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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE ARQUITETURA, ARTES E COMUNICAÇÃO CAMPUS DE BAURU PROGRAMA DE POS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO LUCANA KERCHEDO AMARAL CAVACATE Visibilidade na MPB: isotopias na composição musical de Renato Russo e sua atualização midiática – uma abordagem sincrética Bauru - SP 2006

UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE … · O texto remete-nos ao contexto e vice-versa, que, na obra literária, deixa de ser temporal, historicamente falando, para universalizar-se

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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE ARQUITETURA, ARTES E COMUNICAO

CAMPUS DE BAURU PROGRAMA DE POS-GRADUAO EM COMUNICAO

LUCANA KERCHEDO AMARAL CAVACATE

Visibilidade na MPB: isotopias na composio musical de Renato Russo e sua atualizao miditica uma abordagem sincrtica

Bauru - SP 2006

RESUMO

Diferentes linguagens se fazem presentes no mundo atual, tornando necessria a reflexo sobre suas possveis leituras. Toda leitura interage com a cultura de um meio e de uma poca; portanto, o sentido no contexto de cada leitura valorizado perante os outros objetos do mundo, com os quais o leitor tem uma relao. Teorias sobre a recepo do texto e sobre o leitor, de H. Jauss e W. Iser, alm de critrios para uma eficaz anlise da imagem, definidos por M. Jolie, portam-se como as principais bases para a fundamentao terica dessa pesquisa. A presente dissertao destaca, como objeto de estudo, uma composio musical de Renato Russo, "Cano do Senhor da Guerra", e catorze imagens retiradas da mdia impressa, especificamente a Revista Veja. Lana, como flecha a incitar dvidas, uma isotopia entre ambos os discursos, o sema guerra, levantando a questo: pode o verbal, expresso pela composio musical, ser atualizado pelo no-verbal? Esse questionamento firma-se como objetivo maior da pesquisa, sobre o qual so tecidas conjecturas e inferncias, as quais, embora cientficas, no tm o objetivo de postular, mas de oferecer alguns parmetros de leitura sincrtica, valendo-se da ligao imanente entre texto e contexto. Ao serem levantados pontos de ancoragem entre ambos os discursos, aponta-se a pluralidade textual, alcanada pela crtica leitura de diferentes linguagens. De acordo com essas consideraes, pontua-se que, estando na era da imagem, necessrio promover uma competncia crtica nos leitores das mesmas, alm da capacidade interlocutiva, onde o leitor crtico far, sozinho, a intertextualidade entre diferentes estruturas textuais, alicerado em bases cientficas; porm, ousa-se afirmar que, qualquer que seja a linguagem a ser apreendida, s ser significativa quando o receptor da mesma realizar a construo do sentido.

Palavras-chave: Comunicao verbal. Comunicao no-verbal. Linguagens. Mdia. Leitura. Recepo.

ABSTRACT

Different languages presents in the current world are done, making necessary the reflection about their possible readings. All reading interacts with the culture of a way and of a time. Therefore, the sense in the context of each reading is valorized by the other world objects, with the ones the reader has a relation. Theories about the text reception and about the reader, of H. Jauss and W. Iser, including criteria for an image effective analysis, defined by M. Jolie, behave as the main bases for theoretical support of this research. This dissertation highlights, like study object, a Renato Russo's musical composition, "Cano do Senhor da Guerra", and fourteen images taken off the printed media, specifically from the Veja magazine. Presents, like an arrow to produce doubts, an isotopic between both the speeches, the word war, lifting the matter: can the verbal, expressed by the musical composition, be update by the not-verbal? That question is the greatest goal of this research and about it we can make premises and inferences, which ones, although scientific, do not have to goal of postulating, but of offer some syncretism reading parameters, being worth itself of the immanent connection between text and context. When being lifted anchorage points between both the speeches, points the textual plurality, reached by the different languages critical reading. According to these considerations, punctuates that, being in the images age, it is necessary to promote a critical competence in the readers of the same, besides the specific capacity, where the critical reader will do, alone, the intertextual between different textual structures, supported by scientific bases; however, whatever the language to be learned, only will be significant when the reciver of the same make the sense.

Key-words: Verbal communication. Non-verbal communication. Languages. Media. Reading. Reception.

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INTRODUO

Toda boa histria , est claro, uma imagem e uma idia, e quanto mais elas estiverem entremeadas melhor ter sido a soluo do problema.

Henry James

O mundo em que vivemos est, indubitavelmente, envolvido em uma

semiose comunicacional. Diversas vertentes do processo comunicao marcam

presena no nosso dia a dia; percebemos, a cada momento, o entrelaamento entre

diferentes linguagens e vemos o quanto o entendimento humano facilitado pelo

livre trnsito que possamos executar entre elas.

Aqui entra a temtica da recepo: como receber informaes

semelhantes, em diferentes linguagens, estabelecendo as relaes de diferena e

semelhana, alm de compreender, de forma crtica e consciente, a mensagem que

as mesmas nos passam? A Esttica da Recepo privilegia a experincia esttica e

o receptor que a vivencia. Ora, como vamos utilizar, na presente pesquisa,

diferentes tipos de linguagem, precisaremos ter a teoria citada como nossa

ancoragem terica.

Tendo por objeto de estudo uma composio musical de Renato Russo e

algumas imagens miditicas extradas da revista Veja, procuraremos nos portar

como leitores crticos de tais obras; entraremos, tanto na msica, como nas fotos,

pela tica do receptor, tentando desvendar como as mesmas se entrelaam no

nosso dia a dia, captando as relaes existentes entre ambas.

Para a Esttica mencionada acima, o receptor fundamental, no por

enfatizar o sujeito, mas porque no intrprete que a obra se realiza; qualquer que

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seja a linguagem a ser apreendida, na perspectiva da recepo, s significativa

quando o receptor da mesma realiza a construo do sentido.

Segundo Jacks (1995, p.153), ...o tema recepo leva o indivduo a dar

conta dos elementos simblicos que realizam o contato do indivduo com seu campo

social. Isso nos aproxima muito de Jauss (1994), pois vemos o leitor implicado em

seu contexto scio-histrico-cultural, interagindo com o mesmo, recuperando-o e

validando a experincia receptiva.

Na opinio de Greimas e Courts (1979, p. 246), ...isotopia designa a

recorrncia de categorias smicas, quer sejam estas temticas ou figurativas. Como

receptores, analisaremos as interaes entre as isotopias presentes na composio

musical do cantor e compositor Renato Russo, usando apenas uma de suas

msicas, Cano do Senhor da Guerra e a mdia impressa, exemplificada pelo

imagtico da revista Veja.

Denotamos, ento, que temos aqui trs tipos de linguagens: a verbal

(letra da msica), a no-verbal (imagtico da revista) e a musical. Sendo assim,

devemos caminhar em direo textura dos textos, pois todo texto um tecido de

vozes, possuindo uma heterogeneidade enunciativa ou promovendo um

interdiscurso:

Interdiscurso a relao de um discurso com os outros. Para Maingueneau, o interdiscurso tem lugar especial no mundo do discurso: ao tomar o interdiscurso como objeto, procura-se apreender no uma formao discursiva, mas a interao entre formaes discursivas diferentes. Nesse sentido, podemos dizer que todo discurso nasce de um trabalho sobre outros discursos. (BRANDO, p. 90)

Nesse ponto entra a leitura de recepo implicada no texto; segundo Iser

(1996) todo texto j traz virtualmente implcito seu receptor, inscrito em orientaes

prvias para sua apreenso por um receptor real. Nosso destinatrio, ou leitor, um

ser que no recebe uma simples mensagem reconhecvel a partir de cdigos

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compartilhados e sim de prticas textuais oriundas da sua cultura. Para isso, l as

mensagens na sua intertextualidade, ou seja, ele d nfase dimenso simblica e

aos sentidos produzidos como conseqncia.

Entende-se como intertextualidade a existncia de semiticas (ou de

discursos autnomos), no interior dos quais se sucedem processos de construo,

de reproduo ou de transformao de modelos, mais ou menos implcitos.

(GREIMAS; COURTS, 1979, p. 242).

Para exemplificar isso, veremos a fotografia como um sistema plstico,

articulado com um sistema verbal e oral (a letra da composio musical e a melodia),

compondo um texto sincrtico. Partindo desse pressuposto, o sentido do texto deve

ser determinado nas relaes estabelecidas entre os sistemas. Assim sendo, h a

possibilidade de se realizar a apreenso do efeito esttico, que aquilo que nos

acontece atravs dos textos, requerendo incurses a contextos de recepo.

Ao usarmos o processo de interlocuo, mostraremos a pluralidade do

texto no-verbal. Ele se alia a outras estruturas textuais, diversas do contexto no

qual se insere. Em nosso caso, trata-se da revista Veja e o texto no-verbal,

veiculado nela, para gerar nova significao. As imagens, como a histrias, nos

informam. Os mais antigos filsofos, como Aristteles, mostraram que todo processo

de pensamento requer imagens. Assim sendo, ao desvincularmos as imagens da

Veja do seu texto informativo, elas mesmas servem-nos como informaes de fatos.

E informaes, muitas vezes, prendem-se ao nosso universo cultural e referencial.

Percebemos, aqui, a importncia de texto e contexto na presente pesquisa.

Novamente, a palavra recepo. Cada receptor de imagens encerra, em

si, uma experincia receptiva. Ele acrescenta, ao que v, sua grade de informaes

particulares, ou seja, seu ponto de vista, sua experincia de mundo que chamamos

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de real. Nada desprovido de antecedentes. Portanto, ao selecionarmos as

imagens utilizadas, examinamos nosso repertrio e aliamos a composio musical

escolha feita. O texto remete-nos ao contexto e vice-versa, que, na obra literria,

deixa de ser temporal, historicamente falando, para universalizar-se e perder as

amarras com o contexto gerador do mesmo.

As obras a serem analisadas tm um profundo vnculo com o grande

pblico. A composio musical em foco tem letra e melodia com fortes tendncias a

alcanar a popularizao, podendo mudar a estrutura social, em virtude da

significao que impregnam a velhas estruturas, remodelando-as de acordo com as

necessidades vigentes dentro do contexto scio-econmico-cultural, ao qual se

acham vinculadas. O imagtico de uma revista como a Veja, por sua vez, que circula

nacionalmente, atendendo a diversos pblicos e diversas mentalidades, atinge

tambm seu alvo, apesar da referencialidade a qual se submete a obra fotogrfica.

Todavia, no podemos esquecer que ela se submete, tambm, ideologia do seu

enunciador.

Tendo a revista Veja como contraponto de anlise, destacamos a sua

popularidade, referencialidade e grande circularidade em nvel nacional. Ela sempre

foi fonte de informaes precisas, atingindo um pblico selecionado, porm seleto e

fiel, sendo, tambm, portadora de notcias nacionais e mundiais. Ela traz, ao seu

leitor, um contato mais ntimo com a realidade, at mesmo quando est distante

dele, espacial e referentemente, como nas notcias internacionais. O universo

denotativo e conotativo onde esto inseridos seus textos, verbais ou no, interfere

na vida do leitor que, independentemente das suas prprias convices scio-

poltico-religiosas, consegue vislumbrar, atravs desse recurso miditico, novos

pontos de vista.

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Ou seja, a Veja pode ser vista como mdia criadora de opinies e de

modos de viver e sentir o contexto em que atua. Os pontos de vista, mencionados

acima, baseando-se na mdia impressa escolhida, a revista Veja, vo expressar a

ideologia da sua editoria; sendo assim, nosso segundo captulo tentar definir alguns

padres ideolgicos assumidos pela linha editorial da Veja. Porm, ambos os

discursos a serem estudados esto inseridos em realidades especficas, que podem

conduzir os destinatrios dos mesmos aceitao de valores que eles querem

impor. Caminharemos, pois, em relao ao contexto scio-histrico e formao

ideolgica nas quais os discursos citados se encaixam.

vlido mencionar que trabalharemos, com relao revista citada, com

simulacros, ou seja, no a realidade em si, mas sim os efeitos de sentido e de real

que as notcias provocam em seus leitores. Cabe a anlise a ser feita descobrir e

apontar quais efeitos so esses e explicitar algumas tcnicas trabalhadas para cri-

los, atravs do captulo que ser dedicado ao estudo pormenorizado das imagens.

Para chegarmos recepo dos discursos, precisamos entender a

competncia expressiva de ambos. Os interlocutores dos mesmos tm de pressupor

a existncia de um entendimento prvio quanto s razes que os levam a dizer

aquilo que dizem e a maneira como dizem. Segundo Brando, ...interlocuo o

processo de interao entre os indivduos atravs da linguagem verbal ou no-

verbal. ([19-], p. 91).

Segundo essa competncia, necessrio verificarmos os silenciamentos,

os no-ditos, os implcitos e os interditos, principalmente no discurso no-verbal.

Haver, entre os interlocutores, um mesmo universo de sentido? Aqui entra a

empatia (que no exige que os interlocutores experimentem os mesmos sentidos,

mas, em situaes idnticas, saibam que possam experimentar).

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O porqu da escolha do compositor Renato Russo se deve noo de

imortalidade que o mesmo representa junto a nossa cultura popular, pois mesmo j

tendo falecido e sua imagem fsica no se fazendo presente ao pblico de forma

constante, seja atravs de shows, entrevistas e afins, ele deixou uma obra imortal.

Ainda hoje, decorrida quase uma dcada de sua morte, legies de fs celebram sua

genialidade musical, propagam suas letras, vestem a bandeira ideolgica levantada

pelas mesmas, inauguram sites na internet em seu louvor e formam bandas cover,

cujo nico intuito continuar a devoo ao seu dolo.

O interessante e realmente digno de nota sua popularidade, que no se

vincula a apenas uma faixa etria, quelas pessoas que eram jovens na poca em

que ele fazia sucesso e hoje j so de meia-idade. Ele se alou a isso, pois vemos

crianas, jovens, adultos e velhos cantando e imortalizando suas msicas, usando-

as em novelas, propagandas, campanhas, ouvindo-as em rdios, festas. Enfim,

percebemos que o dolo , ainda hoje, presente na vida dos seus fs. A que se deve

a razo desse culto? Essa tambm uma das indagaes que esta dissertao

tentar responder.

Tendo, cautelosamente, tentado explicar os antecedentes da nossa

escolha, os motivos que nos levaram a eleger semelhante corpus (a composio

musical Cano do Senhor da Guerra e imagens da Veja dos anos de 1985-1992 e

2003), podemos definir nosso problema: a composio musical uma linguagem

verbal e altamente generalizante. Ela possui vocbulos que, sinttica ou

semanticamente, no indicam algo ou algum, podendo at ser considerada literria.

Em qualquer tempo que for lida ou cantarolada, sob novo contexto, pode a

generalidade da mesma ser atualizada pela linguagem no-verbal, especfica e

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individualizadora? Neste trabalho, essa atualizao ser encontrada em um

paralelismo entre a letra da composio musical e fotos da Veja.

H razes para termos escolhido apenas essa msica, dentre o vasto

repertrio de Renato Russo, alm de recortarmos apenas as imagens da Veja, sem

seu texto. O contexto histrico o ano de 2003, poca de grande conflito entre EUA

e Iraque (foi quando descobrimos que texto e imagem se aliavam, de forma

interessante). Alguns meios de comunicao, como as emissoras de rdio do Estado

de So Paulo, tocavam muito a msica Cano do Senhor da Guerra. Ela introduzia

as notcias sobre o conflito; nessa mesma poca, a revista Veja ofertava, aos seus

leitores, imagens semanais sobre o citado conflito. Ao olharmos essas imagens e

analisando-as de forma crtica, percebemos que as mesmas falavam muito mais

que seus textos verbais; fotos de soldados ou comandantes da guerra abalavam o

mundo.

No h como, no universo de referncias que temos sobre o contexto

mundial no qual estamos inseridos, desvincular informaes anteriores das

recebidas mais recentemente. Formou-se, ento, um campo semntico propcio

interpretao cientfica da guerra, com duas estruturas textuais diferentes: letra da

msica e imagens da revista. Ambas abordavam esse mesmo tema, cada qual a seu

modo.

Procedeu-se, ento, a anlise textual, usando, para a mesma, teorias de

anlise da imagem. Percebemos que, mesmo recortando as imagens do contexto

verbal da revista Veja, elas se encaixavam como ilustraes dessa composio

musical. A partir de tal inferncia, comeamos a escolher as imagens da revista

citada que melhor se amoldassem letra musical. Assim, ancorava-se o no-verbal,

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do mesmo modo que o atualizava, com novos rostos, novos exrcitos, novos

comandantes.

Buscamos, ento, informaes sobre a msica, seu ano de produo, sua

divulgao. Foi a que percebemos que havia disparidade entre o ano de produo e

ano de publicao da mesma (1985-1992, respectivamente). Todavia, em ambos,

ocorriam guerras envolvendo o mesmo ponto geogrfico. Estava, portanto, a isotopia

semntica definida e estabelecida. Caminhamos, depois disso, em busca da

intertextualidade entre texto e contexto.

Desse ponto, surgiu nosso objetivo maior na presente dissertao:

mostrar, de forma sincrtica, a atualizao da composio musical de Renato Russo

atravs da mdia impressa, valendo-nos da ligao imanente entre texto e contexto.

Muitas vezes, ao lermos imagens, atribumos a elas uma vida infinita. No caso de

nosso estudo, as imagens aliaram-se ao texto verbal, individualizando-o, ilustrando-

o. Saram do papel da revista e fizeram parte da narrativa blica transmitida pela

msica.

Validando nosso objetivo maior, busquemos apoio em Iser: ...os textos s

adquirem sua realidade ao serem lidos. Isso significa que as condies de

atualizao do texto se inscrevem na prpria construo do texto, que permitem

construir o sentido do mesmo na conscincia receptiva do leitor. (1996, p. 16).

Ainda justificando, de forma cientfica, nosso intento: No consideramos

o texto, aqui, como um documento sobre algo que existe seja qual for sua forma

, mas como uma reformulao de uma realidade j formulada. Atravs dessa

reformulao advm algo ao mundo que antes nele no existia. (ISER, 1996, p. 16).

Em imagens fabricadas pela mdia, do ponto de vista da recepo,

sabemos que o pblico-alvo preexiste s mesmas, como uma construo que pode

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atualizar-se em diversos receptores implcitos. Ao abordar, de forma interpretativa,

tais imagens, se abre um campo de possibilidades de recepo; cada imagem

enseja apropriaes particularizadas, em contextos culturais diversos. A leitura de

tais imagens deve ser pautada na contextualizao social, cultural e histrica do

receptor que a realiza.

Tal teoria, a do leitor implcito, de Iser (apud JOUVE, 2002, p. 14), aponta

o leitor como pressuposto do texto, reagindo no plano cognitivo, onde cada nova

leitura interage na atualizao da obra. Isso mostra que cada foto disseca e tambm

dissemina ainda mais o verbal, afetando o leitor. Assim sendo, o termo criado

verbalmente, senhor da guerra, j est sendo usado por outras revistas, como a

poca, por exemplo, para designar o atual presidente dos EUA.

Toda leitura interage com a cultura de um meio e de uma poca. O

sentido no contexto de cada leitura valorizado perante os outros objetos do mundo,

com os quais o leitor tem uma relao. Na presente dissertao, o verbal nos remete

ao sema guerra, sendo que, na poca na qual a msica foi feita, 1985, acontecia

uma guerra, a do Afeganisto, alm de conflitos entre Israel e Lbano, onde vrias

potncias mundiais tentavam intervir. Na poca de sua divulgao, 1992, conflitos

entre EUA e Palestina afligiam o mundo. Em 2003 (e at hoje), acontece a guerra

dos EUA contra Iraque. Coincidentemente, os lugares atacados pertencem ao

mesmo territrio geogrfico e mobilizam a ateno do mundo. O plano imagtico

interage com o cotidiano mundial, perpassando, atravs de fotos, o contexto no qual

a msica se insere. Isso infere a ancoragem na qual nos apoiamos, o

entrelaamento entre texto e contexto.

Ora, as imagens no foram escolhidas aleatoriamente, conforme j

explicamos, mas sim dentro do contexto histrico-scio-cultural da msica. Para a

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seleo das mesmas, usou-se o sema retirado do verbal, guerra, e todas as imagens

saram da mesma revista, que a Veja. Procuramos, no verbal, isotopias, as quais

ocorrem quando os signos textuais nos remetem para um mesmo lugar, e as

comprovamos atravs do no-verbal. Tentaremos assumir deveres filolgicos na

intertextualidade dos dois discursos: procuraremos, no no-verbal, as coordenadas

dadas pelo autor do verbal. Desta forma, no correremos o risco de decodificaes

absurdas.

Usando uma metodologia de pesquisa com base descritiva-dedutiva,

partiremos do binmio guerra-paz, que atravessa o conjunto semntico dos

discursos selecionados, percebendo a correlao entre os dois termos, visando

chegar a um nvel imanente e estrutura dos mesmos. Ressaltamos que essa

estrutura semntica com quatro elementos (guerra, no-guerra, paz e no-paz)

peculiar do conto popular da passamos msica popular, ttulo da presente

dissertao. Seria a mesma estrutura o alvo da sua visibilidade? Se a arte

atemporal, seria esse texto verbal, nesse particular, um texto literrio-artstico?

No podemos deixar de citar o meio pelo qual a composio musical

atingiu milhares de pessoas: o rdio. A msica, tocada por inmeras emissoras, de

canto a canto do pas, foi difundida de forma mais rpida. Sendo o rdio um

extraordinrio e barato meio de comunicao, promove o acesso de milhes de

pessoas e aqui no importa classe social ou cultura, atinge a todos sem distino.

Vale lembrar que, em 1930, j havia aproximadamente 14 milhes de aparelhos de

rdio em uso pelo mundo, sendo essa fase denominada idade de ouro desse meio

de comunicao.

J na dcada de 50, com o surgimento do rdio transistor, alm do

desenvolvimento de rdios para automveis, a msica popular ganhou destaque,

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sendo item para consumo da populao de maneira geral. E, na memria, as

imagens que o rdio evoca subsistem tento quanto as palavras que ele oferece.

Deduzimos, dessa informao, que a msica estudada, sendo repetidamente tocada

por emissoras, entrou, de alguma forma, na cabea dos seus ouvintes,

promovendo um dilogo com os mesmos, criando at sua prpria visibilidade.

Haveria semelhana entre ela e as imagens miditicas da poca?

Esperamos, com esse estudo, promover uma competncia crtica, onde

se possa mergulhar, com profundidade, na leitura dos discursos, na teia de sentido

que eles entrelaam, atravs dos exemplos de anlise que aqui sero

demonstrados. Sendo as fotos miditicas modelizadoras da prpria realidade,

seguindo os padres de seus enunciatrios, procuraremos explicitar, ao nosso leitor,

os processos de conotao que produzem a modificao do real. Estamos na era da

imagem; nada melhor que elucidar leitores naves para que modifiquem essa

postura.

Em suma: ao mostrarmos a atualizao do literrio atravs do miditico,

atravs do paralelismo entre verbal e no-verbal, deixaremos modelos de anlise

para futuros pesquisadores, os quais devem evitar o subjetivismo, entendendo as

particularidades dos discursos citados atravs de uma abordagem terica.

Tentaremos auxiliar o ato de leitura, deixando parmetros cientificamente

estruturados, provando que texto e contexto se aliam de forma imanente,

provocando assim, no ser humano, uma vontade salutar de compreender e

decodificar seu prprio mundo, bem como as linguagens que ele apresenta, atravs

de leituras provveis que possa realizar.

Nosso primeiro captulo tem como ttulo O contexto situacional: Renato

Manfredini Jr. e seu texto. Nele explicada a escolha sobre o referido autor, alguns

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dados relevantes sobre sua vida, para que seja entendida sua obra, alm de uma

anlise detalhada da composio musical, a qual representa o texto verbal da

presente dissertao.

O segundo captulo, intitulado O contexto miditico: Revista Veja e suas

imagens, mostra a ideologia assumida pela revista citada, uma entrevista com seu

redator-chefe, assim como informaes tcnicas de produo e gerao de sentido

nas suas imagens, esboando um breve histrico sobre fotografia e dois grandes

elementos significantes na mesma: a cor e o gesto.

O terceiro e ltimo captulo, As interfaces dos contextos: a msica e a

imagem, realiza a intertextualidade entre o verbal e no-verbal, detendo-se em uma

minuciosa anlise das imagens escolhidas. O dialogismo entre ambos os discursos

far reconhecvel o objetivo principal da dissertao, conforme exposto no corpo

desse texto.

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1 O CONTEXTO SITUACIONAL: RENATO MANFREDINI JNIOR E SEU TEXTO

preciso amar as pessoas, como se no houvesse amanh...

Renato Russo

Dedicaremos esse captulo explorao da vida do compositor estudado,

englobando assim a sua obra e toda influncia que a perpassa, bem como o estudo

detalhado da sua composio verbal, a qual foi o grande alicerce de nossa anlise.

Vale ressaltar que Renato Manfredini Jnior, vulgo Renato Russo, tem,

at hoje, aps nove anos do seu falecimento, fascnio junto ao pblico. Qual seria o

motivo de tamanha adorao? A que pblico se destinam suas composies

musicais? Seriam, as mesmas, instrumentos de uma ideologia ou mecanismos para

combat-la? As linhas que se seguem pretendem, modestamente, responder a

esses e outros questionamentos.

Figura 01 foto do compositor Renato Russo

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1.1 Vida

Sendo parte do nosso corpus de pesquisa a composio musical Cano

do Senhor da Guerra, no seria salutar para a presente dissertao a no

abordagem do seu compositor, o cantor Renato Russo. Entendemos toda

composio musical como parte significante em um contexto scio-histrico-cultural

e assim abordaremos compositor x poca neste captulo.

Renato Manfredini Jnior1 nasceu no dia 27 de maro de 1960, na zona

sul do Rio de Janeiro. Morou na Ilha do Governador, bairro de Leopoldina, tendo pai

economista do Banco do Brasil e me professora de Ingls. Sendo sua famlia

integrante da classe mdia alta brasileira, teve boa educao e grandes

possibilidades culturais, indo morar, aos sete anos de idade, em Nova Iorque,

cidade na qual seu pai faria um curso de especializao profissional.

Voltando ao Brasil, por volta dos seus treze anos de vida, foi morar em

Braslia, capital de nosso pas. Por volta dos quinze anos de idade teve

epifisilise (doena que ataca os ossos), voltando a caminhar somente aos

dezessete anos. Profissionalmente, foi professor de Ingls (at sendo responsvel

pelo discurso de acolhida ao prncipe Charles, da Inglaterra, quando o mesmo visitou

nosso pas), programador de rdio e jornalista, antes de ingressar na carreira

artstica.

1Disponvel em: . Acesso em: 05 jan. 2005.

http://www.jbonline.terra.com.br/inter/musicali/especiais/renatorusso

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1.2 O nome

O porqu do nome Renato Russo tem origem curiosa, j denotando a

bagagem cultural do seu portador. Russo uma homenagem coletiva ao filsofo

Jean-Jacques Rousseau, ao pintor Henri Rousseau e ao filsofo Bertrand Russel.

Realizando uma pequena abertura nessa homenagem, podemos visualizar em que

tais personagens da histria da humanidade ocidental colaboraram na ento

personalidade em formao do nosso cantor.

Jean-Jacques Rousseau, filsofo iluminista, defendia a razo como guia

infalvel da sabedoria, o universo como mquina governada por leis inflexveis, a

estrutura perfeita da sociedade sendo a mais simples possvel, sem a perpetuao

da tirania do clero e dos governantes e a no existncia do pecado original. O

Iluminismo buscaria sempre tudo aquilo que s se confirma pela razo.

Bertrand Russel foi um filsofo que pertencia ao crculo de Viena, o qual

desenvolveu teorias de carter neo-positivistas, reduzindo a filosofia ao estudo dos

fatos cientificamente verificveis, declarando irrelevantes os pseudo-problemas

metafsicos. No existia, para tal crculo, juzos a priori, mas sim a posteriori. Russel

dedicou grande parte da sua vida a estudos envolvendo a lgica-matemtica.

J Henri Rousseau foi um grande pintor, elogiado por gnios como

Picasso, Apollinaire e Braque, cuja obra tem um certo carter surrealista; os seres

que criou so, at hoje, produtos de uma imaginao frtil, buscando uma

representao do invisvel. grande representante da Arte Naf, que a arte da

espontaneidade, da criatividade autntica, instintiva, onde o artista expande seu

universo particular. A esse gnero de arte pertence a pintura de artistas sem

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formao sistemtica; o artista naf no se engaja em escolas artsticas e no se

preocupa em preservar as propores naturais nem os dados anatmicos corretos

das figuras que representa. As caractersticas gerais dessa arte so: composio

plana, bidimensional, sem perspectiva geomtrica linear e pinceladas com muitas

cores.

Deduzimos, dessa breve explanao, que Renato Russo tinha bagagem

cultural suficiente para tirar seu sobrenome artstico de tais influncias. No foi mero

acaso que o fez escolher as trs personalidades histricas citadas: a escolha o

desvenda como ser extremamente realista, que via os fatos sem o verniz social ou

hipcrita que a sociedade, s vezes, imprime a eles; entendia o mundo ao seu redor

de forma racional, onde explicaes oriundas do cu no merecem importncia; e

mostrou-se um tanto sensvel, ao admirar um pintor como Rousseau, que colocava,

nas obras, o que lhe comovia ou instigava intimamente. Entender seu sobrenome foi

de grande valia presente dissertao, pois um autor de obras que afetam o pblico

no pode ser visto isoladamente do seu repertrio scio-econmico-emotivo-

intelectual.

Detectamos tambm, aqui, uma diviso: Renato Manfredini e Renato

Russo eram duas pessoas diferentes. O primeiro teve uma vida complicada, com

muitos traumas, incertezas e inseguranas. O segundo j comeou forte, seguro,

talentoso e carismtico. Percebemos o binmio vida x carreira caminhando em

rumos diferentes e fundindo-se apenas na essncia.

1.3 Influncia cultural

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Podemos ainda afirmar, concisamente, que tamanha influncia cultural foi

a responsvel pelo tom crtico de toda sua obra, principalmente nos primeiros anos

dela, onde o questionamento de suas composies musicais levou seu pblico-alvo

ao delrio e adorao. E por denotar ser um artista engajado em seu meio, sua

poca e sua cultura, ele tentou usar grande apuro estilstico em suas composies

musicais, levando, muitas vezes, grande tempo para compor uma nova obra

(demorou um ano, por exemplo, para fazer a letra da msica ndios). Usava tambm

muitas metforas que, se no eram entendidas pelo seu pblico na ntegra, eram

repetidas de forma incondicional. A poesia presente em suas composies

encantava a todos os seus fs.

Renato sempre possuiu uma inclinao pelo punk, ouvindo Beach Boys,

Jefferson Airplane, Bob Dylan e Leonard Cohen, alm de The Clash e Eddie and the

Hot Rods. Formou sua primeira banda com pessoas da mesma classe social que a

sua, sendo seu guitarrista filho do embaixador brasileiro na frica do Sul. Depois

disso formou, com Marcelo Bonf, uma nova banda chamada Legio Urbana, devido

ao fato de chamarem integrantes de bandas locais para a voz e a guitarra,

possuindo formaes diferentes, urbanas. Em 1982, com integrantes fixos,

comearam a se apresentar em shows: Renato Russo, Marcelo Bonf e Dado Villas-

Lobos (Renato Rocha, outro integrante, ficou com a banda s at 1989). Porm, s

em 1984, com a ajuda do jornalista Jos Emlio Rondeau, fizeram seu primeiro

disco, que venderia, de incio, 50 mil cpias.

1.4 Popularidade

28

Um dos questionamentos dessa dissertao tentar entender por que at

hoje, nove anos transcorridos da morte de Renato Russo (1960-1996), as msicas

do grupo Legio Urbana, na sua maioria compostas por ele, continuam contagiando

to grande pblico, sendo cantadas por jovens, adultos e at pessoas de terceira

idade. H sites infinitos na internet sobre Renato; s em um buscador, Google, h

96.600 pginas sobre ele. H tambm, na web, 140 sites sobre o compositor. O CD

acstico da MTV, lanado em outubro de 1999, vendeu um milho de cpias,

obtendo o segundo lugar entre os mais vendidos, mesmo sem a presena fsica de

Renato e com o grupo j desfeito.

Renato Russo era extremamente culto e independente financeiramente,

Mas era, tambm, homossexual assumido, dependente de drogas e lcool. No final

do ano 1990, descobriu-se portador do vrus da Aids, mantendo isso em segredo do

seu pblico, ao contrrio de outros artistas, como Cazuza, que assumiram, perante

gigantescas platias, o mesmo problema. A partir da descoberta, tornou-se

melanclico e depressivo, tendo apenas por companhia, nas ltimas semanas de

vida, seu pai e um enfermeiro, recusando-se mesmo a ingerir o coquetel de drogas

que sua doena exigia. Entregou-se solido e, conseqentemente, morte, atitude

considerada covarde pela grande maioria das pessoas. Dois extremos, duas faces

de uma mesma moeda nada que justificasse ou angariasse pessoas para o seu

lado, nem pela sua condio material, muito menos pela sua condio fsica ou

emocional.

Como explicar sua ampla afinidade com o pblico? No pode se dizer,

pelas caractersticas citadas, que sirva de paradigma a uma gerao; muito menos

que seu exemplo de vida configure-se em atitudes futuras de outras pessoas. Mas

isso aconteceu, deixou rastros, criou legionrios. Seria, ento, o motivo de sua

29

idolatria por tantas geraes, o estilo de sua composio musical? Segundo ele

mesmo ... rock atitude, no moda. msica da frica; no msica americana.

Tem no mundo inteiro. (1994)2.

Segundo o prprio Renato Russo, ao elaborar composies para o

terceiro disco, ele se sentiu travado, pois tinha desconforto ao se imaginar o porta-

voz da juventude que o cercava. Disse, em 19863: Escrevo justamente porque no

sei. No quero que minha opinio sobre temas controvertidos, drogas por exemplo,

influenciem outras pessoas.

Entretanto, mesmo no sendo de forma intencional, ele trazia, para as

pessoas, temas como conflitos entre pais e filhos, relacionamentos, poltica, alm de

inserir citaes bblicas, budismo, frases extradas de escritores antigos, como do

portugus Nuno Fernandes Torneol (sculo XIII) ou do alemo Johann Pachelbel

(sculo XVII) e at de Lus de Cames em suas composies. Seu pblico-alvo era

lanado, de forma inconsciente e precisa, em um universo cultural extenso. Sua

liberdade para falar sobre temas sexuais tambm foi fator decisivo na conquista do

pblico, pois o pas enfrentava uma poca de liberdade, havamos sado de um

perodo longo, 21 anos, de ditadura militar (conforme explicaremos mais adiante na

pesquisa) todos os temas proibidos neste perodo eram agora revelados atravs

das suas canes irreverentes, crticas e fortemente indagadoras. As letras falavam

sobre tica pblica e privada, diferentes questes que so comuns em nosso dia-a-

dia, porm s prestamos ateno a elas ao serem ditas por outras pessoas.

Segundo ele, ... minha gerao sempre foi tachada de vazia e idiota; eu no podia

2 Depoimento extrado de entrevista disponvel em: . Acesso em: 01 fev. 2005. 3 Id. Ibid.

http://www.legiaourbana.com.br>

30

fazer uma besteira (1992)4. Russo mesmo declarou que suas letras eram

atemporais, como versos de Fernando Pessoa ou Drummond e essa afirmativa, do

prprio compositor, serve de argumento incisivo para a defesa de um grande

objetivo da nossa dissertao.

A atemporalidade uma caracterstica que denota personalidade artstica

a arte atemporal. Renato tinha sensibilidade suficiente para entender que suas

composies eram diferentes das demais de sua poca; entendia-se como

verdadeiro autor de obras de arte, que o perpetuariam pelo tempo, envergando sua

bandeira ideolgica por futuras e sucessivas geraes. Nada de modismos ou

empolgao momentnea; era a sensibilidade gerando fs, a arte alando adeptos,

cada vez mais.

Uma das grandes concluses, deste captulo da dissertao, que talvez

explicite melhor e de forma ousada o motivo da perpetuao e do sucesso que

Renato Russo tem, at hoje, que ele no era apenas compositor e cantor, mas sim

exercia o seu papel de cidado de forma consciente, participativa. Tinha uma viso

questionadora e instigante do mundo, com uma pluralidade de experincias vividas,

lutando contra as drogas, lcool, enfrentando os preconceitos por ser homossexual,

externando grande rebeldia, como se fosse um afrontamento aos seres humanos

normais. Isso criou a idia do mito ele foi mitificado ainda em vida. Vale ressaltar

que at os encartes dos seus discos incluam pginas para divulgao de entidades

humanitrias. Em 1994, ele doou uma parte da quantia arrecadada com a venda do

CD Stonewall celebration concert para a Ao da Cidadania contra a Misria e pela

Vida, do socilogo Herbert de Souza.

4 Depoimento extrado de entrevista disponvel em: . Acesso em: 01 fev. 2005.

http://www.legiaourbana.com.br>

31

Alm disso, h, em suas composies musicais, simbolismo, romantismo

e surrealismo, aliados a um vocabulrio particularmente bem elaborado e rico; seu

lirismo impressiona isso torna-se uma receita que acaba despertando interesse por

parte do pblico, principalmente em uma poca onde buscava-se a verdade, a

liberdade. A harmonia das suas msicas, baseada muitas vezes em poucos acordes

para criar contornos e saltos meldico-harmnicos, mostra um modo de unir letra e

melodia de forma original.

De maneira pouco usual a artistas lderes de bandas, at seu falecimento,

em 1996, provocou estranhamento em pessoas que nem o conheciam, devido

ampla cobertura feita pela imprensa, como jamais seria imaginado: cadernos

especiais nos maiores jornais do pas e metade do Jornal Nacional, da TV Globo,

falando sobre sua vida e seus funerais. At os dias de hoje, FMs tocam muito suas

msicas, as quais aparecem ainda como temas em novelas de grande audincia e

seus CDs tm recordes de vendas (12 milhes em 15 anos). H livros lanados

sobre o compositor, alguns com grande tiragem de exemplares como o da jornalista

Simone Assad (2000) Renato Russo de A a Z ou o do colunista do jornal O

Globo, Arthur Dapieve (2001) Renato Russo: o trovador solitrio. O produtor

musical Lus Fernando Borges e o cineasta Antonio Carlos da Fontoura pretendem

lanar o filme Religio Urbana, ilustrando a idolatria a esse grande dolo pop

brasileiro. A frase urbana legio omnia vincit (em latim: legio urbana a tudo vence),

usada pelo grupo em suas obras, encerra uma verdade maior: venceu at o tempo,

criando mais e mais legionrios a cada ano. Segundo o prprio Russo: Se eu tenho

medo que me esqueam? No; eu estou com o pblico e ele est comigo.5

5 Fala extrada do site . Acesso em: 01 fev. 2005.

http://www.legiaourbana.com.br>

32

1.5 Meio de divulgao do mito

Todavia, ainda paira uma pergunta: sendo jornalista, professor de lnguas

e com grandes possibilidades de entrosamento no panorama poltico de sua poca,

propiciado pelo cargo de seu pai e seu crculo social de relaes, por que divulgar

suas convices ideolgicas atravs da msica? Poderia fazer um livro, um artigo ou

algo do gnero; entretanto, escolheu como canal transmissor a composio musical.

Ousamos dizer que isso ocorreu em virtude da poca que a banda Legio Urbana foi

composta, fim de um perodo militar e comeo de uma era democrtica, onde o rdio

alcanaria grandes massas rapidamente, sendo um canal de ampla divulgao para

crticas, to habilmente levantadas pelas suas msicas; ele escolheu a linguagem

musical pois esse era seu talento, seu dom.

Alicerados nessa assertiva, colocamos o papel do rdio nessa

cristalizao do mito Renato Russo. Sendo sua composio musical extremamente

divulgada por esse meio de comunicao, cabe esclarecer um pouco sobre essa

relao. Segundo Burke, ... o rdio tem a vantagem de ser relativamente barato e

simples. (2001, p. 231). Todas as pessoas do nosso pas podem ter acesso ao

rdio, independente da classe social a qual pertenam. Alm disso, apresenta-se

como um meio de comunicao que, mesmo com o avano da tecnologia, jamais

ser substitudo pela televiso.

Qualquer um pode cantarolar uma melodia transmitida pelo rdio em

diferentes momentos do dia; tambm a forma como se repete, em ritmo incessante,

a transmisso de algumas msicas, acaba moldando as mesmas junto a nossa

memria perceptiva, fazendo com que as repitamos at sem querer. Isso, aliado ao

33

aparecimento de rdios para automveis, fez com que aumentasse a divulgao da

msica popular, que pde ser consumida de forma generalizada.

Realizando a simbiose entre texto e contexto, vejamos o rdio, nessa

poca, dentro do panorama scio-econmico-cultural brasileiro: samos da ditadura

e entramos em um momento de liberdade, livre expresso. Como interessante,

quase um processo de catarse, ouvir nossos anseios, criticar nossa poltica, ousar

na liberdade social, nas msicas que cantamos no dia a dia. O que imaginamos

atravs do que ouvimos ntido e preciso na nossa existncia cotidiana; o

significante se materializa. A msica expressa o anseio coletivo de um povo, une a

todos na mesma corrente ideolgica e seu instrumento de transmisso mais utilizado

o aparelho eletrnico rdio.

Todavia, seria pouco honesto com os leitores de semelhante dissertao

a no meno do rdio como meio de comunicao massivo. Esse texto produzido

para a rea de Comunicao e, como tal, ser lido por pessoas envolvidas no

processo comunicacional no qual estamos inseridos. O rdio, como aparelho que

leva um pouco de cultura, prazer e entretenimento para as grandes massas, foi de

relevante e primordial papel na divulgao da msica estudada. Conseguiu

aproxim-la das grandes massas humanas, no rotulando idade, crenas, religies

ou raas o que fez foi o dolo adquirir lugar de destaque entre seus inmeros

ouvintes que, at para se libertarem de anos de opresso, impostos pelo perodo da

ditadura, viram, nessa forma de discurso, a composio musical, a vlvula de

escape para os seus ntimos anseios. O prprio Renato conseguiu, atravs de suas

originais e conscientes composies musicais, liberar-se da classe dominante, da

qual participava por nascimento, e partir em busca do seu pblico alvo, seus

enunciatrios, que no seriam quaisquer pessoas, mas sim aquelas politizadas, as

34

quais enxergariam, naquele tipo de discurso, a bandeira ideolgica de um novo pas.

Aqui unem-se as vertentes dessa trade: composio, poca e meio de transmisso

envolvidos, de forma intrnseca. Em outras palavras: emissor, destinatrio e canal

explicando a perpetuao de um dolo da cultura nacional.

1.6 O homem, sua obra e seu contexto

Fazendo um caminhar contnuo e paralelo a tudo que j foi explicado,

temos a letra da composio musical Cano do Senhor da Guerra e o contexto na

qual esteve inserida, na poca da sua produo. Ela foi feita no ano de 1985 (apesar

de aparecer em discos apenas sete anos depois, em 1992). O ano de 1985

marcante para a histria do povo brasileiro, pois marcou o fim de uma ditadura

militar sufocante, que massacrou nossa histria por longos 21 anos.

Foi uma poca em que os militares governaram nosso pas, alegando que

o comunismo seria ameaa; surgiu o SNI (Servio Nacional de Informao), que

tirava o direito humano da livre-expresso, com a censura sendo grande entrave do

nosso povo. Essa poca foi de represso intensa, sendo que a produo cultural de

nosso pas foi praticamente paralisada. Houve queda do poder aquisitivo e aumento

das desigualdades sociais, alm de crescer mais ainda a nossa dvida externa. O

perodo foi marcado por inmeras pessoas, da classe artstica, fugindo do pas, por

no poderem, atravs de suas obras, criticar a situao vivida. Gnios da nossa

msica, como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque, por tentarem erguer a

voz contra tais atrocidades, tiveram que sair por uma longa temporada daqui. No

tnhamos o direito de nem tentar refletir e muito menos falar sobre os fatos a nossa

35

volta. Quantas msicas foram barradas ou encobertas, por caminharem

contrariamente ao regime em questo.

Entretanto, em 1985, graas ao movimento denominado Diretas J (que

comeou em 1984), tivemos a volta da nossa to sonhada democracia, com a

eleio de um presidente novamente pelo seu povo e no era um presidente de

origem militar. Acabou a censura e todo brasileiro tinha o direito de se expressar, a

favor ou contrariamente, sobre qualquer assunto. Enfim, era a poca de externar o

que habilmente e penosamente havia sido represado nos anos anteriores. Nesse

momento de incrvel mudana para nossa histria, a msica estudada foi composta;

com letra direta, sem metforas, batida rtmica seca, desfraldava a revolta por

situaes que empobreciam, naquele momento, a ordem social do mundo: as

guerras.

Mais uma vez percebemos a relao do compositor com o contexto scio-

histrico no qual se inseria. Ele no era um ser alienado de sua realidade, apenas

um cantor de rock para a massa que o idolatrava; engajava-se na situao que o

cercava, direta ou indiretamente, querendo transpass-la para o grande pblico que

poderia, atravs de suas letras, entender um pouco mais sobre o mundo quem

sabe seria at uma forma de buscarem, sozinhos e conscientemente, solues para

os problemas que eram tambm seus?

Mas aqui tambm entra uma grande curiosidade, a qual, com certeza,

instigar o leitor das presentes linhas: quais guerras seriam essas, que

atrapalhavam nosso planeta? Em 1985, com a subida ao poder do lder sovitico

Mikhail Gorbatchov, a tenso e a guerra ideolgica entre as superpotncias

comeavam a diminuir; entretanto, o mundo vinha num ritmo cclico e crescente de

guerras, onde a Guerra Fria atacava pases sem d, nem piedade, fazendo valer o

36

orgulho, a arrogncia e a dominao das duas esferas de poder do nosso globo:

EUA e Unio Sovitica.

Dentro desse panorama mundial, o Oriente sofria ataques incessantes

dos EUA, sendo a guerra entre Ir e Iraque o grande centro das atenes mundiais.

Justamente neste ano, 1985, houve o escndalo Ir-Contra, onde alguns membros

do Conselho Nacional de Segurana dos EUA, tendo como piv o tenente Oliver

North, comearam a vender armas, atravs de Israel, para a Repblica Islmica do

Ir, ento em guerra com o Iraque, pela disputa do territrio onde se fundem os rios

Tigre e Eufrates. As armas iam parar nas mos de terroristas libaneses que, em

troca, libertariam refns detidos no Lbano. Os lucros obtidos eram destinados ao

financiamento dos contra-revolucionrios da Nicargua. O Senado dos EUA abriu

investigaes sobre o assunto, mas no conseguiu se provar o envolvimento do

ento presidente dos EUA, Ronald Reagan, no caso.

Aqui entra outro vrtice da presente dissertao: o sema senhor da

guerra, ttulo da composio musical estudada e grande isotopia encontrada entre

os fatos discorridos neste contexto. Vemos, tanto na poca da escrita da referida

composio musical, 1985, na sua divulgao, 1992, como no ano atualizado que

escolhemos, 2003, pontos comuns: presidentes dos EUA, embora distintos pelas

diferentes pocas, envolvidos em guerras. Na poca da composio, Ronald

Reagan; na divulgao, Bill Clinton; na poca atual, George W. Bush.

Coincidentemente ou no, envolvidos com o mesmo assunto e no mesmo ponto

geogrfico: Iraque.

Reforando essa coincidncia, em 1992, ano que a msica foi divulgada

em um CD e passou a ser executada nas diversas rdios do pas, ocorria a

ocupao militar da Arbia Saudita pelos EUA, com os americanos ocupando o

37

territrio sagrado do Islo. A partir deste acontecimento, iniciou-se uma guerra

contra a ocidentalizao, movida por pases islmicos e tendo, novamente, os EUA

como personagem antagnico da histria mundial. Veteranos do Afeganisto e

Paquisto foram para a Bsnia, visando lutar pela independncia dos territrios

habitados por populaes muulmanas, porm sob a autoridade de no-

muulmanos.

Com tantas isotopias sociais apresentaremos, na presente pesquisa,

conforme veremos em outro captulo, a anlise de fotos retiradas da revista Veja,

onde essa linguagem no-verbal mostrar, para efeito de comprovao, a mesma

raa humana oriental lutando contra o mesmo governo ocidental, porm, em

diferentes pocas. Justapondo-se a isso colocamos a letra da composio musical

estudada e assim alcanaremos um dos objetivos primordiais do presente estudo:

mostrar que a atemporalidade do sema guerra, to bem explanada pelo verbal, s

se atualiza pelas fotos, pela eloquacidade do no-verbal; o motivo da guerra o

mesmo, as ambies humanas so as mesmas, apenas o roteiro de personagens,

os agentes dessa narrativa, os senhores da guerra, que so substitudos. Enfim, a

visibilidade alcanada pela atualizao, gerando uma nova significao, trazendo

novos paradigmas e efeitos de sentido ao leitor, o qual, atravs desta dissertao,

pode-se tornar mais crtico e consciente.

1.7 Composio musical: as diversas abordagens discursivas

Para podermos concluir com xito o presente captulo da dissertao,

pretendemos analisar a composio musical escolhida, Cano do Senhor da

Guerra, feita pelo cantor e compositor Renato Russo, no ano de 1985 e veiculada

38

pela mdia apenas no ano de 1992, no CD da banda Legio Urbana denominado

Msica para Acampamentos.

No se tem informaes precisas sobre a disparidade das datas de

composio e veiculao da msica estudada. Como j foi dito, no captulo anterior,

o ano de 1985 foi significativo para o povo brasileiro, pois samos de um longo

perodo de ditadura militar e, no panorama mundial, havia escndalos no Iraque,

envolvendo os EUA e seu ento presidente, Ronald Reagan. J no ano de 1992,

quando a msica foi inserida na conscincia das grandes massas, ocorria outra

guerra contra os pases islmicos e, novamente, os EUA como coadjuvantes no

cenrio blico, tendo como presidente George Bush (pai do atual presidente dos

EUA, George W. Bush, que veremos na atualizao das imagens), o qual foi

substitudo, pelas eleies de novembro, por Bill Clinton. Coincidncia ou no,

parafraseando o ttulo da composio musical, os presidentes americanos se

encaixam muito bem na denominao senhor da guerra, como veremos ao

analisarmos as fotos da revista Veja, no captulo 3.

Todo texto uma unidade de sentido, com diferentes tpicos a

elucidarem as relaes entre enunciador e enunciatrio:

O texto s existe quando concebido na dualidade que o define objeto de significao e objeto de comunicao e, dessa forma, o seu estudo, visando a construo de sentidos, s pode ser feito a partir da anlise dos mecanismos internos e dos fatores contextuais ou scio-histricos de fabricao de sentidos. (BARROS, 1990, p. 7).

Percebemos todo texto como um pequeno universo semntico, onde

existem diferentes tpicos conceituais que atuam, mesmo de forma implcita, na sua

compreenso. Por isso, existem diferentes abordagens para atingirmos a

significao do mesmo. Para que o texto consiga finalizar o pacto de leitura com seu

alvo, o leitor, deve-se responder a algumas perguntas: para quem se escreve, o que

39

se escreve e como se faz isso. Aliado s respostas dessas perguntas, ainda visando

alcanar o sentido do texto, usamos o repertrio do referido leitor, no qual ele se

insere e no h como fugir disso.

Convm ainda lembrar que o contexto tambm um texto; seu

envoltrio, tudo que o cerca, dando-lhe alicerces dentro do real, edificando-lhe scio-

culturalmente. Da advm a grande importncia que a anlise de todo aspecto

cultural que envolve um texto. Segundo Jouve, ... toda leitura interage com a cultura

e os esquemas dominantes de um meio e de uma poca. (2002, p. 22). O leitor tem

diversas relaes com os objetos do mundo que o cerca e obtm, disso, suas

interpretaes. E o horizonte de expectativa criado pelo texto deve ser sempre

reconstrudo, a cada nova leitura. Por isso, a importncia de se analisar imagens

desde a poca que o texto foi feito at a sua divulgao e, ainda, imagens atuais,

que reconstruiro a nossa leitura e mostraro a atualizao miditica do literrio.

Ressaltamos aqui que o contexto da palavra guerra, ao mostrar sempre os mesmos

protagonistas e o mesmo espao geogrfico, ser de suma importncia para a

significao da presente dissertao.

Sendo a composio musical uma seta certeira para se atingir grande

nmero de pessoas, ou seja, uma forma de divulgao de idias para o ser

politizado (em virtude do pblico-alvo por ele escolhido), pode ser esse texto

denominado de coletivo, onde o leitor pode ser localizado atravs do pblico no qual

participa no caso da msica escolhida, o pblico aquele que tem conscincia

poltica. Assim sendo, esse leitor nos leva no somente ao pblico contemporneo

da primeira publicao do texto, mas tambm a todos os pblicos que a obra vai

encontrar no decorrer de sua histria. Isso vem colaborar na assertiva feita no

40

pargrafo anterior, no qual justificamos a anlise do imagtico da revista Veja ao

longo de alguns anos (1985-2003).

Segundo Iser (1996, p. 72), h dois plos na construo de um texto: o

plo produtor, que tcnico, o qual fica a encargo do autor do mesmo e onde

usado todo um processo de construo, de forma consciente; entretanto, h tambm

o plo receptor, que o esttico, representando a fruio da leitura, onde um

escreve e o outro l. Quem instaura a significao de todo texto o leitor, o qual

apreende o que l com sua cultura, sua mente, suas vontades e ensejos, alm de

suas determinaes scio-histricas.

A significao do texto vem das intervenes do leitor somatizadas

construo global do texto. A partir disso, podemos situar, na composio musical,

que representa a parte da linguagem verbal desta dissertao, duas facetas: a

legvel e a ilegvel. A primeira poder ser representada pelas regras textuais,

estrutura frasal, a sintaxe e a significao s quais ela nos remete; a segunda nos

levar a considerar o jogo entre as unidades que constroem o sentido do texto.

Outrossim, no podemos nos esquecer de um conceito chave desse

trabalho, que a isotopia, atravs do qual identificamos a continuao semntica.

Veremos, na desconstruo analtica do texto, vrias idias que nos levaro ao

sema maior, senhor da guerra, bem como universalizao do mesmo, provando

ser essa linguagem no referencial e sim indicial; atualizando as estruturas

discursivas, chegaremos explicitao semntica, onde o leitor identificar as

relaes entre os vocbulos da composio musical e chegar compreenso da

mesma.

Aqui tambm aparece, segundo Eco (1983, p. 151), a competncia do

leitor. Em uma primeira grade interpretativa, usa seu conhecimento de dicionrio,

41

que lhe permite entender o contedo semntico elementar dos signos. J as regras

de co-referncia serviro para o entendimento das expresses diticas (as quais

remetem para a enunciao) e anafricas (que designam elemento anterior). Ainda

no nos esquecendo que a leitura continuar no texto no-verbal, no podemos

esquecer da competncia ideolgica, pois as fotos sero extradas da revista Veja,

que tem toda uma linha editorial, podendo o leitor da referida revista aceitar ou no

as imagens veiculadas por seu enunciador. Por todos esses fatores dissertados

acima, faremos diferentes anlises da linguagem verbal, procurando suas diferentes

marcas e como as mesmas afetam seu leitor.

1.7.1 O ttulo

O ttulo da composio, Cano do Senhor da Guerra, j leva a uma

definio: apesar do texto nos remeter a vrios sentidos, no podemos dar igual

importncia a todos eles. Tentamos aqui uma pequena abordagem hermenutica,

onde veremos um elemento em razo do todo, como define Sptizer: ...deve-se

observar primeiro os detalhes na superfcie visvel de cada obra e depois agrupar

esses detalhes e procurar integr-los ao princpio criador. (1970, p. 60).

O detalhe detectado do todo foi a expresso senhor da guerra. Vemos,

nela, o ponto mximo da presente dissertao, pois todo o imagtico a ser analisado

nos remeter a esse signo indicial. Mas vejamos, em primeiro lugar, a etimologia do

signo senhor:

Em latim, senior, oris, mais antigo, mais velho; na baixa latinidade, vocbulo senior tornou-se um tratamento de respeito, equivalente a dominus, dono da casa, senhor, proprietrio; pessoa que exerce poder, dominao, influncia; aquele que tem autoridade como rei; possuidor de algum estado ou territrio; homem indeterminado, pessoa que no conhecida ou cujo nome no se deseje revelar. (HOUAISS, 2001).

42

Percebemos, principalmente na parte final da definio transcrita acima,

que a autoridade atribuda a tal termo demonstra o domnio que um senhor pode

ter sobre outras pessoas; na sua nsia para conquistar territrios, pode chegar a

utilizar estratgias blicas (da o termo guerra no ttulo). Veremos muitas

verossimilhanas entre esse ttulo e as imagens estudadas; mudaremos o

personagem que dar referencialidade ao senhor da guerra conforme as

circunstncias contextuais. Provaremos, assim, que atualizamos o personagem

conforme o contexto, mas o termo se generaliza, amolda-se a diferentes seres

humanos, em diferentes pocas e situaes.

1.7.2 As marcas sintticas na composio musical

Para realizarmos com maior visibilidade a anlise proposta no subttulo

acima, do ponto de vista do leitor das presentes linhas, devemos, aqui, transcrever a

letra da composio musical, para que, ao ser efetivada a decomposio da mesma

e a anlise, ele tenha como parmetro a viso do todo.

Cano do Senhor da Guerra6

Existe algum esperando por voc Que vai comprar a sua juventude E convenc-lo a vencer Mais uma guerra sem razo J so tantas as crianas com armas nas mos... Mas explicam novamente que a guerra gera empregos Aumenta a produo Uma guerra avana a tecnologia... Mesmo sendo guerra santa, quente, morna ou fria

6 Composio musical retirada do CD Msica para Acampamentos, da banda Legio Urbana.

43

Pra que exportar comida Se as armas do mais lucro na exportao? Existe algum que est contando com voc Pra lutar em seu lugar J que, nessa guerra, no ele quem vai morrer E, quando longe de casa, ferido e com frio, O inimigo voc espera Ele estar com outros velhos, Inventando novos jogos de guerra Que belssimas cenas de destruio! No teremos mais problemas com a superpopulao Veja que uniforme lindo fizemos para voc! E lembre-se sempre que Deus est do lado de quem vai vencer O Senhor da Guerra ... no gosta de crianas! (RUSSO, 1992).

Devemos, em primeiro lugar, focalizar a melodia de tal composio, pois

geradora de efeitos de sentido. Ao escutarmos a mesma, percebemos trechos com

diferentes entonaes; as entonaes mais firmes nos remetem s falas do senhor

da guerra definido pelo ttulo da composio musical. Tais falas soam como

exortaes de um senhor aos seus comandados, como se ordenasse: eu quero

voc l!

Ainda nos atendo melodia, escutamos, durante a execuo da msica,

sons de jatos, no fim, como fundo musical; esses sons enviam-nos ao contexto da

produo, guerra que estava sendo travada. No h como olvidarmos a presena

dos avies porta-msseis que atemorizaram o mundo todo, nas guerras envolvendo

os EUA.

Outro efeito sonoro significativo est presente nas rimas em o: razo,

mos, produo, exportao, destruio e superpopulao. Elas nos estabelecem

sentidos, principalmente por serem rimas pobres e que indiciam apenas

racionalidade (na sua estrutura significativa). como uma cadeia de significados: a

razo humana, pela qual o homem usa suas mos para alcanar seus objetivos, que

envolveriam a produo e, conseqentemente, a exportao. Esses fins da ao

44

humana levam, pelas disputas, destruio e ao fim do homem (...j no teremos

problemas com a superpopulao).

Realizando um paralelismo entre essas rimas e o motivo de tudo isso,

pela composio musical, que a guerra, chegamos concluso que a pobreza das

rimas e dos seus efeitos de sentido so propositais, como se demonstrassem a

inutilidade das disputas blicas humanas, a pobreza de atitudes, o desrespeito pelos

seres humanos envolvidos em tais conflitos; vale a racionalidade do senhor da

guerra e pouco importam as conseqncias de tudo isso aos seus comandados.

Tambm, no fim da composio, onde escutamos uma repetio

incessante da ltima frase (O Senhor da Guerra... no gosta de crianas!),

deduzimos, advinda da, uma nfase estrutura frasal, a qual gera redundncia no

sentido. Podemos aliar texto contexto, inferindo que seria a batalha ideolgica:

americanos X resto do mundo.

Analisando, agora, a parte sinttica, utilizando as frases da composio

musical, perceberemos quais os efeitos de sentido, intencionais, que elas

perpassam ao leitor. Um dos primeiros tpicos da anlise das marcas sintticas na

composio musical estudada com relao ao tipo de verbos utilizados na

elaborao frasal da mesma. Em sua grande maioria, so verbos retirados do tempo

presente: existe, vai, explicam, gera, aumenta, avana, do, est, , espera e gosta.

Tentando compreender o uso de tal tempo verbal, chegamos concluso

que a escolha foi intencional, pois em qualquer poca que a composio musical for

pronunciada, atualizada instantaneamente, ou seja, o presente gera

atemporalidade. como se estabelecer um pacto de leitura, autor x leitor: sempre h

guerras. Uma continuidade semntica atribuda ao fato, mostrando que dificilmente

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ele tem fim, algo presente em nossa vida, independente dos motivos, pessoas ou

lugares.

Outro fator relevante o uso da forma verbal na terceira pessoa, seja ela

no singular ou plural. Isso denota uma terceira pessoa (ou pessoas) que monopoliza

a ao, entretanto no identificada. No h explicitao ao leitor, dentro do

percurso gerativo de sentido, porm ele poder se identificar, implicitamente, como o

objeto de tais verbos, ou ainda, entender que as ordens dadas pelos verbos saem

de um senhor da guerra; o enquadramento do leitor dentro da significao a qual

tais verbos remetem, pois todo texto, sem personagem explicitamente definido, gera

o jogo da leitura na imaginao de quem o l, que procurar preencher os vazios do

texto com personagens que nele se encaixam de forma significante.

H ainda alguns verbos no gerndio: esperando, contando e inventando.

Cabe aqui explicar que gerndio uma forma nominal do verbo e tais formas no

expressam nem o tempo, nem o modo verbal. Portanto o gerndio, nesse caso

especfico, mostra a continuidade da ao. Sempre haver senhores da guerra,

esperando por pessoas que lutem por eles, contando com outros para externarem a

sua ambio e inventando novas formas de domnio. A conotao extrada de tais

formas nominais muito valorosa para a compreenso da generalizao do texto

verbal estudado.

O verbos no infinitivo: comprar, lutar e vencer, tambm passam a idia de

impessoalidade, despersonificao, pois no transmitem a idia de nenhum sujeito

especfico, podendo at designar uma coletividade. Tambm expressam aes que

viabilizam um sujeito realizador a servio de algo; a impessoalidade do infinitivo dos

verbos no esconde ou camufla acordos que um leitor atento certamente

entender: algum, que pode at ser um sujeito coletivo, exerce atividade em nome

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de algum, que pode ser um destinador tambm coletivo. Como lemos: Existe

algum esperando por voc / pra lutar em seu lugar / j que nessa guerra no ele

quem vai morrer.

So dois agentes, um que faz e outro que faz fazer; compreendemos a

configurao do desejo, como se duas metades do sentido total se

despreendessem, como se o destinador do texto, apesar de implcito, exercesse

poder sobre seu destinatrio, sem margens para que nada ameaasse suas

ordens. Mais ainda: dentro dessa narrativa implcita, detectamos at um prmio

para o subjugado: Lembre-se que Deus est do lado de quem vai vencer. at

um contedo persuasivo, uma forma de convencer o destinatrio das razes do

destinador. Uma das formas de convencimento so os motivos dados para uma

guerra: uma guerra gera empregos / aumenta a produo / aumenta a tecnologia.

Cria-se uma questo at fiduciria de confiana entre sujeitos para

convencer algum sobre a necessidade de se lutar. Essa confiana denota um saber

sobre o querer do sujeito ento, comprova-se mais uma vez que o sujeito

enunciador imprime intencionalidade em todas as etapas que geram o sentido. H

ainda outro fator relevante: criada uma expectativa progressiva, que passa pela

ideologia: quem compra (tem poder, pode fazer isso), luta (pois tem, ao seu lado,

condies materiais para tanto) e, conseqentemente, vence.

No final da composio musical, os verbos veja e lembre-se, usados na

forma verbal imperativa, imprimem a conotao de ordem. Ao ordenar para que se

veja um uniforme, usando at ponto de exclamao no fim da frase, temos uma

estrutura frasal senhoril, que no admite interpelaes ou dvidas; inferimos um tom

de comando, sem rplicas. Exige-se que algum vista um uniforme, sem perguntar o

querer desse mesmo algum. A outra ordem: Lembre-se, que na sua continuao

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complementar, dentro do texto verbal, pede a lembrana de Deus (pois ele est

sempre do lado de quem vai vencer) denota a contundncia imperiosa do termo

guerra. O correto seria mostrar um Deus justo, que ficaria ao lado de quem est com

a razo, porm, a imperatividade de um senhor da guerra, incitando soldados a

lutar, no admite falhas, nem esquecimentos lembre-se, aqui, o mesmo que

saiba, esteja certo.

Deus, na frase citada, um grande destinador transcendente, que exerce

sua influncia, independentemente das circunstncias. Ele estabelece um contrato,

um pacto, entre destinador e destinatrio, porm, colocado como se fosse o

suporte do destinador, no deixando, ao destinatrio, margens para dvidas, pois

como desconfiar de Deus? No se trata de aceitar Deus como caracterizao

semntica na funo de destinador, mas sim ver isso como uma forma de assegurar

os gestos de confiana e as convices do mesmo.

Pode-se dizer, ainda, que tanto ver como lembrar exigem que o

destinatrio recorra s funes cognitivas que possui do conceito de guerra, apele

para a memria, sendo que a mesma grava impresses por toda uma existncia.

No seria essa uma forma de fazer com que a guerra e seus inmeros fatores

associados penetrassem, de forma definitiva, no subconsciente de seu guerreiro?

Lemos ainda, na composio verbal, alguns pronomes. Pela definio

gramatical, pronomes so palavras que acompanham ou substituem um substantivo,

relacionando-o pessoa do discurso. Os que so utilizados na obra estudada:

algum, voc, sua, tantas, seu e ele, mostram, novamente, o reforo feito na terceira

pessoa, ou seja, como se fosse uma narrao, onde o sujeito da frase, sempre

indeterminado, conta com uma terceira pessoa, tambm no definida, para fazer

aes por ele.

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Presume-se, aqui, uma situao de comunicao, destinador envolvendo

destinatrio, querendo forar uma aproximao, colocando-o em situao de

destaque, querendo estabelecer confiana, para que aja em seu lugar. Os pronomes

em terceira pessoa cumprem bem seu papel dentro da narrativa da guerra:

aproximam a ao do destinatrio, entretanto, afastam o destinador da mesma.

Na parte que diz Uma guerra avana a tecnologia / mesmo sendo guerra

santa, quente, morna ou fria, contextualiza-se a mensagem verbal, posicionando-a

na situao mundial do momento de escrita da composio, assim como na poca

de sua divulgao e at mesmo agora, na sua atualizao. No ano que a msica foi

escrita, 1985, estvamos no pice da guerra fria entre EUA e URSS, sendo os dois

presidentes, Reagan e Gorbachov, senhores mundiais, at intitulados,

popularmente, como donos do mundo. Na poca da divulgao da msica, 1992,

vivamos o auge da guerra santa, com os pases islmicos sofrendo nas mos dos

EUA. J em 2003, ano que escolhemos para provar a atualizao do texto verbal,

em virtude da coincidncia blica (EUA novamente no plano de guerra), temos outra

guerra, diga-se de passagem bem quente, entre EUA e Iraque.

Outro ponto de interesse so as frases pra que exportar comida / se as

armas do mais lucro na exportao?. Em 1985, houve o escndalo Ir-Contra,

onde, conforme j dissertado anteriormente, o governo dos EUA sofreu uma

investigao, por parte do Senado, pela venda ilegal de armas a pases islmicos.

Isso prova que a msica no foi feita de forma aleatria, mas sim por uma pessoa

consciente e politizada, que no dizia coisas ao acaso e sim embasada em fatores

scio-poltico-econmicos que a envolviam; tambm demonstra a intencionalidade

de seu pblico-alvo, pois no qualquer pessoa que entenderia isso, ao cantarolar

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as frases da msica, mas s aquelas que tinham uma mente politizada, aberta aos

fatos cotidianos, para apreender a mensagem implcita.

Novamente, aqui, vemos a comunicao e todo seu processo engajando-

se na composio e na recepo da obra, pois foi feito um ato comunicativo que,

para lograr xito, precisava contar com o repertrio do receptor; o emissor esperava

isso e utilizou o meio mais apropriado, que foi a comunicao massiva, expressa no

papel do rdio, para disseminar mais facilmente suas idias.

Conclumos que o contexto nos mostra as condies sociais da produo

do texto; tais condies incluem produo, circulao e consumo dos sentidos. Isso

analisar o discurso, onde os participantes do mesmo assumem o papel de sujeitos,

assujeitados s determinaes do contexto. Todo leitor, ao fazer a leitura de tal

discurso, que a composio musical, dentro do seu repertrio encontrar moldes

para as idias veiculadas e as transportar para o seu dia-a-dia. Intencionalidade da

obra, no coincidncia.

Percebemos, ainda, que ao estudarmos a parte lingstica do texto verbal,

tentamos provar a indicialidade do mesmo, ou seja, seus modos de dizer, mostrar,

interagir com o pblico e at seduzir. A linguagem foi vista inserida em um contexto

e no independente dele; procuramos mostrar sua faceta ideolgica. Foi ainda

necessrio, para o citado estudo, estabelecermos microestruturas, fazendo as

relaes semnticas entre as classes gramaticais presentes no texto, pois isso

instaurou o sentido do mesmo.

vlido tambm citar que no existem posies discursivas isoladas de

uma proposta de recepo. Quem faz o texto verbal sabe por que o faz e para quem

o faz. Sendo assim, com base nessa assertiva, partiremos, no nosso prximo tpico,

para a anlise dos modos de dizer.

50

1.7.3 As marcas da enunciao no enunciado

Para comearmos esse tpico, definamos enunciao:

a instncia de colocao em discurso da lngua saussuriana; entre a lngua e a fala devem existir estruturas de mediao. Sendo, ento, a enunciao concebida como uma instncia de mediao que produz o discurso, , ao mesmo tempo, instncia da instaurao do sujeito, alm do mundo de configuraes discursivas que permite, ao sujeito da enunciao, exercer sua competncia discursiva. (GREIMAS; COURTS, p. 147, 1979).

A comunicao do texto verbal estudado pode ser definida como uma

sucesso de estabelecimentos e rupturas de contrato entre emissor e destinatrio,

ou seja, autor da msica e seu leitor; isso nos leva para o nvel de discurso. O nvel

discursivo o patamar mais superficial do percurso gerativo de sentido e o mais

prximo da manifestao textual. As estruturas discursivas so ricas,

semanticamente.

Cabe aqui explicitar que toda estrutura narrativa transforma-se em

discursiva quando assumida pelo sujeito da enunciao, o qual faz uma srie de

escolhas (de pessoa, de tempo e de espao), contando a narrativa, transformando-a

em discurso. Para Barros, ...o discurso a narrativa enriquecida por todas essas

opes do sujeito da enunciao, que marcam os diferentes modos pelos quais a

enunciao se relaciona com o discurso que enuncia. (1990, p. 53).

Com base em toda essa ancoragem terica, veremos aqui as projees

da enunciao no enunciado e os recursos de persuaso do enunciador sobre o

enunciatrio. Analisando o discurso, definimos as condies de produo do texto.

Conclumos, disso, que no h discurso sem persuaso. Todos visam persuadir

seus destinatrios da sua veracidade, ou, pelo menos, criar uma iluso da verdade.

51

Para que isso ocorra, existem mecanismos auxiliatrios, como aqueles chamados de

efeitos de proximidade ou distanciamento da enunciao. No caso da msica

estudada, alguns recursos permitem fabricar a iluso de distanciamento, pois

muito utilizada a terceira pessoa verbal: Existe algum esperando por voc.

Esse procedimento chamado de debreagem. Para Greimas e Courts,

...debreagem a expulso, da instncia da enunciao, de termos categricos que

servem de suporte ao enunciado. (1979, p. 140). No presente estudo, a debreagem

enunciva e, conforme Greimas e Courts, ...instala, no discurso, um sujeito

distinto e distante em relao instncia da enunciao. (1979, p. 140). Tal

procedimento empregado para criar uma imparcialidade, para se neutralizar a

enunciao e at mesmo gerar a atemporalidade: em qualquer poca que a msica

for cantada poder ser atualizada, atravs de novos personagens. O fio do discurso,

no presente caso, conduzido por um observador, que dirige o desenrolar do

mesmo, d as opinies de forma neutra e quase fora o seu leitor a tomar posies,

a envolver-se com o texto lido; isso explicita a funo conativa da linguagem.

Outro mecanismo auxiliatrio na composio da veracidade do discurso

o efeito de realidade ou de referente. Ele remete s iluses discursivas de que os

fatos contados so coisas ocorridas, como se a funo do discurso fosse inserir o

seu leitor no mundo real. Esse efeito construdo a partir de um recurso semntico

denominado ancoragem, atravs do qual liga-se o discurso a pessoas, espaos ou

fatos que o receptor reconhece como reais ou existentes. Exemplificando, atravs do

nosso objeto de estudo verbal: Mesmo sendo guerra santa, quente, morna ou fria.

Os adjetivos usados para distinguir o substantivo guerra remetem o seu

leitor a diferentes guerras: a Fria (da poca que a msica foi feita, entre EUA e

URSS); a Santa (da poca que a msica foi lanada, 1992, entre EUA e a Nao

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Islmica) ou Quente (a atual, poca escolhida por esse estudo, 2003-2004, entre

EUA e Iraque). Esses adjetivos, contextualizados, ancoram nosso texto na Histria,

criam a iluso de referente e, a partir da, de fato verdico. Sendo assim, se remetem

a fatos reais, do verossimilhana ao texto.

Em outro exemplo: Pra que exportar comida / se as armas do mais lucro

na exportao, temos, novamente, outra ancoragem. Em 1985, os EUA

envolveram-se em um caso de venda ilegal de armas para o Ir, com abertura de

processo no Senado. Para colaborar nessa ancoragem, teremos a fotografia como

poderosa auxiliar; ela representar o analagon, ou cpia do real, exemplificando e

situando a letra da msica nos fatos histricos, comprovando a veracidade do verbal

porm, isso ser objeto de estudo do prximo captulo.

Todavia, mesmo mostrando que o discurso cria essa objetividade ou

demonstra, de forma ntida, essa realidade, necessrio mostrar que a relao entre

os procedimentos discursivos e os efeitos de sentido depende de cada discurso e de

como se estabelecem elos entre os elementos internos e externos de sua

construo; existe uma coerncia interpretativa. Para examinar as relaes entre

efeitos e mecanismos na construo de sentidos dos textos, caminhemos rumo ao

contexto scio-histrico e formao ideolgica em que o texto se insere.

As frases finais da composio musical: Veja que uniforme lindo fizemos

para voc! / E lembre-se sempre que Deus est do lado de quem vai vencer

mostram o uso de verbos no imperativo. O destinador, com isso, constri uma

espcie de cumplicidade com o seu destinatrio, supondo, neste, uma identificao

com aquele, isto , a capacidade de pensar o que ele pensa em seu lugar. Tal fator

decisivo para compreendermos os processos ideolgicos implcitos no texto. O

destinatrio interpelado pela ideologia do destinador, que o fora a ir para a

53

guerra, impele-o a vencer. O contexto scio-histrico mostra a fora da guerra,

principalmente ao encerrar com a frase: O senhor da guerra... no gosta de

crianas. A repetio exaustiva de tal frase, conforme j dito anteriormente, cria um

texto polifnico.

Ao ler isso, no h como no questionar: em qual guerra o fator humano

levado em considerao? Como poderia um senhor da guerra gostar de criana, se

a mesma, simbolicamente, representa a esperana da humanidade, a salvao do

homem e at da raa humana? A pureza do ser infantil no encanta nenhum senhor

da guerra, pois representa a sua anttese: egosmo (senhor da guerra) x bondade e

pureza (criana).

Tal anttese nos remete, ainda, aos jovens soldados que vo para a

guerra, lutar por um motivo que, muitas vezes, no seu, tendo at suas vidas

ceifadas pelo egosmo e a ganncia dos poderosos que arquitetaram tal conflito. A

inocncia dos mesmos liga-se prpria humanidade, indefesa aos horrores das

guerras humanas.

Ainda explorando as relaes argumentativas entre enunciador e

enunciatrio, percebemos que os mesmos so desdobramentos do sujeito da

enunciao, cumprindo os papis de destinador e destinatrio do discurso. O

enunciador o destinador-manipulador, o qual manipula os valores do discurso e

leva o enunciatrio a crer e a fazer. Renato Russo sabia a qual classe social se

destinava o seu discurso musical (quela formada poltica e ideologicamente seres

politizados e no alheios ao seu contexto). Ao enunciatrio cabe, outrossim,

interpretar e fazer a ao subseqente. No percurso gerativo de sentido, vemos mais

claramente essas relaes argumentativas, pois h mais pistas da enunciao. Aqui

54

entram dois aspectos da manipulao: contrato entre enunciador e enunciatrio e

meios empregados na persuaso.

Para entendermos os contratos, devemos achar, no discurso, pistas

deixadas pelo seu enunciador, nas quais ele considera a relatividade cultural e social

da verdade. Ao informar fatos cruis, porm verdicos, como: ... a guerra gera

empregos / aumenta a produo / avana a tecnologia e misturar isso com fatos

decorrentes, que estavam acontecendo no momento da produo musical, como:

Pra que exportar comida / se as armas do mais lucro na exportao? ou mesmo:

Ele estar com outros velhos / inventando novos jogos de guerra (onde tem, como

referentes, Ronald Reagan e Gorbachov, no pice da Guerra Fria entre EUA e

URSS), o destinador prope, ao destinatrio, um contrato de veridico, no qual este

acredita nos valores sustentados pelas afirmaes, pois os mesmos so alicerados

pela realidade. So esses elementos que acabam gerando a coerncia interpretativa

do texto.

o discurso construindo a sua verdade, o efeito de sentido verdico

almejado pelo seu destinador. Essas marcas analisadas, ou melhor, pistas deixadas

pelo discurso, de forma intencional, ao remeterem a fatos reais, fazem com que o

enunciatrio as reconhea e as aceite. Representam, mesmo, uma perfeita

ancoragem, de onde se atam as duas pontas do discurso, a intencionalidade e a sua

veracidade, provando que ser convencido pelo mesmo torna-se algo muito fcil.

Desse modo, o enunciador leva em considerao uma espcie de conhecimento

compartilhado, que ele acredita que seu enunciatrio possua.

Com relao aos meios usados pelo enunciador para persuadir, podemos

citar os recursos e as formas de implicitar ou explicitar contedos. Nesse caso,

podemos exemplificar com os subtendidos, os chamados contedos pressupostos,

55

vistos na impessoalidade do pronome indefinido algum, que faz, quem l, querer

encontrar uma denominao para esse algum, esse voc, o qual parece instigar o

leitor, seu destinatrio poderia at ser uma submensagem, uma implicitao de

que voc seria o prprio leitor da composio, o qual est merc de um senhor da

guerra. Instaura-se, portanto, um jogo na cabea do destinatrio, mostrando que

chamado a fazer algo por algum, chamado a tomar atitudes, quase cobrado por

isso.

Segundo Iser (apud JOUVE, 2002, p. 102), o leitor, ao usar

representaes que lhe so prprias, implica-se no texto. Essa volta para si faz o

verdadeiro valor da leitura, pois quando o destinatrio entrev a si prprio em um

processo do qual participa, temos o momento central da experincia esttica.

Decifrando, o leitor se questiona sobre seus modos de conceber os sentidos da

leitura feita; isso a justifica como real, tornando-a uma atividade crtica e consciente.

Essas mesmas relaes argumentativas, se vistas do ponto de vista das

operaes de enunciao, remetem-nos aos jogos do processo comunicativo e,

obedecendo aos sentidos do contexto, falaremos sobre a interao. Segundo Pinto:

Interao interpelar e estabelecer relaes com o receptor, na tentativa de agir

sobre ele. (2002, p. 66).

Justifica-se, sem deixar margem dvida, a escolha de verbos e

pronomes que denotam impessoalidade, pois tal opo faz com que o destinatrio

se encaixe neles, personalizando-os; ora, da mesma forma explicamos o uso da

forma nominal gerndio, pois a mesma fortalece a idia de um processo em

andamento, sem um fim definitivo, e dos verbos com valor performativo (ver e

lembrar).

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Aqui vale explicitar a expresso valor performativo. A mesma est ligada

aos verbos informar e convencer. Se entramos nessa fase da recepo do texto,

devemos distinguir os efeitos concretos do texto, pois h o efeito global, que exprime

as conseqncias globais do texto sobre a sociedade, e o efeito particular, que seria

o que a obra produz no indivduo. Sendo assim, temos a composio musical como

uma forma de comunicao mais dirigida, atingindo a muitas pessoas pelo seu canal

maior de transmisso, que o rdio. Ento, validamos aqui seu efeito global, pelo

nmero de pessoas atingidas pela mesma. Se os verbos usados com valor

performativo, citados no pargrafo anterior, pretendem convencer o seu destinatrio

do valor da guerra, usamos aqui as definies textuais propostas por Jauss (1994, p.

107), que dizem que a obra pode pr-formar comportamentos, motivar uma nova

atitude ou transformar as expectativas tradicionais. Ser que o leitor, ao instaurar a

significao, entende o jogo de manipulao entre poderosos (senhores da guerra) e

seus subordinados?

Finalmente conclui-se, nesse tpico, que na recepo do texto verbal, o

leitor-destinatrio adentra pelo mesmo, observando a verossimilhana dele com a

realidade, a seqncia de aes que definem essa semelhana, ancorando-se no

contexto da mesma e chegando, assim, significao total do texto. a

comparao de um texto com uma renda de Valenciennes, onde uma seqncia

engaja-se outra, na construo total de sentido. Lendo o texto, de forma crtica,

seu leitor decifra sua linguagem simblica, construindo sua recepo pelos pontos

de ancoragem na realidade. Mais ainda: tendo tantas palavras relacionadas ao sema

guerra lutar, vencer, armas, morrer, ferido, inimigo, jogos de guerra, destruio e

uniforme cria-se a isotopia, onde os signos textuais remetem todos a um mesmo

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lugar, proporcionando continuao semntica e atendendo a todos os objetivos da

enunciao.

1.7.4 As marcas de sentido e de real

A presente dissertao no poderia invalidar, ou mesmo deixar passar de

forma desapercebida, a msica incidental que se instala no fim da composio

musical estudada. o hino da Guerra de Secesso norte-americana. Tal guerra,

apesar de no ter ligao aparente com a composio musical estudada, a no ser

do ponto de vista geogrfico, pois remete ao mesmo pas, EUA, o qual foi trabalhado

nos tpicos anteriores (pela participao dos EUA nas guerras, nos momentos de

produo e divulgao musical, comprovada pela ancoragem contex