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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ – UECE CENTRO DE HUMANIDADES – CH DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA CURSO DE MESTRADO ACADÊMICO EM FILOSOFIA – CMAF Ana Alice Miranda Menescal A IDÉIA DE JUSTIÇA E A FORMAÇÃO DA CIDADE IDEAL NA REPÚBLICA DE PLATÃO Fortaleza 2009

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEAR UECE

CENTRO DE HUMANIDADES CH

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

CURSO DE MESTRADO ACADMICO EM FILOSOFIA CMAF

Ana Alice Miranda Menescal

A IDIA DE JUSTIA E A FORMAO DA CIDADE IDEAL

NA REPBLICA DE PLATO

Fortaleza

2009

Livros Grtis

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Milhares de livros grtis para download.

Ana Alice Miranda Menescal

A IDIA DE JUSTIA E A FORMAO DA CIDADE IDEAL

NA REPBLICA DE PLATO

Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado Acadmico em Filosofia da Universidade Estadual do Cear, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Filosofia.

Orientador: Dr. Jan Gerard Joseph ter Reegen

Fortaleza

2009

M543i Menescal, Ana Alice Miranda

A Idia de Justia e a Formao da Cidade Ideal na

Repblica de Plato/ Ana Alice Miranda Menescal. Fortaleza,

2009.

102p.

Orientador: Prof. Dr. Jan Gerard Joseph ter Reegen.

Dissertao (Mestrado Acadmico em Filosofia)

Universidade Estadual do Cear, Centro de Humanidades.

Ana Alice Miranda Menescal

A IDIA DE JUSTIA E A FORMAO DA CIDADE IDEAL

NA REPBLICA DE PLATO

Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado Acadmico em Filosofia da Universidade Estadual do Cear, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Filosofia.

Aprovada em _____/_____/_____.

BANCA EXAMINADORA

Dr. Jan Gerard Joseph ter Reegen - UECE

Dra. Maria Aparecida de Paiva Montenegro - UFC

Dr. Ccero Cunha Bezerra - UFS

minha av Alice, de quem herdei o nome

e a fortaleza, assim espero! Com meu beijo mais terno

e abrao mais carinhoso .

AGRADECIMENTOS

Ao Tito, esposo, amigo e companheiro, por seu incentivo, confiana, conselhos,

pacincia e amor.

Aos meus pais, Armando e Ana, pelo incentivo aos estudos e por compreender

as ausncias nos almoos de fim de semana.

Ao Alosio, irmo querido, que divide comigo o entusiasmo pela vida acadmica

sempre com palavras amigas.

minha av Alice, pelas conversas, os almoos antes das aulas do mestrado,

a ambrosia e por entender algumas longas ausncias, durante os dois anos de

mestrado.

Profa. Guaraciara Barros Leal, minha sogra, pelo incentivo dado ao Tito e a

mim desde a seleo do mestrado, pelos conselhos e o computador

compartilhado por tanto tempo e, por me receber em sua casa e em sua

famlia.

Ao Prof. Dr. Roberto Pontes, meu sogro, pela leitura cuidadosa e reviso da

dissertao.

amiga Silviana Fernandes Mariz, feliz reencontro, pela elaborao do

abstract.

Ao meu orientador, Prof. Dr. Jan Gerard Joseph ter Reegen, por seus

conselhos, serenidade e apoio durante meus surtos de insegurana com o

tema escolhido.

Profa. Dra. Maria Aparecida de Paiva Montenegro, a Cida, por sua amizade,

ateno, conselhos, livros emprestados e leitura do projeto e da dissertao.

Ao Prof. Dr. Ccero Cunha Bezerra, pela cordialidade e por aceitar o convite

para ler e avaliar esta dissertao.

Ao Curso de Mestrado Acadmico em Filosofia, por aprovar o projeto de uma

historiadora com pretenses filosficas, Maria Tereza Styro, exmia

secretria do mestrado, por sua solicitude sempre e, Ftima, Densia e

Joaquim por todos os seus prstimos.

Aos colegas de mestrado, em especial, rika, Mrie, Raphaela e Renata, pelo

companheirismo e momentos compartilhados.

Aos professores do mestrado pelas aulas, filsofos apresentados, interesses

despertados e indicaes de livros.

Funcap, pelo incentivo pesquisa no Cear e pela bolsa concedida durante

os dois anos de mestrado.

E se este nosso discurso (logos) se perdesse como um conto (mythos) e ns nos salvssemos com

um desvario (alogas) qualquer?

Plato, Filebo, 14 a.

RESUMO

O presente estudo prope uma anlise do conceito de justia e da formao da cidade ideal na Repblica de Plato. Para tanto, realizou-se a leitura e anlise de parte das obras do filsofo de Atenas, com o intuito de compreender seu projeto poltico, ou seja, a formao do filsofo-rei, ou rei-filsofo, e o estabelecimento da cidade ideal. O primeiro captulo foi dedicado busca por traos do projeto poltico de Plato na Carta VII, pois um texto com caractersticas autobiogrficas que apresenta as tentativas de implantao do governo ideal em Siracusa, durante os governos de Dionsio, o velho e Dionsio, o jovem. Em seguida foi realizada uma anlise da Repblica de Plato, obra de maior impacto do filsofo, por sua abragncia e diversidade de temas, onde so abordados os tpicos centrais da discusso ora proposta: a idia de justia e a cidade ideal. Por ltimo, buscou-se analisar a conceituao de justia e a formao da cidade ideal partindo da educao do cidado no dilogo A Repblica. Neste momento abordou-se, tambm, os elementos considerados prejudiciais para a formao tica do cidado, ou seja: as paixes e poesia trgica. Neste ltimo ponto, foi realizado o embate entre pontos de vista diferentes de Plato, contidos na Repblica e em on, obra supostamente anterior.

Palavras-chave: Justia. Cidade Ideal. Repblica. Plato. tica.

ABSTRACT

This study herein presented proposes an analysis on the concept of justice and about the formation of the ideal city offered in The Republic by Plato. In order to achieve this goal some parts of Plato works were read and analyzed with the intention to comprehend his political project, which means, the formation of the philosopher-king or king-philosopher and the setting of the ideal city. The first chapter was dedicated to the research of the characteristics of the Plato political project offered in the Lecture VII thus it has autobiographic traces which presents the attempts of implementing the ideal government in Syracuse during the tenures of Dionysius, the old and Dionysius, the young. After this, it was realized an analysis on The Republic, the main work of this philosopher because of its wideness and diversity of subjects; and it is where it is possible to find some approaches over the central topics of the discussion herein proposed: the concept of justice and ideal city. And finally it was attempted to analyze the concept of justice and the formation of the ideal city, having as point of departure the citizen education presented in the dialogue The Republic. In this moment, it was analyzed as well the elements considerated harmful to the ethical formation of the citizens which are the passion and the tragic poetry. In this last point, it was realized the confrontation amongst Platos different points of view included in The Republic and in Ion (a previous work).

Key-words: Justice Ideal City Republic Plato Ethics.

SUMRIO

1 INTRODUO ..............................................................................................12

2 O PROJETO POLTICO DE PLATO ..........................................................18

2.1 A origem do projeto poltico ........................................................................20

2.2 As experincias de Siracusa: contexto geral ..............................................22

2.3 Os governantes de Siracusa e suas atitudes para com Plato ..................25

2.4 Avaliao dos governos de Siracusa .........................................................29

3 DA REPBLICA DE PLATO OU DA .......................................40

3.1 A Repblica no contexto da obra platnica ................................................40

3.2 Objetivo de A Repblica .............................................................................42

3.2.1 A poltica ..................................................................................................43

3.2.1 A tica ......................................................................................................46

3.2.4 A cidadania ..............................................................................................48

3.3 A metodologia: dilogo e dialtica ..............................................................49

4 A IDIA DE JUSTIA E A FORMAO DA CIDADE IDEAL .....................63

4.1 A idia de Justia e a educao do cidado: possvel formao de uma

tica platnica ..................................................................................................64

4.2 A cidade ideal: adequao e conduta tica ................................................73

4.3 A poesia e as paixes: interferncias na conduta tica ..............................78

5 CONCLUSO ................................................................................................89

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ................................................................92

12

1 INTRODUO

Plato demonstrou claramente nas obras que escreveu o seu envolvimento

com a filosofia e com a poltica, apesar de, na juventude, ter trilhado os caminhos

da poesia. Ainda jovem, encantou-se com a filosofia e seguiu os passos de

Scrates, mestre e amigo, de quem foi companheiro at o momento em que este

tomou a cicuta. Vivenciou momentos polticos conturbados, participou da Guerra do

Peloponeso, presenciou o governo oligrquico, a democracia decadente, a tirania1 e

a volta democracia. Fez parte da assemblia popular de Atenas e viu as

arbitrariedades cometidas em busca de poder. Assistiu condenao e morte

daquele que considerava o pensador mais virtuoso da Grcia, Scrates.

A morte de Scrates foi fundamental para o estabelecimento da filosofia

platnica. A decepo e o inconformismo de Plato com a situao imposta ao

mestre fizeram nascer no filsofo da Academia o desafio de encontrar solues

para circunstncias como aquela. Aps a morte do mestre, as obras do filsofo

ateniense estabeleceram anlises filosficas de diversos temas relacionados tica

e aos valores humanos na Grcia Antiga, alm de outras que analisaram a poltica e

sociedade grega, buscando estabelecer um indicativo poltico a ser seguido por

Atenas, ou mesmo, o planejamento ideal de uma cidade e uma sociedade justas,

onde os cidados pudessem atingir a excelncia.

Na verdade, a cidade ideal de Plato no foi necessariamente pensada para

ser realizada. Para tanto, o filsofo indicou os caminhos que considerava cabveis,

pois que a realizao no lhe cabia individualmente, mas sociedade. Por trs

vezes Plato esteve em Siracusa com o intuito de estabelecer o governo de um

filsofo-rei e, desse modo, transformar o rei da cidade em filsofo. Ao lado de Din,

1 A tirania entre os gregos era uma forma de governo momentnea, apenas para situaes crticas, quando havia necessidade de uma interveno mais forte, sendo dissolvida assim que a situao estivesse sob controle. Portanto, quando a esta se faz referncia aqui, fala-se de uma situao crtica. Sobre esta questo, cf. AMOURETTI, Marie-Claire; RUZ, Franoise. O mundo grego antigo: dos palcios de Creta conquista romana. Traduo: Miguel Serras Pereira. Lisboa: Publicaes Dom Quixote, 1993.

13

seu amigo, esteve com Dionsio, o velho, que o vendeu como escravo. Depois

esteve por duas vezes com Dionsio, o jovem, que no aproveitou as oportunidades

de conhecimento oferecidas por Plato como deveria, valendo-se dos ensinamentos

do ateniense para apenas satisfazer suas vaidades.

A presente dissertao, intitulada A idia de Justia e a formao da cidade

ideal na Repblica de Plato, tem o intuito de discutir as contribuies de Plato

voltadas para o estabelecimento da essncia de sua justia, em busca dos

caminhos ticos a serem seguidos pelo cidado, para assim conduzi-lo ao melhor

convvio social possvel e, portanto, fundao e manuteno da cidade ideal,

lembrando sempre que esta ltima depende inteiramente da formao e

conscientizao do cidado para existir. Afinal, os cidados justos e conscientes de

seu valor perante a sociedade sero os elementos formadores da cidade justa, ou

seja, o governo justo da cidade pressupe o governo justo de cada cidado perante

a si mesmo, o que requer um cuidadoso processo de formao.

O projeto poltico de Plato no se apresenta essencialmente pela questo

poltica, mas envereda pela tica e por uma educao, orientada pela filosofia, to

necessrias formao humana. Assim se pode compreender a anlise de Tiago

Lara, quando faz afirmaes sobre o projeto educativo e poltico:

o projeto educativo de Plato, aquele que deve traar o caminho para a formao do homem equilibrado, maduro, sbio e feliz, tambm o seu projeto poltico. Cidado e cidade esto numa relao dialtica de causa e efeito mtuos. Um e outra se refletem e se geram. No h como pensar educao pessoal fora da realidade poltica formadora. No h como pensar reforma social ou poltica seno atravs de uma ao educativa pessoal. 2

2 LARA, Tiago Ado. Caminhos da razo no Ocidente: a filosofia nas suas origens gregas. Petrpolis, RJ: Vozes, 1989. 4. ed. Coleo Caminhos da Razo. V. 1. p. 114.

14

Portanto, a anlise de Plato da cidade, da poltica e da tica do mundo

antigo realizada a partir de uma proposta educacional e, para analisar o

pensamento de Plato acerca da tica e da sociedade, so utilizadas aqui,

fundamentalmente, duas obras do filsofo: 1) a Carta VII, por seu contedo

autobiogrfico e pela apresentao da idia-chave do projeto poltico de Plato, ou

seja, do filsofo-rei; e, 2) A Repblica, foco central do objeto pesquisado para

realizar esta dissertao, pela noo de justia, planejamento da cidade ideal, e dos

roteiros para o convvio tico. As outras obras utilizadas sero referidas ao longo

deste estudo, pois acreditamos que as obras de Plato sejam interrelacionadas. Por

isso, utilizamos tambm As Leis; Teeteto; Crtilo; on; Fedro; O Poltico, entre

outras. Sobre esse carter integrado das obras de Plato, Werner Jaeger comenta

o posicionamento de Schleiermacher, do seguinte modo:

as obras de Plato, embora no desenvolvam as suas idias em forma de sistema, mas sim atravs da forma artstica pedaggica do dilogo, pressupem todavia, desde o primeiro instante, uma unidade espiritual que nelas se vai desentranhando gradualmente3

evidente a relao entre as obras e os resultados finais da produo do

filsofo. Se forem analisadas, por exemplo, a Repblica, a Carta VII e As Leis,

possvel perceber a relao entre a argumentao acerca dos problemas poltico-

filosficos e, mais do que isso, a diferena de sentimentos em relao ao seu

prprio projeto poltico, o do filsofo-rei e o da cidade ideal. No fim de sua atuao

como filsofo, fica evidente o amargor das decepes com as tentativas frustradas

de implantao do projeto e uma escrita menos idealista e mais real das

possibilidades polticas gregas.

3 JAEGER, Werner. Paidia: a formao do homem grego. Traduo: Artur M. Parreira. So Paulo: Editora Herder, 2003. p. 600.

15

A presente anlise encontra-se exposta em trs captulos. O primeiro, que

recebe o ttulo O projeto poltico de Plato, consta de uma anlise da experincia

poltica do filsofo em busca do modelo ideal de governo. Para este captulo de

suma importncia a Carta VII, pois esta apresenta a auto-anlise daquele pensador

acerca de suas atuaes junto aos tiranos de Siracusa, onde julgou que seria

possvel estabelecer um governo justo, realizado por um homem que unisse em si

mesmo a sabedoria e o poder. A experincia, a bem da verdade, frustrou o filsofo,

pois, mesmo com as trs tentativas relatadas na obra, no foi possvel transformar a

mentalidade dos dspotas. A vaidade e a ganncia dos tiranos foram vitoriosas,

mas, mesmo depois de sua primeira viagem, sob o governo de Dionsio o velho,

Plato ainda retornou duas vezes e, segundo o filsofo, as duas ltimas viagens

tiveram como justificativa maior a amizade dedicada a Din. Ressalte-se que a

expectativa por este manifestada dava mostra de querer ter a filosofia presente na

sua vida e, assim, assumir a posio de um filsofo-rei.

O intuito da carta era responder solicitao dos amigos de Din, ento

falecido, que buscavam novos rumos para o governo de Siracusa e viam em Plato

a grande fonte de sabedoria daquele. Por esse motivo, acreditavam que o filsofo

ateniense fosse o mais apropriado para orient-los.

A proposta do primeiro captulo ter por fim a constatao de que o projeto

poltico de Plato repousa em dois elementos fundamentais: 1 O filsofo-rei

frente do poder; e, 2 A cidade justa, onde o filsofo-rei estabeleceria seu governo.

No primeiro captulo, a discusso recai, fundamentalmente, sobre o primeiro

elemento, o filsofo-rei, o segundo elemento ser discutido de forma mais ampla no

captulo final da dissertao.

O segundo captulo, cujo ttulo Da Repblica de Plato ou da Politia4,

consiste em uma anlise dos elementos da plis idealizada pelo filsofo de Atenas.

O captulo discute a Repblica de Plato a partir de uma diviso entre trs

elementos, a saber: Poltica, tica e Cidadania. A Poltica discutida a partir da

compreenso do homem como ser poltico e social; a tica, a partir da

4 Forma transliterada do grego para o portugus.

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compreenso da funo social e poltica do homem; a Cidadania, a partir da juno

Poltica e tica, pois a adequao do homem s duas far dele o cidado ideal.

Ser fruto de discusso, tambm, o uso da forma dialgica e de suas

caractersticas em Plato, pois, como o filsofo no se prope elaborao de

tratados filosficos, os dilogos tanto podem construir um pensamento sobre certo

assunto, quanto desconstruir possveis equvocos. Atravs da dialtica platnica se

pode chegar potencialidade da alma humana, fazendo o interlocutor do

personagem principal5 rememorar conhecimentos adquiridos em vivncia anterior

experincia terrena, quando sua alma no se encontrava ligada ao corpo. A

potencialidade da alma e as experincias anteriores ao contato com o corpo sero

discutidas neste captulo.

possvel que todas as descries constantes na obra de Plato sejam

mitos, com a inteno de explicar situaes no passveis de demonstrao em

termos racionais, como vem a ser o caso da experincia da alma humana antes do

contato com o corpo fsico e a escolha do destino na vida terrena subseqente. Esta

ltima questo, explicada pelo mito de Er no livro X da Repblica, aspecto

discutido no captulo segundo.

Para o aprofundamento dos temas propostos a obra fundamental ser a

Repblica, pois ela apresenta a percepo dos conceitos centrais da discusso

hora apresentada, alm de outras obras de Plato, como: Fedro, Crtilo e Teeteto,

apenas para citar algumas.

O captulo terceiro tenta finalizar a discusso proposta, A idia de Justia e a

formao da cidade ideal, que originou o ttulo da dissertao. Subdivide-se em trs

partes: 1) A idia de Justia e a educao do cidado: possvel formao de uma

tica platnica; 2) A cidade ideal: adequao e conduta tica; e, 3) A poesia e as

paixes: interferncias na conduta tica.

A primeira parte se centra na discusso da idia de justia, assim como da

anlise do justo e do injusto, de acordo com o dilogo proposto por Plato atravs

5 No caso da Repblica este papel pertence personagem Scrates, que ocupa a posio central na maioria das obras de Plato.

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do personagem Scrates, alm de outra questo fundamental: a educao do

cidado para seguir o caminho da justia, no desempenho de uma conduta tica

para com seus concidados. Comentadores como Werner Jaeger e Samuel

Scolnicov so considerados essenciais.

A segunda parte apresenta anlises sobre os indicativos de formao da

cidade ideal e sua relao de interdependncia com o cidado ideal, pois, para

Plato, a cidade ampliao do cidado e o cidado a cidade em menor escala.

Tambm ser necessria a compreenso da idia de indivduo para Plato, pois,

segundo sua argumentao, a sociedade composta por indivduos; portanto,

necessrio que cada um se adeque ao espao, ao lugar social, que lhe

determinado para ter um comportamento tico em relao a si mesmo e ao outro,

sem o que no ser possvel atingir o objetivo da cidade ideal.

A terceira parte, por sua vez, aborda as possveis interferncias na conduta

tica do homem da cidade. Por isso, ser abordado o tema das paixes, da

influncia dos poetas na educao da repblica platnica, e o desvio que podem

causar na conduta do indivduo. Para tanto, faz-se necessrio discutir o conceito de

paixo, a crtica aos poetas na Repblica, o elogio aos poetas em on, a poesia e

sua contribuio para a educao na Grcia Antiga e, para finalizar, a funo que

Plato pretendia atribuir aos poetas na cidade ideal.

Seguindo estes passos, a presente dissertao pretende abordar a idia de

Justia em Plato e, por meio desta, seu modelo de cidade ideal, partindo da

compreenso do projeto poltico, da formulao de uma tica platnica e da inter-

relao desses elementos na formao da cidadania.

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2 O PROJETO POLTICO DE PLATO

Eu creio estar entre os poucos atenienses, para no dizer-me o nico,

que tentam a verdadeira arte poltica e sou o nico,

entre os que agora vivem, que a exercita.

Plato, Grgias, 521 d.

As experincias de Plato o conduziram concepo de um projeto poltico

que terminou sendo o grande empreendimento de sua vida, na verdade, mais amplo

do que a prpria Academia, pois estava entre as prioridades desta a reflexo sobre

o poltico. O incio de tudo foi, por certo, a ligao com Scrates, com quem teve

contato no perodo em que serviu no exrcito ateniense. Os dois tornaram-se

amigos e Plato cultivou esta amizade, dedicando-se aos ensinamentos do mestre

e sendo-lhe fiel at o momento da morte do mesmo, acontecimento fundamental

para a formulao de toda a sua filosofia, da qual se sobressai o projeto da cidade

ideal governada pelo filsofo-rei que ocupou a vida inteira de Plato.

A cidade ideal foi estabelecida, ao poucos, em quase todas as obras de

Plato. Mesmo quando no havia referncia direta a ela, as obras trataram de

aspectos que diziam respeito formao do homem, formao do cidado, que

posteriormente deveria habitar a cidade. Os filsofos anteriores a Plato

associavam a beleza fsica e a fora perfeio pretendida para os deuses gregos,

o que fatalmente associava o homem forte e belo condio de superioridade e de

beleza moral6. Plato considerava este pensamento tpico de sofistas como

6 Cf., por exemplo, o que dizem a respeito BRUN, Jean. Plato. Lisboa: Publicaes Dom Quixote, 1985. Coleo Mestres do Passado, n 10; BERGSON, Henri. Cursos sobre a filosofia grega. Traduo: Bento Prado Neto. So Paulo: Martins Fontes, 2005. Coleo Tpicos; LARA, Tiago Ado. Caminhos da razo no

19

Protgoras, para quem o homem era a medida de todas as coisas, como uma

concepo bastante equivocada. Exemplo disso eram os governantes dspotas

que, em muitos casos, apresentavam, alm de fora fsica, a beleza, mas no

tinham condio de aplicar a justia. Portanto, no sabiam realizar um governo

justo, que para o filsofo ateniense era condio sine qua non de um bom

funcionamento da cidade, ou seja, da constituio da cidade ideal.

A tese principal de Plato diz respeito necessidade de fundao de uma

cidade onde haja a educao voltada para a justia, porque somente assim se

atingir o ideal humano que a felicidade. O alcance da felicidade, segundo Plato,

repousa sobre o educar, voltado para a justia, o qual originaria o cidado ideal,

conhecedor do seu espao e daquele reservado ao outro, e, consequentemente,

cidade ideal, ampliao do cidado. Finalmente, para governar a cidade ideal, o

mais indicado seria o filsofo-rei, detentor do conhecimento necessrio para

conduzir a vida na plis segundo os caminhos da tica e da justia entre os

concidados. Sobre a poltica de Plato, disse Jean Brun:

A poltica de Plato dirigida por uma exigncia tica; porque a sociedade tem de ser moldada primeiro na idia de Justia que a idia de Justia poder depois encontrar-se nela; portanto necessrio que o Estado, como o mundo do Timeu, seja construdo sobre um modelo, e que os filsofos se tornem reis ou que os soberanos se tornem verdadeiros e srios filsofos.7

Portanto, o ideal poltico desenvolvido por Plato envolve duas questes:

filosofia e justia, ambas, vistas como essenciais para o fim procurado pelo homem,

ou seja, a eudaimonia.

Ocidente: a filosofia nas suas origens gregas. Petrpolis, RJ: Vozes, 1989. 4. ed. Coleo Caminhos da Razo. V. 1.

7 BRUN, Op. cit., p. 151 et seq.

20

2.1 A origem do projeto poltico

A criao do projeto poltico de Plato teve origem, antes de tudo, nas

decepes do filsofo com os modelos de governo baseados na democracia e nas

aes dos governantes de seu tempo. O ponto culminante dessa criao foi a

condenao e morte de Scrates8.

Aps terminar o servio militar, Plato passou a compor a Eclsia9, e foi

durante esse perodo que comearam suas decepes com os regimes polticos de

Atenas. Scrates fazia parte da bul10 de Atenas e em 406 assistiu sesso onde

foram condenados morte os generais que venceram a batalha de Arginusas, ilhas

do Mar Egeu, vizinhas a Lesbos. Plato passou a admirar mais ainda seu mestre

Scrates, ao v-lo ficar contra o regime democrtico de Atenas, quando no apoiou

tal condenao. Logo a democracia ateniense se tornou oligarquia, os governantes

passaram de quinhentos para trinta. Entre estes trinta oligarcas estavam Crtias e

Crmides, parentes de Plato, que votaram pela condenao de Scrates.

O filsofo dos Dilogos, inicialmente, preferiu a oligarquia ao modelo de

governo que o antecedeu, a democracia, mas logo percebeu os abusos dos

governantes. Porm, tinha suas obrigaes militares com a plis, e por esta razo

fez parte das assemblias convocadas pelos oligarcas, ainda que no aceitasse

participar ativamente dos atos do governo oligrquico.

A oligarquia caiu em 403, voltando a vigorar a democracia em Atenas.

Porm, quando Plato estava conformado com este retorno, Scrates foi julgado e

8 Sobre a morte de Scrates, cf: Apologia de Scrates e Fdon, de Plato. 9 Em grego: . Assemblia popular de Atenas, da qual faziam parte os homens que serviram no exrcito da plis. 10 Em grego: . O conselho da plis, composto por quinhentos conselheiros, por isso, tambm chamado de conselho dos quinhentos de Atenas.

21

condenado morte, e uma das razes para tanto foi o fato de ter feito oposio ao

governo oligrquico. Mas as questes envolvendo Scrates eram maiores. O

mestre de Plato era considerado um contraventor, por sua proposta educacional

crtica, que muito se diferenciava da educao tradicional, que ia alm de questes

religiosas, pois tambm ele era acusado de tentar introduzir novos deuses11 na

religio ateniense. Por isso, Scrates foi considerado um corruptor da juventude.

Plato tentou demover os governantes democratas, buscando modificar a

condenao morte em multa, mas sua tentativa foi v. Em Apologia de Scrates,

podemos ler sobre a imagem que ficou de Scrates para a sociedade ateniense.

Segundo Plato, as impresses eram muito ruins, devido a Aristfanes e comdia

As nuvens1213. Possivelmente vem do momento da morte de Scrates a idia de

Plato, defendida na Repblica, de que o governo deve ser realizado por filsofos e

no por homens comuns.

A morte de Scrates levou Plato ao questionamento sobre a ignorncia dos

governantes, em especial os dspotas, pois o mpeto individualista que os guiava

no permitia que enxergassem o que havia de mais essencial para o governo da

cidade segundo o projeto poltico de Plato: a noo de plis, de coletividade. A

questo no deve ser compreendida como uma possvel teoria comunista. Para

Plato, assim como para boa parte dos gregos da poca, a plis estava acima da

individualidade, mas a democracia, para aqueles que governavam sob sua gide

estava desvirtuando os caminhos governamentais, com o individual se sobrepondo

plis. Os governantes dispunham do poder a partir de suas necessidades

individuais e da necessidade de se manterem de forma autoritria no mando. O

poder tirnico se mostrou em Atenas quando Scrates foi condenado, e, mesmo,

aps a queda do governo dos trinta, quando foi mantida a condenao.

11 O dmon a que Plato se refere no Livro X da Repblica, era uma espcie de guia da alma humana durante a vida, junto ao corpo e fora dele. Scrates se referia ao dmon como uma voz que o guiava, que orientava seus atos. Sobre a questo, cf., por exemplo, REALE, Giovanni. Plato. Traduo: Henrique Cludio de Lima Vaz e Marcelo Perine. So Paulo: Edies Loyola, 2007. Coleo Histria da Filosofia Grega e Romana. V. III, e BRUN, Jean. Op. cit..

12 Cf. ARISTOFANES.Las nubes, Lisistrata, Dinero. Madrid: Alianza Editorial, 2000.

13 As duas obras de Plato e de Aristfanes apresentam vises diferentes de Scrates. Enquanto Plato elogia a conduta do mestre, Aristfanes ridiculariza o filsofo.

22

2.2 As experincias de Siracusa: contexto geral

O filsofo da Academia desejava, como pensador, tentar aplicar suas idias a

respeito do modelo de governo ideal, possibilidade que surgiu em Siracusa. Sobre

sua experincia naquela cidade, a melhor fonte que se tem a Carta VII, na qual

relata as trs viagens feitas ao reino dos Dionsios, realizadas na esperana de

transformar os governantes tiranos, primeiro Dionsio o velho e depois Dionsio o

jovem, em filsofos-reis. Na carta em questo, o filsofo explana acerca do

comportamento e dos atos polticos dos dois Dionsios, assim como reflete a

respeito de seu amigo Din, por intermdio de quem conheceu os tiranos e ainda

sobre seus prprios atos, numa espcie de auto-exame. A Carta VII faz parte do

conjunto de missivas atribudas a Plato, mas a autenticidade dos textos fruto de

suspeitas. Em 1783, Meiners, por no consider-las autnticas, rejeita-as no

conjunto de obras platnicas. Mais tarde, no sculo XIX, a partir de estudos

estilsticos, foi possvel encarar As Cartas com mais benevolncia, aceitando a

autenticidade de parte delas14. A Carta VII, possivelmente, foi a que menos sofreu

contestaes, devido aos muitos detalhes sobre a vida de Plato15. A opo de

discutir neste captulo a Carta VII est relacionada aos elementos que apresenta

sobre o projeto poltico de Plato em sua incessante tentativa de aplicao da

concepo da excelncia de um governo de filsofo-rei.

O texto da Carta VII se inicia com uma saudao aos parentes e amigos de

Din e, ao que parece, Plato responde a proposta de seus interlocutores sobre o

14 Cf. SAMARANCH, Francisco de P. Cartas: preambulo. In: PLATON. Obras completas. Traduccin del griego, prembulos y notas por: Maria Araujo, Francisco Garcia Yage, Luis Gil, Jose Antonio Miguez, Maria Rico, Antonio Rodriguez Huescar y Francisco de P. Samaranch. 2. ed. Madrid: Aguilar, 1988, p. 1545. 15 Cf. Jean Brun, 1985.

23

projeto poltico conhecido atravs de Din e baseado nas idias e nas obras de

Plato. O filsofo se dispe a ajudar caso as propostas estiverem de acordo com o

posicionamento de Din, pois este, Plato conhecia bem, desde quando o

siracusano contava seus vinte anos e o ateniense quarenta. Ao referir-se a Din,

Plato afirmou que a opinio que ento tinha, essa mesma tambm continuou

tendo: achava ser preciso que os siracusanos fossem livres, que administrassem de

acordo com as melhores leis16. E foram estas idias que Plato sups terem

inspirado Hiparino.

O filsofo, em seguida, noticia seu interesse, desde cedo, pela poltica

ateniense e por tudo que presenciou nos regimes polticos estabelecidos em

Atenas. Refere-se ao episdio de quando foram dados como chefes da nova ordem

poltica cinqenta e um homens, sendo trinta os que governavam com poderes

absolutos, dentre os quais alguns, parentes e conhecidos seus. Plato viu, em

pouco tempo, as arbitrariedades dos governantes ao se darem conta do poder em

suas mos, inclusive, segundo registra, os tiranos quiseram envolver, entre outros:

um amigo meu, mais velho, Scrates, que eu certamente no me envergonharia de dizer ser ento o mais justo de todos, mandaram-no com outros contra um dos cidados, conduzindo-o fora para a morte, a fim de que fosse cmplice dos negcios deles, querendo ou no. Mas ele no se deixou persuadir e arriscou-se a suportar tudo, em vez de se tornar cmplice deles em atos mpios17. 18

Aps o ocorrido, Plato toma certa distncia das questes polticas em

Atenas por no aceitar os posicionamentos de governantes despticos, pois estes

16 PLATO. Carta VII. Traduo e notas: Jos Trindade Santos e Juvino Maia Jr. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; So Paulo: Loyola, 2008, 324 a-b. 17 Scrates se negou, ao ser indicado junto a outros quatro cidados, a deter, por morte, Len de Salamina, que era adversrio do regime oligrquico, pois considerava este um ato ilegal. 18 Carta VII, 324 d-325 a.

24

usavam o poder para resolver questes pessoais. Para Plato, medida que o

tempo passava e os regimes polticos e governantes mudavam, ficava mais difcil

dele prprio se dispor a envolver-se com as questes polticas da plis. Aos poucos,

viu que os problemas de governo no envolviam apenas Atenas. Todas as plis

gregas deparavam-se com governantes despreparados para as coisas da cidade,

para o comando dos cidados, e os costumes e leis dos antigos, dos antepassados,

no eram mais seguidos. A situao toda vem tona quando Atenas perde a guerra

para Esparta19 e esta impe a oligarquia de cinqenta e uma pessoas, sendo trinta

os oligarcas da cidade. Nesse momento surge para Plato o pensamento que d

origem a seu projeto poltico, a necessidade da filosofia tanto para a vida pblica,

quanto para a vida privada. Nas palavras de Plato:

Fui obrigado a dizer, louvando a verdadeira filosofia, que a ela cabe discernir o politicamente justo em tudo dos indivduos, e que a espcie dos homens no renunciar aos males antes que a espcie dos que filosofam correta e verdadeiramente chegue ao poder poltico, ou a espcie dos que tm soberania nas cidades, por alguma graa divina, filosofe realmente.20

Aqui se tem a proposta poltico-filosfica do pensador, expressa diretamente,

aquela que o ateniense discutiu em suas obras e tentou implantar. Sobre o mesmo

projeto, Plato, atravs de Scrates, diz Glucon:

Se os filsofos no forem reis nas cidades ou se os que hoje so chamados reis e soberanos no forem filsofos genunos e capazes

19 Aqui se faz referncia Guerra do Peloponeso, sobre o assunto cf. Histria da Guerra do Peloponeso de Tucdides. 20 Carta VII, 326 a

25

e se, numa mesma pessoa, no coincidirem poder poltico e filosofia e no for barrada agora, sob coero, a caminhada das diversas naturezas que, em separado, buscam uma dessas duas metas, no possvel, caro Glucon, que haja para as cidades uma trgua de males e, penso, nem para o gnero humano.21

Assim, Plato deposita as esperanas de alcance da felicidade na condio

de haver na plis, quer fosse a cidade ideal de sua Repblica quer fosse a Siracusa

dos Dionsios, um governo realizado por aqueles que detm os conhecimentos

maiores, os conhecimentos da filosofia.

2.3 Os governantes de Siracusa e suas atitudes para com Plato

Plato discorre sobre as experincias passadas junto aos dspotas de

Siracusa na Carta VII, primeiro com Dionsio, o velho e, em seguida, com Dionsio,

o jovem. O primeiro desagrado citado foi quanto ao modo de vida de siracusanos e

italianos. Ao chegar Siracusa, no pde compreender a vida que ali era

considerada feliz, pois os homens viviam de excessos: muita comida, muita bebida,

mulheres todas as noites, no sobrava tempo para a alma, para aquisio de

conhecimentos, a formao virtuosa22. Para o filsofo ateniense, nenhuma cidade

regida por esses hbitos poderia encontrar a eudaimonia, pois os cidados seguiam

o exemplo de seus governantes, ou seja, a inatividade completa, somente alterada

21 Rep., Livro V, 473 d. 22 Essa idia ser retomada na filosofia de Aristteles, com o metron, e na de Epicuro com seu tetrafarmacon, por exemplo. Cf. tica a Nicomaco de Aristteles e Carta sobre a felicidade( a Meneceu) de Epicuro.

26

para envolverem-se em banquetes, embriaguez ou amores23. O ateniense, a partir

do que viu acerca dos costumes dos siracusanos, afirmou:

necessrio que essas cidades sejam tiranias, oligarquias e democracias24, mudando sem jamais cessar, sem que os soberanos nelas suportem ouvir o nome do governo justo e isnomo.25

Adiante, Plato discorre sobre a predisposio de Din para escutar seus

pensamentos e acat-los, pois esse no pensava como os seus concidados.

Enquanto estes eram condicionados por uma vida mundana, de sensualidade e

prazer, o jovem Din aceitou os ensinamentos de Plato acerca das virtudes

necessrias ao homem e plis. Ao mesmo tempo que Plato trazia Din para

perto de si e de seus ideais polticos, estava de modo inconsciente trabalhando em

prol do fim da tirania, e isso acarretou em srias conseqncias para sua pessoa e

a de Din. Ambos conquistaram o dio dos adeptos do regime desptico, ou seja,

de todos aqueles que de algum modo se beneficiavam do poder exercido por

Dionsio, o velho. Esse dio poderia no prejudicar diretamente Plato, que no era

habitante local, mas afetou Din at quando ocorreu a morte de Dionsio.

A primeira viagem de Plato a Siracusa terminou com seu embarque numa

trirreme espartana, vendido como escravo por ordem de Dionsio. O filsofo, no

23 Coincidentemente, ou no, a vida que ambos os tiranos de Siracusa levavam encaixava-se perfeitamente com o significado atribudo ao nome que receberam: Dionsio. Dionsio ou Dioniso, deus grego, o mesmo Baco dos romanos, a quem se atribui a inveno das videiras, do vinho, e o delrio mstico, presente nos festejos e embriaguez. Cf. o verbete Baco em RIBEIRO, Joaquim Chaves. Vocabulrio e Fabulrio da Mitologia. So Paulo: Livraria Martins Editora, 1962 e Diniso em KURY, Mrio da Gama. Dicionrio de mitologia grega e romana. 6. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.

24 As citadas formas de governo so os modelos defeituosos de governo que vo contra os legtimos, os quais, segundo Plato, so: monarquia, aristocracia e o que se pode chamar repblica constitucional. 25 Carta VII, 326 d.

27

entanto, foi comprado por Anceres, que o libertou logo em seguida26. importante

ressaltar que Dionsio, o velho, era de origem simples e ganhou destaque a partir do

seu papel de estratego27 nas guerras contra Cartago. Pouco dado aos

conhecimentos filosficos que Plato considerava essenciais ao bom governante,

mesmo assim, aquele tirano criou em torno de si uma corte de letrados que o

esclareciam e eram amparados por ele em situaes adversas. Essa corte se sentiu

ameaada pelos ideais platnicos e a simpatia de Din pelo filsofo de Atenas.

Aps a morte de Dionsio, o velho, Din vislumbrou a possibilidade de pr em

prtica os conhecimentos adquiridos com seu mestre, pois o jovem Dionsio ainda

no se encontrava completamente convicto quanto a aplicao do governo tirnico.

Din convidou Plato a voltar a Siracusa para implementar um governo comandado

por um filsofo-rei. Dionsio aparentava gosto pela filosofia, o que facilitaria a sua

formao dentro dos moldes platnicos, e este foi o argumento de Din. A deciso

de Plato foi bem avaliada antes de acatar o convite, tendo o raciocnio se dado

pela seguinte argumentao:

Eu tinha conhecimento da alma de Din, que era grave por natureza e de idade suficiente. Da, considerei e hesitei sobre qual dos dois cursos seria preciso seguir: pr-me a caminho e aceitar, ou fazer o qu? Contudo a balana pendeu para o que havia a fazer. Pois, se algum dia algum empreendesse levar a cabo o que foi pensado acerca das leis e do governo, agora mesmo havia que tentar. Visto que, mesmo tendo persuadido o bastante um apenas, eu seria capaz de executar tudo de bom.28

26 Sobre o tema vale cf Estudo preliminar de Jos Manuel Pabn e Manuel Fernndez-Galiano constante em PLATN. La Repblica. Traduccin, notas y estudio preliminar: Jos Manuel Pabn y Manuel Fernndez-Galiano. Madrid: Centro de Estudios Polticos Y Constitucionales, 2006. Coleccin: Clsicos Polticos.

27 Em grego: . Chefe do exrcito, ministro de guerra, general. A expresso grega remete palavra estrategista, em portugus, a qual se encaixa nas atitudes de Dionsio, o velho, pois o mesmo se mostrou grande estrategista ao tentar se desfazer de Plato vendendo-o como escravo em terra de inimigos dos atenienses 28 Carta VII, 328 a-c.

28

Plato tomou o rumo de Siracusa novamente em busca de aplicar seu projeto

poltico e transformar Dionsio II em filsofo-rei. A unio filosofia-governo, segundo

Plato, levaria Siracusa a uma condio diferenciada de governo, realizado no

pela fora, mas pela persuaso. Quando Plato chegou, Din j estava sendo

acusado de conspirao contra o governo de Dionsio. O filsofo tentou defend-lo,

mas Din acabou banido de Siracusa. Plato passou a se sentir ameaado, no

necessariamente de morte, como corria boca mida, segundo o prprio filsofo,

Dionsio lhe pediu para ficar, pois para ele no seria nada bom que eu fugisse, mas

que permanecesse 29.

O ateniense permaneceu em Siracusa, mas sob controle total do dspota,

hospedado na Acrpole local. Aos poucos, percebeu a admirao de Dionsio por

ele, que no tinha a inteno de se tornar um discpulo seu, aceitando suas lies

filosficas, mas por agradar-se do carter e das maneiras do filsofo. Para Plato, o

grande temor de Dionsio era sua corte, que caluniara Din e o amigo, atestar que o

envolvimento do tirano com o filsofo e suas teorias diminua a liberdade de agir do

governante e que tudo havia sido planejado pelo j exilado Din, com o intuito de

tomar o poder em Siracusa. Essa suposio de Plato seria o grande impedimento

para Dionsio aceitar a filosofia e, portanto, o projeto filosfico do mestre, de tornar o

tirano um governante sbio, um filsofo-rei. Sobre a situao, Plato afirmou eu

suportava tudo, acarinhando o primeiro pensamento pelo qual tinha ido: que de

algum modo ele [Dionsio] pudesse chegar a desejar a vida de filsofo; mas ele

venceu, resistindo-me 30.

Plato retornou a Atenas, mas, dada a insistncia de Dionsio, voltou uma

terceira vez a Siracusa. Antes de falar sobre seu retorno, o filsofo explica aos

parentes e amigos de Din, aos quais a Carta VII estava endereada, como acredita

que deva ser o comportamento de um sbio diante de um mau governo:

29 Carta VII, 329 d. 30 Carta VII, 330 b.

29

preciso que o sbio viva assim em relao prpria cidade, considerando falar, caso no lhe parea bem governada, se houver que falar, no sendo em vo, nem sendo morto, por falar; e no levar violncia ptria, por mudana de constituio, quando no for possvel torn-la melhor, sem exlios e massacre, fazendo votos que tragam bens e tranqilidade a si e cidade.31

2.4 Avaliao dos governos de Siracusa

Aparentemente, Plato poderia ter pregado o comodismo e o recuo diante

das adversidades, mas no o que se defende aqui, pois diante de um estudo

acerca do filsofo que prega a prudncia32 como uma das mais importantes virtudes

do homem, no seria possvel pensar em tal covardia. Talvez o filsofo estivesse

fazendo referncia s cenas que presenciou em sua juventude, quando, durante a

tirania dos trinta, perdeu seu amigo Scrates por este haver claramente se negado

a acatar as decises do governo tirnico. A prudncia aprendida e defendida por

Plato levou-o a apurar as situaes com o intuito de evitar males maiores.

Em seguida, Plato se empenha em estabelecer uma crtica ao governo de

Dionsio, que no soube governar as novas terras conquistadas em guerra, na

Siclia, por no ter entre os seus aliados, amigos ou familiares, ningum que de fato

fosse digno de confiana. Assim, unificou os reinos com intuito de governar na

totalidade, mas no foi capaz de faz-lo, devido extenso e falta de

31 Carta VII, 331 d-e. 32 Questo retomada por Aristteles, cf. tica a Nicomaco, em especial, Livro VI, cap. 5.

30

companheiros fiis33. Possivelmente a vida desregrada de Dionsio impediu-o de

conquistar a adeso de companheiros ou familiares, pois sabe-se que o tirano era

imaturo e desconfiado, dado a bebedeiras e suscetvel aos conselhos de uns

poucos que o cercavam. E como em todo governo tirnico o poder no ocorre pela

poltica, mas pela fora, os ditos aliados buscavam a satisfao de seus prprios

interesses. Assim, no havia razo para o estabelecimento de uma relao de

confiana, se era possvel conseguir favores sem grandes sacrifcios. Para Plato, a

ausncia de companheiros fiis era sinal claro de governo repleto de vcios,

enquanto a presena indicava um governo de virtudes34.

O filsofo ainda comenta que tipo de conselhos dava ao governante sobre a

necessidade de encontrar homens virtuosos entre os seus companheiros, pessoas

nas quais pudesse confiar, ao ponto de entregar parte de suas posses sem temor

de perda de controle. Mesmo dando conselhos assim, Plato e Din foram

acusados de compl contra Dionsio, causa do exlio de Din.

Segundo Plato, Din recebeu dos siracusanos, nas duas vezes que restituiu

Siracusa a eles, o mesmo agradecimento que recebeu de Dionsio, que foi educado

e preparado por ele para ser um bom governante, ou seja, desconfiana e

isolamento. Dionsio preferiu dar ouvidos queles que afirmavam que Din estava

interessado em dominar Siracusa. Plato disse:

os que difamavam Din, diziam que ele fazia tudo que fazia naquele tempo por conspirar contra a tirania. Queria que Dionsio, encantado, tendo a educao em mente, descuidasse do governo e o entregasse a ele, de modo a Din usurpar e expulsar Dionsio do governo por dolo.35

33 A situao foi comparada vivida por Daro, rei dos persas, que dividiu seu reino em sete partes e confiou o governo de cada uma das partes a aliados que no faziam parte de sua famlia e nem mesmo receberam dele a sua educao. 34 Cf Carta VII. 35 Carta VII, 333 b-c.

31

O ateniense tentou, uma ltima vez, desfazer as impresses injustificadas de

Dionsio acerca de Din, buscando restabelecer a antiga amizade, mas foi vencido

pelos inimigos. Mais adiante, na mesma Carta, Plato discorre sobre a vergonha

sentida por serem os assassinos de Din tambm atenienses, porm atribui o

comportamento amizade equivocada oriunda de relaes baseada em afinidades

vs que no dizem respeito educao, para o filsofo, garantia de respeito ao

outro. Em seguida, afirma que os cidados atenienses no devem sentir-se

envergonhados pelos atos dos assassinos, afinal no essa espcie de homem

que tem valor para a cidade.

Plato segue aconselhando os parentes e amigos de Din, quanto ao fim do

despotismo e como isto importante para todas as cidades, todas as sociedades.

Em sua Carta VII, afirma:

Que a Siclia no seja submetida a dspotas, nem outra cidade, mas a leis: eis o meu conselho. Pois isso no o melhor para os que se submetem, nem para os que so submetidos, eles mesmos, bem como os filhos dos filhos e os descendentes, mas experincia totalmente nefasta, carter de almas mesquinhas. Tais coraes amam rapinar coisas pequenas e vis, por no serem conhecedores das coisas boas e justas para o futuro e presente, sejam divinas, sejam humanas.

Dessas coisas eu tentei persuadir primeiro Din, depois, Dionsio e, em terceiro lugar, vs agora. 36

E vai alm, mostrando a situao dos dois primeiros governantes a quem deu

tais conselhos: o segundo, Dionsio, ainda estava vivo, mas em situao miservel,

pois perdera seu poder e seus domnios. O primeiro, Din, j no repouso da morte,

mas com morte honrada, pois jamais infligiu mal a ningum. Lembremos que

consoante o pensamento de Plato, aquele que deseja o supremo bem para si e

para a plis morre com honra. Afinal, melhor sofrer o mal que pratic-lo.

36 Carta VII, 334 c-d.

32

Para compreender o carter de Dionsio e as razes das reservas de Plato

em relao a este homem, dar-se- um salto na discusso da Carta VII, no intuito

de fazer este esclarecimento. Em seguida voltaremos questo central da

discusso: o filsofo-rei e a cidade ideal sob seu governo.

Dionsio mostrou suas intenes a Plato ao insistir pelo retorno do filsofo,

usando artifcios ameaadores, o tirano fez promessas de ressarcir Din dos males

provocados a ele. Por sua amizade a Din, Plato retorna a Siracusa, mesmo

sabendo dos riscos, pois o dspota Dionsio j havia mostrado muitas vezes seu

carter duvidoso e sua inconstncia. Os artifcios mais fortes do tirano foram: o

envio de encarregados de convencer Plato acerca de seu interesse pela filosofia e,

uma longa carta onde afirmava, como primeira providncia, resolver a situao de

Din, neste tempo exilado e privado de suas posses, caso o filsofo no aceitasse

seu convite nada seria feito por seu amigo. Fica subentendida a ameaa de Dionsio

aos amigos Plato e Din, confirmada pelas cartas de Arquitas e dos tarentinos

informando as boas relaes estabelecidas entre Tarento e Dionsio e os prejuzos

que sofreriam caso Plato recusasse o convite.

Plato cedeu aos apelos de Dionsio, mas apenas em face da situao de

seu amigo Din que se encontrava numa conjuntura delicada e das relaes entre

os tarentinos e o dspota siracusano, pois o filsofo de Atenas ficou apreensivo

com as possibilidades de resultado desta ltima viagem. Na tentativa de convencer

a si prprio, Plato explanou seu pensamento acerca do suposto comportamento de

Dionsio: veio-me ento mente que no era de espantar que um homem ainda

jovem, entendendo um discurso de feitos dignos, como bom discpulo, chegasse ao

amor da melhor vida37. O filsofo, porm, tinha sua tcnica para analisar quo

filsofo era o tirano ou se seu amor pela filosofia era falso, se no, vejamos:

Quando cheguei, pensei primeiro haver que tirar a prova disto: se estaria realmente Dionsio inflamado pela filosofia, como uma chama, ou se era em vo que esse discurso de tantos chegava a

37 Carta VII, 339 e.

33

Atenas. Ora, h um meio de fazer experincia sobre isso, bem apropriado, mas que realmente conveniente para tiranos, particularmente para aqueles cheios de falsas noes. Foi o que percebi, logo que cheguei junto de Dionsio: que ele estava afetado, e muito.

preciso indicar a essa gente que todo o assunto exige trabalho, e que do trabalho vem a fadiga.

Aquele que ouviu, caso realmente seja filsofo, tendo familiaridade e sendo digno da tarefa, por ser divino, considera que caminho admirvel ter ouvido e que se deve esforar, e considera ainda que a quem faz assim no possvel viver de outro modo. Depois disso, tendo-o o seu guia iniciado nesse caminho, no desiste antes de chegar a um fim em tudo, ou de ganhar fora para por si prprio ser capaz de guiar, sem aquele que indica o caminho.38

Assim, Plato pde avaliar o dspota siracusano e concluir que ele, na

verdade, se contentava com bem menos do que seria necessrio a um filsofo de

verdade. O no filsofo se contenta em formar apenas a opinio39 sobre as coisas,

considera difcil se dedicar ao exerccio de construo do saber filosfico,

caracterstica comum queles habituados apenas aos prazeres, que tambm no

possuem o hbito do esforo. Dionsio se comportou desta maneira, no exigiu de

Plato mais do que o ateniense se props a lhe oferecer e, para piorar os

posicionamentos do filsofo sobre o tirano, este ltimo escreveu sobre certos

aspectos da filosofia, sem ter o devido conhecimento e discutindo, atravs de sua

escrita, questes caras a Plato e que o filsofo considerava no aptas a serem

escritas. A questo aqui no de esconder conhecimento da populao em geral, a

inteno de Plato no era esta, mas evitar que o despreparo do leitor, ou ouvinte,

prejudicasse o acesso ao conhecimento e, mesmo evitar que o filsofo no

esclarecesse este saber como deveria. Sobre essa situao, de algum inapto a

divulgar por meio da escrita, neste caso, o prprio Dionsio, Thomas Szlezk

observa a reao do filsofo de Atenas, afirmando sua decepo:

38 Carta VII, 340 a-d.

34

lhe so dolorosas a m interpretao de seus interesses filosficos e a possibilidade do rebaixamento de coisas de cujo valor objetivo ele est profundamente convencido. Sua reao publicao dos fragmentos de sua filosofia oral por Dionsio no indignao moral, mas uma indizvel decepo humana. 40

Szlezk comenta o ato que nomeia profanao da observncia do segredo.

Neste caso, o segredo era o conhecimento de Plato aos quais os discpulos tinham

acesso e que Dionsio aproveitou para fins muito pessoais, ou seja, a satisfao de

sua vaidade perante a corte de Siracusa. Szlezk prossegue afirmando:

a observncia do segredo se apia na coao. Quem o infringe seu juramento e se expe s sanes da seita a que pertencia at ento. A observncia do segredo pretende conservar um saber que privilegia o grupo que o possui para manter a fora deste: o saber mantido em segredo , portanto, um meio para um fim.41

Portanto, Plato tentou, de fato, fazer de Dionsio um exemplo de filsofo-rei,

apesar de o prprio filsofo afirmar que no entrava em pormenores durante suas

lies ao tirano e que o mesmo tambm no exigia isso dele42. Mas as intenes de

Dionsio eram bem outras e ele as mostrou a Plato, seguidas vezes, inclusive

durante a ltima estada do filsofo em Siracusa, quando fez inmeras promessas

que beneficiariam Din e o prprio Plato e no fim no as cumpriu.

40 SZLEZK, Thomas A. Ler Plato. Traduo: Milton Camargo Mota. So Paulo: Edies Loyola, 2005. Leituras Filosficas, p. 181.

41 Ibid, p. 181. 42 Cf. Carta VII.

35

Ainda sobre o uso das palavras, Plato declara na Carta VII que a escrita

pode muitas vezes aprisionar os saberes, pois atravs das palavras o conhecimento

pode parecer reduzido a frmulas e certos assuntos no poderiam ser

transformados em conhecimento esttico. As palavras escritas poderiam ser

traioeiras e prejudicar o acesso ao conhecimento pelas pessoas comuns, enquanto

as palavras faladas podem ser modificadas medida que se faz necessrio, como

forma de esclarecimento. O filsofo faz referncia sua teoria do conhecimento

para esclarecer o que quer dizer com relao ao emprego das palavras, pois

existem cinco etapas para se atingir a essncia do conhecimento de algo, que so:

primeira, o nome; segunda, a definio; terceira, a imagem; quarta, a cincia; quinta

e ltima, a coisa conhecida. Por isso, no se pode afirmar o domnio do

conhecimento antes que este passe por todas as etapas at atingir a essncia em

si.

Voltando s duas questes que marcam o projeto poltico de Plato, ou seja,

o filsofo-rei e a cidade ideal, retoma-se a anlise do filsofo ateniense sobre Din e

Dionsio. Esta segue de forma comparativa, mostrando quem era quem. Sobre os

prejuzos do filsofo ateniense em relao a ambos, Plato afirmou:

contra os que o mataram [Din] eu me teria irritado justissimamente, e do mesmssimo modo tambm contra Dionsio, pois uns e outro, a mim e aos outros homens todos, para dizer numa palavra, fizeram muito mal. Irritar-me-ia contra os primeiros por terem matado o que os aconselhava a usar a justia; contra este, por de todo no ter querido servir-se da justia durante o seu governo. Era grande seu poder, pois, se nele realmente tivesse surgido filosofia e poder, teria iluminado suficientemente a opinio de todos os homens, helenos e brbaros, acerca da justia, e teria estabelecido para todos a verdade: que jamais seria feliz a cidade ou o homem que no conduzisse a vida com prudncia pela justia, seja por possu-la, seja por ter sido instrudo e educado justamente nos costumes que governam os homens pios.

Esse foi o mal causado por Dionsio; o resto nenhum mal me faria, ao lado disso. Aquele que matou Din, sem saber, foi executor do mesmo que Dionsio fez.43

43 Carta VII, 335 c-e.

36

Pela passagem supracitada se pode concluir que Plato conhecia e admirava

o carter de Din e via nele um possvel filsofo-rei; enquanto Dionsio, segundo o

filsofo, teve grandes oportunidades, propiciadas fundamentalmente pela esperana

que Din depositava nele, mas jamais colocou em prtica os conhecimentos

filosficos adquiridos, exceto quando, audaciosamente e indo contra as orientaes

de Plato, escreveu sobre aquilo que cria saber muito e, na verdade, sabia pouco.

O pouco saber se constata pela audcia de escrever sobre temas que o seu prprio

mestre, por prudncia, no ousou escrever44. Ainda sobre Din, Plato afirma eu

sei bem, tanto quanto possvel um homem dar garantia acerca de homens, que se

Din se tivesse mantido no governo, jamais se teria voltado a outro regime de

governo que no fosse este 45, ou seja, seguindo os caminhos da justia, como um

rei-filsofo deveria proceder, e segue falando sobre a eliminao da escravido e o

estabelecimento de leis mais justas e apropriadas46 e conclui o raciocnio:

Acontecido isso, e por um homem justo, corajoso, prudente e filsofo, na mesma conta a maioria teria a virtude, na mesma que, se Dionsio tivesse sido persuadido, teria surgido em todos os homens, numa palavra, salvando-os. 47

A afirmao de Plato diz respeito conquista da massa popular pela

sabedoria e pela virtude, coisa que o filsofo-rei saberia realizar, pois a ele dada a

condio, pelos conhecimentos filosficos, de conquistar e conduzir o povo. Cabe

aqui buscar definio da poltica. Em O Poltico Plato afirma ser a poltica a arte

de educar rebanhos, dividindo-se os mesmos inicialmente em cornudos e no

44 Os temas no ficam claros na Carta VII. Afinal, Plato se negava a escrever sobre as questes, apenas as discutiu com seus discpulos. Estas so as chamadas teorias no escritas de Plato, escritas e atribudas ao mestre por seus seguidores. 45 Carta VII, 335 e. 46 Plato no explicita que leis seriam essas em sua Carta VII, mas em sua Repblica discorre sobre leis apropriadas cidade ideal que desejou implementar em Siracusa. 47 Carta VII, 336 b.

37

cornudos, em seguida em bpedes e quadrpedes 48, esta ainda uma definio

imprecisa, sem discusso e mais adiante no mesmo dilogo se chega a outra

menos risvel. Marcel Prlot compila os posicionamentos de Plato na obra citada e

apresenta proposta mais coerente afirmando que poltica a arte de governar os

homens com o consentimento dos mesmos49. O comentador prossegue afirmando

que poltica no cincia militar ou jurisprudncia, ou ainda eloqncia, tampouco

liturgia, sendo, na verdade, a juno de cincias auxiliares, como as citadas e, por

esta razo a nica cincia real, pois no trata do particular, est presente em tudo

e no se encontra diretamente em parte alguma. Como disse Plato: consegue

unir, com habilidade, todas as coisas como num tecido50. Assim, a cincia poltica

compe e domina todos os mbitos sociais e governamentais, mas no se encontra

presa a uma nica abordagem, pois circula em todas as reas e todas as reas

dependem dela para estarem em harmonia.

Completando o projeto poltico de Plato, alm do filsofo-rei, tem-se a

cidade governada por ele: a cidade ideal, presente na Carta VII e formulada na

Repblica. Para Tiago Lara:

o mvel primeiro da especulao platnica, segundo afirmao explcita dele mesmo, na Carta VII, foi o desejo de reconstruo (ou construo) da plis, em fundamentos slidos, que possibilitassem uma convivncia humana, na justia e na felicidade.51

Na Carta VII, Plato trata da questo da cidade ideal afirmando a

necessidade de que haja maturidade entre os homens que governam, pois a

imaturidade pode conduzi-los a decises equivocadas, o que poderia ser fatal para

a cidade.

48 PLATO. O Poltico apud PRLOT, Marcel. O pensamento poltico de Plato. Revista Humanidades, Braslia, Volume II, n 5, 5-14, out/dez 1983, p. 6. 49PRLOT, 1983, p. 8. 50Id., loc. cit. 51 LARA, 1989, p. 108 et seq.

38

Para Plato, a forma de governo adequada para a cidade ideal a

sofocracia, ou seja, o poder a partir da sabedoria, pois para o filsofo somente ao

detentor da sabedoria dada a condio de governar a cidade a contento. Sobre a

sofocracia, Prlot afirma que o princpio do governo , portanto, em Plato, o

domnio da sabedoria poltica, a realeza do gnio, a soberania da inteligncia52. E,

continuando sua argumentao acerca do modelo governamental ideal para a plis

idealizada por Plato, sabendo que o poder deve ocorrer a quem tem o

conhecimento, somente t-lo no suficiente, pois o filsofo-rei tem que ter outras

qualidades e uma delas diz respeito ao seu temperamento. De nada adiante ter o

conhecimento necessrio se no se tem o domnio de si prprio, de suas paixes,

mas, entenda-se, a questo no simplesmente ser moderado, pois aquele

naturalmente moderado pode ser acomodado e por isso no fazer um bom governo,

por sua disposio vida tranqila. Tambm no a melhor opo aquele que

naturalmente violento, pois ao fazer uso dessa natureza poder levar a plis a

situaes de guerra e grandes perdas.

Prlot ainda se refere progressiva seleo do filsofo da Academia para os

cidados, at que eles atinjam a condio de polticos. A mesma teria incio na

infncia, distinguindo aqueles com melhor aparncia53, este receberia a educao

cabvel infncia; em seguida, seriam selecionados, por volta dos trinta anos, os

mais notveis, aqueles que se destacaram na primeira etapa da educao, para

receberem os ensinamentos da arte de pensar; e, por ltimo, por volta dos

cinqenta anos, ltima etapa da seleo, os que se destacaram nas outras fases e

mostraram a aquisio de grande sabedoria, passariam integrar a corte de

magistrados. Ou seja, atravs da seleo mencionada, o poder ser entregue aos

polticos, isto , aos homens aprovados, maduros e dotados de vasto

conhecimento terico, e ao mesmo tempo de grande experincia prtica 54.

Segundo Plato, ao defender a justia na plis, a sociedade composta por

cidados com aptides distintas e so elas que determinam a funo de cada um

na cidade, Prlot explica as determinaes de Plato para os trs elementos

indicativos das aptides afirmando razo: aqueles que a possuem por natureza 52Ibid., p. 9. 53 Como comentado anteriormente, a aparncia era associada, na Grcia, conduta moral. 54PRLOT, op. cit., p. 11.

39

sero destinados a governar a sociedade; sero magistrados55; sobre a

irascibilidade, os irascveis sero consagrados defesa; empregaro nisso seu

temperamento natural; sero guerreiros56; por ltimo, quanto aos que possuem,

em essncia, apetites sensuais estaro a servio da cidade, empregaro em

benefcio dela sua habilidade; sero cultivadores ou artesos57.

Os grandes conselhos de Plato para a construo da cidade ideal, tema do

ltimo captulo da presente anlise, so: primeiro, que o governante tenha em si

mesmo o conhecimento filosfico e o poder; segundo, que tenha a maturidade

necessria para governar; terceiro, que conduza a sociedade pelos caminhos da

justia. Se assim o fizer, conduzir os cidados por um caminho que os levar

felicidade plena, fim ltimo da humanidade. Mas o que Plato considera felicidade

plena? Em sua Repblica, o filsofo discutiu toda a construo da cidade e da

cidadania em busca deste fim, mas a concepo platnica de felicidade plena veio

em sua ltima obra, As Leis, publicada postumamente por Filipo de Opunte,

discpulo do filsofo ateniense. Segundo Plato:

a primeira condio para uma vida feliz no cometer por si mesmo a injustia nem ser vtima da injustia de outro. Esta condio, pelo que vejo, no muito difcil de conseguir em sua primeira parte; mas assegurar o poder que nos h de preservar de padecer da injustia sumamente difcil, e no se pode conseguir perfeitamente se no se perfeitamente bom. Assim ocorrer com a cidade: se boa, viver em paz; mas viver em guerra, tanto interna quanto externa, se m.58

55 Ibid., p. 10. 56 Ibid., loc. cit. 57 Ibid., loc. cit. 58 As Leis, 829 a.

40

A partir da anlise ora realizada se conclui, portanto, que o projeto poltico de

Plato diz respeito essencialmente ao alcance da eudaimonia a partir da existncia

de dois elementos fundamentais, ou seja, o filsofo-rei e a cidade ideal.

41

3 DA REPBLICA DE PLATO OU DA

Por sua maneira de viver e por seu mtodo de filosofar, ps diante da humanidade a clara concluso de que a busca da felicidade a mesma coisa que a busca da excelncia.

Aristteles.

3.1 A Repblica no contexto da obra platnica

Dentre todas as obras produzidas por Plato e chegadas atualidade, A

Repblica talvez seja a de maior destaque, no por ser o mais longo dilogo ou um

dos mais longos escritos, mas pela exposio mais cuidada e bem definida de

temas centrais do pensamento do filsofo. Antecedem a Repblica: Hpias menor,

Alcibades59, Apologia de Scrates, utifron, Crton, Hpias maior, Laques, Lsis,

Crmides, Protgoras, Grgias, Mnon, Fdon, O Banquete, Fedro, on, Menxeno,

Eutidemo e Crtilo60.

A Repblica tem como subttulo da Justia, dilogo poltico. Esse segundo

ttulo, referido em muitas tradues portuguesas, de mais fidelidade ao ttulo

original, Politia. que a traduo de Politia no corresponde em portugus ao

termo repblica. Segundo Jos Manuel Pabn e Manuel Fernndez-Galiano:

59 De atribuio contestada. 60 Segundo provvel ordem cronolgica, cf. BRUN, 1985.

42

a traduo exata deste [termo] seria regime ou governo da plis (ou cidade-estado); mas atravs do latim Res publica, que tem tambm este ltimo sentido e que foi empregado por Ccero para rotular sua obra sobre o mesmo tema, tem sido traduzido com este termo para o castelhano61 (traduo nossa)62.

Quanto aos textos que se seguem Repblica, temos: Parmnides, Teeteto,

O Sofista, O Poltico, O Filebo, Timeu, Crtias, As Leis, Epinmide ou o Filsofo63,

Cartas, alm de alguns dilogos que se duvida serem de sua autoria, e dilogos

apcrifos atribudos a Plato64.

Aps a elaborao de textos tratando de questes de grande valor para a

formao tica do indivduo65, Plato elaborou sua Repblica, texto no qual

apresentou uma anlise bastante ampla sobre a formao do Estado ideal e os

elementos necessrios ao bem-estar da sociedade no ambiente coletivo que a

cidade. na Repblica que Plato discute muito de sua filosofia66. No atinente a

filosofia platnica, Lara diz:

a filosofia de Plato uma grande reflexo sobre a totalidade da cultura e da vida do povo grego, com a finalidade de lanar bases ou fundamentos, para uma construo slida, que Homero e Hesodo,

61 PABN E FERNNDEZ-GALIANO in: PLATN, La Repblica. Traduccin, notas y estudio preliminar: Jos Manuel Pabn y Manuel Frenndez-Galiano. Madrid: Centro de Estudios Polticos Y Constitucionales, 2006. Coleccin: Clsicos Polticos, p. XXXIII.

62 No original: la traduccin exacta de ste sera rgimen o gobierno de la polis (o ciudad-estado); pero a travs del latn Res publica, que tiene tambin este ltimo sentido y que fu empleado por Cicern para rotular su obra sobre el mismo tema, ha sido vertido com esse trmino al castellano. 63 De atribuio contestada. 64 BRUN, op. cit., p. 18. 65 Das mais variadas questes: amor (O Banquete), sabedoria (Crmides), virtude (Mnon), entre outros. 66 No se pretende aqui sustentar a idia de que Plato escreveu uma teoria ou doutrina filosfica, como supem alguns comentadores, mas uma discusso ampla em busca de um resultado, possivelmente coletivo, acerca de temticas especficas.

43

segundo apreciao de Plato, no tinham propiciado. uma reflexo, a um tempo, crtica e constituinte.67

3.2 Objetivo de A Repblica

A proposta da Repblica de Plato a reflexo sobre uma possvel cidade

ideal, onde a sociedade compreenda e aceite a poltica que conduz seus caminhos,

o homem entenda seu papel poltico e social e, acima de tudo, onde no haja outra

opo a seguir seno os caminhos da tica, que gerariam a plenitude da cidade

pretendida. Dentre os fatores propiciadores do bem-estar social esto a tica e a

justia. ressalte-se que um e outro so interdependentes, pois da justia depende a

tica e a tica depende da justia.

H, entre as muitas discusses levantadas sobre a obra em questo, uma

que pode ter sido responsvel por atrasos na compreenso da poltica presente na

Repblica, segundo sugere Giovanni Reale:

Perguntar-se, como fizeram alguns, se se trata de uma obra de poltica ou de tica, significa formular um pseudoproblema que nasce [...] de um modo de entender poltica e tica prprio dos tempos modernos, mas que nem o de Plato nem, em geral, o do mundo grego clssico. 68

67 LARA, op. cit., p. 100. 68 REALE, 2007, p. 240.

44

Sobre a discusso acerca do carter poltico ou tico da Repblica, tem-se

ainda Taylor que afirma no haver distino, para Scrates e Plato, entre tica e

poltica, mas defende que a Repblica tem um carter fundamentalmente tico69. A

questo proposta a leitura da citada obra de Plato considerando trs aspectos

interdependentes que so concebidos como trs dos pontos fundamentais da

Repblica: a Poltica, a tica e a Cidadania.

3.2.1 A poltica

Para Plato, a Poltica, est presente a partir do momento em que o homem

entendido como ser poltico e social. A Repblica discute fundamentalmente a

vivncia em grupo, a experincia da sociedade, a insero do homem na cidade.

Portanto, Plato via o homem como ser social, como ser inserido no grupo.

Para Brun, a poltica de Plato dirigida por uma exigncia tica70. Assim

se entende a exigncia tica como a necessidade de Plato de encontrar a resposta

para as imperfeies humanas e os males polticos causados pela idia do homem

como medida de todas as coisas71. A possibilidade de resposta foi encontrada na

idealizao de uma cidade onde a poltica se faz no por uma medio to elstica

como a que transformou o homem em medida de todas as coisas, mas a justia

como medida de todas as coisas.

Com a educao voltada para a justia, Plato imaginou ser possvel

estabelecer uma experincia de igualdade cidad, com a medida de tudo passando

a ser a Justia, pois a partir de seu conceito, compreendido pelo todo da cidade, o

homem teria parmetros para medir o mundo com um olhar nico, igual ao de seus

concidados. A maior razo da cidade justamente o estabelecimento do grupo de

cidados, no qual se pode construir atravs da educao uma orientao nica de

compreenso de mundo, de medida das coisas, de modo que o parmetro

69 TAYLOR apud REALE, 2007, p. 240. 70 BRUN, op. cit., p. 151. 71 Cf. Crtilo de Plato.

45

escolhido no beneficie uns em detrimento dos outros. importante ressaltar que

Plato no discute a condio individual do homem, mas sua relao com o grupo

de convvio, pois o homem no vive isolado, mas sempre inserido na cidade.

A razo desta anlise de Plato, provavelmente, est na discrdia

estabelecida em Atenas devido s muitas e equivocadas vises de mundo: homens,

gregos, que analisavam a realidade a seu redor tendo por medida eles prprios,

gerando o choque entre os egos de poderosos e a desarmonia na cidade de Atenas

e mesmo por toda a Grcia72.

Plato discutiu essa questo no Crtilo, dilogo dedicado justeza dos

nomes e obra possivelmente anterior Repblica73, como se pode ler em suas

prprias palavras: assim me parecem as coisas, assim elas so para mim, assim te

parecem as coisas, assim so para ti74.

E se no for possvel o homem pensar seno inserido em um grupo, ento

necessrio a este homem a compreenso de sua funo no grupo, e, para

determin-la necessita de profundo autoconhecimento, ao ponto de compreender

como se encaixar na sociedade em que vive sem ferir ou invadir os espaos de

seus concidados. Mesmo que seu papel social parea menor do que o dos outros

essencial sua existncia naquele momento e naquela funo para o

funcionamento devido da sociedade. Vale ressaltar que a proposta do filsofo grego

no o que alguns75 poderiam entender como socialismo de Plato. Na

Introduo que escreveram Repblica Pbon e Fernndez-Galiano discutiram a

questo do suposto socialismo/comunismo de Plato afirmando:

A caracterstica mais saliente da Repblica platnica, para muitos que conhecem o texto s de referncia ou o tm lido com pouca

72 Um dos momentos onde a desarmonia e as diferentes vises de mundo ficam bastante claras durante a Guerra do Peloponeso, quando a disputa se d entre irmos, pois os lderes dos dois grupos em guerra so, de um lado, atenienses e, do outro, espartanos. Sobre a questo, cf. A Guerra do Peloponeso, de Tucdides. 73 Cf. BRUN, 1985. 74 Crt., 386 a. 75 Cf. Utopia de Thomas Morus, na qual se percebe a interpretao comunista dada Repblica de Plato.

46

ateno, sua constituio comunista. [...] A verdade , contudo, que a comunidade de propriedade e famlia, que Plato impe s classes regentes, , por seu carter, fim e extenso, algo inconfundvel e que, de alguma maneira, est em franca oposio ao comunismo moderno. Ao contrrio deste, no alcana toda a sociedade, mas apenas uma pequena parte dela; meio e no fim; sacrifcio e no satisfao. 76 (traduo nossa)77

Assim, conclui-se, de acordo com os comentadores acima, que a anlise de

Plato no prev um mundo igualitrio, pois trata de um agrupamento heterogneo

em suas funes e capacidades, existindo para o filsofo a necessidade de uma

educao que homogeneze a forma de compreender o mundo e o convvio na

cidade. Para Brun, a cidade, logo a partir de sua origem, um ajuntamento de

seres desiguais e dissemelhantes nas suas capacidades, nas suas aptides e nas

suas funes78. Mesmo dentro de uma educao homogeneizadora, da qual se

falou h pouco, foram previstas por Plato as muitas diferenas entre os homens da

cidade, que encaminha a discusso para a compreenso das trs ordens que a

compem: aquela que possui ouro na composio, a que possui prata e a que

possui bronze e ferro. Pelas palavras de Scrates, Plato diz a Glucon:

ouve o resto do mito. Todos vs que estais na cidade sois irmos, como diremos ao fazer o relato, mas, ao plasmar-vos, o deus, no momento da gerao, em todos os que eram capazes de comandar misturou ouro, e por isso so valiosos, e em todos os que eram auxiliares daqueles misturou prata, mas ferro e bronze nos agricultores e outros artesos. J que todos vs sois da mesma estirpe, no mais das vezes gerareis filhos muito semelhantes a vs mesmos, mas s vezes, do ouro seria gerado um filho de prata e, da prata, um de ouro, e assim com todas as combinaes de um metal com outro. Aos chefes, como exigncia primeira e maior, ordenou o deus que de nada mais fossem to bons guardies quanto de sua

76 PABN E FERNNDEZ-GALIANO, op. cit., p. LIV et seq. 77 No original: El rasgo ms saliente de la Repblica platnica, para muchos que conocem el tratado solo de referencia o lo han ledo con poa atencin, ES su constituicin comunista. [...] La verdad es, sin embargo, que la comunidad de propriedad y familia, que Platn impone slo a las clases rectoras, es por su carcter, fin e extensin, algo inconfundible y que, en algn modo, est en franca oposicin con el comunismo moderno. A diferencia de este, no alcanza a toda la sociedad, sino slo a una pequea parte della; es mdio y no fin; es sacrificio y no satisfaccin. 78 BRUN, op. cit., p. 152.

47

prole, nem nada guardassem com tanto rigor, procurando saber que mistura havia na alma deles e que, se um filho tivesse dentro de si um pouco de bronze ou de ferro, de forma alguma se compadecesse dele, mas que o relegasse, atribuindo-lhe o valor adequado natureza, ao grupo dos artfices e agricultores. Mas, em compensao, se um deles tivesse em si um pouco de ouro, ou prata, reconhecendo-lhe o valor, fizesse que uns ascendessem funo de guardio e outros de auxiliares, porque havia um orculo que previa que a cidade pereceria quando um guardio de ferro ou bronze estivesse em funo.79

O aludido mito determinante para a compreenso de que na cidade ideal

de Plato h uma escala social e esta no determinada apenas atravs do

nascimento, mas tambm e, em especial, pela essncia da alma humana. O uso de

mitos recorrente nos textos platnicos. Adiante entraremos nesta questo.

3.2.1 A tica

Retomando a discusso dos pontos principais da Repblica, passemos a

analisar a tica. Ela se faz presente quando o homem entende sua funo social e

poltica na sociedade da qual faz parte e nela se encaixa sem dvidas sobre sua

conduta em relao aos seus concidados. A questo remonta mais uma vez ao

mito citado anteriormente, no qual se fala de cidados de ouro, prata, bronze ou

ferro, pois toda a discusso proposta na Repblica diz respeito, em especial,

aceitao do indivduo de sua funo na comunidade. Mas como se daria esta

aceitao?

Plato defende que se o jovem e a criana recebessem a orientao

adequada para o convvio em comunidade, no teriam dvida sobre suas funes e 79 Rep., Livro III, 415 a-c.

48

conduziriam suas vidas e suas atividades em harmonia com o que lhes foi

determinado por nascimento e por predestinao.

As duas opes, nascimento ou predestinao, coexistem, e cada uma pode

ser igualmente determinante do caminho a seguir. Portanto, Plato no afirma que o

homem nascido de pai arteso somente ser arteso; mas, caso esteja

predestinado a s-lo, ento no ser outra coisa. O filsofo sugere aos cidados a

sensibilidade de perceber se o filho do arteso no est predestinado a algo mais,

ou se o filho do homem com capacidade de comando a algo menos do que seu pai.

Pelas palavras do personagem Scrates, em dilogo com Glucon, temos a

seguinte opinio:

[...]desde o incio, quando fundvamos a cidade, estabelecemos que devamos fazer o tempo , parece-me, a justia ou uma forma da justia. Se ests bem lembrado, estabelecemos e muitas vezes dissemos que cada um devia ocupar-se com uma das tarefas relativas cidade, aquela para a qual sua natureza mais bem dotada.

Dissemos, sim.

E que cumprir a tarefa que a sua sem meter-se me muitas atividades justia, isso ouvimos de muitos outros, e ns mesmos dissemos muitas vezes.80

Assim sendo, a compreenso do papel do homem na sociedade que

possibilitar sua opo por se adequar ao mundo, efetivando-se enquanto cidado.

Desse modo, ser um indivduo tico e justo consigo e com os outros, ou o contrrio

disto81.

80 Rep., Livro IV, 433 a-b. 81 Desde o primeiro ponto discutido a questo da justia se faz recorrente. A razo disso o fato de toda a Repblica estar fundamentada na idia de justia, que ser fruto de discusso no ltimo captulo.

49

3.2.4 A cidadania

O terceiro e ltimo ponto, a Cidadania, apresentado a partir da juno da

Poltica e da tica, pois a conduta e o encaixe do indivduo nas duas faro dele um

cidado adequado sociedade da qual parte. A compreenso do lugar de cada

cidado na sociedade o que pode conduzir o grupo todo felicidade plena, pois

se cada um se entende como deve, ento h aceitao da prpria condio e por

isso no h disputa ou inveja para com os outros. Os homens da repblica

imaginada por Plato so iguais, mas no em todos os sentidos. A igualdade est

inserida na condio deles perante a justia da cidade, pois os cidados que

comandam esta rea da repblica devem tratar a todos como irmos. que os

direitos dos cidados so iguais, independente do lugar social que ocupam.

A determinao dos lugares sociais e as diferenas encontradas e

justificadas pela origem ou predestinao so determinaes caractersticas da

origem do prprio filsofo. Plato era de origem aristocrtica, portanto, compreendia

os homens como fruto de diferentes origens, com diferentes caminhos a percorrer, o

que fica claro na educao recebida pelo filsofo ateniense, pois os filhos da

aristocracia tinham educao voltada para as artes, a filosofia e a poltica, todas

necessrias aos homens que haviam nascido para o comando da cidade.

3.3 A metodologia: dilogo e dialtica

50

Em sua Repblica, assim como em quase todas as suas obras, Plato utiliza

o dilogo para discutir as questes filosficas propostas, o que exige boa percepo

do leitor para alcanar o raciocnio do filsofo, pois mesmo parecendo apenas uma

discusso entre personagens sobre o posicionamento de um e de outro no que diz

respeito aos temas tratados , possivelmente, uma sucesso de assuntos propostos

em busca de atingir uma sentena final, uma mxima sobre o assunto, que no

necessariamente atingida.

Ressalte-se que apesar da busca por uma sentena, Plato no prope uma

idia fechada, mas uma discusso para que se chegue a um ponto comum, se for

possvel chegar a tal ponto. Caso contrrio, o dilogo contribui para eliminar erros

comuns sobre o tema, mesmo no chegando a nenhuma concluso82. Acerca desse

tipo de dilogo, Brun afirma que no final do Teeteto no sabemos ainda o que a

cincia, mas j sabemos aquilo que ela no 83. Portanto, a dialtica platnica no

necessariamente construtiva, podendo, ao contrrio, desconstruir idias

preexistentes, atravs da refutao e, assim, ligar ou manter proposies que no

foram refutadas84.

O dilogo, de nenhum modo se apresenta como um manual de filosofia, em

especial o dilogo platnico, devido mesmo sua forma, pois apresenta certo modo

desordenado, num vai-e-vem de idias e de discursos com rupturas e repeties. A

intencionalidade do dilogo difere da intencionalidade do manual. Assim:

Se o dilogo, por sua composio, se distingue do manual, difere dele antes de tudo por seu objetivo. O manual do tipo corrente prope-se a transmitir uma suma de conhecimentos, a instruir o leitor; o dilogo se fixa em um tema de estudo [...] O dilogo quer formar de preferncia a informar.85

82Cf. BRUN, 1985. 83 Ibid., p. 21. 84 Cf. SCOLNICOV, Samuel. Plato e o Problema Educacional. So Paulo: Edies Loyola, 2006.

85 GOLDSCHIMIDT, Victor. Os dilogos de Plato: estrutura e mtodo dialtico. Traduo: Dion Davi Macedo. So Paulo: Edies Loyola, 2002, p. 2 et seq.

51

O mtodo dialtico explicado por Plato, passo a passo, tanto na Repblica

quanto nas Cartas, especialmente na Carta VII. Para este mtodo so definidos os

seguintes nveis: imagem, definio, essncia e, por ltimo, cincia. Ocorre que

estes nveis no obedecem a uma ordem hierrquica, pois muitas vezes

necessrio subir e descer para se chegar cincia. Quanto ao entendimento do que

seria cincia, ou episteme86, em sua Repblica, Plato define o mtodo dialtico,

afirmando atravs de Scrates:

s o mtodo dialtico, eliminando as hipteses, caminha por a, na direo do prprio princpio, a fim de dar firmeza aos resultados e realmente, pouco a pouco, vai arrastando e levando para o alto o olho da alma que est enterrado num pntano brbaro87

E mais adiante, Scrates pergunta, em dilogo com Glucon, completando o

raciocnio que coloca a dialtica como a maior das cincias:

Parece-te, ento, que para ns a dialtica, em relao s cincias, como um coroamento, jaz l no alto e que no seria correto colocar outro aprendizado que no ela em posio mais alta? Os aprendizados j no teriam alcanado sua perfeio?88

86 Em grego: . Episteme significa cincia, conhecimento, saber que se adquire pelo estudo, pela anlise. 87 Rep. Livro VII, 533 c-d. 88 Rep. Livro VII, 534 e.

52

A episteme apenas uma das formas de conhecimento, porm parece ser a

mais importante, aquela referente ao ponto mximo do conhecimento. Difere de

outros tipos de conhecimento, especificamente da doxa89, que se traduz por

opinio. Da doxa temos a seguinte subdiviso: a eikasia90 que significa imaginao

e a pistis91 que significa crena. A episteme se divide em: dianoia92, significando

uma espcie de conhecimento mediano, ou seja, aquele que no o