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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA MESTRADO ACADÊMICO EM SOCIOLOGIA FILIPE PINHEIRO RODRIGUES A MOBILIZAÇÃO QUILOMBOLA NO CEARÁ E OS EFEITOS DO PROCESSO DE TERRITORIALIZAÇÃO: DO RECONHECIMENTO À IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS FORTALEZA – CEARÁ 2016

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA

MESTRADO ACADÊMICO EM SOCIOLOGIA

FILIPE PINHEIRO RODRIGUES

A MOBILIZAÇÃO QUILOMBOLA NO CEARÁ E OS EFEITOS DO PROCESSO DE

TERRITORIALIZAÇÃO: DO RECONHECIMENTO À IMPLEMENTAÇÃO DE

POLÍTICAS PÚBLICAS

FORTALEZA – CEARÁ

2016

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FILIPE PINHEIRO RODRIGUES

A MOBILIZAÇÃO QUILOMBOLA NO CEARÁ E OS EFEITOS DO PROCESSO DE

TERRITORIALIZAÇÃO: DO RECONHECIMENTO À IMPLEMENTAÇÃO DE

POLÍTICAS PÚBLICAS

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado Acadêmico em Sociologia do Programa de Pós-Graduação em Sociologia do Centro de Estudos Sociais Aplicados da Universidade Estadual do Ceará, como requisito parcial para obtenção do título de mestre em Sociologia. Área de Concentração: Sociologia. Orientador: Prof. Dr. Jouberth Max Maranhão Piorsky Aires

FORTALEZA – CEARÁ

2016

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FILIPE PINHEIRO RODRIGUES

A MOBILIZAÇÃO QUILOMBOLA NO CEARÁ E OS EFEITOS DO PROCESSO DE

TERRITORIALIZAÇÃO: DO RECONHECIMENTO À IMPLEMENTAÇÃO DE

POLÍTICAS PÚBLICAS

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado Acadêmico em Sociologia do Programa de Pós Graduação em Sociologia do Centro de Estudos Sociais Aplicados da Universidade Estadual do Ceará, como requisito parcial para obtenção do título de mestre em Sociologia. Área de Concentração: Sociologia.

Aprovada em: 30 de Junho de 2016.

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________________________

Dr. Jouberth Max Maranhão Piorsky Aires (Orientador)

Universidade Estadual do Ceará – UECE

___________________________________________________________________

Dra. GustavaBezerril Cavalcante

Universidade Estadual do Ceará – UECE

Dr. João Tadeu de Andrade

Universidade Estadual do Ceará – UECE

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AGRADECIMENTOS

Agradeço, primeiramente, ao Bom Deus que Jesus gostava de chamar de Abba

(Paizinho), por me conceder mais uma oportunidade inestimável de aprendizado e

crescimento intelectual e de convívio com pessoas tão diferentes e distintas, com

quem pude estabelecer novos vínculos de amizade.

Aos meus Pais (Rodrigo e Zuila), por todo apoio e compreensão, sempre

fundamentais.

Ao meu irmão (Frederico), pela força e incentivo que sempre me deu.

À minha amada e querida noiva Vanessa, grande fonte de inspiração e companheira

em todas as horas, por todo amor e carinho que tem me dado.

Ao meu professor e orientador Max Maranhão, por compartilhar tantas informações,

conselhos e experiências comigo.

Aos meus colegas de mestrado pela rica troca de saberes, compartilhados durante

os bons e maus momentos vivenciados ao longo deste período. Em especial aos

amigos George Arruda, Felipe Pessoa, Thiago Halley – pelas conversas sempre bem

humoradas e edificantes – e à Angícia, pelas sugestões e ajuda na revisão do texto.

A todos os professores(as) do curso que contribuíram com a minha formação. Em

especial àquelas ajudaram no aprimoramento de minha pesquisa – professoras

GustavaBezerril e Preciliana Morais, durante a elaboração do texto inicial do pré-

projeto; e Susana Abrantes, pelas dicas e sugestões na qualificação – e que me

possibilitaram o acesso ao conhecimento de outras culturas – professoras Kadma

Marques e Anne Sofie, no francês, e professor João Tadeu, na disciplina Saberes

Tradicionais da Cura.

A toda equipe da CODEA/Diversidade, na SEDUC, em especial às professoras

NohemyIbanez, Aline Mota, Adriana Majda, Bernadete Feitosa, Monica Gedelha e ao

professor Tom Jones pela colaboração no desenvolvimento de minha pesquisa de

campo e pelos convites para participar do planejamento e execução de atividades

desenvolvidas pela equipe; e às técnicas da SDA Karine e Sandra Bandeira pela

atenção e informações concedidas.

Ao professor Alex Ratts e ao antropólogo do INCRA, José da Guia Marques pela

prestatividade e colaboração durante às entrevistas e no acesso vários documentos

que foram fundamentais à minha pesquisa.

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Aos demais mestres que conheci durante o curso, em especial ao Pajé Barbosa

(Pitaguari), Cacique João Venâncio e Pajé Luis Caboclo (Tremembés), pelos

precisos conhecimentos compartilhados na disciplina “Saberes Tracionais da Cura”.

E ao professor João Tadeu pela iniciativa da mesma.

À todas as comunidades e lideranças quilombolas do Ceará, em especial à amiga

Cláudia Quilombola e à Caravana Cultural Quilombola de Caucaia pelo belo

exemplo de resistência, luta e esperança que transmitem.

A todas as pessoas que fazem o mestrado – antigo MAPPS e atual PPGS da UECE

– acontecer e a todos que contribuíram, direta ou indiretamente, na elaboração

desta pesquisa, meu muito obrigado de coração.

Espero que este trabalho lhes seja útil de alguma forma.

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“Eu tenho um sonho que as crianças um dia irão viver em uma nação onde elas não serão julgadas pela cor da pele, mas pelo conteúdo de seu caráter... Eu tenho um sonho que um dia... meninos negros e meninas negras poderão unir as mãos com meninos brancos e meninas brancas como irmãs e irmãos... Esta é a nossa esperança.”

(Martin Luther King Jr.)

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RESUMO

O objetivo deste trabalho é analisar os efeitos do processo de territorialização sobre

a população quilombola no Estado do Ceará a partir da Constituição de 1988 – que

reconheceu, pela primeira vez, direitos para os “remanescentes de quilombo”. O

trabalho pretende responder aos seguintes questionamentos: 1) quais os impactos

do processo de territorialização sobre os quilombolas no Ceará? 2) como esta

população começou a ganhar visibilidade no Estado? 3) como as mudanças na

legislação federal afetam a dinâmica das políticas públicas para os quilombolas no

Ceará?; e, finalmente, 4) como as lideranças quilombolas começaram a se organizar

para terem acesso a estas políticas? Os dados que serão utilizados foram obtidos

por quatro fontes distintas, a saber: 1) pesquisa documental realizada no Instituto

Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA-CE), na Secretaria de

Educação (SEDUC), na Secretaria de Desenvolvimento Agrário (SDA), na

Coordenadoria Especial de Políticas Públicas para a Promoção da Igualdade Racial

(CEPPIR) e nos sites oficiais da FCP, da SEPPIR e do MEC; 2) pesquisas

acadêmicas que estudaram direta ou indiretamente as comunidades quilombolas no

Ceará; 3) registros de campo realizados durante participação em eventos e reuniões

com técnicos e lideranças quilombolas promovidas pela SEDUC e pela CEPPIR

durante os anos de 2014 e 2015; e 4) Entrevistas semi-estruturadas com técnicos da

INCRA, SEDUC, SDA e CEPPIR e com algumas lideranças quilombolas. A pesquisa

demonstra como o processo de territorialização sobre os quilombolas no Ceará

resultou na implementação de políticas públicas para esta população a partir de

2005, bem como na organização política de lideranças quilombolas que passaram a

desenvolver ações para acessar as mesmas.

Palavras-chave: Etinicidade. Quilombola. Políticas Públicas. Territorialização.

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ABSTRACT

The objective of this work is to analyze the effects of the process of territorialization

on the quilombola population in the State of Ceará from the Constitution of 1988 -

that recognized, for the first time, rights for the "remnants of quilombo". The paper

intends to answer the following questions: 1) what are the impacts of the

territorialization process on the quilombolas in Ceará? 2) How did this population

begin to gain visibility in the state? 3) how do changes in federal legislation affect the

dynamics of public policies for quilombolas in Ceará ?; and, finally, 4) how did the

quilombola leadership begin to organize themselves to have access to these

policies? The data that will be used were obtained from four different sources,

namely: 1) documentary research carried out at the National Institute of Colonization

and Agrarian Reform (INCRA-CE), the Secretariat of Education (SEDUC), the

Department of Agrarian Development (SDA) , the Special Coordination of Public

Policies for the Promotion of Racial Equality (CEPPIR) and the official websites of the

FCP, SEPPIR and MEC; 2) academic research studies that directly or indirectly

studied the quilombola communities in Ceará; 3) field records made during

participation in events and meetings with quilombolas leaders and technicians

promoted by SEDUC and CEPPIR during the years 2014 and 2015; and 4) semi-

structured interviews with technicians from INCRA, SEDUC, SDA and CEPPIR and

with some quilombola leaders. The research demonstrates how the process of

territorialization on the quilombolas in Ceará resulted in the implementation of public

policies for this population as of 2005, as well as in the political organization of

quilombolas leaders who began to develop actions to access them.

Keywords: Etinicity. Quilombola. Public policy. Territorialization

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1- Estrutura organizacional das Superintendências Regionais

do INCRA.......................................................................................

44

Figura 2- Relação das comunidades quilombolas com processos

abertos no INCRA-CE entre 2005 a 2014……………………........

47

Figura 3- Andamento dos processos de regularização fundiário dos

quilombos no Ceará......................................................................

49

Figura 4- Relação das comunidades quilombolas cearenses com

RTIDs publicados até 2015……………………………………….....

50

Figura 5- Mapeamento feito por Anjos em 2000………………………....... 51

Figura 6- Relação das comunidades quilombolas certificadas pela

FCP até 2015..................................................................................

51

Figura 7- Grupo das crianças que dançam o Makulelê…………………... 65

Figura 8- Grupo de percussão Afro Alegre………………………………….. 66

Figura 9- Grupo de mulheres reunidas no Chá de Memórias do Quilombo.......................................................................................

66

Figura 10- Itens do Censo Escolar que identificam as escolas como

“Escolas Quilombolas”…………………………………………......

73

Figura 11- Relação das “Escolas Quilombolas” cearenses……………...... 74

Figura 12- Escola Quilombola Luiza Maria da Conceição………………..... 75

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABA Associação Brasileira de Antropologia

ADCT Atos de Disposições Constitucionais Transitórias

ARQUA Associação de Remanescentes de Quilombos de Alto Alegre e

Adjacências

CDESC Coordenadoria de Desenvolvimento da Escola

CEB Câmara de Educação Básica

CECIA Célula de Educação Continuada, Inclusão e Acessibilidade

CECIQ Célula de Educação do Campo Indígena e Quilombola

CEPPIR Coordenadoria Especial para Promoção de Políticas Públicas para a

Igualdade Racial

CEQUIRCE Comissão Estadual dos Quilombolas Rurais do Ceará

CNE Conselho Nacional de Educação

COAPE Coordenadoria de Aperfeiçoamento Pedagógico

CODEA Coordenadoria de Diversidade e Inclusão Educacional

CODEA/SDA Coordenação de Desenvolvimento Agrário

CONAQ Coordenação Nacional das Comunidades Quilombolas

CREDE Coordenadoria de Regional de Desenvolvimento da Educação

EFA Escola Familiar Agrícola

EJA Educação para Jovens e Adultos

FECOP Fundo Estadual de Combate a Pobreza

FUNASA Fundação Nacional de Saúde

IDACE Instituto do Desenvolvimento Agrário do Ceará

INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

IPEA Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

MEC Ministério da Educação

MP Ministério Público

PBA Programa Brasil Alfabetizado

PBQ Programa Brasil Quilombola

PNE Plano Nacional de Educação

PPA Plano Plurianual

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PPP Projeto Político Pedagógico

SDA Secretaria de Desenvolvimento Agrário

SECADI Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão

SEDUC Secretaria de Educação Básica do Estado do Ceará

SEPLAG Secretaria de Planejamento e Gestão do Estado do Ceará

SEPPIR Secretaria de Promoção de Políticas Públicas para Igualdade Racial

SME Secretaria Municipal de Educação

UECE Universidade Estadual do Ceará

UFC Universidade Federal do Ceará

UNILAB Universidade da Integração Internacional da Lusofania Afro-Brasileira

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO……………………………………………………………..... 14

2 CONCEIÇÃO DOS CAETANOS: NOTAS SOBRE A SOCIOGÊNESE

DA PRIMEIRA COMUNIDADE “REMANESCENTE DE QUILOMBO”

NO CEARÁ.............................................................................................

26

2.1 DAS “TERRAS DE CONCEIÇÃO” AO JARDIM IRACEMA (1884-

1958).......................................................................................................

27

2.2 OS CAETANOS E A MILITÂNCIA NEGRA (1982-1988)......................... 29

2.3 2.3 O PAPEL DOS INTELECTUAIS E DO ESTADO NO

RECONHECIMENTO COMO “REMANESCENTE DE QUILOMBO”

(1990-1998).............................................................................................

32

3 IMPACTOS DA IMPLEMENTAÇÃO DA POLÍTICA FUNDIÁRIA PARA

OS QUILOMBOLAS NO CEARÁ…………………………....……

39

3.1 ESTRUTURA NORMATIVA: O DECRETO 4.887 E AS MUDANÇAS

NA POLÍTICA FUNDIÁRIA………………………………………………....

40

3.2 IMPLEMENTAÇÃO: AS AÇÕES DO INCRA-CE ………………………… 43

3.3 IMPACTOS: NOVAS ASSOCIAÇÕES, UNIFICAÇÃO DE

COMUNIDADES E NOVAS SITUAÇÕES DE CONFLITO……………....

52

3.3.1 Associações quilombolas………………………………………………... 52

3.3.2 Novas fronteiras e o compartilhamento territorial............................. 53

3.3.3 Surgimento e/ou acirramento de conflitos…………………………….. 56

4 A MOBILIZAÇÃO QUILOMBOLA NO CEARÁ………………………….. 59

4.1 DO CONTEXTO NACIONAL AO CASO CEARENSE .........……………. 59

4.1.1 Ações da ARQUA......................................................…………………... 63

4.1.2 Outras ações: AQUILARGO e ARQNA………………………………… 67

4.2 AS POLÍTICAS PÚBLICAS E AS AÇÕES DA CEQUIRCE .................... 68

4.2.1 Articulação com o INCRA-CE.........................................…………….... 69

4.2.2 A Articulação com a SDA...……………………………………………… 70

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4.2.3 Articulação com a SEDUC .....……………………………………………. 72

5 CONCLUSÃO………………………………………………………………... 80

REFERÊNCIAS ……………………………………................................... 82

ANEXOS……………………………………………………………………… 88

ANEXO A - LEGISLAÇÃO BÁSICA UTILIZADA PELO INCRA PARA

IMPLEMENTAR À POLÍTICA PÚBLICA FUNDIÁRIA PARA OS

QUILOMBOLAS......................................................................................

89

ANEXO B – DECRETO QUE REGULA PROCEDIMENTOS PARA

TERRAS OCUPADAS POR REMANESCENTES DAS

COMUNIDADES DOS QUILOMBOS .....................................................

92

ANEXO C – INSTRUÇÃO NORMATIVA QUE REGULAMENTA

PROCEDIMENTOS PARA TERRAS OCUPADAS POR

REMANESCENTES DAS COMUNIDADES DOS QUILOMBOS...........

99

ANEXO D – CONVENÇÃO Nº 1 DA OIT ............................................... 113

ANEXO E – DECRETO Nº 5.051 DE 19 DE ABRIL DE 2004 QUE

PROMULGA A CONVENÇÃO NO 169 DA ORGANIZAÇÃO

INTERNACIONAL DO TRABALHO – OIT SOBRE POVOS

INDÍGENAS E TRIBAIS..........................................................................

129

ANEXO F – MAPA DAS AÇÕES DO PROJETO PROTAGONISMO

QUILOMBOLA.........................................................................................

130

ANEXO G – MAPA DAS COMUNIDADES DO PROJETO

PROTAGONISMO QUILOMBOLA .........................................................

131

ANEXO H – IMAGENS DOS DADOS DO EDUCACENSO 2007........... 132

ANEXO I – EDUCACENSO 2015........................................................... 133

ANEXO J- ACOMPANHAMENTO DOS PROCESSOS QUILOMBOLAS......................................................................................

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1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho é um desdobramento do projeto de pesquisa

intitulado “Povos e Comunidades Tradicionais no Ceará”1 (AIRES, 2009), que, por

sua vez, pretende coletar, organizar e sistematizar informações sobre Povos e

Comunidades Tradicionais no Ceará, dentre os quais encontra-se a população

quilombola.

Em 2013 tive a oportunidade de pleitear uma vaga no, até então,

mestrado acadêmico de Políticas Públicas e Sociedade (MAPPS) – que atualmente

intitula-se Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) – na Universidade

Estadual do Ceará (UECE) e consegui aprovação com um projeto que buscava

pesquisar a política de educação direcionada aos quilombolas no Ceará. No

decorrer do trabalho de campo realizado durante o mestrado o projeto inicial foi

sendo reelaborado até a produção do texto que agora se apresenta.

O objetivo deste trabalho é analisar os efeitos do processo de

territorialização sobre os quilombolas no Estado do Ceará a partir da Constituição de

1988 – que reconheceu, pela primeira vez, direitos para os “remanescentes de

quilombo”. Para tanto, a pesquisa se deteve a sobre dois temas distintos que,

todavia, estão interconectados, a saber: 1) os novos aparatos burocrático-

administrativos formados, nas décadas de 1990 e 2000, dentro de órgãos estatais

encarregados de desenvolver e implementar políticas públicas para esta população,

(sobretudo a política fundiária por meio da produção de legislação específica e de

Equipes Técnicas especializadas na FCP e no INCRA); e 2) as mobilizações

promovidas por de lideranças Negras (GRUCON) e Quilombolas (CEQUIRCE), que

começaram a se organizar para terem acesso a essas políticas.

1Participei desta pesquisa como bolsista de iniciação científica da (PIBIC/CNPq) na organização do banco de dados que buscava sistematizar informações de fontes bibliográficas e documentais sobre 13 categorias de sujeitos coletivos que compreendiam parte significativa destas populações no Estado, a saber: pescadores; coletores de caranguejo; produtores ou catadores de algas; marisqueiras; indígenas; quilombolas; vazanteiros; pequizeiros; ciganos; povos de santo ou de terreiros; cipozeiros; atingidos por barragem e louceiras. Um dos principais objetivos era mapear o conjunto de órgãos estataias que, no nível local, destinavam políticas públicas para estas populações, com atenção especial às políticas de regularização fundiária, saúde e educação, bem como identificar pesquisadores e a produção acadêmica relacionada a esta temática.

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O trabalho pretende responder aos seguintes questionamentos: 1) quais

os impactos do processo de territorialização sobre as mobilizações quilombolas no

Ceará? 2) como esta população começou a ganhar visibilidade no Estado? 3) como

as mudanças na legislação federal afetam a dinâmica das políticas públicas para os

quilombolas no Ceará?; e, finalmente, 4) como as lideranças quilombolas

começaram a se organizar para terem acesso a estas políticas?

Especificamente, o intuito é 1) identificar a atuação de lideranças e/ou

militantes do movimento negro no processo de emergência étnica dos quilombolas

no Ceará, sobretudo, por meio do trabalho de mapeamento das “comunidades

negras rurais”, realizado pelo “Projeto Agrupamentos Negros (PAN)”, durante a

década de1990; 2) analisar as mudanças promovidas pelo artigo 68 do ADCT, da

Constituição de 1988, sobretudo, a partir do Decreto 4.887, em 2003, que deu

origem a implementação da política fundiária para os quilombolas no Ceará); 3)

analisar a mobilização das lideranças quilombolas a partir da atuação das

associações quilombolas e da Comissão Estadual dos Quilombolas Rurais do Ceará

(CEQUIRCE), sobretudo no que diz respeito ao processo de “reelaboração” e/ou

“resgate” cultural da identidade quilombola e/ou afrodescendente e na articulação

com órgãos estatais para implementação de políticas públicas para as comunidades.

Os subsídios teóricos desta pesquisa fundamentam-se sobre algumas

categorias analíticas que ajudaram a compreender e elucidar as questões que serão

trabalhadas em cada capítulo, tais como: 1) o conceito de processo de

territorialização, trabalhado por Oliveira (1998) e Arruti (2006); 2) a concepção sócio

antropológica do Estado – a partir das contribuições de Abrams (1988) e Leirner

(2012);3) a noção de Políticas Públicas, por meio das contribuições de Sousa Lima

(2008)e Levinson (2011); e finalmente, 4)a atualização do conceito de Quilombo,

pensada por O’Dwyer(2002), Arruti (2009) e Almeida (2011).

De acordo com João Pacheco de Oliveira (1998)2, do ponto de vista das

“organizações estatais”, que exercem domínio sobre determinadas populações,

“administrar é realizar a gestão do território, é dividir a sua população em unidades

geográficas menores e hierarquicamente relacionadas, definir limites e demarcar

fronteiras.” (OLIVEIRA, 1998, p.56). Desta feita, a presença de um aparato político-

administrativo do Estado altera profundamente o cotidiano de povos e ou

2OLIVEIRA, João Pacheco de, Uma etnologia dos "índios misturados"? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais.Revista MANA, Rio de Janeiro, v. 4, n.1, p. 47-77, 1998.

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comunidades tradicionais (como indígenas e quilombolas) uma vez que “instaura

uma nova relação da sociedade com o território, deflagrando transformações em

múltiplos níveis de sua existência sociocultural.” (OLIVEIRA, 1998, p.54).

Assim, no intuito “destacar a amplitude e a radicalidade” das mudanças

promovidas pela presença do Estado no cotidiano destas populações foi elaborada a

noção de territorialização, que, segundo Oliveira, pode ser definida como:

[...] um processo de reorganização social que implica: 1) a criação de uma nova unidade sociocultural mediante o estabelecimento de uma identidade étnica diferenciadora; 2) a constituição de mecanismos políticos especializados; 3) a redefinição do controle social sobre os recursos ambientais; 4) a reelaboração da cultura e da relação com o passado. [...] uma intervenção da esfera política que associa um conjunto de indivíduos e grupos a limites geográficos bem determinados. É esse ato político — constituidor de objetos étnicos através de mecanismos arbitrários e de arbitragem (no sentido de exteriores à população considerada e resultante das relações de força entre os diferentes grupos que integram o Estado) — que estou propondo tomar como fio condutor da investigação antropológica. (OLIVEIRA, 1998, p. 55-56) (grifo meu)

Oliveira propõe, então, o conceito de processo de territorialização para

indicar “o movimento pelo qual um objeto político-administrativo” (como as

comunidades quilombolas) se transforma em uma

coletividade organizada, formulando uma identidade própria, instituindo mecanismos de tomada de decisão e de representação, e reestruturando as suas formas culturais (inclusive as que o relacionam com o meio ambiente e com o universo religioso)” (OLIVEIRA, 1998, p.56).

O autor enfatiza o “contexto intersocietário” como objeto de análise que

deve ser privilegiado visto que é dentro desta teia de relações que “se constituem os

grupos étnicos” e ressalta ainda que: “não se trata de um contexto abstrato e

genérico, que possa absorver todas as sociedades e suas diferentes formas de

governo, mas de “uma interação que é processada dentro de um quadro político

preciso, cujos parâmetros estão dados pelo Estado-nação.” (OLIVEIRA, 1998, p.

55, grifo meu)

Cabe aqui também salientar a advertência feita pelo autor no sentido de

que jamais se deve entender e considerar o processo de territorialização como uma

via de “mão única, uma vez que cada grupo étnico repensa a ‘mistura’ e afirma-se

como uma coletividade precisamente quando se apropria dela segundo os

interesses e crenças priorizados.” (OLIVEIRA,1998, p. 60).

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Todavia, Arruti afirma que a teoria da etinicidade são insuficientes para

lidar com os problemas empíricos encontrados em seu o trabalho de campo. Sua

investigação buscou, então, auxílio nas reflexões de outros dois autores que se

debruçaram sobre a temática do “reconhecimento, e que, segundo ele, “apontam um

caminho por onde avançar sobre as limitações da teoria da etinicidade.”(ARRUTI,

2006, p.44).

Das análises de Charles Taylor, sobre a “política de reconhecimento” –

onde encontra-se a ênfase está nas estruturas estatais objetivas que permeiam e

fazem a mediação do processo de reconhecimento de determinados grupos e/ou

coletividades, a partir do livro “O multiculturalismo e a política do reconhecimento” –

e de Axel Honneth3, sobre a “luta por reconhecimento” – que por sua vez põe o foco

no processo de “formação” subjetiva dos sujeitos que estão envolvidos e/ou que

participação destas lutas por reconhecimento –, Arruti chama a atenção para a

“duplicidade do fenômeno ético”, visto que, por um lado, a reflexão de Honneth

aponta a “dimensão de ‘formação’ do sujeito em luta por reconhecimento por meio

da experienciação comum de um desrespeito típico e de sua tradução em uma

identidade coletiva”, por outro, as análises de Taylor apontam para “as condições

de apresentação e recepção das demandas desses sujeitos na esfera pública,

definida como um largo ambiente normativo e institucional (jurídico-político) de

caráter liberal.”(idem, 1998,p.44)(grifo meu).

Para Arruti, o processo de territorialização pode ser operacionalizado

como um dispositivo que serve para descrever “um conjunto de procedimentos e

efeitos por meio dos quais uma coletividade organizada converte-se em um ‘objeto

político-administrativo’” tais como: “‘grupos indígenas, comunidades quilombolas

ou populações tradicionais, mas também como os ‘imigrantes’, os ‘assentados’,

entre outros”. (ARRUTI, 2012, p.5) (grifo meu)

A partir do estabelecimento da autoatribuição como novo critério de

reconhecimento dos quilombolas no Brasil, em 2003, as lideranças quilombolas

começaram a se organizar politicamente por meio de “associações” para buscarem o

3Outra autora com que Arruti passou a estabelecer diálogo, posteriormente fora Nancy Fraser – que analisa os processos de redistribuição e reconhecimento. Para aprofundamentso quanto às convenções e tratados internacionais, assim como as normativas nacionais que versam sobre os direitos dos povos e comunidades tradicionais, ler: SHIRAISH NETO, Joaquim (Org.). Direito dos povos e das comunidades tradicionais no Brasil: declarações, convenções internacionais e dispositivos jurídicos definidores de uma política nacional. Manaus: UEA, 2007. 224p. (Documentos de bolso nº 1). ISBN: 978-85-89453-61-5.

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reconhecimento do Estado e a implementação de políticas públicas para suas

comunidades, principalmente, a política de regularização fundiária. Estas

mobilizações podem ser consideradas como efeitos do processo de territorialização,

visto que:

[...] esse dispositivo de territorialização opera tanto por efeito quanto por antecipação. Ainda que o “objeto político-administrativo” só exista em função do Estado, as lutas por reconhecimento implicam que as coletividades organizadas não só antecedem como antecipam tal objetivação: ao aderirem às políticas de reconhecimento – que lhes garantem o direito de escapar da individualização e indiferenciação do ordenamento jurídico dominante – os coletivos, eles mesmos, são propositores de sua própria territorialização e, assim, por consequência pouco evidente para eles mesmos, de sua objetificação: cultura e identidade modelizadas. (ARRUTI, 2012, p. 6) (grifo meu)

Esta perspectiva demanda uma concepção de Estado fundamentada em

um viés sócioantropológico. De acordo com o professor Piero Leirner,

há uma distância proporcional entre o Estado unificado da ciência política e os estados múltiplos que a antropologia pode pretender explicar ao se aproximar a explicações nativas”, ainda segundo ele: “exemplos etnográficos vêm demonstrando, há algum tempo, que o estado é mais ambíguo do que parece. (LEIRNER, 2012, p. 39).

Neste sentido, Philip Abrams (1988), no clássico artigo “Notes on the

Difficulty of Studying the State”, propõe que se deixe de lado o “Estado material” e,

em seu lugar, trabalhe-se a “ideia de Estado”, pois, como bem destacou a

pesquisadora Silvia Aguião, “o Estado pode significar e estar significado em

múltiplos lugares, objetos e pessoas” (AGUIÃO, 2014, p.116). Desta feita, a proposta

de Abrams é que:

[...] abandonemos a Estado enquanto um objeto material de estudo, concreto ou abstrato, e que ao mesmo tempo tomemos de modo extremamente sério a ideia de Estado. As relações internas e externas das instituições políticas e governamentais podem ser efetivamente estudadas sem que se postule a realidade do Estado. (ABRAMS, 1988 apud AGUIÃO, 2014, p. 116)

Outra noção que também ganha uma nova abordagem dentro desta

perspectiva socioantropológica do Estado, é o conceito de “políticas públicas” que

passa a ser contemplado numa nova dimensão, mais elástica e difusa. Conforme

Sousa Lima (2008), analisar as políticas públicas, sob uma perspectiva

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antropológica, implica – “de saída” – em “suspender a ideia de público como

qualificativo para os fins das ações de Estado”, para descrevê-las enquanto

“políticas governamentais”. Assim, segundo este autor:

Políticas governamentais devem ser entendidas como planos, ações e tecnologias de governo formuladas não só desde organizações administrativas de Estados Nacionais, mas também a partir de diferentes modalidades de organizações não redutíveis àquelas que estão definidas em termos jurídico e administrativos enquanto partícipes de administrações públicas nacionais. Pensamos aqui não apenas em ONGs e movimentos sociais, mas também em organismos multilaterais de fomento e de cooperação técnica internacional para o desenvolvimento. Isto implica em dizer que a identificação de problemas sociais, a formulação de planos de ação governamental, sua implementação e a avaliação de seus resultados se dão em múltiplas escalas espaciais, com temporalidades variáveis, no entrecruzamento de amplos espaços de disputa, muitas vezes desconectados entre si em aparência. (SOUSA LIMA & MACEDO, CASTRO, 2008, p.369)

Bradley Levinson (2011), por sua vez, propõe uma análise “sociocultural”

da política pública como prática, dando ênfase não apenas ao discurso oficial do

Estado, mas também aos vários contextos institucionais onde estas políticas podem

ser aplicadas, (re)interpretadas e/ou contestados por uma multiplicidade de atores

locais. O autor apresenta uma proposta de abordagem mais local das políticas

públicas, que destaca os discursos não autorizados e/ou não reconhecidos como

oficiais e, portanto, não legitimados pelo Estado.

Assim, a prática de diversos atores sociais retoma a capacidade de

agência em todos os níveis do processo da política pública, tornando-se possível ver

a política não só como mandato oficial, verticalizada, mas também horizontalmente,

como contestação e com resistência por parte dos atores locais, como no caso da

mobilização das lideranças quilombolas no Ceará, que passaram a se organizar

política e juridicamente para terem acesso à diversas políticas públicas, tais como a

de regularização fundiária, de desenvolvimento agrário e de educação.

Outro ponto fundamental, para que se compreendam adequadamente os

usos dos conceitos de “quilombo” e/ou “quilombola” no presente trabalho, diz

respeito ao desenvolvimento histórico desta categoria. Uma das definições mais

antigas foi elaborada pelo “Conselho Ultramarino Português”, em 1740, o qual

definiu quilombo como “toda habitação de negros fugidos que passem de cinco, em

parte desprovida, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões

neles.” (LEITE, 2000, p. 336). Todavia, segundo Alfredo Wagner de Almeida

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é necessário que nos libertemos da definição arqueológica, da definição histórica stricto sensu e das outras definições que estão frigorificadas e funcionam como uma camisa-de-força, ou seja, da definição jurídica dos períodos colonial e imperial e até daquela que a legislação republicana não produziu, por achar que tinha encerrado o problema com a abolição da escravatura, e que ficou no desvão das entrelinhas dos textos jurídicos. A relativização dessa força do inconsciente coletivo nos conduz ao repertório de práticas e às autodefinições dos agentes sociais que viveram e construíram essas situações hoje designadas como quilombo. (ALMEIDA, 2002, p.63)

Com o advento da constituição de 1988, mais especificamente no art. 68

do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), o conceito de quilombo

adquire, segundo a professora Eliane O’Dwyer (2002), uma “significação atualizada”,

e passa a ser alvo de novos e polêmicos debates acadêmicos. Ela chama a atenção

para o “papel decisivo” que os antropólogos tiverem “no questionamento de noções

baseadas em julgamentos arbitrários” e apresenta a posição assumida pela

Associação Brasileira de Antropologia (ABA), em 1994, sobre o tema:

[...] Contemporaneamente, o termo quilombo não se refere a resíduos ou resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou de comprovação biológica. Também não se trata de grupos isolados ou de uma população estritamente homogênea. Da mesma forma, nem sempre foram constituídos a partir de movimentos insurrecionais ou rebelados mas, sobretudo, consistem em grupos que desenvolveram práticas cotidianas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos e na consolidação de um território próprio. (O’DWYER, 2002, p.63)

No livro “Mocambo”, Arruti (2006) sintetiza as “ressemantizações” pelas

quais o termo “quilombo” passou – após sua institucionalização, com o avento do

artigo 68 do ADCT – a partir de três paradigmas: 1) como “Remanescentes” –

categoria utilizada, primeiramente, para descrever o processo de emergência dos

índios do Nordeste e, depois, como expressão formal da ideia de

contemporaneidade dos quilombos (idem, p.82) –; 2) como “Terras de Uso Comum”

– categoria proposta por Alfredo Wagner de Almeida para descrever as

territorialidades específicas, marcadas pelo uso comum da terra, de segmentos

camponeses, tais como “Terras de Santo, Terras de índios, Terras de Parentes,

Terras de Irmandade, Terras de Herança e Terras de Preto” (idem, 2002, p. 87); e 3)

como “Etnicidade” – categoria desenvolvida por Frederick Barth para definir os

“grupos étnicos” como “um tipo organizacional que confere pertencimento por meio

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de normas e meios empregados para indicar afiliação ou exclusão” (idem, p.92) que

traria consigo a noção de auto-atribuição como critério de identificação.

Os dados que serão utilizados nesta pesquisa – de natureza qualitativa,

com viés etnográfico (trabalho de campo, observação participante, seleção de

“informantes-chaves”, entrevistas abertas e/ou semi-estruturadas) – foram obtidos

por quatro fontes distintas, a saber: 1) pesquisa documental realizada no Instituto

Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA-CE),na Secretaria de Educação

(SEDUC), na Secretaria de Desenvolvimento Agrário (SDA), na Coordenadoria

Especial de Políticas Públicas para a Promoção da Igualdade Racial (CEPPIR), nos

sites oficiais da Fundação Cultural Palmares (FCP), da Secretaria de Políticas de

Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) e do Ministério da Educação (MEC); 2)

pesquisas acadêmicas que estudaram direta ou indiretamente as comunidades

quilombolas no Ceará (SOUSA, 2008; NASCIMENTO, 2009; FONTELES, 2009;

MONTEIRO, 2009; RATTS 2011; BEZERRA, 2012, CHAVES 2013, ); 3) registros de

campo realizados durante participação em eventos e reuniões com técnicos e

lideranças quilombolas promovidas pela SEDUC e pela CEPPIR durante os anos de

2014 e 2015; e 4) Entrevistas com técnicos da INCRA, SEDUC, SDA e CEPPIR e

com lideranças quilombolas.

Mapeou-se as principais ações 1) do Movimento Negro ligadas às

comunidades quilombolas; 2) das lideranças quilombolas (via Associações e

CEQUIRCE); 3) dos órgãos estatais (INCRA, SDA e SEDUC) na implementação de

políticas diferenciadas para os quilombolas a partir da publicação do Decreto 4.887,

em 2003. Posteriormente, por meio de entrevistas com técnicos do INCRA-CE, da

CECIQ/SEDUC4, da SDA e da CEPPIR, novas informações foram sendo

acrescentadas.

Descreverei a seguir um pouco de minha trajetória de inserção no campo,

desde as primeiras tentativas de delimitação do objeto da pesquisa, até a obtenção

dos dados coletados por meio de pesquisa documental e bibliográfica, entrevistas e

observações feitas em campo.

No primeiro ano do mestrado, em 2013, fui a CEPPIR (que está situada

junto ao gabinete do governador, no Meireles), para entrevistar o então

coordenador, sr. Ivando Paixão, com quem obtive algumas das primeiras

4Célula de Educação do Campo, Indígena e Quilombola, membro da Coordenadoria de

Desenvolvimento da Escola e da Aprendizagem (CODEA), na SEDUC-CE.

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informações sobre as ações que estavam sendo desenvolvidas e/ou planejadas para

os quilombolas no Ceará. Depois retornei algumas vezes para participar (como

convidado) de algumas reuniões do GT Quilombola (criado após a 1ª audiência

pública sobre a questão quilombola no Ceará, realizado no dia 19/06/2015)

organizado pela nova coordenadora, convidada pelo governo do Estado, Dra. Zelma

Madeira.

Fiz algumas visitas à sede da SDA. Entrevistei a técnica responsável pela

coordenação do projeto “Casas Digitais” e consegui algumas informações e material

documental (sobre a implementação de outros projetos que também contemplam as

comunidades quilombolas) com outra técnica que trabalho no departamento do

Projeto São José.

Visitei também à sede do INCRA-CE para entrevistar o antropólogo

responsável pela produção dos relatórios antropológicos e que coordena a Equipe

Técnica responsável pela elaboração dos RTIDs das comunidades. Lá obtive

bastante material sobre a atual situação dos processos de regularização fundiária

das comunidades quilombolas no Ceará.

Todavia, a maior parte de meu trabalho de campo foi na SEDUC,

acompanhando e participando das atividades da Equipe Técnica (CECIQ)

encarregada de desenvolver ações para a implementação da Educação Escolar

Quilombola no Ceará. Participei de várias reuniões de planejamento, bem como de

eventos que envolveram a participação de lideranças quilombolas (o II Encontro de

Educação do Campo, Indígena e Quilombola, o Curso de Formação da Lei 10.639, a

I e II Reunião Técnica sobre Educação Escolar Quilombola, dentre outros).

Gostaria aqui de apropriar-me das expressões “olhar de longe e de fora” e

“olhar de perto e de dentro” – cunhadas pelo antropólogo José Guilherme Cantor

Magnani5 – para demarcar dois momentos marcantes de minha pesquisa, que para

mim representam duas realidades bem distintas, quais sejam: 1) o campo

imaginado, produto de meu olhar inicial sobre campo, “de longe e de fora”, por meio

do “Discurso Oficial” e/ou midiático do Estado sobre as políticas públicas para os

quilombolas; antes estabelecer contato direto com os sujeitos de minha pesquisa; e

2) o campo vivenciado, produzido a partir de meu olhar no campo, “de perto e de

5 Coordenador do Núcleo de Antropologia Urbana (NAU), da Universidade de São Paulo (USP), no artigo “DE PERTO E DE DENTRO: notas para uma etnografia urbana”, publicado em 2002, na Revista Brasileira de Ciências Sociais.

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dentro”, fruto do saber de observação direta; após conhecer e começar a conviver

esses sujeitos, compartilhando de suas experiências, seus sabres e, também, seus

dilemas e trabalhos! Assim, dentro desta perspectiva, passo a descrever estes dois

momentos marcantes no percurso de minha pesquisa.

Embora a maior parte do material que consegui encontrar a priori

contivesse apenas informações escassas e superficiais sobre os sujeitos de minha

pesquisa, tudo que de alguma forma tocasse ou ao menos se aproximasse da

temática de meu trabalho, passou a ser motivo de interesse e de atenção para mim:

notícias e reportagens de jornais, artigos de revistas, censos e/ou dados estatísticos,

imagens, fotos, vídeos, documentos e sites oficiais, trabalhos acadêmicos (teses,

dissertações, artigos, apresentações em congressos, etc.), sobretudo quando se

tratava de informações e/ou notícias sobre os dois principais protagonistas de minha

pesquisa6, a saber: 1) os órgãos estatais encarregados de implementar políticas

públicas para a população quilombola no Ceará, tais como o INCRA e a SEDUC; e

2) as comunidades quilombolas, bem como suas lideranças e associações.

A partir das pesquisas documentais, descobri quais eram as instituições

estatais que haviam desenvolvido ações e/ou projetos junto aos quilombolas no

Ceará, sobretudo, implementando políticas públicas para esta população. As

instituições que registraram maior atuação junto aos quilombolas, segundo o

discurso oficial foram: 1) a Secretaria de Desenvolvimento Agrário do Estado do

Ceará (SDA); 2) à Coordenadoria Especial de Políticas Públicas para a Promoção

da Igualdade Racial (CEPPIR); 3) o Instituto Nacional de Colonização e Reforma

Agrária (INCRA-CE); e 4) a Secretaria de Educação Básica do Estado (SEDUC).

Sobre a SEDUC, minhas primeiras impressões foram formadas,

basicamente, a partir de três fontes principais: 1) por meio do site oficial da mesma;

2) dois artigos acadêmicos7 – ambos tratando, basicamente, da mesma temática: o

processo de descentralização e municipalização da educação no Estado do Ceará,

ocorrido durante os governos Tasso Jereissati (1995-2002) e Lúcio Alcântara (2003-

2006) (VIEIRA, 2010) –; e 3) por meio dos relatos de meu professor orientador, que

6 Refiro-me aqui ao tema de meu pré-projeto de pesquisa: “Política pública para escolas quilombolas no Estado do Ceará: o caso dos quilombolas de Alto Alegre-CE”, que me proporcionou meu ingresso no curso de Mestrado em Políticas Públicas e Sociedade (MAPPS), na UECE, em 2013. 7Um artigo de Sofia Lerche Vieira, ex-secretária de educação, no período do Governo Lúcio Alcântara

(2003-2006), intitulado “Educação Básica no Ceará: construindo um pacto colaborativo” e outro de Jeannette Filomeno Pouchain Ramos (Unilab), intitulado: Descentralização na educação básica cearense (1995-2006): regime de colaboração e direito à educação.

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já havia realizado alguns trabalhos, em parceria com a mesma, direcionados à

educação para os povos indígenas cearenses.

É importante até ressaltar aqui que, até este momento de

“reestruturação”, com a criação do colegiado de coordenadorias e da CECIQ, não

havia, na SEDUC, nenhum registro de qualquer ação voltada à educação

quilombola. E, para além deste fato, a referência específica ao termo “quilombola”

e/ou “comunidades remanescentes de quilombo” só começa a ganhar a visibilidade

do Governo do Estado do Ceará, a partir do PPA de 2008-2011.

Durante meu trabalho com Banco de Dados da pesquisa Povos e

Comunidades Tradicionais no Ceará não encontrei qualquer referência à

nomenclatura “quilombola” nos planos de governo e/ou em documentos oficiais dos

governos anteriores (Lucio Alcântara, Tasso Jereissati e seus predecessores). Como

a Fundação Cultural Palmares –órgão responsável por identificar a população

quilombola no Brasil – só começaria a emitir as primeiras certificações atestando o

reconhecimento de “comunidades remanescentes de quilombo” no Ceará a partir de

2004; e os primeiros processos de regularização fundiária só seriam abertos no

INCRA-CE a partir de 2005, as primeiras ações governamentais do Estado do Ceará

direcionadas a população quilombola começaram a surgir após este período.

No intuito de iniciar o “processo de familiarização” – conforme sugerem

Roberto DaMatta8 e Gilberto Velho9 – com o ambiente da SEDUC, até então,

“exótico” para mim, passei a frequentar alguns espaços mais acessíveis (como a

conhecer a biblioteca da instituição) até conseguir estabelecer contato direto, bem

como a primeira entrevista com uma das técnicas da SEDUC.

Em 2015, meu trabalho de campo ganhou densidade a partir de convites

para participar de reuniões de planejamento e de outros eventos: Seminários;

Formações de Professores; Lançamento de Programas; Grupos de Trabalhos; e no

acompanhamento/assessoramento de outras atividades: produção de relatórios e

apresentações em Power Point (utilizadas nas apresentações de alguns eventos);

seleção de bibliografias para o curso de formação de professores nas leis 10.639 e

11.645; mediação de mesas durante eventos, dentre outros.

8DAMATTA, Roberto. OofíciodoEtnólogo, ou como ter “Anthropological Blues”. In NUNES, Edison de

O. A aventura sociológica, Rio de Janeiro: Zahar, 1978. 9VELHO, Gilberto. Observando o Familar.In NUNES, Edison de O. A aventura sociológica, Rio de

Janeiro: Zahar, 1978.

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Também tive a oportunidade de realizar conversas e entrevistas com o

professor Alex Ratts e com o antropólogo do INCRA, o que me permitiu conhecer um

pouco mais sobre suas trajetórias e ideologias, bem como as principais ações

desenvolvidas pelos mesmos junto à população quilombola no Ceará.

O resultado das novas impressões (de perto e de dentro), adquiridas após

o término do trabalho de campo, será apresentado no decorrer do presente trabalho,

dividido em três partes. Na primeira será descrito o processo de “emergência étnica”

(Arruti, 1997) dos “remanescentes de quilombo” no Ceará a partir da atuação

delideranças e/ou militantes do movimento negro, bem como dos Agentes de

Pastoral Negros (APNs), no trabalho de mapeamento das “comunidades negras

rurais” realizado durante a década de 1990.Na segunda parte, que trata do processo

de implementação da política regularização fundiária para os quilombolas no Ceará,

serão descritos alguns dos impactos do processo de territorialização sobre as

comunidades quilombolas. E, finalmente, na terceira parte serão descritas as

principais ações desenvolvidas pelas lideranças quilombolas no intuito de afirmar a

identidade quilombola e na busca de novas políticas públicas para as suas

comunidades.

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2 CONCEIÇÃO DOS CAETANOS: NOTAS SOBRE A SOCIOGÊNESE DA

PRIMEIRA COMUNIDADE “REMANESCENTE DE QUILOMBO” NO CEARÁ10

“Falar dos quilombos e dos quilombolas no cenário político atual é, portanto, falar de uma luta política e, consequentemente, uma reflexão científica em processo de construção”.

(ILKA LEITE, 2000, p. 333)

O objetivo deste capítulo é descrever e analisar a trajetória da primeira

comunidade quilombola do Ceará, a saber, Conceição dos Caetanos, desde sua

fundação até seu reconhecimento como “remanescente de quilombo”pela Fundação

Cultural Palmares11 em 1998.

A partir de pesquisa exploratória e de entrevistas, foi possível identificar

três períodos que possibilitaram o reconhecimento de Conceição dos Caetanos

como um quilombo contemporâneo. Desta feita, este capítulo será divido em três

partes que visam descrever cada um destes estágios: primeiramente, de 1884 a

1958, que diz respeito à fundação e a chegada dos Caetanos à capital Fortaleza, no

bairro Jardim Iracema; depois, de 1982 a 1992, que registra o encontro e as

primeiras articulações dos Caetanos com a militância negra no Ceará; e,

finalmente,de 1990 até 1998, que discorre sobreas ações realizadas por intelectuais

e militantes negros – sobretudo o trabalho de mapeamento dos “agrupamentos

negros”12 – que culminaram no reconhecimento de Conceição dos Caetanos como

“remanescente de quilombo”.

2.1 DAS “TERRAS DE CONCEIÇÃO” AO JARDIM IRACEMA (1884-1958)

A trajetória de Conceição do Caetanos, desde sua fundação, diferencia

seus moradores – homens e mulheres “livres” – do conceito de quilombo jurídico

10Devido às críticas feitas por Oliveira (1998) ao conceito de “etnogênese”, e o de “emergência ética”, como instrumento explicativo e/ou analítico do surgimento e/ou acionamento de identidades étnicas, o termo “sociogênese” será usado aqui apenas como instrumento descritivo. 11Conforme publicado na Revista Palmares nº 5, “Quilombos no Brasil”, no ano 2000. 12 Termo adotado por Ratts para se referir tanto às “comunidades rurais negras” quanto às “comunidades quilombolas” e às famílias negras residentes em bairros de Fortaleza e da região metropolitana.

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formal, “frigorificado”, do período colonial13, atrelado às imagens da escravidão, da

marginalidade e da ilegalidade. (ALMEIDA, 2002).

Conforme a memória de seus moradores, o antigo “arraial” de Conceição

dos Caetanos, em Uruburetama, teria sido fundado por Caetano José da Costa em

1884, ano em que teria adquirido as “terras de Conceição” com o dinheiro que

ganhara trabalhando em plantações de algodão nas fazendas da região de

Uruburetama e Itapipoca (RATTS, 1999).

Anteriormente, o patriarca dos Caetanos vivia com sua família em uma

das fazendas onde trabalhava. Todavia, após certo desentendimento com o dono da

fazenda, resolveu ir morar nas terras da Santa, para tentar viver sossegado com a

mulher – Maria Madalena da Paz, uma prima com quem casara aos 19 anos para

escapar do recrutamento forçado de jovens solteiros e negros, que se dava em

virtude da guerra com o Paraguai –, seus filhos e mais alguns primos.

Ainda segundo a memória de seus moradores, os primeiros membros da

família primavam pelo “casamento intra-étnico, entre os próprios parentes e/ou

membros de outros agrupamentos negros da região, como de Escondido, Varjota e

Água Preta” (RATTS, 1999, p. 5). O contato com “gente de fora” se dava por

questões comerciais – pela venda de farinha, feijão e milho no mercado local –, por

ocasião de festas religiosas católicas – em Uruburetama e Itapipoca; nos períodos

de grande seca na região – que promovia a migração de alguns membros da família

para Amazônia a fim de trabalhar nos seringais, para Fortaleza e outras localidades

nos municípios de Aquiraz (Goiabeiras e Lagoa do Ramo), Cascavel (Buritizal),

Caucaia (Capuã) e Pacoti. (RATTS, 2009).

Em decorrência da seca de 1958, alguns descentes dos Caetanos

migraram para Fortaleza e passaram a residir em um terreno na periferia da cidade,

entre os bairros de Antônio Bezerra, Quintino Cunha e Jardim Iracema – neste

último, anos depois, surgiria o primeiro núcleo formador da militância negra no

Ceará, o grupo União e Consciência Negra. Outro processo de migração fez com

que alguns moradores das famílias de Goiabeiras, em Aquiraz, que se instalassem

na Zona Leste da Cidade, nos bairros de Aldeota (comunidades do Trilho) e

Mucuripe, dentre outros. (RATTS, 2003)

13Este conceito caracterizava os quilombos por meio de cinco elementos básicos: 1) fuga de escravos; 2) quantidade mínima (cinco); 3) isolamento, à margem da civilização ; 4) formados por “ranchos”; e, 5) sem a presença de “pilões”. (ALMEIDA, 2002, p. 59-60)

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Apesar do pioneirismo na abolição da escravatura, em 25 de março de

1884, o Ceará – que devido a este feito tornou-se conhecido como a “terra da luz” –

passou a ignorar, desde então, a presença da população negra em seu território.

Povoados negros como Conceição dos Caetanos e outros que teriam se

formado no mesmo período14, passaram a ser desconsiderados pelo registro

historiográfico após a abolição. A historiografia cearense passou a invisibilizar a

presença da população negra/afrodescendente por meio da construção da imagem

da “escravidão branda”15 no Ceará e da exaltação da figura do “cearense paladino”

disposto a lutar “contra a exploração do homem pelo homem, como besta de carga”

e “contra toda sorte de opressão” – como na retórica construída pelo historiador

Raimundo Girão (1988).

“Essa associação equivocada da figura negra atrelada à condição de

escravidão” (RATTS, 1998, p.114), juntamente com as representações produzidas

pela literatura romântica do século XIX16 – que consagrou o cearense como “filho de

Iracema”; fruto o amor do guerreiro branco português com a índia, “virgem dos lábios

de mel” –, produziram um silêncio acadêmico17sobre a trajetória da população

negra18 no Ceará que perdurou por aproximadamente um século”19 (RATTS, 2009,

p.17).

Apenas a partir da segunda metade do século XX, alguns trabalhos

começaram a registrar, timidamente, a presença negra no Estado, como no caso de

Thomaz Pompeu Sobrinho – que localizou, em 1958, uma “comunidade de negros”,

14Entre as regiões de Uruburetama, Tururu e Itapipoca, Ratts relata a presença de outros “agrupamentos negros” contemporâneos a Conceição dos Caetanos: Água Preta, Varjota e Escondido/Pedregulho. (RATTS, 1999, p. 4) 15 Conforme o jornal abolicionista “O Libertador”, publicado em 01/01/1984, às vésperas da abolição, o número de escravos na província do Ceará chegava, aproximadamente, a 30.000, cerca de 10% da população cearense na época. (cf. GIRÃO, 1988) 16Cujo maior expoente fora o escritor José de Alencar, que consagrou popularmente este mito de origem no romance “Iracema”, publicado em 1865. 17 À semelhante do caso do silenciamento sofrido pela população indígena no Ceará. Contudo, cabe ressaltar que o processo de invisibilização da presença indígena ocorre em momento e circunstância distinta e inicia-se após o advento da Lei das Terras, em 1850. 18Até mesmo um dos grandes símbolos da negritude no Estado, o célebre “Dragão do Mar” – Francisco José do Nascimento, também conhecido como “Chico da Matilde” – teve sua negritude atenuada através da pena do historiador cearense, que o descreveu como um“valente jangadeiro aracatiense”, “homem de cor”, “pardo”, de “físico agradável”, de “pele fresca e reluzente, robusto, muito musculoso, olhos vivos, dentadura esplêndida” e que “fora do mar”, “sua figura bonacheirona dava-lhe o tipo de bojuto banqueiro da Holanda” (GIRÃO, 1988, p.108). 19Alguns elementos da cultura negra/afrodescendente, no entanto, eram popularmente reconhecidos desde a primeira metade deste século – tais como os desfiles de maracatu nas avenidas de fortaleza, a festa de Iemanjá realizada na Praia do Futuro, bem como as igrejas e irmandades do Rosário espalhadas pelo interior e capital. (RATTS, 2009, p. 85)

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em Pacajus, que ali sobrevivia de modo quase auto-suficiente a cerca de um século

– e Renato Braga – que, em 1967, menciona a comunidade de Bastiões como um

“povoado com 50 habitações... habitado exclusivamente por pretos, com a

particularidade de serem todos alfabetizados.” (RATTS, 2009)

2.2 OS CAETANOS E A MILITÂNCIA NEGRA (1982-1988)

Um segundo momento marcante na história dos Caetanos se inicia em

1982, com a fundação do movimento negro no Ceará, no bairro Jardim Iracema.

Maria Lúcia Simão Pereira – uma descendente de outro “agrupamento negro”,

localizado no município de Aquiraz – inaugura em sua casa, no Jardim Iracema, um

grupo de estudo sobre “consciência negra”. Este evento inaugurou o primeiro núcleo

de formação da militância negra no Ceará.

A trajetória de Lucia Simão como militante negra tem sua origem atrelada

à influência da religiosidade católica – marca característica da família dos Caetanos.

Lúcia Simão manifestava o “desejo de ser religiosa” desde sua infância, mas não

gozava de muito apoio. “Seu pai costumava dissuadi-la de sua aspiração

eclesiástica católica, dizendo-lhe que ela não podia ser religiosa porque era pobre e

preta, e ele não tinha condições contribuir com o dinheiro do dote” (NASCIMENTO,

2012, p.85).

Apesar da falta de incentivo e das condições adversas, ela não desistiu

de realizar seu sonho e, na década de 1970, teve contato com algumas religiosas

católicas que vieram morar no Jardim Iracema. As “irmãzinhas ”faziam parte da

congregação do “Sagrado Coração de Jesus” e incentivaram Lúcia Simão a viajar

para o Rio de Janeiro para realizar seu sonho de ser religiosa.

Ao chegar no Rio de Janeiro para fazer parte da Congregação das

Religiosas do Sagrado Coração de Jesus, Lúcia Simão se sentiu “em outro mundo”

e ficou “muito feliz” ao ver muitos negros já na rodoviária. No entanto, a convivência

no ambiente religioso desfez seu otimismo inicial, e ela logo começou a perceber

que “a quantidade de negros na cidade não era o suficiente para se sentir livre” e

que sua carreira como religiosa não era bem vista dentro da ordem nem mesmo

pelos próprios negros que visitavam o local, os quais lhe diziam que “lugar de negro

não é com essas irmãs” (NASCIMENTO, 2012).

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30

Embora não se sentisse discriminada pelas “irmãs da casa”, que

considerava como “amigas compreensivas”, as demais pessoas que frequentavam a

casa só a cumprimentavam com um “aperto de mão na ponta dos dedos” depois que

descobriam que ela também era religiosa, enquanto as irmãs brancas recebiam

beijos e abraços. Após perceber que “estava vivendo algo falso” e que a pouca

atenção que recebia era apenas por respeito às outras irmãs e não em respeito a

“Lúcia Simão, a negra, a cearense”, ela concluiu que “só poderia ser Lúcia longe da

congregação” (NASCIMENTO, 2012).

Refletindo sobre as experiências de racismo que sofrera fora de sua terra

natal Lúcia afirmou que descobriu longe de casa que era discriminada não apenas

por ser pobre, mas também por ser negra. “porque o negro é o mais pobre dos

pobres e discriminados pelos pobres”. Estes acontecimentos motivaram seu retorno

ao Ceará e, em seguida, sua desvinculação da Congregação. Se sentindo

angustiada por não ter conseguido realizar o sonho de ser religiosa no Rio de

Janeiro, Lúcia Simão começou a ter as primeiras ideias sobre a necessidade de

formar um grupo de negros para conversar e tentar resolver os problemas de

discriminação.

Algum tempo depois, ela aceitou um convite para participar da Pastoral

Operária. Esta nova experiência proporcionou seus primeiros contatos com

membros do movimento negro de outros estados. Em certa ocasião, viajou para um

retiro no Maranhão, onde conheceu alguns militantes do Grupo de União e

Consciência Negra de São Paulo, com os quais passou a se corresponder por meio

de cartas. “Neste mesmo período ela passou a se reunir em casa com sua irmã e

sua mãe para discutir e debater sobre a questão racial e a negritude, formando

assim o protótipo daquilo que, posteriormente, se tornaria o GRUCON no Ceará”.

(NASCIMENTO, 2012, p.88)

Em novembro de 1981, Lúcia Simão foi convidada por duas irmãs

religiosas que conheciam seu desejo de formar um grupo de negros para participar

de uma Missa dos Quilombos, em Recife. Este evento foi ainda mais marcante para

ela, pois lhe deu novas ideias e aumentou seu interesse de ampliar o grupo.

Em maio de 1982, ela teve a oportunidade de ir conhecer pessoalmente

os membros do GRUCON de São Paulo e em novembro do mesmo ano, após

participar do Encontro Nacional do grupo e da Semana da Consciência Negra, foi

nomeada a articuladora do GRUCON no Ceará. Formado inicialmente por familiares,

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vizinhos e membros das pastorais do Jardim Iracema, o grupo dirigido por Lúcia

Simões começou a se reunir periodicamente (SOUSA, 2006).

Em 1983, no intuito de atender a uma solicitação do grupo paulista, que

visava o crescimento e a disseminação das ideias do grupo, Lúcia Simão viajou ao

interior do estado com outros membros do grupo. Por meio da Igreja Católica

firmaram contatos para abrir novos grupos nos municípios de Uruburetama, Tauá,

Crateús (Iracema), regiões do Crato e em Tururu (Conceição dos Caetanos)

(NASCIMENTO, 2012).

O encontro com Conceição dos Caetanos – considerados um dos marcos

históricos do grupo por sua líder fundadora – ocorreu em 1984, no contexto do

centenário da abolição no Ceará20. “Lúcia Simão tinha ouvido falar sobre um lugar

em Uruburetama onde havia negros e que tinham sido alvo de reportagens, fotos e

filmagem sobre a escravidão” (SOUSA, 2006, p.74). Mesmo desconhecendo o

vínculo de parentesco entre as famílias dos Caetanos e os moradores do Jardim

Iracema – descoberta que só ocorreria no início da década de 1990 – o encontro foi

marcante para ambos. Conforme Lúcia Simão, teria sido esta a primeira vez que os

Caetanos não haviam sido vistos e julgados como escravos pelas pessoas “de fora”

(NASCIMENTO, 2012).

A parceria do grupo de Lúcia Simão com os Caetanos se firmou,

sobretudo por meio da parceria com a então líder da comunidade, a senhora Maria

Caetano de Oliveira, mais conhecida como “Bibiu”. A partir de então, a comunidade

começou a participar dos debates do grupo e a ter conhecimento sobre temas que

envolviam a escravidão, os quilombos, Palmares, racismo, preconceito e a

consciência negra (RATTS, 1996).

Este período também foi marcado pela participação de uma militante

negra, Ana Rosa, que viera da Bahia para fazer pesquisa de campo sobre a

“aceitação dos cultos afro” e que teria convivido durante os anos de 84 e 85 com os

Caetanos até ser “expulsa” após acusação de promover a “macumba” dentro da

comunidade (SOUSA, 2006).

20O Instituto Histórico do Ceará lançou neste ano o “tomo especial nº 7” de sua revista, intitulado “Comemorativo do Centenário da Abolição dos Escravos no Ceará”. Esta edição trouxe dez artigos inéditos e cinco documentários. (SOUSA, 2006, p. 75)

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Em 1985 o grupo de Lúcia Simão já havia formado vários núcleos, tanto

no interior do estado quanto em outros bairros da capital, como Pirambu, Henrique

Jorge e Canidezinho. (NASCIMENTO, 2012).

Outro que passou a estabelecer contato com os Caetanos foram os

Agentes de Pastoral Negros (APN), que começaram a se articular em 1988 e

realizaram o primeiro encontro regional dos coordenadores de APNs. Este evento

contou com a presença e a participação da líder dos Caetanos, dona Bibiu, além de

padres Combonianos e de Agentes de Pastoral Negros de outros estados.

O final da década de 1980 foi marcado não apenas pela ampliação do

grupo, mas também por divergências entre os veteranos do grupo do Jardim

Iracema e os novos membros dos grupos de outros bairros, que culminou com o

“racha” do grupo. Após a divisão, o antigo grupo formado por Lúcia Simão passou a

se chamar AbógunBolu e o grupo liderado por Hilário, Rosa e Alex passou a se

identificar pela sigla do GRUCON no Ceará, mas ambos ainda continuaram a se

relacionar e a desenvolverem ações em conjunto (NASCIMENTO, 2012).

2.3 O PAPEL DOS INTELECTUAIS E DO ESTADO NO RECONHECIMENTO COMO

“REMANESCENTE DE QUILOMBO” (1990-1998)

Para além da influência e da formação intelectual dos militantes negros

junto à igreja católica, os novos membros do GRUCON estabeleceram outras redes

de contato e influência em outros estados – especialmente no Maranhão – e, alguns

militantes buscaram a carreira acadêmica para pesquisar temas relacionados ao

racismo, à escravidão, às identidades negras e aos territórios negros rurais e

urbanos21 (RATTS, 2014).

Dentre esses militantes que se tornaram intelectuais acadêmicos a

trajetória de Alex Ratts destaca-se devido à sua rede de contatos com militantes

negros de outros estados, bem como por sua formação em antropologia. Sua

primeira viagem para São Luis, no Maranhão, ocorreu em janeiro de 1990. Em

fevereiro deste mesmo ano ele retornaria para passar o carnaval na cidade. Nesta

oportunidade ele conheceu o “Bloco Afro” e fez amizade com uma pessoa ligada ao

“Centro de Cultura Negra do Maranhão”, da Sociedade Maranhense de Defesa dos

21Parte da produção intelectual destes pesquisadores é citada na bibliografia do presente artigo. (ver BARROS, 1995; FERREIRA SOBRINHO, 2005; NASCIMENTO, 2012)

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Direitos Humanos, que havia organizado o primeiro encontro de comunidades

negras e rurais do Estado. Ratts ganhou camisetas do evento e teve o primeiro

contato com as temáticas ligadas às lutas da população rural negra e quilombola.

Ainda neste ano Ratts voltaria a São Luis, em novembro, para participar de eventos

realizados durante a semana da consciência negra. O Maranhão passou, assim, a

ser considerado a grande “escola de como trabalhar com os quilombos”.

Em 1991, Ratts viajou ao interior do Ceará para conhecer as famílias de

Conceição dos Caetanos e Água Preta. Como mantinha contato com algumas

famílias negras na comunidade do Trilho, próximo ao Mururipe, em Fortaleza,

começou a se interessar em descobrir as origens ancestrais daquelas famílias. Em

certa ocasião, enquanto visitava a casa de uma amiga na comunidade do Trilho, o

pai da jovem começou a conversar com Ratts – a fim de saber qual era o interesse

do jovem militante negro – e, ao ver o material de Ratts com fotos e informações

sobre Conceição dos Caetanos, disse-lhe que aquele lugar era a terra natal de sua

família, o “Arraial de Uruburetama”, um antigo nome da província, no período

colonial.

Após essa descoberta, Ratts compartilhou a informação com os outros

membros do GRUCON e resolveram, então, promover o reencontro entre as duas

famílias, levando suas amigas da comunidade do Trilho para conhecer seus

parentes em Conceição dos Caetanos.

Em sua nova fase, o GRUCON passou a organizar novas ações, como o

“Fórum Cearense de Entidades Negras” – que visava reunir outros grupos e/ou

mobilizações negras no estado – e, no intuito de comemorar dez anos da fundação

do movimento negro no Ceará, o grupo organizou, com o apoio dos Agentes de

Pastoral Negros (APN) da igreja católica, o seminário “Negrada Negada: O negro no

Ceará”.

Realizado em maio de 1992, no auditório José Albano, no campus do

Benfica da Universidade Federal do Ceará (UFC), o seminário contou com a

participação do antropólogo Carlos Benevides, do Centro de Cultura Negra do

Maranhão; da bióloga e militante Lúcia Gacco, do grupo de mulheres negras; da

senhora Andrezza do Centro de Cultura Negra do Maranhão; de Alberco Ferreira,

padre negro ligado à irmandade dos reisados dos negros, dos APN da Bahia. E,

durante o evento, a partir do conhecimento que Ratts e os outros membros do

GRUCON tinham sobre os “agrupamentos negros” no Ceará, juntamente com

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informações que os APN possuíam através das igrejas no interior do estado, em

Quixeramobim, Tauá e outras localidades, foi elabora e apresentada uma lista com

uma relação de aproximadamente 50 localidades de maioria negra distribuídas em

todo território cearense (RATTS, 2009).

Ainda em 1992, Rattscomeçou a trabalhar em parceria com o Instituto da

Memória do Povo Cearense, publicando seus primeiros textos sobre Conceição dos

Caetanos e sobre os índios Tremembé22, em Almofala, no boletim Raízes.

Em 1993, Ratts viajou a São Paulo para fazer mestrado em Geografia, na

USP. Como orientando de Antônio Carlos Roberth de Moraes, começou a trabalhar

com temáticas que relacionavam cultura e território, no intuito de aprofundar seus

estudos sobre as comunidades negras e indígenas. Durante sua pesquisa de

mestrado Ratts chegou a visitar pessoalmente oito “agrupamentos negros”

espalhados em quatro municípios cearenses, tendo como base a tese de que “um

lugar leva a outro”, por meio de uma rede de parentesco. Desta feita, Ratts tentou

demonstrar a relação de parentesco que havia entre as famílias destes

agrupamentos: membros das famílias de Lagoa do Ramo, Goiabeiras e Alto dos

Pereiras, em Aquiraz, descendiam diretamente das famílias de Conceição dos

Caetanos e Água Preta, em Uruburetama e Tururu.

Paralelamente à mobilização negra no Ceará, o cenário nacional também

registrava intensas movimentações entre lideranças quilombolas, militantes negros,

setores da igreja católica e pesquisadores universitários que começavam a se

organizar coletivamente para reivindicar os direitos concedidos pelo artigo 6823 do

Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição de 1988.

As discussões sobre a aplicabilidade do artigo 68 começaram a ocorrer no segundo

semestre de 1994. No seminário “Conceito de Quilombo”, realizado também em

1994 pela Fundação Cultural Palmares (FCP), foi apresentada a concepção utilizada

pela mesma para reconhecer os “quilombos contemporâneos”24 como sendo:

comunidades negras rurais que agrupam descendentes de escravos [que] vivem da cultura de subsistência e onde as manifestações culturais têm

22Ratts já havia visitado algumas vezes a comunidades indígena dos Trebembés, em Almofala, por meio da “Associação Missão Tremembé”, coordenada pela missionária Maria Amélia Leite. 23 O artigo afirma que: “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando

suas terras, é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes títulos respectivos”. (BRASIL, 1988) 24 Definição elaborada por Glória Moura, que fora uma das responsáveis pela formulação e

implantação do artigo 68 do ADCT.

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forte vínculo com o passado ancestral. Esse vínculo com o passado foi retificado, foi escolhido pelos habitantes como forma de manter a identidade. (MOURA, apud ARRUTI, 2006, p.84)

A Associação Brasileira de Antropologia (ABA), segundo Eliane O’Dwyer

(2002), teve um papel decisivo no questionamento de “noções baseadas em

julgamentos arbitrários” defendendo a seguinte posição:

[...] Contemporaneamente, o termo quilombo não se refere a resíduos ou resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou de comprovação biológica. Também não se trata de grupos isolados ou de uma população estritamente homogênea. Da mesma forma, nem sempre foram constituídos a partir de movimentos insurrecionais ou rebelados, mas sobretudo, consistem em grupos que desenvolveram práticas cotidianas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos e na consolidação de um território próprio.” (O’DWYER, 2002, p.63)

No ano de 1995, no contexto das comemorações do Dia Nacional da

Consciência Negra, em memória do tricentenário da morte de Zumbi dos Palmares,

foram realizados debates públicos no intuito de regulamentar o artigo 68 (ARRUTI,

1997). Neste período que ocorrem o I Encontro25 Nacional das Comunidades Negras

Rurais, em Brasília (DF) e as primeiras ações governamentais. Com a publicação da

Portaria n° 25, em 15 de agosto de 1995, a FCP inicia os primeiros trabalhos de

identificação e delimitação para titulação das terras quilombolas em todo país e com

a publicação da Portaria nº 307/95 do INCRA as comunidades quilombolas ganham

pela primeira vez a possibilidade de terem suas terras demarcadas e tituladas

(PIMENTEL, 2013).

Neste mesmo ano Ratts participou da organização de um seminário em

comemoração aos 500 anos de Zumbi dos Palmares. Esta seria sua última atividade

como membro do GRUCON no Ceará. Mesmo tendo se afastado de Fortaleza para

cursar o mestrado em São Paulo, ele mantinha contato e participava das atividades

do grupo sempre que podia.

Todavia, por discordar de alterações feitas na revisão do estatuto do

GRUCON, ele decidiu sair do grupo em 1996 e passou a se dedicar ao trabalho

junto às comunidades negras rurais e às famílias negras originárias delas. Neste

mesmo ano surge o “Projeto Agrupamentos Negros”. Este projeto que havia sido

rascunhado por Ratts e uma amiga, quando ainda eram membros do GRUCON,

25 O I Encontro foi realizado no período de 17 a 19 de novembro de 1995, durante a Marcha Zumbi

dos Palmares, que reuniu cerca de 30 mil pessoas na Praça dos Três Poderes, em comemoração ao Tricentenário de Zumbi dos Palmares.

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começou a ser implementado com a colaboração de duas amigas – Vanda Martins,

estudante, na época, do curso de Ciências Sociais da UECE; e a freira Oziélia

Costa, da Comunidade Eclesial de Base (CEB), que atuava na Comunidade do

Trilho e também participava do GRUCON – e com o apoio financeiro do Instituto da

Memória do Povo Cearense (IMOPEC).

A finalidade do projeto era contrapor-se ao discurso ideológico que pregava a inexistência de negros no Ceará e tinha por objetivos 1)identificar os agrupamentos negros existentes no interior do Estado; 2) levantar a história e a situação atual desses grupos; e 3) apoiar a articulação dos mesmos na luta por seus direitos, respeitando as características e a autodeterminação de cada lugar e grupo (SOUSA, 2006, p.161).

Os primeiros alvos do projeto foram às comunidades ligadas aos

militantes do movimento negro, envolvendo tanto áreas urbanas quanto rurais, a

saber: Lagoa do Mato, Lagoa do Ramo, Goiabeiras e Estrada Nova, em Aquiraz;

Conceição dos Caetanos, em Uruburetama; Água Preta, em Tururu; e, na capital, os

bairros Jardim Iracema, Antonio Bezerra, Olavo Oliveira, Quintino Cunha, e a

Comunidade do Trilho.

O projeto descobriu que, desde meados da década de 1950, alguns

moradores do antigo Arraial de Uruburetama, membros da família dos Caetanos,

migraram e passaram residir na Zona Oeste da cidade de Fortaleza, nos bairros

limítrofes de Antônio Bezerra, Jardim Iracema e Quintino Cunha. O caso de

migração e filiação também foi registrado junto aos moradores das famílias de

goiabeiras, em Aquiraz, e seus descendentes que se instalaram na Zona Leste da

Cidade, nos bairros de Aldeota e Mucuripe, na Comunidade do Trilho, dentre outros.

(RATTS, 2003)

Ainda em 1996, o PAN começou a contactar militantes do movimento

negro dos Grupos de União e Consciência Negra de Tauá e Quixeramobim, ligados

a zona rural, para propor a realização do I Encontro de Comunidades Negras no

Ceará.

Concomitantemente às ações do PAN no Ceará, em 1996, foram

realizadas as primeiras reuniões da Comissão Nacional das Comunidades Negras

Rurais Quilombolas, em Bom Jesus da Lapa (BA) e depois em São Luis (MA). A

partir destas reuniões, foi constituída a Comissão Nacional Provisória de Articulação

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das Comunidades Rurais Quilombolas (CNACNRQ)26, composta por oito

integrantes, sendo sete deles representantes de associações locais – Conceição das

Crioulas-PE, Silêncio do Mata-BA, Rio das Rãs-BA, Kalungas-GO, Mimbó-PI, Furnas

do Dionísio e Boa Sorte-MS – e uma entidade de representação a nível regional, a

Coordenação Estadual dos Quilombos do Maranhão. (ALMEIDA, 2011).

Esta Comissão teve participação decisiva no processo de reconhecimento

de Conceição dos Cateanos como “Remanescente de Quilombo”, visto que os

primeiros relatórios de identificação da Fundação Cultural Palmares foram

produzidos por técnicos indicados pela mesma. Neste mesmo período foram

escolhidas 50 localidades para serem produzidos “Relatórios Técnico-Científicos (de

identificação étnica), em um acordo firmado entre a Comissão e a Fundação Cultural

Palamares. Ratts, então, foi indicado para elaborar relatórios no Ceará e no Rio

Grande do Norte”. (RATTS, 2011, p.7).

No Ceará, Ratts elaborou um estudo técnico intitulado “Conceição dos

Caetanos: território negro e memória coletiva”27. Este estudo fez com que Conceição

dos Caetanos fosse reconhecida pela Fundação Cultural Palmares como a primeira

comunidade “remanescente de quilombo” no Ceará28.

Em 1997, Ratts viajou para João Pessoa, na Paraíba, para participar do

“I Seminário das Comunidades Negras Rurais Quilombolas da Região Nordeste”. E,

em 1998, o PAN elaborou e publicou uma cartilha intitulada “Comunidades Negras

no Ceará” como preparação para a realização do primeiro encontro de

“comunidades negras” no Ceará. Esta cartilha trouxe a público as descobertas e

reflexões dos militantes negros sobre estas comunidades.

Em setembro deste mesmo ano foi realizado o “I Encontro de

Comunidades Negras do Ceará”, planejado estrategicamente para ocorrer em

Quixeramobim, no interior do Estado, a fim de evitar a influência do movimento

negro da capital – cujas demandas relacionavam-se mais a questões urbanas – visto

que as atividades e debates que seriam realizados durante o evento e que deveriam

26Posteriormente esta comissão deu origem a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas – CONAQ. (Idem, ibidem) 27 Em 1996, Ratts já havia publicado na revista da FCP um estudo sobre a mesma comunidade:

RATTS, Alecsandro. Conceição dos Caetanos: território negro e memória coletiva. Brasília, Fundação Cultural Palmares. Palmares em Revista Nº 1, 1996, p. 97-115. 28Conforme dados publicados na Revista Palmares(Quilombos no Brasil) até o ano 2000 apenas as comunidades de Bastiões e Conceição dos Caetanos haviam sido e reconhecidas como “remanescentes de quilombo” no Ceará.

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ter como foco as temáticas e demandas características destas comunidades que se

relacionam mais de perto das questões de âmbito rural trabalhadas por Ratts. O

evento contou com a participação de seis comunidades – Conceição dos Caetano,

Goiabeiras, Bastiões, Colibri Buritizal e Mundo Novo – além de representantes de

outros Estados29 e teve o apoio de algumas organizações não governamentais – do

IMOPEC e da Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE).

29 Representando as comunidades negras do Maranhão estavam: Ivo Fonseca da Silva (membro da

Coordenação Nacional dos Quilombos do Brasil) e Ivan Costa Rodrigues (membro do Centro de Cultura Negra do maranhão e da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos).

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3 IMPACTOS DA IMPLEMENTAÇÃO DA POLÍTICA FUNDIÁRIA PARA OS

QUILOMBOLAS NO CEARÁ

O objetivo deste capítulo é analisar os impactos da implementação da

política fundiária sobre os quilombolas no Ceará a partir do advento do Decreto

4.887, de 2003, que instituiu, dentre outras coisas, a autoatribuição como novo

critério de reconhecimento dos “remanescentes de quilombo”. Para tanto,

descreverei: 1) a estrutura normativa que regulamenta a implementação desta

política e estabelece os critérios de reconhecimento do público beneficiado (os

quilombolas), bem como define os procedimentos técnicos, as etapas do processo e

o órgão executor responsável pela implementação da mesma; e 2) as ações

desenvolvidas pelo INCRA-CE no intuito de realizar a mesma; e, 3) os impactos

produzidos pelo estabelecimento de novas fronteiras (provisórias) que definem os

limites territoriais das comunidades quilombolas, a partir do relato de alguns casos

que foram registrados em algumas comunidades envolvidas no processo de

regularização e delimitação territorial no Ceará.

Desta feita, o presente capítulo será divido em três partes:

fundamentação legal, resultados e impactos. Na primeira parte serão analisadas as

mudanças instituídas na política fundiária pelo Decreto 4.887. Na segunda parte,

será analisada a atuação da Equipe Técnica do INCRA-CE formada para atender as

demandas das comunidades quilombolas.

Finalmente, na terceira parte, serão apresentados os principais impactos

produzidos pela implementação desta política, quais sejam: 1) o surgimento das

associações quilombolas no Ceará; 2) o compartilhamento territorial devido à

delimitação de novas fronteiras que passaram a incluir duas comunidades em uma

mesmo área após a elaboração do RTID; e 3) o surgimento e/ou acirramento de

conflitos entre quilombolas e posseiros e/ou proprietários em decorrência de

possíveis alterações nas fronteiras territoriais, que deverão ser realizadas ao final

dos processos de regularização fundiária, ocasionando, assim, a remoção dos “não-

quilombolas” do território pleiteado.

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3.1 ESTRUTURA NORMATIVA: O DECRETO 4.887 E AS MUDANÇAS NA

POLÍTICA FUNDIÁRIA

Com o advento do Decreto 4.887, no final de 2003, a responsabilidade

pela execução da regularização fundiária dos territórios quilombolas passaria

novamente a ser do INCRA30. A partir de então, seria estabelecido um novo critério

de reconhecimento da população beneficiada: a “autoatribuição”. Conforme seu

artigo segundo, são considerados “remanescentes de quilombos”:

[...] grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida [...] a caracterização dos remanescentes das comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição da própria comunidade [...] são terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos as utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural [...] para a demarcação das terrasserá levado em consideração critérios de territorialidade indicados pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, sendo facultado à comunidade interessada apresentar as peças técnicas para a instrução procedimental. (BRASIL, 2003, p.1) (grifo meu)

O Decreto 4.887 trouxe três grandes novidades em relação à legislação

precedente: restituiu a desintrusão31 dos territórios quilombolas; incorporou o direito

das comunidades de se autoreconhecerem como quilombolas; e instituiu a titulação

coletiva32 das terras quilombolas que, a partir de então, deveria ser dada em nome

de uma entidade representativa da comunidade (ARRUTI, 2011). A relevância deste

último aspecto consiste em dois fatores: primeiro, por “incorporar uma perspectiva

comunitarista”, isto é, “um direito de coletividades e não de indivíduos” à

Constituição; e, segundo, por adicionar a “dimensão conceitual de território” fazendo,

30Em 2001, com a publicação do Decreto 3.912, a regularização dos territórios quilombolas (que estava a cargo da FCP desde outubro de 1999) passaria a ter um critério temporal e valeria apenas para as comunidades que comprovassem um vínculo de mais de cem anos com suas terras, para, então, serem enquadradas na categoria de “Remanescentes de Quilombos”. 31Segundo o INCRA, quando a área pleiteada pela comunidade quilombola estiver localizada em terras de domínio particular é necessário que o Presidente da República edite um Decreto de Desapropriação por Interesse Social de todo o território. A partir daí, cada propriedade particular pertencente a não quilombola da área deverá ser avaliada por técnico do INCRA, após o que será aberto o respectivo procedimento judicial de desapropriação e indenização do(s) proprietário(s). A indenização se baseia em preço de mercado e ocorre em dinheiro, pagando-se o valor da terra nua e das benfeitorias para os títulos válidos e apenas das benfeitorias no caso de títulos inválidos ou área de domínio sem título correspondente. 32Diferentemente das titulações individuais concedidas às famílias dos assentamentos da reforma agrária, conforme Arruti (2011), esta foi a alternativa encontrada pelo ordenamento jurídico nacional para solucionar o problema do não reconhecimento das modalidades de uso comum da terra, típicas das populações tracionais (idem, p.288).

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41

assim, com que se agregassem a esta área “todos os espaços que fazem parte de

seus usos, costumes e tradições e/ou que possuem os recursos ambientais

necessários à sua manutenção e às reminiscências históricas que permitam

perpetuar sua memória.” (ARRUTI, 2009, p 85).

A Fundação Cultural Palmares (FCP), por sua vez, passou a ficar

encarregada de emitir “certificações”33 para atestar o autoreconhecimento das

comunidades como “remanescentes de quilombos”. A partir da publicação da

Portaria Nº 6, em março de 2004, a FCP cria o “Cadastro Geral de Remanescentes

das Comunidades Quilombolas, para dar direito às Terras de Preto, Comunidades

Negras, Mocambos, Quilombos, e outras denominações congêneres”(MARQUES,

2008, p.87) à certificação.

O processo de regularização dos territórios quilombolas no Brasil pode

ser dividido em cinco etapas: 1º) abertura do processo administrativo34 – que pode

ser iniciado “de ofício” pelo INCRA ou por “requerimento de qualquer interessado”

das entidades ou Associações representativas de quilombolas; 2º) elaboração do

Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID)35 – produzido por um grupo

técnico interdisciplinar do INCRA; 3º) publicação da Portaria36 de Reconhecimento

33Em novembro de 2007 a FCP publicou a portaria Nº 98 que estabeleceu novos procedimentos para a certificação. Desde então, as comunidades interessadas devem enviar uma “Solicitação de Reconhecimento” como “Comunidade Remanescente de Quilombo” juntamente com um “relato histórico” com fotos, reportagens e estudos que tratem da história do grupo ou de suas manifestações culturais para a FCP. Além disso, também é necessário o envio da ata de reunião ou assembleia, na qual os membros da comunidade aprovam, por maioria, o pedido de reconhecimento. Após o recebimento da documentação pela FCP, é encaminhada a abertura de processo para posterior análise técnica. Se a documentação estiver correta, o próximo passo é a visita técnica de um técnico da Fundação que fará reunião com a comunidade para sanar possíveis dúvidas, conhecer a realidade da comunidade e elaborar relatório. Concluída essa etapa, é encaminhada a publicação do ato de reconhecimento da comunidade como remanescente de quilombo, no DOU. Caso a documentação não esteja completa, a comunidade é informada quanto à pendência. (FCP, Portaria nº 98, de 26 de novembro de 2007). 34 Até 15/07/2015, haviam sido abertos 1.516 processos em todas as Superintendências Regionais, com exceção dos Estados de Roraima, Acre e em Marabá-PA. (Fonte: site do INCRA) 35O RTID contém informações cartográficas, fundiárias, agronômicas, ecológicas, geográficas, socioeconômicas, históricas e antropológicas sobre a comunidade quilombola atendida e pode ser composto pelas seguintes peças: relatório antropológico; relatório agronômico; levantamento fundiário; planta e memorial descritivo do perímetro da área reivindicada pela comunidade, mapeamento e indicação dos imóveis e ocupações lindeiros de todo o seu entorno; cadastramento das famílias da comunidade; levantamento e especificação detalhada de situações em que as áreas pleiteadas estejam sobrepostas a unidades de conservação constituídas, a áreas de segurança nacional, a áreas de faixa de fronteira, terras indígenas ou situadas em terrenos de marinha, em outras terras públicas arrecadadas pelo INCRA ou Secretaria do Patrimônio da União e em terras dos estados e municípios; parecer conclusivo. Até 15/07/2015, haviam sido publicados 190 Editais de RTIDs, totalizando 1.742.298,1937 hectares em benefício de 24.966 famílias. (Fonte: site do INCRA) 36Após a publicação do RTID há um prazo 90 dias para que sejam feitas eventuais contestações do mesmo por parte de interessados particulares ou de outros órgãos governamentais. Caso haja

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do Território; 4º) publicação do Decreto37 de Desapropriação por Interesse Social; e,

finalmente, 5º) Emissão de Títulos38.

“Os primeiros RTIDs começaram a ser publicados a partir de 2006 e

foram produzidos por meio de convênios do INCRA com universidades federais e

estaduais para elaboração de relatórios antropológicos” (ARRUTI, 2009, p. 86).

Devido à ausência e/ou insuficiência de antropólogos no próprio INCRA para atender

as demandas das comunidades quilombolas, como no caso do Ceará, que teve seus

primeiros RTIDs publicados em 2007 – sobre a comunidade de Queimadas, no

município de Crateús – e em 2008 – sobre as comunidades de Alto Alegre e Base,

que formam as duas um único e mesmo território.

Todavia, Arruti ressalta que, paralelo aos processos de regularização

territorial, iniciou-se uma mobilização dos ruralistas e grandes proprietários rurais

contra a nova legislação e impetraram uma Ação Direta de Inconstitucionalidade

(ADIN, Nº 3239), proposta pelo extinto Partido da Frente Liberal (PFL), atual

Democratas (DEM). Na tentativa de “mediar às perdas políticas que ameaçam com a

queda do decreto”, o governo federal, após negociação com a oposição, decidiu

alterar os “procedimentos de reconhecimento e de regularização fundiárias previstos

pelo decreto” limitando, assim, as aplicações do mesmo no final do ano de 2007

(ARRUTI, 2009).

Essas alterações produziram mudanças nos processos administrativos da

FCP e do INCRA. A FCP publicou, em novembro de 2007, a portaria Nº 9839, que

contestações, estas serão analisadas e julgadas pelo CDR, ouvindo os setores técnicos e a Procuradoria Pegional. Da decisão contrária, cabe recurso ao Conselho Diretor do INCRA. Se forem procedentes, o Edital publicado precisa ser retificado e republicado, caso contrário, o RTID é aprovado em definitivo. A partir daí, o INCRA publica Portaria reconhecendo os limites do território quilombola. A Portaria de Reconhecimento do Território Quilombola é publicada no Diário Oficial da União e do Estado. Até 15/07/2015 foram publicadas 100 Portarias, totalizando 366.508,3653 hectares reconhecidos em benefício de 10.198 famílias. (Fonte: site do INCRA) 37Caso o território esteja localizado em terras públicas esta etapa é desnecessária. E, no caso das terras serem da União, estas devem ser tituladas pelo INCRA ou pela SPU. Em sendo terras estaduais ou municipais, a titulação cabe ao respectivo ente da federação. Até 15/07/2015 o INCRA havia publicado 73 Decretos, desapropriando 555.276,8905 ha em benefício de 6.829 famílias. No Ceará apenas três Decretos foram publicados até 2015. (Fonte: site do INCRA) 38O título é coletivo, pró-indiviso e em nome das associações que legalmente representam as comunidades quilombolas. Não há ônus financeiro para as comunidades e obriga-se a inserção de cláusula de inalienabilidade, imprescritibilidade e de impenhorabilidade no título, o qual deverá ser registrado no Serviço Registral da Comarca de localização do território. Devido às diferenças de normatização, alguns títulos emitidos antes de 2004, pela Fundação Cultural Palmares, ainda se encontram na fase de desintrusão. Até 15/07/2015 foram emitidos 190 títulos, regularizando 1.033.426,8975 hectares em benefício de 143 territórios, 233 comunidades e 15.171 famílias quilombolas. De 1995 a 2002 foram expedidos 46 títulos; de 2003 a 2010 foram expedidos 75 títulos; e de 2011 a 2015 foram expedidos 69 títulos. (Fonte: site do INCRA)

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instituiu novas regras para o Cadastro Geral de Remanescentes das Comunidades

dos Quilombos e tronou o processo de certificação mais burocrático. Já o INCRA,

teve de elaborar novas instruções normativas para o processo de regulação

fundiária quilombola, aumentando a complexidade e morosidade do mesmo.

(ARRUTI, 2009).

A atual instrução normativa que rege o procedimento do INCRA é a de Nº

57, publicada em 20 de outubro de 2009. A mesma estabelece que a elaboração do

RTID só poderá ocorrer após a certificação da comunidade quilombola pela FCP, e,

conforme seu artigo sexto da mesma:

A auto-definição da comunidade será certificada pela Fundação Cultural Palmares, mediante Certidão de Registro no Cadastro Geral de Remanescentes de Comunidades de Quilombos do referido órgão, nos termos do § 4º, do art. 3º, do Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003. (INCRA, 2009)

A apresentação desses dados teve por objetivo apresentar ao leitor as

bases sobre as quais se desenvolve a implementação da política fundiária para os

quilombos no Brasil e no Ceará.

3.2 IMPLEMENTAÇÃO: AS AÇÕES DO INCRA-CE

Embora o Decreto 4.887 tenha atribuído ao INCRA a responsabilidade

pelo processo de regularização fundiária dos quilombos no Brasil, as ações para a

regularização dos territórios quilombolas só seriam retomadas, nacionalmente, em

2005 com a publicação das Instruções Normativas emitidas internamente pelo

INCRA, que definiram todas as etapas deste processo(ARRUTI, 2009). Antes do

Decreto não havia nenhum setor ou departamento dentro da estrutura interna do

39Segundo o site da FCP, a partir desta portaria, para obter esta Certificação é necessário que a comunidade envie para a FCP a Solicitação de Reconhecimento como Comunidade Remanescente de Quilombo, juntamente com o relato histórico com fotos, reportagens e estudos que tratem da história do grupo ou de suas manifestações culturais. Além disso, é necessário o envio da ata de reunião ou assembleia, na qual os membros da comunidade aprovam, por maioria, o pedido de reconhecimento. Após o recebimento da documentação pela FCP, é encaminhada a abertura de processo para posterior análise técnica. Se a documentação estiver correta, o próximo passo é a visita técnica de um técnico da Fundação que fará reunião com a comunidade para sanar possíveis dúvidas, conhecer a realidade da comunidade e elaborar relatório. Concluída essa etapa, é encaminhada a publicação do ato de reconhecimento da comunidade como remanescente de quilombo, no DOU. Caso a documentação não esteja completa, a comunidade é informada quanto à pendência. (FCP, Portaria nº 98, de 26 de novembro de 2007).

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INCRA, e de suas Superintendências Regionais, responsável pela regularização dos

territórios quilombolas.

Figura 1 – Estrutura organizacional das Superintendências Regionais do

INCRA

Fonte: Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

Somente com a publicação da Instrução Normativa (IN) Nº 16, em 24 de

março de 2004, é que o processo de reconhecimento, delimitação, demarcação e

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titulação das terras ocupadas pelos “remanescentes das comunidades dos

quilombos” passaria a ser estabelecido com mais especificidades. É a partir deste

momento que começam a serem implantados os primeiros departamentos

responsáveis pela “Regularização dos Territórios Quilombolas”. A Figura 1 apresenta

o atual organograma do INCRA. Até então, as “Divisões de Ordenamento da

Estrutura Fundiária” atendiam basicamente o público dos Assentamentos Rurais e

de pequenos agricultores. De acordo com o primeiro parágrafo do artigo quinto desta

IN:

As atribuições contidas na presente Instrução serão coordenadas e supervisionadas pela Superintendência Nacional do Desenvolvimento Agrário – SD e executadas pelas Superintendências Regionais – SR e Unidades Avançadas – UA do INCRA, através de Divisão Técnica, grupos ou comissões constituídas através de ordem de serviço do Superintendente Regional. A Superintendência Regional do INCRA poderá, sempre que necessário, estabelecer convênios, contratos e instrumentos similares com órgãos da administração pública federal, estadual, municipal, do Distrito Federal, organizações não-governamentais e entidades privadas, observada a legislação pertinente. (BRASIL, 2004, p. 65, grifo meu)

Somente após a publicação destas primeiras “Ordens de Serviço” é que

as primeiras Equipes Técnicas seriam formadas e iniciariam a produção dos

Relatórios Técnicos de Identificação e Delimitação (RTIDs) dos territórios

quilombolas em todo país. No caso do Ceará, as primeiras Equipes Técnicas foram

compostas por meio de convênios com outras instituições, porquanto o INCRA-CE

ainda não possuía internamente um quadro de técnicos especializados para a

execução desta tarefa.

Em setembro de 2005, poucos dias após a abertura dos processos das

comunidades de Queimadas e Água Preta, seria publicada a IN nº 20, que

estabeleceria novos procedimentos para a produção dos RTIDs. Pela primeira vez

seriam instituídas: 1) a presença de um “Grupo Técnico Interdisciplinar” para

dialogar com as comunidades antes da produção do RTID; e 2) a produção de um

relatório antropológico, feito a partir de trabalho de campo de um

antropólogo/especialista, como primeira etapa do RTID – anteriormente, coforme os

parâmetros estabelecidos pela IN nº 16, o RTID era elaborado a partir de “estudos

técnicos e científicos já existentes” que deveriam ser “encaminhados ao INCRA com

anuência das comunidades”.

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Estes novos parâmetros foram inseridos no trecho que trata da etapa de

“Identificação e Delimitação”, mais precisamente nos artigos oitavo nono e décimo

da IN nº 20, segundo os quais:

[...] Art. 8º - O estudo e a definição do território reivindicado serão precedidos de reuniões com a comunidade e contarão com a participação do Grupo Técnico interdisciplinar, nomeado pela Superintendência Regional do INCRA, para apresentação dos trabalhos e procedimentos que serão adotados. Art. 9º - A identificação dos limites das terras das comunidades remanescentes de quilombos a que se refere o artigo 4º, a ser feita a partir de indicações da própria comunidade, bem como a partir de estudos técnicos e científicos, inclusive relatórios antropológicos [...] Art. 10 - O Relatório Técnico de Identificação e Delimitação será feito por etapas, abordando informações cartográficas, fundiárias, agronômicas, ecológicas, geográficas, socioeconômicas, históricas e antropológicas, obtidas em campo e junto a instituições públicas e privadas, e compor-se-á das seguintes peças: I - relatório antropológico de caracterização histórica, econômica e sócio-cultural do território quilombola identificado [...] O início dos trabalhos de campo deverá ser precedido de comunicação prévia a eventuais proprietários ou ocupantes de terras localizadas no território pleiteado, com antecedência mínima de 3 (três) dias úteis. (BRASIL, 2005, p. 2-3,grifo meu)

Estes dois novos elementos – o “Grupo Interdisciplinar” e o “Relatório

Antropológico” – passam a fazer parte da composição da peça chave do processo

de regularização: o RTID.

O primeiro “Grupo Interdisciplinar” formado no INCRA-CE, contava com a

participação de alguns técnicos de nível médio – que já trabalhavam com o público

dos Assentamentos e pequenos agricultores –, um agrônomo do Instituo de

Desenvolvimento Agrário do Ceará (IDACE), um economista e outro agrônomo

(chefe da Divisão, na época), ambos do próprio do INCRA-CE e uma antropóloga da

Universidade Estadual do Ceará (UECE)40. Esta primeira equipe atuaria somente na

produção do RTID da comunidade de Queimadas, no município de Crateús.

Como o período de elaboração do RTID é relativamente longo –

aproximadamente um ano41 –, devido à abertura de novos processos o INCRA-CE

teve de solicitar à sede do INCRA, em Brasília, a vinda temporária de alguns

40Esta parceria entre o INCRA-CE e a UECE ocorreu devido à desistência da antropóloga que fora aprovada no concurso público realizado pelo INCRA, em 2005, para contratação de antropólogos para todas as Superintendências Regionais do INCRA – sendo uma vaga para cada e 6 vagas para a sede do INCRA em Brasília.. 41O RTID produzido mais rapidamente no Ceará foi o da comunidade de Sítio Arruda, que levou cerca de nove meses para ser elaborado e ainda mais um mês para ser publicado (ver dados no Anexo C). Segundo o antropólogo do INCRA-CE, devido ao tempo necessário para concluir o trabalho de campo em uma comunidade, que leva de 4 a 6 meses, só é possível, para um único antropólogo, produzir no máximo dois laudos técnicos por ano.

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antropólogos42 lotados em outros Estados ao Ceará para a elaboração de relatórios

antropológicos para tentar atender as 18 comunidades que, até 2008, já haviam

solicitado a regularização de seus territórios. (Figura 2). No entanto, até o final deste

ano somente os RTIDs das comunidades de Alto Alegre e Base43 e Queimadas44,

haviam sido publicados no DOU.

Figura 2 – Relação das comunidades quilombolas com processos abertos no

INCRA-CE entre 2005 a 201445

(Continuação)

Relação de Processos Abertos

UF/SR Nº De ordem

Nº Processo Comunidade Município Ano de Abertura

1 54130.003558/2005-11 Água Preta Tururu 2005

2 54130.003559/2005-58 Queimadas Crateús 2005

3 54130.004190/2005-09 Serra dos Bastiões

Iracema – Irerê 2005

4 54130.004882/2005-49 Alto Alegre Horizonte e Pacajús

2005

5 54130.001692/2006-51 Souza Porteiras 2006

6 54130.001694/2006-40 Negros Timbaúba Coreaú 2006

7 54130.001695/2006-94 Conceição dos Caetanos

Tururu 2006

8 54130.001696/2006-39 Lagoa do Ramo e Goiabeira

Aquiraz 2006

9 54130.001662/2007-16 Serra dos Chagas Salitre 2007

10 54130.001663/2007-52 Lagoa das Pedras

Tamboril 2007

42Os três primeiros relatórios antropológicos – das comunidades de Alto Alegre e Base; Queimadas; e Lagoa do Ramo e Goiabeira – foram produzidos por antropólogos de Brasília. 43Embora estas comunidades tenham abertos seus processos de forma independente e em diferentes momentos, após a conclusão do laudo antropológico, ambas as comunidades passaram a fazer parte de um único território. 44Embora tenha sido a primeira comunidade a ser atendida pelo INCRA-CE e a primeira a ter o relatório antropológico concluído, em 2007, o processo de Queimadas encontra-se suspenso pela justiça, após decisão tomada em audiência realizada no dia em 05/12/2012. Após a publicação do RTID, no final de 2008, o processo de Queimadas recebeu várias contestações e, atualmente, possui 10 volumes, sendo que 7 deles são somente de contestações. As principais alegações usadas pelos contestadores são 1) que a comunidade não é quilombola e que houve manipulação da identidade dos quilombolas; 2) que não foi respeitado o devido processo legal uma vez que a antropóloga que elaborou o relatório antropológico não tem vínculo funcional com o INCRA (visto que é professora da UECE); 3) que a área delimitada como “território quilombola” é muito grande (cerca de 8 mil hectares). 45Em 2015 foram abertos mais dois processos para as comunidades do Cumbe, em Aracati, e Batoque, em Pacujá.

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(Conclusão)

11 54130.001664/2007-05 Encantados do Bom Jardim

Tamboril 2007

12 54130.000412/2008-59 Três Irmãos Tiaguá 2008

13 54130.000696/2008-83 Croatá Quiteranópolis 2008

14 54130.000697/2008-69 Fidelis Quiteranópolis 2008

15 54130.000698/2008-72 Gavião Quiteranópolis 2008

16 54130.000699/2008-17 Consciência Negra

Tauá 2008

17 54130.000774/2008-40 Torres Tamboril 2008

18 54130.001203/2008-22 Brutos Tamboril 2008

19 54130.000798/2009-80 Sitio Arruda Araripe 2009

20 54130.002017/2009-91 Minador Novo Oriente 2009

21 54130.001213/2010-82 Sítio Trombetas Ipueiras 2010

22 54130.003129/2010-01 Córrego de Ubaranas

Aracati 2010

23 54130.000523/2011-61 Sítio Veiga Quixadá 2011

24 54130.000544/2012-67 Bolqueirão da Arará

Caucaia 2012

25 54130.000080/2012-99 Furada Quiterinópolis 2012

26 54130.000224/2014-79 Serra do Evaristo Baturité 2014

27 54130.000483/2014-08 Córrego dos Lús Acaraú Cruz 2014

28 54130.000788/2014-10 Sítio Carcará Potengi 2014

29 54130.000843/2014-63 Sítio Carnaúba II São Benedito 2014

30 54130.001015/2014-42 Sítio Arapuca Salitre 2014 Fonte: INCRA,2016 (Com adaptações do autor)

Ainda em 2008 a Equipe Técnica do INCRA-CE agregaria novos

membros, um assistente administrativo e um geógrafo (que passaria a ser o

coordenador do setor quilombola).

A partir de 2010, a mesma passaria a contar com a presença efetiva de

um antropólogo, que viria transferido da superintendência do INCRA em Roraima46

para a superintendência do INCRA no Ceará – o mesmo já havia vindo

anteriormente, em 2009, para fazer o relatório antropológico da comunidade de

Timbaúba, em Coreaú.

46Roraima e Acre são os únicos Estados que ainda não possuem processos para regularização de territórios quilombolas. A transferência só foi possível em virtude deste cenário favorável. Todavia, remoção definitiva só foi publicada em 2010, devido a problemas administrativos internos no INCRA Nacional.

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Em 2013 esta equipe seria reconfigurada devido ao falecimento do

geógrafo que coordenava o setor, no final de 2012, bem como ao afastamento dos

dois agrônomos por aposentadoria. Atualmente a equipe é coordenada pelo

antropólogo vindo de Roraima e conta ainda com mais uma antropóloga47, dois

agrônomos (que vieram transferidos de outras divisões do INCRA-CE), dois

analistas em reforma agrária, dois topógrafos e um assistente administrativo.

Atualmente, segundo os dados da planilha de acompanhamento dos

processos do INCRA-CE48, das 35 comunidades que abriram processos para

regularizar seus territórios cinco delas – Três Irmãos, Sítio Arruda, Brutos, Alto

Alegre/Adjacências/Base e Lagoa das Pedras/Encantados do Bom Jardim – já

tiveram seus “Decretos” (para fins de desapropriação) publicados no DOU e estão

na fase final do processo, aguardando a desintrusão de seus territórios para obterem

a titulação dos mesmos.

Figura 3 – Andamento dos processos de regularização fundiário dos

quilombos no Ceará

(Continuação)

Andamento dos Processos - Quadro Geral

SR Comunidade Município Área /ha Número de Famílias

Etapa

Três Irmãos Croatá e Ipueiras 2.946.9375 15 Decreto no DOU

Serra dos Chagas Salitre 2.338.2893 32 Portaria no DOU

Sítio Arruda Araripe e Salitre 339,3405 34 Decreto no DOU

Brutos Tamboril 1.302,4397 76 Portaria no DOU

Minador Novo Oriente 1.886,1199 56 RTID

Sítio Veiga Quixadá 967,1200 39 RTID

Boqueirão do Arara Caucaia 718,5989 89 RTID

Córrego de Ubaranas Aracati 1.626,8176 61 RTID

Alto Alegre, Adjacências e Base

Horizonte e Pacajus 448,3168 375 Decreto no DOU

Queimadas

Crateús

8.278,3254

96

RTID

47Contratada em 2013, após aprovação no segundo concurso realizado pelo INCRA para contratação de antropólogos. 48Ver Anexo C, a planilha de acompanhamento dos processos de regularização fundiária das terras quilombolas cearenses, atualizada até maio de 2016.

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50

(Conclusão)

Lagoa do Ramo e

Goiabeira

Aquiraz 1.407,2957 137 Portaria no DOU

Timbaúba Moraújo e Corearú 2.033,7284 142 RTID

Lagoa das Pedras e Encantados do Bom

Jardim

Tamboril 1.959,7452 67 Decreto no DOU

Fonte: INCRA, 2016 (Com adaptações do autor)

Com a chegada do antropólogo os processos começaram a ganhar maior

celeridade. Como se pode ver no quadro abaixo (Figura 4), de todos os RTIDs que

foram produzidos no Ceará apenas o relatório da comunidade de Córrego de

Ubaranas, publicado em 2015, não foi elaborado pelo mesmo, posto que a partir de

2013 o INCRA-CE passou a contar com uma nova antropóloga na Equipe Técnica

responsável por produzir os RTIDs para as comunidades com processos abertos.

Figura 4 – Relação das comunidades quilombolas cearenses com RTIDs

publicados até 2015

(Continuação)

RITDs PUBLICADOS- GERAL

SR Nº Nº do Processo Comunidade Município Área h/a Nº de

famílias Publicação

no DOU

02/CE

8 54130.004882/2005-49 Alto Alegre,

Adjacências e Base

Horizonte e Pacajus

588,2774 375 11 e

15/12/08

9 54130.003559/2005-58 Queimadas Crateús 8.278,3254 96 11 e

15/12/08

10 54130.001696/2006-39 Lagoa do Ramo e

Goiabeira Aquiraz 1.407,2957 137

27 e 28/11/09

11 54130.001696/2006-39 Timbaúba Moraújo e

Coreaú 2.033,7284 142

18 e 19/11/09

12 54130.000663/2007-52 Lagoa das Pedras e Encantados do Bom Jardim *13

Tamboril 1.959,7452 67 28 e

29/12/09

13 54130.000412/2008-59 Três Irmãos Croatá e Ipueiras

2.946,9375 15 28 e

29/12/10

14 54130.000662/2007-16 Serra dos Chagas Salitre 2.338,2893 32 28 e

29/12/10

15 54130.000798/2009-80 Sítio Arruda Araripe e

Salitre 334,3401 34

28 e 29/12/10

16 54130.001203/2008-22 Brutos Tamboril 1.302,4397 76 27 e

28/12/11

17 54130.002017/2009-91 Minador Novo

Oriente 1.886,1199 56

03 e 04/12/12

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51

(Conclusão)

18 54130.000523/2011-61 Sítio Veiga Quixadá 967,1200 39 24 e

25/09/13

19 54130.000544/2012-67 Boqueirão da

Arara Caucaia 718,5989 89

17 e 18/09/14

20 54130.003129/2010-01 Córrego de Ubaranas

Aracati 1.626,8176 61 30 e

31/03/15 Fonte: INCRA, 2016 (Com adaptações do autor)

Até aqui, cabe ressaltar o salto quantitativo do número de comunidades

que foram identificadas como quilombolas no Ceará. No ano 2000, conforme o

levantamento feito pelo geógrafo Rafael Sanzio de Araújo dos Anjos (2000)49,

apenas 11 comunidades haviam sido identificadas como “remanescentes de

quilombo” no Ceará (Figura abaixo). Segundo os dados do INCRA-CE, dentro de

pouco mais de uma década, até 2015, este número já havia mais que triplicado.

Figura 5 – Mapeamento feito por Anjos em 2000

Agrupamento Município

Conceição dos Caetanos Tururu

Água Preta Tururu

Lagoa do Ramo Aquiraz

Alto dos Pereira Aquiraz

Goiabeiras Aquiraz

Estrada Nova Aquiraz

Pereiral Aquiraz

Bastiões Iracema

Serra do Evaristo Baturité

Luanda Crato

Carnaúba [São] Benedito Fonte: Ratts (2011).

Conforme os dados oficiais da Fundação Cultural Palmares (FCP), até

fevereiro de 2015, 45 comunidades foram reconhecidas e certificadas como

“remanescentes de quilombo” no Ceará.

49Esses dados foram publicados no trabalho “Mapeamento dos Remanescentes de Antigos Quilombos” (ANJOS, 2000). Segundo Ratts (2011), o autor deste trabalho elaborou o mesmo compilando dados dos movimentos negros e das universidades.

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52

Figura 6– Relação das comunidades quilombolas certificadas pela FCP até

2015

Fundação Palmares

Quadro Geral de Comunidade Remanescentes Quilombos (CRQS)

Nº UF 2004

2005

2006

2007

2008

2009

2010

2011

2012

2013 2014

2015 Nº CRDs

1 Acre 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 - - 0

2 Alagoas 0 11 8 3 1 27 14 1 0 0 1 1 67

3 Amazonas

0 0 1 0 0 0 0 0 0 4 2 - 7

4 Amapá 0 4 7 0 0 2 10 3 0 7 - - 33

5 Bahia 28 59 117 27 34 21 50 96 9 129 46 22 638

6 Ceará 2 1 7 2 1 3 7 5 7 4 3 - 45 Fonte: FCP (Com adaptações do autor)

3. 3 IMPACTOS: NOVAS ASSOCIAÇÕES, UNIFICAÇÃO DE COMUNIDADES E

NOVAS SITUAÇÕES DE CONFLITO

Dentre os principais impactos advindos da implementação da política

fundiária para os quilombolas no Ceará, destaco três que julgo serem os mais

significativos, a saber: 1) o surgimento das “associações quilombolas”; 2) a fusão de

algumas comunidades que, após a publicação do RTID, passaram a fazer parte de

um mesmo território; e 3) o surgimento e/ou acirramento de conflitos com posseiros

e/ou proprietários que estão dentro dos territórios pleiteados pelos quilombolas.

3.3.1 As Associações Quilombolas

A partir do estabelecimento da autoatribuição como novo critério de

reconhecimento dos quilombolas no Brasil, com Decreto 4.887 em 2003, as

lideranças quilombolas começam a se organizar politicamente por meio de

“Associações” para buscarem o reconhecimento do Estado, e a implementação de

políticas públicas para suas comunidades, principalmente, a política de

regularização fundiária.

Estas mobilizações podem ser consideradas como efeitos do processo de

territorialização, tendo em vista que:

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53

[...] esse dispositivo de territorialização opera tanto por efeito quanto por antecipação. Ainda que o “objeto político-administrativo” só exista em função do Estado, as lutas por reconhecimento implicam que as coletividades organizadas não só antecedem como antecipam tal objetivação: ao aderirem às políticas de reconhecimento – que lhes garantem o direito de escapar da individualização e indiferenciação do ordenamento jurídico dominante – os coletivos, eles mesmos, são propositores de sua própria territorialização e, assim, por consequência pouco evidente para eles mesmos, de sua objetificação: cultura e identidade modelizadas. (ARRUTI, 2012, p. 6) (grifo meu)

Antes do advento da implementação da política fundiária, os quilombolas

no Ceará já se organizavam socialmente em torno de outros tipos de associações,

acionando diferentes identidades, como por exemplo: associações de moradores; de

pequenos agricultores, de pescadores etc.

Todavia, com as mudanças instituídas pelo o Decreto 4.887 na política

fundiária, começam a surgir as primeiras “Associações Quilombolas” no Ceará a

partir de 2003. Como, desde então, a titulação dos territórios passou a ser feita de

forma coletiva, em nome de uma entidade representativa da comunidade, as

“Associações Quilombolas” passaram a ser as novas protagonistas deste processo,

uma vez que o acesso a este benefício é garantido pelo Estado (BOURDIEU, 2014)

por meio do “dispositivo de nominação” (ARRUTI, 2012), que transforma um

determinado grupo e/ou coletividade em um sujeito de direito.

No próximo capítulo serão descritas algumas das principais ações que

estas novas associações passaram a desenvolver em suas comunidades, sobretudo

no que diz respeito ao trabalho de “resgate cultural” e “valorização da identidade”

negra e/ou afrodescendente, como nos casos da ARQUA, na comunidade de Alto

Alegre, em Horizonte e da AQUILARGO, na comunidade de Lagoa do Ramo e

Goiabeira, em Aquiraz.

3.3.2 Novas fronteiras e o compartilhamento territorial

Antes da implementação da política fundiária algumas comunidades que,

atualmente, pleiteiam juntos um território em comum, se organizavam de forma

independente uma da outra e depois, após a elaboração de seus RTIDs, passaram a

se organizar em torno de uma única associação, como foram os casos das

comunidades de 1) Alto Alegre e Base; e 2) Lagoa das Pedras e Encantados do Bom

Jardim, que serão descritos a seguir.

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54

Enquanto a comunidade de Alto Alegre, situada no município de

Horizonte, foi oficialmente reconhecida como “remanescente de quilombo” pela FCP

no dia 08/06/2005, data da publicação de sua certificação no DOU. A comunidade de

Base, situada no município de Pacajus – que faz fronteira com o município de

Horizonte –, obteve o reconhecimento oficial da FCP apenas no ano seguinte, no dia

07/06/2006, quando da publicação de sua certificação no DOU, sendo que esta

comunidade compreendia ainda as “Adjacências”, referindo-se às comunidades de

Caetana e Retiro.

A comunidade de Alto Alegre teve seu processo de regularização territorial

aberto no INCRA-CE no dia 18/10/2005 em nome de sua associação – a Associação

de Remanescente do Quilombo de Alto Alegre (ARQUA) –, de forma independente

das comunidades de Base, Caetana e Retiro, que só teriam seu processo aberto no

ano seguinte, no dia 18/07/2006, que, por sua vez, estavam organizadas em torno

da Associação de Remanescente do Quilombo da Base, que nesta época ainda não

possuía a inscrição de seu CNPJ.

Todavia, após a conclusão do relatório antropológico, elaborado por duas

antropólogas de Brasília contratadas pelo INCRA-CE em 2008, as duas

comunidades tiveram seus processos unificados e passaram a pleitear um único e

mesmo território.

Na conclusão do relatório antropológico são apresentadas as justificativas

para a unificação dos processos, dentre as quais destacam-se a ancestralidade e o

parentesco em comum, bem como o compartilhamento e os usos do mesmo

território no cotidiano das famílias ali residentes. Desta feita, a delimitação do

território indicado pela comunidade de Alto Alegre e Base foi a caracterizado a partir

da “memória e dos usos diversos que fazem da área” ressaltando a ocupação por

meio dos “aspectos econômicos, sociais e culturais ao longo do processo histórico

para chegar na autoidentidade da comunidade” como “remanescente de quilombo”,

que:

[...] aponta como ancestral fundador, o Cazuza, negro fugido de um navio negreiro ([...] antes de 1850) que aportara na Barra do Ceará e por isso foi caçado “a casco de cavalo” e a “dente de cachorro”, tendo sido capturado e preso por três dias, amarrado a uma árvore. Novamente fugiu e se embrenhou numa aldeia indígena em Pacajus (hoje bairro Buriti, reconhecida como reduto de indígenas da etnia paiacus naquele município) e que depois foi [...] removido para um lugar mais despovoado e escondido, que é a “baixa do Alto Alegre”, onde está até hoje a maior e mais antiga concentração das habitações permanentes dos membros da comunidade.

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55

[...] A comunidade também se autoidentifica como negra, embora o Cazuza tenha-se casado com uma indígena e mesmo as gerações posteriores tenha tido relações de parentesco afim (casamento ou adoção) com indígenas em ocasiões pontuais e não de forma generalizada. [...] A comunidade é formada proeminentemente por negros, descendentes dos troncos velhos das famílias que se entrelaçaram ao longo do tempo para formar a comunidade que chegou ao presente. [...] a parte Sul do território de Alto Alegre que passou a chamar-se Base quando a comunidade passou a fazer o uso de habitação permanente na primeira metade do século XX, sendo que o uso que faziam anteriormente, na segunda metade do século XIX, era o de extrativismo, cultivo, caça e coleta. (URSINI e CLEMENTE, 2008, p. 183-186)

À semelhança do caso anterior, as comunidades de Encantados do Bom

Jardim e Lagoa das Pedras também iniciaram seus processos de regularização

fundiária de forma distinta e independente. Encantados do Bom Jardim foi a primeira

a obter o reconhecimento oficial e teve sua certificação publicada no DOU no dia

13/12/2006. Lagoa das Pedras, por seu turno, só seria reconhecida pela FCP em

02/03/2007, dia em que foi emitida a publicação de sua certificação no DOU. E,

embora os processos de regularização fundiária das comunidades de Encantados

do Bom Jardim e Lagoa das Pedras tenham sido abertos no mesmo dia 02/04/2007,

no INCRA-CE, os mesmos possuem numerações diferentes e possuíam pastas

distintas uma vez que foram abertos de forma independente, separados um do

outro.

As justificativas para a unificação dos territórios também se assemelha

com as do caso de Alto Alegre e Base. Primeiramente, ambas as comunidades são

duas comunidades tradicionais negras e rurais, ambas formadas são “descendentes

de duas famílias negras tradicionais da região [...] cujos descendentes se

misturaram ao longo do tempo através de trocas matrimoniais formais e informais.”

(MARQUES, 2009, p.11). Esses relacionamentos formaram:

[...] dois pequenos aglomerados de famílias aparentadas, que têm suas raízes na escravidão negra dos tempos coloniais e que alcançam atualmente cinco ou seis gerações de descendentes dos troncos originais, distribuídas em 67 famílias que moram nas localidades Bom Jardim e Lagoa das Pedras, além de várias outras famílias que vivem na “diáspora”, ou seja, que moram fora do território pleiteado por motivos de trabalho, educação ou tratamento de saúde. (MARQUES, 2009, p. 81)

O relatório antropológico também destaca a articulação das duas

comunidades em torno de uma só instituição, a Associação dos Remanescentes

Quilombolas de Encantados do Bom Jardim, que será responsável pela

administração do território quilombola, posto que:

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56

[...] os quilombolas consideram como sendo membros de sua comunidade, com direito ao território pleiteado, todas aquelas pessoas que moram nas Bom Jardim e Lagoa das Pedras; que são parentes consangüíneos ou parentes afins dos ancestrais das famílias quilombolas POSSIDÔNIO e IRÉ; e que são associadas e participam das atividades da Associação dos Remanescentes Quilombolas de Encantados do Bom Jardim [...] Os parentes consangüíneos dos remanescentes de quilombo das famílias Possidônio e Iré que moram fora dessas localidades ou do território pleiteado também são considerados membros da comunidade, em virtude dos laços de parentesco e da autoidentificação quilombola. Porém, para serem aceitos de volta à comunidade é necessário que façam um requerimento à diretoria da Associação Quilombola e que este pedido seja aprovado em assembléia geral. São ainda reconhecidos ainda como membros aquelas pessoas que, mesmo não sendo parentes consangüíneos ou afins, moram há muito tempo no interior do perímetro do território quilombola, tendo estabelecido laços de parentesco social com os remanescentes, vivendo de forma harmônica e integrada à comunidade, respeitando suas regras de convivência e participando das atividades comunitárias. Além disso, para que essas pessoas sejam reconhecidas e aceitas como membros da comunidade, é necessário que sejam sócias da Associação Quilombola e que tenham se auto-declarado como quilombolas no cadastro oficial do INCRA. (MARQUES, 2009, p.82) (grifo meu)

Finalmente, os usos de parte do território pleiteado pelas famílias das

duas comunidades é outro elemento de destaque e que é usado como justificativa

para a unificação de seus territórios, como por exemplo, a área onde está situado

um “Assentamento Agrícola”, definida pelo Instituto Desenvolvimento Agrário do

Ceará (IDACE), através do projeto “Reforma Agrária Solidária”, do Governo do

Estado do Ceará. O mesmo foi “constituído em área de uso e ocupação tradicional

dos remanescentes quilombolas” das duas comunidades “que sempre utilizarem

essas terras para a produção de roças, caça, pesca, coleta e preservação ambiental,

desde a década de 1930, quando seus ancestrais chegaram na área da Fazenda

Bom Jardim.” (MARQUES, 2009, p.103).

3.3.3 Surgimento e/ou acirramento de conflitos

Outro impacto produzido pela implementação da política fundiária é o

acirramento e/ou surgimento de situações de conflito entre quilombolas e “não-

quilombolas” – formados basicamente por posseiros e proprietários que ocupam o

mesmo território. Como exemplo para ilustrar estes impactos, sito os casos das

comunidades de Bastiões e de Lagoa do Ramo e Goiabeiras.

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57

Segundo Bezerra (2012), o acionamento da identidade quilombola na

comunidade de Bastiões gerou conflitos entre os próprios membros da comunidade

e dividiu a mesma entre “negros” e “brancos”. Este problema se agravou ainda mais

após abertura do processo no INCRA-CE, no dia 14//09/2005. O mesmo

desencadeou um mal-estar na comunidade a partir dos comentários que começaram

a surgir divulgando, supostamente, que os negros iriam “dominar os brancos e se

apropriar dos imóveis dos brancos”. Uma carta enviada ao INCRA pela presidente

da Associação de Bastiões, em maio de 2007, revela a gravidade do problema:

Antônia Alves Bezerra, presidente da associação da comunidade de descendentes de Quilombos, Francisco Assis Crispo-Bastiões, localizada no município de Iracema, Ceará, distante 320 km de capital do estado. Eu venho através dessa carta, solicitar a presença de uma pessoa do Incra para verificar o que se passa na nossa comunidade. Pois Maria Zilmar Jacó, pertencente às famílias quilombolas, foi obrigada a abrir mãos de seus terrenos. A pessoa de quem eu falo tem 62 anos. Ela nasceu aqui e sempre viveu no seu pequeno terreno que hoje foi apropriado por uma pessoa que chegou aqui há pouco tempo. Por causa de ter medo de denunciar ao INCRA, quer dizer, de pedir uma fiscalização porque talvez esta pessoa de quem eu falo está sendo ameaçada ou ela estava sofrendo pressão para nada falar e deixar que pessoas que vieram de fora se apropriem de seu pequeno terreno. Vendo de perto isso que se passa e sentindo com ela o mesmo sofrimento, eu peço em nome da associação o acompanhamento do INCRA. É importante que o INCRA fiscalize para que não venha acontecer com outros quilombolas isso que se passa com Maria Zilmar Jacó. O acompanhamento do INCRA é importante, enfim é fundamental não somente para garantir ao quilombola o que ele tem, mas para que as pessoas que chegam de fora respeitem isso que é dos quilombolas de direito. A presidente Antônia Alves Bezerra pede ao INCRA que sejam tomadas as providências necessárias. (BEZERRA, 2012, p.59)

Devido a todos esses transtornos a comunidade de Bastiões acabou

desistindo de seu processo de regularização em meados de 2007.

No caso da comunidade de Lagoa do Ramo e Goiabeira, que teve seu

processo aberto no INCRA-CE no dia 18/072006, após a decisão da comunidade

tomada em assembleia geral organizada pela AQUILARGO, a situação foi ainda

mais grave, porquanto fez com que os membros da comunidade desistissem não

apenas do processo, mas até da própria identidade quilombola.

O RTID da comunidade foi o terceiro a ser produzido no Ceará e foi

publicado no DOU quase um ano depois do RTID de Alto Alegre, no dia 27/11/09. E,

embora tenha sido uma das poucas comunidades quilombolas no Ceará a conseguir

a “Portaria de Reconhecimento do Território”, que havia sido publicada no DOU no

dia 25/07/2014, quando estava aguardando a publicação de “Decreto de

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Desapropriação” que autoriza a desintrusão do território, foi protocolado no

INCRA/CE, no dia 07/10/2014, um requerimento com “Declarações de Desistência”

solicitando o encerramento do processo de regularização de seu território, com uma

lista de 136 nomes de moradores que comungavam da mesma decisão, dentre os

quais constava a assinatura da, então, presidente da associação.

Segundo parecer elaborado pelo antropólogo do INCRA-CE, esta decisão

teria sido induzida por um advogado de Fortaleza. Conforme o mesmo:

A ex-presidente da Associação Quilombola afirmou que não foi dela nem da ex-Diretoria da Associação Quilombola a iniciativa de colher assinaturas das famílias em Declarações de Desistência do processo do INCRA. Que isso partiu de um determinado advogado, que utilizou pessoas da comunidade para fazer o trabalho de convencimento das famílias para que, sob pressão psicológica, assinassem as declarações que já chegavam prontas para cada família. Disse também que não foi ela que encaminhou o Requerimento e as Declarações para o INCRA, apenas assinou a pedido do advogado, que foi quem encaminhou os documentos ao INCRA em nome da comunidade. Em seu depoimento, a presidente afirmou o seguinte: “Teve essa reunião com o advogado e o povo todinho da comunidade. Eu não fui convidada. [...] Eu não tava sabendo de nada que tava acontecendo. [...] Dizem que tinha um advogado [coordenando a reunião]. Eu não fui convidada, nem convocada e de metida também não fui. [...] Quando soube que tinha lá esse monte de declarações assinadas, com CPF e tudo, eu fui no escritório do advogado saber o que tavaacontecendo.[...] Eu disse: ‘tenho que saber o que ta acontecendo com a comuni-dade e com a minha pessoa’. Ai, fui no escritório dele[...] Cheguei lá, me identifiquei, que eu era a Leuda, ex-presidente da Associação, que representava a comunidade quilombola. Aí ele me recebeu e perguntou se eu era a favor da comunidade com essas declarações ou se eu era contra. Aí eu disse: ‘Doutor, se tem cento e tantas declarações assinadas abrindo mão da desapropriação, quem sou eu pra ir contra? Eu assino também’. Aí ele disse: ‘Então vou fazer um ofício pra senhora assinar’. E eu assinei uma folha dessas aqui

também. Não encaminhei [os documentos ao INCRA]”. (INCRA, 2014, p. 5)

Atualmente, o processo de regularização fundiária da comunidade de

Lagoa do Ramo e Goiabeira encontra-se arquivado e está aguardando um veredito

do Ministério Público Federal que foi acionado para investigar este caso.

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59

4 MOBILIZAÇÃO QUILOMBOLA NO CEARÁ

“Estamos sempre em processo de formação

cultural. A cultura não é uma questão de ontologia,

de ser, mas de se tornar.”

(STUART HALL, 2009, p.43)

Meu objetivo neste capítulo é demonstrar o protagonismo das lideranças

quilombolas 1) no processo de reconhecimento como “remanescentes de quilombo”

a partir da atuação das Associações Quilombolas nas comunidades; e 2) na

implementação de políticas públicas a partir da atuação da CEQUIRCE em

articulação com o INCRA-CE e as secretarias de Desenvolvimento Agrário (SDA) e

de Educação (SEDUC) do Estado do Ceará. Desta feita, o capítulo será divido em

duas partes.

Todavia, será feita, primeiramente, uma breve síntese da mobilização

quilombola no âmbito nacional. Em seguida, serão apresentadas as principais ações

desenvolvidas pela mobilização quilombola cearense, que visaram “resgatar” e ou

“reelaborar” os aspectos culturais ligados à afirmação da identidade negra e/ou

afrodescendente, a partir do caso da ARQUA, na comunidade de Alto Alegre.

Na segunda parte, serão descritas as principais ações da CEQUIRCE, em

articulação com órgãos estatais, na busca de políticas públicas para as suas

comunidades a partir dos exemplos: 1) da criação do GTI pró-quilombo no INCRA-

CE; 2) da implementação do Projeto Protagonismo das Comunidades Quilombolas

do Estado do Ceará, em parceria com a SDA e 3) da construção de “Escolas

Quilombolas”, em parceria com a SEDUC. Os dados empíricos que serão

apresentados foram retirados de trabalhos acadêmicos e de laudos antropológicos

produzidos sobre algumas comunidades quilombolas no Ceará, bem como de meu

trabalho de campo realizado durante o período do mestrado.

4.1 DO CONTEXTO NACIONAL AO CASO CEARENSE

Com o advento do artigo 6850 do Ato das Disposições Constitucionais

Transitórias (ADCT) – que fora aprovado e anexado à Constituição de 1988 sem

50 O artigo afirma que: “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando

suas terras, é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes títulos respectivos”. (BRASIL, 1988)

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60

maiores discussões como mais um item no pacote das festividades pelo centenário

da abolição da escravatura (ARRUTI, 1997) – lideranças quilombolas, em

articulação com militantes e intelectuais do movimento negro, começaram a se

organizar coletivamente para acessar os novos direitos concedidos pelo Estado

brasileiro. Segundo Melo (2008) já “em 1989, foi fundada a Associação das

Comunidades Remanescentes de Quilombos do Município de Oriximiná51 –

ARQMO, que surgiu como resposta às invasões e ameaças aos territórios

quilombolas a partir da década de 70.

As discussões sobre a aplicabilidade do artigo 68 começaram a ocorrer

no segundo semestre de 1994. No seminário “Conceito de Quilombo”, realizado

também em 1994 pela Fundação Cultural Palmares (FCP), foi apresentada a

concepção utilizada pela mesma para reconhecer os “quilombos

contemporâneos”52como sendo:

comunidades negras rurais que agrupam descendentes de escravos [que] vivem da cultura de subsistência e onde as manifestações culturais têm forte vínculo com o passado ancestral. Esse vínculo com o passado foi reificado, foi escolhido pelos habitantes como forma de manter a identidade. (MOURA, apud ARRUTI, 2006, p.84)

A Associação Brasileira de Antropologia (ABA), segundo Eliane O’Dwyer

(2002), teve um papel decisivo no questionamento de “noções baseadas em

julgamentos arbitrários” defendendo a seguinte posição:

[...] Contemporaneamente, o termo quilombo não se refere a resíduos ou resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou de comprovação biológica. Também não se trata de grupos isolados ou de uma população estritamente homogênea. Da mesma forma, nem sempre foram constituídos a partir de movimentos insurrecionais ou rebelados mas, sobretudo, consistem em grupos que desenvolveram práticas cotidianas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos e na consolidação de um território próprio.” (O’DWYER, 2002, p.63)

“No ano de 1995, no contexto das comemorações do Dia Nacional da

Consciência Negra, em memória do tricentenário da morte de Zumbi dos Palmares,

foram realizados debates públicos no intuito de regulamentar o artigo 68” (ARRUTI,

51Nessa região, aconteceu a primeira titulação de uma terra quilombola no Brasil, qual seja, a

Comunidade de Boa Vista, em novembro de 1995. (MELO, p. 4, 2008) 52 Definição elaborada por Glória Moura, que fora uma das responsáveis pela formulação e

implantação do artigo 68 do ADCT.

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61

1997, p.7). Neste período que ocorrem o I Encontro53Nacional das Comunidades

Negras Rurais, em Brasília e as primeiras ações governamentais. Com a publicação

da Portaria n° 25, em 15 de agosto de 1995, a FCP inicia os primeiros trabalhos de

identificação e delimitação para titulação das terras quilombolas em todo país e com

a publicação da Portaria nº 307/95 do INCRA as comunidades quilombolas ganham

pela primeira vez a possibilidade de terem suas terras demarcadas e tituladas

(PIMENTEL, 2013).

Em 1996 ocorreram as duas primeiras reuniões da Comissão Nacional

das Comunidades Negras Rurais Quilombolas, realizadas primeiramente em Bom

Jesus da Lapa (BA) e depois em São Luis (MA), respectivamente nos meses de

maio e agosto. A partir destas reuniões, foi constituída a Comissão Nacional

Provisória de Articulação das Comunidades Rurais Quilombolas (CNACNRQ),

composta por oito integrantes, sendo sete deles representantes de associações

locais – Conceição das Crioulas-PE, Silêncio do Mata-BA, Rio das Rãs-BA,

Kalungas-GO, Mimbó-PI, Furnas do Dionísio e Boa Sorte-MS – e uma entidade de

representação a nível regional, a Coordenação Estadual dos Quilombos do

Maranhão.

O papel desenvolvido por esta Comissão é fundamental para a

compreensão do processo de reconhecimento da primeira comunidade quilombola

no Ceará, tendo em vista que, como veremos a seguir, os primeiros relatórios de

identificação da Fundação Cultural Palmares foram produzidos por técnicos

indicadas por esta comissão. “Esta Comissão também deu origem ao principal

representante das comunidades quilombolas na esfera nacional, atualmente, a saber

a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais

Quilombolas – CONAQ” (ALMEIDA, 2011, p.83).

Durante do II Encontro Nacional das Comunidades Negras Rurais

Quilombolas, realizado em Salvador, Bahia, ano 2000, ocorre uma ruptura formal

entre lideranças da CONAQ e lideranças do movimento negro, conforme expressam

as palavras de Gilvânia Maria da Silva54:

53 Realizado de 17 a 19 de novembro de 1995, durante a Marcha Zumbi dos Palmares, que reuniu

cerca de 30 mil pessoas na Praça dos Três Poderes. 54Gilvânia foi uma das fundadoras da CONAQ. É Educadora Quilombola de Conceição das Crioulas,

em Salgueiro-PE. Graduou-se em Letras e fez mestrado Políticas Públicas e Gestão da Educação pela UNB, na área de relações raciais e pesquisa sobre educação escolar quilombola. Também foi

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Assumimos de forma bastante incisiva, no encontro de Salvador, que enquanto representação de voto na Coordenação Nacional só poderia ser de quilombola. Isso significava que reconhecíamos a importância de todas as outras organizações que contribuíam com o movimento, mas ao mesmo tempo chamavam os pra nós a responsabilidade de nos representar. (Gilvânia, apud Oliveira 2008, p.15).

De acordo com Bárbara Oliveira Souza (2008):

Desde a criação da Comissão até o Encontro de 2000, essa representação quilombola em âmbito nacional era composta por representações do movimento quilombola e, também, do movimento negro urbano. A partir desse marco, as comunidades tomam para si a representação nesse espaço. [...] Após o Encontro de Salvador, diversos Estados que ainda não estavam constituídos enquanto organização quilombola em nível local passam a se organizar e a construir esses espaços como de protagonismo das comunidades. (SOUZA, 2008, p. 14-15) (grifo meu)

Neste período o Ceará ainda não possuía uma “organização quilombola”

independente do movimento negro. A mobilização quilombola organizada de forma

independente só surge a partir de 2006, com o início das atividades da Comissão

Estadual dos Quilombolas Rurais do Ceará (CEQUIRCE), em um momento e

contexto diferenciado, marcado especialmente pela implementação da política

fundiária para esta população.

A mobilização quilombola no Ceará começa a ganhar forma já em 2002,

quando lideranças da comunidade de Bastiões, em Iracema, começaram a se

apropriar estrategicamente do discurso sobre a cultura para dar visibilidade à

mesma. Bezerra (2012)55 registra que estas lideranças passaram a fazer uso da

“imagem” da comunidade como sendo “de origem negra”, e, também representando

a mesma como “quilombo” Assim:

[...] Bastiões passou a ser conhecida, através da estratégia da visibilidade que o trabalho acadêmico apenas tinha começado, pois foi a participação de membros da comunidade nos fóruns negros que desencadeou, gradualmente, o seu reconhecimento como quilombo, portanto com direitos específicos [...] Bastiões passou a receber tratamento diferenciado pelo governo federal, sendo alvo de políticas públicasespecíficas no que diz respeito à educação e à segurança alimentar. (BEZERRA, 2012, pg,52)

Secretaria de Políticas para Comunidades Tracionais na SEPPIR e atualmente coordena a política de regularização dos territórios quilombolas no INCRA. 55No artigo “Reconhecimento étnico da comunidade de Bastiões-CE: rumores e conflitos”. Analúcia Sulina Bezerra fez pesquisa e trabalho de campo na comunidade de Bastiões entre os anos de 1996 e 2001 e elaborou sua Dissertação de Mestrado, em 2002, sob o título: “Bastiões: Memória e Territóri.”.

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63

A partir de 2004, Bastiões começou a ser beneficiada pelo Governo

Federal com 150 cestas básicas por meio da política de “Segurança Alimentar”,

implementada pelo Ministério do Desenvolvimento Social (idem, ibidem). Para além

das comunidades de Bastiões e Conceição dos Caetanos, que já haviam ganhado

bastante visibilidade no Ceará, outras comunidades começaram se organizar por

meio da criação de “Associações Quilombolas” para conquistarem seu

reconhecimento, como no caso da associação da comunidade de Alto Alegre,

Adjacências e Base, em Horizonte, que descreverei a seguir.

4.1.1 Ações da ARQUA

Devido a uma conjuntura favorável que raramente foi registrada em outras

comunidades – a saber, o interessa de uma prefeitura municipal em colaborar com o

processo de reconhecimento de uma comunidade, em sua jurisdição, como

quilombola – a primeira Associação Quilombola surge em 2003, no município de

Horizonte, na comunidade de Alto Alegre.

De acordo com Herbert Monteiro (2009), a Associação dos

Remanescentes Quilombolas de Alto Alegre e Adjacências (ARQUA) foi “pensada e

efetivada no ano de 2003 já com a iniciativa da prefeitura de Horizonte em

reconhecer Alto Alegre como remanescente de quilombo” como uma “estratégia

política para aglutinar Alto Alegre à sociedade de Horizonte.” Conforme as palavras

de Leuda (primeira liderança a assumir a presidência da Associação) “a principal

atividade da associação é a organização de trabalhos coletivos em prol do

fortalecimento da identidade como remanescentes de quilombo.” (MONTEIRO,

2009, p.68).

Mesmo sem sede própria, a Associação Quilombola promoveu reuniões

periodicamente no terceiro domingo de cada mês numa sala de um colégio de

ensino fundamental de Alto Alegre. Na ocasião da realização das mesmas todos os

moradores eram “convidados a participar e debater as questões locais” que diziam

respeito, sobretudo, à “questão do resgate cultural e da identidade de

remanescentes quilombolas entre os moradores, por meio do relato sobre as origens

de Alto Alegre”. Outra temática enfatizada e debatida durante as reuniões era a

implementação da política fundiária e os “benefícios” advindos do “processo de

demarcação do território quilombola”. (MONTEIRO, 2009).

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Com as ações da ARQUA, “aspectos da cultura negra que estavam

esquecidos no cotidiano daquele povo estão voltando a fazer parte da realidade,

especialmente com relação à dança.” (MONTEIRO, 2009, p.70). Segundo Leuda,

“quando surgiu à associação, surgiu também à capoeira como um dos elementos da

identidade negra.” (idem, ibidem). Para Monteiro:

O aumento da auto-estima também é colocado como um fator de destaque na atuação da associação no Alto Alegre. Seus integrantes apontam o trabalho com os moradores como um motor para que o Alto Alegre seja entendido como um lugar melhor de se viver, onde o reconhecimento como remanescentes equivalha a momentos de crescimento individual e coletivo. Antes da criação da associação ninguém no Alto Alegre se auto-referia como remanescente de quilombo, e, segundo relatos dos moradores, a comunidade passou a ter uma melhor assistência após a criação da mesma associação. (MONTEIRO, 2009, p. 70) (grifo meu)

Embora nem todos os moradores das famílias que residem em Alto Alegre

se reconhecessem nesta época como quilombolas, a autoidentificação de boa parte

delas, sobretudo devido às ações da ARQUA, foi suficiente para que a comunidade

obtivesse a certificação da Fundação Cultural Palmares (FCP) no dia 08/06/2005,

tornando-se, assim, a terceira56 comunidade a ser oficialmente reconhecida como

“remanesscente de quilombo” no Ceará. Alguns meses depois, em outubro do

mesmo ano, seria instaurada no INCRA-CE a abertura do processo de regularização

fundiária do território quilombola de Alto Alegre e teria seu RTID publicado no DOU

no dia 11/12/2008.

Em 2011, após a inauguração do Centro Cultural Quilombola Negro

Cazuza57, realizada no dia 21 de outubro, a ARQUA passou a organizar suas

atividades neste novo espaço. Este equipamento conta com várias salas onde são

desenvolvidas atividades diferentes tais como: fabricação de bonecas de pano;

funcionamento de uma rádio comunitária; aulas de informática, salão para

apresentações e reuniões com a comunidade; e uma sala, que serve como um

minimuseu, que retrata a história da comunidade por meio de alguns quadros que

56As duas primeiras comunidades a serem reconhecidas pela FCP foram Água Preta e Conceição dos Caetanos, ambas situadas no município de Tururu, e tiveram suas certificações publicadas no Diário Ofical da União no mesmo dia, 10/12/2004. No dia 18/10/2006, Alto Alegre se tornaria a quarta comunidade a solicitar a abertura do processo de regularização de seu território ao INCRA-CE, sendo precedida pelas comunidades de Água Preta, Queimadas e Bastiões que tiveram seus processos abertos nos dias 26/08/2005 e 14/09/2005. 57O financiamento desta obra foi obtido a por meio de uma parceria entre a prefeitura de Horizonte e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

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foram pintados para apresentar sinteticamente a saga de Negro Cazuza, patriarca

da comunidade.

As programações da Semana da Consciência Negra, na semana que

celebra o dia 20 de novembro (dia da Consciência Negra), passaram a ser

realizadas neste espaço com apresentações culturais, exibições de filmes, palestras,

rodas de samba, festival de talentos e o desfile do concurso da “Mais bela Negra” da

comunidade, dentre outras.A partir de então, a associação conseguiu uma instrutora

para ensinar a dança do Makulelê para as crianças e adultos da comunidade, como

uma das estratégias de afirmar a identidade quilombola.

Figura 7 – Grupo das crianças que dançam o Makulelê

Fonte: LABCEUS (2016)

Em entrevista a um jornal de grande circulação em fortaleza, a instrutora

afirmou que este trabalho “ajuda a combater o preconceito”, embora a dança ainda

seja vista com “maus olhos por pessoas da própria comunidade por questões

religiosas” (PORTAL DIÁRIO DO NORDESTE, 2013). Segundo ela, isto limita a

participação e a adesão de mais pessoas ao grupo, porquanto

Ainda temos crianças que não podem vir para as aulas porque os pais não deixam, dizendo que isso é ‘macumba’, que não é ‘coisa de Deus’, mas eu sempre tento conscientizá-los que religião é diferente de cultura. Eu mesma também sou evangélica e não vejo nada demais na dança. É uma forma de afirmarmos a nossa identidade. [...]Nós queremos mostrar que a cultura e a dança estavam mortas, esquecidas, porque os nossos antepassados dançava, mas isso deixou de ser feito por um tempo. Mas agora, estamos voltando a viver. PORTAL DIÁRIO DO NORDESTE, 2013).

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Além do grupo de dança do Mekulelê e do grupo de capoeira, a

comunidade também passou a contar com um grupo de percussão denominado

“Afro-Alegre”.

Figura 8 – Grupo de percussão Afro Alegre

Fonte: LABCEUS (2016)

Outra estratégia de “resgate cultural” adotada pela associação, a partir

de 2015, foi a criação do “Chá de Memórias do Quilombo” com as mulheres da

comunidade.

Figura 9 – Mulheres reunidas no Chá de Memórias do Quilombo

LABCEUFonte: LACBEUS, 2016

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Analisando os valores simbólicos dos rituais festivos na afirmação da

identidade étnica dos quilombos contemporâneos Moura (1996) afirma que a festa

“permite entrever as múltiplas relações que têm lugar numa micro sociedade e os

valores que assim ela explicita” e destaca algumas dessas relações, que vão “do

parentesco ao meio ambiente, do calendário agrícola ao respeito aos mais velhos,

da produção artesanal à história dos ancestrais, da liderança feminina ao

conhecimento das plantas.” (MOURA, 1996, p.14)

Nas festas dos quilombos contemporâneos, segundo ela, “pode-se

verificar uma série de atitudes rituais que valorizam as tradições da comunidade com

o sentido de perpetuá-las.”. Assim, por meio de seus “ritos e símbolos”, estas festas

revelam “os costumes, os comportamentos, os gestos herdados e aponta ao mesmo

tempo para as negociações simbólicas entre essas comunidades negras e os grupos

com os quais interagem.” (idem, ibidem).

4.1.2 Outras ações: AQUILARGO e ARQNA

Embora não tenha contado com o mesmo interesse de sua prefeitura

no reconhecimento de sua comunidade como “remanescente de quilombo”, Lagoa

do Ramo e Goiabeira passou um por processo semelhante ao de Alto Alegre.

Outra associação quilombola, a Associação dos Quilombolas de Lagoa do

Ramo e Goiabeira (AQUILARGO) foifundada no dia 24 de setembro de 2005,

durante uma reunião realizada na Escola Municipal José Raimundo da Costa. “A

mesma contou com a participação de 76 moradoras, que aprovaram o estatuto da

entidade; elegeram sua diretoria executiva; e o conselho fiscal da mesma”

(FONTELES, 2008, p. 35).

Dentre as principais ações desenvolvidas pela AQUILARGO, após sua

fundação, Lidianny destaca: 1) a “valorização” de datas emblemáticas para o

movimento negro, como o dia 20 de novembro; 2) a realização da “I Festa da

Consciência Negra”; e 3) o “Concurso da Beleza Negra” (idem, p. 51). A associação

também desenvolveu um projeto de capoeira para as crianças da comunidade. A

AQUILARGO proporcionou não apenas a formação de lideranças locais, mas

também a autoidentificação e o reconhecimento da comunidade como

“remanescente” quilombola (idem, p. 97). Alguns meses depois de Alto Alegre, a

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comunidade de Lagoa do Ramo e Goiabeira se tornaria a quarta comunidade a ser

reconhecida FCP como “remanescente de quilombo”, e teria sua certificação

publicada no dia 06/12/2005.

Leilane Chaves (2013)58, por sua vez, registra que após a criação da

Associação dos Remanescentes de Quilombo de Nazaré (ARQNA), em 2007, a

comunidade começou a participar de oficinas, palestras e reuniões com professores

universitários no intuito de 1) debater as questões sobre identidade negra e

quilombola; 2) valorizar os “traços fenótipos, principalmente o cabelo” dos moradores

(idem, p. 137); e 3) “resgatar” as “manifestações culturais” por meio dos “ritmos,

instrumentos e danças africanas” (idem, p. 134 e 138).

4.2 AS POLÍTICAS PÚBLICAS E AS AÇÕES DA CEQUIRCE

A Comissão Estadual das Comunidades Quilombolas Rurais do Ceará

(CEQUIRCE) protagonizou algumas ações que imprimiriam um novo ritmo à

implementação da política fundiária para os quilombolas no Ceará.

Embora tenha sido fundada59em 2005, a CEQUIRCE só iniciaria suas

atividades a partir de março de 2006, após o II Encontro Estadual dos Quilombolas

Rurais do Ceará60, realizado na comunidade de Encantados do Bom Jardim61,

quando foram escolhidos todos os membros que comporiam a mesma e seu atual

coordenador, o Sr. Renato Ferreira dos Santos – também conhecido como Renato

Baiano (MARQUES, 2009).

Após a efetivação da CEQUIRCE novos “Encontros Estaduais” foram

organizados com o intuito de “mobilizar as comunidades quilombolas do Estado do

Ceará” para “buscar o fortalecimento da comunidade sobre sua identidade.”

58Dissertação de Mestrado do Programa Regional de Pós-graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente (PRODEMA) da Universidade Federal do Ceará (UFC), intitulada “Terra Quilombola de Nazaré: organização social e espacial, município de Itapipoca, Ceará” e apresentada em 2013. 59A CEQUIRC foi fundada por Antônio José da Costa – também conhecido como Antonio Quilombola – na comunidade Lagoa do Ramo e Goiabeira, em Aquiraz, e inicialmente contou com a participação de apenas sete comunidades, conforme relata Moura Júnior (2006). 60O primeiro encontro foi realizado alguns meses antes na comunidade de Alto Alegre, em Horizonte, também em 2006. 61A comunidade de Encantados do Bom Jardim foi reconhecida como “remanescente de quilombo” pela FCP no dia 13/12/2006, quando da publicação de sua certificação no DOU. Diferente dos casos descritos anteriormente, a Associação Quilombola só foi fundada em 2009, após a realização de uma assembleia geral na antiga associação de moradores que resolveu mudar o estatuto e o nome da mesma que, deste então, passou a se chamar Associação dos Remanescentes de Quilombolas de Encantados do Bom Jardim. (MARQUES, 2009, p. 50)

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(CEQUIRCE, 2011). De acordo com a mesma, os dois primeiros encontros,

realizados em 2006, tiveram por objetivo discutir a “estruturação da CEQUIRCE” e

debater sobre a “Identidade negra”.

Em 2007, foram realizados 3 encontros, nas comunidades de Base62, em

Pacajus; Torres63, em Tamboril, e Lagoa de Ramos e Goiabeira, em Aquiraz. Em

2008 a CEQUIRCE realizou mais 3 encontros nas comunidades de Brutos e Lagoa

das Pedras, ambas situadas no município de Tamboril; e outro, novamente, em Alto

Alegre, em Horizonte e em 2009 seria realizado um único encontro na comunidade

de Sítio Veiga, em Quixadá.

Em pouco tempo a CEQUIRCE passou a ser o principal represente dos

quilombolas no Ceará na mediação e na interlocução com os órgãos estatais,

sobretudo, no que diz respeito à implementação de políticas públicas para as suas

comunidades, como no caso da política fundiária; de desenvolvimento agrário; e de

educação.

4.2.1 Articulação com o INCRA-CE

No ano de 2010 a CEQUIRCE realizaria o I Seminário Estadual de

Regularização Fundiária dos Territórios Quilombolas do Ceará e, no ano seguinte,

por meio de uma articulação entre a CEQUIRCE, a Coordenadoria Especial de

Políticas para Promoção da Igualdade Racial (CEPPIR) e o INCRA-CE, seria criado

o Grupo de Trabalho Interinstitucional (GTI) Pró-Quilombos. Objetivo deste grupo

criado em 2011 era “contribuir com a reflexão sobre os encaminhamentos político-

administrativos dos processos de regularização fundiária dos territórios quilombolas

no Ceará, visando destravar e agilizar esses processos, em benefício das

comunidades quilombolas.” (INCRA, 2011).

O GTI pró-quilombo realizou reuniões mensais, que ocorriam na primeira

segunda-feira de cada mês, entre os anos de 2011 e 2013. O mesmo possibilitou o

encontro das lideranças quilombolas com diversas instituições estatais e não

governamentais. As atividades do GTI foram encerradas ainda em 2013 devido à

62A comunidade de Base, em Pacajus, foi reconhecida e certificada pela FCP como “remanescente de quilombo” no dia 07/06/2005, e também possui uma Associação Quilombola (a Associação dos Remanescentes do Quilombo da Base – ARQUIBA). 63A comunidade de Torres, em Tamboril, teve seu reconhecimento atestado pela FCP no dia 16/05/2007, quando da publicação de sua certificação no DOU,

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criação da “mesa quilombola” (por iniciativa da sede do INCRA, em Brasília). A

“mesa” passou a atuar em todas as superintendências regionais do INCRAmantendo

praticamente a mesma pauta de debate do GTI.

4.2.2 A Articulação com a SDA

Em 2009, a Secretaria de Desenvolvimento Agrário do Ceará

(SDA)iniciara a implementação da primeira política pública estadual desenvolvida

exclusiva e especificamente para os quilombolas no Ceará: o projeto “Protagonismo

das Comunidades Quilombola do Estado do Ceará”. Anteriormente, a SDA já havia

desenvolvido algumas ações juntos às comunidades quilombolascomo o Projeto São

José 364, em 2012; o Projeto Quintais Produtivos65, em 2010; e o Programa

Cisternas de Placas66, em 2009.

Este projeto “protagonismo quilombola”, por sua vez, tinha o objetivo de

fortalecer o “protagonismo” de algumas comunidades quilombolas situadas na

Região Nordeste do Brasil, especificamente, nos estados do Maranhão, Bahia e

Pernambuco. Todavia, devido a uma pendência de ordem financeira o benefício

destinado ao Estado do Maranhão foi transferido para o Estado do Ceará, que

recebeu uma doação do governo Japonês no valor equivalente a US$ 375,589.00.

O Governo do Estado do Ceará já havia iniciado algumas ações

direcionadas às comunidades quilombolas deste o lançamento do Plano Plurianual

de 2008-2011. Ao tratar das ações destinadas ao “Desenvolvimento Agrário,

64Segundo site da SDA, o Projeto São José atuou em 177 municípios priorizando os grupos sociais mais carentes, dentre eles algumas comunidades quilombolas, visando fortalecer a infraestrutura básica e da organização da agricultura familiar com implantação de sistema de abastecimento de água, melhorias sanitárias e mecanização agrícola das comunidades rurais, focando no desenvolvimento sustentável. O projeto foi financiado pelo Governo do Estado (90%, sendo 15% do Tesouro do Estado e 75% de empréstimos contratados junto ao Banco Mundial e os outros 10¨% ficaram a cargo das comunidade participantes). 65 Em 2010, foi firmado o Convênio 09/2010 entre o Governo do Estado do Ceará e o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à fome (MDS), visando a implantação de 1.500 (mil e quinhentos) Quintais Produtivos mantidos por cisternas de enxurradas. Este projeto visava beneficiar agricultores familiares enquadrados nos critérios do Programa Bolsa Família, que não dispunham de água para produção. As prioridades eram as comunidades indígenas, os assentamentos de reforma agrária estadual e as comunidades quilombolas. 66 Em 2009 foi firmado o Convênio n° 239/2009 entre o Governo do Estado do Ceará e MDS, visando a construção de 49.000 (Quarenta e nove mil) cisternas de Placas. O Programa buscava beneficiar famílias de baixa renda com dificuldade de acesso à água, através da construção de cisternas de placas e de 28 cisternas escolares em escolas públicas e contemplava famílias enquadradas nos critérios do Programa Bolsa Família, tendo como prioridade as comunidades atendidas por Carros Pipa, comunidades indígenas, assentamentos de reforma agrária estadual e comunidades quilombolas.

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Agricultura e Pecuária”, que seriam coordenadas pela Secretaria de

Desenvolvimento Agrário (SDA), o documento inclui os “quilombolas”, juntamente

com “indígenas” e “comunidades tradicionais”, no projeto de “universalização” da

política de regularização fundiária:

No que se refere ao Desenvolvimento Territorial Rural, o macro-objetivo é assentar e reassentar famílias atingidas pelas obras de implantação de grandes empreendimentos no Estado, bem como universalizar a Regularização Fundiária, que determina a posse e o domínio da terra, permitindo ao produtor o acesso ao crédito e a outras políticas públicas, e o reordenamento e redistribuição de agricultores(as) familiares, comunidades tradicionais, indígenas equilombolas. (idem, p. 204, grifo meu)

Segundo Arruti (2009), esse tipo de iniciativa era uma das “medidas

estratégicas” do Governo Federal usada para atingir as metas propostas no

Programa Brasil Quilombola (PBQ)67 e que, geralmente, eram definidas em termos

de:

[...] “apoio” ao trabalho do INCRA para regularização das terras quilombolas, na formação de gestores públicos das áreas pertinentes à temática, na ampliação e consolidação dos canais de interlocução com as representações quilombolas, na produção de mais informações qualificadas sobre tais comunidades e, finalmente, em “direcionar as políticas universais para todas as comunidades quilombolas do país”. (ARRUTI, 2009, p. 82-83)

Desta feita, o projeto “Protagonismo Quilombola” surge, inusitadamente,

como a primeira “política diferenciada” implementada de forma exclusiva para os

quilombolas no Ceará pelo Governo Estadual.

A CEQUIRCE, por sua vez, participou da implementação deste projeto

indicando as comunidades que iriam ser beneficiadas com mesmo. De acordo com a

SDA:

No Ceará, o universo do Projeto foram às comunidades constantes no mapa das Comunidades Quilombolas Rurais do Ceará concluído no IX Encontro da Comissão Estadual das Comunidades Quilombolas Rurais do Ceará, realizado em março de 2009. Este mapa identificou 60 comunidades Quilombolas Rurais, das quais 40 fazem parte do universo deste Perfil. [...] Especificamente, o Projeto se propõe a apoiar atividades de realização de diagnósticos; estruturação e consolidação das associações remanescentes de Quilombolas; capacitação em planejamento participativo; elaboração e aprovação de projetos de infraestrutura e produtivos; realização de oficinas de monitoramento participativo; visitas de

67O Programa Brasil Quilombola foi lançado em 2004, e coordenou ações de vários setores do Governo em quatro eixos distintos: 1) Acesso a Terra, 2) Infraestrutura e Qualidade de Vida, 3) Inclusão Produtiva e Desenvolvimento Local e 4) Direitos e Cidadania. No site da SEPPIR há uma página de monitoramento com mapas, gráficos e estatísticas das ações dos quatro eixos desenvolvidos pelo Programa.

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campo; realização de intercâmbios; realização de estudos de impactos e elaboração de relatórios periódicos e de sistematização de experiências. Como metas físicas incluem-se a implantação de Centros Multiuso Culturais e de Centros Territoriais de Inclusão Digital – selecionados e solicitados pela Comissão Estadual de Quilombolas Rurais do Ceará (CEQUIRCE), através de suas organizações. (CEARÁ, 2013, p.11) (grifo meu)

No relatório final do “Estudo de Avaliação de Impacto do Projeto

Protagonismo das Comunidades Quilombolas do Estado do Ceará”, o documento

afirma que “o fortalecimento das associações quilombolas foi um denominador

comum em todas as comunidades contempladas pelo Projeto Protagonismo

Quilombola” (LEONEL, 2014, p. 78). Nos anexos F e G (SDA – Mapas) estão

mapeadas as comunidades e as ações desenvolvidas pelo projeto.

A segunda política pública desenvolvida do pelo Governo do Ceará,

especificamente, para os quilombolas foi o “Projeto Zumbi”. Lançado após o término

do projeto Protagonismo Quilombola, em 2012, o projeto contou com um orçamento

de R$ 200 mil, oriundo do Fundo Estadual de Combate à Pobreza (FECOP).

Segundo a SDA, o mesmo visava beneficiar 202 famílias por meio de projetos

produtivos na área de artesanato, confecção de roupas íntimas e produção de

alimentos.

A CEQUIRCE acompanhou a implementação do projeto assinando os

convênios com a SDA e indicando as comunidades que seriam beneficiadas com o

mesmo. Durante o XII Encontro Estadual das Comunidades Quilombolas Rurais no

Estado do Ceará, realizado em na comunidade quilombola de Águas Pretas, no

município de Tururu, a SDA repassou parte do orçamento do projeto – no valor de

R$138.662 – para representantes de três comunidades (de Tamboril, Caucaia e

Quixadá) no intuito de incentivar a produção de artesanato. Ainda neste ano outras

duas comunidades dos municípios Croatá e Itapipoca foram contempladas,

totalizando um investimento de R$ 200 mil e beneficiando 202 famílias. Em 2013, o

projeto atendeu a outras dez comunidades e beneficiou outras 598 famílias.

(CEARÁ, 2013).

4.2.3 Articulação com a SEDUC

Outra ação significativa da CEQUIRCE em articulação com a SEDUC diz

respeito à implementação da política de Educação Escolar Quilombola no Ceará.

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Todavia, antes mesmo do Governo do Estado atribuir esta tarefa à secretaria de

educação do Ceará já registrava a presença de “escolas quilombolas”.

Em 2004 o INEP começou a reconhecer as “escolas quilombolas

acrescentando dois novos itens ao Censo Escolar, que é realizado anualmente em

todas as escolas estaduais e municipais” (ARRUTI, 2009, p. 95).

Figura 10 – Itens do Censo Escolar que identificam as escolas como “escolas

quilombolas”

Fonte: INEP

A partir de então, o Estado passou a identificar e mapear as “escolas

localizadas em áreas de remanescentes de quilombos” (idem, ibidem). Todavia, o

autor adverte que:

O principal critério de identificação destas escolas, por exemplo, é o formulário preenchido pelo administrador do estabelecimento, o que nos coloca problemas variados, desde o conhecimento da questão por parte deste administrador, até as eventuais resistências que estes podem impor ao reconhecimento do grupo. Por outro lado, há o fato destas escolas serem apenas aquelas localizadas em áreas de remanescentes de quilombos, o que deixa de fora um grande número de comunidades e estudantes que são obrigados a frequentar escolas em povoados, cidades ou municípios vizinhos. Tais números, portanto, estão longe de serem precisos, mas, de qualquer forma, é significativo que, no decorrer dos três censos a que já é possível ter acesso, de 2004 a 2006, o número de escolas tenha começado em aproximadamente 630, para duplicar a cada ano. (idem, p.96)

Segundo dados do INEP, em 2007 o Estado já contava com 11 “escolas

quilombolas”, situadas em seis municípios, com 2.724 alunos matriculados e 58

docentes cadastrados (INEP, 2007). Com exceção de uma escola localizada no

Crato, todas as demais estavam localizadas nos mesmos municípios das

comunidades que possuíam a certificação da FCP nesta época: Lagoa do Ramo e

Goiabeiras, em Aquiraz; Alto Alegre, em Hozionte; Base, em Pacajus; Souza, em

Porteiras; e Queimadas, em Crateús.

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Figura 11– Escolas Quilombolas Cadastradas no EducaSenso de 2007

Crede Município Localização Escola Matrícula de escolas em Área

Remanescente de Quilombos

Total Educação

Infantil Fundamental EJA

Ceará Total 2724 317 2034 373

1 Aquiraz Rural Goiabeiras creche da 39 16 23 0

1 Aquiraz Rural José Raimundo da Costa EEMEF 90 0 90 0

9 Pacajus Rural Raimundo Augustinho EEF 108 30 78 0

9 Horizonte Rural Olimpio Nogueira Lopes EMEF 633 0 559 74

9 Horizonte Rural CEI Maria José Alves da Silva 105 105 0 0

9 Horizonte Rural Fernando Augusto Nogueira EMEF 416 33 383 0

9 Horizonte Rural Maria Teodora Evangelista

Costa EMEF 209 64 145 0

13 Crateus Rural Expedito Leitão Veras Esc de

Cidadania 255 44 211 0

18 Crato Urbana Escola SESI Hermenegildo de

Brito Firmeza- Educação Básica 733 0 457 276

20 Porteiras Rural EEF Anta Tavares Pinheiro 67 20 24 23

20 Porteiras Rural EEF Maria Pinheiro Cardoso 69 5 64

Fonte: SEDUC/Coave/Ceged/Educacenso 2007. Como se pode observar, todas as escolas classificadas como

“quilombolas” no Educacenso de 2007, com exceção da escola situada em área

urbana no Crato – caso bastante curioso, cuja adequada investigação e analise não

foi possível ser realizada no âmbito deste trabalho –, estavam localizadas nos

mesmo municípios onde a política fundiária havia sido iniciada. Em 2015 o Estado já

contabilizava 36 escolas. A grande novidade desta nova relação, todavia, diz

respeito à inclusão da Escola Quilombola Luzia Maria da Conceição, a primeira

escola projetada para ser “diferenciada” (Anexo I).

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Figura 12 – Relação das “Escolas Quilombolas” cearenses

Fonte: SEDUC,2014

Para Arruti (2011), tal classificação, de “Escola Quilombola”, é altamente

problemática, tendo em vista que estas escolas:

[...] são “quilombolas” apenas na medida em que estão sobre terras identificadas(na maioria das vezes muito tempo depois de a escola ter sido criada) como de comunidades remanescentes de quilombos, sem que isso implique a existência de qualquer diferenciação na sua forma física, nos métodos pedagógicos, na sua gestão, na composição e formação dos seus professores ou nos materiais didáticos utilizados.Por fim, tal classificação é atribuída no momento do preenchimento de formulário pelo diretor/a da escola, o que nos coloca o problema desta classificação não se dar nem por auto-atribuição da comunidade, nem pelo reconhecimento prévio e oficial desta comunidade e seu território pelo Estado brasileiro, mas pelo conhecimento, avaliação, reconhecimento, ou mesmo pela adesão ou oposição deste/a gestor/a em relação a classificação étnica, cultural e política da comunidade em que atua, o que implica, sempre, uma tomada de posição política. (ARRUTI, 2011, p.169)

Em 2011, a comunidade do Sítio Três Irmãos solicitou a construção de

algumas salas de aula para atender uma demanda de alunos de ensino médio, na

modalidade EJA (Educação de Jovens e Adultos). Até então a SEDUC ainda não

havia estabelecido “um diálogo mais sistemático com essas lideranças e

comunidades”, porém reconhecia a “necessidade de iniciar esse atendimento e

articular com outros órgãos o aparato legal para viabilizá-lo” (SEDUC, 2014).

No intuito de atender à solicitação feita pela comunidade do Sítio Três

Irmãos, a SEDUC construiu duas salas de aula, dois banheiros e uma cantina, que,

inicialmente, funcionariam como um anexo da escola de Ensino Médio Flávio

Rodrigues. No entanto, a nova escola foi inaugurada não apenas como mero anexo,

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mas com identidade própria de “Escola Quilombola”, com o objetivo inicial de

atender a duas turmas. Uma turma era de ensino médio (EJA), com 18 alunos – dos

quais oito eram quilombolas da comunidade local; a outra turma era de educação

infantil, mantida e organizada pela rede municipal de Croatá, com 10 alunos – todos

quilombolas. A “1ª Escola Quilombola da rede estadual cearense” foi, então,

inaugurada em setembro de 2013, sob no nome de Escola Quilombola Luzia Maria

da Conceição.

Figura 13 – Escola Quilombola Luiza Maria da Conceição

Fonte: Blog da escola Flavio Rodrigues 22

Vale observar que entre a data de solicitação da escola feita pela

comunidade, em 2011, e a inauguração da mesma, em 2013, houve a publicação

das “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola”, em

junho de 2012. Antes das Diretrizes não havia a possibilidade de transformar o

projeto inicial de “Anexo Escolar” para “Escola Quilombola”.

Com o advento do PPA de 2008-2011, a SEDUC ficou encarregada de

desenvolver ações voltadas para a “Educação Escolar Quilombola”. No trecho que

trata da “Educação Básica”, por exemplo, o texto afirma que:

A atuação da SEDUC abrange ainda outras modalidades de ensino, prestando suporte também ao desenvolvimento da educação de jovens e adultos, educação especial e educação indígena, no sentido de dar continuidade a ações em decurso de implementação, buscando também

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responder a outras demandas voltadas para a educação do campo, quilombola e educação ambiental. (SEPLAG-CE, 2011, p. 96, grifo meu)

Todavia, ainda não havia uma equipe técnica destinada a planejar e

executar estas ações. Até este ano, dentro “Estrutura Organizacional” da SEDUC, só

existia uma única coordenação – a Coordenadoria de Desenvolvimento da Escola

(CDESC) – responsável, nesta época, pela implementação de ações afirmativas e,

dentro desta, havia uma célula que desenvolvia ações relacionadas à Política de

Promoção da Igualdade Racial: a Célula de Diversidade e Inclusão Educacional.

Em março de 2013, a Coordenadoria de Desenvolvimento da Escola e da

Aprendizagem (CODEA)68 realizou uma seleção interna na (por meio de entrevistas)

para formar uma equipe especializada a fim de atender as demandas de três áreas

específicas, a Célula de Educação do Campo, Indígena e Quilombola

(CECIQ).Criada em 2013, a CECIQ, foi fruto de um processo de reestruturação

interna, ocorrida dentro da SEDUC, conforme relato feito pela atual vice

governadora, Maria Izolda Cela de Arruda Coelho – que, na época, ocupava o cargo

de secretária de educação, na gestão do governo de Cid Ferreira Gomes (2007-

2014). Em um dos trechos de sua fala, durante um evento promovido pela CODEA –

sobre Educação do Campo, Indígena e Quilombola –, a ex-secretária de educação

relatou como ocorreu o início deste processo:

[...] Na segunda gestão do governador Cid (2011-2014), quando nós pensamos a reestruturação da Secretaria de Educação, um dos movimentos importantes naquele momento foi procurar dar mais condição àquela área que, nos primeiros anos, cuidava do desenvolvimento da escola como um todo. E vimos que ficava... apesar do esforço das equipes, da coordenação... mas, tinham coisas, assim, muito importantes e desafios muito grandes, de diversidades, e nós vimos a necessidade de transformar aquilo que era uma coordenação só num colegiado de coordenadorias, para de forma mais, vamos dizer assim, com condições, com mais estrutura, dar conta dessa coordenação, com áreas muito importantes, dentre elas, eu destaco, essa questão relacionada as chamadas “Diversidades”. E nós convidamos, naquele momento, a professora Noemi (Ibanez) para assumir essa missão, e essa tarefa [...] (IZOLDA, 2014, informação verbal)

68 O setor onde se encontra a CODEA – no segundo andar do amplo prédio da SEDUC – é divido internamente entre quatro coordenadorias, a saber: Coordenadoria de Gestão Escolar; Coordenadoria do Protagonismo Estudantil; Coordenadoria de Aperfeiçoamento Pedagógico – que atualmente desenvolve um trabalho de formação de professores na lei 10.639, em parceria com a CODEA/Diversidade (nome mais utilizado pelos funcionários que trabalham na CODEA) –; e a Coordenadoria da Diversidade e Inclusão Educacional – local onde funciona a CECIQ e mais outras duas células: a Célula de Educação Continuada, Inclusão e Acessibilidade (CECIA) e Célula da Promoção da Formação e do Atendimento em Educação Especial (CEFAE).

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As primeiras ações para atender as demandas da Educação Escolar

Quilombola no Ceará começaram com o mapeamento das comunidades

quilombolas do estado, bem como as escolas que atendiam às mesmas. Pouco

tempo depois, surgiu a oportunidade de trabalhar em parceria com a SDA, sob a

gestão do, então, secretário Castro Júnior – no projeto “Casas Digitais” – salas de

aula informatizadas, construídas em escolas, associações ou em outros prédios

públicos na comunidade – coordenado por Sandra Bandeira, técnica, na época, da

Coordenadoria de Desenvolvimento Agrário (CODEA/SDA).

Este projeto de inclusão digital estava vinculado ao Programa Brasil

Alfabetizado (PBA) e era destinado à algumas comunidades rurais do interior do

Ceará, e incluía algumas comunidades quilombolas. O papel da SEDUC era levar

para as Casas Digitais uma metodologia virtual de alfabetização por meio do

software; Luz do Saber; (um programa computacional de alfabetização). A

implementação deste programa passou a ser, desde então, a principal ação da

CECIQ no atendimento às comunidades Quilombolas, durante o ano de 2014 (a

comunidade Quilombola de Capuan, em Caucaia, é a comunidade mais próxima de

Fortaleza, que possui o benefício.).

Outra ação promovida pela SEDUC, para implementar a política de

educação escolar quilombola no Estado, foi a realização de “reuniões técnicas” –

das quais tive a oportunidade de participar das duas primeiras –, envolvendo tanto

os agentes “técnicos” do estado (gestores, professores e funcionários da SEDUC)

quanto lideranças quilombolas e pesquisadores envolvidos com a temática.

A “I Reunião Técnica sobre Educação Escolar Quilombola” ocorreu nos

dias 02 e 03 de julho de 2015, em Aquiraz, no Jangadeiro Praia Hotel e contou com

a participação de lideranças do Movimento Quilombola, representantes da

SEDUC/CREDE, técnicos de SME, representantes do INCRA, da CEPPIR e de

pesquisadores das instituições de Ensino Superior (UFC e UECE), perfazendo um

total de 46 participantes.

A reunião tinha como objetivos 1) aprofundar a legislação vigente e

apresentar dados iniciais sobre a Educação Escolar Quilombola; 2) identificar ações

desenvolvidas pelos municípios participantes nessa modalidade de ensino; 3)

apresentar o Curso de Formação em Ensino de História e Cultura Afro-indígena

Cearense nas Escolas Estaduais para validar sua implementação junto ao

Movimento; 4) orientar cadastro no Censo Escolar, no intuito maior de “alinhar os

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fundamentos teóricos da Educação Escolar Quilombola e conhecer os marcos

regulatórios dessa modalidade de ensino, fortalecendo o diálogo com o Movimento

Quilombola e entidades atuantes nessa área”.

A “II Reunião Técnica sobre Educação Escolar Quilombola”, por sua vez,

ocorreu na comunidade quilombola de Encantados do Bom Jardim, no município de

Tururu, em 2016.

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5 CONCLUSÃO

A partir do que foi exposto no presente trabalho, é possível fazer algumas

ponderações e assertivas a respeito do processo de territorialização e da

mobilização quilombola no Ceará.

Primeiramente, o reconhecimento de Conceição dos Caetanos como

“remanescente de quilombo”, no final da década de 1990, não teria sido possível as

articulações e mediações feitas ao longo de sua trajetória dentro de um contexto de

intensa mobilização envolvendo tanto lideranças quilombolas como militantes negros

e intelectuais que atuaram tanto no cenário local, no Ceará, como também no

cenário nacional. Isto possibilitou a produção de estudos sobre a comunidade, que,

posteriormente, foram utilizados pela Fundação Cultural Palmares como “laudo de

reconhecimento étnico-territorial”, atestando, assim, seu reconhecimento. (ARRUTI,

2006, p. 33).

Também se faz notório o total descaso do Estado para com a população

quilombola durante todo século XX, visto que nenhuma política pública foi

direcionada para a mesma e nem sequer houve qualquer menção sobre os

quilombolas em algum documento oficial do estado durante todo esse período.

O processo de reconhecimento dos quilombolas no Ceará foi marcado,

no início, pelo protagonismo de lideranças e militantes do movimento negro que

mantiveram estreita relação como as “comunidades negras rurais” e promoveram as

primeiras mobilizações, mapeamentos e relatórios técnicos que culminaram no

reconhecimento das mesmas como “remanescentes de quilombo” a partir de 1998.

Todavia, a partir de 2003, com as mudanças instituídas no processo de

territorialização pelo Decreto 4.887 (que estabeleceu a autoidentificação como novo

critério de reconhecimento dos “remanescentes de quilombo” no Brasil) o cenário

das comunidades quilombolas no Ceará começou a sofrer transformações

significativas e as lideranças quilombolas passam a assumir o protagonismo deste

processo.Em segundo lugar, os efeitos do processo de territorialização sobre a

população quilombola no Ceará passaram a ser mais claramente percebidos após a

implementação da política de regularização fundiária.

O pioneirismo do INCRA-CE no atendimento à população quilombola

produziu pelo menos dos grandes efeitos incontestáveis que, por sua vez, foram

fundamentais para a implementação de outras políticas públicas, a saber:

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visibilização dos territórios quilombolas espalhadas em todas as regiões do estado,

através do processo de demarcação das terras quilombolas e a organização das

lideranças quilombolas em torno de suas associações, que passaram a protagonizar

a mobilização quilombola no Ceará, promovendo ações para afirmar sua identidade

e buscando garantir seus direitos.

O estabelecimento de novas fronteiras (ainda que provisórias) e o

desenvolvimento de novas ações por parte das lideranças quilombolas – tanto por

meio das associações como da CEQUIRCE – promoveram o acesso a novas

políticas públicas, bem como produziram o surgimento e/ou acirramento de conflitos

entre quilombolas e posseiros e/ou proprietários das terras pleiteadas pelas

comunidades. As ações da CEQUIRCE, por sua vez, levaram o Governo do Estado

a reconhecer e a desenvolver novas ações voltadas para a população quilombola no

Ceará.

Por fim, enquanto Arruti (2009) observava certa “tendência” de pensar e

planejar ações e políticas públicas direcionadas à população quilombola de duas

formas distintas “de um lado, pela política fundiária, como coletividades

diferenciadas e territorializadas” e, de outro, as “demais políticas”, como “agregados

de indivíduos mais desfavorecidos no acesso a recursos, entre eles as políticas

públicas gerais” (idem, p.84) o que se pode ver no caso do Ceará, pelo contrário, é a

implementação novas políticas diferencias, elaboradas especificamente para atender

à população quilombola do Estado, como no caso do Projeto Protagonismo das

Comunidades Quilombolas no Ceará e do Projeto Zumbi, desenvolvidos pela SDA,

bem como do surgimento das primeiras “escolas quilombolas”.

No caso da educação, as primeiras ações realizadas pela SEDUC para

implementar a política de educação escolar quilombola no Ceará, demonstram que

ainda há muito a ser feito para que o Estado possa de fato efetivar os objetivos

propostos pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar

Quilombola na Educação Básica, sobretudo no que diz respeito a promoção de uma

educação diferenciada, com Currículo, Calendário Escolar e Projeto Político

Pedagógico próprios, voltados para atender as demandas específicas das

comunidades quilombolas cearenses.

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História Social, Fortaleza, 2006. SOUZA, Bárbara Oliveira. Movimento Quilombola: Reflexões sobre seus aspectos político-organizativos e identitários. In: REUNIÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA, 26.,2008, Porto Seguro. Anais... Bahia, 2008. Disponível em:<http://www.abant.org.br/conteudo/ANAIS/CD_Virtual_26_RBA/grupos_de_trabalho/trabalhos/GT%2002/barbara%20oliveira%20souza.pdf>. Acesso em: 05.06.2016 SOUZA LIMA, A. C.; MACEDO E CASTRO, J. P.. Política(s) pública(s). In:PINHO, Osmundo; SANSONE, Livio. Raça: novas perspectivas antropológicas. 2.ed. Salvador: UFBA, 2008. p. 350-392 VELHO, Gilberto. Observando o Familar. In: NUNES, Edison de Oliveira. A aventura sociológica, Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

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ANEXOS

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ANEXO A - Legislação básica utilizada pelo INCRA para implementar à política

pública fundiária para os quilombolas

Ministério do Desenvolvimento Agrário

INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA

LEGISLAÇÃO REFERENTE À POLÍTICA PÚBLICA

DE REGULARIZAÇÃO DE TERRITÓRIOS

QUILOMBOLAS

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL

1988

TÍTULO X

ATO DAS DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS TRANSITÓRIAS

Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando

suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os

títulos respectivos.

TÍTULO VIII

Da Ordem Social

CAPÍTULO III

Da Educação, da Cultura e do Desporto

SEÇÃO II

Da Cultura

Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso

às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das

manifestações culturais.

§ 1º - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e

afrobrasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório

nacional.

§ 2º - A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para

os diferentes segmentos étnicos nacionais.

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§ 3º A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando

ao desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do poder público que

conduzem à: (Incluído pela Emenda Constitucional nº 48, de 2005)

I defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro; (Incluído pela Emenda

Constitucional nº 48, de 2005)

II produção, promoção e difusão de bens culturais; (Incluído pela Emenda

Constitucional nº 48, de 2005)

III formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas

dimensões; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 48, de 2005)

IV democratização do acesso aos bens de cultura; (Incluído pela Emenda

Constitucional nº 48, de 2005)

V valorização da diversidade étnica e regional. (Incluído pela Emenda Constitucional

nº 48, de 2005)

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e

imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à

identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade

brasileira, nos quais se incluem:

I - as formas de expressão;

II - os modos de criar, fazer e viver;

III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;

IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às

manifestações artístico-culturais;

V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,

arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

§ 1º - O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o

patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância,

tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.

§ 2º - Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação

governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela

necessitem.

§ 3º - A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e

valores culturais.

§ 4º - Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei.

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§ 5º - Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de

reminiscências históricas dos antigos quilombos.

§ 6 º É facultado aos Estados e ao Distrito Federal vincular a fundo estadual de

fomento à cultura até cinco décimos por cento de sua receita tributária líquida, para

o financiamento de programas e projetos culturais, vedada a aplicação desses

recursos no pagamento de: (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de

19.12.2003)

I - despesas com pessoal e encargos sociais; (Incluído pela Emenda Constitucional

nº 42, de 19.12.2003)

II - serviço da dívida; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)

III - qualquer outra despesa corrente não vinculada diretamente aos investimentos

ou ações apoiados. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003).

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ANEXO B – Decreto que regula procedimentos para terras ocupadas por

remanescentes das comunidades dos quilombos

PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA

DECRETO N° 4887, DE 20 DE NOVEMBRO DE 2003

Regulamenta o procedimento para identificação,

reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das

terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos

quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições

Constitucionais Transitórias.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art.

84, incisos IV e VI, alínea "a", da Constituição e de acordo com o disposto no art. 68

do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias,

DECRETA:

Art. 1º Os procedimentos administrativos para a identificação, o

reconhecimento, a delimitação, a demarcação e a titulação da propriedade definitiva

das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos, de que

trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, serão procedidos

de acordo com o estabelecido neste Decreto.

Art. 2º Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para

os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição,

com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com

presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão

histórica sofrida.

§ 1º Para os fins deste Decreto, a caracterização dos remanescentes das

comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição da própria

comunidade.

§ 2º São terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos

quilombos as utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica

e cultural.

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§ 3º Para a medição e demarcação das terras, serão levados em

consideração critérios de territorialidade indicados pelos remanescentes das

comunidades dos quilombos, sendo facultado à comunidade interessada apresentar

as peças técnicas para a instrução procedimental.

Art. 3º Compete ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, por meio do

Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA, a identificação,

reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos

remanescentes das comunidades dos quilombos, sem prejuízo da competência

concorrente dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

§ 1º O INCRA deverá regulamentar os procedimentos administrativos para

identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras

ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, dentro de

sessenta dias da publicação deste Decreto.

§ 2º Para os fins deste Decreto, o INCRA poderá estabelecer convênios,

contratos, acordos e instrumentos similares com órgãos da administração pública

federal, estadual, municipal, do Distrito Federal, organizações não-governamentais e

entidades privadas, observada a legislação pertinente.

§ 3º O procedimento administrativo será iniciado de ofício pelo INCRA ou por

requerimento de qualquer interessado.

§ 4º A autodefinição de que trata o § 1º do art. 2º deste Decreto será inscrita

no Cadastro Geral junto à Fundação Cultural Palmares, que expedirá certidão

respectiva na forma do regulamento.

Art. 4º Compete à Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade

Racial, da Presidência da República, assistir e acompanhar o Ministério do

Desenvolvimento Agrário e o INCRA nas ações de regularização fundiária, para

garantir os direitos étnicos e territoriais dos remanescentes das comunidades dos

quilombos, nos termos de sua competência legalmente fixada.

Art. 5º Compete ao Ministério da Cultura, por meio da Fundação Cultural

Palmares, assistir e acompanhar o Ministério do Desenvolvimento Agrário e o INCRA

nas ações de regularização fundiária, para garantir a preservação da identidade

cultural dos remanescentes das comunidades dos quilombos, bem como para

subsidiar os trabalhos técnicos quando houver contestação ao procedimento de

identificação e reconhecimento previsto neste Decreto.

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Art. 6º Fica assegurada aos remanescentes das comunidades dos quilombos

a participação em todas as fases do procedimento administrativo, diretamente ou por

meio de representantes por eles indicados.

Art. 7º O INCRA, após concluir os trabalhos de campo de identificação,

delimitação e levantamento ocupacional e cartorial, publicará edital por duas vezes

consecutivas no Diário Oficial da União e no Diário Oficial da unidade federada onde

se localiza a área sob estudo, contendo as seguintes informações:

I - denominação do imóvel ocupado pelos remanescentes das comunidades

dos quilombos;

II - circunscrição judiciária ou administrativa em que está situado o imóvel;

III - limites, confrontações e dimensão constantes do memorial descritivo das

terras a serem tituladas; e

IV - títulos, registros e matrículas eventualmente incidentes sobre as terras

consideradas suscetíveis de reconhecimento e demarcação.

§ 1º A publicação do edital será afixada na sede da prefeitura municipal onde

está situado o imóvel.

§ 2º O INCRA notificará os ocupantes e os confinantes da área delimitada.

Art. 8º Após os trabalhos de identificação e delimitação, o INCRA remeterá o

relatório técnico aos órgãos e entidades abaixo relacionados, para, no prazo comum

de trinta dias, opinar sobre as matérias de suas respectivas competências:

I - Instituto do Patrimônio Histórico e Nacional - IPHAN;

II - Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis-

IBAMA;

III - Secretaria do Patrimônio da União, do Ministério do Planejamento,

Orçamento e Gestão;

IV - Fundação Nacional do Índio - FUNAI;

V - Secretaria Executiva do Conselho de Defesa Nacional;

VI - Fundação Cultural Palmares.

Parágrafo único. Expirado o prazo e não havendo manifestação dos órgãos e

entidades, dar-se-á como tácita a concordância com o conteúdo do relatório técnico.

Art. 9º Todos os interessados terão o prazo de noventa dias, após a

publicação e notificações a que se refere o art. 7º, para oferecer contestações ao

relatório, juntando as provas pertinentes.

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Parágrafo único. Não havendo impugnações ou sendo elas rejeitadas, o

INCRA concluirá o trabalho de titulação da terra ocupada pelos remanescentes das

comunidades dos quilombos.

Art. 10. Quando as terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos

quilombos incidirem em terrenos de marinha, marginais de rios, ilhas e lagos, o

INCRA e a Secretaria do Patrimônio da União tomarão as medidas cabíveis para a

expedição do título.

Art. 11. Quando as terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos

quilombos estiverem sobrepostas às unidades de conservação constituídas, às

áreas de segurança nacional, à faixa de fronteira e às terras indígenas, o INCRA, o

IBAMA, a Secretaria-Executiva do Conselho de Defesa Nacional, a FUNAI e a

Fundação Cultural Palmares tomarão as medidas cabíveis visando garantir a

sustentabilidade destas comunidades, conciliando o interesse do Estado.

Art. 12. Em sendo constatado que as terras ocupadas por remanescentes das

comunidades dos quilombos incidem sobre terras de propriedade dos Estados, do

Distrito Federal ou dos Municípios, o INCRA encaminhará os autos para os entes

responsáveis pela titulação.

Art. 13. Incidindo nos territórios ocupados por remanescentes das

comunidades dos quilombos título de domínio particular não invalidado por nulidade,

prescrição ou comisso, e nem tornado ineficaz por outros fundamentos, será

realizada vistoria e avaliação do imóvel, objetivando a adoção dos atos necessários

à sua desapropriação, quando couber.

§ 1º Para os fins deste Decreto, o INCRA estará autorizado a ingressar no

imóvel de propriedade particular, operando as publicações editalícias do art. 7º

efeitos de comunicação prévia.

§ 2º O INCRA regulamentará as hipóteses suscetíveis de desapropriação,

com obrigatória disposição de prévio estudo sobre a autenticidade e legitimidade do

título de propriedade, mediante levantamento da cadeia dominial do imóvel até a sua

origem.

Art. 14. Verificada a presença de ocupantes nas terras dos remanescentes

das comunidades dos quilombos, o INCRA acionará os dispositivos administrativos e

legais para o reassentamento das famílias de agricultores pertencentes à clientela

da reforma agrária ou a indenização das benfeitorias de boa-fé, quando couber.

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Art. 15. Durante o processo de titulação, o INCRA garantirá a defesa dos

interesses dos remanescentes das comunidades dos quilombos nas questões

surgidas em decorrência da titulação das suas terras.

Art. 16. Após a expedição do título de reconhecimento de domínio, a

Fundação Cultural Palmares garantirá assistência jurídica, em todos os graus, aos

remanescentes das comunidades dos quilombos para defesa da posse contra

esbulhos e turbações, para a proteção da integridade territorial da área delimitada e

sua utilização por terceiros, podendo firmar convênios com outras entidades ou

órgãos que prestem esta assistência.

Parágrafo único. A Fundação Cultural Palmares prestará assessoramento aos

órgãos da Defensoria Pública quando estes órgãos representarem em juízo os

interesses dos remanescentes das comunidades dos quilombos, nos termos do art.

134 da Constituição.

Art. 17. A titulação prevista neste Decreto será reconhecida e registrada

mediante outorga de título coletivo e pró-indiviso às comunidades a que se refere o

art. 2º, caput, com obrigatória inserção de cláusula de inalienabilidade,

imprescritibilidade e de impenhorabilidade.

Parágrafo único. As comunidades serão representadas por suas associações

legalmente constituídas.

A.rt. 18. Os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas

dos antigos quilombos, encontrados por ocasião do procedimento de identificação,

devem ser comunicados ao IPHAN.

Parágrafo único. A Fundação Cultural Palmares deverá instruir o processo

para fins de registro ou tombamento e zelar pelo acautelamento e preservação do

patrimônio cultural brasileiro.

Art. 19. Fica instituído o Comitê Gestor para elaborar, no prazo de noventa

dias, plano de etnodesenvolvimento, destinado aos remanescentes das

comunidades dos quilombos, integrado por um representante de cada órgão a seguir

indicado:

I - Casa Civil da Presidência da República;

II - Ministérios:

a) da Justiça;

b) da Educação;

c) do Trabalho e Emprego;

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d) da Saúde;

e) do Planejamento, Orçamento e Gestão;

f) das Comunicações;

g) da Defesa;

h) da Integração Nacional;

i) da Cultura;

j) do Meio Ambiente;

k) do Desenvolvimento Agrário;

l) da Assistência Social;

m) do Esporte;

n) da Previdência Social;

o) do Turismo;

p) das Cidades;

III - do Gabinete do Ministro de Estado Extraordinário de Segurança Alimentar

e Combate à Fome;

IV - Secretarias Especiais da Presidência da República:

a) de Políticas de Promoção da Igualdade Racial;

b) de Aqüicultura e Pesca; e

c) dos Direitos Humanos.

§ 1º O Comitê Gestor será coordenado pelo representante da Secretaria

Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial.

§ 2º Os representantes do Comitê Gestor serão indicados pelos titulares dos

órgãos referidos nos incisos I a IV e designados pelo Secretário Especial de

Políticas de Promoção da Igualdade Racial.

§ 3º A participação no Comitê Gestor será considerada prestação de serviço

público relevante, não remunerada.

Art. 20. Para os fins de política agrícola e agrária, os remanescentes das

comunidades dos quilombos receberão dos órgãos competentes tratamento

preferencial, assistência técnica e linhas especiais de financiamento, destinados à

realização de suas atividades produtivas e de infra-estrutura.

Art. 21. As disposições contidas neste Decreto incidem sobre os

procedimentos administrativos de reconhecimento em andamento, em qualquer fase

em que se encontrem.

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Parágrafo único. A Fundação Cultural Palmares e o INCRA estabelecerão

regras de transição para a transferência dos processos administrativos e judiciais

anteriores à publicação deste Decreto.

Art. 22. A expedição do título e o registro cadastral a ser procedido pelo

INCRA farse-ão sem ônus de qualquer espécie, independentemente do tamanho da

área.

Parágrafo único. O INCRA realizará o registro cadastral dos imóveis titulados

em favor dos remanescentes das comunidades dos quilombos em formulários

específicos que respeitem suas características econômicas e culturais.

Art. 23. As despesas decorrentes da aplicação das disposições contidas neste

Decreto correrão à conta das dotações orçamentárias consignadas na lei

orçamentária anual para tal finalidade, observados os limites de movimentação e

empenho e de pagamento.

Art. 24. Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.

Art. 25. Revoga-se o Decreto no 3.912, de 10 de setembro de 2001.

Brasília, 20 de novembro de 2003; 182o da Independência e 115o da República.

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA

Gilberto Gil

Miguel Soldatelli Rossetto

José Dirceu de Oliveira e Silva

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ANEXO C – Instrução normativa que Regulamenta procedimentos para terras

ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos

MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO

INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA

<!I1413057-0>

INSTRUÇÃO NORMATIVA Nº 57, DE 20 DE OUTUBRO DE 2009

Regulamenta o procedimento para identificação,

reconhecimento, delimitação, demarcação, desintrusão,

titulação e registro das terras ocupadas por remanescentes das

comunidades dos quilombos de que tratam o Art. 68 do Ato das

Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição

Federal de 1988 e o Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de

2003.

O PRESIDENTE DO INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA

AGRÁRIA, no uso das atribuições que lhe conferem o art. 20, inciso VII, do Anexo I,

do Decreto nº 5.735, de 27 de março de 2006, e art. 110, inciso IX, do Regimento

Interno da Autarquia, aprovado pela Portaria nº 69, de 19 de outubro de 2006, do

Ministro de Estado do Desenvolvimento Agrário, e tendo em vista o disposto no art.

68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e no Decreto nº 4.887, de 20

de novembro de 2003, resolve:

OBJETIVO

Art. 1º. Estabelecer procedimentos do processo administrativo para identificação,

reconhecimento, delimitação, demarcação, desintrusão, titulação e registro das

terras ocupadas pelos remanescentes de comunidades dos quilombos.

FUNDAMENTAÇÃO LEGAL

Art. 2º. As ações objeto da presente Instrução Normativa têm como fundamento

legal:

I - art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição

Federal;

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II - arts. 215 e 216 da Constituição Federal;

III - Lei nº 4.132, de 10 de setembro de 1962;

IV - Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999;

V - Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964;

VI - Decreto nº 59.428, de 27 de outubro de 1966;

VII - Decreto nº 433, de 24 de janeiro de 1992;

VIII- Lei nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993;

IX - Medida Provisória nº 2.183-56, de 24 de agosto de 2001;

X - Lei nº 10.267, de 28 de agosto de 2001;

XI - Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003;

XII - Convenção Internacional nº 169, da Organização Internacional do Trabalho

sobre povos indígenas e tribais, promulgada pelo Decreto nº 5.051, de 19 de abril de

2004;

XIII - Lei nº 10.678, de 23 de maio de 2003;

XIV - Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007;

XV- Convenção sobre Biodiversidade Biológica, promulgada pelo Decreto nº 2.519,

de 16 de março de 1998.

CONCEITUAÇÕES

Art. 3º. Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos os grupos

étnicoraciais, segundo critérios de auto-definição, com trajetória histórica própria,

dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra

relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.

Art. 4º. Consideram-se terras ocupadas por remanescentes das comunidades de

quilombos toda a terra utilizada para a garantia de sua reprodução física, social,

econômica e cultural.

COMPETÊNCIA

Art. 5º. Compete ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA a

identificação, o reconhecimento, a delimitação, a demarcação, a desintrusão, a

titulação e o registro imobiliário das terras ocupadas pelos remanescentes das

comunidades dos quilombos, sem prejuízo da competência comum e concorrente

dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

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101

CERTIFICAÇÃO

Art. 6º. A caracterização dos remanescentes das comunidades de quilombos será

atestada mediante auto-definição da comunidade.

Parágrafo único. A auto-definição da comunidade será certificada pela Fundação

Cultural Palmares, mediante Certidão de Registro no Cadastro Geral de

Remanescentes de Comunidades de Quilombos do referido órgão, nos termos do §

4º, do art. 3º, do Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003.

PROCEDIMENTOS ADMINISTRATIVOS PARA ABERTURA DO PROCESSO

Art. 7º. O processo administrativo terá inicio por requerimento de qualquer

interessado, das entidades ou associações representativas de quilombolas ou de

ofício pelo INCRA, sendo entendido como simples manifestação da vontade da

parte, apresentada por escrito ou reduzida a termo por representante do INCRA,

quando o pedido for verbal.

§ 1º. A comunidade ou interessado deverá apresentar informações sobre a

localização da área objeto de identificação.

§ 2º. Compete às Superintendências Regionais manter atualizadas as informações

concernentes aos pedidos de regularização das áreas remanescentes das

comunidades de quilombos e dos processos em curso nos Sistemas do INCRA.

§ 3º. Os procedimentos de que tratam os arts. 8º e seguintes somente terão início

após a apresentação da certidão prevista no parágrafo único do art. 6º.

§ 4º. Os órgãos e as entidades de que trata o art. 12 serão notificados pelo

Superintendente Regional do INCRA, imediatamente após a instauração do

procedimento administrativo de que trata o caput, com o objetivo de apresentarem,

se assim entenderem necessário, informações que possam contribuir com os

estudos previstos nos arts. 8º e seguintes.

IDENTIFICAÇÃO E DELIMITAÇÃO

Art. 8º. O estudo e a definição da terra reivindicada serão precedidos de reuniões

com a comunidade e Grupo Técnico interdisciplinar, nomeado pela Superintendência

Regional do INCRA, para apresentação dos procedimentos que serão adotados.

Art. 9º. A identificação dos limites das terras das comunidades remanescentes de

quilombos a que se refere o art. 4º, a ser feita a partir de indicações da própria

comunidade, bem como a partir de estudos técnicos e científicos, inclusive relatórios

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antropológicos, consistirá na caracterização espacial, econômica, ambiental e

sociocultural da terra ocupada pela comunidade, mediante Relatório Técnico de

Identificação e Delimitação - RTID, com elaboração a cargo da Superintendência

Regional do INCRA, que o remeterá, após concluído, ao Comitê de Decisão

Regional, para decisão e encaminhamentos subseqüentes.

Art. 10. O RTID, devidamente fundamentado em elementos objetivos, abordando

informações cartográficas, fundiárias, agronômicas, ecológicas, geográficas,

sócioeconômicas, históricas, etnográficas e antropológicas, obtidas em campo e

junto a instituições públicas e privadas, abrangerá, necessariamente, além de outras

informações consideradas relevantes pelo Grupo Técnico, dados gerais e

específicos organizados da seguinte forma:

I - Relatório antropológico de caracterização histórica, econômica, ambiental e

sociocultural da área quilombola identificada, devendo conter as seguintes

descrições e informações:

a) introdução, abordando os seguintes elementos:

1. apresentação dos conceitos e concepções empregados no Relatório (referencial

teórico), que observem os critérios de autoatribuição, que permita caracterizar a

trajetória histórica própria, as relações territoriais específicas, com presunção de

ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida;

2. apresentação da metodologia e dos condicionantes dos trabalhos, contendo,

dentre outras informações, as relativas à organização e caracterização da equipe

técnica envolvida, ao cronograma de trabalho, ao processo de levantamento de

dados qualitativos utilizados e ao contexto das condições de trabalho de campo e

elaboração do relatório;

b) dados gerais, contendo:

1. informações gerais sobre o grupo auto-atribuído como remanescente das

comunidades dos quilombos, tais como, denominação, localização e formas de

acesso, disposição espacial, aspectos demográficos, sociais e de infra-estrutura;

2. a caracterização do(s) município(s) e região com sua denominação, localização e

informações censitárias com dados demográficos, sócio-econômicos e fundiários,

entre outros;

3. dados, quando disponíveis, sobre as taxas de natalidade e mortalidade da

comunidade nos últimos anos, com indicação das causas, na hipótese de

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103

identificação de fatores de desequilíbrio de tais taxas, e projeção relativa ao

crescimento populacional do grupo;

c) histórico da ocupação, contendo:

1. descrição do histórico da ocupação da área com base na memória do grupo

envolvido e depoimentos de eventuais atores externos identificados;

2. levantamento e análise das fontes documentais e bibliográficas existentes sobre a

história do grupo e da sua terra;

3. contextualização do histórico regional e sua relação com a história da

comunidade;

4. indicação, caso haja, dos sítios que contenham reminiscências históricas dos

antigos quilombos, assim como de outros sítios considerados relevantes pelo grupo;

5. levantamento do patrimônio cultural da comunidade a partir do percurso histórico

vivido pelas gerações anteriores, constituído de seus bens materiais e imateriais,

com relevância na construção de suas identidade e memória e na sua reprodução

física, social e cultural.

6. levantamento e análise dos processos de expropriação, bem como de

comunidade;

7. caracterização da ocupação atual indicando as terras utilizadas para moradia,

atividade econômica, caminhos e percursos, uso dos recursos naturais, realização

dos cultos religiosos e festividades, entre outras manifestações culturais;

8. análise da atual situação de ocupação territorial do grupo, tendo em vista os

impactos sofridos pela comunidade e as transformações ocorridas ao longo de sua

história.

d) organização social, contendo:

1. identificação e caracterização dos sinais diacríticos da identidade étnica do grupo;

2. identificação e análise das formas de construção e critérios do pertencimento e

fronteiras sociais do grupo;

3. identificação das circunstâncias que levaram a eventual secessão ou

reagrupamento do Grupo;

4. descrição da representação genealógica do grupo;

5. mapeamento e análise das redes de reciprocidade intra e extra-territoriais e

societários dos membros do grupo em questão;

6. levantamento, a partir do percurso histórico vivido pelas gerações anteriores, das

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104

manifestações de caráter cosmológico, religioso e festivo, atividades lúdico-

recreativas em sua relação com a terra utilizada, os recursos naturais, as atividades

produtivas e o seu calendário;

7. levantamento das práticas tradicionais de caráter coletivo e sua relação com a

ocupação atual da área identificando terras destinadas à moradia, espaços de

sociabilidade destinados às manifestações culturais, atividades de caráter social,

político e econômico, demonstrando as razões pelas quais são importantes para a

manutenção da memória e identidade do grupo e de outros aspectos coletivos

próprios da comunidade;

8. descrição das formas de representação política do grupo;

e) ambiente e produção, contendo:

1. levantamento e análise das categorias êmicas relacionadas às terras e ao

ambiente onde vivem as comunidades e sua lógica de apropriação dessas áreas e

configuração de seus limites;

2. análise da lógica de apropriação das áreas nas quais vive o grupo, considerando

asinformações agronômicas e ecológicas da área reivindicada pelas comunidades

remanescentes de quilombo;

3. identificação e explicitação da forma de ocupação quanto ao seu caráter

tradicional, evidenciando as unidades de paisagem disponíveis no presente e no

plano da memória do grupo, bem como seus usos, necessários à reprodução física,

social, econômica e cultural;

4. descrição das práticas produtivas, considerando as dimensões cosmológicas, de

sociabilidade, reciprocidade e divisão social do trabalho;

5. descrição das atividades produtivas desenvolvidas pela comunidade com a

identificação, localização e dimensão das áreas e edificações utilizadas para este

fim;

6. identificação e descrição das áreas imprescindíveis à preservação dos recursos

necessários ao bem estar econômico e cultural da comunidade e explicitação de

suas razões;

7. avaliação das dimensões da sustentabilidade referentes a ações e projetos e seus

possíveis impactos junto ao grupo em questão;

8. indicação de obras e empreendimentos existentes ou apontados como

planejados, com influência na área proposta;

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105

9. descrição das relações sócio-econômico-culturais com outras comunidades e com

a sociedade envolvente e descrição das alterações eventualmente ocorridas na

economia tradicional a partir do contato com a sociedade envolvente e do modo

como se processam tais alterações;

10. identificação e descrição das áreas imprescindíveis à proteção dos recursos

naturais, tais como áreas de preservação permanente, reserva legal e zonas de

amortecimento das unidades de conservação.

f) conclusão, contendo:

1. proposta de delimitação da terra, tendo como base os estudos previstos neste

inciso I;

2. planta da área proposta, que inclua informações e indicação cartográfica de

localização dos elementos anteriormente referidos;

3. descrição sintética da área identificada, relacionando seus diferentes marcos

identitários, espaços e paisagens, usos, percursos, caminhos e recursos naturais

existentes, tendo em vista a reprodução física, social e cultural do grupo, segundo

seus usos, costumes e tradições;

4. indicação, com base nos estudos realizados, de potencialidades da comunidade e

da área, que possam ser, oportunamente, aproveitadas;

II - levantamento fundiário, devendo conter a seguinte descrição e informações:

a) identificação e censo de eventuais ocupantes não-quilombolas, com descrição

das áreas por eles ocupadas, com a respectiva extensão, as datas dessas

ocupações e a descrição das benfeitorias existentes;

b) descrição das áreas pertencentes a quilombolas, que têm título de propriedade;

c) informações sobre a natureza das ocupações não-quilombolas, com a

identificação dos títulos de posse ou domínio eventualmente existentes;

d) informações, na hipótese de algum ocupante dispor de documento oriundo de

órgão público, sobre a forma e fundamentos relativos à expedição do documento

que deverão ser obtidas junto ao órgão expedidor;

III - planta e memorial descritivo do perímetro da área reivindicada pelas

comunidades remanescentes de quilombo, bem como mapeamento e indicação dos

imóveis e ocupações lindeiros de todo o seu entorno e, se possível, a indicação da

área ser averbada como reserva legal, no momento da titulação;

IV - cadastramento das famílias remanescentes de comunidades de quilombos,

utilizandose formulários específicos do INCRA;

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V - levantamento e especificação detalhada de situações em que as áreas

pleiteadas estejam sobrepostas a unidades de conservação constituídas, a áreas de

segurança nacional, a áreas de faixa de fronteira, terras indígenas ou situadas em

terrenos de marinha, em outras terras públicas arrecadadas pelo INCRA ou

Secretaria do Patrimônio da União e em terras dos estados e municípios; e

VI - parecer conclusivo da área técnica e jurídica sobre a proposta de área,

considerando os estudos e documentos apresentados.

§ 1º O início dos trabalhos de campo deverá ser precedido de comunicação prévia a

eventuais proprietários ou ocupantes de terras localizadas na área pleiteada, com

antecedência mínima de 3 (três) dias úteis.

§ 2º. O Relatório de que trata o inciso I deste artigo será elaborado por especialista

que mantenha vínculo funcional com o INCRA, salvo em hipótese devidamente

reconhecida de impossibilidade material, quando poderá haver contratação,

obedecida a legislação pertinente.

§ 3º. A contratação permitida no parágrafo anterior não poderá ser firmada com

especialista que, no interesse de qualquer legitimado no processo, mantenha ou

tenha mantido vínculo jurídico relacionado ao objeto do inciso I.

§ 4º. Verificada, durante os trabalhos para a elaboração do Relatório de que trata o

caput, qualquer questão de competência dos órgãos e entidades enumerados no art.

12, o Superintendente Regional do INCRA deverá comunicá-los, para

acompanhamento, sem prejuízo de prosseguimento dos trabalhos.

§ 5º. Fica facultado à comunidade interessada apresentar peças técnicas

necessárias à instrução do RTID, as quais poderão ser valoradas e utilizadas pelo

INCRA.

§ 6º. Fica assegurada à comunidade interessada a participação em todas as fases

do procedimento administrativo de elaboração do RTID, diretamente ou por meio de

representantes por ela indicados.

§ 7º. No processo de elaboração do RTID deverão ser respeitados os direitos da

comunidade de:

I - ser informada sobre a natureza do trabalho;

II - preservação de sua intimidade, de acordo com seus padrões culturais;

III - autorizar que as informações obtidas no âmbito do RTID sejam utilizadas para

outros fins; e

IV - acesso aos resultados do levantamento realizado.

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107

PUBLICIDADE

Art. 11. Estando em termos, o RTID será submetido à análise preliminar do Comitê

de Decisão Regional do INCRA que, verificando o atendimento dos critérios

estabelecidos para sua elaboração, o remeterá ao Superintendente Regional, para

elaboração e publicação do edital, por duas vezes consecutivas, no Diário Oficial da

União e no Diário Oficial da unidade federativa onde se localiza a área sob estudo,

contendo as seguintes informações:

I - denominação do imóvel ocupado pelos remanescentes das comunidades dos

quilombos;

II - circunscrição judiciária ou administrativa em que está situado o imóvel;

III - limites, confrontações e dimensão constantes do memorial descritivo das terras a

serem tituladas; e

IV - títulos, registros e matrículas eventualmente incidentes sobre as terras

consideradas suscetíveis de reconhecimento e demarcação.

§ 1º A publicação será afixada na sede da Prefeitura Municipal onde está situado o

imóvel, acompanhada de memorial descritivo e mapa da área estudada.

§ 2º A Superintendência Regional do INCRA notificará os ocupantes e confinantes,

detentores de domínio ou não, identificados na terra pleiteada, informando-os do

prazo para apresentação de contestações.

§ 3º. Não sendo verificado o atendimento dos critérios estabelecidos para a

elaboração do RTID, o Comitê de Decisão Regional do INCRA o devolverá ao

Coordenador do Grupo Técnico Interdisciplinar para sua revisão ou

complementação, que, uma vez efetivada, obedecerá ao rito estabelecido neste

artigo.

§ 4º. Na hipótese de o RTID concluir pela impossibilidade do reconhecimento da

área estudada como terra ocupada por remanescente de comunidade de quilombo,

o Comitê de Decisão Regional do INCRA, após ouvidos os setores técnicos e a

Procuradoria Regional, poderá determinar diligências complementares ou, anuindo

com a conclusão do Relatório, determinar o arquivamento do processo

administrativo.

§ 5º. A comunidade interessada e a Fundação Cultural Palmares serão notificadas

da decisão pelo arquivamento do processo administrativo e esta será publicada, no

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Diário Oficial da União e da unidade federativa onde se localiza a área estudada,

com o extrato do Relatório, que contenha os seus fundamentos.

§ 6º. Da decisão de arquivamento do processo administrativo, de que trata o § 4º,

caberá pedido de desarquivamento, desde que justificado.

§ 7º. A Superintendência Regional do INCRA encaminhará cópia do edital para os

remanescentes das comunidades dos quilombos.

CONSULTA A ÓRGÃOS E ENTIDADES

Art. 12. Concomitantemente a sua publicação, o RTID será remetido aos órgãos e

entidades abaixo relacionados, para, no prazo comum de 30 (trinta) dias,

apresentarem manifestação sobre as matérias de suas respectivas competências:

I - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN;

II - Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis -

IBAMA, e seu correspondente na Administração Estadual;

III - Secretaria do Patrimônio da União - SPU, do Ministério do Planejamento,

Orçamento e Gestão;

IV - Fundação Nacional do Índio - FUNAI;

V - Secretaria Executiva do Conselho de Defesa Nacional - CDN;

VI - Fundação Cultural Palmares;

VII - Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade - ICMBio, e seu

correspondente na Administração Estadual; e

VIII - Serviço Florestal Brasileiro - SFB.

§ 1º. O Presidente do INCRA encaminhará o RTID a outros órgãos e entidades da

Administração Pública Federal, quando verifique repercussão em suas áreas de

interesse, observado o procedimento previsto neste artigo.

§ 2º. O INCRA remeterá o arquivo digital do memorial descritivo (shape file) à

Secretaria Executiva do Conselho de Defesa Nacional, para inclusão em sistema

georreferenciado, de amplo acesso a todos os órgãos e entidades.

§ 3º. Expirado o prazo de 30 (trinta) dias consecutivos, contados do recebimento da

cópia do RTID, e não havendo manifestação dos órgãos e entidades, dar-se-á como

tácita a concordância com o seu conteúdo.

§ 4º. O INCRA terá um prazo de 30 (trinta) dias para adotar as medidas cabíveis

diante de eventuais manifestações dos órgãos e entidades.

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§ 5º. Fica assegurado à comunidade interessada o acesso imediato à cópia das

manifestações dos órgãos e entidades referidos neste artigo, bem como o

acompanhamento das medidas decorrentes das respectivas manifestações.

CONTESTAÇÕES

Art. 13. Os interessados terão o prazo de noventa dias, após a publicação e as

notificações, para contestarem o RTID junto à Superintendência Regional do INCRA,

juntando as provas pertinentes.

Parágrafo único. As contestações oferecidas pelos interessados serão recebidas nos

efeitos devolutivo e suspensivo.

Art. 14. As contestações dos interessados indicados no art. 12 serão analisadas e

julgadas pelo Comitê de Decisão Regional do INCRA, após ouvidos os setores

técnicos e a Procuradoria Regional em prazo comum de até 180 (cento e oitenta)

dias, a contar do protocolo da contestação.

§ 1º. Se o julgamento das contestações implicar a alteração das informações

contidas no edital de que trata o art. 11, será realizada nova publicação e a

notificação dos interessados.

§ 2º. Se o julgamento das contestações não implicar a alteração das informações

contidas no edital de que trata o art. 11, serão notificados os interessados que as

ofereceram.

Art. 15. Do julgamento das contestações caberá recurso único, com efeito apenas

devolutivo, ao Conselho Diretor do INCRA, no prazo de 30 (trinta) dias, a contar da

notificação.

§ 1º. Sendo provido o recurso, o Presidente do INCRA publicará, no Diário Oficial da

União e da unidade federativa onde se localiza a área, as eventuais alterações das

informações contidas no edital de que trata o art. 11 e notificará o recorrente.

§ 2º. Não sendo provido o recurso, o Presidente do INCRA notificará da decisão o

recorrente.

ANÁLISE DA SITUAÇÃO FUNDIÁRIA DAS ÁREAS PLEITEADAS

Art. 16. Incidindo as terras identificadas e delimitadas pelo RTID sobre unidades de

conservação constituídas, áreas de segurança nacional, áreas de faixa de fronteira e

terras indígenas, a Superintendência Regional do INCRA deverá, em conjunto,

respectivamente, com o Instituto Chico Mendes, a Secretaria Executiva do Conselho

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110

de Defesa Nacional ou a FUNAI, adotar as medidas cabíveis, visando a garantir a

sustentabilidade dessas comunidades, conciliando os interesses do Estado.

§ 1º. A Secretaria do Patrimônio da União e a Fundação Cultural Palmares serão

ouvidas, em todos os casos.

§ 2º. As manifestações quanto às medidas cabíveis, referidas no caput, ficarão

restritas ao âmbito de cada competência institucional.

§ 3º. Verificada controvérsia quanto às medidas cabíveis, de que trata o caput, o

processo administrativo será encaminhado:

I - em se tratando do mérito, à Casa Civil da Presidência da República, para o

exercício de sua competência de coordenação e integração das ações do Governo,

prevista no art. 2º da Lei nº 10.683, de 28 de maio de 2003;

II - sobre questão jurídica, ao Advogado-Geral da União, para o exercício de sua

competência, prevista no art. 4º, inciso XI, da Lei Complementar nº 73, de 10 de

fevereiro de 1993 e o art. 8ºC, da Lei nº 9.028, de 12 de abril de 1995.

§ 4º. Aplica-se, no que couber, aos órgãos e entidades citados no caput e no § 1º do

art. 12 o disposto neste artigo.

§ 5º. Os Órgãos e as Entidades de que trata este artigo definirão o instrumento

jurídico apropriado a garantir a permanência e os usos conferidos à terra pela

comunidade quilombola enquanto persistir a sobreposição de interesses.

Art. 17. Concluídas as fases a que se referem os arts. 14, 15 e 16, o Presidente do

INCRA publicará, no Diário Oficial da União e da unidade federativa onde se localiza

a área, portaria reconhecendo e declarando os limites da terra quilombola, no prazo

de 30 (trinta) dias.

Art. 18. Se as terras reconhecidas e declaradas incidirem sobre terrenos de marinha,

marginais de rios, ilhas e lagos, a Superintendência

Regional do INCRA encaminhará o processo a SPU, para a emissão de título em

benefício das comunidades quilombolas.

Art. 19. Constatada a incidência nas terras reconhecidas e declaradas de posse

particular sobre áreas de domínio da União, a Superintendência Regional deverá

adotar as medidas cabíveis visando à retomada da área.

Art. 20. Incidindo as terras reconhecidas e declaradas sobre áreas de propriedade

dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios, a Superintendência Regional do

INCRA encaminhará os autos para os órgãos responsáveis pela titulação no âmbito

de tais entes federados.

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Parágrafo único. A Superintendência Regional do INCRA poderá propor a celebração

de convênio com aquelas unidades da Federação, visando à execução dos

procedimentos de titulação nos termos do Decreto e desta Instrução.

Art. 21 Incidindo as terras reconhecidas e declaradas em imóvel com título de

domínio particular não invalidado por nulidade, prescrição ou comisso, e nem

tornado ineficaz por outros fundamentos, a Superintendência Regional do INCRA

adotará as medidas cabíveis visando à obtenção dos imóveis, mediante a

instauração do procedimento de desapropriação.

Art. 22. Verificada a presença de ocupantes não quilombolas nas terras dos

remanescentes das comunidades dos quilombos, a Superintendência Regional do

INCRA providenciará o reassentamento em outras áreas das famílias de agricultores

que preencherem os requisitos da legislação agrária.

DEMARCAÇÃO

Art. 23. A demarcação da terra reconhecida será realizada observando-se os

procedimentos contidos na Norma Técnica para Georreferenciamento de imóveis

rurais aprovada pela Portaria nº 1.101, de 19 de novembro de 2003, do Presidente

do INCRA e demais atos regulamentares expedidos pela Autarquia, em atendimento

à Lei nº 10.267, de 28 de agosto de 2001.

TITULAÇÃO

Art. 24. O Presidente do INCRA realizará a titulação mediante a outorga de título

coletivo e pró-indiviso à comunidade, em nome de sua associação legalmente

constituída, sem nenhum ônus financeiro, com obrigatória inserção de cláusula de

inalienabilidade, imprescritibilidade e de impenhorabilidade, devidamente registrada

no Serviço Registral da Comarca de localização das áreas.

§ 1º. Incidindo as terras reconhecidas e declaradas nas áreas previstas nos arts. 19

e 20, aos remanescentes de comunidades de quilombos fica facultada a solicitação

da emissão de Título de Concessão de Direito Real de Uso Coletivo, quando couber

e em caráter provisório, enquanto não se ultima a concessão do Título de

Reconhecimento de Domínio, para que possam exercer direitos reais sobre a terra

que ocupam.

§ 2º. A emissão do Título de Concessão de Direito Real de Uso não desobriga a

concessão do Título de Reconhecimento de Domínio.

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Art. 25. A expedição do título e o registro cadastral a serem procedidos pela

Superintendência Regional do INCRA far-se-ão sem ônus de nenhuma espécie aos

remanescentes das comunidades de quilombos, independentemente do tamanho da

área.

Art. 26. Esta Instrução Normativa aplica-se desde logo, sem prejuízo da validade das

fases iniciadas ou concluídas sob a vigência da Instrução Normativa anterior.

Parágrafo único. Em qualquer hipótese, contudo, pode ser aplicado o art. 16.

DISPOSIÇÕES GERAIS

Art. 27. A Superintendência Regional do INCRA promoverá, em formulários

específicos, o registro cadastral dos imóveis titulados em favor dos remanescentes

das comunidades dos quilombos.

Art. 28. Fica assegurada aos remanescentes das comunidades dos quilombos a

participação em todas as fases do procedimento administrativo, bem como o

acompanhamento dos processos de regularização em trâmite na Superintendência

Regional do INCRA, diretamente ou por meio de representantes por eles indicados.

Art. 29. As despesas decorrentes da aplicação das disposições contidas nesta

Instrução correrão à conta das dotações orçamentárias consignadas na lei

orçamentária anual para tal finalidade, observados os limites de movimentação,

empenho e pagamento.

Art. 30. A Superintendência Regional do INCRA encaminhará à Fundação Cultural

Palmares e ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional todas as

informações relativas ao patrimônio cultural, material e imaterial, contidos no RTID,

para as providências de destaque e tombamento.

Art. 31. O INCRA, através da Diretoria de Ordenamento da Estrutura Fundiária (DF)

e da Coordenação Geral de Regularização de Territórios Quilombolas (DFQ),

manterá o Ministério do Desenvolvimento Agrário - MDA, a Secretaria Especial de

Políticas de Promoção da Igualdade Racial - SEPPIR e a Fundação Cultural

Palmares informados do andamento dos processos de regularização das terras de

remanescentes de quilombos.

Art. 32. Revoga-se a Instrução Normativa nº 20, de 19 de setembro de 2005.

Art. 33. Esta Instrução Normativa entra em vigor na data de sua publicação.

ROLF HACKBART

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ANEXO D – Convenção nº 1 da OIT

A Conferência Geral da Organização Internacional do Trabalho, Convocada em

Genebra pelo Conselho Administrativo da Repartição Internacional do Trabalho e

tendo ali se reunido a 7 de junho de 1989, em sua septuagésima sexta sessão;

Observando as normas internacionais enunciadas na Convenção e na

Recomendação sobre populações indígenas e tribais, 1957;

Lembrando os termos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, do Pacto

Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, do Pacto Internacional

dos Direitos Civis e Políticos e dos numerosos instrumentos internacionais sobre a

prevenção da discriminação;

Considerando que a evolução do direito internacional desde 1957 e as mudanças

sobrevindas na situação dos povos indígenas e tribais em todas as regiões do

mundo fazem com que seja aconselhável adotar novas normas internacionais nesse

assunto, a fim de se eliminar a orientação para a assimilação das normas anteriores;

Reconhecendo as aspirações desses povos a assumir o controle de suas próprias

instituições e formas de vida e seu desenvolvimento econômico, e manter e

fortalecer suas identidades, línguas e religiões, dentro do âmbito dos Estados onde

moram;

Observando que em diversas partes do mundo esses povos não podem gozar dos

direitos humanos fundamentais no mesmo grau que o restante da população dos

Estados onde moram e que suas leis, valores, costumes e perspectivas têm sofrido

erosão freqüentemente;

Lembrando a particular contribuição dos povos indígenas e tribais à diversidade

cultural, à harmonia social e ecológica da humanidade e à cooperação e

compreensão internacionais;

Observando que as disposições a seguir foram estabelecidas com a colaboração

das Nações Unidas, da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a

Alimentação, da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a

Cultura e da Organização Mundial da Saúde, bem como do Instituto Indigenista

Interamericano, nos níveis apropriados e nas suas respectivas esferas, e que existe

o propósito de continuar essa colaboração a fim de promover e assegurar a

aplicação destas disposições;

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114

Após ter decidido adotar diversas propostas sobre a revisão parcial da Convenção

sobre populações Indígenas e Tribais, 1957 (n.o 107) , o assunto que constitui o

quarto item da agenda da sessão, e após ter decidido que essas propostas deveriam

tomar a forma de uma Convenção Internacional que revise a Convenção Sobre

Populações Indígenas e Tribais, 1957, adota, neste vigésimo sétimo dia de junho de

mil novecentos e oitenta e nove, a seguinte Convenção, que será denominada

Convenção Sobre os Povos Indígenas e Tribais, 1989:

PARTE 1 - POLÍTICA GERAL

Artigo 1°

1. A presente convenção aplica-se:

a) aos povos tribais em países independentes, cujas condições sociais, culturais e

econômicas os distingam de outros setores da coletividade nacional, e que estejam

regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições ou por

legislação especial;

b) aos povos em países independentes, considerados indígenas pelo fato de

descenderem de populações que habitavam o país ou uma região geográfica

pertencente ao país na época da conquista ou da colonização ou do

estabelecimento das atuais fronteiras estatais e que, seja qual for sua situação

jurídica, conservam todas as suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais

e políticas, ou parte delas.

2. A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como

critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições

da presente Convenção.

3. A utilização do termo "povos" na presente Convenção não deverá ser interpretada

no sentido de ter implicação alguma no que se refere aos direitos que possam ser

conferidos a esse termo no direito internacional.

Artigo 2°

1. Os governos deverão assumir a responsabilidade de desenvolver, com a

participação dos povos interessados, uma ação coordenada e sistemática com

vistas a proteger os direitos desses povos e a garantir o respeito pela sua

integridade.

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115

2. Essa ação deverá incluir medidas:

a) que assegurem aos membros desses povos o gozo, em condições de igualdade,

dos direitos e oportunidades que a legislação nacional outorga aos demais membros

da população;

b) que promovam a plena efetividade dos direitos sociais, econômicos e culturais

desses povos, respeitando a sua identidade social e cultural, os seus costumes e

tradições, e as suas instituições;

c) que ajudem os membros dos povos interessados a eliminar as diferenças sócio -

econômicas que possam existir entre os membros indígenas e os demais membros

da comunidade nacional, de maneira compatível com suas aspirações e formas de

vida.

Artigo 3°

1. Os povos indígenas e tribais deverão gozar plenamente dos direitos humanos e

liberdades fundamentais, sem obstáculos nem discriminação. As disposições desta

Convenção serão aplicadas sem discriminação aos homens e mulheres desses

povos.

2. Não deverá ser empregada nenhuma forma de força ou de coerção que viole os

direitos humanos e as liberdades fundamentais dos povos interessados, inclusive os

direitos contidos na presente Convenção.

Artigo 4°

1. Deverão ser adotadas as medidas especiais que sejam necessárias para

salvaguardar as pessoas, as instituições, os bens, as culturas e o meio ambiente

dos povos interessados.

2. Tais medidas especiais não deverão ser contrárias aos desejos expressos

livremente pelos povos interessados.

3. O gozo sem discriminação dos direitos gerais da cidadania não deverá sofrer

nenhuma deterioração como conseqüência dessas medidas especiais.

Artigo 5°

Ao se aplicar as disposições da presente Convenção:

a) deverão ser reconhecidos e protegidos os valores e práticas sociais, culturais

religiosos e espirituais próprios dos povos mencionados e dever-se-á levar na devida

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116

consideração a natureza dos problemas que lhes sejam apresentados, tanto coletiva

como individualmente;

b) deverá ser respeitada a integridade dos valores, práticas e instituições desses

povos;

c) deverão ser adotadas, com a participação e cooperação dos povos interessados,

medidas voltadas a aliviar as dificuldades que esses povos experimentam ao

enfrentarem novas condições de vida e de trabalho.

Artigo 6°

1. Ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão:

a) consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e,

particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam

previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los

diretamente;

b) estabelecer os meios através dos quais os povos interessados possam participar

livremente, pelo menos na mesma medida que outros setores da população e em

todos os níveis, na adoção de decisões em instituições efetivas ou organismos

administrativos e de outra natureza responsáveis pelas políticas e programas que

lhes sejam concernentes;

c) estabelecer os meios para o pleno desenvolvimento das instituições e iniciativas

dos povos e, nos casos apropriados, fornecer os recursos necessários para esse

fim.

2. As consultas realizadas na aplicação desta Convenção deverão ser efetuadas

com boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o objetivo de se chegar

a um acordo e conseguir o consentimento acerca das medidas propostas.

Artigo 7°

1. Os povos interessados deverão ter o direito de escolher suas, próprias prioridades

no que diz respeito ao processo de desenvolvimento, na medida em que ele afete as

suas vidas, crenças, instituições e bem-estar espiritual, bem como as terras que

ocupam ou utilizam de alguma forma, e de controlar, na medida do possível, o seu

próprio desenvolvimento econômico, social e cultural. Além disso, esses povos

deverão participar da formulação, aplicação e avaliação dos planos e programas de

desenvolvimento nacional e regional suscetíveis de afetá-los diretamente.

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117

2. A melhoria das condições de vida e de trabalho e do nível de saúde e educação

dos povos interessados, com a sua participação e cooperação, deverá ser prioritária

nos planos de desenvolvimento econômico global das regiões onde eles moram. Os

projetos especiais de desenvolvimento para essas regiões também deverão ser

elaborados de forma a promoverem essa melhoria.

3. Os governos deverão zelar para que, sempre que for possíve1, sejam efetuados

estudos junto aos povos interessados com o objetivo de se avaliar a incidência

social, espiritual e cultural e sobre o meio ambiente que as atividades de

desenvolvimento, previstas, possam ter sobre esses povos. Os resultados desses

estudos deverão ser considerados como critérios fundamentais para a execução das

atividades mencionadas.

4. Os governos deverão adotar medidas em cooperação com os povos interessados

para proteger e preservar o meio ambiente dos territórios que eles habitam.

Artigo 8°

1. Ao aplicar a legislação nacional aos povos interessados deverão ser levados na

devida consideração seus costumes ou seu direito consuetudinário.

2. Esses povos deverão ter o direito de conservar seus costumes e instituições

próprias, desde que eles não sejam incompatíveis com os direitos fundamentais

definidos pelo sistema jurídico nacional nem com os direitos humanos

internacionalmente reconhecidos. Sempre que for necessário, deverão ser

estabelecidos procedimentos para se solucionar os conflitos que possam surgir na

aplicação deste principio.

3. A aplicação dos parágrafos 1 e 2 deste Artigo não deverá impedir que os membros

desses povos exerçam os direitos reconhecidos para todos os cidadãos do país e

assumam as obrigações correspondentes.

Artigo 9°

1. Na medida em que isso for compatível com o sistema jurídico nacional e com os

direitos humanos internacionalmente reconhecidos, deverão ser respeitados os

métodos aos quais os povos interessados recorrem tradicionalmente para a

repressão dos delitos cometidos pelos seus membros.

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118

2. As autoridades e os tribunais solicitados para se pronunciarem sobre questões

penais deverão levar em conta os costumes dos povos mencionados a respeito do

assunto.

Artigo 10

1. Quando sanções penais sejam impostas pela legislação geral a membros dos

povos mencionados, deverão ser levadas em conta as suas características

econômicas, sociais e culturais.

2. Dever-se-á dar preferência a tipos de punição outros que o encarceramento.

Artigo 11

A lei deverá proibir a imposição, a membros dos povo interessados, de serviços

pessoais obrigatórios de qualquer natureza, remunerados ou não, exceto nos casos

previstos pela lei para todos os cidadãos.

Artigo 12

Os povos interessados deverão ter proteção contra a violação de seus direitos, e

poder iniciar procedimentos legais, seja pessoalmente, seja mediante os seus

organismos representativos, para assegurar o respeito efetivo desses direitos.

Deverão ser adotadas medidas para garantir que os membros desses povos possam

compreender e se fazer compreender em procedimentos legais, facilitando para

eles, se for necessário, intérpretes ou outros meios eficazes.

PARTE II – TERRAS

Artigo 13

1. Ao aplicarem as disposições desta parte da Convenção, os governos deverão

respeitar a importância especial que para as culturas e valores espirituais dos povos

interessados possui a sua relação com as terras ou territórios, ou com ambos,

segundo os casos, que eles ocupam ou utilizam de alguma maneira e,

particularmente, os aspectos coletivos dessa relação.

2. A utilização do termo "terras" nos Artigos 15 e 16 deverá incluir o conceito de

territórios, o que abrange a totalidade do habitat das regiões que os povos

interessados ocupam ou utilizam de alguma outra forma.

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Artigo 14

1. Dever-se-á reconhecer aos povos interessados os direitos de propriedade e de

posse sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Além disso, nos casos

apropriados, deverão ser adotadas medidas para salvaguardar o direito dos povos

interessados de utilizar terras que não estejam exclusivamente ocupadas por eles,

mas às quais, tradicionalmente, tenham tido acesso para suas atividades

tradicionais e de subsistência. Nesse particular, deverá ser dada especial atenção à

situação dos povos nômades e dos agricultores itinerantes.

2. Os governos deverão adotar as medidas que sejam necessárias para determinar

as terras que os povos interessados ocupam tradicionalmente e garantir a proteção

efetiva dos seus direitos de propriedade e posse.

3. Deverão ser instituídos procedimentos adequados no âmbito do sistema jurídico

nacional para solucionar as reivindicações de terras formuladas pelos povos

interessados.

Artigo 15

1. Os direitos dos povos interessados aos recursos naturais existentes nas suas

terras deverão ser especialmente protegidos. Esses direitos abrangem o direito

desses povos a participarem da utilização, administração e conservação dos

recursos mencionados.

2. Em caso de pertencer ao Estado a propriedade dos minérios ou dos recursos do

subsolo, ou de ter direitos sobre outros recursos, existentes na terras, os governos

deverão estabelecer ou manter procedimentos com vistas a consultar os povos

interessados, a fim de se determinar se os interesses desses povos seriam

prejudicados, e em que medida, antes de se empreender ou autorizar qualquer

programa de prospecção ou exploração dos recursos existentes nas suas terras. Os

povos interessados deverão participar sempre que for possível dos benefícios que

essas atividades produzam, e receber indenização equitativa por qualquer dano que

possam sofrer como resultado dessas atividades.

Artigo 16

1. Com reserva do disposto nos parágrafos a seguir do presente Artigo, os povos

interessados não deverão ser transladados das terras que ocupam.

2. Quando, excepcionalmente, o translado e o reassentamento desses povos sejam

considerados necessários, só poderão ser efetuados com o consentimento dos

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mesmos, concedido livremente e com pleno conhecimento de causa. Quando não

for possível obter o seu consentimento, o translado e o reassentamento só poderão

ser realizados após a conclusão de procedimentos adequados estabelecidos pela

legislação nacional, inclusive enquetes públicas, quando for apropriado, nas quais os

povos interessados tenham a possibilidade de estar efetivamente representados.

3. Sempre que for possível, esses povos deverão ter o direito de voltar a suas terras

tradicionais assim que deixarem de existir as causas que motivaram seu translado e

reassentamento.

4. Quando o retorno não for possível, conforme for determinado por acordo ou, na

ausência de tais acordos, mediante procedimento adequado, esses povos deverão

receber, em todos os casos em que for possível, terras cuja qualidade e cujo

estatuto jurídico sejam pelo menos iguais aqueles das terras que ocupavam

anteriormente, e que lhes permitam cobrir suas necessidades e garantir seu

desenvolvimento futuro. Quando os povos interessados prefiram receber

indenização em dinheiro ou em bens, essa indenização deverá ser concedida com

as garantias apropriadas.

5. Deverão ser indenizadas plenamente as pessoas transladadas e reassentadas

por qualquer perda ou dano que tenham sofrido como conseqüência do seu

deslocamento.

Artigo 17

1. Deverão ser respeitadas as modalidades de transmissão dos direitos sobre a terra

entre os membros dos povos interessados estabelecidas por esses povos.

2. Os povos interessados deverão ser consultados sempre que for considerada sua

capacidade para alienarem suas terras ou transmitirem de outra forma os seus

direitos sobre essas terras para fora de sua comunidade.

3. Dever-se-á impedir que pessoas alheias a esses povos possam se aproveitar dos

costumes dos mesmos ou do desconhecimento das leis por parte dos seus

membros para se arrogarem a propriedade, a posse ou o uso das terras a eles

pertencentes.

Artigo 18

A lei deverá prever sanções apropriadas contra toda intrusão não autorizada nas

terras dos povos interessados ou contra todo uso não autorizado das mesmas por

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pessoas alheias a eles, e os governos deverão adotar medidas para impedirem tais

infrações.

Artigo 19

Os programas agrários nacionais deverão garantir aos povos interessados

condições equivalentes às desfrutadas por outros setores da população, para fins

de:

a) a alocação de terras para esses povos quando as terras das que dispunham

sejam insuficientes para lhes garantir os elementos de uma existência normal ou

para enfrentarem o seu possível crescimento numérico;

b) a concessão dos meios necessários para o desenvolvimento das terras que esses

povos já possuam.

PARTE III - CONTRATAÇÃO E CONDIÇÕES DE EMPREGO

Artigo 20

1. Os governos deverão adotar, no âmbito da legislação nacional e em cooperação

com os povos interessados, medidas especiais para garantir aos trabalhadores

pertencentes a esses povos uma proteção eficaz em matéria de contratação e

condições de emprego, na medida em que não estejam protegidas eficazmente pela

legislação aplicável aos trabalhadores em geral.

2. Os governos deverão fazer o que estiver ao seu alcance para evitar qualquer

discriminação entre os trabalhadores pertencentes ao povos interessados e os

demais trabalhadores, especialmente quanto a:

a) acesso ao emprego, inclusive aos empregos qualificados e às medidas de

promoção e ascensão;

b) remuneração igual por trabalho de igual valor;

c) assistência médica e social, segurança e higiene no trabalho, todos os benefícios

da seguridade social e demais benefícios derivados do emprego, bem como a

habitação;

d) direito de associação, direito a se dedicar livremente a todas as atividades

sindicais para fins lícitos, e direito a celebrar convênios coletivos com empregadores

ou com organizações patronais.

3. As medidas adotadas deverão garantir, particularmente, que:

a) os trabalhadores pertencentes aos povos interessados, inclusive os trabalhadores

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sazonais, eventuais e migrantes empregados na agricultura ou em outras atividades,

bem como os empregados por empreiteiros de mão-de-obra, gozem da proteção

conferida pela legislação e a prática nacionais a outros trabalhadores dessas

categorias nos mesmos setores, e sejam plenamente informados dos seus direitos

de acordo com a legislação trabalhista e dos recursos de que dispõem;

b) os trabalhadores pertencentes a esses povos não estejam submetidos a

condições de trabalho perigosas para sua saúde, em particular como conseqüência

de sua exposição a pesticidas ou a outras substâncias tóxicas;

c) os trabalhadores pertencentes a esses povos não sejam submetidos a sistemas

de contratação coercitivos, incluindo-se todas as formas de servidão por dívidas;

d) os trabalhadores pertencentes a esses povos gozem da igualdade de

oportunidade e de tratamento para homens e mulheres no emprego e de proteção

contra o acossamento sexual.

4. Dever-se-á dar especial atenção à criação de serviços adequados de inspeção do

trabalho nas regiões donde trabalhadores pertencentes aos povos interessados

exerçam atividades assalariadas, a fim de garantir o cumprimento das disposições

desta parte da presente Convenção.

PARTE IV - INDÚSTRIAS RURAIS

Artigo 21

Os membros dos povos interessados deverão poder dispor de meios de formação

profissional pelo menos iguais àqueles dos demais cidadãos.

Artigo 22

1. Deverão ser adotadas medidas para promover a participação voluntária de

membros dos povos interessados em programas de formação profissional de

aplicação geral.

2. Quando os programas de formação profissional de aplicação geral existentes não

atendam as necessidades especiais dos povos interessados, os governos deverão

assegurar, com a participação desses povos, que sejam colocados à disposição dos

mesmos programas e meios especiais de formação.

3. Esses programas especiais de formação deverão estar baseado no entorno

econômico, nas condições sociais e culturais e nas necessidades concretas dos

povos interessados. Todo levantamento neste particular deverá ser realizado em

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cooperação com esses povos, os quais deverão ser consultados sobre a

organização e o funcionamento de tais programas. Quando for possível, esses

povos deverão assumir progressivamente a responsabilidade pela organização e o

funcionamento de tais programas especiais de formação, se assim decidirem.

Artigo 23

1. O artesanato, as indústrias rurais e comunitárias e as atividades tradicionais e

relacionadas com a economia de subsistência dos povos interessados, tais como a

caça, a pesca com armadilhas e a colheita, deverão ser reconhecidas como fatores

importantes da manutenção de sua cultura e da sua autosuficiência e

desenvolvimento econômico. Com a participação desses povos, e sempre que for

adequado, os governos deverão zelar para que sejam fortalecidas e fomentadas

essas atividades.

2. A pedido dos povos interessados, deverá facilitar-se aos mesmos, quando for

possível, assistência técnica e financeira apropriada que leve em conta as técnicas

tradicionais e as características culturais desses povos e a importância do

desenvolvimento sustentado e equitativo.

PARTE V - SEGURIDADE SOCIAL E SAÚDE

Artigo 24

Os regimes de seguridade social deverão ser estendidos progressivamente aos

povos interessados e aplicados aos mesmos sem discriminação alguma.

Artigo 25

1. Os governos deverão zelar para que sejam colocados à disposição dos povos

interessados serviços de saúde adequados ou proporcionar a esses povos os meios

que lhes permitam organizar e prestar tais serviços sob a sua própria

responsabilidade e controle, a fim de que possam gozar do nível máximo possível de

saúde física e mental.

2. Os serviços de saúde deverão ser organizados, na medida do possível, em nível

comunitário. Esses serviços deverão ser planejados e administrados em cooperação

com os povos interessados e levar em conta as suas condições econômicas,

geográficas, sociais e culturais, bem como os seus métodos de prevenção, práticas

curativas e medicamentos tradicionais.

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124

3. O sistema de assistência sanitária deverá dar preferência à formação e ao

emprego de pessoal sanitário da comunidade local e se centrar no atendimento

primário à saúde, mantendo ao mesmo tempo estreitos vínculos com os demais

níveis de assistência sanitária.

4. A prestação desses serviços de saúde deverá ser coordenada com as demais

medidas econômicas e culturais que sejam adotadas no país.

PARTE VI - EDUCAÇÃO E MEIOS DE COMUNICAÇÃO

Artigo 26

Deverão ser adotadas medidas para garantir aos membros dos povos interessados

apossibilidade de adquirirem educação em todos o níveis, pelo menos em condições

de igualdade com o restante da comunidade nacional.

Artigo 27

1. Os programas e os serviços de educação destinados aos povos interessados

deverão ser desenvolvidos e aplicados em cooperação com eles a fim de responder

às suas necessidades particulares, e deverão abranger a sua história, seus

conhecimentos e técnicas, seus sistemas de valores e todas suas demais

aspirações sociais, econômicas e culturais.

2. A autoridade competente deverá assegurar a formação de membros destes povos

e a sua participação na formulação e execução de programas de educação, com

vistas a transferir progressivamente para esses povos a responsabilidade de

realização desses programas, quando for adequado.

3. Além disso, os governos deverão reconhecer o direito desses povos de criarem

suas próprias instituições e meios de educação, desde que tais instituições

satisfaçam as normas mínimas estabelecidas pela autoridade competente em

consulta com esses povos. Deverão ser facilitados para eles recursos apropriados

para essa finalidade.

Artigo 28

1. Sempre que for viável, dever-se-á ensinar às crianças dos povos interessados a

ler e escrever na sua própria língua indígena ou na língua mais comumente falada

no grupo a que pertençam. Quando isso não for viável, as autoridades competentes

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deverão efetuar consultas com esses povos com vistas a se adotar medidas que

permitam atingir esse objetivo.

2. Deverão ser adotadas medidas adequadas para assegurar que esses povos

tenham a oportunidade de chegarem a dominar a língua nacional ou uma das

línguas oficiais do país.

3. Deverão ser adotadas disposições para se preservar as línguas indígenas dos

povos interessados e promover o desenvolvimento e prática das mesmas.

Artigo 29

Um objetivo da educação das crianças dos povos interessados deverá ser o de lhes

ministrar conhecimentos gerais e aptidões que lhes permitam participar plenamente

e em condições de igualdade na vida de sua própria comunidade e na da

comunidade nacional.

Artigo 30

1. Os governos deverão adotar medidas de acordo com as tradições e culturas dos

povos interessados, a fim de lhes dar a conhecer seus direitos e obrigações

especialmente no referente ao trabalho e às possibilidades econômicas, às questões

de educação e saúde, aos serviços sociais e aos direitos derivados da presente

Convenção.

2. Para esse fim, dever-se-á recorrer, se for necessário, a traduções escritas e à

utilização dos meios de comunicação de massa nas línguas desses povos.

Artigo 31

Deverão ser adotadas medidas de caráter educativo em todos os setores da

comunidade nacional, e especialmente naqueles que estejam em contato mais direto

com os povos interessados, com o objetivo de se eliminar os preconceitos que

poderiam ter com relação a esses povos. Para esse fim, deverão ser realizados

esforços para assegurar que os livros de História e demais materiais didáticos

ofereçam uma descrição equitativa, exata e instrutiva das sociedades e culturas dos

povos interessados.

PARTE VII - CONTATOS E COOPERAÇÃO ATRAVÉS DAS FRONTEIRAS

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Artigo 32

Os governos deverão adotar medidas apropriadas, inclusive mediante acordos

internacionais, para facilitar os contatos e a cooperação entre povos indígenas e

tribais através das fronteiras, inclusive as atividades nas áreas econômica, social,

cultural, espiritual e do meio ambiente.

PARTE VIII – ADMINISTRAÇÃO

Artigo 33

1. A autoridade governamental responsável pelas questões que a presente

Convenção abrange deverá se assegurar de que existem instituições ou outros

mecanismos apropriados para administrar os programas que afetam os povos

interessados, e de que tais instituições ou mecanismos dispõem dos meios

necessários para o pleno desempenho de suas funções.

2. Tais programas deverão incluir:

a) o planejamento, coordenação, execução e avaliação, em cooperação com os

povos interessados, das medidas previstas na presente Convenção;

b) a proposta de medidas legislativas e de outra natureza às autoridades

competentes e o controle da aplicação das medidas adotadas em cooperação com

os povos interessados.

PARTE IX - DISPOSIÇÕES GERAIS

Artigo 34

A natureza e o alcance das medidas que sejam adotadas para por em efeito a

presente Convenção deverão ser determinadas com flexibilidade, levando em conta

as condições próprias de cada país.

Artigo 35

A aplicação das disposições da presente Convenção não deverá prejudicar os

direitos e as vantagens garantidos aos povos interessados em virtude de outras

convenções e recomendações, instrumentos internacionais, tratados, ou leis, laudos,

costumes ou acordos nacionais.

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127

PARTE X - DISPOSIÇÕES FINAIS

Artigo 36

Esta Convenção revisa a Convenção Sobre Populações Indígenas e Tribais, 1957.

Artigo 37

As ratificações formais da presente Convenção serão transmitidas ao Diretor-Geral

da Repartição Internacional do Trabalho e por ele registradas.

Artigo 38

1. A presente Convenção somente vinculará os Membros da Organização

Internacional do Trabalho cujas ratificações tenham sido registradas pelo Diretor-

Geral.

2. Esta Convenção entrará em vigor doze meses após o registro das ratificações de

dois Membros por parte do Diretor-Geral.

3. Posteriormente, esta Convenção entrará em vigor, para cada Membro, doze

meses após o registro da sua ratificação.

Artigo 39

1. Todo Membro que tenha ratificado a presente Convenção poderá denunciá-la

após a expiração de um período de dez anos contados da entrada em vigor

mediante ato comunicado ao Diretor-Geral da Repartição Internacional do Trabalho

e por ele registrado. A denúncia só surtirá efeito um ano após o registro.

2. Todo Membro que tenha ratificado a presente Convenção e não fizer uso da

faculdade de denúncia prevista pelo parágrafo precedente dentro do prazo de um

ano após a expiração do período de dez anos previsto pelo presente Artigo, ficará

obrigado por um novo período de dez anos e, posteriormente, poderá denunciar a

presente Convenção ao expirar cada período de dez anos, nas condições previstas

no presente Artigo.

Artigo 40

1. O Diretor-Geral da Repartição Internacional do Trabalho notificará a todos os

Membros da Organização Internacional do Trabalho o registro de todas as

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128

ratificações, declarações e denúncias que lhe sejam comunicadas pelos Membros

da Organização.

2. Ao notificar aos Membros da Organização o registro da segundo ratificação que

lhe tenha sido comunicada, o Diretor-Geral chamará atenção dos Membros da

Organização para a data de entrada em vigor da presente Convenção.

Artigo 41

O Diretor-Geral da Repartição Internacional do Trabalho comunicará ao Secretário -

Geral das Nações Unidas, para fins de registro, conforme o Artigo 102 da Carta das

Nações Unidas, as informações completas referentes a quaisquer ratificações,

declarações e atos de denúncia que tenha registrado de acordo com os Artigos

anteriores.

Artigo 42

Sempre que julgar necessário, o Conselho de Administração da Repartição

Internacional do Trabalho deverá apresentar à Conferência Geral um relatório sobre

a aplicação da presente Convenção e decidirá sobre a oportunidade de inscrever na

agenda da Conferência a questão de sua revisão total ou parcial.

Artigo 43

1. Se a Conferência adotar uma nova Convenção que revise total ou parcialmente a

presente Convenção, e a menos que a nova Convenção disponha contrariamente:

a) a ratificação, por um Membro, da nova Convenção revista implicará de pleno

direito, não obstante o disposto pelo Artigo 39, supra, a denúncia imediata da

presente Convenção, desde que a nova Convenção revista tenha entrado em vigor;

b) a partir da entrada em vigor da Convenção revista, a presente Convenção deixará

de estar aberta à ratificação dos Membros.

2. A presente Convenção continuará em vigor, em qualquer caso em sua forma e

teor atuais, para os Membros que a tiverem ratificado e que não ratificarem a

Convenção revista.

Artigo 44

As versões inglesa e francesa do texto da presente Convenção são igualmente

autênticas.

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ANEXO E – Decreto nº 5.051 de 19 de abril de 2004 que promulga a Convenção no

169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT sobre Povos Indígenas e

Tribais.

PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA

DECRETO Nº 5.051, DE 19 DE ABRIL DE 2004

Promulga a Convenção no 169 da Organização Internacional

do Trabalho – OIT sobre Povos Indígenas e Tribais.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art.

84, inciso IV, da Constituição,

Considerando que o Congresso Nacional aprovou, por meio do Decreto

Legislativo no 143, de 20 de junho de 2002, o texto da Convenção no 169 da

Organização Internacional do Trabalho - OIT sobre Povos Indígenas e Tribais,

adotada em Genebra, em 27 de junho de 1989;

Considerando que o Governo brasileiro depositou o instrumento de ratificação

junto ao Diretor Executivo da OIT em 25 de julho de 2002;

Considerando que a Convenção entrou em vigor internacional, em 5 de

setembro de 1991, e, para o Brasil, em 25 de julho de 2003, nos termos de seu art.

38;

DECRETA:

Art. 1º A Convenção no 169 da Organização Internacional do Trabalho - OIT

sobre Povos Indígenas e Tribais, adotada em Genebra, em 27 de junho de 1989,

apensa por cópia ao presente Decreto, será executada e cumprida tão inteiramente

como nela se contém.

Art. 2º São sujeitos à aprovação do Congresso Nacional quaisquer atos que

possam resultar em revisão da referida Convenção ou que acarretem encargos ou

compromissos gravosos ao patrimônio nacional, nos termos do art. 49, inciso I, da

Constituição Federal.

Art. 3º Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação

Brasília, 19 de abril de 2004; 183o da Independência e 116o da República. LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA Celso Luiz Nunes Amorim

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ANEXO F – Mapa das ações do Projeto Protagonismo Quilombola

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ANEXO G – Mapa das comunidades do Projeto Protagonismo Quilombola

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ANEXO H – Imagens dos Dados do Educacenso 2007

(As figuras referem-se a mesma tabela, porém foram separadas para melhor visualização dos dados,

deste modo, originalmente a primeira tabela está localizada a esquerda da segunda)

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ANEXO I – Educacenso 2015

(Continuação)

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ANEXO I – Educacenso 2015

(Conclusão)

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ANEXO J – Acompanhamento dos processos quilombolas