delegação do poder público, com atribuição de garantir a publicidade, autenticidade,

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comprovação desta para aquisição de direitos reais sobre a propriedade, como já havia

afirmado o CC de 1916.

A nova legislação teve como objetivo tentar proporcionar segurança jurídica ao

sistema registral ao efetuar o registro de direitos sobre um imóvel individuado, inaugurando o

sistema matricial, com base em suas características e confrontações. O problema com a

aplicação dessa lei é que os registros se iniciaram com base nas descrições precárias dos

imóveis que eram feitas no passado, consequência do processo histórico de colonização, da

cultura do latifúndio e da ausência de um cadastro territorial. Sérgio Jacomino (2000), sobre o

reflexo das descrições precárias, explica:

A falta de precisão na descrição dos imóveis estava relacionada com o

modelo de exploração da Colônia. No início, as concessões de terras eram

imensas, existia um modelo extrativista que se baseava no latifúndio em tudo

conforme o que se convencionou chamar de modelo colonial. Havia um

aproveitamento extensivo do solo com seu esgotamento pelo uso

inadequado, com uma intrínseca necessidade de mobilidade – o que

acarretava uma flexibilização dos limites da posse ou propriedade. A efetiva

posse tinha essa característica dinâmica, expandia-se de um lado para o

outro. Não admira que, embora houvesse à disposição tecnologia geodésica

para realização de uma adequada demarcação das terras, isso não se fará na

Colônia.

O legislador, quando propôs a edição da Lei de Registros Públicos, não se

preocupou com a questão da confirmação da existência do imóvel, sua dimensão e localização

geográfica. Ou seja, os registros começaram a ser efetuados sem a existência de um cadastro

territorial que pudesse confirmar as informações contidas na matrícula, que viria a ser o

histórico do imóvel a partir de então, valendo como título de domínio.

Houve deficiência relacionada ao sistema de registro de imóveis, que produziu

direitos de propriedade sem a definição da propriedade em si, ou seja, sem um cadastro que

identificasse as parcelas com exatidão. Essas lacunas associadas à cultura do apossamento

ocasionaram problemas que fragilizaram o sistema de registros de imóveis. Desse modo, os

direitos de propriedade (principal objetivo do sistema de registros) foram garantidos sem que

a questão da demarcação de terras em geral estivesse definida e, ainda, que fosse reconhecida

e regulada a posse, sobre a qual não havia controle.

Muito embora tenha ocorrido uma mudança substancial com a Lei de Registros

Públicos, ainda havia o descompasso entre o registro (atribuição dos cartórios, entes do poder

judiciário) e o cadastro (atribuição do poder executivo, mediante seus órgãos) que, apesar de

segurança e eficácia dos direitos reais e de alguns direitos pessoais incidentes sobre a propriedade imobiliária. É

a instituição garantidora do direito de propriedade. O registro é realizado por meio da matrícula que contém a

descrição física do imóvel, o nome do proprietário e outras informações sobre o imóvel. A delegação pelo poder

público é realizada por meio de concurso de provas e títulos, realizado pelo poder judiciário.

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já existirem quando está lei foi editada, não eram integrados, sendo certo que a própria

legislação excluía a necessidade de apresentação concomitante da existência física do imóvel

para confirmar a veracidade do registro em relação ao espaço territorial. Por isso, o registro da

propriedade, que é a instituição destinada a tutelar a segurança da transação imobiliária, não

conseguiu cumprir eficazmente seu objetivo basilar. Nas palavras de James Holston (1993, p.

71):

Todas as transações relacionadas com a propriedade devem ser registradas a

fim de serem obtidos os direitos legais relevantes. Atualmente, esses

registros são regulados pela Lei dos Registros Públicos (6015/1973) a qual

define as formalidades que constituem o sistema brasileiro de cartórios –

sistema privado, labiríntico e corrupto. Seu enorme poder burocrático vem

do Código Civil (art. 533), o qual afirma que as transações envolvendo bens

imóveis não transferem o direito de propriedade, ou os direitos sobre ela, a

não ser a partir da data na qual são registrados nos livros dos cartórios, ou

seja, como diz o ditado: “quem não registra, não possui”.

Apesar da obrigatoriedade do registro no cartório, parte considerável dos negócios

realizados não é levada a registro. O estudo do Land Governance Assessment Framework

(LGAF) chegou a estimar grandes números para a ausência de registros nos cartórios,

segundo World Bank (2014, p. 72, grifo do autor):

As avaliações mostraram que a cobertura do registro imobiliário é

muito incompleta e está desatualizada. No Pará, menos de 50% das

propriedades urbanas foram reportadas como formalmente registradas,

enquanto no Piauí e em São Paulo são consideradas como menos de 70%.

Para as propriedades rurais, a situação no Pará e no Piauí foi classificada do

mesmo modo que as propriedades urbanas. Além disso, quase

unanimemente, os registros sobre terras públicas e privadas foram

considerados desatualizados em pelo menos 50% dos casos.

Em síntese, a inovação trazida pelo CC de 1916 impôs a obrigatoriedade do

registro de todos os imóveis, independentemente de serem públicos ou privados, para

comprovar e exercer os direitos de propriedade. Contudo cumpre resgatar que a lei surgiu sem

que as lacunas citadas desde a época do Brasil colônia fossem preenchidas. Assim, criou-se

um sistema de registro de imóveis para garantir direitos sobre propriedades indefinidas, uma

vez que não havia um cadastro territorial que permitisse conhecer as parcelas com exatidão

para o exercício dos direitos. A consolidação dos direitos sobre a propriedade indefinida é um

dos problemas que persiste até os dias atuais, sendo este um aspecto relevante que caracteriza

a debilidade de governança fundiária brasileira. Em decorrência dele é que os setores

públicos, privados e a sociedade civil são reféns da história da ocupação territorial, sendo

difícil apurar atualmente quais destes registros de direitos consolidados sobre propriedades

indefinidas foram efetuados de forma regular ou não.

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1.5 O Estatuto da Terra

A grande inovação institucional na esfera da política e administração fundiária

brasileira é o Estatuto da Terra, de 1964. De acordo com ele, o Estado tem a obrigação de

garantir o acesso à terra para quem nela vive e trabalha. Nesse momento, surgiram vários

conceitos que são utilizados até hoje, como o de imóvel rural.

O conceito mais geral é de que o imóvel rural deve cumprir funções sociais, como

apoio ao bem-estar dos proprietários e trabalhadores, níveis satisfatórios de produtividade do

uso da terra, conservação dos recursos naturais e obediência às leis trabalhistas. O estatuto

consignou uma tipologia de imóvel rural para enquadrar as propriedades agrárias do país.

Trouxe um catálogo de imóveis rurais, definindo cada tipo, tecnicamente, como propriedade

familiar, módulo rural, minifúndio, latifúndio por dimensão e empresa rural.

Com o objetivo de orientar a implantação da política agrária e agrícola, o Estatuto

de 1964 instituiu o Cadastro de Imóveis Rurais. Todos os imóveis rurais privados ou públicos

deveriam ser cadastrados, inclusive as posses por justo título e por simples ocupação. Os

proprietários e posseiros deveriam providenciar informação sobre a situação da documentação

e uso da terra (usada para estimar a produtividade) tanto para facilitar a reforma agrária como

para a cobrança do Imposto Territorial Rural (ITR).

A operação inicial de cadastro declaratório ocorreu na “Semana da Terra” ao final

de 1965, quando foram instaladas as Unidades Municipais de Cadastramento (UMC). Em

1970, foi criado o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), uma

autarquia federal instituída pelo Decreto nº 1.110 com a missão prioritária de implantar o

Estatuto da Terra. Segundo definição legal, o Incra tem como missão prioritária realizar a

reforma agrária, manter o Cadastro Nacional de Imóveis Rurais (CNIR) e administrar as terras

públicas da União. O órgão tornou-se responsável pela gerência do Sistema Nacional de

Cadastro Rural (SNCR), o qual mantinha o Cadastro de Imóveis Rurais9.

O Estatuto da Terra manteve a legitimação de posse, permitindo, assim, a

titulação de terras públicas ocupadas informalmente. Este instituto legal, mais uma vez, não

foi implantado com celeridade, sendo certo que o Plano Nacional de Reforma Agrária

demorou mais de 20 anos para ser elaborado, o que ocorreu na década de 1980 com a abertura

democrática no governo de José Sarney. A incipiente aplicação do estatuto gerou maior

9 Cabe frisar que, na maior parte dos países do mundo, o cadastro é descentralizado, ou seja, é executado pelos

estados/províncias (ex.: Argentina) entre outros ou mesmo nos municípios. Certamente a dificuldade em se

fiscalizar tanto as informações cadastrais quanto o ITR, dada a abrangência, sejam motivos para os problemas

dos cadastros.

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concentração de propriedade agrária, conforme atestam os índices dos órgãos oficiais e os

jornais diários ao retratarem a luta armada e as mortes pela posse da terra. Os princípios

técnicos definidores dos institutos agrários criados a partir do Estatuto da Terra tiveram plena

vigência até a promulgação da Constituição Federal de 1988.

Entretanto, durante o governo militar, um conjunto de decisões acabou por

desestabilizar ainda mais a garantia à propriedade da terra no país: os Decretos-Lei nº

1.164/71 (BRASIL, 1971) e 2.375/87 (BRASIL, 1987). O primeiro (nº 1.164/71) federalizou

a alocação e a gestão das terras devolutas situadas na faixa de 100 quilômetros de largura em

cada lado do eixo de rodovias na Amazônia Legal e as terras situadas na faixa de fronteira

internacional que foram colocadas sob a tutela do Conselho de Segurança Nacional. Ante esse

cenário, o governo federal passou a interferir nas decisões e políticas fundiárias dos estados da

Amazônia Legal (MORENO, 1999, p. 80). No segundo decreto (nº 2.375/87), as atuais terras

públicas devolutas já construídas, em construção ou projetadas situadas nas faixas de 100

quilômetros de largura, em cada lado do eixo das rodovias, deixaram de ser consideradas

indispensáveis à segurança e ao desenvolvimento nacional.

O Estatuto da Terra, apesar de trazer conceitos e ter a intenção de democratizar o

acesso à terra, não produziu nenhum efeito considerável que possibilitasse definir claramente

a propriedade das terras públicas e privadas. O cadastro de imóveis rurais criado continuou

sendo autodeclaratório e, como na época do registro do vigário (1864), sem conter

informações sólidas sobre a dimensão, limites, confrontações e localização geográfica da

propriedade que estava sendo declarada. Havia e há a possibilidade de cadastramento da

posse, sendo este útil para comprovar a posse na ação de usucapião, dando continuidade ao

sistema de apossamento como modo originário de aquisição da propriedade.

1.6 A redemocratização e a Constituição de 1988

A redemocratização – fim do governo militar por meio do Decreto-Lei nº

2.375/87 (BRASIL, 1987), que revogou o Decreto-Lei nº 1.164/71 (BRASIL, 1971) –, além

de retornar parte destas terras devolutas aos estados federados, manteve áreas indispensáveis à

segurança e ao desenvolvimento nacional como terras devolutas sob a administração do

governo federal. Contudo a devolução não ocorreu imediatamente, uma vez que o Incra já

tinha iniciado vários processos para a regularização fundiária nesses corredores. Na época, o

Incra solicitou que os estados apresentassem um plano de uso da terra antes da sua devolução

na tentativa de organizar a transferência. Ambas as situações criaram uma grande confusão

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sobre a jurisdição de extensas áreas na Amazônia. As incertezas sobre as terras que foram

devolvidas aos estados permanecem até os dias atuais.

Por meio do Decreto-Lei de 1987, o governo federal manteve sob seu controle

áreas consideradas “indispensáveis para a segurança nacional e desenvolvimento” e ampliou o

controle sobre outras zonas que eram ricas em minerais.

Em 1988, foi promulgada a nova Constituição do Brasil, que mudou o panorama

nacional em diversos aspectos relevantes às questões fundiária, agrária e ambiental. A

propriedade (ainda não definida) é afetada pelo conceito de função socioambiental, além do

econômico que já existia, que acaba por restringir o direito individual de usar e dispor da

propriedade rural que havia anteriormente. Segundo o artigo 186 da Constituição (BRASIL,

1988):

A função social é cumprida quando a propriedade rural atende

simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em

lei, aos seguintes requisitos:

I - aproveitamento racional e adequado;

II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do

meio ambiente;

III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;

IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos

trabalhadores.

Nesse sentido, surge a necessidade de mediar o conflito entre estes dois valores: a

garantia do direito de propriedade e a garantia da proteção ao meio ambiente. Assim, com a

promulgação da Constituição de 1988, a propriedade deixa de ter a concepção de coisa

individual, passando a ser conceituada como um direito que deve estar de acordo com a

função socioambiental e econômica. Desse modo, o proprietário já não é o exclusivo titular do

bem, ainda que goze de certos poderes sobre ele, pois é o cumprimento dos deveres (tendo em

vista a satisfação da finalidade social do direito) que legitima o poder, a conservação e a tutela

da propriedade pelo Estado (BENATTI, 2003).

A partir da Constituição de 1988, a regulamentação do direito de propriedade pelo

legislador e pela administração pública deve levar em consideração os diversos estatutos

legais existentes e assegurar que a limitação ao direito de propriedade não inviabilize

completamente a utilização econômica do bem para fins socialmente úteis. A propriedade

constitucional representa a fusão dos interesses do particular com a função social.

O legislador e os administradores públicos têm, em esforço comum, pensado em

formas para desenvolver cadastros que possam atender aos diferentes tipos de função que

foram atribuídos à propriedade rural após o advento da última Constituição em busca da

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melhora da governança fundiária. Com esse intuito, em 2001, foi promulgada a Lei nº 10.267,

que criou o Cadastro Nacional de Imóveis Rurais.

1.7 A Lei nº 10.267 de 2001 e o georreferenciamento

Em 2001, a edição da Lei n° 10.267 (BRASIL, 2001) alterou a Lei de Registros

Públicos e outros diplomas legais e instituiu um projeto de cadastro territorial rural: o

georreferenciamento de imóveis rurais, previsto nos artigos 176 e 225 da Lei de Registros

Públicos.

Augusto (2013) sintetiza a norma como sendo a obrigatoriedade de

georreferenciar o imóvel, sob pena de, enquanto o proprietário não o fizer, estar impedido de

aliená-lo ou parcelá-lo. Com a edição da lei do georreferenciamento, todas as propriedades

rurais devem ter seus limites determinados por um levantamento feito com base no Sistema

Geodésico Brasileiro por meio do Global Positioning System (GPS), sendo que as

informações são cadastradas num banco de dados nacional mantido pelo Incra e pela Receita

Federal. Essa norma criou o CNIR, que determinou a obrigatoriedade de atualização do

cadastro sempre que houver alteração nos imóveis rurais, o georreferenciamento (de acordo

com o Sistema Geodésico Brasileiro) e, ainda, o intercâmbio mensal de informações entre os

serviços do Cartório de Registro de Imóveis e o Incra, promovendo uma integração entre o

registro e o cadastro. O ponto de grande relevância da Lei nº 10.267/2001 é o intercâmbio

sistemático de informações entre o cadastro e o registro de imóveis.

Esse cadastro começou a ser implementado apenas em 2010, em ação conjunta

entre o Incra e a Receita Federal do Brasil, estando em construção até os dias atuais. É a

primeira vez que um cadastro fundiário brasileiro vai contemplar a informação geoespacial do

imóvel rural, com a obrigatoriedade de georreferenciar a área para adequá-la à informação

contida no Cartório de Registro de Imóveis. Assim, esse instituto legal serve apenas para os

imóveis que já possuem título de domínio/matrícula.

Pela periodização histórica, percebe-se que o Brasil foi criando leis e normas que

regulassem o registro e o cadastro sem, contudo, trabalhar em sua construção a ponto de ter

segurança jurídica dos direitos de propriedade e sem integrá-los de forma que registro e

cadastro pudessem dialogar mediante um sistema. Outro ponto que, historicamente, ficou

pendente de resolução foi a questão da definição das terras devolutas. Essa indefinição

possibilitou que a posse fosse (e ainda seja) uma forma de aquisição da propriedade. Muito

embora a legislação não permita a posse e a usucapião das terras públicas, estas sempre foram

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possíveis, tendo em vista que o Estado brasileiro não tinha um cadastro de suas terras,

sofrendo desfalques em patrimônio público pela regularização das terras pelo próprio Estado e

por meio de procedimentos fraudulentos. Todos esses pontos não foram resolvidos de modo

satisfatório até os dias atuais, sendo a insegurança jurídica dos direitos de propriedade uma

constante desde a época do Brasil colônia.

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2 CAUSAS DA INSEGURANÇA JURÍDICA DA TERRA NO BRASIL

Este capítulo irá tratar acerca das causas da insegurança jurídica da terra em nosso

país advindas do contexto histórico exposto no capítulo 1. Desde os primórdios da história do

Brasil, foram diversas as tentativas de organizar o território, mas nenhuma delas foi efetiva,

uma vez que os problemas de demarcação das terras públicas e privadas, a ausência de um

cadastro de terras e a possibilidade do apossamento criando dois tipos de direitos, posse e

propriedade, não foram sanados até os dias atuais.

A evidência de que essas causas contribuem para a confusão fundiária e refletem

na atualidade ficarão claras no capítulo que tratará do caso do sítio Barreiro. Essas causas

ocasionam insegurança jurídica na área onde se encontra o sítio, provocando uma série de

conflitos de difícil solução entre particulares, posseiro e possíveis proprietários, que acabam

judicializados. A complexidade da confusão fundiária do sítio Barreiro gerou um conjunto de

direitos sobre o território sem que a propriedade estivesse definida de forma clara e

inconteste.

2.1 Cadastro e registro

Esta seção tratará de alguns conceitos que ajudarão na compreensão de que a

indefinição tanto jurídica quanto fática da propriedade e a ausência de um cadastro são

realmente entraves para o alcance de uma boa governança de terras. Em seguida, irá expor a

sistemática de confecção de documentos passíveis de registro no Cartório de Registro de

Imóveis, identificando os órgãos responsáveis e a forma como ocorre o registro de títulos no

Brasil.

Para cumprir a missão de ordenamento do território datada de 1850, com a Lei de

Terras, o governo brasileiro teria que construir um cadastro para regularizar as posses, definir

a propriedade das terras públicas e privadas e conceder títulos de domínio a partir da venda de

terras públicas aos particulares. Em síntese, o objetivo da lei era a criação de um sistema de

administração de terras que consistisse na organização das informações relativas à terra:

cadastro de terras e registro de direitos da propriedade que pudessem garantir a segurança

jurídica da terra.

Para melhor entendimento, cabe conceituar o que seja o cadastro e o registro,

relatando a importância desses dois institutos e de sua complementaridade, e entender por que

a ausência de cadastro é tão prejudicial à organização do território e contribui para a

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insegurança jurídica da propriedade, gerando conflitos como o existente no caso do sítio

Barreiro.

O conceito de cadastro internacionalmente aceito é o da Federação Internacional

de Geômetras (FIG): um inventário público de dados metodicamente organizados,

concernentes a parcelas territoriais, dentro de uma determinada região administrativa, baseado

no levantamento dos seus limites. De forma mais ampla, o cadastro é definido da seguinte

forma:

Um sistema de informação de terra atualizado contendo um registro de

interesses em terra (por exemplo, de direitos, restrições e responsabilidades).

Ele geralmente inclui uma descrição geométrica das parcelas de terra ligados

a outros registros descrevendo a natureza dos interesses, a propriedade ou o

controle desses interesses, e muitas vezes o valor da parcela e suas

melhorias. Pode ser implementado por interesses fiscais (por exemplo,

avaliação e tributação equitativa), legais (transmissão de propriedade), para

auxiliar na gestão da terra e uso do solo (por exemplo, para outros fins de

planejamento e outros objetivos administrativos), e permite o

desenvolvimento sustentável e a proteção do ambiente (FIG apud

WILLIAMSON et al., 2010, p. 55, tradução nossa).

Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU, 1996, p. 11, tradução nossa),

um cadastro de terras deve conter algumas características específicas para que seja efetivo:

O cadastro é semelhante a um registro de terras na medida em que contém

um conjunto de informações sobre a terra. Cadastros são baseados tanto na

parcela de terra de propriedade, que é a área definida pela propriedade; ou na

área de passivo de terra que pode ser diferente da extensão da propriedade;

ou em áreas definidas pelo uso da terra em vez de propriedade da terra.

Cadastros podem apoiar tanto os registros de direitos de propriedade, ou a

tributação de terra, ou as informações sobre o uso da terra.

Cadastro também pode ter um caráter multiuso para fornecer uma ampla

variedade de informações relacionadas com a terra. Nesses casos, é melhor

se eles forem construídos em torno da parcela de terra de propriedade, pois

esta é a base jurídica para todas as transações de terra. Quando o direito de

propriedade ainda não foi provado, como pode ser o caso em que a terra está

sendo restaurada para antigos proprietários, tais registros multiusos podem

ser construídos em torno da parcela de terra, tal como definido por direitos

de utilização.

O cadastro é um sistema de informações que consiste em duas partes: uma

série de mapas ou planos que indicam o tamanho e a localização de todas as

parcelas de terra com registros que descrevem os atributos da terra.

Distingue-se de um sistema de registro de terras, em que seu objetivo último

é apenas e tão somente o direito de propriedade.

Outra definição de cadastro é fornecida pelos oficiais de registro de imóveis do

Brasil, que ressaltam tal instrumento como uma ferramenta que serve para viabilizar a atuação

do Estado para alcançar o desenvolvimento: cadastro territorial é um conjunto de informações

sobre o território feito pelo Executivo para viabilizar sua atuação político-administrativa na

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condução do Estado, orientando as políticas públicas com vistas ao desenvolvimento nacional

(AUGUSTO, 2013).

O cadastro é o instrumento para organizar o território de forma transparente para

que os direitos sobre as propriedades sejam exercidos de forma justa, de modo que evite

conflitos sobre a terra e promova a equidade e o desenvolvimento da nação. Contudo, no

Brasil, a realidade do cadastro de terras é divergente do conceito e das características

elencadas anteriormente e incapaz de resolver os problemas enfrentados pela realidade

fundiária nacional.

No Brasil, o cadastro dos imóveis é dividido entre o urbano e o rural. Os

municípios são responsáveis pela legislação de uso e ocupação do solo por meio do Plano

Diretor Municipal, da Lei do Parcelamento do Solo e da Lei de Zoneamento. Assim, temos

aproximadamente 5.700 cadastros municipais.

O cadastro rural é feito pelo governo federal por meio do Incra, que abriga o

SNCR10

. O Incra deveria conter todos os cadastros de terras públicas e privadas, contudo há

uma diversidade de cadastros espalhados e confeccionados por diferentes órgãos da

administração pública brasileira, como: o cadastro das terras indígenas, que é feito pela

Fundação Nacional do Índio (Funai); o Cadastro Nacional de Unidades de Conservação

(CNUC), que é gerido pelo Serviço Florestal; o Cadastro Ambiental Rural (CAR), que é

gerido pelo Ministério do Meio Ambiente, dentre outros. Em tese, esses cadastros deveriam

convergir para organizar o território nacional, mas eles estão dispersos entre os diferentes

órgãos da administração fundiária brasileira e não dialogam entre si, o que faz com que não

sejam eficientes e suficientes para organizar o território.

Carneiro, Erba e Augusto (2012, p. 271) evidenciam que há ainda uma distância

bastante expressiva para a obtenção do cadastro ideal, principalmente por razões de ordem

institucional e legal, que precisam e requerem solução:

A situação atual dos cadastros rural e urbano do Brasil evidencia que muitos

desafios ainda precisam ser vencidos. Os cadastros existentes ainda se

baseiam em dados 2D que se encontram dispersos em diferentes instituições,

sob diferentes padrões. Apesar dessas dificuldades, começam a se vislumbrar

oportunidades para reverter a situação. A legislação do georreferenciamento

que criou o CNIR, as Diretrizes para a formação do CTM e o Decreto nº

10

O SNCR é um sistema de cadastro que tem, de modo geral, a atribuição de cadastrar terras públicas e privadas

mediante a autodeclaração dos entes públicos e privados, de modo que abranja todos os imóveis rurais do país

(art. 7º). Assim, a lei obriga todos os proprietários, titulares de domínio útil ou possuidores de qualquer título de

imóveis rurais que sejam ou possam ser destinados à exploração agrícola, pecuária, extrativa vegetal ou

agroindustrial a efetuarem o cadastro (art. 2º da Lei nº 5.868/72). Conforme a Lei nº 5.868/72, art. 1º, o SNCR

compreenderá os cinco cadastros: Cadastro de Imóveis Rurais; Cadastro de Proprietários e Detentores de

Imóveis Rurais; Cadastro de Arrendatários e Parceiros Rurais; Cadastro de Terras Públicas e Cadastro Nacional

de Florestas Públicas (BRASIL, 1972).

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6.666/2008, que estabeleceu a implementação da Infraestrutura Nacional de

Dados Espaciais – INDE, são normas pioneiras que indicam a possibilidade

real de implementação de um cadastro territorial multifinalitário no Brasil

construído mediante parcerias institucionais.

Paixão, Nichols e Carneiro (2012), além dos problemas mencionados

anteriormente, enfatizam um aspecto que merece ser detalhado: o problema existente no país,

e em outros locais, da separação entre o cadastro e o registro. Esta separação faz com que,

com frequência, se impute aos cartórios boa parte dos problemas de governança de terras que,

na realidade, não são de sua responsabilidade. Nas palavras de Paixão, Nichols e Carneiro

(2012, p. 15):

No Brasil, a separação entre o cadastro territorial e o cadastro jurídico

demonstra a existência de diferentes sistemas de informação territorial. No

caso do cadastro rural, essa separação reflete também em diferenças

conceituais na definição da unidade territorial, como explicado em Paixão

(2010) e Carneiro et al. (2011),entre INCRA e os serviços registrais já que

esses conceitos dependem do uso de cada cadastro. Outros problemas

enfrentados no Brasil são relatados por Paixão (2010):

• Ausência de dados espaciais - cobertura espacial é incompleta,

inconsistente e mais concentrada nas áreas urbanas, onde os processos

formais de ocupação e desenvolvimento territorial ocorrem. Isso exige uma

melhor atualização cartográfica (exemplo: ocupações informais não são

geralmente mapeadas, tornando impossível de serem controladas e

planejadas, como é o caso das favelas e comunidades carentes). A descrição

dos limites das propriedades nos serviços registrais, geralmente não condiz

com que se encontra in loco. Assim, muitas escrituras contém descrições dos

limites das propriedades incompletas e imprecisas. Além disso, conceitos e

informações cartográficas, tais como Datum, por exemplo, não são

informados.

• Ausência do direito da propriedade real - A comprovação documental

da propriedade real muitas vezes é inexistente, causando incompletude na

denominação da cadeia dominial. Muitas propriedades não registradas

também são transferidas sem prova de domínio. Em alguns casos, as

transações ocorrem de maneira informal com ou sem documentação. Isso

deixa as oportunidades de negociações fraudulentas. Como apontado por

Molina (2007), inúmeras transações de terrenos não são registradas na

América Latina devido à burocracia envolvida em provar o verdadeiro dono

do imóvel. Em alguns casos, as provas não são encontradas, o que leva à

corrupção nas operações da descrição física e nos processos do seu registro.

• Cumprimento das legislações – a efetivação das medidas estabelecidas

em leis, como o caso da criação do Cadastro Nacional de Imóveis Rurais

(CNIR) e sua integração com o cadastro legal, de acordo com a Lei

10.267/2001, ainda não foi implementada.

Para melhor compreensão acerca dos problemas narrados por Paixão, Nichols e

Carneiro e Carneiro, Erba e Augusto, são necessárias algumas considerações sobre o registro

de imóveis, sua finalidade e a importância da interface do cadastro e do registro.

O registro de imóveis é um serviço público, de organização técnica e

administrativa, exercido em caráter privado, por delegação do poder público, com atribuição

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de garantir a publicidade, a autenticidade, a segurança e a eficácia dos direitos reais e de

alguns direitos pessoais incidentes sobre a propriedade imobiliária. É a instituição garantidora

do direito de propriedade. O registro é realizado por meio da matrícula, que contém a

descrição física, o nome do proprietário e outras informações sobre o imóvel. A delegação

pelo poder público é feita mediante concurso de provas e títulos, realizado pelo poder

judiciário. Reydon e Felício (FAO/SEAD, 2017, p. 33) definem o sistema de registro e traçam

seus objetivos:

O Sistema de Registro de Terras é considerado uma ferramenta de extrema

importância na construção da boa governança fundiária, pois tem como

objetivo promover a segurança da posse e da propriedade, a transparência

pública, o acompanhamento de situações de alteração da estrutura original da

propriedade e a fusão de dados para um sistema cadastral. O registro de

títulos exige que todas as transações e mudanças sociais na propriedade da

terra sejam “gravadas” para evitar a desatualização e complicações em

processos diretamente ligados ao sistema de registro, por exemplo a

tributação. No registro da terra, não há a necessidade de manter informações

sobre recursos, mas apenas sobre o possuidor, a área e a localização.

No Brasil, o guardião do registro da propriedade é o Cartório de Registro de

Imóveis. O Cartório de Registro de Imóveis é o local onde é efetuado o registro da escritura

pública e de outros títulos previstos no inciso I do art. 167 da Lei de Registros Públicos de

1973 (BRASIL, 1973), onde o domínio é transferido por meio da matrícula. Assim, com a

vigência da Lei de Registros Públicos, foi criada a matrícula, que consagra o conceito de

unidade, ou seja, para cada imóvel há uma matrícula, que se torna o repositório de todas as

situações jurídicas relativas ao imóvel.

Segundo a Lei nº 6.015/73, registro é o meio hábil à comprovação do direito de

propriedade, e também a forma pela qual é feita a transferência de domínio dos bens imóveis.

No CC de 2002, o registro é definido como a forma de transferência dos bens imóveis: “Art.

1.245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no

Registro de Imóveis”. Assim, é a matrícula que descreve a quem pertence o direito sobre o

imóvel, a extensão, a qualidade e o valor dos bens imóveis de certo território. Por isso que, no

Brasil, existe a máxima de que “só é dono quem registra” (BRASIL, 2002a).

Maria Helena Diniz (2007, p.13) sintetiza a sistemática do registro imobiliário e

suas implicações legais de forma clara:

O registro imobiliário seria o poder legal de agente do ofício público, para

efetuar todas as operações relativas à bens imóveis e a direitos a eles

condizentes, promovendo atos de escrituração, assegurando aos requerentes

a aquisição e exercício do direito de propriedade e a instituição de ônus reais

de fruição, garantia ou de aquisição. Com isso, o assentamento dá proteção

especial à propriedade imobiliária, por fornecer meios comprobatórios

fidedignos da situação do imóvel, sob o ponto de vista da respectiva

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titularidade e dos ônus reais que o gravam, e por revestir-se de publicidade,

que lhe é inerente, tornando os dados registrados conhecidos de terceiros.

Augusto (2013, p. 67), explicando a questão colocada por Paixão sobre ausência

da propriedade real e suas consequências, esclarece que:

Ao registro cabe tão somente cuidar do direito de propriedade e os demais

direitos ligados ao bem imóvel, constituindo e tornando públicos esses

direitos. Ou seja, somente têm ingresso no registro os imóveis qualificados

pela existência de um proprietário. Os imóveis “sem dono”, ou seja, sem

algum título reconhecido pela lei, não podem ser matriculados no serviço

registral.

Ao utilizar o termo “imóveis sem dono”, Augusto faz menção à existência do

direito de posse, que está à margem do sistema de registro, mas está inserido no sistema de

cadastro, uma vez que a legislação em vigor permite o cadastramento da posse. É sobre esse

direito que Paixão discorreu como sendo um problema quando coloca que muitas

propriedades não são registradas, são transferidas sem prova de domínio, informalmente,

oportunizando a fraude.

Jacomino (2000) coloca a mesma questão de forma distinta, mas na mesma

direção, indo além ao apontar que tanto o registro como o cadastro necessitam um do outro

para que o sistema funcione de forma adequada:

Para enfrentar o problema da necessidade de integração entre o registro e o

cadastro físico; para tentar apontar os benefícios recíprocos que a conexão

propiciaria; para compreender que os registros de segurança jurídica não se

desnaturalizariam com a conjugação de informações com os cadastros

físicos, é preciso verificar ligeiramente a figura da matrícula nos registros

imobiliários, como foi introduzida em nosso sistema e qual a sua natureza

jurídica. Principalmente, extremar os conceitos de matrícula e cadastro, que

promiscuamente rendem interpretações equívocas em nosso meio. [...] O

relacionamento dos cartórios com as instituições públicas merece uma

reavaliação, uma nova abordagem. Hoje, existe uma preocupação

institucional muito maior em relação à perfeita integração num cadastro, que

seja multifinalitário, que possa atender a múltiplas demandas sociais –

públicas e privadas. É mais ou menos este o sentido que estamos tentando

perseguir para o registro, pensar um registro para o Brasil nesses moldes. Por

isso, procurou-se uma parceria científica com a universidade. Por isso

estamos aqui, para contribuir com a nossa experiência e com os nossos

conhecimentos.

Para deixar mais claro, o quadro a seguir procura estabelecer as diferenças entre o

registro e o cadastro:

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Quadro 1 – Diferenças entre registro e cadastro

Diferenças Registro Cadastro

Definição Cuida do direito constitucional da

propriedade privada e dos demais

direitos ligados ao bem imóvel.

Tem interesse específico de inventariar

dados para diferentes fins.

Objetivo Sua finalidade é constituir um direito

legal ao indivíduo.

Sua finalidade é político-administrativa

para atingir objetivos que melhorem a

forma de gerência estatal.

Metodologia Registra os imóveis qualificados pela

existência de um proprietário.

Cadastra os imóveis e outras

informações associadas a ele, havendo

ou não direitos incidentes sobre ele.

Tipo de direito Constitui direito real ao proprietário. Não reconhece direito de propriedade.

Execução Atribuição do poder judiciário, por

meio dos Cartórios de Registro de

Imóveis.

É atribuição do poder executivo, por

meio dos órgãos da administração

fundiária.

Legalidade Fornece publicidade e legalidade à

aquisição do imóvel. Fornece informações consolidadas do

imóvel cadastrado.

Fonte: Elaboração própria com base em Augusto (2013).

O quadro trata das diferenças entre o registro e o cadastro. A começar pela

definição, nota-se que o registro é mais amplo, tendo em vista que cuida do direito

constitucional de propriedade criando direitos legais ao proprietário, enquanto o cadastro

serve apenas como um banco de dados com o objetivo de auxiliar na gestão administrativa do

Estado e não cria direitos legais sobre a propriedade ao indivíduo que efetuou o cadastro. O

registro é feito pelos Cartórios de Registro de Imóveis existentes nos estados da federação, o

cadastro é uma atribuição dos órgãos que se relacionam de alguma forma com a terra – Incra,

Funai, Ministério do Meio Ambiente/ Serviço Florestal Brasileiro (MMA/SFB), Receita

Federal do Brasil (RFB), Institutos Estaduais de Terras, municípios, dentre outros).

Em síntese, o registro é o ato que dá publicidade e legalidade ao proprietário,

tendo efeito contra atos de terceiros, ao passo que o cadastro é meramente informativo.

Percebe-se, então, que, no Brasil, o registro e o cadastro são atribuições que estão alocadas em

diferentes instituições, têm diferentes efeitos e objetivos e não se complementam, como seria

necessário para que o sistema de administração fundiária funcionasse de forma que

promovesse uma boa governança de terras.

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Dentro desse contexto, depreende-se que o registro e o cadastro não têm uma

interconexão sistemática que possa conferir a exatidão dos imóveis registrados com os

cadastrados e possibilitar a organização territorial, proporcionando segurança jurídica ao

proprietário. Esta ausência de interconexão fragiliza o direito dos indivíduos e a possibilidade

de desenvolvimento que o Estado deve propiciar ao país. Há de se dizer que essa interconexão

foi estabelecida pela Lei nº 10.267/01, que criou o CNIR, contudo esse cadastro ainda não foi

completamente implementado. A falta de articulação entre os órgãos, a diferença de

conceitos, a padronização de dados e a lentidão estatal em cumprir a legislação são razões de

debate entre os doutrinadores que estudam a necessidade de se ter um cadastro multifinalitário

confiável integrado ao registro de imóveis, como preconiza a lei.

Observa-se que, no decorrer de sua história, o Brasil criou cadastros de terras

ineficientes e registros de direitos de propriedade com base em descrições precárias dos

imóveis, criando direitos inseguros e impossibilitando que a administração pública tivesse

conhecimento do território como um todo para geri-lo, o que resulta em confusão fundiária e

numa diversidade de conflitos sobre os direitos à terra.

Esse fato ficará evidenciado no caso do sítio Barreiro, em que se vê que a área era

cadastrada como posse em nome de Francisco Fagundes de Lima, a qual nunca foi registrada,

e que existem, sobre a mesma área do sítio, propriedades registradas, as quais têm sua origem

num documento com descrição precária (a transcrição 20.182), e que nos dias atuais esses

direitos de posse e propriedade sobre a mesma área são objeto de disputas judiciais entre

diferentes tipos de pessoas, físicas e privadas. O caso do sítio Barreiro é um exemplo de que a

ausência de um bom cadastro interfere na construção de direitos sobre a terra, resultando em

insegurança jurídica da propriedade.

2.2 Posse e propriedade

Para compreender os direitos sobre a terra no Brasil é preciso entender que o CC

brasileiro (Lei nº 10.406, de 2002) reconhece outros direitos reais além da propriedade e

distingue a “posse” da “propriedade”. Segundo esse código, considera-se possuidor todo

aquele que “tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à

propriedade”. Já a propriedade é considerada um direito real sobre as coisas que atribui ao seu

titular o poder pleno de exercê-lo em face de quem quer que seja, impondo a todas as pessoas

o dever de respeitar o seu exercício, embora na legislação brasileira “posse” e “propriedade”

sejam fenômenos jurídicos autônomos.

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O CC brasileiro não traz a definição do que seja a propriedade, estando incluída

no rol dos direitos reais do artigo 1.225 do CC. Existe no referido código a definição de

proprietário e de possuidor de forma geral. O possuidor é conceituado no artigo 1.196 do CC:

“Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos

poderes inerentes à propriedade” (BRASIL, 2002a). Os direitos reais11

sobre bens imóveis

somente são adquiridos com o registro no Cartório de Registro de Imóveis (art. 1227 do CC),

ou seja, os direitos sobre a propriedade somente serão válidos e produzirão efeito depois que o

título estiver registrado no órgão competente.

Os direitos e deveres do proprietário estão descritos no art. 1.228 do CC: em

resumo, ele possui o uso, gozo e disposição do bem imóvel e o poder de reaver a propriedade

de alguém que a possua de forma irregular. O direito de propriedade deve ser exercido em

conformidade com suas finalidades econômica, social e ambiental, podendo ser interrompido

em caso de desapropriação e requisição pelo poder público, bem como pela usucapião.

A propriedade, na legislação brasileira, é presumidamente plena e exclusiva, até

prova em contrário, ou seja, o título de propriedade e os direitos inerentes a ele podem ser

contestados por uma terceira pessoa (art. 1.231 do CC). A legislação traz algumas formas de

aquisição da propriedade, sendo duas pertinentes para o presente artigo: a usucapião (artigos

1.238 a 1.244 do CC) e a aquisição pelo registro do título (artigos 1.245 a 1.247 do CC).

A usucapião consiste em um modo originário de aquisição da propriedade no qual

o possuidor deverá preencher os requisitos exigidos por lei, como tempo de ocupação, ter a

intenção de dono do imóvel, ter ou não um justo título, ocupar para moradia e/ou trabalho.

A aquisição pelo registro do título é a forma pela qual uma pessoa adquire um

imóvel após o registro do título translativo ou atos constitutivos, declaratórios e extintos de

direitos reais sobre imóveis reconhecidos em lei, inter vivos ou mortis causa quer para sua

constituição, transferência e extinção, quer para sua validade em relação a terceiros, quer para

a sua disponibilidade no Cartório de Registro de Imóveis (art. 1.245 do CC e art. 172, da Lei

nº 6.015/73, Lei de Registros Públicos). O registro será eficaz desde o momento de sua

prenotação no Cartório de Registro de Imóveis.

11

Segundo Nery Júnior e Nery (2012, p. 1.109): “O direito real importa para seu titular a vivência pública de

uma situação jurídica de vantagem econômica quanto às desfrute de um específico bem, da maneira mais

completa e absoluta que o sistema jurídico, dentro de seus próprios limites, permite para alguém, podendo seu

titular dele retirar as vantagens econômicas que ele comporta. A situação de vantagem do titular de direito real

tem como consequência resguardá-lo, juridicamente, da pretensão que qualquer outra pessoa vir a exercer sobre

a coisa objeto desse direito”.

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Criado (2010, p. 135-136)12

escreve, de forma geral, sobre o conceito de

propriedade e a dificuldade conceitual a partir do próprio registro de imóveis, mas sua

argumentação reflete com exatidão os problemas enfrentados no Brasil:

É claro que se, o registro de Imóveis pretende publicar o que poderíamos

chamar a história jurídica dos imóveis, e sendo estes o pilar sobre o qual se

apoiam os direitos reais, a realidade primária em um sistema registral é a

propriedade. Esta é, normalmente, uma superfície terrestre, delimitada por

uma linha e suas pertenças. Porém, este conceito de propriedade não

coincide exatamente com o de propriedade registral. A propriedade, no

sentido registral, é tudo o que abre fólio no Registro (matrícula). No Registro

podem inscrever-se como uma propriedade explorações agrícolas ou

industriais formadas por: propriedades não limítrofes; os diferentes andares e

locais de um edifício sujeito ao regime de propriedade horizontal e,

inclusive, os andares projetados ou cuja construção esteja apenas

começando; as cotas indivisas de propriedade destinadas a garagens ou

estacionamento de veículos, se levam inscritos o uso de um ou mais lugares

determinados; a água, as concessões administrativas sobre bens imóveis

(arts. 8º da Lei Hipotecária e 31, 44 e 68 do RH). São, portanto, vários tipos

de propriedade que acedem ao registro, motivo pelo qual é demasiado

complicado dar um conceito de propriedade.

O autor argumenta que o conceito de propriedade é equívoco e que existem vários

tipos de propriedade: material, rústica ou rural, urbana, cadastral, cadastral rural e urbana,

funcional, especial, registral.

O conceito de propriedade e sua definição física antecedem o registro dos direitos

nos Cartórios de Registro de Imóveis, como explica Criado (2010). Todavia essa definição

física para o conceito da propriedade, segundo Criado, é deficitária e causa problemas (como

a sobreposição geográfica de imóveis) que ele chama de erros conjunturais nos registros de

propriedade: a falta de uso de altas tecnologias para identificação de propriedades; a

possibilidade de descrições literais das propriedades; as vendas das propriedades realizadas

por meio de desenhos, sem precisar exatamente seu lugar, seu espaço; a manifestação de

aceites inferiores para não suportar uma determinada carga tributária.

[..] esses erros conjunturais ou institucionais são suscetíveis de serem

corrigidos gradualmente, pois, as propriedades fazem fronteiras com outras

propriedades, têm uma forma determinada e uma configuração geométrica

definida, o que se pode obter impondo aos Registradores que disponham de

aplicações informáticas para o tratamento de bases geográficas, permitindo

sua coordenação com as propriedades registrais e a incorporação a estas de

sua qualificação urbanística, meio ambiental ou administrativa

correspondente (CRIADO, 2010, p. 138).

O Tabelionato de Notas é o local onde são lavradas, por um agente público, as

escrituras públicas, documentos que descrevem as manifestações de vontade do proprietário

12

Registrador imobiliário em Priego de Córdoba-Espanha, coordenador do curso de direito registral para a

Iberoamérica (Cadri) do Colégio de Registradores da Espanha.

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ou possuidor de um imóvel, que deverão ser registradas no Cartório de Imóveis, a fim de

transmitir a propriedade desse bem ou servir de título para comprovar a posse sobre um

imóvel quando da ação de usucapião no poder judiciário. Ressalta-se que uma escritura pode

ser lavrada em qualquer Tabelionato de Notas do país, não havendo obrigatoriedade de fazê-

lo na mesma cidade onde se localiza o imóvel.

Em todas as escrituras e atos relativos a imóveis, o tabelião ou escrivão deve fazer

referência à matrícula ou ao registro anterior, seu número e cartório (art. 222, da Lei nº

6.015/73), bem como fazer constar o nome das partes envolvidas no ato, as características, as

confrontações e as localizações dos imóveis, mencionando os nomes dos confrontantes e,

ainda, quando se tratar só de terreno, identificar se esse fica do lado par ou do lado ímpar do

logradouro, em que quadra e a que distância métrica da edificação ou da esquina mais

próxima, exigindo dos interessados certidão do registro imobiliário. Os títulos e/ou matrículas

nos quais a caracterização do imóvel não coincida com a que consta no título anterior são

considerados irregulares (art. 225, Lei nº 6.015/73).

A simples manifestação de vontade de uma pessoa não tem o poder de fazer com

que ela se torne proprietária de determinado imóvel porque, pela importância do direito de

propriedade e suas consequências jurídicas, é necessário que a lei organize e discipline essa

relação. A forma encontrada pela lei para disciplinar a manifestação de vontade e o direito de

propriedade é o registro no Cartório de Imóveis.

As escrituras públicas são emanadas de autoridades administrativas, os tabeliães

de notas, e os demais títulos de órgãos da administração, do legislativo ou judiciário. No

Brasil, o artigo 7º da Lei nº 8.935, de 18 de novembro de 1994, determina que aos tabeliães de

notas competem com exclusividade lavrar escrituras públicas. Só eles podem praticar tal ato.

A legislação brasileira trata a posse como um direito pessoal, mas ela pode se

opor ao direito de propriedade, que é um direito real, quando o possuidor estiver de boa-fé

(art.1.210 do CC). No arcabouço legal brasileiro, muito embora a posse não seja considerada

um direito real, é tratada como se fosse e com direitos semelhantes ao de proprietário,

podendo o possuidor13

protegê-la com diversos tipos de ações judiciais14

.

Posse é o exercício, de fato, dos poderes constitutivos do domínio ou propriedade,

ou de algum deles somente. A posse é situação jurídica de fato apta a, atendidas certas

13

Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à

propriedade (artigo 1.196 do CC). 14

As ações previstas na legislação são: interdito proibitório, manutenção de posse, reintegração de posse. A

posse é transmitida aos herdeiros (art. 1.206 do CC). A ação de usucapião, apesar de tratar de aquisição

originária da propriedade pelo exercício da posse, é uma ação real e não possessória.

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exigências legais, transformar o possuidor em proprietário (situação jurídica de direito real).

O sujeito de direito que tem posse sobre a coisa exerce alguns dos poderes próprios dos de

proprietário (uso, gozo e, às vezes, o de disposição e o de recuperação de coisa), sem ostentar

a situação jurídica de dono (NERY JÚNIOR; NERY, 2012, p. 1.078).

Em decorrência de confusão ocasionada pela própria legislação, a posse é uma das

principais causas dos conflitos fundiários no Brasil. O detentor da posse não precisa ostentar

um título de domínio (matrícula), ele a adquire via contratual, por escritura pública de venda e

compra ou por transmissão de direitos hereditários. O posseiro passa a exercer a posse direta

do imóvel sem lhe transferir a propriedade. O fato de a posse não estar registrada e mapeada

ocasiona a confusão no sistema fundiário nacional, uma vez que não existe um controle sobre

os atos que constituem a posse: escritura pública, contratos, formal de partilhas etc.

Assim, os cartórios, notariais e registrais, não conseguem ter informações

organizadas acerca das transações imobiliárias que não são levadas à registro pelo adquirente.

Outro ponto que causa confusão é o fato de que, até o ano de 2001, não existia na legislação

brasileira a obrigatoriedade de apresentar o mapa ou planta da área para efetuar as transações

imobiliárias, não existindo assim um cadastro físico efetivo que agregasse certeza à descrição

da área contida no documento de transferência de posse ou propriedade.

Esta sistemática de transações imobiliárias realizadas em notários, entre

particulares ou até mesmo sem qualquer auxílio profissional – com a falta de registro e de um

cadastro – vai alimentando a confusão latifundiária, dando margem aos conflitos que

demandam tempo e custos à máquina estatal em todas as esferas. Com a prática de registrar

apenas o direito que o indivíduo possui sobre a terra, sem se preocupar com um cadastro

físico que garanta a existência da descrição contida na matrícula ou nos contratos em geral, o

sistema fica passível de fraudes que se repetem ao longo do tempo e em todas as regiões do

Brasil.

Uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) realizada no estado do Piauí

diagnosticou diversos tipos de fraudes que ocorrem no sistema de registro imobiliário daquele

estado que servem para exemplificar os problemas e a fragilidade que ocorrem em todo

território nacional. Os vários casos mostrados na CPI da grilagem de terras (BRASIL, 2002b),

mostram como este processo vem ocorrendo no país. Apesar das fraudes ocorrerem com

maior ênfase no Norte do país, os tipos de fraudes, descritas a seguir, ocorrem em todo

território nacional. São elas:

Irregularidades detectadas:

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(1) registro, sem o correspondente título de domínio ou do registro anterior,

de centenas de escrituras de compra e venda, legalizando assim o domínio

sobre extensas áreas, em muitos casos superiores a cem mil hectares e que

chegaram a mais de um milhão.

(2) duplicidade de registro de matrícula de imóveis, fazendo que as mesmas

terras fossem multiplicadas, através do subterfúgio do desmembramento

ilegal em inúmeras áreas, as quais, por sua vez, recebiam novas matrículas,

ou pela abertura de matrícula da mesma gleba em Livros diferentes, ou em

cartórios de Comarcas diferentes.

(3) aceitação do registro de imóveis constantes em sentenças de partilha de

bens, que não apresentavam as correspondentes provas dos títulos de

domínio, e que não estavam matriculados no correspondente Cartório. Sendo

assim, legitimados, títulos sem nenhum valor, ou simples posses.

(4) registro de averbações ou abertura de novas matrículas, correspondentes

a demarcatórias de glebas, sem autorização judicial e do INCRA, alargando-

as e/ou determinando novos confinantes, em dimensões exorbitantes.

(5) registro de escrituras de compra e venda, e outros pretensos títulos de

domínio, emitidos com uma antiguidade de 20 ou mais anos por Tabeliães de

Comarcas de Estados diferentes, que não estão amparados por Título de

Domínio legítimo. Inclusive, alguns formando uma cadeia dominial baseado

em escrituras de mais de cem anos, cuja origem estaria na emissão de

Sesmaria.

(6) registro de imóveis, supostamente registrados em outra Comarca, sem o

respaldo da correspondente Certidão do respectivo Cartório.

(7) lavratura de escrituras de compra e venda e registro das mesmas no

Cartório de Registro de Imóveis, onde constam pessoas físicas ou jurídicas

estrangeiras como compradores em condição contrária à legislação em vigor.

(8) lavratura de Escrituras de Compra e Venda, pelos Tabeliães, além de

apresentar os defeitos descritos no número anterior, tendo como agravante

que pelo menos uma das partes, não esteve presente no ato, nem seus

documentos e/ou antecedentes pessoais lhe correspondiam.

(9) lavratura de escrituras de compra e venda, e registro destas no Cartório

de Registro de Imóveis, tendo o transmitente, comprovadamente, falecido há

muitos anos.

(10) emissão de laudos de avaliação de glebas, por Oficiais Registradores.

(11) matrícula de imóveis, supostamente registrados em outra Comarca, sem

o respaldo da correspondente Certidão do respectivo Cartório. Sendo a este

respeito, o caso mais notável, o registro no Cartório de Tapauá no

Amazonas, a nome do Sr. Falb Saraiva de Farias, sem nenhum suporte legal,

de sessenta e três glebas perfazendo um total de mais de 7,5 milhões de

hectares. É dizer, o equivalente a 87% do Município.

(12) lavratura de Escrituras de Compra e Venda, pelos Tabeliães, com a

transferência de glebas sem indicação da matrícula de origem, e sem

preencher as condicionantes fixadas em Lei. Permitindo, assim, que

inidôneos Oficiais Registradores de Cartórios de Registro de Imóveis

levassem a registro tais imóveis, sem sequer estarem matriculados. Sendo

esta mais uma das formas de legalizar arbitrariamente o domínio de terras

(BRASIL, 2002b, p. 37).

Em decorrência destes levantamentos feitos pela CPI e depois aprofundados por

alguns governos estaduais, cujas corregedorias têm responsabilidade de controlar os cartórios,

alguns títulos de determinados cartórios foram cancelados. No início dos anos 2000, foram,

segundo Lima (2002), cancelados, em 14 comarcas do estado do Amazonas, o equivalente a

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48,5 milhões de ha de propriedades registradas nos respectivos Cartórios de Registro de

Imóveis, demonstrando a fragilidade do sistema de registro de imóveis.

A corregedoria do estado do Piauí (PIAUÍ, 2012, p. 75-76, grifos do autor)

também fez um levantamento e chegou às seguintes conclusões:

1. A Corregedoria Geral de Justiça, no Estado do Piauí, está

totalmente despreparada estrutural, técnica e financeiramente para a

fiscalização do sistema cartorário piauiense.

2. O sistema cartorário piauiense está instalado em meio ao caos

administrativo, e, em alguns casos, ao caos registral, e ainda na pré-

história da informatização dos serviços notariais e de registros, sem

condições de cumprir, no prazo legal, isto é, até julho de 2014, a

implementação do sistema de registro eletrônico, como é exigido pela Lei

11.977/2009.

3. No Estado do Piauí existem, para prestação de serviços à sociedade,

45 (quarenta e cinco) serventias oficializadas, todas no interior do Estado,

e 94 (noventa e quatro) serventias privadas, sendo 09 (nove) na Capital e

85 (oitenta e cinco) no interior do Estado.

4. Quanto à natureza das serventias por atividade desempenhada,

ressalte-se a importância de cada modalidade registral no Estado do Piauí,

com os percentuais assim distribuídos: 20 Serventias Mistas (68,67%); 07

Serventias exclusivamente de notas (4,67%); 20 de Registro Civil (13,33%)

e 20 de Registro de Imóveis (13,33%).

5. Apurou-se que apenas 25,33% dos delegatários ingressaram nas

serventias, através de serviço publico [sic]; 39,33%; são titulares da

serventia, enquanto 91 desempenham as funções em caráter de designação,

representando 60,67%. Dos delegatários que possuem nível superior, 38, que

representam, 33,93%, apenas 13 são bacharéis em Direito.

6. Foi constatado que 38,67% das serventias privadas e/ou oficializadas

funcionam em prédios próprios, sendo que as 61,33% restantes desenvolvem

as atividades em imóveis alugados, cedidos e nos prédios do Poder

Judiciário e da Prefeitura. O percentual de 45.34% das serventias

inspecionadas apresenta estrutura física satisfatória/deficiente.

7. Nas serventias inspecionadas, 4,67% não possuem qualquer local para

guarda dos livros escriturais/notariais, sendo que em 83 serventias, que

representam o percentual de 55,34%, o estado de conservação dos livros é

razoável/péssimo.

Essa é uma realidade presente em boa parte do país. As fraudes apresentadas pela

corregedoria, originadas no sistema de cartórios de notas e de registros de imóveis, permeiam

todos os entes da federação, estados e municípios que são responsáveis pela administração e

fiscalização de terras, como as devolutas, as áreas de conservação e terras indígenas, as que

são de patrimônio da União e de uso comum, dentre outras.

Esses órgãos que compõem o governo nas três esferas têm competências

diferentes e não interagem entre si. A falta de integração e cooperação entre os entes

governamentais é também causa dos conflitos fundiários existentes. Cada um desses órgãos

tem seu próprio sistema de administração de dados sobre as terras de sua competência,

contudo, como ocorre com os cartórios em geral, não têm um cadastro físico das áreas que

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administram, o que impossibilita um conhecimento com exatidão sobre elas, ocasionando

confusão e desordem e, via de consequência, dando margem às fraudes. A falta do cadastro

faz com que nem o Estado nem os proprietários privados tenham ciência da sua área exata. É

essa indefinição que pode dar margem às fraudes.

Pelo estudo de caso, percebem-se as mesmas irregularidades nos tabelionatos e

nos registros imóveis detectadas na CPI do Piauí, demonstrando a fragilidade do sistema

descrito, bem como a falta de integração entre os órgãos que compõem a estrutura fundiária

do país. O estudo demonstra a incapacidade de governança fundiária, apontando as falhas do

sistema como um todo.

2.3 Ausência de demarcação das terras públicas e privadas

A questão da ausência de demarcação das terras públicas e privadas foi deixada

para finalizar este capítulo porque ela decorre das causas citadas anteriormente, ou seja, da

ausência de um cadastro eficaz, da construção de direitos de propriedades sobre áreas

indefinidas e da possibilidade de apossamento das terras públicas que permeia a história da

ocupação do território brasileiro.

Como demonstrado no capítulo 1 deste trabalho, desde a época do descobrimento

desse país, os governos que se sucederam não foram capazes de criar um cadastro para

demarcar as terras públicas e discriminá-las das terras privadas. Dessa forma, a terra pública

no Brasil é identificada por exclusão, ou seja, se não é privada, então é pública.

A não demarcação das terras públicas ficou evidente mediante a aplicação da

metodologia LGAF, do Banco Mundial, que identificou que um dos problemas centrais da

debilidade de governança fundiária brasileira é a falta de controle sobre terras públicas, tanto

as conhecidas como as devolutas. Nas duas categorias, as terras estão sujeitas a serem

apropriadas privadamente por meio da posse, a qual já foi tratada anteriormente neste capítulo

(FAO/SEAD, 2017).

Um dos pontos fracos identificados pela metodologia LGAF foi a falta de controle

sobre essas terras, considerada um problema central:

Há uma clara percepção de que um problema central da governança

fundiária brasileira é a falta de controle sobre terras públicas,

especialmente a categoria daquelas terras públicas que não são

devolutas. Como uma grande área de terras públicas enquadra-se nessa

categoria, essas terras estão sujeitas a serem apropriadas privadamente por

meio de posse. A perpetuação desse processo é visto como a brecha que

mantém a falta de controle, por parte do governo, sobre suas terras e de

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políticas fundiárias, enfraquecendo os esforços para melhorar a governança

fundiária no país. Por conseguinte, estimativas da integridade da

identificação e mapeamento das terras públicas sofreram variações nas

avaliações, indo de inferiores a 30% no Piauí a 40% em São Paulo e a acima

de 50% de acordo com os membros federais do painel. Os principais órgãos

públicos – Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), Instituto

Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), Secretaria do

Patrimônio da União (SPU) e os Institutos Nacionais de Terras não dispõem

de uma política transparente para os procedimentos em termos de terras

devolutas (WORLD BANK, 2014, p. xii, grifo do autor).

A continuidade deste processo de falta de controle sobre as terras públicas

enfraquece os esforços para melhorar a questão fundiária e dirimir os conflitos no país, tendo

em vista que a integridade de identificação e o mapeamento das terras públicas são

deficitários. Essa fragilidade surge em decorrência da falta de competência da secretaria

responsável pelo controle e gestão das terras públicas: a Secretaria do Patrimônio da União

(SPU).

A SPU, ligada ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, é o órgão

legalmente imbuído de administrar, fiscalizar e outorgar a utilização, nos regimes e condições

permitidos em lei, dos imóveis da União. Além disso, cabe à SPU estabelecer diretrizes e

políticas acerca da utilização desse patrimônio, conforme artigo 1º, I, da Portaria nº 232/2005

(Regimento Interno da SPU):

Art. 1º A Secretaria do Patrimônio da União, órgão subordinado diretamente

ao Ministro de Estado do Planejamento, Orçamento e Gestão, tem por

finalidade:

I - administrar o patrimônio imobiliário da União, zelar por sua conservação

e formular e executar a política de gestão do patrimônio imobiliário da

União embasada nos princípios que regem a Administração Pública, de

modo a garantir que todo imóvel da União cumpra sua função

socioambiental em equilíbrio com a função de arrecadação (BRASIL, 2005,

p. 1).

O Decreto nº 6.081, de 12 de abril de 2007, art. 38, determina que compete à

SPU administrar o patrimônio imobiliário da União e zelar por sua conservação; adotar as

providências necessárias à regularidade dominial desse bens; proceder à incorporação de

novos imóveis ao patrimônio da União; autorizar sua ocupação, na forma da lei; estabelecer as

diretrizes para a permissão de uso; promover a doação ou cessão gratuita, quando presente o

interesse público; proceder à demarcação e identificação dos imóveis, entre outros (BRASIL,

2007).

O artigo 20 da Constituição Federal define os bens que pertencem à União, os

quais são de atribuição da SPU:

I - os que atualmente lhe pertencem e os que lhe vierem a ser atribuídos;

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II - as terras devolutas indispensáveis à defesa das fronteiras, das

fortificações e construções militares, das vias federais de comunicação e à

preservação ambiental, definidas em lei;

III - os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio,

ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou

se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os

terrenos marginais e as praias fluviais;

IV - as ilhas fluviais e lacustres nas zonas limítrofes com outros países; as

praias marítimas; as ilhas oceânicas e as costeiras, excluídas, destas, as que

contenham a sede de Municípios, exceto aquelas áreas afetadas ao serviço

público e a unidade ambiental federal, e as referidas no art. 26, II; (Redação

dada pela Emenda Constitucional nº 46, de 2005);

V - os recursos naturais da plataforma continental e da zona econômica

exclusiva;

VI - o mar territorial;

VII - os terrenos de marinha e seus acrescidos;

VIII - os potenciais de energia hidráulica;

IX - os recursos minerais, inclusive os do subsolo;

X - as cavidades naturais subterrâneas e os sítios arqueológicos e pré-

históricos;

XI - as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios15

(BRASIL, 1988).

Os imóveis públicos federais podem ser classificados em três tipos, em razão da

destinação que lhes pode ser dada: (a) bens de uso comum do povo, afetados como necessários

à coletividade, como rios, praças, ruas, praias etc., e que, por isso, devem ser do uso de todos

os cidadãos; (b) bens de uso especial, que são afetados ao interesse do serviço público, como

os prédios das repartições públicas, os fortes etc.; e (c) bens dominiais, que não têm

destinação definida e que, por esta razão, podem ser transacionados pela União e

disponibilizados para uso privado, se for o caso.

Da definição sobre o que são bens da União e das classificações, percebe-se que a

SPU é responsável por administrar e promover o cadastro das terras públicas, incluindo as

devolutas, classificadas como bens dominiais. Assim, a SPU teria que ter ciência de seus

imóveis para alimentar o cadastro do Incra/SNCR. Todavia, ante a falta de clareza do Sistema

de Administração Patrimonial (Siapa), que é o cadastro dos bens administrados pela SPU,

podemos concluir que as informações cadastradas no SNCR são passíveis de dúvida, podendo

estar incluídas entre os problemas ocasionados pela sobreposição, posse, falsidade de títulos,

dentre outras.

Para ilustrar a falta de identificação das áreas reconhecidas pela União, segue o

quadro referente às áreas reconhecidas na Amazônia Legal, em comparação à sua extensão

territorial. Percebe-se que as áreas reconhecidas são bem inferiores à extensão dos estados,

não sendo possível que esse remanescente seja todo de domínio privado.

15

As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios também são de atribuição administrativa da Funai, como

veremos nos itens a seguir.

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Figura 1 – Áreas reconhecidas da União e extensão territorial da Amazônia Legal

A SPU possui o Siapa, no qual estão cadastrados os imóveis de sua competência.

O controle dessas áreas deveria ser feito pela SPU, contudo essa secretaria não tem

capacidade de gerir as terras públicas, sendo certo que mantém cadastros próprios, como o

Siapa, mas todos incompletos e ineficientes. O relatório LGAF descreve a atuação da SPU:

Além disso, a Secretaria do Patrimônio da União (SPU), órgão do

Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, tem como

responsabilidade principal a gestão de Imóveis Nacionais e mantém o

próprio cadastro incompleto. A natureza desses imóveis é muito diversa:

desde propriedades estatais, terras inundadas pela maré alta, terras indígenas,

florestas nacionais, terras ociosas, áreas de fronteira e bens de uso comum. A

SPU é responsável por todas as terras ociosas, mas não tem uma clara visão

de sua dimensão (WORLD BANK, 2014, p. vx, grifo do autor).

A perpetuação desse processo é vista como a brecha que mantém a falta de

controle, por parte do governo, sobre suas terras e de políticas fundiárias, enfraquecendo os

esforços para melhorar a governança fundiária no país.

A função da SPU será importante para entender o caso do sítio Barreiro, tendo em

vista que a falta de demarcação das terras da União que foram objeto de aforamento na época

da colônia e império pode ser a causa primária da confusão fundiária que envolve o imóvel.

No próximo capítulo, será demonstrado que na região onde se encontra o sítio existiram

vários aforamentos concedidos aos aldeamentos indígenas. Esses aforamentos eram

concedidos sobre grandes extensões de terras que não eram delimitadas e, muitas vezes, se

sobrepunham umas às outras.

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Santos (1994, p. 37) relata situação de sobreposição acerca dos aldeamentos

indígenas existentes na região onde está o sítio Barreiro, bem como a informação dada pela

SPU que diz que as áreas dos aldeamentos foram doadas sem descrição de limites:

Argumenta-se que se cada aldeamento possuísse seis léguas em quadra, seria

impossível formar um número tão grande de aldeias.

As terras da Aldeia de Carapicuíba, Itapecirica e São José que os índios

dessas aldeias formaram, foram doadas sem descrição de limites. Essa

aldeias (sic) estão dentro da sesmaria de seis léguas em quadra concedidas

em 12 de outubro de 1580 aos índios da aldeia Pinheiros e Barueri (?),

pertencentes ao Padroado real, posteriormente incorporadas aos bens da

Coroa Real, porque estavam sob a administração de Afonso Sardinha.

(Departamento de Patrimônio da União, nossa interrogação)

Santos (1994, p. 37) conclui que

O que realmente deve ter acontecido foi a superposição dos territórios dos

aldeamentos. Estas aldeias nunca foram delimitadas, onde começava uma e

terminava outra? Seis léguas em quadra para Carapicuíba, mais três Barueri,

outro tanto para Itapecirica...Tal fato demonstra, mais do que qualquer outra

coisa, o total desconhecimento por parte da Coroa portuguesa a respeito do

território por ela conquistado. Deviam supor que estas terras, que hoje fazem

parte da área metropolitana de São Paulo, fossem muito vastas. Portanto, os

empreendimentos imobiliários que atualmente ocupam as terras que foram

dos índios de Barueri, devem estar em terras que também foram de

Carapicuíba, a sesmaria concedida aos índios Pinheiros.

A concessão de terras públicas sem delimitação e a falta de demarcação

configuram causas da insegurança jurídica da propriedade que ficará mais evidente com o

caso do sítio Barreiro.

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3 CASO DO SÍTIO BARREIRO

Este capítulo irá demonstrar por meio de estudo de caso como, historicamente, o

Brasil deixou de cumprir seu papel de organizador e gestor de seu território ao criar leis e

formas de transferências das terras públicas sem, contudo, organizar um cadastro com o qual

fosse possível sua gestão e principalmente o conhecimento e a manutenção do patrimônio das

terras públicas para que estas não fossem transferidas para pessoas físicas de forma “ilegal”.

O caso do sítio Barreiro ilustra a confusão fundiária que o país vem vivendo desde

a época do descobrimento até os dias atuais. Essa história demonstra como a falta de controle

sobre as terras públicas pela ausência de cadastro e de demarcação foi capaz de promover

conflitos infindáveis e insolúveis numa das regiões mais ricas do Brasil: a região de Barueri e

Santana de Parnaíba, no estado de São Paulo, onde estão localizados empreendimentos

imobiliários de alto valor de mercado, como Alphaville, Gênesis e Tamboré.

No Brasil, o sistema de apossamento de terras ganhou status jurídico, sendo a

posse direito prescrito em lei com seu sistema de defesa e manutenção, terminando por ser um

modo de aquisição de propriedade, desde que preenchidos os requisitos legais. A posse não é

passível de nenhum tipo de registro, ficando à margem dele. Contudo chega a ser

incongruente gerar o direito de posse e não ter condições de regulá-lo. A não possibilidade de

gestão da posse está clara, tendo em vista que ela não está inclusa no rol dos direitos reais,

gerando apenas direitos pessoais e obrigacionais, não sendo passível de registro no Cartório

de Imóveis, o que não gera nem registro dos direitos. A questão da posse foi abordada nos

capítulos 1 e 2 deste trabalho, ficando claro que a posse e seus efeitos são resultado da

ausência de gestão do Estado brasileiro sobre seu território.

A questão da ausência de um cadastro confiável, a não demarcação e a falta de

controle das terras públicas, a existência da posse e a possibilidade de confecção de títulos

fraudulentos nos Cartórios de Registro de Imóveis são os principais focos do estudo de caso

do sítio Barreiro.

A área de 1.093 ha do sítio Barreiro consta em registros paroquiais, com descrição

baseada em acidentes geográficos e propriedades lindeiras, desde 1856. O possuidor adquiriu

o sítio por escritura pública de cessão de direitos hereditários em 1956, ficando desta data até

os dias de hoje apenas no âmbito da posse, não sendo utilizado nenhum procedimento jurídico

para legitimá-la ou demarca-la. A falta de registro ocasionou um vazio no registro imobiliário,

como se os 1.093 ha não pertencessem a ninguém. Tal inércia do possuidor deu razão para

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que terceiros pudessem se apropriar da área de modo fraudulento, mediante procedimentos

que aparentavam legalidade nos órgãos governamentais e cartórios.

Há evidências de que na área do sítio Barreiro está sobreposta parte da área da

Fazenda Itahyê. Nos anos 1980, grande parte da área da Itahyê foi transposta de Perus e

Pirituba, na cidade de São Paulo, para Santana de Parnaíba/SP, fazendo uso do Tabelionato de

Notas para lavrar escrituras com descrição de área destacada de um total de 24 milhões de m2

e realizar posteriormente o registro no Cartório de Registro de Imóveis de Barueri com uma

transcrição16

imprecisa de 1953.

Por meio desse procedimento, os proprietários da Fazenda Itahyê passaram para

seu patrimônio quase 20 milhões de m2

em Santana de Parnaíba/SP, que inicialmente estavam

descritos como uma propriedade no município de São Paulo. As áreas apropriadas foram

objeto de desapropriações por parte do Estado de São Paulo, da Petrobras e do município,

sendo que os proprietários da Fazenda Itahyê foram indenizados em grandes quantias. Vários

empreendimentos imobiliários de alto padrão estão consolidados em áreas cujas matrículas

foram apontadas como fraudulentas em uma perícia judicial realizada em processo que

tramita pela 4ª Vara Cível de Barueri, o qual será tratado posteriormente.

A sistemática da fraude apontada no processo judicial envolveu a Emplasa, que

adulterou a posição de dois córregos possibilitando a confusão geográfica entre a situação real

do imóvel (Fazenda Itahyê) e o local onde as terras foram apropriadas. Os córregos

adulterados estão presentes em quase todas as matrículas registradas no Registro de Imóveis

de Barueri.

A área remanescente da apropriada foi objeto de duas ações de retificação judicial

de área que acabou por dar legalidade ao procedimento escuso, criando um remanescente de

área de 2 milhões de m2, tudo com base em documentos fraudulentos, para os quais o juiz

ordenou que se efetuasse o registro, tendo o registrador que cumprir a ordem judicial.

16

Transcrição é a certidão de imóvel ainda não matriculado. A transcrição de imóvel no Cartório de Registro de

Imóveis deu-se por meio do Decreto nº 4.857, no ano de 1939. O registro baseava-se em transcrever as

transmissões no livro de transcrição. Este modelo de registro evidenciava os dados pessoais dos proprietários,

sendo o imóvel em si figurado apenas como o objeto daquele registro, por este motivo as transcrições

apresentavam descrição precária referente ao imóvel. Um fato importante nos registros de transcrições é que

quando um imóvel sofria uma alteração de proprietários, por exemplo, um novo número de transcrição era

gerado, sendo o número de transcrição anterior finalizado. Cf.:

<https://blog.cartorio24horas.com.br/qual-a-diferenca-entre-transcricao-e-matricula-de-

imovel/>. Acesso em: 15 jan. 2018.

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A região onde está localizado o sítio Barreiro foi objeto de vários aforamentos17

,

entre os anos de 1500 a 1800, concedidos com o objetivo de proteger as tribos indígenas que

ocupavam a área na época. Quando as tribos desapareceram, as áreas aforadas foram sendo

apossadas por terceiros, inclusive por empresas de empreendimentos imobiliários que

comercializaram terrenos a preços altíssimos. Um dos empreendimentos imobiliários

existente na área é a marca Alphaville, condomínios de casas de alto padrão.

Os aforamentos são registrados em cartório e documentados pela SPU. Contudo,

ante a dimensão das áreas e a falta de demarcação que impossibilitam a gestão desses

territórios, ficam à mercê dos invasores e grileiros depois de abandonados, tendo em vista que

uma vez instituídos têm caráter perpétuo, mas padecem de fiscalização.

Na pesquisa realizada, é possível observar a estrutura fundiária do país e sua

incapacidade administrativa, a falta de integração entre os órgãos governamentais e os

cartórios em geral. Encontramos a problemática da posse (para a qual existe regulação legal,

mas não há um controle de registros), as fraudes cartorárias, a confusão em terras de

aforamento da União e a falta de um cadastro físico (o que impossibilita dar certeza e

legitimidade a quem adquiriu a terra e traz insegurança jurídica a esse seguimento).

O caso do sítio Barreiro é um exemplo atual e rico em informações que podem

possibilitar mudanças na estrutura fundiária do Brasil. Acontece numa das regiões mais

valorizadas do estado de São Paulo, onde o sistema cartorário é um dos mais equipados e

organizados do país, sendo referência aos outros estados.

Como as duas áreas (Barreiro e Itahyê) não tinham seus limites bem definidos nos

documentos de origem, a confusão e a possibilidade de alocar a descrição em outros locais

contribuíram para que, a toda evidência, os representantes da Fazenda Itahyê pudessem

confeccionar novos documentos, dando-lhes legalidade ao registrarem no Cartório de Registro

de Imóveis de Barueri as escrituras públicas de compra e venda lavradas no 9º Tabelionato de

Notas da Capital, nas quais as transferências eram feitas do espólio de Alberto Jackson Júnior,

proprietário da Itahyê, para pessoas jurídicas pertencentes à sua família. Assim, a área da

Fazenda Itahyê que inicialmente era descrita entre Perus e Pirituba, no município de São

Paulo, foi transferida para Santana de Parnaíba aparentemente de forma “legal”, dando origem

a propriedades e sobrepondo-se à área de posse do sítio Barreiro.

17

Aforamento é o ato de concessão de privilégios e deveres sobre uma propriedade cedida em enfiteuse para

exploração ou usufruto ao seu ocupante, pelo proprietário. No caso, o proprietário é a União. O órgão que cuida

dos aforamentos é a Superintendência do Patrimônio da União (SPU), situada na esfera do Ministério do

Planejamento.

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3.1 Aspectos históricos da região e questão fundiária da localização do sítio Barreiro

Este item se inicia com a apresentação da localização do sítio Barreiro. O contexto

histórico de formação fundiária da área é de suma importância para que se entenda a pergunta

e as hipóteses que este trabalho se propõe a responder e elucidar.

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3.1.1 Aspectos históricos da região

Segundo historiadores, a cidade de Barueri originou-se a partir do aldeamento

fundado pelo padre José de Anchieta em 11 de novembro de 1560, tornando-se uma das mais

importantes aldeias indígenas do Brasil colônia, hoje bairro da Aldeia de Barueri. Antes

pertencente ao município e comarca de Santana de Parnaíba, Barueri foi emancipada em 1949

pela Lei nº 233, de 24 de setembro de 1948, e sua comarca foi instalada em 8 de dezembro de

1964.

Figura 2 – Mapa de localização do município de Barueri/SP

Fonte: Google Maps (2017).

Em 1870, com a construção da Estrada de Ferro Sorocabana, foi inaugurada na

cidade o primeiro trecho da estação ferroviária, tornando-se importante entreposto de cargas –

rota obrigatória na ligação da capital São Paulo com Santana de Parnaíba e Pirapora de Bom

Jesus.

O desenvolvimento econômico da cidade tomou fôlego a partir de 1973, quando a

Câmara Municipal aprovou a Lei do Zoneamento Industrial para permitir a entrada de polos

industriais como os de Alphaville, Tamboré, Jardim Califórnia e, mais recentemente, o de

Votupoca, além dos Empreendimentos Itahyê Ltda., que trouxeram um desenvolvimento bem

considerado e um dos principais centros financeiros do Estado.

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Já Santana de Parnaíba, hoje microrregião de Osasco, foi fundada em 1580 com o

nome de Fazenda Parnaíba, à beira do rio Anhembi (antigo nome do rio Tietê). Foi ponto de

partida das bandeiras que seguiam rumo ao Oeste Paulista e à Mato Grosso e, ao longo do

século XX, foi perdendo parte de seu território para os distritos de Cajamar, Pirapora de Bom

Jesus e Barueri. O dinamismo econômico aconteceu em 1980 com as ligações rodoviárias e a

implantação de diversos condomínios residenciais, entre eles, Alphaville.

Sabe-se que muitas terras no Brasil foram desmembradas e transferidas pelo rei de

Portugal a particulares por meio de concessão para utilização econômica – as sesmarias – no

regime de enfiteuse (com pagamento anual de foro ao Tesouro Real) ou doadas. Com a

declaração da Independência, decidiu-se pela venda das terras, ou seja, elas passaram a ser

consideradas mercadorias. A enfiteuse ou aforamento constituiu uma das maneiras possíveis

do uso da terra por particulares, pela Coroa portuguesa ou pelo Estado brasileiro; entre os

aforamentos, encontram-se o Sítio Mutinga, a Fazenda Tamboré e o Sítio Itahim.

O Sítio Mutinga foi um aforamento originário da extinta Aldeia de Pinheiros

(subdividida em diversas aldeias como São Miguel, Itapecerica e Baruery), aldeamento

jesuítico do século XVI. Em maio de 1768, o sítio foi aforado (constando registro no Tesouro

Público Nacional) pelo diretor da aldeia Francisco Pereira Mendes a Ignacio Correa de Lemos

e Maria Leite de Barros, e estes, a Henrique José de Camargo, cuja planta nº 896 e termo de

medição desse imóvel coincidem com as divisas da Fazenda Tamboré e o Sítio Itahim. A

posse do Mutinga estendeu-se por toda a margem esquerda do ribeirão dos Três Irmãos até a

sua barra no Tietê, nas proximidades do porto velho Tamboré-Piassa.

A Fazenda Tamboré, no município de Parnahyba, é também subdivisão da Aldeia

dos Pinheiros. Foi aforada em maio de 1739 a Francisco Roiz (ou Rodrigues) Penteado, com

o termo de medição e planta confrontando com os sítios Mutinga e Itahim, situado à margem

direita do Ribeirão Pinheiro (possivelmente situado desde a barra de um córrego chamado rio

do Mico, e daí acompanhando o mesmo córrego até o ribeirão do Itaú até dar em um Pinheiro

Velho, e daí tomando por um ribeiro acima até beirar os cultivados das capoeiras do Coronel

Jeronymo Pedroso de Barros, e daí endireitando para um morro chamado Porto do Tamboré).

É nessa fazenda onde se localizam parte dos loteamentos Alphaville.

O Sítio Itahim, em Santana de Parnaíba, foi aforado em março de 1732 ao padre

Euzebio de Barros Leite. Estava situado entre o Jaraguá-Mirim, o rio Juqueri, o córrego Paiol

Velho e o ribeirão Santa Fé.

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As três áreas citadas, as plantas de cada imóvel e as cartas de aforamento estão na

Delegacia Fiscal de São Paulo18

e, de acordo com os relatos apresentados, são terras

pertencentes à União que foram aforadas. A condição de domínio direto seguiu a sequência

histórica Coroa, Império e União federal, sendo ratificadas por decisão do Superior Tribunal

Federal em 30 de dezembro de 1912 como terreno nacional.

3.1.2 Localização do Sítio Barreiro

A localização do Sítio Barreiro foi descrita no processo judicial de interdito

proibitório de posse, tendo como partes José Gonzaga Moreira e Empreendimentos Itahyê

Ltda., como interessado Amaro Guedes Barbosa, com nº 0027831-38.2008.8.26.0068, que

tramita pela 4ª Vara Cível da Comarca de Barueri, em perícia realizada devido à ordem

judicial. Segundo o perito, Cesar Augusto de Oliveira Pirajá (designado pelo juízo), o Sítio

Barreiro está localizado no município de Santana de Parnaíba/SP, com os seguintes limites e

confrontações:

18

A pesquisa descobriu que esses documentos estão na citada delegacia, contudo o acesso não foi possível

devido a razões burocráticas e inércia do pessoal que trabalha no local em agendar e promover o acesso aos

documentos.

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Figura 3 – Planta do Sítio Barreiro

Fonte: Perícia judicial efetuada no Processo nº 2.567/2008, que tramita pelo Juízo da 4ª Vara Cível da

Comarca de Barueri/SP (Perito Cesar Augusto de Oliveira Pirajá).

A planta do Sítio Barreiro também foi descrita no processo judicial, no qual foi

realizada outra perícia, por Eduardo Figueira de Mello Quelhas, nº 0044129-

03.2011.8.26.0068, que tramita pela 1ª Vara Cível da Comarca de Santana de Parnaíba/SP, no

qual são partes a Brookfield Urbanismo Empreendimentos Imobiliários e José Gonzaga

Moreira, com os seguintes limites e confrontações:

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Figura 4 – Planta delimitando apenas a região litigiosa (perímetro externo)

Fonte: Laudo pericial realizado no Processo nº 0044129-03.2011.8.26.0068.

Na segunda perícia citada, o perito inseriu o sítio no ambiente geográfico para

demonstrar sua localização no município de Santana de Parnaíba/SP e região. A propriedade

está demonstrada da seguinte forma: inserida dentro dos limites do município de Santana de

Parnaíba/SP, identificando-se dentro de seus limites a ocupação e implantação dos

loteamentos Gênesis II, Tamboré 2, 3 e 10, bem como a posse indireta da empresa SPE CNC

Incorporação e Negócios Imobiliários Ltda. com suas respectivas guaritas. O mapa segue:

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Figura 5 – Mapa de localização do Sítio Barreiro

Fonte: Laudo Pericial realizado no Processo nº 0044129-03.2011.8.26.0068, perito Eduardo Figueira

de Mello Quelhas.

Para melhor situar o sítio geograficamente e comprovar sua inserção nas áreas

que, no passado, foram objeto de aforamentos e nos limites do município de Santana de

Parnaíba/SP, utiliza-se o mapa confeccionado por Campos (2008) em sua tese de

doutoramento em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo (USP). O mapa

de Campos não traz a delimitação do Sítio Barreiro, mas demonstra as similaridades de

posicionamento geográfico com os mapas confeccionados nas perícias citadas anteriormente,

ou seja, em todos eles estão retratadas as ocupações por terceiros que empreenderam nos

limites do sítio, dentre elas, os condomínios Gênesis II, Tamboré 1, 3 e 10 e demais

ocupações que não foram identificadas claramente.

A área retratada no mapa a seguir demonstra os limites dos municípios de Barueri

e Santana de Parnaíba com os diversos empreendimentos imobiliários de alto custo edificados

na região, os quais coincidem com os mapas apresentados nas perícias judiciais e possuem

evidências de justaposição com as áreas que outrora foram aforadas pelos governos português

e brasileiro. Há evidências de que o Sítio Barreiro está inserido na área que foi objeto de

aforamento no passado, contudo não há como afirmar com certeza, uma vez que a SPU, órgão

responsável pelas áreas aforadas, não teve como apresentar documentos que comprovassem

os limites das áreas aforadas.

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Figura 6 – Planta da situação geral de Alphaville/Tamboré; produção de setores por incorporação

Fonte: Campos (2008, p. 127).

Se sobrepormos os mapas apresentados pelas periciais judiciais e o mapa

apresentado por Campos (2008), que demonstra as áreas de situação dos condomínios

Alphaville/Tamboré, onde foram identificados alguns aforamentos no passado, veremos que o

sítio, em parte de sobrepõe à área onde estão localizados os empreendimentos

Alphaville/Tamboré e via de consequência aos aforamentos. Assim sendo, a sobreposição

indica que podem existir no mesmo espaço físico o aforamento, as propriedades das

construtoras e a posse do Sítio Barreiro.

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Figura 7 – Sobreposição do mapa de Campos (2008) com o mapa do processo nº 2.567/2008 da 4ª

Vara Cível de Barueri

Fonte: Campos (2008, p. 127) e Processo nº 2.567/2008 da 4ª Vara Cível de Barueri.

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Figura 8 – Sobreposição do mapa de Campos (2008) ao mapa do processo nº 0044129-

03.2011.8.26.0068, que tramita pela 1ª Vara Cível da Comarca de Santana de Parnaíba/SP

Fonte: Campos (2008, p. 127) e Processo nº 0044129-03.2011.8.26.0068 da 1ª Vara Cível da Comarca

de Santana de Parnaíba/SP.

O histórico sobre os aforamentos será tratado no próximo item, identificando suas

origens e os desdobramentos na trajetória de apropriação das terras na região que convergem

com as hipóteses propostas neste trabalho.

3.1.3 Questão fundiária

Este item tem como objetivo demonstrar as origens fundiárias das terras onde está

localizado o Sítio Barreiro e sua trajetória. Procuramos entender como as terras inicialmente

destinadas aos índios foram apropriadas pelos particulares, que começaram uma série de

empreendimentos imobiliários. A região de Barueri e Santana de Parnaíba tornou-se um polo

de prosperidade imobiliária que estimula os conflitos fundiários na região em decorrência da

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insegurança jurídica da propriedade causada pelos aforamentos19

instituídos no passado que

acabaram por persistir no tempo sem qualquer controle e gestão pela administração pública.

A região onde está localizado o Sítio Barreiro, a toda evidência, é a mesma onde

estão localizados os empreendimentos imobiliários Alphaville e Tamboré, os quais já foram

objeto de estudos nas teses de Santos (1994) e Guerra (2013) e na dissertação de Romero

(1997), que abordaram o histórico da área para explicar a trajetória no tempo de apropriação

das terras indígenas pelos particulares. Segundo Guerra (2013, p. 84), os empreendimentos

Alphaville e Tamboré estão inseridos na área de “uma antiga sesmaria [que] foi doada aos

índios da extinta Aldeia de Pinheiros, pelo então governador [da Capitania] Jeronymo

Leitão”. A sesmaria foi doada em 1580 e validada em 1622 pela Câmara, que a cedeu ao

aldeamento de Pinheiros e São Miguel. Com a expulsão dos jesuítas no ano de 1640 e o

movimento das bandeiras, muitas aldeias foram dizimadas e perderam a posse sobre as terras

que lhes haviam sido aforadas (GUERRA, 2013).

A posse de parte das terras aforadas da extinta Aldeia de Pinheiros foi exercida

pela Condessa de Álvares Penteado, senhora Ana Lacerda Penteado, que herdou o Sítio

Tamboré. A União, após a extinção do aldeamento, tentou reaver as terras aforadas. Contudo

uma decisão do Supremo Tribunal Federal ordenou que as terras fossem restituídas à família

Penteado, mas manteve o entendimento de que se tratavam de terras da União, tendo a família

Penteado que pagar o foro. Essa informação é corroborada com o registro do 8º Cartório de

Imóveis da Comarca da Capital do Estado de São Paulo, que afirma que o Sítio Tamboré era

formado por terras que foram doadas aos índios da extinta Aldeia de Pinheiros (SANTOS,

1994).

Com a expulsão dos jesuítas e o declínio dos aldeamentos indígenas, as terras

aforadas foram invadidas por colonos que tomaram posse das áreas mediante a introdução de

rebanho de animais para destruir as plantações dos índios, o que dificultou ainda mais a

permanência destes no local. Os índios foram extintos, e os locais, transformados em vilas ou

freguesias (GUERRA, 2013).

19

“O Aforamento é uma das possibilidades de uso de bens imóveis não utilizados da União, e, de acordo com o

Decreto Lei nº 9760/1946, no artigo 64, 2º parágrafo ‘se dará quando coexistirem a conveniência de radicar-se

o indivíduo ao solo e a de manter-se o vínculo da propriedade pública’ (BRASIL, 1946). A mesma lei

determina o valor anual do foro a ser pago à União em 0,6% do valor do imóvel, anualmente atualizado

(BRASIL, 1946). O pagamento do laudêmio decorre do fato de que a legislação permite que o foreiro,

indivíduo que recebe o direito de utilização do imóvel da União, passe seu direito a terceiros, por venda ou

hereditariedade, sob o regime da enfiteuse. Neste regime, a propriedade permanece com a União, mas o foreiro,

agora denominado enfiteuta, tem o direito de passar 83% do domínio útil a outros, enquanto a União mantém

17%. Como esta transação, no caso de Alphaville, se deu por venda, ou seja, uma alienação onerosa, a União

tem direito de receber compensação de 0,05% do valor da transação, o laudêmio” (PESCATORI, 2017, p. 5).

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A ocupação das terras indígenas por colonos brancos ou mestiços foi aumentando

gradativamente, sendo certo que novos aforamentos foram concedidos àqueles que podiam

lavrar e semear a terra para manter o domínio, sob pena de terem as terras aforadas a terceiros

caso não promovessem o cultivo. Os aforamentos passaram a ser concedidos, também, nos

arredores das terras indígenas, já que os limites dessas terras eram imprecisos. Assim, as

transferências de domínios das áreas aforadas foram acontecendo de forma que criassem

relações jurídicas entre os ocupantes, por exemplo, o aparecimento dos meeiros. As

transferências foram administradas pelas Câmaras municipais, que foram coniventes com as

novas relações jurídicas que surgiram, além de disputarem o controle das terras indígenas

(GUERRA, 2013). Segundo Guerra (2013, p. 96),

[...] provavelmente existiam outras terras próximas a essa que eram aforadas.

A Constituição de 1891 passou as terras devolutas para os Estados, mas

havia muita dificuldade para identificar o que era e o que não era aforado. Os

outros aforamentos, por uma série de razões, se perderam com o tempo.

Acabaram sendo incorporados como terras devolutas para o Estado, que fez

uso dessas terras conforme suas necessidades (grande parte como uso militar

ou ferroviário). Como a Fazenda Tamboré ficou várias décadas sob

pendência judicial, cuja decisão procedeu-se somente no século XX (1918),

essas terras permaneceram como terras da União sendo perdidas e, no caso,

esta acabou perdendo em favor da família Penteado.

Guerra (2013, p. 94-95), citando Verazani,

[...] afirma que, embora a documentação do aforamento referir-se ao

Aldeamento de Pinheiros, é provável que parte dessas terras também

abrangessem as terras do Aldeamento de Barueri. Para justificar seu ponto

de vista, a autora cita documentação existente na Gerência Regional do

Patrimônio da União de São Paulo (GRPU–SP), onde consta que as

delimitações entre os aldeamentos de Pinheiros e Barueri eram imprecisas,

pois receberam em conjunto uma doação de sesmaria de 6 léguas quadradas

em 1580 de Jeronymo Leitão, as quais (até pela sua grande extensão) nunca

foram medidas. Santos (1994) também acredita nessa possibilidade.

Acrescenta ainda que as terras adquiridas por Francisco Rodrigues Penteado

estavam mais próximas do núcleo original do Aldeamento de Barueri do que

de Pinheiros.

Todas essas contradições na transferência de posse e propriedade e nos limites

imprecisos dessas terras ao longo dos séculos favoreceram sua apropriação por grupos

privados (ROMERO, 1997). Essa apropriação aconteceu no decorrer do tempo. As grandes

extensões de sesmarias aforadas foram apropriadas por grupos privados ou pessoas comuns

que se tornaram posseiros, sendo certo que, em decorrência da falta de delimitação e ausência

do cadastro de terras por parte da SPU, essas sesmarias foram convertidas em propriedade,

originando matrículas e mais matrículas.

A questão fundiária na região onde está localizado o Sítio Barreiro é complexa

desde 1580, quando se iniciaram as concessões de sesmarias e aforamentos. Essa

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complexidade não solucionada vem ocasionando uma série de conflitos fundiários e disputas

pela terra que transitam ora pelo direito de posse, ora pelo direito de propriedade, sem que

seja possível uma solução geral para a região em virtude da ingerência do Estado, no caso, da

SPU, quanto ao controle e gestão das terras da União.

3.1.4 Histórico do Sítio Barreiro

Esta seção apresenta o levantamento do histórico documental do Sítio Barreiro

com o objetivo de esclarecer a sua localização e demonstrar a razão dos conflitos existentes

pela área e grau de legalidade, ou não, dos documentos existentes. Os documentos analisados

são certidões de matrículas e transcrições extraídas dos originais expedidos pelos cartórios e

processos judiciais que tramitam pelos juízos das comarcas de Barueri e Santana de Parnaíba.

A área em estudo está localizada em Santana de Parnaíba/SP, com dimensão

aproximada de 1.093 ha, tendo como legítimo possuidor Francisco Fagundes de Lima desde o

ano de 1956, que, por sua vez, adquiriu os direitos hereditários sobre a área da Família

Rodrigues, que tem sua titularidade comprovada desde o ano de 1856, estampada no Livro de

Registros Paroquiais de Parnahyba.

Em 14 de outubro de 2011, Francisco Fagundes de Lima cedeu e transferiu à

empresa SPE CNC Incorporação e Negócios Imobiliários Ltda. os direitos hereditários do

Sítio Barreiro, via escritura de cessão e transferência de direitos hereditários. Ao adquirir os

direitos hereditários da área, a empresa SPE CNC cercou o sítio, construiu guaritas e colocou

placas de aviso de “titularidade” da área. Com o movimento de cerco e construção de guaritas,

a posse da empresa foi contestada com o aparecimento de várias pessoas com diferentes tipos

de títulos reclamando a propriedade e a posse da área.

3.1.5 Histórico documental da propriedade até 1956

Os documentos analisados no estudo de caso demonstraram que o Sítio Barreiro

está localizado no município de Santana de Parnaíba/SP. Com base em documentos extraídos

de livros públicos e transcrições, datados de 1856, o sítio está descrito no Livro de Registros

Paroquiais de Parnahyba – nº 127, à fls. 32 v, Registro nº 354, Certidão da Divisão de

Arquivo do Estado de São Paulo, Setor de Paleografia, de 22 de março de 2002 –, tendo como

titulares de direitos hereditários Joaquim Maria e seus filhos, João, José, Ignácio Rodrigues,

Anna Joaquina, Maria Rodrigues, Joaquina Rodrigues, Josepha Rodrigues e Brandina

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Rodrigues, com a seguinte descrição da área: sítio em local denominado Barreiro, de um lado

divide com terras da Fazenda Tamborê por um córrego denominado do Portão de Telha, de

outro lado divide-se com as terras dos herdeiros de D. Joaquina Roza da Silva e de outro lado

com terras de D. Anna Joaquina de Oliveira, de outra com terras dos herdeiros do Tenente

Joaquim Theodoro Leite Penteado.

Em julho de 1956, por escritura de cessão de direitos hereditários e posse –

Tabelião Falleiros lavrada no 19º Tabelionato de Notas de São Paulo, nº 496, à fls. 54 v, do

Livro de Notas do Tabelionato Certidão 34407 –, os direitos hereditários do Sítio Barreiro

foram outorgados a Francisco Fagundes de Lima.

Segundo esses documentos, depreendemos que, por todos estes anos em que os

direitos hereditários sobre o Sítio Barreiro estão sendo negociados, não há descrição da área

de forma clara que possa assegurar aos titulares de direitos definirem onde estava localizada a

área com exatidão, ou seja, os direitos sobre o sítio estavam sendo comercializados sem que

vendedores e compradores tivessem ciência de sua exata localização. Contudo uma perícia

judicial realizada no Processo nº 2.567/2008, que tramita pela 4ª Vara Cível da Comarca de

Barueri/SP, fez a delimitação do Sítio Barreiro, conforme Figura 9.

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Figura 9 – Mapa do Sítio Barreiro

Fonte: Processo Judicial nº de ordem 2.567/2008, 4ª Vara da Comarca de Barueri São Paulo/SP.

Do mapa elaborado pelo perito judicial, observa-se que em parte da área do sítio

já existem alguns empreendimentos imobiliários consolidados, indicando que a área foi

invadida no decorrer dos anos em que Francisco Fagundes de Lima e seus sucessores tinham

sua posse.

Os empreendimentos imobiliários contidos na área original do Sítio Barreiro

foram realizados no decorrer dos anos por incorporadores que adquiriram suas áreas mediante

compra e venda de imóveis com matrículas. Há uma evidente sobreposição de direitos de

posse e propriedade na área em estudo, que é objeto de várias demandas judiciais na Comarca

de Barueri, como será apresentado mais adiante.

A possibilidade de se transmitir um direito pessoal, no caso, a posse, sem

assegurar o local exato é prática constante nos órgãos responsáveis pela confecção de títulos e

registro de terras ou imóveis rurais no Brasil, incorrendo na necessidade de revisão dos atos

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praticados pelos cartórios em geral. O problema envolvendo os conflitos por terras, rurais ou

urbanas, necessita de soluções que garantam ao proprietário segurança jurídica em sentido

amplo quanto à validade do título de aquisição.

Depreende-se dos documentos capazes de comprovar a posse que os atos

praticados entre os titulares de direitos da transcrição dos registros paroquiais de 1856 e

Francisco Fagundes de Lima asseguram a posse de área de 1.093,50 ha desde aquela data.

À guisa de conclusão, o Sítio Barreiro tem área de, aproximadamente, 1.093 ha,

está localizado no município de Santana de Parnaíba/SP, tendo como acidente geográfico de

referência à sua exata localização o Córrego Portão de Telhas ou Barreiro e Ithaim, sendo esta

comprovada pelos documentos verídicos de atos praticados pelo legítimo possuidor desde

1856. Tal dimensão de terra nunca havia sido devidamente demarcada, mas a perícia judicial

realizada no Processo nº 2.567/2008, que tramita pela 4ª Vara Cível da Comarca de

Barueri/SP, delimitou o Sítio Barreiro na forma apresentada na Figura 9.

3.2 Empreendimentos Itahyê

A sobreposição entre posse e propriedade que existe na área do Sítio Barreiro fica

evidente por meio da análise do caso da Fazenda Itahyê, que surgiu da junção de quatro áreas

localizadas entre Perus e Pirituba, no município de São Paulo, na ocasião do inventário de

Alberto Jackson Byington. No decorrer dos anos, a localização da fazenda foi alterada de

Perus e Pirituba para o município de Santana de Parnaíba/SP. A localização em Santana de

Parnaíba/SP está descrita em diversas matrículas no Cartório de Registro de Imóveis de

Barueri. Ocorre que algumas dessas matrículas estão sobrepostas no Sítio Barreiro. A

sobreposição foi descoberta em 2011 quando o possuidor, SPE CNC Ltda., ao adquirir os

direitos sobre o sítio, iniciou o processo de cercamento da área para converter sua posse em

propriedade. A partir de 2011, surgiram várias demandas judiciais pela disputa da área.

Nesses processos judiciais, apareceram evidências de que a área da Fazenda

Itahyê foi transposta do município de São Paulo para o município de Santana de Parnaíba

mediante procedimentos legais, contudo realizados de forma fraudulenta, o que configura

grilagem de terras.

3.2.1 Histórico da Fazenda Itahyê

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A origem dos Empreendimentos Itahyê Ltda. ocorreu no município de São Paulo,

na região de Perus e Pirituba, antiga Freguesia do Ó. Os bairros de Perus e Pirituba estão

localizados na zona noroeste da cidade de São Paulo, por onde passam duas importantes

rodovias, a Bandeirantes e a Anhanguera, e fazem parte do antigo caminho para a região de

Campinas e Jundiaí. Os bairros fazem divisa com os municípios de Caieiras, Cajamar, Osasco

e, recentemente, com a ligação do Rodoanel Mário Covas, pelo trecho oeste. A rodovia ativou

uma divisa com o município de Barueri, que era existente, porém sem acesso viário. Perus

também possui o maior parque municipal de São Paulo, o Parque Anhanguera.

A Fazenda Itahyê surgiu da junção de quatro áreas distintas, localizadas no

distrito de Perus, São Paulo, na transcrição 20.182, ficha 01, do livro de 1953, registrada no 8º

Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de São Paulo. Consta, nessa transcrição, que a

Fazenda Itahyê foi formada por quatro glebas menores, conhecidas como Imóvel Ithaim, Sítio

Moenda Velha ou Capuava, Sítio Itaberaba e Fazenda Itaberaba, com transcrições anteriores,

respectivamente, 18.898, 3.743, 13.753, todas da 2ª Circunscrição Imobiliária de São Paulo, e

a transcrição 7.043, do 8º Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo. Da análise das

transcrições mencionadas, pode-se observar que todas estão localizadas, originalmente, no

município de São Paulo, na Freguesia de Nossa Senhora do Ó.

A Fazenda Itahyê foi inicialmente adquirida por Alberto Jackson Byington Júnior,

na ocasião de partilha dos bens deixados por Alberto Jackson Byington, falecido em 17 de

setembro de 1952.

Em 1953, a área do imóvel estava descrita da seguinte forma:

um imóvel com 3.800,00 m, mais ou menos, contados da sede do quilômetro

28 da via Anhanguera, divisas certas e com a área total aproximada de 1.020

alqueires – 24.684.000,00 m², confrontando com o Ribeirão Itahyem,

Condomínio Joaquim Marques da Silva Sobrinho, Cia Industrial, Sítio Paiol

Velho, Fazenda Itaberaba, propriedade de Paiva Ramos, existindo no imóvel

descrito várias benfeitorias tais como casas de sede, casas de colonos,

estábulos, pastagens, instalações, veículos, etc20

.

Vê-se que, na época do inventário, a área não estava descrita de forma que

pudesse ser individualizada e conhecida quanto aos seus limites, confrontações e localização

geográfica, tampouco, ao longo dos anos, ocorreu alguma ação que auxiliasse na identificação

em sua integralidade.

No decorrer do tempo, a área da Fazenda Itahyê, de aproximadamente 24.000 ha

(que inicialmente era no município de São Paulo), foi sendo deslocada para outros imóveis,

localizados em municípios lindeiros ao de São Paulo, dentre eles, Santana de Parnaíba/SP,

20

Transcrição 20.182, 8º Cartório de Registro de Imóveis de São Paulo Capital.

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onde estava o Sítio Barreiro. Foram analisadas várias matrículas, todas com escrituras

elaboradas no 9º Tabelionato de Notas de São Paulo e registradas no Cartório de Registro de

Imóveis de Barueri, destacadas na transcrição 20.182 da Fazenda Itahyê, contudo sem

apresentarem similaridade com a transcrição mãe, uma vez que grande parte da fazenda foi

localizada dentro do perímetro do município de Santana de Parnaíba/SP e não mais no

município de São Paulo, onde estava localizada inicialmente.

Ao analisar as escrituras e matrículas que foram destacadas da Fazenda Itahyê,

percebe-se que esses destaques foram alienações a pessoas jurídicas que pertenciam à família

Byington, como a Fazenda Velha S/C Ltda. As transmissões foram realizadas na ocasião do

falecimento de Alberto Jackson Byington Júnior, em 17 de dezembro de 1964. Fazenda

Velha, Fazenda Itahyê Ltda., Empreendimentos Itahyê eram pessoas jurídicas pertencentes à

Família Byington, que alienou os imóveis das pessoas físicas para as jurídicas.

Para a confecção das escrituras, o tabelião teve apenas a certidão da transcrição

20.182 da Fazenda Itahyê e um memorial descritivo feito pela própria Itahyê que não trazia

um mapa que delimitasse a área destacada da área maior. Não havia certeza alguma de que

aquele destaque correspondia à realidade do local. Da transcrição 20.182, surgiram várias

matrículas no município de Santana de Parnaíba, sendo uma delas a matrícula de número

82.326, do Cartório de Registro de Imóveis (CRI) de Barueri, que está sobreposta à área do

Sítio Barreiro e que, a toda evidência, foi criada mediante procedimento fraudulento.

A perícia realizada nos autos nº 2.567/2008, da 4ª Vara Cível de Barueri, concluiu

que a matrícula nº 82.326 não se encaixava na área onde estava descrita, que coincidia com a

área do Sítio Barreiro. O perito tentou localizar a área descrita na matrícula nº 82.326, do CRI

de Barueri, contudo vários problemas foram apontados quanto à legalidade do título

(matrícula). Sobre a referida matrícula, concluiu o perito: o imóvel não possui planta nem

mapa de uso, ou seja, não possui informações gráficas e não foi possível o seu fechamento do

polígono que descreveria a área da matrícula por apresentar erros técnicos considerados

graves.

O perito foi categórico em afirmar que a matrícula 82.326 do CRI de Barueri-SP

não era real, uma vez que sua descrição não fechava o perímetro e, consequentemente, a área.

Em conclusão, disse que, da análise dos documentos reunidos pela proprietária da matrícula

nº 82.326 (Fazenda Itahyê), não existia nenhuma relação entre esta matrícula e a área do Sítio

Barreiro, sendo esta matrícula criada de forma errônea em termos técnicos e normas legais.

Ficou caracterizado, pela perícia, que a matrícula foi montada sem nenhum respaldo legal.

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A perícia, então, deixou claro que a matrícula nº 82.326 do CRI de Barueri

contém erros técnicos e legais que comprometem sua legalidade. Essa conclusão corrobora as

hipóteses deste trabalho quanto às causas da insegurança jurídica da terra no Brasil. Pela

conclusão da perícia, fica evidente a possibilidade de se criar um título de propriedade

(matrícula) seguindo procedimentos legais, contudo de forma fraudulenta, dado que não havia

descrição exata das áreas envolvidas, ou seja, do Sítio Barreiro e da Fazenda Itahyê e de suas

matrículas.

Essa forma aparentemente legal de criação da matrícula nº 82.326 do CRI de

Barueri poderia ter amparo na legalidade se os proprietários da Fazenda Itahyê tivessem

promovido um processo judicial de retificação da área antes de iniciar a criação de matrículas

com base numa descrição precária e imprecisa que não demonstrava como era a área, seus

limites, sua dimensão e onde ela estava localizada.

No item a seguir, veremos que havia meios para que as questões relativas a

limites, tamanho e localização fossem sanadas: a realização de retificações de área com o

poder judiciário. Contudo não seria possível transpor a área da Fazenda Itahyê de São Paulo

para Santana de Parnaíba caso sua descrição e localização estivessem definidas,

impossibilitando, assim, a grilagem.

3.2.2 Das retificações judiciais de área da Fazenda Itahyê

Sobre a área da Fazenda Itahyê, como demonstrado no item anterior, pairam

evidências de que as diversas matrículas que surgiram com arrimo na transcrição nº 20.182

foram abertas no CRI de Barueri de forma fraudulenta, apesar de aparentar legalidade quanto

ao procedimento.

Este item irá tratar sobre as retificações judiciais de área promovidas pelo espólio

de Alberto Jackson Byington Júnior: por que e como elas foram feitas e considerações acerca

da perícia realizada na época. Preliminarmente, cabe esclarecer o porquê de o espólio de

Alberto J. Byington Júnior ter promovido a primeira retificação de área em 1990.

Na ocasião do arrolamento dos bens deixados por Alberto Jackson Byington

Júnior, foi requerida uma retificação das primeiras declarações apresentadas e um aditamento

do formal de partilha para que constasse que a unificação do imóvel denominado Fazenda

Itahyê foi decorrente da unificação de quatro propriedades distintas, com suas confrontações e

descrições constantes dos respectivos títulos aquisitivos, com exceção da descrição da gleba

denominada Fazenda Itahim, para a qual deveriam ser consideradas a descrição e as

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confrontações levantadas pelo Juízo Comissário dos municípios da capital e Santo Amaro, no

processo nº 375 da Secretaria da Agricultura do Estado de São Paulo. Em 9 de janeiro de

1888, foi realizada a medição da Fazenda Itahim, sendo então elaboradas plantas e memorial

descritivo pela comissão de discriminação de terras da então província de São Paulo.

O juiz do 2º Ofício da Família e Sucessões da Capital deu procedência ao pedido

do espólio remetendo ordem ao oficial do 8º CRI da Capital para averbar a unificação das

quatro glebas, descrevendo a Fazenda Itahim conforme a planta do juiz comissário de 1888.

Contudo o oficial do 8º CRI de São Paulo não concordou em efetuar a averbação solicitada

pelo espólio porque entendeu que o pedido pretendia introduzir no registro outra

caracterização da área da Fazenda Itahyê com a inclusão da Fazenda Ithaim, adquirida pela

transcrição nº 18.898 do 2º Registro de Imóveis. Tal caracterização (com a inclusão da

Fazenda Ithaim) se apoiava em um antigo levantamento que era estranho aos documentos

contidos pelo cartório. Dessa forma, o oficial cumpriu com sua função de não proceder à

alteração na matrícula sem a retificação da área, conforme art. 213 da Lei nº 6.015/73

(BRASIL, 1973).

O promotor de justiça e o juiz de direito acataram a argumentação do oficial do 8º

CRI, sendo o feito redistribuído para a 1ª Vara de Registros Públicos da Capital, na data de 8

de janeiro de 1990, dando origem à primeira retificação de área do Processo nº 17/90. Assim,

dada a recusa do oficial do registro de imóveis, o espólio foi obrigado a proceder à retificação

judicial da área.

As retificações promovidas pelos representantes da Fazenda Itahyê contêm alguns

pontos que ajudam na compreensão da dinâmica da sobreposição da área ao Sítio Barreiro.

Iniciada a retificação de área, o juiz da causa, em seu primeiro despacho, elencou vários

pontos que deveriam ser esclarecidos: que a transcrição nº 20.182 do 8º CRI não mais

representava a realidade física do imóvel que deu origem às matrículas nº 41.650, 73.062 e

73.063 do 18º CRI; que os dados que se pretendiam fazer inserir na transcrição, em verdade,

não constavam dos títulos dominiais anteriores, mas somente do formal de partilha; que as

matrículas abertas no 18º CRI não guardavam semelhança descritiva com a transcrição que

lhes deu origem, aparentando maltrato ao princípio da especialidade registrária; que causou

estranheza o fato de a certidão juntada da transcrição 20.182 não ter apontado as alienações

parciais da gleba e da alteração de titularidade dominial constante na matrícula nº 41.650, no

que toca à averbação-3. Assim, foram várias as irregularidades que circundaram a retificação

judicial da área logo em seu ingresso.

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O oficial do 18º CRI de São Paulo prestou os esclarecimentos ao juiz da 1ª Vara

de Registros Públicos dizendo que: quanto à abertura das matrículas em que a descrição dos

imóveis não guardam semelhança com a transcrição de origem, ao tempo da prática dos atos,

inexistia orientação da Egrégia Corregedoria Geral da Justiça e que o controle da

disponibilidade de área sempre foi feito por simples cálculo aritmético, mesmo na vigência da

Lei nº 6.015/73, que já previa a possibilidade de retificação da área nos art. 212 e 213. Assim,

o controle de disponibilidade foi feito pelo perímetro, e não pela área, como deveria ser para

exprimir a realidade.

Vários foram os ofícios com pedidos de informação aos Registros de Imóveis de

São Paulo e Barueri e à Corregedoria de Justiça do Estado para se manifestarem acerca das

irregularidades apontadas, contudo não há nos autos as respostas aos ofícios. As

irregularidades apontadas no início do processo não foram esclarecidas.

Sobre a perícia realizada no processo para apurar a área da Fazenda Itahyê, consta

que foi realizada com a análise somente de documentos juntados pelos interessados (vale

dizer, em medições feitas em 1888) por ordem do juiz comissário. Ao final do processo, o juiz

concedeu a retificação da área da Fazenda Itahyê mesmo sem as respostas às perguntas

formuladas no início da demanda e com base em laudo no qual a perícia foi realizada por

meio de documentos antigos e sem confirmação de limites.

Em 1994, o espólio de Alberto J. Byington Júnior ingressou com nova retificação

de área para corrigir o perímetro de uma divisa que confrontava com os Empreendimentos

Itahyê. Não houve objeção do confrontante, haja vista que a empresa pertencia aos herdeiros

de Alberto J. Byington Júnior. Não foi produzida uma nova prova pericial, sendo utilizada a

mesma perícia do Processo nº 17/90.

Em 2005, a apuração do remanescente foi realizada com base no artigo 213 da Lei

de Registros Públicos, com nova redação dada pela Lei nº 10.931/04, utilizando os mesmos

documentos das retificações anteriores. Para a realização da perícia técnica, apenas foram

analisados documentos. Não houve pesquisa de campo para apurar os limites e a localização

das áreas retificadas.

Concluindo, a dinâmica das retificações de área realizadas pelo poder judiciário

para apurar remanescente com base na descrição da Fazenda Itahim pelo juiz comissário de

1888 não foi capaz de localizar exatamente o perímetro da área maior da Fazenda Itahyê. O

perito realizou uma suposta confirmação dos limites existentes na planta do juiz comissário e

nas matrículas fornecidas pelos registros de imóveis envolvidos. Nos itens anteriores,

destacamos as falhas na origem da Fazenda Itahyê e as irregularidades dos desmembramentos

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efetuados na transcrição 20.182, que deram origem às glebas inseridas no município de

Santana de Parnaíba-SP, sendo certo que foram as informações contidas na transcrição

irregular e nas matrículas que foram utilizadas pelo judiciário. Pelas retificações, nota-se

outro ponto importante na questão fundiária do Brasil: os conflitos, por vezes, acabam

judicializados, ou seja, o poder judiciário é quem vai resolver a questão da terra em disputa

por uma ou mais pessoas. Contudo o que se nota é que o judiciário não possui conhecimento e

capacidade para solucionar conflitos que envolvam a complexa questão fundiária brasileira,

sendo certo que o juiz fica dependente do perito, que poderá ou não se pronunciar de forma

correta e convencer o juiz a dar procedência ao processo de forma justa, concedendo o direito

à terra a quem lhe é devido.

Poderemos notar o despreparo do judiciário quanto às questões fundiárias no item

a seguir, que abordará as desapropriações realizadas na área da Fazenda Itahyê, que está

“suspostamente” localizada em Santana de Parnaíba.

3.2.3 Desapropriações na Fazenda Itahyê

Na área Fazenda Itahyê, alguns destaques de área foram efetuados mediante

desapropriações por ação judicial e decreto.

A primeira desapropriação analisada foi a realizada pela Petrobras por meio de

ação de desapropriação em face da empresa Empreendimentos Itahyê Ltda., que tramitou pela

4ª Vara Federal da Capital/SP, Processo nº 1.111.914/71. Na inicial da ação de

desapropriação, consta que a faixa de terras de 20 metros de largura, referente ao oleoduto da

Petrobras, atravessa vários municípios, dentre os quais é atingido Cajamar, onde foi

primeiramente localizada a área objeto de desapropriação dentro da Fazenda Itahyê. Esse

ponto será tratado mais adiante. Outro ponto que merece atenção é o aparecimento de um

aforamento que coincide com a área desapropriada.

A SPU informou que nos municípios de Barueri e Santana de Parnaíba, no estado

de São Paulo, existem imóveis aforados pela União: no município de Barueri, o total da área

aforada é de 25.413,96 ha e, em Santana de Parnaíba, é de 25.817,78 ha. Contudo, ante a

ausência de mapeamento dessas áreas, não foi possível apurar os locais com exatidão.

Na petição inicial da desapropriação, a Petrobras ressaltou que, conforme certidão

expedida pela SPU, ficou caracterizado que este imóvel, Fazenda Itahyê, anteriormente

denominada Itaim, era foreiro, ou seja, enfiteuta, o que indica que existia na área da Itaim um

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aforamento, que, por sua vez, eram terras que pertenciam à União. A certidão expedida pela

SPU é a seguinte:

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Figura 10 – Certidão expedida pelo Ministério da Fazenda atestando a existência de um aforamento

denominado Itahim

Fonte: Processo nº 1.111.914/71, 4ª Vara Federal da Capital/SP.

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Consta no documento, que é uma certidão do Ministério da Fazenda, que “a

Fazenda Itaim, situada entre o Jaraguá-Mirim, o Rio Juqueri, o Córrego Paiol Velho e o

Ribeirão Santa Fé, no Estado de São Paulo, é terreno nacional interior, aforado em 1732 ao

Padre Euzébio Barros Leite, e que se encontra atualmente em comisso”21

. Datada de 1971, a

certidão emitida pelo Ministério da Fazenda apenas descreve a área tomando como

referências os acidentes geográficos de rios de córregos. A certidão não traz um mapa da área

ou dela inserida no todo da região.

A petição inicial apresentou dúvida sobre o domínio da área da Fazenda Itahyê,

anteriormente denominada Fazenda Itaim: se pertenceria à União ou a Alberto J. Byington. A

localização da área e da propriedade se deu por afirmação do perito Antonio Carlos da Gama

e Silva. O perito apresentou laudo mudando a localização da área do município de Cajamar

para Santana de Parnaíba e não mencionou o aforamento da Fazenda Itaim, o qual estava

demonstrado pela certidão citada. Seu laudo foi, portanto, favorável à Família Byington,

proprietária da Fazenda Itahyê.

Dos documentos analisados, consta que vários imóveis, de várias cidades, foram

desapropriados para passagem de um oleoduto, dentre eles, o imóvel da matrícula nº 64.654

do CRI de Barueri. Na matrícula, aberta em 3 de outubro de 1986, a descrição é a seguinte:

“imóvel com área de 54.080 m2, em Santana de Parnaíba, de formato irregular, que pertencia

a Alberto Jackson Byington Júnior oriundo das transcrições de nºs 18.898, 13.753 e 3.743,

todas do 2º Cartório de Imóveis de São Paulo”22

. Coincidentemente, três das quatro glebas

que deram origem à Itahyê em 1953 são as transcrições anteriores do imóvel desapropriado

pela Petrobras. Ocorre que, na época em que se deu a desapropriação, as glebas citadas como

transcrições anteriores já estavam aglomeradas em sua totalidade na transcrição 20.182 da

Fazenda Itahyê, desde 1953.

O Registro de Imóveis, ao dar abertura à matrícula, deveria ter informado a

transcrição anterior à de nº 20.182, e não as que deram origem a ela. Pela lógica, as

transcrições que deram origem à transcrição nº 20.182 não existiam mais, por terem sido

unificadas na Fazenda Itahyê.

Considerações sobre estas irregularidades acerca das matrículas das áreas que

estavam sendo desapropriadas foram analisadas e consideradas no Processo judicial nº

2.567/2008 da 4ª Vara Cível de Barueri, citado no item 3.2.1. O perito constatou que a

matrícula 64.654, que trata da desapropriação da área para a passagem do oleoduto, foi

21

Processo nº 1.111.914/71, 4ª Vara Federal da Capital/SP. 22

Matrícula nº 64.654, Cartório de Registro de Imóveis de Barueri.

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desmembrada da matrícula 41.650 do 18º Registro de Imóveis da Capital, e não das

transcrições da Fazenda Itahyê, como foi feito no processo de desapropriação da Petrobras.

O processo de desapropriação promovido pela Petrobras foi julgado, e a

desapropriação foi consumada mesmo com todas as discrepâncias contidas: o caso do

aforamento não foi analisado e a União não se manifestou para comprovar que a área poderia

ser objeto de aforamento (sendo, por sua vez, propriedade da União), a questão de a matrícula

do imóvel desapropriado ser aberta com base em transcrições antigas da Fazenda Itahyê não

foi analisada, bem como o fato de a Fazenda Itahyê ter apresentado uma matrícula de imóvel

localizado no município de São Paulo (41.650 do 18º Registro de Imóveis de São Paulo), e

não um título de imóvel localizado no município de Santana de Parnaíba, onde estava

acontecendo a desapropriação. Todos esses fatos foram suplantados pela perícia, que foi

aceita pelo juiz da causa. Este não foi capaz de analisar os documentos e achar as falhas que

estavam acontecendo. O certo é que a Fazenda Itahyê recebeu a indenização pela

desapropriação.

A segunda desapropriação observada sobre a área da Fazenda Itahyê foi a

efetuada na matrícula 41.650, folha 1, Livro 2 do 18º Serviço de Registro de Imóveis (SRI) de

São Paulo: uma área de 1.177.718,50 m² ou 117,77 ha destacada da Fazenda Itahyê. Esta

matrícula está descrita no Decreto nº 43.124, de 25 de maio de 1998, que declarou de

utilidade pública imóveis situados no distrito de Perus, zona rural, necessários à Sabesp. As

áreas desapropriadas estão descritas em parte da Fazenda Itahyê, no município de São Paulo.

Cumpre recordar que parte do imóvel contido na matrícula 41.650, do 18º CRI de

São Paulo-SP, foi objeto da desapropriação efetiva pela Petrobras que deu origem à matrícula

64.654 do CRI de Barueri-SP.

Podemos considerar que a Família Byington tinha a informação desde os anos de

1970 que a área seria objeto de desapropriação por utilidade pública. Os destaques feitos ao

arrepio da Lei de Registros Públicos de 1973, sem a retificação da área da Fazenda Itahyê,

todos demarcando área dentro do município de Santana de Parnaíba, foram realizados no

mesmo tempo que tramitava o processo de desapropriação da Petrobras.

O aforamento que constava na Fazenda Itaim foi completamente descartado, não

constando no decorrer do processo a certeza sobre a propriedade da área. Se a Fazenda Itaim

era um aforamento e pertencia à União, não poderia compor a Fazenda Itahyê. Existe a

possibilidade de Alberto J. Byington ter se apossado da área da Fazenda Itaim indevidamente,

uma vez que ela pertencia à União, certificada pela SPU. A localização da Fazenda Itaim que

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consta da certidão de aforamento não coincide com a descrição de mapas feitos nas

retificações realizadas pela família Byington.

Sobre as desapropriações da Petrobras e Sabesp na mesma área, o perito ressaltou

que a Petrobras e a Sabesp não tinham conhecimento da duplicidade de propriedades.

3.3 Das correições no Cartório de Registro de Imóveis de Barueri

O CRI de Barueri sofreu correição nos anos 1990, culminando no cancelamento

das matrículas envolvidas e no afastamento e posterior aposentadoria do oficial da época,

Geraldo Lupo, que já estava às vésperas da aposentadoria compulsória. Após a correição, o

cartório sofreu intervenção em 29 de abril de 1998, sendo nomeados como interventores os

tabeliães-titulares do 7º e do 9º Cartório Oficial de Registro de Imóveis. A intervenção foi

atípica em decorrência de vários fatores. Um deles foi ter extrapolado o prazo, que é de quatro

meses, sendo mantido um dos interventores à frente do cartório por mais de um ano. A Lei

Federal nº 8.935/94 afirma que, quando o cargo de tabelião fica vago, deve assumir

interinamente o substituto designado por ele, que, no caso, era seu filho, Geraldo Lupo Júnior,

ou o funcionário mais antigo, que era a esposa de Lupo, Nedyr da Silva Lupo. Contudo a lei

não foi cumprida. A esposa de Lupo ingressou com mandado de segurança no Tribunal de

Justiça, o qual foi negado com base no §1º do art. 36 da Lei Federal nº 8.935/94. A correição

apurou que havia parcelamento irregular do solo ou loteamento de área destinada à

preservação florestal.

O Ministério Público ingressou com ação penal em que o oficial do CRI de

Barueri, Geraldo Luppo, foi réu com Arthur Castilho de Ulhoa Rodrigues e Marcos Chindi

Minomo, em Processo Crime nº 190/96, que tramitou pelo 1º Ofício Judicial de Barueri, pelos

crimes dos artigos 50, § único, inciso I da Lei nº 6.766/79, e 15, §1º, inc. I, “a”, da Lei nº

6.938/81, ambos cc art. 29 do Código Penal (Arthur e Marcos). Contudo o processo foi

extinto em decorrência da prescrição da pretensão punitiva antecipada, consoante artigos 109,

110, §1º e 2º, 114, 115, 107, IV, todos do Código Penal. Não houve julgamento do mérito em

decorrência da prescrição.

A correição não teve como objeto as matrículas e as supostas fraudes apontadas

no estudo. Não foram encontradas evidências de que os dados aqui lançados foram apurados

durante o procedimento.

3.4 Das demandas judiciais

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As áreas descritas anteriormente, de alguma forma, sempre estiveram envolvidas

em demandas judiciais.

No primeiro documento analisado relativo ao Sítio Barreiro, a certidão extraída

dos Livros de Registros Paroquiais de Parnayba nº 127, folha 32-verso o registro de nº 354,

datado de 1856, relata que Joaquim Maria e seus filhos possuíam a área adquirida por meação

e herança de Joaquim Rodrigues, pai dos declarantes. Passados 100 anos, na escritura de

cessão de direitos hereditários e posse lavrada no 19º Tabelião Falleiros de São Paulo (nº 496,

fls. 54 v), os outorgantes, neta, bisnetos, tios, filhos e marido cederam os direitos relativos ao

Sítio Barreiro a Francisco Fagundes de Lima. Novamente, temos presença de demanda

envolvendo direitos hereditários.

Atualmente, a área do Sítio Barreiro é alvo de uma série de ações possessórias que

envolvem as pessoas aqui relatadas, bem como terceiros estranhos ao estudo até o momento.

Na 4ª Vara Cível da Barueri, existe uma ação de interdito proibitório cumulado

com pedido de indenização que José Gonzaga Moreira e Maria Resende Moreira moveram em

face de Empreendimentos Itahyê Ltda. interposta em 25 de setembro de 2008, feito nº

068.01.2008.027831-3. Em síntese, os autores alegaram que eram possuidores de um imóvel

(parte de uma área maior – Sítio Barreiro) adquirido por contrato de cessão de direitos

hereditários e possessórios, no lugar denominado Barreiro, com área de 49 alqueires,

escriturado no 19º Tabelionato de Notas de São Paulo.

De outra banda, a Empreendimentos Itahyê Ltda. contestou a narrativa dos autores

alegando que era possuidora e proprietária há mais de 80 anos da área do Sítio Barreiro, junta

os títulos de propriedade, dentre eles, a matrícula nº 82.326, do SRI de Barueri, destacada

diretamente da matrícula nº 20.182, Fazenda Itahyê; CCIR; fotos; notas fiscais relativas à

atividade agrícola executada na área; autorização para Petrobras realizar reparos num

oleoduto, supostamente dentro dos 49 alqueires; autorização para o Exército Brasileiro

realizar exercício militar dentro da área; ITR que consta a área como sendo Fazenda Velha e

contribuinte Empreendimentos Itahyê Ltda.

O terceiro demandante, de nome Amaro Guedes Barbosa, disse ser possuidor de

uma área maior, na qual estavam inseridos os 49 alqueires. Ele tinha a intenção de alienar a

área mostrando para terceiros. José Gonzaga, nessa ocasião, ingressou com interdito

proibitório contra Amaro, tendo liminar de manutenção da posse deferida.

No processo nº 2.567/2008, da 4ª Vara Cível de Barueri, o magistrado/juiz pediu

informações ao CRI de Barueri, contudo o oficial respondeu que, apesar de a situação

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registral do imóvel estar retratada na matrícula 82.326 daquele registro, não era possível

atestar quem era o efetivo possuidor da área em litígio, tampouco informar com precisão e

segurança a real localização da área. Fez menção à planta da Emplasa, sem aprovação, e

forneceu diversas certidões de matrícula relacionadas ao caso, ressalvando que elas não

comprovam a atual propriedade, pois sofreram destaques de áreas e unificações, conforme se

verifica nas averbações nelas inseridas.

Ambas as partes requereram prova pericial, a qual foi autorizada pelo juiz que, por

fim, vai aproveitar a perícia nos três processos citados, que envolvem Empreendimentos

Itahyê, José Gonzaga Moreira e Amaro Guedes Barbosa, para que não ocorram decisões

divergentes e conflitantes.

Assim, até janeiro de 2011, os seguintes feitos haviam sido apensados no Processo

nº 2.567/2008: 1.999/2009, 1.612/2009, 1.591/2008 e 832/2010, há também um processo de

nº 2.116/2010, que versa sobre uma declaratória de falsidade. Na decisão de fls. 778/779, a

juíza requereu o sobrestamento de todos os processos que versavam sobre a área, mantendo

em andamento apenas o Processo nº 2.116/2010, que trata da declaratória de falsidade.

Judicialmente, todas as pessoas envolvidas colacionam aos respectivos processos

judiciais uma série de documentos, dentre eles, matrículas, que em nada demonstram quem

realmente é o possuidor ou proprietário da área e onde a área está localizada. A distribuição

dos processos em varas/locais diferentes ocasiona uma verdadeira confusão de liminares e

pedidos, deixando ainda mais indefinidas as titularidades de domínio e as posses.

O regime jurídico existente no Brasil quanto à posse e à propriedade possibilita

que se instaure um caos difícil de ser desvendado até mesmo quando sub judice. A posse, por

não ter caráter titular, fica à margem dos registros públicos, sendo certo que não é conhecida

amplamente pelos interessados, ou seja, a área objeto de posse não consta no registro de

imóveis ou em outro órgão para que qualquer interessado possa ter ciência do tipo de

ocupação. Tal fato é facilmente exemplificado no procedimento da ação de usucapião: deve

ser remetido ao Cartório de Registro de Imóveis um ofício para saber quem são os

confrontantes da área a ser usucapida, contudo haverá erro na informação se algum dos

ocupantes dos imóveis lindeiros tiver sua ocupação baseada na posse, uma vez que poderá

constar o titular de um domínio de um direito que já pereceu ou está em vias de, pela

ocupação de posse mansa e pacífica. Por sua vez, o possuidor de boa-fé estará excluído da

demanda por não ter seu direito registrado no órgão pertinente.

Outro ponto a ser atacado é a possibilidade de se fazer uma escritura em qualquer

ente da federação que não nos tabelionatos dentro da circunscrição do imóvel, como acontece

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com os registros de imóveis. A deficiência do sistema de escrituração pelos tabelionatos resta

evidente nas demandas judiciais citadas e no decorrer do estudo de caso: os tabelionatos

confeccionaram escrituras com base em dados imprecisos inseridos de forma muito sintética,

como foi o caso da transcrição nº 20.182 e dos destaques que foram acontecendo no decorrer

dos anos 1980 sem que a área estivesse delimitada com rumos e confrontação. O mesmo

aconteceu com as escrituras lavradas com base nas cessões de direitos hereditários que não

descreviam exatamente sobre quais direitos elas se fundavam. Ainda assim, as escrituras

foram registradas em Cartórios de Registro de Imóveis porque estes registros têm força de fé

pública e são essenciais ao negócio, como dispõe o art. 108 do CC. Dessa forma, ninguém

poderia ir ao SRI para modificar a titularidade de um imóvel sem antes confeccionar uma

escritura pública.

A fé pública significa que o que for escrito e redigido pelo tabelião não pode ser

contestado até prova em contrário: a presunção de veracidade está implícita. A segurança

jurídica conferida aos envolvidos, a partir da formalização do documento, é, inclusive, uma

das principais características da escritura pública. Percebe-se que a existência da fé pública e a

inexistência do princípio de territorialidade no que toca às escrituras causa efeito contrário

quanto à segurança jurídica, uma vez que a confecção da escritura pública é apenas a

formalização da vontade das partes, sem uma consulta apurada sobre a área que está sendo

transacionada.

Pela análise dos processos judiciais, vê-se que com a falta de um mapeamento

preciso das áreas registradas e das posses é praticamente impossível dizer que a área que

consta descrita na matrícula está localizada onde dizem as partes. No processo nº 2.567 de

Barueri, o despacho da juíza e a resposta do oficial de registro de imóveis demonstram com

clareza que não é possível dizer se a área descrita na matrícula é ou não a área objeto de

litígio. Tampouco se pode dizer quem é o possuidor. A incerteza quanto à qualidade das

informações “oficiais” levou a juíza a suspender o feito para fazer uma perícia que está

pendente desde o ano de 2011. O próprio perito manifestou sua confusão dada a gama de

documentos e informações que as partes trouxeram aos autos.

Não resta dúvida que a forma cartesiana na qual os órgãos (cartórios, tabelionatos,

Incra, SPU e demais) ligados à governança de terras se organizam torna difícil a troca de

informações, comprometendo a segurança jurídica quanto à questão de terras no Brasil, como

demonstrado na narrativa das ações judiciais e procedimentos realizados nos

desmembramentos de áreas.

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Os problemas narrados – a questão da imprecisão nas descrições das transcrições,

o registro no Cartório de Imóveis de áreas meramente descritas em escrituras públicas sem

comprovação de sua exata existência, a falta de fiscalização por parte de órgãos

governamentais, a falta de um cadastro integrado entre as instituições que fazem parte da

estrutura de governança fundiária no Brasil, dentre outras razões – foram objeto das

conclusões exaradas por Cesar Augusto de Oliveira Pirajá, perito designado pelo Juízo da 4ª

Vara Cível da Comarca de Barueri/SP em ações possessórias que envolvem a área do Sítio

Barreiro.

A perícia realizada no Processo nº 2.567/2008, que abrangeu os Processos nº

791/11, 1.591/08, 1.999/09 e 1.612/09 em decorrência da similaridade de alegações e áreas

em litígio, confirmou vários pontos levantados no presente estudo. O perito tinha como

objetivo principal localizar a área descrita na matrícula nº 82.326, do CRI de Barueri, mas

abordou diversos outros aspectos com exatidão e proficiência, corroborando a tese de que o

Brasil não tem estrutura de governança fundiária capaz de assegurar os direitos de

propriedades de forma absoluta. O perito concluiu que a matrícula nº 82.326 do CRI de

Barueri não possuía informações gráficas e que o título continha erros técnicos graves que

comprometiam sua legalidade23

, portanto não preenchia os requisitos de validade. Foram

constatadas discrepâncias24

entre as cartas do Grupo Executivo da Grande São Paulo

(Gegran)25

(recobrimento 1970) e da Emplasa (recobrimento 1980/81), tendo o perito se

23

“Informações sobre posse, nada consta. O imóvel não possui planta em mapa de uso, ou seja, não possui

informações gráficas. Conclui a perícia através da análise e dossiê do imóvel rural, que a única identificação da

área correspondente seria a matrícula 82.326 do CRI de Barueri/SP, a qual não foi possível o seu fechamento por

apresentar erros técnicos considerados como GRAVES” (fls. 2230, Processo nº 2.567/08, 4ª Vara Cível de

Barueri). 24

“7 – Há discrepâncias entre a Carta do Gegran (recobrimento 1970) e a Carta da Emplasa (recobrimento

1980/81), as alterações foram consideradas pela perícia como estranhas, devendo esta última ser revisada, uma

vez que houve alteração dos Córregos como Barreiro (Barbeiro) ou Portão de Telas, Itaim e Paiol Velho, com

nítido prejuízo a terceiros, e cujos interesses passaram a ser muito grandes a partir da década de 1980 com a

valorização das áreas devido à abertura dos loteamentos de Alphaville.

8 – É certo que o Córrego Itaim corre na divisa junto aos Municípios de São Paulo e Santana de Parnaíba.

19 – O Córrego Barreiro (Barbeiro) ou Portão de Telhas se encontra situado em local diferente de onde é

apresentado, dando origem e legalizando documentos com aberturas de matrículas, reconhecimentos de divisas

e diversos outros procedimentos, com a finalidade única de legalizar ATOS considerados como ilícitos nos

diversos Órgãos, tais como plantas fornecidas a Municipalidade de Santana de Parnaíba onde constam as

GLEBAS, inclusive às doadas a Municipalidade como Áreas de Reservas Ambientais Legais, como também as

aberturas de muitas matrículas junto ao CRI de Barueri – SP., por parte da empresa Tamboré S.A., e que

deverão ser reanalisadas por se encontrarem em áreas de terceiros. Nota: Todas as empresas mencionadas

nestes autos, e áreas que se encontram dentro do perímetro observado pela perícia, devem ser analisadas e

checadas, evitando-se procedimentos prejudiciais como estes que vieram ocorrendo durante anos que se

passaram” (Processo nº 2.567/2008, 4ª Vara Cível de Barueri, perito César Pirajá, grifos do autor). 25

As cartas de recobrimento são cartas cartográficas/mapeamentos realizados a cada dez anos para constatar o

crescimento geográfico da cidade e região metropolitana de São Paulo. O Gegran foi criado com o Conselho de

Desenvolvimento da Grande São Paulo pelo Decreto Estadual nº 47.863, de 29 março de 1967, reestruturados

pelo Decreto Estadual nº 50.096, de 30 de julho de 1968. Esse grupo, já extinto, encomendou a elaboração do

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utilizado da carta da Gegran porque com ela e com o Parecer Técnico nº 12/2013 (fls. 2336,

do Processo nº 2.567/08) elaborado pelo Instituto Geográfico e Cartográfico (IGC) foi

possível identificar a exata localização dos córregos Barreiro ou Portão de Telhas, Itaim e

Paiol Velho. A localização desses córregos possibilitou perceber que o início da fraude quanto

à “grilagem” das terras do Sítio Barreiro teve início nos anos 1980. Nessa época, a Emplasa

alterou sua planta e memorial descritivo, registrando-os no 9º Cartório de Notas de São Paulo,

e mudou a localização dos córregos Itaim e Paiol Velho, Barreiro e Portão de Telhas de forma

que favorecesse a Empreendimentos Itahyê e outros interessados na área, que, no início dos

anos 1980, passou a ser interessante para investimentos imobiliários.

O perito foi categórico em afirmar que a matrícula 82.326 do CRI de Barueri-SP

não é real, uma vez que sua descrição não fecha o perímetro e, consequentemente, a área. Em

conclusão, disse:

A análise dos documentos juntados pela ré – Itahyê em relação à matrícula

82.326 do CRI de Barueri – SP., constatou a perícia que não existe nenhuma

relação entre esta matrícula e a área sub judice, sendo esta matrícula aberta,

totalmente errônea em termos técnicos, e Normas Legais. A matrícula

82.326 do CRI de Barueri – SP., apresentada pela ré – Itahyê ficou

caracterizado pela perícia que foi montada sem nenhum respaldo legal, seus

confrontantes devido as diversos problemas observados quanto aos Córregos

passaram a fragilidade, uma vez que existem indícios de alterações em

documentos legais26

.

A perícia corroborou as afirmações acerca dos destaques efetuados, desde os anos

1980, da transcrição 20.182 do 8º CRI de São Paulo, os quais se deram sem uma retificação

prévia de área que pudesse apurar o perímetro dos 24 milhões de m² para somente depois

destacar áreas com segurança. A perícia concluiu que a melhor posse era de Francisco Alves

Fagundes, possuidor desde 1956, adquirindo os direitos hereditários sobre a área datados de

1856, somando mais de 100 anos sobre a terra.

Os processos citados neste item estão em andamento, sem decisão acerca dos

direitos dos envolvidos. Mas restou comprovado pela perícia que a melhor posse é de

Francisco Fagundes de Lima, que adquiriu os direitos hereditários sobre o Sítio Barreiro em

1956.

A quantidade de processos judiciais existentes e sem solução reforça o argumento

de que o poder judiciário não tem capacidade para resolver as demandas fundiárias que lhe

Sistema Cartográfico Metropolitano da Grande São Paulo, popularmente denominado planta Gegran/73, para

orientar as políticas públicas do Governo do Estado de São Paulo para a região metropolitana (saneamento

básico, eletricidade, transporte, habitação, meio ambiente etc.). 26

Processo nº 2.567/2008, 4ª Vara Cível de Barueri, perito César Pirajá.

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são apresentadas devido à complexidade ante pontos não resolvidos e enfrentados pelo

governo brasileiro que são causas da insegurança jurídica da terra.

3.5 As invasões sobre a área do Sítio Barreiro: um novo processo, um novo proprietário

Este trabalho já apresentou no item anterior algumas demandas judiciais que

envolvem o Sítio Barreiro e a Fazenda Itahyê. Aquelas demandas foram pesquisadas entre os

anos de 2014 e 2015 e por certo ainda não estão acabadas. A complexidade do caso que

envolve a área onde está localizado o Sítio Barreiro é imensa, sendo certo que novas

informações surgem a todo momento. Foi assim que aconteceu com o processo e a perícia

judicial narrados neste item. Ao realizar uma pesquisa para checar o andamento dos processos

citados no item 3.4, deparamo-nos com mais um processo envolvendo o Sítio Barreiro,

contudo com outro demandante, que ainda não era conhecido, a incorporadora Brookfield

Urbanismo Empreendimentos Imobiliários SA, contra José Gonzaga Moreira (este já

conhecido nesta pesquisa). Não foi feita uma análise esmiuçada do processo, mas a perícia

judicial realizada e seu resultado merecem ser citados. Essa perícia foi feita por outro técnico

e seu resultado converge com a do processo narrado no item anterior, bem como traz alguns

elementos novos que reforçam a possibilidade de invasão e esbulho sobre a posse do Sítio

Barreiro. Ela ainda traz ao conhecimento deste trabalho mais uma incorporadora que demanda

por terra para construir seus empreendimentos na região de Barueri e Santana de Parnaíba.

Como dito anteriormente, a área onde se encontra o Sítio Barreiro nunca teve seu

registro no CRI de Barueri, permanecendo na esfera da posse de um direito pessoal e fático.

No decorrer do tempo, essa posse tem sido esbulhada tanto pela Fazenda Itahyê como por

outras incorporadoras e até mesmo por pessoas físicas.

Como demonstrado no item 3.1.2 deste trabalho, o Sítio Barreiro está localizado

no município de Santana de Parnaíba/SP e sobre sua área já existem diversos

empreendimentos imobiliários de alto padrão, como Gênesis e Tamboré. A área do Sítio

Barreiro é, também, objeto de demanda judicial entre a incorporadora Brookfield Urbanismo

Empreendimentos Imobiliários SA e José Gonzaga Moreira, Processo nº 0044129-

03.2011.8.26.0068, que tramita pelo juízo da 1ª Vara Cível de Santana de Parnaíba/SP. Neste

processo, a Brookfield SA diz ter a propriedade de uma determinada área, apresentando

diversas matrículas para comprovar. José Gonzaga Moreira afirma ter posse sobre a mesma

área com base no mesmo registro paroquial que deu origem ao Sítio Barreiro. O juiz que

preside o processo ordenou que fosse realizada uma perícia técnica para apurar quem tem a

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melhor posse, já que na região onde está localizada a área em litígio existem várias incertezas

quanto à veracidade e validade dos títulos de registro.

A perícia foi realizada pelo arquiteto designado pelo juiz, senhor Eduardo F.

Quelhas. O perito utilizou seus conhecimentos técnicos e profissionais correlatos, empregados

e subsidiados por vistoria ao local: verificou documentos e certidões, realizou medições e

análises topográficas, mapeamento por georreferenciamento, estudo de imagens aéreas antigas

e atuais, estudo e comparação de mapas antigos e atuais, sobrevoo e produção de imagens

aéreas por meio de drones, oitiva de pessoas nos locais, dentre outros.

No laudo, a área periciada é descrita da seguinte forma:

Cuida-se de área geograficamente situada em região urbana, mas apenas

parcialmente caracterizável como tal, nos termos do enquadramento legal

mínimo delineado no § 1o. do art. 32 do Código Tributário Nacional

27.

Para fins de melhor indicação da área, a seguir disponibiliza-se aerofoto que

evidencia toda situação atualizada das ocupações e posses existentes na área

em litígio do Sítio Barreiro28

.

O perito utilizou o mapa da Figura 11 para ilustrar a área em conflito entre a

Brookfield e José Gonzaga.

Figura 11 – Ocupação e implantação dos loteamentos Gênesis II, Tamboré 2, 3 e 10; posse indireta e

direta da SPE CNC com suas respectivas guaritas

27 “

Art. 32. [...] § 1º Para os efeitos deste imposto, entende-se como zona urbana a definida em lei municipal;

observado o requisito mínimo da existência de melhoramentos indicados em pelo menos 2 (dois) dos incisos

seguintes, construídos ou mantidos pelo Poder Público:

I - meio-fio ou calçamento, com canalização de águas pluviais;

II - abastecimento de água;

III - sistema de esgotos sanitários;

IV - rede de iluminação pública, com ou sem posteamento para distribuição domiciliar;

V - escola primária ou posto de saúde a uma distância máxima de 3 (três) quilômetros do imóvel considerado”

(BRASIL, 1966). 28

Processo nº 0044129-03.2011.8.26.0068, 1ª Vara Cível de Santana de Parnaíba/SP, perito Eduardo Quelhas.

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Fonte: Processo nº 0044129-03.2011.8.26.0068, 1ª Vara Cível de Santana de Parnaíba/SP, perito

Eduardo Quelhas.

A demonstração pelo perito da área em litígio é surpreendente, uma vez que é a

mesma área do Sítio Barreiro e da Fazenda Itahyê. Isso indica que, além destes, ainda temos

Brookfield SA e José Gonzaga, todos demandando a mesma área. Cada qual com seus

direitos, de posse ou de propriedade, cada qual com seus títulos, matrículas e registros

paroquiais e cada qual com seus planos para realizarem empreendimentos no local.

A delimitação técnica da área foi baseada em documentos apresentados pelas

partes a fim de identificar a integralidade da área conflituosa. Contudo, a partir desses

documentos, o perito não logrou êxito em conciliar as descrições e os documentos dos

litigantes com a realidade geográfica do local indicado. A partir das inconsistências

detectadas, o profissional técnico foi buscar subsídios em outros documentos de ordem

pública que estivessem relacionados com o local. Valeu-se, portanto, de quatro pontos de

partida:

a) Análise da descrição da certidão paroquial do Sítio Barreiro, lavrada em 1856, onde

fica claro e evidente que o Sítio Barreiro fazia confrontação com a Fazenda

Tamboré, tendo como referência de divisas neste trecho o referido córrego Barreiro;

b) Carta da Comissão Geográfica e de Geologia de São Paulo, do ano de 1900. Trata-

se do primeiro documento técnico e conceituado elaborado no estado de São Paulo,

uma vez finda a monarquia;

c) Dados do “Contrato de Comodato” sobre o Sítio Barreiro, lavrado em 1960;

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d) Carta da Gegran, do ano de 1972.

Tais documentos foram indispensáveis para estabelecer os marcos geodésicos

naturais que fixam as bases de identificação local. Na área em questão, o principal referencial

natural é o “córrego Barreiro”.

A partir da localização do córrego Barreiro, sendo a área apontada como litigiosa

integrante do perímetro referenciado na perícia, o perito utilizou-se de outro documento de

fundamental importância para delinear a região: a foto aérea da região, datada de 1962,

adquirida com a Base Aerofotogrametria e Projetos (Figura 12).

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Figura 12 – Aerofoto de 1962 da área do Sítio Barreiro

Fonte: Laudo pericial do Processo nº 0044129-03.2011.8.26.0068, que tramita pelo juízo da 1ª Vara

Cível de Santana de Parnaíba/SP.

Na aerofoto de 1962, o perito retrata e localiza o trecho apontado no “Contrato de

Comodato”, celebrado por Francisco Fagundes de Lima logo após ter adquirido os direitos

hereditários do Sítio Barreiro, as culturas existentes e moradias, acima do córrego Barreiro. O

perito observa que

[...] observa-se acima a aerofoto de 1962, devidamente ampliada, que bem

retrata e localiza o trecho apontado no “contrato de comodato”, afeto as

culturas existentes e de moradias, acima do córrego Barreiro, explicitado no

“contrato de comodato de 1960”, conforme retratou o laudo técnico de

Valter Isabela29

.

No decorrer da perícia, foram realizadas entrevistas com antigos habitantes da

região. Mediante as entrevistas, o perito apurou que a área em questão é o “Sítio Barreiro”,

também conhecido como “Sítio do Barreiro” ou “Sítio Barreiros”, originariamente

pertencente a Francisco Fagundes de Lima. Foi apurado ainda que a área passou a sofrer

ocupações gradativas a partir do ano de 1994.

Com as informações adquiridas no decorrer das entrevistas, o perito fez nova

busca em aerofotos e imagens de satélite, referentes aos anos de 1962, 1972, 1981, 1994,

29

Processo nº 0044129-03.2011.8.26.0068, 1ª Vara Cível de Santana de Parnaíba/SP, perito Eduardo Quelhas.

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2007 e 2016 (esta última do Google Maps). Em todas as imagens analisadas, o perito

constatou a coincidência entre a região do Sítio Barreiro e as informações colhidas pelos

locais, incluindo as indicações geográficas das ocupações gradativas ocorridas a partir de

1994.

Sobre a posse no local e as invasões sofridas a partir de 1994, o perito assim relata

os trechos de turbação e perda da posse:

Não obstante ter sido identificada a titularidade da posse por Francisco

Fagundes de Souza na área em questão, tal posse restou interrompida em

algumas parcelas do terreno a partir de 1994.

No local pode se constatar que houve perda da posse do titular da área nas

seguintes regiões representadas no mapa abaixo:

PEDE-SE ANALISAR A IMAGEM 02, AFETA AO ITEM 5, OU,

PONDERAR TODO CONJUNTO DE AEROFOTOS

DISPONIBILIZADAS NOS “ANEXO C”, DO LAUDO JUDICIAL.

e forma descritiva temos a turbação ou perda da posse pela atual titular do

domínio e posse, SPE CNC INCORPORAÇÃO E NEGÓCIOS

IMOBILIARIOS LTDA., Nos seguintes locais:

i) No extremo sul da área do Sítio Barreiro, pelo desenvolvimento do

Loteamento denominado “Tamboré 02 e 03”, conforme planta

acima, ocupa dimensões de 55,67 ha e 11,76 ha, respectivamente;

(Turbação da Posse)

ii) No extremo oeste da área do Sítio Barreiro, no local indicado em planta

acima, pelo desenvolvimento do loteamento denominado “Genesis 02”,

com a implantação, inclusive de serviços de terraplanagem, com

dimensão de 49,73 ha; (Perda da Posse)

iii) Na Região Sul, acima do Linhão da Light, conforme planta acima,

evidencia-se a implantação do Loteamento denominado “Tamboré

10”, ocupando uma área de 32,15 ha; (Perda da Posse)

iv) Na zona sul, constatam-se outras 13 (treze) áreas menores abaixo

do Tamboré 10, que apresentam turbação da posse em razão de

equívoco de localização, erro ou outra ocorrência de origem

documental/registral. Tal conclusão sobre “equívoco, erro ou outra

ocorrência” decorre do fato de que não há confluência técnica entre

a descrição registral, a localização geográfica e suas particularidades

físicas. Essas áreas apresentam-se em registros cartorários30

cujos

limites, perímetros, polígonos e demais dados descritivos não

“fecham” quando submetidos a análise e alocação técnica e

topográfica. O total turbado pela equivocada referenciação registral,

30

“As áreas representativas desta parte turbada são representadas pelas seguintes inscrições registrais: Gleba

n◦01 dotada de 2,49 ha vinculada as Matrículas n. 106.449 e 106.450; Gleba n◦02 dotada de 5,01ha vinculada a

Matrícula n. 90.917; Gleba n◦03 dotada de 2,00 ha vinculada a Matrícula n. 90.918; Gleba n◦04 dotada de 2,32

ha vinculada a Matrícula n. 90.919; Gleba n◦05 dotada de 14,38 ha vinculada as Matrículas n. 90.924 e 90.920;

Gleba n◦06 dotada de 4,21 ha vinculada as Matrículas n. 90.571 e 90.921; Gleba n◦07 dotada de 1,99 ha

vinculada a Matrícula n. 101.042; Gleba n◦08 dotada de 7,76 ha vinculada a Matrícula n. 101.046; Gleba n◦09

dotada de 11,92 ha vinculada as Matrículas n. 98.694 e 98.696; Gleba n◦010 dotada de 0,40 ha vinculada a

Matrícula n. 106.395; Gleba n◦11 dotada de 5,55 ha vinculada as Matrículas n. 90.900 e 90.901; Gleba n◦12

dotada de 2,89 ha vinculada a Matrícula n. 98.661; Gleba n◦13 dotada de 5,61 ha vinculada as Matrículas n.

98.663 e 98.665” (Processo nº 0044129-03.2011.8.26.0068, 1ª Vara Cível de Santana de Parnaíba/SP, perito

Eduardo Quelhas).

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neste ponto, importa em comprometimento da posse em extensão

total de 63,64 ha31

.

No item iv citado, o perito colaciona uma série de matrículas que compreendem a área do

Tamboré 10.

A nova perícia reforça a tese de que a confusão sobre a área onde está localizado o

Sítio Barreiro é imensa e complexa. Nota-se a quantidade de matrículas apresentadas e que,

segundo o perito judicial, têm irregularidade por não apresentarem características técnicas

confiáveis e não representarem as propriedades descritas.

Ao final, a perícia conclui que:

7.1-) A área litigiosa está situada no município de Santana do Parnaíba

conforme o mapa abaixo;

PEDE-SE ANALISAR A IMAGEM 02, AFETA AO ITEM 5, OU,

PONDERAR TODO CONJUNTO DE AEROFOTOS

DISPONIBILIZADAS NO “ANEXO C” , DO LAUDO JUDICIAL.

7.2-) Da área total de 1.105,21ha (um mil, cento e cinco hectares e vinte e

um centésimos), temos 80% (oitenta por cento) com posse direta e indireta

exercida por SPE CNC INCORPORAÇÃO E NEGÓCIOS IMOBILIÁRIOS

LTDA., na condição de sucessora de Francisco Fagundes de Lima na forma

do mapa abaixo.

7.3-) Da área total de 1.105,21ha (um mil, cento e cinco hectares e vinte e

um centésimos), temos 20% (vinte por cento) com posse direta exercida, na

forma do mapa abaixo, por:

a) Loteamento “Tamboré 02 e 03”;

b) Loteamento “Genesis 02”;

c) Loteamento “Tamboré 10”;

d) Gleba de terra representada pelas matrículas n. 106.449 e 106.450;

e) Gleba de terra representada pela matrícula n. 90.917 (Gleba n◦02);

31

Processo nº 0044129-03.2011.8.26.0068, 1ª Vara Cível de Santana de Parnaíba/SP, perito Eduardo Quelhas,

grifos do autor.

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f) Gleba de terra representada pela matrícula n. 90.918 (Gleba n◦03);

g) Gleba de terra representada pela matrícula n. 90.919 (Gleba n◦04);

h) Gleba de terra representada pelas matrículas n. 90.924 e 90.920 (Gleba

n◦05);

i) Gleba de terra representada pelas matrículas n. 90.571 e 90.921 (Gleba

n◦06);

j) Gleba de terra representada pela matrícula n. 101.042 (Gleba n◦07);

k) Gleba de terra representada pela matrícula n. 101.046 (Gleba n◦08);

l) Gleba de terra representada pelas matrículas n. 98.694 e 98.696 (Gleba

n◦09)

m) Gleba de terra representada pela matrícula n. 106.395 (Gleba n◦010);

n) Gleba de terra representada pelas Matrículas n. 90.900 e 90.901 (Gleba

n◦11);

o) Gleba de terra representada pela matrícula n. 98.661 (Gleba n◦12);

p) Gleba de terra representada pelas matrículas n. 98.663 e 98.665 (Gleba

n◦13)32

.

A nova perícia conclui, de forma geral, os mesmos pontos divergentes da perícia

realizada e relatada no item 3.5: existe uma sobreposição entre a posse de Francisco Fagundes

de Lima e as propriedades da empresa Brookfield; as áreas descritas nas matrículas

apresentadas pela empresa não têm qualidade técnica que representem um imóvel; há disputa

entre posse e propriedade ao longo dos anos; o fato de o sítio não ter sido delimitado fez com

que sua área sofresse invasões que não podem ser revertidas atualmente; o sítio está

localizado na mesma área onde foram os aforamentos no passado. Todos esses pontos são

oriundos das causas da insegurança jurídica da propriedade relatadas no capítulo 2 deste

trabalho, tendo em vista que a área do sítio nunca foi delimitada, bem como as áreas que

foram objeto de aforamento.

No caso estudado, assim como sempre ocorreu no Brasil, houve confusão e

sobreposição entre posse e propriedade. Como o sítio esteve sempre na esfera da posse, foi

possível que outras pessoas invadissem e se apropriassem de parte dele.

3.6 A posse no caso do Sítio Barreiro

No presente estudo, pudemos observar a ocorrência de dois caminhos de aquisição

da propriedade pelo instituto da posse.

O conflito existente quanto à localização da área e sua dimensão teve seu início na

aquisição por Francisco Fagundes de Lima dos direitos hereditários e posse de uma área de

1.093,50 ha situada no distrito de Parnaíba, município de Santana de Parnaíba, em 1956. A

escritura de cessão de direitos hereditários e posse lavrada no 19º Tabelião de Notas da

32

Processo nº 0044129-03.2011.8.26.0068, 1ª Vara Cível de Santana de Parnaíba/SP, perito Eduardo Quelhas.

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Capital (Falleiros) declara que Francisco Fagundes de Lima adquiriu o imóvel, os direitos

hereditários e também a posse, que vinha sendo mantida mansa e pacificamente desde a

sucessão, podendo ingressar em juízo e adjudicar o imóvel em seu próprio nome. Contudo o

outorgado dos direitos hereditários (Francisco) manteve-se inerte quanto à adjudicação do

bem imóvel em seu nome para escrituração e posterior registro no Cartório de Registro de

Imóveis. É certo que o imóvel nunca teve uma transcrição sequer que pudesse levar à abertura

de matrícula com a edição da Lei de Registros Públicos, em 1973.

O direito de Francisco Fagundes de Lima foi sempre o de detentor de posse, sendo

que seu imóvel permaneceu até os dias atuais com a descrição feita de forma sintética na

época dos registros paroquiais. Ainda assim, ele sempre exerceu atos que comprovam sua

posse a justo título, arrendando partes ideais da área, cadastrando o imóvel no Incra, pagando

os tributos inerentes à terra e prestando informações aos órgãos oficiais do governo que

atualizavam seus dados anualmente. Consta nos certificados de cadastro de imóveis rurais

(CCIR) que a área de 1.093,50 ha é posse a “justo título” somente – tendo em vista que o

certificado contempla campos em que se pode declarar a área registrada, a posse a justo título

e a posse por simples ocupação. O tipo de cadastro leva a crer que no Incra é possível

cadastrar imóveis com registro em cartório, imóveis dos quais se detém a posse com alguma

titularidade ou a posse por ocupação.

Francisco Fagundes de Lima alienou os direitos hereditários mediante escritura

por várias vezes, sendo certo que as vendas não foram concluídas por razões de

inadimplemento, estando em dois casos sub judice. A última venda foi à SPE CNC

Incorporação e Negócios Imobiliários Ltda., que, ao tomar posse do imóvel, procedeu à

identificação da área, cercando seus limites, construindo casas e guaritas para ocupá-la.

A empresa SPE CNC Incorporação e Negócios Imobiliários Ltda., ao exercer atos

de dona da área, tomou conhecimento de que havia uma série de problemas que envolvem a

área de posse de Francisco Fagundes de Lima. Existem questões que envolvem posse de

outros baseados no mesmo registro paroquial – o qual foi base a escritura de cessão de

direitos hereditários de Francisco Fagundes de Lima em 1956 – e outros casos que envolvem

títulos regularmente registrados do SRI de Barueri – ou seja, alguns pedaços da área têm

matrícula devidamente registrada nos moldes da Lei de Registros Públicos. Os títulos de

domínio advêm da junção de quatro glebas menores que formaram a Fazenda Itahyê e

posteriormente nos destaques realizados nessa área por ocasião do falecimento de Alberto

Jackson Byington Júnior.

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As quatro áreas foram unificadas quando Alberto Jackson Byington Jr. as recebeu

por transmissão hereditária, em 1953, dando origem à transcrição 20.182, do 8º Oficial de

Registro de Imóveis de São Paulo, sendo certo que a transmissão ocorreu com a juntada de

documentos advindos do acervo de seu pai. Constam dos documentos, que eram transcrições,

que Alberto Jackson Byington adquiriu as áreas por dação em pagamento, compra e venda e

cessão de direitos hereditários, todas com escrituras lavradas em tabelionatos de notas da

capital São Paulo.

Nos anos 1950, estava em vigor, para a federação, a Lei de Terras e, no estado de

São Paulo, a Lei nº 323, de 22 de junho de 1895, que dispõe sobre as terras devolutas e o

procedimento legal para legitimação ou revalidação das posses e concessões. As descrições

dos imóveis não eram feitas com exatidão, haja vista que o tipo de registro anterior era o

registro paroquial, que era feito de forma quase telegráfica em razão de seu custo.

Dos documentos, constata-se que as descrições das áreas eram feitas com base em

acidentes geográficos, rios, riachos e confrontações com terras de terceiros que também não

estavam descritas. Esse expediente dava margem a uma série de equívocos, tornando a

descrição da área incipiente em grande parte das vezes.

Na transcrição 20.182, consta tão somente a área total aproximada de

24.684.000,00 m² e as confrontações. No decorrer dos anos, essa área foi sofrendo destaques

que deram origem a outros imóveis, alguns deles constando como inseridos na área do Sítio

Barreiro.

As matrículas analisadas demonstram uma série de irregularidades que levam a

crer ter havido fraude com o intuito de grilar terra na região de Santana de Parnaíba/Barueri.

Foram utilizados cartórios, tabelionatos de notas e registros de imóveis para dar à grilagem

um ar de legalidade e atingir o fim: a titularidade da terra.

Da análise das escrituras e matrículas que envolvem a Fazenda Itahyê, depreende-

se que a transcrição 20.182 estava situada na Freguesia do Ó, distrito de Perus (São Paulo), e

que foram efetuados no Tabelionato de Notas vários destaques posteriores à Lei de Registros

Públicos de 1973 sem, contudo, ser observado que havia a necessidade de corrigir a

transcrição de acordo com o art. 213 da Lei nº 6.015/73, ou seja, sem promover a retificação

da área.

A perícia técnica concluiu dois pontos importantes: mapeou o Sítio Barreiro,

delimitando seu perímetro de 11.054.486,92 m², uma vez que sua delimitação física era

desconhecida até então, e instituiu que Francisco e sua esposa tem a melhor posse em virtude

da veracidade dos documentos.

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A descrição da área indicada pelos embargantes, Francisco Fagundes de

Lima e Maria Inez, apesar de se basear em documentos antigos é a que traz

maior segurança à perícia, uma vez que demonstra não haver nenhum tipo de

manipulação, salvo os documentos que foram posteriormente emitidos aos

acima citados, devendo ser melhores analisados pelos Órgãos competentes

tomando-se as medidas legais cabíveis33

.

Do trecho da perícia citado, conclui-se que, apesar de Francisco Fagundes de

Lima não ter título de propriedade ou matrícula em Cartório de Registro de Imóveis (como

ostenta a Empreendimentos Itahyê e outros litigantes), tem seu direito de posse melhor

definido e assegurado pela veracidade dos documentos apresentados e periciados. Pela análise

histórico-documental do Sítio Barreiro, conseguimos identificar pontos que tornaram possível

a confusão sobre a área do Sítio Barreiro ao longo do tempo. São eles:

a) O sítio nunca foi demarcado, apesar de, desde a Lei de Terras de 1850, já haver

previsão legal de demarcação e mapeamento;

b) A descrição da área foi feita na forma precária da época do registro do vigário. Na

descrição primária, não consta o tamanho da área, limitando-se apenas a descrever um

acidente geográfico e propriedades lindeiras;

c) A área sempre existiu no âmbito da posse, assim sua documentação estava presente de

forma separada nos diferentes tipos de cartórios: as escrituras, nos Tabelionatos de

Notas, e as transcrições, no Registro de Imóveis. Esses cartórios não se comunicam

para informarem uns aos outros as transferências de imóveis que são realizadas;

d) A região foi área de diversos aforamentos no passado e de concessão de terras feita

pela União, sendo que a SPU não tem clareza sobre a dimensão das áreas concedidas.

No decorrer dos anos, a SPU não conseguiu geri-las, fazendo com que as terras

ficassem à mercê de invasores.

Apesar de o possuidor da área ter documentos que não lhe garantiam com

exatidão a localização e o tamanho do imóvel, ele conseguiu efetuar cadastro no Incra e na

Receita Federal no decorrer dos anos, estando sua condição regular nesses órgãos. Isso se dá

pois o cadastro ocorre por autodeclaração, sem a comprovação documental.

Concluindo, o Sítio Barreiro é anterior a 1856 e sempre existiu no âmbito da

posse, não havendo informações sobre ele no Registro de Imóveis de Barueri/SP. Isso criou

uma lacuna entre os registros e até mesmo entre os imóveis da região, facilitando a prática de

fraudes e grilagem da área sem registro. A toda evidência, a posse, a falta de registro, a

descrição precária da área e sua não demarcação facilitaram a grilagem por parte da Família

33

Fls. 2.232, Processo nº 2.567/08, 4ª Vara Cível de Barueri.

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Byington e pelos outros envolvidos em conflitos na área, que anexaram grande parte do Sítio

Barreiro a seus patrimônios seguindo caminhos aparentemente legais.

Alguns aspectos observados no estudo foram determinantes e possibilitaram a

grilagem das terras do Sítio Barreiro pela Fazenda Itahyê. Dentre eles, está o não

cumprimento da legislação. Vejamos:

a) A área da Fazenda Itahyê era de 24 milhões de m2, descrita de forma insuficiente para

ter certeza de onde estava localizada;

b) Antes de ser parcelada em glebas menores, deveria ter sido realizada uma retificação

de área, prevista na Lei de Registros Públicos, para apurar o local e o perímetro;

c) A Fazenda Itahyê foi parcelada sem a prévia retificação de área;

d) Uma área que estava localizada na Freguesia do Ó, em São Paulo, ao ser parcelada, foi

plotada em Santana de Parnaíba/SP, município vizinho;

e) O 9º Tabelionato de Notas de São Paulo confeccionou escrituras públicas de venda e

compra de forma irregular quando destacou uma parcela de uma área que não estava

precisamente delimitada e usou memoriais descritivos que não estavam acompanhados

de mapas que indicassem corretamente o pedaço que estava sendo alienado;

f) O CRI de Barueri registrou a escritura pública transferindo um direito de propriedade

sem saber se o que estava escrito no memorial descritivo tinha correspondência com a

gleba;

g) As alienações realizadas na transcrição 20.182 da Fazenda Itahyê nunca foram

comunicadas ao cartório de origem, tanto que não constam no histórico do imóvel;

h) As retificações foram realizadas sem oposição de terceiros, pois os confrontantes eram

os próprios requerentes;

i) As retificações serviram para dar legalidade, pelo poder judiciário, aos parcelamentos

das glebas realizados sem as devidas cautelas legais;

j) As desapropriações, apesar de terem sido judiciais e por decreto, foram realizadas na

mesma área, recebendo o expropriado a indenização da mesma área por duas vezes;

k) O poder judiciário não teve a capacidade de descobrir que as retificações eram

grilagem e que os documentos estavam fraudados, não coibindo, assim, a prática da

usurpação de terras.

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CONCLUSÕES

O presente estudo de caso do Sítio Barreiro retrata com fidelidade os aspectos

históricos da ocupação territorial do Brasil desde o regime sesmarial até os dias atuais. O sítio

existe desde 1856, podendo ser, inclusive, anterior a esse ano (contudo não há como afirmar).

O imóvel advém de cessões de direitos hereditários que eram comercializadas sem qualquer

cuidado em descrever sua área para delimitá-lo, assim permanecendo até o ano de 2014,

quando sua delimitação foi proposta numa perícia judicial, haja vista conflitos existentes que

discutem: quem é o dono? A área é uma posse ou uma propriedade? Qual é o título que vale

mais? O registro paroquial ou as matrículas? Qual deles é o verdadeiro?

Todas essas perguntas evidenciam a insegurança jurídica da terra que existe no

Brasil e suas causas, que podem ser muitas. No caso do Sítio Barreiro, elencamos três

principais hipóteses de causas para tal insegurança. O sítio não estava delimitado, mas estava

cadastrado no Incra, um cadastro que não reflete a situação do imóvel e não garante segurança

ao seu possuidor ou proprietário. O sítio, apesar de ser disputado judicialmente por diversas

pessoas e empresas, ao que tudo indica, está sobre terras que foram aforadas pela União em

1580, mas não se pode ter certeza porque a secretaria responsável não tem ciência das terras

que deve gerir, bem como não tem a informação da razão de as terras públicas nunca terem

sido delimitadas, apesar de a obrigação ter surgido em 1850 com a Lei de Terras. Se a SPU

tivesse essa informação, o problema estaria solucionado: as terras são da União, excluindo, de

vez, os supostos possuidores e proprietários e anulando os títulos fraudulentos. Os registros

sobre a área foram contestados por perícias judiciais que afirmam que as matrículas não

exprimem a descrição de um polígono e não podem ser alocadas no espaço geográfico onde

supostamente estão localizadas. Isso demonstra a fragilidade do sistema de registro de

imóveis que temos em nosso país, no qual é possível criar títulos, criar propriedades. O Sítio

Barreiro é um exemplo de conflito que segue sem solução desde 1856.

Este estudo demonstra a fragilidade da questão fundiária do país e o caos que ela

pode instaurar em casos como o do Sítio Barreiro, onde existem situações consolidadas que

não têm conhecimento da fraude e até mesmo não contribuíram para que ela acontecesse.

Fica evidente que o direito de propriedade tem que ter bases sólidas que não a

posse, tendo em vista que a posse é uma situação fática que fica à margem dos registros

públicos e legais e é facilmente simulada com base em documentos e situações fraudadas na

tentativa de comprovar um direito que não existe.

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Pela pesquisa, é possível verificar que a consolidação dos direitos sobre a

propriedade indefinida é um dos problemas que persiste até os dias atuais, sendo este um

aspecto relevante que caracteriza a debilidade da governança fundiária brasileira. Em

decorrência dele, os setores público, privado e a sociedade civil são reféns da história da

ocupação territorial, sendo difícil apurar atualmente quais destes registros de direitos

consolidados sobre propriedades indefinidas foram efetuados de forma regular ou não.

A interrogação fundiária brasileira necessita de solução urgente para que casos

como o do Sítio Barreiro não se perpetuem no tempo.

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