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Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e Ciências Humanas LUCAS MESTRINELLI Às vésperas do fim: visões sobre o futuro de Goa CAMPINAS 2017

Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e ... · incertezas. A leitura destes três autores problematiza o lugar da narrativa nacional em suas respectivas obras

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Universidade Estadual de Campinas

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

LUCAS MESTRINELLI

Às vésperas do fim: visões sobre o futuro de Goa

CAMPINAS

2017

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Universidade Estadual de Campinas

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Dissertação de Mestrado,

composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública

realizada em 25 de janeiro de 2017, considerou o candidato Lucas Mestrinelli

aprovado.

Prof. Dr. Omar Ribeiro Thomaz

Prof. Dr. João Felipe Ferreira Gonçalves

Prof. Dr. Christiano Key Tambascia

A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no

processo de vida acadêmica do aluno

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À memória de John Monteiro

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Agradecimentos

Este trabalho é, antes de tudo, a realização de um sonho. Agradeço a todos

que, assim como eu, acreditaram e sonharam comigo. Aos meus pais, agradeço por

terem me apoiado, incondicionalmente, a seguir uma carreira que pouco conheciam

e conhecem, defendendo sobretudo a minha liberdade de decidir sobre meu futuro:

este trabalho é, também, um pouco sobre isso. Ensinaram-me, assim, que se este

sonho mudaria minha vida, algo continuaria inevitavelmente – e felizmente - o

mesmo. A meus irmãos, agradeço o refúgio de sempre poder retornar de onde parti,

e lembrar a todo tempo como fui. Agradeço com carinho à minha companheira

Flávia, que acompanhou de perto os caminhos menos óbvios desta pesquisa, e

também por ter sido minha mais presente interlocutora.

Dedico este livro à memória de John Monteiro, e lembro que, dentre todas as

razões possíveis do mundo, este trabalho é para mim uma fagulha de um sonho

seu, que levei adiante por caminhos não esperados. Deixo aqui essa dedicatória de

gratidão, pelas boas memórias, a felicidade de ter te encontrado a tempo.

Agradeço a Omar Ribeiro Thomaz, por ter me recebido de braços abertos.

Assim pudemos levar esse projeto adiante, com alegria. A Sandra Lobo, por ter me

recebido em Portugal com entusiasmo e generosidade e por ter participado de

minha banca de qualificação. Ao professor Christiano Tambascia, que também

participou da banca de qualificação, pelos valiosos comentários a esta pesquisa.

A todos os amigos do PPGAS – Unicamp, que tornaram este trabalho muito

mais agradável e interessante. Um abraço especial para Paulo Victor e Fábio

Pimentel, pela boa e velha – e cada vez mais velha – amizade. Agradeço a todos os

funcionários do IFCH, aos funcionários da Torre do Tombo (Lisboa) e da Biblioteca

Nacional de Portugal, que me receberam com generosidade e humor. Na

Universidade Nova de Lisboa, a todos que colaboraram para que meu estágio de

pesquisa fosse realizado.

Agradeço à FAPESP pelo financiamento que permitiu a realização desta

pesquisa, bem como o semestre de estágio na Universidade Nova de Lisboa.

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“Talvez seja essa a sedução da queda, da

decadência: ir além de seu mero lado

negativo, de seu mero estado rebaixado”

(George Simmel)

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Resumo

Esta pesquisa aborda os últimos anos da Índia Portuguesa, antes de sua

incorporação à União Indiana em dezembro de 1961. Em 1948, o goês Telo de

Mascarenhas retorna de Portugal para a Índia, onde publica, na década de 1950, um

periódico nacionalista: o Ressurge, Gôa!. A viagem de Gilberto Freyre à Goa em

1951-1952 foi abordada por este periódico, e será aqui também problematizada.

Acreditando em futuros distintos para Goa – Gilberto Freyre acreditava que Goa

seria para sempre luso-indiana, enquanto Telo de Mascarenhas defendia que seria

inevitavelmente indiana – é o geógrafo português Orlando Ribeiro que descreve,

com mais pormenores, a indecisão em relação ao que considerou ser um futuro de

incertezas. A leitura destes três autores problematiza o lugar da narrativa nacional

em suas respectivas obras.

Palavras-chave: Nacionalismo; Goa, Damão e Diu (Índia) – História; Índia –

Civilização – Influências Portuguesas.

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Abstract

This research approaches the last few years of Portuguese India, before its

incorporation into the Indian Union, in December 1961. In 1948, the goan

intellectual Telo de Mascarenhas returns from Portugal to India, where he

published, during the 1950s, a nationalistic journal: the Ressurge, Gôa!. Gilberto

Freyre‟s travel to Goa in 1951-1952 was addressed by this journal, and will be

also discussed here. Believing in different futures to Goa – Gilberto Freyre believed

that Goa would be, forever, luso-indian, while Telo de Mascarenhas argued that it

would be inevitably Indian – is the portuguese geographer Orlando Ribeiro who

described, with more details, the indecision regarding to what he considered a future

of uncertainties. The reading of these three author aims to discuss the place of

national discourse in their respective works.

Keywords: Nationalism; Goa, Damão e Diu (India) – History; India – Civilization –

Portuguese influences.

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Nota sobre as abreviaturas

A seção da “Índia Portuguesa” no Arquivo Oliveira Salazar (AOS) está dividida em

dez caixas de documentos, separadas por eixos temáticos e, no interior de cada

uma das caixas, por ordem cronológica. As caixas aqui apresentadas são as que

fazem referência direta ou indireta à chamada “Questão de Goa”. Nossa atenção

recaiu principalmente nos documentos reunidos durante a década de 1950, dada a

orientação deste projeto. O código de referência segue o seguinte padrão: PT

(Portugal); TT (Torre do Tombo); AOS (Arquivo Oliveira Salazar); D

(Correspondência Oficial); N (Ultramar); 14 (Índia Portuguesa). Os números

seguintes a estas referências iniciais correspondem ao número da caixa estudada. A

numeração entre parênteses faz referência à numeração original dos documentos.

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Sumário

Introdução...................................................................................................................15

Notas sobre a luta pela libertação da Índia Portuguesa.............................................20

Capítulo 1 Goa será sempre luso-indiana: Gilberto Freyre no Instituto Vasco da Gama..............................................................26

1. Freyre e a especificidade colonial portuguesa

1.1. Decadências e Ressurgências.............................................................30

1.2. As viagens e o exagero do real............................................................44

2. A busca pelo semelhante................................................................................52

Capítulo 2 Goa sempre foi parte da Índia: Telo de Mascarenhas e o nacionalismo indiano em Goa...........................................60

1. Descobrindo a Índia em Portugal....................................................................63

2. O retorno à Índia

2.1. Chegando em Bombaim.......................................................................79

2.2. A cultura para fins coloniais..................................................................85

3. Conclusão: a grande farsa..............................................................................97

Capítulo 3 Goa em 1956: Um passado de abandono e um futuro de incertezas..............................................103

1. A originalidade de Goa: descrição e comparação.........................................105

2. O Relatório: Goa em 1956.............................................................................116

3. A ausência de sentimento nacional...............................................................135

Considerações finais................................................................................................139

Mapas e fotos...........................................................................................................143

Bibliografia................................................................................................................150

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Gilberto Freyre (1900 – 1987)1

1 Acessado pelo autor em 12/01/2017, no site Britannica Escola Online.

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Telo de Mascarenhas (1899 – 1979)2

2 Fonte: SHIRODKAR (1986:216)

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Orlando Ribeiro (1911 – 1997)3

3 Acessado pelo autor em 12/01/2017 no site dedicado ao espólio científico de Orlando

Ribeiro.

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Introdução

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O projeto de pesquisa que sustentou a elaboração desta dissertação tinha

como objetivo compreender o lugar do nacionalismo indiano em Goa (Índia). Em

outras palavras, eu buscava compreender em que medida o longo período de

permanência portuguesa em Goa teria levado à configuração de marcas espaciais e

de memória que se configurariam então como obstáculos à narrativa de uma Goa

indiana. O trabalho historiográfico de Ângela Barreto Xavier (2008) e Inêz Zupanov

(2005) foram importantes para a definição deste problema de pesquisa. As

historiadoras mostraram, em trabalhos de grande fôlego investigativo, que Goa havia

sido pensada dentro de uma concepção de Império que prezava pela sua

descentralização administrativa. Goa teria sido, assim, projetada para ser a capital

do Estado Português da Índia, ao que se seguiu sua elaboração enquanto réplica de

Lisboa na Ásia.

Nos anos que precederam a incorporação de Goa à Índia em 1961, o lugar de

Goa no imaginário português passou a ser destacado através de diversos veículos

de comunicação, tanto através da imprensa (metropolitana ou goesa) quanto a partir

da iniciativa de estudantes goeses no interior de Universidades na metrópole. Em

certo sentido, é com o advento da República em Portugal que a questão da Índia

Portuguesa voltou à agenda política, como bem mostrou o trabalho de Sandra Lobo

(2013) sobre o lugar das elites goesas neste período. Do ano da proclamação da

República portuguesa (1910), até o advento do Estado Novo em 1926, e mais

especificamente do “Acto Colonial” em 1930, um período de indecisão marcou esta

geração de intelectuais e escritores. Afinal, com a promulgação do “Acto Colonial”, a

questão que estava colocada para parte das elites goesas se referia ao lugar de Goa

no conjunto das colônias portuguesas. A questão da autonomia de Goa no interior

do Império Português animou parte considerável da intelectualidade goesa na

metrópole e em Goa 4. A frustração que se seguiu ao “Ato Colonial”, contudo, fez

com que parte significativa das elites goesas optassem por um alinhamento de Goa

com a Índia, o que se tornou uma realidade mais palpável com a formação e

independência da União Indiana em 1947.

A crescente importância da questão de Goa, em seu aspecto diplomático, foi

concomitante ao aumento de interesse por parte de Portugal no envio de

4 E certamente na diáspora goesa, marcante em contextos africanos anglófonos onde o debate

nacionalista era crescente nos anos 1950 (Quênia, Tanganica, Zanzibar e Uganda) e particularmente importante em Moçambique. No entanto, o debate goês em territórios africanos escapa ao escopo dessa dissertação.

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observadores que atestassem a herança portuguesa no território. O argumento de

António de Oliveira Salazar (1889 – 1970) era que Goa, apesar de geograficamente

indiana, seria, contudo, culturalmente portuguesa. Veremos, então, que Gilberto

Freyre (1900 – 1997) ocupou um lugar central na definição de um espaço

lusotropical que pudesse congregar territórios dispersos, mas unidos por uma

“comunidade de sentimento e de cultura”. A viagem de Freyre a Goa em 1951-1952

buscou atestar a influência e seu incontornável vínculo com Portugal. É sua

abordagem que será objeto de reflexão no primeiro capítulo desta dissertação.

As descrições de Freyre apontam para uma grande semelhança entre Goa e

outras paisagens tropicais sobre as quais o autor refletira anteriormente,

principalmente as do nordeste brasileiro. Neste sentido, pretendo mostrar, à luz de

debates recentes sobre os aspectos formativos do pensamento freyriano, que seu

olhar seletivo sobre as características que justificariam essa comparação se sustenta

em um modo peculiar de compreender o papel de intelectual viajante que então

assumia. Para Gilberto Freyre, que se via como herdeiro de uma cultura que

configurava um modo específico de se lidar com valores e paisagens tropicais, Goa

deveria ser antes revelada – através de um método empático e intuitivo – do que

explicada em seus pormenores – o que implica em seu afastamento do que

denomina de estilo fotográfico.

As conclusões a que Gilberto Freyre chega sobre o futuro de Goa são assim

compreendidas, ao final do primeiro capítulo, em relação ao que entendia serem as

novas formas de articulações nacionais, que se impunham frente à decadência

reinante e as novas ressurgências tropicais. É seu elogio a Mahatma Gandhi (1869 –

1949) e ao primeiro-ministro indiano Jawaharlal Nehru (1889 – 1964), como

defensores de valores regionais e de um nacionalismo não agressivo, que fecham o

capítulo, mostrando de que maneira Gilberto Freyre compreendia o lugar dos que

denominava de “separatistas goeses”.

O segundo capítulo estabelece uma conexão com os debates levantados no

primeiro. Assim, tentarei acompanhar o envolvimento de um nacionalista goês, Telo

de Mascarenhas (1899 – 1979), com os debates em torno das ressurgências

orientais na Índia. É também em relação a este quadro mais amplo que podemos

compreender o lugar que Mascarenhas atribuía ao nacionalismo indiano.

Considerando que Telo de Mascarenhas foi aluno e admirador de Oliveira Salazar

durante os anos em que estudou em Coimbra, ganha relevo o fato de que sua obra

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sugere uma aproximação entre os principais elementos dos nacionalismos

português e indianos. Os valores autênticos do mundo da cultura deveriam ser

valorizados, seja em Portugal ou na Índia, e qualquer tentativa de assimilação para

fins coloniais estaria em oposição ao ideal de defesa dos valores tradicionais. Assim,

enquanto Gilberto Freyre propunha um argumento segundo o qual, através da

predisposição portuguesa aos trópicos, esses valores estariam ali legitimamente

enraizados, Telo de Mascarenhas compreendia que apenas através do retorno à

Índia – retorno tanto político quanto cultural – Goa poderia finalmente ressurgir ou,

em outras palavras, se realizar enquanto culturalmente indiana. Se por um lado

Freyre buscou selecionar elementos da paisagem e cultura Goesas para a partir daí

elaborar conexões com outros contextos de presença portuguesa, Telo de

Mascarenhas apostou nos fatos para desmascarar o que considerava ser a grande

farsa da narrativa colonial portuguesa. Para este efeito, editou o periódico Ressurge,

Gôa! que abordaremos no final do segundo capítulo.

A passagem para o terceiro capítulo se faz em torno da centralidade do

debate em torno da tensão entre distintas representações sobre Goa. Influenciado

pela visita anterior de Gilberto Freyre a Goa, o geógrafo português Orlando Ribeiro

(1911 – 1997) se frustra por não encontrar em Goa a influência portuguesa que

esperava. Assim, em 1956, envia um Relatório ao Governo Português, apresentando

alguns fatos que considera serem desagradáveis. Mantendo um compromisso

próximo ao de Telo de Mascarenhas no que se refere à tentativa de opor os

argumentos da propaganda aos dados ancorados na experiência social Goesa,

Orlando Ribeiro procura aconselhar Oliveira Salazar sobre que medidas tomar para

que Goa permanecesse portuguesa. Do quadro complexo e distante do paraíso

lusitano que Gilberto Freyre viu em Goa, Orlando Ribeiro mostra Goa enquanto um

caso paradoxal, em que múltiplas verdades estariam em jogo, e conhecê-las seria o

primeiro passo a ser tomado pelo Governo de Portugal. Analisarei sobretudo o

Relatório ao Governo Goa em 1956 que Orlando Ribeiro enviou ao Governo, mas

também trarei elementos da formação intelectual do geógrafo, mostrando sua crença

no caráter humanista do colonialismo português e de Goa como manifestação de um

“duplo tesouro de civilizações”.

Se para Gilberto Freyre Goa seria para sempre portuguesa, e para Telo de

Mascarenhas seria inevitavelmente indiana, Orlando Ribeiro é aquele que, dentre os

três autores, considera que não existiriam garantias que permitissem uma previsão

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segura sobre o futuro da Índia Portuguesa. Assim, apresento nesta dissertação uma

leitura em torno de autores que, através de processos de escrita, buscaram traduzir

a complexidade social de Goa a partir de narrativas que, de diferentes maneiras,

lidavam com a questão do nacionalismo. Apresento nesta Introdução os precedentes

que estavam em jogo no contexto da decisão tomada pelo governo português de

permitir, financiar e apoiar logisticamente as viagens de Gilberto Freyre e Orlando

Ribeiro, bem como no contexto dentro do qual Telo de Mascarenhas se inseriu na

cidade de Bombaim.

Em seu trabalho sobre a consolidação do nacionalismo português pelo regime

salazarista, Luís Trindade (2008) argumenta que o regime só pôde ser instituído

enquanto tal como resultado final de um longo processo de afastamento entre os

campos literário e político. Desta autonomia entre ambas as esferas é que o

salazarismo nutriu a perspectiva segundo a qual Portugal lhe era exterior, sendo que

à política restaria salvaguardar um patrimônio que não se confundia com as próprias

disputas políticas. É assim que a questão do realismo literário passa a ser central ao

processo de definição da identidade nacional, sendo que para o autor, “o

nacionalismo é uma formação cultural que apaga os traços da sua construção

porque consiste em fazer-se passar pela natureza das coisas” (Trindade, 2008:13).

Assim, o autor defende que apenas através da patrimonialização da nação

portuguesa aos olhos da literatura é que os estereótipos mais marcantes sobre a

nação portuguesa puderam estruturar o regime salazarista, afinal, “trata-se da

questão formal, e não substancial, de se estar preso, enquanto comunidade, a um

conjunto de estereótipos sobre a essência e o destino, de que parece impossível

escapar” (Trindade, 2008:20). Temos aqui uma questão importante para a pesquisa

que propomos, que se refere ao lugar da definição identitária – e a consequente

projeção de um futuro inescapável, visto ser a realização de um caráter – no interior

de narrativas nacionais, indianas ou portuguesas.

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Notas sobre a luta pela libertação da Índia Portuguesa

Como veremos, Mahatma Gandhi se tornou uma figura central, admirada

tanto pelos nacionalistas de Goa quanto por portugueses contrários ao governo do

então primeiro-ministro Jawaharlal Nehru. A luta por liberdades cívicas em Goa

estivera impulsionada pelas então recentes negociações em torno da “transferência

de poder” da Índia Britânica ao Partido do Congresso. Apresento aqui o modo como

autores goeses, em sua maioria com passagem por universidades europeias,

buscaram fazer coincidir o futuro de Goa com aquele que se projetava para o

restante da Índia: a sua completa descolonização. No primeiro capítulo da

dissertação mostrarei de que modo Gilberto Freyre, em sua conferência apresentada

em Bombaim, defendeu sua admiração por Mahatma Gandhi, ainda que se

posicionando de forma contrária aos “separatistas” de Goa. As impressões que

Freyre guardou de Bombaim foram importantes para sua compreensão do papel que

Goa deveria desempenhar no sentido de amansar o que era percebido pelo

sociólogo como “asperezas do sistema social hindu”. Telo de Mascarenhas, por sua

vez, se inseriu de um modo muito particular no contexto político da cidade, sendo

que ali lançou seu periódico Ressurge, Gôa!, sem contudo se alinhar de forma

duradoura a nenhuma das organizações políticas ali existentes. Orlando Ribeiro

visita Goa em um contexto em que, após a invasão de Dadrá e Nagar Aveli liderada

por goeses de Bombaim, a União Indiana apenas era observada à distância, como

consequência do bloqueio que imperou em suas fronteiras5.

Neste contexto de grande complexidade, muitos sentidos devem aqui ser

buscados nas demandas que nacionalistas goeses apresentaram desde a década

de 1940, e que certamente remontam a um longo período de indeterminação de Goa

entre Portugal e Índia (Pinto, 2007). Se Telo de Mascarenhas se colocou, em suas

Memórias (1976) como protagonista da gênese do nacionalismo Goês, ao fundar

com amigos goeses em Coimbra o periódico Índia Nova, a referência mais

conhecida no nacionalismo em Goa aponta para o ano de 1946, quando Tristão de

Bragança Cunha (1891 – 1958)6 foi preso, e Rammanohar Lohia (1910 – 1967)7

5 Dadra e Nagar-Aveli eram dois enclaves portugueses sob administração do governo de

Damão (ver Mapa 1 p. 143). 6 Tristão de Bragança Cunha (1891 – 1958) é por muitos considerado o “pai do nacionalismo

goês”, embora esta posição tem sido questionada em trabalhos recentes (Pinto, 2007; Lobo, 2010).

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proferiu seu famoso discurso em Margão (Goa). Tristão havia se formado bacharel

no estabelecimento francês de Pondicherry (Índia)8, de onde partiu para Paris, tendo

se graduado em engenharia elétrica na Universidade de Sorbonne. Na capital

francesa, atuou ao lado do romancista e erudito indólogo francês Romain Rolland

(1863 – 1944), divulgando as lutas pela independência da Índia, retornando a Goa

em 1926, onde fundou o Comitê do Congresso de Goa (CCG) neste mesmo ano,

com as intenções de coordenar a luta contra o colonialismo português9.

Tristão de Bragaça Cunha retornou a Goa, então no ambiente político

marcado pela luta contra a ditadura. A tese da alienação aparece destacada em

seus escritos, sendo que “em causa estaria a alienação, não somente da cultura e

realidade indiana decorrente da europeização, mas também, da modernidade pela

cultura que obstava à sua percepção” (Lobo, 2010:481). O famoso artigo “A

desnacionalização dos goeses” (Cunha, 1944), publicado em Bombaim, consolidava

assim um longo debate em torno da identidade goesa, que havia se intensificado no

ano de 1913, quando António Bernardo de Bragança Pereira (1883 - 1955)10 e

Roque Correia Afonso (1859 - 1937)11, procuraram (sem contudo encontrar) uma

consciência nacional goesa que estivesse desvinculada da cidadania portuguesa.

Sandra Lobo (2010) argumenta que havia então uma dificuldade por parte das elites

católicas de se situarem na chave do discurso nacionalista, marcando uma

identidade goesa que estivesse vinculada seja aos modelos de ocidentalidade ou

orientalidade. Para Roque Correia Afonso, a identidade goesa seria

fundalmentemente católica, enquanto para Bragança Pereira seria inconcebível

definir esta identidade ignorando a maioria populacional hindu.

Sua defesa de que os goeses estariam desnacionalizados se tornou referência para o retorno de Goa às suas origens culturais indianas. 7

Rammanohar Lohia (1910-1967) era natural de Akbarpur, Uttar Pradesh. Bacharel pela Universidade de Calcutá, seguiu seus estudos na Frederick William University, em Berlim, onde defendeu sua tese de doutorado sobre a taxação do sal na Índia e nas políticas socio-econômicas de Gandhi. 8

A Índia Francesa recebia a denominação de “Établissements français de l'Inde”, e correspondia aos territórios de Pondicherry, Chandernagore, Karikal, Yanon e Mahé. 9 Como veremos adiante, assim como Tristão de Bragança Cunha, Telo de Mascarenhas,

antes de retornar à Índia, teve um contato prévio com indólogos e orientalistas europeus, que defendiam os valores da civilização indiana e apontavam para nova formas de relação e entendimento entre Europa e as civilizações orientais. 10

António Bernardo de Bragança Pereira (1883 – 1955) foi autor da Etnografia da Índia Portuguesa (1911). Durante este debate com Correia Afonso, cursava Direito em Coimbra. Era primo de Luís de Menezes Bragança, de quem farei referência adiante. 11

João Joaquim Roque Correia Afonso (1859 – 1937) foi um advogado de grande expressão pública nos debates que tiveram por palco a I República portuguesa.

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A questão passava, assim, para as relações entre hindus e católicos no

contexto político e de inserção na cidadania portuguesa. Para parcela da

intelectualidade goesa, era justamente entre os hindus que se encontrava a

possibilidade de se retomar os vínculos tradicionais que ligavam a identidade goesa

à Índia. Assim, o jornal Bharat “contestava a ideia de uma identidade goesa

essencialmente católica” (Lobo, 2010:427). É das articulações e demarcações entre

cultura e política que Sandra Lobo sugere que a questão deva ser abordada. Isto

porque a edificação de um movimento nacionalista goês não se deu sem obstáculos

que estavam dados na ordem da interpretação sobre a identidade local, marcada na

década de 1920 por profundas disputas entre as comunidades católicas e hindus.

Diante destas disputas identitárias, Luís de Menezes Bragança (1878 – 1938)

buscava defender que o debate se desse em termos laicos e que, sendo Portugal

uma República, a definição da identidade Goesa não deveria ser definida em termos

religiosos. Contudo, as relações de proximidade e interesse entre o movimento

hindu goês e o nacionalismo indiano eram claras (Lobo, 2010:436). Para os

contribuidores do jornal Bharat e o Hindu, “o desejável aprofundamento da

autonomia estava dependente, para ser profícuo, do reconhecimento da indianidade

goesa, propunham a reivindicação preliminar do fim da política de assimilação

cultural” (Lobo, 2010:450). É neste ambiente político que Sandra Lobo evidencia o

surgimento de uma geração de estudantes acadêmicos que tomaram os ideais do

nacionalismo indiano, menos a partir do complexo contexto local goês, e mais a

partir dos grandes clássicos da literatura indiana, como Tagore, e de indólogos

europeus, como Sylvain Lévi e Romain Rolland, mostrando que o próprio Telo de

Mascarenhas “sequer menciona qualquer convívio com os guardiões da

„indianidade‟ como repetidamente refeririam” (Lobo, 2010:457).

O contexto republicano permitia, contudo, que o fervor autonomista fosse

buscado no interior da política vigente, defendendo a compatibilidade entre os ideais

autonomistas e republicanos. “Para estes jovens católicos, o hinduísmo

representava o processo de reapropriação da sua indianidade, o afirmar de uma

herança comum que unia os indianos” (Lobo, 2010:463). E esta tradição

secundarizava, ela própria, a questão religiosa, ao definir a Índia como um berço

comum a diversas crenças, visto que “a plasticidade constituía a marca distintiva da

identidade hindu”, sendo que o “Índia Nova” buscava equacionar o nacionalismo e o

universalismo. Assim, existia uma questão de fundo que apontava para o futuro da

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humanidade, sendo que restaria à Europa, segundo Romain Rolland, “virar-se para

Oriente e aí buscar inspiração de um novo ideal, verdadeiramente revolucionário

para o futuro do velho continente e da humanidade” (Lobo, 2010:472). Esta postura,

Sandra Lobo diz, se destaca na corrente orientalista que via a grandiosidade

passada da Índia meramente pela via da arqueologia.

A tradição seria uma forma de vínculo regional, onde apesar da literatura

goesa ser escrita em português, associando-a inevitavelmente à literatura

metropolitana, era ainda enraizada na Índia, onde uma tradição que antecedia à

chegada dos europeus permitia que as referências literárias retomassem fontes

mitológicas indianas. Assim, “a fonte da renovação cultural, contudo, poderia ser

traçada até a mesma fonte da tradição que havia sido sugerida pela elite do

nacionalismo indiano” (Pinto, 2007:185). Em outras palavras, se a literatura Goesa

compartilhava com a literatura portuguesa o seu caráter marginal, encontraria em

suas próprias fontes regionais a possibilidade de retomar o fio da tradição. Este

momento representou uma fase das histórias da literatura em língua portuguesa,

onde a região forneceria os limites para a construção destas histórias, a despeito da

língua comum.

Foi Menezes Bragança que realizou uma associação entre as ideias

tradicionalistas e as antidemocráticas, vigentes em diversos países europeus, mas

com especial atenção ao caso português. Assim, “logo em julho de 1926, senão

antes, classificou o golpe militar demonstrando que os protagonistas não buscavam

simplesmente uma mudança violenta no governo, mas sim acabar com a República”

(Lobo, 2010:477). Esta dissertação define seu problema a partir daquele que Sandra

Lobo definiu como “o último golpe no imaginário local sobre o seu lugar na hierarquia

do Império” (Lobo, 2010:507). Trata-se do “Acto Colonial” de 1930, que dividiu a

população das colônias entre assimilados e indígenas, como mostra a autora a partir

do regulamento militar de 1932, bem como a partir das manifestações de protesto

que aconteceram em Goa principalmente no ano de 1933. Para parte das elites

goesas, o “Acto Colonial” e a afirmação da política colonial metropolitana

“representaram uma ruptura traumática na percepção do seu lugar no quadro

português” (Lobo, 2010:512).

Para Sandra Lobo, em sua tese sobre as elites intelectuais Goesas, os

sentimentos de decadência e de subalternidade “uniam mais do que separavam o

estado de espírito da intelectualidade goesa católica e da intelectualidade

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metropolitana. Para ambas constituiriam poderosos estímulos à crítica política e

cultural” (Lobo, 2010:18). Neste sentido, Sandra Lobo parte do debate de Rochelle

Pinto a respeito do conceito de entre-impérios para enfatizar porém que a auto-

imagem das elites Goesas era em grande medida matizada por seu estatuto político

diferenciado, e também pela sua circulação pela esfera político-cultural

metropolitana. Telo de Mascarenhas, que será estudado no segundo capítulo desta

dissertação, fez parte da geração de intelectuais goeses que, residindo e estudando

em Portugal, buscaram efetivar uma “intermediação do conhecimento e do diálogo

entre impérios e entre culturas” (Lobo, 2010:17). Pretendo apresentar de que modo

a passagem de Mascarenhas da posição de defensor do Estado Novo salazarista,

para a de um nacionalista empenhado na Libertação de Goa, procedeu de forma

mais suave do que a polarização política poderia sugerir. Em outras palavras, a fé

que depositou no ressurgimento nacional português, em um cenário marcado pela

perspectiva de decadência da Primeira República, é formalmente análoga à sua

defesa do ressurgimento nacional em Goa.

Esta aproximação sugerida através da percepção da decadência abrirá o

primeiro capítulo desta dissertação, que se insere assim nesta tentativa de detalhar

aspectos de como a análise da realidade Goesa se deu em um contexto de

crescente importância do conceito de cultura na configuração da esfera política,

atendendo assim a uma demanda crescente pela questão identirária. Sandra Lobo

argumenta que se tratava, para o membros das elites Goesas, em grande medida,

de reclamar o “direito de configurar o político e de se recriar politicamente, com a

vontade de afirmação da autonomia das suas dimensões crítica e criativa” (Lobo,

2010:23). A projeção do futuro local, de que fala a autora, passou assim a se realizar

sobre olhares em torno das heranças do passado. Para Sandra Lobo, a tomada de

consciência desta indianidade dos goeses se deu através do reconhecimento de

uma herança civilizacional que os uniria à Índia.

Esta ruptura se desenhou em relação a uma esperança de autogoverno que o

breve período republicano havia permitido florescer entre os goeses desejosos da

autonomia administrativa e, mais ainda, a um processo secular de aproximação das

elites goesas em relação à metrópole, príncipalmente nas esperanças depositadas

no projeto liberal. A questão da cidadania é central na avaliação da autora, na

medida em que evidencia que ao envolvimento político por parte das elites católicas

acompanhava uma série de posições referentes ao manejo de códigos culturais. É

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por esta razão que Sandra Lobo argumenta que “induz em erro falar da

subordinação do cultural ao político” (Lobo, 2010:119). A característica que nos

importa ressaltar, e que evidencia o sentido dos protestos nativos ao “Acto Colonial”

foi a definição rígida de uma diferença colonial. Como afirma Lobo, “com este passo

abandonava-se o princípio do caráter transitório e circunscrito da diferença de

direitos, prevalescente na Primeira República” (Lobo, 2010:504).

A aproximação destas elites ao nacionalismo indiano foi assim resultado de

um longo processo político que, em meio a uma grande diversidade social de

posições e intresses, encontraram no nacionalismo uma pauta comum. É neste

contexto que Sandra Lobo argumenta que, para as elites Goesas, “o nacionalismo

indiano se apresentou como única alternativa sustentável, firmada pelos múltiplos

laços que uniam o território ao subcontinente” (Lobo, 2010:523)12. A questão de

Goa, que tornou atraente ao governo português o envio de Gilberto Freyre ao

território em 1951, é corolário de um longo processo em que parte das elites nativas

deixaram de depositar suas esperanças de futuro em uma comunidade portuguesa

ultramarina.

12

Lobo (2010:424) mostra como esse discurso nacionalista articulado emergiu primeiramente no periódico Bharat. Foi neste periódico que Telo de Mascarenhas publicou seu primeiro artigo.

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Capítulo 1

Goa será sempre luso-indiana: Gilberto Freyre no Instituto Vasco da Gama

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Introdução

A problematização das relações entre a ideologia colonial portuguesa e o

luso-tropicalismo passa necessariamente pela leitura dos trabalhos que Gilberto

Freyre publicou, sobretudo, a partir da década de 1950. As principais obras desse

período fazem referência à viagem que o autor brasileiro empreendeu às colônias

portuguesas na África e na Índia. Cláudia Castelo (1998) e Omar Ribeiro Thomaz

(2003) já haviam indicado a importância desta viagem para a consolidação do luso-

tropicalismo como ideologia colonial portuguesa, após uma recepção incerta da obra

de Freyre pela intelectualidade metropolitana dos anos 1930 e 1940. Esta recepção

distinta em cada um desses períodos foi muitas vezes interpretada enquanto fruto de

uma mudança no próprio pensamento de Gilberto Freyre, que a partir da década de

1950 teria se alinhado ao regime ditatorial de Oliveira Salazar.

Contudo, acredito que Cláudia Castelo e Omar Thomaz estão corretos ao

buscar as raízes do luso-tropicalismo em obras anteriores a Um brasileiro em terras

portuguesas (1953b) e Aventura e Rotina (1953a). A historiadora portuguesa afirma

que “os fundamentos do luso-tropicalismo começam a ser lançados em 1933 na

obra Casa-grande & Senzala” (Castelo,1999:137), quando Freyre começa a

estabelecer a contribuição da miscigenação e da interpenetração cultural para a

formação e o entendimento da sociedade brasileira. Trabalhos como os de Ricardo

Benzaquem do Araújo (1994) sobre Casa-Grande & Senzala contribuíram, nas

últimas décadas, para evidenciar aspectos do pensamento freyriano que corroboram

a importância de conceitos importantes ao luso-tropicalismo, dentre eles o de

equilíbrio de antagonismos. Reconhecendo a importância incontornável destas

contribuições ao entendimento da obra de Gilberto Freyre, o que pretendo

apresentar aqui é de que modo sua viagem às colônias portuguesas assumiu

referências ainda mais antigas da trajetória do autor, se inscrevendo assim em sua

própria formação intelectual.

No que se refere a alguns destes temas que acompanham a longa trajetória

intelectual de Gilberto Freyre, apresentarei inicialmente a relação entre decadência e

ressurgência em sua obra, tendo por base a leitura de seus trabalhos referentes à

viagem que realizou às colônias portuguesas. A temática esta presente desde o livro

inaugural de Freyre (1933), sendo que partirei da fortuna crítica sobre sua obra com

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a intenção de compreenser os sentidos de algumas de suas principais descrições

sobre Goa. Assim, Freyre compreendia que a sociedade ocidental se encontrava em

decadência, decorrente de uma crise interna cujas razões podem ser remontadas à

noção freyriana de civilização. É a partir do conceito de lusismo, de uma diferença

fundamental entre os países ibéricos e o restante dos países europeus, que Elide

Bastos (2003) mostra que Freyre apresentou as condições que permitiam aos

lusitanos resistirem a esta crise. Assim, o conceito de decadência é fundamental

para compreendermos os termos da especificidade dos portugueses em sua relação

com paisagens e povos tropicais. Ainda, é em decorrência desta questão de base

que Freyre compreende o lugar das influências orientais na cultura brasileira, que

seriam determinantes para que, nos países marcados pela presença portuguesa, a

decadência não fosse sinônimo de morte social, mas sim de novas projeções da

tradição no presente e no futuro.

A questão do tempo é portanto central à leitura que aqui proponho. Elide

Bastos (2003) localizou, em trabalho sobre a influência de autores hispânicos na

formação intelectual de Freyre, que foi através da noção de tempo tríbio que o autor

brasileiro buscou compreender que decadência estava acompanhada por

ressurgências de valores adormecidos. São, portanto, ressurgências culturais que se

dão concomitantemente aos processos de fragmentação de culturas nativas que os

europeus estavam promovendo na África e na Índia. Em grande medida, ao longo de

toda sua viagem, Freyre tematizou justamente esta dinâmica existente entre as

“insurgências e ressurgências orientais e africanas em conflito com a civilização

ocidental – já em crises internas de insatisfação e transformação” (Freyre,

2010a:17). Neste capítulo, iniciarei assim com uma apresentação desta questão

central para a compreensão dos modos pelos quais Freyre defendia a capacidade

portuguesa de assimilar valores orientais que, desta forma, se projetaram para todo

o espaço da presença portuguesa nos trópicos.

É pelo fato de se assentar em uma capacidade específica do caráter

português que Freyre identifica essadinâmicade insurgências e ressurgências como

“dois aspectos de um complexo fenômeno psicocultural ou sociocultural” (idem).

Assim, após chegarmos à questão da temporalidade, acompanhando o modo pelo

qual uma noção específica de decadência permitia que valores nativos fossem

incorporados ainda vivos no interior do complexo cultural lusotropical, veremos que

Freyre empreendeu uma busca por esses valores enquanto um projeto que

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permitiria a compreensão do sentido de unidade que prevalescia sobre essa

realidade aparentemente dispersa. É nestes termos que Gilberto Freyre entende sua

viagem às colônias portuguesas, e apresenta que o mesmo impressionismo que

marcou o olhar dos primeiros portugueses em contato com o Oriente seria o método

mais adequado para a compreensão desta realidade profunda que definiu através do

conceito de civilização lusotropical. Se o impressionismo seria um método

profundamente empático, dependendo assim do contato direto do autor com as

realidades regionalmente situadas, ele assumiu, nestas obras, o caráter de um

expressionismo, no sentido que Freyre defendeu: certos traços observados seriam

exagerados como um método de compreesão das características típicas destas

realidades. O trabalho de Fernanda Arêas Peixoto (2015) é bastante elucidativo das

relações entre viagens e formas de apreensão da realidade em Gilberto Freyre.

Organizarei este capítulo, assim, ao redor destas duas principais questões:

primeiramente, a dinâmica entre decadência e ressurgimento, e o modo ibérico de

se lidar com a questão; em segundo lugar, a defesa do impressionismo e do

expressionismo como formas de se lidar com esta realidade dinâmica, encontrando

entre os fragmentos de um passado aqueles que resistiriam à desintegração,

projetando-os no futuro. A partir destas duas questões problematizarei o lugar que

Freyre atribui às demandas goesas por autonomia ou por integração à Índia. Assim,

se ao mesmo tempo elogiava o que definiu como “uma saudável deseuropeização

nos modos de vida, nos gostos de paladar, nas flexões de língua ou de linguagem,

em ritmos de andar evidentes também em Goa” (Freyre, 2010a:16), Freyre também

era profundamente crítico do que denominava serem os nacionalismos politicamente

agressivos, que buscavam passar das ressurgências culturais para as insurgências

políticas marcadas por identidades antagônicas. A saída de Freyre apontava mais

uma vez para a harmonização de contrários (Araújo, 1994).

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1. Freyre e a especificidade colonial portuguesa

1.1. Decadência e Ressurgências

A visão de decadência em Freyre está associada à perspectiva segundo a

qual a temporalidade dos povos ibéricos seria uma temporalidade tríbia, onde o

passado, presente e futuro, estariam superpostos, e em que “os elementos de

equilíbrio/desequilíbrio se põem e se repõem” (Bastos, 2003:77). Desta maneira,

onde Freyre encontrou fragmentos culturais marcados pela desagregação,

encontrou também elementos que poderiam ser projetados no futuro, se

recolocando no interior de novas formas de convívio. Argumentarei adiante que

desta percepção resulta uma das principais posições políticas do autor diante do

caso de Goa. Como mostra Elide Bastos (2003), a denominação dos tempos

superpostos enquanto tempo tríbio é tomada por Freyre da obra de Ortega y Gasset

(1983), e assume em sua obra um lugar central através do conceito de processo, ou

seja, de transformações que não se dão mediante rupturas. Vemos então que Freyre

defende, a partir do conceito orteguiano de tempo tríbio, que as transformações não

implicam em rupturas, mas em acomodações do tradicional com o novo 13.

O que vemos em Freyre, neste sentido, é a tentativa de captar a dinâmica

própria aos processos de transformação e permanência, temas centrais à sua

trilogia sobre a família patriarcal brasileira, recolocados de modo exemplar nas obras

que se seguiram à sua viagem pelas colônias portuguesas. O que marcaria esta

dinâmica própria, cuja marca seria a “simultaneidade dos tempos de formação,

consolidação e decadência” (Bastos, 2003:84), seria a integração de populações

nativas no seio da família patriarcal, marcada sobretudo por sua plasticidade. Por

sua vez, esta plasticidade seria a garantiria de que valores das culturas nativas

fossem conservados ainda vivos no interior de complexos de civilização cujas formas

receberiam, assim, conteúdos diversos. Na palestra que Freyre proferiu em Goa, ele

definiu este complexo civilizacional como o sistema lusotropical de cultura, que

representaria “ressurgências de valores que não se deixaram de todo

europeizar”(Freyre, 2010a:106). É neste sentido que o conceito de decadência de 13

Para Elide Bastos (2003), Freyre não faz uso de uma noção de transformação social repentina, na medida em que esta transformação “não ocorre de forma linear, mas tem a conformação de um labirinto. Sua obra é a reconstrução desses vaivéns sinuosos” (Bastos, 2003:83-84 [meus destaques]).

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Freyre não é pessimista, se afastando na tese corrente de Oswald Spengler (1880-

1936) sobre a decadência do Ocidente14, afinal, para o autor a decadência de uma

forma social é ponto de partida para o nascimento de outra, conciliatória (Bastos,

2003:91). Como afirma o autor, as “consequências, desfavoráveis ao indígena, de

desintegração de sua cultura são quase inevitáveis, sob o impacto do industrialismo

capitalista” (Freyre, 2010a:401)15. Do contato imperial, então, resultaria assim essa

dissolução das culturas nativas, sob impacto das civilizações superiores do ponto de

vista técnico:

não resta então, aos europeus e aos cristãos, outra tarefa senão a de juntar restos às vezes podres e corruptos de culturas já mortas. Culturas que, doutra maneira, poderiam ser assimiladas, ainda vivas e sãs, a novos complexos de civilização em que as formas predominantemente européias e cristãs de organização se juntassem substâncias africanas de cultura quanto possível íntegras; e não reduzidas a simples curiosidades etnográficas (Freyre, 2010a:248).

A capacidade dos portugueses estaria justamente nesta possibilidade de

acomodação de substâncias nativas sobre formas sociologicamente cristãs. A

comparação com o Brasil é sugestiva da continuidade temática entre sua trilogia

sobra a família patriarcal e seu questionamento do processo em andamento nas

colônias portuguesas que então observava. É neste sentido de unidade que reside o

sentido de definição de um caráter português específico, portanto imutável. É no

sentido deste caráter permanente que Freyre realiza uma comparação entre as

fazendas de Angola eas fazendas patriarcais no Brasil, que segundo ele também

“fundaram-se e desenvolveram-se com negros arrancados a tribos africanas. Mas

incorporados a um sistema [onde] pudessem contribuir com seus africanismos ainda

vivos e fecundos e não esterilizados em peças de museu” (Freyre, 2010a:402). Sua

crítica à Companhia de Diamantes seria a de que este empreendimento estaria

agindo de forma contrária à tendência portuguesa, aproximando-se do modelo

meramente capitalista e técnico de se lidar com as populações nativas, atuando no

sentido de “reduzir as culturas indígenas a puro material de museu. Os indígenas

vivos interessam-nos quase exclusivamente como elementos de trabalho, tanto

14

Oswald Spengler publicou, em 1918, sua obra A decadência do Ocidente, que se tornou referência intelectual de diversos autores do período. Gilberto Freyre cita Spengler no Prefácio a Casa Grande & Senzala (1933). 15

Sobre a questão da indústria, Freyre dedica muitas páginas, relacionando esta questão com a problemática do romantismo (Freyre, 2010a:163).

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melhores quanto mais desenraizados de suas culturas maternas e mecanizados em

técnicos, operários, e substitutos de animais de carga” (Freyre, 2010a:402).

Esta tendência seria observada, por exemplo, no imperialismo sul-africano em

Moçambique é uma “pequena amostra de que há hoje na áfrica um imperialismo

cultural ou econômico sul-africano, dissolvente de valores e estilos de cultura que

não sejam os seus” (Freyre, 2010a:448). As sobrevivências devem ser vistas, assim,

em seus aspectos vivos, sendo que o contato de Freyre com as ruínas de Velha Goa

é sugestivo de sua postura sobre o tema. Ali, Freyre diz que

as cidades são um tanto como os indivíduos no seu modo de, mesmo arruinados, conservarem um pouco da mejestade antiga. Na Goa de hoje, que é uma Goa em ruínas, ainda há um pouco da Roma que ela chegou a ser” (Freyre, 2010a: 329).

E ainda, apresenta a reveladora afirmação de que na existência dramática de

Goa, o “tempo deixou de ser o quantitativo para tornar-se o bergsonianamente

qualitativo” (idem), o que implicaria que no interior de uma temporalidade assim

definida, o tempo assumisse uma feição dramática, com o passado se estendendo

ao presente e se projetando ao futuro, tal qual podemos compreender em sua

definição do tempo tríbio acima apresentada.

No caso específico da presença europeia na África, o exemplo maometano

seria o único que se compararia ao dos portugueses, o que é sugestivo do próprio

argumento freyriano segundo o qual a influência maometana na origem do povo

português seria um fator condicionante de seu caráter extra-europeu. Em algumas

notas que escrevera sobre o colonialismo português, Freyre chega a recolocar a

disputa existente entre muçulmanos e cristãos diante destes restos culturais, à

espera de um novo sentido que lhes garantissem uma sobrevida, uma possibilidade

de ressurgirem em rebeldia diante do universalismo da técnica ocidental. Assim,

a expansão maometana muitas vezes se aproveita da obra de desintegração de culturas indígenas causada pelos europeus e por suas missões religiosas, muito mais etnocêntricas, quase sempre, que cristocêntricas, para, com os fragmentos de culturas assim despedaçadas, reconstituí-las no sentido maometano (Freyre, 2010a:256).

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Estes valores seriam os meios através dos quais a tradição seria recuperada,

onde o passado se projetaria no futuro, se opondo assim às rupturas que de outra

forma seriam impositivas e destrutivas.

É assim possível aos africanos que sofrem o drama dessa desintegração atenuá-lo, transportando para formas maometanas de cultura [...] as substâncias que conseguem salvar do naufrágio de suas próprias culturas, esmagadas sob o impacto técnico e econômico das imperialmente européias (Freyre, 2010a:257).

Assim, chegamos ao ponto em que Freyre atribui aos portugueses a

vantagem de valorizarem elementos e incorporá-los a seu complexo de cultura. Esta

perspectiva está inscrita em um modo distinto de se lidar com a dinâmica entra

fragmentação e ressurgências, tema que estou abordando através da temática da

temporalidade16. Um exemplo desta perspectiva pode ser encontrado em uma

passagem de Freyre sobre a arquitetura híbrida que encontrou nas colônias

portuguesas, quando diz que tudo foi “dissolvido e recriado pela capacidade

portuguesa de assimilar o exótico” (Freyre, 2010a:147). Assim, se sob contato dos

ingleses tudo se dissolvia, a particularidade da capacidade portuguesa estaria na

assimilação e recriação destes valores dissolvidos. Este modo particular de se lidar

com elementos tradicionais residiria na própria origem do português, e aparece na

obra de Gilberto Freyre a partir da discussão em torno do iberismo. O exemplo

português e o maometano se opunham assim ao exemplo britânico, donde Freyre

alerta que se os portugueses imitassem os outros europeus, iriam perder suas

colônias (Freyre, 2010b: 161). Como afirma Elide Bastos (2006:47), “de certa forma,

é através do lusismo que Gilberto Freyre dialoga com os autores de sua época,

influenciados pela Europa não lusitana, portadora de ideias liberais”, e o que

marcaria a cultura ibérica seria, justamente, o fato de residir no encontro entre

Ocidente e Oriente.

Isto é, quando propõe, para a solução da crise que atravessa a sociedade brasileira, um retorno às tradições, não está lamentando o abandono de tradições ocidentais, cristãs, etc., mas sim aponta para a crise como resultado da paulatina perda dos elementos híbridos, ocidentais e orientais (Bastos, 2003:77).

16

Não fosse este agente de equilíbrio, o português, as culturas nativas seriam reduzidas a peças de museu, completamente inertes.

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Existe, para Freyre, uma tarefa política a ser desempenhada pelos

portugueses, que afinal se resumia na tentativa de se projetar novas formas de

convívio que não fossem pautados por relações racistas e etnocêntricas17. Este

desafio era colocado ao Brasil enquanto “ativo mediador entre o Ocidente e o

Oriente, entre a Europa ou a América Setentrional e o trópico” (Freyre apud Bastos,

2006:161)18. Assim, o “apego às tradições, aparentemente um arcaísmo presente no

luso-hispano, se apresentaria como uma reação desses povos ao avanço de valores

da sociedade burguesa” (Bastos, 2006:162). É dentro desta perspectiva que Freyre

problematiza o lugar dos nacionalismos anti-coloniais, sendo que é esta temática

que nos interessa particularmente aqui. O projeto político que Freyre atribuiu aos

brasileiros é posteriormente ampliado para incluir os indianos, afinal, segundo o

autor, “depende principalmente de nós – indianos e brasileiros – o sucesso ou o

fracasso de formas modernas de civilização nos trópicos” (Freyre 2010b:155). Se os

nacionalismos poderiam ser compreendidos a partir das definições antagônicas

entre colonizadores e colonizados, é sugestivo que Freyre entenda que

tais antagonismos, a presença do português dissolveu ou amoleceu, criando entre grupos rivais motivos de unidade – a lusitana – superiores aos interesses antagônicos que os dividiam” (Freyre, 2010a:482).

Vemos assim que à dinâmica cultural corresponde o sentido de uma ação

política, que afastará Gilberto Freyre do que considerava serem nacionalismo

agressivos e separatistas que, no caso desta citação, dizia respeito especificamente

aos nacionalismos africanos. Em oposição aos nacionalismos agressivos, pautados

na ideia de ruptura, Freyre apresenta as possíveis insurgências de valores

tradicionais no interior do complexo lusotropical de cultura, que os mantivera vivos

até então. Afinal, “as insurreições orientais de hoje são menos explosões

„comunistas‟ contra o „capitalismo‟ do que manifestações de culturas ressurgentes

ou insurgentes contra o imperialismo europeu” (Freyre, 2010a:307). E um exemplo

desta insurgência positiva é descrita por Freyre quando toma contato com as

mulheres indianas em Bombaim, que adotavam o tradicional sari como

17

“Trata-se de buscar algo novo e essa tarefa tornaria os brasileiros pioneiros” (Bastos, 2006:161). 18

Interessante notar como isto leva Freyre a reconhecer o erro de Joseph Rudyard Kipling (1865 – 1936), para quem Ocidente e Oriente nunca se encontrariam (Freyre, 2010a: 357).

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indumentária, em oposição ao que era considerado adequado no sentido europeu. É

neste sentido que afirma que

a revolta que hoje agita o Oriente, interpreto-a eu como animada menos de espírito positivamente comunista do que de sentido antieuropeu, anticapitalista e anti-imperialista de vida; como uma revolta antes de culturas ressurgentes que de populações politicamente insurgentes. Antes cultural do que simplesmente política ou econômica. Antes nacional ou regionalmente culturalista do que politicamente naturalista. Antes etnicocênctrica do que politicocêntrica (Freyre, 2010a:326).

Como Elide Bastos (2003) mostrou, Gilberto Freyre situa a questão da

decadência no interior da tradição ibérica, se afastando assim das principais teses

do decadentismo europeu: “é exatamente este traço que permite que possamos fugir

à crise” (Bastos, 2003:77). Ou ainda, “afirmar a orientalidade de nossa cultura

configura-se como estratégia para „contornar‟ a crise” (Bastos, 2003:77), e para

Freyre, a confraternização dos portugueses explicaria a resistência que possuíam

diante do anti-imperialismo (Freyre, 2010a:337). Em outras palavras, é justamente

através da retomada destes valores híbridos que as ressurgências culturais que

animavam o oriente não se transformariam em insurgências políticas de caráter

separatista, sendo que estes valores tradicionais apontam justamente para um

complexo harmônico de realidades porventura antagônicas19. Elide Bastos mostra

que este era o procedimento destacado por Freyre para o lugar específico da

formação brasileira diante da crise pela qual o mundo passava, e a retomada do

mesmo tema em seus livros da década de 1950 sugerem que Freyre tomou sua

viagem a Goa como exemplar na defesa desta harmonização entre Oriente e

Ocidente que entendia ser fundamental à compreensão do Brasil e de todo o

complexo lusotropical de cultura, “pois Goa, e não Salvador da Bahia, é que foi, no

século XVI, a base do movimento de comissão de culturas e de homens que venho

designando como civilização lusotropical” (Freyre, 2010a:321).

É neste sentido que Freyre coloca nos pontos de contato entre Oriente e

Ocidente, no interior dos quais Goa ocupa um lugar de destaque, a possibilidade de

se reconfigurar a relação entre o tradicional e o moderno, não reduzindo o primeiro a

uma decadência no sentido ocidental de morte social. É este poder de

19

Sobre a questão do “equilíbrio de antagonismos” na obra de Freyre, ver sobretudo o trabalho de Ricardo Benzaquen de Araújo (1994).

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ressurgimento de forças tropicais, este novo patamar de equilíbrio no processo de

transformações intensas que o mundo passava, que definiu o tema de suas

conferências lidas em Bombaim e no Instituto Vasco da Gama, em Goa. Para

Freyre, o mundo caminhava para um equilíbrio de antagonismos, e a Índia

começava a contribuir para esse projeto através das figuras de estadistas que

buscavam desenvolver a obra de Mahatma Gandhi (1869-1948). É assim que

entendia que homens como Jawaharlal Nehru (1889-1964) buscavam “renovar as

velhas civilizações orientais” (Freyre, 2010b: 157) 20, que assim criam seus ritmos e

estilos de modernidade sem sacrificar seus valores antigos. Para Freyre, Gandhi e

Nehru cumpriam uma tarefa política, em que o mundo deveria ser visto como um

todo, mas respeitando os direitos e as particularidades regionais. Trabalhavam

assim na busca de um equilíbrio de antagonismos “pois, equilibrados os

antagonismos, resultam daí condições favoráveis à criação ou combinação nova de

valores” (Freyre, 2010b:159). Assim, Freyre apresenta esta admiração nos seguintes

termos:

Em Goa pergunta-me um indiano “separatista” se não me escandaliza em Portugal a miséria do Porto e de Lisboa. Respondo-lhe que sim; e que me escandaliza também a miséria de Bombaim [...] Mas nem por isso deixo de respeitar o esforço daqueles homens que como Nehru na Índia e Salazar em Portugal procuram dar estabilidade social a populações por tanto tempo desvalorizadas aos olhos do mundo (Freyre, 2010a:339).

Seria assim uma necessidade do momento político em que escrevia,

acreditava Freyre, que essa civilização lusotropical fosse mantida através da ação

dos portugueses e de seus descendentes. Segundo ele, essa foi a advertência que o

historiador e diplomata brasileiro Manuel de Oliveira Lima (1867-1928) havia tentado

mostrar ao jovem escritor goês Guilherme Joaquim de Moniz Barreto (1863-1896),

ansioso por viver e trabalhar em Paris, onde julgava existirem as condições ideais

para seu ofício intelectual. Para Freyre, “Oliveira Lima parece ter sentido como

ninguém o erro do amigo, numa época que era já de começo de decadência política

20

Descreve Tagore como “glorioso indiano que conheci quando estudante da Universidade Columbia” (Freyre, 2010a:20), o que inclusive o fizera ser tomado em alta estima por um representante de um jornal de Bombaim (Freyre, 2010a:351).

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da Europa e de despertar de energias tropicais de cultura” (Freyre, 2010b:132) 21, e

ainda, diz que Moniz Barreto “foi vítima, mais do que Eça de Queiroz, da fascinação

de Paris, com prejuízo do gosto pelo Ultramar tropical e da visão de estar aí, e não

na Europa, o futuro não só da civilização de origem lusitana como, talvez, da própria

civilização humana” (Freyre, 2010b:134) 22. Freyre, que proferiu uma palestra sobre

Moniz Barreto no Instituto Vasco da Gama em Pangim (Goa), lembra também em

Aventura e Rotina (2010a) da amizade entre o escritor e o brasileiro Oliveira Lima,

apresentando, a partir dos contatos que ambos haviam tomado, que o retorno aos

trópicos era entendido como uma questão de crença nestas energias tropicais de

cultura que então apenas iniciavam seu processo de consolidação 23.

Se Moniz Barreto cometeu o erro de não encontrar nos trópicos um futuro

digno das grandes civilizações, Freyre remete a outros autores para evidenciar os

benefícios de se manter a tradição lusitana no que se refere aos modos de se lidar

com os trópicos. É a Hernâni Cidade (1887-1975) 24 que remonta a interpretação de

que para os viajantes portugueses o Oriente é artisticamente revelado antes de

sistematicamente ordenado (Freyre, 1987:111), e nesse aspecto recoloca a questão

do iberismo, apresentando, contudo, elementos mais precisos referentes a esta

particularidade. Em outras palavras, a questão da revelação artística aponta para

uma forma de conhecer o mundo que não se sustentava no ordenamento conceitual,

e é neste sentido que Freyre avalia a contribuição da filosofia experimental do

nominalismo franciscano para o empreendimento lusitano nos trópicos 25.

Outro exemplo que confirma seu argumento é o de que “à formação de Franz

Post faltava o toque nominalista que o predispusesse ao livre gosto por valores não

europeus e tropicais de vida, de paisagem e de cultura” (Freyre, 1987:204). Esta

avaliação da obra do holandês Frans Post (1612-1680)26 sugere assim a importância

do gosto ibérico pela vária cor e de sua predisposição à simbiose com os trópicos. A

21

Sobre as relações intelectuais e pessoais do próprio Gilberto Freyre com Oliveira Lima, ver o trabalho de Fernanda Arêas Peixoto (2015). 22

Sobre Moniz Barreto Freyre diz ainda que “dele já se disse que foi uma mariposa que as luzes de Paris atraíram para o consumir. Consumiram-no” (Freyre, 2010b:141). 23

Importante mencionar que o próprio Gilberto Freyre hesitou entre seguir sua carreira acadêmica nos Estados Unidos ou Europa e no Brasil (Pallares-Burke, 2005). 24

Hernâni António Cidade (1887- 1975) foi um escritor e jornalista português, tendo publicado trabalhos sobre a viagem de João de Barros ao Oriente. 25

Freyre afirma: “sou dos que pensam que o nominalismo franciscano favoreceu [...] o desenvolvimento de uma cultura que venho denominando lusotropical” (Freyre, 1987:199). 26

Frans Janszoon Post (1612-1680) foi um pintor holandês que acompanhou a comitiva de Maurício de Nassau ao Nordeste brasileiro

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questão é então colocada como um fenômeno de ordem psico-cultural e também

socio-cultural, sendo que são justamente estes elementos “sócio-culturais que

condicionam um artista, limitando sua liberdade de interpretação do exótico, do

diferente, do inédito” (Freyre, 1987:204). É neste sentido que compreendemos estar

situada a interpretação de Freyre a partir das relações entre estas duas ordens, o

que lhe permite passar do particular ao geral, do empático ao sociológico, sendo que

desta indefinição não incorreria em nenhum deslize analítico, sustentando-se antes

em uma opção metodológica que o vinculava aos escritores que se colocavam na

corrente do lusismo ou iberismo.

No que se refere a esta corrente, Freyre contudo se situa entre aqueles que

adotam o universalismo como forma exemplar de associação do autor com a

diversidade observada. É o que Freyre denominou como sendo o lusismo

universalista de Antônio Sérgio de Souza Júnior (1883-1969)27 e de Joaquim Pedro

de Oliveira Martins (1845-1894)28, que também encontrou em Panduronga

Pissurlencar29, que o acompanhou durante sua visita a Velha Goa: “um lusismo que

se sente prejudicado pela ação da teocracia cristã sobre certas atitudes menos

universalistas de Portugal, quer no Oriente, quer na Europa” (Freyre, 2010a:306).

Freyre afirma, ainda, que visto Antônio Sérgio ter nascido na Índia Portuguesa, seu

“universalismo intenso” estava então associado ao espiritualismo oriental e a uma

tendência tipicamente indiana em secundarizar aspectos particularmente empíricos.

Vemos assim que para o autor brasileiro o argumento psicocultural e sociocultural

passava também pela questão da religiosidade, sendo que o grande drama que

julgava entrever nos trópicos seria aquele que opunha o racionalismo ocidental às

populações fervorosamente místicas e espirituais. Daí sua atenção ter se voltado

para aquelas culturas dotadas de uma profunda espiritualidade, característica que

estaria, por outro lado, “em agudo declínio, na década de 1950, entre ocidentais

civilizados” (idem). É neste sentido que personalidades como Antonio Sérgio e

Oliveira Salazar são elogiados por Freyre nos seguintes termos:

27

António Sérgio (1883-1969) era nascido em Damão, na então Índia Portuguesa, tendo exercido sua atividade intelectual em Portugal. 28

Joaquim Pedro de Oliveira Martins (1845-1894) foi um cientista social português. 29

Panduronga Pissurlencar havia sido diretor do Arquivo Histórico do Estado da Índia, sendo que recebeu, além de Gilberto Freyre, o geógrafo Orlando Ribeiro, como mostrarei no terceiro capítulo desta dissertação.

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Em ideias, eu talvez me incline mais para as de Antonio Sergio que para as de Antônio de Oliveira Salazar, embora respeitando no grão-doutor um dos maiores portugueses de todos os tempos. Alguém que, na verdade, fez nascer de novo em Portugal muita virtude ou valor que adormecera até parecer morto (Freyre, 2010a:35 [meus destaques]).

Se Freyre faz assim a defesa do lusismo universalista do intelectual luso-

indiano, busca contudo ponderar o que considera ser um abstracionismo exagerado

das populações indianas, para quem a ação prática deveria ser induzida através de

atitudes enérgicas que dessem a ela um novo dinamismo, um equilíbrio entre a

aventura e a dominate rotina. Assim, apesar de se colocar como autor universalista,

Freyre insiste na tradição nominalista como forma de equilibrar as duas tendências

opostas do empirismo e do universalismo, mostrando que apenas através do

particular poderia se asceder às verdades gerais. O universalismo exclusivo levaria

os indianos ao quase torpor, a uma postura em relação ao mundo que os afastava

de qualquer ação. De forma complementar, Freyre mostrava que o que observara

em sua viagem seria um “choque em profundidade” que se realizava “entre gentes

predominantemente mágicas e místicas nas suas culturas – as orientais – e uma

civilização grandiosa – a ocidental – principalmente tecnocrática, economicista,

racional, lógica” (idem).

Se os excessos de abstracionismo marcavam os indianos, os excessos de

aventura marcaram a experiência portuguesa em Goa, trazendo resultados por sua

vez também desastrosos. É neste sentido que pede auxílio transnacional para a

manutenção da Escola Médica de Goa, dizendo que, sem o apoio de outros países

como Portugal e Brasil,

a Escola Médica de Goa será, dentro de alguns anos, outra ruína gloriosa em terra tropical do Oriente. Uma ruína igual à da Santa Casa que foi outrora assombro de europeus e não apenas de orientais. À do Colégio de São Paulo: fracasso dos jesuítas. À do Convento de Santa Mônica: outro fracasso (Freyre, 2010a:316).

É neste mesmo espírito que Freyre observa as ruínas de Velha Goa, e

imagina que a um português da Europa ela representaria “a tristeza de uma grande

aventura frustrada” (Freyre, 2010a:328). Nesta lógica entre as tendências

antagônicas da aventura e da rotina, Freyre colocava a questão de um diálogo entre

dois mundos. Afinal, via em seu tempo um “Ocidente tão em busca de valores

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espirituais que o refortaleçam” (Freyre, 2010a:18), mas cuja presença na Índia

poderia por sua vez equilibrar a tendência oposto do espiritualismo exacerbado.

Vemos então que Freyre encontrou em Goa o espaço ideal para descrever esse

choque em profundidade entre Oriente e Ocidente, onde seus antagonismos haviam

sido harmonizados. A importância da tese do orientalismo da cultura brasileira é

mencionada por Freyre quando chega a Goa e se depara com o que descreve como

uma interpenetração das arquiteturas religiosas e domésticas, encontrando aí

muita confirmação para a tese por mim esboçada, em ensaios que datam de 1933 e de 1936: a de serem numerosos os orientalismos dissolvidos no complexo brasileiro de cultura. Mais numerosos do que geralmente supomos. Ponto de vista que pareceu exagerado a alguns críticos. Não só exagerado: fantástico (Freyre, 2010a:305).

Era o momento de se ponderar, harmonizar, essas duas posturas, e isto seria

feito através de uma defesa das ressurgências culturais que não se submetiam,

enquanto tais, a este imperialismo racional. A partir desta defesa, Gilberto Freyre

assume uma postura ativa enquanto escritor, selecionando nestes contextos aqueles

elementos que julgava serem representativos destas ressurgências. Assim, se

Freyre defende o impressionismo enquanto forma de compreensão do mundo

pautada na sensibilidade e não no conceito, é no expressionismo que pensa este

lugar ativo do escritor. Para o autor, o expressionismo e o impressionismo poderiam

ser pensados como dois modos distintos de se pensar a relação entre a luz e o

mundo. Se para o artista impressionista a luz incide sobre o objeto, para o

expressionista ela emana do próprio objeto, sendo esta portanto uma postura mais

ligada ao misticismo, em consonância com o elogio freyriano da capacidade ibérica

de revelação dos trópicos, mais do que de sua explicação através de raciocínios

lógicos.

Neste sentido, se a fortuna crítica de Gilberto Freyre tem apontado, até agora,

a importância do conceito de impressionismo em sua obra (Bastos, 2003; Pallares-

Burke, 2005), acredito que os trabalhos de Freyre da década de 1950, e

principalmente Aventura e Rotina (2010a), apontam para uma segunda inflexão em

sua defesa da especificidade dos modos ibéricos de se associar a valores e

paisagens tropicais. Tentarei apontar, assim, algumas consequências da postura

expressionista para à leitura política que Freyre realiza neste contexto, sendo

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relevante compreender que sua definição de impressionismo recebeu um tratamento

neste mesmo sentido:

Mas não se trata de um realismo. Trata-se, antes, de um impressionismo.É marca do abandono do conceito pela acentuação da impressão, com as consequências aportadas por essa atitude à condução política da sociedade. (Bastos, 2003:109)

Desta filosofia experimental, marcada pela atenção ao particular e ao

concreto, é que Freyre enfatiza a importância da observação direta, que faria frente

ao abstracionismo dos demais colonizadores. A questão seria recorrente na obra de

Freyre, como mostra Elide Bastos em seu estudo sobre a influência de autores

hispânicos no trabalho do autor30. Como dirá em referência a Ortega, “o germânico

tem como instrumento de percepção da realidade o conceito, e o mediterrâneo, a

impressão” (Bastos, 2003:108)31. Fernanda Arêas Peixoto (2015) mostra, em seu

interessante trabalho sobre o lugar das viagens na obra de Freyre, o interesse

precoce do autor pelas artes visuais, o que endossa a perspectiva defendida por

Freyre que a impressão, a atenção aos pormenores sensíveis, seriam fundamentais

no exercício de compreensão da realidade. Freyre, nesse ponto, remete sua

lusotropicologia aos primeiros franciscanos, apontando no misticismo destes cristãos

como marca da especificidade da experiência colonial portuguesa.

O autor não hesita em apontar o pioneirismo de sua observação sobre “o

então começo de uma revolta de mágicos contra lógicos” (Freyre, 2010a:16), e no

que se refere ao lugar da religiosidade entre os ocidentais, menciona que o

islamismo estava ganhando destaque no processo de desintegração das culturas

africanas, “em relação a um já menos místico que nos seus grandes dias,

catolicismo romano” (Freyre, 2010a:18). Este poder de integração do islamismo e de

uma vertente mística do cristianismo seguem assim um direcionamento claramente

político, onde o sentido de unidade (neste caso, animado pelo monoteísmo), estaria

moldando a luta contra o colonialismo europeu.

30

A referência é ao sensualismo como marca das civilizações mediterrâneas 31

Sobre esta oposição, é sugestiva a afirmação de Freyre sobre duas formas distintas de organização social na formação brasileira: “a substância dessas duas formas de organização social é diferente: dois tipos de homem criam uma e outra” (Bastos, 2003:93). O argumento é, assim, de ordem psicosocial ou ainda psicocultural.

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Tais hispanos [José de Acosta e Garcia da Orta] como que franciscanamente lançaram as bases de uma tropicologia ou ecologia tropical, completada por uma antropologia atenta a situações do homem diversas das européias: ecologia que já se vai constituindo em ciência do trópico, tendo dentro de si uma hispanotropicologia especial e uma especialíssima lusotropicologia (Freyre, 1987:209).

Esta questão da compreensão dos trópicos aparece nas obras aqui

estudadas principalmente diante do fato de que, sendo a decadência concomitante

com as ressurgências, apenas um olhar atento às pequenas particularidades poderia

entrever seu potencial de articular novos valores e sentidos. A desintegração

lançava ainda um desafio à própria compreensão, sendo necessário que agentes

sociais dessem a este conjunto de elementos uma linha de harmonização que a

tornasse compreensível. A condição das colônias portuguesas, segundo Freyre, era

favorável a esta compreensão, visto que aí os extremos haviam sido harmonizados.

O olhar que Freyre lança sobre as paisagens tropicais recebe a mediação de

agentes sociais e estéticos que tornam possível a própria experiência da

compreensão, sendo que sem a presença destes, “essa paisagem se desequilibra

ou decompõe, torna-se não só confusa como incompreensível, perde os seus

contornos mais expressivos para dissolver-se num quase borrão” (Freyre, 2010a:51).

Assim, Gilberto Freyre argumenta que, “sem os jesuítas, sem os franciscanos,

sem os frades, os padres, as freiras não teria havido Goa como não haveria hoje o

Brasil” (Freyre, 2010a:334), sendo sobretudo a eles que Freyre atribui o sucesso da

consolidação dos portugueses nos trópicos. E a harmonização de paisagens e

populações é o que distinguiria Goa do restante da Índia, e que Freyre encontra

mesmo nas paisagens tropicais, “paisagens na Índia portuguesa, diferentes das da

outra Índia, pelo que se descobre nelas de harmonização de formas e cores do

Ocidente com as do Oriente. Harmonização – note-se bem – e não de intrusão do

Ocidente no Oriente: as intrusões da arquitetura imperialmente inglesa, por exemplo”

(Freyre, 2010a: 335). Assim, se os portugueses equilibraram antagonismos, e

permitiram assim a emergência de um sentimento de unidade, era diante da

fragmentação política e da multiplicação de disputas étnicas que o autor acreditava

residir o dever político dos portugueses. Como vimos, é a partir da tese do iberismo

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que Elide Bastos (2003) compreende a percepção freyriana da acomodação e do

equilíbrio de antagonismos32.

Equilibrar antagonismos significava valorizar a unidade em prol dos

separatismos, os processos de acomodação em prol das rupturas. Em sua

discussão sobre a influência do nominalismo franciscano sobre a ciência e o modo

de relacionamento dos hispanos tropicais aos trópicos, Freyre levanta o problema

das relações entre o particular e o universal. Assumida uma predisposição dos

franciscanos em compreenderem o mundo a partir da experiência direta, o problema

seria o modo pelo qual se partiria desse particular, do empírico, para se chegar a

universalismos. Freyre argumenta, e isso nos interessa particularmente, que o

método que permitiria equilibrar o particular e o universal seria a seleção intuitiva

dos valores mais representativos de uma determinada realidade. A vantagem deste

método residiria no fato de que o universalismo resultante não estaria em

desacordo com as realidades regionais e condições ecológicas. Vemos nesta

reflexão de Gilberto Freyre que a percepção estética e metodológica de um

procedimento se estende à organização social, na medida em que as disposições

psicoculturais acabam por se manifestarem em modos específicos de convívio

humano.

Insistamos nesse ponto: o estudo regional torna-se necessário nas ciências culturais mistas para purificação científica do próprio universal – universal por antecipação – tão comum na Sociologia dos finais do século XIX e dos começos do XX. (Freyre, 1945: 205)

Neste aspecto, a articulação de diversas culturas em um único complexo

civilizacional se realizaria atendendo às condições regionais que fossem comuns a

um espaço inter-regional mais amplo, no caso, os trópicos. Assim, não se trata em

Freyre apenas de uma busca por regionalismos, fundamental no que se refere à

continuidades locais, mas por elementos que permitissem a construção de uma

inter-regionalidade, ou seja, uma expansão no sentido de um universalismo. Vemos,

assim, que Gilberto Freyre está preocupado em estabelecer as bases de uma nova

comunidade transcultural onde os localismos não fossem sufocados por um

universalismo exógeno. Este universal emanaria do próprio particular, não sendo

assim uma imposição externa. Assim, inspirado por autores hispânicos e partindo de

32

Sobre este tema, ver Ricardo Benzaquen de Araújo (1994).

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uma perspectiva comparada com base em observação direta em diversas regiões do

mundo, Freyre diz que as “curvas de harmonização” atingiram um grau máximo nas

regiões de colonização hispânica, e o mínimo em regiões de colonização anglo-

saxônica. A harmonização se refere a elementos culturais que, sem um elemento

formal articulador, se decomporiam em uma espécie de caos étnico. A

lusotropicologia estaria na base da formação de uma comunidade lusotropical,

sendo que sem esta predisposição à compreensão de valores particulares,

regionais, a incompreensão mútua levaria a rupturas em torno de diferenças de

superfície. Vemos que para Freyre, a profunda identificação que sentiu em Goa e na

Índia enquanto um todo seria fruto destas curvas de harmonização, que

possibilitaram que o re-conhecimento regional se desse através da leitura de traços

típicos presentes em toda a área tropical sob influência portuguesa.

1.2 – As viagens e o exagero do real

Gilberto Freyre apresenta, em Aventura e Rotina (2010a), uma defesa do

papel do viajante33, dando destaque à atitude de exagerar traços da realidade

observada. Interessante notar que esta predisposição em exagerar certos episódios

e omitir outros, é notada no trabalho de Gilberto Freyre por Maria Lúcia Pallares-

Burke, que diz que “às vezes, para produzir um efeito dramático, Freyre,

conscientemente ou não, desrespeita a cronologia, omite ou exagera episódios”

(Pallares-Burke, 2005:91). É curioso encontrar em Gilberto Freyre a caracterização

da excelência do viajante Fernão Mendes Pinto (1509-1583)34 justamente no fato de

que não existiria em sua “obra do século XVI, na qual se tem retificado muito

descuido de data, de nome, de sequência cronológica; muito exagero de

dramatização; mas quase nenhuma inverdade essencial” (Freyre, 1987:278). É o

que Freyre denomina de pioneirismo na revelação dos trópicos aos autores ibéricos,

denominando por esta capacidade de orientalistas tanto a Fernão Mendes Pinto

quanto a outros escritores e observadores portugueses que estavam animados pelo

mesmo espírito de “amoroso gosto de compreensão e não, apenas, fome de

33

Para uma abordagem detalhada sobre o lugar das narraticas de viagem na obra de Gilberto Freyre, ver Fernanda Arêas Peixoto (2015). 34

Fernão Mendes Pinto (1509-1583) foi autor de Peregrinação, obra que narra sua viagem ao Oriente.

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pitoresco ou de exótico” (Freyre, 1987:279)35. Assim, estes autores são identificados

por Freyre como

grandes orientalistas e, sobretudo, tropicalistas dos séculos XV ao XVII. À sua obra, a de holandeses, ingleses, franceses acrescentou sistematização do disperso e exatidão no pormenor. Mas não excelência nem vigor nos traços decisivos de caracterização ou de revelação da natureza ou das culturas ou das populações tropicais (Freyre, 1987:279).

A caracterização de Fernão Mendes Pinto como maior escritor português de

seu tempo é sugestiva da simpatia que Freyre guardava pelos “flagrantes orientais

imortalizados pelo impressionismo realista de Fernão Mendes” (Freyre, 1987:284),

em sua capacidade de captar pormenores significativos e descrevê-los com riqueza

de detalhes, naquilo que Freyre considera ser uma antecipação do método de

Marcel Proust36. O grande mérito de Fernão Mendes Pinto teria sido, para Freyre, o

de se empenhar inteiramente à compreensão dos homens e paisagens orientais,

não privilegiando neste projeto apenas uma de suas personalidades: o jesuíta que

foi, mas também o pecador, o menino e o “homem com alguma coisa de efeminado

na atenção a pequenos nadas significativos” (Freyre, 1987:284).

A verdade é que nem Fernão nem Portugal mentiram à Europa. Por eles o europeu conheceu um mundo tão novo que lhes pareceu falso. Mas existia. O português vira-o antes que qualquer outro europeu, com olhos ao mesmo tempo de homem, de velho, de mulher, de adolescente, de poeta, de pintor, de cientista, de missionário, de comerciante, de político. Daí ter visto tanto e tão diversamente (Freyre, 1987:288).37

O que se coloca aqui, novamente, é a questão de que a compreensão do

mundo estaria, em Fernão Mendes Pinto, fundada nos sentidos. Este autor nos

interessa na medida em que Freyre via nele uma personagem típica na

caracterização dos portugueses de diversas origens que enveredaram pela aventura

35

Freyre considera Fernão Mendes Pinto maior que o próprio Camões, estando esse prejudicado por seu excessivo nacionalismo. Como veremos no Capítulo 3 desta dissertação, Orlando Ribeiro compartilhava desta perspectiva (Freyre, 1987:278). 36

Marcel Proust (1871-1922) foi um escritor francês, autor de Em busca do tempo perdido (1913-1927), obra que Gilberto Freyre cita em diversas passagens como exemplar no exercício de compreensão do passado que se projeta no presente. 37

Freyre lembra o autor de uma piada que se vulgarizou em Portugal com a finalidade de tratar de forma jocosa com a aventura supostamente mentirosa narrada por Fernão Mendes Pinto, e que se resumia ao trocadilho com o nome do autor: “Fernão mentes ? Minto!”.

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de sentidos que se abriu pela expansão ultramarina. Esta seria uma distinção da

expansão portuguesa, para a qual contribuíram “a mulher, o velho, o menino, o

adolescente, o mestiço cristianizado e às vezes afidalgado pela condição do pai; e

não apenas o adulto branco do sexo masculino” (Freyre, 1987:293)38. A valorização

destas figuras tidas por secundárias à narrativa histórica oficial é presente ao longo

da obra de Gilberto Freyre, e apontam para sua valorização do povo enquanto

elemento de encarnação da intra-história. No caso de sua leitura da formação social

brasileira, já foi dito que “o pensamento freyriano confere anterioridade histórica às

figuras órficas face às prometeicas, isto é, ao escravo, à mulher e ao menino em

relação ao patriarca” (Bastos, 2003:112).

Elide Bastos reconhece também esse tributo de Freyre a Fernão Mendes

Pinto, dizendo que “transmitir a experiência vivida intensificando os fatos é a façanha

do autor de Peregrinação” (Bastos, 2003:174). É a esta experiência vivida que

devemos compreender o modo pelo qual Freyre percebeu sua viagem às colônias

portuguesas, se inserindo na tradição de escritores ibéricos cujos traços

característicos seriam a “intensificação da realidade, a invenção do real, a utilização

dos mitos, um realismo que articula os fatos à experiência e à imaginação” (Bastos,

2003:174). É a partir da experiência direta do autor que se projeta a reconstituição

do passado e a revelação do presente. Vemos assim, então, a partir do exemplo de

Fernão Mendes Pinto, que para Freyre a experiência do autor deve ser expandida,

através da empatia, para perceber, através de outras personalidades, realidades que

de outra forma não perceberia, alcançando assim um quadro mais completo em sua

diversidade de cores e perspectivas.

O autor, seja ele sociólogo ou artista, não descobre o que é típico por mágica,

mas sim à base de “profunda identificação, efetiva ou empática, com o social, com o

cultural, com o sócio-ecológico” (Freyre, 1987:207). As bases desta identificação

seriam assim as realidades concretas e regionais, e esta teria sido a lição que o

autor recebe dos franciscanos, sendo que o particular é a base do mais autêntico

universalismo, onde os motivos de expressão, por serem cristãs, não estão

subordinados a interesses de classe ou raça. Em Sociologia (1945), Freyre lembra

que para Wilhelm Dilthey (1833-1911) seria fundamental ao sociólogo considerar o

38

“Essa complexidade, ninguém a representa melhor, na literatura em língua portuguesa – nem mesmo Camões – que Fernão Mendes Pinto” (Freyre, 1987:293).

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„poder de reconstrução [da realidade] pela imaginação‟; e essa reconstrução através da seleção de tipos que sejam sínteses ou símbolos de realidades difusas e até confusas; e que se tornem mais intensamente reais, depois de reduzidas as realidades dispersas a sínteses ou a símbolos (Freyre, 1945: 205).

Na busca de Pallares-Burke (2005) pelos aspectos formativos de Gilberto

Freyre, ela mostra a importância que teve em suas leituras de juventude as que

configuravam a relação entre leituras e viagens, sendo que acreditava, por exemplo,

que “‟acha-se na Europa o que se leva para lá, ou seja, reconhecemos lá fora

exatamente aquelas coisas que aprendemos a compreender em casa‟” (Pallares-

Burke, 2005:94). Aponto em Freyre uma perspectiva que busca complementar a

inevitabilidade de se configurar o mundo observado a partir de leituras pretéritas,

com a busca romântica por um olhar autêntico e livre. É através dos expressionistas

e franciscanos nominalistas que Freyre encontra o equilíbrio entre o posicionamento

individual do autor e a possibilidade de compreensão dos traços fundamentais a

todo um contexto. Ou seja, a partir de uma experiência particular, alcançar verdades

universais. A questão por ele esboçada é justamente a de encontrar aqueles traços

que seriam representativos de uma determinada realidade, através da

experiência viva do artista com complexos de que são retiradas as imagens típicas; ou num poder tal de empatia da parte do artista para com os tipos que escolhe para símbolos que é como se tivesse havido experiência viva do mesmo artista com relação à vida vivida por outro indivíduo a que sua arte conseguisse dar imortalidade artística através de síntese ou simplificação desse indivíduo em valor simbólico (Freyre, 1987: 206).

A importância da empatia torna incontornável, em Freyre, uma reflexão sobre

os modos pelos quais ele próprio se relacionou com as novas regiões que visitava.

Sobre a independência de visão e do desejo de não ser visto em sua viagem,

Pallares-Burke mostra que, já em 1926, havia uma “frase, aparentemente de

Unamuno, que ele anotou ao menos duas vezes como se fosse um provérbio a

advertir o viajante sobre a atitude a evitar, dizia: „os que viajam não para ver, nem

para ter visto, mas para ser visto [sic]‟” (Pallares-Burke, 2005:93). Isso aparece na

primeira frase de sua conferência lida em Goa, no Instituto Vasco da Gama, em

1951. Nesta ocasião, Freyre diz que seu desejo era “realizar a viagem que ora

realizo pelo Ultramar Português, a convite o eminente sr. Sarmento Rodrigues,

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quase sem ser notado. Sem ser notado, para melhor notar [...] Desejava eu ver o

Ultramar quase sem ser visto; e ouvi-lo quase sem fazer-me ouvir” (Freyre,

2010b:127).

De qualquer modo, o que o livro “Um brasileiro em terras portuguesa” (2010b)

nos mostra é justamente como Freyre foi visto e escutado nas inúmeras

conferências e discursos que leu no Ultramar39. Mostra, acima de tudo, como a

presença de Freyre passou longe de ser desapercebida, como dizia almejar. Apesar

de Freyre mencionar que suas observações se deram com independência, e que

teve “liberdade para contatos os mais diversos – e não apenas os desejados ou

programados por elementos do então e, aliás honrado, governo de Portugal” (Freyre,

2010a:15), Cláudia Castelo (1998) mostra que durante sua viagem à Índia as

autoridades ligadas ao governo português o impediram de ter contato com

opositores em Bombaim. Curiosamente, o próprio Freyre apresenta o contraditório

desta afirmação, dizendo que, quando estava na cidade, havia tomado chá com

separatistas e comunistas goeses, que lhe fizeram perguntas indiscretas (Freyre,

2010a:351). Ainda em Bombaim, Freyre mostra que sua passagem foi observada

atentamente por importantes autoridades locais:

Lembro-me agora de que o cônsul honorário do Brasil em Bombaim – que é descendente de goeses e homem de formação portuguesa – levou-me, com a Sra. Heredia – admirável tipo de graça indiana -, à presença do atual arcebispo de Bombaim, monsenhor Valeriano Grácias, que eu, aliás, conhecera em Roma. É um gigante (Freyre, 2010a:349) 40.

Contudo, Freyre defende ao longo da descrição de sua viagem que seria esta

almejada “invisibilidade” que permitiria que ele adentrasse o espaço da intimidade. É

neste sentido que Freyre diz que, em Goa, viu jovens ávidos por leituras, e que

“mais de uma vez os tenho surpreendido a ler Eça de Queirós ou Oliveira Martins

com olhos de meninos que simplesmente lesses histórias de quadrinhos; ou,

escondidos dos adultos, novelas obscenas” (Freyre, 2010a: 319 [meus destaques]).

O que vemos em Freyre é este desejo manifesto de passar desapercebido, para

surpreender o movimento da vida cotidiana em sua autenticidade mais espontânea.

39

São um total de 4 conferências e 24 discursos, 30 discursos de agradecimento a Freyre pronunciados por anfitriões em todos as colônias que visitou, e 10 notícias de imprensa sobre sua viagem reproduzidas no final do volume. 40

Falarei no próximo capítulo sobre Valeriano Gracias, mas destaco que era uma figura controversa, ativamente engajada na luta anti-colonial em Goa.

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Apesar de Freyre defender que as leituras eram fundamentais para sua visão de

mundo, ele buscava ao menos ter por referências autores que faziam, por sua vez, a

defesa do aspecto intuitivo das relações entre escritor e mundo.

Sobre o método empático, Pallares-Burke (2005) mostra que esta era uma

preocupação manifestada por Freyre desde seus anos de juventude, sendo que “ao

brasileiro com ambições intelectuais [...], cabia se aprofundar „no estudo daquilo que

é alongamento ou extensão da nossa própria vida‟, estudo para o qual as limitações

bibliográficas até podiam ser vistas como vantajosas” (Pallares-Burke, 2005:260).

Essa situação muito específica garantiria a este intelectual brasileiro “maior alcance

aos poderes de intuição, de observação direta e de introspecção” (Pallares-Burke,

2005:260). Era esse procedimento que permitiria ao intelectual descobrir aspectos

da realidade que ninguém mais conseguia ver, residindo aí seu espaço de atuação

por excelência. Ainda, a imaginação e o método empático recebem ampla

confirmação em sua viagem, do mesmo modo que o sentimento de déjà vu havia

feito Freyre re-conhecer paisagens nunca vistas. Assim,

muitas vezes minha impressão na Guiné tem sido a de que o verbo de velhas crônicas do Brasil colonial e imperial se faz carne diante dos meus olhos; e que cenas e flagrantes, meus velhos conhecidos de livros de viajantes e de gravuras de Debret e Rugendas, saem dos livros e das estampas e se encarnam de repente em negros de verdade, parentes dos que foram para o Brasil e são, hoje, brasileiros nos seus descententes [...] Deixa-me a Guiné de 1950 ver, e não apenas imaginar, muita coisa do Brasil de 1600, de 1700, de 1800” (Freyre, 2010a: 268-9 [meus destaques]).

É neste sentido que ao chegar à Goa, afirma em seu diário de viagem,

reproduzido em Um brasileiro em terras portuguesas (2010b): “Cuido às vezes ter

chegado não ao Oriente mas a uma daquelas províncias mais cheias de sol e mais

vibrantes de luz do Norte do Brasil que ventos mágicos tivessem deslocado da

América para a Ásia” (Freyre, 2010b:129). É neste mesmo sentido que, ao visitar em

Goa diversas casas-grandes que lhe lembram as brasileiras, diz ter se sentido “num

Brasil que já não existe. O dono dessa casa é um senhor de engenho do norte

brasileiro do século XIX desgarrado na Índia portuguesa do século XX” (Freyre,

2010a:309). Era neste sentido que Freyre “também queria evocar o passado por

meio de uma descrição vívida e deliberadamente „superficial‟ da família patriarcal”

(Pallares-Burke, 2005:265). Por descrição superficial entendemos um interesse

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menos pelas causas históricas de tal fenômeno, e focado mais em detalhes da vida

cotidiana, sobre como as pessoas viviam ou se vestiam. O próprio gênero ensaístico

adotado por Gilberto Freyre coloca estes aspectos em relvo, em detrimento das

histórias político-militares (Pallares-Burke, 2005:64). É este o gênero que permitiria

ao autor equilibrar o intelectual e o sensível (Pallares-Burke, 2005:66), que Elide

Bastos também encontra ser, para Freyre, a tarefa do intelectual.

É no sentido deste exagero que Freyre descreve a publicação de seu livro

como um registro das diversas paisagens e populações do Ultramar que se afasta

do estilo fotográfico, considerado pelo autor como meramente impressionista,

abrindo espaço para que tomassem a forma de suas reações pessoais a estes

contextos. É no expressionismo que encontra assim o paralelo estético que mais se

aproxima de suas intenções textuais. Sua viagem ao Oriente lhe faz recordar de

uma breve estadia sua em Berlim, na década de 1920, quando viu a passagem do

“Orient Express”41, que incitou sua imaginação no sentido de viagens de encontro ao

exótico. É aos expressionistas de Munique que recorre para dar sentido a esta

busca do pitoresco e, como afirma Pallares-Burke (2005:64),

os Rubens, os Dürers, os El Grecos e as pinturas expressionistas que viu de perto nas pinacotecas e exposições que ali visitou serão para sempre lembradas por Freyre como experiências de grande significado em sua formação. Especialmente o movimento expressionista, que vira em primeira mão (Pallares-Burke, 2005:64).

É a El Greco que Freyre atribui o vigor de intensificação da realidade na

pintura, comparável assim a Fernão Mendes Pinto havia realizado na literatura

(Freyre, 2010a:345). Como afirma o autor em Um brasileiro em terras portuguesas:

Nesse quase diário de viagem o impressionismo às vezes toma aspecto de expressionismo, com alguma coisa de autobiográfico, de introspectivo, de lírico, e não apenas de parasociológico a acrescentar-se ao puro registro de impressões de paisagens, de populações e de pessoas. Um expressionismo em que as formas de paisagens e de populações são, mais do que as cores, intensificadas, em tentativas de expremir-se o autor, através de simplificações arbitrárias, no sentido de uma possível lusotropicologia (Freyre, 2010b:31).

41

“Orient Express” era o nome de um serviço de transporte ferroviário que ligava Londres, Paris e Constantinopla.

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No prefácio à primeira edição de Aventura e Rotina (2010a), Freyre volta ao

mesmo argumento, mostrando que nesta obra as suas observações se alinham mais

ao expressionismo que ao impressionismo:

chegam algumas a ser reação crítica – e não apenas lírica – ao que observei. Outras a servir de pretexto a comentáios às vezes abstratos. Até a devaneios especulativos. A expansões autobiográficas de que peço perdão aos sociólogos que às vezes me supõem preso a eles por votos, que nunca fiz, de castidade sociológica (Freyre, 2010a:19).

A esta postura descreve como direito de expressionista, como uma técnica

que herdara de Fernão Mendes Pinto. O expressionista “pode passar do fato

concreto à abstração, do objetivo ao transobjetivo, do social ao pessoal” (Freyre,

2010a:19). Retomando o argumento apresentado nesta seção, à luz do sugestivo

excerto acima citado, vemos que para Freyre a lusotropicologia é feita através de

“simplificações arbitrárias”, confiadas apenas ao poder de empatia do próprio autor

em selecionar elementos tidos por simbólicos de um determinado contexto. Na

seção seguinte, mostrarei que os elementos encontrados por Gilberto Freyre

sustentaram uma busca por traços que guardavam familiaridade com sua memória

pessoal.

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2. A busca pelo semelhante

O que está em jogo na viagem de Freyre é a sua incessante busca por

elementos culturais e da paisagem que atestassem a unidade do comunidade

lusotropical. A viagem de Freyre, neste aspecto, reatualiza a própria epopéia

nacional portuguesa, mostrando que, tal qual os primeiros portugueses que haviam

chegado à Índia, criaram um novo mundo nos trópicos, o contexto atual exigia uma

ação no mesmo sentido. Em face ao avanço modernizante, que estaria

fragmentando culturas anteriormente ordenadas, ou marcando suas fronteiras a

limites perigosos de etnocentrismo, rearticular as culturas estaria, segundo ele, a

serviço da confraternização entre os homens, da construção de um novo humanismo

em um mundo fragmentado. Esta construção se fundamentaria naquilo que existiria

de comum entre as diversas áreas da expansão portuguesa. É neste sentido que

Freyre pede que algum historiador brasileiro estude os papeis do Arquivo de Goa,

com a finalidade de recolher as “evidências daquelas relações íntimas do Brasil com

o Oriente, através da Índia, cuja insuspeitada importância suponho ter sido o

primeiro a considerar do ponto de vista sociológico” (Freyre, 2010a:321).

Lusotropical me parece a expressão própria a definir o que há de comum às civilizações de origem portuguesa, cuja projeção sobre áreas quase todas tropicais são animadas por um sentido tropical de paisagem, de vida, de cultura, só modificado ou alterado por variações secundárias de região ou província (Freyre, 2010b.136).

O sentido da viagem de Freyre é elucidativo assim de sua disposição

intelectual diante do que julga mais significativo e expressivo das diversas áreas que

visitou. Em Aventura e Rotina (2010a) diz que sua viagem foi feita

um tanto proustianamente como quem viesse ao Oriente em busca menos de um tempo que de uma presença de certo modo perdida; mas não tão perdida que não se encontrem seus traços nos homens e até nas coisas „imutáveis‟ (Freyre, 2010a:298).

Para Freyre, seria necessário um estudo sistemático para a captura desses

traços lusitanos no Oriente, sinais que estão dispersos mas que cuja união sob o

critério de área pode ser revelador da “penetração cultural” atingida pelos

portugueses no Oriente. Isto na medida em que os portugueses haviam exercido

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uma influência em profundidade, “enquanto os ingleses, na Índia por eles dominada,

apenas conseguiram marcar a superfície das paisagens, dos seus ritos sociais”

(Freyre, 2010a:312). A questão é que os portugueses “conseguiram comunicar sua

própria alma nacional à da população das áreas indianas” (Freyre, 2010a:312).

A verdade é que se sente hoje, na Índia portuguesa, que o português não é aqui, de modo algum, o que outros europeus foram ou continuam a querer ser, noutras áreas orientais. Tanto quanto lhe permitiu o castismo hindu, o português confraternizou com a gente da terra, misturando-se docemente a ela (Freyre, 2010a:311)42.

Para Freyre, “a mestiçagem tem produzido nesta Índia combinações de cores

e formas humanas que se assemelham às produzidas no Brasil pelo cruzamento de

europeus com tupis-guaranis” (Freyre, 2010b:129). Freyre valoriza também o

potencial de unidade da língua, ante os “estreitos critérios nacionais que exaltem as

diferenças nacionais ou regionais de linguagem, com prejuízo da índole essencial da

língua comum ao Brasil e a todos os Portugais” (Freyre, 2010b:129). Mas não é

apenas nestes dois importantes setores que Freyre constata a influência portuguesa.

Afinal, antes de analiticamente constatada, ela foi primeiramente pressentida. É

baseado nesta empatia que estes elementos são selecionados e aparecem em

primeiro plano na narrativa freyriana, sob a imagem de um déjà vu, uma espécie de

memória involuntária. Gilberto Freyre afirma, no Prefácio de Aventura e Rotina

(2010a), que sua viagem pelo Ultramar português teve muitas vezes a impressão de

um déjà vu, de que antes de ver com seus próprios olhos as paisagens que

percorrera, já teria antecipado essas percepções como pressentimentos que vieram

se confirmar.

Em contato com o Oriente e com a África portuguesa, com algumas das principais ilhas portuguesas do Atlântico, com um Algarve que é quase África, com um alentejo ainda semimouro, com um Portugal que de Trás-os-Montes ao minho, e sem esquecer as Beiras, sonha com os trópicos, com o calor, com mouras desencantadas em mulheres de cor, senti confirmar-se uma realidade por mim há anos adivinhada ou pressentida através de algum estudo e de alguma meditação. (Freyre, 2010b: 32 [grifos meus])

42

Para Freyre, a confraternização dos portugueses explicaria a resistência que possuíam diante do anti-imperialismo (Freyre, 2010a:337). Seria dessa confraternização, também, levou os portugueses a serem criticados por outros europeus por sua falta de decoro nas relações com as populações nativas.

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Defendo aqui que essa antecipação pode ser lida como fruto de uma política

de consenso característica das ideologias nacionais: não é preciso ter estado lá, na

medida em que a identidade é afirmada antes da própria experiência, e “mais de

uma vez minha impressão foi a do déjà vu, tal a unidade na diversidade que

caracteriza os vários Portugais espalhados pelo mundo” (Freyre, 2010a:19). Esta

unidade na diversidade de que fala Freyre é aqui considerada a partir do debate do

autor em torno do nacionalismo.

Deixasse Goa, amanhã, de ser província ultramarina de Portugal – o que talvez lhe trouxesse antes desvantagem do que vantagem [...] – e continuaria tão luso-indiana em sua cultura que sua situação dentro da União Indiana talvez viesse a ser, senão a de um corpo estranho, a de uma alma estranhíssima. A de uma alma penada (Freyre, 2010a:312).

Argumenta assim Gilberto Freyre que “esta viagem, apenas, confirmou em

mim a intuição do que agora, mais do que nunca, me parece uma clara realidade”

(Freyre, 2010b: 32), sendo que esta realidade apontava para a unidade de um

complexo disperso por regiões tropicais. Esta intuição é esboçada na conferência

“Uma cultura moderna: a lusotropical”43, que o autor proferiu no Instituto Vasco da

Gama, em novembro de 1951. Nesta conferência Freyre define o objetivo da

lusotropicologia, que segundo ele deve se dedicar ao “conjunto em que a aparência

ou realidade de dispersão é compensada pela realidade, mais profunda, de

semelhanças de cultura entre as várias populações dispersas, mas não

violentamente contraditórias ou desiguais” (Freyre, 2010b:139)44.

Essa sensação de déjà vu é explicada por Freyre através das trocas e

intercâmbio de valores entre Brasil e Oriente através de Goa, ou seja, estando o

litoral brasileiro “desde o século XVI orientalizado de tal modo no seu aspecto de

terra tropical a ponto do brasileiro descer hoje na Índia sob forte impressão de déjà

vu” (Freyre, 2010a:322)45. É através de sua experiência pessoal narrada nos dois

livros que resultaram de sua viagem, que podemos compreender o modo como

43

Esta conferência está reproduzida em Um brasileiro em terras portuguesas (2010b). 44

E um dos intelectuais cujos estudos apontavam neste sentido era o do próprio Orlando Ribeiro, que Freyre considera ter realizado uma pesquisa importantíssima sobre a introdução do milho americano em Portugal (idem). 45

A reiteração, o re-conhecimento, talvez incorpore de um modo mais acabado o que Herzfeld (1997) compreendeu como sendo a força retórica da similitude: um passado que se faz presente sem quaisquer mediações, que salta aos olhos com uma força de evidência que busca silenciar outras vinculações de sentido.

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Freyre compreende a identidade profunda entre um conjunto culturalmente disperso

e diverso que seria a marca da expansão portuguesa nos trópicos. Acredito que a

defesa de que a viagem apenas confirmou uma intuição adivinhada por antecipação

é uma defesa ao próprio método expressionista que tenho aqui discutido. O tema da

identidade profunda que sentiu em sua viagem ao Oriente aparece já em seu

primeiro contato com a Índia, sendo tema de sua palestra proferida na “Real

Sociedade Asiática de Bombaim”, também em novembro de 195146.

É relevante notar que é justamente por ser da América tropical que Freyre diz

sentir afinidades com o Oriente. É neste sentido que proponho esta leitura das

reações que o autor teve em contato com as colônias portuguesas na África e na

Índia: o re-conhecimento (produto da sensação de déjà vu, que se afasta assim de

um suposto primeiro conhecimento), antes de afirmar a alteridade em relação a

novos contextos etnográficos, implica em um saber configurado pela busca de

semelhanças. Assim,

semelhanças despertaram em mim afinidades de espírito, de gosto, de cultura, que eu não sentiria, estou certo, com populações orientais, ou em face de paisagens do Oriente, se fosse um simples ou um puro europeu ou anglo-americano. Sinal de que são afinidades profundas e não apenas de superfície, as que prendem um homem da América tropical, latina e ameríndia, ao Egito, à Arábia, à Índia (Freyre, 2010b:153).

O subtítulo sugestivo do livro o define como uma busca pelas constantes

portuguesas de caráter e ação. Em Goa, estas constantes foram encontradas em

abundância e são tematizadas ao longo de todo o livro. Assim, Freyre afirma que

continuava “impressionado com as semelhanças da Índia Portuguesa com o Brasil.

Ou do Brasil com a Índia Portuguesa, desde que, daqui, assimilou o português muito

valor oriental, hoje dissolvido no complexo brasileiro de cultura” (Freyre, 2010a:302

[destaque meu])47. Vemos então uma relação íntima entre a sua impressão de

semelhança com o fato de que antes de conhecer Goa, Freyre já teria tido contato

com valores orientais, formativos do complexo cultural em que nascera. Antes

mesmo de chegar à Índia, diz que “é nesses contatos que o Brasil parece ter tido,

como nenhum outro país da América, com o Oriente é que principalmente venho

46

Esta palestra é reproduzida em Um brasileiro em terras portuguesas (2010b). 47

Freyre afirma que “um exotismo ou outro, é claro, dá cores orientais à paisagem e ao aspecto da população” (Freyre, 2010a: 299).

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pensando durante a prineira hora do voo por avião da TWA, rumo da Índia” (Freyre,

2010a:296). E quando chega em Goa, afirma que haveria

todo um estudo sistemático a fazer-se no sentido de uma captura desses traços lusitanos no Oriente. Captura não por países, mas por áreas [...] Uma penetração que outras presenças europeias até hoje não alcançaram numa parte do mundo em que tais influências têm que ser consideradas principalmente como de culturas sobre culturas e não como de nações sobre nações, sabido que, para o Oriente como para a África, ainda hoje o nacionalismo é de significação ou ação secundária em relação com a significação e a ação de culturas em contato (Freyre, 2010a:298).

Quando busca encontrar a profundidade da influência lusitana no Oriente,

afirma que essas regiões estariam “há séculos lusitanizadas em intimidades e não

apenas em acessórios técnicos de sua cultura – em Goa, isto é, na Goa mais antiga,

como província portuguesa, toma um relevo espantoso” (Freyre, 2010a:299). Vemos

aqui que Freyre entende por Goa o que seria no período caracterizado como as

Velhas Conquistas, sendo que concorda com André Siegfried (1875 – 1959) que é

menos com Portugal e mais com o Brasil que ela se parece48.

Sei que não é fácil essa espécie de home-rule numa comunidade como a Índia portuguesa, dividida, ainda hoje, por sobrevivências de ódio teológico [...] a que se junta, desgraçadamente, na própria Índia portuguesa, sovrevivências do velho espírito indiano de casta (Freyre, 2010a:303).

Ainda sobre as castas diz que “venho observando com espanto, na Índia

portuguesa, que o espírito de casta sobrevive dentro do próprio cristianismo”

(Freyre, 2010a:304). É justamente esta sobrevivência que faz com que Freyre

pondere em sua defesa do home-rule, na medida em que as minorias não-hindus

poderiam permanecer abandonadas “a uma sobrevivência de casta, prejudicial ao

todo” (Freyre, 2010a:304). Assim, “seria um prejuízo para o processo de

democratização social” (Freyre, 2010a:304), que é muito mais profundo em Goa que

na Índia britânica, onde os ritos democráticos seriam apenas “ingresias de superfície

em contraste com os cortes em profundidade que vem sofrendo o castismo na Índia

portuguesa” (Freyre, 2010a:304). Freyre aconselha, deste modo, que os

48

André Siegfried foi também um dos autores citados por Orlando Ribeiro, como veremos no terceiro capítulo.

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portugueses deixem de imitar os ritos sociais dos ingleses e belgas, na medida em

que esta imitação colocaria em perigo as formas de convívio entre subgrupos

antagônicos, porém inseridos em um complexo harmônico.

Após ponderar sobre estes riscos, Freyre conclui defendendo a maior

autonomia de Goa: “creio ter chegado para a Índia portuguesa o momento de ser

menos colonial e mais autônoma, mais indiana, mais paranacional até, no seu

governo [...] Não me parece que de uma maior participaçãodos luso-indianos no

governo da Índia portuguesa resultasse a separação da Índia, de Portugal” (Freyre,

2010a:304). Afinal, sobre a população de Goa, Freyre busca apartar o exemplo da

Índia Portuguesa com o da Índia Britânica, dizendo que em Goa, os portugueses

lidaram com uma

População que os portugueses conheceram em fase de cultura pré-nacional: adaptando-se às formas nacionais de cultura dos portugueses, os goeses não substituíram um nacionalismo asiático por outro, europeu, que lhes fosse imposto manu militari pelos invasores. Foi o primeiro nacionalismo que conheceram e a que foram admitidos, não como indianos, seus vizinhos, no nacionalismo inglês, como inferiores tolerados por superiores, mas em termos de cordial igualdade (Freyre, 2010a:313).

Ao visitar o Convento de Santa Mônica, que no período abrigava tropas

moçambicanas, Freyre sugere que “nesse particular o português deve voltar a ser

português. Admitir mouros, negros, indianos, chineses que sejam bons e provados

portugueses aos cargos de máxima responsabilidade político e militar” (Freyre,

2010a:333).

a presença desses pretos – diga-se de passagem – irrita os luso-indianos. Pois saliente-se – ainda de passagem – que os indianos em geral – não os da Índia portuguesa, em particular – são, à sua maneira, arianistas: consideram os negros com olhos de desdém e de superioridade (Freyre, 2010a:332).

Neste sentido, o que Freyre argumenta ao longo dessa obra é que a

comunidade lusotropical seria uma “comunidade de sentimento e cultura”, sendo que

apenas essa disposição que poderia fundamentar a edificação de uma comunidade

transnacional. Os europeus puros e anglo-americanos não teriam condições, como

mostra o excerto acima citado, de sentirem as afinidades que o autor destaca. Isto

porque segundo ele a Índia era “há séculos lusitanizada em intimidades e não

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apenas em acessórios técnicos de sua cultura” (Freyre, 2010a:299). A este

colonialismo meramente técnico se resignavam agora os europeus e anglo

americanos diante das ressurgências culturais dos “povos de cor”, tema a que

retornarei no final deste capítulo. Por sua vez, os portugueses valorizaram a

interpenetração dos valores europeus e nativos, sendo que

Com toda essa interpenetração de valores não só de cultura como de paisagem – aqueles que afetam o próprio tempo “imutável” até parecer que o cajueiro sempre floresceu na Índia e a mangueira sempre foi árvore brasileira – era natural que acontecesse o que agora me acontece: a sensação de, estando na Índia portuguesa, estar um tanto no Brasil. (G.Freyre, 2010a:300)

Argumenta assim Gilberto Freyre que “esta viagem, apenas, confirmou em mim a

intuição do que agora, mais do que nunca, me parece uma clara realidade” (Freyre,

2010b: 32). Esta intuição é esboçada na conferência “Uma cultura moderna: a

lusotropical”, que o autor proferiu no Instituto Vasco da Gama, em novembro de

195149. Nesta conferência Freyre define o objetivo da lusotropicologia, que segundo

ele deve se dedicar ao “conjunto em que a aparência ou realidade de dispersão é

compensada pela realidade, mais profunda, de semelhanças de cultura entre as

várias populações dispersas, mas não violentamente contraditórias ou desiguais”

(Freyre, 2010a:139). É através de sua experiência pessoal narrada nos dois livros

que resultaram de sua viagem, que podemos compreender o modo como Freyre

compreende a identidade profunda entre um conjunto culturalmente disperso e

diverso que seria a marca da expansão portuguesa nos trópicos.

Tanto a questão da tradição, do “tempo imutável” quanto a do encontro de

afinidades profundas ao longo de sua jornada, vemos que Freyre promove uma

intercambialidade entre a imagem das constantes portuguesas de caráter e ação

com a realidade que então experimentava. Isto aproxima nossa abordagem daquela

trabalhada por Michael Herzfeld, que define o essencialismo nacional enquanto

retórica, visto que “não é meramente a atribuição de características inatas, inclusive

uma mentalidade nacional específica, mas a fusão de imagens com a realidade

experimentada” (Herzfeld, 1997:158). É a partir da criação de uma afinidade retórica

que, segundo Herzfeld, “consigo sempre distinguir os meus companheiros pela

maneira como andam, falam, mexem, etc” (Herzfeld, 1997:158). Assim, não apenas 49

Ref. Nota 48.

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vemos essa relação de proximidade entre o metafórico e o literal, como Michael

Herzfeld argumenta, mas segundo ele, quanto mais a base metafórica da nação se

perde de vista e ganha protagonismo o apelo ao literal, mais ele se “essencializa

como realidade presente e imutável na vida das pessoas” (Herzfeld, 1997:165).

Acredito ser suficiente para afirmar que a viagem de Freyre se apresenta

como espécie de aventura doméstica, em que o brasileiro que chega a Goa se sente

um tanto em casa. Neste alargamento da domesticidade, Michael Herzfeld identifica

a projeção de metáforas de parentesco para a escala maior da nação, que não se

opõe portanto à esfera da intimidade, mas seria um “alargamento metonímico, para

ampliar a útil representação de Anderson, da imaginação agnática” (Herzfeld,

1997:176). É neste sentido que a intimidade cultural se dá para além das relações

face a face, permitindo um alargamento da identidade. Freyre diz que “uma das mais

agradáveis impressões que venho experimentando na Índia Portuguesa é a de

sentir-me tão próximo dessa gente como se, vindo de Bombaim, tivesse

desembarcado, não em Goa, mas no Maranhão” (Freyre, 2010a: 324). Freyre

continua, dizendo que sua sensação é de que

o ar que respiro é o mesmo. As cores que me fazem festa aos olhos, as mesmas cores brasileiras. O mesmo, o olhar das pessoas. O mesmo, o seu sorriso que não tem a exuberância do africano nem as reservas do europeu. Também a mesma fala (Freyre, 2010b:129)50.

Acredito então que só podemos compreender a antecipação das percepções

encontradas em Goa e nas demais colônias portuguesas se tivermos em conta que

os traços que sustentaram este déjà vu seriam aqueles que Freyre julgava serem os

mais expressivos de sua identidade. Sendo um alongamento do autor no mundo que

o rodeia, a perspectiva expressionista guarda profunda relação com a história de

vida do próprio autor. As referências à sua infância, ou às paisagens em que se

habituara ainda nos seus primeiros anos de vida são recorrentes ao longo da obra,

sendo que a viagem se configura como uma busca identitária pessoal, encarnação

da busca de Portugal por suas origens. Segundo Herzfeld, podemos ler este evento

como “uma tentativa de projectar a experiência social familiar em contextos

desconhecidos e de amiúde potencialmente ameaçadores” (Herzfeld, 1997:22).

50

Quanto visita a Escola Médica de Goa, Freyre diz que surpreendeu “fisionomias, olhos, sorrisos iguais aos dos estudantes brasileiros” (Freyre, 2010a:314).

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60

Capítulo 2

Goa sempre foi parte da Índia: Telo de Mascarenhas e o nacionalismo indiano em Goa

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Introdução

Este capítulo está dividido em duas partes, referentes a dois momentos

relevantes na trajetória de Telo de Mascarenhas (1889 – 1979). Na primeira parte,

apresentarei o período em que o autor viveu em Portugal, onde estudou em Lisboa e

Coimbra. Será importante aí considerar que Telo de Mascarenhas conviveu na

metrópole com outros estudantes goeses, com os quais organizou a publicação do

jornal Índia Nova e fundou o Centro Nacionalista Hindu. Ainda, quando estudou em

Coimbra Telo de Mascarenhas foi aluno de António de Oliveira Salazar, que era na

época professor da Universidade. A aproximação de Telo de Mascarenhas com

Salazar se sustenta a partir de algumas obras que o autor publicou com a finalidade

de felicitar seu antigo professor. Se o debate sobre o nacionalismo pode apresentar

rígidas fronteiras entre colonizadores e colonizados, o exemplo de Telo de

Mascarenhas sugere que a opção pelo nacionalismo não se deu de forma imediata.

Ainda, a temática do ressurgimento nacional como forma de enfrentar a decadência

e a barbárie é temática central dos trabalhos do autor.

Na segunda parte do capítulo, trabalharei com o retorno e permanência de

Telo de Mascarenhas na Índia, onde, após uma rápida passagem por Goa em 1948,

o autor passa a residir em exílio na cidade de Bombaim, entrando em contato com a

expressiva comunidade goesa da cidade. Boa parte do material aqui trabalhado foi

coletado no periódico Ressurge, Gôa!51 , que Telo de Mascarenhas publica no início

da década de 1950, com a contribuição de diversos autores. Com a leitura deste

periódico, pretendo situar Telo de Mascarenhas nos grandes debates que marcavam

o período, tendo por referência, principalmente, a temática que apresenta desde o

título do periódico. O ressurgimento tomava então por referência uma Goa

tradicionalmente indiana, que deveria então se reencontrar com suas raízes e

abdicar de toda cultura que servisse para fins coloniais. Isto não significava,

contudo, abandonar o catolicismo e sequer valores cuja referência fossem os

valores culturais de Portugal, na medida em que, desde que não fossem

instrumentalizados pelo colonialismo, seriam abarcados pelo espírito universalista da

tradição hindu.

51

Este periódico será referido como Ressurge ao longo desta dissertação.

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62

Telo de Mascarenhas nasceu na vila de Velsao, no distrito de Mormugão,

cidade portuária de Goa, em 23 de março de 1889. Era filho único de João Menino

Arnaldo Mascarenhas, proprietário de terras, e Maria Leocadia Calorina Barreto. O

pai faleceu quando tinha apenas dois anos de idade, em 1891, sendo que seus dois

tios paternos exerceram grande influência sobre si. Em suas Memórias (1976), bem

como na biografia escrita por Shashikar Kelekar (1984:8), as figuras de Basílio

Mascarenhas e Bernard Mascarenhas ganham relevo52. Iniciarei este capítulo

apontando as palavras de admiração que Telo de Mascarenhas nutria por seu tio

Basílio Mascarenhas. Quanto a Bernard, é importante ressaltar que foi ele quem

guiou os estudos do sobrinho, desde sua matrícula no Liceu de Pangim, onde

Kelekar descreve que o ambiente era o das promessas de liberdade da República

em Portugal, onde “aos goeses era permitido um grau de liberdade que não haviam

sentido antes de 1910 e que não sentiriam depois da ditadura militar de 1926”

(Kelekar, 1984:9).

Neste ambiente, Telo de Mascarenhas organiza com seus colegas do Liceu

uma revista literária chamada Revista Academica, e contribui com publicações nos

jornais O Heraldo e A Província, dois dos principais jornais em circulação em Goa

neste período53. Assim, vemos que o envolvimento de Telo de Mascarenhas com o

mundo literário foi bastante precoce e, após terminar seu curso no Liceu de Pangim,

os tios organizaram sua ida a Lisboa para continuar os estudos no ensino superior.

Na viagem que o levou a Portugal, Telo de Mascarenhas teve de permanecer por

seis meses em Moçambique há espera de um navio que o levasse a Lisboa

(Kelekar, 1984:12). Durante este período, esteve com seu tio Basílio, de quem levou

para Lisboa memórias e discursos que foram posteriormente publicados. A

juventude de Telo de Mascarenhas em Portugal foi marcada por seu contato com

outros estudantes goeses, donde se destaca a publicação do jornal Índia Nova e a

fundação do Centro Nacionalista Hindu. O jornal e o Centro tinham, ambos, o

propósito de divulgar os valores da civilização indiana para o público português.

52

Basílio Mascarenhas era padre em Lourenço Marques, como mostrarei adiante em detalhes. Bernard Mascarenhas era músico e vivia em Burma. Apesar da distância, teve um papel fundamental no incentivo para que Telo de Mascarenhas continuasse seus estudos em Portugal (Mascarenhas, 1976; Kelekar, 1984:10). 53

Não tomei conhecimento da preservação de qualquer das publicações da adolescência de Telo de Mascarenhas.

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63

1. Descobrindo a Índia em Portugal

Em Maio de 1937, Telo de Mascarenhas prefacia um livro cujo conteúdo era

um discurso proferido por seu tio paterno, o padre Basilio de Mascarenhas, antigo

Missionário e Secretário da Prelazia e Prior da Sé de Moçambique54. O autor do

discurso era nascido em Goa, onde foi ordenado no Seminário de Rachol e

nomeado Chantre da Sé de Velha Goa, de onde partiu para Moçambique55. O livro,

com o título de Rosa Mística (1937), foi publicado pelas Edições Oriente, em Lisboa.

Telo de Mascarenhas diz, no prefácio, que trouxe o manuscrito para Portugal

“quando a longos quinze anos deixei a Índia, meu país natal” (Mascarenhas,

1937:6). No prefácio que escreve, anuncia que o discurso do tio havia sido proferido

havia vinte anos, na Igreja Matriz de Goa, e que

tem máxima e palpitante actualidade no momento presente em que uma vaga de desalento e barbárie perpassa pela Europa, e Portugal, sob a égide do Estado Novo e do seu excelso arquitecto – Salazar, ressurge como Estado Cristão e Tradicionalista, ocupando no concerto internacional o merecido lugar de respeito e prestígio que lhe compete (Mascarenhas, 1937:3 [meus destaques])

O tema da decadência e do ressurgimento nacional é central à leitura que

aqui proponho, e aparece ao longo de toda a obra de Telo de Mascarenhas56. No

ano seguinte à publicação de Rosa Mística (1937), Telo de Mascarenhas publica um

livro dedicado inteiramente a felicitar o Estado Novo e Oliveira Salazar, novamente

enfatizando que o “excelso arquiteto” do Estado Novo reunia as qualidades

necessárias ao contexto de decadência pelo qual a Europa e Portugal passavam. No

livro Sob o Signo da Revolução Nacional (1938), Telo de Mascarenhas enaltece

assim seu antigo Professor na Universidade de Coimbra57 nos anos de 1927 e 1928,

54

Ainda sobre a passagem do tio por Moçambique, Telo de Mascarenhas diz que “por lá andou durante três longas décadas, evangelizando e espalhando a semente da doutrina de Cristo feita de paz e concórdia, de amor e de perdão” (Mascarenhas, 1937). 55

Chantre é um título eclesiástico que designa o mestre do coro ou cantor dos salmos. Telo de Mascarenhas menciona a visita que fez ao tio quando, em sua ida a Lisboa em outubro de 1921, seu navio fez escala em Moçambique por alguns meses (Mascarenhas,1976:52). 56

Apesar de não mencionar explicitamente, acredito que a temática da decadência e da barbárie europeias faz referência, em Telo de Mascarenhas, ao período posterior à I Guerra Mundial e, mais especificamente ao caso português, à crise republicana. 57

A dedicatória deste livro é ao Dr. Manuel Rodrigues Júnior (1889 – 1946), “grande mestre, grande estadista e estrenuo paladino do Estado Novo”, que ocupou vários ministérios durante o

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portanto após a “Revolução” de 1926. O livro traz em seu frontispício uma imagem

do perfil de Salazar, ao lado da cruz flordelisada verde da Ordem de Avis, emblema

da “Legião Portuguesa” (LP)58, organização miliciana que assumia o objetivo

defender a Nação da ameaça comunista e anarquista59. A epígrafe ao livro é o lema

“aqui não reside o temôr”, que o próprio autor reconhece em suas Memórias (1976)

ser o lema da LP. Telo de Mascarenhas menciona que, durante seus anos de

estudante, havia em Coimbra um quartel distrital da LP, que segundo sua descrição

seria um grupo paramilitar formado por Salazar. A referência parece ser um tanto

anacrônica, visto a LP ter sido criada oficialmente apenas em 1936, sendo contudo

necessário investigar se já existia antes deste reconhecimento60.

Os temas centrais à defesa nacional engendrados pela LP aparecem em

grande medida na obra Sob o Signo da Revolução Nacional (1938), onde Telo de

Mascarenhas se dirige aos Legionários61 para dizer que dentre as causas da

decadência em voga estaria a “onda vermelha de barbárie e anarquia que ameaça

avassalar a Europa e o Mundo” (Mascarenhas, 1938: 66), sendo que no Estado

Novo existiria a “cooperação entre os três factores da riqueza: - a Propriedade, o

Capital e o Trabalho” (Mascarenhas, 1938:69). As palavras e promessas vazias

aparecem como o contraditório mais marcante aos discursos claros de Salazar e sua

orientação prática ao progresso, colocando-se assim contrário ao “canto de sereia

da Terceira Internacional, cantos enganosos que embalam mas que matam, cantos

que prometem o paraíso bolchevista afogado em sangue” (Mascarenhas, 1938: 54).

O discurso de Salazar era assim enaltecido por Telo de Mascarenhas, que

afirma que, a despeito dos cansativos capítulos do Orçamento e do balanço do

Banco de Portugal, as preleções do Professor eram para ele “puro deleite espiritual”.

Telo de Mascarenhas, que futuramente publicaria em seu periódico nacionalista

críticas aos pronunciamentos de Salazar, dizia então que os discursos do professor,

que eram “concisos, lapidares e breves retinem como taças de oiro damasquinado e

Estado Novo. O termo “Revolução Nacional” é comumente usado por apoiadores do Estado Novo, se referindo à data de 28 de Maio de 1926, quando teve fim a Primeira República em Portugal. 58

A partir daqui, farei referência à “Legião Portuguesa” através da sigla LP. 59

A LP foi fundada em 1936, tendo existido até o fim do Estado Novo em 1974. E tinha como grito de guerra o mote de enaltecimento a Salazar: “Legionários, quem vive? / Portugal! Portugal! Portugal! / Legionários, quem manda?/ Salazar! Salazar! Salazar!”. Este grito de guerra é reproduzido por Telo de Mascarenhas (1938:72). 60

O reconhecimento oficial foi instituído através do “Diário do Governo” de 30 de Setembro de 1936: https://dre.pt/application/dir/pdfgratis/1936/09/23000.pdf [acessado em 18 de novembro de 2016] 61

Os membros da (LP) eram conhecidos como “Legionários”.

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são belos como poemas onde florissem rosas” (Mascarenhas, 1937: 18). No livro, o

autor enaltece a última lição do Professor em 1928, em uma excursão à cidade de

Évora que é registrada em foto no início do livro, antes de Salazar para Lisboa

assumir a pasta das Finanças.

Apesar de todos esses indícios de sua admiração por Salazar, nenhum

envolvimento com o Estado Novo ou com a LP aparece descrito no livro que Telo de

Mascarenhas publicou com suas Memórias (1976), sendo que ao período de

estudos em Coimbra ele apenas menciona seu envolvimento político com outros

estudantes goeses, como veremos adiante. Contudo, a obra posterior de Telo de

Mascarenhas, mormente aquela publicada na década de 1930, revela aspectos de

sua orientação política no período, e sugerem que a relação entre seu interesse pela

Índia não deve ser tida como incompatível com sua postura favorável ao Estado

Novo. Segundo uma palestra proferida nos paços do concelho da Vila do Bispo em

27 de maio de 1934, o Estado Novo representava para ele “a fé no ressurgimento

nacional” (Mascarenhas, 1937:26). No dia anterior à comemoração do aniversário da

“Revolução” de 28 de Maio de 1926, Telo de Mascarenhas não deixa de mencionar

que

foi em 28 de Maio que a espada refulgente da glória, que lampejou vitoriosa nos campos da Flandres e da África, do Marechal Gomes da Costa, realizou a obra da reconquista. Devido a intervenção enérgica do exército foi salvo o Paiz que ia rolando para o abismo. (Mascarenhas, 1937: 33 [meus destaques])

A menção em defesa a Salazar e aos heróis da nação portuguesa se faz,

assim, no contexto mais amplo da decadência de Portugal, que “ia rolando para o

abismo” (idem), seguindo, assim, a tendência mais geral que indicava que “uma

vaga de desalento e barbárie perpassa pela Europa” (ibidem, p.3). Neste livro, Telo

de Mascarenhas reproduz um discurso que proferiu em 27 de Maio de 1934, sobre o

significado do Estado Novo, se identificando como “convicto e leal servidor do

Estado Novo” (Mascarenhas, 1937:26)62. Temos, todavia, poucos elementos para

compreender se no período de estudos em Coimbra Telo Mascarenhas de fato

apoiou o processo em curso com a institucionalização do Estado Novo, ou se a

62

O discurso foi proferido em Vila do Bispo, Algarve, quando Telo de Mascarenhas cumpria ali funções de advogado.

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admiração pelo Professor foi relembrada no período posterior como forma de

estabelecer um vínculo pessoal àquele que era a figura central ao novo regime.

Antes de abordarmos o envolvimento de Telo de Mascarenhas na imprensa

acadêmica em Coimbra, é preciso destacar que suas publicações aqui

mencionadas, sobretudo Sob o Signo da Revolução Nacional (1938), foi publicada

no mesmo período que outras obras, destinadas a compreender aquele que seria,

segundo afirma em Rosa Mística (1937), o seu país natal. Afinal, desde que chegou

a Portugal em 1921, Telo de Mascarenhas associou-se a outros estudantes goeses

na Metrópole, que se dedicavam a ler com entusiasmo tudo o que encontravam

sobre a Índia, algo que alegou que não podiam fazer em Goa, tanto pela falta de

documentos quanto pela proibição que lhes era imposta por razões políticas

(Mascarenhas, 1976).

Antes da publicação das duas obras acima citadas, nosso autor publicou, em

1935, Cantares D‟Amor, conjunto de poemas que tomam as belezas da tradição e

da paisagem indianas como tema. É aí tematizada “a Índia milenária, L‟Inde sans les

anglais, como viu Pierre Loti” (Mascarenhas,1935: s/p). No mesmo sentido, Telo de

Mascarenhas publica Kailâsha: contos e lendas do Hindustão (1937), no mesmo ano

de Rosa Mística, acima mencionado. Em Kailâsha, o autor apresenta um conjunto

de poemas e contos, repletos de imagens que remontavam ao ambiente, geografia e

cultura indianas. Neste livro encontramos temáticas que se tornaram clássicas nos

estudos sobre o orientalismo, como as bailadeiras, a Índia como associada ao

feminino e a pureza da religiosidade indiana63. Em 1943, publica A mulher Hindu, em

que exorta a feminilidade e os valores atribuídos à mulher no hinduísmo, em um

conjunto de ensaios que são publicados “no intuito de difundir o património espiritual

da Índia” (Mascarenhas, 1943: 12).

Assim, por mais que nos faltem elementos para compreender detalhes sobre

o envolvimento político de Telo de Mascarenhas durante o período de quase três

décadas que permaneceu em Portugal, temos como uma constante de sua presença

o interesse em intervir na imprensa local no sentido de divulgar o que considerava

serem “as maravilhas da arte e da literatura do meu distante Pais” (Mascarenhas,

1943: 12). E nosso autor publica ainda uma tradução da obra A casa e o Mundo

63

As bailadeiras compunham uma casta de dançarinas rituais dos templos hindus, que, como mostra Rosa Maria Perez (2010), foram comumente associadas no imaginário português como sendo prostitutas.

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(1941) de Rabindranath Tagore e da História da Minha Vida, de Mahatma Gandhi

(1942). Ambos os autores são tidos em grande estima por Telo de Mascarenhas,

afinal, “se Mahatma Gandhi, o Apóstolo máximo, é a fôrça redentora e espiritual da

Índia, Tagore, o Poeta Santo, foi a encarnação védica e mística da Raça”

(Mascarenhas, 1943: 14). É justamente nas referências que estabelece

principalmente a estes dois indianos que eram amplamente conhecidos na Europa,

que podemos compreender o que Telo de Mascarenhas considerava ser a tarefa

política que, neste período de barbárie, deveria ser a lição indiana.

As palavras que dirige a Gandhi e Tagore apontam para o sentido do papel a

desempenhar pela Índia ao futuro da humanidade. No prefácio à sua tradução de

Tagore, Telo de Mascarenhas diz que “o Poeta realizou uma obra não destituída de

fins políticos – a aproximação do Oriente e do Ocidente” (Mascarenhas, 1943:12),

sendo este o verdadeiro universalismo que através da Universidade de

Santiniketan64 atestaria o “laço espiritual que liga os dois Mundos – a Europa e a

Ásia – separadas pelos preconceitos de raças e de côr” (Mascarenhas, 1943:12).

Importante ressaltar que no ano de 1921, quando Telo de Mascarenhas chegava a

Lisboa, o goês António Aleixo Santana Rodrigues, com quem veio a estabelecer

contatos através do Índia Nova, concedeu algumas entrevistas à imprensa lisboeta,

discursando sobre a importância do nacionalismo indiano e contrapondo-se aos

mitos orientalistas, destacando “o papel dos intelectuais indianos na gestação de um

novo humanismo que se desenhava a Oriente e Ocidente” (Lobo, 2010: 272).

Ao que tudo indica, logo que chegou a Portugal, Telo de Mascarenhas se

envolveu com outros intelectuais goeses na divulgação deste projeto. Em suas

Memórias (1976), descreve como a leitura de indologistas como William Jones, Max

Müller, Gustave Le Bon, Silvain Levy e outros, fez crescer nele o sentimento

nacionalista65. O reecontro da indianidade se fez assim primeiramente através da

literatura e outras representações artísticas, sendo por essa via que Telo de

64

A Universidade de Santiniketan havia sido fundada pelo poeta Rabindranath Tagore, em 1921, ou seja, depois do autor receber o Prêmio Nobel (1913). A Universidade se tornou um centro a partir do qual Tagore defendeu suas concepções pedagógicas. 65

William Jones (1746-1794) foi um orientalista, filólogo e jurista britânico, famoso por seu estudo sobre as origens comuns entre as línguas indo-europeias; Friedrich Max Müller (1823-1900) foi um linguista alemão, dedicado aos estudos referentes à Índia; Gustave Le Bom (1841-1931) foi um sociólogo francês que dedicou parte de sua carreira ao estudo das civilizações indianas; Silvain Levy (1863-1935) foi um indólogo francês dedicado ao estudo do hinduísmo. Por estas referências vemos a amplitude dos estudos orientalistas na Europa que chegaram ao conhecimento de Telo de Mascarenhas e seus colegas goeses em Portugal.

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Mascarenhas passou a conhecer a Índia, descrita como seu país mesmo em seus

trabalhos de exaltação salazarista66. É possível que esta tentativa de valorizar a

dupla herança civilizacional dos goeses permitiu a Telo de Mascarenhas defender

ambos os nacionalismos que, do ponto de vista formal, acreditavam na ressurgência

de valores de um humanismo que faria frente à conjuntura decadente do período67.

O tema da religião é fundamental para a leitura que empreendemos da obra

de Telo de Mascarenhas, apontando inclusive para o que compreendia, nos anos

em que vivia em Portugal, serem as virtudes tanto do nacionalismo indiano quanto

do português. A orientação cristã do Estado Novo seria, segundo o autor, os

alicerces do regime, permitindo a este fazer “ressurgir a Nação dos caos e do

desbarato” (Mascarenhas, 1937:59)68. O tema da irreligiosidade aparece aqui,

sugestivamente, aliada a um argumento em torno do imperialismo europeu, dizendo

que

A irreligiosidade é a causa de todas as ambições, de todos os imperialismos egoistas e odiosos que, nos nossos dias, na Europa, na Ásia e na África, esmagam povos indefesos e retalham nações (Mascarenhas, 1937: 60).

Telo de Mascarenhas dá indícios de que, em sua perspectiva, o colonialismo

português não padecia dos males desta irreligiosidade, sendo suas ambições

descritas assim como legítimas. Neste sentido, em um discurso aos legionários da

LP, diz que “o nosso nacionalismo não é exclusivista, exacerbado e delirante, mas

calmo, ponderado e justo” (Mascarenhas, 1937:68). Sobre a importância da

manutenção das colônias, diz que “não pretendemos retalhar novos impérios mas

conservar à custa da própria vida se necessário fôr, o que hoje constitui patrimônio

sagrado, espiritual, moral e material da Nação” (Mascarenhas, 1937:68). A

aproximação de Telo de Mascarenhas com intelectuais indianos anti-imperialistas

como Gandhi e Tagore pode sugerir uma aproximação entre o que entendia ser a

defesa nacional, tanto em Portugal como na Índia, ou seja, a retomada de valores

66

A expressão “Reencontro da indianidade” é apresentada por Sandra Lobo (2010). 67

Esta hipótese não pretende se universalizar para os demais goeses que, neste período, se dedicavam a publicar na imprensa metropolitana. Muitos, ao contrário de Telo de Mascarenhas neste período (1927-1928), nutriam mais simpatias com a República do que com o Estado Novo (Lobo, 2010). 68

Telo de Mascarenhas faz este discurso na ocasião da inauguração dos crucifixos em escolas de ensino primário na Vila de Ourique, em 1934. Encontra-se reproduzido no mesmo livro (Mascarenhas, 1937).

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tradicionais como forma de enfrentar a decadência seria uma postura louvável tanto

em Salazar quanto em Gandhi. Sobre Tagore, Telo de Mascarenhas diz que

se algumas nações da Europa tivessem escutado a sua mensagem de Paz, o mundo não conheceria o cataclismo, o Kali-Yoga, a idade da destruição em que se debate no momento actual (Mascarenhas, 1943: 13)69.

Assim, diante do quadro de destruição que perpassava pela Europa, havia

uma saída civilizacional contida na mensagem humanista e, portanto, universalista,

de Tagore. Justamente por ser assentada em um ideal universal é que poderia

superar a barreira de preconceitos entre Oriente e Ocidente e o lugar de Tagore

também é sugestivo por uma prece sua, reproduzida por Telo de Mascarenhas:

“Nesse Paraíso de Liberdade, Meu Pai,/ Permite que a minha Pátria desperte!”

(Mascarenhas, 1943: 13). A menção ao despertar da pátria aponta para

congruências entre as descrições de Telo de Mascarenhas sobre o nacionalismo

português e o nacionalismo indiano: ambos apontam para uma saída pautada na

tradição, no despertar de valores passados, na relação de equilíbrio entre o

tradicional e o moderno.

De modo análogo, Telo de Mascarenhas mostra como para Gandhi

patriotismo e humanismo se confundem, sendo que sua revolta não seria contra os

ingleses ou o Ocidente, mas sim contra o sistema imperial estabelecido pelos

ingleses na Índia. Por isso mesmo Telo de Mascarenhas lembra que “Mahatma

Gandhi considerou-se, ao princípio, um súbdito leal da Grã-Bretanha e serviu-a com

lealdade durante vinte e nove anos” (Mascarenhas, 1942: 10), se rebelando apenas

“quando se convenceu de que não podia aceitar como bons os métodos da

administração que a Inglaterra empregava na Índia” (Mascarenhas, 1942: 10). A

religiosidade de Gandhi servia assim de motor humano para sua rebeldia diante de

um imperialismo que se enquadrava, segundo descrição de Telo de Mascarenhas,

com os “imperialismos egoistas e odiosos” mencionados acima. Diante destes

imperialismos, Tagore e Gandhi traziam uma mensagem de sacrifício e redenção,

permeada de um misticismo que restaurava a dimensão humana da tradição.

Quando retorna à Índia e publica o Ressurge, Gôa!, Telo de Mascarenhas parece ter

69

Kali-Yoga, ou a Idade do Demônio Kali, faz referência, segundo textos sagrados do hinduísmo como o Mahabarata, à última etapa pela qual o mundo passa, sendo marcada pelo vício e degradação humana.

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se convencido que os métodos imperiais utilizados pelos portugueses não se

distanciavam muito daqueles que legitimaram o nacionalismo de Gandhi.

Um exemplo sugestivo deste interesse de Telo de Mascarenhas pelas

tradições indianas reside em seu encontro com Júlio Dantas, diretor e professor da

Escola de Teatro de Lisboa, bem como um personagem central à vida cultural

lisboeta de então. Foi Júlio Dantas que apresentou a Telo de Mascarenhas o

conteúdo da Clay Cart de Shudraka70, “que ele [Júlio Dantas] havia conhecido

através da tradução do renomado sanscritólogo Silvain Levy” (Mascarenhas, 1976:

58), sendo este um dos primeiros contatos de Telo de Mascarenhas com a literatura

indiana71. A figura de Dantas é central à própria configuração do campo literário

português do início do século XX. Como argumenta Luís Trindade (2008), o grupo

de amigos a que pertencia Júlio Dantas “eram ainda de uma geração de transição

quando o espaço político e o espaço literário estavam apenas no início do processo

que os autonomizaria” (Trindade, 2008: 103). As relações entre literatura e política

aparecem em Telo de Mascarenhas de modo muito sugestivo, principalmente em

suas Memórias, balizadas a todo momento por referências literárias que, para ele,

parecem ter possibilitado o acesso à realidade indiana, que não havia conhecido

mesmo durante sua infância em Goa.

O encontro das influências indianas em Portugal parece ter surpreendido o

autor, o que nos sugere que, se Portugal teve que se instaurar enquanto patrimônio

(Trindade, 2008), parte deste conjunto de valores remetiam à experiência

ultramarina, e poderiam ser observados na própria metrópole. Assim, Telo de

Mascarenhas conta que, com seus amigos goeses, visitou o Palácio de Monsarrate,

e lembra que ele havia sido construído por João de Castro, vice-rei da Índia

Portuguesa:

A entrada do parque era adornada com um arco de ferro em estilo oriental trazido da Índia. No palácio havia diversas antiguidades Indianas raras, e em um nicho sobre a lareira, nós contemplamos com esplendor e admiração uma gigante estátua de Ganesh em mármore branco (Mascarenhas, 1976: 64).

70

A referência aqui é a Litlle Clay Cart assinada pelo dramaturgo Shudraka, que se tornou referência para o conhecimento da dramaturgia indiana. A escrita da obra é estimada em 200 a.C.. 71

Telo de Mascarenhas (1976) lembra que, quando era estudante em Coimbra, em 1928, assistiu também a um recital em que foram lidos por Berta Singerman alguns versos de The Crescent Moon (1913) de Rabindranath Tagore.

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71

É em frente à esta estátua de Ganesh que Telo de Mascarenhas e seus dois

amigos posaram para uma foto que, no entanto, se perdeu, lamenta o autor em suas

Memórias (1976), dizendo que ela seria de grande interesse para uma história do

nacionalismo em Goa. A defesa do patrimônio nacional não deve ser secundarizada

na análise que aqui apresento, visto ser de grande importância ao nacionalismo

português do período. A ideia de um patrimônio, externo, material e observável, era

uma alternativa de sentido aos que criticavam os excessos da retórica parlamentar,

na medida em que buscavam impor uma naturalidade e uma objetividade à própria

nação (Trindade, 2008). Assim, é de grande relevância na trajetória de Telo de

Mascarenhas que ele tenha encontrado em Portugal tantas referências à civilização

indiana, tanto do ponto de vista literário quanto da cultura material.

É neste sentido que Telo de Mascarenhas, quando parte para Coimbra após o

28 de maio de 1926 72, se decepciona com a cidade, visto que “Coimbra

decididamente não era o que costumava ser nos tempos de Eça e Vicente Arnoso”

(Mascarenhas, 1976:70)73. Esta decepção é sugestiva da abordagem aqui proposta,

visto que as expectativas do autor se construíam em torno da representação literária

do real. A realidade indiana também era assim acessível através da literatura, e

seria através da intervenção no campo literário que se promoveria a cultura indiana

na Metrópole. É neste contexto que propôs a amigos a fundação de um períodico, o

Índia Nova – Jornal de Expansão da Cultura Indiana, que acabou por ser lançado

em 7 de Maio de 1928, em Coimbra, dirigido por Adeodato Barreto, José Teles e

Telo de Mascarenhas74. Relembro que Telo de Mascarenhas iniciou seus estudos

em Coimbra em 1927, após um período vinculado ao curso de Direito da

Universidade de Lisboa75. Em suas Memórias (1976), Telo de Mascarenhas lembra

que, ao contrário do que aconteceu quando se juntou ao Governo, neste período em

que Salazar era professor, ele não temia o nacionalismo goês nem o comunismo,

72

Em 28 de maio de 1926, um levante militar colocou fim ao curto e agitado período republicano em Portugal. Em outras obras, Telo de Mascarenhas faz referência à este acontecimento como sendo a Revolução Nacional, como era costume entre os defensores do Estado Novo. 73

Eça de Queirós (1845-1900) e Vicente Arnoso (1880-1925) são duas importantes referências literárias de Telo de Mascarenhas. O autor faz referência a Eça de Queirós mesmo após seu retorno a Goa na década de 1970, comparando as vilas de Goa às serras descritas por Eça. 74

Outros estudantes goeses tiveram envolvimento com este projeto, dentre os quais Telo de Mascarenhas cita os nomes de Atanasio Rodrigues, Marcos Colaço e Zacarias Antão (Mascarenhas,1976:70). Um breve histórico da trajetória de diversos desses autores pode ser encontrado em Sandra Lobo (2009). 75

Em seu livro de memórias, Telo de Mascarenhas menciona que deixou Lisboa após uma greve universitária que fez os estudantes perderem um ano de estudos, na sequência de fortes protestos que se seguiram à “Revolução” de 1926 (Mascarenhas,1976: 68).

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72

inclusive recomendando leituras de autores reconhecidamente revolucionários,

embora Telo de Mascarenhas não mencione que autores seriam esses.

Findo o ano letivo de 1928, Telo de Mascarenhas retorna para Lisboa,

levando para lá o Índia Nova, junto com seu amigo José Teles76. O periódico, como

mostra Sandra Lobo (2009), foi levado a cabo por estudantes da elite católica goesa

que pertenciam a uma geração marcada pelo ambiente político e cultural da

República. Possivelmente um dos mais importantes elementos deste ambiente era a

noção de que os naturais das colônias teriam espaço mais amplo de atuação no

centro de decisões metropolitano. Eram os mesmos estudantes que haviam formado

o Instituto Indiano na Universidade de Coimbra. A posição de Telo de Mascarenhas

em relação ao ambiente da República parece, contudo, não ser aquela expressa por

seus demais companheiros. Como destaquei acima, o tradicionalismo cristão

defendido por Telo de Mascarenhas se aproximava da perspectiva reacionária citada

por Luís de Menezes Bragança no número inaugural do periódico.

É preciso lembrar que, assumindo o lugar de defesa do Estado Novo, os

termos deste louvor seriam balizados por uma crítica aos males do republicanismo.

E ainda mais, se as causas da barbárie e da decadência descritas podem remeter à

experiência republicana, vemos então que a defesa de Telo de Mascarenhas ao

Estado Novo e a Salazar se sustenta em um argumento central: apenas através do

abandono das palavras e promessas vazias e da retomada das ações práticas é que

seria possível fazer ressurgir a nação. O hino cristão da igualdade seria o alicerce da

orientação humanista desta ação, para que assim não se amesquinhasse em

imperialismos egoístas. É neste sentido que Telo de Mascarenhas sugere que o

colonialismo português, orientado pelo humanismo cristão, se destacaria daquele

que seria alvo do ataque dos nacionalistas indianos como Gandhi. Segundo Luís

Trindade (2008), a crítica à própria política foi uma marca do autoritarismo que

culminou no Estado Novo, sendo o liberalismo e o parlamentarismo os alvos por

excelência ante os quais se buscaria instituir Portugal como patrimônio, um dado

externo à esfera de sua concepção literária.

76

Dentre as razões apontadas para seu retorno, Telo de Mascarenhas menciona a atmosfera fechada e restrita de Coimbra, como por exemplo a da “Associação Católica, com seu outlook reacionário, da qual Salazar e o Cardeal Cerejeira foram os criadores e inspiradores” (Mascarenhas, 1976: 78).

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73

A hora das grandes e maravilhosas promessas que vos faziam em caça do voto, passou. Estamos na época das realizações práticas, sem vãs e enganosas promessas (Mascarenhas, 1937: 29).

Deste modo, e ante as falsas promessas, “o Estado Novo é isto que vós

vêdes [...] as suas estradas, as suas pontes, os seus portos” (Mascarenhas, 1937:

36). E esta realidade passou a representar toda a nação portuguesa e a lhe conferir

a materialidade que almejava o Estado Novo que “será, assim, uma espécie de

redução da realidade a uma parte de tudo o que era Portugal” (Trindade, 2008: 15).

É esta realidade que, apesar de reduzida, foi tomada como sendo a totalidade, que

entendo ser articulado neste contexto como sendo a tradição, aquele conjunto de

elementos compartilhados pelo povo, e que lhe é legítimo defender como seu

patrimônio. Não se trata aqui de se questionar estes elementos materiais, negando-

lhes as vinculações de sentido que lhes foram oficialmente impostas, mas de

compreender em que medida o conjunto de estereótipos em jogo dizem respeito a

uma “questão formal, e não substancial, de se estar preso, enquanto comunidade, a

um conjunto de estereótipos sobre a essência e o destino” (Trindade, 2008: 20). Ou

seja, se o conteúdo material da nação lhe conferia a naturalidade que sua retórica

almejava instituir, os efeitos desta retórica seriam justamente afirmar uma identidade

atemporal e imutável, visto ser a manifestação de uma mesma essência ao longo do

tempo.

É a esta questão formal que compreendo a centralidade das noções de

decadência e ressurgência, que se colocam nos três autores centrais a esta

dissertação, e são uma preocupação ordenadora do pensamento de Telo de

Mascarenhas. Segundo Luís Trindade, uma das especificidades de Salazar foi retirar

sua legitimidade política de seu sucesso acadêmico (Trindade, 2008), ou seja,

justamente do fato de não ser um político no sentido republicano da palavra. E essa

autoridade acadêmica aparece narrada nos trabalhos publicados por Telo de

Mascarenhas, principalmente em dois livros aqui abordados, Rosa Mística (1937) e

Sob o signo da Revolução Nacional (1938). A construção das narrativas presentes

em ambos os trabalhos segue uma lógica parecida, tendo o início marcado por uma

defesa de Salazar, seu antigo professor. Assim, é da proximidade pessoal com

Salazar que Telo de Mascarenhas inicia sua defesa, o que nos obrigou a

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74

compreender como se deram os primeiros anos de sua permanência em Portugal,

da chegada em Lisboa em 1921 até seu último ano em Coimbra, em 1927.

Tomadas de um livro de memórias, publicado no fim de sua vida, estas

imagens contrastam assim com as de feitio mais salazaristas que encontrei nas

obras de Telo de Mascarenhas de meados da década de 1930 e com as quais iniciei

minha abordagem. Desejo me afastar de qualquer perspectiva que aponte para a

contrariedade de ambos os posicionamentos, e minha leitura dos nacionalismos

português e indiano será aqui realizado a partir de sua semelhança formal, em que a

perspectiva da decadência e da fragmentação leva à busca por ressurgências que

visavam restaurar o vínculo a um passado nacional glorioso, seja em Portugal ou em

Goa. Seguindo a proposta de Trindade (2008), busco compreender aqui o estatuto

do campo literário na obra de Telo de Mascarenhas, na tentativa de compreender

em que medida este se relacionava, ou passou a se relacionar, com as aspirações

políticas que marcaram seu envolvimento no nacionalismo indiano em Goa. A obra

de Mascarenhas é especialmente relevante para essa abordagem, visto que aborda

em diversos momentos as representações sobre a Índia, sendo que seu retorno a

Goa tem por referência esse mundo literário.

Um dos mais importantes intelectuais de Goa neste período, Luís de Menezes

Bragança (1878 – 1938)77, escreve um opúsculo sobre a fundação do Instituto

Indiano, que é anunciado no primeiro número do periódico em questão. Segundo

Luís de Menezes Bragança, é digno de nota o amplo desinteresse que os

portugueses demonstravam pelo estudo da cultura indiana, a despeito de terem sido

os primeiros europeus a conhecê-la de modo mais íntimo. A razão desta situação é

exposta logo no início do referido opúsculo, com o título de “À margem de uma ideia”

(1928):

Compreende-se. Vinham dominados pelo preconceito clássico da unidade da civilização. Civilizados eram apenas os povos, como êles, formados na cultura greco-latina e cristãos. O resto era mais ou menos selvagem, mais ou menos bárbaro (Bragança, 1928:38).

Justificava assim a iniciativa dos estudantes de Coimbra que buscavam

reverter esse estado de incompreensão em relação aos valores culturais e

77

Luís de Menezes Bragança (1878-1938) foi um proeminente jornalista da Índia Portuguesa, que havia defendido ativamente uma maior autonomia para o território tornando-se um forte adversário à ditadura portuguesa.

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75

civilizacionais da Índia. Em verdade, por mais ilustres e bem informados que fossem

os portugueses e missionários que passaram pela Índia Portuguesa, eles não deram

atenção aos elementos mais profundos da civilização indiana. Para eles, “a Índia era

apenas uma terra de lendas e curiosos exotismos, a falar à imaginação. Não

cuidavam de aprender o conteúdo ideológico da sua cultura” (Bragança, 1928: 42).

Somente com a consolidação dos métodos de observação e análise é que essa

barreira pôde ser superada, e apenas o foi através de intelectuais britânicos, dentre

os quais cita o pioneirismo de William Jones, Wilkins, Colebrooke e Burnouf. Isto se

dava porque, “ao iniciar-se esta fase de revisão crítica, o domínio português do

Oriente entrara em franca decadência” (Bragança, 1928:43). Luís de Menezes

adverte o leitor, contudo, que esta revisão crítica não significou o fim dos

preconceitos em relação às civilizações orientais, sendo que a Guerra que devastou

a Europa fez surgir forças reacionárias, dentre as quais coloca a obra de Henri

Massis (1886 – 1970)78 em um patamar de destaque, por sua insistência de que o

catolicismo seria exclusivamente europeu.

Henri Massis comete assim o erro de apagar da Europa as influências que

nela exerceram as civilizações orientais, sendo que o próprio cristianismo nascera

no Oriente. Para Luís de Menezes, “por pouco que não fez do Cristo europeu,

deslocando-lhe o berço do obscuro lugarejo da Palestina para a luminosa Ática ou

para a Roma soberba dos Césares” (Bragança, 1928:46). Do mesmo modo aponta

que a cultura mediterrânica não era exclusivamente greco-latina. A importante

conclusão desta passagem é a de que “o chamado renascimento católico, que

alimenta fantásticas esperanças, é um transitório efeito do traumatismo moral

provocado pela guerra” (Bragança, 1928: 49). A este amplo movimento intelectual

europeu, Luís de Menezes o acusa de defender uma regressão medieval. O que era

uma realidade em toda a Europa não o deixava de ser também em Portugal, que

segundo o autor apresentava uma “feição absorventemente retrospectiva”

(Bragança, 1928:52), com os portugueses olhando demasiadamente para o

passado, por acreditarem no equívoco de que a tradição seria sinônimo de

78

Henri Massis (1886-1970) acusava o risco de destruição da Europa pelo perigo oriental, representado principalmente na farsa do diálogo civilizacional existente no interior das Universidades europeias (Lobo, 2009: 237)

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76

imobilidade79. É contra essa corrente predominante que enxerga a importância da

obra do Instituto Indiano, de que falarei brevemente.

A mesma percepção que Menezes Bragança apresentou do atraso português

no conhecimento da civilização indiana aparece também em Adeodato Barreto,

como nos mostra Sandra Lobo (2009: 234). A alternativa, para Menezes Bragança,

seria o olhar aproximado entre Europa e Índia, para que nacionalismos agressivos

não tivessem espaço em um mundo cada vez mais marcado pelo intercâmbio e pelo

cosmopolitismo. É esta outra alternativa que fomentava uma aproximação entre as

civilizações europeias e indiana, e que estava sendo levada a cabo por acadêmicos

europeus como Romain Rolland (1866-1944)80. A noção de que a Europa passava

por um período de decadência parece ter fomentado a busca por alternativas

civilizacionais, e por uma maior abertura da Europa ao reconhecimento de sua

formação plural, que garantisse a supressão de uma regressão que apenas

fortaleceria os nacionalismos fechados e agressivos. Vimos que Telo de

Mascarenhas defendia uma perspectiva do nacionalismo português que se alinhava

a alguns aspectos desta proposta, como atesta sua perspectiva segundo a qual o

nacionalismo português que manifestava não seria exclusivista (Mascarenhas, 1937:

68).

Curioso mencionar que, a despeito do interesse comum por autores europeus

que souberam avaliar com precisão a realidade indiana, os trabalhos de Telo de

Mascarenhas que foram publicados nos anos que se seguiram a sua intervenção no

Índia Nova se aproximam muito da posição tradicionalista criticada por Luís de

Menezes. Em consonância com o exotismo e distanciamento dos observadores

europeus criticados por Menezes Bragança, vemos que Telo de Mascarenhas

recoloca os principais temas orientalistas em voga, e marca seu distanciamento em

relação a Goa como um tema central a sua obra poética. É isto que podemos ler no

poema “Profissão de Fé”, onde Telo de Mascarenhas dirige-se a Sitabay, descrita

como sua bela amada, pedindo que lhe revele o deus que adorava. O pedido é, no

entanto, menos uma profissão de fé do que uma contemplação marcara pela

curiosidade diante do exótico. Assim, a verdadeira veneração do autor é ao amor

79

Como apresentei na Introdução a esta dissertação, Luís de Menezes Bragança foi um crítico do golpe de 1926, associando as ideias tradicionalistas com os movimentos reacionários. 80

Romain Rolland (1866-1944) foi um escritor francês laureado pelo Nobel de Literatura em 1915. Rolland tinha como uma das mais importantes referências literárias a filosofia Vedanta, e era um admirador confesso de Mahatma Gandhi (1869-1948).

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que existe entre ele e Sitabay, “mas deixe-me primeiro contemplar o Buda que tu

adoras” (Mascarenhas,1937:9)81.

Telo de Mascarenhas se coloca, assim, em uma posição de estranhamento e

distanciamento que reforça a um tempo seu lugar de exterioridade e curiosidade:

“Eu, como um extranho [sic], de longe, dum recanto do teu santuário alumiado por

enorme lampadário de bronze, escutarei as tuas preces” (Mascarenhas, 1937:10)82.

Quase dez anos após essa publicação, em 1946, Telo de Mascarenhas publica um

livro com o título de Râma e Sîtá (1946), também pela Edições Orientes, em que

apresenta um profundo conhecimento da epopeia do Râmayana. Aponta que o

gênio hindu trouxe contribuições não apenas no âmbito metafísico, mas no da

ciência positiva, citando para isso Emile Burnouf: “vê-se que na Índia houve homens

pensando melhor do que nós e que traçaram o caminho da salvação” (Mascarenhas,

1946:21). O que se apreende do olhar de aproximação entre Ocidente e Oriente é a

sua condição de igualdade, e o questionamento sobre sua compatibilidade, mais

facilmente captada por aqueles que realizaram seus estudos na Europa.

Valentin Chirol dizia há anos ao jornalista francês Maurice Pernot, de que os indianos que tinham frequentado as Universidades inglesas, assimilado a sua cultura e adoptado os seus usos e costumes, uma vez que regressavam a India adoptavam os seus próprios usos e costumes, tornavando-se ardorosos nacionalistas, e combatiam o dominio ingles com as mesmas armas que a cultura inglesa lhes tinha transmitido, tais como os ideais democráticos 83 (Mascarenhas, 1946:45)

Uma perspectiva curiosa é a que aparece no artigo intitulado “Não é

Novidade” 84, que apresenta justamente o prestígio que indianos e a Índia possuem

na Europa, tal como muitos indianos que viajam para lá orgulhosamente notaram.

Assim, o autor comenta que “os povos e os paizes civilizados da Europa e da

America onde penetrou o reflexo da nossa civilização e da nossa cultura, olharam-

nos desde sempre com admiração”85. E ainda, cita o papel fundamental que

intelectuais e artistas indianos desempenharam na profusão dos valores da

81

Para isso, o autor traz grinaldas e todos os unguentos sagrados em um cofre de sândalo, que no entanto não se destinam ao deus de Sitabay, mas sim ao sacrifício de seu amor. 82

O livro está dividido em duas partes, sendo que na primeira Telo de Mascarenhas é autor em primeira pessoa do singular, e trata de poesia em prosa. A segunda parte narra contos do hindustão, onde o tema é o amor. 83

Ignatius Valentin Chirol (1852–1929) foi um jornalista britânico, historiador e diplomata. 84

(Ressurge, 25-12-1950). 85

Idem, p.6.

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civilização indiana para o resto do mundo, como Rabindranath Tagore (1861-1941),

Mahatma Gandhi (1869-1948) e Aurobindo Ghose (1872-1950). Por sua vez, autores

europeus também souberam reconhecer o valor dessa tradição, e “Gustavo Le Bon,

Max Muller, Silvain Levy e Romain Rolland, revelaram ao mundo os valores mentais

e a nossa civilização”86.

A referência aos intelectuais indianos e europeus que atuavam nesta tarefa é

reveladora do mesmo aspecto que abordamos acima sobre a ressurgência da Índia

e de Goa. Se no plano político esse levantamento de um estado letárgico implicava

em uma adoção do nacionalismo indiano como instrumento de luta contra

artificialismos culturais impostos pelo colonizador, no plano intelectual este

ressurgimento implicava em descobrir a grandeza da Índia, seu esplendor e sua

história de grandes alcances nos planos culturais e científicos. O periódico

Ressurge, Gôa! traz ao longo de suas publicações uma série de exemplos de

personalidades que sustentam esta afirmação. Ainda em dezembro de 1950, a

homenagem prestada foi a Aurobindo Ghose e a Sardar Vallabhbhai Patel, ambos

nacionalistas indianos que fizeram seus estudos em Londres. Sobre Ghose, o

francês Romain Rolland escreveu uma biografia, e Sardar Patel era próximo a

Gandhi, tendo também estudado na Inglaterra e retornado à Índia para exercer a

advocacia. Romain Rolland aliás, é um dos autores que segundo o Ressurge havia

revelado os valores mentais da civilização indiana. Ao lado de Max Muller, Gustavo

Le Bon e Silvain Levy, contribuíram para que a Índia e os indianos gozassem de

grande prestígio nos países europeus, sendo de se destacar o grande prestígio de

Tagore.

Nesta hora tôrva de paixões mesquinhas, hora do homo hominis lupus, renovamos aquela prece para que no espírito do leitor as palavras de Mahatma Gandhi, feitas de Amor, de Verdade e Não-violência, se transformem em pérolas, palavras que são a própria mensagem de paz fraterna e mútuo entendimento da Índia milenária e ressurgida. (Mascarenhas, 1942:XVI)

86

Idem.

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79

1. O retorno à Índia

1.1. Chegando em Bombaim

É com este espírito que Telo de Mascarenhas retorna à Índia em 1948,

defendendo a figura de Gandhi e se posicionando de forma contrária aos goeses

que defendiam que Goa permanecesse portuguesa. O discurso contrário à

autonomia se consolidou neste período, após as elites Goesas terem almejado se

tornarem uma província autônoma de Portugal. O advento do Estado Novo e o “Acto

Colonial” levaram a que muitos procedessem a um abandono da via do nacionalismo

português em prol da defesa de uma identidade Goesa de nacionalidade indiana87.

O Ressurge se coloca nesta corrente, sedimentando o que parecia ser a percepção

sobre o projeto de autonomia após a consolidação do Estado Novo em Portugal:

este não passaria de “uma farça quasi [sic] tragica e uma dura lição para aqueles

dos goeses que creem na boa-vontade dos imperialistas portugueses” 88.

Os espiritos e as consciencias evoluiram de tal forma em dois anos que Goa agora não mendiga migalhas da autonomia como esmola, mas soberania completa, como seu legítimo e incontroverso direito 89.

O movimento em defesa da autonomia havia acontecido em 1946, na cidade

de Margão90, onde um comício estabeleceu as bases do almejado Estatuto Político

para o Estado da Índia91. Após uma primeira reação afirmativa por parte do Governo

de Goa, o projeto de Estatuto apresentado pelo governador Fernando de Quintanilha

e Mendonça Dias (1898-1992) não atendia aos interesses dos goeses, e “nesse

interim a mare foi vazando e os anseios de alguns goeses diluindo”92. Era assim que

a denominação de Fernando de Quintanilha como “capitão que cuida”, havia sido,

87

A ideia de uma identidade goesa de nacionalidade indiana foi defendida por Sandra Lobo (2010). 88

(Ressurge, 29-02-1951-p.6). 89

(Ressurge, 29-02-1951-p.6). 90

Ver mapa 2 na p.144. 91

O Estatuto da Índia esteve em debate durante meados da década de 1940, e expressava os anseios de parte da população católica local em garantiar a ampliação da autonomia administrativa e política do Estado da Índia no interior do quadro imperial português. 92

(Ressurge, 29-02-1951-p.5).

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segundo autor do referido artigo, um “título anacronico [sic] com que o mimoseou

Gilberto Freyre para retribuir a sua hospitalidade” 93. O debate sobre o Estatuto da

Índia Portuguesa estava em alta quando Telo de Mascarenhas chegou a Bombaim,

sendo que em 29 de março de 1947 a Associação Goesa de Bombaim enviou um

Memorandum ao governo português com sugestões para o Estatuto94.

É em 18 de agosto de 1949, pouco tempo após seu retorno à Índia e antes do

início da publicação do Ressurge, que Telo de Mascaranhas se encontra com outros

membros do Congresso Nacional (Goa)95 na cidade de Belgaum, para a publicação

de um Memorandum que, por sua vez, foi entregue não às autoridades portuguesas,

mas a Vengalil Krishnan Krishna Menon (1896-1974)96, para informá-lo sobre a

situação em Goa. Vemos assim, que entre a Associação Goesa de Bombaim,

presidida pelo goês Pompeia Viegas, e o Congresso Nacional (Goa), presidido por

Salvador Bermindo de Silva (1901 -)97, havia um desentendimento quanto ao futuro

de Goa, e que este desentendimento se organizava, principalmente, em torno da

questão da autonomia. É compreensível, como podemos ver a partir desta

documentação, que o Ressurge tenha sido lançado por Telo de Mascarenhas

justamente com a proposta de defesa da integração de Goa à Índia.

Estava também nesta reunião António Furtado (1898 - )98, que publicava em

Belgaum o periódico Free Goa, que contava com ampla participação do nacionalista

goês Tristão de Bragança Cunha. É preciso lembrar que António Furtado havia

organizado, junto com Telo de Mascarenhas, o Centro Nacionalista Hindu, em

Lisboa. Se Pompeia Viegas foi felicitado por Salazar por sua lealdade, o encontro de

Telo de Mascarenhas foi criticado pelo Administrador de Assuntos Cívicos de Goa,

que disse que ele era uma aventureiro que passava por Goa e que os goeses não

93

(Ressurge, 30-12-1951;p.2). 94

Não tive acesso ao conteúdo deste Memorandum, porém o debate em torno dele no Ressurge sugere que se alinhava a uma proposta de defesa da autonomia goesa, e não de sua incorporação à Índia. 95

O Congresso Nacional (Goa) era um grupo organizado que defendia a incorporação de Goa à Índia. Se originou como braço local do Congresso Nacional Indiano, partido de Mahatma Gandhi e Jawaharlal Nehru, e que após 1947 assumiu o governo indiano. 96

Vengalil Krishnan Krishna Menon (1896-1974) se tornou, posteriormente, Ministro da Defesa da Índia, durante o governo do primeiro-ministro Jawaharlal Nehru, sendo que desempenhou um importante papel nas atividades militares que levaram à incorporação de Goa à Índia em dezembro de 1961. 97

Salvador Bermindo de Silva era goês e advogado em Bombaim, sendo membro do INC (Indian National Congress). Na cidade, acabou se envolvendo ativamente na luta pela libertação de Goa (Shirodkar, 1986:332). Não tenho conhecimento da data de sua morte. 98

Antonio Furtado havia ocupado, anteriormente, o cargo de Administrador das Comunidades das Ilhas, e também foi membro do Tribunal Administrativo de Goa (Shirodkar, 1986:102).

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precisavam de um aventureiro como representante. A crítica fazia menção à carta

aberta a Oliveira Salazar que Telo de Mascarenhas havia escrito e publicado no

Ressurge, sendo que Salvador Bermindo de Silva partiu em sua defesa Em

verdade, considerada esta crítica a Telo de Mascarenhas, podemos ver que

Salvador Bermindo de Silva foi criticado no jornal O Anglo-Lusitano com um

argumento muito semelhante, o de que seria um advogado de Bombaim com outfit

ocidental, mas que simpatizou com a causa Goesa99.

Vemos então que Telo de Mascarenhas e seu amigo próximo, Salvador

Bermindo de Silva, eram alvo da crítica das associações de goeses de Bombaim,

bem como do periódico O Anglo-Lusitano que, segundo afirma Sandra Lobo,

buscava evidenciar as apreensões dos emigrantes católicos diante do medo diante

de sua “desnacionalização” (Lobo, 2010: 215). A questão da religião tinha grande

relevância nos debates sobre a autonomia de Goa. O mesmo S.B. da Silva,

presidente do Congresso Nacional (Goa) publica um artigo no primeiro número do

Ressurge, onde traz a questão do preparo de Goa para viver em uma democracia,

visto ser inevitável que isto em breve aconteceria. Apesar das diferenças que

encontra em Goa entre duas religiões que não se entendem e entre castas que se

opõem, a esperança reside no fato de que estas diferenças são menos

pronunciadas em Goa que no restante da Índia, e que estão certamente deixando de

existir.

S.B. da Silva, autor de artigo acima mencionado sobre as possibilidades da

incorporação de Goa numa sociedade democrática, publicou um outro artigo sobre o

cristianismo na Índia, dizendo ser equivocada a afirmação de que foram os europeus

que levaram a fé cristã para a Índia. Faz um breve histórico de São Tomás e São

Bartolomeu, dizendo que os portugueses confundem Cristianismo com Ocidente,

tentando articular cultura e religião, coisa que eles desaprovam. S.B.da Silva diz que

goeses devem retornar aos modos de vida indianos, sem com isso precisar

abandonar sua fé. A tentativa de articular a identidade indiana com o catolicismo era

uma preocupação de longa data dos goeses que começaram a olhar com interesse

ao projeto nacional indiano.

99

O artigo ironiza assim o presidente do Congresso Nacional (Goa) dizendo que sua associação com Goa decorria das férias que lá passava e trazia ainda a afirmação de Pompeia Viegas de que os goeses não tinham nada a ver com Salvador Bermindo de Silva.

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82

O mesmo tema sobre os modos de vida indianos abandonados pelos goeses

aparece nas Memórias (1976) de Telo de Mascarenhas. O autor conta que, logo

após chegar em Bombaim, em setembro de 1948, é convidado para um baile do

“Catholic Gymkhana”100, sendo que ali se assusta ao reconhecer que os goeses de

Bombaim estavam “desnacionalizados”, principalmente quando lhe oferecem uma

bebida alcoólica, ao que responde que imaginava que estariam seguindo os

ensinamentos de Gandhi. O posicionamento de oposição assumido em relação a

Pompeia Viegas da Associação Goesa marcou o perfil do periódico que Telo de

Mascarenhas iniciou a publicar também em Bombaim. Acredito que a defesa que

Telo de Mascarenhas faz dos intelectuais indianos que se formaram na Europa pode

ser lido à luz destas questões. Em que medida abraçou o nacionalismo indiano

enquanto estava em Portugal, e através das leituras que lá realizou são assim

fundamentais para a leitura do Ressurge.

Era a estes indianos nacionalistas e gandhianos que o periódico retoma em

seu primeiro número. A questão da integração de Goa à Índia ganhou destaque nos

anos seguintes à independência indiana. O periódico Ressurge, Gôa! teve seu

primeiro número publicado em 28 de fevereiro de 1950. A primeira página trazia um

retrato de Mahatma Gandhi, a quem prestavam homenagem, sob a manchete “O

nosso preito e os nossos anseios”101. Tratava de apresentar a linha norteadora do

periódico, claramente projetada para “unir os nossos destinos aos da Mãe-India,

nossa Patria comum, segundo também nos ensinou Mahatma Gandhi”. Aos goeses,

esta união deveria ser o objetivo norteador de sua ação política, visto que a obra da

independência da Índia estar incompleta enquanto possessões estrangeiras ainda

existissem em seu território. O periódico afirma seu reconhecimento das intenções

convergentes com o governo indiano,

Mas achamos que é tempo do Governo da República Indiana, ante a intransigencia do Governo Português e da larga sementeira de mentiras e falsidades espalhadas pelos agentes das autoridades portuguesas dentro e fora de Goa e no próprio território da União Indiana, passar do campo das meras declarações para o campo da acção directa102.

100

Não encontrei referências mais detalhadas sobre a “Catholic Gymkhana”, embora a descrição apresentada por Telo de Mascarenhas (1976) sugere se tratar de uma associação de migrantes goeses. 101

Reproduzido no primeiro volume também em inglês, no entanto, em uma versão resumida. 102

(Ressurge, 25-12-1950).

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Para defender a tomada de uma ação mais direta por parte do Governo da

Índia, a primeira questão foi separar o caso de Goa e das demais possessões

estrangeiras na Índia do problema de Kashmir103. Afinal, como expõe o artigo

inaugural, “pensa-se que o problema de Kashmir tem feito protelar a solução do

problema das possessões estrangeiras da Índia”, ao que compete reconhecer que

enquanto a disputa em torno de Kashmir tratava-se de uma contenda doméstica

entre dois estados, os casos de Goa e demais possessões estrangeiras “é um

assunto que demanda imediata solução, porque vai nisso muito do prestigio e da

dignidade da India como nação independente” 104. Abaixo do retrato de Gandhi é

apresentado trechos de seus discursos que enfatizavam a necessidade de que

todos os territórios estrangeiros, nomeadamente os franceses e portugueses,

passem a pertencer à Índia. Ainda, reproduz um trecho do importante o discurso de

Jawaharlal Nehru proferido a poucas semanas antes da publicação, onde ele diz que

“O Governo da Índia entende que Goa deve pertencer à India” 105.

Um dos aspectos mais importantes em referência ao periódico era contudo

afastar o medo de que Goa deixaria de existir se fosse inserida no contexto indiano.

É neste espírito que o periódico reproduz a moção aprovada pelo Congresso

Nacional Indiano em 1948, em que é reconhecido que qualquer possessão

estrangeira na Índia configura uma anomalidade em relação aos princípios da

unidade e liberdade da Índia. Ainda, nesta moção o Congresso assumiu o

compromisso de que as especificidades culturais, linguísticas, educacionais, dentre

outras, seriam reconhecidas e respeitadas, sendo que “o Congresso exforçar-se-á

no sentido de que a presente herança cultural daquelas possessões se mantenha

tanto quanto o povo das mesmas possessões o desejar” 106.

Vemos assim, que em seu número inaugural, o Ressurge apresenta algumas

das linhas norteadoras de sua posição: contribuir para a total independência da

Índia, que permaneceria incompleta enquanto partes do território estivessem sob

domínio estrangeiro, e a continuação da obra de Mahatma Gandhi, cuja morte é

comparada ao martírio cristão, visto seu sangue ter sido derramado em nome de 103

Kashmir é uma região a noroeste da Índia, que foi palco da violenta partição entre Índia e Paquistão em 1947. A violência do processo de origem do Paquistão entre hindus e muçulmanos causou temores de que as minorias católicas sofreriam de forma análoga caso Goa fosse integrada à Índia. 104

(Ressurge, 25-12-1950). 105

(Ressurge, 25-12-1950). Jawaharlal Nehru (1889-1964) foi o primeiro Primeiro-Ministro da Índia, ocupando este cargo durante todo o processo de agravamento da questão de Goa. 106

(Ressurge, 25-12-1950).

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uma “Causa Santa”. O discurso de Jawaharlal Nehru, primeiro-ministro indiano, no

mesmo mês de fevereiro de 1950, marcou em grande medida o posicionamento que

a União Indiana tomaria em relação às possessões estrangeiras, tendo por este

mesmo motivo causado inúmeras manifestações de apoio e repúdio. O

pronunciamento de Jawaharlal Nehru nesta data havia sido uma resposta às

afirmações do Cônsul Geral português que, em visita à África Oriental, disse que a

fusão de Goa com a Índia colocaria em perigo a Cristandade. O próprio Ressurge

menciona os telegramas recebidos pelo Ministro das Colônias Manuel Maria

Sarmento Rodrigues (1899-1979) em resposta às declarações de Jawaharlal Nehru

realizadas no dia 6 do mesmo mês de fevereiro, contradizendo o temor sobre o

futuro da cristandade.

Sem apoio nem simpatia internacional para a sua causa, do mal o menos, pensou o Sr. Ministro das Colonias e declarou com orgulho e bom som, não que tinha recebido protestos de solidariedade dos seus aliados e amigos, não que tinha recebido armas e munições para defender a sua soberania em Goa – mas que tinha recebido telegramas107.

Dentre estes telegramas estava uma mensagem dos indo-portugueses, que

protestaram, segundo o periódico, diante “não da suposta tentativa de absorção de

Goa, mas sim do regresso de Goa à situação que ela possuía anteriormente à

proeza quixotesca dos portugueses na Península Indiana” 108. Os indo-portugueses

em questão são descritos como descendentes de portugueses que nasceram em

Goa, e não legítimos goeses. Estes indo-portugueses defenderiam o colonialismo

português porque sabiam que, retornada Goa à União Indiana, cairia sobre eles e

seus cargos na metrópole “uma ofensiva, em forma, contra os goeses, igual à que a

Santa Inquisição desenvolveu contra os judeus”. Em suma,

não são propriamente goeses, mas anomalos portugueses apenas por haverem nascido em Goa e lá vivido durante algum tempo, e sem de nenhum modo estarem vinculados à terra, nem por laços de sangue nem de tradição, e portanto, aquela mensagem não pode ser considerada como sendo a vontade dos goeses109.

107

(Ressurge, 15-01-1951). 108

(Ressurge, 15-01-1951). 109

(Ressurge, 15-01-1951).

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As manifestações de apoio ao Ministro das Colônias, e de protesto em

relação às declarações de Jawaharlal Nehru, mostram em que medida este evento

acabou por aprofundar e explicitar as fronteiras identitárias entre goeses de diversas

origens e posições. Se o exemplo dos indo-portugueses que aderiram à mensagem

de protesto causou lamentação por parte do periódico, o exemplo positivo aparece

logo em seguida, com as felicitações a Antonio Furtado, então Administrados das

Comunidades e editor do jornal Free Goa que, “recusando-se a assinar o protesto

contra as declarações de Nehru, alegando não ser inimigo de Portugal, mas também

não ser inimigo da Índia – fez cair sobre sua cabeça todo o odio [sic] imperialista a

ponto de o ameaçarem com o Tarrafal” 110. Antonio Furtado renunciou ao cargo que

ocupava e cruzou a fronteiro com a União Indiana. A saída de Goa de seus mais

apaixonados nacionalistas estaria transformando Goa, segundo o Ressurge, “em

cemitério de vivos – de funcionários publicos e de escravos submissos. Urge sacudi-

la do torpor mortal enquanto é tempo!”111.

1.2. A cultura para fins coloniais

Se os autores que serviram de referências aos jovens goeses em Portugal e

em Goa valorizavam os contatos entre Oriente e Ocidente, o debate em torno da

cultura portuguesa em Goa, feita pelo Ressurge, se concentra em defini-la como

uma forma instrumentalizada para o domínio político e econômico e, se há a

elevação da cultura asiática e indiana, não é de se menosprezar a cultura ocidental.

No entanto, é preciso absorver dela o que há de melhor, como muitos indianos

fizeram na Inglaterra, pois “A verdadeira cultura portuguesa não pode produzir

colaboracionistas”112. Esta admiração do mundo da cultura também é expressa no

elogio que fazem a Gilberto Freyre113:

110

A referência aqui é a uma tentativa do governo português de obrigar os goeses a declararem lealdade a Portugal através da recolha de assinaturas de protesto à declaração de Jawaharlal Nehru. 111

(Ressurge, 15-01-1951). 112

(Ressurge, 30-12-1951). 113

Não foi possível identificar se era do conhecimento dos escritores e diretores do periódico de que eram lidos por Freyre, o que se tornou evidente quando este publicou um dos artigos do Ressurge em Um brasileiro em terras portuguesas (2010b). De qualquer modo, este excerto sugere um possível aviso em relação à contradição que Freyre cairia caso viesse a defender a posição política portuguesa.

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Gilberto Freyre não nos deu ainda nenhumas impressões da sua peregrinação por Goa, o que fez, por certo, com olhos de sociólogo e não de exaltado imperialista, que não é, porque então desvirtuaria todo o seu passado de anti-racista e de estudioso do fenomeno [sic] social e mancharia a magnifica obra de emancipação de que o Brasil deu provas 114.

É curioso que esta menção seja feita antes da publicação de Aventura e

Rotina (2010), e que neste mesmo artigo, o Ressurge apresente uma breve

discussão sobre a importância dos dois conceitos presentes no livro que seria

publicado por Freyre: para o autor do artigo, apesar de reconhecer o gênio

aventureiro nos portugueses, estes, “impelidos pela força trágica da rotina deixaram

estagnar o rico potencial das terras de que se apoderaram”115. Ante esta

estagnação, cujas provas de ordem social e econômica o periódico rotineiramente

expunha, o exemplo da independência brasileira avultava como o caminho político a

ser seguido por Goa, onde “desfeitas as algemas da servidão que a tem acorrentada

ao imperialismo verboso e jactancioso dos portugueses colonialistas, há de emergir

em breve para a nova vida de progresso e prosperidade”116. Além do exemplo de

liberdade e prosperidade que o autor menciona encontrar em O mundo que o

português criou (1940), é elogioso em relação à política de silêncio de Gilberto

Freyre:

E ante a insistência do jornalista, em o levar a fazer declarações de ordem política, aquele eminente escritor, acentuou: „Continuo dentro do meu programa de silencio [sic] ... Enquanto durar a minha viagem de observação e estudo por Portugal e pelo Ultramar, devo antes ouvir do que fazer-me ouvir, antes ver do que ser visto‟117.

É evidente que Freyre foi muito visto e ouvido, como já tive oportunidade de

mencionar no primeiro capítulo desta dissertação. No entanto, o “programa de

silêncio” parece ter surtido um efeito muito breve, visto que diante da publicação de

seu Um brasileiro em terras portuguesas (2010), quando Freyre defendeu o regime

colonial português de uma forma mais explícita118, ele recebeu duras críticas do

114

(Ressurge, 30-12-1951). 115

(Ressurge, 30-12-1951). 116

(Ressurge, 30-12-1951). 117

(Ressurge, 30-12-1951). 118

Acredito, como tentei deixar claro no primeiro capítulo, que não seja possível pensar uma ruptura no decurso da obra de Freyre no que se refere ao colonialismo português, sendo que os

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Ressurge. Lembramos contudo que a referência do autor do Ressurge nesta

primeira menção ao sociólogo brasileiro é ao livro O mundo que o português criou

(1940), prefaciado por António Sérgio, “uma das mais altas celebrações do escól

intelectual de Portugal”119. É com ironia então que o elogiador de Freyre imagina o

riso que ele deveria ter contido ao ver o hindu Sirvoicar enaltecendo a bandeira

portuguesa no interior mesmo do templo hindu de Queulá120.

Finalmente, lembra o autor do discutido artigo que a menção de Freyre aos

portugueses se refere especificamente aos “homens de mentalidade elevada,

humana e tolerante, sem laivos do espírito imperialista [...] o „mundo de cultura‟ que

também nós admiramos” 121. E esta admiração é de fato enaltacida em diversos

números do Ressurge, evidenciando a separação entre cultura e política como um

dos projetos centrais do periódico, que permitiria a desvinculação do escol português

da cultura Goesa de qualquer argumento vinculatório ao nacionalismo lusitano.

A instrumentalização da cultura é realizada por meios violentos, mas também

através da propaganda. A ironia marca o uso colonial da cultura portuguesa, entre

aqueles que não pertencem evidentemente ao “mundo de cultura” acima elogiado. É

o caso do acontecimento narrado por um “Observador Goes” sobre o Chefe adjunto

dos Serviços de Informação e Estatística122, que na ocasião de um baile

Excedeu-se nos copos e julgando-se num arraial, armou chinfrim como é da praxe nas romarias na sua terra. Mas aqui não foi o varapau que andou no ar, mas copos e cadeiras, e os alvos foram as cabeças dos goeses colonizados, muitos dos quais saíram com ela mal-ferida. Não houve procedimento nem protestos, porque o sr. Branco goza de privilegios na transmissão da cultura portuguêsa para uso colonial aos goeses, mesmo a força de lhes partir a cabeça, para melhor a „empinharem‟ 123.

O trecho apresenta, em um cenário de confusão carnavalesca, tanto a

questão da confusão e do deslocamento dos portugueses em Goa, que julgam estar

fundamentos de sua retórica nacionalista/imperialista já se encontram desenvolvidos desde sua obra inaugural. 119

Lembro que, no primeiro capítulo, tive a oportunidade de mostrar que Freyre se sentia alinhado às ideias de universalismo em António Sérgio. 120

Esta visita é narrada em Aventura e Rotina (2010a). 121

(Ressurge, 30-12-1951). 122

Não encontrei maiores informações sobre a pessoa mencionada, sendo que o Ressurge faz a ele referência como sendo o “Sr. Santos”. 123

(Ressurge, 30-12-1951 [meus destaques]).

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na sua terra, bem como a violência envolvida na “transmissão da cultura

portuguesa”, que é levada ao limite irônico de partir a cabeça dos goeses. E ainda,

findo o supradito baile, o sr. Sá, do Banco Nacional Ultramarino, já muito etilizado, embarcou para Cythère, no seu carro de 8 HP, com um um galante grupo de gentis moças, também um tanto ou quanto alegres como convém para uma tão gozada excursão [...] Pois bem, alguns metros andados, por alturas de Gaspar Dias, o carro chocou violentamente, com qualquer coisa negra, dura e comprida. E quando a apalparam aquela coisa negra, dura e comprida, conta a qual o carro se tinha espatifado, verificaram, que ela não passava de uma prosaica e indígena palmeira. Que desilusão!124.

A mesma página do Ressurge apresenta ainda uma discussão em torno da

circular do Governador-Geral de 24 de novembro último, que pedia que funcionários

públicos em Goa exercessem suas funções “devida e decentemente vestidos”, ao

que o autor diz que “os assimilados Chefes de Serviço, tanto hindus como cristãos,

interpretaram o termo „decentemente vestidos‟ como sendo vestidos à europeia, e

que o dhoti não obedece as regras da decência”125. O debate sobre a aclimatação

em torno da indumentária é recorrente, tendo aparecido também em Gilberto Freyre

(em um sentido contrário), e aponta para uma valorização do regional:

Porém nós, achamos que o dhoti convenientemente vestido é mais decente que os calções ou cuecas com que se apresentam alguns funcionários „fringuis‟ e oficiais, exibindo com absoluta falta de decoro e pudor as galbias cabeludas126.

Após esta crítica à circular mencionada, o autor ainda pede que o Governador

esclareça se o termo “decência” foi utilizado no sentido político ou moral. O que

estes excertos sugerem é o lugar que a cultura portuguesa em Goa ocupa nas linhas

gerais do Ressurge. Assim, apesar de valorizar a cultura portuguesa, esta

valorização se dá mediante uma distinção fundamental entre uma valorização do

valor cultural humano e tolerante, e uma imposição violenta de valores, próprio ao

imperialismo. Assim, a cultura portuguesa é valorizada mediante aquilo que

representa em termos de valores universais, a enriquecer-se mutuamente com os

valores da civilização indiana, e não sobrepondo-se a esta. O que está colocado

124

(Ressurge, 30-12-1951). 125

(Ressurge, 30-12-1951). 126

(Ressurge, 30-12-1951).

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aqui é uma refração do debate mais amplo em torno das relações entre Oriente e

Ocidente.

A cultura portuguesa representada em Goa pelo Instituto Vasco da Gama, é tão deficiente, tão crioula, tão colonial e sub-europeia, que não poderá resistir ao primeiro ímpeto da cultura legitimamente indiana, quando esta for introduzida em Goa após a derrocada do poderio colonial e imperialista127.

Ainda sobre o debate em torno da aclimação, é de se destacar o impacto das

afirmações do Ministro do Ultramar, Comandante Sarmento Rodrigues, durante sua

visita a Goa em abril de 1952. Neste mês, o Ressurge dedicou-se quase que

inteiramente a rebater afirmações do Ministro. Em um artigo intitulado “O Primeiro

eco da Visita Ministerial”, afirma-se que “os goeses vivem na sua própria terra como

plantas de estufa, desenraizados do seu verdadeiro meio, donde essa sua atitude de

quase indiferença, que os imperialistas portugueses tomam por lusitanidade”128.

Sobre as afirmações de Sarmento Rodrigues de que Goa seria um ponto de

irradiação de valores ocidentais na Índia, o autor ainda diz que

É demasiada presunção pretender de que a sua colônia de Goa é um ponto de irradiação para todo o subcontinente indiano, um contacto direto com as ideias, com a civilização ocidental. Os indianos desejosos de tomar contacto com o Ocidente, as suas ideias e a sua civilização, fazem-no no próprio meio, e não pedindo água lustral à colônia portuguesa de Goa, cuja civilização é tipicamente sub-europeia ou colonial como muito bem acentuou Gilberto Freyre129.

Surge assim a questão cultural, e de como o cristianismo era um valor

universal que não fazia parte da cultura portuguesa. Em 30 de abril de 1952,

Francisco Alberto de Almeida Alves de Azevedo (1907-1992)130 afirmou que os

grandes pensadores do Oriente buscaram estreitar laços intelectuais com o

Ocidente, em vistas a compreender essa Unidade. No entanto, à Europa e à

América só interessam o progresso material. Portanto, ao contrário do que pretende

F.Alves de Azevedo, as bases da unidade espiritual entre Oriente e Ocidente já

127

(Ressurge, 15-05-1952). 128

(Ressurge, 30-04-1952). 129

(Ressurge, 30-04-1952-p.3 [meus destaques]). 130

Francisco Alberto de Almeida Alves de Azevedo (1907-1992) foi um escritor português formado na Universidade de Lisboa. Contribuiu com diversas publicações do Ressurge.

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foram lançadas a muito tempo. As relações entre ambos sempre existiram. Assim o

que se ergue entre ambas não é um antagonismo cultural, mas uma hostilidade

fundada na exploração econômica. No entanto, percebo uma oscilação entre esta

perspectiva e aquela apontada em alguns artigos, como em 30 de maio de 1952, em

que se diz que todo o goês é estruturalmente indiano, mesmo que sob “a tintura

epidérmica do portuguesismo”.

A influência portuguesa existiu, resultado de mais de quatro séculos de

contato, mas só puderam levar ao hibridismo e à condição de “mogrel”. Esse

menosprezo pelo caráter hibrido me parece contrastar com a suposta admiração da

cultura portuguesa. Talvez a questão seja que, apesar de se admirar a cultura

portuguesa no que se refere a uma apreciação distanciada, quando esta é presente

em Goa ela é indesejável, pelas próprias condições do meio. Em 30 de maio de

1952, o Ressurge argumenta que Portugal usava o argumento da unidade cultural

para mascarar a separação imposta pelo “Acto Colonial”.

É na questão em torno do cristianismo que os usos imperialistas se fazem

mais problemáticos. No primeiro ano de sua publicação, na edição especial do Natal

de 1950, observamos alguns elementos interessantes que corroboram nossa

perspectiva. Mencionando a mensagem de Natal do Santo Padre, em defesa da paz,

a notícia com o título de “A impossível Paz” diz que “é entre os povos Asiáticos,

empenhados em manter a paz e defender o seu solo de imperialismos nocivos, que

a palavra do Sumo Pontífice poderá encontrar eco e acatamento”131. Diferente dos

países europeus, cuja história seria evidência da maior importância dos interesses

temporais sobre as ingerências da Igreja, na Índia e em Goa a paz era

verdadeiramente amada, “mas precisamos ter condições para ela e para as obter,

lutamos contra todas as forças satânicas que querem mergulhar o Mundo na idade

das trevas – no Kalyuga”132.

No Natal de 1951 o Ressurge volta a publicar a mensagem papal em defesa

da paz, dizendo que “estes reiterados apelos do Santo Padre não têm sido

escutados pelas nações que pretendem ser catolicas, porque para estas a ambição,

a cupidez e a preocupação de dominar está acima do seu ideal cristão”133. No

mesmo número, uma crônica sobre o Natal em Goa, escrita por Antonio do

131

(Ressurge, 25-12-1950; p.6) . 132

(Ressurge, 25-12-1950; p.6). 133

(Ressurge, 30-12-1951; p.5).

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Sacramento mostra, por sua vez, o modo como a fé católica estava enraizada em

sua terra, ainda que a invocação seja feita à distância: “Natal da nossa infância,

como nós te evocamos, como um mundo perdido e distante”134. Sacramento

procede a uma descrição em detalhes, e sua crônica é ilustrada pelo quadro

“Natividade”, do pintor Goês Angelo da Fonseca, que retrata Virgem Maria em trajes

indianos. Ainda, o periódico reproduz trechos do discurso de Nehru no dia de Natal

em Belgaum, próximo à fronteira de Goa:

E se Goa é essencialmente cristã, como pretendem os portugueses, as declarações do Primeiro Ministro da Índia feitas no dia da data solene comemorativa do nascimento do Redentor, devem ser para a Nossa Terra e para a Nossa Gente a melhor prenda de Natal, aquela que vem iluminar o seu caminho do futuro – o caminho da Redenção 135.

Ainda sobre a redenção, o Ressurge cita o caminho percorrido pelo goês

colonialista Alberto Xavier (descrito como “canarin fedorento”), que foi “arrastado”

pelas ruas da amargura da burocracia até seu escritório na Rua do Crucifixo.

Quando da doação de arroz feita por Goa à União Indiana, e seu posterior uso

político, o periódico lembrou que isso era contrário ao ideal cristão, pois “Cristo disse

que a mão esquerda deve ignorar o que dá a mão direita”136. Assim, o lugar que o

cristianismo ocupa nas narrativas do periódico altera os termos da equação

anteriormente celebrada por Gilberto Freyre e Orlando Ribeiro. A ação missionária é

marcada pelo utilitarismo, pela política e defesa dos interesses metropolitanos, não

podendo portanto ser articulada em uma defesa da especificidade e do humanismo

do colonialismo português. Celebrando o nascimento de Jesus, o autor não deixa de

notar que um dos três Reis Magos era indiano.

Uma estrela no alto guiou os passos dos Tres Reis Magos, um dos quais indiano, Condophares, Ganaspar ou Gaspar de nome, que foram de longe, das terras do Oriente, ofertar-Lhe, em cofres preciosos, como um tributo da sua submissão – pois Ele era o Rei dos Reis – ouro, incenso e mirra137.

134

(Ressurge, 30-12-1951;p.3). 135

(Ressurge, 30-12-1951;p.3). 136

(Ressurge, 30-12-1951;p.5). 137

(Ressurge, 30-12-1951;p.1).

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Ao identificar um dos três Reis Magos como cristão, o artigo busca mostrar

que os goeses possuem pleno direito de se dizerem cristãos sem com isso incorrer

em qualquer defesa do Estado Português em Goa. Essa quebra na articulação entre

cristianismo e a presença portuguesa será fundamental para que o projeto

nacionalista Goês possa incorporar em seu seio uma grande parcela da população

Goesa católica. A Mensagem do Natal é finalizada com a apresentação do

destinatário a que ela foi redigida, que eram Portugal e o Povo Português,

“esquecendo agravos e diferenduns”, e é ilustrada com um quadro da pintora Goesa

Ângela Trindade, com a legenda “Nasceu Jesus”.

Ainda, aponta um paradoxo chocante entre a mensagem de paz que a data

celebra e o violento imperialismo exercido pelos Estados Cristãos. Nos interessa

aqui particularmente duas questões que iremos encontrar ao longo de diversos

números posteriores do Ressurge, sendo possível afirmar que se trata de um tema

recorrente ao periódico. Ao mesmo tempo que tenta inserir a história cristã na

temporalidade indiana, tirando dos Estados Cristãos europeus o suposto privilégio

de serem os porta-vozes do Cristianismo, busca ainda mostrar que esses Estados

na verdade deturpam o verdadeiro sentido cristão, que defendia a paz e a harmonia.

Não obstante todos os sofrimentos infligidos a Ásia pelas hordas de unos brancos do século vinte, esta há de acabar por despertar e escorraçá-los do seu solo, e a sua redenção será a melhor Mensagem de Cristo que conquistará os nossos corações 138.

Alguns exemplos são dados no periódico, para convencer o leitor de que o

cristianismo é algo diferente daquilo que defendiam os Estados cristãos europeus.

Dois deles são aqui de grande importância: São Tomé e São Francisco Xavier.

Vemos assim que, mais do que incorporar o cristianismo por uma filiação que em

sua origem não passe por Portugal, trata-se também de evidenciar que o

cristianismo não é um problema em si. Longe de defender que a religião católica é

por si um instrumento de alheamento da população Goesa em relação às suas

origens, a imagem de S. Francisco Xavier é articulada para mostrar que a

mensagem cristã fundamental, a da paz e tolerância, é incrivelmente próxima

daquela que Telo de Mascarenhas via como baluarte da Índia, e que vimos em suas

138

(Ressurge, 30-12-1951;p.6).

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“Memórias” (1976) se materializar na figura do imperador Akbar. Xavier, cuja história

é narrada no mesmo número do Ressurge, é visto como aquele que, ao chegar em

Goa, em 1542, foi um exemplo de humildade, andando descalço e lavando os

leprosos, recusando as formalidades oficiais que lhe foram destinadas.

O bom cristianismo não associa a condição dos cristãos com os interesses de

Portugal. Exemplo disso é a felicitação que o Ressurge presta a Valeriano Gracias

(1900-1978), filho de pais goeses que foi elevado à Arcebispo da Diocese de

Bombaim, que foi possível com a revogação do estatuto do Padroado, que pregava

a alternância de Arcebispos entre ingleses e Portugueses. Esse estatuto era então,

racista, e não permitia a um não-europeu que assumisse altos cargos eclesiásticos.

A questão do Padroado causou grande ressentimento entre católicos próximos às

pretensões de Portugal. Em 7 de janeiro de 1955, o vigário-geral de Goa, Piedade

Rebelo, afirmou que “todos os templos católicos de Bombaim foram construídos

quando a cidade fazia parte do padroado português”139, mencionando ainda que em

Bombaim os padres tinham que agora que entrar pela escada de serviço em virtude

de sua secundarização140. Desde o ano anterior, com a invasão de Dadrá e Nagar-

Aveli, que a imprensa metropolitana veiculava notícias de ataques a templos

cristãos141. A polêmica em torno da questão do Padroado se arrastava desde 1950.

Como pude observar a partir da documentação sobre o período, Valeriano

Gracias se envolveu em uma grande polêmica em agosto de 1954, entre Portugal e

o Vaticano, a ponto do Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal pedir, em

carta à embaixada de Portugal no Vaticano, que a Santa Sé intercedesse diante das

declarações de Gracias, que segundo ele “nos parecia muito mais indiano do que

Cardeal”142. Quando deste pedido de intervenção, Gracias já causara incômodo nos

meios diplomáticos portugueses, ao declarar que a Índia era a pátria-mãe dos

goeses143. Meses após esta declaração, Garin transcreve um artigo que o Cardeal

havia publicado no “Sunday Standard Bombay News”, onde expressava esperanças

com a Independência e dizia que o medo sobre o futuro das relíquias de Francisco

139

PT-TT-AOS-D-N-14-6 (p.49). 140

Dias antes desta notícia, em 3 de janeiro de 1955, o “Diário da Manhã” publica um artigo com o título de “Governo de Nova Delhi prejudica atividade missionária”, onde aponta para a redução das conversões ao cristianismo em decorrência da perseguição do governo indiano. 141

Recorte do “Século”, de 31 de dezembro de 1954. “A profanação e encerramento dos templos de Nagar-Aveli pelos invasores”. PT-TT-AOS-D-N-14-6 (p.37). 142

PT-TT-AOS-D-N-14-8 (p.24-25). 143

Este incômodo é declarado por Garin em telegrama de 29 de março de 1954. PT-TT-AOS-D-N-14-8 (p.16-17).

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Xavier e da Liberdade religiosa dos goeses não se fundamentavam 144. O artigo

levou o embaixador brasileiro a acusar Gracias de estar tomando partido daqueles

que pretendiam usar a violência, sugerindo assim uma conversa “enérgica” com o

Vaticano145. Gracias causou preocupações por suas declarações, “nomeadamente

através seu jornal „Examiner‟, com afirmação goeses quereriam anexação”[sic]146.

Essa carta do embaixador brasileiro é datada de 15 de Agosto de 1954, e a

tomada de violência mencionada se referia claramente às ameaças de que nesta

data Goa seria invadida por nacionalistas indianos e “libertada”. Quando o Ministro

dos Negócios Estrangeiros pediu intervenção junto ao Vaticano, ele menciona que

estava indignado pelo fato de a Santa Sé aceitar um membro que se manifestava

desta maneira. As semanas seguintes mostraram que a preocupação com as

declarações de Gracias resultaram em intervenções diplomáticas junto ao Vaticano,

onde o principal conselheiro de Krishna Menon sobre a questão de Goa e Presidente

da Associação Católica da Índia, Gilanis, iria a Roma onde esperava ser recebido

pelo Papa147. A disputa política em torno do posicionamento do Vaticano preocupava

o governo português, que estava desconfortavelmente ciente de que a Santa Sé não

tomaria partido por Portugal. Em decorrência destes desentendimentos, a Santa Sé

publica uma nota no “Osservatore Romano” negando a afirmação de Nehru de que a

Santa Sé estaria chocada com a atitude de Portugal148.

Assim, a posição de Valeriano Gracias estava em acordo com as aspirações

políticas expressas no Ressurge, sendo que seria a prova de que o catolicismo não

demandava uma necessária articulação com as vontades políticas de Portugal.

Como o periódico recorrentemente apresentava, era o racismo implícito no

colonialismo português que impedia que um clero nativo ganhasse destaque. Outro

exemplo desse racismo foi a não canonização do venerável José Vaz, que o autor

compara com a canonização de S. João de Brito, que contou até com peregrinação

a Roma149. E ainda com a nomeação do metropolitano D. José Vieira de Alvernaz,

que é contrária às intenções do Papa de tornar nacional o catolicismo. No que se

refere ao cristianismo via colonialistas, fala do uso colonial do corpo de São

Francisco de Xavier, sendo que os colonialistas usaram a sua corruptibilidade (fruto

144

PT-TT-AOS-D-N-14-8 (p.21). 145

PT-TT-AOS-D-N-14-8 (p.22). 146

PT-TT-AOS-D-N-14-8 (p.29). 147

PT-TT-AOS-D-N-14-8 (p.27). 148

PT-TT-AOS-D-N-14-8 (p.33-34). 149

(Ressurge, 15-01-1951).

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de terem jogado cal sobre seu corpo) para defenderem a sua permanência na Índia

(essa discussão foi feita por Maurice Collis em The Land of The Great Image (1943).

Fala da Exposição de Arte Sacra Missionária, em Lisboa, no Mosteiro dos

Jerônimos, e em como foi desvirtuada para fins políticos e de propaganda. Fala do

conflito entre o Padroado e a Sagrada Congregação da Propaganda da Fé em Goa,

sendo que o primeiro tinha fins políticos e a segunda realizava apenas obra

evangelizadora. Na dita Exposição, Sarmento Rodrigues diz que a expansão

portuguesa teve por alvo o coração dos homens. O autor desmente essa afirmação,

citando vários relatos históricos que mostram a violência dos processos de

conversão. Afirma, no entanto, que apesar dessa violência o Goês foi e sempre será

indiano pelo temperamento e pelo sangue. Diz ainda que a “prioridade da

disseminação da Lei de Cristo na India não pertence aos portugueses, mas a São

Tomaz, o Apostolo”150. Cita ainda o caso do italiano Roberto Nobili, que tinha um

real interesse pelo hinduismo, mas que foi mandado embora da Índia por não se

adequar aos propósitos imperiais. Foi porque os métodos foram violentos que essa

raíz portuguesa é detestada e os goeses querem vê-la erradicada, “embora

conservando o Catolicismo, que é um ideal universal”151.

Este universalismo se opõe assim aos interesses imperialistas que visariam

apenas explorar os colonizados, não estando em comunhão com ele. Assim, Telo de

Mascarenhas nega que a dominação portuguesa se dê com doçura, como afirmou

Salazar152, e aponta autores que negam essa perspectiva, como o historiador Vicent

Smith, Francis Pyrard, Cláudio Lagrange e Cunha Rivara. Curiosamente, quando

aqui novamente aparece a crítica a Salazar, o autor acrescenta que Salazar é um

homem de vasta erudição e que sua afirmação decorre menos de sua má-fé e de

seu espírito imperialista do que de sua ignorância quanto à história das colonizações

portuguesas. No que se refere à visita do Ministro das Colônias a Goa, e ao seu

discurso no Instituto Vasco da Gama, o autor diz que a Índia soube absorver todas

as culturas, como fará com a portuguesa, a que nada deve. Na verdade a cultura

portuguesa só pode florescer em consequência das riquezas da Índia que

garantiram a ela o acume da prosperidade. Os primeiros portugueses na Índia não

se interessaram por seu aspecto cultural, mandando queimar livros e destruir

150 (Ressurge, 15-1-1951). 151 (Ressurge, 15-1-1951). 152

(Ressurge, 15-5-1952).

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templos, como atestam Dr.Herbert H.Goven, Maurice Collis, Rev. Père Vath e o

próprio Cunha Rivara.

No primeiro número publicado pelo Ressurge, publicado no dia 28 de

fevereiro de 1950, podemos compreender em que medida a orientação nacionalista

do periódico se associava a um forte lastro cristão. O que é expresso no excerto

abaixo transcrito revela a aproximação entre o martírio de Cristo e de Mahatma

Gandhi, estabelecendo ainda uma relação profunda de sentido entre a morte dos

mártires e a “velho ensinamento dos Upanishads” no que diz respeito ao sentido

positivo da morte. Desta forma, o autor estabelece uma relação de equivalência

entre cristianismo e nacionalismo como a tradição indiana, se contrapondo assim

aos que pretendiam associar o cristianismo aos portugueses, ou ainda a entender

que somente com a permanência do colonialismo a fé cristã perduraria em Goa:

Como o sangue precioso de Cristo e de todos os grandes Mestres e Doutrinadores, o sangue derramado de Mahatma Gandhi em defesa da Causa Santa, com o fim de tornar iguais em direitos e deveres todos os filhos da Mãe-Índia, e para a purificar do sistema obsoleto das castas e da mácula da „intocabilidade‟, produziu os seus frutos, porque segundo o velho ensinamento dos Upanishads, „a Vida e a Morte são gêmeas; para que o trigo nasça é preciso que a semente pereça153.

Vemos aqui que o “sistema obsoleto das castas” seria um impeditivo, de

ordem social, para a real manifestação dos ideais universais do hinduísmo. Como

argumenta Telo de Mascarenhas, o potencial da civilização indiana residia inclusive

na possibilidade de agir beneficamente sobre os vícios da cultura europeia. É nesta

universalidade que reside a defesa dos valores civilizacionais, sejam europeus como

indianos.

Outra forma de atacar a pretensão cristã dos portugueses é denunciar tanto a

violência da conversão quanto do imperialismo em geral. Além disso, a contrapartida

da elevação da tradição oriental, Telo de Mascarenhas objetiva mostrar o absurdo

dos que apregoam a superioridade européia, mostrando como a barbárie está entre

eles. Critica a suposta ação humanistica portuguesa, falando dos expedicionários

que roubaram e violaram mulheres em Goa, e ainda da condição dos prisioneiros154.

153

(Ressurge, 28-02-1950). 154

(Ressurge, 30-12-1951).

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Aliás, republica no Ressurge, em dezembro de 1950, uma “Carta aos

Expedicionários” que havia publicado anteriormente em 1948, onde diz que

Sem pretendermos pregar-vos insubmissão ou espirito de rebelião, mas para que se não rompa o elo de simpatia fraterna que une os Portugueses e os goeses, aconselhamo-vos a regressar ao vosso Pais [sic], antes que sejais utilizados como instrumentos cegos, duma política céga, dum imperialismo caduco155.

Antes desta sugestão, Telo de Mascarenhas inicia dizendo em pormenores os

detalhes das regiões de Portugal, da terra de onde vinham os expedicionários,

dizendo “Vê-de como conhecemos bem o vosso País, e porisso mesmo amamo-lo

tanto como vós”156.

Conclusão: a grande farsa

O que se extrai do que foi dito, dos usos políticos da retórica cristã e

humanista, é que para Telo de Mascarenhas o empreendimento colonial português

se sustentava sobre uma grande farsa. Em outras palavras, estabelecidos os planos

culturais autênticos e aqueles meramente imperialistas, cabe ao periódico desmentir

afirmações e posturas que não dizem respeito aos “fatos”. Uma publicação do

Congresso Nacional (Goa), em português e maratha, enfatizou que lhes havia sido

negado a reunião que haviam pedido com Sarmento Rodrigues157. Se esta

publicação se intitulava “Apelo aos goeses”, o Congresso Nacional (Goa) ainda

enviou ao Ministro um Memorandum158, onde dirigiam-se a ele em tom de lamento

pela reunião não concedida. A leitura do Ressurge mostrou que o encontro

pretendido estava programado para acontecer na cidade de Margão, sendo que o

pedido de uma reunião pública para a redação de um documento a ser entregue a

Sarmento Rodrigues havia sido realizado por António Bruto da Costa, Dr. Antonio

155

(Ressurge, 30-12-1950). 156

(Ressurge, 30-12-1950). 157

Ref: PT/TT/AOS/D-N/14/2 (439). 158

O Memorandum está assinado por K.L.Sanzguiri, presidente do Congresso Nacional – Goa, tendo sido escrito na cidade de Bombaim, em 27 de abril de 1952; PT/TT/AOS/D-N/14/2 (440-441).

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Dias, e Dr. Antonio Colaço159. Importante mencionar que Orlando Ribeiro descreveu

uma longa conversa que estabeleceu com Antonio Colaço em Goa, em 1956, tendo

julgado importantes as suas observações e a sua disposição.

Neste momento, contudo, o pedido de organização do comício foi negado,

emitindo o governo, contudo, uma “Nota Oficiosa” dizendo que não havia sido

realizado nenhum pedido de reunião pública. Esta negação foi descrita pelo

Ressurge como a prova de que, ao contrário do que dizia a propaganda ao

promover a visita ministerial, “tudo isto não passou de uma farça, como uma grande

farçada vai ser a visita ministerial, para convencer o povo de Goa de que o Ministro

vem cá para lhe dar ouvidos”160. A verdadeira causa da visita de Sarmento

Rodrigues era identificada com os interesses da propaganda imperialista de

Portugal, e é por esse motivo que ele vinha “cheio de vento”:

Antigamente os governadores vinham em barcos de velas enfunadas. Hoje veem em barcos à vapor, e eles mesmos inchados de vento; não admira, pois, que, de quando em ves, deixem escapar...ruidos sonoros na altura desta „bem ardua missão ao serviço de Portugal‟161.

Diante deste falta de concretude das afirmações, diante destes ecos ruidosos

de homens inchados de vento, “a par e passo iremos abafando todos os ecos desta

visita que têm por fim torcer as verdades históricas a bem da propaganda

imperialista”162. Estas distorções se fundamentavam em duas razões, a primeira

derivando da própria natureza do regime imperialista e do lugar primordial de sua

propaganda, e a segunda se referia ao desconhecimento de Portugal em relação

aos goeses, daí que

todos os governadores que passaram por nossa terra, confessaram que pouco ou nada conhecem acêrca da nossa gente e do nosso pais [...] E tem eles razão porque o goes, como todo o oriental, e um tanto misterioso e não manifesta facilmente os seus sentimentos, principalmente à gente doutra raça e doutra côr163.

159

O pedido havia sido realizado “ao abrigo do que faculta a Constituição da República Portuguesa e do disposto no Decreto No. 22.468, de 11 de Abril de 1933” (Ressurge, 30-04-1952; p.2). 160

(Ressurge, 30-04-1952 - p.2). 161

(Ressurge, 30-04-1952 - p.3). 162

(Ressurge, 30-04-1952 - p.3). 163

(Ressurge, 30-04-1952).

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Um importante aspecto das publicações do Ressurge no período aqui

abordado era lembrar aos leitores que a União Indiana poderia tomar a via da ação

armada para libertar Goa. No artigo “Primeiro eco da Visita Ministerial” o autor traz

um trecho de uma entrevista que Sarmento Rodrigues deu ao Diário Popular em 5

de abril de 1952, onde dizia, sobre a Índia Portuguesa, que

a índole da gente é boa. Muito humanos, apreciando o cristianismo devidamente, são incapazes de, deliberadamente, recorrerem à violência, preferindo, sempre, a consecução do que se propõe por meios pacíficos”164.

O autor credita a esta “excessiva confiança nos métodos não-violentos da

Índia” a intransigibilidade do Governo Português diante de qualquer acordo sobre o

futuro da Índia. Porém o Ressurge adverte, em “Nunca é demais repetir”, que

Não se fiem muito, pois, os imperialistas portugueses no espírito não-violento do Primeiro Ministro da India que, soada a hora do relógio do Destino, se pode transformar na mais violenta das violências165.

Outra deturpação identificada dizia respeito à exaltação da ação missionária

em Goa, sendo que Sarmento Rodrigues disse que “o espírito missionário é

essencialmente patriótico e universalista”166. Como veremos adiante, o

universalismo que o periódico identifica nos ideais cristãos seria aquele que, ao

contrário do afirmado, se dava para além da ação missionária, deturpada que esta

se encontrava para fins imperialistas. Em “Goa não é terra pacífica”, o autor faz um

histórico das principais revoluções e sublevações que aconteceram em Goa,

deixando evidente que a luta continua e que

Enquanto os imperialistas portugueses se obstinarem em manter Goa sob o regime colonial; enquanto os goeses não fôrem senhores do seu destino, esta nossa luta continuará – porque Goa não é terra pacífica167.

Este artigo é importante por fazer um histórico das lutas recentes dos

nacionalistas goeses, evidenciando em que medida os próprios autores se

164

(Ressurge, 30-04-1952; p.3). 165

(Ressurge, 30-04-1952). 166

(Ressurge, 30-04-1952). 167

(Ressurge, 30-04-1952).

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colocavam no interior de uma trajetória de luta que estava marcada inicialmente

pelas declarações de Nehru em 16 de Julho de 1946. A ideia de farsa dos

colonialistas é muito recorrente, tendo sido enfadonhas as afirmações de Sarmento

Rodrigues sobre sua admiração a Gandhi e Tagore. A ausência de liberdades

cívicas seria prova do regime de terror imposto por Portugal, “E isto por parte duma

Nação que se diz...essencialmente católica!”168. A mentira e a farsa seriam

necessárias ao imperialismo, e apenas sua superação poderia levar a um real

entendimento entre Oriente e Ocidente:

É, pois, esta a condição essencial – a de serem os povos do Oriente completamente senhores do seu destino [...] O que se ergue entre o Oriente e o Ocidente, como uma barreira intransponível, contrario ao bom entendimento e leal corporação em prol da paz mundial, não é mero antagonismo entre as duas culturas – mas hostilidade fundada na exploração econômica e no poder político169.

Nada mais distante da noção de Gilberto Freyre sobre a “unidade de

sentimento e cultura” como base da comunidade lusotropical. Assim,

compreendemos que o Ressurge estabelece a cultura e a política a ordens distintas,

e qualquer uso político da cultura criaria apenas instrumentos de exploração

colonial. Em Goa, o que era reconhecido como cultura portuguesa nada mais era do

que uma imposição imperial, sendo que sua superação não implicava em negar os

valores da cultura portuguesa autêntica, mas o próprio regime de exploração

colonial. O local seria assim o lugar em que os valores externos seriam relidos. Em

última instância, o jogo entre as mútuas contribuições deveria necessariamente

passar pelo laivo da vida cotidiana. É neste sentido que apesar de ter seu valor

reconhecido, quando transplantada a Goa, a cultura portuguesa teria gerado, para

Telo de Mascarenhas, uma condição indesejável de hibridismo.

Esta farsa e a deturpação da realidade impediam o real entendimento entre

Oriente e Ocidente. É importante mencionar que, para os autores aí mencionados, o

cristianismo não fazia parte da cultura portuguesa. No artigo “A raíz portuguesa do

catolicismo”, o autor inicia com a Exposição de Arte Sacra Missionária, em Lisboa,

no Mosteiro dos Jerônimos, e em como foi desvirtuada para fins políticos e de

propaganda. Fala do conflito entre o Padroado e a Sagrada Congregação da

168

(Ressurge, 30-04-1952). 169

(Ressurge, 30-04-1952).

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Propaganda da Fé em Goa, sendo que o primeiro tinha fins políticos e a segunda

realizava apenas obra evangelizadora. Na dita Exposição, Sarmento Rodrigues diz

que a expansão portuguesa teve por alvo o coração dos homens. O autor desmente

essa afirmação, citando vários relatos históricos que mostram a violência dos

processos de conversão.

Afirma no entanto que apesar dessa violência o Goês foi e sempre será

indiano pelo temperamento e pelo sangue. Diz ainda que o “prioridade da

disseminação da Lei de Cristo na India não pertence aos portugueses, mas a São

Tomaz, o Apostolo”170. Cita ainda o caso do italiano Roberto de Nobili (1577-

1656)171, que tinha um real interesse pelo hinduismo, mas que foi mandado embora

da Índia por não se adequar aos propósitos imperiais. Foi porque os métodos foram

violentos que essa raiz portuguesa é detestada e os goeses querem vê-la

erradicada, “embora conservando o Catolicismo, que é um ideal universal”. Assim, o

periódico prevê a possibilidade de ser indiano e cristão.

A posição que mantemos contra o colonialismo portugues [sic] imperante em Goa não nos desvairou a ponto de negarmos a existencia [sic] da cultura portuguesa, e muitos dos nossos são o produto dessa cultura, o que não nos impediu, e até certo ponto alentou, a nossa admiração pela cultura indiana e ateou no nosso coração o fôgo sagrado do nacionalismo172.

Esta passagem apresenta de forma clara a questão que tenho abordado aqui:

o reconhecimento do valor da cultura portuguesa não impede o nacionalismo

indiano, e muito menos autoriza a cultura portuguesa a se impor a outros contextos,

seja através da educação, da língua, ou mesmo da indumentária. Quando

transplantada inadvertidamente, e sem o atenuante dosador do universalismo, esta

cultura transplantada geraria a condição de híbrido. A cultura híbrida que se tem em

Goa não seria a cultura portugesa: “Ora, aquilatar pela cultura hibrida que temos em

Goa, a verdadeira cultura portuguesa, leva-nos a fechar os olhos a realidade e a

praticar graves injustiças”173. A deturpação do real se fazia ainda através da

170

São Tomaz ou São Thomé é tido como o apóstolo de Cristo designado a levar a fé cristã ao Oriente. Existem na Índia, até a contemporaneidade, cristãos que se denominam como “cristãos de São Tomé”. 171

Roberto de Nobili (1577-1656) foi um missionário jesuíta italiano. 172

(Ressurge, 30-04-1952 [meus destaques]). 173

(Ressurge, 30-04-1952).

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perseguição ao ensino, afirma em “O sr. Inspector chegou” que diversas escolas

foram fechadas após a visita do Inspector da Instrução Pública, o sr. Carlos Xavier.

Como se vê, é uma ofensiva em forma contra as escolas do inglês e marata, que são consideradas como viveiros onde se insinuam na alma dos alunos a „negregada‟ semente do nacionalismo174.

No número de 15 de janeiro de 1951, voltamos ao tema da cooperação entre

Oriente e Ocidente, que segundo o autor sempre foi defendida pelos pensadores

indianos. Cita a entrevista de Salazar ao jornal O Século, em que diz que ele diz que

a Ásia está querendo seguir um caminho contra a Europa. Ele diz que Salazar é

prisionairo da Ditadura, que é homem sábio e que não diria estas coisas. Em notícia

de 30 de janeiro de 1951, o autor, comentando uma das cartas do Patriarca D. José

em que ele compara os imperialismos Ocidental e Oriental, diz que o Oriental

sempre se identificou com os povos dominados, enquanto o Ocidental apenas os

explora. Ainda, rebate a noção de que só pelos portugueses Goa pode ser civilizada.

Para isso, o Ressurge retoma a história e mostra que as grandes conquistas que os

portugueses advogam ter conquistado na Índia foi obra da população local, sendo os

mais ilustres homens de Goa todos estrangeiros. Faz crítica ao Patriarca de Goa,

notando que por S.Tomé o Cristianimso havia chego à Índia antes dos portugueses.

Cita Max Muller e Conde de Ficalho, que ambos afirmam que a Índia é uma grande

civilização que pode concorrer para o engrandecimento do Ocidente. “E agora,

convencei-vos, senhores imperialistas, que mesmo sem a vossa presença, Goa não

viveria destituída da luz da Civilização e da Fé”175.

174

(Ressurge, 30-12-1951). 175

(Ressurge, 30-12-1951).

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Capítulo 3

Goa em 1956: Um passado de abandono e um futuro de incertezas

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Introdução

Em 1957, durante o III Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros

(Lisboa), Orlando Ribeiro apresenta seu trabalho com título “A originalidade de Goa”,

publicado posteriormente, em 1959176. As observações apresentadas, bem como os

dados estatísticos referentes à população de Goa, foram coletadas durante o

período que vai de outubro de 1955 a fevereiro de 1956, em que Orlando Ribeiro

chefiou a Missão de Geografia da Índia, ao lado de seus discípulos Mariano Feio e

Raquel de Soeiro Brito177. A missão foi primeiramente idealizada pelo próprio

Orlando Ribeiro, tendo sido proposta por ele ao então Ministro dos Negócios

Estrangeiros de Portugal, em janeiro de 1955178. Como afirma o autor em seu

Relatório (Ribeiro, 1999), o objetivo deste trabalho conjunto teria sido o de

evidenciar a profundidade a que chegara a influência portuguesa na Índia, o que

também estava em concordância com a motivação norteadora de seu trabalho

científico, sendo Ribeiro um autor que fazia de “Portugal e das marcas da sua

presença no mundo o fulcro da sua vida científica e o objecto quase permanente dos

seus estudos” (Ribeiro, 1999:65). Buscarei apresentar, inicialmente, os sentidos que

fundamentaram esta posição científica, na medida em que levam o autor a

compreender Goa através da definição de sua originalidade.

Esclarecidos alguns pormenores muito significativos a respeito do modo como

Orlando Ribeiro articulava e interpretava observações díspares, realizarei uma

leitura do Relatório que produziu a partir da missão de investigação que coordenou.

Este Relatório foi remetido diretamente ao Presidente do Conselho de Ministros de

Portugal, António de Oliveira Salazar. Na seção de Correspondências Oficiais sobre

a Índia Portuguesa, presente no “Arquivo Oliveira Salazar”, na Torre do Tombo

(Lisboa), consta uma cópia datilografada, acompanhada de um cartão de

identificação pessoal de Orlando Ribeiro, com a data de 2 de Maio de 1956179. O

Relatório a que se refere tem o título de “Notas acerca da Situação Actual da Índia

Portuguesa”, sendo que em suas últimas linhas podemos ler: “Dada a natureza do

176

O texto desta conferência foi publicado nas Actas do III Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros (Ribeiro, 1959). 177

Desta Missão, Mariano Feio publicou “As castas hindus de Goa” (1979) e Raquel de Soeiro Brito o livro “Goa e as Praças do Norte” (1966), que recebeu uma edição revista e ampliada em (1998). 178

O então Ministro dos Negócios Estrangeiros era Paulo Cunha. 179

Suzanne Deuveau informa que a cópia do Relatório existente no Centro de Estudos Geográficos havia sido datilografada pelo secretário do Centro, António Machado Guerreiro.

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assunto, este relatório conserva assim um caráter confidencial e terá apenas a

divulgação que o Governo entenda dever dar-lhe”180. O mesmo Relatório veio a

público apenas em 1999, apesar de Suzanne Daveau ter indicado que, no arquivo

de Orlando Ribeiro, existem diversas versões de projetos de publicação referentes

aos resultados da Missão, redigidos no mesmo ano de 1956.

1. A originalidade de Goa: descrição e comparação

Em uma coletânea que reuniu artigos publicados em diversos momentos de

sua vida intelectual, Orlando Ribeiro revela que foi a leitura da obra do etnógrafo,

arqueólogo e filólogo Leite de Vasconcelos (1858 – 1941) que, ainda no Liceu,

despertou nele o interesse pela “arte de evocar o passado através dos seus restos

miúdos e incompletos” (Ribeiro, 1970:12)181. Em Goa, foi diante dos restos de um

passado remoto que Ribeiro buscou definir o sentido da história nacional,

perguntando: “numa época utilitária e realista, que vale o facto de termos ligado à

terra de Goa pouco mais de metade da nossa história como nação independente?”

(Ribeiro, 1999:66). Em primeiro lugar, temos a questão da história nacional não ser

mediada apenas pelo interesse econômico e utilitário. Esta é uma questão que

norteia a leitura de Orlando Ribeiro sobre o caráter específico do colonialismo

português, a que voltarei adiante. A questão passa a ser o entendimento do valor

nacional de Goa, a partir justamente dos restos do passado, e desta forma, a

despeito das razões materiais que poderiam justificar a saída de Portugal da Índia,

há um sentido nacional profundo que está dado pela memória evocada182.

Quem visite as igrejas de Velha Goa, pisando as sepulturas de tanta gente ilustre que lá deixou os ossos, ou as muralhas de Diu cimentadas com o sangue de heróis, quem ouça os cristãos de Damão falar um crioulo que difere menos da língua padrão do que o sotaque

180

O código de referência é AOS/CO/UL – 28 A, página 264. 181 José Leite de Vasconcelos Cardoso Pereira de Melo, cuja formação original foi em medicina, pode ser considerado um dos pais da antropologia portuguesa, tendo deixado uma extensa e inescapável obra que vai da etnografia, à linguística e a arqueologia portuguesas, destacando-se os 10 volumes de Etnografia Portuguesa. Sobre Leite de Vasconcelos, ver o obituário escrito por Orlando Ribeiro. RIBEIRO, Orlando – José Leite de Vasconcellos. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1942 (Sep. de: Biblos, V. 18, T. 1). 182

Na próxima seção mostrarei como as razões materiais eram utilizadas para se questionar a presença portuguesa na Índia como um fardo para a metrópole, o que apenas reforçava a narrativa nacional portuguesa e a leitura de sua especificidade.

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do Brasil, ou cantar as velhas canções que evocam toadas da nossa província, compreende, através da profunda emoção que estas relíquias provocam que, neste património histórico, está muito da nossa razão de ser como nação183.

Estas marcas exteriores das raízes nacionais na Índia Portuguesa são

percebidas primeiramente pela paisagem, e recolocam no argumento do autor a

questão desenvolvida por Leite de Vasconcelos. Assim, Ribeiro disse que para

Vasconcelos, “a Etnografia não era apenas a recolha e ordenação das tradições

populares, mas o estudo da vida coletiva de um povo, das origens às formas

actuais” (Ribeiro, 1970:17). A questão nacional seria assim central às preocupações

teóricas de ambos os autores184, e Orlando Ribeiro reitera a orientação analítica de

Roger Dion, que seria a de se “chegar à história pela observação” (Ribeiro,

1970:52). Se esta questão estava colocada desde sua leitura de Vasconcelos,

Orlando Ribeiro lembra que, nesta hesitação entre a História e a Geografia, foi a

leitura de Vidal de La Blache que o fez optar pela segunda ciência185. Contudo, esta

opção se deu justamente mediante o fato de que a aproximação entre Geografia e

História em Vidal de La Blache estabelecia como uma das principais características

da Geografia Humana o “princípio de explicar as formas actuais pelas suas

transformações no tempo” (Ribeiro, 1987:31).

A influência dos geógrafos franceses na formação de Orlando Ribeiro não se

resumiu a leitura de Vidal de La Blache, sendo de grande importância em sua

formação os contatos que estabeleceu durante os anos que viveu em Paris (1937-

1940). Sua preocupação diante da espacialização do tempo no Mediterrâneo sugere

uma aproximação aos estudos de autores como Fernand Braudel e Marc Bloch186. É

a esta tradição que se refere quando diz que, apesar de o contexto do pós-guerra ter

levado os geógrafos a refletirem sobre realidades muito dinâmicas, o interesse da

geografia deveria se concentrar principalmente nos elementos de permanência.

Afinal, como o próprio autor afirma , “alguma coisa permanece nas próprias obras e

183

(Ribeiro, 1999:67). 184

Destaco que a “questão nacional” - que se confundia com a “questão colonial” - marcou gerações de intelectuais portugueses ao longo do Estado Novo. Cf, entre outros, Thomaz, 1997; Castelo, 1999. 185

Importante considerar que o francês Vidal de la Blache exerceu grande influência neste período, sendo considerado o fundador da geografia regional francesa, muito lido por autores como Lucien Lefebvre. 186

Uma das obras mais conhecidas de Orlando Ribeiro é “Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico” (1945). É de se destacar que, junto com Lefebvre, Marc Bloch foi um dos fundadores da revista dos Annales.

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nos destinos humanos” (Ribeiro, 1970:53), e era através do estudo da transformação

que se chegaria aos elementos desta realidade duradoura. Ribeiro faz assim uma

dura crítica aos trabalhos de “Geografia de grande actualidade, onde

sistematicamente o passado se omite ou desconhece, como se nele não estivesse,

tantas vezes, a compreensão do presente” (Ribeiro, 1970:50). A passagem seguinte

mostra o compromisso de Orlando Ribeiro em relação à aproximação entre história e

observação:

Ao ritmo imperceptível de transformações que a observação sugere mas só o espírito reconstitui, decorre o mais profundo da história humana, aquela que não tem datas nem personagens e flui obscuramente, através da vida popular, do princípio dos tempos até hoje187.

Nos seus Ensaios de Geografia Humana e Regional (1970), Orlando Ribeiro

cita a importância de Siegfried em sua orientação de estudos sob critério regional, e

mostra que esta orientação básica não era corrente em seu meio acadêmico, “como

se as 'regiões' não continuassem a ser as entidades fundamentais de qualquer

estudo de base e uma das faces de toda a Geografia” (Ribeiro, 1970:59). Tratava-se

assim de uma orientação que ganhava terreno no interior da Geografia de cunho

regional francesa, que Orlando Ribeiro buscava levar ao estudo de Portugal e de

suas colônias. A geografia caminhava, dentro desta perspectiva, “cada vez mais

para o estudo, essencialmente concreto, das diversidades regionais: territórios e

paisagens” (Ribeiro, 1987:28)188. No caso do estudo das marcas da expansão

portuguesa, esta orientação tinha a dupla vantagem de também possibilitar o estudo

científico, mesmo diante das lacunas de informações historiográficas sobre esta

expansão.

A etnografia de Jorge Dias (1907 – 1973)189 sobre a população da Ilha da

Madeira190, e o trabalho descritivo sobre arquitetura portuguesa em Goa de Mário

187

(Ribeiro, 1945:52). 188

É nesta mesma linha de argumento que Orlando Ribeiro afirma que é “do exame de fenômenos locais que ela procura elevar-se até às leis gerais que os regem” (Ribeiro, 1987:28). 189

Jorge Dias foi um etnólogo português com doutorado concluído em Munique em 1944, que aplicou em suas pesquisas as diretrizes da antropologia cultural. Sobre Jorge Dias ver Thomaz, Omar Ribeiro: “O bom povo português: usos e costumes d'aquém e d'além mar” in MANA 7(1):55-87, 2001; Leal, João: 2000. “A Antropologia Portuguesa entre 1870 e 1970: Um Retrato de Grupo”. In: Etnografias Portuguesas (1870-1970): Cultura Popular e Identidade Nacional. Lisboa: Dom Quixote 190

Ver Dias, Jorge: “Nótulas de etnografia madeirense: contribuição para o estudo das origens étnico-culturais da população da Ilha da Madeira”. In: Biblos, vol.28: 179 – 201.

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Tavares Chicó (1905 – 1966)191 se tornam dois modelos a partir dos quais Orlando

Ribeiro defende a validade do método regional. Apresentarei brevemente o que

entendo ser a contribuição da abordagem de ambos os autores para Orlando

Ribeiro, para ilustrar a percepção regional da aproximação de aspectos físicos e

humanos na interpretação das paisagens, como afirmava Vidal de La Blache. Então,

poderei abordar a questão da civilização ibérica e do modo como os colonialismos

europeus se distinguiam em relação aos modos de se relacionar com as paisagens

tropicais.

Em “Aspectos e problemas da expansão portuguesa” (1962), Orlando Ribeiro

diz ter chegado, no decurso de suas “investigações de feição geográfica acerca da

expansão portuguesa no mundo tropical” (1962:23) a conclusões semelhantes ao do

etnólogo Jorge Dias192. Isto porque através do seu estudo dos instrumentos de

fixação do português nos trópicos, Orlando Ribeiro conseguiu dar uma resposta ao

grande debate sobre qual seria a origem do colonizador português. Observando

detalhes de ordem técnica sobre a moagem de cereais, encontrou na África do Norte

e em Portugal a mó de braço: “uma destas velhas técnicas que revelam a unidade

de civilização rural do mundo mediterrâneo” (Ribeiro, 1962:24). A mó de braço, típica

do Algarve, só se encontra em Cabo Verde, não existindo nos outros territórios

portugueses. Para o autor, isso seria um “indício de que os pródromos da expansão

portuguesa se fizeram à custa do Algarve, onde está mó de braço era de uso

corrente” (Ribeiro, 1962:25 – rever citação). É neste aspecto, comum aos estudos

etnológicos de Jorge Dias sobre o folclore, que Orlando Ribeiro busca encontrar, na

paisagem observada e descrita, raízes que remontam a um passado distante, e que

assim podem auxiliá-lo a compreendê-lo.

O trabalho de Mário Chicó foi publicado no mesmo ano da viagem de Orlando

Ribeiro a Goa, em um número especial da Revista Garcia da Orta, dedicada

exclusivamente ao estudo da Índia Portuguesa. Interessa-nos aqui compreender em

191 Mário Chicó foi um historiador da arte de origem luso-goesa formado na Faculdade de Letras

da Universidade de Lisboa. Sua obra sobre arquitetura medieval portuguesa e sobre arquitetura em Goa é referência até os dias atuais. Cf. entre outros França, José-Augusto: “O Prof. Mário T. Chicó: a propósito de A Arquitectura Gótica em Portugal” Mário Tavares Chicó, 1905-1966 . Lisboa : Tipogafia A. Coelho Dias [196?], pp.119-122. 192

A questão foi apresentada em termos dos instrumentos de fixação, muito caros ao debate em torno das condições de aclimatação do homem europeu nos trópicos. Neste contexto, a questão da alimentação (a importância do cultivo de cereais) e a questão das formas de residência (o debate arquitetônico sobre as casas) são de grande importância para Orlando Ribeiro, sendo que Gilberto Freyre dedicou algumas páginas a seus estudos sobre casas portuguesas na África.

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que medida Chicó encontrou, através de uma minuciosa descrição, elementos

comprovativos de um “estilo nacional” na arquitetura religiosa de Goa, apesar da

fachada das principais igrejas seguirem padrões renascentistas italianos. A

observação, assim, deve ser minuciosa e metódica, não se deixando trair por falsas

impressões. Descreverei brevemente o argumento de Mário Chicó para então

mostrar de que maneira Orlando Ribeiro buscou se prevenir do perigo analítico de

tomar a semelhança por identidade, agrupando e comparando fatos de forma

descuidada.

Em seu estudo sobre arquitetura religiosa em Goa, Mário Chicó argumentava

que, ao contrário do Brasil, onde a ocupação urbana e os edifícios públicos

acompanharam o lento processo expansão do cristianismo, “na Índia, pelo contrário,

era preciso caminhar mais depressa e dar monumentalidade aos edifícios públicos,

às igrejas e aos conventos” (Chicó, 1956:326). Ao observar além das linhas da

ocupação urbana, o autor tenta compreender a genealogia do traçado das Igrejas da

Índia Portuguesa. Se a fachada é a parte “que mais prende a atenção dos

construtores por ser a que revela maior esforço monumental” (Chicó, 1956:3), é nos

detalhes de uma decoração interna a estas – a talha dourada – que ele consegue

ver além dos “vestígios da escultura renascentista de inspiração francesa e italiana”

(Chicó, 1956:4). Importante notar que, tanto em Jorge Dias como em Mário Chicó, as

observações eram lançadas sobre aspectos residuais, relegados ao presente como

relíquias que evocavam o passado que buscava se compreender.

Assim, vemos que para Orlando Ribeiro o debate sobre os instrumentos de

fixação, como as técnicas de moagem de cereais e a arquitetura adequada a

ambientes tropicais, são elementos de um problema mais amplo referente às

civilizações. E a questão das civilizações é importante, pois, sendo as regiões uma

simbiose entre aspectos físicos e humanos, é através da ação humana que a

paisagem ganharia suas feições mais características. É neste sentido de

transformação das paisagens que Orlando Ribeiro argumenta que o “homem não é

um „produto da superfície terrestre‟ determinado e explicado pelo condicionamento

natural que nela se realiza” (Ribeiro, 1980:55). Para Orlando Ribeiro, o movimento

de expansão europeia, que tornou

ubiquistas as formas de uma civilização, embora com expressões regionais de maior ou menor originalidade, é

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porventura o desmentido mais categórico a este condicionamento natural que até então mantivera técnicas e hábitos dentro dos ambientes a que eles melhor se ajustavam193.

Assim, a região geográfica é entendida por Orlando Ribeiro como o “produto

de combinações naturais a que o homem, com a ferramenta da civilização, soube

dar certa „personalidade‟” (Ribeiro, 1965:16). É assim a ocupação regionalmente

orientada que garantiria a personalidade da região. A questão aqui recolocada é

então a das condições de aclimatação de técnicas e hábitos. Na medida em que a

civilização ocidental seria, de fato, “um poderoso agente de transformação das

paisagens” (Ribeiro, 1970:85), estaria em questão o avanço técnico que prosseguiu

no sentido de estar “rasoirando implacavelmente as expressões regionais das

paisagens e dos modos de vida” (Ribeiro, 1970:77). Desta maneira, Orlando Ribeiro

se coloca diante de uma questão complexa, em que a colonização pode representar

tanto “contatos revigorantes” e criativos, quanto processos destrutivos da

diversidade.

Aparentemente, Orlando Ribeiro oscila entre estas duas perspectivas,

argumentando em seu artigo “Região e rede urbana: formas tradicionais e estruturas

novas” (1965), que “a despeito dos poderosos recursos da técnica moderna – [...]

esta está longe de ser universal e toda poderosa” (1965:6). Acredito, contudo, que a

aparente indefinição seja reveladora da questão de fundo deste problema, qual seja,

o modo como diferentes formas de contato entre civilizações resultam em regiões de

maior ou menor originalidade. É, por exemplo, pelo fato da colonização portuguesa

ser ecológica que ficariam garantidas, nas paisagens que receberam sua influência,

a “personalidade própria de uma „região‟” (Ribeiro, 1970:90).

Vemos que a defesa da “região”, em Orlando Ribeiro, é multifacetada, sendo

tanto uma defesa de ordem científica quanto política. Isto ficará mais evidente na

leitura do Relatório na sessão seguinte, mas é importante destacar que é através

dela que Orlando Ribeiro compreende o lugar da originalidade, ou seja, das

tonalidades particulares entre paisagens que, pertencendo a uma mesma região,

não deixam, contudo, de se individualizarem194. A questão da unidade e da

193

(Ribeiro, 1970:79 [meus destaques]). 194

O conceito de região é alvo de longo debate por Orlando Ribeiro, que se afasta da percepção de que esta seria uma unidade homogênea. Para uma discussão bem detalhada sobre o tema, ver “Região e rede urbana: formas tradicionais e estruturas novas” (Ribeiro, 1965).

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diversidade é central ao debate que Orlando Ribeiro estabelece em torno do

conceito de região, e levanta questões importantes para o presente trabalho. Em “A

originalidade de Goa” (1957), Orlando Ribeiro diz que “duas grandes civilizações, em

tantos aspectos feitas para se repelir, entraram aqui em contacto fecundo; nesse

contacto reside essencialmente a originalidade de Goa” (Ribeiro, 1957:170). Neste

artigo, Ribeiro faz uma leitura sugestiva da orientação metodológica que tenho aqui

abordado, apontando as condições sociais e históricas do contato de civilizações

estabelecido em Goa. Desta, destacava não terem existido “nenhuma inovação no

comércio ou na vida rural, permanência das formas de organização e ocupação do

espaço, mas assimilação profunda acompanhada de uma insignificante mestiçagem”

(Ribeiro, 1957:179).

Nesta assimilação profunda, um dos aspectos enfatizados por Ribeiro é, na

linha de sua formação teórica, a alteração da paisagem. Assim, afirma que “raros

lugares haverá em Portugal onde as marcas religiosas sejam tão aparentes; neste

sentido se falou, com toda a propriedade, de „uma paisagem romântica nos trópicos‟”

(Ribeiro, 1957:173). Seu argumento se assemelha aqui àquele de Mário Chicó sobre

a monumentalidade das igrejas de Goa, e do modo como marcavam de forma

inconteste a paisagem com um daqueles signos mais poderosos da civilização

ocidental: a religião cristã. Foi através do cristianismo que

entraram nela [a população cristã] usos, reacções, sentimentos, formas de vida de relação, maneiras de trajar, que aproximam dos Portugueses gente separada deles pela origem e pela língua195.

A questão que se coloca então é sobre os sentidos desta aproximação.

Assim, Orlando Ribeiro sugere cautela na interpretação destes fatos, mostrando

que, apesar da descrição e da comparação serem elementos centrais da Geografia

regional, um dos aspectos centrais a esta seria o conhecimento de que, a despeito

da semelhança, e visto que “certos traços de relevo, certa tonalidade de clima, certa

fisionomia de vegetação, aproximam lugares distantes, fazem lembrar paisagens já

vistas” (Ribeiro,1987:7 [meus destaques]), ainda assim “cada região é um ser único,

a resultante de combinações complexas que se não repetem integralmente noutro

lugar” (Ribeiro,1987:7). Em outras palavras, as semelhanças não devem nunca

suprimir o reconhecimento desta originalidade, com o risco de se incorrer em

195

(Ribeiro, 1957:174).

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interpretações equivocadas sobre o sentido desta aproximação. A comparação

estabelecida por Ribeiro é em relação ao parentesco, onde “as pessoas se parecem

sem deixarem de ser diferentes” (Ribeiro, 1987:7).

A preocupação em torno deste perigo analítico é também expressa em

Geografia e reflexão filosófica (1980) em que Ribeiro toca em um assunto de grande

interesse a esta pesquisa. Como dirá o geógrafo, existem dois caminhos para o

raciocínio: a aproximação dos fatos, que seria o pensamento indutivo, e a

comprovação de ideias pré-estabelecidas, que seria o pensamento dedutivo. Ao

método indutivo, que defende como sendo o mais característico das ciências

experimentais como a Geografia, seria de grande importância a capacidade de

discernimento, “para não confundir semelhança com identidade e identidade com

aproximação” (Ribeiro, 1980:197). É sugestivo então o questionamento do autor, em

um artigo publicado na imprensa portuguesa: “Onde estamos? Na Índia ou no Brasil,

nos Açores ou em Cabo Verde, ou ainda entre velhas famílias da nossa aristocracia

mais provinciana e mais autêntica?!” (Ribeiro, 1956:50). Assim, sendo a comparação

definida pelo autor como a “alma da geografia”196, o discernimento se sustentaria

sobre a descrição.

É neste sentido que, em “Introdução ao estudo da Geografia regional”

(Ribeiro, 1987), o geógrafo adverte o leitor dos riscos inerentes ao espírito de

sistema, na medida em que este toma o semelhante por igual, ignorando elementos

que poderiam, potencialmente, sustentar separações197. Adverte assim que à

sedução da criação da ordem diante do caos, se apresenta o

perigo de, por espírito de sistema, mostrar igual o que é semelhante e semelhante o que é afim, retendo os caracteres comuns e classificando por eles, mas esquecendo (ou escamoteando...) tudo o que é diferente, e como tal, separador198.

196

A definição aparece em diversos momentos de sua obra, por exemplo, em Ribeiro (1970:25). 197

As duas tendências da Geografia, uma voltada à busca de universais, e outra à busca do particular, existiriam, segundo Orlando Ribeiro, desde a gênese da própria Geografia. A primeira remonta ao conceito de “ecúmena” de Ptolomeu, e a segunda teve sua maior expressão em Estrabão (Ribeiro, 1987:15). Ribeiro ainda dedica algumas importantes reflexões sobre Estrabão em seu livro Geografia e Reflexão filosófica (1980:187). 198

(Ribeiro,1987:8).

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Humboldt e Carl Ritter, fundadores da moderna geografia, se colocam cada

um no interior de uma dessas correntes distintas199. Leite de Vasconcelos é

lembrado por Orlando Ribeiro como o mestre que lhe ensinara além de tudo a

humildade intelectual, a postura de estar “pronto a abandonar a sedução de uma

hipótese que uma exploração mais completa não permite manter ou confirmar”

(Ribeiro, 1980:200). A consciência claramente definida por Orlando Ribeiro é a de

que a busca pela objetividade deve guiar as investigações em geografia, por mais

que fora das ciências naturais não possa haver a definição de métodos e leis

rigidamente universais. Assim afirma que, partindo da observação e buscando nexo

explicativo entre fenômenos, é “precisamente em nome do espírito científico que não

se deve simplificar o que é complexo nem considerar „necessárias e previsíveis‟

relações contingentes e variáveis” (Ribeiro, 1987:11).

Se sua observação tivesse se resumido às famílias dos luso-descendentes de

Salcete, a imagem que teria passado a seus leitores seria a de uma Goa

profundamente lusitanisada: “Mas Goa não é só isto” (Ribeiro, 1956:54). Uma

descrição escrupulosa e ampla, aliada à comparação, teria o mérito de não tomar a

parte pelo todo, sugerindo desta forma uma realidade mais complexa do que as

primeiras impressões poderiam implicar. É através da comparação que Orlando

Ribeiro (1956) pôde afirmar que Goa seria um caso diferente do que ele próprio

havia visto em outros territórios do Ultramar 200. E foi a comparação que lhe permitiu,

em Goa, diferenciar a presença portuguesa entre as famílias de Salcete e do

restante do território. As conclusões que retirou da comparação entre Goa e Damão

serão trabalhadas na próxima sessão, mas sugerem a importância deste tipo de

abordagem para o autor.

Assim, é sugestivo ressaltar que, no que se refere a seu interesse pela

descrição como método, Orlando Ribeiro conta que, em Paris, fora discípulo de

Emanuel de Martonne, a quem descreve como “meu mestre, [que] praticava a

observação mais escrupulosa antes de concluir” (Ribeiro, 1980:197). Diante deste

elogio a seu mestre francês, Orlando Ribeiro apresenta ressalvas à prática de Pierre

199

Para Humboldt tratava-se de uma busca pelo geral, enquanto Ritter atentou-se para a ação humana e para as relações entre os espaços, que não estão nunca isolados (Ribeiro, 1987:XX). Apesar desta sua aproximação a Ritter, Orlando Ribeiro expressa uma profunda admiração por Humboldt (Ribeiro,1980:200). 200

O geógrafo nos revela, em seus cadernos de campo, ter chego à Goa através de uma viagem pelo norte e leste africano. Os cadernos de campo de Orlando Ribeiro estão disponíveis para consulta na secção de Reservados da Biblioteca Nacional de Portugal (Lisboa), em versão digitalizada.

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Birot, também discípulo de Emanuel de Martonne, mas que “pratica sempre a

observação selectiva, eliminando os factos banais e desentranhando os que

considera significativos. Partindo de várias observações rápidas e, ao meu ver, nem

sempre completas” (Ribeiro,1980: 198)201. É neste sentido que diz que

excepto talvez Birot, com quem fiz inúmeros percursos apressados mas de cuja maneira de trabalhar mais me afasto, sem deixar de admirar profundamente o robusto talento e a vastidão da cultura, nunca os geógrafos referidos trabalharam a partir de modelos ou de teorias preconcebidas202.

Em um artigo em homenagem a este mestre em comum, Ribeiro enfatiza que

Birot praticava como método a elaboração de todas as hipóteses possíveis,

assumindo então as opções mais prováveis. Vemos que Orlando Ribeiro se afasta

deste método de observação, inserindo-se na genealogia intelectual que, através do

francês Emanuel de Martonne, o ligava aos geógrafos alemães que mais

admirava203. Ao lado de Pierre Gourou, Carl Troll, com quem Orlando Ribeiro havia

realizado pesquisas em diversas partes do mundo, afirma Ribeiro que “todos me

fortaleceram num conceito de Geografia como „descrição e interpretação das

paisagens terrestres‟” (Ribeiro, 1980:199). Se os modelos reduzem a diversidade do

mundo em um esquema uniforme de códigos, o geógrafo faz a defesa da descrição

enquanto método indutivo fundamental, que partiria da aproximação dos fatos para

construir então as ideias.

O postulado científico que embasava a posição de Orlando Ribeiro era aquele

que havia sido afirmado por Jacques Monod, para quem a natureza seria objetiva, e

não projetiva. A esta tendência a uma geografia projetiva Orlando Ribeiro também

denominou de geografia do futuro, visto pretender que um plano seja constituído a

partir das formas presentes de organização da paisagem. É com certa ironia que

Orlando Ribeiro se refere a esta perspectiva que busca associar região e

201

Orlando Ribeiro conheceu Pierre Birot durante seus anos de estudo em Paris, e o descreveu como “meu excelente amigo e colega Pierre Birot” (1973:166). 202

(Ribeiro,1980:200). 203

Emanuel de Martonne havia estudado na Alemanha, onde a referência principal evocada por Orlando Ribeiro é a de Lautensach (Ribeiro,1980:198).

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planejamento, dizendo que “elas concernem à geografia do futuro, e...o futuro a

Deus pertence, diz a sabedoria popular da nossa língua” (Ribeiro,1973:11)204.

Enfatizado então seu interesse pela geografia regional descritiva, veremos

que Orlando Ribeiro estava consciente de estar apresentando, em seu Relatório ao

governo, realidades incômodas. A Missão tinha como objetivo dar validade científica

a narrativas díspares, sendo que as

observações francamente animadoras de geógrafos e sociólogos estrangeiros, como Gourou, Spate, Siegfried e Gilberto Freyre, receberiam assim ampla confirmação e o desenvolvimento que, nas actuais circunstâncias, parecia oportuno conceder-lhes205.

As observações consideradas animadoras eram aquelas que encontraram em

Goa um estável enraizamento da cultura portuguesa, a exemplo da leitura que

fizemos de Gilberto Freyre. Contudo, Orlando Ribeiro retratou em seu Relatório uma

imagem muito distinta, afirmando que Goa “apareceu aos meus olhos como a terra

menos portuguesa de todas as que vira até então, menos portuguesa do que a

Guiné, pacificada em 1912!” (Ribeiro, 1999:64).

Este é provavelmente o trecho mais citado do Relatório, na medida em que

evidencia uma quebra de expectativas que a leitura de outros observadores

enviados a Goa no mesmo período teria criado. Contudo, em uma publicação de

1957, ano posterior ao envio do Relatório ao governo, Orlando Ribeiro tenta conciliar

as perspectivas mencionadas, enfatizando “a originalidade de Goa na Índia, que as

observações insuspeitas de autores estrangeiros (Krebs, Gourou, Siegfried, Spate)

várias vezes puseram em relevo” (Ribeiro, 1957:179). A curiosa ausência de Freyre

nesta lista de autores pode sugerir dúvidas quanto ao caráter insuspeito do

observador brasileiro, por mais que Ribeiro abrace seus pressupostos teóricos

quanto ao caráter assimilador do português.

Há no trabalho assim proposto pelos membros da Missão de Geografia da

Índia uma necessidade de esquadrinhar a paisagem em seus menores detalhes.

Para a efetivação deste projeto, Orlando Ribeiro e seus dois discípulos percorreram

Goa durante vários meses, onde colocaram em prática os pressupostos da

204

Nada mais distante, assim, da postura assumida por Gilberto Freyre já no fim de sua vida, quando passa a se dedicar ao que denominava “futurologia”. Uma abordagem significativa deste seu projeto pode ser encontrada no livro “Além do apenas moderno” (Freyre, 1973). 205

(Ribeiro,1999:62).

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descrição aqui abordados. Abordarei a seguir os aspectos que mais interessaram a

Orlando Ribeiro, que se afastou da propaganda oficial portuguesa sobre Goa ser um

território assimilado, defendendo contra essa a idéia de um encontro pacífico entre

duas civilizações. O equacionamento de ambas era então ainda incerto, não sendo

garantida a integração de Goa na comunidade de destinos que Gilberto Freyre via

entre os diversos territórios portugueses no ultramar.

Se muita gente visitou Goa nos últimos tempos, não sei de ninguém que, como nós, esquadrinhasse os seus recessos: uns viram apenas o que desejavam encontrar, outros o que lhes mostraram, alguns o que um excessivo apego ao conforto lhes permitia observar sem se desprenderem dele. O meu íntimo modo de ser, se não bastasse o propósito deste relatório, leva-me a ser inteiramente sincero, a não esconder aspectos menos agradáveis, a não dissimular facetas que ferem a nossa sensibilidade nacional. Penso que é bom olhar de frente a realidade, por menos grata que nos seja essa contemplação. Só assim se evitam equívocos, miragens, hesitações, e se sabe ao certo com que contar e donde se tem de partir206.

2. O Relatório: Goa em 1956

Lembro que um extenso relatório “reservado” sobre a situação de Goa em 1951 [sic], mandado espontaneamente ao Presidente da República e ao governo (Salazar agradeceu-me numa longa carta autografada a “preciosa informação”), não teve qualquer resultado prático (Ribeiro, 1981:190)207.

Buscarei abordar a mudança de perspectiva desvelada ao longo do Relatório,

apontando que, se no início somos levados a crer em um afastamento em relação a

Gilberto Freyre, a percepção sobre o núcleo lusitano de Diu nos coloca diante das

mesmas disposições teóricas do autor brasileiro. Mais do que isso, esse aparente

paradoxo se sustenta na construção da imagem do “outro colonizado”. Para Ribeiro,

a inexistência de mestiçagem em Goa não colocaria em risco a pertinência do

projeto português de assimilação dos povos, mas apenas levaria a uma acusação do

hermetismo do sistema de castas hindus, que criou obstáculos à manifestação do

verdadeiro caráter português. Prova disso seria a forte influência portuguesa em Diu.

É neste sentido que Orlando Ribeiro irá avaliar o hinduísmo renascente em Goa,

206

(Ribeiro:1999:65). 207

Apesar de mencionar o ano de 1951, os detalhes apresentados pelo autor comprovam que se trata, na realidade do Relatório que enviou ao governo em 1956 (Ribeiro, 1981:190).

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onde centenas de cristãos convertidos foram reconvertidos ao hinduísmo. Esta é a

ameaça que Portugal deveria, segundo ele, combater.

É neste sentido que diz que é só nos descendentes que podem confiar, mas

ainda mantendo a ressalva de que o sincretismo é pernicioso, o duplo referencial

pode levar a que o jogo mude os termos quando menos se espera, e que este grupo

está em declínio desde a extinção do exército da Índia. Somente com a

consolidação de núcleos lusitanos e de um amplo sistema educacional sob critério

regional é que as raízes portuguesas em Goa, evidenciadas nos monumentos de

Velha Goa, poderão articular-se em um sentido de Pátria comum aos demais

portugueses. É neste sentido que o Dr. António Colaço (1898 – 1983)208 diz ao

geógrafo que, para ele, as duas razões do afastamento entre goeses e Portugueses

se deu pelo Salazarismo e pela figura de Gandhi. Este sentido de pátria ele pôde

encontrar em Damão, sendo que assim se alteraram suas percepções iniciais sobre

a ação lusitana na Índia, fornecendo a contraprova das disposições de caráter que

Goa parecia refutar.

Em referência ao esforço português de manter Goa, a despeito dos prejuízos

econômicos que advém desta posição, é preciso lembrar que para Orlando Ribeiro o

colonialismo português difere do anglo-saxão por não ser marcadamente utilitarista.

Segundo ele, sem amor não é possível governar, e a missão portuguesa em Goa

seria a de todo o Ocidente enquanto detentor da cultura universal. Assim, critica o

desinteresse dos intelectuais portugueses pelo Estado da Índia, mostrando que o

ensino sob salazar não contribui para o estado de coisas. Elogia os monumentos,

dizendo que os jovens deveriam vê-los, pois talvez seriam capazes de senti-los. Goa

faria parte de uma unidade nacional ainda incorrupta, e deveria permanecer

portuguesa.

Fala ainda sobre a divisão de Goa entre as Velhas e as Novas Conquistas,

sendo que na primeira foi maior o fervor assimilacionista, abandonado quando da

obtenção das Velhas Conquistas, cujo interesse foi maior no aspecto da defesa

militar. O hinduismo não foi extirpado até hoje, mas o migrante é sempre o cristão,

que fez do mundo sua casa. Por mais que os emigrantes em Bombaim sejam

notáveis por sua defesa de Portugal, muitos cristãos foram tomados pela miragem

da independência. Um dos maiores problemas de Goa em relação a Diu foi com as

208

O Dr. António Colaço (1898 – 1983) era membro da Escola Médica de Goa.

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conversões em massa, que não garantiram uma verdadeira conversão dos hindus

aos ideais cristãos, sendo que a Igreja teve um papel na manutenção de um

sentimento goês, pela promoção do concanim, com deploráveis consequências209.

A força das castas é tanta mesmo entre os goeses cristãos de Moçambique e,

em Goa, o palácio visitado pelo Ministro do Ultramar teve que ser conspurcado.

Enfatiza o predomínio português entre famílias de Salcete, que não tem uma gota de

sangue português, e são os que melhor ilustram a capacidade de assimilação do

português. Assimilação que, no entanto, ocorreu sem a correspondente

miscigenação, o que talvez a torne incompleta. É assim que Ribeiro questiona: “Mas,

porque não penetrou nesta sociedade o sangue português, quando, em toda a parte,

a colonização se tingiu fortemente das cores das mulheres da terra? Porque a isso

se opunha o vigor do sistema de castas em que os Cristãos de Goa se encontram

divididos” (Ribeiro,1957:175 [grifos meus].

Os hindus, por sua vez, são dissimulados, hábeis e ingratos. De qualquer

modo, Orlando Ribeiro não recomenda a propaganda falsa: cristãos não são a

maioria, e o governo deve insistir no argumento da coexistência pacífica e no

respeito pela tradição hindu. A constatação de sua permanência é mais vantajosa

que mascarar sua existência sob a falsa égide de um ocidentalismo.

Ao contrário do Brasil ou da África, ou mesmo de Macau, onde o português se cruzou, atraído fortemente pela irresistível simpatia que tem para ele a mulher de cor, a mulher indiana repeliu sempre este intruso, que ainda hoje lhe desperta visível desconfiança, se não autêntica repugnância210.

Assim, as causas da marginalidade da mestiçagem em Goa se deu por

razões externas às disposição de caráter do colonizador. Se aqui Ribeiro se

aproxima do argumento de Gilberto Freyre sobre a predisposição à mestiçagem dos

portugueses, em outros momentos se afasta do autor brasileiro. Assim, quanto à

língua, diz que “o concanim é a fala do lar, da rua e do amor” (Ribeiro, 1956:80). Os

lusodescendentes representariam o elemento mais original da expansão portuguesa.

A originalidade de Goa reside neles, onde apesar da reduzida mestiçagem não

impediu a assimilação de valores ocidentais. Deste modo percebemos que as

209

O concanim é a língua vernácula de Goa, falado até a contemporaneidade pela esmagadora maioria de sua população. 210

(Ribeiro,1999[1956]:80).

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publicações de Orlando Ribeiro sobre Goa acabam identificando esta como Velha

Goa e, mais especificamente, às famílias descendentes de Salcete. Seu Relatório

confidencial apresenta contudo uma imagem mais completa, em que o elemento

hindu aparecia enquanto a maioria da população, e o sentimento antiportuguês

prevalescia.

Assim, o Goês cristão se integra sem esforço naquela „unidade de sentimento e de cultura‟ (Gilberto Freyre) constituída por todos os povos de formação portuguesa de quatro partes do mundo (Ribeiro, 1957:177).

Retomemos por um instante a separação entre Velhas e Novas Conquistas tal

qual aparece no Relatório. Em artigo escrito ao Diário Popular quando ainda estava

em Goa, Orlando Ribeiro diz que “quer se chegue a Goa por navio ou por avião, o

viajante desembarca no coração das Velhas Conquistas e são as imagens de uma

terra cristianizada há quatro séculos as primeiras que lhe é dado observar” (Ribeiro,

1956:49). Antes de adicionar a esta imagem o hinduísmo majoritário, principalmente

nas Novas Conquistas, o autor descreve uma série de elementos da paisagem que

observou: “igrejas escrupulosamente caiadas, que se abrem para adros com

cruzeiros monumentais, capelas na margem dos rios ou no cimo dos outeiros”

(Ribeiro, 1956:49). É curioso que esta seja a imagem que o autor apresente para um

artigo destinado à imprensa metropolitana, quando em seu Relatório ao Governo

logo no início ele diz, notadamente desapontado, que Goa “apareceu aos meus

olhos como a terra menos portuguesa de todas as que vira até então, menos

portuguesa do que a Guiné, pacificada em 1912!” (Ribeiro, 1999: 64). O sentido

atribuído ao caráter português deve, contudo, ser investigado. Acredito que se trata

aqui de um sentido mais político-identitário, em comparação com o sentido mais

cultural defendido por Gilberto Freyre211.

No entanto, no mesmo Relatório, Orlando Ribeiro recomenda que o Governo

enfatize a convivência pacífica entre hindus e católicos, ao invés de defender que

Goa é majoritariamente católica e lusófona. É assim que no artigo ao Diário Popular

ele continua suas impressões dizendo que “Goa não é só isto. A população cristã é

hoje menos de metade da total” (Ribeiro, 1999: 54), e os sinais exteriores do tulsi e

211

Não pretendo, contudo, estabelecer que o político e o cultural não possam coincidir ou ao menos se entrecortar. A questão é compreender qual dos níveis cada um dos autores abordou de forma mais detalhada.

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da cruz identificam a casa dos hindus e dos católicos, respectivamente212. As

interpenetrações de ambos os grupos é notada pelo autor, que mostra como os

hindus participam da festa de São Francisco Xavier do mesmo modo que os cristãos

participam da festa do zatra. Diz o autor que “nestas festas, nas reuniões, em

encontros de acaso, a gente de todas as crenças aparece misturada” (Ribeiro,

1999:58). O que Orlando Ribeiro apresenta é uma Goa socialmente complexa, longe

da imagem homogênea que lhe conferia a propaganda oficial. Como proceder para

que sob este único rótulo não se reúna demasiada e perigosa diversidade? A ênfase

em apenas um dos aspectos, a Goa católica, parece não ser a opção política mais

desejável. Como afirma o autor, os fatos podem ser desmentidos. Assim, é na

convivência pacífica de diferentes religiões que se deve insistir a propaganda, visto

ser esta convivência fruto do caráter imutável dos portugueses, que garantiria

unidade ao território.

Apesar desta convivência pacífica, enfatizada nas obras publicadas do autor,

o Relatório é claro quanto ao ambiente de hostilidade sentido em relação aos

portugueses. Assim, devo aqui mencionar alguns aspectos do contexto político local

em 1955, para compreender o lugar em que Ribeiro identificou a insatisfação goesa

em relação aos portugueses. Do ponto de vista moral e material, famílias estavam

separadas pela fronteira com a União Indiana, o que lhes causavam grandes

incômodos. Assim, “famílias que recebiam do homem, trabalhando na União Indiana,

o seu sustento, veem-se hoje privadas de recursos” (Ribeiro, 1956:113). A política

de isolamento estava sendo levada a cabo desde o início de 1954 por parte da

União Indiana, e é descrita em correspondências do então administrador do Banco

Nacional Ultramarino, Teófilo Duarte (1898 – 1958)213. Em 1955, após uma visita a

Goa em março, o administrador escreve um relatório pormenorizado alertando para

o agravamento da situação, onde aponta que existiam na Índia cerca de cem mil

goeses que enviavam mensalmente dinheiro para familiares em Goa, e que esse

212

Orlando Ribeiro faz referência, aqui, ao costume goês de se colocar, em frente às residências, a planta sagrada do hinduismo, o tulsi, ou o símbolo do cristianismo, a cruz. Para uma etnografia atenta especialmente a estes marcadores, ver Perez (2012). 213

Teófilo Duarte havia sido Governador de Cabo Verde em 1918-1919 e de Timor em 1927-1928. Entre os anos de 1947 a 1950 ocupara a cadeira de Ministro das Colônias. No início de 1954, o Reserve Bank indiano passou a consideram pessoas, firmas e companhias das possessões portuguesas como “não-residentes” o que implicava a necessidade de autorização para realizar operações.

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circuito estava ameaçado pelas medidas de impedimento214. Teófilo Duarte fez parte

de uma comissão técnica de econômicos anunciada em janeiro de 1955 pela

Emissora Nacional215, e criada especialmente para buscar saídas ao bloqueio.

A importância dessas remessas já havia sido apontada pelo geógrafo Pierre

Gourou (1900 – 1999) em 1951, quando diz que o dinheiro enviado pelos goeses

emigrados era convertido em terra e casas, sendo que “é a estes emigrantes que

pertencem as casas de bonita aparência que parecem em desacordo com a pobreza

do país” (Gourou, 1951). De fato, e apesar das medidas econômicas terem se

agravado no início de 1955, desde o ano anterior que medidas eram executadas

pela União Indiana com a finalidade de dificultar a circulação de goeses entre as

Goa e Índia216. O bloqueio econômico se fez após as primeiras dificuldades criadas

à circulação de pessoas, e Ribeiro (1956) lembra que “dentro da rigidez do sistema

de castas, muita gente era obrigada a casar na Índia vizinha e não o pode fazer

hoje” (Ribeiro, 1956:113), o que causava um desconforto muito grande

principalmente aos goeses mais jovens. Apesar de os documentos pouco

mencionarem a respeito do impacto social do problema, centrando-se mais em

dados numéricos, estas observações sugerem que a dimensão do impacto destas

medidas ia dos arranjos familiares à exportação interrompida da noz de areca.

Assim, Orlando Ribeiro lamenta que a situação política o obrigou a tratar os

territórios portugueses como ilhas, e sua conclusão é disso sugestiva, dizendo que

“numa situação embrulhada como esta, tudo afinal se pode virar contra nós...”

(Ribeiro, 1956:118), e isto dar-se-ia na medida em que o nacionalismo indiano

estava atraindo cada vez mais goeses, principalmente tendo em vista que “a própria

população local está muito longe de compreender o sacrifício do país em assegurar-

lhe paz social e bem-estar econômico” (Ribeiro, 1956:66). Esta incompreensão

baseava-se na percepção de que Goa seria uma terra amplamente esquecida pelos

portugueses, afirmação que o autor se vê obrigado a endossar, propondo que o

quadro se altere com a aproximação material e intelectual entre Goa e a metrópole.

O afastamento de Goa e Portugal foi por Orlando Ribeiro discutido com o Dr.

214

O relatório de Teófilo Duarte aponta ainda que há um ano (ou seja, em 1954) havia uma afluência semanal de milhares de indianos que vinham da União abastecer o comércio em Goa, e que isso deixou de existir. A viagem do administrador foi relatada na metrópole, onde o jornal “Diário da Manhã” publica a manchete “Uma festa hindu em honra do capitão Teófilo Duarte”, em 7 de março de 1955, onde retrata uma festa com cânticos e danças oferecidas a ele pela família Dempó. 215

PT/TT/AOS/D-N/14/3 (p.122-125). 216

Uma carta de Vital Gomes,de 23 de Abril de 1954 informa que a Índia estaria criando dificuldades para a circulação de portugueses do Paquistão à Goa via Bombaim.

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Antonio Colaço, que pareceu ao geógrafo “pessoa de inteligência invulgar, grande

aprumo moral e possuidor de uma virtude rara aqui – a sinceridade”

(Ribeiro,1956:119). O que apresenta é a necessidade de ser ouvida a população

local, mas, no entanto, Ribeiro parece sugerir que esta resposta não seria favorável

à Portugal, é o que argumenta sobre a questão da identidade goesa em oposição à

Portugal217.

Sobre a identidade goesa, Orlando Ribeiro menciona “um menosprezo da

tradição cristã e da história, um sentimento índio (quem sabe se no fundo não

hindu!) que se sobrepõe ao patriotismo português” (Ribeiro,1956:121). A exceção

ficava com os lusodescendentes, os únicos que possuíam um patriotismo seguro, e

que seriam, “em toda essa massa ondulante e dúbia, inegavelmente os únicos com

quem se pode confiar” (Ribeiro, 1999:122). Neste aspecto, o trabalho de Orlando

Ribeiro assume as diretrizes do pensamento freyriano, mas concorda com a

excepcionalidade do caso Goês tal qual trabalhada por Alberto Carlos Germano da

Silva Correia (1888 – 1967)218. em suas investigações sobre os lusodescendentes.

O comportamento castista dos descendentes não decorreria de uma disposição

racista própria, mas da fronteira imposta pelo sistema de castas. Deste modo,

compreendemos que mesmo em frentes que aparentemente colocariam à prova o

argumento freyriano sobre a mestiçagem, o recurso à narrativa da excepcionalidade,

associada a uma visão específica sobre o sistema social hindu, se colocaram à

margem da retórica lusotropicalista sem contestá-la em seu fundamento. O caráter

português permaneceria existente como potencial, a ser colocado em prática à

medida em que as condições sociológicas locais se tornassem disponíveis a tais

trocas culturais e de miscigenação. É deste modo que entendemos como Orlando

Ribeiro pôde encontrar entre os cristãos de Salcete a mais alta expressão do poder

lusitano de assimilação. Mesmo sem uma única gota de sangue português, eram

expressão viva da cultura portuguesa. Assim,

quase sem influxo de sangue e conservada intacta a estirpe originária da sociedade indiana que abraçou o Cristianismo, que

217

Sobre a indefinição em relação ao futuro, acredito ser essa uma postura que Orlando Ribeiro manifesta ao longo de sua obra. A exemplo disso ele diz: „a História teve, assim, várias possibilidades e qualquer conjectura não passa de puro jogo do espírito” (Ribeiro, 1981:323). 218

Alberto Carlos Germano da Silva Correia (1888 – 1967) foi um médico e antropólogo luso-indiano. Para maiores detalhes sobre sua obra, ver John Monteiro (2007) e Ricardo Roque (2000).

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constitui porventura o mais paradoxal e demonstrativo exemplo da capacidade assimiladora do Português219.

A sociedade Goesa aparece assim como heterogênea, e divergente em seus

posicionamentos em relação a Portugal. Sugestivo o ponto de inflexão em relação

às suas primeiras observações, em que Ribeiro diz que “o estudo do elemento

cristão, a comparação com o núcleo tão português, embora tão restrito, de Damão,

alteraram e corrigiram as observações iniciais” (Ribeiro, 1999:65), sendo que estas

observações se referem à influência que os portugueses conseguiram exercer na

Índia. Em Goa, contudo, prevalecia a identidade Goesa, que se sobrepunha à

identidade portuguesa, e que poderia ou não a esta se vincular. Assim, Ribeiro

mostra que

Ao contrário da África Portuguesa, onde há o maior cuidado em empregar expressões como Metrópole e metropolitano, em Goa opõe-se esta província a Portugal e o goês cristão opõe-se a português. É corrente sermos assim designados por gente muito próxima de nós na fala e nos usos, mas alheia ao nosso sentido de Pátria. Pátria para o goês é Goa220.

A questão mais urgente, apresentada por Orlando Ribeiro, seria a da

educação “porque, ou nós conservamos Goa e vale a pena tentar fazer dela uma

terra mais portuguesa, ou, no dia em que a perdermos, se poderá invocar ainda este

facto contra a legitimidade do nosso domínio” (Ribeiro,1956:102). A ausência do

sentido de pátria seria causado pelo desconhecimento em relação à originalidade da

expansão portuguesa no mundo, bem como da contribuição portuguesa para uma

forma de convívio social que se afastava daquele existente no restante da Índia,

onde o Paquistão seria a prova concreta da intolerância religiosa que certamente

acometeria os católicos de Goa no caso de sua integração à União Indiana. É o que

comenta Ribeiro dizendo que “os cristãos de Goa, com a integração e o sentimento

antiportuguês de que ela necessariamente se faria acompanhar, seriam, se não

inexoravelmente esmagados, ao menos apeados da sua tradicional preponderância”

(Ribeiro,1956:121).

Esta postura era corrente inclusive na imprensa metropolitana, que buscava

definir que só em Goa a tolerância entre hindus e católicos seria possível. O Ministro

219

(Ribeiro, 1957:177). 220

(Ribeiro, 1956:119).

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Interino dos Negócios Estrangeiros envia carta a Salazar, em julho de 1955, dizendo

que se Goa fosse integrada à União Indiana os católicos rapidamente

desapareceriam221.

O impacto na comunidade Goesa de Bombaim do violento processo de

formação do Paquistão (1947) necessitaria de um estudo a parte, mas em 1955, um

aerograma de Pinto Lima222 dizia que a separação entre Índia e Paquistão fez com

que goeses de Bombaim não quisessem a integração de Goa, temendo a violência

que tal projeto poderia desencadear. Diante desse quadro de violência comunal,

havia um esforço por parte do Governo Português em aproximar a questão da

permanência de Goa à Portugal com a própria manutenção da Cristandade na Índia.

A tolerância que Ribeiro (1956) identificava em Goa contrasta todavia com o

clima de ódio aos cristãos no restante da Índia, tal como a imprensa portuguesa

veiculava neste período. No início de 1955, o Secretariado Nacional da Informação

envia aos órgão de imprensa a notícia de que uma procissão de cristãos em Delhi

havia sido interrompida por sacerdotes hindus, que ameaçaram os padres e jogaram

terra na imagem de Nossa Senhora.223 Em junho do mesmo ano, o Diário de

Notícias diz que em entrevista ao jornal, um reverendo chamado Roberto Barreto224

havia confirmado que em Dadrá e Nagar-Aveli os cristãos estavam sendo

perseguidos, e que a imagem de São Francisco Xavier havia sido quebrada.

Possivelmente a voz mais ouvida sobre os cristãos de Goa foi a de Dom José da

Costa Nunes (1880 – 1976), o Patriarca-emérito das Índias Orientais225.

Assim, ante as dificuldades econômicas reais, Orlando Ribeiro sugere à

propaganda portuguesa que não insistisse “em aspectos que o conhecimento dos

factos possa desmentir”, sendo que “um aspecto em que me parece dever insistir-se

é na coexistência pacífica e tolerante de duas religiões, na ausência de conflitos, no

convívio entre cristãos e hindus” (Ribeiro, 1956:99). A questão religiosa ganha assim

uma dimensão primordial no trabalho de Orlando Ribeiro, configurando o sentido e a

originalidade da expansão portuguesa. Na verdade, parece que qualquer elemento

221

PT/TT/AOS/D-N/14/10 (p.196-214). 222

Pinto Lima era membro do corpo diplomático de Portugal em Nova Delhi. Não encontrei informações detalhadas sobre sua carreira e, sendo assim, mantive a referência a seu nome tal qual aparece no documento em questão. 223

PT/TT/AOS/D-N/14/3 (p.122-125). 224

Minhas tentativas de encontrar maiores referências sobre Roberto Barreto não tiveram resultados. 225

Dom José da Costa Nunes (1880 – 1976) foi ordenado Patriarca emérito das Índias Orientais em 1940, depois de ter sido bispo de Macau e Arcebispo de Goa e Damão.

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que Ribeiro tente advogar como fulcral à identidade portuguesa de Goa é

constantemente deslocado e inseguro, em face do caráter e a índole dos sujeitos

hindus. Assim, “como algumas divindades hindus, providas de três rostos e seis

braços, também a verdade sobre Goa tem formas várias e movediças” (Ribeiro,

1956:134).

E, ainda, “numa época utilitarista e realista, que vale o facto de termos ligado

à terra de Goa mais de metade da nossa história como nação independente?”

(Ribeiro, 1956:66). Seria através do reconhecimento da originalidade em questão

que a aproximação entre portugueses e goeses poderia se realizar. Assim, Orlando

Ribeiro dizia, sobre a fronteira entre Velhas e Novas Conquistas, que

é hoje, em grande parte, uma fronteira histórica. É certo que separa dois mundos, mas dois mundos que se interpenetram a ponto de encontrarem uma maneira de conviver na tolerância e no respeito mútuo das suas crenças226.

O caráter português é aqui definido mais em termos formais de organização

das diferenças, no que estabelecido por conteúdos culturais específicos, como

catolicismo ou miscigenação. Mas nem por isso Ribeiro se furta a mencionar os

agravos ocasionados pelo isolamento social e econômico de Goa. Neste quadro de

crescente isolamento, a pesquisa arquivística sugere que alternativas eram

buscadas na tentativa de suprir as dificuldades. Uma carta de Teófilo Duarte ao

Governador-Geral da Índia Portuguesa Paulo Bénard Guedes diz, a respeito das

remessas de goeses emigrados, que “verifica-se que eles têm usado para isso as

vias Moçambique, África Oriental Inglesa e Londres, mas principalmente a primeira

para neutralizar as intenções do Governo da União”227. É importante ressaltar que

essas vias alternativas se confundem com os espaços de forte presença de

migrantes goeses. Não por outro motivo Orlando Ribeiro lembra que “queixam-se os

goeses que Portugal, com tão vastos territórios em África, não os abra ampla e

francamente a esta gente, que noutros lugares tantos serviços têm prestado”

(Ribeiro, 1956:125). Lidos de forma conjunta, a carta e as impressões de Ribeiro

mostram que aos goeses eram mais acessíveis os postos de trabalho na África

Oriental Inglesa do que em colônias portuguesas. É isto que apresenta o autor

226

(Ribeiro, 1956:54). 227

PT/TT/AOS/D-N/14/3 (p.340-350).

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quando diz que “o viajante observa com surpresa a profusão de nomes portugueses

em cidades da África Inglesa; é quase certo que se trata de filhos de Goa” (Ribeiro,

1957:178), e sobre esta presença diz que trata-se de “emigração dos ambiciosos e

dos hábeis, Brâmanes ou Chardó, qualificados para a luta e desejosos de triunfo”

(Ribeiro, 1957:179). A importante exceção de Moçambique recebe do autor logo

uma ressalva, onde diz que “em Moçambique veriam serenamente a integração de

Goa na União Indiana como a forma de acabar com os detestáveis monhés”

(Ribeiro, 1956:125).

Outro contraponto que encontrei se refere à circulação de mercadorias

através do contrabando, como aponta o correspondente do jornal indiano

Statesman, em um artigo intitulado “Abundância de tudo em todas as lojas. A

proibição indiana quanto ao comércio deve ser examinada”. Fala que apesar das

sanções impostas pela Índia em 1955, os produtos são todos encontrados, até mais

baratos que na própria Índia228. Uma outra carta de Pinto Lima, apresenta ainda um

quadro menos homogêneo da comunidade goesa em Bombaim. Diz que os goeses

mais humildes não possuem família na Índia, se organizando em Clubes

Residenciais que agregam aproximadamente quarenta mil pessoas, e que remetem

todas as suas economias para familiares em Goa229. Um quadro distinto é o dos

goeses que são funcionários de escritório, engenheiros e médicos, que em sua

maioria possuiriam família na Índia. O que o quadro sugere é que mais do que sobre

a questão econômica, “ambos aqueles grupos estão todavia ligados à Índia

Portuguesa por um factor comum o catolicismo [sic]”230. A questão é aqui em grande

medida mostrar de que modo a identidade Goesa se associa ao catolicismo, embora

a associação entre este e a Índia Portuguesa não é necessariamente afirmada em

outros contextos que abordarei adiante.

O próprio Orlando Ribeiro ampliará este quadro, dizendo que não seria

apenas o catolicismo que uniria os goeses de Bombaim, mas que “é grande a

coesão desta gente, unida pela origem comum, pelo falar concanim, em terra onde

se fala guzerate e marata, pela religião em oposição aos gentios, pelos usos

228

Ao que parece, a situação se complicou quando o bloqueio de contas portuguesas na União Indiana implicou na impossibilidade de Portugal pagar a pensão devida a residentes no país (PT/TT/AOS/D-N/14/5). 229

Em julho de 1955, muitos goeses de Bombaim não tiveram seus permits renovados pelo governo da União Indiana, o que obrigou muitos a retornar a Goa. Esta expulsão recaiu sobre importantes lideranças dos Clubes, como Sanches de Souza Cruz e Fonseca. (PT/TT/AOS/D/N/14/8; p.119-120) 230

PT/TT/AOS/D/N/14/8 (p.47-49) .

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ocidentais no vestuário e no comer à mesa com talher, etc.” (Ribeiro,1956:82). Ao

sentimento patriótico desta comunidade o autor faz calorosa menção, dizendo que

entre eles encontrou um portuguesismo maior do que o encontrado em Goa, e que

são alvo de forte propaganda indiana, a que a maioria resiste. Porém, muitos

libertadores de Goa são recrutados entre aqueles que estão “demasiado

comprometidos para voltar à terra e um tanto desiludidos nas suas ambições...”

(Ribeiro, 1956:83).

A despeito do sentido um tanto esquivo desta sua conclusão, é de se notar

que as opções em jogo são aí decididas, em última instância, pelas ambições

pessoais e pelo comprometimento individual. Um argumento análogo estava sendo

usado pelo governo português para deslegitimar as pretensões de autonomia por

parte de alguns goeses, sendo que, segundo Oliveira Salazar “as discussões sobre

regimes de maior ou menor autonomia na administração não passaram nunca de

disputas familiares”.231

No mesmo discurso proferido à Emissora Nacional, Salazar lamenta que na

Índia a poesia domine a política, “e seja a sua doce poesia a disparar armas de fogo

contra pacíficos portugueses”232. A postura política de Portugal buscava descrever

sua presença na Índia como dotada de valores que transcendiam os meros recursos

materiais e a presença militar característica de outros regimes coloniais. É assim que

poucos dias após essa sua manifestação, na data simbólica da independência da

Índia (15 de Agosto), em que as ameaças aos enclaves portugueses se

intensificavam, foi feita uma vigília em Roma que teve por objetivo proteger Goa, no

dia marcado para sua amputação. O Padre Antonio Antunes Borges, reitor do

Instituto Português de Santo António proferiu uma palestra na “Rádio Vaticano” no

dia 23 de Agosto, com o título de “Goa, presença da Igreja no Oriente”. Mencionou

esta vigília e falou da missão cristianizadora que os portugueses realizaram em Goa,

e disse que “mais que na força das armas se confiou no valor da oração e do

sacrifício”233. Esta não foi, contudo, a única manifestação de preocupação e fé em

relação ao futuro de Goa.

231

PT/TT/AOS/D-N/14/3.(p.69). Serviço de 10/8/954. ítulo: Discurso proferido pelo Senhor Professor Doutor Oliveira Salazar, Presidente do Conselho, aos microfones da Emissora Nacional. 232

PT/TT/AOS/D/N/14/3 (p.73) . 233

PT/TT/AOS/D/N/14/3 (p.99-101).

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No dia anterior à esperada invasão, o Cardeal Valeriano Gracias234 deu uma

entrevista ao Sunday Standard Bombay News, em que expressava esperança com

a Independência e dizia que o medo sobre o futuro das relíquias de Francisco

Xavier e da Liberdade religiosa dos goeses, com a integração, não se

fundamentavam. Este artigo foi remetido a Lisboa, que não demorou a se posicionar

contrariamente à tomada de posição de Valeriano Gracias. No dia 15 de agosto, o

embaixador do Brasil acusou o Internúncio de estar tomando partido dos que

pretendiam usar a violência.235.

Orlando Ribeiro contudo questiona esta rápida associação entre cristianismo

e patriotismo português, ao mostrar que muitos cristãos goeses estavam associados

identitariamente à Índia. Assim, para o autor o sentimento anti-português era ainda

reforçado, pela ausência de patriotismo português mesmo entre os goeses cristãos,

cujo sincretismo era explorado pela propaganda indiana. Assim, descreve que uma

casa onde “encontrámos uma imagem de Buda (figurando como tal junto com santos

da Igreja), à qual se sobrepõe Cristo crucificado, amparando, com uma das mãos

desprendidas da cruz, Gandhi jorrando sangue” (Ribeiro,1956:121). É nestas casas

de famílias cristãs que encontrou muitas vezes o retrato autografado de Nehru,

problematizando assim que havia ali um cristianismo que não se vinculava ao

patriotismo português. A esta relação entre religião e identidade nacional o caso

descrito de Damão é muito esclarecedor.

A inquisição velou depois pela duvidosa pureza da fé destes convertidos e, através das suas proibições ou das suas tolerâncias, não é difícil surpreender a persistência de práticas rituais em que o hinduísmo é tão rico236.

Orlando Ribeiro corrobora, em seu Relatório, a questionável associação do

problema político de Goa com a questão da Igreja Católica, contrapondo-se assim a

um dos argumentos centrais de Salazar237. Lembra o autor que “a população cristã é

hoje menos de metade do total, desfalcada no cento de milhares de goeses que

vivem na União Indiana, no Paquistão, na África Oriental” (Ribeiro, 1956:54). A

234

Valeriano Gracias era defensor declarado da integração de Goa à Índia, sendo que suas declarações criaram inúmeras polêmicas durante os anos aqui trabalhados. 235

Diante das declarações de Gracias, Garin pediu uma conversa enérgica junto ao Vaticano. 236

(Ribeiro,1957:173). 237

Caldeira Coelho, membro da Legação de Portugal em Ottawa (Canadá), disse que esta postura gerava o incômodo de associal catolicismo com colonialismo.

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busca por associar cultura e política, neste contexto, se fez em grande medida a

partir da questão religiosa. E a postura de Salazar em relação ao Vaticano

exemplifica em grande medida as dificuldades de seu posicionamento.

Assim, se as marcas cristãs na paisagem goesa são dadas constantemente

ao observador que ali chega nas Velhas Conquistas, Ribeiro diz, em artigo ao Diário

Popular, que “aqui a mestiçagem foi apenas de ordem espiritual. Custa a crer que

não corra nenhum sangue português nas veias da nobreza rural de Salcete ou das

antigas famílias cristãs de Margão” (Ribeiro,1956:50), tão perfeita seria, segundo

ele, a sua assimilação238. A questão do sangue português foi colocada pelo próprio

autor a seus interlocutores nativos, que em resposta apenas afirmaram o orgulho de

casta e a repugnância por casamentos com estranhos.239

É principalmente nestas descrições que encontramos em Orlando Ribeiro a

tentativa de fixar a identidade nativa, e onde a imagem do outro começa a ganhar

forma, ao mesmo tempo em que esta imagem é colocada como inoportuna à

solidariedade nacional. É assim que o autor afirma, ao mencionar justamente a

devoção dos goeses cristãos a São Francisco Xavier, que

os goeses cristãos, nos mandós (canções) ou no teatro, entregam-se à proteção de São Francisco de Xavier mas não têm uma palavra de simpatia ou agradecimento por aqueles que aqui vieram defender a integridade do seu território, o sossego dos seus lares e o livre exercício das suas crenças. A gratidão não é o seu forte. Teremos de dar muito, contando receber bem pouco...240.

A imagem do goês era de que mesmo convertido ao cristianismo ele

continuava a carregar em si a índole nativa, descrita como ingrata, dissimulada e

traiçoeira. Em sua grande maioria, atributos que retomam à uma instabilidade ou

falta de forma definida, sendo descrito sobre a mentalidade indiana que “tudo aí é

vário, mudável, assumindo formas transitórias e instáveis; assim como os animais

têm alma, não se admire que o espírito criador...tenha corpo!” (Ribeiro, 1999:86).

Orlando Ribeiro contrasta essa impressão com a que teve na Guiné, Cabo Verde e

238

No Relatório ao Governo (1956), Orlando Ribeiro apresenta o mesmo argumento, dizendo que “o que há de mais português nesta sociedade está representado por velhas e distintas famílias de Salcete” (Ribeiro, 1999:81). 239

A questão dos valores nobiliárquicos dos colonizadores e das elites nativas tem atualmente sido rearticuladas. 240

(Ribeiro, 1999:132 [meu destaque]).

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São Tomé, onde “ficou-me a lembrança de simpatia, de caloroso acolhimento, que

ao português era reservado pelas populações africanas” (Ribeiro, 1999:132),

dizendo que “aqui [Goa], pelo contrário, domina a prevenção, a desconfiança,

quando não a antipatia mais ou menos declarada” (Ribeiro, 1999:132). A impressão

positiva das colônias atlânticas era carregada por Orlando Ribeiro desde a

juventude, quando participou de um cruzeiro de férias organizado durante seus

estudos de doutorado.

Ante essa difícil barreira a ser superada, Orlando Ribeiro pede que os

portugueses sigam os exemplos de homens que ganharam a confiança local através

do amor e do calor humano com que lidava com a população local. O exemplo

positivo vem também dos soldados moçambicanos que estavam em Goa. A barreira

que o “bom exemplo” deveria superar é aquela que, segundo Orlando Ribeiro, seria

característica essencial do hinduísmo “a educação que leva as pessoas a serem

hábeis, tortuosas, dissimuladas” (Ribeiro,1956:96). Ainda,

a sinceridade e a franqueza, a coerência e direitura de caráter, a fidelidade aos compromissos e o apego à palavra dada [...] não têm para o brâmane (e para a maioria dos hindus que o tomam por modelo), qualquer significação241.

Apesar deste fechamento rigoroso diante de contatos com estrangeiros, onde

“para o hindu o português é um estranho, um intruso, um impuro” (Ribeiro,1956:98),

o autor diz que, “no entanto, à face da lei, ele é cidadão português, todos os

caminhos lhe estão abertos e todos acha apertados para a sua insaciável ambição

de domínio” (Ribeiro,1956:99). Por estas razões que Orlando Ribeiro desaconselha

que os goeses sejam empregados em funções administrativas na África, dizendo

que

esta gente, mesmo quando cristã, não se desprende do seu orgulho de raça (julgam-se superiores aos brancos) [...] da sua repulsa pelos negros, em cuja inferioridade acreditam242.

Não poderiam, assim, segundo Orlando Ribeiro, contribuir com o projeto de

assimilação que vinha sendo empregado nos territórios africanos pelos portugueses.

A questão racial assume um lugar importante na obra de Orlando Ribeiro, e na

241

(Ribeiro,1956:96). 242

(Ribeiro,1956:126).

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medida em que dela deriva uma das conclusões de maior peso em seu Relatório,

ela merece uma discussão mais detalhada.

A questão racial na obra de Orlando Ribeiro assume contornos próximos

àqueles estabelecidos por Gilberto Freyre, assumindo que, apesar de não existirem

raças superiores e inferiores, aspectos somáticos não devem ser desconsiderados

em sua dimensão social e política243. É neste sentido que Ribeiro retoma os

argumentos de Franz Boas sobre o papel do meio (social mas também geográfico)

na definição de características somáticas e comportamentais de “raças” distintas, na

medida em que as “entidades biológicas não escapam às malhas do contexto do

ambiente e da civilização que as envolvem” (Ribeiro, 1978:26)244. Em seu artigo “A

terra e a variedade humana. As raças” (1978), Orlando Ribeiro afirma existirem três

grandes raças (Brancos, Pretos e Amarelos), mas aponta para a confusão

comumente observada em tomar por características da “raça” elementos de ordem

cultural, o que o leva a aconselhar que

as raças deviam ser vistas em sua nudez originária, sem as vestimentas ou atavios que se tornaram elementos característicos, e como tal distintivos, da maior parte delas. Mas esses pertencem à civilização e com ela devem ser descritos e interpretados245.

É novamente ao contato das civilizações que Orlando Ribeiro orienta seu

interesse analítico, e é aí que encontra espaço para a leitura dos aspectos

populacionais de Goa e das demais colônias portuguesas. Como apresentei

anteriormente, o orgulho de raça condenado por Orlando Ribeiro entre os goeses

cristãos é a prova de que elementos civilizacionais (a sua inserção em uma

sociedade de castas) desempenham um papel fundamental no estabelecimento de

fronteiras raciais a partir de elementos de distintividade246. O caso de Goa seria

243

“A noção de „superioridade‟ de raça carece, cientificamente, de sentido. O que existe são as „prosápias‟ próprias de cada civilização” (Ribeiro,1978:24). Por “prosápia” entende-se linhagem, ascendência, no sentido aqui definido como conjunto de características próprias a cada civilização, mas entendidas por Ribeiro enquanto perniciosa e portencialmente violenta, sendo descrita por ele, curiosamente, como um “defeito humano” (Ribeiro, 1978:26). 244

O trabalho de Franz Boas que Orlando Ribeiro toma como padrão para essa discussão é o “Mudanças Somáticas nos Imigrantes dos Estados Unidos” (Boas, 1961). O imbricamento de características biológicas e culturais é central para Orlando Ribeiro, e sugerem um sentido bastante particular para sua leitura do comportamento dos goeses. 245

(Ribeiro, 1978:26). 246

Afirma deste modo que, em relação aos „descendentes‟ de Goa, que apesar de muitos serem brancos puros, “outros têm cabelo negro de azeviche e tom de pele bronzeada que não engana” (Ribeiro, 1978:31).

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sugestivo destes contatos, visto teram ali se encontrado civilizações em grande

medida opostas em suas disposições fundamentais247.

A própria leitura da história local Goesa é vista por Ribeiro (1957) nos termos

assim definidos. Ao questionar a dificuldade que os portugueses enfrentaram para

se estabelecer no Ultramar, lembra que “perante a diplomacia oriental, hábil,

dissimulada e tortuosa, as reacções eram por vezes violentas e desastradas”

(Ribeiro,1957:172). Assim, os casos de violência corriqueiramente lembrados por

partidários da causa indiana de integração de Goa eram aqui explicadas como fruto

do caráter não confiável dos orientais. Para Ribeiro, contudo, a presença das tropas

portuguesas em Goa é vista como positiva, visto que “esta presença simpática e

correcta da gente portuguesa não deixará de contribuir para a aproximação de

diferentes parcelas da unidade nacional. A despeito de tudo que a propaganda

indiana possa dizer...” (Ribeiro,1956:132).

O que a propaganda indiana dizia era, de fato, muito distinto: um serviço de

escuta da Emissora Nacional de abril de 1955 interceptou a notícia da “Press of

India” que informava que “um soldado das forças expedicionárias portuguesas, de

22 anos, de nome Mário António da Silva, fugiu de Goa, encontrando-se

presentemente preso em Belgão”248, no estado indiano de Karnataka e muito

próximo à fronteira de Goa. Ainda, a imprensa periódica goesa apresentava

cotidianamente relatos de abuso por parte dos soldados expedicionários. O próprio

Orlando Ribeiro reconhece inicialmente que “parece que a tropa foi recebida com

desconfiança: mas, a pouco e pouco, as crianças foram-se chegando, os homens

convivendo, as mulheres perdendo o pavor e o pânico” (Ribeiro,1956:130).

A desconfiança própria dos nativos deveria, assim, ser revertida com

exemplos de amor, afinal, “sem calor humano não há obra de governo que perdure”

(Ribeiro,1956:133), e o exemplo dado é o de um oficial português em uma aldeia de

Satari, a quem os nativos descreviam como “homem bom”, e ao governador de

Damão, o “enérgico, humano e profundamente simpático à população, capitão

Romão Nogueira” (Ribeiro,1956:128). Ainda, Ribeiro menciona o episódio do

Almirante Quintanilha de Mendonça Dias que agrediu uma importante pessoa de

247

Um exemplo desta oposição é sua afirmação de que “os Brancos do Ocidente criaram uma civilização material sem par e desenvolveram as ciências da matéria, que os Hindus têm por grosseiras em comparação com o seu aprofundamento da vida interior” (Ribeiro, 1978:24). 248

PT/TT/AOS/D-N/14/3 (p.292-294). A notícia ainda informava que o descontentamento entre as tropas era imenso, sendo que se esperava que ao menos uma centena de outros expedicionários buscassem refugio na Índia.

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Margão, “cena em extremo deplorável e ainda viva na memória de todos e por

muitos asperamente comentada” (Ribeiro,1956:121). O autor lembra amargurado

que o Almirante foi depois nomeado Ministro da Marinha.

Em uma carta escrita pelo ministro do Ultramar no ano seguinte ao Relatório

de Orlando Ribeiro, a imagem de desconfiança e suspeição é em grande medida

semelhante, ao questionar o patriotismo de um goês envolvido no negócio da

mineração “que, por acaso usa um título nobiliárquico português – acerca do qual

se diz que tinha na loja o retrato do Senhor Presidente do Conselho e no escritório a

fotografia do Pandita Nehru”249. Vemos que para Orlando Ribeiro essa ausência de

correlação entre nação e religião é vista enquanto um problema, sendo que o ideal

era o equacionamento que pôde observar em Damão. Ali,

como os cristãos não foram convertidos em massa, mas ganhos de verdade à nova religião, eles estão, ao contrário dos goeses, completamente assimilados, na língua, nos costumes, no sentir250.

Ainda em oposição ao caso de Goa, em Damão as castas haviam

desaparecido e a mestiçagem havia se realizado amplamente, sendo forte o

sentimento de aproximação aos portugueses. O contexto em que Orlando Ribeiro

visitou Damão ainda estava marcado pela ocupação indiana em Dadrá e Nagar-Aveli

em 1954. Quando estava em Damão e acompanhou a inauguração de um cinema,

Orlando Ribeiro diz que “comoveu-me às lágrimas a maneira como foi cantado o

hino nacional” (Ribeiro,1956:128). Quem cantava o hino eram, segundo ele, os filhos

de Aniceto do Rosário, damanense morto durante a tomada indiana do enclave, e

que se tornou uma personagem de grande destaque nas comemorações cívicas que

se seguiram ao evento.

Em seus Ensaios de Geografia Humana e Regional (1970), Orlando Ribeiro

argumenta que o sucesso da presença portuguesa em Diu, contra-imagem da

resistência Goesa em relação ao colonizador, é decorrente do forte predomínio

muçulmano na região. Assim, a tradicional percepção de abertura aos casamentos

interétnicos por parte dos islâmicos, que estaria inclusive nos fundamentos do

sistema português de casamentos, permitiu a efetiva manifestação do caráter

249

Esta carta foi escrita em 19 de março de 1957, logo após um atentado que destruiu geradores de energia e outras maquinarias das minas de Sirigão, sendo que o atentado foi atribuído a terroristas indianos. 250

(Ribeiro,1956:127).

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português na Índia. Apesar da simpatia que Orlando Ribeiro diz ter encontrado entre

os portugueses de Damão e a população local, o medo em torno das ameaças de

ocupação de Damão estavam carregadas de projeções negativas sobre os indianos,

onde o governo de Damão emite uma nota dizendo que estavam se organizando

bandos de “gente das atrasadas tribos vizinhas”, em uma situação parecida com as

agressões precedentes em Dadrá e Nagar-Aveli.

Talvez a maior prova apresentada por Orlando Ribeiro na tentativa de afirmar

o patriotismo dos damanenses e sua fidelidade e Portugal seria que estes

“recusaram servir na Praganã de Nagar-Aveli sob a dominação estranha, não

obstante as vantagens e promessas que lhe ofereceram os ocupantes”

(Ribeiro,1956:127). Ao sentimento patriótico correspondia assim dois fatores

importantes na leitura de Orlando Ribeiro (1956) sobre Damão. O primeiro seria a

verdadeira conversão ao cristianismo, e o segundo a ampla mestiçagem. São estes

dois fatores que se alinham diretamente às formulações lusotropicalistas de Gilberto

Freyre. Em Damão “as castas desapareceram, a mestiçagem realizou-se

amplamente e hoje é impossível distinguir aí naturais e descendentes, tanto que o

tipo físico local, menos escuro do que o de Goa, se aproxima mais do nosso”

(Ribeiro,1956:127). Ou seja, em Damão a imagem dos portugueses encontrava

correspondências etnográficas que o autor não encontrou em Goa, a não ser entre

os “descendentes”, que no caso de Goa se distinguiam claramente dos “naturais”.

Em Goa, os nativos seriam marcados pela ingratidão.

O discípulo de Orlando Ribeiro, Mariano Feio, publicou em 1979 o resultado

das pesquisas realizadas de outubro 1955 a abril de 1956 com o título de “As castas

hindus de Goa”, onde diz que os “descendentes” tinham sua origem étnica nos

casamentos de portugueses com mulheres nativas, sendo reconhecidos por sua

fidelidade à metrópole, e ainda “com certeza de início sem espírito nem intenção de

casta, o facto de as outras castas os segregarem obrigaram-nos a formar um grupo

praticamente endogâmico” (Feio,1979:24). Assim como defendido por Orlando

Ribeiro, a mestiçagem era praticamente inexistente em Goa em decorrência da

estrutura de castas do meio social circundante, sendo o indiano fechado a

casamentos fora de sua casta e nutrindo certo desprezo pelos europeus. Segundo

apresenta, apenas mulheres de castas inferiores (principalmente entre as castas das

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bailadeiras251) buscaram nestes casamentos possibilidades de ascensão social.

Aliás, essa busca por ascensão aparece ao longo de todo o Relatório de Orlando

Ribeiro, e sobre os goeses disse que “ser hábil em conseguir os seus fins – talvez

seja o que melhor define a sua ética de procedimento” (Ribeiro,1956:96).

Vemos assim que a questão da mestiçagem é fundamental para a construção

das índoles do português e do hindu, sendo estas em grande medida imagens

opostas. Em Damão e Diu, justamente pela presença muçulmana ser maior que a

hindu, o meio era favorável à mestiçagem. No entanto, as bases promovidas pela

mestiçagem são questionadas pelo próprio autor. Nos últimos dias de sua

permanência em Goa, Orlando Ribeiro faz referência aos ataques aos postos de

polícia, e comenta a boa impressão que as tropas de negros causava em Goa, e os

benefícios que este contato poderia trazer. Conclui ainda dizendo que o

comportamento português é o mesmo em toda parte, o problema seria a estrutura

social indiana. Dizendo que o Relatório se desalinha com estudos que se dedica,

justifica sua intromissão em questões políticas importantes para sua época.

Defender a todo o transe essa unidade afigura-se a única forma de servir os interesses não só de Portugal mas da Europa, e da própria civilização, ocidental ou universal, porque é ela só que possui verdadeira universalidade (Ribeiro,1956:73).

3. A ausência de sentimanto nacional

Durante o período que esteve em Goa, enquanto chefe da Missão de

Geografia à Índia, Orlando Ribeiro publica, em Garcia da Orta: Revista da Junta das

Missões Geográficas e de Investigações do Ultramar (1956), um artigo sobre a festa

de exposição das relíquias de São Francisco Xavier, em Velha Goa. Curiosamente,

diz ter presenciado uma cidade de ruínas e fantasmas que volta à vida, sob a fé

única em um santo que uniu em Goa gente de todas as religiões e origens. A

capacidade metafórica desta celebração é evidente, e foi articulada pelo próprio

governo português, que transformou a ocasião em uma grande celebração da

orientação humanística da presença portuguesa na Ásia. De qualquer modo,

251

As bailadeiras compõem uma casta de dançarinas dos templos hindus, uma função ritual descrita em pormenor por Rosa Maria Perez (2012).

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Orlando Ribeiro sugere observações interessantes. Diz que “toda Goa vem aqui, e

esta é a melhor amostra da sua complexa sociedade” (Ribeiro, 1956:178). E nesta

amostra que o geógrafo entrevê que, sendo a sociedade hindu rígida em seu

sistema de castas, “é este o filão que pode revelar a que profundidade chegou,

numa sociedade estranha, a influência portuguesa” (Ribeiro, 1956:180). Como o

mesmo autor afirma em “A festa de São Francisco Xavier em Velha Goa” (1956),

se aqui não houve, esbarrando contra a força de uma sociedade imobilizada, a larga mestiçagem tão característica da restante colonização portuguesa, com uma fé nova entraram outros elementos da vida espiritual e afetiva252.

A festa observada por Orlando Ribeiro é elucidativa da permanência de

tradições católicas de origem portuguesa mesmo entre membros de diversos grupos

étnicos, religiosos e linguísticos. A mesma preocupação com a profundidade das

raízes portuguesas que o autor apresentou no Relatório de 1956 aparece aqui,

mostrando que é no cristianismo que reside a capacidade assimilacionista do

português em meios menos receptivos. Não deixa de apresentar, para fins desta

argumentação, um olhar comparativo com o caso de Damão. É da observação desta

originalidade que o papel do cristianismo encontra-se em sua forma mais pura em

todo o espaço do Ultramar português. É aqui que podemos ver que, mesmo em

condições mais adversas, o assimilacionismo português foi um fator preponderante.

A todo momento trata de pensar qual a relação entre as observações feitas em Goa,

em sua especificidade regional, com o modelo português, representativo da

permanência do caráter português. Este caráter é diferente daquele encontrado na

colonização britânica, na medida em que tem uma orientação humanista. Para o

geógrafo, Portugal possui uma identidade linear, homogênea, já os goeses são

marcados pelo sincretismo, pela inconstância e dubiedade. É essa observação que

o leva a pensar o lugar dos goeses nos quadros do Império Português, dizendo:

... ao contrário dos cabo-verdianos, colaboradores devotados e leiais dela [a administração ultramarina], tão portugueses nos sentimentos e na mentalidade, esta gente, mesmo quando cristã, não se desprende do seu orgulho de raça (julgam-se superiores aos brancos), dos seus preconceitos de casta, da sua repulsa pelos negros, em cuja inferioridade acreditam.

252

(Ribeiro, 1956:180).

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Quer dizer: como colaboradores de uma política de indiscriminação étnica e de verdadeira assimilação, teriam tendência de se fazer o contrário do que se exigiria deles253.

Assim, Ribeiro, ao observar a inadequação dos preceitos do caráter

português de ação nos trópicos em Goa acaba por reafirmar os principais

estereótipos em jogo. Ou seja, defende o caráter português, que em Damão estaria

provado de que mesmo na Índia foi promovido com o mesmo empenho, e defende

também o estereótipo do indiano, marcado pelo preconceito e pela pretensa

superioridade. Sobre o preconceito de cor por parte dos goeses, lembra o autor que,

durante sua estadia em Moçambique, um descendente de goeses “surpreendeu-se

quando, numa excursão, convidei para nossa mesa o motorista preto. „Eles não

podem pensar que têm os mesmos direitos que nós, o governador pode saber...‟”

(Ribeiro, 1981:198). Outro exemplo que lembra é o do geógrafo luso-indiano

Francisco Xavier da Silva Telles (1860 – 1930), introdutor no ensino superior de

Portugal dos estudos geográficos254. Nascido em Goa, Telles pertencia ao grupo

restrito de famílias descendentes, que defendia a condição especial dos portugueses

em se adaptar aos trópicos, desde que atentas as condições de aclimatação e

higiene mais fundamentais.

Orlando Ribeiro buscou encontrar em Goa as razões da ausência do

sentimento patriótico (português). É importante ressaltar: em Goa! Pois, como

afirmou Orlando Ribeiro em um trabalho posterior,

os goeses, com quem convivi em tantos lugares, sentiam-se portugueses, tanto como quaisquer outros, menos em Goa, onde aflorava o patriotismo local. Era, aliás, a única “colônia” onde não se falava de “metrópole” e de “metropolitanos”, mas de Portugal e de portugueses – por muito representativos da nossa cultura e da nossa índole que alguns filhos de Goa tenham sido entre nós (Ribeiro, 1981:275 [meus destaques]).

Diversas razões foram abordadas – ausência de mestiçagem, religião híbrida,

fraca influência da língua portuguesa – sendo que a única saída seria, para ele,

apostar na rearticulação das identidades regionais. Apesar dos modos distintos de

se abordar Goa, quando comparado principalmente a Gilberto Freyre, a saída

253

(Ribeiro, 1999:126). 254

Francisco Xavier da Silva Telles (1860 – 1930) era nascido em Pondá, Goa, e era formado na Escola Médico – Cirúrgica de Lisboa. Em 1928, assume o cargo de reitor da Universidade de Lisboa.

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parece ter sido, contudo, semelhante: em um contexto onde a influência portuguesa

havia sido pontual, eram esses valores que deveriam ser promovidos pelo Governo.

A secundarização dos demais não passou despercebida pelos nacionalistas goeses,

como pudemos ver a partir do trabalho de Telo de Mascarenhas.

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Considerações finais

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Esta dissertação se organizou em torno de três olhares sobre Goa na década

de 1950. Gilberto Freyre, que chegou a Goa em 1951, esteve no Instituto Vasco da

Gama, onde proferiu um discurso sobre o escritor goês Moniz Barreto. Tendo em

vista que Freyre descreveu sua viagem à Índia a partir de referências que remontam

a sua formação intelectual, tentei compreender em que medida o autor endossou o

conselho que Oliveira Lima havia dado a Moniz Barreto, de que nos trópicos

residiam suas esperanças no futuro não apenas das civilizações lusotropicais, mas

de uma nova forma de convívio humano. Assim, se os processos de descolonização

eram vistos como resultado de um processo positivo de retomada de valores

regionais, Freyre temia que esta retomada se desse de forma contrária ao caráter

português de equilíbrio de antagonismos. Em outras palavras, Gilberto Freyre

admirava o que entendia serem ressurgências culturais, mas condenava os

separatismos políticos que encontrou, por exemplo, em alguns goeses de Bombaim.

A viagem de Gilberto Freyre projetava para o futuro de Goa um passado que se

recolocaria no interior de uma nova comunidade transnacional, definida por Freyre

enquanto pertencentes a uma mesma comunidade de destinos.

A leitura de Gilberto Freyre me levou a problematizar as relações entre cultura

e política, ou entre uma tradição que se apresentava enquanto um dado da

experiência e projetos políticos que poderiam assumir diferentes orientações. Assim,

Gilberto Freyre elogiava tanto Oliveira Salazar quanto Jawaharlal Nehru, visto que

ambos defendiam a retomada de tradições e incentivavam essas ressurgências.

Esta mesma dinâmica entre cultura e política foi abordada no segundo capítulo,

quando procurei mostrar a realidade de muitos goeses que defendiam um regime de

autonomia administrativa no Estado da Índia Portuguesa que não implicava em sua

independência política de Portugal. A trajetória de Telo de Mascarenhas é sugestiva

de como estas duas alternativas estavam colocadas, na medida em que, em um

primeiro momento, o goês defendia que Goa permanecesse portuguesa, acreditando

inclusive que a presença portuguesa na Índia não se alinhava aos imperialismos de

outras nações europeias. No entanto, o seu retorno à Índia em 1948 assiste a uma

grande transformação e Telo de Mascarenhas passa a defender Goa como parte

integrante da Índia para a qual deveria “retornar”. Como busquei acompanhar

através do periódico Ressurge, Gôa!, essa mudança de posições políticas não

implicava em uma alteração fundamental das disposições que o autor apresentava

desde seus trabalhos de orientação salazarista. Assim, acredito que o definiu em

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grande medida a passagem de Telo de Mascarenhas para a luta anticolonial em

Goa foi sua compreensão sobre as relações entre cultura e política. Assim, sua

defesa do nacionalismo indiano esteve associada ao entendimento de que, em Goa,

a cultura portuguesa estava instrumentalizada, servindo a fins coloniais, e não ao

real entendimento entre Oriente e Ocidente. Dessa forma, Telo de Mascarenhas

continuou alinhado a uma posição fundamental esboçada já nos anos em que foi

editor do Índia Nova, que seria a defesa de um amplo diálogo civilizacional cujo

palco ideal seria Goa.

Vemos assim que, se para Gilberto Freyre a cultura portuguesa estava

intimamente enraizada em Goa, sendo que as decisões políticas seriam secundárias

em relação a este vínculo real intimamente revelado, para Telo de Mascarenhas a

identidade indiana de Goa estava suplantada sob esse portuguesismo superficial,

instrumentalizado e inautêntico, e deveria em breve ressurgir. Se Gilberto Freyre

compreendeu a identidade portuguesa de Goa através da seleção de valores

culturais empaticamente revelados e tipicamente caracterizados, Telo de

Mascarenhas faz a defesa dos fatos em oposição à farsa da cultura portuguesa, que

estava orientada em Goa para servir aos fins coloniais de dominação dos goeses.

Estes fatos, contudo, eram menos observáveis do que compreendidos a partir de

uma releitura da história de Goa e do colonialismo português. Neste sentido, Telo de

Mascarenhas se aproxima das teses fundamentais do nacionalista goês Tristão de

Bragança Cunha, que defendia que os goeses estariam desnacionalizados, ou seja,

a cultura portuguesa constituiria uma barreira ao real entendimento sobre suas

origens culturais indianas.

A questão do sentimento nacional foi, como vimos, um dos elementos mais

importantes das observações do geógrafo Orlando Ribeiro. Foi este autor que

colocou em primeiro plano a diversidade inerente a uma sociedade marcada pelo

que entendia ser o encontro de duas civilizações. Assim, para o geógrafo português,

não se tratava nem de encontrar apenas o tipicamente português (embora o fizesse

também pelas mesmas vias sentimentais de Gilberto Freyre) nem de secundarizar

estes mesmos valores culturais (embora encontrasse a fragilidade do sentimento

nacional português entre os goeses). Os valores portugueses e indianos faziam,

ambos, parte da realidade social goesa, que era descrita, fotograficamente, em

todos os elementos que o autor pôde observar. Assim, argumentei que a própria

formação intelectual de Orlando Ribeiro apontava para esta forma de abordar as

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paisagens e populações por ele observadas. O Relatório que produziu ao governo

português em 1956 é um material elucidativo desta sua postura, onde as relações

entre o cultural e o político são mais fluidas e, portanto, imprevisíveis.

A despeito de seu futuro político, Gilberto Freyre defendia, então, que Goa

havia sido intimamente reestruturada no sentido lusotropical de vida, e que seria

portanto para sempre lusoindiana. Telo de Mascarenhas afirmava, por sua vez, que

seu futuro espelhava nada mais que seu passado remoto, ainda que a tradição

indiana, por sua plasticidade, permitisse o intercâmbio de valores culturais de

origens diversas. Para Orlando Ribeiro, e por mais que seus conselhos ao governo

tivessem o intuito de fortalecer o sentimento nacional português entre os goeses, o

futuro de Goa estava em aberto. Por mais que seu diagnóstico apontasse para o

perigo iminente da dissolução da Índia Portuguesa, havia espaço para ação em

sentido contrário. E Orlando Ribeiro lamentou profundamente que seus conselhos

não foram seguidos por Salazar, perdendo-se em Goa a chance de uma sociedade

marcada por esse duplo tesouro de civilizações.

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Mapas e Fotos

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Mapa 1.

Mapa mostrando os três principais territórios da Índia Portuguesa (Goa, Damão e

Diu) e a cidade indiana de Bombaim 255.

255

Acessado pelo autor em 10/01/2017 no site Alcance a Geografia.

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Mapa 2.

Mapa de Goa, mostrando a capital Pangim e a cidade portuária de Mormugão 256.

256

Acessado pelo autor em 10/01/2017 no site Old Photos Bombay.

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Mapa 3.

Mapa de Damão, mostrando os enclaves de Dadrá e Nagar-Haveli 257.

257

Acessado pelo autor em 10/01/2017 no site Área Militar.

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Foto 1.

Primeira página da Conferência lida por Gilberto Freyre no Instituto Vasco da Gama (Goa) em 24 de Novembro de 1951. Reproduzida do Boletim do Instituto Vasco da Gama, n.72, 1956 258.

258

Acessado pelo autor em 10/01/2017 no site Memórias de África e do Oriente.

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Foto 2.

Página do Ressurge, Gôa!, de 30 de dezembro de 1951, felicitando a viagem de Gilberto Freyre a Goa 259.

259

Foto retirada pelo autor, do acervo da Biblioteca Nacional de Lisboa.

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Foto 3.

Capa da primeira edição do Relatório ao Governo Goa em 1956, publicado em 1999 pela Comissão Nacional para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses 260.

260

Acessado pelo autor em 12/01/2017 no site dedicado ao espólio científico de Orlando Ribeiro.

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