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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE FACULDADE DE FILOSOFIA DOM AURELIANO MATOS FAFIDAM FACULDADE DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIAS E LETRAS DO SERTÃO CENTRAL FECLESC MESTRADO ACADÊMICO INTERCAMPI EM EDUCAÇÃO E ENSINO MAIE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO NÍVEL MESTRADO ANTONIO OZIÊLTON DE BRITO SOUSA IDENTIDADES (DES)COLONIAIS NAS PRÁTICAS DE LETRAMENTO DO PROJOVEM CAMPO SABERES DA TERRA LIMOEIRO DO NORTE - CEARÁ 2015

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ – UECE

FACULDADE DE FILOSOFIA DOM AURELIANO MATOS – FAFIDAM

FACULDADE DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIAS E LETRAS DO SERTÃO CENTRAL – FECLESC

MESTRADO ACADÊMICO INTERCAMPI EM EDUCAÇÃO E ENSINO – MAIE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO – NÍVEL MESTRADO

ANTONIO OZIÊLTON DE BRITO SOUSA

IDENTIDADES (DES)COLONIAIS NAS PRÁTICAS DE LETRAMENTO DO PROJOVEM

CAMPO – SABERES DA TERRA

LIMOEIRO DO NORTE - CEARÁ

2015

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ANTONIO OZIÊLTON DE BRITO SOUSA

IDENTIDADES (DES)COLONIAIS NAS PRÁTICAS DE LETRAMENTO DO

PROJOVEM CAMPO – SABERES DA TERRA

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado Acadêmico Intercampi em Educação e Ensino da Universidade Estadual do Ceará, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Educação e Ensino. Área de concentração: Educação, Escola e Movimentos Sociais. Orientadora: Profª. Drª. Claudiana Nogueira de Alencar.

LIMOEIRO DO NORTE - CEARÁ

2015

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação

Universidade Estadual do Ceará

Biblioteca Central Prof. Antônio Martins Filho

SOUSA, Antonio Oziêlton de Brito.

Identidades (des)coloniais nas práticas de

letramento do Projovem Campo – Saberes da Terra/

Antonio Oziêlton de Brito Sousa. – 2015

1 CD-ROM. 135 f. : il (algumas coloridas) 4 ¾

“CD-ROM Contendo o arquivo no formato PDF do

trabalho acadêmico, acondicionado em caixa de DVD Slim

(19 x 14 cm x 7 mm)”

Dissertação (Mestrado Acadêmico) – Universidade

Estadual do Ceará, Faculdade de Filosofia Dom Aureliano

Matos, Faculdade de Educação Ciências e Letras do

Sertão Central, Mestrado Acadêmico Intercampi em

Educação e Ensino, Limoeiro do Norte, 2015.

Área de concentração: Trabalho, Educação e

Movimentos Sociais

Orientação: Profª Ph. D. Dra. Claudiana Nogueira de

Alencar

1. Discurso 2. Identidades 3. (Des)Coloniais 4.

Letramento 5. Educação do Campo. I. Título.

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ANTONIO OZIÊLTON DE BRITO SOUSA

IDENTIDADES (DES)COLONIAIS NAS PRÁTICAS DE LETRAMENTO DO

PROJOVEM CAMPO – SABERES DA TERRA

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado Acadêmico Intercampi em Educação e Ensino da Universidade Estadual do Ceará, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Educação e Ensino. Área de concentração: Educação, Escola e Movimentos Sociais. Orientadora: Profª. Drª. Claudiana Nogueira de Alencar.

Aprovada em: 06 de março de 2015

BANCA EXAMINADORA

________________________________________________

Profª. Drª. Claudiana Nogueira de Alencar (Orientadora)

Universidade Estadual do Ceará - UECE

________________________________________________

Profª. Drª. Ana Lúcia Silva Souza

Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira - UNILAB

________________________________________________

Profª. Drª. Sandra Maria Gadelha de Carvalho

Universidade Estadual do Ceará - UECE

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A Felipe Bandoni de Oliveira que

verdadeiramente acreditou na minha

vocação ontológica de ser mais e

possibilitou as condições concretas

para minha autonomia.

Aos moradores do campo que lutam

por terra, trabalho e educação.

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AGRADECIMENTOS

Acredito que a única coisa que nos torna iguais é o fato de sermos

diferentes, como afirma Irandé Antunes “A diferença é a parte mais significativa

daquilo que nos torna iguais”. Desse modo, as nossas conquistas devem ser

consideradas como frutos da nossa vontade e da interação com o outro. A

todos que contribuíram para a realização desse projeto, muito obrigado!

Meus agradecimentos a Deus, por me acompanhar por toda a vida,

conceder talentos e proporcionar que eu vivesse essa experiência incrível.

A todos os meus professores desde os anos iniciais à pós-

graduação, especialmente, aos professores do Mestrado Acadêmico Intercampi

em Educação e Ensino – MAIE, representados pelo empenho, estímulo e

exemplo de ser humano que é a minha orientadora, Drª Claudiana Nogueira de

Alencar.

À CAPES por viabilizar as condições materiais para realização desta

pesquisa.

Às professoras Drª. Ana Lúcia Silva Souza e Drª. Sandra Maria

Gadelha de Carvalho pelas grandiosas contribuições no exame de qualificação

e por terem aceitado o convite para a defesa.

Aos colegas do MAIE, com os quais convivi e troquei experiências

pessoais e profissionais, contribuindo para o meu crescimento intelectual.

Destaco o convívio e o companheirismo destes grandes amigos: Raquel Lima,

Ivânia Maria, Paulo Pio, Gabrielle Nascimento, George Amaral, Joyce Santana,

Leiliana Freire, Maria Edleuza e Ozirene Maia.

Aos companheiros do grupo de estudos Por uma Pragmática

Cultural: Cartografias Descoloniais e Gramáticas Culturais em Jogos de

Linguagem do Cotidiano (PRAGMA CULT), vinculado ao Programa de Pós-

Graduação em Linguística da UECE (PosLa).

Toda a minha família, pelo exemplo de vida, humildade, honestidade

e atenção que dedicaram para me proporcionar uma formação cidadã e

intelectual promissora. Agradeço a meus pais Elza e Oziel pelo apoio e

dedicação, às minhas irmãs Valcicleia, Vanderleia e, em especial, à Vanesca

que sempre me acompanhou nesta trajetória, ao meu primo-irmão Tarcílio

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Nobre, aos meus dois tesouros Victória Régia e Eloá, sobrinhas queridas, que

a cada dia me dão novas alegrias e me ensinam novas lições e aos meus

cunhados, Pedro e Berg.

À Francisca Gleicia Ferreira Sobrinho, com quem eu divido os

momentos mais importantes da minha vida e todas as minhas conquistas.

A todos os educadores de Ocara, especialmente aos gestores e

amigos da Secretaria de Educação, que sempre acreditaram no meu trabalho e

estiveram sempre ao meu lado: Regivaldo Freires da Silva, e Maria Leivanir

Peixoto Farias.

À Fundação Victor Civita pelo Prêmio Educador Nota 10 em 2012,

quando dei passos significativos para entrar no mestrado.

À Rita Jover Faleiros e a Felipe Bandoni de Oliveira, dois anjos da

guarda.

Aos alunos das turmas de graduação em Pedagogia e da

Licenciatura em Educação do Campo, com os quais eu tive a oportunidade de

ensinar e aprender. Também a turma de Letras na qual realizei meu estágio do

mestrado na disciplina Projeto Especial.

Aos companheiros e amigos do Projovem Campo – Saberes da

Terra: Eva Amorim, Maria Cleonilde, Ana e Edvaldo. Também aos educandos e

educandas queridas, com os quais aprendi a valorizar mais a vida.

De forma carinhosa aos amigos que prestaram auxílio em alguns

momentos, e sempre me deram força para continuar a caminhada: Francisca

Leiliane Souza Lopes Anjos, Vanusa Benício Lopes, Francisco Chaves

Fernandes e Matilde Vieira dos Santos, José Edilson de Lima, Francisco

Silvestre da Costa e José Clementino de Oliveira.

A todos vocês meus sinceros agradecimentos!

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“Quando a educação não é

libertadora, o sonho do oprimido é

ser o opressor.”

(Paulo Freire)

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RESUMO

Esta dissertação é resultado de uma pesquisa que visou à analise de como

ocorrem os processos de construção de identidades dos moradores do campo

a partir das práticas linguísticas educacionais, considerando o letramento como

uma interface entre linguagem e (des)colonialidade no Projovem Campo –

Saberes da Terra na turma situada na comunidade Jurema dos Vieiras, Ocara-

CE. De modo geral, questionamos como se dão os processos de construção de

identidades dos moradores do campo a partir das práticas linguísticas

educacionais. Para esse fim, delimitamos para análise um corpus constituído

por trechos do Projeto Base do Projovem e uma ampliação etnográfica

composta por observação participante, notas de campo e entrevistas realizadas

com os sujeitos que participam do Programa. Desenvolvemos uma pesquisa

conduzida pelo programa de estudos linguísticos críticos elaborado e difundido

por Fairclough (2001, 2003) e Chouliaraki e Fairclough (1999). Buscamos aliar

uma compreensão sobre Educação do Campo aos Letramentos Críticos e à

Análise de Discurso Crítica (ADC). Proporcionamos, também, a possibilidade

da ampliação dos estudos na área da Educação por meio da articulação entre

Educação do Campo com as temáticas da Identidade e da Descolonialidade.

Considerando a atuação simultânea e dialética dos três tipos de significados –

acional, representacional e identificacional - os quais estão relacionados às

dimensões constituintes do discurso – texto, prática social e prática discursiva

(FAIRCLOUGH 2001,2003), o corpus foi analisado considerando uma categoria

para cada significado. Para o significado acional, analisamos a categoria

intertextualidade; para o significado representacional focamos na

representação de atores sociais; para o significado identificacional,

investigamos a categoria avaliação. Os dados gerados indicam que os diversos

sentidos construídos para os sujeitos do campo fazem com que a identidade do

camponês seja múltipla, não temos um perfil identitário homogênio para os

moradores e moradoras do campo. Identificamos na análise tanto a presença

de identidades legitimadoras, através das práticas alienadoras, quanto as

identidades de resistência, criadas pelos próprios camponeses diante das

contradições. Os processos de letramentos vivenciados nas práticas

educacionais desenvolvidas no Projovem se materializaram tanto como

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representativas do modelo ideológico quanto do modelo autônomo, temos,

assim, um espaço de disputas, onde os letramentos têm contribuído com os

processos de opressão e libertação, colonialidade e descolonialidade. Portanto,

embora o Projovem Campo seja um programa construído com base em

diversas experiências dos povos do campo não chega a construir um processo

emancipatório ou libertador semelhante ao que Freire postula, mas se constitui

como uma iniciativa de mediação, na medida em que oferece as condições

necessárias para que os sujeitos reflitam sobre a realidade em que estão

inseridos.

Palavras-chave: Discurso. Identidades. (Des)Colonialidade. Letramento.

Educação do Campo.

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ABSTRACT

This dissertation is the result of a research that aimed to analyze how occur the

identity construction processes of camp residents of the field educational

linguistic practices, considering literacy as an interface between language and

descolonialidade in Projovem field - Knowledge of Earth in the classroom

located in the community of Jurema dos Vieiras, Ocara-CE. In general, we

question how to give the identity construction processes of residents of the field

educational linguistic practices. To this purpose, we delimited to analyze a

corpus corporate of the excerpts Projovem Base Project and an ethnographic

expansion compost for of participant observation, notes of the field and

interviews with the subjects participating of the Program. We developed a

survey conducted by the program of the critical language studies program

prepared and disseminated by Fairclough (2001, 2003) and Chouliaraki and

Fairclough (1999). We seek to ally an understanding about Education field to

Critical Literacies and Critical Discourse Analysis (CDA). We provide also the

possibility of expansion of studies in Education through the joint between

Education of the field with the themes of Identity and Descolonialidade.

Considering the simultaneous acting and dialectic of the three types of

meanings - ational, representational and identificational - which are related to

the constituent dimensions of speech - text, social practice and discursive

practice (Fairclough 2001, 2003), the corpus was analyzed considering a

category for each meaning. For the ational meaning, analyzed the category

intertextuality; for the representational meaning we focus on the representation

of social actors; for the identificational meaning, we investigated the evaluation

category. The dados generated indicate that the various meanings constructed

for subjects of the field make that the identity of the peasant is diverse, we don’t

have an profile homogeneous identity for residents of the field. Identified in the

analysis as the presence of legitimizing identities, through the alienating

practices, as the resistance identities, created by the peasants themselves in

the face of the contradictions. The literacies processes experienced in

educational practices in Projovem materialized as much as representative of the

ideological model as the autonomous model, we have thus a dispute space,

where literacies have contributed with the processes of oppression and

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liberation, colonialism and descolonialidade. Therefore, although the Projovem

Field is a program built on diverse experiences of residents of the field is not

enough to build an emancipatory or liberating process similar to what Freire

posits, but is constituted as an initiative of mediation, as it provides the

conditions necessary for the subjects to reflect on the reality in which they live.

Keywords: Discourse. Identities. Descolonialidade. Literacy. Education of the

Field.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO................................................................................. 14

2 COLONIALIDADE E DESCOLONIALIDADE: AS RELAÇÕES DE

OPRESSÃO E LIBERTAÇÃO NA AMÉRICA LATINA....................

26

2.1 EUROCENTRISMO E AMÉRICA LATINA........................................ 26

2.2 COLONIALIDADE – UMA NOVA FACE DA OPRESSÃO................ 32

2.3 TEORIAS DESCOLONIAIS – O PENSAMENTO DE PAULO

FREIRE............................................................................................

37

2.4 MOVIMENTOS SOCIAIS E AS PRÁTICAS EDUCACIONAIS DOS

CAMPONESES...............................................................................

44

3 ESTUDOS DOS LETRAMENTOS 57

3.1 CONCEITOS E PRÁTICAS DE LETRAMENTOS NUMA

PERSPECTIVA CRÍTICA.................................................................

57

3.1.1 Letramento numa perspectiva funcionalista................................ 58

3.1.2 Novos estudos do letramento....................................................... 61

3.1.3 Letramento da população camponesa.......................................... 65

4 ESTUDOS DA LINGUAGEM NA PERSPECTIVA CRÍTICA............ 67

4.1 INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS CRÍTICOS DA LINGUAGEM......... 67

4.2 TEORIA SOCIAL DO DISCURSO..................................................... 72

4.3 ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA.................................................. 82

4.4 CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA ENQUANTO PROCESSO DE

IDENTIFICAÇÃO............................................................................

92

5 CAMINHO METODOLÓGICO.......................................................... 97

5.1 PESQUISA QUALITATIVA................................................................ 97

5.2 A ADC COMO MÉTODO DE ANÁLISE........................................... 99

5.3 PESQUISA ETNOGRÁFICO-DISCURSIVA...................................... 102

6 ANÁLISE DO PROJETO BASE DO PROJOVEM CAMPO –

SABERES DA TERRA, DO DIÁRIO ETNOGRÁFICO E DAS

ENTREVISTAS..............................................................................

105

6.1 TRAJETÓRIA DO OBJETO DE PESQUISA.................................... 105

6.2 SIGNIFICADO ACIONAL: INTERTEXTUALIDADE......................... 106

6.3 SIGNIFICADO REPRESENTACIONAL: REPRESENTAÇÃO DE

ATORES SOCIAIS............................................................................

111

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6.4 SIGNIFICADO IDENTIFICACIONAL: AVALIAÇÃO........................ 117

7 CONCLUSÕES................................................................................. 123

REFERÊNCIAS 128

APÊNDICES 133

APÊNDICE A 134

APÊNDICE B 135

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1 INTRODUÇÃO

Este trabalho apresenta um estudo dos processos de construção de

identidades dos moradores do campo a partir das práticas linguísticas

educacionais: o letramento como uma interface entre linguagem e

(des)colonialidade no Projovem Campo – Saberes da Terra.

O Projovem Campo - Saberes da Terra foi implementado no Brasil

em 2005 como Saberes da Terra, a ação integrou-se, dois anos depois, ao

Programa Nacional de Inclusão de Jovens (Projovem), cuja gestão é da

Secretaria Nacional de Juventude. Ao definir as identidades dos participantes,

o projeto base do Programa coloca como sendo necessário:

Criar mecanismos que possibilitem a reconstrução da identidade pessoal: suas histórias familiares, pessoais, suas formas de resistência ao longo de suas vidas, a construção do sujeito de direitos. Descobrir-se como ser histórico (BRASIL, 2009, p.53).

Discutir a educação do campo vinculada ao referido Programa

assume importância porque em seu projeto base afirma-se que ele foi

construído pautado “em iniciativas educacionais desenvolvidas pelos

movimentos sociais e organizações não-governamentais do campo (ANARA,

CONTAG, CUT, MAB, MST, RESAB, entre outros)1” (BRASIL, 2009, p.13).

O projeto base do Projovem Campo (BRASIL, 2009, p.06) postula

que ao integrar as experiências já existentes para consolidar o Programa em

nível nacional, foi resguardada a autonomia político-pedagógica das

experiências acumuladas nas diversas iniciativas de educação do campo.

Isso nos permite inferir que os representantes do poder público

entendem a ação como algo que faz parte dos resultados das lutas dos

movimentos sociais, os quais há décadas lutam pelo direito à educação,

buscando um ensino contextualizado e vinculado ao campo. A coordenadora

do Programa no Ceará apresenta um discurso pautado no que diz o documento

supracitado:

1 ANARA – Associação Nacional pela Reforma Agrária. CEFFA’s – Centros Familiares de

Formação em Alternância. CONTAG – Confederação dos Trabalhadores na Agricultura. FETRAF – Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar. CUT – Central Única dos Trabalhadores. MAB - Movimento dos Atingidos por Barragens. MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. RESAB – Rede de Educação do Semi Árido Brasileiro.

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Oziêlton: É (++) existe alguma relação entre o Projovem Campo – Saberes da Terra e os movimentos sociais ... mais especificamente com o MST? Lúcia: Bem /.../ sabemos que faz tempo que os moradores do campo tem lutado por uma educação contextualizada, o Projovem Campo é resultado das lutas dos movimentos e do MST SIM! Principalmente no sentido de que adota metodologias e propõe um currículo baseado em experiências desenvolvidas no interior do MST, né? Como, por exemplo, a pedagogia da alternância e o currículo integrado. Certo?

Assim, vale salientar que a partir de 1970 e, mais especificamente,

na década de 1990 os movimentos sociais ganham força no Brasil e em toda

América Latina reivindicando as necessidades da população, inclusive do

campo, fazendo surgir ações transformadoras, capazes de promover o

processo de descolonialidade nos países nomeados periféricos e vítimas do

padrão de poder eurocentrado.

O MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) ganha

visibilidade e prestígio por reivindicar a posse da terra e outras necessidades

da população do campo. Uma das lutas frequentes tem sido por uma Educação

do Campo que atenda as reais necessidades dos moradores do campo.

Diante disso, estaria o Projovem Campo – Saberes da Terra entre as

conquistas dos camponeses ou seria, apenas, mais uma ação governamental

para cumprir metas? E nas atividades, desenvolvidas cotidianamente, que

envolvem leitura e escrita, denotam-se ideologias próprias do letramento

funcionalista, para o qual indivíduos letrados possuem uma maior capacidade

cognitiva, tendo maior possibilidade de ascensão social e econômica ou

prevalecem ideologias pertinentes aos novos estudos do letramento, os quais

ligam as práticas de letramento às práticas sociais? E as identidades, como

estão sendo construídas dentro dos processos educativos do Programa?

Nos documentos, o Projovem Campo - Saberes da Terra tem como

objetivo oferecer qualificação profissional e escolarização aos jovens

agricultores familiares de 18 a 29 anos que não concluíram o ensino

fundamental. O Programa visa ampliar o acesso e a qualidade da educação a

essa parcela da população historicamente excluída ou precariamente incluída

no processo educacional, para isso, propõe-se a respeitar as características,

necessidades e pluralidade de gênero, étnico-racial, cultural, geracional,

política, econômica, territorial e produtiva dos povos do campo.

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Durante os dois anos iniciais (2005-2007), o Programa Saberes da

Terra2 atingiu a formação de jovens agricultores/as que vivem em comunidades

ribeirinhas, quilombolas, indígenas, assentamentos e de pequenos agricultores,

escolarizando adultos na etapa inicial do ensino fundamental.

Essa diversidade étnico-cultural e de gênero vivenciada pelo

Programa, aparece nos debates e produções realizadas durante os quatro

Seminários Nacionais de Formação de Formadores/as, dezenas de Seminários

Estaduais de Formação de Educadores e na produção de materiais

pedagógicos. Essas experiências pedagógicas realizadas viabilizaram a

escolarização em Nível Fundamental integrada à qualificação social e

profissional em Agricultura Familiar e Sustentabilidade.

Devido às iniciativas consideradas promissoras pelo poder público, o

Programa Saberes da Terra passou a integrar a Política Nacional de Inclusão

de Jovens – PROJOVEM, passando a se denominar Projovem Campo –

Saberes da Terra. Vale ressaltar que o PROJOVEM foi instituído pela Medida

Provisória nº 411/07 e representa um indutor de política pública educacional na

modalidade EJA, que vem sendo colocado nos discursos oficiais e dos próprios

movimentos como uma vitória da população do campo.

No escopo dos documentos, materiais do programa e no discurso

hegemônico em torno dele, destaca-se a questão da identidade ou

identificação dos moradores do campo em processo de escolarização. O

propósito maior é sinalizar, por meio das práticas linguísticas educacionais, que

os moradores do campo possuem suas especificidades e que há um programa

de elevação da escolaridade e qualificação profissional que vem respeitando

isso. Mas na prática como isso vem se configurando?

O Projeto Base do Projovem Campo - Saberes da Terra, edição

2009, pontua que a educação é uma forma de unir as pessoas e fortalecer

grupos, inclusive os que se encontram excluídos do sistema formal de ensino,

vistos por nós como os marginalizados pelo padrão de poder eurocêntrico.

2 Projeto piloto do Governo Federal que se coloca como parte da construção de uma política

educacional de Estado adequada aos povos do campo. O Programa Saberes da Terra foi iniciado em dezembro de 2005 em 12 Unidades da Federação (BA, PB, PE, MA, PI, RO, TO, PA, MG, MS, PR e SC) em colaboração com secretarias estaduais de educação, representações estaduais da União Nacional dos Dirigentes Municipais em Educação – UNDIME, Associação de Municípios Cantuquiriguaçu, entidades e movimentos sociais do campo integrantes dos comitês e fóruns estaduais de Educação do Campo.

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A partir de um processo definido para identificação dos moradores do

campo, o Programa propõe-se a oferecer uma “educação contextualizada, promotora

de emancipação, de superação das desigualdades e de acesso aos bens econômicos

e sociais, que respeitasse os modos de viver, pensar e produzir dos diferentes povos

do campo”. (BRASIL, 2009, p. 11). Resta-nos saber como isso vem ocorrendo na

prática.

Em nosso trabalho, optamos por utilizar como ponto de partida o discurso

presente no Projeto Base Projovem Campo – Saberes da Terra 2009, mas procuramos

ir além da estrutura considerando os elementos desviantes, cuja identificação só pode

se dar na prática, considerando as vozes dos sujeitos do campo em processo de

escolarização. Vale salientar que, de acordo com os documentos, o Projovem se

configura da seguinte forma:

[...] uma opção político-pedagógica de oferecer ensino fundamental integrado à qualificação social e profissional para os jovens agricultores do Brasil, num esforço de reunir princípios político-metodológicos acumulados ao longo das últimas décadas, desde as primeiras ações da educação popular, até as recentes e importantes iniciativas de educação do campo protagonizados pelos diferentes movimentos sociais e alguns governos locais, sem a pretensão de abranger as suas totalidades (BRASIL, 2009, p.15).

Considerando que o Programa analisado traz em seu Projeto Base

determinada concepção de emancipação/libertação, além de discutirmos

questões inerentes à identidade, abordarmos as construções de sentido acerca

da emancipação/libertação, não só do ponto de vista do texto, mas também do

ponto de vista dos sujeitos do campo envolvidos no processo.

Por essa razão, conforme veremos na seção Metodologia, nosso

trabalho não se esgota na análise documental, mas conta com uma abordagem

etnográfica e discursiva junto aos moradores do campo em processo de

escolarização classificados como beneficiados pelas lutas dos movimentos

sociais.

A escolha desse Programa como objeto de estudo, se deu em

virtude da percepção de sua relevância no processo de construção de

identidades para os moradores do campo, processo que, como a constituição

de toda identidade, se dá discursivamente, pois as identidades se configuram

como construções reflexivas. Assim, não há conhecimento neutro, por isso nos

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posicionamos a favor daqueles que dentro de uma totalidade assumem ou são

colocados numa posição social de oprimidos, subalternos, dominados.

O interesse pela temática aqui desenvolvida se justifica, em primeira

instância, pela inserção em um contexto em que o contato direto com os

movimentos sociais foi constante. Como educador de escola pública, tivemos

vivências com integrantes do MST que estudavam em escolas regulares, os

quais sempre se mostravam inquietos e questionadores diante do ensino

oferecido.

Em uma segunda vertente de justificativa, destacamos a

participação no Projovem Campo – Saberes da Terra como professor e

formador, além da ligação com os integrantes do movimento por meio das

pastorais eclesiásticas que atuam nas comunidades.

Cabe aqui uma confidência, o criador das várias vozes que vos

falam neste trabalho encontra-se em um movimento dialético com a realidade

em análise, transita pelo que Bhabha (1998) denomina entre-lugar, ou seja,

possibilidade estratégica que permite a ativação de elementos às vezes

incompatíveis, ou união de situações distintas, representando o movimento em

que vive o ser humano no mundo contemporâneo.

Como aluno do Mestrado Acadêmico Intercampi em Educação e

Ensino-MAIE, pude aprofundar meus estudos na área da Educação do Campo

e na Análise de Discurso Crítica. Como o MST e outros movimentos sociais

são colocados como parceiros para o processo de construção do Programa,

entendemos que ter esse contato prévio possibilitou uma melhor aproximação

com o objeto de pesquisa e, consequentemente, com os possíveis

colaboradores, uma vez que a pesquisa teve um viés etnográfico-discursivo.

Canclini (2005, p. 23) afirma que adotar o ponto de vista dos menos

favorecidos como forma de transformação pode servir como uma etapa de

descoberta, de gerar hipóteses que desafiem os saberes constituídos, para

tornar visíveis alguns campos do real descuidados pelo conhecimento

hegemônico.

Além da relevância do tema, julgamos que nossa pesquisa pode

colaborar no cenário acadêmico por aliar uma compreensão sobre Educação

do Campo aos Letramentos Críticos e à Análise de Discurso Crítica (ADC),

vertente que vem sendo cada vez mais difundida na América Latina por

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considerar a possibilidade de duas dimensões críticas para examinar o papel

da linguagem: na reprodução das práticas sociais e das ideologias e na

transformação social. Além disso, proporcionamos a possibilidade da

ampliação dos estudos na área da Educação por meio da articulação entre

Educação do Campo com as temáticas da Identidade e da Descolonialidade.

Atualmente, muitos pesquisadores latino-americanos têm se

dedicado à difusão da ADC como teoria e método de investigação

(MAGALHÃES, 2012; RAMALHO, 2007; RESENDE, 2005, 2008). Muitos deles

vinculam a ADC aos estudos sobre a pobreza na América Latina, como os

trabalhos, ou à questão das pessoas em situação de opressão, como as

pesquisas de Resende e Ramalho (2006). É exatamente aí que nosso trabalho

se situa, propondo-se a investigar a perspectiva identitária dos moradores do

campo dentro de um contexto específico.

Esta pesquisa, ao envolver a ADC, apresenta um esforço

interpretativo, o qual sinaliza um caminho que não é único, nem melhor que

outros, mas apenas uma forma de perceber e entender mundos possíveis.

Dessa maneira, em um contexto educacional situado é possível analisar, ao

mesmo tempo, os discursos que contribuem para a manutenção das

desigualdades e os que colaboram para transformação social.

Neste estudo, almejamos propor uma forma de ver a realidade dos

povos do campo3 em processo de escolarização, com intuito de criar um canal

de escuta ao que eles têm a dizer sobre si e o mundo. Para isso, realizamos

um estudo sobre as práticas discursivas educacionais do Programa Projovem

Campo - Saberes da Terra, focalizando a construção de

significados/representações sobre a emancipação/libertação das populações

do campo e as construções identitárias dos/das jovens participantes nas

práticas de letramento promovidas pelo Programa.

Trata-se de uma pesquisa engajada e comprometida com a melhoria

da qualidade de vida dos moradores do campo; melhoria que entendemos ser

3 No Projeto Base 2009 do Projovem Campo - Saberes da Terra está sendo considerado como

povos do campo: agricultores/as familiares, assalariados, assentados ou em processo de assentamento, ribeirinhos, caiçaras, extrativistas, pescadores, indígenas, remanescentes de quilombos, entre outros povos que lutam pela afirmação dos seus direitos do campo no diversos biomas do território nacional.

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possível também no simples gesto de acolher suas vozes e repercuti-las em

nosso meio, acadêmico e social.

Em consonância com o ponto de vista que defendemos, está o fato

de que na sociedade contemporânea, onde as desigualdades sociais se tornam

latentes, ganha espaço as faces reivindicatória e propositiva de vários grupos

minoritários ou subalternizados pelo sistema-mundo eurocêntrico.

Historicamente, têm ocorrido tentativas para que as ditas minorias sejam

esquecidas e silenciadas cada vez que agem contra a realidade posta.

A partir da década de 1990, quando entram em cena, os novos

movimentos sociais, os quais expressam novas maneiras de luta e de

resistência, as desigualdades enfrentadas pelos diversos grupos discriminados

na sociedade brasileira são evidenciadas e denunciadas.

Com isso, intensificam-se as discussões sobre a atual conjuntura do

capitalismo, a partir do qual apenas uma minoria detentora dos bens de

produção pode usufruir das oportunidades geradas pela globalização. Para os

demais, pobres e marginalizados, restam apenas os riscos.

Como, atualmente, os estudos da linguagem como forma de ação e

interação social vêm ganhando destaque, intentamos o desafio de analisar o

linguístico integrado ao social em um contexto de agencias dos sujeitos até

então pouco explorado na Linguística Aplicada. Sujeitos que não são

meramente reféns do sistema, mas que resistem a esse quadro de injustiças

sociais realçado pela conjuntura do capitalismo globalizante.

Neste trabalho de resistência, velhas identidades são subvertidas e

novas práticas identitárias são instauradas. Referimos-nos aos processos de

construção de identidades dos moradores do campo a partir das práticas

linguísticas educacionais: o letramento como uma interface entre linguagem e

descolonialidade no Projovem Campo – Saberes da Terra.

O Projovem Campo é um programa de educação do campo que se

diz pensado com os sujeitos do campo por meio dos movimentos sociais,

sistematizado e colocado em prática pelo poder público em parceria com eles.

O discurso institucionalizado sustenta que a construção do programa se deu

em:

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[...] parceria com estados, municípios, organizações populares da sociedade civil e movimentos sociais de uma metodologia de Educação de Jovens e Adultos - EJA, integrada à qualificação social e profissional, realizando práticas pedagógicas de fortalecimento da Agricultura Familiar, da Economia Solidária e do Desenvolvimento Sustentável contextualizadas nas diferentes realidades e necessidades regionais e culturais (BRASIL, 2009, p.06).

Outro ponto a ser destacado é a vertente dos estudos do letramento

que nos apropriamos para servir de base para a presente pesquisa. Referimo-

nos aos Novos Estudos do Letramento, por meio da Teoria Social do

Letramento, a qual coaduna com os pressupostos teóricos da Teoria Social do

Discurso, mais notadamente por meio da Análise de Discurso Crítica (ADC),

base deste trabalho.

Com isso, esperamos contribuir para a construção de

conhecimentos que vão além dos fundamentalismos eurocêntricos. A ideia não

é negar o conhecimento produzido na modernidade pela Europa, mas mostrar

que os outros conhecimentos são tão válidos quanto aqueles hegemônicos.

Assim, devemos considerar as contribuições da modernidade, mas jamais

colocá-la como a única realidade possível.

Considerando que a atual conjuntura denota novos papeis e ações

para os movimentos sociais no Brasil e na América Latina, entendemos que

após anos de luta eles têm algumas de suas reivindicações atendidas em

forma de programas ou políticas públicas. Assim, é imprescindível, para o meio

acadêmico, constatar se na prática essas conquistas mantém as ideologias dos

movimentos ou tiveram seus pressupostos modificados pelo poder público,

visando à manutenção da hegemonia do sistema-mundo capitalista, patriarcal e

eurocêntrico, violento e conflitivo, que tende à sustentação das relações de

poder dominado/dominante com vistas à supremacia do capital.

Diante disso, a presente pesquisa se justifica por considerarmos que

diante da atual organização social, na qual as práticas neoliberais são

hegemônicas e buscam manter um padrão global, há formas de resistências

provenientes dos espaços sociais que o padrão eurocêntrico do poder

convencionou chamar de periférico. Então, quais seriam esses espaços?

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Baseados em Grosfoguel (2010), propomos que esta pesquisa seja

produzida não sobre a perspectiva subalterna, mas com essa perspectiva e a

partir dela.

Para tanto, utilizaremos pensadores que pensam a partir do sul, ou

seja, discutem ideias e práticas contra-hegemônicas, Resende e Ramalho

(2006), Quijano (2002; 2005), Dussel (2005), Walsh (2007), Freire (1997) e

outros, integrados aos teóricos e pensamentos ocidentais, pois também nos

apropriamos das ideias de Fairclough (2001; 2003) e Hobsbawn (1995).

Aqui, o saber produzido, aproveitável e necessário, o cânone, é

muito maior que o ocidental, a verdade e a universalidade cedem lugar a

ecologia de saberes, na qual, segundo Santos (2010, p.57), “[...] a busca de

credibilidade para os conhecimentos não-científicos não implica o descrédito do

conhecimento científico. Implica, simplesmente, a sua utilização contra-

hegemônica”. Isso implica, necessariamente, no diálogo entre culturas, no

aproveitamento dos diversos saberes, ampliando os conhecimentos aceitos e

sistematizados pela humanidade.

Com a realização desta pesquisa, ao discutir os processos de

construção das identidades dos camponeses, esperamos contribuir com o

fortalecimento de uma educação do campo que penosamente vem sendo

conquistada e que há muito tempo é esperada pelos moradores e moradoras

do campo.

Assim, ao intentar realizar uma apreciação crítica do discurso

educacional, tivemos como objetivo geral analisar como se dão os processos

de construção de identidades dos moradores do campo a partir das práticas

linguísticas educacionais, considerando o letramento como uma interface entre

linguagem e (des)colonialidade no Projovem Campo – Saberes da Terra.

A partir de um corpus constituído por documentos oficiais produzidos

para o Projovem Campo – Saberes da Terra e de uma ampliação etnográfica,

com base no referencial teórico-metodológico da ADC, buscamos investigar: os

recursos discursivos que contribuem para um processo mediado de construção

identitária nos depoimentos e vivências em momentos pedagógicos dos

moradores do campo; as práticas de letramento que possam contribuir para

essas formulações identitárias, tanto na fala dos sujeitos do campo, quanto no

discurso do programa; como a presença de múltiplos letramentos no cotidiano

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do Projovem Campo – Saberes da Terra se configura como processos a

serviço da dominação e/ou da libertação, da colonialidade e/ou da

descolonialidade, percebendo, assim, a construção das identidades a partir das

práticas de letramento.

Assim, posicionamos nossa pesquisa como uma tentativa de

compreensão de um fenômeno bastante profundo, a questão da dialética entre

a opressão e a libertação dos moradores do campo na contemporaneidade e

possíveis soluções para essa problemática. Para isso, consideramos que o

discurso contribui para a construção de identidades e sua análise pode mostrar

as causas ocultas, possibilitando intervir socialmente para produzir mudanças.

Salientamos, porém, que nossa análise encerra uma visão parcial sobre o

assunto e não tem a pretensão de esgotá-lo, nem de gerar proposições

generalizadoras.

Diante disso, nossas questões de pesquisa podem ser assim

definidas: Como se dão os processos de construção de identidades dos

moradores do campo a partir das práticas linguísticas educacionais? De que

forma os depoimentos e vivências em momentos pedagógicos dos moradores

do campo, enquanto discursos, mediados pelas ações cotidianas do Projovem

Campo – Saberes da Terra, revela um novo posicionamento identitário? Que

práticas de letramentos presentes tanto na fala dos moradores do campo como

nos documentos do programa contribuem para a formulação de identidades?

As práticas de letramentos, se configuram como processos a serviço da

dominação e/ou da libertação, da colonialidade e/ou da descolonialidade?

Sendo assim, compreender como vem se estruturando a construção

de uma nova identidade discursiva para os moradores do campo, no âmbito

das práticas educacionais do Projovem Campo - Saberes da Terra, implica que

investiguemos os contextos econômico e social subjacentes ao modelo de

sociabilidade hegemônico na contemporaneidade; os modos de identificação e

fixação de identidades; a forma como a linguagem opera dialogicamente e

dialeticamente através dos discursos, reproduzindo práticas sociais e, ao

mesmo tempo, agindo ativamente na construção da sociedade, promovendo

transformação social.

Considerando que as bases constituintes desta pesquisa estão

compostas pela discussão dos elementos contextuais que colaboram para

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algumas situações de desigualdade e estigmatização vivenciada pelos

moradores do campo, sentimos a necessidade de articular nossas reflexões em

cinco capítulos.

No primeiro, tratamos, de forma sintética, das ações hegemônicas e

contra-hegemônicas presentes no mundo moderno que tem gerado os

processos de libertação/opressão, colonialidade/descolonialidade. Para isso,

construímos três seções: Colonialidade: uma nova face da opressão; Teoria

descoloniais – o pensamento de Paulo Freire; Movimentos sociais e as práticas

educacionais dos camponeses. Nesse último ponto, realizamos uma análise da

conjuntura e do problema social que norteou este estudo.

No segundo, discutimos sobre o conceito e as práticas de

letramentos numa perspectiva crítica, aqui foram construídas três seções:

Letramento numa perspectiva funcionalista; Novos Estudos do Letramento;

Letramentos da população camponesa.

No terceiro, discorremos sobre a Análise de Discurso Crítica

enquanto perspectiva teórica que alinhada à etnografia discursiva é capaz de

oportunizar que repensemos os velhos caminhos em face de uma nova

realidade. Para isso, torna-se necessário os seguintes tópicos: Teoria Social do

Discurso com a Análise de Discurso Crítica proposta por Norman Fairclough

(2001; 2003); Construção identitária enquanto processo de identificação na

visão de Castells (1999).

Vale ressaltar que com essa fundamentação teórica, nosso objetivo

é traçar um breve panorama, alinhando determinadas causas a efeitos, como

forma de posicionar nossa visão em relação ao tema - Os processos de

construção de identidades dos moradores do campo a partir das práticas

linguísticas educacionais: o letramento como uma interface entre linguagem e

(des)colonialidade no Projovem Campo – Saberes da Terra.

No quarto, é o momento dedicado para a apresentação do caminho

metodológico do trabalho. Isso se dá, relacionando a pesquisa qualitativa, a

análise de discurso crítica, a pesquisa etnográfico-discursiva e apresentando

as categorias específicas de análise. Dessa forma, procuramos explicitar os

procedimentos adotados como percurso para geração e análise de dados

representativos da realidade estudada.

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As análises estão disponíveis no quinto capítulo. Inicialmente,

delineamos o percurso realizado para construção do objeto de pesquisa;

passamos para uma breve apresentação das materialidades linguísticas que

serviram de base para análise (Projeto Base do Projovem Campo – Saberes da

Terra, diário etnográfico, entrevistas com educandos e educandas, educadores

e educadoras e coordenadora do Programa); por fim, nos detemos à análise

dos três significados: acional, representacional e identificacional. Para cada

significado, atribuímos, respectivamente, uma categoria: intertextualidade,

representação de atores sociais e avaliação.

Nossas considerações finais e reflexões a partir das análises

realizadas tem a intenção de contribuir com os processos de transformação

social, uma vez que as mudanças podem ter início nas práticas discursivas.

Buscamos abrir espaços para processos emancipatórios via conscientização,

pois tornar-se consciente é o primeiro passo para os sujeitos atingirem a

emancipação humana, prova disso, é que de acordo com Freire (1997)“Quando

a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é se tornar opressor”.

Esperamos, assim, contribuir para realização de novas pesquisas que venham

enfocar a construção das identidades dos camponeses em práticas discursivas

educacionais.

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2 COLONIALIDADE E DESCOLONIALIDADE: O ESTABELECIMENTO DAS

RELAÇOES DE OPRESSÃO E LIBERTAÇÃO NA AMÉRICA LATINA

No primeiro capítulo, tratamos dos processos de opressão e

libertação na América Latina, da forma como são compreendidos na sociedade

contemporânea, ou seja, por meio da colonialidade e descolonialidade.

Começamos abordando aspectos inerentes à modernidade como:

neoliberalismo, novo capitalismo, eurocentrismo e América Latina. Na segunda

seção, apresentamos os processos de colonialidade como a materialização de

uma nova face da opressão. Na terceira seção, tratamos do pensamento de

Paulo Freire como elemento constituinte das bases para uma teoria

descolonial. Na quarta seção, abordamos os movimentos sociais e as práticas

educacionais dos camponeses. Discutimos o Projovem Campo – Saberes da

Terra como uma política pública que tem se firmado em um discurso de que

sua construção se a partir das lutas e reivindicações dos movimentos sociais

do campo.

2.1 EUROCENTRISMO E AMÉRICA LATINA

A realidade do Brasil, enquanto país situado na região hoje

denominada América Latina, é resultado dos efeitos de um processo histórico

e, atualmente, estão inclusas nesse processo as políticas neoliberais, as quais

tendem a ser mais perversas nos países periféricos do que nos países centrais

em relação ao capitalismo.

O aumento das desigualdades, fruto da concentração de renda tem

sido considerado um dos maiores prejuízos causados pelas iniciativas

neoliberais.

Nesse contexto, as políticas públicas tem continuado, sem sucesso,

o intento de sanar as desigualdades criadas pelo próprio padrão de

organização social neoliberal. Vale destacar que é nas contradições geradas

no interior do neoliberalismo que surgem as resistências e consequentemente

as possibilidades de mudanças.

A nova forma hegemônica, sob a qual a sociedade vem se

organizando, prioriza o bem estar do capital em detrimento da qualidade de

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vida. Assim, Com a adoção do neoliberalismo como forma de ver e organizar o

mundo:

[...] o que é tentado é a manutenção do fundo público como pressuposto apenas para o capital: não se trata, como o discurso da direita pretende difundir, de reduzir o Estado em todas as arenas, mas apenas naquelas onde a institucionalização da alteridade se opõe a uma progressão do tipo ‘mal infinito’ do capital (OLIVEIRA, 1998, p.44)

Com isso, buscamos compreender a constituição do atual modo de

organização social e para isso, devemos considerar que a modernidade tem

suas bases gestadas no decorrer da Idade Média e sua consolidação ocorre

nos séculos XVII e XVIII, quando a burguesia constrói uma concepção

moderna do mundo, passando a questionar veemente o mundo medieval.

Com a ascensão dos burgueses ao poder via Revolução Francesa,

tem-se a gênese da concepção liberal que permeia a sociedade até hoje por

meio de inúmeras reestruturações e adequações com vistas à manutenção do

sistema-mundo de base capitalista, que tem como princípio organizador e

estruturador das hierarquias a concepção de raça e influencia nas diversas

esferas da sociedade – econômica, cultural, política e social. A ideia chave do

liberalismo é que:

[...] a sociedade nada mais é que a essência dos indivíduos. Esta essência, por sua vez, é compreendida como a natureza que distingue o indivíduo humano dos animais naturais. A determinação do que é a sociedade e, portanto, do que é a história, passa pela determinação do que é a natureza do indivíduo. Como se trata de uma concepção desenvolvida na luta da burguesia contra o mundo feudal, a concepção de natureza humana que assim vem a ser traz como marca indelével o caráter de classe de quem a criou: o indivíduo humano é, antes de qualquer coisa e acima de tudo, o proprietário privado burguês. Ser humano é ser proprietário [...] (LESSA, 2005, p.89).

Do século XXVIII até a contemporaneidade, o capitalismo enfrenta

diversas crises e passa por inúmeros processos de reestruturação visando

manter sua hegemonia, chegando a vertente neoliberal globalizada. Assim,

entendemos que o neoliberalismo é uma redefinição do liberalismo clássico,

influenciado pelas teorias econômicas neoclássicas e é entendido como um

produto do liberalismo econômico clássico.

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O neoliberalismo ou novo capitalismo pode ser uma corrente de

pensamento e uma ideologia, ou seja, uma forma de ver e julgar o mundo. Esta

teoria, que foi baseada no liberalismo, nasceu nos Estados Unidos da América

e teve como alguns dos seus principais defensores Friedrich A. Hayeck e

Milton Friedman.

O novo capitalismo, termo adotado por Fairclough (2003), dá conta

das sucessivas reestruturações pelas quais o capitalismo tem passado nos

últimos anos como estratégia para se manter como modelo econômico e de

organização social hegemônico.

A partir do século XIX, com a consolidação da concepção moderna

de mundo, a Europa passa a ser colocada como elemento fundamental na

constituição da sociedade. Mais especificamente, o eurocentrismo, enquanto

visão de mundo que coloca a Europa como elemento fundamental e

protagonista na constituição da sociedade moderna, configurou-se a partir do

conhecimento produzido na Europa e imposto ao restante do mundo como uma

postura cultural universal.

Hoje, esse padrão de poder que se propõe global, se constitui como

um dos obstáculos à promoção da igualdade, pois a doutrina eurocêntrica

continua se difundindo por diversos meios, literatura, cinema, ciência, música,

política, educação, tornando-se inclusive um obstáculo para uma formação que

verdadeiramente possibilite a emancipação humana, uma vez que está a

serviço da manutenção do capital e não do bem-estar dos diversos grupos que

constituem a humanidade.

Entendendo o eurocentrismo enquanto um sistema ideológico que

deu sustentação a passada colonização e às atuais formas de dominação

cultural, destacamos a América Latina como um lócus de dominação endógena

e exógena que desde a sua criação vem sendo colocada como a base

periférica do mundo europeu e norte-americano.

Ao nos remetermos ao surgimento da América Latina, fazemos uma

reflexão acerca da criação e imposição do referido nome. Para isso, importa

compreendermos que os povos originários da região e os africanos,

transplantados para cá, foram levados em consideração apenas na perspectiva

de uma dominação que não os compreende como agentes do processo de

formação de identidade do continente.

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Em consonância com Farret e Pinto (2011), destacamos que o termo

América Latina não é gerado no discurso dos grupos excluídos, mas no da elite

político-econômica criolla da América Espanhola.

Esse processo está coadunado com a perspectiva de mundo

construída pela Europa, na qual a América Latina foi se estabelecendo no

mundo ocidental moderno como periférica, inferiorizada e explorada.

Sabendo que a nomeação dos habitantes de parte do continente

americano está associada a processos de dominação mantidos pelas elites

internas e externas, isso configura que a ideia de América Latina foi forjada por

uma minoria no início do século XIX e permanece forte até os nossos dias.

Diante disso, a ideia de América Latina, enquanto construção ideológica,

precisa ser ampliada e alterada, possibilitando a abertura de espaço nessa

identidade que se propõe coletiva para os grupos excluídos historicamente.

Vale salientar que antes de ser chamada de “América”, a extensa

faixa territorial conquistada pelos europeus foi denominada, primeiramente, de

“Índias” e, posteriormente, de “Novo Mundo”. Para Farret e Pinto (2011, p.33):

O nome “América” somente nasce em 1507, quando o geógrafo alemão Martin Waldseemüller publica Introdução à Cosmografia, contendo um mapa no qual o autor refere-se ao Novo Mundo como “América”, em uma clara homenagem a Américo Vespúcio.

A categoria América não serviu de imediato aos interesses da elite

colonial, só durante os processos de luta pela independência é que essa

identidade é assumida pelos colonos com intuito de se diferenciarem do inimigo

europeu, por isso:

[...] tanto a criação, quanto a divulgação desse conceito representavam a necessidade de se implantar uma identidade continental nas ex-colônias, pois assim se estabeleceria a criação de uma grande força responsável pela defesa contra possíveis ataques das antigas metrópoles europeias (FARRET E PINTO 2011, p.33).

América Latina, propriamente dita, é uma construção identitária da

primeira década do século XIX que também se deu em decorrência dos grupos

dominantes das repúblicas da região, os quais buscavam se firmar como

nações independentes frente às antigas metrópoles europeias e à potência

regional recém-formada, Estados Unidos.

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Ainda hoje, a América Latina é vitima do padrão de sociabilidade

moderno, que continua se reestruturando e mantendo posição hegemônica,

apoiando-se na concepção eurocêntrica, ou seja, no ponto de vista de que a

Europa e os Estados Unidos ainda se constituem como centro hegemônico do

mundo e persistem se colocando como parâmetro único ou o melhor para o

modo de vida contemporânea.

Assim, precisamos construir o entendimento de que o ápice da

modernidade encontra-se no que se convencionou chamar de globalização,

pois pela primeira vez na história da humanidade um padrão de sociabilidade

concentra o controle do poder mundial nas mãos de um grupo restrito, o qual

tem como base para sua constituição a acumulação de capital.

Dentro de um escopo amplo de modificações, está a adoção do

neoliberalismo que, de acordo com Resende (2005, p. 53), pode ser entendido

como um:

[...] projeto político facilitador dessa reestruturação, em consonância com as demandas de um capitalismo global cujas consequências mais evidentes são o aumento da distância entre ricos e pobres (seja no interior de um país ou entre países), da insegurança econômica para os trabalhadores e da exploração no trabalho.

A partir da hegemonia da ideologia neoliberal, o Estado de Bem-

Estar social foi considerado oneroso por garantir proteção ampla aos cidadãos.

Dessa forma, foi liquidado ou de alguma forma reformado, para evitar as crises

econômicas.

O efeito foi grave nos países de Primeiro Mundo, mas ainda mais

desastroso nos países periféricos que nunca chegaram a ter um Estado de

Bem-Estar Social, assim como o Brasil, considerado um “monumento à

negligência social” por Hobsbawn (1995, p. 555).

Resende (2005, p. 58) aponta que o discurso neoliberal classifica as

reestruturações recentes do capitalismo como uma evolução natural, isenta da

ação humana e inescapável. Essa visão fatalista é ressaltada por Bordieu

(1998, p. 42), que afirma que esse discurso dominante, repetido à exaustão,

gera a ideia de fatalismo, que leva à submissão. É como se não houvesse

outra possibilidade em termos econômicos e sociais e, crendo na inexistência

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de outra possibilidade, as pessoas se submetem à realidade tal qual se

apresenta e se constrói discursivamente.

Esse discurso perpetua a ideia de que a sociedade deve se basear

no consumo e que é natural que os “menos aptos” não consigam se sair tão

bem no jogo e fiquem de fora da sociedade de consumo. Resende (2005, p.

60) aponta que “o resultado dessa representação parcial é uma naturalização

da injustiça social em escala global, que passa a ser vista como etapa

transitória e necessária rumo ao desenvolvimento”.

Na contemporaneidade, o neoliberalismo se torna hegemônico em

decorrência do processo de globalização, pois a manutenção do sistema

capitalista, diante da sua crise estrutural, se dá em decorrência, principalmente,

da globalização da economia.

Em um processo dialético, a globalização se dá a partir das reformas

neoliberais que passam a ser em escala mundial, essas reformas só ocorrem

por meio do processo de mundialização, internacionalização do capital. A

supremacia do capital neoliberal globalizado faz com que o Estado passe a ser

um instrumento a serviço da manutenção do capital, pois passa a regular o

mercado com o intuito de tirá-lo das crises e não de conter seus excessos.

Nessa conjuntura, fica claro que os bens e oportunidades produzidos

pela sociedade moderna são para uma minoria, para a maioria restam apenas

os riscos, implicando diretamente no processo de construção de identidades na

sociedade contemporânea, uma vez que os grupos deixados à margem não

tem disponível para escolha uma diversidade de possibilidades para compor

seu estilo de vida.

Como a escolha se torna um privilégio apenas das classes

dominantes, aqueles que vivenciam os processos de exclusão e

subalternização produzem formas de resistência, gerando ações contra-

hegemônicas. Isso acontece, inclusive, no atual contexto dos moradores do

campo em processo de escolarização.

Diante disso, as populações do campo se configuram como um dos

grupos mais prejudicados, pois as ações concretas preconizadas pelo

capitalismo na sua fase atual com vistas a proporcionar o bem-estar do povo,

realizando a satisfação de necessidades básicas e minimizando as

desigualdades de acesso aos bens e serviços produzidos pela humanidade

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não tem chegado para todos, e a população das áreas rurais, historicamente,

tem sido o grupo que vem tendo acesso mais tardiamente e de maneira

precarizada aos benefícios do capitalismo. Prova disso, é que no campo

encontramos os maiores índices de desemprego e analfabetismo.

Assim, podemos refletir sobre como os chamados moradores do

campo, que necessitam diariamente se preocupar, muitas vezes, com a própria

sobrevivência, podem ocupar-se da escolha auto-reflexiva de estilos de vida?

Apoiados em Resende e Ramalho (2006, p.33), questionamos: “Que estilos de

vida têm disponíveis para escolhas pessoas que vivem à margem dos ‘bens’

produzidos pela modernidade?”

2.2 COLONIALIDADE - UMA NOVA FACE DA OPRESSÃO

Considerando que a modernidade que hoje vivenciamos se apoia

numa concepção eurocêntrica de poder, a qual coloca a Europa como o centro

da história mundial, entendemos que seu ápice encontra-se no que se

convencionou chamar de globalização, pois pela primeira vez na história da

humanidade um padrão de poder se torna mundialmente hegemônico,

concentrando o controle da sociedade nas mãos de um grupo restrito que

detém o capital. Diante disso é preciso compreender que:

[…] a “Modernidade” da Europa será a operação das possibilidades que se abrem por sua “centralidade” na História Mundial, e a constituição de todas as outras culturas como sua “periferia”, poder-se-á compreender que, ainda que toda cultura seja etnocêntrica, o etnocentrismo europeu moderno é o único que pode pretender identificar-se com a “universalidade-mundialidade”. O “eurocentrismo” da Modernidade é exatamente a confusão entre a universalidade abstrata com a mundialidade concreta hegemonizada pela Europa como “centro” (DUSSEL, 2005, p.60).

Considerando os pressupostos defendidos pelo autor supracitado,

concebemos que o eurocentrismo se configura como um mito criado a partir

dos interesses europeus, que passaram a considerar a história da

humanidade como um percurso que parte de um estado de natureza e tem

como ápice a Europa, passando a diferenciar Europa de não-Europa a partir

da categoria raça e não das questões de poder.

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Assim, a raça passou a ser um construto mental em torno do qual

se constituiu um sistema de dominação mundial que transcende a

colonização, colocando até hoje o europeu como o centro do poder mundial.

Diante disso, o eurocentrismo, enquanto perspectiva cognitiva não se vincula

apenas aos europeus, mas aqueles povos que foram educados sob a

hegemonia europeia.

O processo de colonização realizado pela Europa foi marcado por

processos de dominação que se firmavam prioritariamente pela

desconstrução das identidades já existentes nos territórios que os

colonizadores chamaram de África e América.

Terminado o período colonial ou colonialismo, teve fim a

colonização oficial, mas mantêm-se até a contemporaneidade práticas de

dominação, opressão e exploração que Quijano (2005) denomina como um

processo de colonialidade4, a qual deve ser entendida como as relações

coloniais de exploração que se mantém no mundo contemporâneo ou

modernidade tardia em que a dominação se dá pelas elites locais e mundiais,

fazendo com que a exploração, muitas vezes implícita, ocorra interna e

externa ao povo dominado, de maneira que as estruturas subjetivas, os

imaginários e a colonização epistemológica do colonizador continuam

presentes.

Enquanto a discussão acerca da colonização se insere nos

modelos capitalistas que postulam o direito de povos colonizarem outros em

razão da supremacia civilizatória, cultural, bélica, tecnológica, econômica,

étnica e social, a colonialidade discute a imposição de uma única lógica

hegemônica sobre todas as outras culturas, epistemologias, possibilidades e

modelos civilizatórios.

Em decorrência da globalização, os processos de dominação vêm

ganhando novos espaços e atingindo os diversos grupos, inclusive os

constitutivos das realidades camponesas como os moradores do campo,

4 Em consonância com o pensamento de Quijano (2005), a colonialidade constitui-se em

prática da hierarquização do poder e da economia, do conhecimento, dos próprios indivíduos numa perspectiva global e nacional. Hierarquização no sentido de que esses elementos são utilizados para demarcar as relações coloniais no mundo contemporâneo, as quais são constituídas por processos de dominação endógena e exógena a partir da hierarquia presente em cada sociedade.

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povos indígenas, os quilombolas, os pescadores, os ribeirinhos, os

extrativistas, etc.

As formas de dominação estão tão arraigadas na América Latina

que é possível atribuirmos diversos aspectos da colonialidade, pois ela se

manifesta nas diversas práticas sociais, merecendo atenção àquelas que

mais contribuem para a manutenção da exploração, a saber: colonialidade do

poder, colonialidade do saber e colonialidade do ser.

A colonialidade do poder pode ser compreendida como o processo

de soberania baseada na imposição da ideia de raça como instrumento de

dominação. Trata-se do estabelecimento de um padrão de poder que se

propõe universal e se constitui juntamente com o capitalismo moderno/colonial

eurocentrado, que teve início com a conquista da América em 1492 (Quijano,

2005).

Já a colonialidade do saber, refere-se às heranças eurocêntricas e

coloniais presentes no campo intelectual, onde, por meio de uma geopolítica do

conhecimento, são valorizados, a priori, certos lócus de enunciação, ou seja, o

lugar de onde se fala, em especial a Europa, em detrimento de outros. Há, na

verdade, um processo de naturalização da ideia de que existem lugares de

fala/produção de conhecimentos superiores e universais. Assim, o processo de

dominação se dá via legado epistemológico do eurocentrismo, para o qual a

racionalidade é única e o único saber válido é aquele produzido na Europa e

nos Estados Unidos (Mignolo, 2003).

Como a ideia de classificação da população em raças se propaga,

tanto os colonizadores como os subalternizados acreditam nesta ideia. É nesse

movimento que identifica-se a Colonialidade do Ser, que de acordo com Walsh

(2008, p 138), “es la que se ejerce por medio de la inferiorización,

subalternizacion y la deshumanización [...],” construindo o discurso e a práticas

da não-existência, da existência, da resistência e da reexistência. É a negação

sistemática da pessoa outra, nega-se o estatuto de humanidade aos povos

subalternizados. É, também, o reconhecimento quando se tem interesses ou

ocorre pressão por meio de ações contra-hegemônicas.

Essa multiplicidade de formas de dominação, exploração e

opressão se configura em decorrência da hegemonia do sistema-mundo

patriarcal/capitalista/colonial/moderno europeu.

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Assim, “a colonialidade é constitutiva da modernidade, e não

derivada” (MIGNOLO, 2005, p.75), de maneira que para entendê-la, devemos

levar em conta os nexos com a herança colonial e as diferenças étnicas

produzidas na e pela modernidade.

A modernidade e a colonialidade complementam-se e possibilitam

a constituição, expansão e manutenção da hegemonia do eurocentrismo. A

sustentação da colonialidade se dá por meio das relações de poder, é o

poder, pois, que permite a construção de espaços e seres dominados. É

preciso conceber que:

[...] colonialidade do poder estabelecida sobre a ideia de raça deve ser admitida como um fator básico na questão nacional e do Estado-nação. O problema é, contudo, que na América Latina a perspectiva eurocêntrica foi adotada pelos grupos dominantes como própria e levou-os a impor o modelo europeu de formação do Estado-nação para estruturas de poder organizadas em torno de relações coloniais (QUIJANO, 2005, p. 247).

Considerando o eurocentrismo, enquanto padrão de poder mundial,

de modo que a Europa, pretensamente, tem sido a produtora original e

singular da modernidade, e que a colonialidade possibilita a construção e

manutenção de identidades dominadas e dominantes. Ressalta-se que por

ser a América Latina um território formado por povos diversos, construiu-se

um espaço contra-hegemônico e, portanto, com fortes movimentos de

descolonialidade. Nessa conjuntura, fica claro que:

[...] a racionalidade eurocêntrica pode ser levada a admitir a crítica e o debate de seus elementos de distorção, e mais recentemente de sua colonialidade. Nessa medida e nessas condições foi um dos fundamentos centrais da legitimação mundial das ideias de igualdade social, de liberdade individual, e de solidariedade social que legitimou as lutas dos explorados, dos dominados, dos discriminados, não só contra seus opressores, não só para mudar de lugar no poder, mas também contra a opressão, contra o poder, contra todo poder (QUIJANO, 2002, p.17).

De acordo com o autor, fica evidente que as lutas dos explorados

se legitimam pela busca de igualdade social, liberdade individual e

solidariedade social. É isso que valida as lutas dos oprimidos contra seus

opressores, haja vista que está em fluxo, na América Latina, um movimento

de descolonialidade, construindo novos papeis para os diversos sujeitos que

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historicamente foram assumindo os lugares de dominados impostos pelos

senhores do capital.

Essa estrutura contraditória se constitui como um espaço gerador

das resistências, é o movimento das relações hegemônicas em concorrência

com as contra-hegemônicas que gera as possibilidades de burlar o sistema e

constrói os espaços de luta, possibilitando ações descoloniais.

Na colonialidade de poder, de acordo com Grosfoguel (2010), a

ideia de raça e racismo se torna o princípio organizador que estrutura todas

as múltiplas hierarquias do sistema-mundo, afetando diversas áreas da

existência social: sexualidade, autoridade, subjetividade, trabalho,

localização.

Podemos dizer que a colonialidade do poder, e também a

descolonialidade, vêm se configurando por meio das ações em rede. A

primeira tem como base as hierarquias globais produtoras das formas de

dominação e exploração sexual, política, epistêmica, econômica, espiritual,

educacional, linguística e racial, de maneira que toda a estrutura social passa

a ser configurada considerando as diferenças entre o europeu e o não-

europeu. A segunda tem como aporte os movimentos sociais e suas lutas

contra os diversos tipos de desigualdade e opressão.

Além da colonialidade do poder, as formas de dominação se

materializam também por meio da colonialidade do saber, pois,

historicamente, a opressão se deu, inclusive, através da premissa de que

existe apenas uma única tradição epistêmica a partir da qual pode alcançar-

se a verdade e a universalidade, dando preferência aos pensadores

ocidentais, considerando como conhecimento válido apenas as

epistemologias eurocêntricas, o conhecimento não-ocidental é dispensável

por ser particularístico, tornando-se incapaz de alcançar a universalidade e a

neutralidade. Assim:

Ao esconder o lugar do sujeito da enunciação, a dominação e a expansão coloniais europeias/euro-americanas conseguiram construir por todo o globo uma hierarquia de conhecimento superior e inferior e, consequentemente, de povos superiores e inferiores (GROSFOGUEL, 2010, p.460-461).

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Associado a colonialidade do saber, temos a colonialidade do ser,

ambas ocorrem integradas a colonialidade do poder, enquanto matriz de poder

do sistema-mundo patriarcal/capitalista/colonial/moderno/europeu hegemônico

na sociedade contemporânea.

A colonialidade do ser se concretiza por meio das experiências de

vida dos dominados, mais do que introjetado na mente, aquele que oprime está

nas práticas cotidianas dos oprimidos. Assim, a colonialidade do ser se

configura como um processo de negação, desconstrução e ocultação das

identidades periféricas ao sistema-mundo eurocentrado.

2.3 TEORIA DESCOLONIAIS – O PENSAMENTO DE PAULO FREIRE

De acordo com Walsh (2007), entendemos que a colonialidade do

ser é pensada como a negação de um estatuto humano para determinados

grupos criados durante a modernidade, tal negação implica problemas reais em

torno da liberdade do ser e da história do indivíduo em processo de

subalternização por uma violência epistêmica.

Hoje, os grupos vitimados transcendem a categoria racial, porém a

dominação ainda é fortemente influenciada por suas bases, de maneira que

esta ideia de que aqueles tidos como não-europeus ou fora do padrão

eurocêntrico são inferiores vem produzindo formas de desumanização para

alguns sujeitos que constituem estes grupos: negros, ribeirinhos, caiçaras,

extrativistas, pescadores, indígenas, remanescentes de quilombos, mulheres,

homossexuais, moradores do campo, entre outros.

Em torno desses povos e com eles, construiu-se a concepção de

que não são, fazendo com que fossem instituídas as condições objetivas e

subjetivas de negar ao ser humano sua própria humanidade.

O não ser apresentado por Walsh (2007) apresenta-se não como

uma construção, mas como um fatalismo naturalizado sob a forma de

colonialidade do ser.

Essa perspectiva defendida por Walsh (2007) de que o não ser se

trata de um fatalismo naturalizado, essencializado é contestada por Paulo

Freire, em seus estudos sobre a opressão. Freire (1997) afirma que a

desumanização é uma distorção possível na história, mas não uma vocação

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histórica e, por isso, a luta pela humanização faz sentido. A desumanização é,

segundo ele, resultado de uma ordem injusta, que precisa ser combatida.

Nesse sentido, concordamos com Freire (1997) para quem a

essencialização do não ser é inviável porque o mesmo é fruto das contradições

humanas, é o resultado do processo histórico e não algo natural, inerente ao

homem. É preciso entendermos que:

Na verdade, se admitíssemos que a desumanização é vocação histórica dos homens, nada mais teríamos que fazer, a não ser adotar uma atitude cínica ou de total desespero. A luta pela humanização, pelo trabalho livre, pela desalienação, pela afirmação dos homens como pessoas, como “seres para si”, não teria significação. Esta somente é possível porque a desumanização, mesmo que um fato concreto na história, não é, porém, destino dado, mas resultado de uma ordem injusta que gera a violência dos opressores e esta, o ser menos (FREIRE, 1997, p. 16).

Sobre a superação da contradição entre opressores e oprimidos,

Freire ensina que a luta apenas tem sentido se os oprimidos não se convertem

em opressores dos opressores durante o processo de transformação social,

mas, ao contrário, firmam-se como restauradores da humanidade de si próprios

e dos que oprimem.

Para ele, o cerne da questão é estabelecer de que forma os

oprimidos, que “hospedam” ao opressor em si, conseguirão participar da

elaboração da pedagogia de sua libertação. Porque, para Freire, é

indispensável que a libertação ocorra a partir dos oprimidos e seja por eles

desenvolvida.

O primeiro obstáculo definido por Freire é que o homem oprimido

não deseja superar a contradição e se tornar um novo homem. Seu desejo é,

antes de tudo, transformar-se no opressor, o que Freire chama de aberração:

“um dos pólos da contradição pretendendo não a libertação, mas a

identificação com o seu contrário” (1997, p.18).

Sobre o opressor, o autor aponta que não basta se perceber

opressor e sofrer por isso. Solidarizar-se exige uma atitude material, objetiva,

que vai além de prestar atendimento a tantos quantos precisem. Para ele,

solidarizar-se é uma atitude radical, que implica em, junto com o oprimido, lutar

para a transformação e superação de situação de opressão, mudar a realidade

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que faz do oprimido apenas um “ser para outro”, sem identidade própria e sem

liberdade.

Em diversos momentos em sua obra, Freire reitera que uma

pedagogia que liberte o oprimido em nada se assemelha com um trabalho

humanitário ou revestido de generosidade. A razão disso é que, para ele, uma

pedagogia que faça dos oprimidos objeto de humanitarismo encarna a própria

opressão. Nesse raciocínio, nenhum projeto formulado pelos opressores

poderia ser libertador.

Diante disso, buscamos saber se, por ter sua sustentação totalmente

no orçamento público, mas tendo sido pensado em parceria com os

movimentos sociais representativos dos moradores do campo, seria possível

pensar o Projovem Campo - Saberes da Terra como uma iniciativa que tem a

intenção de promover uma transformação identitária para os moradores do

campo?

Justifica-se a escolha da Pedagogia do Oprimido em nossa revisão

teórica, porque nessa obra, constrói-se os pressupostos de que o trabalho

pedagógico tem dois momentos: o primeiro, de conscientização e

comprometimento dos oprimidos com uma práxis libertadora. Num segundo

momento, transformada a realidade opressora, a pedagogia passa a ser a dos

homens em processo de permanente libertação.

Vale salientar que diante de uma sociedade desigual,

preconceituosa e permeada por práticas que denotam exploração, onde uns

mandam e outros obedecem, uns oprimem e outros são oprimidos, a prática

educativa pode ser um meio para promover uma transformação social em

busca da igualdade e valorização do gênero humano, considerando os

aspectos universais e locais.

É nesse contexto que a educação, materializada na escola ou em

outras práticas cotidianas, não pode continuar sendo um aparelho ideológico

do estado, deve ser, portanto, o espaço para discussão e luta pela mudança.

Partindo disso, ela pode servir tanto à manutenção da realidade opressora

como à mudança.

A partir dessas reflexões e de alguns estudos, observamos que, há

algumas décadas, muitos educadores tem trabalhado nesse sentido,

merecendo destaque um dos precursores dessas ideias, o educador Paulo

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Freire, grande nome da pedagogia crítica dentro de uma corrente de

pensamento libertador, pois construiu um pensamento descolonial acerca da

educação, colocando o oprimido no centro do discurso educacional, propondo

que as práticas educacionais sejam libertadoras e não mais alienadoras.

Para Freire (1981), a educação deve levar o homem a fazer

escolhas, a transformar, a criar, e isso acontece porque o homem está

constantemente transformando a si e ao outro.

A medida que a educação se torna autêntica, proporcionalmente se

desenvolve a necessidade de criar, entretanto a acomodação, a domesticação

e a imitação são a oposição do ato de ensinar, contribuindo para a produção de

uma sociedade submissa e alienada. A obra de Freire é um discurso e uma

práxis que se propõe a promove a descolonialidade.

Isso se justifica, pois a ação educacional que ele nos convida a

exercer é consciente de seu papel de refletir sobre as estruturas ideológicas

que alimentam a dominação e a opressão em nossa sociedade, buscando

promover a humanização e a libertação de todos os envolvidos no processo.

Dessa maneira, ele identifica as formas de exploração e poder que

atuam em processos ocultos por meio de ideologias que mantém a alienação, o

desconhecimento, a ingenuidade, a mistificação e a acomodação

desempenhadas de maneira ostensiva sobre o oprimido.

Na nossa concepção, a ingenuidade também é uma forma

desarmada, acrítica de enxergar, desconsiderando o mundo como um núcleo

dialético de lutas entre o poder que gera as dominações endógena e exógena,

e a resistência que gera a descolonialidade, a qual se materializa através da

criação de uma cultura própria que favoreça à cultura e aos interesses dos

oprimidos e expulse a cultura imposta pelo opressor.

Enfim, para alcançar a meta de transformar a sociedade em que nos

inscrevemos, precisamos ser capazes de compreendê-la. Desenvolvendo a

consciência crítica, os oprimidos podem perceber como “suas maneiras de

pensar e de visualizar o mundo [...] se encontram marcadas pela ideologia dos

grupos dominantes na sociedade global de que fazem parte” (FREIRE, 1997, p.

37).

É preciso desenvolver uma prática educativa que funcione como

uma contra-ideologia, ou seja, a partir do momento que se identifica os meios

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de opressão, a solução é trabalhar com o seu oposto, mostrando que o saber,

o poder e próprio ser que se constituem numa perspectiva individual ou social

podem estar a serviço de determinados grupos que detém o poder. Desocultar

esses aspectos por meio do estudo crítico da realidade é o melhor caminho

para promover a libertação.

Diante disso, se o opressor aliena, mistifica, preza pelo seu

desconhecimento, o silêncio e a imitação, uma educação radical estabelecerá

uma relação dialógica entre educador e educando, trabalhando com a

consciência crítica e seletiva, o estudo e o criar, a igualdade e a confiança no

convívio cotidiano. Aos poucos estas sementes se espalharão no meio social, e

os oprimidos esclarecidos da realidade que os cerca e das mudanças

necessárias, serão os pilares que sustentarão a transformação social.

Embora o período colonial tenha passado, as bases ideológicas de

uma sociedade opressora continuam. Freire (1997, p. 111) diz que quando “o

colonizador é expulso [...] permanece no contexto cultural e ideológico,

permanece como ‘sombra’ introjetada no colonizado”.

O racismo ainda persiste, bem como as ideologias, os privilégios de

pequenos grupos dominantes e os efeitos de séculos de exclusão educacional,

econômica e política de grande parte da população brasileira, o processo de

descolonização das mentes é mais demorado do que o da expulsão física do

colonizador.

Com isso, defendemos que o processo de descolonialidade vem

desvendar as amarras da exploração aos menos favorecidos, demonstrando

que o cerne da libertação é a tomada de consciência da realidade que os

cerca; é a exteriorização de mitos, valores, crenças e a criação de uma cultura

que favoreça aos seus próprios interesses.

Para Freire (1969, p. 124-125), o homem é um ser da práxis, é um

agente social e por isso não pode reduzir-se a um mero expectador da

realidade, pelo contrário, sua vocação é a do sujeito que opera e transforma o

mundo. A educação em Freire visa despertar para a consciência dessa

vocação e dá voz aos que foram calados por um sistema opressor.

Na Pedagogia do Oprimido Freire (1997), direciona a sua opção

político-pedagógica “aos esfarrapados do mundo, e aos que neles se

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descobrem e, assim descobrindo-se, com eles sofrem, mas, sobretudo, com

eles lutam” (FREIRE, 1997, p. 05).

Advoga uma pedagogia revolucionária, que tenha por objetivo, ação

consciente e criativa a reflexão das massas oprimidas sobre sua libertação. O

papel central no processo de libertação seria dos oprimidos e não mais, como

explicitou em Educação como Prática da Liberdade, das elites comprometidas

em diálogo com o povo.

No que diz respeito à relação entre educação e política, confirma a

tese de que a mudança social deveria partir das massas e não de indivíduos

isolados. Dessa forma, afirmou que “ninguém liberta ninguém, ninguém se

liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão” (FREIRE, 1997, p.71).

Com isso, Freire apresenta alguns aspectos do que para ele constitui o que

vem chamando de pedagogia do oprimido:

[...] é aquela que tem de ser forjada com ele e não para ele, enquanto homens ou povos, na luta incessante de recuperação de sua humanidade. Pedagogia que faça da opressão e de suas causas objeto da reflexão dos oprimidos, de que resultará o seu engajamento necessário na luta por sua libertação, e esta pedagogia se fará e refará (1997, p.43).

A essência da sua pedagogia é a libertação, a qual tem como

caminho a práxis de sua busca. A práxis é reflexão e ação dos homens sobre o

mundo para transformá-lo, sem ela, é impossível a superação da contradição

opressor-oprimido.

Freire apresenta o grande problema de como poderão os oprimidos,

que hospedam o opressor em si, participar da elaboração, como seres duplos,

inautênticos, da pedagogia de sua libertação:

Somente na medida em que se descobrem hospedeiros do opressor poderão contribuir para o partejamento de sua pedagogia libertadora. Enquanto vivam a dualidade na qual ser é parecer e parecer é parecer com o opressor, é impossível fazê-lo. A pedagogia do oprimido, que não pode ser elaborada pelos opressores, é um dos instrumentos para esta descoberta crítica – a dos oprimidos por si mesmos e a dos opressores pelos oprimidos, como manifestações de desumanização (FREIRE, 1997, p. 43).

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É preciso que o povo tome consciência da realidade em que vive,

objetive-a, submetendo-a a sua reflexão para perceber os condicionantes que

ela criou e o envolvem.

A necessidade que se impõe para superar a situação opressora

implica o reconhecimento crítico, a razão desta situação, para que, através de

uma ação transformadora instaure-se outra, que possibilite aquela busca do ser

mais.

Os métodos da opressão não podem, contraditoriamente, servir à

libertação do oprimido. Nas sociedades governadas pelos interesses de

grupos, classes e nações dominantes, a educação como prática da liberdade

postula, necessariamente, uma pedagogia do oprimido.

A educação libertadora é incompatível com uma pedagogia que, de

maneira consciente ou mistificada, tem sido prática de dominação. Assim,

buscaremos, no capítulo da análise (3.5) identificar no corpus analisado

indícios de onde estaria o Projovem, ou seja, em que medida se configura

como uma prática educacional que está a serviço da opressão e/ou da

libertação?

A educação, a escola e as práticas de letramentos cumprem um

papel nesse processo de conscientização e de movimento de massas. Pelo

conceito de consciência transitiva crítica, é possível entender como a

consciência é articulada com a práxis. Para se chegar a essa consciência, que

ao mesmo tempo é desafiadora e transformadora, são imprescindíveis o

diálogo crítico, a fala e a vivência.

O diálogo proposto pelas elites é vertical, rígido, impeditivo do

educando-massa dizer a sua palavra. Na pedagogia dominante, ao educando

cabe apenas escutar, obedecer, e um dos elementos básicos na mediação

opressor-oprimidos é a prescrição, a qual se configura como a imposição da

opção de uma consciência a outra.

Na concepção de Freire (1997), o dialogo é uma relação horizontal,

nutrindo-se de amor, humildade, esperança, fé e confiança. Nesta relação

dialógico-libertadora, parte-se dos conhecimentos e da experiência dos

educandos para construir um conhecimento novo, uma cultura vinculada aos

seus interesses e não à cultura das elites.

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É fundante que o educador revolucionário não se utilize dos mesmos

métodos antidialógicos de que se servem os opressores, trata-se de buscar a

coerência entre a teoria e a prática. A coerência que ele defende como primeira

virtude do educador revolucionário parece ser sua virtude principal, mas nos

adverte com frequência que a coerência absoluta é burrice, pois torna as

pessoas incapazes de mudar. E, para mudar, é preciso desrespeitar as

verdades já adquiridas, os próprios preconceitos.

Freire (1997) deixa claro que não é pela força da palavra, do

discurso que se fará a superação da opressão, mas da inserção na realidade

concreta e a correspondente transformação econômica, político-ideológica.

Assim, a educação não é a alavanca da transformação social, mas sem ela

essa transformação não se dá.

Em consonância com o pensamento de Freire (1996), o professor

favorece a construção do conhecimento e da formação do aluno e o aluno

também possibilita ao professor uma aprendizagem. O docente deve perceber

as experiências e saberes do aluno e o que ele traz consigo, e partir daí

ensinar. Partindo do conhecimento de mundo a curiosidade ingênua, poderá

ser transformada em curiosidade epistemológica.

Dentro desse contexto, é necessária uma prática, através da qual o

educador crie uma metodologia que questione seus ensinamentos, não

colaborando assim para a alienação ao sistema vigente. Veremos como isso

ocorre no Programa em análise através da observação participante, momento

em que acompanharemos as práticas pedagógicas e as interações do grupo.

Por fim, sabemos que uma das maneiras de explorar a consciência

da dominação é utilizar palavras geradoras do contexto sociocultural do

educando e desenvolver seu olhar crítico em relação à realidade que se

encontra.

2.4 MOVIMENTOS SOCIAIS E AS PRÁTICAS EDUCACIONAIS DOS

CAMPONESES

Considerando que o nosso objeto de estudo está relacionado com

as identificações dos moradores do campo, nesta pesquisa enfocaremos, de

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forma mais específica, a questão dos movimentos sociais e as práticas

educacionais dos camponeses.

Levamos em conta que muitos problemas enfrentados nesse

contexto são comuns a todos os camponeses, mas consideramos que quando

se trata do direito à educação os mais afetados são os jovens e adultos.

Questões como: evasão, desistência, falta e estigmatização social são

obstáculos frequentes no contexto educacional quando se propõe aos jovens e

adultos do campo práticas educacionais formais.

Inúmeras lutas tem se configurado para garantir uma educação que

atenda as necessidades da população do campo e elas são decorrentes da

organização dos movimentos sociais, os quais vêm se organizando em

diversas categorias no campo e na cidade para reivindicar e propor soluções

para os problemas da sociedade contemporânea.

Assim, o enfrentamento da modernidade eurocentrada ocorre por

meio de inúmeras respostas críticas descoloniais, provenientes dos lugares

subalternos e dos povos colonizados. A maior expressão desse processo está

nas lutas dos movimentos sociais populares, os quais são bastante

expressivos na América Latina.

Considerando os pressupostos teóricos defendidos por Gohn

(2011, p.13), “vemos os movimentos sociais como ações sociais coletivas de

caráter sociopolítico e cultural que viabilizam distintas formas da população se

organizar e expressar suas demandas”.

Através dos discursos e práticas, os movimentos sociais criam

identidades e ressignificam às práticas. Por outro lado, o discurso também

pode ser usado como instrumento de dominação e opressão quando coloca os

camponeses numa condição subalterna e dependente dos detentores do

poder.

No contexto de dominação, surgem ações contra-hegemônicas

materializadas nas ações dos diversos movimentos sociais, essas ações são

consideradas descoloniais, pois se impõem contra as formas de dominação e

contra o próprio poder eurocêntrico, ou seja as formas de dominação e

exploração que contribuem para a manutenção das desigualdades, acabam

constituindo também, por meio da práxis cotidiana, práticas libertadoras, com

isso, fazem a história a partir uma nova visão de mundo, por meio de uma

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concepção emancipada acerca da construção das relações sociais,

transcendendo o padrão eurocêntrico.

É a partir de 1970, com os novos movimentos sociais que as

mobilizações da sociedade civil ganham aspecto de continuidade e têm a

possibilidade de dissolver as diversas formas de opressão e dominação das

elites internas e externas à região. Diante disso, concordamos que:

Levando-se em consideração outros momentos de mobilização da sociedade civil (como antes de 1930, com o anarquismo; antes de 1964, com alguns setores sindicais e as esquerdas tradicionais; logo após 64 com a nova esquerda e grupos de resistência armada), verifica-se como estes não apresentaram garantia de continuidade e de capacidade de corrosão das formas autoritárias e excludentes das elites no poder (SCHERER-WARREN, 1996, p.50-51).

Passado esse longo período de ausência de mobilização ou

repressão da sociedade civil em decorrência da opressão do Estado, surgem

novos movimentos sociais que vão além da luta por melhores condições de

vida, eles se configuram como verdadeiros produtores da história e contribuem

significativamente para a construção de uma nova forma de sociabilidade.

Isso passa a ser feito a partir da luta constante dos diversos grupos

organizados contra o autoritarismo expresso no Estado, nos partidos e nas

relações sociais.

Novas relações são estabelecidas a partir das condições reais e os

próprios movimentos – antigos e novos - se configuram distintamente

dependendo da região em que se desenvolvem.

Se considerarmos, por exemplo, o Brasil, veremos que as

organizações sindicais, os movimentos feminista, sem terra, de bairro,

ecológico, étnicos e outros se configuram diferentemente em cada região, pois

mesmo vivendo em um país com modelo econômico, social e político único, as

práxis cotidianas mostram que é no fazer que o local e o universal dialogam e

constituem novas práticas.

Os movimentos sociais que se constituem no Brasil e na América

Latina a partir da década de 1970 caracterizam-se por possuírem um potencial

transformador alicerçado no fortalecimento da sociedade civil. Eles

contribuíram para o processo de criação de uma nova cultura, o que antes era

lutar para suprir as necessidades, as carências, a partir de 1970 passou a ser a

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luta por direitos, pela conquista da cidadania, o foco passou a ser a busca pelo

direito a ter direitos. Isso fez com que o ideal norteador dos movimentos sociais

passasse a ser:

[...] o da criação de um novo sujeito social, o qual redefine o espaço da cidadania. O sentimento de uma tripla exclusão relativa – econômica, política, e cultural/ideológica – sempre presente na história brasileira, mas que se acentua consideravelmente durante os anos mais duros do regime militar, está no bojo dos movimentos que vão se organizando. Assim, defende-se o direito de participar do consumo de bens e equipamentos coletivos, através dos Movimentos Sociais Urbanos; o direito a permanecer na moradia e na terra ocupada, pelo Movimento dos Favelados; o direito à terra para o trabalho, pelo Movimento dos Sem-Terra ou de preservar as terras produtivas, pelo movimento das barragens; o direito a uma vida mais sadia, pelo Movimento Ecológico; o direito a não serem discriminados culturalmente, pelos Movimentos Étnicos e assim por diante (SCHERER-WARREN, 1996, p.54).

As ações desenvolvidas se constituem por meio da participação

popular e, ao negar o modelo político existente, contribuem para a criação de

uma nova sociabilidade. Muitas das decisões tomadas pelo Estado passam a

ser contestadas por meio de inúmeras formas de protestos, os quais

materializam a luta pelo direito a ter direitos, fortalecendo a força comunitária

para a constituição histórica de grupos.

A postura dos novos sujeitos sociais tem como base a Teologia da

Libertação, movimento descolonial que se constitui a partir da realidade

endógena da América Latina e tem como princípio norteador a opção

preferencial pelos pobres e o engajamento na luta contra a opressão,

desencadeando um processo de libertação, que se dá via movimentos sociais,

os quais defendem que:

[...] as lutas pela redefinição da cidadania, (num sentido mais pleno: econômico, político e social), a deslegitimação de decisões tomadas autoritariamente pelo Estado, o fortalecimento das relações comunitárias em seu sentido político, a forma de agir pela resistência ativa não violenta, a tentativa de democratização das práticas cotidianas e a busca de autonomias relativas são espaços que os NMS estão abrindo para a construção de uma sociedade mais democrática (SCHERER-WARREN, 1996, p.60).

O que a teórica denomina de Novos Movimentos Sociais (NMS),

configura-se como as formas de organização que surgem a partir da segunda

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metade da década de 1970. Os quadros sociais criados a partir de então

servirão de base para a constituição dos movimentos sociais emergentes no

século XXI, momento histórico a partir do qual, segundo Gohn (2011), passarão

a conviver antigos e novos atores no interior dos movimentos sociais, os quais

mudam suas ações de reivindicatórias para propositivas.

Na atualidade, os movimentos sociais atuam por meio das redes

sociais e se estabelecem a nível local, regional, nacional e internacional, tendo

como principal meio de comunicação e interação via internet. A continuidade e

a ruptura no interior dos movimentos são latentes, pois ao se tornarem

atividades criativas e inovações socioculturais, resgatam as lutas do passado

para significar as do presente, mas a experiência de cada movimento é

construída nos enfrentamentos do cotidiano, e não herdada do passado. A

respeito dos movimentos sociais no século XXI, concordamos com a autora ao

defender que:

A experiência que são portadores não advém de forças congeladas do passado – embora este tenha importância crucial ao criar uma memória que, quando resgatada, dá sentido às lutas do presente. A experiência se recria cotidianamente na adversidade de situações que enfrentam (GOHN, 2011, p.14).

Vale salientar que os denominados Novos Movimentos Sociais, em

cena a partir da segunda metade de 1970, contribuíram para realização de

mudanças na conjuntura política de diversos países da América Latina,

inclusive o Brasil.

As mudanças ocorridas foram decorrentes de inúmeras ações

reivindicatórias em um período em que os movimentos se colocavam como

antagônicos ao Estado. A nova situação política, em que diversos setores da

esquerda passaram a ter seus representantes ocupando cargos públicos,

possibilitou que o perfil dos movimentos sociais se alterasse no século XXI.

A ressignificação se deu principalmente na mudança de postura,

pois os movimentos tornaram-se ativos e propositivos, passando a ter ações

voltadas para a formação humana e construção de agendas emancipatórias,

nas quais as realidades sociais são diagnosticadas, propostas são construídas

e discussões são realizadas para que possam ser incluídas nas agendas

governamentais.

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Na contemporaneidade, o trabalho dos movimentos sociais não para

por aí, pois seus atores se incluem nos conselhos, audiências, seminários,

palestras e encontros sobre as temáticas pertinentes à luta de cada grupo

organizado, e mais do que propor, eles passam a fiscalizar e a acompanhar as

ações do poder público, garantindo que as necessidades dos sujeitos

historicamente oprimidos pelo sistema sejam atendidas.

Com o avanço das políticas neoliberais surgem inúmeros

movimentos sociais, e outros já existentes tem suas lutas fortalecidas pela

necessidade de se impor contra o modelo de sociedade proposto pelo

capitalismo globalizado e propor uma nova forma de sociabilidade, combatendo

as desigualdades sociais geradas pelo capitalismo.

Na América Latina e, mais especificamente, no Brasil, a partir de

1970, ganham destaque os movimentos sociais populares no campo e na

cidade. Dentre os que tiveram e tem maior repercussão pela organização e

conquistas realizadas está o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

(MST), cuja dimensão espacial transcende o território nacional, uma vez que

integra a rede de movimentos sociais Via Campesina formando uma

articulação internacional de organizações camponesas de pequenos e médios

agricultores, trabalhadores agrícolas, mulheres rurais e de povos indígenas,

representando, até certo ponto, o enfrentamento da modernidade

eurocentrada.

A rede de movimentos sociais Via Campesina, e, portanto, o MST,

apresentam ideologias afins que os coloca como movimentos que visam

promover a descolonialidade do poder, do ser e do saber no mundo moderno.

Mesmo surgindo no período dos Novos Movimentos Sociais, a partir dos quais

a participação cidadã ganha ênfase, é preciso ficar claro que:

[...] o MST não se enquadra na tradicional categoria acadêmica ‘novos movimentos sociais’, cuja inserção na sociedade implica renuncia à política de partidos. Pelo contrário, o MST é um movimento cujas novidades residem na estruturação nacional, na permanente mobilização, na autonomia política e na crítica radical do latifúndio capitalista e do Estado neoconservador (VENDRAMINI, 2000, p.15).

Assim, as ideologias do MST são frutos da construção de uma

consciência descolonial, cuja constituição ocorre por meio da percepção de que

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o padrão eurocêntrico de poder se estabeleceu a partir da exploração e

dominação da América Latina.

Com a manutenção da colonialidade, fica claro que o sofrimento

atinge principalmente os povos e grupos etnicamente marcados por ela como

subalternos: negros, índios, quilombolas, agricultores, ribeirinhos, moradores

de rua. Muitos deles foram recrutados pelo MST para participarem de

acampamentos e ocupações rurais.

Esse movimento apresenta suas contradições e desvios, e nos

últimos tempos vem se afastando dos seus afins políticos e ideológicos

originários em decorrência, por exemplo, de muitos dos seus militantes terem

assumido cargos políticos e adotado ideologias neoliberais, da realidade

objetiva ter sido modificada e de novos elementos terem permeado a realidade

camponesa.

Podemos pontuar o caso da reforma agrária, pois o MST tinha como

um de seus fundamentos um modelo de reforma agrária que deveria modificar

a estrutura da propriedade da terra, transformando o modo de produção e as

relações de trabalho no campo. Hoje, ao mesmo tempo em que o MST diz lutar

para superar o capital, percebemos alianças políticas, capitalistas e neoliberais

no interior do movimento, visando beneficiar interesses pessoais ou

determinados partidos políticos.

Com a consolidação do agronegócio, o Movimento tem voltado sua

atenção não tão somente para o latifúndio, pois Bancos e companhias

transnacionais desenham-se como o novo inimigo a ser enfrentado, sem que o

antigo, o fazendeiro do latifúndio tradicional, tenha sido derrotado.

Atualmente, modificou-se para o MST a luta de classes na

agricultura e os sujeitos que tem se envolvido na luta são múltiplos. Diversos

setores da sociedade tem tido a oportunidade de fazer parte do Movimento,

mas alguns não tem a luta pela terra como princípio norteador das ações.

Toda essa dinâmica possibilita que o MST comporte características

dos antigos e novos movimentos sociais, constituindo-se como um movimento

singular, isso é possível uma vez que:

O MST surge em nosso cenário político e econômico propondo-se a lutar por mudanças sociais no país e pela construção de uma “sociedade sem exploradores e explorados” a partir da superação da

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propriedade privada dos meios de produção, o que considera ser a estrutura central que sustenta a constituição das relações sociais nos moldes necessários para a manutenção do modo de produção capitalista (GOHN, 2011, p.114).

No entanto, o MST e outros movimentos sociais tem dado novos

rumos para a luta, e a partir dela, das contradições que eles vivenciam e das

transformações ocorridas na sociedade, ainda, tem conseguido lutar por terra,

trabalho, saúde, educação, elementos que possibilitem uma vida melhor no

campo.

Com isso, ganha ênfase no Brasil diversos projetos e programas

educacionais com intuito de atender às demandas reivindicadas pelos diversos

setores da sociedade, inclusive as necessidades expressas nas lutas do MST,

que desde 1970 e de maneira mais expressiva na década de 1990 se

fortalecem em toda América Latina.

Questionamos até que ponto esses programas são representativos

das ideologias dos movimentos sociais no que concerne a educação

reivindicada e proposta para/pelos camponeses?

Considerando que entre outros mecanismos utilizados para manter o

padrão eurocêntrico de poder está a educação tradicional, materializada na

instituição social que se convencionou chamar de escola, entende-se que ela

pode contribuir para a manutenção do processo de colonialidade.

Sendo o MST um movimento, até certo ponto, contra-hegemônico,

que tem como principal bandeira a reforma agrária, iniciou uma luta pelo direito

à educação do campo e no campo, de modo que a educação foi conquistando

lugar no interior do próprio MST, que tinha as estratégias políticas e a

ocupação da terra como prioridades.

Isso se deu porque o modelo de educação adaptado do espaço

urbano para o rural não vem atendendo as necessidades da população do

campo, e notavelmente o modelo educacional hegemônico contribui para a

manutenção da colonialidade do poder, do ser e do saber. Diante disso,

podemos defender que:

[...] a educação do campo não emerge no vazio e nem é iniciativa das políticas públicas, mas emerge de um movimento social, da mobilização dos trabalhadores do campo, da luta social. É fruto da organização coletiva dos trabalhadores diante do desemprego, da

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precarização do trabalho e da ausência de condições materiais de sobrevivência para todos (VENDRAMINI, 2007, p.123).

Muitas têm sido as conquistas dos camponeses, no que concerne à

construção de um projeto educacional para o campo que visa à libertação dos

oprimidos, ou seja, se impondo como um antagonista às forças dominantes

vigentes, buscando a construção das bases de um projeto de descolonialidade.

Com tudo isso, e considerando a fato da participação do MST na

elaboração do Projeto Base do Programa em análise, é possível evidenciar no

Projovem Campo – Saberes da Terra algum aspecto que denote processos de

descolonialidade/libertação/emancipação numa perspectiva freiriana? Sobre

essas e outras questões abordadas nesta seção, nos deteremos na análise dos

dados ao realizar um estudo mais aprofundado dos documentos do programa e

das práticas cotidianas.

As discussões sobre educação do campo se intensificam no Brasil a

partir de 1990, com a realização de encontros nacionais, conferências,

seminários, culminando com a criação de leis e programas que demonstram o

fortalecimento da educação do campo na política educacional.

Porém, apenas com a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da

Educação Brasileira em 1996 (LDB 9394/96) é que a educação do campo

começa a ganhar espaço nas políticas públicas, pois a lei afirma, em seu artigo

28, a possibilidade de adequação curricular e metodologias apropriadas ao

meio rural.

Posteriormente, com o Plano Nacional de Educação, abre-se a partir

de 2001 um espaço para conquistas resultantes da força dos movimentos

sociais, ocorrendo a aprovação das Diretrizes Operacionais para a Educação

Básica nas Escolas do Campo, nas quais fica claro que:

A educação do campo, tratada como educação rural na legislação brasileira, tem um significado que incorpora os espaços da floresta, da pecuária, das minas e da agricultura, mas os ultrapassa ao acolher em si os espaços pesqueiros, caiçaras, ribeirinhos e extrativistas. O campo, nesse sentido, mais do que um perímetro não-urbano, é um campo de possibilidades que dinamizam a ligação dos seres humanos com a própria produção das condições da existência social e com as realizações de sociedade humana (BRASIL, 2001, p. 1).

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Além de estabelecer o que é a educação do campo, enquanto

modalidade de ensino, as diretrizes reafirmam o discurso do MST, propondo a

possibilidade e necessidade de elaborar propostas pedagógicas que:

Valorizem, na organização do ensino, a diversidade cultural e os processos de interação e transformação do campo, a gestão democrática, o acesso do avanço científico e tecnológico e respectivas contribuições para a melhoria das condições de vida e a fidelidade aos princípios éticos que norteiam a convivência solidária e colaborativa nas sociedades democráticas (BRASIL, 2001, p. 25).

Merece destaque o Programa Nacional de Educação em áreas de

Reforma Agrária (PRONERA), a Pedagogia da Terra, e mais recentemente a

Licenciatura em Educação do Campo e o Projovem Campo – Saberes da

Terra.

Dentre os programas supracitados, voltamos à atenção para o

Projovem Campo – Saberes da Terra, por estar destinado, segundo Brasil

(2009), à população do campo que já passou por processos iniciais de

alfabetização, não concluíram o ensino fundamental e necessitam dar

continuidade aos estudos.

Ratifique-se que esse se constitui em um Programa que se propõe

oficialmente a atender as necessidades educacionais por meio da elevação da

escolaridade associada à qualificação social dos agricultores ou filhos de

agricultores, visando ampliar o acesso e a qualidade a essa parcela da

população historicamente excluída dos diversos processos educacionais,

respeitando as peculiaridades locais, considerando as necessidades e

pluralidades de gênero, etnia, cultura, economia, política, territorial e produtiva

dos moradores do campo.

De acordo com Brasil (2009), o Projovem Campo – Saberes da

Terra se configura numa ação integrada entre o Ministério da Educação, por

meio da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade

(SECAD) e da Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica (SETEC); o

Ministério do Desenvolvimento Agrário por meio da Secretaria de Agricultura

Familiar (SAF) e da Secretaria de Desenvolvimento Territorial (SDT); o

Ministério do Trabalho e Emprego por meio da Secretaria de Políticas Públicas

de Emprego (SPPE) e da Secretaria Nacional de Economia Solidária

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(SENAES); o Ministério do Meio Ambiente por meio da Secretaria de

Biodiversidade e Floresta (SBF); o Ministério do Desenvolvimento Social e

Combate à Fome (MDS) e a Secretaria Nacional de Juventude (SNJ) vinculada

à Presidência da República.

O programa está centrado nos jovens camponeses de 18 a 29 anos,

pois a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) de 2006 aponta

para um total de 6.276.104 jovens nesta faixa etária que vivem nas áreas

rurais. Desses, 1.641.940 jovens não concluíram o primeiro segmento do

ensino fundamental, representando 26,16% do total e 3.878.757, (61,80%) não

concluíram a segunda etapa do ensino fundamental.

Esses jovens são vítimas de um sistema que diz oferecer educação

para todos, mas não dá condições para que os sujeitos das classes populares

tenham o acesso e a permanência garantidos. Isso é visto por nós como uma

violência epistemológica proveniente do eurocentrismo.

É preciso salientar que o processo de dominação e os atos de

colonialidade passam necessariamente pelo (des)conhecimento. Assim,

entendemos que o Projovem Campo – Saberes da Terra poderia ser uma

conquista da população do campo, tendo a possibilidade promover uma

educação libertadora, possibilitando o processo de descolonialidade. É isso

que tentaremos evidenciar no capítulo V.

Para um fortalecimento dos movimentos sociais e a transformação

da sociedade, é preciso que a educação seja realizada numa perspectiva

emancipadora, e para tanto, deve-se considerar que:

Há perguntas a serem feitas insistentemente por todos nós e que nos fazem ver a impossibilidade de estudar por estudar. De estudar descomprometidamente como se misteriosamente, de repente, nada tivéssemos que ver com o mundo, um lá fora e distante mundo, alheado de nós e nós dele. Em favor de que estudo? Em favor de quem? Contra que estudo? Contra quem estudo?(FREIRE, 1981, p.31).

Considerando a educação e o Projovem como um processo de

construção social, especificamente humano, que contribui para mudanças,

concordamos com Freire (1981) ao postular que todo processo educacional é

uma forma de intervenção no mundo. Além do conhecimento dos conteúdos

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bem ou mal ensinados e/ou aprendidos, implica tanto o esforço de reprodução

da ideologia dominante como o seu desmascaramento.

Por meio de iniciativas que contribuam para a emancipação, é

possível constituir sujeitos críticos e resistentes à dominação imposta pelo

padrão de poder eurocêntrico, promovendo o processo de descolonialidade,

contribuindo para a libertação tão necessária à nossa sociedade vítima da

colonialidade.

Construir uma educação visando à emancipação, implica,

necessariamente, no reconhecimento das diferenças, negar as diferenças é

uma maneira de não atender as necessidades dos diversos grupos que

compõem a sociedade contemporânea.

Se a educação passa a ser oferecida considerando a existência de

grupos específicos, então, torna-se possível pensar novos modelos

educacionais e consequentemente realizar novas práticas, distintas do que

preconiza o padrão imposto pelo modelo educacional hegemônico. Tais

particularidades são consideradas no Projeto Político Pedagógico do Projovem

Campo ao conceber o:

[...] campo como um universo socialmente integrado ao conjunto da sociedade brasileira e ao contexto atual das relações econômicas internacionais, mantendo particularidades históricas, sociais, culturais e ecológicas que o diferenciam de qualquer espaço social e produtivo (BRASIL, 2009, p.27).

Novos sujeitos requerem novas formas de ensinar e aprender. Com

os jovens e adultos do campo não funcionam métodos tradicionais

provenientes da escola regular, eles querem aprender, mas, para a vida, e

esperam que a aprendizagem tenha significado.

Torna-se imprescindível que as práticas educacionais que se

propõem a contribuir para a libertação considerem o cotidiano dos alunos, pois

é a partir da construção de uma consciência crítica sobre a realidade em que

estão inseridos que os sujeitos podem começar a se impor contra os diversos

tipos de dominação.

Constituindo-se parte do processo, os moradores do campo têm a

possibilidade de terem uma maior compreensão da realidade, evitando a

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afirmação e reprodução das formas de dominação local, promovendo o caráter

emancipatório nas lutas e ações do dia a dia.

Podemos contribuir significativamente para promover a

descolonialidade do saber, que por sua vez, impacta diretamente na

descolonialidade do poder e do ser através de práticas de letramentos.

Sabemos que é por meio dos usos sociais que somos capazes de fazer com a

linguagem que podemos contribuir para manter e/ou transformar a realidade

constituída historicamente.

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3 ESTUDOS DOS LETRAMENTOS

Neste capítulo dedicamos nossos esforços para realizar uma

contextualização das diversas perspectivas através das quais os letramentos

podem ser abordados. Em 3.1, atentamos para o delineamento dos conceitos e

práticas de letramento numa perspectiva crítica. Na seção 3.1.1, tratamos dos

letramentos numa perspectiva funcionalista. Já na 3.1.2, apresentamos os

novos estudos do letramento com base em Street (2014). Por fim, destacamos

a diversidade de letramentos que permeiam a vida dos camponeses, deixamos

claro que ao lado das práticas de letramentos já escolarizadas, estão os

letramentos alternativos, aqueles que fazem parte do cotidiano do camponês,

mas não foram sistematizados e disseminados de maneira homogênea.

3.1 CONCEITOS E PRÁTICAS DE LETRAMENTOS NUMA PERSPECTIVA

CRÍTICA

Coadunando com o pressuposto de que o letramento tem como

ponto de partida compreender os usos sociais que fazemos da oralidade, da

leitura e da escrita, percebemos que, em linhas gerais, as teorias dos

letramentos buscam entender como as pessoas leem e escrevem, assim como

quais os processos utilizados para compreensão de textos diversos.

Para além disso, as teorias do letramento numa perspectiva crítica

consideram que essas práticas de leitura e escrita possuem significados

culturais, alegações ideológicas e se inserem em relações de poder.

Assim, passemos a uma reflexão acerca da teoria social do

letramento, destacando desde os modelos funcionalistas até os novos estudos

do letramento com foco na vertente crítica.

Faremos um percurso desde um aporte teórico funcionalista (modelo

autônomo), que teve grande aceitação nos anos 1970 e 1980, permeando a

sociedade ainda hoje, em que o letramento é entendido como o conjunto de

habilidades transferíveis que seriam responsáveis pelo sucesso de alguém ao

dotar o ser humano de capacidades mentais mais abstratas e complexas, até

os Novos Estudos do Letramento (modelo ideológico) que desde os anos 1980

vem se consolidando como uma sólida corrente de estudos nas áreas da

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linguagem e da educação, pois a partir da teoria social do letramento, é que o

mesmo passa a ser visto como uma prática social.

Antes das questões técnicas, devemos voltar nossa atenção para

questões derivadas de um modelo alternativo, ideológico. A presente discussão

ganha importância porque:

Dentro do quadro do modelo ‘autônomo’ de letramento, a questão para as agências e para os que conduzem campanhas de alfabetização se torna: como ensinar as pessoas a decodificar sinais escritos e, por exemplo, evitar problemas de ortografia? Essa abordagem pressupõe que as consequências sociais do letramento são pontos pacíficos – maiores oportunidades de emprego, mobilidade social, vidas mais plenas, etc. – e que o que as agências precisam decidir é como o letramento deve ser transmitido. Ela, porém, lida com um excesso de falsas obviedades no que diz respeito às implicações sociais do processo de aquisição do letramento [...] (STREET, 2014, p.43).

No atual contexto, em que o capitalismo globalizado vem se

mantendo hegemônico, o letramento, enquanto prática social, constitui-se

como uma interface entre linguagem e descolonialidade, uma vez que as

práticas cotidianas de letramento, ao contribuírem para a constituição de novas

identidades ou possibilitar formas de resistência, se materializam como

instrumentos capazes de promover processos emancipatórios/libertadores.

3.1.1 Letramento numa perspectiva funcionalista

A escrita, colocada como principal instrumento de uso da linguagem

na sociedade contemporânea, traz consequências para grupos e indivíduos

específicos, pois essa maneira de interagir tem sido colocada como condição

sine qua non para se ter acesso aos bens produzidos na modernidade, os que

não detém as competências e as habilidades consideradas pelos grupos

dominantes como necessárias para o exercício da cidadania são, muitas vezes,

colocados à margem e excluídos de inúmeras práticas sociais. Isso se dá

porque desde os:

[...] anos setenta e em boa parte dos anos oitenta, teóricos funcionalistas do letramento consideravam que essa atividade estava ligada a determinadas habilidades de raciocínio que, por sua vez, eram desenvolvidas de forma individual. Para esses teóricos, ligados

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à área da cognição, texto, significado e pensamento estão diretamente relacionados às maneiras com as quais diferentes tipos de texto demandam uma menor ou maior complexidade de pensamento (FONTENELE, 2014, p. 42).

Fica evidente que, sob tal enfoque, o trabalho com textos e,

consequentemente, a aprendizagem é direcionada, considerando a hierarquia

entre os textos e o nível das habilidades e competências, ou seja, o grau de

raciocínio que cada sujeito é capaz de desenvolver.

Na compreensão de Street (2014), o letramento, nessa vertente, se

expressa por meio da concepção dominante, a qual o reduz “a um conjunto de

capacidades cognitivas, que pode ser medida nos sujeitos (STREET, 2014,

p.9)”.

Esse modelo é denominado, pelo referido autor, de autônomo e

busca medir as capacidades cognitivas individuais de cada sujeito ao lidar com

textos escritos. Isso se materializa quando encontramos expressões como:

[...] ‘grau de letramento’, ‘nível de letramento’, ou ‘baixo letramento’[...]. As avaliações em rede, as políticas públicas de desenvolvimento da leitura, os concursos públicos e os exames vestibulares são bons exemplos de ações sociais que mobilizam e legitimam tal concepção, uma vez que se baseiam na crença da possibilidade de ‘avaliação’ do letramento dos sujeitos (STREET, 2009, p.9).

Tais aspectos permitem que, na contemporaneidade, seja

hegemônica a ideia de que a escola moderna e as políticas públicas devem ter

como princípio norteador desenvolver o letramento numa perspectiva

internacional, todos precisam ser avaliados e devem atingir os mesmos

resultados. Por isso, esse modelo:

[...] tende a se basear na forma de letramento do ‘texto dissertativo’, prevalente em certos círculos ocidentais e acadêmicos, e a generalizar amplamente a partir dessa prática restrita, culturalmente específica. O modelo pressupõe uma única direção em que o desenvolvimento do letramento pode ser traçado e associa-o a ‘progresso’, ‘civilização’, liberdade individual e mobilidade social (STREET, 2014, p.44).

O foco é saber o que os sujeitos sabem sobre determinados textos

escritos, com ênfase na homogeneidade, deixando o contexto social sempre de

lado, o que faz com que o letramento na perspectiva autônoma seja restrito,

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pois está voltado apenas para competências e habilidades restritas a grupos

específicos.

Com isso, privilegia-se uma única forma de letramento em

detrimento de muitas outras e questões complexas como poder, identidade,

agência não são incorporadas a essas discussões, prevalecendo o princípio da

universalidade e da objetividade, próprios das construções epistemológicas da

ciência moderna.

Passa-se, então, a valorizar os “mais” letrados em detrimento dos

“menos” letrados, gerando implicações diretas na forma de organização da

sociedade.

Os grupos letrados são vistos como mais dignos e por isso passam

a exercer os papeis e/ou assumem identidades mais valorizadas pela

sociedade, enquanto os grupos que não dominam essa forma única de

letramento são vistos como indignos e sem competência para atuar nos

espaços valorizados socialmente, a eles resta apenas o que é desprezado

pelas elites, as posições consideradas subalternas dentro do modelo de

sociabilidade hegemônico na atualidade.

Podemos compreender que as práticas de letramento impactam na

construção das identidades. No caso do letramento numa perspectiva

funcionalista delineado por meio de um modelo autônomo, há uma hegemonia

das possibilidades de se estabelecer padrões identitários legitimadores, com

intuito de naturalizar os processos de exploração e dominação via usos da

linguagem, contribuindo para manutenção da colonialidade. Nessa vertente:

[...] se encontra normalmente uma imagem muito ocidentalizada e estreita do que seja o ‘letramento’, um modelo fundado nos usos e associações particulares do letramento na história recente da Europa e da América do Norte. Sugiro que esses pressupostos restritos sobre letramento podem oferecer uma explicação para o fracasso de tantas campanhas de alfabetização nos anos recentes (STREET, 2014, p.30).

Ainda hoje, encontramos essas concepções funcionalistas do

letramento, mas elas não constituem mais um consenso, pois há uma nova

possibilidade, capaz de entender o letramento numa perspectiva mais completa

e abrangente, nos referimos aos Novos Estudos do Letramento, que serão

discutidos a seguir.

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3.1.2 Novos estudos do letramento

Essa vertente dos estudos do letramento inclui uma quantidade

considerável de pesquisas desenvolvidas a partir dos anos oitenta e vem se

propagando e ganhando espaço até hoje, pois se contrapõe às noções

tradicionais de letramento discutidas anteriormente.

Com os Novos Estudos do Letramento, denominados por Street

(2014) de Letramentos Críticos, construídos com base no modelo ideológico,

compreende-se a cultura escrita para além de um olhar psicolinguístico,

considerando os pontos de vistas histórico, antropológico e cultural, leva-se em

conta que os usos que fazemos da linguagem não são fenômenos naturais e

universais, ao contrário, são construções sociais e políticas, trazendo implícitas

relações de poder.

De acordo com o modelo ideológico de letramento postulado por

Street, os Letramentos Críticos se referem a uma prática social de linguagem,

na qual os interlocutores utilizam formas de linguagem de diversas fontes e

recursos para construir e negociar significados com uma variedade de

interlocutores. Questões de raça, etnia, sexualidade, gênero, diversidade

cultural e grupos sociais, intensificam a luta por interesses próprios num jogo

de linguagem que mescla ideologias, paradoxos e relações dinâmicas de

poder.

A partir do momento em que as culturas escritas tornam-se

hegemônicas na sociedade capitalista, aumentou o interesse dos estudiosos

pelas questões inerentes à língua escrita e a relação que a mesma mantém

com questões referentes ao poder.

O letramento é compreendido como uma prática social e mais do

que avaliar o que os sujeitos sabem sobre textos escritos leva em consideração

como as pessoas usam determinados textos e o que fazem com eles em

contextos históricos e culturais diversos. Por isso, devemos compreender que:

[...] vivemos práticas sociais concretas em que diversas ideologias e relações de poder atuam em determinadas condições, especialmente se levarmos em consideração as culturas locais, questões de identidade e as relações entre os grupos sociais (STREET, 2014, p.9).

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A concepção de letramento numa perspectiva crítica adota o modelo

ideológico e compreende o letramento por meio de práticas concretas e sociais,

de maneira que resultam da cultura, da história e dos discursos.

De um ponto de vista mais amplo a leitura e a escrita em sua

natureza social e o caráter múltiplo e diverso das práticas letradas constituem-

se a partir de perspectivas transculturais, fazendo com que vejamos:

[...] as práticas de letramentos como múltiplas e historicamente situadas. Longe de serem homogêneas, pois modeladas e construídas culturalmente, são marcadas pela heterogeneidade e estão relacionadas aos papéis e aos lugares sociais que ocupamos, ou somos impelidos a ocupar na sociedade (SOUZA, 2011, p.34).

A perspectiva social ou letramento ideológico, enfatizado por Street

e base para o presente trabalho, se constitui em oposição ao letramento numa

perspectiva autônoma. Nessa nova possibilidade de tratar os usos da

linguagem “as práticas de leitura e escrita estão sempre inseridas não só em

significados culturais, mas em alegações ideológicas sobre o que conta como

‘letramento’ e nas relações de poder a ele associadas” (STREET, 2014, p.13).

A vertente teórica que tende a realizar considerações mais amplas a

cerca das práticas de leitura e escrita denominada Letramentos Críticos

constitui-se como uma prática social e transcultural e ao adotar o modelo

ideológico:

[...] força a pessoa a ficar mais cautelosa com grandes generalizações e pressupostos acalentados acerca do letramento ‘em si mesmo’. Aqueles que aderem a este segundo modelo se concentram em práticas sociais específicas de leitura e escrita (STREET, 2014, p.44).

O autor citado anteriormente enfatiza a necessidade de

constantemente fazermos uso do que denomina reflexividade por meio da qual

é possível refletir de forma dialógica a respeito das interações que emergem de

uma determinada prática social. No campo educacional, o modelo ideológico

de letramento permite, inclusive, refletir acerca do padrão de ensino oferecido e

o seu papel no controle social e na hegemonia de uma classe dominante.

Percebemos no pensamento de Street influências de fonte freiriana,

na medida em que salienta o poder de transformação da condição social do

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interlocutor por meio da capacidade de renegociar significados na luta pelo

poder.

Embora Freire (1987, 1997) não tenha usado o termo letramentos,

sua concepção de linguagem transpassa as práticas sociais. Estas possibilitam

aos agentes, usuários da linguagem, transformar a sua própria condição social,

isto é, promover ações e deslocamentos com escolhas informadas visando à

mobilidade social. Nesse sentido, constrói-se uma relação, a do eu com os

outros, implicando na responsabilidade incomensurável que esse eu tem pelo

outro e por si mesmo, inclusive no processo de libertação.

Assim, por meio de uma concepção mais ampla, envolvendo

práticas ideológicas, os novos estudos do letramento dispensam as

explicações universalistas acerca da língua oral e escrita e passam a

considerar as diferenças com base no contexto. De maneira que:

Nessa perspectiva, a relação entre língua escrita e língua oral difere segundo o contexto – não existe nenhuma explicação universal sobre ‘o oral’ e ‘o escrito’. As condições sociais e materiais afetam (se é que não determinam) a significação de uma dada forma de comunicação, e é inadequado (se não impossível) deduzir do mero canal quais serão os processos cognitivos empregados ou as funções que serão atribuídas à prática comunicativa (STREET, 2014, p.17).

O letramento além de ser concebido como um fenômeno de

natureza social possui um caráter múltiplo, situado e com interesses

específicos. Por isso, a necessidade de refletir sobre a hegemonia da escrita

sobre a fala e tentar construir a presente pesquisa colocando os textos

selecionados para análise, sejam os oriundos da escrita ou os provenientes da

fala, em um mesmo patamar de importância para compreensão da realidade.

A nova visão de letramento numa perspectiva crítica seguindo o

modelo ideológico proposto por Street (2014) ao reconhecer a multiplicidade de

práticas letradas em vez de supor um letramento único possibilita uma abertura

para que as ideologias contra-hegemônicas ganhem espaço, aumentando as

possibilidades de se estabelecer padrões identitários de resistência e/ou de

projetos, contribuindo para os processos de emancipação/libertação via usos

da linguagem, promovendo a descolonialidade do saber, do ser e do poder.

Os letramentos críticos assumem linguagem, identidade,

conhecimento, cultura, poder, ensino-aprendizagem e realidade como noções

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que se modificam e se apresentam ideologicamente, fazendo com que estejam

sujeitos às constantes reinterpretações.

A linguagem, enquanto complexo social, também se modifica, não

captando completamente a realidade devido a sua natureza heterogênea e

dinâmica, como afirma Bakhtin (2000). Ao contrário, ela constrói e reconstrói

realidades de forma pluralizada.

Quanto ao conhecimento, esse é sempre reconstruído localmente e

nunca está pronto como um produto fechado. É, antes, um processo

incompleto e gerador de constantes modificações influenciado por uma gama

de valores culturais, políticos, econômicos e sociais, que também são passíveis

de mudanças.

Diante disso, cada contexto exigirá um trabalho com um letramento

específico, apropriado, de maneira que a opção é uma decisão política e jamais

neutra. Cada população local possui suas práticas letradas anteriores a

execução de qualquer programa para elevação da escolaridade, e essas não

podem ser desvalorizadas e marginalizadas pelo padrão a ser introduzido.

Com isso, questionamos a respeito das escolhas em relação à

vertente do letramento que vem norteando as propostas e práticas

educacionais voltadas para os moradores do campo, pois as mudanças

operadas em programas educacionais podem atingir profundamente as raízes

de crenças culturais, as quais, também, são reinventadas nas práticas

cotidianas.

Assim, leitura e a escrita jamais devem ser percebidas apenas como

meras habilidades técnicas, precisam, na verdade, ser vistas como um

conjunto específico de convenções próprias de uma cultura, de maneira que “o

letramento, portanto, não precisa ser associado com escolarização ou com

pedagogia” (STREET, 2014, p.127).

Ao considerar as diversas variedades de letramentos podemos

entender os ricos e plenos significados das práticas letradas na sociedade

contemporânea, inclusive as dos moradores do campo.

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3.1.3 Letramentos da população camponesa

Em consonância com Street (2014, p. 140), defendemos que, em

alguns contextos, a concepção de letramento relacionada à escolarização e à

pedagogia está transformando a rica variedade de práticas letradas existentes

nas comunidades em uma prática única, homogeneizada.

No contexto educacional camponês, podemos encontrar formas de

resistência e letramentos alternativos ao lado das práticas letradas já

escolarizadas. Na presente pesquisa, entendemos o letramento como uma

interface entre linguagem e (des)colonialidade, pois os usos sociais que

fazemos da linguagem por meio das práticas de letramento podem contribuir

tanto para manutenção quanto para transformação da realidade.

A contribuição desta pesquisa será evidenciar as práticas

linguísticas dos moradores do campo presentes nos letramentos, com isso,

estaremos dando o primeiro passo para “modificar as práticas linguísticas, para

não reproduzir o ciclo de opressão, evitando assim que nossas palavras

contribuam para discriminar os mais fracassados” (MAGAGALHÃES, 2012,

p.62) dentro do atual sistema de sociabilidade.

As práticas de letramento inerentes aos moradores do campo, sejam

elas de origem autônoma ou ideológica, mantém relação direta com os

modelos de identidades propostos por Castells (2009) - identidade

legitimadora, identidade de resistência e identidade de projeto.

Isso se confirma ao considerarmos que letramentos, para além de

ler e escrever, se constitui como “um conjunto de práticas sociais, cujos modos

específicos de funcionamento têm implicações importantes para as formas

pelas quais os sujeitos envolvidos nessas práticas constroem relações de

identidade e de poder” (KLEIMAN, 1995, p.11, apud. SOUZA, 2011, p.35).

Assim, as práticas discursivas cotidianas assumem grande

importância para o desenvolvimento dos letramentos nos diversos contextos,

inclusive entre os moradores do campo.

Nesse contexto, quais letramentos vem se formando e/ou se

fortalecendo dentro da nova realidade, o Projovem Campo – Saberes da Terra

e como as identidades vem se reconfigurando nesse contexto, que ao mesmo

tempo sofre movimentos de colonialidade e de descolonialidade?

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Uma característica marcante da cultura camponesa é a forte

presença da oralidade, a palavra falada, ainda tem intensa influência na vida

dos moradores e das moradoras do campo. Nesse universo convivem práticas

letradas oriundas do contexto escolar com aquelas produzidas no cotidiano.

Como o Programa a que nos propomos analisar está inserido em

uma realidade diversa, o campo, coadunamos com o pensamento de que:

No que se refere a ler, escrever e interpretar textos ou usar a oralidade letrada, de acordo com os cânones escolares, os jovens nem sempre são considerados como usuários autônomos da língua escrita. No entanto, fora da escola, existem situações outras – ainda que nem sempre reconhecidas ou autorizadas – que se realizam nas mais diversas esferas de atividade: a casa, a rua, o trabalho, a religiosidade. Espaços que ganham diferentes sentidos e apresentam distintas formas de engajar os sujeitos ou grupos sociais. Por isso, os letramentos são múltiplos e, além disso, são críticos, pois englobam usos tão variados quantas são as finalidades dessas práticas (SOUZA, 2011, p.36).

Considerando que os integrantes do Projovem Campo – Saberes da

Terra são jovens de 18 a 29 anos, apreendemos que ao analisar suas práticas

de linguagem por meio dos eventos de letramento, poderemos contribuir para

desconstrução dos discursos já cristalizados e ampliar a valorização das

práticas letradas para além daquelas sistematizadas pela escola.

Para isso, realizamos uma análise integrando a Teoria Social do

Letramento de Street à Teoria Social do Discurso de Fairclough, possibilitando

a compreensão de que a articulação de discursos distintos é central para

perceber a presença dos letramentos no cotidiano dos diversos sujeitos, assim

como os impactos do letramento na legitimação, resistência e/ou

(re)constituição das identidades dos moradores do campo.

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4 ESTUDOS DA LINGUAGEM NA PERSPECTIVA CRÍTICA

Neste capítulo, delineamos o objeto que é o fio condutor desta

pesquisa, a linguagem. Em todo o trabalho ela, é tratada numa perspectiva

crítica e aqui nos detemos a especificamente às abordagens que melhor

viabilizam isso. A seção 4.1, contém uma introdução aos estudos críticos da

linguagem. Na seção 4.2, expomos os desdobramentos da Teoria Social do

Discurso, enfatizando o modelo tridimensional proposto por Fairclough(2001).

Em 4.3, realizamos uma abordagem da Análise de Discurso Crítica,

enfatizando os três principais tipos de significados que atuam simultaneamente

no discurso e destacando três categorias de análise, uma correspondendo a

cada significado. Por fim, em 4.4, como a discussão das categorias de análises

tem como ponto central o significado identificacional, tratamos da construção

identitária enquanto processo de identificação.

4.1 INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS CRÍTICOS DA LINGUAGEM

Levando em conta as reflexões empreendidas até aqui, nas quais

objetivamos desvelar um pouco da realidade que envolve a vida dos moradores

do campo, passamos agora à discussão do escopo teórico que orientará a

análise dos textos que constituem nosso corpus.

A Análise do Discurso Crítica (ADC) é uma abordagem teórico-

metodológica de estudo da linguagem em sociedade. O primeiro ponto

relevante em relação à ADC é que ela assume que todos os discursos são

historicamente situados, razão pela qual o estudo de textos e de outras

manifestações linguísticas tem como imperativo a necessidade de se conhecer

a fundo o contexto no qual são produzidos.

Nesta seção, traçaremos um panorama geral dessa abordagem

teórica, indicando suas influências e principais características. Em nossa

análise posterior, essa fundamentação será primordial, como suporte para as

reflexões, mas também como modelo metodológico.

Serão utilizadas as categorias demandadas por cada texto, sendo

que ao nos referirmos a identidades, a ênfase recairá, obrigatoriamente, sobre

o significado Identificacional, mas como os significados possuem uma relação

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dialética, tomamos como principais categorias de análise a intertextualidade, a

representação de atores sociais e a avaliação.

Nessa abordagem, a linguagem possa a ser tratada como ação

(Austin, 1962) e como forma de vida (Wittgenstein, 1958), o que nos permite

considerar que as diversas práticas sociais que a constituem, e que também

são constituídas por ela, precisam ser analisadas a partir das perspectivas

etnográfica, discursiva e descolonial, pois possibilitam estudar a significação

por meio de uma abordagem situada, crítica e libertadora dos estudos

linguísticos.

A partir desse pressuposto, entendemos que uma abordagem

teórico-metodológica capaz de dar conta da língua em uso necessita constituir-

se em um enfoque interdisciplinar, capaz de operacionalizar conceitos e

práticas oriundos da Linguística e das Ciências Sociais. Discutimos, portanto, a

teoria e o método em ADC para o estudo das práticas discursivas do contexto

educacional a partir das considerações teóricas de Resende e Ramalho (2006)

e Fairclough (2001).

Entendendo que discurso e prática social se constituem como

conceitos básicos da teoria em ADC, torna-se possível localizá-la entre os

discursos teóricos da linguística contemporânea, destacando as relações entre

discurso e poder.

A maneira como as práticas discursivas se configuram no âmbito

social pode contribuir para reprodução ou transformação do sujeito social e

consequentemente do atual estado de sociabilidade. Mais do que reproduzir as

práticas sociais e as ideologias, a linguagem, materializada nos discursos,

pode configurar-se como um mecanismo de transformação social.

Ao mesmo tempo em que a estrutura social edifica o discurso, ele se

configura como elemento constitutivo da estrutura social, possibilitando uma

relação dialética entre discurso e práticas social.

Ao destacarmos as práticas discursivas do campo educacional, no

caso, o Projovem Campo – Saberes da Terra, torna-se eminente discutir a

serviço de quem estão as transformações propostas e os processos de

identificação. Para isso, é preciso construir uma visão crítica acerca do papel

da linguagem na manutenção ou desconstrução da hegemonia das ideologias

de determinados grupos sociais em detrimento de outros.

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No caso da realidade brasileira, esse processo se intensifica em

decorrência de fatores que expressam processos de dominação endógena e

exógena, os quais são materializados por meio da distinção das classes

sociais, etnia, gênero, chegando à separação dos indivíduos em letrados e

analfabetos, prevalecendo um processo de supervalorização dos primeiros e

manipulação dos segundos.

Diante disso, a transformação ou a manutenção das práticas sociais

passa, necessariamente, pela transformação das práticas linguísticas, o

problema é que as vezes aquilo que é visto como mudança não implica

necessariamente em processos emancipatórios, ao contrário, configura-se

como ações superficiais que possibilitam a rearticulação das práticas sociais

conservadoras, mantendo grupos específicos no poder. Seria esse o caso do

Projovem?

Como as mudanças no uso linguístico estão ligadas a processos

sociais e culturais e como, consequentemente, as mudanças sociais resultam,

em parte, dos usos linguísticos, configurando um processo dialético, podemos

utilizar a análise da linguagem por meio dos discursos como um método para

entender a mudança social.

Isso denota a necessidade de se compreender a Teoria Social do

Discurso - TSD proposta por Norman Fairclough (2001), pois ele constituiu uma

abordagem interdisciplinar de análise teoricamente adequada e viável na

prática, possibilitando investigar as práticas discursivas de maneira crítica e

situada por meio do estudo das mudanças na linguagem e nos aspectos social

e cultural, fatores aos quais as mudanças no uso linguístico estão relacionadas.

De acordo com Fairclough (2001), a TSD reconhece a importância

que a linguagem tem na vida social e configura-se como uma possibilidade

teórica de síntese entre os estudos linguísticos e a teoria social. Para esse fim,

o teórico em questão propõe uma análise de discurso de cunho tridimensional,

ao postular que todo evento discursivo é simultaneamente: um texto, uma

prática discursiva e uma prática social. É importante entendermos que:

[...] qualquer ‘evento’ discursivo (isto e, qualquer exemplo de discurso) é considerado como simultaneamente um texto, um exemplo de prática discursiva e um exemplo de prática social. A dimensão do ‘texto’ cuida da análise linguística de textos. A dimensão da ‘pratica discursiva’, como ‘interação’, na concepção ‘texto e

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interação’ de discurso, especifica a natureza dos processos de produção e interpretação textual - por exemplo, que tipos de discurso (incluindo ‘discursos’ no sentido mais socioteórico) são derivados e como se combinam. A dimensão de ‘pratica social’ cuida de questões de interesse na analise social, tais como as circunstâncias institucionais e organizacionais do evento discursivo e como elas moldam a natureza da prática discursiva e os efeitos constitutivos/construtivos referidos anteriormente (FAIRCLOUGH, 2001, p.22).

Realizar análise de discurso numa perspectiva tridimensional, mais

do que tratar os aspectos linguísticos integrados ao social e ao cultural, é uma

atitude crítica que atribui à linguagem um lugar mais central na vida social,

reconhecendo a importância social da linguagem, pois mesmo que as

mudanças sociais não envolvam só a linguagem, elas são construídas por meio

de mudanças nas práticas linguísticas.

As tentativas de mudança nos aspectos social e cultural pressupõem

mudanças nas práticas de linguagem, inclusive, no âmbito das práticas

educacionais, para que isso ocorra se torna necessário:

[...] o desenvolvimento prático de uma consciência linguística crítica ou uma prática de intervenção que possa contribuir para a transformação social, através da educação linguística de nossos alunos e do fortalecimento das práticas discursivas libertadoras em nossas comunidades (ALENCAR, 2009, p.18).

Nessa perspectiva, ao considerarmos a análise de discurso como

uma área bastante diversificada e com abordagens variadas, nos posicionamos

teoricamente na linha teórica proposta por Fairclough (2001) ao selecionar

abordagens que, de algum modo, combinam a análise detalhada de textos

linguísticos com uma orientação social para o discurso.

Para isso, divide os enfoques teóricos de acordo com sua orientação

social para o discurso, constituindo dois grupos com posicionamentos distintos

em relação ao mesmo objeto. Assim, distingue as abordagens não-críticas e

críticas, postulando que:

Tal divisão não é absoluta. As abordagens críticas diferem das abordagens nao-críticas não apenas na descrição das práticas discursivas, mas também ao mostrarem como o discurso é moldado por relações de poder e ideologias e os efeitos construtivos que o discurso exerce sobre as identidades sociais, as relações sociais e os sistemas de conhecimento e crença, nenhum dos quais e normalmente aparente para os participantes do discurso. As

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abordagens que classifiquei como basicamente nao-críticas são: os pressupostos para a descrição do discurso de sala de aula, de Sinclair e Coulthard (1975); o trabalho etnometodológico da ‘analise da conversação’; o modelo de discurso terapêutico de Labov e Fanshel (1977); e uma abordagem recente da analise de discurso desenvolvida pelos psicólogos sociais Potter e Wetherell (1987). As abordagens críticas que incluí são: a ‘linguística crítica’, de Fowler et al. (1979), e a abordagem francesa da analise de discurso desenvolvida com base na teoria de ideologia de Althusser por Pecheux (Pecheux, 1982) (FAIRCLOUGH, 2001, p.31-32).

Salienta-se que não será realizado um panorama das abordagens

não-críticas e críticas citadas a priori porque o presente estudo adota um

enfoque teórico construído a partir das questões-chave retiradas das diversas

possibilidades da análise de discurso inerentes às duas abordagens, trata-se

de uma nova e mais completa possibilidade de análise de discurso numa

perspectiva crítica proposta por Norman Fairclough, pois configura-se como a

construção de uma síntese de concepções de discurso social e

linguisticamente orientadas, constituída pelas dimensões textual, discursiva e

social.

Fairclough realiza uma síntese das abordagens críticas e não-

críticas, reunindo um conjunto de afirmações que podem ser julgadas

desejáveis para uma abordagem crítica adequada à análise de discurso.

Ao final, considera que, mesmo diante do importante legado dessas

duas linhas teóricas, é necessário fortalecer a tradição de análise de discurso

por meio da adoção de pressupostos da linguagem e do discurso na teoria

social, pois o discurso contribui tanto para a reprodução como para a

transformação das sociedades. A dualidade crítica e não-crítica assumirá

importância central na perspectiva teórica tridimensional de Fairclough, daí o

presente estudo tê-la como princípio norteador.

Vale destacar que as abordagens numa perspectiva crítica

encontram seu ápice em Fairclough, que a partir da década de setenta,

desenvolveu uma forma de análise do discurso e do texto que identificava o

papel da linguagem na estruturação das relações de poder na sociedade, a

Teoria social do Discurso. Assim é preciso entender que:

Diante do fato de existirem diferentes abordagens de análises críticas da linguagem, o representante que se destaca na ADC é Norman Fairclough, a ponto de se ter convencionado chamar sua proposta teórico- metodológica, a Teoria Social do Discurso, de ADC – Análise

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de Discurso Crítica – mas vale ressaltar que os estudos em ADC não se limitam ao trabalho de Fairclough (LOPES, 2009, p. 15).

Anterior à década de setenta destacam-se dois movimentos que

consolidaram os estudos sobre a importância das mudanças sociais como

perspectiva de análise. Na Grã-Bretanha, um grupo de linguistas desenvolveu

uma “Linguística Crítica”, ao articular as teorias sobre ideologias aos estudos

do texto, tendo como contribuição o destaque dado à análise linguística, porém,

é limitada porque dá pouca ênfase nos conceitos de ideologia e poder.

Já na França, Pêcheux e Jean Dubois desenvolveram uma

abordagem da análise de discurso, tendo por base, especialmente, o trabalho

do linguista Zelling Harris e a reelaboração da teoria marxista sobre a ideologia,

feita por Althusser, que ficou conhecida como Análise do Discurso Francesa

(ADF). A abordagem em questão enfatiza a perspectiva social, relegando a

análise linguística a um segundo plano.

Ao mostrar que as lutas e as transformações de poder não

receberam a atenção necessária tanto nos estudos críticos realizados na Grã-

Bretanha quanto nos que se desenvolveram na França, Fairclough constrói

uma crítica a essas duas vertentes de abordagens de análise de discurso e

passa a considerar a linguagem em si e seu papel, no processo dialético de

constituição, manutenção ou transformação das estruturas sociais,

apresentando, assim, a sua Teoria Social do Discurso.

4.2 TEORIA SOCIAL DO DISCURSO

Após identificar várias realizações e limitações das análises teóricas

crítica e não crítica, Fairclough propõe uma concepção de discurso e um

quadro teórico para análise de discurso, no qual busca:

[...] reunir a analise de discurso orientada linguísticamente e o pensamento social e político relevante para o discurso e a linguagem, na forma de um quadro teórico que será adequado para uso na pesquisa cientifica social e, especificamente, no estudo da mudança social (FAIRCLOUGH, 2001, p.89).

Assim, Fairclough (2001) realiza uma discussão sobre o termo

discurso, em seguida, analisa o discurso num quadro tridimensional composto

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por texto, prática discursiva e prática social, e finaliza estabelecendo uma

abordagem apropriada para investigar criticamente a mudança discursiva e sua

relação com a mudança social e cultural. Esta será, também, a base para o

percurso traçado daqui por diante.

Considerando que o uso da linguagem contribui significativamente

para a constituição, reprodução e mudança da sociedade, entendemos que

propriedades do uso da linguagem como as relações entre classes, a

articulação das instituições para formação social, interferem diretamente na

estrutura social, fazendo com que o discurso seja socialmente constituído.

O termo discurso é utilizado por Fairclough (2001, p. 90)

considerando “o uso de linguagem como forma de pratica social e não como

atividade puramente individual ou reflexo de variáveis situacionais”. Isso tem

várias implicações.

Primeiro, implica ser o discurso uma forma de ação, na qual as

pessoas podem agir sobre o mundo e sobre os outros, como também um modo

de representação. Segundo, sugere uma relação dialética, entre o discurso e a

estrutura social, existindo mais geralmente tal relação entre prática social e

estrutura social.

Por outro lado, além do discurso ser um elemento de constituição,

reprodução e mudança da sociedade, ele é moldado, restringido e constituído

dentro da estrutura social. Assim, considera-se o discurso como uma entidade

socialmente constituída, fazendo com que a formação discursiva de objetos,

sujeitos e conceitos adquira importância ao reconhecer que:

O discurso contribui para a constituição de todas as dimensões da estrutura social que, direta ou indiretamente, o moldam e o restringem: suas próprias normas e convenções, como também relações, identidades e instituições que lhe são subjacentes. O discurso é uma prática, não apenas de representação do mundo, mas de significação do mundo, constituindo e construindo o mundo em significado (FAIRCLOUGH, 2001, p.91)

A partir desses pressupostos, distinguem-se três aspectos dos

efeitos construtivos do discurso: em primeiro lugar, coopera para a construção

do que variavelmente é referido como identidades sociais e posições de sujeito

para os sujeitos sociais e os tipos de eu; em segundo lugar, o discurso contribui

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para construir as relações sociais entre as pessoas; por fim, o discurso

colabora para a construção de conhecimento e crença.

Esses aspectos coexistem em todo discurso, possibilitando que as

relações entre discurso e estrutura social sejam consideradas como dialéticas,

e correspondam respectivamente a três funções da linguagem identitária,

relacional e ideacional, as quais são significadas considerando que:

A função identitária relaciona-se aos modos pelos quais as identidades sociais são estabelecidas no discurso, a função relacional a como as relações sociais entre os participantes do discurso são representadas e negociadas, a função ideacional aos modos pelos quais os textos significam o mundo e seus processos, entidades e relatos (FAIRCLOUGH, 2001, p.92).

O percurso e as mudanças teóricas sofridos por essas funções será

melhor discutido ao abordarmos a construção dos significados em substituição

às funções. Por enquanto, basta considerarmos a relação entre discurso e

estrutura social como dialética e entender que a constituição discursiva da

sociedade não surge de uma atividade idealista, realizada na mente dos

falantes, mas de uma prática social que está firmemente enraizada em

estruturas sociais materiais, concretas orientando-se para elas.

Sabendo que em uma perspectiva dialética a prática social possui

diversas orientações – econômica, política, cultural, ideológica – mas é o

discurso como prática política e ideológica que norteia este estudo, uma vez

que:

O discurso como prática política estabelece, mantém e transforma as relações de poder e as entidades coletivas (classes, blocos, comunidades, grupos) entre as quais existem relações de poder. O discurso como prática ideológica constitui, naturaliza, mantém e transforma os significados do mundo de posições diversas nas relações de poder (FAIRCLOUGH, 2001, p.94).

Assim, ao considerar que a ideologia são os significados construídos

nas relações de poder como dimensão do exercício do poder e da luta pelo

poder, enfatizamos que a prática política e ideológica são interdependentes.

Isso faz com que os discursos precisem ser analisados nas práticas

discursivas, pois elas os compreendem em três dimensões: discurso como

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texto, discurso como prática discursiva, discurso como prática social. A referida

concepção de discurso é representada da seguinte maneira:

Figura 1 - Concepção tridimensional de discurso

Fonte: FAIRCLOUGH (2001, p. 101).

Ao remeter-se ao discurso como texto, o autor citado a priori

defende que a análise textual deve estar voltada para o vocabulário, o qual

pode ser considerado e analisado de diversas maneiras.

A língua não pode ser concebida numa perspectiva reducionista, em

que o vocabulário válido seja somente aquele encontrado no dicionário, uma

vez que na prática discursiva há uma variedade de vocabulários concorrendo

entre si, e cada vocabulário representa domínios sociais específicos.

Adotando essa concepção de língua, torna-se mais coerente falar

em lexicalização e significação do que em vocabulário, pois tais termos indicam

a constituição de sentidos que ocorrem diferentemente em tempos e épocas

por grupos distintos. Diante disso, é preciso entender que:

Um foco de análise recai sobre as lexicalizações alternativas e sua significância política e ideológica, sobre questões, tais como a ‘relexicalização’ dos domínios da experiência como parte de lutas sociais e políticas, ou como certos domínios são mais intensivamente lexicalizados do que outros. Outro foco é o sentido da palavra, particularmente como os sentidos das palavras entram em disputa dentro de lutas mais amplas. Um terceiro foco recai sobre a metáfora, sobre a implicação política e ideológica de metáforas particulares e sobre o conflito entre metáforas alternativas (FAIRCLOUGH, 2001, p.105).

A análise textual, ao considerar o vocabulário, deve focar também no

sentido da palavra, pois os sentidos construídos para as palavras entram em

disputas, fazendo com que as formas de hegemonia se configurem a partir das

relações entre palavras e das relações entre os sentidos. O terceiro foco é

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referente à metáfora, considerando sua implicação política ideológica e seus

aspectos conflitivos.

Além do vocabulário, outro fator relevante é a estrutura textual, a

qual ao referir-se à arquitetura do texto trata, especificamente, da maneira

como se planeja a escritura dos diferentes tipos de textos. Ao planejar o que

será escrito é que se decidem as maneiras e a ordem, configurando então a

estrutura através de elementos linguísticos, gerando diversos tipos de textos

para atender objetivos específicos.

Fairclough (2001, p.106) defende, ainda, que “tais convenções de

estruturação podem ampliar a percepção dos sistemas de conhecimento e

crença e dos pressupostos sobre as relações sociais e as identidades sociais

que estão embutidos nas convenções dos tipos de texto”.

Já o discurso como prática discursiva considera os processos de

produção, distribuição e consumo textual. Como os textos são produzidos de

maneiras particulares em contextos sociais específicos, a natureza dos

processos entre diferentes tipos de discursos, de acordo com fatores sociais, é

variável.

Na abordagem crítica, o conceito de produtor de texto é concebido

como um conjunto de posições que pode ser ocupado pela mesma pessoa ou

por pessoas diferentes, o que dificulta estabelecer tal conceito. Goffman (apud

FAIRCLOUGH 2001, p.107), “sugere uma distinção entre ‘animador(a)’, a

pessoa que realmente realiza os sons ou as marcas no papel; ‘autor(a)’,

aquele(a) que reúne as palavras e é responsável pelo texto; e ‘principal’,

aquele(a) cuja posição é representada pelas palavras”.

Partindo do pressuposto defendido por Fairclough (2001) de que não

se leem receitas como textos estéticos ou artigos acadêmicos como textos

retóricos, embora ambos os tipos de leitura sejam possíveis, entende-se que a

Teoria Social do Discurso considera que os textos são consumidos de acordo

com os contextos sociais em que eles forem explorados, ou seja, a partir do

tipo de trabalho interpretativo que neles se aplica e com os modos de

interpretação disponíveis.

Fica claro que não se leem receitas como textos estéticos ou artigos

acadêmicos como textos retóricos, embora ambos os tipos de leitura sejam

possíveis. E, como as instituições possuem rotinas específicas para o

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processamento de textos, tanto o consumo como a produção pode ser

individual ou coletivo.

Os processos de produção, distribuição e consumo são variáveis

porque alguns textos são registrados, outros não são, há os que são

transformados em outros textos e, além disso, os textos apresentam resultados

variáveis de natureza extradiscursiva, como também discursiva. “Alguns textos

conduzem a guerras ou à destruição de armas nucleares; outros levam as

pessoas a perder o emprego ou a obtê-lo; outros ainda modificam as atitudes,

as crenças ou as práticas das pessoas” (FAIRCLOUGH, 2001 p.108).

Sabendo que há dimensões sóciocognitivas específicas de produção

e interpretação textual, entende-se, segundo Fairclough (2001), que os

processos de produção e interpretação são socialmente restringidos num

sentido duplo:

Primeiro, pelos recursos disponíveis dos membros, que são estruturas sociais efetivamente interiorizadas, normas e convenções, como também ordens de discurso e convenções para a produção, a distribuição e o consumo de textos do tipo já referido e que foram constituídos mediante a prática e a luta social passada. Segundo, pela natureza específica da prática social da qual fazem parte, que determina os elementos dos recursos dos membros a que se recorre e como (de maneira normativa. criativa, aquiescente ou opositiva) a eles se recorre (FAIRCLOUGH 2001, p.109).

Isso implica que, necessariamente, tanto o efeito de uma produção

quanto o de uma interpretação textual será sempre dependente do contexto

situacional cujo texto está inserido.

Dentre as sete dimensões de análise acerca da prática discursiva –

lexicalização, sentido da palavra, metáfora, coesão, força, coerência,

intertextualidade – merece destaque a intertextualidade, por ser “[...]

basicamente a propriedade que tem os textos de ser cheios de fragmentos de

outros textos, que podem ser delimitados explicitamente ou mesclados e que o

texto pode assimilar, contradizer, ecoar ironicamente, e assim por diante”.

(FAIRCLOUGH 2001, p.114).

A partir dessa propriedade inerente aos textos, o referido autor faz

uma distinção entre ‘intertextualidade manifesta’, em que, no próprio texto, se

recorre a outros textos específicos, elucidando a presença de diversas vozes,

de maneira que a constituição heterogênea de textos ocorre por meio de outros

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textos específicos, e a ‘interdiscursividade’ ou ‘intertextualidade discursiva’, na

qual a intertextualidade é tratada a partir do primado da ordem de discurso,

aqui, a constituição heterogênea de textos ocorre por meio de tipos de

convenção das ordens de discurso.

Ao tratar do discurso como prática social, Fairclough (2001) explica

aspectos relevantes da terceira dimensão da sua teoria tridimensional. Para

isso, discute o conceito de discurso em relação à ideologia e ao poder e situa o

discurso em uma concepção de poder como hegemonia e em uma concepção

da evolução das relações de poder como luta hegemônica.

Ao discutir sobre a ideologia como um importante conceito para a

constituição de um campo interdisciplinar para a Análise de Discurso Crítica,

Fairclough (2001) reconhece na leitura que Althusser fez de Marx as bases

teóricas para o debate. Para isso, parte de três asserções sobre ideologia.

Na primeira, ele afirma que a ideologia tem existência material nas

práticas institucionais, abrindo caminho para investigar as práticas discursivas

como formas materiais de ideologia.

Na segunda, defende que a ideologia ‘interpela os sujeitos’, que

conduz à concepção de que um dos mais significativos ‘efeitos ideológicos’ é a

constituição dos sujeitos.

Por último, preconiza que os ‘aparelhos ideológicos de estado’

(instituições tais como a educação ou a mídia) são locais e limites

delimitadores na luta de classe e que apontam para a luta no discurso e

subjacente a ele como um ponto de convergência para uma análise de discurso

orientada ideologicamente. Diante disso, defende-se que:

[...] as ideologias são significações/construções da realidade (o mundo físico, as relações sociais, as identidades sociais) que são construídas em várias dimensões das formas/sentidos das práticas discursivas e que contribuem para a produção, a reprodução ou a transformação das relações de dominação. [...] As ideologias embutidas nas práticas discursivas são muito eficazes quando se tornam naturalizadas e atingem o status de ‘senso comum’; mas essa propriedade estável e estabelecida das ideologias não deve ser muito enfatizada, porque minha referência a ‘transformação’ aponta a luta ideológica como dimensão da prática discursiva, uma luta para remoldar as práticas discursivas e as ideologias nelas construídas no contexto da reestruturação ou da transformação das relações de dominação. Quando são encontradas práticas discursivas contrastantes em um domínio particular ou instituições, há

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probabilidade de que parte desse contraste seja ideológica (FAIRCLOUGH, 2001, p.117).

Diante disso, considera-se que a ideologia investe a linguagem de

várias maneiras e em vários níveis, constituindo-se tanto como uma

propriedade de estruturas quanto uma propriedade de eventos, ou seja, ela

está localizada nas ordens de discurso e nos eventos quando esses

reproduzem e transformam as estruturas condicionadoras.

Perceber esse fenômeno numa perspectiva dialética privilegiando o

aspecto da transformação ideológica e não a da reprodução constitui-se como

a base da Análise Crítica de Discurso.

Neste trabalho, a ideologia é entendida como “uma orientação

acumulada e naturalizada que é construída nas normas e nas convenções,

como também um trabalho atual de naturalização e desnaturalização de tais

orientações nos eventos discursivos.” (FAIRCLOUGH, 2001, p.119). Isso faz

com que os aspectos ou níveis do texto e do discurso, que podem ser

investidos ideologicamente, sejam entendidos como questões essenciais

acerca da ideologia, de maneira que:

Não se deve pressupor que as pessoas tem consciência das dimensões ideológicas de sua própria prática. As ideologias construídas nas convenções podem ser mais ou menos naturalizadas e automatizadas. E as pessoas podem achar difícil compreender que suas práticas normais poderiam ter investimentos ideológicos específicos. Mesmo quando nossa prática pode ser interpretada como de resistência, contribuindo para a mudança ideológica, não estamos necessariamente conscientes dos detalhes de sua significação ideológica. Essa é uma razão para se defender uma modalidade de educação linguística que enfatize a consciência crítica dos processos ideológicos no discurso, para que as pessoas possam tornar-se mais conscientes de sua própria prática e mais críticas dos discursos investidos ideologicamente a que são submetidas (FAIRCLOUGH, 2001, p. 120).

Mesmo sendo posicionados ideologicamente, os sujeitos são

capazes de agir criativamente por meio da realização das suas próprias

conexões entre as diversas práticas e ideologias a que são expostos e de

reestruturar as práticas e as estruturas posicionadoras, configurando um

processo dialético entre as práticas e as ideologias.

Em se tratando das práticas discursivas esse processo se torna mais

dinâmico e diverso, uma vez que a linguagem, materializada nos discursos, é

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algo vivo, e ao mesmo tempo que transforma a sociedade, é, também,

transformada por ela. Assim, as práticas discursivas são investidas

ideologicamente à medida que incorporam significações que contribuem para

manter ou reestruturar as relações de poder.

Fairclough (2001, p. 121) postula que “[...] nem todo discurso é

irremediavelmente ideológico. As ideologias surgem nas sociedades

caracterizadas por relações de dominação com base na classe, no gênero

social, no grupo cultural”.

A constituição de um campo interdisciplinas para a Análise de

Discurso Crítica, também recebe contribuições das discussões acerca do

conceito de hegemonia. Considerando os pressupostos de Gramsci, Fairclough

(2001) preconiza a existência de uma harmonização entre o conceito de

hegemonia e a concepção de discurso que defende.

É por meio do conceito de hegemonia que se constrói um modo de

teorização da mudança em relação à evolução das relações de poder com foco

tanto na mudança discursiva como em processos mais amplos de mudança.

Considerando a hegemonia como “a construção de alianças e a

integração muito mais do que simplesmente a dominação de classes

subalternas, mediante concessões ou meios ideológicos para ganhar seu

consentimento” (FAIRCLOUGH 2001, p.122), entendemos que ela se configura

por meio dos processos de liderança e de dominação nos diversos campos

sociais, sendo muito mais do que a dominação de classes subalternas, é um

foco de constante luta sobre pontos de maior instabilidade entre classes e

blocos para construir, manter ou romper alianças e relações de dominação

materializadas por meios econômicos, políticos e ideológicos.

Vale ressaltar que ideologia refere-se a uma concepção do mundo, e

aparece implícita nas instituições sociais – sindicatos, famílias, escolas,

movimentos sociais, tribunais de justiça, conselhos – servindo de sustentáculo

para as lutas hegemônicas, a qual não se concretiza só por meio das classes

ou organizações da sociedade, mas por meio dos movimentos cotidianos da

vida dos indivíduos.

Em um viés dialético, determinados discursos sustentam a luta

hegemônica e a própria hegemonia passa a sustentar os discursos. Nesse

processo, a hegemonia é uma das formas de poder na sociedade

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contemporânea, pois além dela temos formas de dominação que se dão por

meio da imposição de regras, normas e convenções, fornece tanto um modelo

como uma matriz.

Tomando como exemplo a educação, base para a constituição do

objeto da presente pesquisa fica visível a constituição de um modelo ao

destacar que:

[...] os grupos dominantes também parecem exercer poder mediante a constituição de alianças, integrando e não simplesmente dominando os grupos subalternos, ganhando seu consentimento, obtendo um equilíbrio precário que pode ser enfraquecido por outros grupos, e fazem isso em parte por meio do discurso e mediante a constituição de ordens discursivas locais. Fornece uma matriz: a obtenção de hegemonia em um nível societário requer um grau de integração de instituições locais e semi-autônomas e de relações de poder, de tal modo que as últimas sejam parcialmente moldadas por relações hegemônicas e lutas locais possam ser interpretadas como lutas hegemônicas (FAIRCLOUGH, 2001, p. 125).

Em se tratando do quadro tridimensional para análise de discurso,

entendemos que o conceito de hegemonia fornece para o discurso um modelo

e uma matriz. O primeiro é uma forma de analisar a prática discursiva como um

modo de luta hegemônica, o segundo é uma maneira de analisar a prática

social a qual pertence o discurso em termos de relação de poder.

É através da categoria hegemonia que os analistas do discurso

podem analisar se as relações de poder reproduzem, reestruturam ou desafiam

as ordens de discurso existente.

Isso faz com que ganhe ênfase na Análise de Discurso proposta por

Fairclough a mudança discursiva, a qual se configura como a base para a

mudança social e a cultural. O funcionamento do discurso se dá na vida social,

isso faz com que se torne necessário entender como ocorrem os processos de

mudança nos eventos discursivos e também a maneira como os processos de

rearticulação afetam as ordens de discurso.

Considerando o evento discursivo, entendemos que a mudança está

relacionada à problematização das convenções para os produtores ou

interpretes. Ela se materializa nas dimensões textual, discursiva e social, de

maneira que o foco nas mudanças textual e discursiva pode trazer

contribuições significativas aos atuais debates sobre mudança social.

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Assim, estudar as dimensões discursivas por meio da integração de

perspectivas variadas como Fairclough propõe com seu modelo tridimensional,

constitui-se até o momento como o caminho mais completo para

compreendermos as mudanças sociais e culturais.

4.3 ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA

A Análise de Discurso Crítica se constitui em uma abordagem

teórico-metodológica propícia para estudar a linguagem na contemporaneidade

porque se configura por meio do enfoque transdisciplinar5 e multidisciplinar6.

A linguagem, em um processo dialético, é concebida como parte

constitutiva da vida social, isso faz com que as práticas linguísticas possam ser

estudadas nas diversas práticas da vida social. Diante disso, a linguagem

passa a ser concebida como um espaço de luta hegemônica e as estruturas

linguísticas são usadas como modo de ação sobre o mundo e sobre as

pessoas, pois agimos sobre o outro por meio da linguagem. Ramalho e

Resende (2011, p. 19) afirmam que:

[...] a compreensão do discurso como parte das práticas sociais jamais poderia ter surgido dentro das fronteiras da Linguística, sem apropriação de conceitos e teorias oriundas das ciências sociais. É por isso que o próprio surgimento da ADC nos estudos de linguagem só pode ser compreendido com base em diálogos interdisciplinares.

Através do discurso, podemos intervir ou reproduzir, modificar ou

sustentar as maneiras cristalizadas de ação e interação, pois o discurso,

possuindo uma face linguística e outra social, torna-se uma entidade dialética

moldada pela estrutura social e constitutiva da estrutura social.

A partir desse posicionamento teórico e considerando que a Teoria

Social do Discurso se orienta linguísticamente pela Linguística Sistêmica

Funcional (LSF) de Halliday, Fairclough (2003) propõe a recontextualização da

LSF.

O teórico promove uma operacionalização das macrofunções de

Halliday (1991) para dar origem aos três tipos de significados – acional,

5 Integração global de várias ciências.

6 Justaposição de disciplinas diversas sem aparente relação entre elas.

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representacional, identificacional – sugeridos em substituição às funções da

linguagem - ideacional, interpessoal e textual. Assim, a LSF é:

[...] uma teoria da linguagem que se coaduna com a ADC, porque aborda a linguagem como um sistema aberto, atentando para uma visão dialética que percebe os textos não só como estruturados no sistema mas também potencialmente inovadores do sistema [...] (RESENDE e RAMALHO, 2006, p.56).

Em consonância com Resende e Ramalho (2006, p.57), entendemos

que a função ideacional da linguagem é sua função de representação da

experiência, um modo de refletir aspectos do real na língua. Já a função

interpessoal se refere ao significado do ponto de vista de sua função no

processo de interação social, tendo a língua como ação. Por fim, a função

textual, na qual aspectos semânticos, gramaticais, estruturais devem ser

analisados no texto com vistas ao fator funcional.

Como todo enunciado é multifuncional em sua totalidade, servindo a

diversas funções, as três macrofunções são inter-relacionadas, tornando

necessário que os textos sejam analisados sob cada um desses aspectos.

A constituição de uma perspectiva multifuncional para analisar a

linguagem coadunando a LSF e a ADC, constitui-se de maneira processual,

pois até chegar aos padrões de análises que adotamos neste trabalho algumas

mudanças foram efetivadas.

Em 1992, na obra Discourse and Social Change, Fairclough, a partir

das funções da linguagem construídas por Halliday – ideacional, interpessoal,

textual – propõe a divisão da função interpessoal em identitária e relacional.

Utilizando seu próprio modelo de recontextualização da LSF na ADC

sistematizado em 1992 – função ideacional, função identitária, função

relacional, função textual – Fairclough (2003) sugeri a utilização de significados

em detrimento das funções. Nesse novo quadro teórico a função ideacional

passa a constituir o significado representacional; a função identitária constitui o

significado identificacional; já as funções relacional e textual passarão a

constituir o significado acional.

Considerando que para a análise de discurso se constituir em um

viés crítico se torna necessária uma abordagem que envolva o macro e o

micro, apreendemos que:

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[...] a análise de discurso deve ser simultaneamente à análise de como os três tipos de significado são realizados em traços linguísticos dos textos e da conexão entre o evento social e práticas sociais, verificando-se quais gêneros, discursos e estilos são utilizados e como são articulados nos textos (RESENDE e RAMALHO, 2006, p.61).

Por meio do caráter multifuncional dos três significados, o discurso

passa a figurar de três principais maneiras como parte constitutiva das práticas

sociais, na relação entre textos e eventos. Isso configura um modo de agir, de

pensar e de ser, fazendo com que a cada um desses modos de interação entre

discurso e prática social corresponda um tipo de significado – acional,

representacional, identificacional.

Destarte, a Análise de Discurso Crítica pautada no modelo

tridimensional de Fairclough pressupõe a operacionalização dos três

significados, fazendo com que a análise se torne uma espécie de elo entre o

texto em si e o seu contexto social.

Ao consolidar o processo, entendemos como os três tipos de

significados são verificados em traços linguísticos dos textos e como ocorre a

ligação entre evento social e práticas sociais, podendo, assim, compreender

quais gêneros, discursos e estilos são articulados nos textos. Por isso,

passemos a abordagem de cada significado.

Inicialmente, damos ênfase ao significado acional, o qual tem como

foco o texto materializado nos gêneros textuais ou discursivos. Aqui, a

manifestação dos textos se dá por um viés interativo nos diversos eventos

sociais.

A linguagem é concebida como um momento de práticas sociais

dialeticamente ligadas aos demais momentos dessas práticas, nas quais as

ordens de discurso tem um lugar reservado. A linguagem e suas variações são

organizadas socialmente através das ordens de discurso, de maneira que cada

prática social envolvendo a linguagem produz e utiliza gêneros discursivos

particulares, articulando estilos e discursos de maneira relativamente estável

num determinado contexto sócio-histórico e cultural.

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Textos analisados em eventos sociais, considerando as formas de

ação e interação são entidades empíricas denominadas gêneros discursivos.

Diante disso, torna-se importante entendermos que:

Quando se analisa um texto em termos de gênero, o objetivo é examinar como o texto figura na (inter)ação social e como contribui para ela em eventos sociais concretos. Gêneros específicos são definidos pelas práticas sociais a eles relacionadas e pelas maneiras como tais práticas são articuladas, de tal modo que mudanças articulatórias em práticas sociais incluem mudanças nas formas de ação e interação, ou seja, nos gêneros discursivos, e a mudança genérica frequentemente ocorre pela recombinação de gêneros preexistentes (RESENDE e RAMALHO, 2006, p.62).

Em consonância com os pressupostos teóricos defendidos por

Resende e Ramalho (2006), entendemos que há diversas variações nas

propriedades de gênero.

A primeira é a diferença na escala de atuação, pois, existem gêneros

que atuam na escala local e outros que atuam em escala global; a segunda

refere-se ao grau de estabilização e homogeneização, o que faz com que

determinados gêneros tenham padrões composicionais rigorosos e outros

tenham esses padrões mais flexíveis; a terceira está relacionada com os níveis

de abstração, possibilitando a diferenciação entre os pré-gêneros e os gêneros

situados.

Essa diversidade de variações nas propriedades de gênero faz com

que a estrutura genérica seja uma das principais categorias de análise próprias

do significado acional. Além dessa categoria analítica relacionada a maneiras

de agir discursivamente em práticas sociais, destacamos também a

intertextualidade, pois nos possibilita analisar as vozes que estão incluídas ou

excluídas dos textos analisados.

Na visão de Resende e Ramalho (2006, p.65), a intertextualidade

pode ser entendida como “[...] a combinação da voz de quem pronuncia um

enunciado com outras vozes que lhe são articuladas”. Assim, concordamos

que:

Uma questão inicial no estudo da intertextualidade em um texto é a verificação de quais vozes são incluídas e quais são excluídas, isto é, que ausências significativas podem ser observadas. Em seguida, analisando-se sua presença, é interessante examinar a relação que se estabelece entre as vozes articuladas. Quando uma voz ‘externa’ é

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articulada em um texto, tem-se (pelo menos) duas vozes que podem representar duas diferentes perspectivas, com seus respectivos interesses, objetivos etc. A relação entre essas vozes pode ser harmônica, de cooperação, ou pode haver tensão entre o texto que relata e o texto relatado (RESENDE E RAMALHO, 2006, p. 65-66).

A inclusão ou exclusão de vozes em um determinado texto denota

questões de poder, coadunando, muitas vezes, com aspectos inerentes à

hegemonia e a ideologias, discutidos anteriormente como conceitos

imprescindíveis para a constituição de um campo interdisciplinar para a Análise

de Discurso Crítica.

Aliado a isso, temos o fato de que a representação do discurso não

se constitui como uma mera questão gramatical. É preciso ir muito além da

identificação dos discursos como direto ou indireto. Trata-se de um processo

ideológico que envolve questões hegemônicas e contra-hegemônicas,

considerando sua relevância ao se propor realizar análise de discurso numa

vertente crítica. Diante disso, percebemos que:

Analisar em textos quais vozes são representadas em discurso direto, quais são representadas em discurso indireto e quais as consequências disso para a valorização ou depreciação do que foi dito e daqueles(as) que pronunciaram os discursos relatados no texto pode lançar luz sobre questões de poder no uso da linguagem (RESENDE E RAMALHO, 2006, p.67).

Ao considerar os estudos de Bakhtin (2002), encontramos como

destaque os aspectos dialógico e polifônico da linguagem. Tais fatores

contribuem para análise da intertextualidade porque todo texto participa de uma

cadeia dialógica respondendo sempre a outros textos e todo discurso presente

nos textos se constitui por meio da articulação das diversas vozes.

Vale salientar que a presença de várias vozes em um texto não

garante a presença das vozes das minorias subalternas, o que faz com que

seja necessário uma análise consistente envolvendo aspectos macro e micro,

ou seja, linguístico e social, pois um texto, ao materializar determinados

discursos torna-se um espaço de disputa pela hegemonia de determinadas

ideologias em detrimento de outras, passando a ser um lócus de agência. Isso

faz com que ganhe relevância as análises que demonstrem de quem são as

vozes que prevalecem nos gêneros discursivos estudados.

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Para esse fim, torna-se necessário observarmos as escolhas

linguísticas feitas pelo locutor para representar o discurso do outro, analisando

seu grau de engajamento com o que anuncia e se ele concorda, discorda ou

polemiza com os atos de fala presente nas práticas discursivas submetidas à

análise, pois, os gêneros são formas de agência nos diversos contextos sociais

e culturais.

Considerando que os discursos representam pontos de vistas

distintos, pois podemos significar o mundo de maneira diversa,

compreendemos, baseados em Fairclough (2003), que o significado

representacional de textos se relaciona ao conceito de discurso como modo de

reprodução de aspectos do mundo.

Nesse significado, há uma ênfase na representação dos aspectos –

físico, mental e social – por meio dos textos. Isso faz com que diferentes

discursos sejam vistos como diferentes relações que os sujeitos estabelecem

com o mundo, as quais serão constituídas considerando a posição das

pessoas no mundo e as relações que estabelecem com as outras.

Mais do que representar o mundo, os discursos constituem o mundo,

fazendo com que os projetos de mudança da realidade estejam ancorados em

perspectivas particulares. Em um processo dialético, “[...] os discursos

constituem parte do recurso utilizado por atores sociais para se relacionarem,

cooperando, competindo, dominando” (RESENDE E RAMALHO, 2006, p.71).

As relações estabelecidas entre os discursos podem ser de diversos

tipos, de maneira que os discursos, materializados em gêneros discursivos

podem se complementar ou competir um com o outro, em relação de

dominação.

Ao tratar do significado acional destacamos que os gêneros

discursivos variam, da mesma maneira que agora, ao tratar do significado

representacional, enquanto um processo de nomeação situada, afirmamos

baseados em Resende e Ramalho (2006) que os discursos também variam em

estabilidade e escala.

Existem discursos que apresentam um elevado grau de

compartilhamento e repetição, podendo gerar diversas representações e

compor diversos tipos de textos. Já a atuação de um mesmo discurso pode

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variar em uma escala de representações localizadas a globais, as quais são

capazes de colonizar diversas práticas na vida social.

Com isso, um mesmo texto pode envolver diferentes discursos, e a

articulação da diferença entre eles pode se realizar de muitas maneiras,

variando entre a cooperação e a competição, o que possibilita que um mesmo

aspecto do mundo possa ser representado segundo diferentes discursos,

materializando-se em diferentes pontos de vista acerca de um mesmo objeto.

Diante do exposto, destacamos como principais categorias analíticas

para acessar o significado representacional a interdiscursividade, a

representação de atores sociais e o significado de palavra.

A interdiscursividade de um texto pode ser analisada por meio da

identificação dos discursos articulados e da maneira como são articulados. A

identificação pode ser de que partes do mundo são representadas e a

perspectiva particular pela qual são representadas. Já as maneiras de

representação de aspectos do mundo podem ser especificadas por meio de

traços linguísticos, sendo que o mais evidente é o vocabulário ou o léxico.

A representação de atores sociais se materializa, segundo Resende

e Ramalho (2006) pelo fato de que determinados atores podem ter sua agência

ofuscada ou enfatizada em representações sociais. Assim, as maneiras como

os atores sociais são representados em textos podem indicar posicionamentos

ideológicos em relação a eles e a suas atividades.

O significado de palavras é uma categoria que está centrada no fato

de que os sentidos das palavras entram em disputa dentro de lutas mais

amplas, de maneira que “as estruturações particulares das relações entre os

sentidos de uma palavra são formas de hegemonia” (FAIRCLOUGH, 2001,

p.105).

Com isso, entendemos que os significados das palavras e a

lexicalização de significados são construções sociais, passíveis de contestação

no seio da própria sociedade, assim o processo de nomeação se configura

como um ato eminentemente político, uma vez que “[...] os nomes não passam

de meras ‘etiquetas’ identificadoras de objetos, é preciso pensar além da

semântica dos nomes próprios para encarar o fenômeno de nomeação como

um ato eminentemente político” (RAJAGOPALAN, 2003, p.82).

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Diante disso, torna-se pertinente realizarmos uma identificação dos

significados das palavras libertação/emancipação para os educandos e

educandas, educadores e educadoras do Projovem Campo – Saberes da

Terra.

Por fim, o significado identificacional está relacionado à função

identitária, pois se refere à construção e à negociação de identidades no

discurso. Por meio do estilo, mecanismo que constitui o aspecto discursivo da

identidade, procede-se a identificação de atores sociais em textos, por isso, o

fenômeno da identificação é visto por Fairclough (2003) como um processo

dialético, no qual os discursos são sempre comprometidos com determinadas

identidades.

Considerando identidade e diferença como atos de criações

linguísticas, entendemos esses dois conceitos como mecanismos que estão

em uma relação de estreita dependência. Em consonância com esse

pensamento de Hall (2000), afirmamos que esses dois aspectos dos sujeitos

são criações do mundo social e sua produção ocorre por meio do discurso,

textos e interações.

Identidades e diferenças são processos instáveis porque se tratam

de construções simbólicas, estando, portanto, sujeitas a relações de poder e a

luta por sua redefinição. Tendo identidades e diferenças como processos que

se afirma por meio do discurso, vem a tona os conflitos de poder entre grupos

situados. A partir desse pensamento, Resende e Ramalho propõem uma

perspectiva teórica em que:

A identidade e a diferença relacionam-se, pois, às maneiras como a sociedade produz e utiliza classificações, por isso são conceitos importantes em teorias críticas, interessadas na investigação de relações de dominação – o privilégio de classificar implica o privilégio de atribuir valores aos grupos classificados. É por meio da representação que identidade e diferença ligam-se a sistemas de poder; questionar identidades e diferenças é, então, questionar os sistemas legitimados que lhes servem de suporte na atribuição de sentido. Note que essa observação ilustra a dialética entre os significados acional, representacional e ideacional. (2006, p.77).

Castells (1999, p.23) ao apontar que toda e qualquer identidade é

construída, questiona “como, a partir de que, por quem e para quê isso

acontece”. Ao considerar que a construção das identidades ocorre em

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contextos de poder o autor supracitado destaca três formas de construção da

identidade: a legitimadora, a de resistência e a de projeto, essas receberão

uma atenção detalhada na próxima subseção deste trabalho.

Resende e Ramalho (2006) afirmam que a identidade legitimadora é

introduzida por instituições dominantes a fim de legitimar sua dominação; a

identidade de resistência é construída por atores em situação desprivilegiada

na estrutura de dominação, constituindo foco de resistência; a identidade de

projeto é construída quando atores sociais buscam redefinir sua posição na

sociedade e constitui recurso para mudança social.

Há um fluxo entre esses tipos de identidades, de maneira que uma

identidade que se constrói como de resistência pode resultar em projeto e, por

meio da mudança social, construir uma identidade legitimadora. Diante disso, a

ADC passa a ter como um de seus focos analisar como se dá o embate

discursivo entre identidades.

O significado identificacional, dentre várias categorias, trata da

avaliação, da modalidade e da metáfora. Tais categorias possibilitam perceber

a construção e a negociação de identidades no discurso, evidenciando as

agências dos indivíduos e a capacidade que eles têm para impulsionar a

mudança social ou manter o atual estágio de sociabilidade.

Ao nos remetermos à categoria avaliação, destacamos, baseados

em Fairclough (2003), três propriedades discursivas que podem ser

classificadas como mecanismos avaliativos. São elas: afirmações avaliativas,

afirmações com verbos de processo mental afetivo, presunções valorativas.

As afirmações avaliativas ocorrem em torno do que é considerado

desejável ou indesejável, relevante ou irrelevante, bom ou ruim para os

falantes. De acordo com Fairclough (2003), “o elemento avaliativo de uma

afirmação pode ser um atributo, um verbo, um advérbio, ou um sinal de

exclamação”.

Já as afirmações com verbos de processo mental afetivo consideram

que as avaliações são afetivas porque são marcadas subjetivamente, isso faz

com que a afirmação seja marcada como se fosse do autor.

Em se tratando das presunções valorativas, são casos em que a

avaliação não é conduzida por marcadores relativamente transparentes, de

maneira que os valores estão mais profundamente inseridos nos textos. Para

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construir sentido e/ou significado é preciso considerar os explícitos e os

implícitos, ou seja, o que está dito e o não dito, isso faz com que parte do

trabalho de se analisar um texto esteja focada na tentativa de identificar o que

está presumido.

Baseados em Resende e Ramalho (2006), destacamos que a

modalidade se constitui em uma categoria complexa e está relacionada à

polaridade, um traço semântico essencial que se configura como a escolha

entre o positivo e o negativo, materializados na oposição é/não é.

Conforme Halliday (1985), a modalidade configura-se como as

diversas possibilidades intermediárias entre sim e não, configurando-se como

indeterminações situadas entre os polos, isso faz com que essa categoria seja

o julgamento do falante sobre as probabilidades envolvidas no que ele diz.

Outra categoria relacionada ao significado identificacional é a

metáfora, a qual, do ponto de vista discursivo consiste, segundo Lakoff e

Johnson (2002, p. 49-50 apud Resende e Ramalho, 2006, p.86), em “[...]

compreender uma coisa em termos de outra”.

Isso implica necessariamente que os conceitos são metafóricos,

estruturados no pensamento e na linguagem, de maneira que a metáfora não

nasce na linguagem, ela tem uma gênese social e cultural, a linguagem é um

mecanismo de atuação humana no qual as metáforas são refletidas.

As metáforas podem ser conceptuais, ao compreender aspectos de

um conceito em termos de outro; orientacionais, ao organizar os conceitos em

relação a uma orientação espacial baseada na experiência física e cultural;

ontológicas, ao receber do próprio corpo físico base para serem variáveis,

materializando-se como maneiras de entender eventos, atividades, emoções,

ideias, como entidades e substâncias.

Considerando que a análise de discurso crítica, em uma abordagem

mais completa, constitui-se na apreciação das três dimensões constituintes do

discurso – texto, prática discursiva, prática social – dando um foco mais

expressivo na prática social, entendemos que ao operacionalizar três tipos de

significados, Fairclough articula gênero à dimensão textual do discurso,

discurso à prática discursiva e estilo à prática social, sugerindo no lugar das

funções da linguagem três significados correspondentes à cada dimensão do

discurso: acional, representacional, identificacional.

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Na obra “Análise de discurso crítica” Resende e Ramalho (2006)

discutem esses significados possibilitando que encontremos mais detalhadas

algumas das categorias de análise. A apropriação das bases teóricas do

modelo de análise que adotamos pode ser sintetizada pelo quadro a seguir:

Quadro 1 – Das dimensões às categorias

Dimensões constituintes do

discurso

Foco Significado Categorias

Texto Gênero Acional Estrutura genérica Intertextualidade

Prática social Discurso Representacional Interdiscursividade Representação de atores sociais

Significado de palavras

Prática discursiva

Estilo Identificacional Avaliação

Modalidade Metáfora

Fonte: Construído a partir das leituras feitas de FAIRCLUGH (2001) e RESENDE E RAMALHO

(2006).

A partir do arcabouço teórico apresentado até aqui, deixamos claro

que na presente investigação as categorias de análises mais representativas

do objeto de estudo e consequentemente dos objetivos a que nos propomos,

estão divididas entre os três significados.

Como buscamos analisar as práticas educacionais em um programa

de elevação da escolaridade com foco na identidade dos moradores do campo,

delimitamos como categorias centrais a intertextualidade, a representação de

atores sociais e a avaliação, de maneira que, ao tratarmos de questões

inerentes à identidade dos moradores do campo por meio do estudo das

práticas discursivas do contexto educacional, focalizaremos a discussão no

significado identificacional, daí a necessidade de discutirmos sobre o processo

de identificação e construção identitária.

4.4 CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA ENQUANTO PROCESSO DE

IDENTIFICAÇÃO

Partindo do pressuposto de que na contemporaneidade, as questões

referentes à identidade se constituem como uma tendência em conflito que

vem moldando a sociedade, entendemos que discutir questões inerentes à

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identidade significa principalmente entender a atual conjuntura social e a

constituição dos sujeitos coletivos e individuais, os quais são constituídos pela

linguagem ao mesmo tempo em que a constituem, tornando-a o motor da

história da humanidade.

Ao discutir as identidades levando em consideração como os

moradores do campo vêm sendo significados e como significam a si mesmo,

nos ancoramos nos pressupostos teóricos defendidos por Castells para quem

identidade é:

[...] o processo de construção de significado com base em um atributo cultural, ou ainda um conjunto de atributos culturais inter-relacionados, o (s) qual (ais) prevalece (m) sobre outras fontes de significado. Para um determinado indivíduo ou ainda um ator coletivo pode haver identidades múltiplas (1999, p.22).

Ao definir identidade como a fonte de significado e experiência de

um povo o autor mostra que se trata de um processo de construção de

significado com base em aspectos culturais e não algo preestabelecido ou

determinado.

Assim, é por meio das ações cotidianas que as identidades são

legitimadas, constituem-se como formas de resistências e são

construídas/reconstruídas, e como esses processos ocorrem em contextos de

poder, torna-se imprescindível desenvolvermos um entendimento sobre a

maneira como as identidades são constituídas.

Considerando a identidade como coletiva, fruto de um construto

social e que sempre está marcadamente influenciada pelas relações de poder,

podemos destacar as três formas e origens de construção de identidades:

Identidade legitimadora: introduzida pelas instituições dominantes da sociedade no intuito de expandir e racionalizar sua dominação em relação aos atores sociais [...]. Identidade de resistência: criada por atores que se encontram em posições/condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica da dominação, construindo, assim, trincheiras de resistência e sobrevivência com base em princípios diferentes dos que permeiam as instituições da sociedade [...]. Identidade de projeto: quando os atores sociais utilizando-se de qualquer tipo de material cultural ao seu alcance, constroem uma nova identidade capaz de redefinir sua posição na sociedade e, ao fazê-lo, de buscar a transformação de toda a estrutura social (CASTELLS, 1999, p.24).

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A partir de tais considerações, concebemos identidade legitimadora

como aquela introduzida por instituições dominantes, com a intenção de

expandir seu poder de dominação. Vale ressaltar que, por ser introduzida pelo

‘outro’, em primeira instância trata-se de uma identificação legitimadora. A

mesma só passa a ser considerada identidade quando é assimilada e

internalizada pela pessoa em questão, respeitando-se, então, o conceito de

identidade como autodefinição.

Já as identidades de resistência podem ser construídas por atores

que se encontram em posições desvalorizadas ou estigmatizadas,

representando a criação de trincheiras de resistência. Esse tipo de identidade

normalmente leva à formação de comunidades de resistência coletiva.

Enquanto isso, a identidade de projeto ocorre quando atores sociais

utilizam material cultural e constroem uma nova identidade que redefine sua

posição social e promove a transformação. Vale ressaltar que as identidades

de resistência podem evoluir para identidades de projeto, embora isso nem

sempre ocorra. A identidade de projeto não apenas resiste à opressão, mas

está ligada a projetos coletivos de mudança social.

Em consonância com o pensamento do autor supracitado,

defendemos que apenas algumas poucas pessoas persistem ao longo da vida

limitadas a essas circunstâncias primárias; a capacidade de transformá-las

depende de sua reflexividade e de sua habilidade em tornarem-se agentes

incorporados, passíveis de agir coletivamente e moldar mudanças sociais.

Conquistar uma identidade social no sentido pleno seria, então, uma

questão de assumir papéis sociais e personificá-los, investindo-os com sua

própria personalidade. Ou seja, o desenvolvimento integral de agentes sociais

tem relação com o desenvolvimento integral de suas personalidades, nenhum

dos dois processos está, de antemão, garantido. Essa construção, obviamente,

está sujeita às limitações sociais.

O próprio autor, porém, reconhece que talvez essa noção de

assumir papéis não dê, por si só, conta do processo de construção interna da

identidade social, por sua complexidade e heterogeneidade. Por isso diferencia

claramente papeis sociais de identidade:

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Papeis (por exemplo, ser trabalhador, mãe, vizinho, militante socialista, sindicalista, jogador de basquete, frequentador de uma determinada igreja e fumante, ao mesmo tempo) são definidos por normas estruturadas pelas instituições e organizações da sociedade. [...] Identidades, por sua vez, constituem fontes de significado para os próprios atores, por eles originadas, e construídas por meio de um processo de individuação. [...] identidades são fontes mais importantes de significado do que papeis sociais, por causa do processo de autoconstrução e individuação que envolvem. [...] identidades organizam significados, enquanto papeis organizam funções (CASTELLS, 1999, p. 22-23).

Em consonância com esses pressupostos, Hall (2000) postula que

as identidades são construídas por meio da diferença e não fora dela; são

constituídas por meio da relação com o outro, da relação com aquilo que não é.

Segundo ele, identidade é:

[...] o ponto de sutura entre, por um lado, os discursos e as práticas que tentam nos “interpelar”, nos falar ou nos convocar para que assumamos nossos lugares como os sujeitos sociais de discursos particulares e, por outro lado, os processos que produzem subjetividades, que nos constroem como sujeitos aos quais se pode “falar”. As identidades são, pois pontos de apego temporário às posições-de-sujeito que as práticas discursivas constroem para nós. (HALL, 2000 p. 111-12)

Percebemos que a identidade não pode ser vista como algo pronto e

acabado, pois ela se forma ao longo do tempo, através de processos

inconscientes, ela não poderia ser vista como algo inato, como afirmam

algumas correntes linguísticas. A identidade, portanto, permanece sempre em

processo, sucessivamente em formação.

Fairclough (2003) utiliza o termo identificação em lugar de

identidade, porque deseja enfatizar o processo de se identificar, como as

pessoas identificam a si próprias e como identificam os outros. Podemos notar

que Fairclough difere de Castells em relação aos motivos que o levam a adotar

o termo identificação e não identidade.

Para Castells (1999), identificação é o que o ‘outro’ pensa,

identidade é o que ‘nós’ pensamos sobre nós mesmos. Fairclough não propõe

essa diferenciação. No entanto, opta pelo termo identificação, porque entende

que esse termo expressa melhor, dá mais ênfase, ao processo de construção

da identidade, tanto pelo ‘outro’ como pelo próprio sujeito.

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Tais conceitos se complementam em nossa pesquisa porque o

nosso intento é tanto saber o que o ‘outro’ (representantes do poder público,

educadores) pensa quanto o que ‘nós’ (moradores do campo) pensamos sobre

nós mesmos.

Um ponto importante salientado por Fairclough e que tem grande

impacto em nosso trabalho é que a identificação em textos é, ao mesmo

tempo, uma questão de individualidade e de coletividade, um problema que

envolve a noção de “eu” e de “nós”.

Isso nos parece bastante relevante, na medida em que nosso corpus

é constituído por discursos que alternam essas vozes: há o discurso

institucional do Projovem Campo – Saberes da Terra, o discurso dos

camponeses que fala em prol do programa e o discurso do camponês que fala

por si e de si.

Todos esses textos, retalhos de “eu” e de “nós”, caminham na

construção de uma nova identidade para os moradores do campo, mas é

preciso averiguar as construções identitárias para melhor entendermos a

realidade social que vem se constituindo no campo.

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5 CAMINHO METODOLÓGICO

Com o objetivo de evidenciar o percurso construído para esta

pesquisa passamos agora à explicação das escolhas metodológicas, às razões

que nos levaram a fazer tais opções, assim como às dificuldades que surgiram

nessa travessia, destacando as possibilidades de aprendizagem diante de tudo

isso.

Inicialmente, discorremos sobre a pesquisa qualitativa e o seu cunho

discursivo e etnográfico, ressaltamos a importância da pesquisa documental e

da etnográfica para a construção e análise do corpus. Na segunda seção,

discorremos sobre a Análise de Discurso Crítica (ADC), deixando evidente que

a mesma não é apenas um arcabouço teórico, mas uma abordagem teórico-

metodológica. Na terceira seção, a ADC coadunada com a etnografia-

discursiva, pois além de estudarmos documentos, analisamos diários

etnográficos e entrevistas transcritas como textos, ampliando a metodologia

utilizada.

5.1 PESQUISA QUALITATIVA

O caminho metodológico desta pesquisa se constituiu a partir de

reflexões sobre a natureza da problemática dos moradores do campo inseridos

em um programa de elevação da escolaridade e qualificação social e a

materialidade linguística do corpus constituído.

O corpus, de cunho documental, foi expandido com pesquisa

etnográfica, geração de dados, junto aos participantes do Projovem Campo –

Saberes da Terra. O foco da análise foi apenas em uma das turmas do

Programa, a mesma está situada na comunidade rural Jurema dos Vieiras,

Ocara – CE, é composta por 32 educandos e educandos, a faixa etária varia de

18 a 70 anos, todos são considerados moradores do campo e se reconhecem

como tal.

Escolhemos essa turma porque a coordenação do Programa e os

professores afirmaram ser uma das realidades em que mais os participantes

tem uma ligação direta com as atividades camponesas e mantinham relações

com os movimentos sociais.

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Diante disso, considerando que a presente pesquisa possui um

cunho discursivo e etnográfico, tratando das realizações do discurso em

contexto específico, postulamos que o presente texto configura-se como um

estudo em que os seres humanos e suas complexas relações sociais

materializadas em um contexto educacional dos moradores do campo são

passíveis de análises e reflexões.

Isso possibilita a afirmação de que a melhor abordagem para o que

realizamos seja, realmente, a pesquisa qualitativa, materializada por meio da

pesquisa documental e da etnografia.

Segundo a perspectiva qualitativa, um fenômeno pode ser melhor

compreendido no contexto em que ocorre e do qual é parte, devendo ser

analisado numa perspectiva integrada. Para tanto, o pesquisador vai a campo

buscando captar o fenômeno em estudo a partir da perspectiva das pessoas

nele envolvidas, considerando os pontos de vista relevantes. Isso possibilita

que a realidade social seja descrita e evidenciada a partir de dados

interpretativos.

Com vistas ao alcance dos objetivos propostos, realizamos a

abordagem supracitada por considerar a existência de uma relação dinâmica

entre o objeto da pesquisa e o contexto em que está inserido. Para Neves

(1996, p.1), um estudo qualitativo:

Compreende um conjunto de diferentes técnicas interpretativas que visam a descrever e decodificar os componentes de um sistema complexo de significados. Tem por objetivo traduzir e expressar os sentidos dos fenômenos do mundo social; trata-se de reduzir a distância entre indicador e indicado, entre teoria e dados entre contexto e ação (NEVES, 1996, p. 1).

Podemos dizer que fizemos a descrição de uma realidade, a qual foi

interpretada considerando os pressupostos teóricos, documentos e a vivência

dos colaboradores que fizeram parte do processo.

Vale ressaltar que como o estudo abordou questões referentes aos

processos de identificação e construção de identidades dos moradores do

campo a partir das práticas linguísticas educacionais, ele possui uma

intencionalidade própria e uma vertente social exigindo a abordagem

qualitativa. Segundo Minayo:

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A pesquisa qualitativa responde a questões muito particulares. Ela se preocupa, nas ciências sociais, com um nível de realidade que não pode ser quantificado. Ou seja, ela trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis (MINAYO, 1994, p. 21-22).

Nesse âmbito, tentamos evidenciar os processos de identificação e

construção de identidades dos moradores do campo a partir das práticas

linguísticas educacionais, considerando o letramento como uma interface entre

linguagem e (des)colonialidade no Projovem Campo – Saberes da Terra. O

viés qualitativo nos serve de base porque segundo Resende (2005, p.12):

A pesquisa qualitativa trata-se de uma forma de pesquisa potencialmente emancipatória, uma vez que por meio dela as ciências críticas podem identificar estruturas de poder naturalizadas em um contexto sócio-histórico definido. Por isso a pesquisa qualitativa é essencial quando se pretende focar representações de mundo, relações sociais, identidades, ideologias ligadas a um meio social.

Assim, o corpus de pesquisa, constituído pelo Projeto Base do

Projovem Campo – Saberes da Terra; as anotações da observação participante

em diário etnográfico; as entrevistas semiestruturadas7, foi

preponderantemente qualitativo.

No texto oficial considerado por nós a estrutura e também nas

anotações da observação e nas entrevistas que nos possibilitaram uma maior

aproximação com a realidade social, indo além da estrutura, selecionamos

partes em que a temática da pesquisa, ou seja, os processos de construção de

identidades dos moradores do campo foram tratados de maneira mais intensa.

5.2 A ADC COMO MÉTODO DE ANÁLISE

Em consonância com a delimitação do corpus para análise, a qual

tem como ponto de partida o Projeto Base do Projovem Campo – Saberes da

Terra 2009; seguido da observação participante, materializada no diário

7 Em alguns casos, quando os colaboradores da pesquisa não se sentiram a vontade para

gravar as entrevistas, acrescentarmos à metodologia outra técnica para evidenciar melhor a realidade: entrevistas antropológicas ou etnográficas. Essas são constituídas por uma série de conversas cordiais nas quais o pesquisador introduz novos elementos lentamente para auxiliar informantes a responderem como informantes (GUBER, 2004).

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etnográfico; complementado com as entrevistas semiestruturadas e

etnográficas, damos continuidade às considerações metodológicas partindo do

princípio de que a Análise de Discurso Crítica (ADC) não é apenas um

arcabouço teórico, mas uma abordagem teórico-metodológica.

Diante disso, optamos pela sua utilização para a análise dos

diversos elementos linguísticos e semióticos que compõem nosso corpus.

Traçamos um caminho a partir da proposta de análise realizada por Fairclough

(2001; 2003) e Chouliaraki e Fairclough (1999), pois esses teóricos consideram

a ADC como método, mostrando a possibilidade de um trabalho analítico da

rede de práticas sociais.

Em consonância com o pensamento de Fairclough (2001),

defendemos a operacionalização de teorias sociais na análise de discurso

linguisticamente orientada, com o objetivo de compor um quadro teórico

metodológico adequado à perspectiva crítica de linguagem como prática social.

Esse postulado coaduna-se com Fairclough (2003), para quem a visão

científica de crítica social justifica-se pelo fato de a ADC ser motivada a

fornecer subsídios para um questionamento crítico da vida social em termos

políticos e morais, de justiça social e de poder.

A partir das diretrizes propostas pelos linguístas citados a priori

temos um importante aparato para uma análise social do discurso composto

por cinco etapas, delineadas na tabela a seguir:

Quadro 2 - Enquadre metodológico da ADC

Enquadre metodológico

I. Um problema (de atividade ou de reflexividade).

II. Obstáculos a serem enfrentados:

Análise da conjuntura;

Análise da prática particular ou das práticas;

Análise do discurso

III. Função do problema na prática.

IV. Possíveis maneiras de ultrapassar os obstáculos.

V. Reflexão acerca da análise.

Fonte: CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH (1999, p.60)

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Está bastante claro que na primeira etapa proposta pelo enquadre

da ADC, devemos identificar o problema relacionado ao discurso, que pode

estar localizado na prática social ou na construção reflexiva da prática em

questão.

Na presente pesquisa, o problema norteador refere-se à constituição

de identidades discursivas para os moradores do campo, no âmbito do

Projovem Campo – Saberes da Terra.

A prática social relaciona-se tanto à questão da permanência no

campo, como à intervenção do poder público nessa problemática social. Além

do projeto base do programa, analisamos tanto as falas dos educandos, como

a fala institucional do programa e as falas de outros sujeitos envolvidos como

educadores e coordenadora.

Chouliaraki e Fairclough (1999), propõem, na segunda etapa,

obstáculos a serem enfrentados, uma análise da conjuntura, da prática

particular e do discurso, a fim de esclarecer os obstáculos que devem ser

superados para resolução da problemática.

Como nosso problema de pesquisa consiste em entender uma

construção identitária, a análise da conjuntura pretende mostrar como os

discursos que queremos estudar se situam em relação a uma rede de práticas

sociais, a análise da prática particular intenciona compreender o processo de

produção, distribuição e recepção dos textos que constituem nosso corpus e a

análise do discurso constitui a análise textual propriamente dita.

Em se tratando da terceira etapa, função do problema na prática,

devemos refletir sobre o evento investigado e suas possíveis consequências

em termos sociais.

Estamos diante de um fenômeno particular, mas que possui sua

universalidade (morar no campo) e de uma ação que vem ocorrendo em

diversos países em desenvolvimento (escolarizar a população camponesa).

Por isso, nossas reflexões não serão restritas a uma determinada área

geográfica, mas sim à problemática como um todo e aos pontos em comum.

Inicialmente, analisamos a construção de identidades no Projovem

Campo – Saberes da Terra, em seguida, buscamos entender até que ponto

essa construção pode ou não contribuir para a transformação social.

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Na quarta etapa, ao focar nos possíveis modos de ultrapassar os

obstáculos, buscamos entender se o programa contribui para construção de

possíveis recursos para transformar a realidade ou se está a serviço da

manutenção do status quo.

Assim, o nosso intento com a presente pesquisa foi compreender a

situação social dos moradores do campo em processo de escolarização,

possibilitando que o discurso, ao materializar identidades e também construí-

las, seja um instrumento a serviço da superação das desigualdades e

discriminações ou, pelo menos, possa acenar caminhos possíveis para

processos de transformação.

A reflexão sobre a análise, último ponto do enquadre metodológico

da ADC, não se deteve apenas ao corpus documental detalhado nas seções

anteriores, mas foi enriquecido com a pesquisa etnográfica que realizamos com

alguns dos participantes do Projovem Campo – Saberes da Terra.

A partir da união desses dois elementos, fizemos uma analise

discursiva de acordo com a concepção tridimensional que abarca os modos de

representar, identificar e agir (FAIRCLOUGH, 2001).

Em síntese, partimos do modelo tridimensional proposto em

Fairclough (2001), no qual o discurso é constituído em três dimensões: texto,

prática social e prática discursiva. Discutimos as cinco etapas necessárias para

realizar análise de discurso presentes em Chouliaraki e Fairclough (1999), o

que norteou a estrutura da presente dissertação. Por fim, chegamos à análise

dos significados: acional, representacional e identificacional para a análise de

discurso proposto por Fairclough (2003) na releitura de Resende e Ramalho

(2006).

Na próxima subseção, detalharemos o percurso etnográfico que

realizamos. O corpus etnográfico expandiu o corpus documental, viabilizando

reflexões mais profundas e aproximadas da realidade dos moradores do

campo.

5.3 PESQUISA ETNOGRÁFICO-DISCURSIVA

O viés no qual está pautado o presente estudo parte dos

pressupostos de que a pesquisa qualitativa só é viável com o método

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etnográfico; trabalha com processos, examinando interações; analisa

experiências a partir do vivido, entrando em contato com o mundo real.

O presente estudo tem como método de análise a ADC

coadunada com a etnografia-discursiva, pois, além de estudar documentos,

analisa diários etnográficos e entrevistas transcritas como textos.

Essa integração encontra consistência porque a etnografia é

considerada um método complementar à Análise de Discurso Crítica, uma vez

que a análise textual sozinha não é capaz de esclarecer a interligação entre

textos e práticas, a ponto dos teóricos defenderem que:

Às vezes, pode ser muito difícil “reconstruir” a prática em que um discurso se localiza e ter uma noção de como o discurso figura na prática. É por isso que a pesquisa analítica do discurso deve ser vista como apenas um aspecto da pesquisa em práticas sociais e deve trabalhar junto com outros métodos, particularmente a etnografia (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999, p. 61).

Em consonância com o pensamento de Angrosino (2009, p.31), para

quem “os etnógrafos se ocupam basicamente das vidas cotidianas rotineiras

das pessoas que eles estudam”, compreendemos que os etnógrafos geram

dados que evidenciem experiências humanas vivenciadas em determinadas

comunidades com intuito de discernir padrões existentes.

O autor supracitado pontua o fazer etnográfico como sendo

constituído com as seguintes características: é baseado na pesquisa de

campo; é personalizado; é multifuncional; requer um compromisso de longo

prazo; é indutivo, dialógico e holístico.

Definindo uma metodologia específica para este trabalho,

procuramos um percurso que melhor nos possibilitasse compreender o

contexto pesquisado, dando maior rigor ao processo analítico. Assim, a

necessidade de compreender o lugar dos sujeitos está relacionada ao tipo de

pesquisa que realizamos, pois a etnografia de cunho discursivo requer que o

pesquisador vivencie o cotidiano pesquisado a fim de compreender melhor os

diversos aspectos da sociedade.

Diante disso, tivemos como estratégia central o uso da triangulação,

envolvendo o uso de diferentes fontes de métodos ou estratégias, chegando a

respostas holísticas em relação ao fenômeno estudado, no caso, selecionamos

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como estratégias etnográficas a observação participante, notas de campo e

entrevistas semiestruturadas.

Realizamos uma observação participante que durou oito meses e

entrevistas em profundidade, com as quais construímos a narrativa de vida dos

moradores do campo por meio da busca dos significados atribuídos pelos

sujeitos às suas ações e interações. Esperamos que a utilização integrada das

estratégias metodológicas, citadas a priori, tenha nos ajudado a entender as

identidades que vem sendo construídas para os moradores do campo e/ou

pelos moradores do campo.

O trabalho etnográfico foi realizado no Projovem Campo – Saberes

da Terra na comunidade de Jurema dos Vieiras, Ocara – Ceará. O referido

Programa, de acordo com Brasil (2009), tem como objetivo oferecer elevação

da escolaridade integrada à qualificação social para os jovens agricultores de

18 a 29 anos que já são alfabetizados, mas não concluíram o ensino

fundamental.

A escolha do objeto de pesquisa se deu por ser uma iniciativa

governamental a nível nacional reconhecida, e também porque se afirma em

seu Projeto Base que a constituição do Programa se deu a partir de diversas

práticas educacionais próprias dos moradores do campo.

O que propomos foi buscar a compreensão do modo pelo qual os

moradores do campo em processo de escolarização se relacionam com o

mundo, com a ordem dominante, de que forma se situam como sujeitos em um

sistema-mundo eurocentrado.

A partir daí, procuramos entender como se percebem, como se

enquadram, o que pensam de si próprios e o que pensam do mundo. Fazemos

isso conscientes de que o contato com o outro nos afetará, de tal forma que,

mais do que mostrar como eles pensam ou sentem, a pesquisa mudou a forma

como pensamos ou sentimos, promovendo uma reflexão interna e permitindo

que o saber do outro se mostre tão válido quanto o nosso.

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6 ANÁLISE DO PROJETO BASE DO PROJOVEM CAMPO – SABERES DA

TERRA, DO DIÁRIO ETNOGRÁFICO E DAS ENTREVISTAS

No presente capítulo, realizamos as análises discursivas

considerando como texto o Projeto Base, o diário etnográfico e as entrevistas.

Inicialmente, apresentamos a trajetória do objeto de pesquisa, informando

sobre o viés dado à pesquisa após aprovação no mestrado. Nas três sessões

que seguem desenvolvemos respectivamente as análises do significado

acional, do significado representacional e do significado identificacional (ver a

seção 4.3). No significado acional nos detemos à categoria intertextualidade,

no significado representacional tratamos da representação de atores sociais e

no significado identificacional, realizamos as análises com base na categoria

avaliação. É importante destacar que no decorrer da análise não nos detemos

apenas às categorias supracitadas, podendo ocorrer casos em que, teceremos

comentários sobre outros aspectos que colaborem para o sentido que está

sendo construído.

6.1 TRAJETÓRIA DO OBJETO DE PESQUISA

Quando nosso pré-projeto foi aprovado pelo Mestrado Acadêmico

Intercampi em Educação e Ensino – MAIE da Universidade Estadual do Ceará

– UECE, tínhamos como objeto de pesquisa apenas as práticas de leitura

desenvolvidas no Projovem Campo – Saberes da Terra.

Ao iniciarmos a análise dos documentos integrada à pesquisa

etnográfica, percebemos uma ligação das práticas de oralidade, leitura e

escrita com questões inerentes ao letramento. Notamos nos documentos e

práticas do programa uma atenção bastante incisiva voltada para as questões

de identidade.

Paralelo a isso, realizamos diversos estudos como participantes do

Projeto de Pesquisa – Por uma pragmática cultural: cartografias descoloniais e

gramáticas culturais em jogos de linguagem do cotidiano – os quais nos

possibilitaram aprofundar nossa compreensão acerca dos estudos

descoloniais, etnografia e questões identitárias.

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Com isso, chegamos ao entendimento de que poderíamos dar uma

contribuição mais significativa para os próprios moradores do campo, a

sociedade e o meio acadêmico se voltássemos nossa pesquisa para as

identidades (des)coloniais nas práticas de letramento do Projovem Campo –

Saberes da Terra.

De acordo com o que mencionamos em outras partes do trabalho, o

presente estudo tem um viés etnográfico-discursivo (MAGALHÃES, 2000,

p.45), pois, além do Projeto Base do Projovem Campo – Saberes da Terra,

analisamos entrevistas transcritas e os diários etnográficos como textos, visto

que o objetivo central desta pesquisa é analisar os processos de construção de

identidades dos moradores do campo a partir das práticas linguísticas

educacionais, considerando o letramento como uma interface entre linguagem

e (des)colonialidade no Projovem Campo – Saberes da Terra.

Ao iniciarmos a análise das entrevistas transcritas e dos diários

etnográficos como textos, já percebemos, dentre outras coisas, aspectos dos

possíveis discursos que estão presentes nas falas dos educandos (as) e

educadores (as), como o discurso neoliberal e o discurso do letramento numa

perspectiva ainda funcionalista.

A análise que apresentamos aqui focaliza trechos do Projeto Base

do Projovem Campo – Saberes da Terra, o qual está disponível na íntegra em

anexo; passagens do diário etnográfico; entrevistas (trechos) com educandos,

educandas, com duas educadoras e com a coordenadora do Projovem no

Ceará.

Os principais parâmetros de transcrição usados neste trabalho são

os mesmos sugeridos por Marcuschi (2003). Os sinais mais frequentes na

transcrição são estes: Pausas: (+) ou (2.5); Dúvidas e suposições: ( );

Comentários do analista (( )); Indicação de transcrição parcial ou de

eliminação: ... ou /.../.

6.2 SIGNIFICADO ACIONAL: INTERTEXTUALIDADE

Ao discutir o significado acional, Fairclough (2003) destaca o estudo

da intertextualidade como a possibilidade de articulação de várias vozes em um

texto, sendo, assim, entendida como a combinação da voz do autor com outras

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vozes que lhe são articuladas. Uma questão pertinente à análise da

intertextualidade é a investigação de como as vozes são incluídas e quais são

excluídas ou até que ponto são incluídas ou excluídas.

Vale destacar que aqui as ausências são tão significativas como as

presenças e em alguns casos nos dizem muito mais. É preciso também

analisar o sentido da exclusão quando acontecer, a fim de refletir a respeito do

tratamento dado à diferença.

Fairclough (2003) apresenta cinco cenários de maneira

esquematizada para mostrar que os aspectos intertextuais também podem ser

identificados por meio da diferença:

1. Uma abertura para, aceitação de reconhecimento de diferença; uma

exploração da diferença, como em ‘diálogo’ no sentido mais rico do

termo.

2. uma acentuação da diferença, conflito, polêmica, uma luta pelo

sentido, normas, poder;

3. uma tentativa de superar ou resolver a diferença;

4. colocar a diferença entre parênteses, um foco nos aspectos comuns,

solidariedade;

5. consenso, uma normalização e aceitação das diferenças de poder

que suprime ou coloca a diferença de sentido e normas entre

parêntese.

Passando a análise propriamente dita, destacamos que ao tratar da

organização dos tempos e espaços formativos, o Projeto Base do Projovem

Campo – Saberes da Terra, texto oficial do Ministério da Educação, ao ser

escrito de maneira impessoal, tenta construir uma ideia de generalidade, como

se as vozes sobre as identidades fossem únicas e bem definidas, sem

apresentar conflitos.

Considerando as ideias defendidas por Resende e Ramalho (2009,

p.101), para quem as “práticas sociais encerram diferentes discursos e

interesses particulares, a presença de uma voz específica, em vez de outra,

sinaliza o posicionamento do autor do texto, inserido em determinadas

conjunturas, nas lutas de poder”.

O trecho abaixo denota as aprendizagens que os espaços

formativos do programa devem desenvolver:

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Fragmento 1. Criar mecanismos que possibilitem a reconstrução da identidade pessoal: suas

histórias familiares, pessoais, suas formas de resistência ao longo de suas vidas, a construção

do sujeito de direitos. Descobrir-se como ser histórico; (p.53).

Considerando que a intertextualidade é uma questão de

recontextualização, percebemos que ao institucionalizar o objetivo em torno do

trabalho com a questão da identidade, o programa parece ter dado certa

preferência, por parte do poder público, pela representação de vozes oriundas

dos movimentos sociais. O discurso governamental, nessa parte do projeto

parece está alinhado a uma cadeia de textos que circulam com vistas a

resgatar, reafirmar ou reconstruir a identidade camponesa.

Isso fica claro quando vemos que o MST publica no Jornal dos

Trabalhadores Rurais Sem Terra (número 265, agosto, 2006) a reportagem

“Jovens do campo discutem rumos do país e apresentam pauta de

reivindicações”, na qual um dos membros do movimento, ao referir-se ao II

Congresso Nacional da Pastoral da Juventude Rural (PJR), que reuniu entre os

dias 23 e 27 de julho, em Brasília, mais de 1,5 mil jovens do campo de todo o

país, deixa claro que o evento “cumpriu a missão de resgatar a identidade

camponesa, fortalecer alianças com outras organizações e consolidar a luta por

políticas de educação e por condições que garantam a permanência dos jovens

no campo”.

No texto, no campo discursivo e nas práticas sociais, temos

vivenciado ações que tem possibilitado, até certo ponto, não só o resgate da

identidade camponesa, mas a sua reconfiguração diante dos novos desafios da

sociedade contemporânea. Por isso, precisamos distinguir a serviço de quem e

de que está esse “resgate” e essa “reconstrução”.

Assim, mesmo tratando da mesma categoria, identidade, há uma

distorção entre o que o movimento tem buscado com suas lutas e o que o

governo oferece em forma de políticas públicas, pois ao configurar o discurso

acerca da identidade em um novo contexto, percebemos uma diferença

ideológica entre o discurso do movimento e o discurso governamental, pois

enquanto a identidade camponesa é vista pelo movimento como algo coletivo a

ser resgatado, ela vai aparecer nos objetivos do tempo escola como algo

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individual e pessoal. Isso configura a materialização de ideologias, até certo

ponto, opostas nas práticas discursivas no domínio do MST e do Projovem.

Nesse sentido, identificamos que as vozes representativas do MST

e, consequentemente, de outros movimentos sociais que lutam por melhorias

no campo estão começando a constar em textos oficiais governamentais,

podemos inclusive dizer que elas estão precariamente incluídas. O que

determinará o avanço ou o retrocesso em relação aos espaços que os

camponeses vêm conquistando será a continuidade ou descontinuidade da

luta.

Assim, a ausência do vocábulo “coletivo” no objetivo dos espaços

formativos e sua substituição por “pessoal” no discurso governamental sinaliza

uma acentuação da diferença, conflito, polêmica, uma luta pelo sentido,

normas, poder. Aqui, a exclusão está presente no que concerne ao tratamento

dado à diferença, destacada no segundo cenário apresentado por Fairclough

(2003).

Podemos, ainda, recorrer às conversas com educandos que temos

registradas no diário etnográfico. Vejamos o diálogo:

Oziêlton: O que você pensa em relação à identidade de morador(a) do campo? Para você, o que é ser morador(a) do campo? Robson: Ser do campo é ser unido, sabe (+++++), é ajudar o outro quando precisa, fazer as coisa junto. /.../ as casas aqui nois fez um bucado uns ajudano o oto. Tava até dizeno que essas coisas que vem do projeto aqui (++) deviam ser mais assim pra todos sabe (+++). Eles faz aquelas coisas pra conhecer cada um e depois manda os benefício pra nois fazer no roçado, mais é cada um por si, cada um faz o qui gosta, se fosse tudo unido dava mais fruto. Acaba que num sai nada /.../. Eles pensam que tão resolvendo os problema, mas num tão não.

Aqui, cabe uma discussão a respeito da ausência do “coletivo” nas

práticas sociais desenvolvidas no Projovem e consequentemente no cotidiano

dos camponeses que estão inseridos nesse programa.

Dessa vez, a percepção se dá por aqueles que vivem a realidade, é

um educando, morador do campo que está reivindicando que a identidade seja

tratada por um viés mais coletivo, evidencia-se com isso a ausência de um

projeto comum que envolva o grupo, a individualidade mantém-se hegemônica,

contudo ações contra-hegemônicas são reivindicadas para constituir o

cotidiano, inclusive nas práticas de letramentos vivenciadas pelo grupo.

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Considerando os cinco cenários esquematizados por Fairclough

(2003) para mostrar que os aspectos intertextuais também podem ser

identificados por meio da diferença, na concepção do educando/morador do

campo, a ausência do “coletivo” nas práticas cotidianas trata-se de uma

tentativa de superar ou resolver a diferença – segundo cenário.

Os diversos pontos de vistas evidenciados nesta análise a respeito

das identidades dos moradores do campo se materializam em decorrência de

estarmos analisando práticas linguísticas situadas em determinadas práticas

sociais, possibilitando que diferentes discursos e interesses particulares

venham à tona, pois a presença de uma voz em detrimento de outra representa

sempre um posicionamento e uma escolha, e essa escolha está sempre

inserida em questões de poder.

Em síntese, o discurso oficial do governo, que se materializa no

Projeto Base do Projovem serve para sustentar o argumento de que as práticas

de ensino e consequentemente os processos de letramentos devem estar

focadas inicialmente em cada indivíduo, pois há a necessidade de recriar os

vínculos de pertença dos sujeitos ao campo. No decorrer do processo, ao longo

da vida, as ações individuais resultarão na promoção de uma “identidade

coletiva” (p.23), termo esse utilizado no projeto analisado na seção 3.2.2 que

trata da Educação do Campo, ao preconizar a educação como um processo ao

longo da vida.

Já o discurso do MST e do morador do campo, nos leva a defender

que as práticas em geral, podem focar nas identidades de cada um de uma

maneira mais específica, todavia precisam chegar a focar no coletivo, a fim de

que ações contra-hegemônicas sejam viabilizadas.

Se esse foco permanecer só no indivíduo e não houver uma

superação desse status inicial, as iniciativas continuarão sendo paliativas. O

problema não estar em focar em cada indivíduo, mas no fato das práticas não

transcenderem esse patamar.

Nesse sentido, o Projovem está sendo desenvolvido de maneira a

cumprir em parte o que se propõe a Educação do Campo reivindicada pelos

movimentos sociais. É preciso manter o que o programa faz ao recriar os

vínculos de pertença dos sujeitos ao campo, mas ir além, focando no processo

de construção de uma identidade coletiva.

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Sabemos que isso se trata de um intento que transcende a

execução de um programa, ou pelo menos a execução que acompanhamos,

pois o foco dado manteve-se nos objetivos mais específicos, não conseguindo

atingir o objetivo geral da Educação do Campo, mesmo que no projeto

analisado contemplasse a necessidade de “[...] um processo educativo que

afirme a educação como um processo ao longo da vida [...] que resulta na

promoção de uma identidade coletiva que fortalece a criação de cooperação

entre os diversos segmentos sociais [...]” (BRASIL, 1999, p.29), não

vivenciamos isso na prática observada.

No entanto, as práticas educacionais já sistematizadas e inseridas

na atual conjuntura precisam ser repensadas e ressignificadas para contribuir

ainda mais com a Educação do Campo que é direito dos camponeses e dever

do Estado.

6.3 SIGNIFICADO REPRESENTACIONAL: REPRESENTAÇÃO DE ATORES

SOCIAIS

Além de evidenciar os aspectos intertextuais, nesta análise,

destacamos com base em Resende e Ramalho (2006) que as maneiras como

os atores sociais são representados em textos podem indicar posicionamentos

ideológicos em relação a eles e a suas atividades.

Ao tratar da categoria representação de atores sociais,

compreendemos que qualquer ator social estará sempre envolvido em eventos

e práticas sociais, de maneira que as relações estabelecidas entre eles podem

ser analisadas em textos e interações.

A análise com base nessa categoria possibilita comparar ou

evidenciar diferentes representações do mesmo evento ou de eventos

semelhantes, focando, inclusive, na maneira como são representados certos

atores sociais.

A fim de realizar a análise sobre como se dá a representação das

identidades dos moradores do campo em uma prática educacional,

selecionamos alguns dos atores sociais envolvidos no Saberes da Terra, são

eles, educandos, educandas e educadora. A partir desses sujeitos,

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selecionamos algumas realizações linguísticas que atendessem a perspectiva

desse estudo.

Aspectos próprios do significado representacional podem ser

observados no trecho da entrevista a seguir, realizada com um educando do

Projovem Campo – Saberes da Terra. Identificamos como o morador do campo

vê a si mesmo e por quais discursos vem sendo influenciado:

Oziêlton: Olá (++), o que você pensa em relação à identidade de morador do campo? Para você, (+++) o que é ser morador do campo? Lúcio: eh, por exemplo, assim, nóis tem uma vida boa, sabe? Mais a gente ainda sofre, eu digo que ser do campo é ser invisível, eles só oia pra gente quando querem, agora foru lá em casa me buscar pra istudar aqui e da otra vez eu fui expulso daqui da iscola de dia. Se é pra trabaiá e ganhar pouco se nois num vai é priguiçoso, se recebe Bolsa Família é vagabundo, mais agente é mesmo é guerrero fica muitas vezes na providência de Deus. Quando tem traboio bom é só pros sabidos,que lê e iscreve direito, quem não sabe não consegui nada, e aí dizem que a culpa é da gente né que num estudou, difícil ser homem do campo hoje /.../.

De imediato, temos um desabafo, o qual denota as dificuldades

enfrentadas pelos camponeses para viverem no mundo capitalista, o qual

mantém hegemônica a ideologia de que a sociedade não é para os sujeitos,

mas que os sujeitos devem ser usados como instrumentos para suprir os

imperativos da sociedade, ou melhor, as necessidades dos grupos dominantes

que por meio da colonialidade se impõem como sendo eles mesmos a

sociedade.

Na fala “Quando tem traboio bom é só pros sabidos, que lê e iscreve

direito”, está claro a presença do discurso neoliberal de que se estudar será

possível conseguir um emprego e para melhorar de vida é preciso um esforço

individual, uma vez que se preconiza que no mundo globalizado as

oportunidades são para todos.

Podemos inferir, também, o tipo de letramento implícito nesse

discurso, ou seja está clara a perspectiva funcionalista tanto na passagem

acima como nesta: “ [...] a culpa é da gente né que num estudou”. Aqui,

aparece também o pensamento de individualidade, cada indivíduo por si só

pode conseguir aquilo que quer, quando não consegue faltou esforço pessoal,

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essa ideologia neoliberal também está introjetada na fala do homem do campo

e denota um processo de dominação, colonialidade do ser.

Em relação à representação dos atores sociais ou maneiras de

designar, o texto acima mostra que esse sujeito se vê com base no que os

outros veem dele ao nomear situações em que pode ser visto como

“preguiçoso” e “vagabundo”, mas também emite uma opinião mais subjetivada

ao se declarar “invisível” e “guerreiro”.

Como a seleção de discursos e o trabalho articulatório com eles,

internaliza-se traços da luta hegemônica, percebemos que a fala de Lúcio deixa

transparecer, dentre outros aspectos, uma visão dicotômica existente acerca

do homem do campo.

De um lado está o ponto de vista sistematizado historicamente pelas

elites capitalistas que estabelecem processos de dominação, as quais sempre

nomearam aqueles que resistem à exploração como “vagabundos” e

“preguiçosos”, do outro temos uma visão mais crítica, representativa dos

camponeses que nas práticas cotidianas, muitas vezes, são “invisíveis” e

outras são “guerreiros”.

Essa dualidade representa a dialética que vem servindo de base

para materializar o perfil dos camponeses na contemporaneidade, os mesmo

se encontram entre os aspectos que introjetaram historicamente pelas

imposições das elites com vista à manutenção das formas de opressão,

colonialidade do ser e as novas possibilidades conquistadas que estão a sua

disposição.

Não estamos atestando que receber o Bolsa Família, por si só, seja

um processo de descolonialidade, mas que o fato desses sujeitos excluídos ou

precariamente incluídos terem as condições materiais que lhes dê a opção de

refletir e escolher é um passo importante na sentido de sair da consciência

transitiva e passas para a consciência crítica (FREIRE, 1997).

Um dos pontos de vista apresentados por Lúcio reforça os

processos de dominação e exploração, uma vez que os benefícios da

globalização são para poucos, para uma elite. Para os pobres restam apenas

os riscos, como não aprender ler e escrever e ficar fora do mercado de

trabalho. Isso ocorre em uma sociedade que supervaloriza essas habilidades,

beneficiando sempre os que são os maiores detentores dos bens produzidos

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historicamente pela humanidade. O outro abre espaço para reflexão, escolha,

apartando caminhos para processos emancipatórios. E isso fica mais nítido,

ainda, no texto a seguir:

Oziêlton: Depois que você começou a participar do Projovem houve alguma mudança na sua vida que considere importante? Lúcio: (peraí) foi bom sabe, o grupo, os amigos (+++) e também me ajudou no trabaio. Antes quando eu não sabia, assim, num intendia das coisas, recebia dez real o dia, eles davam o qui quiria, agora que sei, quero cobrar trinta, e se for assim eles não querem mais. Aí quando fico sem trabaiá porque num acho quem paga direito o povo me chama é de priguiçoso. /.../ mais só vou quando acho quem paga mais, vinte e cinco, trinta ou mais, dependendo do sirviço aí negocio.

Nesse ato de fala, temos um empoderamento na construção

identitária do homem e da mulher do campo, pois o ponto de vista de Lúcio tem

sido recorrente entre muitos trabalhadores e trabalhadoras rurais. A partir do

momento que os sujeitos passam a refletir e optar assumem uma posição de

poder em uma estrutura social que antes não lhes dava a chance de escolher.

Agora ele sabe o que seria justo, e tem consciência que se cobrar

um valor muito alto, os patrões não vão querer, mas também não trabalha mais

por uma quantia tão insignificante. Surge, então, o campo da mediação, da

negociação, isso é próprio das contradições, embates com as possibilidades,

criando um novo ponto de vista dentro de um mundo possível, fazendo surgir

novos aspectos nas identidades assumidas pelos camponeses na

contemporaneidade.

Mais do que saber cobrar, percebemos a construção de uma

consciência crítica, quando o entrevistado demonstra não comprar a ideia de

que o camponês não quer trabalhar. Assim, o Projovem gera um

empoderamento dos sujeitos, os quais vão poder decidir em função de um

caminho construído em que eles mesmos não se veem como “vagabundos”,

passando a existir possibilidades de construção de uma nova identidade no

campo, com novas possibilidades de atuação.

Nesse contexto está materializado o pensamento de Freire (1997)

para quem o homem transforma a realidade a partir da sua consciência

transformada, e é isso que estabelece a possibilidade de constituição de

sujeitos revolucionários, capazes de construir processos de

emancipação/libertação a partir das contradições vivenciadas nas práxis

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cotidianas. Ações cotidianas contra-hegemônicas podem viabilizar processos

de descolonialidade, inicialmente do ser, depois do saber e consequentemente

do poder.

Esses processos estão acontecendo em consonância com as ações

que possibilitam a construção de identidades. Retomando a discussão

realizada na seção 4.3 a respeito da construção identitária enquanto processo

de identificação, percebemos no discurso acima um embate entre relações

sociais dos diversos grupos que materializam, até certo ponto, as formas de

construção de identidades propostas por Castells (1999).

Na fala, “Antes quando eu não sabia, assim, num intendia das

coisas, recebia dez real o dia, eles davam o qui quiria”, fica claro que o

camponês era explorado por aqueles que o contratavam para trabalhar, a

presença dos vocábulos “recebia” e “davam” denotam a ausência da cobrança

pelo trabalho.

O agricultor assimila essa forma de ser e viver criada por outros para

si e a naturaliza, temos então a construção de uma identidade legitimadora,

pois foi introduzida por uma instituição dominante, representada pela figura do

patrão, com a possível intenção de expandir o seu poder de dominação, ou

pelo menos manter o status quo que o beneficia.

É preciso destacar, porém, que as vivências e práticas cotidianas,

incluindo a prática educacional em análise, o Projovem, possibilitaram ao

camponês se apropriar de mecanismos que lhe permitisse construir um saber,

a partir do qual passou a refletir e a analisar sua própria realidade, não

aceitando os processos de dominação/opressão a que historicamente os povos

do campo foram submetidos.

Com isso, temos o processo de construção identitária denominado

de identidade de resistência, uma vez que foi construída por alguém que se

encontrava em posição desvalorizada ou estigmatizada, possibilitando a

criação de resistências. Isso está bastante visível nas passagens: “agora que

sei, quero cobrar trinta, /.../ mais só vou quando acho quem paga mais, vinte e

cinco, trinta ou mais, dependendo do sirviço aí negocio”.

A partir desse discurso, podemos refletir acerca da possibilidade de

uma nova realidade vivenciada no campo na atualidade. Está se tornando

recorrente a falta de trabalhadores em fazenda ou nas grandes propriedades

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para realizar os trabalhos braçais. Muitos continuam reproduzindo o discurso

de que é em decorrência da preguiça ou porque todos recebem bolsa do

governo e não querem mais trabalhar.

No entanto, Lúcio nos mostra um novo posicionamento, uma

realidade também possível, que torna o perfil identitário do camponês ainda

mais múltiplo, plural. Estamos nos referindo ao fato de que muitos

trabalhadores que não aceitam determinados trabalhos, fazem isso porque hoje

tem outras possibilidades de escolha, novas opções, antes ou trabalhavam e

recebiam o que o patrão pagasse ou morriam de fome.

Assim, mesmo não podendo afirmar que estamos diante da

construção de uma identidade projeto em decorrência da necessidade de uma

pesquisa mais ampla centrada especificamente nesse aspecto, percebemos

que no grupo pesquisado um novo material cultural está sendo utilizado, a

posição social dos sujeitos está sendo modificada e transformações estão

ocorrendo.

Essa discussão denota que, no meio rural, a mudança nas relações

sociais é bastante nítida, antes o patrão escolhia seus trabalhadores, hoje

diante das diversas possibilidades de sobrevivência os trabalhadores é que

decidem onde trabalhar e já conseguem negociar as condições de trabalho.

Recorrendo ao diário etnográfico, podemos ampliar essa discussão

a partir de um trabalho de reflexão sobre a realidade dos educandos e

educandas a partir do conto “O preso” do autor Moreira Campos. A atividade foi

realizada no tempo escola pelos professores do Projovem. Foi destacado que a

narrativa seria utilizada para discutir com os educandos as relações de poder e

os preconceitos sofridos pelos pobres e miseráveis na sociedade de hoje.

A partir do título do conto, uma das professoras (Marta) fez uma

atividade em que os alunos deveriam representar por meio de desenhos duas

situações vivenciadas no decorrer da vida, uma em que se sentiu preso e outra

em que conquistou a liberdade.

Nesse processo de letramento em que a linguagem, por meio da

oralidade, da leitura e da escrita, estava sendo usada para representar práticas

sociais, nos chamou atenção a seguinte situação narrada pela educanda

Soraia:

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Me sentia presa, quando todos os dias tinha a obrigação de ir barrer, digo, varrer terreiro, lavar roupa, cozinhar ou limpar casa para sobreviver. Tinha que ir, se não fosse passava era fome, minha família era pobre e tinha muitos irmãos pequenos, ia ajudar os outros, ganhava comida e mais alguma coisa que dava para minha mãe, é isso que está aqui no desenho e isso me prendia, humilhava, praticamente não tive infância. Ser livre pra mim é criar meus filhos bem, mandar eles pra escola, cuidar da minha família e ter o que comer sem ser obrigada a trabalhar quase de graça na casa dos outros. Hoje eu trabalho na casa de uma senhora, mas só quatro horas por dia, digo o que posso fazer e acerto o pagamento com ela, não é mais como antes que pagavam o que queriam. Se forem com sabedoria pro meu lado eu saio, tenho outras formas de sobreviver.

Considerando a conjuntura acima, percebemos que liberdade e

opressão no campo, na visão dos camponeses, estão relacionadas ao poder

de escolha. Quando eles estão diante de situações em que não tem opção e

são obrigados a seguir um único caminho, sentem-se oprimidos, já o fato de

poderem escolher e terem outras possibilidades a sua disposição dá a eles o

status de liberdade.

Dessa maneira, esse novo papel social, do agricultor que se impõe

e negocia está sendo assumido por muitos trabalhadores e trabalhadoras que

vivenciam a realidade do campo. Essas novas características identitárias estão

sendo construídas por meio da diferença, da relação com o outro, trata-se do

que Freire (1997) discute ao se referir a busca do ser mais.

6.4 SIGNIFICADO IDENTIFICACIONAL: AVALIAÇÃO

Considerando o significado identificacional como um elemento mais

próximo da prática discursiva em si, nos detemos a sua análise através da

categoria avaliação, por considerarmos que a mesma esteja presente com

bastante intensidade nos discursos (re)produzidos pelos colaboradores da

pesquisa.

No decorrer das vivências etnográficas, as avaliações afirmativas

foram constantes, assim como as afirmações com verbos de processo mental

afetivo e as presunções valorativas.

Ao discutir sobre leitura e escrita com os educadores e educadoras,

eles realizam processos avaliativos ao produzir e/ou reproduzir discursos. O

fato deles sempre associarem leitura e escrita no Programa às práticas de

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letramentos nos instigou a buscar em suas falas aspectos que denotem a

influência dos letramentos na construção da identidade dos camponeses.

Pretendemos compreender como os sujeitos expressam

comprometimento em relação a valores de forma explicita ou implícita.

Vejamos o discurso de uma educadora do Programa:

Oziêlton: E os alunos (+), como são em relação à leitura e a escrita? Como essas práticas estão presentes na vida deles? Joana: Bem, tem né os melhores, que lê, são bons mesmos e tem aqueles que sabem menos, aqueles com muita dificuldade. Só para você ter uma ideia da diferença, tem aluno que sabe ler e escrever tudo, mas tem uns que não sabem nem ler a conta de luz ou cobrar um dia de serviço direito. A gente precisa ensinar a eles para que eles possam melhorar de vida, arranjar um emprego, só lendo e escrevendo é que vão poder buscar isso /.../.

A fala da educadora expressa um tipo de pensamento, até certo

ponto, perigoso, por ser potencialmente excludente devido ao fato de que, na

contemporaneidade, grupos sociais tidos como não letrados ou com o nível de

letramento considerado baixo, têm sido colocados à margem da sociedade,

pois são tidos como “menos”, inferiores, indignos, inclusive, de papeis sociais

ou cargos valorizados pela sociedade letrada.

A naturalização dessa ideologia vem reforçar práticas

discriminatórias ao considerar com valor aquilo/aquele que está vinculado ao

letramento e demarcar aquilo/aquele que não se apropriou das práticas

letradas como algo sem valor, sem espaço dentro da sociedade atual.

Cabe nesta ocasião retomarmos a fala do educando registrada no

diário etnográfico e apresentada no início deste trabalho: “(...) quando menos

se espera né a gente acaba lendo. Vamo sair daqui igual uns doutor”.

Aqui como na entrevista dada pela professora, encontramos uma

concepção funcionalista de letramento e isso influencia para legitimar as

desigualdades e manter os camponeses que não possuem “o letramento” ou

são letrados aquém do nível considerado satisfatório pelo grupo possuidor do

letramento padrão à margem da sociedade.

A professora expressa por meio de afirmações avaliativos uma

espécie de julgamento dos alunos tomando como parâmetro os letrados e os

não letrados. O primeiro grupo é avaliado como: “melhor”, “lê”, “bons”, “tudo”; já

o segundo é concebido como: “menos”, “dificuldade”, “não sabem nem”.

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Ainda em relação às questões inerentes ao letramento, vale

destacar outro ponto discutido com a professora citada anteriormente:

Oziêlton: Qual a importância do letramento? Joana: Bem ((coloca a mão na cabeça e pensa)),é as::sim. Quem não tem a oportunidade de receber o letramento necessário está fora da sociedade, não tem vez nem voz. Aí vão fazer qualquer coisa, mais, dificilmente, conseguem melhorar de vida. Vão ficar na mesma. Por isso que a gente tem que letrar e alfabetizar nossos alunos.

Para expressar o seu conhecimento em torno da importância do

letramento a professora já inicia com um processo valorativo por meio da

expressão “quem não tem”, a qual nos permite inferir o oposto “quem tem”. Isso

materializa a classificação dos sujeitos em letrados e não letrados.

Já a forma “receber” denota o que Street (2014) denomina de

modelo autônomo de letramento. Evidencia-se também que as concepções

ideológicas da educadora acerca do ato de letrar possuem uma base

funcionalista, ficando claro que para ela o letramento é o conjunto de

habilidades transferíveis que seriam responsáveis pelo sucesso de alguém, de

maneira que suas consequências sociais são pontos pacíficos – maiores

oportunidades de emprego, mobilidade social, vidas mais plenas.

Por fim, mas não menos importante, a passagem “vão ficar na

mesma” mostra que os alunos moradores do campo, na visão da educadora,

possuem uma identidade e uma realidade quase estática, parada e que só os

que conseguirem adquirir esse letramento é que vão conseguir determinadas

mudanças.

Isso enfatiza a legitimação das identidades já existentes “os não

letrados”. Integrado a elas estão os processos de opressão, exploração e

dominação, contribuindo para manutenção da colonialidade, uma vez que, em

um processo dialético, os discursos constroem a realidade, a qual também é

construída por eles.

A partir da fala da educadora, inferimos que algumas ideologias que

norteiam a sua prática educativa, possibilitam que ela reproduza pensamentos

dominantes, não permitindo que todas as ações funcionem como uma contra-

ideologia, ou seja, que os meios de opressão sejam identificados, a solução

seja trabalhada com o seu oposto, mostrando que o saber, o poder e próprio

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ser que se constituem numa perspectiva individual ou social podem estar a

serviço de determinados grupos que detém o poder.

Em se tratando das afirmações com verbos de processo mental

afetivo, temos a fala de uma educadora para evidenciar como esse processo

inerente à categoria avaliação se delineia nas práticas discursivas analisadas.

Vejamos:

Oziêlton: Quais são suas expectativas em relação ao Projovem? E em relação ao futuro dos moradores(as) do campo? Marta: é ((fica pensativa)), eu espero que o Projovem continue, os meninos tem maior vontade de estudar, eu gosto de ver eles empolgados falando em ir para o ensino médio. Aí me preocupo, sabe, a escola tradicional não está preparada para receber eles. Estão construindo uma escola do campo de ensino médio aqui no município, pode ser, né (++++), que se ela sair os meninos continuem os estudos, porque a verdadeira educação, aquela que se faz para toda a vida não pode acontecer só com um projeto, tem que dá continuidade. Se tiver investimentos, mais política voltadas para esse povo o futuro aqui será muito promissor, adoro quando recebo a notícia de que alguém que estava na cidade voltou a morar no campo e está feliz entre nós. Isso mostra que aqui está é melhorando /.../ passa até na TV, o povo voltando e mais feliz.

Ao expressar suas expectativas, a educadora faz uma avaliação

positiva dos educandos em relação ao empenho e desejo dos mesmos para

continuar estudando, isso fica claro quando a mesma utiliza uma afirmação

com verbo de processo mental afetivo, ou seja, o verbo “gosto”. Em primeira

pessoa no modo indicativo, representa a subjetividade e a certeza do

sentimento.

É semelhante o que ocorre com a utilização do verbo “adoro”, outra

afirmação com verbo de processo mental afetivo, dessa vez a professora está

reconhecendo a melhoria da qualidade de vida no campo. Como argumento,

reproduz um discurso bastante recorrente na mídia, que muitas pessoas que

saíram do campo estão retornando porque a vida nessa região melhorou.

Vale destacar, nessa fala, um aspecto do primeiro significado

analisado, o acional. Temos uma intertextualidade do discurso da educadora

com os discursos que circulam no domínio midiático, afinal o ato de fala da

professora reproduz uma prática social que vem se tornando mecanismo de

apropriação de alguns programas de televisão.

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Um exemplo é o quadro “De volta para minha terra” e outros que

supervalorizam essa situação do retorno à terra natal, sem questionar as reais

causas da saída e também os motivos que fizeram com que inúmeras famílias

não tivessem conseguido êxito em seus processos migratórios.

Retomando a categoria avaliação, destacamos no fragmento textual

em análise a presença de presunções valorativas, materializadas através dos

vocábulos “a verdadeira” e “esse povo”.

O primeiro está valorando, de forma objetiva, um determinado tipo

de educação “aquela que se faz para toda a vida”. A maneira como a categoria

avaliação está sendo utilizada na fala da professora não é implícita, fica

bastante claro o que ela está valorizando e o porque. Esse tipo de educação

destacado pela entrevistada é o que segundo ela é desejável para os

camponeses.

O segundo tem a intenção de valorar um determinado grupo. “Esse

povo”, refere-se aos moradores do campo, coletivo que tem importância

suficiente, na visão da professora, para ser considerado de maneira

significativa durante a elaboração das políticas públicas. Uma educação

contextualizada para eles deve estar na pauta governamental. Aqui, mais uma

vez está presente o discurso de que a Educação do Campo é um direito e deve

ser garantido pelo Estado.

Recorrendo ao Projeto Base do Projovem, identificamos um

fragmento em que por meio dos processos avaliativos, o poder público

reconhece a existência das desigualdades e a necessidade de superá-las: De

forma impessoal, tentando construir um tom de neutralidade, mas ao mesmo

tempo se posicionando do lado dos desiguais, o Estado reconhece a

necessidade de:

Esse objetivo das aprendizagens do programa, é também, uma

forma de responder a um discurso que se pauta por uma percepção negativa

Identificar os mecanismos de desigualdades étnico-raciais existentes na sociedade brasileira, procurando formas de enfrentamento e superação das manifestações locais destas desigualdades e discriminações (p.53)

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de alguns grupos constitutivos do povo brasileiro, inclusive, a diversidade que é

denominada moradores do campo.

Fica claro que há, no processo de identificação e na maneira como

são avaliados, formas de estigmatização e opressão, existe um processo

contrario de desnaturalização do discurso da igualdade e abre-se espaços para

discutir as diferenças e superar os preconceitos construídos historicamente.

Com essas afirmações, o Projovem se compromete em termos do

que pode ser feito, revelando uma postura de defesa dos grupos que sofrem

discriminação e opressão, os quais constituem a gigantesca parcela da

sociedade denominada de moradores do campo.

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7 CONCLUSÕES

Esta parte do trabalho, mais do que abordar as considerações finais

sobre tudo que discutimos, é um espaço dedicado às reflexões das análises

construídas com base nos significados e nas categorias estudadas.

Considerando o enquadre metodológico da ADC (CHOULIARAKI;

FAIRCLOUGH, p.60), a última etapa consiste exatamente em refletir acerca da

análise, com isso, continuaremos nessa parte final do texto discutindo de

maneira sintética possibilidades de interpretações para a realidade da qual

participamos com intuito de gerar dados para a presente pesquisa.

Iniciamos discutindo a respeito da confidência que fizemos no início

do trabalho, nos referimos ao fato de termos deixado claro para você leitor que

o criador das várias vozes que vos falam neste trabalho encontra-se em um

movimento dialético com a realidade em análise, estamos falando da

participação no Projovem Campo – Saberes da Terra como professor, formador

e agora pesquisador, o que em vários momentos nos situa num entre-lugar.

Temos então um trabalho parcial, no entanto essa parcialidade não

é negativa, pois deixamos clara a perspectiva de análise e em nenhum

momento construímos uma falsa imparcialidade científica. Por isso, todo este

trabalho foi construído de maneira posicionada, desde as teorias adotadas, os

métodos desenvolvidos, até os recortes e escolhas realizados no referencial

teórico e no objeto de pesquisa.

As análises realizadas são, na verdade, resultados de

posicionamentos, escolhas, pois se tomássemos o mesmo objeto e o

tratássemos a partir de um outro ponto de vista, necessariamente teríamos que

nos apropriar de outras teorias e métodos, o que viabilizaria uma análise

distinta da que realizamos.

Baseados em Fairclough (2003), compreendemos que isso se dá

porque toda ciência que se propõe crítica, parte do pressuposto de que a

realidade não pode ser restringida ao conhecimento que determinado grupo

possui sobre ela, de maneira que nenhum trabalho consegue dar conta de tudo

que há para ser dito sobre um problema estudado.

Diante disso, a análise de discurso que realizamos faz com que as

considerações realizadas acerca dos textos sejam inevitavelmente seletivas,

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pois respondemos questões pontuais a respeito de uma prática discursiva

determinada.

Após essas reflexões e diante da necessidade de estabelecermos as

considerações finais, que, já adiantamos, são conclusivas para este trabalho,

mas não para o objeto estudado, pois, do ponto de vista etnográfico, vários

outros caminhos são possíveis, retomamos os questionamentos iniciais a fim

de sugerirmos algumas respostas.

Como se dão os processos de construção de identidades dos

moradores do campo a partir das práticas linguísticas educacionais? De que

forma os depoimentos e vivências em momentos pedagógicos dos moradores

do campo, enquanto discursos, mediados pelas ações cotidianas do Projovem

Campo – Saberes da Terra, revela um novo posicionamento identitário? Que

práticas de letramentos presentes tanto na fala dos moradores do campo como

nos documentos do programa contribuem para a formulação de identidades?

As práticas de letramentos, se configuram como processos a serviço da

dominação e/ou da libertação, da colonialidade e/ou da descolonialidade?

De maneira geral, buscamos compreender como vem se

estruturando a construção de uma nova identidade discursiva para os

moradores do campo, no âmbito das práticas educacionais do Projovem

Campo - Saberes da Terra.

A partir dessas questões, integradas ao referencial teórico e ao

percurso metodológico, nos quais discutimos os estudos descoloniais, as

práticas de letramentos, a análise de discurso numa perspectiva crítica, as

questões de identidade e a etnografia, destacamos a contribuição desta

pesquisa por proporcionar uma articulação entre a Educação do Campo e

esses temas.

Isso se deu porque as análises que realizamos foram capazes de

evidenciar ações discursivas que denotam contradições, reproduções,

alienações e libertações, aspectos esses um pouco obscuros aos olhos da

sociedade e de muitos sujeitos envolvidos no Projovem Campo – Saberes da

Terra.

Em linhas gerais, podemos dizer que os diversos sentidos

construídos para os sujeitos do campo fazem com que a identidade do

camponês seja múltipla, não temos um perfil identitário homogênio para os

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moradores e moradoras do campo. Essa diversidade foi estabelecida no

processo sócio-histórico por meio das contradições, ou seja, os momentos das

práticas sociais em que as ações contra-hegemônicas ganham espaço.

Vale destacar que o processo de construção das identidades não

tem acontecido apenas por meio das contradições, elas também se constroem

a partir das reproduções.

Baseados em Castells (2009), identificamos na análise tanto a

presença de identidades legitimadoras, através das práticas alienadoras,

quanto as identidades de resistência, criadas pelos próprios camponeses

diante das contradições.

Só não identificamos na comunidade, até o presente momento, a

construção de identidades de projetos, porque as posições, que vem sendo

definidas pelos camponeses na sociedade, são tênues e a estrutura social

ainda tem muitos aspectos a serem transformados.

O que percebemos foi um novo posicionamento identitário por parte

de alguns membros da comunidade quando eles se impõem e ganham espaço

rompendo com as antigas práticas de opressão quase naturalizadas no campo.

Isso fica claro quando os próprios camponeses passam a significar-se de outra

maneira em situações cotidianas como as relações de trabalho, a participação

em eventos da comunidade que envolvem o uso da leitura e da escrita e as

condições materiais para sobrevivência.

Constatamos que os processos de letramentos vivenciados nas

práticas educacionais desenvolvidas no Projovem se materializaram tanto

como representativas do modelo ideológico quanto do modelo autônomo, o que

possivelmente possibilita a concorrência de antigas e novas identidades em um

espaço que historicamente não foi concebido a partir do caráter da mudança.

Com isso, temos um espaço de disputas, onde os letramentos têm

contribuído com os processos de opressão e libertação, colonialidade e

descolonialidade. Nesse sentido, continuar pesquisando a articulação de

discursos distintos é central para perceber a presença desses letramentos no

cotidiano dos diversos sujeitos, assim como os impactos dos letramentos na

legitimação, resistência e/ou (re)constituição das identidades dos moradores do

campo.

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Muitos moradores do campo já estão tomando consciência da

realidade em que vivem, objetivando-a, submetendo-a a sua reflexão para

perceber os condicionantes que os envolvem, passando a produzir ações

contra-hegemônicas aos processos de opressão. Mas alguns, ainda

permanecem com a sombra do colonizador introjetada em si. Isso faz com que

haja a necessidade de continuidade e fortalecimento da luta.

Ficou evidente que a transformação ou a manutenção das práticas

sociais passam, necessariamente, pela transformação das práticas linguísticas

e que esses dois aspectos convivem e concorrem em todos os aspectos da

nossa realidade social, inclusive no campo.

Diante disso, concebemos que o Projovem Campo – Saberes da

Terra embora seja um programa construído com base em diversas

experiências dos povos do campo e acerte em sua proposição de procurar

mudar a realidade material, ao elaborar documentos, promover o debate sobre

a questão da identidade dos moradores do campo, não chega a construir um

processo emancipatório ou libertador semelhante ao que Freire postula.

Isso vai muito além de fornecer condições materiais, passa por um

esboço de uma pedagogia com vistas à libertação, que só é possível através

da conscientização. Além de enfrentar o grande desafio de continuar existindo,

o Projovem é, para nós, uma iniciativa de mediação, que deve ser considerada

como tal, e como toda política, precisa ser avaliado e melhorado no sentido de

atender mais e melhor as necessidades dos sujeitos que atende.

Enfim, para alcançar a meta de continuar transformando a sociedade

da qual fazemos parte, precisamos ser capazes de compreendê-la para, a

partir disso, desenvolver a consciência crítica. Esse é o meio mais viável para

os oprimidos perceberem como suas maneiras de conceber a realidade se

encontram marcadas pelas ideologias dos grupos dominantes. Reconhecer

isso é o primeiro passo para promover as mudanças necessárias. Na realidade

observada, percebemos que os jovens do campo, inseridos em programas de

elevação da escolaridade, estão compreendendo os processos de opressão e

reagindo contra eles.

Percebemos nas análises que o discurso e as práticas sociais

constituem-se como elementos centrais no que concerne a busca pela

hegemonia nas relações de poder estabelecidas na sociedade, as quais se

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constituem pela dialética entre as disputas ideológicas que buscam manter a

opressão, gerando a colonialidade e as ações contra-hegemônicas que

buscam desconstruir e superar os processos de dominação, construindo ações

descoloniais, visíveis nas práticas linguísticas educacionais analisadas.

Assim, esperamos que as reflexões acima possam extrapolar o

âmbito acadêmico, gerando discussões entre os diversos movimentos sociais,

que lutam por melhorias para o campo, o poder público e outros setores da

sociedade.

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REFERÊNCIAS

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APÊNDICES

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APÊNDICE A

ROTEIRO DAS ENTREVISTAS SEMIESTRUTURADAS COM OS

EDUCANDOS E EDUCANDAS

1. Qual o seu nome?

2. Quantos anos você tem?

3. Onde você mora? Há quanto tempo?

4. Antes de entrar no Projovem, você já tinha estudado até que ano/série?

5. Como é o seu dia a dia? O que você faz?

6. Por que você parou de estudar?

7. Por que você voltou a estudar?

8. Por que você está no Projovem?

9. O que você pensa em relação à identidade de morador(a) do campo?

Para você, o que é ser morador(a) do campo?

10. O que a sociedade, as outras pessoas, pensam ou dizem sobre os

moradores(as) do campo?

11. Quais as características do homem e da mulher do campo nos dias de

hoje?

12. Como é a vida no campo?

13. Hoje, o que faz você se sentir preso, oprimido? O que faz você se sentir

livre?

14. Como são desenvolvidas as atividades no Projovem?

15. Que atividades de leitura e escrita você costuma fazer no Projovem, em

casa ou na comunidade?

16. O que você lê no dia a dia? Por quê? Para quê?

17. Como você usa a leitura e a escrita no seu dia a dia?

18. Como você avalia seu desempenho nos usos que faz da leitura e da

escrita?

19. Depois que você começou a participar do Projovem houve alguma

mudança na sua vida que considere importante?

20. Quais são suas expectativas em relação ao Projovem? E em relação ao

seu futuro enquanto morador(a) do campo?

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APÊNDICE B ROTEIRO DAS ENTREVISTAS SEMIESTRUTURADAS COM OS

EDUCANDORES, EDUCADORAS E COORDENADORA

1. Qual o seu nome?

2. Quantos anos você tem?

3. Onde você mora? Há quanto tempo?

4. Qual a sua formação acadêmica?

5. Há quanto tempo trabalha na educação?

6. Por que você está trabalhando no Projovem?

7. Como o Programa funciona?

8. O que você considera positivo e negativo no Programa?

9. O que você pensa em relação à identidade de morador(a) do campo?

Para você, o que é ser morador(a) do campo?

10. O que a sociedade, as outras pessoas, pensam ou dizem sobre os

moradores(as) do campo?

11. Quais as características do homem e da mulher do campo nos dias de

hoje?

12. Como é a vida no campo?

13. Como são desenvolvidas as atividades no Projovem?

14. Que atividades de leitura e escrita você costuma desenvolver no

Projovem, em casa ou na comunidade?

15. Como os educandos (as) usam a leitura e a escrita no cotidiano?

16. E os alunos, como são em relação à leitura e a escrita? Como essas

práticas estão presentes na vida deles?

17. Qual a importância do letramento?

18. Existe alguma relação entre o Projovem e os movimentos sociais, mais

especificamente com o MST?

19. Com o Projovem houve alguma mudança na vida dos educandos(as)

que você considere importante?

20. Quais são suas expectativas em relação ao Projovem? E em relação ao futuro dos moradores(as) do campo?