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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ - UECE CENTRO DE HUMANIDADES MESTRADO ACADÊMICO EM FILOSOFIA EDUARDO ANDRADE RODRIGUES EM TORNO DE HAMLET: O HERÓI DO DRAMA MODERNO E A PARTICULARIDADE DA SOCIEDADE CIVIL BURGUESA EM G. W. F. HEGEL FORTALEZA - CEARÁ 2015

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ - UECE

CENTRO DE HUMANIDADES

MESTRADO ACADÊMICO EM FILOSOFIA

EDUARDO ANDRADE RODRIGUES

EM TORNO DE HAMLET: O HERÓI DO DRAMA MODERNO E A

PARTICULARIDADE DA SOCIEDADE CIVIL BURGUESA EM G. W. F.

HEGEL

FORTALEZA - CEARÁ

2015

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EDUARDO ANDRADE RODRIGUES

EM TORNO DE HAMLET: O HERÓI DO DRAMA MODERNO E A

PARTICULARIDADE DA SOCIEDADE CIVIL BURGUESA EM G. W. F. HEGEL

Dissertação apresentada ao programa de pós-

graduação em Filosofia da Universidade

Estadual do Ceará - UECE, como requisito

parcial para obtenção do título Mestre em

Filosofia.

Área de concentração: Ética e Estética

Orientador: Prof. Dr. Antônio Vieira da Silva

Filho

FORTALEZA - CEARÁ

2015

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação

Universidade Estadual do Ceará

Biblioteca Central do Centro de Humanidades

Bibliotecário Responsável – Doris Day Eliano França – CRB-3/726

Rodrigues, Eduardo Andrade.

Em torno de Hamlet: o herói do drama moderno e a particularidade da sociedade civil burguesa em G. W. F. Hegel / Eduardo Andrade Rodrigues. – 2015.

CD-ROM. 114 f.: 4 ¾ pol. “CD-ROM contendo o arquivo no formato PDF do trabalho

acadêmico, acondicionado em caixa de DVD Slim (19 x 14 cm x 7 mm)”.

Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual do Ceará, Centro de Humanidades, Mestrado Acadêmico em Filosofia, Fortaleza, 2015.

Área de Concentração: Ética e Estética. Orientação: Prof. Dr. Antônio Vieira da Silva Filho. 1. G. W. F. Hegel. 2. William Shakespeare. 3. Hamlet. 4.

Estética. 5. Sociedade civil burguesa. I. Título.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço especialmente ao meu orientador e amigo, Antônio Vieira, pela confiança

depositada em mim na execução desse trabalho, pelos conselhos valiosos e criteriosa

análise do texto – e sobretudo pela paciência e afeto inestimável, sem os quais não

teria sido possível concluí-lo.

Outros professores também contribuíram em inúmeros momentos, e estão todos em

minha recordação. Não posso deixar de citar expressamente os nomes de Ruy de

Carvalho, onipresente ao longo de todo o meu Mestrado, promovendo possibilidades

de diálogos constantes e um incentivo sem igual; Ilana Amaral, cujas observações

profundas moldaram desde o princípio o teor dessa pesquisa, mas principalmente pelo

bom humor, alegria e força, com os quais me inspirou nas horas de dúvida; Emiliano

Aquino, pela palavra amiga e gesto solidário, acreditando sempre em nossa proposta

e participando com contribuições valiosas na análise do texto; Orlando Luiz, atento,

gentil, perspicaz, orientando de forma radical minhas leituras. Obrigado sincero a

todos vocês.

Aos familiares, meus pais, a base da minha formação, o porto seguro e feliz ao qual

sempre retorno; aos meus irmãos, o laço inseparável que nos une - Luciana, em

especial, agradeço por toda atenção e preocupação nesse período. O mais afetuoso

agradecimento deixo a todos vocês aqui registrado.

Amigos, inúmeros, contribuíram, cada qual a seu modo, direta ou indiretamente, na

concepção e execução dessa pesquisa. Alguns com conselhos pertinentes, outros

com crítica construtiva, muitos com a simples presença e companhia agradável,

equilibrando as horas de tensão comuns na vida acadêmica. Assim, abraço aqui todos

os companheiros de turma, que juntos viveram comigo a mesma história: David,

Jonas, Adriano, Palloma, Osmar, e muitos outros. Os parceiros para além dos portões

acadêmicos, Adriano Vieira, Gabriel Costa, Rafael Filipy, Meyrianne Habberman,

Andrade, Rodrigo Noronha, André Morais, Patrícia, Pedro, que tantas vezes sentaram

comigo e me ouviram com atenção e carinho. O diálogo com vocês foi a base de toda

essa pesquisa, obrigado. Dentre todos os amigos, agradeço com ênfase especial a

Ronney César, por todas as horas de conversa sempre estimulante, nunca fútil,

sempre esclarecedora, nunca cansativa – por ter dado sentido a inúmeros questões,

por ter trazido à tona inúmeras outras – principalmente, pela felicidade sincera em

contribuir. Nosso diálogo constitui, para mim, o luminoso núcleo forte e indissolúvel do

qual irradiou todas as ideias que perpassam minha relação com a filosofia. Dele surge

o sentido exato da minha passagem pelo Mestrado. Obrigado.

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RESUMO

Esta dissertação tem como objetivo compreender, a partir da leitura estética de Hegel, o

estatuto do drama de Shakespeare na história das artes, e particularmente a relação entre

o caráter do personagem Hamlet e o do homem moderno que emerge com o advento da

sociedade civil burguesa. O filósofo alemão, em sua Estética, aponta na obra do

dramaturgo inglês o surgimento de um tipo especial de caráter: personagens marcados

por uma individualidade subjetiva cuja característica principal é a de pensarem e/ou

agirem tendo em vista fins que são exclusivamente privados e particulares. A

emergência desta autonomia formal nos personagens de Shakespeare é apresentada por

Hegel em consonância com a liberdade formal dos particulares livres da sociedade civil

burguesa. Buscamos identificar e apontar a presença dessa autonomia de caráter

individual, ou seja, individualidade subjetiva, como determinação central dos

personagens modernos shakespearianos. A partir de uma leitura filosófica de Hamlet,

podemos concluir que o príncipe dinamarquês guarda características em comum com o

homem moderno, cuja determinação de ação e pensamento se dá por meio de fins que

são privados e exclusivamente individuais. Este particularismo dos fins é aquele pelo

qual Hegel descreve o indivíduo como “particular livre” da sociedade civil burguesa.

Palavras-chave: G. W. F. Hegel. Hamlet. William Shakespeare. Estética. Sociedade

civil burguesa.

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ABSTRACT

The aim of this work is to present, from the point of view of Hegel’s aesthetics, the

status of Shakespeare’s drama in the history of arts, and particularly the relationship

between the character of Hamlet and of the modern man who emerges with the advent

of bourgeois civil society. The German philosopher, in his Aesthetics, points out on the

English playwright’s work the emergence of a special type of character: individuals

marked by a subjective individuality, whose main characteristic is to think and/or act

according to purposes that are exclusively particular and private. The emergence of this

formal autonomy of the Shakespearean characters is presented by Hegel in line with the

formal freedom of individuals from the emergent bourgeois civil society. We aim to

identify and points out the presence of this autonomy of individual character, i.e.,

subjective individuality, as the central determination of modern Shakespearean

characters. From a philosophical reading of Hamlet, we conclude that the Danish prince

tends to embody features in common with modern man, whose determination of action

and thought happens through private purposes that are exclusively individual. This

particularity of purpose is one for which Hegel describes the individual as belonging to

the emergent bourgeois civil society.

Keywords: G. W. F. Hegel. Hamlet. William Shakespeare. Aesthetics. Bourgeois civil

society.

.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 10

2 O CONCEITO DE ARTE E POESIA EM HEGEL ................................................... 24

2.1 A EXPRESSÃO DA LIBERDADE, ESSÊNCIA DO HOMEM, ATRAVÉS

DA ARTE ............................................................................................................. 24

2.2 A ARTE COMO UM AFASTAMENTO DA NATUREZA ................................ 26

2.3 O DESLOCAR DO CENTRO: DE DEUS AO HOMEM COMO DIVINO ........ 31

2.4 A PROGRESSÃO DAS FORMAS DE ARTE E DAS ARTES

PARTICULARES .................................................................................................

33

2.5 POESIA, A ARTE UNIVERSAL ......................................................................... 41

2.6 OS GÊNEROS POÉTICOS .................................................................................. 47

2.7 A VERDADE DA TRAGÉDIA GREGA E A LIBERDADE DO DRAMA DE

SHAKESPEARE ..................................................................................................

50

3 HAMLET E A QUESTÃO DA AUTONOMIA FORMAL ........................................ 54

3.1 A INADEQUAÇÃO ENTRE FORMA E CONTEÚDO EM SHAKESPEARE . 56

3.2 O HERÓI DRAMÁTICO DE SHAKESPEARE – SUA AUTONOMIA

FORMAL ..............................................................................................................

61

3.3 O CONTRASTE ENTRE A ELECTRA DE SÓFOCLES E O HAMLET DE

SHAKESPEARE ..................................................................................................

68

3.3.1 ORESTES E HAMLET ........................................................................................ 70

3.3.2 ELECTRA E HAMLET ....................................................................................... 74

3.3.3 A RAINHA GREGA E A RAINHA DINAMARQUESA ................................... 76

3.3.4 CULPA E INOCÊNCIA EM ELECTRA E HAMLET .......................................... 79

3.3.5 O DESTINO EM ELECTRA E HAMLET ............................................................. 82

3.4 A RELAÇÃO ENTRE OS HERÓIS SHAKESPEARIANOS E OS

PARTICULARES LIVRES ..................................................................................

85

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3.4.1 OS SHAKESPEARIANOS E OS PARTICULARES LIVRES ............................ 85

3.4.2 HAMLET E O ROMANTISMO ALEMÃO ......................................................... 93

3.5 QUANDO O PENSAMENTO REFLEXIVO INTERFERE NA IMEDIATEZ

DA AÇÃO ............................................................................................................

98

4 CONCLUSÃO ............................................................................................................... . 104

REFERÊNCIAS ............................................................................................................ 111

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1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho busca fundamentar o modo pelo qual os heróis da poesia

dramática de Shakespeare expressam o caráter subjetivo e autônomo do homem no limiar

da modernidade. Para tanto, nos valeremos de uma análise filosófica do personagem

Hamlet, feita a partir da concepção de arte exposta por Hegel em seus Cursos de Estética.

O filósofo alemão afirma que uma obra de arte está inextricavelmente ligada ao momento

e ao solo histórico do qual ela emerge, sendo um reflexo da consciência de liberdade

predominante na sociedade que a produziu. Desse modo, já que o teatro de Shakespeare

foi configurado no exato ponto de ruptura entre a Idade Média e o mundo moderno,

momento em que as relações sociais do regime feudal viram-se gradualmente substituídas

pelas relações econômicas e sociais da emergente sociedade civil burguesa, temos na

caracterização dos personagens de Shakespeare elementos expressivos que nos ajudam a

compreender a subjetividade do homem neste momento singular da História. Em outras

palavras, os heróis shakespearianos, e Hamlet em particular, surgem como configurações

autênticas de um modo de agir e pensar humanos análogos aos dos indivíduos efetivos

que viveram e estavam imersos, tal como o próprio Shakespeare, na sociedade civil

burguesa europeia em seus primórdios.1

Como partimos da relação necessária, apontada por Hegel, entre conteúdo

histórico-social e forma artística, as características da sociedade civil burguesa inglesa da

época de Shakespeare aparecem como constitutivos de sua obra. Hegel pontua, desse

modo, a subjetividade dos heróis de Shakespeare como fator determinante da ação e do

1 É importante ressaltar que a sociedade civil burguesa analisada por Hegel na Filosofia do direto não é a mesma sociedade civil da época de Shakespeare. Todavia, na Inglaterra do século XVII já se apresenta, muito antes do que nos outros países europeus, traços determinantes da subjetividade burguesa propriamente moderna, e portanto uma sociedade civil emergente. Tal se dá porque a Inglaterra, como também a Holanda, já possuíam um grau elevado de desenvolvimento das relações mercantis capitalistas. O desenvolvimento econômico nesses dois países permitiu o aparecimento, ainda que embrionário, de relações de produção próprias do capitalismo, relações estas que iriam se consolidar no período pós-revolucionário francês e com as revoluções proletárias em meados do século XIX. Ao comentar sobre o nascimento do Estado moderno, Luciano Gruppi aponta a Inglaterra do século XVII como o país inaugural desse tipo de Estado moderno e salienta as características que tal Estado possui para sustentar sua modernidade. “A primeira característica”, comenta Gruppi, “é a autonomia, plena soberania do Estado, o qual não permite que sua autoridade dependa de nenhuma outra autoridade”. A outra característica apontada por Gruppi é justamente “a distinção entre Estado e sociedade civil, que vai evidenciar-se no século XVII, principalmente na Inglaterra, com a ascensão da burguesia. O Estado se torna uma organização distinta da sociedade civil, embora seja expressão desta” (Gruppi, Luciano. Tudo Começou com Maquiavel, p. 9.)

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caráter dos personagens. A importância do dramaturgo inglês, para Hegel, está justamente

na apreensão e exposição dos carácteres de seus personagens, carácteres humanos

alicerçados na interioridade subjetiva. O autor alemão afirma que dentre os “mestres na

exposição de indivíduos humanos plenos”, Shakespeare “encontra-se (...) acima de todos,

quase inatingível.”2 Alicerçado, portanto, na relação hegeliana entre forma e conteúdo,

poderemos admitir em princípio que na forma de arte poética executada pelo dramaturgo

inglês encontraremos o conteúdo espiritual do homem - o grau de desenvolvimento

subjetivo humano - daquele período histórico.

Nossa investigação busca, desse modo, extrair aquilo que o drama

shakespeariano, quando iluminado pelo archote da filosofia estética hegeliana, tende a

revelar sobre a consciência do homem ao constituir-se em sua efetiva forma moderna,

esta que abandona, de modo gradual, o mundo de representações religiosas, dominante

na era medieval, e o substitui paulatinamente pelo estado das relações prosaicas da

sociedade civil burguesa. Tal passagem implica em transformações profundas na

sociedade, a partir das quais o homem se reconhece como cada vez mais livre. O

abandono daquela forma antiga de concepção da realidade, na qual o divino

espiritualmente representado ocupava o centro, responde pela transferência dessa

centralidade para o próprio homem. Conforme Hegel, o saber de si como o centro, como

aquele que dirige seu próprio destino, significa para o espírito humano a consciência da

liberdade em seu apogeu - afinal de contas, o homem é livre de fato quando determina-se

a si mesmo; em outras palavras, quando dá a si suas próprias leis. “O espirito”, afirma

Hegel, “em sua diferença com a matéria, “consiste justamente em possuir o centro em si.

Tende também para o centro; porém o centro é ele mesmo em si”.3 E o espírito assim o

faz, segundo Hegel, na sociedade moderna. Nesta, o Estado aparece como a instância

ética para o qual convergem as liberdades individuais, na medida em que o Estado é a

eticidade racional posta pelos próprios homens. Para Hegel, os homens, ao obedecerem

às leis do Estado e de suas instituições, estão obedecendo a si mesmos. É desse modo que

o Estado moderno permite o desenvolvimento da esfera subjetiva humana.

2 Hegel, G. W. F. Cursos de estética, vol. IV. Tr. Marco Aurélio Werle e Oliver Tolle. – São Paulo: EDUSP,

2004, pp. 265-66. A partir de agora, os Cursos de Estética de Hegel do volume IV serão citados como Estética IV.

3 Hegel, G. W. F. Princípios da filosofia do direito, Tr. Norberto de Paula Lima. – São Paulo: Ícone, 1997, p.62. A partir de agora, será citado como Princípios da filosofia do direito.

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Se a forma de organização social à época de Shakespeare prenuncia, ainda não

constitui de forma plena o Estado descrito acima. A Inglaterra do século XVII sem dúvida

configura uma etapa avançada da liberdade individual, mas o alcance de tal liberdade é

apenas parcial. Esta conjuntura – o saber de si como livre mas o ainda não ser parte de

um Estado plenamente desenvolvido - é o que permite o surgimento daquela que é, na

concepção hegeliana, a característica fundamental da modernidade: a autonomia formal

do indivíduo. A liberdade do indivíduo não é ainda concreta, pois guarda a forma da

subjetividade: cada qual se reconhece como livre, mas este reconhecimento faz com que

todos ajam de modo a atingir finalidades não coletivas, e sim, primeiramente,

particulares. A atenção do homem volta-se para si mesmo, para a satisfação de suas

próprias vontades e desejos individuais; toda a finalidade de suas intenções ao pensar ou

agir junto ao mundo está direcionada para a execução de um propósito que é

fundamentalmente particular. Quando analisada junto às relações sociais cotidianas, esta

subjetividade compõe o cenário da luta de todos contra todos, cada qual vivendo a ânsia

de encontrar sua vontade individual satisfeita.

Neste contexto é que, para mediar a liberdade ampliada do homem, cuja

consciência não mais depende de uma autorização divina, religiosamente representada, e

que a partir de agora persegue os próprios objetivos de modo egoísta e exclusivo, se faz

necessária a eticidade do Estado. Esta organização institucional assume a forma universal,

cujas normas e leis regulam as ações do particular. Desse modo, a subjetividade do

homem passa a ser mediada pelo Estado ético e sua liberdade torna-se concreta; na esfera

da sociedade civil em que Shakespeare viveu, contudo, a liberdade subjetiva, ainda não

concretizada nas instituições do Estado, aparece apenas formalmente, pois é determinada

somente pela vontade individual. Compreendemos assim porque Hegel denomina a

autonomia como formal - ela guarda a forma da subjetividade.

No âmbito da representação artística, os personagens de Shakespeare atuam

movidos por uma consciência similar ao do indivíduo da sociedade civil burguesa, isto é,

a decisão e ação heroica estão fundamentadas na mesma liberdade formal, subjetiva,

própria dos sujeitos da sociedade civil burguesa. A estética hegeliana, ao aprofundar-se

na descrição destes heróis, identifica entre eles dois tipos principais, cuja diferença

repousa no modo prático como os mesmos se relacionam com o mundo. De um lado,

temos aquele caráter peculiar, cuja firmeza de caráter executa energicamente seus

objetivos, com inflexibilidade e ausência de reflexão ulterior; como exemplo, Lady

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Macbeth, que “sem nenhuma hesitação, nenhuma incerteza, [...] nenhum arrependimento,

[...] executa sem restrições o que lhe é adequado.”4 De outro lado, Hegel também aponta

para aquele personagem que, incapaz de explicitar exteriormente seu ânimo, persevera

em sua subjetividade5, seu mundo interior e reflexivo; entre estes últimos Hegel posiciona

o jovem príncipe da Dinamarca, Hamlet, que “permanece exposto à mais cruel

contradição [...] por não ter nenhuma habilidade, nenhuma ponte para mediar seu coração

e a efetividade.”6 Mas todos eles, de fato, compartilham de uma mesma autonomia

individual de caráter. Esta autonomia, segundo Hegel, diz respeito à possibilidade que os

personagens, sabendo-se livres, têm de conceber para seus desejos e ações finalidades

que são absolutamente egoístas e particulares – de modo paralelo, portanto, aos homens

livres efetivos da sociedade civil burguesa. Tanto estes indivíduos reais quanto os heróis

dramáticos do drama inglês compartilham do elemento determinante da sociedade civil,

a liberdade formal.

Nossa premissa inicial é, assim, a de que Hamlet, como personagem de

Shakespeare pleno de conteúdo, conserva em sua representação as características

fundamentais do homem moderno – de fato as anunciam através da arte – e pretendemos,

mantendo no horizonte de nossa análise as indicações da estética hegeliana, compreender

o quanto o artista está autorizado a representar o humano no limiar do mundo moderno,

demonstrando ao fim o porquê de um caráter reflexivo e autônomo como o do jovem

Príncipe da Dinamarca somente ter encontrado o espaço adequado para sua manifestação

na arte poético-dramática realizada à época de Shakespeare - a época moderna.

***

O trânsito da sociedade feudal para o modelo moderno de organização social, no

qual as ações individuais são mediadas, de modo imanente, pelas leis universais do

Estado, corresponde ao advento da sociedade civil burguesa. É ela o ponto de ruptura

entre a organização feudal e o Estado dito moderno, e sua efetivação pode ser

compreendida como consequência da exigência da subjetividade do homem, tornada

infinita. Esse grau maior de autoconsciência, que significa no homem o saber de si mesmo

como mais livre, o conduz a buscar satisfação na realização dos próprios interesses

4 Hegel, G. W. F. Cursos de estética, vol. II. Tr. Marco Aurélio Werle – São Paulo: EDUSP, 2000, p. 314. A partir de agora, os Cursos de Estética de Hegel do volume II serão citados como Estética II. 5 Cf. Estética IV, 312. 6 Estética II, 319

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egoístas, ao particularismo dos fins. A necessidade de ação autônoma por parte dos

indivíduos efetivos, por consequência, está na base da constituição da unidade social

estatal, cujas leis medeiam as ações individuais. Os sujeitos da sociedade civil burguesa,

ao se embaterem nesta esfera, buscando vender sua mercadoria e garantir uma satisfação

particular, cada qual tendo como interesse exclusivo a execução de uma finalidade que é

estritamente individual e egoísta, participam dessa forma na luta de todos contra todos, e

somente a constituição de um Estado ético mediador pode garantir sua liberdade. Desta

atividade resulta, por um lado, a divisão do trabalho como forma de aumentar a força

produtiva, e no consequente aumento da riqueza geral; por outro lado, a participação nesta

riqueza fica “condicionada pela aptidão” destes indivíduos, cujas “diferenças de

desenvolvimento dos dons corporais e espirituais, já por natureza desiguais”, os levam a

compor uma sociedade também desigual.7 A liberdade individual, que também está

garantida, é apenas formal, pois as ações particulares devem se submeter à universalidade

das leis vigentes no Estado.

Desde o princípio, compreendemos que há uma relação existente entre os

caracteres heroicos do dramaturgo inglês e os indivíduos efetivos, contemporâneos a

Shakespeare e à produção de sua obra teatral, que na esfera mercantil da sociedade civil

emergente já buscavam atingir seus fins particulares. Hegel aponta o teatro de

Shakespeare como o palco de caracteres cuja potência está exatamente na execução de

objetivos que são estritamente individuais, tendo em vista apenas a autossatisfação, e

cujas ações não se encontram reguladas por nenhuma finalidade universal. Tais

personagens, afirma Hegel, são “colocados de modo autônomo sobre si mesmos, com fins

particulares que apenas são os seus, que provém unicamente de sua individualidade.”8 De

modo análogo, em seus Princípios da filosofia do direito, o filósofo alemão descreve os

indivíduos da sociedade civil burguesa como “pessoas privadas que têm como fim o seu

próprio interesse”9, fato que vem a corroborar para que este modo de organização social

comporte “o sistema da moralidade objetiva perdido em seus extremos”10 e nos ofereça

“o espetáculo da devassidão bem como o da corrupção e miséria.”11 Em ambos os

cenários, tanto o representado poeticamente por Shakespeare quanto o efetivo modo de

7 Cf. Princípios da filosofia do direito, p. 177. 8 Estética II, p.313. 9 Princípios da filosofia do direito, p.171. 10 Idem, p.170. 11 Idem, p.170.

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organização social que passa a ser constituído a partir do fim da Idade Média e início da

época moderna, a subjetividade do homem, regulada apenas por si mesma, pode conduzir

à ausência de eticidade, e consequentemente ceder espaço para a ação arbitrária da

vontade individual, vontade esta que com paixão inabalável persegue seus fins de modo

inflexível, apartada de qualquer pathos universal que a justifique. No âmbito real da

sociedade civil burguesa, a liberdade de escolha e ação individual é mediada pelo Estado,

cujas leis e normas visam a regulá-la. Shakespeare, ao representar personagens que são

eles mesmos reis e príncipes, portanto detentores da aplicação das leis do Estado, alcança

espaço poético adequado para que os mesmos se manifestem como querem. Afirma Hegel

sobre os caracteres mais adequados para a arte poética:

Assim como o estado do mundo mais ideal corresponde principalmente a

épocas determinadas, a arte também escolhe principalmente um determinado

estamento para as formas que deixa aparecer no estado do mundo – o

estamento dos príncipes. E, na verdade, não por senso aristocrático e amor pelo

que é nobre, mas por causa da completa liberdade da vontade e da produção

que se encontram realizadas na representação do príncipe.12

Hamlet ilustra muito apropriadamente a utilização desse estamento. Mas o que

vale ressaltar, em suma, é que, à formalidade da autonomia dos caracteres

shakespearianos encontramos, paralelamente, a liberdade formal dos particulares livres

da sociedade civil. Tanto para uns quanto para outros, tudo e todos são meios de se atingir

um fim individual, sendo este o aspecto principal do mundo moderno – ou seja, a

autonomia meramente formal das particularidades individuais.

Essa relação entre personagens, produtos da fantasia, e indivíduos efetivos,

agentes da história, encontra seu fundamento no solo histórico a partir do qual

Shakespeare compôs seus personagens: a passagem da Idade Média para a Modernidade.

São figuras em parte históricas, nas quais Shakespeare introduz as determinações

subjetivas do homem moderno, ao mesmo tempo em que os situa em épocas do passado,

nas quais os indivíduos ainda podiam agir de forma heroica, com uma maior autonomia,

visto que as leis que deveriam prevalecer então se encontravam temporariamente

suspensas ou relaxadas. Para Hegel, Shakespeare não configura mais o mundo mítico, no

qual a ausência de Estado e de leis permitiria a ação autônoma do herói; todavia, o

dramaturgo inglês situa o enredo de seus dramas em épocas nas quais o Estado e suas leis

estão suspensas. O estado do mundo ideal para a configuração poética, segundo Hegel,

12 Hegel, G. W. F. Cursos de estética, vol. I. Tr. Marco Aurélio Werle –2ª edição – São Paulo: EDUSP, 2001, p. 200. A partir de agora, os Cursos de Estética de Hegel do volume I serão citados como Estética I.

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exige justamente o estado do mundo da autonomia heroica. Desse modo, ainda que

Shakespeare seja moderno, recorre, contudo a um estado do mundo mais propício para a

configuração poética. Diz-nos Hegel que

As figuras (Gestalten) shakespeareanas certamente não pertencem todas ao

estamento do príncipe, e se situam, em parte, sobre um terreno histórico e não

mais mítico; mas elas estão situadas em épocas de guerra civil, nas quais os

elos da ordem e das leis relaxam ou se rompem e, desse modo, alcançam

novamente a independência e a autonomia exigidas.13

No âmbito da poesia, por sua vez, a Idade Média assiste à produção dos textos da

cavalaria medieval, na qual heróis centrados em si mesmos e imediatamente imersos em

um mundo destituído de regras agem de acordo com suas vontades individuais, guiados

pelo critério da honra ou amor subjetivos. A consolidação do Estado moderno vê a

substituição destas obras ainda poéticas pelo romance burguês, cujo teor (Gehalt) é

caracterizado pelo prosaísmo das relações constituídas dentro de uma esfera social na

qual as leis estão estabelecidas e às quais os heróis devem se submeter. Ou seja, a poesia

heroica, um modo de expressão da realidade ainda imagético e menos subjetivo, cede

definitivamente lugar à prosa do pensamento, que é, para Hegel, a forma verdadeira e

adequada de apreender e expressar a realidade moderna. O teatro de Shakespeare é

composto em meio a este ponto de ruptura: por um lado, a forma poética adotada pelo

artista, o teatro dramático, parece carente em apreender com exatidão a realidade agora

prosaica; por outro lado, se ele o faz, é mediante uma reflexão, o que equivale a dizer que

Shakespeare deve submeter a poesia ao crivo do raciocínio. Mais uma vez, a mediação se

faz necessária – assim como a identificamos no processo das relações efetivas entre os

cidadãos da sociedade civil emergente, agora também a temos presente dentro do

processo de criação artístico. Esta ruptura anuncia a crise da arte prevalecente a partir de

então, e definitivamente instalada na modernidade, conforme descreve Hegel:

(...) o estado de coisas da nossa época não é favorável à arte. Mesmo o artista

experiente não escapa desta situação. Ele não é apenas induzido e incitado a

introduzir mais pensamentos em seus trabalhos mediante reflexões que em

torno dele se manifestam e pelo hábito universal de enunciar opiniões e juízos

sobre arte. Pelo contrário, a natureza de toda cultura (Bildung) espiritual faz

com que esteja justamente no centro desse mundo reflexivo e de suas relações.

Ele não poderia abstraí-lo por vontade e decisão pessoais; nem por meio de

uma educação específica ou de um distanciamento das relações humanas

fabricar e formar uma solidão particular, restauradora do que se perdeu.14

13 Estética I, p.201. 14 Idem, p.35.

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Essa mediação da reflexão e do pensamento é de fato a característica que mais nos

interessa ao tratar da arte no contexto da sociedade burguesa embrionária, mundo no qual

os heróis shakespearianos se movimentam. Isto porque a estética hegeliana define a arte

como uma exposição imediata do conteúdo espiritual do homem: ela é a forma que traduz

imageticamente, de modo sensível, a partir da manipulação do natural, a subjetividade

humana. Hegel aponta a polis ateniense clássica como o solo histórico no qual essa

tradução – a de representar objetivamente o espiritual do homem – é idealmente

consumada através da escultura grega, objeto de beleza ideal. Essa adequação ideal entre

forma e conteúdo se dá porque a experiência do povo grego não separava a particularidade

individual da universalidade do Estado. Cada cidadão ateniense dedicava sua existência

não à satisfação de vontades exclusivamente individuais e subjetivas, conforme vimos

acontecer no mundo da sociedade civil burguesa. Aos gregos interessava, acima de tudo,

o bem universal do Estado mesmo, pois isto representava imediatamente o bem individual

e a garantia particular da liberdade. Esses homens, que se davam as próprias leis,

corporalmente presentes na ágora e sem mediadores que os representassem, não

admitiam uma separação entre a vontade particular e a vontade coletiva, pois ambas eram

uma mesma e única. Sua liberdade era assim traduzida em arte pela escultura, que

representava tanto o divino quanto o Estado – as esferas da arte, da religião e da eticidade

viam-se uniformemente expressas, e o modelo dessa expressão era o próprio corpo do

homem. A liberdade entre os gregos mostra-nos dessa forma seu caráter objetivo, e ajuda-

nos a compreender porque, a partir da relação de totalidade que permeia todas as esferas

da vida grega, a arte encontra nela o solo histórico na qual encontra sua forma ideal de

expressão.

Contudo, ainda que a dissolução da democracia ateniense e o posterior advento do

cristianismo conduzam a humanidade a uma etapa de liberdade superior e de maior

subjetividade, na qual cada homem passa a lutar por seus interesses individuais, a arte,

em contrapartida, perde progressivamente o caráter de expressar adequadamente a

verdade do homem. A fragmentação leva o humano à bipolaridade do subjetivo e

objetivo, indivíduo e Estado, razão e sensibilidade, particular e universal, e conduz, desde

seus primórdios no seio mesmo da experiência grega, a uma dissolução de um modo de

expressão exclusivamente sensível como o da arte: pois o subjetivo do homem, antes

satisfeito na configuração imediata do Belo artístico ideal, não mais encontra nessa forma

objetiva de exposição um modo adequado de manifestar-se. A constituição da sociedade

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civil moderna representa o grau máximo dessa fragmentação, o que nos leva às questões

que permeiam esta pesquisa. Afinal, sendo a expressão artística uma apreensão imediata

do absoluto, como conceber sua configuração numa realidade cuja verdade se faz

necessariamente constituída por mediações? Que princípio de exposição ainda regula a

poesia quando esta se vê confrontada pelo prosaísmo da efetividade burguesa? Quais as

consequências que esta dialética imprime na constituição da arte mesma, configurada em

meio às mediações de um território regido pelo conceitual? O cenário da modernidade,

tal como se pode perceber com base nesta análise, torna-se inóspito a uma compreensão

imediata do divino espiritual. As representações artístico-religiosas, configuradas na

experiência medieval, não encontram nesse cenário um espaço de permanência. A vida

burguesa repele o poético e favorece uma apreensão prosaica da realidade. Assim, ao

deter o olhar sobre a arte produzida nesse momento de ruptura, busca-se no fundamento

desta produção, junto aos atos e ações dos heróis shakesperianos, aquilo que os torna

especificamente modernos – busca que tende, em última instância, a nos conduzir para a

compreensão do estatuto que a poesia de Shakespeare conserva como forma de expressão

espiritual mesmo diante de um mundo insatisfeito com o poético e ávido de conceito,

mundo no qual a beleza da arte perece para que dela nasça a fria reflexão do pensamento

conceitual.

***

A afirmação de que a forma poética dramática, conforme apreendida por

Shakespeare, é aquela que representa sensivelmente (portanto, na forma artística) o

interior subjetivo característico dos particulares livres, indivíduos efetivos da sociedade

civil burguesa germinal, leva-nos então a uma questão inicial: por que a poesia, e

destacadamente a poesia dramática, ocuparia um lugar privilegiado no sistema das artes

particulares para a objetivação adequada no modo sensível, ou seja, como obra de arte,

de um grau maior da liberdade e subjetividade humanas? E mais, como compreendermos

a adequação entre o trabalho do poeta, William Shakespeare, e o solo histórico no qual

ele produziu sua obra, a Inglaterra do século XVII, guardando a relação estreita que há

entre a autonomia formal de seus heróis e a liberdade formal dos indivíduos que se

moviam nessa sociedade? Para tanto, é preciso inicialmente situar a arte poética dentro

do sistema estético hegeliano, buscar por seu conceito e estabelecer as razões de sua

primazia na questão a ser abordada, para posteriormente nos aprofundarmos nas relações

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entre a poética dramática de Shakespeare e o solo histórico do qual ele emerge. O capítulo

primeiro dedica-se a esta tarefa.

A poesia, de acordo com Hegel, é a arte universal. Por ter como seu elemento

constituinte a maleável e imaterial linguagem do discurso, organizada de modo imagético

e belo, ela circula com um alto grau de liberdade em meio ao reino das artes particulares.

A linguagem é o modo de expressão mais imediato do homem, e também constitui a

forma prosaica e moderna de exposição do espírito, o conceito – razão essa pela qual a

poesia se apresenta tanto na origem das civilizações como nas etapas avançadas de seu

desenvolvimento. A epopeia dos antigos, a lírica medieval e o drama elizabethano

ilustram a verdade dessas assertivas, tanto exemplificando o alcance de exposição

objetivo e subjetivo que a poesia alcançou junto aos povos, como também a capacidade

de penetração que ela obteve em todas as etapas de evolução da expressão humana,

perpassando culturas diversas e distantes com igual força expressiva. A palavra, signo do

pensamento e base de sua formação, é, devido a sua plasticidade elementar, o elemento

que melhor desenvolve qualquer tipo de exposição relacionada ao espiritual do homem –

e pode ser utilizada para expor com amplo grau de liberdade questões objetivas, narrativas

exteriores de ações e conquistas, como também volta-se para o interior e subjetivo

humano, os sentimentos, as expectativas. Enquanto outras formas de arte esbarram nos

limites do próprio material que as compõe – como os blocos de pedra da arquitetura e

escultura, a cor e luz da pintura ou o som em organização harmônica da música – a poesia,

caminhando com mais autonomia no ambiente das representações e significados

interiores, menos presa, portanto, à matéria sensível, aproxima-se do pensamento

conceitual e expressa todo o conteúdo que o espírito humano deseja. O próprio

desenvolvimento histórico das artes denota o gradual distanciar-se da matéria bruta e

exterior como elemento usado na composição das obras de arte: da pesada escultura, para

o uso de materiais leves e interiores como a luz, base da pintura. A poesia desprende-se

quase por completo do elemento natural e se eleva por isso ao estatuto de “arte universal

do espírito tornado livre em si mesmo e que não está preso ao material exterior e sensível

para a sua realização.”15 Por ter nas palavras seu elemento distinto, o qual ela compartilha

com a prosa do pensamento, a única barreira que a distingue, de fato, do raciocínio

especulativo é seu caráter de imagem – e nessa fronteira tênue a poesia revela sua

15 Estética I, p.102.

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fragilidade em manter-se como figuração sensível, e anuncia, na verdade, as formas mais

desenvolvidas de exposição do espírito, religião e filosofia.

O conceito de poesia e a compreensão de seu estatuto como arte mais

desenvolvida nos leva às questões do segundo capítulo. Nele abordaremos de que modo

o personagem alvo deste trabalho, Hamlet, caráter do drama moderno e oriundo de uma

realidade na qual as relações são formalmente mediadas pelas normas de um Estado

desenvolvido, difere fundamentalmente dos heróis configurados na bela tragédia antiga a

partir da experiência grega de totalidade, na qual a particularidade do indivíduo não se

separa da universalidade do Estado ético. Para demonstrar de forma ilustrativa a

contraposição entre a poesia grega e a de Shakespeare, e portanto entre a subjetividade

menos desenvolvida do homem imerso na experiência da totalidade grega em contraste

com o desenvolvido saber-de-si expresso pelo indivíduo do fragmentado mundo moderno

da era shakespeariana, utilizaremos o texto de Electra, a tragédia de Sófocles, de um lado,

e o drama Hamlet, príncipe da Dinamarca, do outro.

Electra tem como base para o fundamento de sua ação uma vingança orientada

pelos deuses: Clitemnestra e seu amante Egisto tramaram contra a vida do rei Agamenon;

Orestes e Electra, filhos legítimos do rei, devem vingar-se dos assassinos (ainda que entre

eles esteja sua própria mãe), recuperando o trono que lhes é de direito. Uma colisão

semelhante guia o enredo de Hamlet no drama moderno: o rei foi morto; a rainha viúva

desposa o assassino; o fantasma do rei aparece ao filho, o príncipe Hamlet, e o incumbe

de vingar-se e recuperar o trono. A despeito dessa similaridade superficial, cabe-nos aqui

ressaltar a diferença fundamental entre as duas concepções de mundo dos quais tais obras

emergem. Enquanto, entre os gregos, a vingança de Orestes e Electra lhes parece ter

legitimidade ética, questão essa que é a principal da obra e em torno da qual gira toda a

ação da tragédia, em Shakespeare, contudo, o interesse da intriga ultrapassa a mera

exposição de eventos objetivos e volta-se potencialmente para a subjetividade de Hamlet,

seu questionamento particular em cumprir ou não a vingança requerida.

Na base desta diferença, está a autonomia dos personagens, como Hegel as

compreende: a autonomia de Hamlet tem como origem sua subjetividade, permanecendo

nele apenas como formal – e estando divorciada de qualquer substancialidade que a

sustente. Tanto é assim que o enredo da peça trata, como dissemos, da sua dúvida em

levar a cabo ou não essa vingança. A imediatez da ação, em si mesma justa, é refreada

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pela reflexão e liberdade de escolha do indivíduo. Já em Sófocles temos um cenário bem

distinto: a vingança de Orestes, por também ser justa, como a de Hamlet, é imediatamente

executada, pois se dá dentro de um estado em que o ético e o justo dependem da

autonomia individual para que sejam efetivados, autonomia alicerçada na unidade da ação

heroica com o valor comunitário sustentado pela divindade que preside a ação.16 A

particularidade do herói é que configura, ela mesma, a validade da lei, e ele “a executa

segundo “sua virtude particular, e não segundo o juízo e o direito.”17 Esta realidade social

atribui ao homem uma autonomia individual, somente possível na época dos heróis,

relativa a estados legais ainda em formação ou épocas de guerra na qual as leis e normas

se veem temporariamente suspensas. A atividade heroica encontra terreno para sua ação

ao instituir ela mesma o que é válido ou não, a partir de sua autonomia individual,

autonomia que está em unidade com a universalidade dos valores comunitários que

encontra na particularidade do herói a sua realização. Sobre a verdadeira autonomia dos

personagens do estado universal do mundo heroico, afirma Hegel que

A verdadeira autonomia consiste unicamente na unidade e na interpenetração

da individualidade e da universalidade, na medida em que o universal

igualmente apenas adquire realidade concreta por meio do singular, enquanto

o sujeito singular e particular apenas no universal encontra a base inabalável e

o autêntico Conteúdo de sua efetividade.18

Nesse segundo capítulo trataremos da contraposição entre a tragédia grega e o

drama moderno, conforme as mesmas nos revelem da autonomia individual heroica em

contraste com a autonomia formal dos heróis shakespearianos, do estado poético e do

prosaico do mundo nos quais eles se movem, da legitimidade ética dos heróis gregos e de

sua superação pela subjetividade mais desenvolvida do homem moderno.

Por fim, poderemos dar espaço às questões que surgem a partir da análise indicada

acima. A primeira é compreender o estatuto que a arte conserva em expor o espiritual do

homem à época de Shakespeare; enquanto na experiência da Grécia antiga o substancial

do espírito encontra sua efetivação adequada na forma objetiva da arte, a fragmentação

própria da modernidade leva o humano, agora plenamente consciente de si, a regiões que

somente podem ser indicadas, mas nunca apropriadamente preenchidas, pela

16 É necessário observar que, assim como Shakespeare situa a ação de Hamlet na Idade Média (um terreno mais propício para a ação heroica), assim também Sófocles situa a ação de Electra em uma época remota de formação do Estado. Afinal, a Atenas onde viveu o tragediógrafo grego já possuía suas leis e normas instituídas. 17 Estética I, p.194. 18 Idem, p.190.

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representação sensível. “Há algo dentro em mim que não parece”, lamenta-se Hamlet, ao

constatar que nem sua vestimenta, nem seu semblante, nada, em verdade, poderão nunca

defini-lo.19 Para Hegel, a arte atinge aqui seu limite em expor o conteúdo tornado infinito

da subjetividade humana. É a questão da morte da arte.

Se Hamlet, convocado a cumprir uma vingança em si justa, duvida e pondera,

podemos afirmar por fim que sua liberdade de escolha subjetiva está no fundamento dessa

hesitação. O príncipe da Dinamarca, roubado que foi do trono e coroa que lhe são

tradicionalmente de direito, como carácter moderno submete seu agir ao crivo do

raciocínio – e se imobiliza diante da ação, sempre adiada, substituindo-a pela reflexão,

nunca definitiva. “O natural frescor de nossa resolução”, exclama Hamlet, “definha sob

a máscara do pensamento!”.20 O personagem, despido das vestes reais, encarna a angústia

do homem no limiar da modernidade, que é também própria do período moderno que se

inicia. Resta-nos, assim, caracterizar criteriosamente, a partir de Hegel, o grau de

subjetividade concedido por Shakespeare à sua criação mais famosa, e relacioná-la àquela

que é específica do homem propriamente moderno. Autoriza-nos Hegel a reconhecer em

Hamlet, imobilizado pela contradição de sua reflexão, um precursor do indivíduo

romântico, este ser anfíbio que “precisa viver em dois mundos que se contradizem, de tal

sorte que a consciência, nesta contradição, também se dirige para cá e para lá, e jogada

de um lado para o outro, é incapaz de satisfazer-se por si tanto num quanto noutro lado”21?

Afinal, a modernidade colocou o homem diante de si e de sua finitude; por um lado ele é

“aprisionado na efetividade comum e na temporalidade terrena”, por outro se ergue “para

as ideias eternas, para um reino do pensamento e da liberdade”. O que ele aspira, neste

contexto, “é a região de uma verdade mais alta, mais substancial, na qual todas as

contraposições e contradições da finitude podem encontrar sua última solução e a

liberdade sua completa satisfação.”22 Se a poesia carece de uma solução para esse embate,

e meramente o configura numa representação artística que permanece na contradição,

19 Shakespeare, William. Hamleto, Príncipe da Dinamarca, tr. br. Carlos Alberto Nunes, Rio de janeiro: ed.

Ediouro S.A. p.26. A partir de agora, será citado como Hamleto. Escolhemos a tradução de Hamlet de

Carlos Alberto Nunes, para citar ao longo desta dissertação, por nos ter parecido a mais rigorosa. O tradutor escolheu modificar o nome próprio do príncipe para Hamleto. Manteremos, contudo, sua forma tradicional, ainda que essa modificação do tradutor apareça em algumas citações.

20 Idem, p.74. 21 Estética I, p.72. 22 Cf. Estética I, p.114.

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para Hegel, cabe à “filosofia superar estas contraposições.”23 É somente ela, neste estágio

de desenvolvimento da liberdade, que pode conceituar a gênese e o sentido do fenômeno

artístico, alcançando uma compreensão que abarca o mistério de Shakespeare e sua

criação maior, Hamlet, fazendo a relação adequada entre a exposição artística e a

subjetividade do homem que a configura. Pois, afinal, para Hegel, apenas a especulação

conceitual se apresenta como a forma verdadeira para pensar a arte na época moderna

23 Estética I, p.73.

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2 O CONCEITO DE ARTE E POESIA EM HEGEL

Shakespeare, dramaturgo e poeta, trabalha, de acordo com a concepção

estética hegeliana, com o material apropriado para a exposição artística do que há de

mais subjetivo no homem – a palavra, os sons na forma de fonema e grafia situados no

horizonte da linguagem e responsáveis pela elaboração do discurso, elemento

constituinte tanto da poesia quanto da prosa do pensamento.

A poesia é, portanto, nosso objeto inicial de estudo. Neste primeiro capítulo

buscaremos definir seu conceito dentro da Estética hegeliana. Partimos da premissa

inicial de que tanto a arte poética quanto a arte em geral servem ao homem como meio

objetivo de expor um conteúdo que é interior e espiritual, o qual identificamos como a

própria liberdade, atributo da autoconsciência. Em seguida, uma análise das

manifestações de arte ao longo do processo histórico nos mostrará de que modo a

subjetividade do homem - o saber de si como livre - está condicionado pelo domínio e

posterior afastamento de uma dependência imediata junto à natureza. Nosso objeto de

estudo constitui-se inicialmente pelas artes particulares da arquitetura, escultura, pintura,

música e poesia, a medida em que elas mostram a busca, o encontro e a dissolução desse

conteúdo da subjetividade absoluta nas Formas Simbólica, Clássica e Romântica de arte:

a primeira dessas formas anseia pela adequação de ideia e conteúdo, a segunda o realiza

e a terceira o ultrapassa. Ao fim desse processo, numa etapa moderna de desenvolvimento

da liberdade, a poesia dramática de Shakespeare e a autonomia de seus personagens

apontam para a inadequação entre a subjetividade moderna, tornada infinitamente livre,

e sua exposição poética, incapaz de expressá-la plenamente. Hamlet, como herói do

drama moderno, reflete o caráter essencial dessa ambiguidade, e nos servirá como

exemplo e objeto de análise.

2.1 A EXPRESSÃO DA LIBERDADE, ESSÊNCIA DO HOMEM, ATRAVÉS DA

ARTE

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Para Hegel, a arte é “a exposição sensível do próprio absoluto.”24 Podemos

encontrar nas obras da bela arte “o primeiro elo reconciliador entre o mero exterior,

sensorial e passageiro, e o puro pensamento, entre a realidade natural e finita e a infinita

liberdade do pensamento compreensivo.”25 Assim, de acordo com a filosofia

especulativa, o absoluto – aquilo que é eterno, verdadeiro e infinito – se deixa ver melhor

a si mesmo através do homem. O finito - a autoconsciência humana - ao desenvolver-se,

pressente esse absoluto e o configura exteriormente em obras de arte – de modo a elevar

o natural transitório à expressão dessa verdade última e imutável. A produção artística

tem como finalidade, assim, transfigurar e idealizar a natureza, realidade objetiva, de

modo a manifestar nela, através de objetos sensíveis, a essência mesma da realidade. Essa

essência, espiritual e interior, transparece então de modo sensorial no objeto de arte, e o

critério de sua verdade é a beleza. O belo funciona, desse modo, como “o reflexo sensorial

da ideia.”26

Mas que ideia é essa, o absoluto hegeliano? Que conteúdo é esse que o

espírito busca alcançar e expor sensivelmente, expressando-o de modo inicial e imediato

através da transfiguração dos materiais que ele encontra diante de si na natureza,

modificando-os em belas obras de arte? Os adjetivos eterno, infinito e absoluto,

comumente referidos a este conteúdo, o definem apenas de maneira abstrata. Contudo, o

pensamento hegeliano considera a abstração apenas como o momento inicial da ideia, que

deve posteriormente vir ao mundo efetivo e realizar-se nele de forma concreta.

Busquemos então pela concretude daquilo que, ao qualificarmos como absoluto, está

caracterizado somente de maneira ainda indefinida, totalmente indeterminada.

Hegel afirma que a necessidade de sentido, de um princípio último do ser, o

homem a encontra na expressão de sua liberdade, “determinação suprema do espírito.”27

Podemos, dessa forma, compreender que o conteúdo absoluto pelo qual indagávamos é a

liberdade mesma. Enquanto a natureza determina o animal, que vive em satisfação com

as coisas que o rodeia, o homem, diante da insatisfação que os limites da mesma natureza

lhe impõem, determina a si mesmo, e também ao mundo natural - coisas e animais com

os quais se relaciona - pois conhece a si mesmo como livre. Nisso reside o conceito de

24 Werle, Marco Aurélio. A poesia na estética de Hegel – São Paulo: Associação Editorial Humanitas:

Fapesp, 2005, p.42.

25 Estética I, p.21. 26 Idem, p.151. 27 Idem, p.112.

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liberdade. Ser livre é autodeterminar-se. Os objetos exteriores, simplesmente naturais, por

não terem autoconsciência, estão sujeitos às leis previamente determinadas de fora; o

reino da matéria, por exemplo, encontra seu centro fora de si, na lei exterior da gravidade,

e a ela obedece impreterivelmente; se entre os animais surge a possibilidade de escolha,

observamos que eles ainda “vivem em satisfação consigo e com as coisas que estão à sua

volta”28, portanto obedientes a uma imposição da natureza. Nela ‘não reina a liberdade,

mas a necessidade; pois necessidade é justamente, em sua significação mais própria, a

relação apenas interior – e portanto também apenas exterior – de existências autônomas,

umas com as outras.”29 O humano, contudo, relaciona-se consigo mesmo. Seu espírito

torna-se seu próprio objeto. E ao perceber-se apartado do mundo exterior, o arbítrio que

há nele aponta para a essência mesma que o constitui, sua liberdade. Em contraposição

ao simplesmente natural, exterior e contingente, submetido às vicissitudes gerais do

mundo, vemos no homem seu interior, a subjetividade, como o centro; o homem não está

mais simplesmente sujeito às leis que regem eternamente o exterior, mas ele mesmo se

coloca como o instituidor de leis e criador de seu próprio mundo. Neste sentido é que

podemos compreendê-lo como espírito.30

2.2 A ARTE COMO UM AFASTAMENTO DA NATUREZA

O saber de si como livre, como tendo seu centro em si mesmo, impulsiona o

homem a expressar-se – e esse primeiro modo de manifestação da liberdade, entendida

como aquilo que o homem tem de divino e imperecível, é a arte. Seu objetivo é, como

dissemos, elevar a materialidade natural à categoria da beleza. Há um belo natural, sem

dúvidas; podemos constatá-lo em um pôr-do-sol ou numa paisagem exuberante. Contudo

tal beleza está sujeito às determinações da própria natureza –e, assim, carente de

liberdade. Uma flor, afinal, não tem sua beleza em si mesma, mas somente naquilo que o

28 Estética I, p.112. 29 Enciclopédia das ciências filosóficas III, Filosofia do Espírito. Tr. Paulo Meneses. – São Paulo: Loyola, 1995, p. 16. A partir de agora, será citado como Enciclopédia das Ciências Filosóficas III. 30 Hegel relaciona esta imagem do espírito livre do homem à visão cristã do divino, que é livre por ser

determinado apenas por si mesmo, e por ter criado o mundo a partir de sua própria vontade. Também o homem “se assemelha a Deus, pois (...) cria um mundo a partir de si mesmo”, submetendo à ação da própria vontade “sua vida e das demais criaturas que o cercam” (Poesia e Prosa, p.95), a ponto de constituir leis próprias e habitar um Estado racional onde prevaleça a determinação dessa liberdade.

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olhar humano lhe atribui. Nem tampouco é eterna, mas passageira, sujeita às vicissitudes

do tempo, isto é, sujeita à necessidade: finita e não-livre, é incapaz de expressar o

conteúdo absoluto pelo qual o espírito anseia. Já o belo artístico é de outra categoria:

enquanto ideal, ele é a realização da ideia. A obra de arte genuinamente bela encontra a

beleza em si mesma, livre e imorredoura, conforme tal beleza lhe foi não apenas atribuída

pelo olhar humano, tal qual no exemplo da flor, mas configurada pelas mãos do próprio

homem em obras de arte, de modo a expressar, em última instância, na liberdade desta

configuração, a liberdade do espírito mesmo que a constitui. Os objetos naturais,

destituídos de valor, são arrancados da existência momentânea e elevados à beleza por

este ideal humano. Para Hegel este é o milagre da idealidade produzido pelo artista: Ele,

manipulando a perecível matéria exterior, consolida “em duração o que na natureza é

passageiro”31, e reconduz o contingente à liberdade, o ideal. Em resumo, a forma arte

configura o conteúdo liberdade (do conceito, da ideia, do absoluto) em um modo de

expressão sensível.

É através da elevação do meramente natural à categoria do belo que pela vez

primeira se manifesta “a concordância do homem com Deus ou a divindade do

humano”32. Esse caráter de divino com o qual a fantasia artística apreende sua verdade

espiritual impregna o mundo das representações da arte, constituindo, de fato “o ponto

central de suas exposições”33. Temos aqui que nosso conteúdo, concretizado

modernamente como liberdade, assume em sua manifestação primordial mais abstrata

uma identidade com Deus, o qual guarda as características mencionadas de eterno,

infinito, imutável, uno, absoluto – e ao modelar o natural para expressar o espiritual, a

humanidade cumpre primeiramente uma determinação religiosa através da arte. Do nosso

ponto de vista moderno e prosaico, vemos que as civilizações em seus primórdios não

faziam, de fato, a distinção que fazemos entre ambas: arte e religião nos mostram em suas

primeiras manifestações a relação íntima na qual estavam imiscuídas. As obras de arte

iniciais foram sempre tentativas de representar os deuses, ou estavam ligadas aos rituais

a eles relacionados: rituais de culto, como templos e estátuas; de passagem e morte, como

as pirâmides e decorações tumulares. Para Hegel, arte e religião compartilham assim do

31 Cf. Estética I, p.175. 32 Silva Filho, Antonio Vieira. Poesia e Prosa. Arte e filosofia na Estética de Hegel – Campinas: Pontes Editores, 2008, p. 95. A partir de agora, será citado como Poesia e Prosa. Queremos salientar que esse trabalho de Antonio Vieira nos serviu como base fundamental das interpretações que permeiam os conceitos presentes no presente capítulo. 33 Estética I, p.185.

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mesmo conteúdo, expor o divino, e diferem apenas na forma com a qual levam a cabo

sua finalidade: a arte o expõe sensivelmente, através da imagem figurada; a verdadeira

religião34 o representa interiormente, abdicando do sensível. O pensador alemão acredita

que não somente elas, como também a filosofia, em etapas posteriores de

desenvolvimento da liberdade humana, serve ao mesmo propósito – expor Deus.

Entretanto, a filosofia o faz através do conceito, da elaboração lógica do pensamento

filosófico-especulativo. Se há uma semelhança entre as três, relativa à finalidade que

buscam alcançar, no entanto arte, religião e filosofia se separam ao longo do tempo,

conforme a história se desdobra. Cabe-nos aqui perguntar por que a arte antecede as outras

duas formas, surgindo como manifestação primeira do divino no homem.

A resposta pode ser encontrada no modo segundo o qual a arte opera: a

transfiguração da natureza em obra de arte ideal. Da mesma forma que o homem encontra

as satisfações de suas carências mais imediatas no mundo objetivo, ele busca também

suprir esta carência superior, vinculada à ideia mesma, naquilo que se apresenta diante de

si, o reino do natural com seus elementos sensíveis. Isto acontece, segundo Hegel, porque

a consciência de liberdade se apresenta inicialmente ao espírito quando este ainda se

encontra em um estreito vínculo de necessidade junto à natureza. A primeira forma de

apreensão da verdade chega ao homem através de “um saber imediato, e exatamente por

isso sensível35, trazendo esta verdade à consciência por meio da intuição e da sensação. É

de se esperar, portanto, que as primeiras tentativas humanas de representar o divino

tenham tomado a forma de obras artísticas. O espírito, cuja liberdade é ainda pouco

determinada e cuja subjetividade não está de todo desenvolvida, busca uma forma de

exprimir-se naquilo que encontra imediatamente diante de si – e o que ele encontra de

imediato é o mundo natural mesmo, uma fonte de diferentes estímulos que afetam

diretamente sua sensibilidade e dão origem ao que Hegel chama de certeza sensível. É

neste estágio que o homem, recebendo então do mundo exterior os diferentes elementos

sensibilizantes passíveis de serem moldados como subjetivamente expressivos, os

manipula de forma intuitiva – a natureza, portanto, concede a matéria prima com a qual

o espírito compõe as primeiras obras de arte. Devemos compreender, conforme indica

Hegel, que é assim necessário ao espírito manifestar-se primeiramente através da arte: as

carências já presentes no animal, como a fome e a sede, também retiram da natureza os

34 Para Hegel, o cristianismo é esta religião. Ela não mais necessita do sensível, diferentemente

das religiões politeístas dos gregos, egípcios, hindus, romanos, etc.) 35 Estética I, p.116.

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meios para a sua satisfação imediata. Para o homem, apropriar-se do natural de forma a

modificá-lo e concebê-lo como um objeto do espírito corresponde à satisfação de uma

carência em um nível seguinte ao das carências meramente fisiológicas. O homem, que é

a totalidade tanto do corpo quanto do espírito, progride em seu autoconhecer-se como não

apenas o corpo, matéria sujeita a leis fisiológicas, mas também como interior e subjetivo.

Em consequência, torna-se a ele necessário modificar a realidade imediata que se

apresenta diante de seus sentidos, a natureza mesma, numa tentativa de aproximá-la dessa

outra realidade, interior e subjetiva, configurando-a imageticamente em obra sensível.

Desse modo, na expressão de sua liberdade, conteúdo supremo, o espírito

busca conquistar a totalidade que ele é, mas da qual se vê cindido nas contingências do

mundano; e seu produzir artístico coincide com o seu encontrar na imediatez da natureza

um meio inicial de dar corpo às aspirações interiores que lhe agitam o espírito. É a

tentativa de suprir a cisão entre objeto e sujeito, de curar o corte presente entre a

subjetividade e o mundo exterior. O objeto é erguido, pela beleza, ao espiritual do sujeito,

mediante à transfiguração ideal que este último lhe imprime ao manipulá-lo para este fim.

Essa modificação do meramente natural, visando expressar a verdade da liberdade do

interior subjetivo, é a atividade mesma da arte – “o interesse pela beleza e a satisfação

espiritual com as suas configurações”36.

No entanto, essa necessidade de aproximar o mundo natural do espiritual,

objetivo maior da arte, só encontra espaço de atuação quando aquelas carências mais

urgentes, também prioritárias para os animais, sejam elas a necessidade de alimento ou

de bebida, a segurança de um abrigo contra o frio e a chuva etc, já foram saciadas. Em

relação ao homem, esta esfera de carências naturais imediatamente postas exige-lhe uma

modificação do natural que inicialmente é utilitária: a limpeza do terreno para o cultivo,

a elaboração de uma ferramenta de caça ou pesca, a construção e manutenção de um

abrigo. Numa palavra, o trabalho. Ele necessariamente antecede a arte, pois

...o espírito tem de retirar-se em si mesmo da natureza, elevar-se sobre ela e

superá-la, antes que esteja em condições de imperar desimpedidamente nela

como em um elemento que não oferece resistência e configurá-la em uma

existência positiva de sua própria liberdade.37

36 Estética I, p.110. 37 Estética II, p.173.

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O trabalho, atividade prática e com fins utilitários, anterior às manifestações

artísticas da fantasia, é aquilo que propicia ao homem este retirar-se em si mesmo e

elevar-se sobre a natureza, já que a ele liga-se o desenvolvimento inicial do pensamento

e da razão: ao manejar a matéria bruta, com a qual elabora um instrumento, o homem

submete o mundo objetivo à ação posta por seu próprio querer, mediante uma finalidade

racional. Logo, modifica e recria a natureza, mas também a si, pois se liberta

criativamente de uma necessidade que é cumprida por outros animais de modo apenas

intuitivo. O pensamento revela ao homem a universalidade, para a qual ele se eleva,

contraposto a partir de então ao mundo da particularidade limitadora no qual vivem as

outras espécies. Aquilo que fora determinado exteriormente como lei natural, o plantio e

a colheita, a distância entre a caça e o predador, o local casual de abrigo ao inverno, é

agora posto pelo próprio interior do homem, seu pensar, que o distingue e determina sua

relação de domínio perante o mundo exterior. No cultivo da semente, na domesticação do

animal, na construção do abrigo, no controle do fogo, o homem mostra seu afastamento

de uma dependência do meramente natural e forja, podemos dizer, na medida desse

afastar-se, sua própria subjetividade. A atenção inicialmente voltada por completo para o

mundo exterior desperta para a existência de uma natureza interna, espiritual, subjetiva,

contraposta àquela material e sensível. Essa percepção é a autoconsciência. E quanto mais

o homem exerce seu domínio sobre o natural, e mais se liberta do modo de dependência

que o liga a ele, também mais a percepção autoconsciente se intensifica, e mais o torna

livre, em um processo de contínuo evoluir espiritual. Seu afastamento da natureza o faz

por fim constituir para si um mundo racional, a sociedade na qual as leis, a moralidade,

as instituições, dadas por ele mesmo, passam a regê-lo.

Vivendo em um Estado racional, onde estão postas as normas que a própria

consciência do homem outorgou, podemos encontrá-lo em satisfação com suas carências

primordiais. Ao ter conquistado o tempo livre do lazer, e vivendo numa sociedade

organizada, o espírito está enfim capacitado a liberar-se do contato imediato com o mundo

natural e elevar-se em definitivo para as regiões de sua espiritualidade. Somente aqui o

lazer, conquistado pela organização social e responsável por horas livres de interação

social e repouso, concede ao homem o tempo necessário para que ele, volvendo mais

profundamente o olhar sobre si mesmo, mergulhe em seu interior subjetivo e introduza,

a partir dessa percepção do espírito, uma necessidade diversa, a de expressar seu reino

subjetivo para os outros homens – o divino - dando a este conteúdo espiritual forma e

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contorno sensível no reino familiar da matéria. A arte surge, então, como primeiro modo

de expressão dessa interioridade, e tem a seu favor a técnica fornecida pela manipulação

da natureza antes aplicada ao trabalho prático, e que neste momento pode ser conduzida

à composição de obras figurativas. Na concepção hegeliana, é com o Estado, portanto,

que surge a arte propriamente dita, sendo qualquer manifestação anterior uma preparação

desse estágio.

Esta afirmação parece entrar em conflito com a que fizemos anteriormente,

ao destacar o Estado configurado com leis e normas como dissolutor da arte, já que as

mediações internas conduzem os homens a adotar a prosa do entendimento como

expressão do absoluto, a liberdade autoconsciente. Isto, todavia, é o que acontece em um

Estado já plenamente desenvolvido, tal qual o moderno. Pois os Estados também

evoluem, conforme outorgam menor ou maior liberdade aos seus cidadãos. Devemos

compreender sua configuração – assim como a de todas as outras esferas cuja origem está

na livre determinação do homem, seja a arte ou a religião, a moral e a filosofia – como

oriunda da mesma consciência de liberdade que historicamente se apresenta. Logo, todas

estas esferas compõem uma totalidade que nos serve como índice de liberdade geral de

um povo, a ser igualmente deduzida a partir de qualquer uma delas.

Estamos aptos então a compreender a definição de arte conforme indicada

pela Estética: ela é um apelo aos nossos sentidos, constituído na forma de imagem; e sua

finalidade é tornar imediatamente exposto numa forma sensível o conteúdo espiritual do

homem. Este processo acontece, de acordo com Hegel, dentro de um Estado formado, e

podemos chamar as tentativas que a precedem de pré-arte. No seu desenvolvimento

histórico, ela dá lugar à religião e à filosofia, formas mais evoluídas para expressar o

divino.

2.3 O DESLOCAR DO CENTRO: DE DEUS AO HOMEM COMO DIVINO

Hegel compreende a História humana, o desenrolar dos eventos no tempo,

como a progressão da consciência da liberdade.38 Ela é em princípio apenas ideal, uma

38 Cf. Hegel, G. W. F. Introdução à História da Filosofia, Tr. Euclidy Carneiro da Silva. – São Paulo: hemus editora LTDA, 1983, p. 473. A partir de agora será citado como Introdução à História da Filosofia.

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abstração do pensamento; contudo, se efetiva concretamente no mundo na medida em que

os povos, de modo gradual, dominam a natureza e se desvinculam do imediatamente

exterior e natural, constituindo um Estado organizado e regulado por leis. Esse processo,

que gera e é gerado por um espírito cada vez mais consciente de si como livre, é primeiro

intuído e expresso na objetividade do mundo pelas obras da bela arte; posteriormente, a

religião o representa no interior subjetivo, e finalmente o pensamento mesmo, fonte da

razão e da constituição da realidade humana, o conceitua com a filosofia. Neste percurso

foram fundados Estados cada vez mais livres: se em seus primórdios as civilizações

conheceram formas de governo em que apenas um ou poucos comandavam enquanto

todos ou a maioria era coagida a obedecer, assistimos a partir do moderno mundo cristão

o momento em que a liberdade individual passou a ser conhecida e propagada pela

religião, como privilégio não de alguns membros de uma comunidade, nem pertencente

a este ou aquele povo ou nação de maneira exclusiva. A humanidade inteira é igualmente

livre, fato que deve ser reconhecido nos Estados atuais prosaicos.

De acordo com o filósofo alemão, a racionalidade do homem é a responsável

pelas conquistas da liberdade na história. Em seu trajeto, o pensar, essa “atividade que

distingue o homem”39, o lança daquela mera abstração inicial de si como livre à

subjetividade infinita que o caracteriza na era moderna. Essa autoconsciência racional é

a responsável, em última instância, pela constituição efetiva do presente, no qual aquela

ideia abstrata inicial pôde ser efetivada dentro dos Estados modernos como liberdade

concreta. A história se apresenta como um deslocar-se do centro no qual a verdade é

expressa: primeiro pela arte, através da imagem de deuses e templos, configuradas em

obras de arte; depois, na representação religiosa cristã, em que o Deus assume o papel de

um homem encarnado; e por fim, no reconhecimento do humano como tendo o centro em

si mesmo, em suma, o reconhecimento do homem como sendo o deus de si mesmo, como

tendo o divino em sua interioridade, desde que é ele quem se dá as próprias leis. Assim,

a história é um processo no qual o homem, conduzido por seu pensamento racional em

direção ao saber de si como livre, assume na centralidade de si o papel de único

responsável por sua realidade.

No estágio da modernidade, o espírito do homem alcança esta posição central,

conduzido pelas etapas precedentes. A filosofia especulativa, ao expor racionalmente o

39 Introdução à História da Filosofia, p.23.

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divino, fala e esclarece sobre esta realidade humana: a da sua liberdade na construção de

um mundo social; a de sua independência relativa a qualquer ordem transcendente; a de

ter em si, em seu pensamento racional, o centro decisivo de seu destino. Entretanto, antes

que se desse a conceituação dessa completa identidade entre o homem e o divino,

determinação do presente, a arte e a religião constituíram a verdade de momentos

passados. Cabe-nos aqui associar a constituição histórica da liberdade dentro dos Estados

a estas três formas do espírito absoluto que, em um processo dialético, tanto a

constituíram como a partir dela foram constituídas. Interessa-nos especialmente ressaltar

o progredir da arte, de modo a compreender a posição que esta ocupa no momento

histórico de Shakespeare, além de determinar o papel da forma poética do drama no limiar

da era moderna. Assim, se a arte visa a expressão da liberdade interior, e se essa liberdade

progride quanto mais é configurada, ou seja, quanto mais o homem se sabe como livre e

como determinante do mundo que o rodeia, então é de se supor que a própria arte também

progrida historicamente. A Estética hegeliana fala dessa progressão, e ao compreendê-la

estaremos em posição de reconhecer o privilégio inerente à Poesia para a expressão de

uma liberdade maior do humano no âmbito da intuição sensível, ou seja, em relação às

outras artes particulares.

2.4 A PROGRESSÃO DAS FORMAS DE ARTE PARTICULARES

Como vimos, o conteúdo do espírito pode ser inicialmente expresso de forma

ideal pela arte, pois o homem, que não se sabe ainda como livre e determinante de si

mesmo, encontra diante de si um mundo natural do qual ele depende imediatamente e que

em várias medidas o determina. Aquele cuja liberdade, assim, é ainda embrionária, não

se desvincula a princípio da necessidade que o mundo exterior lhe impõe – e ao querer

expressar-se como livre, primeiro busca na transformação dos materiais sensíveis, ou seja,

daquilo que encontra imediatamente a sua frente, um modo de dizer do espírito. Essa

primeira forma de manifestação espiritual é, repitamos, a arte. Ela progride, de acordo

com Hegel, em três grandes momentos: o simbólico, clássico e romântico,

respectivamente constituídas nas épocas fundamentais da arte oriental, da grega e da

cristã.

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As primeiras manifestações artísticas, momento em que se dão “na mais

estreita conexão com a religião”40, tem seu berço de origem junto aos povos persas,

hindus e egípcios. A arte simbólica, própria dos orientais, é, na concepção hegeliana, o

momento em que o homem “procura aquela unidade consumada entre o significado

interior e sua forma exterior”41, sem no entanto encontrá-la adequadamente, pois que ele

“apreende o conteúdo divino, enquanto índice da consciência de liberdade, ainda de

maneira abstrata.”42

Junto a estes povos orientais, devido a sua grande dependência da natureza e

portanto ao reduzido grau de liberdade que chegaram a conhecer, vemos as mais

primitivas das religiões em busca de uma expressão figurativa do divino que de fato

jamais alcançam a sua representação com propriedade. Partem ou de uma completa

abstração, na qual Deus está de tal forma apartado da realidade que não pode ser

figurativamente representado (como o deus Brama dos hindus, totalmente

indeterminado), até uma completa identificação de Deus com algum elemento da natureza

(como na religião do zoroastro persa, em que o deus Ormuz é tido como a própria luz

natural, elemento objetivo). Quando estes povos, afinal, configuram a divindade, suas

tentativas, neste sentido, são “o fantástico e a confusão inteiros, toda a efervescência e a

vacilante mescla selvagem”43 de estátuas com vários braços, corpos disformes, mesclas

do humano e de animais. Assim ocorre porque o homem, ao tentar espiritualizar o

sensível, erguendo os materiais da natureza à representação divina que sua subjetividade

apreende, esbarra na limitação de seu próprio conhecer a si mesmo como livre, de sua

autoconsciência ainda indeterminada e pouco desenvolvida. O máximo a que ele chega

são essas “invenções poéticas, de coisas incríveis, de milagres”44. A forma que tais obras

assumem só expressam a inexatidão do conteúdo. Todas simbolizam, ainda que de forma

inconsciente ou fantástica, o divino, mas nenhuma de fato o expressa com propriedade.

Portanto, ainda não alcançam o estatuto de arte, tal como Hegel a conceitua na Estética:

constituem a pré-arte, e preparam o caminho para a arte autêntica.

No Estado egípcio, os homens passam a cultuar os mortos e apreendem a ideia

de que a alma é eterna. Suas obras muitas vezes representam um divino transcendente, e

40 Estética II, p.38. 41 Idem, p.22. 42 Poesia e Prosa, p.45. 43 Estética II, p.41. 44 Estética I, p.42.

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podem ser assim chamadas de símbolos autênticos. A arte nasce, de fato, aqui. Pela

primeira vez encontramos as imagens caóticas e selvagens da etapa anterior sendo

purificadas dos excessos da forma: apesar de os egípcios ainda representarem seus deuses

também na forma de animais, ou na mescla de animais e humanos, a imagem do corpo

humano é finalmente elevada à intuição nas obras de arte. No entanto, “as formas

permanecem colossais, graves, petrificadas; pernas sem liberdade e clareza alegre, braços

e cabeça bem juntos ao corpo restante e firmemente unidos sem graciosidade e

movimento vivo.”45

Apenas o faraó era de fato livre nesta sociedade, e podemos admitir a arte

egípcia como um reflexo da servidão a qual os artífices, assim como toda a massa de

indivíduos, estavam submetidos. Eles alcançaram o conceito de alma eterna, mas ainda

que essa “imortalidade da alma” esteja “bastante próxima da liberdade do espírito”, ela

apenas chega ao “limiar do reino da liberdade”46, sem contudo penetrá-lo. O Egito é a

nação dos mortos. Sua cultura, religião, Estado, até mesmo a linguagem escrita, são

símbolos desta passagem, que no entanto não se efetua, e permanece de forma negativa.

Seu símbolo maior, a esfinge, ainda mistura elementos animais ao humano: a pouca

subjetividade desta civilização é-nos atestada por esta famosa imagem, cuja cabeça

humana se apoia sobre quatro patas.

Se a arte dos hindus, persas e egípcios está configurada com pouca liberdade,

da mesma forma é constituída sua sociedade, moral, costumes e leis: todos revelam um

mesmo espírito ainda pouco consciente de si como livre. Podemos, em outras palavras,

dizer que os povos orientais, habitantes de estados totalitários e carentes de liberdade

efetiva, onde permanecem obedientes e escravos de um soberano que os comanda,

possuem essa ideia de liberdade como uma abstração ainda carente de determinação. E a

arte, ao tentar expressar essa consciência que não se percebe livre, revela na forma

imagética a nulidade mesma que ela ainda é. O oriental possui de si uma ideia abstrata

que é oposta à objetividade, ou seja, às coisas externas e aos acontecimentos humanos, e

portanto não consegue no mundo dos fenômenos encontrar sua expressão adequada: ao

tentar efetivar esta exposição, ela “corrompe e falsifica as formas que previamente

encontrou”47, criando um mundo de deuses que são ou identificados diretamente com o

45 Estética II, p.84. 46 Estética I, p.79. 47 Estética II, p.20.

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natural ou figuras disformes e desproporcionais. Nessa “objetividade não espiritualizada,

mero envolvimento natural do Deus”48, reside a deficiência da arte simbólica – a forma

não se coaduna ao conteúdo, por conta de sua indeterminação, e a arte busca, sem atingir,

o reino da beleza.

Além dessa inadequação entre ideia e forma na execução de suas obras, os

materiais com os quais estes povos as executaram também nos indica seu menor grau de

liberdade. Basta ver que as grandes civilizações do passado expuseram suas primeiras

intuições do divino em formas artísticas geralmente associadas à arquitetura e à escultura.

Pedra, rocha, marfim ou bronze, enfim, os materiais inorgânicos exteriores da natureza,

massa mecânica pesada com os quais estes povos ergueram seus templos e estátuas,

denotam o caráter de liberdade ainda germinal presente nestas sociedades. O aspecto

grandioso e monumental que suas obras adquiriram, caso pensemos nas pirâmides do

mundo antigo, ou nas estátuas colossais, nas colunas, obeliscos e templos imensos,

contribuem para a compreensão da importância que o elemento material imediato, assim

configurado espacialmente em três dimensões, possuía entre estes grupos humanos

quando diante da necessidade de expressar o conteúdo espiritual, e fala-nos de forma

eloquente da sua pouca consciência de liberdade.

Contudo, a liberdade progride. No famoso mito grego de Édipo, a esfinge lhe

propõe um enigma: que animal anda de quatro patas ao amanhecer, duas ao meio-dia e

três à noite? A resposta que o grego dá é significativa: o homem. Na concepção hegeliana,

podemos metaforicamente dizer que a pergunta lançada pelos egípcios, apenas

parcialmente compreendida por este povo, é finalmente revelada pela civilização grega.

O humano, “que constitui o ponto central e o conteúdo da beleza e da arte verdadeira”49,

encontra neste povo seu espaço adequado. Isto porque a sociedade democrática grega

representa o divino na forma do corpo do homem mesmo, em sua plenitude livre e bela.

Porque os homens gregos passam a dar-se suas próprias leis, a arte atinge assim uma

expressão mais espiritual – fato que pode ser confirmado por esta antropomorfização de

seus deuses. O animalesco, que pouco fala do divino ao espírito que se sabe livre, não

encontra espaço na fantasia dos gregos como um modo de representar imageticamente

sua ideia de divindade. Às civilizações simbólicas uma íbis, no Egito, ou um touro na

Pérsia serviram a este propósito. Mas entre os cidadãos de Atenas, que se reúnem na

48 Estética II, p.97. 49 Idem, p.162.

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assembleia e definem entre si, a partir de sua voz e peito, as normas que os regulam, tal

ideia é impensável. “Somente a exterioridade do homem é capaz de revelar o espiritual

de modo sensível.”50 A escultura grega representa os deuses do panteão na configuração

exata de belos corpos humanos e o espírito, assim, é trazido de forma adequada à intuição:

pois “o espírito apenas em seu corpo aparece satisfatoriamente sensível”51. Enquanto o

divino assume a forma humana, o homem grego, cidadão da polis ateniense, presta culto

diante da estátua da divindade representada. Para Hegel, esta passagem é o momento em

que a arte se constitui como bela, pois encontra a exata adequação entre o espiritual e o

natural, o interior subjetivo e sua expressão exterior. Este equilíbrio entre o conteúdo a

ser expresso, o espírito humano, e sua manifestação na forma sensível da bela escultura

grega constitui o momento clássico da arte. É essa forma de arte que “oferece pela

primeira vez a produção e intuição do ideal completo e o apresenta como efetivado.”52 A

ela coube expor, por fim “o ideal clássico em seu ser-junto-a-si-mesmo (Beisichsein)

simples, no qual deve se manifestar mais a divinidade universal do que o caráter

particular.”53 Para Hegel, “algo mais belo não pode haver nem haverá jamais.”54

A liberdade dentro da polis ateniense, ainda que efetiva e real, foi, no entanto,

limitada a poucos - nem escravos, estrangeiros ou mulheres compartilhavam dos mesmos

direitos que o Estado grego concedeu aos cidadãos adultos do sexo masculino. Além

disso, estes homens só eram livres enquanto assumiam o substancial ético do próprio

Estado. Não era na ação individual, ditada pela vontade particular, que os homens da

democracia grega exerciam sua subjetividade; sua autonomia estava condicionada pelo

reconhecimento dos outros homens que, livres como ele, reuniam-se na assembleia para

juntos instituírem suas leis. Ou seja, “cada cidadão não possuía, enquanto indivíduo

particular, (..) (quase) nenhuma liberdade, mas esta liberdade somente se apresentava

como tal na medida em que o que cada cidadão almejava era o bem da cidade”55. A

consciência do ateniense não comportava espaço para um agir individual que estivesse

apartado da eticidade dominante neste Estado.56 Sua subjetividade era, portanto, objetiva,

50 Estética II, p.163. 51 Estética I, p.93. 52 Idem, p.93. 53 Estética II, p. 217. 54 Idem, p.252. 55 Poesia e Prosa, p.69. 56 Pode-se argumentar que os caracteres trágicos gregos agem a partir da vontade individual. É importante ressaltar que para Hegel eles de fato têm liberdade: mas sua vontade está restrita à das potências éticas – os deuses – da comunidade. Os personagens escolhem não a partir de sua vontade estritamente

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e assim percebemos porque esta experiência histórica comporta, na arte, a união do

substancial com a particularidade, característica fundamental do conceito de beleza em

Hegel.

A bela arte mesma é quem nos revela a relativa liberdade da experiência

democrática grega: nós a vemos, por exemplo, na escolha feita pelo escultor quando em

busca de um modelo de corpo que melhor servisse à representação dos deuses - não

quaisquer corpos, mas aqueles que se mostrassem mais fortes e exuberantes, harmônicos

e saudáveis. Se a beleza encontrou sua forma imagética ideal na escultura da Grécia

clássica, foi porque alguns homens eram de fato livres – mas não todos. Desse modo, a

arte clássica, ainda que realize o ideal do Belo, essa objetivação da verdade em forma

sensível, encontra seu limite nesse modo mesmo de exposição artístico, expressão da

subjetividade ainda relativa do cidadão de Atenas.

A experiência grega do belo é rapidamente dissolvida pela subjetividade que

dentro dela, naturalmente, surge e a desintegra. Os séculos seguintes preparam o terreno

para a grande revolução que se instaura: o homem do império romano não mais vive a

totalidade característica da experiência grega em seu auge. Sua particularidade admite a

figura reguladora do Estado como apartada de si, e busca na ideia, alienada da

objetividade, o reino espiritual de sua liberdade definitiva. Ela finalmente é encontrada

na figura de Cristo, representação objetiva desse reino de liberdade. Ou seja: o divino foi

transferido da arte para o interior do peito humano. Podemos acompanhar esse processo

de desenvolvimento da subjetividade de forma transparente no percurso sensível das

configurações artísticas: enquanto os egípcios cultuaram o morto, pressentindo o espírito,

os gregos ergueram ao interior da imagem de pedra o espírito – faltava porém o momento

de percepção do espírito como dentro do homem mesmo. O Deus grego permaneceu

apenas exterior: sua “sensibilidade não foi morta nem morreu, mas em compensação

também não ressuscitou para a espiritualidade absoluta.”57 Com o cristianismo, contudo,

Deus não é apenas um indivíduo configurado humanamente, mas um indivíduo

efetivamente singular, inteiramente Deus e inteiramente um homem efetivo,

particular, mas sim a partir dessas potências que regulam as ações da comunidade. Isso faz Hegel afirmar que o conflito das tragédias gregas se dá, assim, entre as potências éticas que o indivíduo favorece – ao contrário da tragédia moderna, em que o conflito se dá estritamente a partir da vontade individual, apartada de qualquer eticidade aceita em comum pela sociedade. 57 Estética II, p.165.

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penetrado em todas as condições da existência e que não é um mero ideal

configurado humanamente da beleza da arte.58

Nesta etapa, portanto, cabe à religião, e não mais à arte, a finalidade de expor

adequadamente o espiritual do homem. A exposição do divino, que a humanidade buscou

na matéria da natureza, foi transposta para a figura de um homem vivo, um indivíduo

singular, sujeito às vicissitudes do mundano, mas animado ele mesmo pelo Deus

almejado. Hegel concebe essa mudança de foco como parte do processo histórico: a

subjetividade desenvolvida a partir da democracia grega exigia esta nova configuração,

de fato a forjou e ao reconhecê-la no discurso cristão, a adota e a difunde. Não apenas um

soberano, ou uma nação, mas todos enfim, a humanidade inteira, passa a ser reconhecida

como livre em si mesma. O divino não é mais a pura abstração dos povos simbólicos, nem

também o Deus de pedra do templo grego, mas antes o espírito do homem mesmo

encarnado, na figura de Jesus.

A arte decerto reflete as mudanças que esta nova percepção da consciência

adquire. A subjetividade humana volta-se para si mesma, pois é nela que encontra a

liberdade buscada, e rejeita, como consequência, o mundo sensível, material, passageiro

e contingente; ele é inadequado para expressar esta verdade que aponta para o interior

espiritual como seu lugar propício. Enquanto os povos simbólicos buscaram expressar no

sensível sua concepção de divino, e a arte clássica alcançou este resultado idealmente, na

etapa do cristianismo é a subjetividade que, diante de sua infinitude, reconhece na matéria

a impossibilidade de expressar-se adequadamente.

Hegel compreende, nesta etapa posterior, um retorno do simbólico, isto é, do

desequilíbrio de outrora, na qual o espírito é demasiado desenvolvido para se expressar

na forma sensível. A esta etapa de desenvolvimento da arte, Hegel a nomeia “arte

romântica”, pois o ânimo, o sentimento, o espírito do sujeito particular, enfim, o interior

mesmo do homem, passa a constituir sua norma e finalidade de expressão. Quando, com

o cristianismo, a religião torna-se a esfera apropriada para expressão do divino, a arte

romântica, em uma subordinação a ela, tem como tarefa principal, em um primeiro

momento, ilustrar as passagens da vida, morte e ressurreição de Cristo, as histórias

contadas no evangelho, os fatos concernentes a discípulos, santos e Virgem Maria. Se

aqui “a forma humana é de tal modo representada (dargestellt) que é sabida de imediato

58 Estética II, p.165.

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como tendo o divino em si mesma”59, este conteúdo, todavia, não tem seu valor em si

mesmo, nesta representação exterior e objetiva, mas antes “se concentra (...) na

interioridade do espírito, no sentimento, na representação, no ânimo que aspira pela união

com a verdade”60 Ou seja: se a verdade não está na arte, e sim no espírito, ela vê-se

liberada então daquela alta função, que era expor o divino, e pode ocupar-se agora com

todas as situações contingentes que cercam esta histórias religiosas. A beleza não é mais

seu objetivo; e mesmo o feio pode participar das configurações artísticas. Afinal, o

exterior pode agora ser “visto como um elemento indiferente, no qual o espírito não tem

uma confiança última e na qual ele não tem nenhuma permanência.”61 Ao mesmo tempo

que o meramente exterior perde sua importância, não mais o peso da arquitetura e

escultura, mas sim as artes mais interiores da pintura, música e poesia prevalecem e se

desenvolvem, pois melhor retratam esta subjetividade romântica, cuja verdade última na

forma artística é essencialmente lírica.

A liberdade conquistada pelo homem naturalmente o impulsiona a

desprender-se desta relação limitadora com a religião a qual a arte primeiramente se

subordina: “a interioridade (Innigkeit) anteriormente religiosa torna-se de espécie

mundana”62. De acordo com a leitura hegeliana, o espírito romântico afasta-se do círculo

estritamente religioso de representações figurativas, e acaba englobando em suas obras

sua própria autonomia, nos sentimentos particulares da honra pessoal, do amor romântico

e da lealdade servil. É a cavalaria romântica. Com ela a arte atravessa a Idade Média,

compondo heróis tomados por estes sentimentos servis que, se não o libertam para agir

conforme bem entenda, dizem respeito somente à individualidade daquele que os

configura.

Numa etapa final, somos conduzidos, na dissolução desse mundo medieval e

na constituição inicial da sociedade civil burguês, ao momento em que o homem de fato

“se coloca sobre seus próprios pés e se move autonomamente em seu próprio âmbito.”63

A ele importa agora “ver diante de si, em seu presente, o que é presente mesmo,” recriado

“pela arte como sua própria obra humana espiritual, mesmo com o sacrifício da beleza e

59 Estética II, p.256. 60 Idem, p.259. 61 Idem, p.260. 62 Idem p.288. 63 Idem, p.309.

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da idealidade do conteúdo e do fenômeno.”64 Aqui todas possibilidades, situações,

sentimentos e vontades que perpassam a criatividade humana se apresentam para o artista

como passíveis de exposição. A forma de arte romântica conduziu-nos, assim, à separação

do particular e do universal, ao sujeito importa expor na arte apenas seu mundo subjetivo.

Para Hegel, é o momento em que “o ser humano se aprofunda em si mesmo e se torna um

ponto.”65

Estamos transportados, desse modo, à época de Shakespeare, e à autonomia

formal de seus heróis; e cada qual “repousa formalmente sobre sua própria autonomia

individual.”66 O que eles anseiam e buscam satisfazer não está submetido a uma

determinação religiosa ou ética, nem se encontra constrangido por sentimentos de

nobreza, como a honra e lealdade. Cada qual quer e executa seu querer movido apenas e

exclusivamente por seu arbítrio individual. Se por um lado o divino, o ético e universal,

está apartado por completo destes ideais egoístas, que só reconhecem a si mesmos, por

outro “o extra-divino, o humano particular chega à sua validade completa.”67 Estamos

diante da liberdade tal qual ela configurou-se e foi expressa no limiar da era moderna.

Este progresso da arte, ainda que represente a conquista de uma maior

liberdade dentro das sociedades humanas, apontando também para um grau de

autoconsciência maior no homem, por outro lado indica um momento de ruptura entre o

equilíbrio ideal de forma e conteúdo atingido pela bela arte grega.

2.5 POESIA, A ARTE UNIVERSAL

Hegel observa que em todas as épocas da arte, simbólica, clássica ou

romântica, a arte poética esteve sempre ao lado das outras formas figurativas de

exposição; Do Mahabarata indiano ao Zig-vesta persa, da Ilíada e Odisseia gregas ao

drama moderno de Shakespeare, encontramos nos diferentes solos históricos a poesia

como forma mais expressiva de comunicação artística, sendo, mais especificamente, a

arte universal. E isto por diversas razões:

64 Estética II, p.310. 65 Idem, p.310. 66 Estética I, p.312. 67 Estética II, p.313.

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Sua primazia, se relacionada a outras possibilidades de configuração sensível,

se dá justamente por utilizar como meio de expressão o mais interior dos materiais, a

linguagem, a palavra mesma do discurso, “ele sozinho o elemento digno para a exposição

do espírito”.68 Como elemento interior e dinâmico do espírito subjetivo, a palavra permite

à expressão poética atingir uma abrangência de temas e uma liberdade na exposição dos

mesmos sem paralelo no mundo artístico. Ela, afinal, não esbarra na restrição apresentada

por meio da espécie de material de que se servem as outras artes particulares: Tanto a

arquitetura quanto a escultura ainda se formam na solidez massiva da pedra, bronze,

mármore, etc., erguidas espacialmente em três dimensões; elas encontram as fronteiras

do conteúdo que podem expressar justamente no limite mesmo da rigidez destes materiais

e em sua configuração mais próxima à da realidade objetiva. Já a pintura comporta mais

liberdade, concentrando-se na cor, e configurando em um plano menor de duas dimensões

diversos elementos simultâneos; a riqueza de exposição que ela representa, se comparada

às outras artes plásticas, é bem maior; contudo, assim como elas, seu modo de representar

ainda não permite ao artista abstrair da espacialidade do quadro. De qualquer forma, sua

fixidez a restringe a um único momento da ação. Já a música encontra o movimento no

tempo enquanto libera-se de qualquer espacialidade; se ela ainda contém a material

sonoro, no entanto dele se utiliza de forma apenas a expressar uma subjetividade

sentimental. Com a poesia, no entanto, a liberdade a ser expressa encontra a liberdade do

material que a exprime: a palavra. Aquele traço ínfimo de matéria, o som, vê-se articulado

como linguagem e pode mover-se em todas as direções que a fantasia o guiar – inclusive

no tempo, conforme veremos adiante quando nos determos em profundidade junto à ação

nos gêneros de poesia épico e dramáticos. Assim, nela, a submissão junto a um material

exterior praticamente deixa de existir; e esta arte pode, dessa forma, elaborar uma

exposição completamente ideal do conteúdo a ser representado. Numa palavra, a poesia,

em virtude de seu elemento componente, está em condições de expressar o ideal do belo

em total pureza.

Contudo, considerando que a arte se dirige aos sentidos, mantendo assim a

determinação fundamental de encontrar seu elemento correspondente no mundo sensível,

é de se considerar que a musicalidade do som como palavra, “este substrato mínimo de

materialidade (,) confere à poesia um caráter bastante precário na qualidade de arte”.69

68 Estética IV, p. 26. 69 A poesia na estética de Hegel, p.41.

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Afinal, a uma poesia que fosse apenas lida em silêncio, que materialidade restaria? O fato

de que um poema possa também ser traduzido em diferentes idiomas atesta do mesmo

modo contra a ideia de que o elemento fundamental da poesia seja a palavra, se

entendermos, claro, palavra como um vocábulo qualquer específico de determinada

língua. Podemos perceber, de fato, que a poesia trafega próxima ao reino dos sentidos –

e tomemos aqui o sentido da palavra sentido não como algo que simplesmente sensibiliza,

tal qual a luz em contato com a retina ou o calor junto à pele, mas antes como significado

– o pensamento, o universal da coisa.70 Contudo, este é o campo também da

representação religiosa e da filosofia conceitual. Como distinguir a poesia destas formas

mais desenvolvidas de expressão do espírito, mantendo-a no campo estritamente

artístico?

É preciso compreender a materialidade como um mero meio de manifestação

do espírito. Ela serve ao propósito do artista na composição de uma imagem, que será

reconhecida por outros como bela, e portanto apontando para as verdades últimas do

homem. Seu papel, todavia, não é exatamente o de sustentáculo da arte; ela concede à

arte, claro está, o suporte necessário para que o espírito se manifeste imageticamente,

sobretudo nas etapas em que as relações dos povos com seu Estado ainda não atingiram

o grau de liberdade em que esta forma de expressão, essencialmente plástica, possa ser

substituída por outra, mais interiorizada. O cristianismo, momento histórico da

subjetividade infinita, é esta etapa em que, abdicando gradualmente das formas plásticas

de expressão, o espírito encontra na palavra mesma, o mais interior dos materiais, um

meio adequado de compor a imagem que os povos do simbolismo e classicismo melhor

compunham exteriormente. O limite estrito entre poesia e religião e filosofia encontramos

no fato de que a primeira ainda se utiliza das palavras de forma a compor imageticamente

seu conteúdo, e, portanto, na forma da arte. Assim, embora situada no campo

representacional, a poesia tem garantida sua condição de arte por ter como finalidade a

busca de uma imagem que se manifeste expressivamente.

Mas não somente esse aspecto formal confere à poesia sua possibilidade de

exposição abrangente. Também o modo pelo qual a discurso poético se desenvolve vem

ao seu auxílio: ele é articulado como um desenvolvimento temporal, uma sequência

expositiva de atos ou pensamentos, desdobrados numa linha do tempo. Portanto, tem um

70 Cf. Estética IV, 173.

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caráter ativo, processual. Isso o torna similar ao modo pelo qual a própria realidade se

constitui, e nisso reside sua riqueza de exposição: a efetividade do mundo também é um

desdobramento de ações ao longo da história. Ambos, poesia e realidade, se organizam

como um processo.

Se a considerarmos a partir de uma análise exterior, observando-a de fora, a

progressão sucessiva configurada no mundo das artes, conforme descrita pela estética

hegeliana, corresponde diretamente à evolução do saber que os povos tiveram de si como

livre. Dito de outro modo, está relacionada à liberdade conforme ela se apresenta em um

grau cada vez mais determinado, ou seja, objetivado, concretamente realizado, nas

relações sociais ao longo da história das civilizações. Assim, as representações do divino

se veem progressivamente liberadas da matéria bruta na medida em que o homem se

percebe ele mesmo como livre e realiza a efetivação dessa liberdade no seio de sua

comunidade. A arte é a representação desse conhecimento espiritual, elevado ao mundo

dos fenômenos sensíveis.

Se partirmos agora de um ponto de vista interior, podemos afirmar com Hegel

que todo homem é, por sua racionalidade, desde sempre livre em si, sendo esta a sua

essência e substância71. Esta determinação permanece nele como potência. Para que ela

se realize, abandone a abstração e venha atuar no mundo dos fenômenos, é necessário que

a razão, em seu percurso histórico, revele ao homem sua natureza fundamental, e o torne

livre não somente em si, mas de modo concreto, na efetividade das relações sociais – pois

“o homem é livre somente se sabe que o é”,72 assim como “a verdade apenas é enquanto

consciência que sabe.”73 O conhecimento dessa verdade é que liberta, conforme a

concepção cristã. E a arte, desse ponto de vista, é o meio inicial de fazer esta verdade

comunicável dentro das culturas, e assim contribuir para sua disseminação.

Seja como for que a encaremos, a liberdade é o fim a que o processo de

desenvolvimento – tanto da história da razão como da razão na história – almeja conhecer

e efetuar no mundo. Pois ainda que exista no espírito como possibilidade, ela “não é algo

essente de modo imediato no espírito, mas algo a ser produzido por sua atividade.”74

Assim, não devemos compreender esta finalidade como algo de estático e concluído – ela

71 Cf. Introdução à História da Filosofia, p.37. 72 Idem, p.38. 73 Estética I, p.155. 74 Enciclopédia das Ciências Filosóficas III, p. 24.

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é a contínua realização de si mesma. O espírito, afinal, “não é algo em repouso; antes, é

o absolutamente irrequieto, a pura atividade, o negar de si mesmo (...).”75 A filosofia

hegeliana aponta, no próprio processo de desenvolvimento da realidade, sua verdade –

não numa forma pronta e acabada, mas em permanente progredir e atividade constante.

O que permanece (...) sem movimento, (...) é a morte.” A vida “é o contínuo produzir-se,

o produzir-se a si mesma.”76 E a determinação desse processo, como temos dito, é trazer

a liberdade à consciência do homem e, dessa maneira, torna-lo apto a viver livre.

Estes pressupostos nos ajudam a compreender porque a poesia, que se faz

efetiva no tempo, portanto como processo, encontra similaridade com o real, um

desdobrar-se e desenvolver-se contínuo. Já na história da arte encontramos a atividade, o

movimento, a inquietude da qual nos fala o filósofo, sendo progressivamente

sensibilizada através das obras de arte, conforme a autoconsciência humana evolui. Na

arquitetura, sua constituição mais massiva nada revela ainda sobre o progredir do espírito

no tempo. Em virtude do material que os compõe, templos e pirâmides, obras do

entendimento abstrato, estão condenados à eterna imobilidade. As esculturas mais

antigas, como as encontradas na civilização egípcia, ainda que reproduzam na pedra

massiva a forma orgânica e maleável do corpo humano, o fazem, todavia, de modo

estático e pouco gracioso. Se nas obras esculturais da Grécia clássica o corpo se liberta

para indicar certo movimento realizado no espaço livre, devemos lembrar que a própria

escultura tem a limitação da imobilidade em si.

Na pintura romântica, há uma abrangência maior: o artista pode configurar

vários elementos de uma ação, simultâneos, como por exemplo um grupo de soldados em

um campo de batalha – esta configuração pictórica não esbarra na dificuldade que a

escultura enfrentaria caso buscasse compor uma mesma variedade de elementos ao

mesmo tempo. No entanto, a própria simultaneidade conspira pela pobreza desta arte: em

cada quadro pintado somente um único momento da ação pode ser levado à exposição,

fato que corrobora ainda para uma limitação. Se a composição musical finalmente subtrai-

se da visibilidade estática da pintura e liberta-se, com o elemento do som, para a

temporalidade, o faz, todavia, como já vimos, destituída de objetividade na sua forma de

representação, sendo assim um modo de expor estritamente subjetivo e, portanto relativo.

75 Enciclopédia das Ciências Filosóficas III, p.10. 76 Introdução à História da Filosofia, p.34.

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Logo, as artes figurativas indicam, através de seu processo de

desenvolvimento histórico, a necessidade de se libertarem para a exposição do

movimento, de alcançarem abrangência no âmbito da ação, de reconstituírem em si

mesmas um processo, característica básica da realidade. Todas esbarram numa limitação

que lhes é inerente. Menos a poesia. Somente ela tem “a possibilidade de expor um objeto

em toda a sua profundidade interior, bem como na amplitude de seu desdobramento

temporal”77, pois abarca os momentos da ação em uma sequência viva, rica em detalhes,

processual; a arte poética acolhe em si a ampla multiplicidade de representações e

intuições espirituais; daí concluímos por sua relação com a efetividade viva do mundo:

Cada talo, cada árvore tem (...) sua história, uma mudança, uma sequência e

uma totalidade fechada de estados diferentes. Mais ainda este é o caso no

âmbito do espírito, o qual só pode ser exposto exaustivamente como espírito

efetivo que aparece quando vem diante de nossa representação como um tal

decurso.78

Portanto é a plasticidade inerente ao gênero poético o que a torna propícia

para expressar a matéria viva da arte ideal: o “homem efetivo entrelaçado no âmbito do

terreno e do mundano.”79 Ainda que tenha sido possível conceber o espírito em repouso

e satisfeito consigo mesmo, como o belo Deus da escultura grega ou a pintura medieval

do Cristo intocado pelo elemento terreno, é contudo na esfera do mundano, “com a

miséria e com o ímpeto de seus emaranhados, lutas e oposições variadas” que o espírito

do homem pode ser devidamente exposto. No conflito do dia-a-dia, nas lutas e dores da

vida em geral, na força e na grandeza das oposições postas no mundo, o espírito pode

exercer sua ação e reconciliar-se outra vez consigo.80

Tudo isto faz da arte discursiva a poesia universal: a bela configuração

linguística, que caminha próxima ao pensamento por dividir com ele o elemento da

palavra, e que se organiza em um desdobramento contínuo análogo ao da experiência real

dos homens na história e no cotidiano, vê-se possibilitada de trazer à intuição dos povos

“o reino infinito do espírito.”81 Somente ela, dentre as artes particulares, permite ao

homem configurar de um modo imagético e sensível todo conteúdo que o interessa, sejam

coisas subjetivas ou naturais, ocorrências, atos, histórias e ações, individuais ou coletivas.

77 Estética IV, p.14. 78 Idem, p.14. 79 Estética I, p.186. 80 Cf. Estética I, p.188. 81 Cf. Estética IV, p.23.

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Ela foi a primeira forma de arte entre os povos, e permaneceu sempre como a mais capaz,

independente do solo histórico, de se dirigir imediatamente à intuição humana. Ainda que

aponte determinada arte particular como a mais significativa dentro de um momento

específico da evolução da subjetividade, Hegel afirma a supremacia da poesia, que

permanece ao lado das outras artes, em todos os momentos, sempre como a mais

expressiva. Nesse sentido é que podemos compreender sua afirmação de que a natureza

do poético “coincide geralmente com o conceito do belo artístico e da obra de arte em

geral.”82

2.6 OS GÊNEROS POÉTICOS

Hegel pensa que, assim como a arte como um todo, ao desdobrar-se ao longo

da história, reflete o grau de subjetividade dos homens, os quais, como vimos, o

manifestam adequadamente na execução de determinada arte particular, também a

poesia, presente desde sempre como arte universal, evolui em diferentes modos de

expressão, os quais chamamos gêneros poéticos, cada um deles expressando uma visão

de mundo que é de maior ou menor subjetividade. Assim temos o gênero épico, o qual se

detém na narrativa de fatos e ações do mundo exterior, como também o lírico, voltado

exclusivamente para o interior subjetivo do poeta. Ao gênero dramático, este que

Shakespeare utilizou, importa tanto a ação mundana como o pensar e sentir dos indivíduos

que a promovem. Todas estas formas de poesia se fazem presentes nas diversas etapas da

história da arte; contudo, cada gênero se sobressai em um solo histórico particular,

conforme este comporte um menor ou maior grau de subjetivismo dos indivíduos que

nele se relacionam.

As grandes civilizações, em seus primórdios, vivem uma realidade ainda

poética, ou seja, não racional – e uma consciência, que compreende a realidade de forma

não racional, sente-se à vontade ao constituir a verdade do mundo pelo elemento da

fantasia, base da arte. Esta apresentação poética é suficiente como explicativa da origem

82 Estética IV, p.122.

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do universo e da natureza das coisas,83 e constitui a epopeia: longa narrativa do gênero

épico, e aquela que melhor expressa a gênese de uma nação, o Estado em seus primórdios

– exemplarmente representada pela Ilíada e pela Odisseia gregas. Essa poesia, na qual “se

exprime pela primeira vez (...) a consciência de uma nação”, pertence a um mundo “num

estágio mais baixo de desenvolvimento e acabamento”, permanecendo ainda naquele

momento “da poesia e da beleza imediata”.84 Ao se perceberem como pertencentes a uma

nação, os indivíduos depositam na epopeia a expressão de seu espírito originário: o

poema, a palavra cantada em verso e repetida pelas gerações, serve a estes povos como

uma apresentação objetiva dos feitos heroicos, dos atos de coragem de indivíduos

autônomos que fundaram, eles mesmos, as bases de suas nações. O poeta épico faz com

que toda a narrativa gire em torno da bravura e força de um herói individual, movido não

por sua disposição subjetiva, seu sentimento individual, mas pelo que é válido por si e em

si, o ético universal. Há dessa forma uma identidade imediata entre a vontade e o

sentimento do indivíduo singular e o da coletividade na qual ele atua. O universal do

Estado e o particular estão associados em unidade firme na mentalidade viva, de tal forma

que o poeta, ao cantar seus versos, prescinde de neles incluir de si qualquer aspecto

subjetivo, suas opiniões ou pensamentos85 - e seus heróis, quando agem, são levados à

ação pelas potências éticas que a comunidade assume como universais. Cada um dos

deuses do panteão grego, por exemplo, personifica uma dessas potências éticas, a

coragem, a honra, a força; e quando o herói age, a ação, conforme descrita pelo poeta,

não parte de seu peito, do interior de sua subjetividade, já que esta não se separa da

totalidade do Estado – antes são os deuses, uma potência ética divina e exterior, aquilo

que interfere junto ao indivíduo e executa através dele a ação pretendida. É como se o

sujeito não fosse, enfim, o responsável final por suas atitudes, mas sim o destino, que

´pela vontade dos deuses o conduz no mundo.

Purificado de qualquer elemento subjetivo, tanto por parte do poeta narrador

como dos heróis agentes, a epopeia épica se encaminha para uma narrativa objetiva dos

fatos. Esta característica própria da prosa é realmente a finalidade da epopeia; o poeta

todavia nunca a atinge, porque possui uma mentalidade e vive uma realidade elas mesmas

83 Exemplos desta assertiva, nós os encontramos na leitura dos poemas antigos da Índia e Pérsia. Também

na Grécia, o poeta Hesíodo estabelece em versos toda a gênese do panteão dos deuses olímpicos, sendo a palavra do poeta considerada como a instrução religiosa do povo grego.

84 Cf. Estética IV, p.87. 85 Idem, p.220.

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poéticas. A arte está aqui, portanto, a serviço de expressar um estado de universalidade

no qual o particular e o universal não se separam e convivem em bela harmonia e

totalidade. Um herói individual vence uma batalha, mas o ânimo que tem em seu peito é

promovido pela potência divina e compartilhado igualmente por todos da nação. A

totalidade deste mundo é o que, para Hegel, torna a poesia épica capaz de realizar o ideal

entre forma e conteúdo: o mundo do qual ela fala é, como ela mesma, uma unidade viva

não atravessada por qualquer traço exterior de reflexão ou subjetividade.

Esta realidade, claro está, proporciona pouco espaço para a expressão lírica,

cuja característica principal consiste no fato de o poeta “procurar em si mesmo o estímulo

e o conteúdo e, por conseguinte, (...) se ater ao seu próprio coração e espírito nas situações,

estados, eventos e paixões interiores”.86 Ou seja, a subjetividade interior “é a fonte

propriamente dita da lírica”.87 Se a poesia épica é objetiva e nacional, o lirismo é

estritamente subjetivo e particular, e encontra um campo mais fértil de manifestação no

solo histórico do cristianismo, quando aquela totalidade entre o indivíduo e o Estado já

estava rompida, e subjetividade se conheceu como infinita. Pois enquanto a “época do

florescimento da epopeia” exige “um estado nacional ainda não desenvolvido no todo,

ainda não amadurecido para a prosa da efetividade”, a assunção do lírico aponta para um

estado de maior liberdade, “uma ordem em maior ou menor grau acabada das relações da

vida”, na qual “o homem singular se reflete em si mesmo perante este mundo exterior e

se isola fora dele em seu interior para uma totalidade autônoma do sentir e do

representar.” 88

Contudo, tanto a épica como a lírica são formas ainda unilaterais de expressar

o mundo, pois o real nem é somente o desenrolar de eventos no exterior, articulado como

independente das vontades particulares, como nem apenas os sentimentos e preocupações

internas do indivíduo, isolado do agir e do concretizar seus desejos junto aos outros

homens. A realidade, antes, é a união de ambos, sujeito e objeto, interior e exterior, o

sentimento e a ação. Somente ao encontrar esta totalidade a poesia se aproxima de uma

autêntica exposição da realidade. Isto se dá no âmbito da arte dramática. Primeiro, porque

ela configura a ação exterior, o desdobrar dos eventos, como proveniente do próprio

sujeito, tendo origem em seu interior particular. Inversamente o sujeito, em contraste com

86 Estética IV, p.165. 87 Idem, p.166. 88 Idem, p.167.

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o objetivismo das ações, é trazido diretamente à exposição. Desta forma ambos, tanto a

ação, o conflito em sua luta e desenlace, como o indivíduo, com suas paixões éticas ou

não-éticas, surgem expostos através da presença de homens vivos diante dos olhos da

plateia.89 A poesia, o som da voz humana voltado para a expressão imagética do espírito,

encontra no drama seu momento de melhor articulação. Pois essa “objetividade, que

procede do sujeito, assim como este subjetivo, que chega à exposição em sua realização

e validade objetiva, é o espírito em sua totalidade.”90 Este momento da arte nos interessa

especialmente: o texto dramático possibilita uma forma mais direta de contrastar o modo

pelo qual o homem expressou sua liberdade de pensamento e ação tanto no mundo antigo

como no moderno. É esta a razão da vitalidade do drama: ele supera a limitação da

objetividade da épica e faz sua união com a subjetividade lírica. Para Hegel, de fato, o

drama “deve ser considerado como o supremo estágio da poesia e da arte em geral.”91

2.7 A VERDADE DA TRAGÉDIA GREGA E A LIBERDADE DO DRAMA DE

SHAKESPEARE

O drama, ao expor o interior do indivíduo realizando-se no seu agir exterior

junto a outras individualidades, dissolve o interesse épico exclusivo da ação e o interesse

lírico exclusivo do sentimento numa unidade mais rica a qual interessa agora “o indivíduo

autoconsciente e ativo”92. Para Hegel, esse gênero atinge sua verdade – o equilíbrio ideal

entre conteúdo e forma – na tragédia grega da polis ateniense clássica. A obra dramática

produzida nesse solo histórico pelos grandes tragediógrafos – Sófocles, Eurípedes,

Esquilo - já fala de uma consciência mais livre:

Para o agir verdadeiramente trágico é necessário que já tenha despertado o

princípio da liberdade e autonomia individuais ou pelo menos a

autodeterminação de querer responder livremente, a partir de si mesmo, pelo

próprio ato e suas consequências.93

89 Estética IV, p.86. 90 Idem, p.186. 91 Idem, p.200. 92 Idem, p.202. 93 Idem, p.245.

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O ideal de beleza, a adequação entre forma e conteúdo, supõe uma

identificação imediata entre aquele que age e a exterioridade ética na qual ele atua.94

Assim, “o indivíduo heroico” não se separa “do conjunto ético ao qual pertence, antes

tem uma consciência de si apenas enquanto unidade substancial com este todo”.95 O herói

grego com seus objetivos, desejos e vontades, não se vê cindido e apartado do mundo e

da realidade na qual está imerso – a particularidade do caráter e a universalidade do

Estado correspondem a uma e mesma totalidade. Essa identificação entre o herói agente,

lutando pelo bem comum de seu povo, e o coletivo que ele representa, é factual – ela

também ocorre na efetividade do mundo objetivo, pois

(...) na vida ética grega o indivíduo era certamente autônomo e livre em si

mesmo, sem contudo se desprender no presente temporal (zeitlichen

Gegenwart) dos interesses universais dados do Estado efetivo e da imanência

afirmativa da liberdade espiritual.96

Os homens livres da experiência da polis grega constituem de fato um Estado

no qual deles emanam as leis: em corpo presente na ágora, escolhem a partir do próprio

peito seus representantes, votam por seus destinos, decidem pela guerra ou pela paz. Em

suas consciências, referem-se aos deuses como as potências que os animam nestas

escolhas. Expõem em sua arte esse mesmo ânimo sensibilizado em pedra, marfim,

narrativa poética. Assim, Estado, religião e arte compõem uma totalidade da qual os

homens não se distinguem subjetivamente. Isto não significa que os homens não tinham

ali liberdade subjetiva autoconsciente, mas sim que a mesma não se separava da

substância ética de sua realidade: já que os interesses do Estado eram reconhecidos como

o interesse particular de cada cidadão, “estes procuravam sua liberdade própria apenas

nos fins universais do todo.”97 A própria linguagem grega aponta para essa unidade

vivificante: Atenas, por exemplo, tanto é o nome da deusa protetora da cidade, quanto o

nome da própria cidade, na qual se ergue seu templo e estátua adorada em divindade e

símbolo da justiça. Na Grécia clássica, a beleza da arte é um reflexo da própria realidade,

ela mesma bela, pois ali os homens se conhecem como um todo universal do qual o

particular não se distingue

94 Cf. Estética II, 166. 95 Estética I, p.197 (nosso grifo). 96 Estética II, p.166. 97 Idem, p.166.

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Consequentemente, o objeto principal da tragédia grega não é a subjetividade

do indivíduo em seu querer e executar; antes, a consciência do herói, animado por uma

potência ética legítima, colide com outra igualmente legitimada. A colisão se dá, segundo

Hegel, entre as potências éticas legítimas, e não entre os indivíduos - pois o foco da

tragédia grega não é o sujeito, mas o substancial do Estado, o ético em sua validade

universal. O herói, com seu sucesso ou fracasso, sua vida e morte, é trazido à intuição

“como algo singular e passageiro.” O que se mostra na tragédia grega é este “grande

estado universal”98, permanente em sua perene validade ética. Tal contingência do

indivíduo - mero elemento nas mãos dos deuses, as potências universais que o dominam

-, ainda que sirva ao ideal da arte e a mostre em seu momento mais belo de adequação

entre forma e conteúdo, denota contudo a liberdade ainda pouco desenvolvida na

experiência da polis grega, pois que ela não comportava a subjetividade, o agir cuja

finalidade é particular, elemento humano crucial do nosso ponto de perspectiva moderno.

Em contraste, essa subjetividade nós a encontramos em efervescência no

drama de Shakespeare. A modernidade dissolveu o equilíbrio ideal entre conteúdo e

forma presente nas obras clássicas, e no drama moderno, conforme o filósofo alemão

indica, podemos identificar os elementos indicativos dessa dissolução: em Shakespeare é

a paixão pessoal, a pessoa singular e sua situação própria, que se tornam o objeto

privilegiado da poesia. O conflito origina-se a partir do sujeito particular, cujo desejo e

vontade subjetivos buscam, separados de qualquer substancialidade ética que os legitime,

alcançar satisfação objetiva. Esta vontade particular entra em colisão com outras, dos

outros indivíduos que igualmente querem efetivar-se no palco da luta de todos contra

todos, o cenário da moderna sociedade civil. Se na efetividade o Estado legal controla e

busca equilibrar o agir tornado arbitrário dos cidadãos, punindo os excessos a partir de

um código normativo racional posto formalmente para este controle, na arte o poeta adota

uma estratégia de enfoque: ou transporta seus caracteres para um passado no qual estas

leis não tinham validade (o estado não se constituíra na forma de leis ou

momentaneamente as suspendera por motivos de guerra), ou os coloca, aos personagens

mesmo, na figura de reis e príncipes, nobres que se situam acima das leis. Assim o drama

vê-se liberado para expor com toda a firmeza e potência a individualidade do homem

moderno e sua vontade unilateral. É deste sujeito, de sua subjetividade infinita e

autonomia formal, que deriva o interesse da narração dramática moderna. Para Hegel, na

98 Estética II, p.117.

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apresentação de personagens com grandeza de espírito e caráter, Shakespeare se

sobressai99 – e a poesia dramática do dramaturgo inglês é aquela que aqui nos interessa

em especial. Conforme vimos no início, ao configurar-se no limiar da modernidade, ela

anuncia, na caracterização desse homem “que decide segundo seus desejos e carência

subjetivas”100, a liberdade moderna apresentada em representação imagética. O solo

histórico, ou seja, o grau de liberdade presente em cada um dos respectivos Estados nos

quais a tragédia grega e a moderna surgem, responde pela diferença fundamental entre

estas duas formas de expor artisticamente a disposição e mentalidade dos indivíduos

agentes.

No capítulo seguinte, exploraremos estas diferenças, relacionando cada tipo

de drama, o antigo e o moderno, a seu respectivo momento histórico. Os heróis de

Shakespeare, tendo em Hamlet nosso ponto central de análise, surgem então como

consciências análogas a dos particulares livres da sociedade civil burguesa emergente.

99 Cf. Estética IV, p.215. 100 Idem, p.265.

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3 HAMLET E A QUESTÃO DA AUTONOMIA FORMAL

Conforme tentei demonstrar no capítulo anterior, o desenvolvimento da arte

é o lado sensível da efetivação da ideia de liberdade. Ela reflete em um meio sensorial o

modo como os homens percebem a si mesmos ao longo do processo histórico: primeiro

situam o divino – a ideia de um ser que é absolutamente livre, pois não depende de um

outro para existir – numa região abstrata e inatingível do pensamento, ou em completa

identificação com algum elemento material da natureza. Deus, a ideia de livre, ou não

tem forma possível, ou está dado como algo já pronto e imutável. Assim, “a exposição

sensível não é configurada, formada e inventada a partir do espírito, como exige a arte,

mas encontrada e expressa imediatamente na existência exterior como a expressão

adequada”101, ou permanece subtraída “totalmente dos sentidos (Sinnen) e da percepção,

e não é nem ao menos um objeto para o pensamento.”102 Posteriormente, as civilizações

tentam dar forma a esta ideia abstrata de divino, ao modificar os elementos imediatos da

natureza, muitas vezes confundindo o humano com o animalesco e desta “indistinta força

e vigor (...) quer aflorar o espírito humano, sem chegar à exposição acabada de sua própria

liberdade e de sua forma móvel.”103 Tudo isto constitui a forma de arte simbólica,

primeira a surgir junto aos povos. Finalmente entre os gregos da bela experiência

democrática ateniense os homens demonstram perceber que “toda a diferença entre o

corpo humano e o corpo animal consiste apenas no fato de que o humano se mostra,

segundo toda sua formação, como a morada e certamente como a única existência natural

possível do espírito.”104 – pois sua arte, principalmente a bela escultura grega, encontra

na apresentação íntegra do próprio corpo humano a objetividade ideal do divino

pressentido, e esta exposição perfeitamente adequada de forma e conteúdo eleva a arte ao

ponto supremo da beleza. Deus, a ideia de livre, passa por uma materialização na qual

assume a forma do homem em sua efetividade corporal. Contudo, “a relação do espírito

humano com o divino não é, entre os gregos, absolutamente livre.”105 Somente com o

advento do cristianismo os indivíduos, por fim, reconhecem esse Deus, exteriormente

exposto nas estátuas gregas, como algo de interior, movendo-se imaterialmente junto ao

próprio pensamento – e isto Hegel denomina subjetividade infinita. Deus, a ideia de

101 Estética II, p.55. 102 Idem, p.59. 103 Idem, p.85. 104 Idem, p. 163. 105 Enciclopédia da Ciências Filosóficas III, p.8.

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liberdade, é imanente a cada indivíduo; e foram os homens mesmos que a constituíram

em longo processo histórico. A arte revela que o modo pelo qual os homens se percebem

é este: como cada vez mais livres e conscientes dessa liberdade, pois nela está a essência

do espírito.

Se o progredir da arte se dá paralelamente ao da autoconsciência e liberdade

do homem, manifestadas de modo a atingir os sentidos, as outras esferas, na qual os

homens atuam, tendem a objetivar o mesmo ideal: assim, para Hegel, a evolução do

espírito e de seu autoconhecimento se dá junto à concretização, por parte dos indivíduos,

do ideal de liberdade também na constituição de um Estado racional adequado para conter

as relações destes mesmos homens, que se sabem livres. Tal constituição passa, como

vimos, pelo momento da sociedade civil burguesa em seus primórdios: nela nos

deteremos ao longo deste capítulo.

A sociedade civil burguesa caracteriza-se, na leitura hegeliana, pela liberdade

ainda formal dos indivíduos: formal porque guarda a forma da subjetividade, do

particular, isto é, não se efetiva como ideia ética, que é objetiva e universalmente válida

para toda a sociedade. Na esfera da arte, podemos vê-la representada na obra dramática

de Shakespeare, através das falas, gestos, pensamentos e ações dos seus personagens. Eles

são frutos da experiência artística constituída em um Estado prosaico ainda em

desenvolvimento – a Inglaterra do século XVI – e, ainda que o artista quase sempre os

situe em épocas do passado, eles refletem o homem que efetivamente vivia e atuava na

época em que foram criados pelo autor. Buscaremos contrastar, portanto, sua autonomia

formal com a autonomia individual dos heróis do passado, descritos no teatro antigo, os

quais, ainda vivendo imersos em um mundo no qual a particularidade estava firmemente

vinculada à universalidade, não faziam distinção entre sua vontade individual e a vontade

do todo, o Estado universal. Nosso objetivo principal é indicar, conforme aponta Hegel,

que o trânsito da Idade Média para a da sociedade civil burguesa, em virtude de ter

promovido relações cada vez mais fragmentadas e mediadas, levou a forma-arte ao seu

limite de exposição, tornando-a progressivamente inadequada (apesar de cada vez mais

desenvolvida em liberdade) para a expressão imediata do absoluto, seu ideal maior.

Hamlet, herói do drama shakespeariano e exemplo de personagem cuja vontade referem-

se não ao todo substancial do Estado ético, mas somente a si mesmo, e que substitui o

agir imediato pela reflexão continuada, nos servirá como ilustrativo desta concepção

exposta pela estética hegeliana; a este personagem retornaremos com frequência ao longo

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dessa argumentação, por vezes contrastando-o com os heróis da tragédia grega ou com

outros personagens do próprio drama shakespeariano.

3.1 A INADEQUAÇÃO ENTRE FORMA E CONTEÚDO EM SHAKESPEARE

Entre os personagens da tragédia grega o agir individual não se separa do

substancial ético do Estado, pois eles conservam em si mesmos, como norma e objetivo

de suas ações, essa eticidade reconhecida por todos no Estado. Isto porque entre os gregos

antigos a consciência da liberdade individual, limitada a uma parcela da população, não

avançara para o desenvolvimento de uma subjetividade que de fato reconhecesse cada

homem como livre em si mesmo, tal como o vemos, segundo Hegel, na época moderna

– antes, os indivíduos da bela experiência ateniense se consideravam como livres apenas

dentro do próprio Estado grego, e seu interesse, ao invés de voltar-se para algo de limitado

e pessoal, dirigia-se decididamente na conservação deste Estado. Podemos dizer, assim,

que os heróis da tragédia grega também agem autonomamente, desde que a ação

autônoma é uma prerrogativa dentro do próprio drama. No entanto, sua subjetividade

menos desenvolvida os conduz na direção de um objetivo fundamentado não na satisfação

subjetiva da vontade, e dependente apenas de si mesmo, mas antes em um pathos

universal, em uma potência ética reconhecida por todos dentro dessa experiência como

legítima. O drama se constitui a partir de colisões que clamam por uma solução. Mas este

conflito da tragédia grega, diferente daquele que em um Estado prosaico tem origem nas

mais diversas vontades egoístas dos homens livres, é gerado quando duas diferentes

potências éticas se contrapõem – e não a partir de meros interesses individuais que se

chocam e buscam encontrar uma satisfação que diz respeito apenas ao sujeito mesmo,

sendo essencialmente particular, tal como ocorre, conforme Hegel, na esfera da sociedade

civil burguesa, na época moderna – e, paralelamente, na obra de Shakespeare e na

autonomia formal de seus heróis.

Queremos inicialmente destacar aquilo que os personagens heroicos – tanto

da tragédia grega como do drama de Shakespeare - nos dizem sobre a autonomia do

homem em pensar e agir dentro de seus respectivos contextos históricos. No que Édipo

ou Orestes, caracteres da tragédia clássica, se diferenciam de Hamlet ou Macbeth,

personagens destacadamente modernos? A questão mais específica seria: sendo tanto

aqueles quanto estes um modo de representar indivíduos autônomos, pois todos atuam no

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mundo para modificá-lo de acordo com sua livre vontade, em que difere esta autonomia

entre uns e outros e, principalmente, que relação esta diferença guarda com o terreno

histórico do qual eles se originam e para o qual dirigem sua ação?

Primeiro, apontemos a diferença fundamental entre os caracteres clássicos e

os do drama de Shakespeare. Lembremos que, na concepção de Hegel, a representação

figurativa é um dos índices pelo qual medimos a consciência de liberdade presente entre

os povos: ao analisarmos a arte que eles produziram, estamos de fato aptos para

compreender o quão livre eles se reconheciam dentro de suas respectivas sociedades, e

ao longo dos seus tempos históricos. Nos primórdios das civilizações, a reduzida

liberdade que cerceia os indivíduos não encontra na forma arte uma configuração

adequada de exposição. Já na Grécia clássica, onde a liberdade democrática de alguns

cidadãos surge pela vez primeira, o equilíbrio entre forma e conteúdo se concretiza

imageticamente, e a tragédia grega nos serve como exemplo artístico dessa adequação.

Mas como a liberdade evolui, ela é entre os homens modernos necessariamente maior que

a dos gregos, e por isso mesmo menos passível de ser apresentada imageticamente, ou

seja, de deixar-se captar pela configuração sensível da arte. Sendo assim, o drama de

Shakespeare, nosso exemplo presente, é mais desenvolvido que a tragédia clássica, caso

o consideremos em função deste critério da liberdade; o herói shakesperiano possui, tal

qual o homem efetivo que ele se dispõe a configurar, um saber de si subjetivo a tal ponto

aprofundado que o impossibilita reconhecer na mera exterioridade sua essência ou uma

representação adequada dela. Este indivíduo se sabe como espírito livre em si mesmo,

como aquele que dá a si suas próprias leis, comandante de seu destino, centro irradiador

da ação desejada - portanto como distinto da objetividade submetida a leis exteriores.

Assim se comportam os grandes caracteres shakespearianos, dentre os quais destacamos

Hamlet, cuja liberdade de ação, conforme analisaremos adiante em detalhes, se dá

justamente em negar-se a agir.

Os caracteres da tragédia grega também expressam a liberdade posta em seu

tempo e lugar históricos: de fato, Hegel acredita que somente o solo grego da polis

possibilita o princípio da individualidade livre, necessário ao desenvolvimento desta arte,

pois toda a anterior concepção de mundo oriental, menos livre, não comportava a

execução de um agir individual, tal qual a arte dramática exige.

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(...) para o agir verdadeiramente trágico é necessário que já tenha despertado o

princípio da liberdade e da autonomia individuais ou pelo menos a

autodeterminação de querer responder livremente, a partir de si mesmo, pelo

próprio ato e suas consequências.106

Mas o indivíduo que decida por si mesmo, a partir de sua vontade unilateral, contra as

outras vontades individuais, ou seja, que se afasta de um ideal ético estabelecido em sua

sociedade, nós não o encontramos na tragédia clássica. A experiência da polis grega

guarda, conforme Hegel, o ideal de beleza, a adequação entre forma e conteúdo - que

supõe uma identificação imediata entre aquele que age e a exterioridade ética na qual ele

atua107. O herói grego, assim condicionado pela adequação entre a vontade particular e a

coletiva, não se separa “do conjunto ético ao qual pertence, antes tem uma consciência de

si apenas enquanto unidade substancial com este todo”.108 Seus objetivos, desejos e

vontades não estão cindidos e apartados do mundo e da realidade na qual ele se encontra

imerso – a particularidade do caráter e a universalidade do Estado correspondem a uma e

mesma totalidade. Essa identificação, visível na arte, entre os interesses do herói agente

e os da comunidade na qual ele está inserido, é, conforme Hegel, factual – também ocorre

na efetividade do mundo objetivo, pois

(...) na vida ética grega o indivíduo era certamente autônomo e livre em si

mesmo, sem contudo se desprender no presente temporal (zeitlichen

Gegenwart) dos interesses universais dados do Estado efetivo e da imanência

afirmativa da liberdade espiritual.109

Os homens livres da experiência da polis grega constituem de fato um Estado no qual

deles emanam as leis: em corpo presente na ágora, escolhem a partir do próprio peito seus

representantes, votam por seus destinos, decidem pela guerra ou pela paz. Em suas

consciências, referem-se aos deuses como as potências que os animam nestas escolhas.

Expõem em sua arte esse mesmo ânimo sensibilizado em pedra, marfim, narrativa

poética. Assim, Estado, religião e arte compõem uma totalidade da qual os homens não

se distinguem subjetivamente. Isto não significa que os homens não tenham ali liberdade

subjetiva autoconsciente, mas sim que a mesma não se separa da substância ética de sua

realidade: já que os interesses do Estado são reconhecidos como o interesse particular de

106 Estética IV, p.245. 107 Cf. Estética II, 166. 108 Estética I, p.197 (nosso grifo). 109 Estética II, p.166.

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cada cidadão, estes procuram “sua liberdade própria apenas nos fins universais do

todo.”110 Na Grécia clássica, a beleza da arte é um reflexo da própria realidade, ela mesma

bela, pois ali os homens se conhecem como um todo universal do qual o particular não se

distingue.

Os heróis de Shakespeare, todavia, nascem de um solo histórico no qual uma

experiência de totalidade como a da polis grega está totalmente dissolvida: na

modernidade, cada indivíduo se sabe como livre em si mesmo, e, conforme já dissemos,

não conseguem reconhecer na exterioridade efetiva do mundo uma expressão adequada

de seu interior profundo. Um exemplo em forma poética dessa consciência moderna nós

a encontramos verbalizado pelo próprio Hamlet de Shakespeare e naquelas que são

praticamente as primeiras palavras ditas por ele na peça: soturno e melancólico, em vestes

negras, o príncipe passeia a esmo pelo castelo de Elsinore, semanas depois da morte de

seu pai. A rainha questiona seu luto prolongado e não compreende porque o caso dele

“parece” diferente dos de outros filhos cujos pais também morreram, sendo essa a “lei

comum” da natureza.111 A resposta de Hamlet é dada nos seguintes termos:

Não parece. Senhora; é. Não conheço

“pareces”, boa mãe. Nem esta capa

sombria, nem as vestes costumeiras

de solene cor negra, os tempestuosos

suspiros arrancados do imo peito,

as torrentes fecundas que me descem

dos olhos, o semblante acabrunhado,

nem todas as demais modalidades

da mágoa poderão nunca, em verdade,

definir-me. Parecem, tão-somente,

pois são gestos de fácil fingimento.

Mas há algo dentro em mim que não parece.112

Para o príncipe, há uma discordância evidente entre aquilo que se mostra aos

sentidos – a aparência soturna das vestes, a expressão tristonha do semblante, as lágrimas

constantes e os suspiros prolongados – e aquilo que o príncipe pressente em si mesmo,

como algo de interior e subjetivo, que deseja mostrar mas que, no entanto, não se deixa

captar sensivelmente de modo adequado pelas formas usuais de expressão. O conteúdo

110 Estética II, p.166. Hegel lembra que a própria linguagem grega aponta para essa unidade vivificante:

Atenas, por exemplo, tanto é o nome da deusa protetora da cidade, quanto o nome da própria cidade, na qual se ergue seu templo e estátua adorada em divindade e símbolo da justiça.

111 Hamleto, p.26. 112 Idem, p.26.

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de liberdade subjetiva que Hamlet apresenta nesse diálogo com sua mãe mostra-nos a não

identidade entre aquilo que o personagem conhece intimamente de si, sua autoconsciência

mesmo, e aquilo que publicamente é um mero aparentar – numa palavra, o príncipe

mostra-se consciente da aparência exterior e de sua inadequação ao que ele sabe como

íntimo. Há uma cisão entre o sujeito subjetivo e a objetividade do mundo, a grandeza do

espírito e a sua limitada aparição corporal; conteúdo e forma não coincidem, pois o

primeiro supera o segundo em profundidade. E o herói, ao concluir por tal duplicidade,

por um lado revela a angústia que ela acarreta, por outro demonstra a liberdade (de

pensamento e ação) que advém do mesmo conhecimento. A definição do que se é, bem

diz Hamlet, não está no que se percebe sensivelmente – conclusão negativa que

impulsiona o espírito na direção de uma busca positiva.113

O exemplo acima nos remete ao estatuto que a estética hegeliana confere à

poesia dramática no limiar da modernidade: ela, a exemplo da arte em geral, torna-se

inadequada em expor a liberdade do homem, pois agora tal liberdade atingiu um grau

impossível de ser captado imageticamente. Claro está, portanto, que o ideal de beleza, a

perfeita adequação entre a ideia e sua representação objetiva, conforme definido por

Hegel, não pode repousar em sua verdade naquela configuração artística cujo conteúdo

ultrapassa a forma, e sob ela se ergue. A arte romântica, da qual destacamos o drama

moderno de Shakespeare e seu caráter Hamlet, percorre assim o caminho oposto ao da

simbólica – se esta última, segundo Hegel, tenta erguer de múltiplas formas a matéria

para a figuração do divino, mutilando-a num desejo selvagem de alcançá-lo, o espírito

romântico, ele mesmo consciente do divino em si, percebe, sabe, está convicto de que

nenhuma materialização possível há de expressá-lo verdadeiramente. O ideal de beleza e

a representação ideal do herói, para Hegel, só pôde ser configurado no meio termo entre

o simbólico e o romântico das formas de arte: o período clássico da polis ateniense, na

113 Curiosamente, no texto de Eurípedes da tragédia clássica Electra, cujo enredo será discutido na

próxima sessão, encontramos a personagem-título em situação semelhante a de Hamlet – em luto e lamento contínuo pelo pai, um rei assassinado, e desejando vingar-se dos criminosos que ocupam seu trono, ela, tal qual o príncipe da Dinamarca, também refere-se a sua aparência exterior: “As lágrimas substituem, para mim, as danças festivas... estas lágrimas que todos os dias vertem meus olhos. Vede o estado de meus cabelos e de minhas vestes. Por acaso condizem com a situação de uma princesa? Ou se assemelham aos de uma troiana escrava que na guerra tenha caído prisioneira de meu pai?” (Elektra/Algeste/Hipólito, p.30). Para a personagem grega, as aparências também indicam uma discordância, mas não entre um eu interior e sua aparição no mundo. Antes, a fala indica uma inadequação entre sua posição social atual e á que ela julga de direito – ou seja, as aparências falam aqui de forma positiva, e não negativa, como em Hamlet.

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qual a vontade do indivíduo não se separava da vontade da própria comunidade como um

todo. Em amplo contraste com esse solo histórico grego nos deparamos ao analisar a arte

de Shakespeare e o estatuto herói moderno: a sociedade civil burguesa em seus primórdios

já é um reino hostil à estabilidade - o mundo efetivo das relações cotidianas -, o herói

individual atua, tendo contra si um ambiente em contínua modificação, sujeito tanto às

intempéries exteriores quanto ao choque entre múltiplas vontades individuais;

3.2 O HERÓI DRAMÁTICO DE SHAKESPEARE – SUA AUTONOMIA FORMAL

A arte ideal grega é superada à medida em que emerge a subjetividade infinita

– no horizonte de liberdade continuamente mais desenvolvida que sucede ao período

clássico, vemos o surgimento de um novo tipo de herói, paralelo à atuação, por sua vez,

do homem efetivo que age em um solo histórico cada vez mais livre. Num momento

inicial da etapa cristã, o interesse artístico se afasta do mundano e recai sobre as

representações religiosas deste universo devoto e transcendente; o espírito, que não mais

se reconhece na matéria, utiliza a arte a serviço da religião, tornada agora a esfera mais

apropriada para representar a liberdade do homem. A ação mundana e efetiva, todavia,

volta a atrair o interesse dos indivíduos: numa etapa posterior da Idade Média, o herói é

tratado como brava e corajosamente imiscuído no mundo, diante do qual ele pretende

impor a sua individualidade subjetiva, que a ele é caramente defendida nas formas

românticas da lealdade, amor e honra. E finalmente o mundo moderno retrata este

subjetivismo em obras cujo interesse repousa completamente no casual e rotineiro, nas

situações mais banais do dia-a-dia. O herói não encontra no mundo prosaico destas

relações formais do Estado legal, o qual rege a vontade particular com normas universais,

espaço para uma autonomia individual – vê-se carente de um terreno universal no qual

ele possa mover-se sem o constrangimento de leis e normas que foram estabelecidas para

justamente conter a arbitrariedade do agir particular. Estas leis representam formalmente

o universal, a eticidade a qual os homens devem obedecer – e que não mais emana de seu

peito na forma de um pathos divino.

Shakespeare vive e escreve naquele momento em que o terreno heroico da

Idade Média passa gradualmente a ser substituído pelo Estado legal que virá a prevalecer

no mundo moderno. Assim, a autonomia dos personagens de sua obra dramática em muito

difere daquele livre agir individual tal qual configurado pela poesia dos gregos clássicos

ou pelos romances da cavalaria medieval. Falamos acima sobre Hamlet, e a incapacidade

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deste herói, gerado na etapa mais avançada da subjetividade romântica, em encontrar

numa forma sensível a adequada representação de seu espírito profundo. Ele sabe de si –

e o que ele é, nós também sabemos, não tem paralelos que uma configuração artística

exponha idealmente. O estar consciente de si em tamanho grau significa ter liberdade para

pensar e atuar conforme ditem seus desejos e vontades particulares, não referidos a uma

ordem exterior, seja natural ou social, como a eticidade entre os gregos, ou a religiosidade

da primeira etapa cristã, tampouco os deveres da honra, lealdade e amor da cavalaria

romântica. Tampouco a ação heroica visa um bem geral da comunidade ou a reconciliação

religiosa do espírito. O homem volta-se exclusivamente para si mesmo, e é na execução

de atos que favoreçam e satisfaçam sua vontade egoísta que ele encontra satisfação.

De acordo com o filósofo da Estética, esta etapa da subjetividade romântica

foi melhor configurada pela poesia dramática de Shakespeare. Para Hegel, o que há de

particularmente admirável nesta obra é a habilidade com a qual o poeta expõe a autonomia

de seus caracteres. São personagens cuja vontade é férrea e unilateral - voltada

exclusivamente para a satisfação de desejos egoístas e particulares. Aquilo que os move

não encontra mais um fundamento em algo de exterior e universal; seu agir não tem como

finalidade entrar em acordo com os outros homens a partir de um substancial ético

universalmente válido no interior do Estado, nem tampouco visa atingir uma

reconciliação religiosa a partir das crenças tradicionalmente correntes em seu meio. Ou

seja, sua ação não está fundamentada em nada de superior ou externo, mas antes visa

satisfazer a própria interioridade subjetiva. São indivíduos

(...) colocados de modo autônomo apenas sobre si mesmos, com fins

particulares que apenas são os seus, que provém unicamente de sua

individualidade, e os quais eles executam com a consequência inabalável da

paixão, sem reflexão acessória e universalidade, apenas para a própria

autossatisfação.114

Em Shakespeare, cada personagem é esse caráter peculiar, um sujeito

individual determinado, fechado em si mesmo com seu mundo, suas propriedades e fins

particulares.115 Na firmeza e vitalidade de seu ânimo, eles executam o que querem, com

tenaz energia e sem reflexões ulteriores; ou, por não se sentirem seguros de como agir,

não tendo ainda desenvolvido aquela mesma abertura de ânimo, perseveram em uma

profundidade reflexiva e reconduzem sua vontade ao próprio interior subjetivo.

114 Estética II, p.313. 115 Cf. Idem, pp.311-312.

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O casal Macbeth ilustra muito bem a categoria de personagens cuja vontade

férrea executa, sem medir consequências, todos os atos que os conduzem rumo à

satisfação de ideais egoístas: juntos, marido e mulher planejam o assassinato do rei. A

coroa seria imediatamente transferida à Macbeth. Ele é “determinado por seu caráter para

a paixão da ambição.”116 Mas principalmente a esposa, “um caráter semelhante”117,

parece firme em seu propósito:

Espíritos que estais ao serviço de ideias

De morte, dessexuai-me aqui. Da crueldade

Mais dura refertai-me até a saciedade.

Desde a cabeça aos pés. Fazei-me o sangue espesso.

A passagem sustai e sustai todo o acesso

Da piedade até mim. Não venha a natureza

Comovida, abalar da vontade a fereza

E pôr-se entre ela e o golpe, um momento sequer.118

Lady Macbeth não mostra “nenhuma incerteza, nenhuma reflexão, (...) mas a pura

abstração e dureza do caráter, o qual executa sem restrições o que lhe é adequado.”119

Quando o próprio rei torna-se hóspede na residência do casal, a ocasião para o assassinato

se apresenta. No entanto o marido hesita, pois

(...) a justiça imparcial, com a mão firme, apresenta

Os venenos que estão na nossa própria taça

Aos nossos lábios logo. O rei a noite passa

Na dupla guarda, aqui, de parente e vassalo.

Duas fortes razões contra o ato de mata-lo.120

Se Macbeth, contudo, ainda teme alguma punição pelo crime, vê qualquer receio

dissipado pelo discurso contundente de sua esposa,

Tu tens medo de ser na ação e no valor

O mesmo que tu és no teu desejo? Não?

(...) Dei de mamar. Sei quanto

É doce amar o pequenino que amamento.

Pois bem, eu vos direi: nesse mesmo momento

Em que ele me sorrisse à face, sem receio,

Eu teria arrancado o bico do meu seio

Das gengivas sem osso e desse mesmo jeito

Havia de deixar o cérebro desfeito,

Aí, se, porventura, isto viesse a jurar

116 Idem, p.313. 117 Estética II, p.313. 118 Shakespeare, William. Macbeth – Rei Lear, tr. br. Artur de Sales e J. Costa Neves, São Paulo, ed. Brasileira Ltda, 1964, pp. 23-24. A partir de agora, será citado como Macbeth. 119 Estética II, p.314. 120 Macbeth, pp.26-27.

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Como o jurastes vós.121

discurso ao qual Macbeth cede:

Eis-me, pois, decidido.

Todo o recurso do meu ser vai dirigido

Para essa ação tremenda. Avante.122

Cometido o crime e alcançado a coroa, Macbeth, “para afirmá-la, precipita-

se em todas as atrocidades. (...) Nada faz ele titubear, (...) diante de nada ele recua em si

mesmo, nem diante de direitos celestes e humanos, mas persiste.”123 A firmeza de caráter,

essa necessidade de impor-se sobre o mundo, mostra-se ao fim como o resultado trágico

para o qual o próprio personagem se precipitou: ambos, marido e mulher, sucumbem à

loucura e à morte.

A outra categoria de personagens que Hegel identifica no universo

shakespeariano é composta por ânimos que, em contraposição àqueles que exteriorizam

decididamente seus impulsos e desejos íntimos, permanecem, por sua vez, silenciosos,

fechados em si mesmos, sem desdobrar em ação enérgica o conteúdo de suas vontades.

Para Hegel, “a esta espécie de caracteres pertence as figuras (Gestalten) mais

encantadoras da arte romântica, tal como Shakespeare as criou na mais bela

completude.”124 A grande genialidade do artista consiste aqui em fazer vir à tona aos

olhos do público a profundidade desse interior subjetivo que se recusa a revelar-se em

sua totalidade. Estamos agora diante de um tipo de exposição que lança à arte um desafio

muito superior àquele executado pelos gregos: na experiência clássica da polis ateniense,

a finalidade era a de apresentar o corpo humano em sua beleza ideal. Na era romântica, o

corpo, morada do espírito, não representa toda a profundidade de um humano que se

percebe como mais livre. O drama de Shakespeare, com seu enigmático herói cujo interior

não se exterioriza por completo, ambiciona expor as profundezas recônditas de um

subjetivismo que somente na era moderna se desenvolveu a tal ponto. Hamlet é um destes

caracteres.

O enredo da peça poderia ser banal, não fosse o interesse despertado pela

personalidade do jovem príncipe da Dinamarca. De início o vemos mergulhado em

profunda tristeza pela morte recente de seu pai, o rei Hamlet. Ele “tem o sentimento

121 Macbeth, p.29. 122 Idem, p.30. 123 Estética II, p.313. 124 Idem, p.317.

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(Gefuhl) obscuro de que algo de terrível deve ter acontecido.”125 Acabrunha-o as suspeitas

de um assassinato no qual Claudius, tio do jovem príncipe e irmão do rei morto, teria tido

participação direta. A mãe de Hamlet casara-se logo em seguida à morte do rei com o

possível assassino e usurpador, fato este que mais acrescenta à ira do jovem príncipe:

Só um mês, sem ter gasto ainda os sapatos

com que o corpo seguiu do meu bom pai,

qual Níobe, só lágrimas. Sim, ela –

Ó céu! Um animal que é destruído

da faculdade da palavra, certo

choraria mais tempo! – desposada!

pelo irmão de meu pai, mas que tem tanto

dele tal como eu de Hércules.126

O trono é seu de direito. A dúvida sobre o crime o dilacera. E ninguém menos que o morto

mesmo, na figura de um fantasma, aparece a Hamlet para confirmar suas suspeitas e exigir

dele o cumprimento imediato de uma vingança:

Contaram que uma cobra me picara,

quando, a dormir, eu no jardim me achava.

(...) Mas escuta,

nobre mancebo! A cobra que peçonha

lançou na vida de teu pai, agora

cinge a coroa dele.

(...) Se sentimento natural tiveres

não suportes tal coisa. Não consintas

que o leito real da Dinamarca fique

como catre de incesto e de luxúria.127

Para o autor da Estética, “esta aparição do espírito” é “uma Forma apenas

objetiva do pressentimento interior de Hamlet.”128 Ou seja, em contraste com a tragédia

grega ou a epopeia, nas quais uma semelhante aparição remeteria a um pathos justificado

por algo divino, e cujos heróis assumiriam através dela um valor ético universal da

comunidade, em Hamlet o fantasma do pai é, na leitura hegeliana, um aspecto da

subjetividade do príncipe, aspecto este que o orienta na direção de uma ação, destacada

contudo de um valor ético universal. Tanto é assim que, após a confirmação reveladora

trazida pelo fantasma sobre o crime de assassinato do rei, esperamos que o príncipe

125 Estética I, p.237. 126 Hamleto, p.28. 127 Idem, pp. 43-44. 128 Estética I, p.237.

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“imediatamente puna de modo enérgico os autores do ato, e o consideramos

completamente legitimado para a vingança. Mas ele vacila e vacila.”129

(...) talvez que o espírito que eu vi não passe

do demônio, que pode assumir formas

atraentes. Sim, talvez mesmo tencione

perder-me, aproveitando-se de minha

melancolia e pouca resistência (...).

Preciso de razões mais convincentes

do que isso tudo.130 (H, 70)

Se Hamlet sente-se “disposto interiormente para a vingança,” ele contudo “não se deixa

levar, como Macbeth, não mata, não golpeia, não fica raivoso (...)”; e sim “procura por

uma certeza objetiva na legalidade bela de seu ânimo (...).”131 Organiza, então, uma

representação teatral, na qual um crime semelhante àquele suposto é encenado, com a

finalidade de observar as reações de Claudius. Isto porque Hamlet acredita que “os

criminosos, quando assistem a representações, de tal maneira se comovem com a cena,

que confessam na mesma hora em voz alta seus delitos.”132 Claudius se trai ao assistir a

representação teatral deixa transparecer sua culpa. Esquiva-se no intuito de orar e aplacar

a consciência castigada pelo crime. Por esta ocasião, novamente nos deparamos com

Hamlet plenamente justificado para agir. Ele, todavia, ao encontrar ocasião para o

cumprimento da vingança, vendo-se sozinho na presença do tio que reza, recua uma vez

mais:

(...) acha-se orando. (...) Direi que estou vingado

se o matar quando tem a alma expungida

e apta para fazer a grande viagem?

Não.

Aguarda, espada, (...) qualquer ato

que o arraste à perdição. Nessa hora, ataca-o.133

O que percebemos, de fato, ´que ao longo de todo o enredo o príncipe “não chega a

nenhuma decisão firme”, mesmo depois de ter a dúvida aplacada por aquela certeza

objetiva, e “se deixa conduzir por circunstâncias exteriores.”134 A hora da vingança a qual

129 Estética I, p.237. 130 Hamleto, p.70. 131 Estética II, p.319. 132 Hamleto, p.69. 133 Idem, p.94. 134 Estética II, p.319.

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ele se dispôs a aguardar nunca chega. E por deixar enredar-se de tal forma passiva pelos

acontecimentos externos, debate-se na contradição de si mesmo:

(...) seja esquecimento

bestial, ou mesmo escrúpulo covarde

que me leva a pensar demais nas coisas -

(...) ignoro a causa

de ficar a dizer: “Devo fazê-lo”,

se para tal me sobram meios, força,

causa e disposição.135

Hamlet adia indefinidamente a execução de sua vingança; para Hegel, ele

possui “uma natureza fraca em termos práticos, um belo ânimo retraído em si mesmo”,

incapaz por isso de converter em atitude enérgica o seu querer interior. Não se inclina à

ação por ser “melancólico, pensativo, hipocondríaco e meditativo.”136 Hamlet por vezes

atua com decisão, mas é um mover-se impulsivo e apartado de qualquer planejamento, o

que o faz cair em erro, como, por exemplo, quando confunde o velho Polônio, amigo do

tio, com o próprio, e o mata. Se por um lado “age de modo apressado quando deveria ter

verificado com reflexão,” por outro “permanece mergulhado em si mesmo onde

necessitava da força de ação adequada”137, e boa parte do texto dedica-se a expor este

estar consigo em dúvida e conflito. Ao final da peça, tem-se a impressão de que a

finalidade do autor foi muito menos apresentar a colisão e o desdobrar subsequente de

ações por ela originadas, do que uma tentativa de expor o ânimo profundo e a

subjetividade infinita de um caráter contraditório.

A apresentação desse caráter era, de qualquer forma, algo que interessava ao

público desde o princípio. No drama moderno, o lirismo do espírito romântico ganha em

cena a mesma importância da ação objetiva, predominantemente exterior, dominante na

narrativa épica. “O dramático propriamente dito” é justamente “a expressão dos

indivíduos na luta de seus interesses e na cisão de seus caracteres ou paixões.”138 E se

esta forma arte é a que melhor serve ao espírito para configurar a liberdade avançada de

seus caracteres, o dramaturgo de Devonshire foi o que dela tirou mais proveito. Na

concepção da estética hegeliana, “o artista deve principalmente cuidar para que seja

preservada para o ser humano a liberdade e a autonomia da decisão”139 e neste sentido

135 Hamleto, p.110. 136 Idem, p.237. 137 Estética II, p.319. 138 Estética IV, p.212. 139 Estética IV, p.266.

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supremo “Shakespeare nos propiciou (...) os exemplos (Vorbilder) mais esplêndidos.”140

Nisto repousa o mérito de sua obra: na habilidade em compor caracteres que agem e atuam

guiados por seu próprio peito; caminhando sobre os próprios pés, refletindo por si

mesmos. Uns agindo segundo seu desejo e vontade, de forma imperturbável, levando sua

ação a limites que muitas vezes ultrapassam o ético, sem que nada os impeça ou obstrua

o caminho que os leva à satisfação de um desejo egoísta, particular. Outros, fechados em

um universo interior, questionando seu direito ou poder de interferir junto aos eventos,

mas igualmente profundos em ânimo. Mas ambos referindo-se formalmente a si mesmos,

encontrando a justificativa de sua vontade em sua própria consciência, e não em valores

éticos ou espirituais aceitos universalmente e exteriores ao próprio homem. Para os heróis

shakespearianos é sua individualidade que prevalece, sempre, sendo ela o interesse

central de toda a exposição dramática.

3.3 O CONTRASTE ENTRE A ELECTRA DE SÓFOCLES E O HAMLET DE

SHAKESPEARE

Para ilustrar com maior clareza as diferenças entre a autonomia individual do

herói da tragédia clássica, configurada no interior de um Estado ainda germinal, a Atenas

do século V a.C., e a autonomia formal dos caracteres de Shakespeare, oriundos de um

Estado amplamente prosaico e dotados de um avançado grau de subjetividade, faremos

um paralelo entre Orestes, personagem da famosa tragédia grega Electra, de Sófocles, e

o príncipe Hamlet, ao qual já temos dedicado nossa atenção. Hegel observa que em ambas

as peças “subjaz uma colisão semelhante (...).141 Em Hamlet, “o pai e rei foi morto e a

mãe casou com o assassino.”142 Em Electra, o pai e rei também foi morto, e a mãe, ela

mesma a assassina, casou com o amante e cúmplice do crime. Desse modo, a colisão

dessas tragédias gira em torno dos filhos, Hamlet na moderna e os irmãos Orestes e

Electra na clássica, os quais buscam vingança contra os usurpadores do trono. Notemos

que há também em ambos os textos um conflito familiar agudo entre o príncipe e sua

mãe: enquanto para Orestes ela mesma, Clitemnestra, é a criminosa, em Hamlet a rainha,

140 Idem, p.266 141 Idem, p.264. Hegel compara o texto de Hamlet não apenas à Electra de Sófocles, mas também à Coéforas de Ésquilo. Por razões de economia, escolhemos como texto para a análise comparativa a tragédia de Sófocles, em virtude de Hegel considerá-lo o tragediógrafo que melhor desenvolveu o tema. 142 Idem, p.264.

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apesar de inocente do crime de morte, todavia ao casar com Claudius, o assassino, o eleva

à categoria de rei. Desta forma, nas duas tragédias os respectivos príncipes foram

privados, por suas mães, de seu direito legítimo ao trono. Ambos também receberam a

incumbência143 de depor o atual rei usurpador, orientados a executá-lo sem piedade, para

desta forma reestabelecer a ordem hierárquica. A potência principal, portanto, que agita

o ânimo tanto de Orestes como de Hamlet, é a da vingança, e podemos dizer que, dadas

as circunstâncias, eles estão autorizados a cumpri-la. Mas, segundo Hegel, entre os gregos

da tragédia clássica há uma legitimidade ética que permeia toda a comunidade, e que

Sófocles dramatiza tanto na morte do rei Agamenon quanto na vingança de Orestes - é

em torno desta que a colisão do enredo de Sófocles se dá. No drama de Shakespeare, o

assassinato do rei Hamlet alcança somente “a forma única de um crime infame”144, de

modo que “a colisão propriamente dita não gira (...) em torno de que o filho, em sua

vingança ética, deve ele mesmo ofender a eticidade, e sim em torno do caráter subjetivo

de Hamlet (...).”145 Isto porque esses heróis são frutos de duas épocas distintas, e

apresentam um grau de subjetividade bastante diverso. Essa diferença, nós a encontramos

no próprio desenlace final das peças, quando as contrastamos: Orestes cumpre sem

hesitação a ordem recebida.146 Hamlet sucumbe vitimado por adiar o cumprimento da

sua, mediando-a pela atividade reflexiva. Para Hegel, a diferença fundamental entre

ambos é esta: Orestes, o herói clássico, age movido pela legitimidade ética que permeia

sua comunidade, ou seja, busca fazer aquilo que dele se espera; Hamlet, caráter moderno,

age, ou se esquiva de agir, movido por sua vontade individual apenas, sua subjetividade

mais desenvolvida e livre, e faz ou deixa de fazer aquilo que ele mesmo deseja.

Analisemos essa diferença detalhadamente - diferença essa que se estende para as

143 Conforme explicaremos adiante, essa incumbência, para Hegel, não parte do exterior: em Hamlet, o fantasma do pai seria a forma objetiva pela qual a consciência do príncipe se dá a ordem de vingança. Em Electra, a orientação dos deuses guarda relação com o todo ético que permeia a comunidade e é, portanto, imanente à consciência individual de Orestes. 144 Estética IV, p.264. 145 Idem, p.264. 146 Essa afirmação não pode, contudo, ser estendida ao texto Electra de Eurípedes, no qual o herói de fato exita diante de sua tarefa: tendo matado Egisto, Orestes vê Clitemnestra, sua mãe, aproximar-se, e sabe que é chegada a hora de levar a cabo a orientação do oráculo. Teme ser culpado de matricídio e dos castigos decorrentes dessa culpa, e contesta se “não teria sido um espírito infernal quem disso” o “persuadiu sob a forma de uma divindade” (Electra, 55) A irmã, que não crê na ilegitimidade do oráculo, insiste que Orestes não passará de um infame, caso não vingue a morte do pai, e nisso sim seria digno de punição. (Electra, 56). Ora, notemos que o conflito de Orestes, contudo, não reside exatamente em opções de sua vontade individual; antes, o personagem questiona qual substância ética deve ser obedecida, e qual ofendida. Ele teme ser castigado pela morte da mãe, pois sabe que está praticando um crime – ao mesmo tempo, deixar a morte do pai impune seria motivo de infâmia. Ao fim, convencido por Electra, Orestes assassina Clitemnestra, e cumpre seu destino.

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tragédias clássica e moderna, e que nos permite compreender como Hamlet anuncia, com

seu subjetivismo, um caráter de liberdade superior em relação ao da individualidade

grega:

3.3.1 ORESTES E HAMLET

Tanto Sófocles quanto Shakespeare abrem seus poemas revelando ao

conhecimento do público detalhes gerais da injustiça de morte e usurpação do trono

cometida nos respectivos reinos. E logo em seguida a ordem de vingança surge como

motor da colisão central dos enredos: ela é trazida aos heróis vinda de um mundo

transcendente - do além. No caso do príncipe da Dinamarca, é, como vimos acima, o

fantasma do pai morto quem o interpela: “Escuta, Hamleto! Se algum dia amaste teu

carinhoso pai (...) Vinga o seu assassino estranho e torpe.”147 Já Orestes nos informa ter

recebido a incumbência diretamente dos deuses:

Quando me dirigi ao santuário pítico

para saber como vingar em seus algozes

o meu pai morto, recebi ordens de Febo:

- que sem escoltas, por ardis e de surpresa

eu mesmo os abatesse com minhas mãos.

Foi tudo quanto disse o deus.148

A interpelação feita a Hamlet e a Orestes, em ambos os casos narrada

poeticamente como oriunda de fonte sobrenatural, deve ser interpretada, de acordo com

Hegel, como conteúdo, potência universal, presente na própria consciência dos heróis.

Entre os gregos, tal interpelação não pode adquirir forma diversa desta que assume no

texto de Sófocles: a de um deus que busca, através do humano que age heroicamente,

reencontrar o equilíbrio ético perdido - como também a do humano que encontra, na

potência ética universal do deus, a justificativa para seus atos. Não que Orestes seja,

assim, um mero instrumento do deus; é que este herói, por não separar sua vontade

individual daquela que permeia o todo ético do estado grego, age em concordância com

ela. Ou seja, não há separação entre o seu querer e o querer presente em sua comunidade.

147 Hamleto, p.41. 148 Os Persas/Ésquilo. Electra/Sófocles. Hécuba/Eurípedes. Tr. br. Mario da Gama Kury, Rio de janeiro: Jorge Zahar ed. 1992, p. 80 (Nosso grifo). A partir de agora, será citado como Os Persas. Electra. Hécuba.

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No caso específico da tragédia Electra, a substância ética clama por vingança, pois a

instituição racional do próprio Estado foi ferida com a usurpação do trono.

Também no drama de Shakespeare o sobrenatural cumpre, de acordo com

Hegel, função similar: a aparição (Erscheinung) do fantasma do rei morto diante do filho

inconsolado é “uma Forma apenas objetiva do pressentimento interior de Hamlet.”149 É o

desejo mais oculto do próprio personagem, o de vingar-se do crime suposto, que se revela

a ele em aparência fantasmagórica, aparentemente apenas exterior150. Podemos ver,

contudo, a maior liberdade do príncipe moderno em relação a Orestes no fato de que ele

lança uma dúvida sobre a veracidade da fonte sobrenatural que o interpela a vingar-se.

Ao buscar uma confirmação posterior sobre a culpabilidade de Claudius, o príncipe

moderno demonstra que “vacila porque não acredita às cegas no espírito”.151 Sua dúvida

o leva assim a querer “alcançar a certeza (GewiBheit) pelos próprios meios, antes de

empreender o agir.”152 A indecisão de Hamlet, dessa forma, demonstra ser um traço

somente possível para um caráter cuja subjetividade é mais desenvolvida que a dos

personagens trágicos da antiguidade; e isso indica o grau de liberdade atingido pelo

homem moderno: repousa nele, em sua vontade individual, a decisão de agir ou não.

Sófocles, ao introduzir Orestes em cena, escolhe o momento em que ele

retorna à Atenas, depois de ter recebido do deus Febo instruções de como proceder na

execução da vingança pretendida. O herói ressurge na cidade natal destemido e

determinado, tendo elaborado um plano para penetrar no palácio e surpreender os algozes

do rei Agamenon, seu pai morto. Suas palavras não dão margem a lamentações ou

dúvidas:

Mãe-pátria e divindades todas desta terra!

Com bons augúrios recebei o meu regresso!

E tu, mansão de meus nobres antepassados,

manda-me um deus purificar-te com justiça.

Que eu não retorne desonrado! Sejam minhas

de novo as minhas terras e a casa paterna!153

149 Estética I, p.237. 150 Hegel observa que também em Macbeth o dramaturgo inglês utiliza uma estratégia similar, ao colocar diante do herói as três bruxas que predeterminam seu destino. “O que elas proclamam, todavia, é o desejo mais oculto e próprio de Macbeth que, neste modo apenas aparentemente exterior, chega a ele e se revela para ele.” Estética I, p.237. 151 Estética I, p.237. 152 Idem, p.238. 153 Os Persas. Electra. Hécuba. p.81.

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Hamlet, por sua vez, depois de ter falado ao fantasma, passeia pelo castelo perdido em

elucubrações contínuas:

ao passo que eu,

um parvo feito só de lama, um néscio,

como um joão-sonhador, sem nenhum plano

de vingança, me calo, quando a vida

preciosa e um trono um rei a perder veio

por maneira tão bárbara e maldita.

Serei covarde?154

Devemos ressaltar que esta diferença de caráter entre ambos – Orestes, prático

e objetivo, enquanto Hamlet, reflexivo e indeciso – em vez de ser um mero traço

contingente, pode ser compreendida, de acordo com a estética hegeliana, como

relacionada ao próprio solo histórico do qual os príncipes emergem e ao qual devem sua

formação. O estado universal do mundo grego de Orestes, por um lado, no qual as leis

não estão dadas de forma exterior, o autoriza a impor ele mesmo uma norma ética que em

sua sociedade tem validade universal. Sua subjetividade busca tornar objetivo esse ideal

ético comum do mundo grego. Por outro lado, em Hamlet a subjetividade já atingiu a

superação dessa totalidade na qual Orestes se vê imerso – apartada da realidade objetiva,

sabendo-se livre em si mesma para decidir, não age de forma imediata, tal qual exigida

pelo ideal da polis grega, mas antes reflete e se dá a oportunidade de avaliar, e porventura,

como é o caso em Hamlet, de adiar o quanto queira o cumprimento de sua ação. O príncipe

da Dinamarca, indivíduo de um estado desenvolvido no qual as leis já adquiriram um

estatuto exterior à vontade individual155, não se sente animado como Orestes por um

pathos legitimado universalmente; antes, é o seu desejo, sua vontade individual e egoísta,

separada de qualquer universalidade, aquilo que o impulsiona – ou que o mantém em

suspensão. Podemos considerar a vingança de Hamlet tão justa quanto a de Orestes, mas

é necessário compreender que, em relação ao príncipe da Dinamarca, a subjetividade

mesma é aquilo que quer, que executa e que responde pelo ato.

154 Hamleto, p.69. 155 Devemos salientar que Shakespeare, ao escolher o tempo histórico de suas narrativas, muitas vezes resgata épocas do passado que ainda permitem uma maior liberdade para a ação heroica. No caso específico de Hamlet, a narrativa é suposta como ocorrendo séculos antes da Inglaterra na qual o dramaturgo escreve. Todavia, o conteúdo que sustenta o homem narrado por ele é o homem da Inglaterra de seu século. Também os tragediógrafos gregos da polis ateniense, dentre os quais Sófocles está incluso, buscavam situar suas narrativas em épocas passadas: especificamente na experiência de mundo da nobreza grega dos séculos XII a VIII a.C.

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Isto apenas nos remete mais uma vez à diferença apontada por Hegel inerente

à consciência de si como livre do homem grego clássico, imerso em uma totalidade da

qual sua vontade não se separa, em contraste com aquela do indivíduo plenamente

moderno, que busca primeiramente atingir objetivos individuais, sem que nada o

constranja. Essa diferença marca do mesmo modo a contraposição entre a tragédia grega

e o drama shakespeariano, assim como índica a separação entre o herói clássico Orestes

e o caráter moderno de Hamlet: pois de um herdeiro traído do trono grego se espera uma

reação enérgica e imediata, e é dessa forma que Sófocles compõe o caráter de seu herói.

A atitude de Orestes não nos parece surpreendente, e sim perfeitamente adequada como

solução do conflito exposto no texto. Sua individualidade jamais surge como o

componente central da peça, que está situado no enredo objetivo em si, no desenrolar dos

fatos conforme são narrados. Como consequência, o caráter determinado do herói grego

não se desenvolve durante a ação, e no “fim é o que era no começo.”156 A individualidade

do herói helênico, animada pelo pathos da vingança, atua para objetivá-lo e para recuperar

a ordem ética perdida, e nisso – na ação, como dissemos acima - se resume a solução do

conflito. Bem diferente é a consciência de Hamlet. Onde esperamos vê-lo em ação, eis

que medita; quando menos imaginamos dele uma atitude mais enérgica, eis que nos

surpreende e age de modo irrefletido.157 Sendo um herói moderno, “a continuação da

ação” serve a ele como um desenvolvimento “em seu interior subjetivo e não apenas uma

progressão exterior.”158 Dito de outro modo, Hamlet, diferente de Orestes, não é ao final

da peça aquilo que era no início, pois o desenrolar da ação o atinge como um desenvolver

do seu próprio caráter.159 Eis aí a diferença fundamental entre os dois textos: em Electra

o foco de interesse se resume na ação exterior; em Hamlet o foco passa a ser, de fato, a

atividade mesma interior, subjetiva, do personagem, tornada central e suplantando o

próprio enredo, que passa a servi-la. Enquanto Sófocles narra o desenrolar de uma ação,

Shakespeare narra, para além da ação, o desenvolver de um personagem.

3.3.2 ELECTRA E HAMLET

156 Estética II, p. 315. 157 Como, por exemplo, na cena em que assassina Polônio por engano, ao confundi-lo com

Claudius. 158 Estética II, p.315. 159 Hegel cita Macbeth como exemplo semelhante: o agir desse herói “aparece ao mesmo tempo como um embrutecimento de seu ânimo...”. Estética II, p.315.

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Pode-se argumentar que a atitude procrastinadora, acabrunhada e lamuriante

de Hamlet não é exatamente original, pois guarda uma verossimilhança com o

comportamento de Electra, irmã de Orestes, na medida em que ela se lastima

passivamente enquanto os fatos se desenrolam em torno de si. Orestes viveu como

forasteiro, mas tanto Hamlet quanto Electra habitam em um palácio maculado de sangue.

A lembrança do crime os persegue, já que se encontram em contato direto com os

responsáveis pela coroa usurpada, e sofrem a dor dessa relação. Assim, as circunstâncias

gerais na qual a irmã de Orestes se encontra é a de completo desalento pela morte do pai

e pelo matrimônio de Clitemnestra; em momentos de maior desespero, expressa até

mesmo o pensamento de suicídio:

Podeis imaginar a minha vida aqui (...)

No leito régio o miserável criminoso

Com sua torpe cúmplice – com minha mãe

(se é mãe quem compartilha o leito de tal homem!)

(..) Que poderia eu fazer senão chorar?

choro na solidão do palácio paterno

enquanto a festa impiedosa realiza-se,

mas o meu pranto não me traz alívio algum.160

Mas juro que prefiro a morte

a ter de conviver ainda com tal gente!

(...) Matem-se os assassinos se lhes sou hostil!

Se a vida é insuportável, prefiro morrer!161

O comportamento de Hamlet e seu pesar profundo ecoam, com uma tristeza

mais refletida e fria, as lamentações de Electra mencionadas acima; a presença de

Claudius e da mãe o perturba – “(...) oh mulher perniciosa! Vilão, vilão que ri! Vilão

maldito!”162 E, por mais de uma vez, a ideia de morte também o acomete; ela compõe o

tema de dois dos mais famosos monólogos da peça:

Oh, se esta carne sólida, tão sólida,

se esfizesse, fundindo-se em orvalho!

Ou se ao menos o Eterno não houvesse

condenado o suicídio! Ò Deus! Ò Deus!

Como se me afiguram fastidiosas,

fúteis e vãs as coisas deste mundo!

Que horror! Jardim inculto em que só medram

ervas daninhas, cheias só das coisas

mais rudes e grosseiras.”163

160 Os Persas. Electra. Hécuba. p.87. 161 Idem, p.107. 162 Hamleto, p.44. 163 Hamleto, p.28.

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“Morrer... dormir... mais nada... Imaginar

que um sono põe remate aos sofrimentos

do coração e aos golpes infinitos

que constituem a natural herança

da carne, é solução para almejar-se.

Morrer... dormir... dormir...164

Contudo, abaixo dessa semelhança superficial há uma diferença profunda. Ao

contrário de Hamlet, Electra não adia o cumprimento da vingança porque se mostra

indecisa ou de caráter fraquejante: se não pune os assassinos do pai imediatamente e com

as próprias mãos é porque, sendo mulher e sozinha, e estando constrangida pelas armas

de Egisto, não tem nem a força física nem a oportunidade de agir – mas sua

individualidade, animada pelo pathos ético da vingança, a impele continuamente para

uma ação - que só é de fato adiada pelas circunstâncias desfavoráveis. Na vingança

repousa a dignidade do respeito que o povo há de prestar-lhe, “preito de honra compatível

com a bravura”, e a glória em vida ou morte.165 Permitir que o assassínio de Agamenon

permaneça impune a desonra como filha, e “só os covardes podem viver desonrados!”166

Ela nunca questiona a validade da punição que pretende infringir aos algozes do pai, e

busca sem cessar os meios de atingi-la: quando confrontada com a possibilidade de

Orestes jamais retornar para ajudá-la, pede o apoio da irmã, pondera evadir-se do palácio,

julga-se capaz de agir sozinha, e somente diante das contínuas negativas que o destino

lhe reserva é que a morte lhe parece acenar, mas não como um refrigério, e sim porque é

indigno viver sem aplacar o desejo de justiça. Nas palavras do coro,

A própria morte não lhe causa medo;

ela descuida até de sua vida

na ânsia de matar as duas Fúrias.

Existirá criatura mais nobre?

Nenhuma alma pura quererá

deixar depois de si um nome vil

por preferir uma existência indigna,

incompatível com a boa fama.167

Hamlet, por sua vez, não sofre as mesmas restrições físicas ou de vigilância

que circundam Electra. Se ele não age, se não cumpre de imediato a tarefa que lhe foi

incumbida pelo fantasma do pai, as razões repousam em outra esfera, que não a do

164 Idem, p.74. 165 Os Persas. Electra. Hécuba. p.115. 166 Idem, p.115. 167 Idem, p.120.

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constrangimento exterior sofrido por Electra. A personagem grega está proibida de agir,

mas o príncipe dinamarquês, não. Ele bem o sabe – e saber disso, estar consciente de sua

liberdade para a ação e não efetuá-la, é um dos grandes motivos que o abate:

O ser, de fato,

grande não é empenhar-se em grandes causas;

grande é quem luta até por uma palha,

quando a honra está em jogo. E eu, deste modo,

com o pai assassinado, a mãe poluída –

razões de estimular o sangue e o brio –

nada me esperta?168

3.3.3 A RAINHA GREGA E A RAINHA DINAMARQUESA

Também no enredo geral de ambas as tragédias há uma diferença marcante

que nos ajudará a exemplificar aquilo que, na concepção estética de Hegel, distingue a

individualidade clássica da subjetividade moderna. Nos referimos ao papel representado

pelas rainhas e a parcela de culpa que lhes é imputada pelo crime cometido em ambos os

textos dramáticos e seus respectivos contextos históricos.

Em Electra, Sófocles não nos deixa dúvida alguma sobre a responsabilidade

da rainha quanto ao assassínio de Agamenon. Tanto Orestes quanto Electra a acusam de

participação no crime, e a própria Clitemnestra o assume, ao tentar justificar-se diante da

filha:

Matei – pretextas sempre – teu querido pai:

sim, fui eu mesma, não irei negar agora,

mas não fui eu sozinha; estava com a justiça (...)

Pois esse pai, por quem ainda e sempre choras, foi entre

os gregos todos o único a ousar

sacrificar aos deuses a filha inocente,

sem meditar nas minhas dores quando a tive!169

Clitemnestra considera, pois, justo o assassinato de Agamenon; ela não conhece “homem

mais perverso e insensível”. Esse pai “sem coração”, “tendo perdido toda a ternura pelos

filhos de seu ventre”, sacrificou “aos deuses” uma “filha inocente.”170 O valor ético e

universal da família foi ofendido, aos olhos da mãe, pelo gesto de seu esposo. Foi por

168 Hamleto, p.110. 169 Os Persas. Electra. Hécuba. p.97. 170 Idem, p.97.

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essa razão que, carregando no peito as Fúrias vingativas, ela pediu a ajuda de Egisto para

que juntos punissem Agamenon com a morte.

Contudo Orestes e Electra, irmãos e igualmente filhos de Clitemnestra,

julgam injustiçada a morte do pai e rei – eles são animados pela ofensa maior que o crime

da mãe perpetra, pois a partir dele a própria eticidade do Estado, o bem de toda a

comunidade e não apenas o de uma família, está prejudicado e clama por condenação. De

acordo com a estética de Hegel, o conflito que essa tragédia desenvolve, dessa forma, não

tem sua origem na simples divergência entre as vontades individuais de Egisto e

Clitemnestra, rei usurpador e rainha legítima, e o desejo em comum de Orestes e Electra

em puni-los. Na verdade, são as próprias potências éticas universais do mundo grego, e

não a subjetividade dos envolvidos, que foram ofendidas e colidem entre si. Para Hegel,

esta é “a principal oposição, que particularmente Sófocles tratou da maneira mais bela”,

porque ela “se dá entre o Estado, a vida ética em sua universalidade espiritual, e a família

como eticidade natural.”171 Os personagens em conflito encarnam, cada qual a seu lado,

estas potências divergentes e desiguais: Clitemnestra, a mãe, considera sua atitude justa,

pois ao vingar a filha morta ela honra os deuses subterrâneos e os laços de sangue. Electra

e Orestes, filhos do rei, têm na visão do assassinato de Agamenon um gesto abominável,

que ao ofender o Estado, desonra a Zeus, potência operante da vida pública, e interfere

por consequência no bem coletivo.172

Hegel aponta, dessa forma, que o conflito da tragédia clássica grega é gerado

não pela desigualdade das vontades individuais, e sim pelo conflito entre potências

distintas: por um lado, a luta pela defesa da família, pela qual Clitemnestra se inclina, está

associada a uma potência mais primitiva, pois derivada de laços sanguíneos e, portanto,

mais próxima da dependência do natural. Ela mata Agamenon, seu esposo, para punir a

morte de uma filha - mas, como indica Hegel, “(...) A relação entre filhos e pais repousa

(...) na unidade do natural (...)”. 173 Ao assassinar o cônjuge, Clitemnestra demonstra seu

grau inferior de liberdade, pois mantém os laços de sangue acima dos laços constituídos

pela vontade livre que optou pela vida conjugal: este que é um relacionamento “mais

tardio e mais profundo que a união natural entre filho e mãe”, e que para Hegel “constitui

o começo do Estado como querer livre, racional.”174 Afinal,

171 Estética IV, p.253. 172 Cf. Idem, p.253. 173 Estética II, p.194. (Nosso grifo) 174 Idem, p.194.

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(...) a união do esposo e da esposa (...) tem de ser tomada como casamento, o

qual não advém apenas do amor meramente natural, mas nasce de uma

inclinação consciente e, desse modo, pertence à eticidade livre da vontade

autoconsciente.175

Por outro lado, a defesa do Estado - esta que Orestes e Electra em última instância apoiam

quando se colocam contra Clitemnestra em honra do rei morto - é a defesa da totalidade

ética constituída pela razão dos homens, cuja base vincula-se ao pensamento racional e

não à natureza exterior. Os filhos estão dispostos a punir com a morte a própria mãe, se

isto representa o restabelecimento de um equilíbrio perdido. Por estar acima da mera

dependência daquilo que foi determinado pela natureza – a relação familiar de sangue

entre pais e filhos -, a justiça almejada por Orestes e Electra é, na visão hegeliana, mais

livre: e Sófocles, ao atrair a simpatia para os caracteres comprometidos com esta segunda

e maior visão, demonstra o desenvolvimento de liberdade que os gregos da polis ateniense

atingiram.176

Voltemos nossa análise agora à Shakespeare, poeta de um mundo ainda mais

desenvolvido em liberdade que aquele no qual Sófocles viveu, e ao papel da rainha mãe

em Hamlet. Vejamos primeiramente como o enredo de Shakespeare expõe a questão, e

de que forma o filho a interpreta:

Em Hamlet, a rainha, apesar de considerada pelo príncipe como responsável

por ter tornado “o leito real da Dinamarca” um “catre de incesto e de luxúria”177 ao casar-

se com o infame tio, parece, todavia, inocente da trama de morte do rei, por Claudius

sozinho arquitetada. Pelo menos é assim que o fantasma – ou, conforme Hegel, a voz da

consciência de Hamlet - compreende a situação, ao ordenar:

(...) se nesse ato te empenhares,

não te manches. Que tua alma não conceba

nada contra tua mãe; ao céu a entrega,

e aos espinhos que o peito lhe compungem.

Deles seja o castigo.178

175 Estética II, p.194. (Nosso grifo) 176 Hegel considera o mesmo conflito em outro drama de Sófocles, Antígona, o qual ele considera a mais excelente e satisfatória obra de arte de todos os tempos (Estética IV, 257). 177 Hamleto, p.44. 178 Idem, p.44.

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A vingança de Hamlet, conforme dita sua consciência, deve voltar-se exclusivamente

contra Claudius, eximindo a rainha de qualquer violência que porventura venha a ser

perpetrada pelas mãos do príncipe. O filho se ressente, é um fato, por sua mãe ter

rapidamente esquecido o pai morto, “uma forma (...) perfeitíssima em que os deuses seus

selos imprimiram...”, para, numa idade em que “o sangue se arrefece, fica humilde e

obedece à razão”179, vir a desposar o tio, “uma espiga definhada”180 - vivendo assim “num

leito infecto que tresanda a fartum, onde fervilha a podridão, juntando-se em carícias num

chiqueiro asqueroso!”181 Todo esse ressentimento contra a mãe, todavia, não toma em

Hamlet a forma da vingança, da qual a rainha é definitivamente excluída pelo príncipe.

Vemos que no texto de Shakespeare a colisão é diversa daquela descrita acima em Electra:

não são as potências éticas universais, da família ou do Estado, que colidem entre si; são

os sujeitos particulares e sua vontade individual que entram em desacordo, e, como no

caso presente, “na vida familiar (...) se apresentam” a partir de agora “lados que ainda não

eram acessíveis ao drama antigo.”182

3.3.4 CULPA E INOCÊNCIA EM ELECTRA E HAMLET

Ao contrário do contínuo adiar da vingança pretendida por Hamlet mas

postergada indefinidamente, o plano de ação de Orestes é posto em execução imediata,

tão logo ele retorna e se apresenta a Electra. Como em várias outras ocasiões, também

aqui o caráter da heroína grega se mostra inabalável: “ainda que faltasses eu já decidira:/

matá-los-ia, mesmo só, ou morreria!”183 E assim, com o apoio da irmã, Orestes, apesar de

honrar a mãe, “tem de representar o direito do pai, o rei, e mata o ventre que o gerou.”184

Os questionamentos que normalmente ocupam a consciência de Hamlet não ocorrem um

momento sequer ao herói grego e não podem, assim, interferir em sua vitalidade de ação.

O assassinato da própria mãe é executado por Orestes com toda a determinação possível,

enquanto Electra rejubila: “Fere mais, Orestes! Fere!” Em seguida, captura Egisto, o qual

“não escolherá a forma de morrer” e a qual não “faltará tortura alguma.”185 Enquanto

179 Hamleto, p.97. 180 Idem, p.97. 181 Idem, p.98. 182 Estética IV, p.262. 183 Os Persas. Electra. Hécuba. p.133. 184 Estética IV, p.253. 185 Os Persas. Electra. Hécuba. p.145.

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Orestes o faz caminhar até o local em que pretende executá-lo, o rei condenado ainda

tenta adiar a própria morte; mas Electra tem urgência:

Não lhe permitas, meu irmão, dizer mais nada,

Nem defender-se! Se um mortal é envolvido

Na trama do destino, que proveito há

Em prolongar a vida por mais uns momentos?

Deves mata-lo já!186

Esta frieza e determinação de ambos os irmãos, que talvez pareça até maléfica para a

sensibilidade mais piedosa do homem moderno, está, contudo, em perfeita harmonia com

o espírito mítico-arcaico grego. Mas devemos, conforme Hegel, afastar desses heróis

nossas modernas noções de culpa e inocência, associadas ao bom ou mau agir do arbítrio

individual: aos personagens da tragédia clássica tais noções não se aplicam, pois eles não

possuem “(...) indecisão e escolha. É esta justamente a força dos grandes caracteres, o

fato de que não escolhem, e sim são do começo ao fim aquilo que querem e realizam.”187

Ou seja: sua ação, eticamente legitimada pela comunidade, é aquilo que os define. Nela

reside sua grandeza, e porque não a escolhem, não podem por ela serem imputados de

culpa – caso valha, como lembra Hegel, “a representação de que o homem é culpado

apenas quando há para ele uma possibilidade de escolha e ele se decidiu com arbítrio pelo

que ele realizou (...)”188. Electra e Orestes, habitantes de um estado sem leis jurídicas

estabelecidas, encarnam em si, no seu ânimo e vitalidade interiores, a própria justiça.

Neles, é “a consciência não cindida do divino e o agir lutador que (...) surge em força e

atos divinos, que decide e executa fins éticos.”189

Bem diverso, portanto, é aquilo que move os heróis do drama moderno, aos

quais podemos de fato aplicar as noções de maldade ou impiedade, pois em meio a eles –

em virtude de sua desenvolvida subjetividade - nos encontramos entre iguais. A análise

estética de Hegel mais uma vez nos indica que há liberdade de escolha nas ações

infringidas pelos heróis modernos de Shakespeare. Se podemos apenas pressenti-la em

Hamlet – no qual a vontade individual, motor da ação, se interioriza e permanece em

grande parte fechada em si mesma - em outros dramas shakespearianos, contudo, o caráter

firme dos heróis, ao exteriorizar-se sem barreiras, revela toda a extensão de seu egoísmo.

186 Os Persas. Electra. Hécuba, p.144. 187 Estética IV, p.254. 188 Idem, p.254. 189 Idem, p.249.

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Lembremos do casal Macbeth, por exemplo. Ambos, assim como os irmãos Orestes e

Electra, também planejam a morte de um soberano - Duncan, o rei da Escócia - e logo o

assassinam, pois, com um gesto que podemos qualificar como frio, calculista, ímpio,

perverso. Isto porque, como já dissemos, a intenção que os move em muito difere daquela

indicada acima para os personagens gregos: no drama moderno, tal intenção é

essencialmente particular, e as consequências do ato servem diretamente a quem os

pratica, longe de estarem amalgamadas ao todo ético da comunidade. Ora, no exemplo

em questão Macbeth herdaria o trono de Duncan. Nisso consiste sua motivação. A coroa

do rei é o objeto de sua cobiça, e a persegui-la é que se atira ele, com toda a força e

decisão. Sua esposa herdaria igualmente o título maior da nobreza e a coroa de rainha.

Cada movimento de Lady Macbeth persegue implacavelmente a conquista de tão alto

título. Assim, o casal permanece unido, cada qual com sua parcela totalmente individual

de desejo, e juntos atentam contra a justiça legal do Estado, da qual eles devem precaver-

se. Sua ação planejada e atuada em comum acordo, tal qual a dos irmãos gregos, é contudo

fundamentalmente distinta daquela que Orestes e Electra levam a cabo, pois deixa

entrever a finalidade particular e egoísta que os motiva, principalmente da parte de Lady

Macbeth: “Ela não mostra nenhuma satisfação afetuosa, nenhuma alegria pela sorte de

seu marido, nenhuma emoção ética, nenhuma simpatia, nenhuma compaixão de uma alma

nobre (...)”190; Seu temor é de que “o caráter de seu marido possa ser obstáculo para a sua

ambição;” Ela o considera “apenas como um meio; e nisso não há nenhuma hesitação,

nenhuma incerteza, nenhuma reflexão (...)”.191

A culpabilidade do herói, a qual demonstramos acima como existente na

tragédia grega clássica apenas quando o caráter agente se afasta da ação ética que se

espera dele, aparece nos textos de Shakespeare como resultado direto da ação criminosa

cumprida, na forma de temor e de loucura. Em Macbeth, marido e mulher se sabem

culpados, conforme compreendemos a culpa como resultado de uma ação do arbítrio

individual, e por isso, apesar do sucesso em relação ao crime, suas consciências não se

furtam ao ato ignominioso: Macbeth passa a ter visões assustadoras, e uma voz que o

comunica, em todo canto: “não dormirás!”192 Quanto a Lady Macbeth, sucumbe

paulatinamente à loucura completa, lavando manchas de sangue inexistentes que ela vê

190 Estética II, p.314. 191 Idem, p.314. 192 Macbeth, p.37.

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tingidas e inapagáveis como tatuagem perene na pele das próprias mãos, cujo cheiro

fétido “todos os perfumes da Arábia não purificarão (...)”193.

3.3.5 O DESTINO EM ELECTRA E HAMLET

A postura indecisa de Hamlet reflete, na leitura de Hegel, o “ânimo profundo,

silencioso” de um caráter que “mantém a energia do espírito fechada tal como a faísca no

seixo, que não se configurou, não desenvolveu sua existência e sua reflexão sobre ela,

também não se libertou, pois, por meio desta formação.”194 Diferente do casal Macbeth,

dotado de uma “firmeza sem escrúpulos”195, Hamlet “permanece exposto à mais cruel

contradição, quando a dissonância do infortúnio ressoa em sua vida, por não ter nenhuma

habilidade, nenhuma ponte para mediar seu coração e a efetividade (...)196 Apesar de

estar “disposto interiormente para a vingança”, e de lembrar “constantemente do dever

que seu próprio coração lhe prescreve”, Hamlet “não se deixa levar, como Macbeth, não

mata, não fica raivoso, (...) e sim persiste na inatividade de uma alma bela, interior, que

não se pode fazer efetiva, inserir-se nas relações presentes.”197 Sua atitude oferece,

portanto, um contraste ainda maior com a forma resoluta e imediata com que agem

Orestes e Electra – mas isto porque sua ação, conforme Hegel aponta e mais uma vez

sublinhamos, está condicionada não por aquele fundamento substancial da tragédia

clássica, e sim pela vontade e caráter subjetivos típico do homem moderno.

Na tragédia grega, o destino do herói é algo de exterior à sua vontade – ou

seja, estava determinado desde o início. Tais caracteres cumprem, portanto, aquilo que

deveriam. Não mais assim na tragédia moderna: o herói shakespeariano, de caráter firme

e resoluto, “na medida em que ele se impõe, (...) é atingido pelo destino que resulta do

caráter determinado mesmo, uma perdição preparada por ele mesmo.”198 Como explica

Hegel,

Quanto mais particular é o caráter, que apenas se retém a si mesmo e, desse

modo, se aproxima do mal, tanto mais ele tem de se impor na efetividade

concreta, não apenas contra os obstáculos que se colocam no caminho e

193 Macbeth, p. 111 194 Estética II, p. 319. 195 Idem, p. 313. 196 Idem, p. 319. (Nosso grifo) 197 Idem, p. 319. 198 Idem, pp. 314-315. (Nosso grifo)

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impedem sua realização, mas tanto mais, também por meio desta sua realização

mesma, ele é impelido para o declínio.199

Assim ocorre, por exemplo, com o casal Macbeth. Mas e Hamlet? Para Hegel,

por permanecer “mergulhado em si mesmo onde necessitava da força de ação adequada”,

o príncipe permite “que o destino do todo como de sua própria interioridade

constantemente retraída em si mesma” se desenvolva “sem sua ação” num “amplo

decurso de circunstâncias e acasos”.200 Como vemos, aqui também tal destino não é algo

de exterior, mas consequência do desenvolvimento do indivíduo em seu interior

subjetivo.

Assim, eis que vemos Hamlet, tal qual Electra em relação a Egisto,

plenamente consciente do mal que Claudius representa para a vida pública e,

principalmente, para si mesmo:

Ele privou-me

do meu pai, prostituiu-me a mãe, meteu-se

entre a escolha do povo e meus anelos,

jogou o laço, visando até a matar-me,

e com tanta perfídia... Em sã consciência,

não cabe a este meu braço dar-lhe o troco?

não é crime deixar um verme desses

corroer-me por mais tempo a própria carne?201

Mas apesar disso – e em amplo contraste com os irmãos gregos injustiçados

- ao ser finalmente confrontado com a necessidade inevitável de não mais postergar sua

ação, Hamlet, nas palavras empoladas que Shakespeare lhe confere, denuncia a grande

dificuldade que é para ele executar junto ao mundo uma vontade interior:

(...) se tem de ser já, não será depois. Se não for depois, é que vai ser agora; se

não for agora, é que poderá ser mais tarde. O principal é estarmos preparados.

Uma vez que ninguém sabe o que deixa, que importa que seja logo? que seja!202

O resultado final é que, enquanto no desenlace da tragédia de Sófocles a

espada de Orestes golpeia “fatalmente todos os perversos”203, Hamlet sucumbe e morre

vítima de circunstâncias exteriores. O ato heroico de Electra e Orestes conservou seus

199 Estética II, p.314. 200 Idem, p.319. 201 Hamleto, p.139. 202 Idem, p.143. 203 Os Persas. Electra. Hécuba. p.145.

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nomes compatíveis “com a boa fama”204, mesmo após a morte, detalhe que indica, mais

uma vez, aquilo que para o grego da polis ateniense importava: estar em acordo com a lei

da cidade. Ao final, a “eterna justiça (...), potência absoluta do destino” está salva e

sustentada pelo equilíbrio das potências éticas em conflito, e nisso reside a reconciliação

na tragédia grega.205

O fim trágico do jovem Hamlet também guarda, na visão de Hegel, uma

reconciliação; ela é compatível com a individualidade moderna que, diferente da dos

gregos, não se sente como parte integrante de um todo ético. Assim,

(...) no inconsciente de Hamlet reside desde o início a morte. As barreiras da

finitude não são suficientes para ele; (...) sentimos desde o princípio que ele é

um homem perdido neste ambiente terrível, a quem o desgosto interior quase

já consumiu antes mesmo de a morte se apresentar para ele do exterior.206

Fatalmente ferido pela espada de Laertes num combate final, Hamlet, em sua

subjetividade infinita, ainda se preocupa com a fama posterior à morte – “ó Deus! Que

nome eu deixo, Horácio, caso continuem confusas essas coisas (...)”207, e a ele interessa,

antes do último suspiro, pedir ao amigo que narre sua história e o justifique perante os

descontentes. Entretanto, aos gregos da bela experiência de totalidade da polis ateniense

importava, além da fama, ter também vivido com nobreza e ter morrido bravamente, pois

era essa a garantia de um nome lembrado pelas gerações futuras como honrado; ao

príncipe da Dinamarca, homem moderno, viver de acordo com seu interior subjetivo e

seu espírito livre, buscar a satisfação de sua vontade particular, ser fiel à essência mesma

que nele distingue-se da objetividade do mundo, importa mais. “O resto é silêncio”208,

conclui o príncipe ao morrer, em palavras que ecoam as de Macbeth:

Esvai-te, ó delicada

Chama! Apaga-te! A vida é sombra passageira.

Um pobre ator que chega, agita a cena inteira,

Diz seu papel e sai. E ninguém mais o nota.

É um conto narrado aí por um idiota,

Cheio de sons, de fúria e não dizendo nada.209

204 Os Persas. Electra. Hécuba, p.120. 205 Cf. Estética IV, p.269. 206 Idem, p.270. 207 Hamleto, p. 148. 208 Idem, p.149. 209 Macbeth, p.122.

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3.4 A RELAÇÃO ENTRE OS HERÓIS SHAKESPEARINOS E OS PARTICULARES

LIVRES210

Já que, para Hegel, há uma relação dialética entre forma e conteúdo - este se

manifesta na forma, assim como a forma determina o conteúdo - gostaríamos de abordar

nesta sessão duas relações deste princípio que não são diretamente discutidas nas páginas

da Estética: primeiro, a relação entre os caracteres do drama shakespeariano e o solo

histórico do qual os mesmos emergem – em outras palavras, de que modo a forma arte,

caracterizada aqui pelos personagens autônomo-formais da poesia de Shakespeare,

remete ao conteúdo inerente de subjetividade dos homens efetivos que se moveram na

esfera social da Inglaterra do século XVI. Segundo, numa extrapolação dessa premissa

inicial, a relação entre Hamlet, um daqueles personagens, e o homem moderno da

sociedade civil burguesa já plenamente desenvolvida do século XIX. Dada a calorosa

receptividade concedida pelos alemães contemporâneos de Hegel a Shakespeare - e

particularmente o modo como reverenciaram Hamlet, sua criação mais famosa - julgamos

que tal relação é factual e gostaríamos de apreendê-la do ponto de vista hegeliano, tanto

quanto possível for a partir de indicações contidas na Estética.

3.4.1 OS HERÓIS SHAKESPERIANOS E OS PARTICULARES LIVRES

Para Hegel, o que há de particularmente admirável na obra do dramaturgo

inglês são os seus caracteres trágicos, homens que, em qualquer circunstância,

permanecem sempre inteiros e fechados em si mesmos:

(...) individuais, reais, imediatamente vivos, sumamente variados e, todavia,

quando parece ser necessário, de uma sublimidade e violência contundente de

expressão, de uma intimidade (Innigkeit) e dom de inventividade em imagens

e alegorias (Gleichnissen) que se geram instantaneamente, de uma retórica –

não da escola, e sim do sentimento vivo e da constância de caráter – que, no

que se refere a esta associação da vitalidade imediata e da grandeza de alma

interior, não pode ser facilmente colocado ao seu lado outro poeta dramático

entre os mais novos.211

210 Particulares livres é a denominação que Hegel dá aos indivíduos efetivos da sociedade civil burguesa em seus primórdios. 211 Estética IV, p.266.

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Hegel salienta em Shakespeare, assim, a sua habilidade em expor o caráter

humano. E se na concepção do filósofo alemão, a forma, este aspecto exterior da obra de

arte, configura um conteúdo diretamente relacionado ao solo histórico da qual a mesma

emerge - o grau de liberdade e autoconsciência dos sujeitos agentes -, devemos concluir

que os caracteres shakespearianos reproduzem em suas falas, gestos e ações, o substancial

característico dos indivíduos que se moviam efetivamente no dia-a-dia e nas relações

sociais dentro daquele Estado elementar – a Inglaterra do período elizabethano, que não

sendo o Estado burguês desenvolvido do século XIX, era, no entanto, alicerçado pelos

fundamentos que culminariam em sua evolução: a liberdade formal dos indivíduos

efetivos e a sua organização em uma sociedade civil ainda germinal. Os indivíduos que

ali se moviam estavam a tal ponto autoconscientes de sua liberdade que, nas ações

rotineiras do dia-a-dia, podiam referir-se a si mesmos – ainda que regulados, todavia,

pelas leis do Estado inglês - baseando a finalidade de seu agir numa vontade

exclusivamente particular. Assim, de modo geral, eles já buscavam a satisfação individual

sem referir-se a um princípio universal ético ou sequer religioso.

Não à toa, esta esfera embrionária da sociedade civil burguesa na qual tais

homens interagem é já um espaço de luta e conflito entre individualidades em disputa:

cada qual se esforça para efetivar um objetivo apenas seu, seja a venda de uma

mercadoria, a conquista de um espaço de atuação, uma posição social mais favorecida.

Ao fim de qualquer esforço, o que todos buscam satisfazer principia em um desejo

particular. Sua subjetividade, apartada de princípios religiosos ou éticos, somente é

coagida a não efetivar qualquer arbitrariedade que lhe ocorra porque um Estado legal os

governa exteriormente. Da mesma forma são também os personagens de Shakespeare:

(...) indivíduos colocados de modo autônomo apenas sobre si mesmos, com

fins particulares que apenas são os seus, que provém unicamente de sua

individualidade, e os quais eles executam com a consequência inabalável da

paixão, sem reflexão acessória e universalidade, apenas para a própria

autossatisfação.212

O solo histórico europeu do século XVI constitui o terreno propício para a

assunção deste tipo de subjetivismo, mais amplamente consciente de si e, portanto, mais

livre, anunciando a aurora da modernidade. De fato, para Hegel o trânsito da Idade Média

212 Estética II, p.313.

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à Moderna compreende, conforme podemos ler em sua Filosofia da História, o momento

em que “o céu do espírito se ilumina para a humanidade.”213 O sistema feudal não

continha princípios jurídicos em si mesmo: os servos eram “coagidos a obedecer a base

de violências ou ameaças”, e tal “exercício não poderia ser mantido sem esta base de

coação permanente”.214 A modernidade principia no momento em que esta organização

sucumbe e é consequentemente substituída pela Monarquia, a qual remete à “aparição de

um poder supremo que é comum, de um poder estatal como tal, cujos subordinados gozam

dos mesmos direitos e no qual a vontade particular se submete ao fim substancial.”215

Dessa forma, enquanto o feudalismo pressupunha a existência de senhores e servos, “na

monarquia, ao contrário, há um senhor e não há nenhum servo, pois a servidão foi

destruída por ela, e nela o que conta é o direito e a lei: dela emana a liberdade real.”216 O

poder exercido pelo soberano do Estado se diferencia do controle que os senhores

exerciam sobre seus servos, na medida em que “este poder do soberano não pode já ser

simplesmente arbitrário. Ele requer o consentimento dos estamentos e corporações, e se

o príncipe quiser obtê-lo, vê-se obrigado a querer o que é justo e equitativo.”217 Claro que,

para Hegel, essa nova constituição social se dá como consequência da força dialética das

contradições – e é a subjetividade dos homens, o espírito e sua autoconsciência livre, que

tanto exige, por um lado, esse desenlace, o qual toma a forma de um Estado cada vez mais

fragmentado - cuja divisão, todavia, remete sempre à unidade, coordenado por

instituições e estamentos reguladores de leis e normas; quanto, por outro lado, a mesma

subjetividade se sabe gradualmente como cada vez mais livre na constituição deste

processo, e se sujeita a essas leis que a regulam, pois nelas quais ela se reconhece.

Shakespeare e sua obra estão situados neste exato ponto de ruptura, entre a

ordem antiga do feudalismo medieval e o Estado burguês do porvir. É natural, portanto,

que nela encontremos, como conteúdo presente na consciência de seus personagens,

manifestações de assombro diante de um mundo em rápida dissolução, ao mesmo tempo

em que esta dissolução aponta já para uma nova ordem que lentamente substitui a antiga.

Os grandes caracteres de Shakespeare, na maioria reis e rainhas, príncipes e nobres,

demonstram em inúmeros momentos espanto pelas mudanças que se observam em torno,

213 Hegel, G. W. F. Lecciones sobre la filosofía de la historia Universal. Tr. José Gaos. – 4ª edição. – Madri: Alianza, Editorial. 1989, p.422. (Nossa tradução). 214 Idem, p.422. 215 Idem, p.422. 216 Idem, p.422. 217 Idem, p.422.

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muitas vezes relacionada a uma dificuldade em distinguir quais os limites que separam as

diferentes classes sociais. Hamlet observa a Horácio que

(...) por Deus, (...) nestes três últimos anos o

mundo se torna cada vez mais sutil. O pé do

campônio toca tão de perto no calcanhar do nobre,

que causa esfoladuras.218 (131)

No limiar de uma nova era, o dramaturgo inglês pressente e expõe de forma

poética o desdobrar das contradições que se apresentam ao homem que descortina uma

nova visão da realidade. Para trás o mundo medieval, com sua hierarquia estreitamente

delimitada entre os herdeiros de títulos nobres de um lado, e, do outro, a plebe, uma massa

de indivíduos cuja posição social fora determinada não por sua vontade livre, mas pelo

nascimento e, portanto, pela natureza; a desenvolvida percepção de si como livre e a

constituição do Estado moderno, a frente, passam a constituir o palco do novo homem,

cujo valor não mais se vincula à tradição, mas que antes a questiona, tocando assim, como

lamenta o poeta inglês através de seu personagem, os calcanhares da aristocracia. “O

tempo está fora dos trilhos”219, lamenta-se Hamlet. O presente de Shakespeare, o

momento de transição no qual sua obra se insere, é caracterizado por essa mudança de

paradigma, ainda em seus princípios: ao lado das figuras da nobreza, constantemente

enaltecidas, há também o questionamento, ainda que sutil, do poder absoluto da nobreza

hierárquica pela burguesia ascendente, que a contestaria definitivamente nas revoluções

burguesas da Europa em séculos posteriores, e que na Inglaterra tomam vulto já em

meados do século XVII. É assim que vemos, por exemplo, na tragédia Rei Lear, o jovem

vilão Edmundo, filho ilegítimo de um nobre, pronunciar-se em termos que nada

assemelham o respeito às autoridades e tradições das eras passadas:

(...) tu, natureza, és minha deusa: às tuas leis é que estão presas minhas ações.

Por que haveria eu de me submeter à maldição dos costumes e permitir que o

preconceito das gentes me deserde apenas porque nasci doze ou quatorze luas

depois de meu irmão? Por que bastardo? E portanto infame, se as minhas

proporções são tão corretas, a minha alma tão nobre e minha forma tão perfeita

quanto a de qualquer filho de uma dama honesta? (...) Eu cresço e me

engrandeço. E agora, ó deuses, do lado dos bastardos! 220

218 Hamleto, p.131. 219 Idem, p.47. 220 Rei Lear, p.10.

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A fala do personagem denota sua avançada consciência de si e de sua

liberdade para agir em benefício particular. Esta característica subjetiva, a partir da qual

o caráter autônomo formal elabora vilanias que favorecem seu desejo particular, é, na

concepção estética de Hegel, o grande mérito da exposição dramática shakespeariana:

uma autonomia que não se apoia em nada de substancial ou ético; não busca numa

universalidade a razão de seu agir; pode apartar-se das tradições estabelecidas; deixa de

reconhecer nos costumes uma validade que a satisfaça; refere-se exclusivamente a si.

O que ela tem, faz e realiza, ela cria inteiramente de modo imediato, sem

nenhuma reflexão ulterior, a partir de sua própria natureza determinada, que é

assim como ela é, e não quer ser fundamentada por qualquer coisa de superior,

ser nisso dissolvida e justificada em algo de substancial, mas inflexível e

inflexiva, repousa sobre si mesma e, nesta firmeza, ou se realiza ou sucumbe.221

E na análise do filósofo, quanto mais particular é o caráter, quanto mais ele

retém a si mesmo e dessa forma necessita impor-se na efetividade concreta, tanto mais

ele se aproxima do mal.222 Assim, muitas dessas figuras shakespearianas são vilões como

o próprio Edmundo: Iago, Falstaff, Ricardo III, o casal Macbeth, Margareth etc. Pois,

como observa Hegel, “uma tal autonomia do caráter apenas pode mostrar-se onde o extra-

divino, o humano particular, chega à sua validade completa.”223 - ou seja, naquele

momento em que a ordem estabelecida, tanto social quanto religiosa, passa a sofrer

grandes transformações e a ser questionada em suas bases: porque enquanto o Estado

monárquico e racional se ergue das ruínas do feudalismo, a Igreja medieval, que se

impunha como o mais alto poder divino, sofre abalos consecutivos, e esta forma

representativa de religiosidade entre os homens também passa a ter seu estatuto de

verdade última questionado pelo crivo do raciocínio moderno. À época de Shakespeare,

conforme seus caracteres expõem com firmeza, “já não entram em questão a religiosidade

e uma ação a partir da reconciliação religiosa dos homens em si mesmos;” E nem

tampouco “o ético enquanto tal”.224

Os personagens de Shakespeare e seu particularismo dos fins certamente

guardam, em tais aspectos, uma estreita relação com a liberdade dos indivíduos da

sociedade civil burguesa emergente. A liberdade destes últimos é qualificada por Hegel,

na Filosofia do direito, de formal – a e a vemos em concordância com a autonomia

221 Estética II, p.313. 222 Cf. Estética II, p.314. 223 Idem, p.313. 224 Idem, p.313.

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também formal dos caracteres dramáticos. Afinal, como já ressaltamos, os homens

efetivos da sociedade inglesa em meados do século XVI e princípios do XVII, época de

Shakespeare, vivem em um Estado legal mediado por instituições e estamentos, e têm a

arbitrariedade de seus desejos e vontades individuais submetidos às leis e normas

vigentes.

Contudo, utilizar esses indivíduos efetivos como matéria de exposição

artística, e situá-los dentro de um mundo tornado prosaico tal qual aquele que se

apresentava diretamente ao artista, seria constranger a possibilidade de ação do herói, que

ficaria, tanto quanto os indivíduos efetivos, igualmente submetidos às leis exteriores

vigentes, e dificilmente atuaria com liberdade ideal; ou seja, fora de uma época heroica225,

como aquela de constituição do Estado grego ou a da Cavalaria Medieval - em que o

substancial, o ético e o justo não aparecem como necessidade legal - a individualidade do

herói, seu livre agir, não tem espaço de sustentação e é apagado.226 Visando escapar desta

dificuldade,

Shakespeare (...) tirou muitas matérias para as suas tragédias de crônicas ou de

novelas antigas que falam de um estado que ainda não se desprendeu para uma

ordem completamente estabelecida, e sim na qual a vitalidade do indivíduo,

em sua resolução e execução, ainda prevalece e é determinante.227

225 Hegel nomeia esta época de estado universal do mundo heroico. Refere-se às etapas iniciais de

formação dos Estados, em que as normas sociais de convivência não adquiriram ainda uma forma jurídica legal, e onde o herói, pleno de conteúdo ético e vitalidade, estabelece, a partir de um desejo enérgico e de um arbítrio individual não constrangido por regras exteriores, as leis que doravante vigorarão – pois no estado universal do mundo heroico “a individualidade é a lei de si mesma, sem estar submetida a uma lei, um juízo e um tribunal por si subsistentes” (Estética I, p.195.) Assim, dada a liberdade de ação ali presente, não apenas a atividade heroica, mas também a beleza e a arte se encontram em seu mais propício terreno. Hegel ainda observa que esse tipo de constituição histórica pode voltar a ocorrer em etapas posteriores das civilizações: nos momentos em que nações já formalmente constituídas suspendem suas leis, em virtude de alguma calamidade exterior, tal qual aquela, por exemplo, ocasionada pelo Estado de guerra e sítio. Essa suspensão de regras, ainda que temporária, volta a ser um terreno propício ao agir heroico individual – tal como ocorre, por exemplo, “no ocidente cristão”, onde o “sistema feudal e a cavalaria constituem o terreno para o livre heroísmo e as individualidades que repousam sobre si.” (Estética I, p.196) De fato, o solo histórico da Alta Idade Média, espaço de amplas disputas entre povos distintos que redesenharam o mapa europeu e as histórias de aventura artisticamente elaboradas neste período, nas quais heróis solitários percorriam paisagens sem leis e agiam de modo autônomo, ilustram os lados do conteúdo efetivo e da forma-arte neste período singular da história humana. Nesse terreno medieval Shakespeare situa o enredo de muitas de suas peças, inclusive Hamlet.

226 Cf. Estética I, p.199. 227 Idem, p.199.

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Além deste recurso formal, o dramaturgo inglês recorre a outro que pode

igualmente favorecer a liberdade de ação de seus caracteres: o estamento do príncipe, isto

é, fazer com que o herói esteja intimamente ligado por laços sanguíneos e afetivos à mais

alta nobreza, participando e atuando junto àqueles que reinam sobre o povo. O herói

shakespeariano é, assim, normalmente membro de uma família real, idealmente

encarnando a figura de um rei ou príncipe, e, conforme observa Hegel, “não por senso

aristocrático e amor pelo que é nobre”228, mas antes pela liberdade de atuação que tais

indivíduos possuem: sendo eles representantes máximos da lei, podem dar-se ao luxo de

burlá-la. Utilizar figuras de classes inferiores como caracteres agentes seria transferir as

limitações inerentes a estes últimos para a exposição artística, que dessa forma acabaria

por ser em si mesma limitada, pois o homem comum tem toda a sua independência

“afrontada pelas relações subsistentes”.229 No Estado moderno mais desenvolvido, estas

figuras não nobres

...são, com efeito, dependentes e pressionadas segundo todos os lados, e com

suas paixões e interesses entram completamente em apuros e na miséria da

necessidade que lhes é exterior, já que atrás delas logo se situa a potência

insuperável da ordem burguesa, contra a qual não conseguem impor-se, e

permanecem mesmo expostos ao arbítrio dos superiores, onde este arbítrio é

legitimado legalmente.230

Se por vezes, como de fato ocorre, o poeta inglês não se afaste de sua época

como terreno histórico da ação, e nem sempre recorra aos indivíduos nobres para encarnar

os caracteres autônomos, seu herói agente encontra, contudo, livre campo de ação em um

Estado no qual as leis foram temporariamente suspensas. Hegel de fato observa que nem

todas as figuras shakespearianas pertencem ao estamento do príncipe, “e se situam, em

parte, sobre um terreno histórico e não mais mítico;”231 logo “estão situadas em épocas

de guerra civil, nas quais os elos da ordem e das leis relaxam ou se rompem e, desse

modo, alcançam novamente a independência e a autonomia exigidas.”232 Este

rompimento, ainda que temporário, dos grilhões que as leis estatais representam, liberam

228 Estética I, p.200. 229 Idem, p.200. 230 Idem, p.201. 231 Idem, p.201. 232 Idem, p.201.

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o caráter para que ele aja com toda a vitalidade de sua autonomia subjetiva (e exponha

seu subjetivismo), característica principal da tragédia moderna.

No caso específico do drama de Hamlet, podemos identificar o apelo que

Shakespeare faz a todos os recursos apontados acima: a peça baseia-se numa história de

vingança cujas raízes são medievais, e recuadas como estão no tempo, estas origens

certamente se afastam do estado legal mais desenvolvido do século XVII.233 Além disso,

o enredo se desenvolve numa Dinamarca que atravessa um período de guerras, e está

alerta para a iminente necessidade de um ataque aos inimigos. Por fim, os personagens

agentes são nobres da alta hierarquia do Estado, sendo o herói central um príncipe

legítimo cujo trono foi usurpado. Há uma garantia, portanto, de liberdade para a ação do

personagem título; e se ele não a exterioriza, é porque, na interpretação hegeliana, o

caráter do príncipe não estava à altura da tarefa. Apesar de inúmeras outras leituras

interpretativas sobre Hamlet e sua indecisão serem possíveis e terem grande apelo,

importa-nos aqui ocuparmo-nos com esta característica principal que Hegel imputa tanto

a ele quanto aos grandes heróis de Shakespeare: sua autonomia formal. Sejam quais forem

os motivos do príncipe em não executar sua vingança, a leitura estética de Hegel indica,

e nisto nos concentramos, que ela era possível: repousava na escolha do próprio caráter

do príncipe, pois a subjetividade infinita que nele se manifesta, o referir-se a si mesmo, é

sinal de sua liberdade de ação.

Uma liberdade, contudo, ainda formal, apesar do estamento do príncipe,

conforme observa Hegel ao referir-se aos dramas históricos do poeta:

(...) certamente estes caracteres (de Shakespeare) permanecem em sua

autonomia apenas um repousar sobre si geralmente formal, enquanto na

autonomia dos caracteres heroicos deve também ser essencialmente apontado

o conteúdo, cuja efetivação eles estabelecem para si como finalidade.234

233 Harold Bloom conta que “o Amleth lendário (...) casa-se com a filha do rei da Britânia, em então, vinga-se do pai, matando o tio (Bloom, p.486). A primeira referência a esse personagem “é encontrada na obra de Saxo Grammaticus, Danish History, escrita no século XII, em latim (...). Shakespeare dificilmente teria lido Saxo, mas, sem dúvida, teve acesso à obra do escritor francês Belleforest, intitulada Histoires tragiques, cujo quinto volume (publicado em 1570) continha a saga de Hamlet (...). (Bloom, p.497) Contudo, “à exceção do enredo, o Amleth de Belleforest pouco faz lembrar o Hamlet de Shakespeare, e podemos presumir que, à medida que Shakespeare revisava a peça, Hamlet se parecesse cada vez menos com o animalesco personagem da obra-fonte” (Bloom, p.497) 234 Estética I, p.199.

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Diferente do herói trágico grego, que se move num mundo, ele mesmo, heroico e que traz

em si um pathos ético ou religioso, o carácter shakespeariano, apesar de deslocado para

uma idade ou lugar no qual as leis universalmente válidas estão suspensas, ou de circular

livremente entre uma nobreza que se situa acima das leis, desconhece, todavia, aquele

conteúdo substancial caro à tragédia clássica. O personagem em Shakespeare não escapa

de sua modernidade: não é por seu deslocamento no tempo, nem por sua inserção em

determinado círculo da nobreza, que a autonomia formal dos heróis shakespearianos se

diferencia da liberdade formal dos particulares livres da sociedade civil burguesa. Para

Hegel, aqueles recursos servem ao artista como modo de expor a atividade do herói em

exuberante vitalidade, “pois o que faz efeito universal, contínuo, profundamente

dramático, é apenas o substancial na ação: como conteúdo determinado o ético, como

formal a grandeza do espírito e do caráter, na qual novamente se sobressai

Shakespeare.”235 Mas de todo modo a subjetividade deste carácter dramático não se

separa daquela que é típica do homem vivendo e atuando efetivamente no período em que

Shakespeare escreveu, pois ambas representam, na concepção de Hegel, o mesmo tipo de

liberdade formal que inaugura o mundo moderno.

3.4.2 HAMLET E O ROMANTISMO ALEMÃO

Mais de duzentos anos separam a primeira encenação pública de Hamlet e a

organização dos Cursos de estética de Hegel. Neste intervalo, a obra de Shakespeare foi

gradualmente penetrando em território germânico, de modo que, à época do Idealismo

alemão, uma tradição literária já se estabelecera em torno do príncipe dinamarquês, e

algumas teorias anteriores à da Estética já discutiam o caráter desse herói. Quanto ao

autor, sua literatura abre espaço para discussões que dividiriam o público: o que os

intelectuais alemães dos séculos XVIII e XIX descobrem na produção poética de

Shakespeare seria fonte de muita controvérsia – ao lado do apuro da linguagem, riqueza

e versatilidade do texto, há o caráter formal de um drama mais livre, não sujeito a padrões

pré-estabelecidos de composição. Esta última característica destacava-se em flagrante

contraposição à realidade do teatro germânico, que, influenciado pela literatura oriunda

da (mais desenvolvida) corte francesa, era limitado por regras rígidas - que estabeleciam,

por exemplo, limites para a duração e a localização da ação dramática, limites esses a

235 Estética IV, p.215.

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serem cuidadosamente seguidos pelos dramaturgos. O espírito independente dos

intelectuais alemães dos séculos XVIII e XIX - ávidos por novidades e sedentos de

liberdade – descobriu paulatinamente no drama de Shakespeare um exemplo inspirador

de originalidade e gênio, conceitos esses que se tornaram cada vez mais caros aos artistas

do período. Detenho-me aqui brevemente na receptividade de Shakespeare em território

alemão, apenas para destacar qual a influência que ela teve nas interpretações que Hegel

traça sobre o caráter de Hamlet.

A versão final de Hamlet foi apresentada ao público elizabethano

primeiramente em 1601 e publicada na Inglaterra 17 anos depois, após a morte do autor.

Numa data tão distante quanto 1623, uma trupe britânica de atores itinerantes já

representavam a peça em território germânico, nas ruas de Hamburgo, utilizando a

princípio o texto inglês original.236 As primeiras traduções para o alemão datam do século

seguinte. Nesse período, grande parte da obra de Shakespeare passou a ser amplamente

apreciada e divulgada em território germânico. Para Hegel,

(...) as tragédias e comédias de Shakespeare conquistaram um público sempre

maior, porque nelas, independentemente de toda nacionalidade, predomina em

muito, todavia, o elemento humano universal, de modo que Shakespeare

apenas não encontrou aceitação onde as convenções artísticas nacionais são de

espécie tão estreita e específica que, ou excluem completamente, ou pelo

menos deformam também a fruição de tais obras.237

De todo modo, nenhum dos trabalhos do dramaturgo inglês obteve

receptividade tão calorosa quanto aquela concedida à tragédia de Hamlet. Os monólogos

do herói, que constituem em si mesmas peças de elevado teor literário, foram inicialmente

traduzidos separadamente. Mas logo as primeiras versões integrais do texto surgiram em

sucessão crescente. “O príncipe, que é tão dado à introspecção,” foi naturalmente recebido

de braços abertos “numa cultura de poetas e pensadores”238. Este cenário intelectual

sedento por novidades, já desde o início receptivo ao trabalho de Shakespeare, se

intensifica ainda mais nos meados do século XVIII, quando o movimento pré-romântico

do Sturm und Drung (Tempestade e Ímpeto) – uma exaltação juvenil do momento da

subjetividade e dos sentimentos individuais em contraposição ao racionalismo castrador

da Ilustração francesa - identifica em Shakespeare um gênio original cujo modelo de

236 Cf. Sussekind, Pedro. Shakespeare, o gênio original, Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 11. A partir

de agora será citado como Shakespeare, o gênio original.

237 Estética IV, p.218. 238 Shakespeare, o gênio original, p. 26.

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teatro não se curvava a convenções literárias tradicionalmente impostas na Alemanha de

então.

Goethe, na juventude uma figura central do Sturm und Drung, em muito

colaborou para a fama de Shakespeare entre seus conterrâneos. No calor de seus primeiros

anos como poeta, declarou que “assim como há homens fortes na Bíblia, nós nos tornamos

pouco a pouco fortes Shakespeare.”239 Na maturidade, Goethe publica o romance de

formação Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister, na qual imputa à postura

reflexiva e indecisa do príncipe dinamarquês elementos precursores da subjetividade

própria de sua geração e do mundo burguês desenvolvido de seu século, interpretando

assim de forma romantizante a tragédia de Hamlet. Para ele, o príncipe não age com

firmeza e não executa seus fins porque teve a confiança na ordem moral abalada pelo fim

trágico do matrimônio dos pais. A vingança exigida pelo fantasma seria

(...) um efeito grande imposto a uma alma que não tem o vigor necessário a

este feito... Um ente belo, puro, nobre, de elevado caráter moral, mas sem a

força vital que faz o herói, sucumbe sob uma carga que não pode nem suportar,

nem rejeitar; cada dever é-lhe sagrado; este lhe pesa em demasia.240

Hegel parece ter recebido e aprovado diretamente de Goethe sua interpretação do

personagem, ainda que parcialmente, conforme a lemos nas páginas da Estética. Pois para

ele Hamlet também é um “ânimo belo”, dotado de “sensibilidade fina”;241 Não se vinga

de Claudius imediatamente porque sua “alma nobre não foi constituída para esta espécie

de atividade enérgica” e está “cheio de asco pelo mundo e pela vida, jogado para lá e para

cá entre resolução, provas e preparativos para a execução.”242 Apesar de “certamente

indeciso”, ele contudo “não tem dúvida pelo que tem de realizar e sim pelo como tem de

realizar algo.”243 Neste adiamento, “sucumbe devido à própria indecisão e à intriga

exterior das circunstâncias.”244 O Hamlet de Hegel se aproxima assim bastante daquele

proposto por Goethe, para quem o príncipe é “o tipo de homem cuja fresca energia ativa

é paralisada pelo desenvolvimento excessivo da atividade intelectual (‘se estiola sob a

pálida sombra do pensamento’)”. 245O herói seria o primeiro intelectual da literatura.

239 Shakespeare, o gênio original, p.52. 240 Idem, p.77. 241 Estética II, p.319. 242 Estética IV, p.264. 243 Estética I, p.248. (Grifo do autor) 244 Estética IV, p.264. 245 Shakespeare, o gênio original, p.113.

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Contudo, não interessa ao Hegel da Estética subscrever ou avançar nestas interpretações

meramente literárias. Seu projeto busca, como já ressaltamos, compreender as

manifestações artísticas a partir do solo histórico em que são expostas, tomando-as como

índice de liberdade do homem que as elabora. Também Hamlet é um produto de seu

tempo, e a Estética destaca nele a mesma característica compartilhada por outros heróis

shakespearianos: sua autonomia formal. Ela é o traço distintivo de tais personagens.

Mas como compreendermos o interesse suscitado pelo personagem na Europa

dos séculos posteriores? Que traços, se é que de fato os há, ligariam Hamlet aos

românticos da geração de Hegel? Que elementos os alemães identificaram nos

personagens de sua obra para exaltá-los em calorosa receptividade, e, especificamente,

por que Hamlet ergue-se acima de todos? Hegel não avança nestas questões em sua

Estética, nem tampouco o pretendemos fazer aqui. Mas sabemos que a Inglaterra de 1601,

ano em que Hamlet foi primeiramente apresentado ao público, ainda não é o Estado

burguês bem mais desenvolvido da época de Hegel, a Alemanha do século XIX, com suas

amplas mediações, em todas as esferas, já amplamente constituídas; nem Hamlet é

tampouco uma representação do homem moderno contemporâneo à Hegel: um indivíduo

dilacerado pela dualidade do mundo, que não encontra no plano objetivo e prosaico da

realidade exterior um ambiente acolhedor para a sua profundidade e riqueza interiores246

- pois, como indicamos, a criação de Shakespeare, da mesma forma que toda criação

artística, não se separa do solo histórico que a origina. Entretanto, Inglaterra em que

Shakespeare viveu e escreveu, embora bem mais elementar em organização que a Europa

do século XIX, já era constituída por uma sociedade civil burguesa elementar, e em

crescente expansão, assim como as leis e normas nessa sociedade já tinham uma validade

jurídica exterior. E Hamlet, com sua contradição entre o que dita o pensamento e o que é

exigido pelo mundo objetivo, antecipa, de forma ainda embrionária, algumas

características próprias daquele indivíduo que, no solo histórico da Europa burguesa de

Hegel, debate-se entre o seu interior profundo e subjetivo, poético e sentimental,

contraposto ao prosaísmo hostil de uma realidade friamente organizada pelas normas do

entendimento. Poder-se-ia argumentar por uma semelhança entre ambos a partir de

descrições expostas pelo próprio filósofo alemão em sua Estética. Assim, Hegel descreve

o homem moderno do Romantismo alemão como um ser anfíbio, dual, que “precisa viver

em dois mundos que se contradizem, de tal sorte que a consciência, nesta contradição,

246 Cf. Estética I, pp. 72-73.

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também se dirige para cá e para lá, e jogada de um lado para o outro, é incapaz de

satisfazer-se por si tanto num quanto noutro lado.”247 Muito desse dualismo já se encontra

em Hamlet, pois, de acordo com o filósofo alemão, o príncipe “permanece exposto à mais

cruel contradição, quando a dissonância do infortúnio ressoa em sua vida, por não ter

nenhuma habilidade, nenhuma ponte para mediar seu coração e a efetividade.”248

Para além destas interpretações, compreendemos a partir da Estética o claro

de identidade entre o herói shakespeariano e o homem efetivo do estado plenamente

moderno, o qual é aquele que nos interessa: a sua subjetividade infinita. Esta

característica, que une a ambos, longe de ser exclusiva da época moderna, engloba,

segundo Hegel, a totalidade da arte produzida no mundo cristão ocidental – e quando o

filósofo alemão denomina a arte ocidental desenvolvida a partir da era cristã de

Romantismo, utilizando o mesmo adjetivo dado ao movimento que atravessou a Europa

entre os séculos XVIII e XIX, ele de fato indica algo pertinente aos artistas e pensadores

contemporâneos a ele: que o Romantismo de sua época, considerado naquele momento

como absolutamente original, era na verdade o produto extremo de um desenvolvimento

cujas bases são bastante antigas, alicerçadas pela mensagem cristã de igualdade entre os

homens.249 Toda a arte cristã, produzida a partir de uma subjetividade que se sabe infinita,

merecia ser igualmente considerada romântica.

Contudo, à época de Shakespeare, momento em que os feudos da Idade Média

dão lugar às instituições e estamentos de um Estado racional, esta subjetividade infinita

passa a referir-se a si mesma. A exposição em forma poética desta subjetividade é o que

faz o dramaturgo inglês ocupar uma posição de elevada estatura na arte - seus

personagens, afirma Hegel, contém a principal característica do mundo moderno: o seu

referir-se a si mesmos, sua total consciência de si como livres, o seu agir a partir da própria

vontade egoísta – ou seja, sua autonomia formal. Eles anunciam à modernidade os novos

modos de relação dos homens entre si e consigo mesmos. Se os românticos dos meados

do século XVIII e do início do XIX expressam a absoluta dualidade entre um eu interior

e o mundo exterior objetivo, Hamlet, pode-se supor, a antecipa por sua subjetividade que,

247 Estética I, p.72. 248 Estética II, p.319. (Nosso grifo) 249 Conforme Hegel, a forma de arte romântica começa a caracterizar seu o conteúdo e sua forma na

subjetividade infinita. A diferença essa arte em seu desenvolvimento (que passa por Shakespeare) e sua efetividade na época de Hegel é que essa subjetividade infinita se efetivou num mundo objetivo que lhe é correspondente.

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voltada para si mesma, se angustia em reflexões íntimas nas quais se enreda e se perde,

acabando consumido pelas circunstâncias exteriores. Portanto, a recepção calorosa dada

por estes românticos à Shakespeare e sua obra, nós a compreendemos, a partir da Estética

de Hegel – ainda que não explicitada pelo filósofo - como fruto dessa identificação. O

dramaturgo inglês cumpre um papel definitivo no mundo das artes, ao dar voz poética ao

indivíduo em um momento de avançada liberdade, este no qual ele refere-se

exclusivamente a si. E em Hamlet, particularmente, o referir-se a si mesmo o imobiliza,

e a reflexão assume o lugar antes privilegiado da ação.

3.5 QUANDO O PENSAMENTO REFLEXIVO INTERFERE NA IMEDIATEZ DA

AÇÃO

Se Hamlet, assim como os outros heróis shakespearianos, comunga com

algumas características do homem moderno, em especial na sua liberdade formal e na sua

absoluta afirmação de si, podemos concluir que a arte de Shakespeare e de sua época

apontam para a etapa em que este mesmo homem, em virtude de sua desenvolvida

autoconsciência, deixa de se reconhecer plenamente nos produtos artísticos, e exige

esferas mais adequadas para a auto exposição do espírito. Eu gostaria, nesta sessão final,

de retornar brevemente a este momento em que a exposição do belo cede espaço ao

pensamento como forma mais apropriada de compreensão do homem moderno; ou seja,

a propalada questão da morte da arte em Hegel. O que nos interessa aqui é identificar no

drama shakespeariano sinais indicativos dessa dissolução. Para tanto, recordo

sucintamente alguns conceitos preliminarmente expostos no capítulo primeiro:

Dado o conceito de arte em Hegel – a de que esta atividade expressa na forma

sensível e imagética o espiritual do homem -, percebe-se desde o princípio que ela tem

em si mesma o limite do que pode ser exposto, “pois justamente a sua Forma já a restringe

a um determinado conteúdo”,250 ou seja, àquele que pode assumir a forma da beleza, que

é sensível, e que se mostra sempre através de um veículo material.251 Nas etapas mais

250 Estética I, p.34. 251 O limite da exposição artística está, conforme Hegel, na forma sensibilizante que lhe é típica, ou seja,

na dependência da materialidade, elemento inorgânico, como meio de manifestação da consciência: em seu progresso, o espírito recua diante desta forma exterior de expressão, ainda cativa, podemos dizer, da natureza, que relega a arte a um plano inferior de exposição do espírito. Podemos compreender porque isso se dá recuperando o que já foi anteriormente dito sobre o conceito de liberdade: aquilo que é natural

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primitivas das civilizações, segundo Hegel, as obras de arte tentam expressar

exteriormente o espiritual humano, moldando os elementos naturais numa busca

selvagem de expressão; na Grécia clássica as obras de artes alcançam este propósito com

perfeita adequação, encontrando na imagem do corpo humano a mais profunda exposição

da beleza. Mas o homem atinge um estágio de liberdade e de autoconsciência no qual

sua profundidade interior, seu mundo espiritual e subjetivo, não se deixa abarcar ou conter

pela exterioridade dos elementos naturais que o circundam. A dificuldade que atinge a

figuração artística surge porque o teor daquilo que o artista deseja expor esbarra no

elemento sensível da matéria. Assim, para Hegel, “somente um certo círculo e estágio da

verdade pode ser exposto no elemento da obra de arte”252, e este círculo restringe-se, é

claro, a estágios menos desenvolvidos da subjetividade. Há, todavia, “uma versão mais

profunda da verdade” que não transita para o sensível. O homem necessariamente a

alcança, na medida em que mais se conhece como livre.

Mesmo a poesia, a mais imaterial das formas figurativas, e aquela que neste

âmbito melhor serve à exposição do humano, depara-se com uma época em que o

desenvolvimento da liberdade - a apreensão pela autoconsciência de uma verdade mais

profunda - não mais a reconhece como adequada à sua expressão. Esta é a época moderna.

Hegel refere-se explicitamente a ela como o momento em que

(...) o caráter peculiar da produção artística e de suas obras já não satisfaz nossa

mais alta necessidade. Ultrapassamos o estágio no qual se podia adorar e

venerar obras de arte como divinas. A impressão que elas provocam é de

natureza reflexiva e o que suscitam em nós necessita ainda de uma pedra de

toque superior e de uma forma de comprovação diferente.253

Assim, a arte e a poesia, em épocas passadas veículos de suprema expressão

da verdade, devem dar lugar a uma forma mais verdadeira de exposição do espírito.

Segundo Hegel, esta forma é o pensamento: pois “é justamente o pensar que constitui a

ainda está preso à necessidade meramente exterior; quando a liberdade é representada através da matéria, sua forma de exposição encontra um limite ali mesmo onde a matéria se insere. Em outras palavras, a compreensão mesma do desenvolvimento progressivo da autoconsciência humana e seu apreender-se como cada vez mais livre indica que a liberdade do homem é alcançada quanto mais este se desvincula da dependência da natureza que o constringe, e mesmo a arte, como vemos, ainda que se utilize do natural apenas para configurar o espiritual, ainda traz em seu princípio essa dependência como fundamental.

252 Estética I, p.34. 253 Idem, p.34.

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natureza mais íntima e essencial do espírito.”254 E sendo então o pensamento racional – a

filosofia dialético-especulativa – “o modo mais alto e absoluto de tornar conscientes os

verdadeiros interesses do espírito”,255 compreendemos que a atividade poética, e a arte

em geral, atinge seu limite de exposição quando nela penetra a reflexão. A arte, uma

apreensão imediata da verdade, sucumbe ao ser mediada pelo pensamento.

Essa dissolução da arte é gradual.256 Hegel descreve de que forma a

experiência cristã da liberdade, a partir de então propagada não como pertencendo

exclusivamente a determinado povo, ou restrita a certas hierarquias superiores de uma

sociedade, mas antes como inerente a cada homem individual, interfere na exposição

artística – as obras desta etapa são sucessivamente formuladas a partir de elementos cada

vez mais imateriais. Finalmente, a arte dramática moderna configura-se como o momento

máximo da poesia, pois mescla à narração objetiva dos fatos o subjetivismo particular do

homem. Como a obra de Shakespeare, expoente supremo deste período, indica esta

dissolução por vir? Que elementos dentro desta obra indicam a dissolução da poesia e da

beleza como forma de expressão do absoluto e a aurora definitiva da prosa do

pensamento?

Primeiramente, em Shakespeare, situado já no limiar da modernidade,

avançada etapa da liberdade humana, podemos perceber como os próprios personagens

abandonam uma visão de mundo poética e a submetem ao pensamento racional. Entre os

gregos imperou a visão não-prosaica da realidade, a apreensão da natureza como estando

ela mesma imiscuída ao divino. Toda a arte posterior manifesta um contínuo desintegrar

desta visão. Mas com os personagens de Shakespeare o encontramos em vias de

254 Estética I, p.36. 255 Idem, p.34. 256 Para Hegel, “no progresso da formação cultural, surge em geral em cada povo uma época em que a

arte aponta para além de si mesma.” (Estética I, p.117) Cada etapa descrita na progressão das formas de arte já guardava em seu desenrolar o gérmen do momento seguinte. O Simbolismo é um período preparatório do Classicismo grego, assim como este se situa necessariamente na intermediação histórica que precede a arte do Romantismo cristã. Isto se dá porque, da mesma forma que a liberdade engendra sua expressão, este expressar-se engendra a liberdade – vemos aqui o processo dialético-especulativo em ação. Dialético porque diz respeito às duas realidades em relação de oposição, que se fundem durante a relação numa unidade superior; e especulativo porque define como ambas, ao interagirem de forma especular, ou seja, ao se espelharem, integram num todo superior suas características inicialmente opostas. Desse modo, a liberdade que o espírito expressa através de seu subjetivismo embrionário tende a torná-lo mais consciente de si e, por sua vez, por meio de um subjetivismo superior, a constituir ainda mais liberdade. É a progressão da subjetividade e da liberdade na história, da mesma forma que também a constituição da história da liberdade e da subjetividade.

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conclusão. A realidade não comporta mais ser compreendida a partir de uma concepção

poética, simplesmente poética, e exige o entendimento, as relações de causa e efeito,

como sustentação das premissas. Assim, o velho Gloucester, figura da nobreza, expressa

o temor - típico de eras passadas - de que “esses últimos eclipses do sol e da lua nada de

bom nos anunciam”; tal figura expressa o pensamento de uma era a ser sobrepujada. Em

contraposição, o jovem Edmundo, seu filho bastardo, representante da nova geração e

portanto do porvir, monologa com desprezo:

Eis a sublime estupidez do mundo; quando nossa fortuna está abalada – muitas

vezes pelos excessos de nossos próprios atos – culpamos o sol, a lua e as

estrelas pelos nossos desastres; como se fôssemos canalhas por necessidade,

idiotas por influência celeste; escroques, ladrões e traidores por comando do

zodíaco; bêbados, mentirosos e adúlteros por forçada obediência a

determinações dos planetas; como se toda a perversidade que há em nós fosse

pura instigação divina. E a admirável desculpa do homem devasso –

responsabiliza uma estrela por sua devassidão. Meu pai se entendeu com minha

mãe sob a Cauda do Dragão e vim ao mundo sob a Ursa Maior; portanto devo

ser lascivo e perverso. Bah! Eu seria o que sou, mesmo que a estrela mais

virginal do firmamento tivesse iluminado a minha bastardia. 257

Os modos poéticos de apreensão da realidade, únicos possíveis aos povos que

viviam uma realidade, ela mesma, poética, são inadequados para a exposição de uma

liberdade desenvolvida; o discurso do herói shakespeariano, ainda que na forma e na

beleza da expressão seja poesia, já expõe um conteúdo que não pertence às etapas mais

primitivas do pensar. A razão é a norma do personagem. A poesia caminha para a prosa

do entendimento racional.

É interessante observar ainda como alguns caracteres shakesperianos

manifestam verbal e explicitamente a percepção da interferência que a reflexão exerce

sobre suas ações. A imediatez de um ato heroico, comum entre os gregos, sofre agora

com a mediação questionadora da atividade autoconsciente. Para Macbeth, por exemplo,

Desde os tempos de outrora

Sempre o sangue correu até que humanas leis

Viessem adoçar os costumes. Cruéis

Assassínios, aos mil, se perpetraram, tanto

Que ouvir a narração deles nos causa espanto.

Tempos houve em que um crânio era aberto, partido,

E o morto lá ficava em sua cova estendido.

257 Shakespeare, William. Macbeth – Rei Lear, tr. br. Artur de Sales e J. Costa Neves, São Paulo, ed. Brasileira, p.155.

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E acabou-se. Hoje não. O morto sai mostrando

Vinte golpes mortais na cabeça e expulsando

Todos do nosso assento. Eis uma coisa pois

Mais estranha que o próprio assassínio.258

Em virtude de seus desejos não éticos, criminosos, passíveis de uma

condenação pelas normas e leis impostas exteriormente, Macbeth questiona se deve ou

não cometer o assassinato do rei – e o que o detém não é mais uma preocupação com a

repercussão de seu nome junto às gerações futuras, como entre os gregos, ou com a honra

particular, própria da cavalaria medieval, e nem sequer com a justiça transcendente e

divina, tal como a vemos nos círculos religiosos da arte na idade média. O que o atemoriza

em primeiro plano é, sim, a possibilidade de ser descoberto e punido pela justiça legal

dos homens:

Se isto, ao fazer, ficasse feito de uma vez,

Fora bem realizar com toda a rapidez.

Se o assassínio então em sua rede arrastasse

As consequências dele e também apanhasse

A um só tempo o sucesso... e se este golpe rudo

Tudo pudesse ser e fosse o fim de tudo... (...)

Mas em casos que tais aqui mesmo encontramos

A sentença. As lições sanguinárias que damos

Sabidas uma vez, vem contra o que as inventa.

A justiça imparcial, com a mão firme, apresenta

Os venenos que estão na nossa própria taça

Aos nossos lábios logo.259

O medo da punição incita Macbeth a planejar sua ação, submetê-la ao

raciocínio. Orestes e Electra também planejam racionalmente a morte de Clitemnestra e

seu marido, mas por nenhum momento questionam a validade do ato, que a seus ânimos

agita. Não tanto assim Macbeth: em contraste com os heróis gregos, este último, ainda

que saiba da necessidade do pensamento para auxiliá-lo, entra em contradição, pois

refere-se diversas vezes ao fato de que a ação de refletir deve ser evitada, se as intenções

são vis e pesam sobre a consciência: “(...) estranhas coisas tenho aqui na minha mente

que incitam minha mão. Cumpre realizadas, numa rápida ação, antes de meditadas.”260 O

personagem percebe a necessidade da urgência, da imediatez do ato, e deseja atingi-lo

sem reflexão: “(...) a intenção, por fugitiva que é, demanda logo a ação. (...) a ação se faça

258 Macbeth, 71. 259 Idem, p.26. (Nosso grifo) 260 Idem, p.74.

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muito antes que a intenção se tenha arrefecido.”261 É preciso calar a temível voz do

pensamento, que até nos objetos insensíveis pode ser escutada:

Terra, sê para mim firme, quieta, calada,

Sê surda aos passos meus, seja qual for a estrada

Que sigam. Temo até que as pedras tagarelem

E entre si onde vou indiscretas revelem.

Temo que venham destruir por onde passo

O silêncio de horror que essa hora exige. Ameaço.

E, no entanto, ele vive. É que as palavras são

Sopro vivo que mata o vivo ardor da ação.262

Também Hamlet reflete sobre a própria atividade da reflexão; se em Macbeth

o pensar deve ser evitado, pois adia a ação, em Hamlet é exatamente isso o que ocorre –

ao refletir, o herói se abstém de agir. A ação é desejada e certa, mas a reflexão a adia

continuamente. Como que para justificar-se, Hamlet conclui que isso é próprio do

humano:

Que é o homem, se sua máxima

Ocupação e o bem maior não passam

De comer e dormir? Um simples bruto.

Decerto, quem nos criou com a faculdade

Que ao passado e ao futuro nos transporta,

Não nos deu a razão divina, para

Que fique inútil.263

As teorias sobre Hamlet, contemporâneas a Hegel, como vimos, pressupõem

a inatividade do príncipe, seu contínuo adiar da vingança, como resultado direto desta

tendência reflexiva. Como já ressaltamos, aqui não nos interessa subscrever tais teorias,

mas antes salientar como o pensamento já participa, junto aos personagens de

Shakespeare, como momento fundamental da ação. Vemos nisso apenas um indicativo

daquilo que, logo a seguir, Hegel considera como a desintegração final da arte – a

necessidade, por parte do artista, de mediar pelo pensamento a elaboração da obra. Ou

seja, na modernidade, a beleza, objeto imediato da verdade, perde o estatuto como forma

suprema de apreensão do espírito absoluto, e a filosofia, cujo elemento é o próprio pensar,

assume esta função.

261 Macbeth, p.88. 262 Idem, p.74. (Nosso grifo) 263 Hamleto, p.110.

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4 CONCLUSÃO

Julgo que minha questão inicial, conforme a expus na introdução, pode agora,

após a série de reflexões que compõem o desenvolvimento desta dissertação, ser

satisfatoriamente respondida: Qual o estatuto do drama moderno na teoria estética de

Hegel? Que posição ocupa o personagem Hamlet na história progressiva das artes,

particularmente da poesia, e, mais importante, como esta posição do personagem aponta

para o homem efetivo no limiar da modernidade, assim como sobre o estatuto da arte em

um mundo tornado prosaico? A Estética indica uma solução apropriada para esses

problemas a partir do conceito de arte - e do que ele revela sobre a necessidade inicial da

expressão artística, seu contínuo progredir na exposição da liberdade do homem e sua

inevitável dissolução na modernidade – momento no qual Hamlet se insere, anunciando,

em virtude das contradições inerentes ao solo histórico do qual ele emerge, a inadequação

da poesia em expor a verdade do homem nessa etapa avançada de sua autoconsciência, e

a consequente substituição do fazer poético pela prosa do pensamento.

Parti inicialmente do conceito do Belo artístico; demonstrei que Hegel não

busca encontrá-lo na tentativa de submeter a coleção das obras de arte efetivas, um mundo

de enorme amplitude, a um critério de divisão simplesmente exterior, qualificando-as

como mais ou menos belas a partir de um gosto subjetivo arbitrário, ou em outras

tentativas igualmente insatisfatórias. A arte não é mero adorno, decoração de corpos ou

ambientes; tampouco a imitação da natureza. Pode servir a este e outros propósitos, de

fato, mas buscar nisso seu conceito só conduz à dispersão e a argumentos disparatados ou

conflitantes. A solução, Hegel a encontra na premissa de que às formas configuradas

corresponde um conteúdo único. Para o filósofo alemão, as obras de arte configuradas

representam apenas um lado do conceito, aquele da efetividade, do real, a forma que o

artista deu a elas no mundo objetivo. O outro lado corresponde ao conteúdo, o ideal,

aquilo que os homens apreendem subjetivamente e que é o fundamento de cada obra

objetiva – como dito, a liberdade. A beleza repousa justamente no equilíbrio harmônico

das duas partes – ela é a exposição objetiva do saber-de-si como livre.

Ora, Hegel fornece assim um modo de avaliar um objeto artístico sob dois

critérios: primeiramente, o da beleza, que na sua forma suprema denota o equilíbrio ideal

entre conteúdo e forma; em segundo lugar, o da liberdade, que, quanto mais se concretiza

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entre os homens, mais aponta para uma inadequação necessária entre aquilo que

efetivamente se expressa em obra de arte e aquilo que se desejava expressar. Para esse

último caso, que é aquele referente às obras de Shakespeare, a Estética conclui que há, da

parte do artista, um conteúdo interior que ultrapassa os limites do material sensível no

qual ele busca alcançar a expressão ideal, que por isso mesmo nunca é atingida. Hamlet

não é, sob o aspecto formal, uma obra perfeita, pois ela denota esse desequilíbrio, inerente

à arte em geral composta no mesmo período: enquanto o conteúdo, a liberdade do homem

na Inglaterra do século XVI, em muito ultrapassa um modo poético de exposição – a

forma artística da poesia - o herói-título do drama expressa verbalmente a consciência

dessa contradição. Ele anuncia, através de seu gestual, de suas atitudes implícitas ou

claras, assim como por seus diálogos e monólogos, sua autonomia formal de caráter (a

liberdade na forma da subjetividade individual) – atributo que Hegel estende igualmente

a todos os caracteres do drama shakespeariano, e que determina os indivíduos efetivos da

sociedade civil burguesa em sua etapa inicial, na Inglaterra do século XVI.

Ora, a Estética hegeliana é marcada por reivindicar a adequação entre a Ideia e

sua representação concreta. Ela autoriza-me a afirmar essa relação entre a liberdade e

subjetividade dos particulares livres nos primórdios da sociedade civil burguesa (sendo

esse o conteúdo passível de ser desenvolvido artisticamente) e sua exposição sensível na

obra dramatúrgica de Shakespeare (sendo essa a forma adequada de sua representação

artística nas etapas iniciais de desenvolvimento da moderna sociedade civil burguesa).

Contudo, essa adequação indica que, ao final, a exposição artística, mediada pela reflexão,

não seja a mais apropriada para a expressão do absoluto na modernidade. De toda forma,

no teatro shakespeariano e em seus caracteres heroicos encontraríamos uma representação

da subjetividade humana conforme esta desenvolvera-se no limiar da idade moderna. A

consciência desses personagens, produtos de exposição da arte poética, e seu modo de

pensar e agir sobre o mundo, guardaria íntima relação com a consciência dos homens aos

quais o poeta se dirigia em seu tempo – daí o paralelismo entre a liberdade formal dos

particulares livres e a autonomia formal dos heróis shakespearianos. Hamlet surge, a

partir dessas considerações, como uma representação adequada da consciência de

liberdade, do saber de si como livre e autônomo, próprio dos homens efetivos do tempo

e lugar em que Shakespeare escreveu. O dilema do personagem - seu contínuo adiar da

ação pretendida, submetida assim ao raciocínio e à reflexão – tem origem nas mediações

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características de sua era: momento em que também a arte, imediata entre os povos menos

livres, passa a ser mediada pelo pensamento reflexivo.

Desse modo, o que a obra de Shakespeare em particular, e a arte em geral,

sugerem – caso avaliadas de acordo com os critérios da Estética - é que a subjetividade

do homem em um grau avançado de liberdade não se deixa conter nesse modo de

expressão imediato, exigência do fazer artístico, e clama, em contrapartida, pelo trabalho

do pensamento para media-la, na tentativa de preencher suas lacunas. É isto que ocorre

no drama moderno shakespeariano – e é do ponto de vista da liberdade, não da beleza

ideal, que Hegel afirma a maestria do dramaturgo inglês em compor seus caracteres. É

desse ponto de vista também que busquei situar o personagem Hamlet. Ele surge numa

etapa avançada do fazer artístico, e suas atitudes, gestos e falas sugerem - para além da

relação com seu solo histórico de origem e com os homens efetivos que compartilham do

mesmo grau de liberdade do personagem – que a arte atingiu um limite de expressão e

passa a ser inadequada para falar com propriedade do espiritual do homem – apoiando-

se, então, no pensamento reflexivo, para esclarecê-la. O estatuto do drama de Shakespeare

corresponde à sua inserção na etapa final de um processo. Recordemos o percurso:

Entre os gregos da Atenas clássica, um povo que se deu as próprias leis, os

indivíduos demonstraram pela primeira vez perceber que na representação íntegra do

próprio corpo humano estava a objetividade ideal do divino pressentido - Deus, a ideia de

liberdade, passou por uma materialização na qual assumiu a imagem do homem em sua

efetividade corporal. Para Hegel, essa exposição perfeitamente adequada de forma e

conteúdo elevou a arte ao ponto supremo da beleza. Contudo, foi uma liberdade ainda

reduzida aquilo que permitiu aos gregos de Atenas essa identificação do espiritual com o

material sensível. Se a tragédia grega atingiu sua verdade e equilíbrio entre conteúdo e

forma – pois nela a representação do homem tomou a forma do próprio homem - um

personagem dividido entre contradições como Hamlet não poderia surgir nesse estado de

liberdade ainda relativa. Hegel acredita que Orestes e outros caracteres gregos diferem do

príncipe moderno justamente porque suas vontades particulares não se separam da

vontade da comunidade. O que eles buscam como finalidade não é algo de estritamente

individual, mas está submetido àquilo que o coletivo deles espera - está relacionado ao

todo do estado universal do mundo no qual se inserem. De acordo com Hegel, foi preciso

que a liberdade progredisse – para que, com o advento do cristianismo, finalmente, os

indivíduos reconhecessem a ideia de Deus como algo interior, movendo-se

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imaterialmente junto a si mesmos. Desde então a arte já não podia mais expressar o divino

adequadamente – e com a substituição do feudalismo pelos Estados legais que

culminaram nas relações burguesas, a arte, no limiar da modernidade, atingiu o ponto de

ruptura em que se viu mesclada ao pensamento reflexivo. É nesse solo histórico de

transição que encontramos Hamlet – a sociedade civil burguesa em seus primórdios, local

de embate das individualidades que buscavam satisfazer suas vontades egoístas. Ela

constituiu o terreno propício para a aparição da autonomia formal do príncipe

dinamarquês e dos demais caracteres shakesperianos. E o fato de que os caracteres da

poesia dramática tenham sido a melhor expressão da liberdade do homem nessa etapa

avançada de seu saber de si como livre é esclarecido criteriosamente por Hegel:

Recordemos que a história das artes, conforme descrita na Estética, reflete o

progresso da autoconsciência humana; na medida em que o homem se reconhece cada

vez mais como livre, mais livre também é o modo pelo qual se expressa. É de se esperar,

então, que as artes particulares reflitam esse processo: sendo a liberdade adquirida uma

consequência do domínio e da superação da natureza, os produtos de arte tendem a

encontrar modos de configuração cada vez menos dependentes da materialidade sensível.

Esta compreensão permite estabelecer o quanto cada arte particular está capacitada a

expressar a subjetividade do homem – se a poesia é a menos material das artes, cabe a ela

situar-se no limite expressivo da exposição sensível. Ou seja, é a arte poética aquela que,

a partir do seu conceito, conserva o maior grau de expressão da liberdade do espírito.

Além disso, sua forma de exposição é um processo, tal qual a realidade objetiva também

o é: pois a arte poética não se constitui como um objeto espacial estático, mas se

desenvolve no tempo, o que permite ao artista apresentar tanto o progredir de uma ação

como também o desenvolvimento dos próprios personagens e de seus caracteres. Ao

permitir situar a ação em seu desenvolvimento temporal, a poesia gera um sentimento de

agir sobre o mundo para modificá-lo – com liberdade – que é a revelação mais clara do

indivíduo, de seu modo de pensar como também de seus fins.

Esse caráter é o que permite à arte poética sua permanência ao longo do tempo

e sua plasticidade é o que garante a ela expressar a representação do humano em atividade:

a figura do herói. Ora, por um lado, a poesia, por ter como seu elemento formador a

palavra, maleável e imaterial, está presente junto a todos os povos desde suas origens,

sendo a forma de arte que primeiro expressa o grau de liberdade das mais diferentes

culturas. Por outro, a figura do herói, um espírito ativo em meio ao reino cotidiano da

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realidade objetiva, tem, conforme Hegel explicita, o papel de despertar nos homens um

interesse muito mais aprofundado que aquele provocado, por exemplo, pela escultura

grega clássica – e seu papel denota também uma maior liberdade de expressão. Assim,

dada a imaterialidade de seu elemento constituinte e a possibilidade de abranger qualquer

conteúdo elaborado pela fantasia, a poesia torna-se a arte particular mais propícia para a

exposição da atividade heroica, que, por sua vez, expressa em arte os interesses humanos

mais pertinentes, seus desafios e conquistas, seus atos e sentimentos.

Eis aqui porquê Hegel considera esta a mais livre dentre as artes particulares: nela

o espírito pode ser mostrado em ação e movimento, agindo em meio à efetividade, em

relação direta com o mundano e passageiro, afirmando sua força e virtude diante das

adversidades que o circundam de todos os lados. No entanto, a ação objetiva dos

personagens é apenas parte da exposição poética – o outro lado refere-se aos seus desejos

e vontades, ou seja, ao aspecto lírico da expressão poética. O poema dramático é aquele

que faz essa união entre objetividade e lirismo. E na modernidade, sua dinâmica de

execução - que nos coloca em contato tanto com as ações dos caracteres como também

com seus desejos particulares - prescinde, portanto, de um divino estático e sereno e volta-

se para o caráter particular e os acontecimentos mundanos, tornados então o ponto de

interesse central. E é o caráter heroico quem, ao participar de um mundo em efervescente

atividade, no qual outras vontades e desejos particulares colidem com os seus, retira desse

confronto a ocasião de agir e fazer valer com força decisiva sua autonomia.

No entanto, a poesia só estava verdadeiramente capacitada a expressar o espiritual

do homem quando produzida no seio de sociedades que viviam onde a realidade-ela-

mesma conservava traços ainda poéticos – ou seja, onde os povos ainda apreendiam e

expressavam a verdade sobre o mundo através da fantasia e da imaginação, pois não

haviam desenvolvido a necessidade de compreender as relações entre os objetos e a

própria realidade através de categorias do entendimento reflexivo, tampouco filosóficas.

Apesar de o mundo grego clássico já apresentar um prosaísmo (sendo um Estado, possuía,

consequentemente, um grau de subjetividade que permitia ao homem apreender

reflexivamente a realidade), esta última instância só adquiriu a sua verdade plena na

modernidade dita prosaica, justamente por contrapor-se à poética compreensão da

realidade que encontramos manifestada naquelas civilizações em seus primórdios. A

experiência da polis ateniense, que segundo Hegel nos coloca diante do ideal de arte (a

escultura greco-clássica), ilustra a problemática que a arte encara nas mediações do

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mundo moderno: a estátua do deus grego, o corpo do homem configurado em sua perfeita

estrutura e harmonia, representa aos olhos desta civilização o ideal de ser em arte; ela

guarda em sua corporificação a certeza serena do próprio divino, diante do qual a

comunidade presta seu culto. Já Hamlet, que questiona a validade de ser ou não-ser no

mundo, que se surpreende com a inadequação do que é sentido e do que é exteriormente

passível de ser expresso, que tem o desejo imediato de agir submetido ao raciocínio

mediador, expressa a dúvida do homem moderno. Diferente do homem grego clássico,

ele não identifica sua verdade interior à sua forma externa– assim como a subjetividade

infinita do homem moderno, portanto, está plenamente consciente da distância que a

separa de uma representação objetiva, pela arte. Isto equivale a dizer, mais uma vez, que

a expressão artística, na modernidade, não mais fala adequadamente ao homem de sua

verdade interior.

O mundo moderno é claramente inóspito ao heroísmo e se recusa a ser

compreendido poeticamente. Vivemos em um estado regulado por leis e normas éticas -

que não emanam do peito dos indivíduos, mas que estão estabelecidas de modo a conter

o arbítrio particular. Qualquer um que busque impor sua vontade individual deve adequá-

la a estas regras ou estará sujeito às punições previstas no código jurídico. Ânimo, paixões

e desejos, não mais estão divinamente justificados, nem podemos trazê-los ao mundo

efetivo de modo arbitrário. Sabemos de antemão quais são as nossas ações possíveis, e a

elas devemos adequar nossos desejos. A poesia e a arte não comportam e não apreendem

em sua forma a ética universal do estado Moderno, limitando a sua configuração à esfera

particular da sociedade civil burguesa.

Em resumo: para Hegel, o drama alcança a sua verdade ainda na Grécia, com

a tragédia e a comédia. Na época moderna, há uma reapropriação do drama, que não

aparece mais na sua forma pura, como entre os gregos, mas sim entrelaçado com outras

espécies e gêneros poéticos. O drama é a unidade entre subjetividade e objetividade, mas

na modernidade este equilíbrio e unidade entre objetividade e subjetividade parece se

diluir, porque a própria arte dramática é determinada pelo princípio moderno da

subjetividade. Hamlet seria assim uma prova desse desequilíbrio. Há um valor objetivo e

universal que, de certa forma, alicerça a sua ação: ao vingar o rei assassinado, cuja

representação universal e objetiva é o valor político, sua ação estaria, de alguma forma,

justificada objetivamente. Todavia, a subjetividade pondera e coloca em questão essa

justificativa, promovendo o desequilíbrio, no drama moderno, defendido por Hegel no

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conceito do drama. Esse desequilíbrio entre conteúdo e forma aponta para uma forma

mais alta de representação do espírito: o pensamento reflexivo.

A poesia e a arte não mais se apresentam como meio mais adequado de

obter e transmitir orientações éticas e morais universalmente reconhecidas. São nossos

textos prosaicos que primeiramente nos ditam as normas e ensinamentos. Uma metáfora

ainda é bela, mas sabemos que não tem a precisão de uma frase elaborada a partir das

normas do entendimento racional. Há fragmentação e mediação por todos os lados.

Contudo, se abandonamos a beleza da poesia pela feiura do conceito, não foi porque a

arte tenha se mostrado inferior à prosa, mas apenas revelou-se menos adequada como

modo de expressão do grau de autoconsciência que adquirimos. A poesia não pode

verdadeiramente dizer do mundo que não é mais poético, mas prosaico. Com a prosa

(superior à poesia na medida em que o mundo superior engendra igualmente uma forma

de compreensão superior, a filosofia, e a forma prosaica desta se expressar) foi possível

forjar espaço para as subjetividades individuais e assim viver a liberdade plena do mundo

moderno mediada pela ética universal do Estado. Hamlet e os demais caracteres de

Shakespeare trouxeram à poesia os elementos da subjetividade que anunciavam essa

transição, em seu limite.

Portanto, na leitura estética de Hegel, que tentei aqui traduzir, a poesia

dramática de Shakespeare já anuncia sua superação pelo conceito. Essa conceituação,

trabalho do pensamento, nos informa que a beleza, finalidade do artista, não mais

consegue expor a verdade, satisfação do espírito. As contradições do príncipe da

Dinamarca em sua autonomia formal apontam para esta realidade. Concluo ser este o

estatuto de Hamlet, se analisado de acordo com a Estética: o personagem demonstra, na

sua contradição, a contradição real do homem moderno e a dissolução da poesia sob o

julgo do pensamento reflexivo. Ela, a forma mais desenvolvida da forma arte, se depara

com uma limitação definitiva em expor a verdade da liberdade do homem moderno, e

somente a prosa da filosofia está a partir de então autorizada a tanto. Podemos

compreender porque Hegel considera o fim da arte como destinação suprema: a beleza

objetiva, acuada, recolhe-se a um canto da história de nossos antepassados, para que a

liberdade, expandida, ocupe os amplos salões do presente, conduzida pela forma

filosófica.

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