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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO”
FACULDADE DE HISTÓRIA, DIREITO E SERVIÇO SOCIAL
MÁRCIA CAROLINA DE OLIVEIRA CURY
JULIO CÉSAR JOBET E A CULTURA POLÍTICA DO SOCIALISMO CHILENO (1957-1973)
FRANCA 2007
MÁRCIA CAROLINA DE OLIVEIRA CURY
JÚLIO CÉSAR JOBET E A CULTURA POLÍTICA DO SOCIALISMO CHILENO (1957-1973)
Dissertação apresentada à Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho” – Faculdade de História, Direito e Serviço Social, para a obtenção do título de Mestre em História. Área de Concentração: História e Cultura Política. Orientador: Prof. Dr. Alberto Aggio.
FRANCA 2007
Cury, Márcia Carolina de Oliveira Júlio César Jobet e a cultura política do socialismo chileno (1957-1973) / Márcia Carolina de Oliveira Cury. –Franca : UNESP, 2007 Dissertação – Mestrado – História – Faculdade de História, Direito e Serviço Social – UNESP.
1. Intelectuais – História – Chile. 2. Chile – História política. 3. Júlio César Jobet – Crítica e interpretação. 4. Socialismo – História – Chile. CDD – 983.06
MÁRCIA CAROLINA DE OLIVEIRA CURY
JULIO CÉSAR JOBET E A CULTURA POLÍTICA DO SOCIALISMO CHILENO (1957-1973)
Dissertação apresentada à Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho” – Faculdade de História, Direito e Serviço Social, para a obtenção do título de Mestre em História. Área de Concentração: História e Cultura Política.
BANCA EXAMINADORA:
Presidente: ___________________________________ Orientador: Prof. Dr. Alberto Aggio
1º Examinador: ___________________________________ Prof. Dr. Marcos Alves de Souza – UNIFRAN
2º Examinador: ___________________________________ Profª Drª Teresa Malatian – UNESP/Franca
Franca, ___ de ____________ de 2007.
AGRADECIMENTOS
Agradeço ao meu Vi, que me ensina todos os dias a sutil diferença entre dar as mãos
e acorrentar a alma. Obrigada por sua constante presença, pela paciência, por suportar crises
e dias mais difíceis, tornando-os mais felizes para mim. Enfim, por ser quem você é, esta
pessoa que se mostra especial em cada gesto do dia a dia e que me faz querer me tornar
alguém melhor. Obrigada por existir e por fazer parte da minha vida.
À minha mãe, a quem eu tanto amo e admiro. O seu poder de superação e a força
com que enfrenta o peso das injustiças deste mundo sempre foram a minha inspiração para
“crescer”. Ao meu pai, Mario, e à Teresa; figuras que à sua maneira estão sempre presentes e
contribuindo para cada passo que dou.
À grande família: meu irmão, Claudio, esta personalidade controversa e muito
marcante na minha formação. À minha nova família, Dona Jeusa e Wagner, pessoas especiais,
com as quais sei que sempre posso contar. À Dinha e à Tatiane, família que pude escolher e
que sempre fará parte da minha vida.
À Érika, amiga são-paulina com quem compartilho sofrimentos e alegrias pelo
futebol e pelos encontros e desencontros da vida. Aos meus “bichinhos” Sandrão e Mylla,
seres que não entendem o significado disto, mas que sentem o quanto são queridos e a alegria
que trazem por fazer parte da família.
Ao meu orientador, Alberto Aggio, obrigada pela oportunidade e por acreditar no
meu trabalho. Aos professores presentes na banca de qualificação, Teresa Malatian e Marcos
Alves, por seus questionamentos e sugestões esclarecedoras e muito enriquecedoras para a
finalização deste trabalho. Ao professor e colega Fabio Franzini, por sua gentileza e
disponibilidade para ajudar.
Devo registrar ainda as pessoas que tornaram a viagem ao Chile uma experiência
inesquecível e muito frutífera. Primeiramente, agradeço à colega Janaína Capistrano, por ter
facilitado as coisas para mim com a sua atenção e dicas infalíveis.
Agradeço ao Sr. Mario e à Dona Gladis por me receberem com tamanha gentileza em
sua residência. Às figuras simpáticas e sempre atenciosas que conheci nas livrarias chilenas e
que mesmo à distância estão sempre dispostas a atender. Assim como ao Sr. Alejandro,
funcionário da Biblioteca Nacional, e à Gina Morales, secretária do PS, que com inestimável
atenção, contribuíram muito para a agilidade das minhas pesquisas. Aos professores Julio
Pinto, Luiz Ortega e Juan C. Gómez, pela atenção e disponibilidade para discutir sobre o meu
objeto de pesquisa. Agradeço também a CAPES pelo financiamento da pesquisa.
RESUMO
Em grande parte dos países da América Latina alguns intelectuais se destacaram por
proporem não só interpretar a realidade política de seus países, mas também intervir na
mesma de maneira a transformá-la. Entre eles, muitos mantiveram uma colaboração orgânica
com o movimento político e partidário da esquerda. Em meio ao debate de interpretações do
desenvolvimento nacional e de propostas de ação política para a América Latina, o Chile se
destacou na participação de intelectuais na formulação de projetos de ação que influenciaram
a arena política do país ao longo do século XX. Partindo do debate em torno da interação
entre os intelectuais e a cultura política, o presente trabalho tem por objetivo refletir acerca do
papel do intelectual Julio César Jobet (1912-1980) na cultura política do socialismo chileno.
Vinculado organicamente ao Partido Socialista, Jobet foi dirigente desde a sua fundação e
destacou-se na formulação do pensamento socialista e dos princípios teóricos que o
animariam. Buscaremos apreender a singularidade do pensamento deste intelectual por meio
das interpretações e propostas expressas nos seus escritos, nos debates tanto no interior do seu
partido como com as demais forças de esquerda da política nacional, de maneira a apreender o
alcance e a influência da sua produção nos rumos do socialismo chileno.
Palavras-chave: Intelectuais, Cultura política, Socialismo, Chile, História política, América
Latina.
ABSTRACT
To a large extent of the countries of Latin America some intellectuals attracted attention not
only for commenting on the political reality in their countries, but also intervening in order to
transform it. Among them, many kept an organic collaboration with political and partisan left-
wing movement. In the midst of the debate of interpretations of national development and
proposals for political action for Latin America, Chile stood out because of the participation
of intellectuals to the formulation of action plans that influenced the country’s political arena
throughout the twentieth century. Starting from the debate on the interaction between
intellectuals and political culture, this work aims at reflecting about the role of an intellectual
called Julio César Jobet (1912-1980) in Chilean socialism’s political culture. Organically tied
to the Socialist Party, Jobet was its leader since its foundation and outstood in the formation
of the socialist thinking and the theoretic principles that would drive it. We will seek to get
hold of the singularity of his thought through the interpretations and proposals expressed in
his writings, in the debates inside his party as well as with other Chilean left-wing groups, in
order to apprehend the reach and influence of its production in the routes of Chilean
socialism.
Keywords: Intellectuals, Political culture, Socialism, Chile, Political History, Latin America.
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO....................................................................................................................7
CAPÍTULO 1
O SOCIALISMO CHILENO: HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA..................................15
1.1 O socialismo chileno: das origens ao período da UP......................................................16
1.2 Elementos da historiografia do socialismo chileno........................................................39
CAPÍTULO 2
A EXPECTATIVA DA MUDANÇA.....................................................................................52
2.1 Transformações na cultura política do socialismo chileno............................................53
2.2 Uma nova configuração política e ideológica.................................................................67
CAPÍTULO 3
JULIO CÉSAR JOBET E A CULTURA POLÍTICA SOCIALISTA...............................90
3.1 Análises e debates: as faces de um protagonista............................................................91
3.2 Julio César Jobet e o socialismo:
a construção de uma identidade partidária........................................................................109
CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................127
FONTES.................................................................................................................................134
REFERÊNCIAS....................................................................................................................136
7
APRESENTAÇÃO
Praticamente desconhecido no Brasil, o chileno Julio César Jobet (1912-1980) se
insere num grupo de homens que buscou, ao longo da sua trajetória, aliar a atividade
intelectual à prática política no intuito de contribuir, de uma maneira ou de outra, para a
transformação da sociedade. A trajetória deste intelectual e os aspectos mais relevantes do seu
pensamento se relacionam diretamente com a história do socialismo chileno e, em especial,
com o contexto da experiência política que buscava a construção do socialismo por meio da
democracia, um dos momentos cruciais da história daquele país.
Membro do Partido Socialista do Chile (PS) desde a sua fundação, em 1933, Jobet se
dedicou à produção teórica, à difusão das idéias e da trajetória socialista, ao debate político
com diferentes grupos políticos do país e a representar o PS em diversos encontros políticos
na região. A sua atuação se deu principalmente no campo teórico e na vida intrapartidária, não
se constituindo em um homem vinculado à vida político-institucional, já que não ocupou
cargos públicos.
Jobet nasceu em Perquenco, uma pequena cidade chilena, em 1912. Sua vida pública
se desenvolveu a partir da década de 1930 e esteve compreendida entre duas profundas crises
sociais: um golpe de Estado ocorrido em 1924 – que consolidou no poder Carlos Ibañez, até
1931 –, ante o fracasso do parlamentarismo, e o golpe militar de setembro de 1973 que
destituiu Salvador Allende e deu um duro golpe na democracia do país. O descendente de
agricultores franceses realizou seus estudos secundários no Liceo de Hombres de Temuco.
Continuou seus estudos no Instituto Pedagógico da Universidade do Chile e recebeu o título
de Professor de História, Geografia e Educação Cívica, cujo trabalho para a obtenção do título
se destinava a pesquisar as idéias dos primeiros pensadores da questão social no país.
O seu trabalho historiográfico começou a se destacar a partir da década de 1940 e se
enquadrou num período de mudanças de enfoque acompanhada de uma nova abordagem
metodológica apreendida pelas novas gerações de historiadores que, entre outros métodos de
análise, assimilaram o marxismo como concepção de mundo e forma de construção do
8
conhecimento histórico. Seu trabalho veio representar uma proposta de ruptura com a
historiografia até então predominante.
Como membro do PS, Jobet também se dedicou, desde a década de 1930, à
publicação de textos socialistas em periódicos nacionais e de outros países da região.1 De
acordo com Jobet, a sua inclinação política tem origem na sua família e na realidade que o
cercava, marcada por uma profunda desigualdade social. Segundo ele, seu pai lhe dava lições
libertárias, citando idéias de Jean Jaurés – influência expressada até no nome dado às terras
cultivadas pela família: La Bastilha.2
Jobet publicou diversos trabalhos acerca do pensamento social chileno, destacando
os primeiros autores que se debruçaram sobre os temas políticos e sociais do país, localizados,
principalmente, no século XIX, numa tendência literária que se tornou referência no país por
seu pioneirismo no estudo da denominada “questão social”. Além disso, seus ensaios estão
entre as principais referências da interpretação marxista da história nacional, com abordagens
acerca de temas políticos desde a fundação do Estado chileno, até temáticas que ainda
atingiam a sua geração, como o imperialismo, o movimento operário e o desenvolvimento
político do país.
O trabalho de Jobet é parte da história do pensamento marxista na América Latina.
Sua perspectiva central encontra-se referida à análise da formação e das contradições internas
das sociedades latino-americanas. Outra dimensão fundamental do seu trabalho foi a
elaboração de projetos políticos de transformação, caracterizando sua produção como uma
tentativa de transplantar as concepções da abordagem marxista para a análise da sociedade
chilena. Este encontro entre as particularidades da realidade local e a teoria marxista adquiriu
variados contornos, de acordo com a lógica da complexidade que compõe o subcontinente. A
interpretação histórica da formação desses países expressou o desafio que os intelectuais
contemporâneos enfrentaram na utilização dos conceitos marxistas diante das nossas
especificidades.
1 Em 1935 Jobet elaborou o manual intitulado Estructura y ritmo de las doctrinas sociales (1760-1930), e fundou com seu amigo Juan Picasso o periódico El socialista de Cautín. Em 1938, já colaborava com o periódico socialista argentino, La Vanguardia. 2 ROBNOVITCH, Rosa. Un ensaysta quimicamente puro. La Nación, 12 sept 1971, Suplemento, p. 15
9
Pode-se considerar que a contribuição de Jobet para o pensamento político chileno
fez dele um protagonista da história política do país. Homem que viveu os dilemas do
desenvolvimento de um partido que, embora inicialmente se definisse como classista, assumiu
uma concepção socialista difusa, para, em seguida, adotar uma postura concertacionista até
meados da década de 1950. Jobet buscou, ao longo da sua trajetória, implementar uma
identidade e coesão internas ao PS, sempre em torno de uma perspectiva classista e
revolucionária.
Ao mesmo tempo, entendemos que, ao indicar as continuidades e contradições da
história do país, Jobet buscou apresentar uma nova proposta política, identificada ao partido
no qual militou, e contribuiu ativamente para a formulação das concepções revolucionárias,
constituindo-se numa das principais referências intelectuais da organização socialista. A
trajetória intelectual e a atuação política de Jobet estiveram, portanto, intimamente vinculadas
à sua fidelidade partidária.
Compreende-se a atuação de maior importância deste intelectual socialista no
contexto do final dos anos cinqüenta, período no qual se identifica em parte da sociedade
chilena um descontentamento com a dinâmica política pautada em compromissos e alianças
entre diferentes setores, que visavam políticas integradoras, mas que não se mostraram
eficientes para realizar mudanças estruturais no país. Internamente, o Partido Socialista
viveria uma mudança que acarretaria transformações na sua cultura política, com a
predominância de elementos rupturais, dos quais Jobet destacou-se como um expressivo
representante.
Entendemos que o pensamento socialista, composto de diferentes correntes e
perspectivas, representou um elemento de fundamental importância no complexo conjunto de
mudanças que se processaram no cenário chileno no século XX. Suas proposições foram
animadas por diferentes concepções traduzidas em manifestações intelectuais e políticas que
conferiram à ação dos seus grupos um conteúdo teórico e ideológico ao longo das suas
trajetórias na política nacional. A abordagem das suas formulações teóricas, que nos indica
10
uma leitura da realidade daquele país e suas perspectivas políticas, nos remete para a sua
singularidade.
A perspectiva do presente trabalho entende que as idéias são fruto de uma produção
social, e os intelectuais certamente podem ser encarados como desveladores das
representações e práticas sociais, assumindo o papel de um analista da sociedade e propagador
das aspirações desta.3 Trata-se de analisar o alcance e a responsabilidade dos teóricos sobre os
processos políticos, e de considerar a dimensão que assume a referência intelectual na
delimitação e difusão de concepções de mundo, de elementos de coesão para determinados
grupos ou na sua organização interna e também no exercício da pressão política.
Neste processo, o referencial teórico construído pelos intelectuais, em especial
aqueles que, assim como Jobet, apresentam como parte integrante da sua atividade a prática
política, termina por expressar elementos de uma cultura política específica em um momento
determinado, por meio de um conjunto de referenciais que se relaciona e contribui para a
definição de uma identidade voltada a uma coletividade. Esta é uma concepção em que o
universo da cultura política também se constitui de uma produção intelectual; universo
compreendido numa sistematização de discursos capaz de explicar a realidade, gerar
identidades coletivas, orientar práticas sociais e articular projetos de futuro.
Para a compreensão deste processo, o conceito de cultura política deve estar pautado
em sua historicidade, na qual o desenvolvimento de determinado conjunto de crenças, atitudes
e símbolos ocorre de acordo com determinado contexto histórico, como uma resposta àquilo
que se vive. A partir de tais pressupostos, para identificar o papel do intelectual na cultura
política do socialismo, deve-se avaliar os diversos elementos que a constituem e considerar a
especificidade do seu contexto, a partir do movimento histórico das conjunturas.
A mesma perspectiva deve ser adotada para a compreensão do papel que exerceu
Jobet. É necessário inseri-lo no ambiente político e intelectual vivenciado pelo Chile a partir
do início do século XX, especialmente a assimilação de novas teorias que permitiram
formulações muito significativas para o debate da esquerda do país. Tais teorias passaram a
3 FREDRIGO, Fabiana de Souza. Os intelectuais e a política nos regimes autoritários: um estudo do caso chileno. Estudos de História, Franca, v. 7, n. 2, p. 231-264, 2000.
11
influenciar o movimento operário e, gradativamente, parte importante dos intelectuais que se
vincularam a ele. Nesse período, um novo panorama político levou à cristalização de um
movimento de esquerda influenciado pelos ideais marxistas, que se tratava de uma entidade
indiferenciada multiplicada em uma gama de vertentes socialistas ou emancipadoras.4
Em outras palavras, é preciso identificar o lugar social e político do intelectual,
relacionando tal descoberta com sua produção e sua ação no meio em que constrói suas
relações, possibilitando a análise mais precisa da sua interferência e da relação da sua
produção com um processo político e com a coletividade social. Visando apreender as teorias
produzidas, o historiador necessita, mais do que uma articulação puramente mecânica entre
contexto e conteúdo, integrar no campo das investigações os paradigmas intelectuais, as
correntes filosóficas que interferem, direta ou indiretamente, nas representações e visões de
mundo.5
A compreensão da dimensão ideológica de um partido político constitui um rico
campo de análise para o historiador na medida em que permite apreender o que ele define
para o eleitorado, como programas, discursos da formação, etc.6 Ou para aqueles que se
encontram na ideologia política do partido, que consiste em uma grade comum de leitura dos
acontecimentos, capaz de fundar uma solidariedade de ação e, para além de toda finalidade
prática, um conjunto de crenças que permite integrar os membros do partido numa
comunidade. Destaca-se, dessa maneira, a importância da ideologia expressa pelos membros
de um partido político e por seus intelectuais, por meio de uma “cultura política que constitui
o núcleo das formações políticas e que garante, para além dos acontecimentos conjunturais, a
perenidade dos partidos expressa na longa duração”. 7
Nesse trabalho de compreensão das motivações dos atos políticos, buscou-se a
apreensão desse conjunto de referentes compartilhados pelos indivíduos e pela coletividade
representada no partido, referentes ao sistema de valores, de uma leitura comum do passado,
4 MOULIAN, Tomás. El marxismo en Chile: producción y utilización. Santiago de Chile: Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales, 1991. Serie Estudios Políticos, p. 1. 5 FREDRIGO, op. cit., p. 260. 6 O sentido de ideologia utilizado no presente texto refere-se ao conjunto de idéias do partido. 7 BERNSTEIN, Serge. Os partidos. In: RÉMOND, René (Org.). Por uma história política. Rio de Janeiro: IUPERJ, 1996, p. 90-91.
12
de aspirações e projeções de um futuro, da comunhão de uma visão de mundo, elementos que
constituem, em geral, a compreensão dos historiadores em torno da cultura política, e que
utilizamos neste trabalho, considerando o papel de um dos principais intelectuais do
socialismo chileno na formação dessa cultura política.8
Esse estudo permite alcançar um amplo espectro de análise que deixa compreender
as raízes e filiações dos grupos e restituir coerência aos seus comportamentos frente à política
em permanente diálogo com os contextos e experiências vividas pelos atores sociais,
permitindo assim, não se prender a esquemas de análise pré-estabelecidos para apontarmos os
supostos desvios na postura política desses grupos.
O intuito do presente trabalho é analisar a especificidade do pensamento de Jobet e a
sua influência na cultura política socialista entre o início da Frente de Ação Popular (FRAP),
em 1957, e o governo da Unidade Popular, até 1973, passando pelas candidaturas
presidenciais de Salvador Allende, em 1958 e 1964, considerando o cenário político do
período. Considera-se que esse foi um momento de crescente radicalização da esquerda e de
uma polarização ideológica do sistema partidário chileno. A intenção é procurar apreender
também de que maneira e em que grau esse processo comprometeu e alterou a cultura política
socialista e, consequentemente, influiu ou determinou a sorte do governo da esquerda no
Chile.
Um aspecto que deve ser considerado é que ao empreender-se a tarefa de analisar a
trajetória de um intelectual dedicado à política, da importância de Jobet, pode-se incorrer em
dois perigos. Por um lado, ao tomar contato com o pensamento de um historiador que se
posicionou frente às contradições da sua sociedade, a incorporação do seu discurso torna-se
um risco. Por outro, observar o dilema da relação entre a atividade intelectual e a prática
política exige uma arguta clareza diante das funções, bem como frente à fusão das atividades,
para não se perder em críticas maniqueístas em torno da negatividade do envolvimento
intelectual com os assuntos políticos.
8 BERSTEIN, Serge. A cultura política. In: RIOUX, Jean-Pierre; SIRINELLI, Jean-François (Org.). Para uma história cultural. Lisboa: Editorial Estampa, 1998, p. 355.
13
Para a compreensão da sua trajetória foi importante analisar tal questão, já que Jobet,
como um intelectual marxista, concebia a teoria como instrumento de transformação da
sociedade. Nesse sentido, foi necessária a abordagem da sua trajetória a partir da reflexão em
torno da tensão que configura este tipo de prática intelectual. No entanto, uma dificuldade a
mais se coloca. Sob a perspectiva de que a dimensão da cultura constitui uma forma de
transcender a política, as concepções acerca dos intelectuais como “homens de cultura” são
recorrentes para referir-se ao grupo, considerado por vezes como independente e autônomo
diante dos dilemas da sociedade.
Dessa forma, esta discussão em torno do engajamento político dos intelectuais, que
coloca em questão a relação entre teoria e práxis, é tratada de maneira a direcionar o debate
para a distinção entre as atividades. A partir destas observações, considera-se que analisar a
atividade partidária e a construção teórica de um intelectual que almejava a inserção prática
na transformação da sociedade significa abordar esta categoria social distanciando-se de uma
percepção idealista que encara os intelectuais como um grupo autônomo.
O intuito do trabalho, portanto, é realizar uma abordagem da sua trajetória e do seu
pensamento que não resulte unilateral. Em outras palavras, o desafio consiste em analisar seu
papel intelectual e político dialeticamente. Recorrendo à terminologia gramsciana9, busca-se
encarar a função organizativa desempenhada por Jobet e dimensionar o alcance da atividade
do intelectual no papel da produção, reprodução e organização de bens de identificação e de
consensos coletivos, compreendendo o presente trabalho na seguinte perspectiva: a da atuação
intelectual numa determinada cultura política.
Para apresentarmos o texto, optamos por dividi-lo em três capítulos: o primeiro se
destina a esboçar a trajetória da esquerda chilena desde as suas origens, localizadas nas
organizações operárias e nas primeiras publicações de cunho socialista, passando pela
sistematização do discurso político e a sua vinculação com o movimento partidário. Esta
abordagem permite compreender a singularidade da formação e do desenvolvimento da
esquerda chilena bem como os aspectos que compreendem a formação da sua identidade,
9 GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. 9 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995.
14
visto que muitos elementos são resgatados ou negligenciados pelo movimento ao longo do
século XX.
Ainda no primeiro capítulo dedica-se um tópico à discussão historiográfica,
demonstrando algumas das interpretações a respeito do socialismo chileno. O enfoque
adotado objetivou traçar um debate com autores que desconsideraram muitas das
singularidades deste segmento político, e apresentar novas perspectivas para o entendimento
acerca das suas origens, do significado dos processos que marcam a sua atuação na política
institucional até o alcance do poder, considerando os diversos elementos e conjunturas que
contribuíram para a construção da sua cultura política.
O contexto político que conforma o cenário histórico da nossa pesquisa é abordado
no segundo capítulo, abarcando um panorama do período que compreende as décadas de 1950
e 1960, os novos atores que surgem ou se fortalecem nesse momento, bem como os diferentes
processos que dinamizaram a disputa política, destacando o espaço ocupado pelo socialismo.
São subsídios que nos permitem obter uma melhor compreensão da maneira como se desenha
a polarização ideológica que culmina no 11 de setembro de 1973 e, especialmente, das
metamorfoses da cultura política do socialismo chileno que alterariam, em alguns aspectos, a
sua identidade, temática abordada no segundo item deste mesmo capítulo.
O terceiro e último capítulo objetiva apresentar um mapeamento dos conceitos,
temas discutidos e influências sofridas por Julio César Jobet. Analisar o papel do intelectual e
dirigente político na cultura política do socialismo chileno, em especial no processo de
radicalização daquele segmento, examinando sua função organizativa a partir de um projeto
político. Para tanto, busca-se apreender a sua leitura da sociedade chilena, suas propostas e os
principais debates empreendidos tanto no interior do seu partido como com as principais
forças políticas do Chile por meio dos seus escritos, compreendendo a sua atuação em meio
ao efervescente debate político e intelectual do período. Ao compreender as formulações
teóricas que animavam as ações do socialismo chileno, é possível apreender os limites da
cultura política da esquerda que almejava a construção do socialismo naquele país e que
vivenciou o fracasso do governo da Unidade Popular.
CAPÍTULO 1
O SOCIALISMO CHILENO: HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA
16
1.1 O socialismo chileno: das origens ao período da UP
É importante considerar que a compreensão do socialismo chileno deve levar em
conta uma grande tradição histórica do Chile que remonta ao período das lutas operárias do
século XIX, passando pela formação dos partidos de esquerda, bem como pelos diversos
processos dos quais participaram, considerando que a Unidade Popular é um “capítulo
carregado de capital histórico acumulado”. Trata-se de um período capaz de expressar todas
as tensões e contradições do país.
Dessa forma, a apreensão daquele movimento vai além da sua vinculação com o
comunismo internacional do pós-guerra, com a Guerra Fria ou com o impacto do processo
revolucionário cubano. É preciso pensar o socialismo chileno como uma expressão política
daquela sociedade, em especial, dos trabalhadores.
Até as primeiras décadas do século XX, a estrutura agrária da sociedade chilena se
manteve juntamente com os seus reflexos nos setores político e social. Enquanto que países
como Brasil, México e Argentina apresentaram o processo de consolidação do Estado
Nacional juntamente com uma maior inserção no sistema capitalista mundial, o Chile, já em
1830, dava sinais de um Estado forte, e ao final do mesmo século passou por uma experiência
parlamentarista, que indicava a reorganização dos grupos dominantes na política nacional.1 A
imagem de um país politicamente maduro e democrático se fortaleceu ainda mais com a
possibilidade de vivenciar o socialismo pelas vias institucionais no século XX.
Mas é certo também que, assim como os demais países latino-americanos, o Chile
sofreu no início do século XX pressões que caracterizaram os países periféricos, como a forte
presença imperialista, tensão social gerada pelo processo de modernização capitalista e uma
precária e insuficiente incorporação das classes populares. Foi nesse sentido que o debate da
esquerda se desenhou ao longo do seu desenvolvimento: o da superação da contradição entre
a estabilidade política e a questão social do país. Debate que se ampliou de acordo com as
1AGGIO, Alberto. Frente popular, radicalismo e revolução passiva no Chile. São Paulo: Annablume, 1999, p. 26.
17
interpretações marxistas no país, que indicaram as diferentes vias de transformação para
aquela sociedade.
No Chile, o Estado assumiu um importante papel na intermediação entre a presença
imperialista e as elites locais na exploração das riquezas nacionais. Ao final do século XIX,
intensificou-se no país a exploração de minerais que se tornariam os seus principais produtos
comerciais. Ao mesmo tempo, o país viveu um grande desenvolvimento urbano e sua
conseqüente concentração populacional.
O desenvolvimento das relações sociais de produção na mineração e na indústria
determinou um crescimento do proletariado, sobretudo nas explorações de prata e cobre, e de
maneira especial, na exploração do salitre, além de aumentar o número de operários na
construção de ferrovias. Os primeiros núcleos do proletariado industrial surgiram nas últimas
décadas do século XIX e já realizavam atos de greve expressivos que se intensificaram no
século XX.2
As relações estabelecidas na mineração, propícias para a ação das massas, a
migração para o norte mineiro, estabeleceu uma corrente de transmissão política com o sul,
com operários, camponeses e parentes que se deslocavam em ambas as direções,
disseminando idéias e comportamentos que afloravam entre os trabalhadores do salitre. Estas
são algumas das condições, bastante originais no meio latino-americano dessa época, que
motivaram o precoce surgimento de partidos operários, de franca definição socialista, ainda
antes da revolução bolchevique de 1917.
Como conseqüência da Guerra do Pacífico (1879-1884)3, o Chile se converteu no
único produtor mundial de salitre, transformando a exploração salitreira, ao longo da mudança
de século, no eixo dinamizador do conjunto da economia chilena, de maneira a favorecer a
diversificação de sua base produtiva e tornar mais complexa a sua estrutura social.4
2 ELGUETA, Belarmino. La cara oculta de la historia: el legado intelectual de Julio César Jobet. Chile: Factum Ediciones, 1997, p. 69. 3 Em decorrência deste conflito, o Chile expandiu seu território, recebendo parte do Atacama (cidade de Tarapacá), do Peru, e parte do território boliviano (Antofagasta), que perdeu a saída para o mar. 4 CORREA, Sofía; FIGUEROA, Consuelo (Org.). Historia del siglo XX chileno: balance paradojal. Santiago: Editorial Sudamericana, 2001, p. 23.
18
É possível identificar as primeiras organizações operárias modernas nas cidades,
entre os círculos de artesãos que passaram a ser integradas por operários industriais e os
mineiros. Inicialmente tratavam-se das mutuales, sociedades de socorro mútuo, que estavam
investidas de preceitos ilustrados, e buscavam, através da associação de trabalhadores de
diferentes sindicatos, incentivar a cooperação e a solidariedade entre seus filiados. A principal
característica destas organizações era a atenção especial à formação educacional dos seus
membros através da integração cultural, especialmente articulada por meio de diversos
periódicos e folhetins operários.
No final do século XIX, emergiram outros tipos de organizações operárias, como as
mancomunales e as sociedades de resistência. De acordo com Sofia Correa e Consuelo
Figueroa, as primeiras se caracterizavam por reunir trabalhadores de diferentes atividades,
enquanto que as sociedades de resistência eram marcadas por opor-se de forma permanente a
qualquer tipo de negociação nos conflitos, evidenciando um maior espírito confrontacional
nos seus postulados.
No entanto, ambas, diferentemente do mutualismo da primeira época, ostentaram um
caráter revolucionário, apresentaram-se em termos programaticamente confrontacionais frente
aos setores que oprimiam a classe operária, com propensão à conformação de uma identidade
de classe de mais claro perfil. Sofia e Consuelo destacam a transição das organizações na
medida em que:
[...] se observa um evidente trânsito de um associacionismo com demandas exclusivamente sociais e com ambições de cooperação mútua a entidades embuídas de uma orientação e discurso de caráter político. Os postulados socialistas e anarquistas, de crescente gravitação durante a mudança de século, estimularam o desenvolvimento desse tipo de organização, que experimentou um notável incremento, aumentando de 240 sociedades operárias na última década do século XIX, a 433 em 1910.5 [tradução nossa]
Nesse primeiro momento, havia estudiosos que se voltavam para as questões sociais
e, ao mesmo tempo, homens que iniciaram suas atividades no meio operário para se
destacarem como articuladores de movimentos de trabalhadores e difusores de idéias
questionadoras daquela ordem. O contexto inicial de difusão de um ideal socialista ou
5 CORREA; FIGUEROA, op. cit.., p. 59.
19
anarquista é caracterizado pela atuação de grupos de agitadores independentes, articuladores e
até poetas que estabeleciam a necessidade de mudança do sistema e denunciavam os
problemas que atingiam, especialmente, os trabalhadores urbanos e industriais.
Surgiram nesse período os primeiros grupos operários com suas publicações
periódicas iniciais, como o Centro Social Obrero e a Unión Socialista, em 1897, que
buscaram expressar as reivindicações nacionais do proletariado chileno. Os grupos, que eram
orientados por idéias socialistas e anarquistas, disseminavam sua propaganda nos grandes
povoados e regiões industriais. Seus jornais eram elaborados, principalmente, em Santiago e
Valparaíso, na região salitreira e em Magallanes, traduzindo as aspirações de uma classe que
se formava vigorosamente.6
Eduardo Devés indica o início do socialismo científico no Chile, gestado na figura de
Alejandro Bustamante, no interior de duas organizações políticas: o Partido Obrero Francisco
Bilbao e o Partido Socialista, sucessor do primeiro.7 De acordo com o autor, este movimento
contrastava com o corte revolucionário dos grupos anteriormente mencionados, destacando
em seu programa a defesa do progresso, da liberdade; a oposição à servidão do povo e à
pressão exercida pela oligarquia; em combate à pobreza, bem como a defesa do sufrágio
universal. Tais documentos teriam sido redigidos por Ricardo Guerrero, apontado como o
primeiro marxista chileno.
A formação de partidos políticos ligados ao mundo operário se inicia em 1887, com a
fundação do Partido Democrático, grupo de tendência laica – denominação necessária para
um período no qual as disputas políticas se demarcavam com especial atenção na questão
religiosa – liberal e democrática. A identificação do grupo com as demandas de artesãos e
operários permitiu uma postulação reformista, de defesa da luta no interior do sistema vigente.
Ao mesmo tempo, formou-se no país um importante número de correntes anarquistas
identificadas com postulados libertários e que se filiaram à IWW (Industrial Workers of the
World).
6 JOBET, Julio César. Ensayo crítico del desarrollo económico social de Chile. 3.ed. México: Centro de Estudios del movimiento obrero Salvador Allende, 1982, p. 123-124. 7 Cf. DEVÉS, Eduardo; DÍAZ, Carlos. El pensamiento socialista en Chile: antología 1893-1933. Chile: Ediciones Documentas, 1987.
20
A prosperidade econômica vivenciada após a guerra de 1879 sofria flutuações e
crises que afetavam com maior intensidade os estratos mais pobres, situação que gerou o
gérmen dos movimentos de protesto que culminaram com a primeira greve geral do país, em
1890, abrindo um ciclo grevista de orientações trabalhistas e políticas que se estendeu por
quase duas décadas.
A partir de 1903, os trabalhadores chilenos passaram a realizar manifestações e
greves de maior repercussão. O nome de Luis Emilio Recabarren8, considerado o mais
importante líder do movimento dos trabalhadores no Chile, destacou-se nesse período de
efervescência social. Liderou manifestações por aumento de salário, redução de preços e
melhores condições de trabalho. Recabarren ingressou no Partido Democrata, que agrupava
artesãos e alguns setores operários e consistiu no único partido popular da época.
Recabarren é o principal nome do socialismo chileno a ser reivindicado pelo Partido
Socialista. Como um dos mais importantes líderes do movimento operário e fundador do
Partido Obrero Socialista, ele iniciou este grupo no intuito de criar uma organização que fosse
verdadeiramente representante dos trabalhadores, e o fez a partir da sua desvinculação do
Partido Democrata e da crítica à postura dessa organização.
É possível extrair das suas postulações algumas idéias que serão reivindicadas por
membros do socialismo, especialmente Jobet, na busca de uma identidade operária e de
elementos para o projeto socialista, que denotam o pioneirismo do líder operário no início do
século XX. A questão da independência de classe é uma das principais características do
pensamento de Recabarren, na medida em que ele já buscava diferenciar os componentes da
burguesia e da oligarquia nacional reunidos no Partido Democrata.
Egresso deste grupo, Recabarren publicou, em 1912, o folheto intitulado El
Socialismo, que constituiu o manifesto da nova organização fundada neste mesmo ano, em
Iquique, o Partido Obrero Socialista. Neste folheto, Recabarren se preocupa em tecer severas
críticas aos democratas, apontando-os como “vendidos da oligarquia”. Inicia-se, portanto,
8 A contribuição de Luis Emilio Recabarren é destacada em diversos trabalhos a respeito do desenvolvimento marxista na América Latina e do movimento operário no Chile. Além das obras utilizadas no presente trabalho, ver: JOBET, Julio César. Recabarren y los orígenes del movimiento obrero y el socialismo chilenos. 2.ed. Santiago de Chile: PLA, 1973.
21
uma delimitação importante do movimento da esquerda nacional que, não obstante as
mudanças sofridas, será retomada com força em diferentes momentos: a independência de
classe, as críticas em torno do “reformismo burguês” e, especialmente, críticas à democracia
nacional:
[O programa democrata] só contém um programa de reformas por realizar sobre as instituições existentes, ampliando-as, suavizando e democratizando, mas deixando sempre o que são: instituições coercitivas da liberdade dominadas pela burguesia. Democracia é o governo do povo, pelo povo e para o povo.9 [tradução nossa]
Recabarren dedicou-se à organização de uma estrutura sindical da classe operária e
consistiu no maior responsável pela organização do movimento e, posteriormente, passou a
ser o principal nome da Federación Obrera Chilena (FOCH), organização criada pelos
conservadores, sob bases mutualistas, com finalidade de assistência social e de mediações nas
relações de trabalho. A despeito desse caráter inicial, Recabarren passou a liderar o que viria a
ser um dos principais centros de atuação do proletariado chileno, gerando uma radicalização
das ações do setor e a sua filiação à Internacional Comunista, em 1921, pouco antes da
criação do Partido Comunista.
O líder tornou-se uma das referências do movimento operário chileno, dentre outros
motivos, por congregar o movimento trabalhista e a luta partidária no âmbito da política
institucional chilena, ao tomar contato com a teoria socialista. Essa particularidade do
movimento operário daquele país serve de referência para pensar que a adoção do marxismo
foi realizada historicamente e de acordo com a sua inserção nos processos políticos e sociais
específicos, legando ricas e frustrantes experiências históricas que permitem analisar
movimentos e culturas políticas desenvolvidas a partir desse encontro.
O exemplo da influência exercida pelos ideais revolucionários, com o triunfo da
Revolução Bolchevique, sobre a constituição da esquerda do país está na transformação do
Partido Obrero Socialista, fundado por Recabarren, em Partido Comunista, em 1921. A
mudança se deu após a sua visita a Moscou, ilustrada a partir do registro das suas impressões,
bastante equivocadas, que já deixam visualizar a concepção mecanicista de transplantação de
um modelo revolucionário:
9 RECABARREN, Luis Emilio. Democracia – Socialismo (1907). In: DEVÉS; DÍAZ, op. cit., p. 87.
22
Pude ver com alegria que os trabalhadores da Rússia tinham efetivamente em suas mãos toda a força do poder político e econômico, e que parece impossível que tenha no mundo força capaz de despojar o proletariado da Rússia daquele poder já conquistado. [...] ao proletariado do Chile só falta disciplinar um pouco mais sua organização política e econômica para encontrar-se capacitado a realizar a revolução social que expropriará todo o sistema de exploração capitalista [...]10 [tradução nossa]
Ao longo da década de 1920, diversos nomes se destacaram como herdeiros do ideal
de Recabarren, tais como Ramón Sepúlveda, Carlos Alberto Martinez, Manuel Hidalgo Plaza.
Foram líderes políticos que faziam parte do mundo operário e que trabalhavam em
organizações sociais, especialmente voltados para a difusão dos ideais socialistas da zona de
Valparaíso, do norte salitreiro, de organizações operárias de Viña Del Mar e do porto.
Parte dessas lideranças deixou o então Partido Comunista após cisões internas e
fundou grupos de orientação socialista que viriam a formar o Partido Socialista do Chile,
como a Nueva Acción Pública e a Izquierda Cristã. Somaram-se a eles o Partido Socialista
Marxista, a Orden Social, o Partido Socialista Unificado, a Acción Revolucionária Socialista.
Além do crescimento do operariado e de um movimento de esquerda, o Chile viveu,
no início do século XX, a ascensão das classes médias ao cenário político com forte
representação partidária. Dessa forma, a arena política chilena, que tinha como demarcação
dos debates a questão clerical/anticlerical, representados pelos partidos da oligarquia nacional,
evidenciou o conflito de classes latente no seio da sociedade, a partir do seu deslocamento
para a luta político-partidária e da colocação de novas alternativas que iriam percorrer todo o
século.
O sistema de partidos passou a se definir tanto em função de diferenças doutrinárias
como em termos de representação social: de modo geral, liberais e conservadores se
identificavam com a elite, proprietária de grande parte da terra e do capital; os radicais
representavam a classe média – em particular aos empregados públicos e aos profissionais de
província –, assim como aos grandes latifundiários do sul; democratas, socialistas e
comunistas eram os representantes das classes populares.
10 RECABARREN, Luis Emilio. La Rusia obrera-campesina. In: DEVÉS; DÍAZ, op. cit., p. 108-109.
23
Na década de 1930, portanto, iniciava-se o conflito político estruturado em dois
campos contrapostos - direita e esquerda - bem definidos; coexistindo, em cada um, uma
pluralidade de forças diferenciadas entre si, ainda que aglutinadas em torno de projetos
compartilhados e em função da sua confrontação em relação a outro setor. Sendo assim, é
possível falar em direitas e esquerdas, de acordo com os matizes que se advertiam no interior
de cada um desses blocos, no doutrinário ou nas estratégias políticas.11
Formando a ala direita da política chilena, tem-se o Partido Conservador que,
sinteticamente, pode ser caracterizado como o grupo representante da aristocracia
latifundiária. Além da defesa da doutrina católica, principal elemento de oposição ao Partido
Liberal, a plataforma conservadora apoiava com firmeza a livre empresa privada como fator
chave no processo de desenvolvimento do país.
Formado em 1840, o Partido Liberal representa um segmento da elite orientado para
o comércio. Com a proposta de laicização do Estado, da ampliação das liberdades civis e do
sufrágio, e da limitação da autoridade Executiva, as forças liberais chegaram ao poder em
1861 e governaram por trinta anos, durante a chamada “República Liberal”. Ideologicamente,
as diferenças entre estes e os Conservadores são bastante tênues, em especial, após o fim da
questão religiosa nos assuntos de Estado.
Conforme se verá adiante, durante o período de 1932 a 1964, o Partido Radical (PR)
teve o maior poderio eleitoral. Protagonista de um dos governos de maior impulso
modernizador, o grupo também apresenta divisões internas entre uma ala direitista que
identifica sua filosofia política com a dos conservadores e liberais, e uma ala esquerdista
promotora de reformas sociais. De acordo com Julio Pinto e Gabriel Salazar, trata-se de uma
divisão que tem suas raízes sociais e ideológicas. Sociologicamente, o PR foi dirigido pela
classe média de províncias, com um núcleo dirigente formado nas escolas secundárias do
Estado e na Universidade do Chile.12
11 CORREA; FIGUEROA, op. cit.., p. 117. 12 SALAZAR, Gabriel; PINTO, Julio. Historia contemporánea de Chile I: Estado, legitimidad, ciudadanía. Santiago: LOM, 1999, p. 275, v. 1.
24
Inicialmente, o anticlericalismo constituía o principal eixo ideológico do movimento,
com um desenvolvimento vinculado à maçonaria e à reforma educacional, além de
latifundiários do sul, de inclinação conservadora, que se transformaram em radicais pelo
desejo de reformas eclesiásticas e pela desconfiança em torno da centralização política. Este é
o partido do sistema político chileno que tem a mais variada composição, que compreende
desde operários até latifundiários. Inclui nortistas dos distritos mineiros, latifundiários do sul,
pequenos comerciantes, profissionais, intelectuais, artesãos, operários especializados. A sua
espinha dorsal provém da classe média.
Na esquerda, de forma muito particular no contexto latino-americano, o Partido
Comunista (PC) esteve representado precocemente e de forma mais consistente do que os seus
similares no subcontinente, marcando, assim, uma especificidade da esquerda chilena na
América Latina, que apresentou, primeiramente, a formação de um partido comunista
originado do movimento operário, para somente duas décadas depois se formar um partido
socialista.
O PC exerceu um papel central no movimento sindical do país durante quase
quarenta anos, ao mesmo tempo em que se configurou como a principal força política entre os
trabalhadores chilenos. De acordo com Pinto e Salazar, a mudança tática do partido, que passa
a seguir um caminho gradualista e pacífico até o poder, seu forte impacto em círculos
sindicais e intelectuais ajudou a manter a influência nacional da organização, chegando a
alcançar, no ano de 1964, aproximadamente 30.000 filiados.13
No entanto, o que se observa na história do Partido Comunista é a sua orientação a
partir dos ditames da Internacional Comunista, o que revela, entre as décadas de 1920 e 1930,
a adoção pelo PC da linha ultraesquerdista do chamado “Terceiro Período”, caracterizada por
uma postura confrontacional, que o isolou de outros grupos da esquerda nacional. Essa linha
13 Devemos considerar que os programas de recuperação econômica, adotados na década de 1930, além do impulso à industrialização, significaram a incorporação de um importante segmento do setor popular urbano às áreas fabris e à construção. O proletariado industrial, por exemplo, experimentou um aumento quantitativo que variou de 84.991, em 1926, para 389.700, em 1949. ATRIA, Raul; TAGLE, Matias (Edit.). Estado y política en Chile: ensayos sobre las bases sociales del desarrollo político chileno. Santiago de Chile: CPU, 1991, p. 162.
25
ditada pelo Comintern rechaçava os contatos com os partidos burgueses e objetava as
“tendências parlamentares” do Partido Socialista.
Por outro lado, os socialistas se contrapunham à orientação ultraesquerdista dos
comunistas, porque entendiam que essa postura isolaria a classe trabalhadora de outros
segmentos sociais igualmente explorados, e principalmente, por tratar-se da adoção de uma
orientação externa. O abandono da linha do “Terceiro Período” pelos comunistas deu-se a
partir da proposta de criação de amplas alianças, inclusive com os partidos considerados
burgueses, para salvar a democracia da ameaça fascista, consolidada na coalizão da Frente
Popular, em 1936.
Nos anos cinqüenta, a estratégia do PC era a de libertação nacional. Do ponto de
vista programático, permaneceram as chamadas tarefas da revolução: expropriação dos
latifúndios e nacionalização das empresas imperialistas; manteve-se da fase anterior a
intenção estratégica de aliança com a burguesia nacional, afirmando-se a concepção de que,
no Chile, o caminho poderia ser pacífico.14
No entanto, para os comunistas, havia terminado a etapa histórica de direção da
Frente de Libertação por parte da burguesia chilena. A aliança só seria segura se se optasse
pelos setores antagônicos ao imperialismo, aos monopólios e ao latifúndio. A esquerda
deveria, portanto, constituir a aliança comunista-socialista para atrair a esses setores da
burguesia; deveria se objetivar a hegemonia do proletariado, indicando-se, assim, como
núcleo, o eixo comunista-socialista. Esta nova linha estratégica apresentava como requisito
indispensável “a classe operária e as suas vanguardas como pólo dirigente da revolução de
libertação nacional”. Vale lembrar que o XX Congresso do PCUS admitia a tese da “transição
pacífica”, o que legitimava o percurso do PC chileno na década de 1950.15
O Partido Comunista considerava a sua luta como parte da revolução mundial do
proletariado a efetuar-se nos moldes da Revolução de Outubro. A Frente de Libertação
Nacional era considerada a ferramenta com a qual se poderia construir uma democracia
popular e um governo popular para a criação de um país independente e democrático.
14 AGGIO, Alberto. Democracia e socialismo: a experiência chilena. 2.ed. São Paulo: Annablume, 2002, p. 83. 15 Ibidem, p. 83-84.
26
No projeto comunista, a união das forças populares, dirigida pelos operários e
agricultores, desalojaria a minoria oligárquica do poder econômico e político para impulsionar
as reformas estruturais da sociedade. Tratava-se de uma organização essencialmente de
operários. Sua força provinha basicamente de trabalhadores urbanos e sindicalizados,
incluindo seguidores provenientes do setor camponês, a partir da década de 1950, fator
impulsionado, principalmente, após a Revolução Cubana; além de um pequeno segmento dos
setores médios e um número pequeno, mas significativo, de intelectuais.
Em geral, é possível indicar três momentos na trajetória do PC, sendo o primeiro, o
período que compreende desde a sua fundação, em 1921, até 1933. O segundo momento, que
abarca o período de 1933 até o X Congresso de 1956; e o terceiro até fins de 1980. O primeiro
momento se caracteriza como a etapa confrontacional, inserida no contexto de crise do Estado
oligárquico, no qual o PC preconizava a política do enfrentamento de classes e se mantinha à
margem da política estatal.
Como conseqüência da Guerra Fria, da ampliação do campo socialista e das
intervenções norte-americanas em diversas partes do mundo, a posição comunista se definiu
como uma linha de frentes amplas com signo antiimperialista. Nas eleições presidenciais de
1946, o PC fez parte de uma composição política com os radicais que elegeria Gonzalez
Videla à presidência da República.
Este governo herdou sérios problemas econômicos e sociais e se viu numa situação
delicada, especialmente no plano externo, devido à participação comunista na administração.
O Chile dependia dramaticamente do financiamento externo, ao mesmo tempo em que a sua
composição política era contrária à orientação da nova política exterior norte-americana no
período da guerra fria, cujo apelo à solidariedade nas nações americanas a fim de defender o
continente da ameaça comunista ditava as regras das relações entre os países vizinhos. Mesmo
após o afastamento dos comunistas do governo, os Estados Unidos mantiveram o embargo, a
fim de assegurar a completa ruptura entre o governo e o Partido Comunista.
No entanto, o apoio dos comunistas às greves contra a política do governo e as
permanentes críticas feitas à relação do Chile com os Estados Unidos proporcionaram ao
27
presidente González Videla a justificativa necessária ao rompimento definitivo com os
comunistas. Para conseguir conter a pressão do PC e a agitação operária, apoiada pelos
comunistas, o governo decretou, em 1948, a Lei de Defesa da Democracia, proscrevendo o
Partido Comunista e atingindo diretamente os direitos e liberdades sindicais. O movimento
operário e popular voltou a atuar com maior desenvoltura em meados da década de 1950.16
Já no X Congresso, de 1956, refletiu-se a tese da “transição pacífica” e a linha da
“frente única” entre socialistas e comunistas, substituindo a política de enfrentamento que a
Guerra Fria estabeleceu no mundo, e que foi ratificada na formação da Frente de Ação
Popular (FRAP), como se verá adiante. Os comunistas concebiam um movimento no qual era
essencial uma política de alianças pluriclassistas para a revolução de libertação nacional, no
bojo de um processo que acentuasse a participação das massas, levando em conta as suas lutas
de classe mais diretas.
Para que ambos se efetivassem, defendiam reformas substanciais nas estruturas
políticas do país, de forma a que se restaurassem todas as liberdades políticas, com vistas a
um aprofundamento de processo de democratização. Nesse sentido, o Partido Comunista foi
uma das forças políticas que mais se empenharam na defesa de reformas políticas e
institucionais de cunho democratizante, visando aperfeiçoar o sistema institucional.17
Este contexto que permitiu a formação da FRAP marca um momento de redefinição
para o socialismo chileno, cuja cultura política fora caracterizada por forte antagonismo ao
comunismo. A criação do Partido Socialista se deve também à insatisfação de alguns grupos
socialistas com a liderança comunista dentro da esquerda, o que o levou a delimitar, desde o
início, o caráter alternativo ao comunismo na esquerda nacional como uma das suas principais
características, e que se fortaleceu ao longo da sua trajetória. A sua história tem a
particularidade do contexto de crítica ao stalinismo, à política da URSS e aos partidos
comunistas. O partido se autodefiniu, constantemente, a partir da diferenciação com relação
ao comunismo, do anseio de realizar o que o PC não havia sido capaz de fazer, e de
representar “verdadeiramente” os anseios populares.
16 AGGIO, op. cit., 1999, p. 152-153. 17 AGGIO, op. cit., 2002, p. 84.
28
É preciso problematizar o surgimento da esquerda chilena, já que esta se formou
primeiramente com o comunismo, com o pioneirismo de Recabarren. O fortalecimento do PS
se deu no momento de crise da URSS, o que permite afirmar que o seu discurso, caracterizado
como humanista e libertário, também tem a ver com esse momento de contestação ao regime
soviético e das denúncias contra o stalinismo.
O Partido Socialista, fundado em 1932, pode ser caracterizado como um grupo
formado essencialmente pelas classes médias, unido por uma concepção bastante difusa do
socialismo. Sua formação tem como marco a República Socialista de 12 dias, movimento
liderado pelo comandante da aviação Marmaduque Grove, para destituir do governo Esteban
Monteiro, primeiro presidente eleito pelo Partido Radical.
Deste governo pode-se afirmar que Monteiro buscou articular em torno de si apenas
os setores tradicionais da política chilena, deixando de lado a esquerda que se fortalecia e que
tentava afirmar um projeto de ação capaz de superar a grave questão social que atingia o país.
A partir deste evento, as organizações socialistas se reuniram para formar o Partido Socialista,
que esteve sob a liderança de Grove até 1943.18
Tratava-se inicialmente de uma organização definida como marxista, mas que
privilegiava um projeto nacional e popular e que enfatizava o caráter pluriclassista da sua
identidade. É possível afirmar que se tratou de uma organização que veio compor um novo
quadro político que se configurava no país, marcado pela concepção antioligárquica e
antiimperialista. Seu caráter nacional e popular, além da sua caracterização como um partido
dos trabalhadores manuais e intelectuais, e que não admitia a divisão classista, marca a
postura do grupo que também se comprometeu com a proposta modernizadora da Frente
Popular, abrindo, assim, a primeira etapa das recorrentes cisões no partido.
Podemos destacar que, o que definiria a adesão de um indivíduo ao Partido Socialista
não seria o “seu pertencimento de classe, mas a sua consciência política revolucionária, a sua
oposição à oligarquia e ao capital estrangeiro”, como é possível observar no seguinte excerto:
18 Os líderes da rebelião foram destituídos e presos na Ilha de Páscoa. Ainda em 1932, Marmaduque Grove concorreu à eleição presidencial, vencida por Arturo Alessandri, e obteve a segunda colocação, com 17,7% dos votos.
29
Não se vem ao Partido porque é intelectual ou operário, vem porque se adquiriu consciência revolucionária do atual momento histórico. Por isso lutamos contra a demagogia, a mentira de fazer crer que só os intelectuais poderão salvar-nos, ou que só os operários são os revolucionários. Por isso é um atentado à unidade de nosso partido o divisionismo mentiroso do obrerismo e intelectualismo, e quem atenta contra a unidade do Partido Socialista atenta hoje contra o futuro do povo, pretendendo destruir o seu instrumento de libertação. 19 [tradução nossa]
Ainda de acordo com Schnake, uma das principais lideranças do grupo naquele
contexto, o movimento que originou o partido se denominava socialista por ser contrário ao
liberalismo individualista. O partido se caracterizaria pela “unidade social e política da classe
operária, setores camponeses e classe média do país, no intuito de libertar-se da exploração
econômica e política do capital internacional e da oligarquia”. Nas suas palavras, significava a
mobilização do povo para uma ação de Segunda Independência Nacional, a Independência
Econômica do Chile.
Essa característica nacionalista do socialismo chileno é um dos componentes que vão
perdurar ao longo da sua história, mas que, como se nota, trata-se também de uma forma de
demarcar a originalidade do movimento frente ao comunismo, entendido como uma extensão
do socialismo soviético; além de referendar o passado das lutas operárias e se projetar como
alternativa para o futuro, um dos determinantes mais evidentes da ação do PS, constantemente
preocupado com a “chilenidad” dos seus pressupostos, como afirma Marie Noëlle Sarget.20
Trata-se de um nacionalismo unido ao ideal da união continental fundado no sonho de
Bolívar.
Um elemento que ilustra esse ideal nacionalista é o símbolo do Partido Socialista,
que permite observar a constante referência feita ao passado do país, assim como aos ideais de
luta e da originalidade do grupo. O desenho de um machado índio sobre o mapa da América
Latina remete ao “toqui”, instrumento utilizado pelos índios mapuche, do sul do Chile, tanto
para destruir, como para construir, e que se tornou símbolo da resistência mapuche ao invasor
19 SCHNAKE, Oscar. Política Socialista (1938). In: WITKER, Alejandro (Org.). História documental del PSCH 1933-1993: signos de identidad. Chile: IELCO, sd, p. 23-24, v.18. 20 SARGET, Marie-Noëlle. Système politique et Parti Socialiste au Chili: un essai d’analyse systematique. Paris: Éditions L’Harmattan, 1994.
30
espanhol. O símbolo é colocado sobre o mapa do continente para se referir à coletividade, à
união e à libertação antiimperialista.21
Em geral, os postulados da República Socialista de 1932 apregoavam a justiça social
e a libertação econômica do país por meio da união dos trabalhadores manuais e intelectuais.
Sendo a união de diferentes setores sociais um dos principais pontos da declaração socialista,
assim como a definição de socialismo como um programa contrário ao “liberalismo
individualista”. Questionado sobre qual ideologia correspondia à revolução, seu representante,
Marmaduque Grove, respondeu:
A nenhuma. Nós tratamos de fazer para esta revolução seu peculiar conteúdo ideológico [...] As doutrinas sociais foram criadas [a partir da] observação da realidade européia [...] Assim que aplicadas na América Latina, cuja realidade é distinta, postergam-nos as soluções imediatas de nossos problemas e introduzem o confusionismo.22 [tradução nossa]
Esta afirmação dá uma dimensão do caráter inicial do PS, que apregoava, dentre
outras coisas, a flexibilidade das ideologias, como na utilização do marxismo, e do caráter
pluriclassista de um grupo que era composto de correntes ideológicas que variavam desde
tendências trotskistas, passando por grupos denominados antioligárquicos, latino-
americanistas, até personalidades intelectuais advindas do anarquismo e do socialismo
humanista. Os autores latino-americanos não chilenos influenciaram relativamente pouco o
PS, em comparação com outros marxistas europeus. O argentino Juan B. Justo e José Carlos
Mariátegui, marxista peruano, figuram entre os autores socialistas que ocupam lugar em
algumas referências, mais por traduções e comentários que fizeram da obra de Marx.
No entanto, o partido valoriza constantemente a contribuição de autores nacionais,
como Recabarren e, sobretudo, a daqueles fundadores do partido, como Grove, Eugenio
Matte, Oscar Schnake, nomes que constituíram a liderança nos primeiros anos de vida do
partido. Além disso, o grupo conferia especial espaço aos escritores do partido, como Jobet,
Alejandro Chelén, Raul Ampuero, Salomon Corbalán, Eugenio Gonzalez, Oscar Waiss, cujos
textos, especialmente após a década de 1940, contribuíram diretamente para forjar uma
determinada cultura política ao partido, bem como sua identidade.
21 SARGET, op. cit., p. 79. 22 GROVE, Marmaduque. Manifiesto Socialista (1934). In: WITKER, op. cit., p. 221.
31
Esses membros, em especial quando formavam parte do Comitê Central (CC),
tinham importante influência nas deliberações do partido quanto às linhas e rumos a adotar. O
CC representava a organização nas suas relações com outros grupos, decidia os acordos a
estabelecer, designava as candidaturas socialistas em via de eleições, tomava as sanções
eventuais contra dirigentes e militantes, nomeava e destituía diretores da imprensa do partido
e aplicava as decisões do Congresso Geral. Além de exercerem forte influência nas idéias a
serem seguidas pelo grupo, já que o conteúdo teórico-ideológico representava um elemento
muito valorizado na condução no partido.
É possível conceber a história do Partido Socialista em duas etapas. A primeira pode
ser demarcada do momento da sua fundação até a reunificação do socialismo, em 1957;
enquanto que a segunda abarca desse momento até a divisão de 1979; sem, no entanto,
caracterizar-se como momentos estanques, ou seja, trata-se de momentos nos quais elementos
diversos, concertacionistas e rupturais se imbricavam na conformação da cultura política
socialista, além da sua identificação latino-americanista, popular e dos objetivos de ocupação
do poder serem elementos compartilhados por grupos internos com orientações diferentes.
São concebidas aqui essas duas fases na trajetória do socialismo chileno por entender-se que
ocorre uma modificação na postura ideológica do Partido Socialista, demarcada pela
predominância do caráter confrontacional a partir do final da década de 1950 naquele
movimento.
A etapa que compreende o período de 1933 a 1957 pode ser definida como o
momento nacional-popular23, no contexto em que o socialismo surgiu como uma alternativa
para as classes populares e setores médios, apresentando características definidas por uma
clara distinção ideológica e política dos comunistas, antioligárquicas e antiimperialistas.
23 Um projeto nacional-popular tem como características: a concepção da política como constituição da vontade coletiva, como uma busca pelo consenso, e não como o aproveitamento das conjunturas em função de uma mobilização manipulada de massas disponíveis; pensa cada um dos elementos da política em uma perspectiva utópica, como realização de graus cada vez maiores de democracia, portanto, como processo que deve conduzir ao socialismo, este concebido como sistema que permite a máxima liberdade de todos; e o consenso é encarado como algo além da articulação de interesses econômicos e políticos, trata-se de um pacto social em função de uma mudança concertada. Cf. MOULIAN, Tomás. Democracia y socialismo en Chile. Santiago: FLACSO, 1983.
32
Esta distinção é demarcada por elementos, como um papel mais flexível e
instrumental do marxismo, a necessidade de substituir o Estado burguês pelo Estado dos
trabalhadores, a superação do capitalismo, crítica ao internacionalismo comunista, a definição
do partido como popular e não exclusivamente operário. Além disso, a defesa, por parte das
suas principais lideranças do período, da participação ativa em coalizões de governo, e a
defesa de programas de reformas democratizantes, de fomento à industrialização e do
fortalecimento do papel do Estado como regulador das desigualdades.
Esse foi um período bastante conturbado na história do partido, que reunia diferentes
grupos e concepções acerca do papel do socialismo. Incapacidade de influência do partido nas
decisões do governo, “seguidismo frente à direção burguesa” e ausência de uma perspectiva
estratégica para iniciar o processo de construção socialista a partir da etapa de reformas,
foram algumas das críticas internas dirigidas às lideranças do grupo. Começava a se delinear a
trajetória da convivência conflitiva entre as tendências com pretensões confrontacionais e os
grupos que defendiam alianças e a promoção de reformas a partir do Estado.
A segunda etapa do socialismo chileno é o momento do qual se ocupa o presente
trabalho, identificada na mudança das suas lideranças. Esta pode se caracterizar por sua
crescente ideologização e o progressivo abandono da perspectiva nacional-popular,
influenciada por processos e teorias revolucionárias externos, além do descontentamento com
as experiências de governo vivenciadas pelo país sob o comando das classes dominantes;
tendência alimentada por concepções que visualizavam uma crise total na sociedade, que
passavam a guiar seus projetos políticos.
Características centrais da cultura política socialista, como o nacionalismo, o
antiimperialismo, a postulação da substituição do Estado burguês pelo Estado dos
Trabalhadores eram compartilhadas por esta nova tendência à frente do socialismo. No
entanto, o Partido Socialista confrontaria então o que se denominou na época de
“colaboracionismo”, expresso na política de lideranças do socialismo chileno que
participaram do governo da Frente Popular, como Grove, Oscar Schnake e Salvador Allende,
33
e o “inconformismo” de algumas de suas lideranças apoiadas por intelectuais como Oscar
Waiss, Julio César Jobet e Alejandro Chelén Rojas.
O governo da FP pode ser considerado o processo que ratificou a incorporação da
esquerda no cenário político do Chile, a partir da formação de uma aliança entre o Partido
Radical e os partidos Comunista e Socialista, apesar das péssimas relações estabelecidas entre
ambos, como resultado basicamente de duas conjunturas específicas: uma crise econômica
marcada por agitações populares reprimidas pelo segundo governo de Arturo Alessandri
(Alianza Liberal) e uma estratégia política externa advinda da tática definida no VII
Congresso da Internacional Comunista, em 1935. A partir desta diretiva, formou-se a coalizão
no Chile para estabelecer a oposição ao governo autoritário alessandrista. Além disso, é
preciso destacar que a formação da coalizão foi favorecida por uma série de iniciativas
políticas graduais que propugnavam alianças entre forças políticas consideradas defensoras
das “liberdades públicas”.24
Diante da impossibilidade de uma aliança com a direita, que sustentava o governo
repressor, os Radicais assumiram uma postura mais à esquerda. Outro fator que contribuiu
para a união dos diferentes segmentos foi a repressão do governo contra os sindicatos, que
atingiu seguidores dos partidos populares; bem como a represália a uma expressiva greve dos
ferroviários. Portanto, essas medidas do governo deram maior sustentação ao projeto da FP à
medida que validou a posição dos dirigentes do Partido Radical a favor de uma aliança
antialessandrista e ocasionou a convergência dos interesses dos partidos de esquerda.
Pela Frente Popular, Pedro Aguirre Cerda, indicado como pré-candidato à
Presidência da República, venceu a disputa interna em que o Partido Socialista apresentou a
candidatura de Marmaduque Grove, um dos principais líderes do grupo, e que passou a ser
presidente de honra da aliança. Numa conjuntura de fortes suspeitas de instalação de uma
ditadura no país comandada por Alessandri, a eleição de 1938 tornava-se decisiva para a
democracia do país. A necessidade de barrar o governo repressor por meio da unidade dos
setores populares se refletiu na eleição do candidato da coalizão.
24 AGGIO, op. cit., 1999, p. 102.
34
A despeito das divergências presentes na aliança, que se tornaram fator de desunião
após a conquista do governo, a política conduzida pelo Partido Radical possibilitou relativo
consenso em torno de temas como o fortalecimento da democracia representativa no país, do
desenvolvimento econômico e, principalmente, a presença do Estado na economia e da defesa
dos interesses sociais e políticos das camadas subalternas.
A emergência dessa coalizão política, que compartilhava a defesa da democracia
como um dos principais valores, garantiu maior estabilidade ao sistema político do país,
assegurando aos partidos de esquerda o seu papel de representantes dos trabalhadores no
quadro institucional e também uma ampliação das suas bases sociais. São fatores que,
contudo, foram concebidos negativamente por suas lideranças, a partir das décadas seguintes,
e que teve a complexidade da sua formação política e social negligenciada por Jobet e por
intelectuais, que, como ele, debruçaram-se sobre a formulação e difusão de idéias rupturais.
Estas teses eram baseadas em concepções preestabelecidas nos moldes do socialismo
internacional, direcionando o debate e a condução política por parte da esquerda para uma
polarização.
O processo político iniciado em 1938 pode ser caracterizado como o marco da
consolidação da modernização do país, anunciada na década de 1920, como a afirmação de
um novo papel do Estado na economia e da democracia representativa. Essa política
conduzida pela Frente Popular, no entanto, não correspondeu integralmente às aspirações dos
grupos que a constituía, principalmente, devido à correlação de forças estabelecida no
governo, que favorecia, em grande medida, à direita.
A direita, que além do poder econômico, contava com maioria parlamentar,
representou um obstáculo à implementação de medidas democratizantes que afetavam seus
interesses imediatos. Nesse sentido, a esquerda ficou impossibilitada de influenciar as
resoluções na economia de maneira a alcançar seus objetivos por meio de projetos de
desenvolvimento e da diminuição da dependência do país em relação ao capital estrangeiro.25
25 AGGIO, op. cit., 1999, p. 22.
35
Depois da vitória da Frente Popular, em 1938, a direita conseguiu se favorecer nas
disputas no governo, num período em que deveria enfrentar ameaças à manutenção da
estrutura social e dos seus interesses, dentre elas o desafio à ordem senhorial no mundo rural.
Esta questão colocava para o setor o dilema de como evitar a formação de sindicatos nos
campos, que os partidos de esquerda começavam a propugnar. Assim, o período aberto em
1938, no que concerne às dificuldades e restrições à organização sindical no campo pode ser
registrado como negativo para as expectativas da esquerda.
De acordo com Sofia e Consuelo, estas mudanças seriam sentidas nas décadas
seguintes, junto com a chegada de pautas culturais urbanas ao mundo rural, agora mais
permeável devido à difusão do rádio e da bicicleta. Além disso, os partidos de esquerda e a
Democracia Cristã, principal motor da política nacional da década de 1960, penetraram, pela
primeira vez, de forma exitosa no campo, tornando esse setor um espaço de disputa política
entre estes grupos pela adesão do campesinato, mobilizando-os em prol de demandas
trabalhistas e com promessa de divisão de terras, o que significou, posteriormente, o aumento
das greves camponesas.26
Como destaca Aggio, as divergências na esquerda se acentuaram a partir do
momento em que o PR assumiu a hegemonia da coalizão e que Pedro Aguirre Cerda,
apontado como uma expressão da moderação e da negociação política, foi designado
candidato presidencial da FP. 27 Além disso, a despeito da pressão da retórica ruptural exposta
pela esquerda, pautada em propostas nacionalistas e de amplo apelo popular, a esquerda não
foi capaz de ditar de maneira determinante os rumos da condução do governo. Estas são as
principais limitações que ficaram marcadas na participação socialista no governo, e que foram
criticadas por parte das suas lideranças, especialmente, a partir da década de 1950.
De acordo com Sarget, durante as presidências radicais, o Partido Socialista teria
sido um elemento totalmente passivo no sistema político chileno, de maneira que o sistema
teria agido sobre ele, ameaçando a sua identidade; relação que se inverteria durante a década
26 CORREA; FIGUEROA, op. cit.., p. 223. 27 AGGIO, op. cit., 1999, p. 123.
36
de 1950, na qual o partido se tornaria um dos elementos motores do sistema político,
juntamente com a grande novidade que representava a Democracia Cristã.28
No entanto, entendemos que ao longo da sua trajetória, em especial durante a
experiência da coalizão, o Partido Socialista exerceu importante papel na expressão dos
conflitos sociais e demandas populares, na mobilização do mundo do trabalho e na defesa
desses interesses, ao mesmo tempo em que canalizou tais demandas para inseri-las nas pautas
do quadro institucional.
Além do partido se constituir em um importante grupo de pressão e de mobilização
dos grupos populares, o período contribuiu para forjar a sua identidade, cuja delimitação se
deu em relação aos outros grupos políticos – como o Partido Radical, representante dos
setores médios, e do Partido Comunista, que, no discurso socialista, servia de instrumento
para a política soviética –; identidade que assumiu novos contornos e veio a se impor como
um forte elemento para a polarização ideológica do sistema político do país.
Esta história foi marcada por embates entre os grupos de esquerda que conquistaram
uma rápida inserção e poder de representação no quadro institucional e que mudaram a
configuração política chilena. A análise desta experiência e das idéias e perspectivas que
constituíram o socialismo chileno remete para uma história singular na América Latina.
A apreensão das motivações e perspectivas que animaram o socialismo daquele país
requer um mapeamento da trajetória dos grupos que protagonizaram aquele processo,
consistindo, assim, a perspectiva adotada, numa análise das idéias que constituíram a cultura
política do socialismo e das conseqüências advindas da sua postura, a partir do aporte de uma
das suas principais referências intelectuais. Para tanto, a análise deve se centrar naquele que é
o principal contexto de definição da polarização ideológica característica do período de 1957
a 1973.
Nesse período, de acordo com Jocelyn Holt, o Chile começava a ser pensado em
termos de subdesenvolvimento e de atraso, de maneira que, segundo alguns intérpretes da
época, a realidade vivida por aquela sociedade corroborava tal qualificação. Pode-se afirmar,
28 SARGET, op. cit., p. 214.
37
no entanto, que mais do que germinar essa concepção acerca da sociedade chilena, o período
marca uma difusão e cristalização de idéias já construídas, principalmente, pela esquerda
política daquele país.
Concepções traduzidas em diversas manifestações intelectuais e políticas que
apresentaram importantes nomes, como Aníbal Pinto, Julio César Jobet, Jorge Ahumada, que
conferiram à ação política de diversos grupos o conteúdo teórico e ideológico ao longo das
suas trajetórias na política nacional. Estas postulações contribuíram para a forte polarização
ideológica que caracterizou a década de 1960, e consequentemente, as concepções em torno
da condução do governo da Unidade Popular.
Com a formação de um forte e combativo movimento operário no Chile, desde fins
do século XIX, a questão social ocupou espaços no debate intelectual e político, de forma que
os setores populares passaram a ser solicitados como apoio eleitoral no discurso dos partidos
tradicionais, mas sem ser canalizados pelos mesmos. Esse contexto de ausência de um partido
ou movimento que conseguisse articular as demandas das classes populares em crescimento, e
que exercia forte pressão naquela sociedade determinou, em grande medida, a formação dos
partidos de esquerda.
Primeiro, o Partido Comunista, − criado exclusivamente por líderes do movimento
sindical de princípios do século XX, e que, inicialmente, teve apoio fundamentalmente
operário − e, posteriormente, o Partido Socialista, com uma formação bastante eclética, que
reunia desde militares até operários, e conseguiu tornar-se um dos maiores representantes
populares do sistema político chileno.
Diferentemente dos seus similares na América Latina, os partidos de esquerda do
Chile não se isolaram da cultura e dos movimentos populares, ao contrário, constituíram-se
em seus principais representantes políticos. Nas palavras de Moulian:
[...] o marxismo representou no Chile algo mais que a ideologia de um conjunto de partidos, com uma relação superficial e aparente com as massas, uma simples referência ritual, importante para os intelectuais políticos, mas carente de sentido para os “homens comuns”. É possível afirmar que constituiu um componente importante da cultura política nacional, especialmente entre os setores populares. Desenvolveu-se como um dos sistemas hegemônicos no âmbito das ideologias
38
políticas, cuja influência se podia sentir além dos partidos políticos de esquerda.29 [tradução nossa]
Ainda que o presente trabalho não possa apreender o alcance do marxismo e da
teoria política da esquerda chilena para além dos seus quadros, essa cultura política que reúne
indivíduos em torno de concepções acerca da política, da sociedade, de projetos e da diferença
entre os grupos políticos e sociais, tem especial importância na mobilização de diversos
setores. Mesmo se pensarmos que o marxismo surgia consubstanciado na figura material do
partido, como uma entidade aglutinadora onde os intelectuais adquiriam sua organicidade,
esta idéia é bastante válida.
Esse processo de formação da esquerda política do país, da sua incorporação no
sistema institucional e da introdução dos seus projetos políticos demarca o início da trajetória
desta tendência que vivenciou a expectativa do trânsito democrático ao socialismo. A
construção desta experiência pode ser avaliada desde a atuação do seu movimento operário no
século XIX, até a posterior organização dos seus partidos de representação popular, não se
configurando, portanto, como uma experiência discrepante dentro da sua trajetória.
É possível afirmar que um dos fatores mais destacados da vida política chilena foi a
existência de uma esquerda muito forte e estruturada, no sentido da sua constante participação
e no exercício da pressão política sobre o centro decisório, além da capacidade de mobilização
que remonta às suas origens. Esta trajetória diferenciada de um movimento de esquerda na
política institucional dentro da América Latina foi um dos elementos discutidos e
incompreendidos por parte da historiografia do país.
29 MOULIAN, Tomás. La forja de ilusiones: el sistema de partidos (1932-1973). Santiago: FLACSO, 1993, p. 73.
39
1.2 Elementos da historiografia do socialismo chileno
O tema do socialismo chileno adquiriu espaço considerável na historiografia daquele
país, porém com contornos pouco diferenciados no que se refere às abordagens adotadas. Em
geral, encontram-se trabalhos destinados a analisar o sistema político nacional, preocupados
com o seu desenvolvimento a partir das influências e relações entre os diferentes partidos que
o compuseram, entre eles, os partidos de esquerda.
Em geral, as avaliações acerca da esquerda se remetem à trajetória dos seus partidos,
e, pautam-se nas mesmas categorias analíticas adotadas no período analisado, de maneira a
apontar os limites e os desvios políticos de suas escolhas, visto que grande parte desses
trabalhos é elaborada por protagonistas daquele processo30; além de compilações de
documentos referentes a diferentes períodos dessas trajetórias.31
É possível destacar também trabalhos dedicados ao Partido Socialista que buscaram
identificar suas principais características, e, numa abordagem que abarca a sua trajetória desde
a sua fundação até o seu governo, em 1970, analisa a sua participação no sistema
institucional, numa avaliação que adquiriu poucas variações. Dentre elas, podemos destacar
comparações com o Partido Comunista e, principalmente, a indicação de “desvios” na sua
prática política, especialmente no que se refere a sua atuação político-institucional, bem como
as deficiências táticas na transição ao socialismo no governo da Unidade Popular.
Uma das análises mais significativas desta concepção de deficiência tática na
condução do governo para a construção do socialismo é a abordagem presente no trabalho de
Ignácio Walker, cuja hipótese central sustenta que a ausência de uma concepção socialista
democrática privou Allende do necessário apoio político no interior da coalizão de partidos
30 ALTAMIRANO, Carlos. Dialética de uma derrota: Chile 1970-1973. São Paulo: Editora Brasiliense, 1979. Neste trabalho, Altamirano tece duras críticas à UP por sua “inadequada percepção política da inevitabilidade do conflito”; Alejandro Chelén, liderança intelectualmente próxima a Altamirano, publicou Trayectória del Socialismo: apuntes para una historia critica del socialismo chileno. Trata-se de um trabalho que expressa significativamente a posição “inconformista”, que se opôs às participações governamentais em coalizões pluripartidárias do PS e cobrou uma posição confrontacional do partido. 31 Além das compilações utilizadas neste trabalho, podemos citar El socialismo y la unidad: (cartas del Partido Socialista al Partido Comunista). Colección Documentos, n.1, Santiago, 1966, publicada pela Secretaria de Educação Política do PS.
40
que o conduziu ao poder, o que teria contribuído para o fracasso da “via allendista” ao
socialismo.32
Numa leitura teleológica da trajetória do Partido Socialista, Walker entende que o
desfecho do processo do governo socialista esteve determinado pela supremacia de uma
estratégia que pregava a “inevitabilidade do conflito” no interior do partido composto por
diferentes correntes e que evoluiu do populismo para o leninismo. O que se pode observar é
que estas análises estão condicionadas pelo desfecho da “experiência chilena”, cuja imagem
de tragédia é apresentada como um fato inexorável devido à trajetória e composição do seu
principal representante político, o Partido Socialista.
Para o autor, havia uma tensão entre a retórica (revolucionária) e a prática (populista)
no partido, marcando a sua história de contradições. Suas características nacional-popular,
antiimperialista e antioligárquica demonstrariam, de acordo com Walker, a decisiva influência
que o fenômeno populista teria exercido sobre o socialismo chileno, assim como a concepção
de “segunda independência nacional” e a idéia da união entre os trabalhadores manuais e
intelectuais, elementos centrais da Declaração de Princípios do PS. Mas a crítica ao partido se
remete, especialmente, à participação do Partido Socialista no governo de cunho
modernizador da Frente Popular.
Numa tentativa de explorar as possibilidades e tensões em torno da viabilidade de um
projeto socialista democrático no interior de um partido marcado pelas diversidades internas e
que teve um papel central na política chilena ao longo do século XX, o autor,
equivocadamente, aponta para a sua inviabilidade, pautando-se numa concepção determinista
da trajetória do movimento socialista chileno, como um resultado lógico na história de um
grupo “cuja postura democrática havia sido marginal desde a sua formação”.33
Outro nome significativo dessa abordagem é o de Paul Drake, cujo trabalho se
fundamenta na análise do que o autor define como uma “relação instável do PS com o sistema
político”, apontando características do grupo, tais como uma liderança caudilhista-
32 Cf. WALKER, Ignácio. Del populismo al leninismo y la “inevitabilidad del conflito”: el Partido Socialista de Chile (1933-1973). Santiago: Cieplan, 1986. (Documento de Trabajo). 33 Ibidem, p. 113.
41
carismática, o conflito ideológico, as incoerências táticas e estratégicas, expressas na
dualidade radicalismo ideológico-eleitoralismo político.34
Para Drake, a participação do Partido Socialista na Frente Popular, bem como o seu
esforço para adaptar-se a sua realidade, às condições nacionais específicas, como a tradição
cultural, a estrutura social e o subdesenvolvimento econômico do país, acarretando um desvio
das suas interpretações fundamentais das metas marxistas, são elementos que demonstram a
sua inserção no modelo do populismo latino-americano. Frente à participação do Partido
Socialista no processo de modernização e transformação política da sociedade se estabeleceu
a identificação do grupo com o denominado populismo através dos seguintes elementos
definidores:
Dentro de seu partido, os socialistas chilenos mantinham técnicas de campanha, propostas de programas e alianças sociais altamente populistas nos anos 30. Além disso, formaram coalizões multipartidárias e pluriclassistas que aspiravam a programas populistas de desenvolvimento nos anos 40. [tradução nossa]35
Drake utiliza elementos de definição do denominado populismo de maneira a
identificar o socialismo chileno como parte desse modelo político. Em especial, o autor utiliza
três aspectos: estilo de mobilização, liderança e campanha, enfoque que daria maior espaço ao
paternalismo, ao nacionalismo e à gratificação das massas; a coalizão heterogênea, que se
refere em geral à classe trabalhadora, mas que inclui setores significativos das classes médias;
a associação a um conjunto eclético de políticas adotadas durante períodos de modernização,
programas de integração nacional correspondentes aos problemas de subdesenvolvimento,
incorporando os trabalhadores ao processo de industrialização acelerada através de “medidas
redistributivas leves”.
Contraditoriamente, o autor destaca as características socialistas do grupo, em
especial a sua marca “anti statu quo”, a ênfase na classe trabalhadora e os objetivos socialistas
revolucionários. Tais características teriam sido acentuadas ao longo da sua trajetória devido
às insuficiências do governo de coalizão para realizar as transformações desejadas, causando,
nas suas palavras, a decadência do partido, para retomar um rumo mais independente a partir
34 DRAKE, Paul. Socialismo y populismo – Chile 1936-1973. Valparaíso: Universidad Católica de Valparaíso, 1992. 35 Ibidem, p. 10.
42
da década de 1950. Ainda que o grupo tenha enfatizado a sua ideologia, como o conflito de
classes, a manutenção da sua atuação no marco institucional reafirmaria sua característica
populista.
Estas afirmações contraditórias não permitem a inserção do partido no radicalismo
socialista ou na conciliação populista, tais como a questão da presença dos setores médios
como fator de moderação e flexibilidade para a formação de alianças com diferentes setores.
Ao mesmo tempo em que os intelectuais, que também são parte desses extratos médios do
grupo, são apontados como elementos que contribuíram para a radicalidade ideológica do
partido.
Primeiramente, podemos apontar a generalidade de um conceito que é utilizado para
definir movimentos políticos e correntes ideológicas as mais diversas surgidas em regiões tão
diferentes. Entendido como uma forma particular de ideologia ou um tipo de movimento, o
que se deve notar, especialmente nesta abordagem, é a demasiada atenção voltada para o
papel carismático e manipulador exercido pelos líderes políticos que canalizam anseios
populares e são beneficiados pela inexperiência política de seus representados.
O termo populismo, surgido na década de 1950, com o propósito de expressar a
singularidade da história latino-americana, foi utilizado na maioria das vezes como forma de
generalização de diferentes experiências políticas por meio do enquadramento destas em
modelos estabelecidos. Para os analistas, o termo faria referência especificamente ao processo
de reestruturação das relações políticas e econômicas das sociedades latino-americanas e que
visava essencialmente a integração subordinada de diferentes grupos sociais na nova ordem
política que emergia. Especialmente, o populismo serviria como salvaguarda contra eventuais
tendências revolucionárias das classes populares num momento em que essas passaram a
desempenhar um inédito papel político e social.36
36 O objetivo do presente trabalho não é alongar-se na discussão acerca do conceito de populismo, mas de apontar para a indevida utilização que é feita do termo para desqualificar a trajetória de diferentes movimentos ou personagens políticos, neste caso, especialmente, do socialismo chileno, preferindo negligenciar as especificidades que contribuíram para a composição da sua cultura política. Cf. ANDRADE, César Ricardo de. O conceito de populismo nas ciências sociais latino-americanas. Estudos de História, Franca, v. 7, n. 2, p. 69-84, 2000.
43
Entende-se aqui, que a compreensão da trajetória do socialismo chileno deve partir
da concepção de que a formação do Partido Socialista se deu no contexto de emergência de
uma diversidade de atores sociais e políticos com um conjunto de projetos contestadores da
ordem, bem como uma nova orientação para o desenvolvimento. Ao mesmo tempo em que
instituições estruturadas pelo liberalismo mostraram insuficiência para acomodar conflitos e
promover integração social no momento de emergência das massas. De acordo com Aggio:
Num país da periferia do mundo como o Chile e numa época em que os supostos do liberalismo, que haviam florescido e fulgurado no século XIX, encontravam-se inteiramente questionados, a reestruturação do papel do Estado assumia, sem dúvida, o lugar central como elemento definidor das ações políticas. Em relação a isso, não seria incorreto observar que um pano de fundo único estruturava os projetos políticos, dando um sentido propositivo ao final da década de 1930. Cada ator político, à sua maneira, realçava o papel do Estado no sentido de estimular, intervir ou nacionalizar a economia, regular e proteger o social, afirmar e incrementar a autoridade dos governos [...]37
O movimento modernizador que mobilizou parcela significativa da sociedade teve a
sua explicação política no conceito do populismo. Considerando que a passagem para a
modernidade na América Latina não se deu por meio de revoluções, a recorrente utilização do
conceito denota sobretudo o seu contrário, isto é, o antipopulismo.38 Nota-se nesse caso
específico que a utilização do conceito denota o rechaço à opção política do grupo que atuou
no marco das negociações institucionais, de maneira a rejeitar o modo de ação política do
Partido Socialista. Entendemos, no entanto, que é preciso ver a história da América Latina e
da formação desses grupos políticos no sentido de capturar a complexidade dessa história,
bem como a singularidade de cada um dos projetos políticos na região.
Nascido de um contexto de lutas políticas antagonistas que marcaram os anos vinte e
trinta no Chile, o PS se tornaria, a partir do final da década de 1930, um partido de perfil
concertacionista, fundado numa base reformista, e que, paulatinamente, e de acordo com as
conjunturas históricas, viveu a predominância do caráter confrontacional. Caráter do qual seus
intelectuais foram idealizadores, em meio a um mosaico de teorizações no interior do partido
que tinha um programa revolucionário e buscava assentar suas idéias no modelo do
socialismo científico.
37 AGGIO, op. cit., 1999, p. 89. 38 ANDRADE, op. cit., p. 80.
44
Deve-se observar que o PS foi importante para colocar questões urgentes na pauta
política chilena, canalizando reivindicações sociais para realizações positivas para a
população no quadro institucional, tornando-se um dos principais representantes políticos dos
setores sociais emergentes que requeriam o seu espaço; características que Drake insere no
denominado populismo. Trata-se, portanto, de um partido que se tornou anti-reformista, mas
que ajudou na realização de reformas.
É possível afirmar que o PS exerceu desde o início da sua atuação funções sociais
múltiplas, assim como grande parte dos movimentos sociais e políticos, tais como a mediação
entre a sociedade e o sistema político no momento de emergência de novos sujeitos sociais, na
contribuição para a formação de uma certa estruturação da opinião pela difusão da sua
ideologia, exercendo pressão sobre as autoridades em nome das categorias que ele defendeu,
bem como na expressão de conflitos e de anseios populares.
Para além das conquistas sociais, é preciso destacar o principal elemento
negligenciado nas abordagens de Walker e Drake. Diferentemente dos denominados governos
populistas, como o de Getúlio Vargas, no Brasil, a conquista obtida a partir da década de
1930, no Chile, se deu, principalmente, no plano político, pautado numa nova dinâmica
conciliatória, flexível e pragmática implementada pelos governos radicais (Partido Radical), e
que passou a ser referência central na vida política do país.
Em relação à esquerda, os partidos Comunista e Socialista não somente conseguiram
assegurar o seu papel de representantes dos trabalhadores, como também puderam aumentar
suas bases e seu prestígio para atuarem como forças proeminentes do processo político
nacional. Isso lhes permitiu assegurar a autonomia política e organizativa das classes
subalternas no processo de modernização que o país viveria a partir deste período,
diferentemente do caráter manipulador atribuído às lideranças populistas.39
A definição do partido como socialista é tratada como retórica para obter vantagens
eleitorais, como nota-se na afirmação de Drake:
O nacionalismo socialista tirava proveito do antiimperialiismo. Como o partido já havia notado, o “socialismo” e o “nacionalismo” eram as duas mercadorias políticas
39 AGGIO, op. cit., 1999, p. 20-21.
45
mais populares dos anos 30 e quase todos os candidatos tratavam de ter vantagem às custas desse sentimento. Os líderes do Partido Socialista lutavam para superar a seus concorrentes comunistas, falangistas [Falange Nacional] e nazistas para reclamar os símbolos populistas do socialismo e do nacionalismo.40
Apropriadamente, Moulian afirma que descartar a priori os discursos através dos
quais os atores políticos dão sentido às suas ações para colocar em seu lugar “a essência
destilada do analista” (a radiografia que “revela” os interesses reais que ocultaria a retórica)
pode obstaculizar a compreensão de certas maneiras de época de fazer política.41 Partindo
dessa concepção, é possível afirmar que abordagens, como a realizada por Drake, não foram
capazes de compreender a imbricação de elementos que compunham a cultura política do
socialismo.
Esta postura se evidencia numa divisão estanque da história desse movimento em
períodos de maior ou menor cunho revolucionário, condizente ou não com as teses da teoria
revolucionária do comunismo internacional, de maneira a encarar sempre a participação dos
grupos de esquerda na política institucional como errática, e atribuindo-lhe negativamente a
denominação de populista.
Nesta historiografia encontra-se ainda a apreciação do desenvolvimento do sistema
político chileno, entre 1932 e 1973, a partir da participação dos partidos marxistas no centro
de análise, especialmente as influências mútuas entre sistema e partidos socialista e
comunista. Ainda inserindo o movimento socialista no fenômeno do populismo, Julio
Faúndez caracteriza a trajetória institucional do PS como errática e oportunista42, e, assim
como as abordagens anteriores, ainda se pautam pelas mesmas categorias com que estes
processos foram analisados por seus personagens.
Ainda que o livro de Faúndez descreva passagens importantes de toda a história dos
dois partidos, com uma minuciosa relação com o movimento comunista internacional, a
abordagem comparativa das suas atuações não permite adentrar com maior profundidade nas
perspectivas teóricas e ideológicas que animavam o socialismo chileno.
40 DRAKE, op. cit., p. 128. 41 MOULIAN, op. cit., 1983, p. 243. 42 FAÚNDEZ, Julio. Izquierdas y democracia en Chile, 1932-1973. Santiago: Ed. BAT, 1992, p. 88.
46
É importante destacar que, para Faúndez, o desfecho desta trajetória, o governo da
Unidade Popular, representou o momento ideal para comunistas e socialistas concretizarem
suas teses acerca da revolução socialista. No entanto, “ambos aceitaram a tese de uma
transição através da institucionalidade democrática existente sem avaliar suas conseqüências
políticas”. Nas suas palavras:
Se ambos os partidos tivessem estudado com atenção as possibilidades de uma transição pacífica, poderiam ter adotado uma posição menos cândida acerca das virtudes do sistema vigente e uma atitude mais flexível com o Partido Democrata Cristão. Esta incapacidade do PS e do PC para prever as conseqüências da via ao socialismo que estavam propondo lhes impediu dispor de um critério para determinar a política do governo e calcular seu ritmo e alcance; nem a moderação comunista, nem o extremismo socialista foram convincentes. [tradução nossa]43
Pode-se observar neste excerto a permanência de uma perspectiva muito recorrente
nas diferentes análises do período do governo socialista, que consiste em apontar os
componentes imediatos da crise, em termos de problema de “condução política”, como
“incoerências de condução” ou “incoerências estratégico-táticas”. Como afirma Garretón,
estes problemas não são devidamente relacionados a uma questão teórico-ideológica mais
geral da esquerda, e se atribui, assim, os problemas à condução política do processo.44
Esta distinção entre correção do projeto ideológico-político e erros de condução
política parece estar na raiz de um modo de reflexão que se pergunta por funcionamento e
procedimentos, colocando, portanto, as soluções em nível de “ajustes e reajustes, e não pelas
tensões e contradições que estão na base ou na origem histórico-estrutural de um projeto
político”.
É possível apreender uma discussão acerca da origem destas tensões na análise
realizada por Alberto Aggio. O autor tem como preocupação entender o projeto da via chilena
ao socialismo no interior do processo conhecido como “a experiência chilena”, ou seja, numa
43 FAÚNDEZ, op. cit., p. 286-287. 44O autor defende a tese de que, no período em questão, o socialismo se caracterizava por um vazio teórico-ideológico, que, grosso modo, significa a ausência de uma teorização do caráter concreto e específico da fase histórica da revolução chilena, e um recurso permanente a um conjunto de categorias que obscureceram a compreensão daquele processo. No entanto, acreditamos que, ao contrário de um vazio, houve uma importante formulação teórica e ideológica, carregada de diversos elementos que compunham uma dada leitura daquela realidade, e que acarretou na formação e predominância de uma determinada cultura política que teve as suas conseqüências conhecidas. GARRETÓN, Manuel A. Continuidad y ruptura y vacío teórico ideológico. Dos hipótesis sobre el proceso político chileno. 1970-1973. Revista Mexicana de Sociologia, [s.l], v. 39, n.4, p. 1292, oct./dic. 1977.
47
diferenciação entre projeto e processo. Essa diferenciação visa possibilitar o entendimento do
lugar ocupado pelo projeto da via chilena ao socialismo no seio da esquerda articulada na
Unidade Popular, a partir da compreensão dessa tendência política desde o início da sua
trajetória.
Aggio destaca que havia no movimento da esquerda chilena elementos bastante
convencionais e consensuais que formavam a sua cultura política. Elementos indicativos das
dificuldades e das limitações da esquerda para consubstanciar a via chilena em uma via
democrática, uma vez que se encontravam assentados muito mais numa visão já cristalizada
do socialismo do que em subsídios fundadores de uma via nova e original para a construção
socialista. E, mais importante, demonstra por meio das discrepâncias internas da UP, os
fundamentos teóricos e ideológicos que compunham a cultura política da esquerda naquele
momento, cujos objetivos centrais, evidenciados no governo da UP, foram destacados no
seguinte excerto:
O socialismo era concebido pela Unidade Popular como uma construção histórica da classe operária em luta antagônica contra a burguesia, o que implicava, como solução deste antagonismo, a conquista pela classe operária do poder de Estado para, em seguida, transformar o seu caráter de classe. Tornando-se classe dominante, a classe operária procederia à socialização dos meios de produção que, ao lado do poder operário, criariam as condições para a extinção tanto do Estado como da sociedade de classes [...]45
Ainda que o objeto central do seu estudo seja o governo da coalizão, a discussão tem
grande importância para o presente trabalho na medida em que o autor reconstrói o
desenvolvimento político chileno, a partir da década de 1930, visando explicitar o processo
que permitiu à esquerda ocupar o seu espaço na política nacional de forma determinante, bem
como a trajetória desta tendência no sistema político do país.
As pesquisas de Drake, Faúndez e Walker foram de significativa importância dentro
do contexto em que estavam inseridas, especialmente, por elegerem como objeto de estudo o
tema do socialismo a partir da experiência de um país que viveu o fracasso do governo da
esquerda e com isso, as frustrações daí geradas. Este país vivencia, principalmente, o trauma
45 AGGIO, op. cit., 2002, p. 154.
48
decorrente da quebra do regime democrático e da imposição do golpe de Estado pelos
militares.
No entanto, o que buscamos frisar é que, para além da inserção do socialismo em
modelos pré-estabelecidos, numa leitura condicionada pelos resultados dos processos
políticos e de uma expectativa acerca do comportamento de um grupo político, buscando
comprovar um determinado tipo de ação política, pretende-se aqui compreender o
desenvolvimento de uma cultura política de ruptura com a trajetória concertacionista do
socialismo. Entender que esta cultura política, a partir de uma determinada concepção acerca
da sociedade chilena, e de uma leitura negativa da experiência da coalizão de centro-esquerda,
tornou-se predominante naquele movimento.
É preciso conceber que o desfecho dessa trajetória, o governo da Unidade Popular,
carrega esse “capital histórico acumulado”, desenrolado pelas posturas de sujeitos históricos
com as suas respectivas responsabilidades e por diferentes conjunturas, e não determinado
pelas tensões internas. Como destaca Jocelyn Holt:
Estamos frente a um governo que se sentia amparado por toda uma história de progressismo militante, em suas mais variadas versões: radical partidária[...] liberal-democrática, balmacedista, intelectual marxista, científico-positivista, operário-comunista, também anarquista, socialista pró-militar, socialista, desenvolvimentista estrutural [...] e universitária. Ou seja, uma trajetória que constituía um dos caminhos mais fecundos que transitaram no Chile desde o século XIX e XX tanto no político como no social e cultural.46 [tradução nossa]
É necessário, portanto, entender sua história, entre as décadas de 1930 e 1970,
marcada pelo encontro de elementos diversos que conformavam a sua cultura política, por
divergências e dissidências que deram origem a outros grupos socialistas. Característica que
marcou a dupla dimensão das suas relações com o sistema político, definida, por vezes, pela
integração, e outras, pela ruptura, tanto na ideologia quanto na prática.
Ao longo dos anos e das experiências vivenciadas pelo partido, concebidas
negativamente por parte da sua liderança, o vocabulário e as concepções marxistas estarão
mais presentes no grupo. Esta mudança ocorreu na medida em que ele se distanciava de
muitos pontos das suas teses iniciais, endurecendo em todos os domínios a sua posição,
46 LETELIER, Alfredo J H. El Chile perplejo: del avanzar sin transar al transar sin parar. Santiago: Planeta/ Ariel, 1998, p. 115.
49
sobretudo a partir de 1957, quando se dá a união do Partido Socialista Popular com o Partido
Socialista do Chile, sob a tese da Frente dos Trabalhadores. Este é, sobretudo, um momento
de renovação das suas lideranças, no qual nota-se um gradual predomínio das concepções
confrontacionais.
Como afirma Moulian, a política se desenvolve mediante a produção de um
“imaginário” onde a realidade aparece simbolicamente elaborada. Este artefato simbólico
serve para orientar a ação e para mobilizar vontades. Assim, destaca o autor, entender a
esquerda desse período requer recriar o campo cultural existente, entender os conflitos e
contradições que permitiram a germinação no Chile de um clima ideológico no qual era
“pensável” o pensado e era “desejável” o desejado.47
A partir destas considerações, a presente análise visa compreender a trajetória do PS
que foi pautada na sua efetiva participação nos rumos políticos do país por meio de alianças e
de compromissos com diferentes tendências, e que se denominará como uma cultura
concertacionista. Baseado nestas concepções busca-se destacar as transformações no âmbito
ideológico do socialismo, que vivenciaria o predomínio teórico e prático de uma postura
antialiancista e ruptural, no intuito de compreender o processo de radicalização do socialismo
chileno a partir da década de 1950.
A partir do emprego das novas abordagens adotadas para a análise do sistema
político chileno, e que, consequentemente, muito contribuíram para uma melhor compreensão
do movimento socialista, como os trabalhos de Tomás Moulian, Manuel Garretón e Alfredo
Jocelyn-Holt, no Chile, e Alberto Aggio, na historiografia brasileira, que analisa, mais
especificamente, o governo da Unidade Popular, entende-se que o presente trabalho poderá
trazer novas elucidações para esta temática que carrega grande significado para a história
política da América Latina.
Essa nova literatura acerca do período da Unidade Popular, que tem a sua maior
expressão nos trabalhos de Tomás Moulian e Manuel A. Garretón, apresenta uma análise
47 MOULIAN, op. cit., 1993, p. 233-234.
50
periodizada de forma mais ampla e suscita problemas até então não discutidos para refletir
sobre a esquerda que alcançou o poder em 1970, no Chile.
Merece destaque o trabalho realizado por Moulian, que aborda o desenvolvimento
político do país por meio da sua evolução democrática, tendo como centro de análise o
período caracterizado pelo “aprofundamento democrático”. Nesta linha analítica o autor busca
encontrar a explicação das tensões e conflitos do desenvolvimento político daquele país,
considerando os impactos das diferentes conjunturas e do clima cultural predominante no
período sobre a esquerda chilena.
Numa abordagem que abarca o período de 1947 a 1973, Moulian fornece uma rica
análise da estruturação de forças políticas e sociais a partir da hipótese de que a crise estatal
que estoura em 1973 teve uma lenta configuração durante o período de fortalecimento
democrático, inserido entre os anos de 1958 a 1973. Isso se daria devido a desajustes que se
desenvolveram naquele contexto, especialmente, pelas contradições criadas pelo tipo de
organização do campo das forças políticas.48 Essa bibliografia confere o suporte teórico para
desenvolver com maior clareza o momento que se entende ser o de uma grande polarização
ideológica no sistema político chileno e, especialmente, de radicalização do movimento
socialista do país.
Os elementos de destaque dessa configuração do campo de forças são: a existência
de uma pauta de representação política das classes dominantes através de partidos do tipo
conservador; o desenvolvimento de um centro político policlassista, mas com forte
representação entre as camadas médias e com um caráter alternativo; e, finalmente, a força
adquirida pela esquerda através da sua unificação política, em 1956, pautada num forte
discurso antireformista. Essa configuração do campo de forças é que define, portanto, a
natureza do desenvolvimento político a partir de 1958.
O enfoque do presente trabalho parte da perspectiva de que neste período apontado
por Moulian, como de “aprofundamento democrático”, o PS sofreu com impactos das
transformações políticas e sociais do país, bem como mudanças internas que marcam a
48 MOULIAN, Tomás. Desarrollo político y estado de compromiso. Desajustes y crisis estatal en Chile. Colección Estudios Cieplan, v. 8, n. 64, p. 105-158, jul. 1982.
51
cristalização de uma cultura política caracterizada pelo anseio de ruptura com uma trajetória
na qual a esquerda havia apostado, desde 1938. Entendemos que a inserção da esquerda no
sistema político institucional é o ponto de partida para a delimitação das disputas entre os
velhos e os novos atores no campo da esquerda, definindo e redefinindo os papéis que esta
venha a assumir na dinâmica política do país. Esta abordagem permite compreender a
singularidade da formação e do desenvolvimento da esquerda chilena e, principalmente, os
aspectos que compreendem as transformações da sua identidade.
As novas abordagens acerca do socialismo chileno possibilitam este entendimento
acerca das suas origens, bem como do significado dos processos que marcam a sua atuação na
política institucional até o alcance do poder. Este contexto é caracterizado pelo desenlace da
modernização do Estado, que passaria a ser tributário de um novo papel na economia,
combinado com a consolidação da democracia representativa no país. Para além de
caracterizar o principal representante da esquerda do país com esquemas pré-constituídos,
estes trabalhos permitem captar os múltiplos elementos que configuraram a sua identidade,
marcada, ora pela predominância de uns, ora de outros pressupostos.
Para compreender todos os meandros da dinâmica política que se desenhou a partir
da década de 1950 e se potencializou no período da Unidade Popular é necessário recriar o
campo cultural existente, entender esses conflitos e idéias que permitiram germinar no Chile
aquele clima ideológico. Para tanto, o contexto político que conforma o cenário histórico da
nossa pesquisa será abordado no segundo capítulo, que traça um panorama do período que
compreende as décadas de 1950 a 1970.
Para esta abordagem será destacado o novo panorama político, com os novos atores
em atuação nesse momento, os diferentes processos que dinamizam a disputa política,
destacando o espaço ocupado pelo socialismo, bem como os elementos da cultura política
socialista envolvidos nesse contexto. São subsídios que permitem obter uma melhor
compreensão da maneira como se desenha a polarização ideológica que culmina no 11 de
setembro de 1973 e, especialmente, das metamorfoses da cultura política do socialismo
chileno que alterariam, em alguns aspectos, a sua identidade.
CAPÍTULO 2
A EXPECTATIVA DA MUDANÇA
53
2.1 Transformações na cultura política do socialismo chileno
A violência revolucionária é inevitável e legítima. Resulta necessariamente
do caráter repressivo e armado do estado de classe. Constitui a única via
que conduz à tomada do poder político e econômico, e sua ulterior defesa e
fortalecimento. Só destruindo o aparato burocrático e militar do Estado
burguês, pode consolidar-se a revolução socialista.1.
O trecho em destaque vem ilustrar as concepções presentes nas novas orientações do
Partido Socialista empregadas por seus dirigentes e intelectuais no sentido de conferir uma
nova identidade ao grupo, a partir de um processo gradativo de radicalização dos seus
preceitos. Após aproximadamente duas décadas de história, numa trajetória construída por
alianças e projetos de caráter nacional-popular, que constituíram uma cultura política
concertacionista, pretende-se destacar neste capítulo os processos que mudariam seus
principais aspectos a marcariam definitivamente o seu curso.
Essa trajetória de atuação institucional e de compromissos políticos, expressa
especialmente na sua participação na Frente Popular, permite afirmar que o PS foi uma força
política que contribuiu decisivamente para que a esquerda chilena adentrasse ao sistema
político. Mas é correto afirmar também que esse foi um dos principais motivos das suas crises
internas. Os problemas apresentavam-se sempre quanto ao comportamento das suas lideranças
em relação à política geral do partido.
Em outras palavras, a questão que sempre esteve presente foi a de conectar o
processo de reformas dos governos radicais à perspectiva de construção do socialismo. No
entanto, ultrapassada a fase da FP, os socialistas continuaram a viver dissidências internas,
tendo como pano de fundo a questão da sua identidade originária e das perspectivas quanto às
formas de atuação no sistema político. As tensões vividas no interior do PS podem ser
identificadas a cada década, pelo impacto que os processos políticos e sociais e as suas
modificações internas exerceram sobre o grupo, ampliando, gradativamente, o nível de
radicalização desse partido.
1 XXII Congresso Geral Ordinário de 1967. In: JOBET, Julio César. Historia del Partido Socialista de Chile.
2.ed., Santiago: Ediciones Documentas, 1987, p. 313.
54
A radicalização do socialismo chileno, característica do período de 1950 a 1970, teve
a sua germinação num momento de mudança das suas lideranças, que trouxeram consigo a
obsessão pela idéia do atraso, da decadência, de uma crise total daquela sociedade que seria
resolvida somente com a revolução socialista; horizonte que inicialmente se mostra distante,
mas que foi se afirmando de acordo com as conjunturas. É possível identificar a raiz desta
inflexão na década de 1940, a qual se iniciou com a saída de dois dos principais nomes da
geração fundacional do PS, e que representavam a defesa da participação do partido nos
governos radicais e os princípios característicos da década anterior.
Marmaduque Grove, após ser derrotado em eleições internas que envolveram
intensos debates acerca dos rumos e, especialmente, da identidade do partido, retirou-se para
fundar o Partido Socialista Autêntico (PSA); além de Oscar Schnake, que se tornou
embaixador no México e não retornou mais para a política partidária. Tinha início no PS uma
revisão profunda da sua prática política no intuito de conformar uma nova e determinada
identidade.
Vale ilustrar o contexto de forte questionamento aos rumos adotados no partido, a
partir de um intenso debate estabelecido entre Jobet e Grove, em 1942. Jobet, como um dos
componentes da ala denominada “anticolaboracionista”, manifestou seu posicionamento com
relação à participação do partido no governo, no prólogo do livro de Humberto Mendoza, E
agora? O socialismo móvel do pós-guerra. Trata-se de um trabalho no qual Mendoza tece
duras críticas à participação do PS numa coalizão de centro-esquerda, afirmando que “se o
socialismo participa de governos, é porque a burguesia o quer para deter a revolução”. As
críticas de Jobet seguem o mesmo tom da obra de Mendoza, afirmando que a participação do
partido em um governo “deveria se dar em função da tomada do poder, e não da conivência
com o governo, que derrotaria a revolução, e seguiria servindo de sustentação ao regime
burguês”.2
Em meio a esse debate interno a respeito da manutenção do apoio ao governo radical
de Juan Antonio Rios, no qual a direção partidária era favorável e enfrentava forte oposição
2 JOBET, op. cit., 1987, p. 162-164.
55
interna, a publicação deste livro com a participação de um representante socialista, além dos
diversos periódicos críticos publicados no período, Grove acentuou ainda mais as disputas
internas. Expulsou alguns dirigentes, proibiu a circulação dos periódicos do partido e, por
meio de um comunicado, condenou a leitura do livro de Mendoza.
A maioria dos críticos socialistas visualizava a decadência do seu partido neste
momento por sua “obediência” à cultura e às tradições chilenas, e por seus desvios em relação
aos princípios marxistas. Suas críticas pautavam-se na participação socialista em um governo
centrista que, consagrado cada vez mais por um modelo de desenvolvimento, teria “afirmado
o sistema capitalista no país”. No ano de 1940, localiza-se, portanto, a primeira divisão do
partido, que contou ainda com a saída dos denominados “inconformistas” para formar o
Partido Socialista dos Trabalhadores.
Podemos afirmar que começava a se delinear no PS uma postura ruptural que seria
predominante nas décadas seguintes, a partir da afirmação de uma determinada leitura daquela
realidade com elementos que passaram a compor aquela cultura política. Trata-se de uma
postura que visava romper com a trajetória de inserção de projetos reformadores na política
institucional. O XI Congresso do PS, celebrado em Concepción, em 1946, concretizou a
vitória do “anticolaboracionismo”, liderado por Raul Ampuero, que já havia alcançado a
liderança da juventude do partido, em 1942.
A incorporação de três ministros socialistas ao governo de Rios seria o último ato de
colaboração oficial do partido e, a partir da vitória desta nova liderança, o partido adquiriria
paulatinamente uma fisionomia distinta. A geração de líderes como Marmaduque Grove,
Eugenio Matte e Oscar Schnake, era substituída por uma nova composição liderada por
Ampuero e com a participação de Eugenio González, os quais assumiriam a condução do
partido, em 1946, definido como “revolucionário e de classe”.
Nesse quadro de debates que colocavam em pauta a postura e a identidade ideológica
do partido foi convocada uma Conferência Nacional de Programas, para 1947, cujo programa
foi redigido por Eugenio González, considerado um dos principais intelectuais do PS. O
importante a destacar da sua formulação para o Novo Programa Socialista é o tratamento do
56
tema mais controverso no interior do socialismo chileno que vai percorrer toda a sua
trajetória: o tema da democracia. Ainda que fiel à postura classista e à temática da revolução
na perspectiva do PS, González contrariava um dos pontos da proposição do socialismo
chileno que concebia a democracia apenas como um “instrumento temporário e útil”, e toda a
ambigüidade daí gerada.
González foi um dos poucos dirigentes socialistas a expressar uma visão não-
instrumental da democracia, conectando-a a sua visão de revolução socialista no Chile. Ao
afirmar uma concepção no “humanismo socialista”, destacava que a revolução socialista
aprofundava a revolução burguesa nas suas dimensões positivas. O socialismo, para
González, era revolucionário por seus objetivos, por ser anticapitalista e antitotalitário; e seus
meios deveriam ser adequados aos fins perseguidos. Nas palavras de González:
O socialismo é revolucionário. A condição revolucionária do socialismo radica na natureza mesma do impulso histórico que ele apresenta. Não depende, portanto, dos meios que ele emprega para conseguir seus fins. Sejam estes quais forem o socialismo é sempre revolucionário porque se propõe a mudar fundamentalmente as relações de propriedade e de trabalho, como princípio de uma reconstrução completa da ordem social. As condições objetivas e subjetivas determinarão em cada país as características para que se desenvolva o processo revolucionário.3 [tradução nossa]
Nota-se que o pensamento de González expressa, em linhas gerais, os pressupostos da
política que estará presente na ação de Salvador Allende através do projeto da via chilena ao
socialismo. E, ainda que esta linha preconizada por González não tenha sido hegemônica no
interior do socialismo, pode-se afirmar que nos programas posteriores do PS e nas disputas
eleitorais das quais o partido participou, a recorrência a algumas das idéias desta formulação
foi freqüente, especialmente no que se refere aos meios empregados para a revolução
socialista, uma das expressões das ambigüidades do grupo.
Esta postura ambígua em relação à democracia constitui uma das principais
características dessa cultura política que começava a se afirmar. Não obstante a democracia
ter sido para a esquerda chilena o espaço vital para o seu desenvolvimento, na concepção
desta esquerda, valorizar positivamente a democracia chilena – encarada como a ordem da
3 GONZÁLEZ, Eugenio. La Conferencia Nacional de Programas de 1947. In: JOBET, op. cit., 1987, p. 198.
57
classe dominante – era associado ao reconhecimento de virtudes nos agentes sociais que se
atribuíam a paternidade do Estado chileno: a oligarquia e, mais tarde, a burguesia.4
Os debates internos se intensificavam e o partido começava a sofrer as primeiras
divisões. Em 1948, o Partido Socialista sofreu uma significativa fissura interna que, sem
dúvida, marcou profundamente este processo de revisão da prática política do grupo e de
tentativa de redefinição do seu perfil político-ideológico. A divisão ocorreu após a decretação
da Lei de Defesa Permanente da Democracia, pelo governo radical de Gonzáles Videla que,
entre outras medidas, proscreveu o Partido Comunista.
A cisão do PS se deu devido à manifestação de apoio de um grupo do partido a estas
leis repressivas. Este grupo de parlamentares socialistas, liderado por Bernardo Ibáñez e Juan
B. Rosseti, havia sido derrotado no último congresso do partido, e foi expulso do grupo
devido à votação favorável às leis. O grupo se manteve como Partido Socialista do Chile,
enquanto que o conjunto liderado por Ampuero passou a compor o Partido Socialista Popular
(PSP). Entre seus membros permaneceram Eugenio González, Alejandro Chelén, Salvador
Allende, Clodomiro Almeida, Belarmino Elgueta, enfim, os membros que compunham
majoritariamente o Partido Socialista.
As divisões internas ocorridas no partido, ao longo da década de 1940, provocaram
um declínio na sua representação eleitoral, o que estimulou nas correntes socialistas que se
mantiveram na oposição ao último governo do período da FP a apoiar a candidatura de Carlos
Ibáñez del Campo, em 1952, à Presidência da República, cujo governo é caracterizado pela
historiografia chilena como populista. Segundo a orientação do PSP, não se tratava de uma
aliança formal permanente, mas de uma ação comum com grupos políticos de orientação
progressista, cujos esforços deveriam convergir para um propósito coletivo. Além disso, o
objetivo era o de empreender um ataque à gestão repressiva e “antipopular” do governo de
Gonzáles Videla.5
4 Cf. SCHILLING, Marcelo. Hacia una crítica de la interpretación histórica de izquierda en Chile. Santiago de Chile: Vector. Centro de Estúdios Económicos y Sociales, 1984. (Temas Socialistas, n. 2). 5 Devido ao apoio declarado a Carlos Ibáñez, o PSP sofreu uma cisão, da qual o grupo egresso formou o Movimento de Recuperação Socialista, que, em seguida, uniu-se ao Partido Socialista do Chile. Salvador Allende também deixou o grupo e concorreu às eleições presidenciais como representante da aliança socialista-comunista, denominada Frente do Povo, constituída pelo Partido Socialista do Chile, pelo Partido do Trabalho e pelo Partido Comunista que ainda estava na ilegalidade, e obteve 5,45% dos votos. O ingresso de Allende no PSCH significou uma modificação da linha política desse grupo, até então fortemente anticomunista.
58
Podemos considerar que o forte apelo nacional-popular, bastante presente na cultura
política do socialismo chileno e, especialmente, o forte tom crítico de Ibáñez dirigido aos
partidos políticos se constituíram em elementos atrativos para este setor socialista. É possível
afirmar que o desprestígio do Radicalismo como força política governante e,
consequentemente, do modelo de alianças empreendido por este grupo até então, e as divisões
no seio da esquerda, neste início da década de 1950, possibilitaram a eleição presidencial de
Carlos Ibáñez, que já havia governado ditatorialmente o Chile entre os anos de 1927 e 1931.
Para firmar o apoio a Ibáñez, o PSP fez uma série de exigências a serem atendidas no
programa de governo, entre as quais, destacam-se a revogação da Lei de Defesa da
Democracia, a reforma agrária, a liberdade e independência do movimento sindical, além da
oposição do partido a toda manifestação de tipo “peronista ou fascista”. Este apoio se desfez
já em 1953 por entenderem os socialistas que a postura do governo não era condizente com as
propostas iniciais, além do fraco desempenho eleitoral do PS nas eleições parlamentares,
como podemos notar nas cobranças de Raul Ampuero:
[...] o partido acreditava ser possível impulsionar uma política encaminhada realmente a destruir os privilégios da oligarquia e a livrarmo-nos da pressão imperialista. Reclamamos com insistência do governo uma ação desta natureza, e observamos em muitos dos integrantes do Ministério não somente inescusáveis vacilos, mas inclusive abertas concomitâncias com os grupos tradicionalmente inimigos dos trabalhadores.6 [tradução nossa]
Após o fracasso da participação socialista no governo Ibáñez, o PSP reconsideraria
suas posições através de novos debates internos de textos de seus dirigentes, de análises
marxistas da condição nacional de atraso e dependência, das lutas populares e da condição do
movimento operário. Neste início da década de 1950 haveria uma reorganização da política da
esquerda chilena, bem como do movimento operário nacional.
Os sindicatos voltaram a se unificar em torno de uma única organização, a Central
Única dos Trabalhadores (CUT), sob controle dos comunistas e socialistas, e os dois partidos
passaram a estruturar uma nova política de alianças, tendo como central o eixo socialista-
comunista; política pautada numa leitura negativa da experiência dos governos de coalizão de
centro-esquerda.
6 AMPUERO, Raul. XVI Congreso General Ordinario. In: JOBET, op. cit., 1987, p. 209.
59
As novas postulações do socialismo chileno se baseavam numa dada leitura da
realidade nacional e de uma determinada interpretação ideológica da mesma para elaborar
uma estratégia de transformação econômica, política e cultural do país. Nota-se nestas
interpretações a sustentação do caráter eminentemente capitalista e dependente do país e a
postulação do conteúdo classista da revolução chilena, na medida em que questionava a
potencialidade progressista, democrática e antiimperialista da burguesia nacional, a partir da
obsessiva afirmação da condição de atraso do Chile.
Este processo de afirmação de uma identidade classista começava a cristalizar a
proposta de aliança restrita aos trabalhadores para impulsionar um processo de transformação
daquela sociedade. É possível indicar que neste contexto começa a se afirmar a sobreposição
da lógica de confronto entre classes sobre a lógica presente nos anos iniciais do partido,
caracterizada por uma perspectiva de transformação mais integradora do que confrontacional.
Neste contexto estão presentes as raízes da tensão ideológica que configurará a
trajetória do socialismo até a quebra do regime democrático, em 1973. Tensão derivada tanto
dos traços das mudanças do sistema social, a partir da quebra do poder oligárquico, com
novas pautas e demandas políticas e sociais, como do clima ideológico prevalecente na
década de 1960.
Esse momento de redefinição culminou com a reunificação do socialismo por meio
da fusão entre o Partido Socialista do Chile e o Partido Socialista Popular, pautada na nova
linha política que marcaria definitivamente essa transformação na história do socialismo
chileno. Trata-se da linha da Frente dos Trabalhadores que abarcava pressupostos colocados
desde o final dos anos quarenta, e que foi adotada no XVI Congresso do PSP.
O importante a destacar deste programa é a orientação dos socialistas populares de
crítica à experiência das frentes com os “partidos burgueses”, como indicou-se acima.
Orientação ilustrada nas palavras de Jobet:
[...] era a hora de endurecer a luta, definindo-a sob objetivos revolucionários, de acordo com as aspirações de classe dos trabalhadores, e em tal sentido, unicamente uma frente de partidos operários e a CUT, uma Frente de Trabalhadores poderia conduzir adiante, sem render-se, uma política de classe sob a consigna de Revolução
ou Miséria, proclamada no XVI Congresso Geral do PSP.7 [tradução nossa] [ grifos nossos]
7 JOBET, op. cit., 1987, p. 217.
60
Este passou a ser o ponto central da discussão no interior da esquerda, o caráter das
alianças a serem formadas, numa disputa que envolvia a proposta da Frente dos
Trabalhadores, dos socialistas, e a proposta da Frente de Libertação Nacional, do Partido
Comunista. Para os socialistas, a proposta de uma aliança mais ampla utilizava-se do pretexto
de “não isolar a classe operária”, e passava por cima das fronteiras de classe para beneficiar
aos partidos burgueses. Crítica que era, no entanto, equivocada, já que os comunistas
propunham o eixo da aliança comunista e socialista.
A proposta do PSP, pautada em uma leitura negativa da sua participação em alianças
de governo, especialmente da FP, baseava-se numa concepção de revolução na qual as
transformações econômicas ocorridas na revolução democrático-burguesa se realizariam nos
países latino-americanos através de uma revolução socialista.
Estas idéias presentes nos textos de González, Jobet, Ampuero e Oscar Waiss, com
as suas variações, sustentavam que a “tese da revolução por etapas” só era aplicável aos
países capitalistas avançados, que contavam com uma burguesia autônoma e capaz de realizar
reformas modernizadoras. Para eles, os países “semi-coloniais e dependentes”, como os da
América Latina, contavam com burguesias que eram aliadas das oligarquias e do
imperialismo, inimigos da classe operária. Sendo assim, defendiam a formação de uma
aliança que representasse aos trabalhadores.
A solução intermediária encontrada nesse debate foi a proposta de uma revolução
democrática de trabalhadores com vistas à formação da República Democrática dos
Trabalhadores, com a tarefa de realizar os objetivos dos socialistas. Tarefas como a
socialização dos meios de produção e transformações de ordem política, econômica e social,
com caráter antiimperialista, classista e democrático, porque, segundo os socialistas, visava
ampliar a soberania popular e criar as condições para o socialismo. Em 1956, com uma
pequena ampliação do bloco, a aliança passou a denominar-se Frente de Ação Popular
(FRAP), e já ambicionava disputar as eleições presidenciais de 1958.8
8 A FRAP era constituída pelos grupos: Partido Socialista Popular, Partido Socialista do Chile e Partido Democrático Popular, além do, ainda proscrito, Partido Comunista.
61
No ano seguinte, no XVII Congresso Geral do PSP selou-se a unificação socialista
através da união deste com o Partido Socialista do Chile, sob esta última sigla. O documento
da unificação redigido por Jobet registra a ênfase no resgate de aspectos antireformistas e de
classe, e de defesa dos princípios colocados na formação da FRAP:
1º Que a unificação socialista se realize de acordo com uma leal adesão aos princípios, programas e métodos do socialismo revolucionário, como expressão teórica e política da classe trabalhadora; 2º Que a unificação socialista abra uma nova etapa no desenvolvimento do socialismo no Chile, tanto por sua reconstituição como movimento revolucionário, eliminando toda dualidade de princípios e política, como por sua posição de vanguarda das classes populares em luta com as classes de posse e contra o imperialismo, pela derrocada do regime capitalista.9 [tradução nossa]
De acordo com Aggio, este processo solidificou o início da nova fase do movimento
da esquerda chilena, bem como do momento que vivia o movimento operário, desde o início
da década. As mudanças na esquerda, ocorridas através da crítica aos rumos adotados nas
décadas anteriores, da proximidade programática e da agenda política colocada diante dela –
com a reunificação do movimento sindical, lutas de massas (greves gerais de 1954, 1955 e
1956) e a necessidade de redemocratização política –, comunistas e socialistas passaram a
buscar uma composição eleitoral forte para a disputa de 1958.10 Seguindo os pressupostos da
tese da Frente dos Trabalhadores, a FRAP lançou como candidato à Presidência da República,
Salvador Allende, sob a consigna “un camino nuevo, un candidato popular y un programa de
lucha”.11
Ainda que os intelectuais socialistas não citassem frequentemente suas fontes
ideológicas, é possível observar nestas formulações influências trotskistas a partir de alguns
elementos da “teoria da revolução do atraso”, especialmente sob dois aspectos fundamentais:
o caráter de classe da revolução e a concepção de revolução como um processo contínuo,
ininterrupto, e não etapista.
Trotski concebia a revolução permanente como a única solução possível para realizar
a modernização numa sociedade considerada atrasada, cuja característica, por razões
históricas, como o colonialismo, é a submissão ao impacto de outras sociedades, definidas
9 JOBET, op. cit., 1987, p. 226-227. 10 AGGIO, op.cit., 2002, p. 89. 11 JOBET, op. cit., 1987, p. 240.
62
avançadas, cujo impacto é traumático, e obriga a sociedade atrasada a adotar novas formas de
produção econômica.
Nesta teoria da revolução permanente, Trotski entendia que deveria se transitar dos
objetivos burgueses para os objetivos socialistas, e que caberia ao proletariado a tarefa de
realizar as reformas burguesas, sem atribuir, no entanto, um caráter burguês à revolução, e
falar das perspectivas, a longo prazo, numa revolução que deve ser definida por seus fins
últimos. A solução consistia em reencontrar o caminho de um verdadeiro movimento de
massas em uma ação política através da qual fosse criada uma estrutura institucional que
servisse como expressão da classe operária e do movimento.12
A intelectualidade socialista, ainda que tenha buscado uma caracterização mais
correta do Chile, não mostrou avanços nas suas avaliações e projetos políticos. Suas teses
ficaram marcadas por modelos que, ao destacar as especificidades locais, buscou mais
legitimidade como expressão do movimento revolucionário nacional do que a apresentação de
projetos genuínos. Com uma limitada interpretação das particularidades chilenas, suas
propostas se mostraram bastante convencionais, com enfoques recorrentes na linha
revolucionária dominante no período.
Sobre este aspecto, Moulian firma, comparativamente, que as funções intelectuais no
Partido Comunista se restringiam a aplicar à realidade nacional a linha “leninista universal”,
difundir essa linha, considerada como um saber teórico já constituído e provado, e absorver as
modificações que, ao ritmo das mudanças históricas, deviam realizar os centros dirigentes do
movimento. Para o autor, esse pode ser apontado como um dos fatores para a primazia
intelectual exercida pelo socialismo no movimento da esquerda chilena, em detrimento da
dificuldade de influência teórica do comunismo sobre os diferentes setores políticos e sociais.
Para Moulian, a dependência teórica e política do PC em relação ao movimento
internacional teria se evidenciado na etapa de união da esquerda sob o prisma da criação do
governo popular, na qual se revelaram as debilidades dos comunistas para influenciar
12 Estas idéias estão presentes no seu estudo voltado à compreensão das particularidades da sociedade russa e foi destinado a pensar também uma teoria da revolução socialista que fosse aplicável às sociedades atrasadas. Cf. HOBSBAWM, Eric J. (Org.). História do marxismo: o marxismo na época da III Internacional: problemas da cultura e da ideologia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
63
intelectualmente o movimento esquerdista. Entre as evidências dessa debilidade estariam
fatores como a dificuldade em reformular suas interpretações históricas tradicionais sobre a
sociedade e sua fraqueza diante do veto socialista, o que o obrigava a contemporizar com a
visão esquerdista desse grupo, e o seu apego à tradição das análises do PCUS, visão que o
impedia formular uma concepção de “socialismo nacional”.13
No entanto, nota-se que a dependência intelectual com relação ao movimento
internacional não se trata de uma característica exclusiva do comunismo no Chile. As
formulações historiográficas e políticas que orientavam o movimento socialista se
caracterizavam pela tentativa de implementação mecanicista das formulações teóricas do
movimento comunista internacional, configurando-se suas postulações em incompreensões
acerca das especificidades daquela sociedade, restringindo as suas caracterizações políticas,
sociais e culturais a aspectos essencialmente econômicos.
Nestas proposições do socialismo chileno, estão presentes elementos como
nacionalismo, antiimperialismo e, principalmente, a revolução, que tinha o seu significado no
rompimento com o “Estado burguês”, o mais novo elemento da sua cultura política.
Utilizaram-se conceitos e interpretações-chave convencionais que se colocavam como
desafios para a esquerda, demonstrando sua limitação na formulação de proposições que
superassem o âmbito da estrutura econômica e que abarcassem o aspecto político e de novas
relações sociais no interior da sociedade projetada.
Podemos afirmar que estas novas características assumidas pelo PS, nas quais a
importância da ideologia na sua ação adquire contornos cada vez mais decisivos, agiram tanto
como uma força de atração e de mobilização, como acabou se revelando como a fonte da
deformação da sua percepção da realidade e, consequentemente, do sentido da sua prática.
Esta inflexão política e ideológica do Partido Socialista neste período deriva também da sua
inserção internacional e do efeito que determinadas influências externas tiveram em seu
desenvolvimento, especialmente no contexto da Guerra Fria.
13 MOULIAN, op. cit., 1983, p. 36-38.
64
É importante observar que a sua proposta de “socialismo revolucionário” emergiu,
principalmente, como resposta ao imperialismo norte-americano e ao bloco soviético, bem
como em apoio às lutas de libertação nacional, ao longo das décadas de 1950 e 1960, como da
Iugoslávia, de Cuba, da China e do Vietnã, sempre citados como os novos referenciais
externos do partido. Estas experiências indicavam, para o PS, a “possibilidade de um
socialismo alternativo frente ao modelo stalinista”.14
A Iugoslávia se apresentava como o caso ideal para os socialistas, não só por sua
experiência no campo da autogestão, mas também pelo seu não-alinhamento no plano
internacional, levando os líderes Raúl Ampuero, Aniceto Rodríguez e Oscar Waiss a
visitarem o país, em 1955.15 A relação entre socialistas chilenos e iugoslavos intensificou as
tensões com o Partido Comunista chileno, especialmente depois que a URSS rompeu relações
com a Iugoslávia, em 1958.
Mas a influência de maior impacto sobre o socialismo chileno foi o advento da
Revolução Cubana, em 1959. Esta experiência evidenciava na cabeça dos dirigentes
socialistas a possibilidade de uma revolução na América Latina em desafio ao poderio norte-
americano, demonstrava que era possível saltar etapas, questionava a tese da “via pacífica” ao
poder, além de ser uma exper iência nacionalista, americanista, antiimperialista e,
principalmente, não inserida na política de blocos da Guerra Fria.
O tema da Revolução Cubana foi intensamente debatido e divulgado nas publicações
socialistas, a partir das quais podemos apreender a crescente radicalização do seu discurso
impulsionada pela experiência vizinha. Para os dirigentes e intelectuais do partido, a iniciativa
cubana legitimava pressupostos defendidos por dirigentes do grupo, tais como o rompimento
com um modelo de política de alianças e a afirmação da lógica de enfrentamento de classes.
Nas palavras desses membros, esta revolução rompia os “esquemas de unidade nacional, de
colaboração de classes e validava a utilização da violência nas lutas políticas”.16
14 WALKER, op. cit., p. 48-49. 15 Como resultado dos registros da viagem, além da publicação de diversos artigos sobre o tema, Oscar Waiss publicou, em 1956, o ensaio Amanecer en Belgrado, pela Prensa Latinoamericana, editorial socialista dedicada a uma série de produções sobre as questões do subcontinente. 16 CORBALÁN, Salomón. Perspectivas de la Revolución Cubana. Arauco, Santiago, n. 19, p. 5-8, ago. 1961.
65
Ainda que a estratégia da luta armada não tenha sido de fato recorrida no PS e não
tenha sido pensada concretamente como uma via de acesso ao poder por suas lideranças,
tendo impacto sobre uma minoria castrista, a referência ao processo foi utilizada até como
forma de radicalização do discurso. Trata-se de uma “retorificação romântica”, no sentido de
fortalecer a idéia da necessidade de uma revolução socialista para superar o imperialismo, esta
vocalizada como uma insurreição.
Estes anos de 1957 e 1958 registraram o final da fase de “democracia restrita” e o
início do impulso de democratização que marcaria a década de 1960 e o início dos anos
setenta. No final da década de 1950, em virtude das dificuldades econômicas pelas quais
passava o país, derivadas da política econômica adotada pelo governo Ibáñez, gerou-se um
clima propício às mudanças políticas.
A união da esquerda foi favorecida ainda pela reforma da legislação eleitoral
conquistada através da união de diversos partidos do Parlamento, o Bloco de Saneamento
Democrático, com exceção da direita, que, dentre outras coisas, revogou a lei que excluía os
comunistas do sistema político. Este período que se abre com reformas políticas foi
extremamente significativo para a esquerda que se mostrou com uma força considerável no
plano parlamentar.
O desempenho de Allende nas eleições de 1958 favoreceu a estratégia comunista do
“caminho pacífico”, fortalecendo sua consigna “hacia un gobierno popular”, com um
programa eleitoral que expressava aspectos consensuais de uma etapa de transição ao
socialismo, mas mantendo apenas correntes de esquerda, conforme propugnavam os
socialistas.
Como uma indicação de recuperação do sistema partidário, o quadro eleitoral se
apresentou bastante fragmentado, com quatro candidaturas com potencial de vitória. A direita,
representada por Jorge Alessandri, venceu as eleições com uma proposta de modernização
bastante diversa daquela empreendida pela FP. Visando um “governo próprio”, no qual se
rejeitava a política, Alessandri mergulhou o país em desequilíbrios econômicos.17 Além disso,
17 AGGIO, op. cit., 2002, p. 91-92.
66
essa postura apolítica tornou a direita incapaz de reproduzir-se politicamente no contexto de
democracia pluralista que se acendia novamente, um momento que abriu espaço para
experiências de reordenação integral do país.
Como desdobramento de todo o processo político-social que caracterizou o fim do
ciclo dos governos Radicais e da fase de “democracia restrita”, o Chile conheceu, na década
de 1960, processos que afetariam fortemente o sistema político. Observa-se uma imensa
ampliação da representatividade política, com um aprofundamento do realinhamento político-
partidário que havia se iniciado na década anterior, assim como a chamada fase das
“alternativas globais”, principalmente, a partir da emergência da Democracia Cristã e do
fortalecimento da esquerda.
O período compreendido entre meados da década de 1940 e a década de 1960,
consiste no principal contexto de transformações na cultura política socialista, que se
converterá numa alternativa real de mudança do país, a partir da expansão da sua ideologia
revolucionária. O grupo marcadamente concertacionista da década de 1930, não mais
caracteriza o socialismo deste contexto.
Este socialismo se mostrou obcecado pela idéia do atraso e da necessidade da
revolução, para apresentar-se como a única alternativa que, por sua radicalidade, podia
superar o capitalismo, mas que se mostraria incapaz de propor uma alternativa política viável
dentro daquelas condições políticas e sociais. Suas postulações se prenderam mais à busca
pela fórmula para aplicar a revolução do que com a análise teórica da história e das condições
sociais e políticas específicas do Chile, ainda que, retoricamente, o socialismo buscasse
afirmar a sua originalidade na reflexão acerca da história nacional.
As novas lideranças socialistas negligenciaram a necessidade de compreender a
composição de um país que se estruturou politicamente, no início do século XX, pautada em
projetos de transformação da sociedade que combinavam mudança e gradualismo, a partir de
um padrão de institucionalização dos conflitos, e que teve, além dos setores populares, as
classes médias como atores centrais nos processos decisórios da política nacional. Este,
portanto, é o socialismo que devemos ter em mente para compreender a dinâmica política
67
desenhada nos anos sessenta, marcada pela forte polarização, que além do fortalecimento da
esquerda nacional, assistirá a emergência de uma nova e forte opção política centrista.
2.2 Uma nova configuração política e ideológica
A eleição presidencial de 1958 marcou a nova configuração de forças no sistema
político chileno que iria prevalecer, em linhas gerais, até a quebra do regime democrático, em
1973. Nesse período de “aprofundamento democrático”, uma das principais características do
sistema partidário é o que se denomina como uma forte polarização tripartida configurada
com a esquerda unificada, a direita e um novo centro político com grande capacidade
mobilizadora e que não apresentava a tendência pendular característica do PR. Pode-se
afirmar que o acontecimento político de maior importância desse período foi a emergência
desta força de centro ideologizado, que modificaria o caráter do sistema político prevalecente
desde o final dos anos trinta, cujo funcionamento se dava com um centro mais pragmático e
menos carregado de um discurso revolucionário.18
Falar em recriar o “campo cultural” do período requer compreender que a década de
1960 estava profundamente caracterizada pelo auge das tendências de “alternativas globais”
que se expressaram, por um lado, favorecidas por fenômenos externos, como a
desestalinização e uma nova confiança na possibilidade do socialismo em função da vitória da
Revolução Cubana.
No âmbito interno, pela aposta no fim dos compromissos característicos das décadas
anteriores, especialmente por parte da esquerda, e na consolidação das idéias modernizadoras
com mudanças estruturais, propiciada pelo centro ligado à proposta da Aliança para o
Progresso, estratégia diplomática norte-americana para o desenvolvimento da América Latina,
que buscou evitar o avanço dos ideais comunistas na região.
O período iniciado com as reformas políticas e eleitorais de 1957-1958 encontrou o
movimento sindical reorganizado, bem como a esquerda unida, representada na FRAP e
18 MOULIAN, op. cit., 1993, p. 183.
68
politicamente forte, após as vitórias no plano parlamentar. Por outro lado, este período
também conheceu a emergência da Democracia Cristã, que ocuparia importante espaço no
centro político, bem como a vitória da direita nas eleições presidenciais, conquistada,
principalmente, devido à fragmentação em que se encontrava o quadro político.
As dificuldades presentes durante a formação da FRAP no que se refere às
concepções divergentes de ambos os partidos quanto ao formato da aliança política,
mantiveram-se no momento de apresentar a candidatura presidencial de Allende, em 1958. Os
comunistas buscavam uma frente ampla, em função dos objetivos democráticos e
antiimperialistas, e do momento político do país, em que o centro ainda não aparecia como a
principal força de disputa com a esquerda, como se apresentaria no pleito seguinte, e das
possibilidades de vitória diante da direita.
Os socialistas, por sua vez, negavam-se a participar de alianças estáveis com forças
de centro, buscando já caracterizar a coalizão de esquerda como um grupo “classista”, em
defesa da criação do “Estado democrático de Trabalhadores”. Nota-se que, internamente, o
partido vivia um momento de completa afirmação dos novos princípios que o regiam. Mesmo
antes da Revolução Cubana, a projeção da construção do socialismo por meio da união da
esquerda se intensificou, através de discussões acerca da sua identidade, lideradas por nomes
representantes dessa cultura política que começava a predominar, como o de Salomón
Corbalán e de Raúl Ampuero.
A aposta na mudança estrutural adquiria legitimidade entre os mais diversos setores,
especialmente na esquerda, mas também no centro emergente. E não era somente no Chile
que se propagava o questionamento ao capitalismo, e se proclamava que tudo tinha que
mudar, abandonar o “caminho da frustração” e construir um mundo novo de justiça social. E,
inicialmente, as direitas ficaram encurraladas neste contexto de questionamento da viabilidade
daquele modelo capitalista na América Latina, tanto mais quando começou a impor-se um
ethos revolucionário inspirado no processo cubano, expresso pela esquerda na alternativa
“socialismo ou fascismo”.19
19 CORREA; FIGUEROA, op. cit., p.210.
69
Esta polêmica entre socialistas e comunistas frente às vias de acesso ao poder
manteve-se no início da década de 1960. No PC prevalecia a tese do caminho pacífico e a
linha de alianças para o poder, o que era impulsionado pelas expectativas de vencer as
eleições de 1964, devido aos bons resultados obtidos no último pleito, no qual Allende obteve
28% dos votos, ficando na segunda colocação.
Além disso, acreditava nas oportunidades abertas com as limitações da direita, a
partir da dura política econômica aplicada no governo Alessandri, devido a qual contava com
um aumento da mobilização social e com o trânsito de setores populares para a esquerda.
Mas, ao mesmo tempo, foi essa expectativa de vitória que permitiu a manutenção da aliança
entre comunistas e socialistas, e a redução das crises que esses partidos enfrentaram durante a
fase de alianças de centro-esquerda.
Na esquerda, este período abre as pré-condições da fase de leninização do Partido
Socialista, ocorrida entre 1965 e 1970. Mantém-se, desde 1958, o debate ideológico acerca do
“trânsito não violento” ou sobre a transição institucional, realizada pelos comunistas. O outro
debate é a teorização sobre a inviabilidade da “revolução democrático-burguesa”, que
realizavam os socialistas, mas que não chegou a tensionar a frente política.
Por outro lado, o novo grupo do centro político, o Partido Democrata Cristão,
vinculou-se às teses econômico-sociais de corte desenvolvimentista, através da sua principal
liderança, Eduardo Frei. Ele se mostrou um tipo de político com capacidade de formular
projetos que pareciam realizáveis, que abarcavam idéias concretas, capazes de atingir
mudanças profundas nas estruturas do país, com uma orientação moderada e democrática.
Todos esses elementos são considerados decisivos na ascensão política da DC. A origem
deste grupo localiza-se essencialmente a partir da Falange Nacional, partido que participou de
diversos governos, bem como de uma geração do catolicismo chileno integrada à política20
Este partido utilizou-se das novas tendências de análise elaboradas pela CEPAL e
pelos intelectuais que partilhavam das suas idéias. A DC tornou-se porta-voz dos enfoques
desenvolvimentistas que visavam elaborar uma visão totalizadora do estancamento econômico
20 A Falange Nacional originou-se de um grupo dissidente do Partido Conservador, no final da década de 1930, e veio a compor a base do Partido Democrata Cristão nos anos cinqüenta. Cf. AGGIO, op. cit, 2002, p. 98
70
e dos fenômenos de desequilíbrio entre os diferentes setores. Ao mesmo tempo, a importância
dos aspectos rupturais no programa da Democracia Cristã demonstrou que seu projeto
apontava para importantes reorganizações da sociedade e não se subordinava aos parâmetros
fixados pelos interesses das classes dominantes. A DC mostrava-se como uma força
autônoma, diferente da postura pragmática e flexível para migrar para um ou outro extremo
do sistema político da principal força de centro até aquele momento, o Partido Radical.21
As principais medidas presentes no programa da Democracia Cristã incidiam numa
potencialização da indústria nacional, numa maior redistribuição de renda e em medidas para
uma maior promoção popular, destinadas a impulsionar a organização dos setores populares e
marginalizados daquela sociedade, principalmente de grupos até então negligenciados pela
esquerda. Os aspectos de ruptura que o seu programa apresentou foram sentidos
principalmente pelo enfrentamento com interesses das classes dominantes, como a reforma
agrária, a sindicalização camponesa, a organização de pequenos proprietários, a reforma
bancária e urbana.
O contexto político mundial também teria sido um dos fatores importantes para a
ascensão desse novo centro político. Tratava-se de um contexto marcado pela ânsia da
necessidade de mudanças profundas que acabassem com as raízes do fascismo e, para as
classes dominantes, pela necessidade de políticas de integração que evitassem que as classes
populares se passassem ao campo da revolução social. Nesse quadro, desenvolveu-se uma
“filosofia política” que estabelecia o ideal de uma “nova cristandade”, a partir da qual
começou a ser aplicado em alguns setores uma nova pastoral de aproximação dos operários,
que pretendia colocar a “verdadeira redenção do proletariado” frente à “falsa libertação” do
marxismo.22
Além disso, a expectativa criada em torno da ascensão de John Kennedy, nos EUA,
em 1961, com a sua nova política para a América Latina, pautada no auxílio ao
desenvolvimento do subcontinente representada na Aliança para o Progresso, e que constituía
uma resposta ao desafio cubano, foi igualmente favorável à projeção da imagem progressista,
21 MOULIAN, op. cit., 1982, p. 136. 22 MOULIAN, op. cit., 1993, p. 128.
71
renovadora e, principalmente, alternativista da Democracia Cristã. O partido reforçava a sua
imagem alternativista ao se apresentar como uma força autônoma, isolada, e com a pretensão
de permanecer como uma força diferente dos extremos do espectro político.
Esse caráter da proposta democrata cristã se constitui de elementos da doutrina social
da Igreja e da filosofia social de Jacques Maritain, projetando uma imagem ideal de
sociedade, diferente do capitalismo e do socialismo. Com uma concepção teleológica da
política, o seu programa propunha grandes transformações como uma etapa na construção do
novo tipo de sociedade.
Identificam-se duas propostas em debate no partido acerca da definição e das
características do projeto alternativo: uma que propunha um projeto sem filiação com nenhum
outro modelo, original, denominado comunitarismo, e uma que propugnava um projeto
diferente dos socialismos históricos, mas que também buscava substituir a propriedade
privada dos meios de produção, denominado socialismo comunitário. A disputa entre os dois
projetos adentrou o governo democrata cristão e gerou grandes tensões, principalmente, a
partir de 1967.23
Outra característica importante deste centro político emergente diz respeito a sua
composição social. Diferentemente do Partido Radical, que consistia em uma grande
organização de camadas médias, abarcando profissionais e elites provinciais e com um núcleo
de trabalhadores restrito a empregados do Estado, a Democracia Cristã, ainda que articulasse
setores médios, caracterizou-se como um partido policlassista, num leque que abarcava desde
a burguesia industrial ou da construção ou finanças até operários e camponeses. Essa
capacidade de articular setores operários ficou evidente com a sua forte presença na CUT,
onde obteve a primeira maioria entre os partidos (considerados individualmente) nas eleições
gerais.
O partido também demonstrou força entre os camponeses organizados, ao dirigir
confederações de assalariados, a confederação de assentamentos, de cooperativas camponesas
e de pequenos proprietários. De acordo com Moulian, esta penetração nos setores populares
23 MOULIAN, op. cit., 1982, p. 138.
72
pela Democracia Cristã, que impedia a unificação destes em torno da esquerda, pode ser
compreendida, entre outros fatores, por consistir numa organização do campo católico, por
propiciar mudanças profundas e globais, e por mobilizar trabalhadores que eram
antimarxistas, por ideologia ou por experiências negativas em suas relações com os partidos
de esquerda. O partido mostrou grande capacidade e preocupação em elaborar, sistematizar e
divulgar suas concepções, com a utilização de aparatos culturais que, segundo o autor, podia
comparar-se com a dos partidos marxistas, o que foi um elemento primordial no seu êxito
político.24
O cenário chileno, conforme se indicou, também se apresentava propício às novas
propostas de mudança. Naquela conjuntura, a direita terminava o seu governo de forma
bastante desgastada e temerosa de que, em 1964, se concretizasse a vitória eleitoral da
esquerda, como se anunciou na eleição anterior. Mesmo ciente de que a Democracia Cristã
não cederia espaços decisórios no seu programa, nem num possível governo, defensivamente,
a direita renunciou à candidatura própria, entendendo que o quadro político tripartido daria a
possibilidade de vitória à esquerda, como ocorreu numa eleição complementar para deputado
na província de Curicó, ao sul do Chile. Dessa forma, a Democracia Cristã se mostrava como
a única alternativa para fazer frente à esquerda, representada na FRAP.
A DC aparecia, portanto, decisivamente nas eleições de 1964 com um programa
original, com proposições concretas de transformação da sociedade, de crítica ao capitalismo,
sem ser anticapitalista, suas proposições se apresentavam como a “Revolução em Liberdade”,
como uma alternativa global ao estado de coisas que imperava no país.
Enquanto o Partido Democrata Cristão atingia seu auge, devido a um discurso
inteiramente compatível com o clima cultural da época, combinando mudanças sociais com
modernização e democracia política, pode-se afirmar que o declínio da direita teve estreita
relação com as suas debilidades ideológicas para captar os anseios de uma época,
amplificadas por seu fracasso como força governante.
24 Exemplo desse empreendimento foi a fundação, em 1944, pela Falange Nacional, da Editorial do Pacífico, complementada por uma livraria, através das quais publicou e difundiu livros doutrinários e políticos de autores nacionais e da vanguarda católica francesa da época. Além da publicação, desde 1945, da Revista Política y Espiritu. MOULIAN, op. cit., 1982, p. 139.
73
A estratégia da DC foi reforçar a sua imagem alternativista e revolucionária, não para
conseguir pactos com a esquerda, mas sim para canalizar o voto popular sem renunciar a sua
posição policlassista; tratava-se de um centro que visava substituir aquela esquerda, sendo
popular. Além disso, não havia mais condições ideológicas, especialmente do lado socialista,
que permitissem acordos entre centro e esquerda. Essas táticas da Democracia Cristã podem
ser encaradas como importantes fatores para gerar a dinâmica de radicalização e os efeitos
sobre o sistema político chileno que viriam a se aprofundar ao longo do governo da Unidade
Popular.
A esquerda, por sua vez, via-se ameaçada pelo discurso revolucionário da DC, antes
e depois da conquista do governo pelo centro. Buscou assim, mobilizar-se para reafirmar a
sua identidade revolucionária, acentuando o caráter maximalista do seu discurso, e recorrendo
ainda mais às referências ao processo cubano. Esse processo de radicalização com as suas
referências a elementos externos pode ser claramente identificado em um dos principais meios
de comunicação do PS, a revista Arauco, que começou a ser editada exatamente em 1959.
Ao destacar os propósitos da revista, o dirigente socialista Salomon Corbalán
afirmou: “aparece esta revista em um momento em que o eco da revolução cubana agita e
comove as massas trabalhadoras do continente, incendiando as esperanças e dando-lhes as
oportunidades de aproveitar fecundas lições.”25
No entanto, as referências ao processo cubano foram praticamente eliminadas da
campanha socialista, principalmente devido à forte campanha anticomunista empreendida
pela direita, ao aproximar-se a disputa eleitoral de 1964. A propaganda anticomunista visava
induzir o eleitor a escolher entre uma opção democrática e outra totalitária; era dirigida
especialmente às mulheres, com forte apelo emocional, evocando aos perigos que poderia
significar para suas famílias a opção marxista.
As campanhas eram veiculadas através de emissoras de rádio, periódicos, revistas e
murais. No excerto seguinte, Sofia e Consuelo ilustram o tom dessa campanha:
25 WALKER, op. cit., p. 51.
74
Um destes anúncios publicitários, divulgado pelas emissoras de rádio, começava com os disparos de uma metralhadora e os gritos de uma mulher pela morte do seu filho nas mãos dos comunistas; na continuação, uma voz masculina dizia: “para evitar isto no Chile, vote em Eduardo Frei”; para concluir com outra salva de metralhadora e uma dramática música de fundo.26
Em entrevista à revista Cuadernos, numa alusão à Revolução Cubana, Allende
destacou a sua convicção de que o socialismo era uma intensificação da democracia e não
uma alternativa à mesma. Allende acrescentou que a revolução chilena não seria como a
cubana, que não havia a pretensão de levar a cabo a instauração de um regime marxista, mas
sim democrático, nacional, popular, revolucionário e de transição ao socialismo.27
No XX Congresso do PS, em 1964, mergulhado no debate acerca das eleições, essa
tese defendida por Allende conseguiu impor-se. O encontro, portanto, descartava a via
insurrecional e foi, posteriormente, criticado pelo partido, especialmente por Jobet, para quem
este foi um período de refluxo da luta socialista. Esse momento também registrou a saída de
um grupo de jovens do partido, de Concepción, que, em 1965, passaram a formar o
Movimiento de Izquierda Revolucionário (MIR).28 As decisões do Congresso foram
publicadas de maneira que demonstram a prevalecente concepção instrumental acerca da
democracia do país:
Ao povo do Chile: o socialismo, usando as regras do jogo de uma democracia formalista e tradicional, busca fazer as mudanças reais que abram a perspectiva para a construção de uma sociedade mais justa. Um caminho legal, mas revolucionário, porque alterará as estruturas básicas em que se cimentam nossas relações de produção. Sabemos que o socialismo é um processo. Queremos chegar ao socialismo, mas não buscando o caminho brusco e violento.29 [tradução nossa]
Nesta eleição, com amplo apoio da população, da Igreja, da direita, e dos EUA,
Eduardo Frei venceu as eleições com 56% dos votos, contra 39% de Allende. Essa ascensão
da Democracia Cristã teria impacto decisivo no processo de radicalização da esquerda e,
principalmente, do Partido Socialista. Podemos destacar três razões principais para esta
influência: a percepção dos socialistas de que a Democracia Cristã, sob um discurso
progressista, fazia parte dos planos dos Estados Unidos para a América Latina, e a outra cara
26 CORREA; FIGUEROA, op. cit., p. 242-243. 27 WALKER, op. cit., p. 56-57. 28 O MIR foi o grupo que mais expressou a defesa da ruptura revolucionária, e atuou constantemente fora do sistema institucional, recorrendo à violência política como forma de atuação, principalmente, durante o governo da UP. 29 PARTIDO SOCIALISTA DE CHILE. XX Congreso General. Arauco, n. 52, maio, 1964.
75
do imperialismo; o fato de a DC ter arrebatado da esquerda boa parte das suas bandeiras de
luta; e a DC ter ocupado o centro político de modo excludente, o que contribuiu para uma
polarização. Essas preocupações do PS se explicitam na discussão do Congresso de Linares,
em 1965:
[...] temos que enfrentar, pela primeira vez, um governo que, com objetivos distintos dos nossos, mobiliza o povo com um programa que em muitos aspectos é o nosso programa. [...] A resposta à impotência da burguesia para resolver as contradições da nossa estrutura econômica e de dependência do imperialismo é a transformação revolucionária do regime atual pela classe operária convertida em classe governante [...] Dentro dessa perspectiva, as tarefas presentes dos partidos de vanguarda são, por um lado, a reconquista das massas, enfrentando o partido do governo com soluções revolucionárias que estabeleçam a alternativa: Democracia Cristã Burguesa ou Socialismo; e por outro, impulsionar a luta do povo de seu nível atual – de relativa confiança no governo –, até uma saída revolucionária que culmine com a tomada do poder.30
Essa é uma demonstração do tom que adquirirá o discurso do PS, no sentido de
acentuar ainda mais as suas posições e diferenciar seu perfil “revolucionário” da característica
“reformista” da Democracia Cristã. Naquele momento, para o PS, havia que se demonstrar
que o Partido Democrata Cristão representava uma linha de continuidade com o passado e
com interesses de classe não distintos da direita. Além de retornar com força o debate acerca
das vias para alcançar o poder.
A derrota nas eleições foi encarada de distintas maneiras entre os grupos que
compunham a FRAP. Por um lado, os comunistas argumentavam que a coalizão comunista-
socialista não foi capaz de captar amplos setores da classe trabalhadora, e propunham ampliar
sua base popular, atraindo os setores progressistas e as bases políticas do centro. Para os
comunistas, a aliança não deveria se restringir aos dois partidos da esquerda. Diferentemente
do que pensavam os socialistas, para o PC, os inimigos eram as forças imperialistas e
oligárquicas, e não a DC ou outras forças do centro. A sua proposta consistia, portanto, em
constituir uma aliança ampla para as eleições presidenciais de 1970.31
Os socialistas chegaram a conclusões extremas, pensando que a derrota da aliança
demonstrava ser uma ilusão esperar que os trabalhadores chegassem ao poder através do voto.
30 XXI Congreso General do PSCH. In: JOBET, op. cit., 1987, p. 295-296. 31 Esta proposição do PC se aproximava da tese do PCUS de que na América Latina a transição ao socialismo implicava a construção de um Estado Nacional Democrático, sendo que a sua conquista não dependia do papel de vanguarda dos PCs, mas sim das forças progressistas da nação. Ver: AGGIO, op. cit., 2002, p. 106.
76
No entanto, após intensos debates internos, a direção do PS concluiu que todas as formas de
luta seriam adotadas com objetivos revolucionários, e que era um “falso dilema estabelecer a
via eleitoral ou a via insurrecional”, ainda fortemente imbuídos da concepção instrumental
acerca da democracia. Em texto redigido pelo dirigente Adonis Sepúlveda, aprovou-se o texto
que defendia a seguinte idéia:
[...] o partido tem um objetivo, e para alcançá-lo deverá usar os métodos e os meios que a luta revolucionária julgar necessários. A insurreição ocorrerá quando a direção do movimento popular compreender que o processo social, que ela mesma impulsionou, chegou a sua maturidade e se disponha para servir de parteira da revolução.32 [tradução nossa]
Fortalecia-se no Partido Socialista uma tendência que defendia a necessidade do
confronto de classes e da insurreição popular como a única possibilidade de construção do
socialismo no Chile, linha que foi confirmada nos Congressos de Linares, em 1965, e de
Chillán, em 1967, como efeito da ameaça democrata cristã sentida pelos socialistas. O
documento de 1965 assegurava que as “condições objetivas” para a revolução chilena já
estavam dadas, e que o problema residia nas “condições subjetivas”. Era necessário preparar o
partido para a “inevitabilidade do confronto”.
No Congresso de Chillán, o partido declarou-se marxista-leninista e adotou o
centralismo democrático, afirmou-se como vanguarda da classe trabalhadora e um partido de
classe, além de enfatizar o caráter continental da revolução.33 Observa-se que começa a
prevalecer a característica do socialismo chileno de permanente recorrência ao campo teórico-
ideológico socialista como algo fixo e acabado, como um conjunto de leis universais, numa
completa abstração das particularidades daquela sociedade.
A forte liderança política de Salvador Allende seria decisiva nos rumos do partido
nos anos seguintes. De acordo com Aggio, Allende não ocupava nenhum cargo expressivo na
direção partidária naquele momento, sendo-lhe negado até mesmo a sua inclusão no Comitê
32 JOBET, op. cit., 1987, p. 297. 33 Em 1969, Raul Ampuero, um dos defensores da tese insurrecional, teceu duras críticas aos comunistas e a Allende, denominando-os de eleitoreiros; além de acusar o Comitê Central de abolir a democracia interna. O dirigente havia sido expulso do partido, em 1967, possivelmente, por disputas pela liderança. Suas críticas estão no seu livro La izquierda en punto muerto de 1969.
77
Central do partido no congresso de 1967, já que se posicionava contra as teses do seu partido.
No entanto, seu nome foi indicado novamente como candidato à Presidência em 1970.
Esta resolução se deu numa reunião plenária ocorrida em junho de 1969, na qual a
temática principal era a eleição presidencial, e se destacaram nos debates as figuras de Carlos
Altamirano, na defesa do caráter insurrecional da revolução socialista, por um lado, e, por
outro, Salvador Allende, defensor de uma nova política popular e de ampliação da aliança. Os
socialistas convocaram então as forças antiimperialistas e anticapitalistas para formarem uma
“Frente Revolucionária”.
Na disputa interna entre Allende e o secretário geral Aniceto Rodríguez para a
indicação do candidato pelo PS, em agosto de 1969, Allende obteve 31 dos 34 votos
regionais, ocasionando a retirada da postulação de Rodríguez. Na reunião do CC que decidiu
a candidatura socialista, Allende foi indicado candidato, demonstrando a forte liderança
política exercida pelo dirigente, internamente, e reconhecidamente, entre os setores populares.
As contradições internas do PS se mantiveram em torno das vias de acesso ao poder
e do caráter das alianças políticas; aprovando-se o rechaço à “via pacífica”, uma conduta
ruptural frente à “institucionalidade burguesa e o compromisso com as lutas revolucionárias”.
Nesse contexto, o PC preferiu apoiar o candidato do Partido Radical, Alberto Baltra, já que o
choque entre as concepções da Frente de Libertação Nacional com a Frente dos Trabalhadores
não cessava.
Nesse cenário, Allende exerceu um papel fundamental na articulação dos partidos
para a constituição da Unidade Popular, que incluiu, além dos partidos Socialista e
Comunista, o Partido Radical, que vivia uma viragem à esquerda, e o Movimento de Ação
Popular Unitário (MAPU), grupo egresso da Democracia Cristã, em 1969. Mas, se houve uma
concessão no que se refere à composição da aliança, o tom de ruptura que prevaleceu no PS
ao longo da década de 1960, e da obsessão quanto à necessidade e à inevitabilidade de se “ir
mais além”, foi imposto pelos socialistas com a idéia de que o futuro do governo da UP
deveria ter como tarefa o início da construção do socialismo. Essa radicalização do discurso
socialista se inseriu num quadro político-eleitoral que evidenciava a divisão do país em três
78
blocos posicionados numa polarização irredutível, isto é, os três apresentando-se como
alternativas globais.34
Nesse cenário, devemos considerar também os resultados do governo democrata
cristão. Ainda que tenha conseguido manter um terço do eleitorado, o partido já dava sinais de
queda nas eleições parlamentares de 1969. Isto se deve também a cisões internas decorrentes
da ausência de consenso em torno do projeto ideal de sociedade que se acirraram ao longo do
governo.
O período que a DC esteve no poder, o Chile viveu a implementação de reformas
estruturais que combinavam reforma agrária, ampliação e integração do mercado interno e
impulso à industrialização, mas que, de acordo com Aggio, mostrou-se bastante tímida em
relação à adoção de novas formas de gestão e de propriedade. Nota-se, portanto, um eco dos
governos da FP na política adotada pela DC, embora atualizada em algumas dimensões. O
governo de Frei teria sido assim, um continuador do reformismo antioligárquico chileno,
numa política que combinava desenvolvimento, modernização e justiça social.35
No aspecto político, o resultado desse governo foi uma fragmentação partidária que
resultou na citada polarização, especialmente devido a uma nova dinâmica adotada pela
Democracia Cristã, com ênfase no tom ruptural e alternativo que contraditava com o padrão
de convivência política construído pelo radicalismo nos anos quarenta, não conseguindo
impor-se como um modelo político estável. Se, por um lado, essa postura impossibilitava uma
aproximação com a esquerda, a qual visava substituir no campo popular, por outro, os
desdobramentos políticos da reforma agrária frente a direita ficaram insustentáveis para a DC,
visto que este tema afetava o núcleo político histórico da classe dominante.
A direita havia se afastado do governo em 1966 e buscou a rearticulação na formação
do Partido Nacional (PN), que contaria com os Conservadores, os Liberais e o Partido de
Ação Nacional, uma pequena organização que passaria a ter grande influência no discurso da
direita. Com essa nova formação, operou-se tanto uma renovação da elite política de direita
no Chile como uma mudança no seu modo de fazer política, que passaria de uma estrutura
34 Cf. AGGIO, op. cit., 2002. 35 Ibidem, p. 102.
79
típica dos partidos de notáveis da direita tradicional, para um partido de militantes, com forte
organização e capacidade mobilizadora.
Para as eleições presidenciais, a direita lançou a proposta da “Nova República”,
representada por Jorge Alessandri, que evidenciava a “alternativa global” da direita, numa
atitude mais ofensiva, como destaca o autor:
Tão logo a direita reorganizou-se no Partido Nacional, os setores empresariais – somados a uma classe média receosa do “caos” que uma suposta revolução em curso poderia provocar – abandonaram a política de compromissos com a DC, bem como a sua posição defensiva. O antigo tema da “contra-reforma” burguesa, pensado agora pela direita de maneira bastante radical, vocalizando a necessidade de um “governo forte”, fazendo renascer o tema do nacionalismo e advogando drásticas mudanças na Constituição, bem como no econômico, uma igualmente drástica liberação da economia, vai novamente animar os círculos direitistas.
36.
É preciso destacar também que neste período de intensificação dos conflitos e de
ênfase na idéia de ruptura e revolução, nota-se uma exacerbação das tensões sociais no campo
e na cidade, gerando repressão por parte do governo às manifestações populares, rompendo
com isso os laços que mantinham a base de apoio popular à DC. A política de promoção
popular e a rápida mobilização política deste setor foram as marcas do governo da DC,
abarcando o apoio ao processo de sindicalização e à formação de milhares de organizações de
base, como Juntas de Vizinhos, centros de mães, clubes esportivos, cursos de preparação de
líderes comunitários.37
De acordo com Faúndez, o governo Frei teria fracassado na estratégia econômica ao
sacrificar seu programa de reformas para impedir um processo inflacionário, freando, por um
lado, seu plano de reformas estruturais, sem abandonar o estímulo à mobilização política, ao
mesmo tempo em que mantinha a obsessão da autonomia política frente aos demais partidos.
Além de enfrentar os questionamentos no próprio grupo para aprofundar o plano de reformas,
crescia o descontentamento popular que, gradativamente, legitimaria uma alternativa à
revolução em liberdade da DC, bem como o questionamento ao capitalismo.38
As organizações criadas no marco da “Promoção Popular” se transformaram em
canal de expressão das novas demandas, ao mesmo tempo em que, enquanto espaços de
36 AGGIO, op. cit., 2002, p. 102. 37 O número de trabalhadores sindicalizados teria chegado a 550.000, em 1970, representando aproximadamente 20% da força de trabalho; organizou-se ainda cerca de 20.000 núcleos de base. Ver: FAÚNDEZ, op. cit., p. 158. 38 Ibidem, p. 160
80
discussão e encontro, contribuíam para a expansão das expectativas populares. É importante
notar que as manifestações sociais passaram a adotar novos procedimentos de pressão
política, como a ocupação de terras agrícolas e terrenos urbanos, ocupação de pobladores sem
casa, ocupação de fábricas. Esses atos demonstravam uma radicalização dos setores
organizados, não mais restrito aos sindicatos, em formas de ação política direta no âmbito do
trabalho e comunitário, que vão adentrar o governo da Unidade Popular com mais força e
maior repercussão.
Nas palavras de Sofia e Consuelo, eram “signos de beligerância” que se
disseminavam e que deslegitimavam os mecanismos e práticas de acordo político:
[...] a incorporação de vastos setores da população à atividade política superou as modalidades do agir partidário, outrora sustentado na negociação e no acordo entre as elites parlamentares, o que se traduziu em um cada vez mais freqüente enfretamento direto − seja de palavra, seja de ação − entre os diversos atores envolvidos. [...] Não é casualidade que crescentemente se tenha feito uso de expedientes de ação direta, tais como greves, ocupações, marchas e concentrações, que proliferaram como produto da deslegitimação e ineficiência de mecanismos convencionais de diálogo.39
No entanto, entendemos que neste período havia uma crise parcial naquela
sociedade, pois o regime político não se encontrava em crise e mantinha a sua legitimidade.
Este era um espaço considerado pelas forças e classes em disputa como um âmbito que
permitia a concorrência pelo poder para a realização dos seus projetos.
As urgências pelas transformações globais suscitadas na década de 1960 foram
resultado das propostas impulsionadas no mundo político, institucional e intelectual, mas
também como uma resposta, dentro daquele campo cultural, às mudanças sociais que vinham
se produzindo desde meados do século. Mudanças, como o grande crescimento demográfico
sustentado numa progressiva migração do mundo rural para as cidades, com o conseqüente
surgimento de uma nova marginalidade urbana, além da incorporação de sujeitos até então
excluídos da participação, como os camponeses e as mulheres, massa que passou a constituir
um novo elemento de pressão.
Além desse quadro social, a tripartição de forças foi um fator decisivo para a vitória
eleitoral de Allende, que obteve 36,2% dos votos, contra 34,9% do Partido Nacional,
representado por Jorge Alessandri, e 27,8% de Radomiro Tomic, da Democracia Cristã. É
39 CORREA; FIGUEROA, op. cit, p.256.
81
importante considerar que, ainda que a UP tenha vencido por uma margem pequena, mais de
dois terços do eleitorado optaram por representantes de projetos de reformas profundas.
Ainda que o presente trabalho não vise tratar detalhadamente o governo da esquerda,
representada na Unidade Popular, é necessário discutir, ainda que de maneira geral, as
características desse governo, suas propostas e, principalmente, a dinâmica política do
período, de maneira a captar os resultados dos debates empreendidos pelos principais sujeitos
políticos.
O programa da UP visava a construção do socialismo nos marcos da
institucionalidade, por meio de amplas transformações estruturais naquela sociedade, e se
baseava numa forte crítica às experiências reformistas do país, especialmente da Democracia
Cristã, reclamando um plano de ação mais profundo, para substituir a estrutura econômica
dominante. Era um pressuposto que esse processo requeria uma etapa de transição, na qual o
Estado, intervindo de forma direta na economia iria realizar as transformações destinadas à
socialização dos meios de produção.
Neste âmbito o programa visava separar setores da economia em áreas de gestão
diferenciada em Área de Propriedade Social (APS), que seria controlada pelo Estado, incluiria
setores da grande mineração, os monopólios industriais estratégicos, o comércio exterior, os
bancos e as grandes empresas dos setores-chave de distribuição, energia e transporte; Área de
Propriedade Privada, constituída por empresas médias e pequenas; e a Área de Propriedade
Mista, estabelecida em alguns setores tecnologicamente avançados de produção, na qual o
Estado e o capital privado formariam empresas conjuntas. A aceleração da reforma agrária e a
ampliação do seu alcance, com o fim de integrar completamente os trabalhadores agrícolas,
bem como o setor agrícola ao restante da economia, também constituía um dos principais
pontos do programa.
Para conseguir aplicar seus projetos, a UP se apoiaria na força e na flexibilidade das
instituições políticas existentes. Dessa forma, as mudanças estruturais se realizariam mediante
reformas constitucionais e legais e, em último caso, através de plebiscito. No seu programa,
um dos temas que era consenso dizia respeito à participação popular, mas que não apresentava
um projeto definido que apresentasse a maneira como se daria essa participação. Esse tema se
inseria nas questões que envolviam a etapa de transição, como o seu caráter, a sua duração e o
82
comportamento destas forças populares no governo, e que se tornaram os principais fatores de
divergência na Unidade Popular.
É possível afirmar que, na concepção de Allende, a participação popular se daria de
forma gradual e planejada, como parte da sua idéia de aprofundamento da democracia, a partir
da criação de órgãos através dos quais a população participaria; enquanto que para os
membros do PS, como Carlos Altamirano40, Jobet, Chelén, ou demais socialistas como Raul
Ampuero e o MIR, a participação popular se daria de forma direta para a constituição de um
poder popular, em substituição ao “Estado burguês”.
Diferentemente da proposta de um processo construtivo, como o concebido por
Allende e os setores que o apoiavam, como o PC, esta seria uma etapa de destruição das
instituições existentes, na concepção de setores socialistas constituídos, principalmente, por
seus intelectuais. Esta concepção acerca da democracia, que a compreende como um
invólucro da classe dominante é que está na raiz do comportamento ruptural desta esquerda
durante a experiência chilena frente às instituições e aos demais sujeitos políticos e sociais.
Uma exposição bastante significativa das concepções dos intelectuais socialistas
acerca do governo da UP está presente na compilação de artigos, publicada em 1972, em cuja
introdução Jobet e Alejandro Chelén se preocupam em reafirmar o caráter ideológico do
socialismo chileno e a incompatibilidade deste com os “caminhos reformistas que incorreriam
o governo da UP”.
Para os autores, a vitória de um conglomerado de partidos operários de orientação
marxista com grupos “demoburgueses”, com o propósito de criar uma etapa de transição ao
socialismo significaria o predomínio do reformismo. De acordo com os socialistas:
Os partidos revolucionários não podem deixar-se capturar pela sociedade demoburguesa e desenvolver sua ação exclusivamente dentro do marco institucional do sistema dominante, como uma força meramente reformista, reduzindo sua atividade a tomar medidas aparentemente revolucionárias, porque, no fundo, não destroem o regime capitalista [...] Precisamente, o perigo do atual regime de “Unidade Popular” é o de malograr o despertar social dos diversos setores trabalhadores, ocorrido com o triunfo de setembro de 1970, por uma direção reformista, deixando a meio caminho a revolução prometida.41 [tradução nossa]
40 As concepções acerca da “inevitabilidade do conflito”, do dirigente socialista Carlos Altamirano, secretário geral do partido durante o governo da UP, estão expostas no seu livro: Dialética de uma derrota: Chile 1970-1973. São Paulo: Brasiliense, 1979. 41 JOBET, Julio César; ROJAS, Alejandro Chelén. Pensamiento teórico y político del Partido Socialista de Chile. Santiago: Ed. Quimantu, 1972, p. 7.
83
Conquistado o governo, a meta a seguir deveria ser a construção imediata do
socialismo, eliminar o sistema capitalista de maneira a não se limitar à “prática reformista”.
Os autores inserem também a temática do poder popular sob a perspectiva da construção do
socialismo a partir “de baixo”. O resgate da tradição ideológica e doutrinária do socialismo
chileno é reivindicado pelos autores, apontando a necessidade de um retorno às fontes
doutrinárias, “através da análise de textos para reafirmar a personalidade socialista com uma
verdadeira inspiração revolucionária e acentuar uma afirmação ideológica marxista”.
Dessa forma, a organização de um novo Estado que confiasse às massas as
responsabilidades econômicas, sociais e políticas, além da adoção do mecanismo de
autogestão como forma de participação direta dos trabalhadores, consideradas questões
inseparáveis do funcionamento de uma democracia revolucionária popular, deveriam impor-
se nas práticas do governo.
Principal bandeira defendida pelo líder socialista Carlos Altamirano, a participação
direta da população foi o elemento central da sua política no Comitê Central do partido. Mais
do que isso, prevalecia entre os intelectuais socialistas uma visão mítica do poder, na qual este
aparece como objeto de posse, e não como uma relação social complexa que o diversifica em
um conjunto de instâncias da sociedade. Assim, o projeto de sociedade aparece confundido
com um projeto de “tomada do poder”.42
Para ele, todo o processo pelo qual passava a esquerda com a vitória da UP tinha uma
importância decisiva no transcurso do processo político, mas, que, no entanto, não teria maior
significado se não fosse respaldado pela “mobilização total das massas populares e sem a sua
incorporação como sujeito ativo na organização das instituições políticas”, e acrescentou:
[...] a revolução chilena só será possível na medida em que as vanguardas da classe trabalhadora saibam revolucionar a si mesmas, se incorporem às massas populares e encontrem nelas o dinamismo, a orientação e a força que farão possível a condução do povo chileno para a construção do socialismo. O sectarismo partidário e o apego às tradições da ordem burguesa são os grandes inimigos da revolução.43 [tradução nossa]
Nas palavras de Allende, não era o princípio da legalidade o que afetaria as
mudanças estruturais no sistema econômico e social do Chile, e sim seus postulados, que até
42 GARRETÓN, op. cit., 1983, p. 1301. 43 ALTAMIRANO, Carlos. El Partido Socialista y la Revolución Chilena. In: JOBET; ROJAS, op. cit., 1972, p. 337.
84
então, refletiam seu opressor regime social. Segundo Allende, as normas jurídicas e as
técnicas ordenadoras das relações sociais entre os chilenos respondiam às exigências do
sistema capitalista. Assim, no regime de transição ao socialismo as normas jurídicas iriam
responder às necessidades do povo para a edificação da nova sociedade. A conquista do poder
popular é traçada como uma meta:
Legalidade haverá. Que à legalidade capitalista suceda a legalidade socialista conforme as transformações socioeconômicas que estamos implantando, sem que uma fratura violenta da juridicidade abra as portas a arbitrariedades e excessos que, responsavelmente, queremos evitar. [...] a construção do novo regime social encontra na base, no povo, seu ator e seu juiz. Ao Estado corresponde orientar, organizar e dirigir, mas de nenhuma maneira substituir a vontade o povo. Tanto no econômico como no político os próprios trabalhadores devem deter o poder de decidir. Consegui-lo será o triunfo da revolução.44 [tradução nossa]
Diferentemente do caráter classista estabelecido pelos membros socialistas, Allende
atribui não só à classe trabalhadora a função de instaurar o novo regime e de cumprir o
programa socialista, mas também a outros setores sociais e grupos políticos. Deveriam ficar
de fora do movimento quem não estivesse comprometido com a transformação do país. A
lógica nação – antinação parece suplantar o nexo da luta de classes presente na proposta dos
demais socialistas. Como nota-se na sua afirmação:
Se sustentarmos que no cumprimento da etapa que temos adiante devem ter participação outros setores médios e da burguesia, é lógico que contemplemos para eles um lugar destacado na instauração de um novo regime e no exercício de um novo governo. E não se trata de uma participação passiva e subordinada, mas de uma colaboração efetiva em prol de soluções que são para eles de inegável benefício.45 [tradução nossa]
Para a participação popular, Allende projeta o seu papel de direção e orientação na
medida em que se promovesse a sua unidade política e sindical, no sentido de colocar as suas
lutas nas medidas anunciadas e dar aos seus partidos e organizações uma participação real no
movimento popular. Allende expressaria ainda a sua convicção de que se os partidos não se
constituíssem na vanguarda de uma transição institucional e pacífica ao socialismo, o
enfrentamento de classes seria inevitável.
Esta divergência ficou explícita no episódio da Assembléia de Concepción, em 1971,
na qual parte das forças de esquerda, especialmente o PS, propôs a dissolução do Congresso
Nacional e a sua substituição por uma Assembléia do Povo, o que dava mostras de um ataque
44 ALLENDE, Salvador. La via chilena hacia el socialismo. In: JOBET; ROJAS, op. cit., 1972, p. 498. 45 JOBET, Julio César. Principios de ordens politico del Partido Socialista de Chile (1964). In: JOBET; ROJAS, op. cit., 1972, p. 476.
85
à política seguida pelo governo central através da instituição de um duplo poder. Essa
Assembléia teve sérias repercussões políticas para o governo, já que Concepción era a terceira
maior cidade industrial do país, e agrupava uma quantidade importante de operários que
apoiavam tradicionalmente aos partidos Comunista e Socialista. A cidade que também
abrigava a sede regional do MIR consistia, desde a década anterior, no foco de uma atividade
extremista levada a cabo por camponeses, operários e estudantes.
Allende e o PC condenaram a ação. O presidente enviou uma carta aos partidos da
coalizão, exigindo apoio ao governo e, recordando-lhes que o poder popular não seria
alcançado mediante táticas divisionistas baseadas em uma “visão romântica e pouco realista
da situação”. O PS se comprometeu a apoiar o governo, mas negou-se a condenar os membros
da regional de Concepción, sugerindo que não estava em total desacordo com as idéias
colocadas na Assembléia.46
Allende não conseguia encontrar respaldo para a via chilena no próprio partido e nos
círculos intelectuais da esquerda, para os quais o problema residia em saber como se passaria
do governo popular para o poder popular. Ainda que não possamos apontar os socialistas
como oposicionistas ao governo, esta ambígua posição não só contribuiu para dar
credibilidade às acusações dos opositores, de que o governo estava comprometido com
posições extremistas para levar a cabo a ditadura do proletariado, mas contribuiu também para
debilitar a eficácia da ação governativa.
O constante embate no seio do Partido Socialista entre as propostas de transformação
atravessou a sua história e veio a permear o governo da Unidade Popular (1970-1973), que
viveu o desacerto entre um programa de transformações implementado e o radicalismo da sua
esquerda, orientado em grande parte pelos supostos ideológicos da sua intelectualidade,
disposta a ver o período como a ante-sala do socialismo; dificultando a manutenção de uma
direção única por parte do governo.47
A esquerda chilena de 1969 era diferente daquela de 1938 que fez parte da coalizão
com o centro. Ao contrário, parte dessa esquerda tinha como principal característica a
obsessão pela idéia da necessidade de “superação do reformismo”, rechaçando assim, a
46 FAÚNDEZ, op. cit., p. 240. 47
AGGIO, op. cit., 2002, p. 24-25.
86
concepção acerca do socialismo que não fosse insurrecional. Além disso, o movimento
mostrou-se incapaz de apreender novas expressões democráticas nas mobilizações de parte
daquela sociedade, uma vez que seus membros estavam pautados em concepções do
vanguardismo leninista e do socialismo como tomada do poder. Esta última é uma expressão
das contradições vividas no interior da UP: “tornar-se governo e continuar perseguindo a
construção socialista como uma ruptura revolucionária”.48
Durante o governo da UP a pressão para uma aceleração do processo revolucionário
se tornou o ponto crucial do debate político da esquerda, como podemos observar no excerto
seguinte que explicita as colocações dessa tendência dos dirigentes socialistas:
A contradição entre as forças crescentes das massas e o poder da burguesia define esta etapa como um período essencialmente transitório. Nosso objetivo, portanto, deve ser de afirmar o governo, dinamizar a ação das massas, afastar a resistência dos inimigos e converter o processo atual em uma marcha irreversível para o socialismo.49 [tradução nossa]
Esta esquerda imprimiu naquele movimento a idéia da oposição entre reforma e
revolução no seu seio, concebendo esta última sempre como um processo insurrecional de
confronto entre classes. Tese que não foi capaz de apreender a complexidade das contradições
e potencialidades do conflito político e social do Chile e de apresentar uma nova proposta
política e de relações sociais num quadro de recorrentes teses esquemáticas.
Todas as tensões presentes no interior da UP exerceram seu impacto ao longo do
governo. No primeiro ano de governo, os conflitos entre a UP e a DC, que tentava se
apresentar como a maior força de oposição ao governo e à direita, permaneceram latentes.
Enquanto que no plano econômico e social o governo atingiu metas importantes, no que diz
respeito à distribuição de renda e à promoção popular.
No entanto, o ano seguinte seria marcado por impasses institucionais, problemas de
desabastecimento e inflação. No plano político, as forças de oposição atuaram com maior
desenvoltura e radicalizaram suas ações contra o governo. Ao mesmo tempo, emergia com
48 Cf. AGGIO, Alberto. Experiência chilena e via chilena ao socialismo: um estudo crítico da cultura política da Unidade Popular no Chile (1970-1973). Revista de História, São Paulo, n.11, p. 57-76, 1992. 49 Resolución política Congreso de La Serena. (jan. 1971). In: JOBET, Julio César. El Partido Socialista de Chile. Santiago: PLA, 1971, p. 183.
87
mais força as divisões internas da UP, encobertas enquanto o governo deteve a iniciativa
política, e entre algumas forças internas e o governo, evidenciava-se um desacerto.50
No ano de 1972, o cenário era de confrontação ceda vez mais aberta no país. As
situações de explosão da violência multiplicavam-se, afetando seriamente o padrão de
institucionalização dos conflitos, que havia sido uma tônica do desenvolvimento político
chileno e que tinha permitido a posse de Allende e uma relativa estabilidade no primeiro ano
de governo. A chamada crise de outubro é a maior expressão da ofensiva da oposição. O país
viveu uma paralisia quase total das suas atividades, demonstrando um alto grau de
organização e mobilização das organizações patronais e da classe média, em contestação
aberta ao governo.51
Este foi um dos poucos momentos em que a esquerda conseguiu superar suas
divisões, apelando à iniciativa das massas e a sua organização em apoio ao governo, no
sentido de assegurar-lhe legitimidade. Nesse contexto, os Cordões Industriais, Comandos
Comunais e outras organizações populares, além da CUT, converteram-se no centro de apoio
ao governo, que confiou neles para manter a produção e assegurar o abastecimento regular.
Ao final de 1972, restavam poucas alternativas para Allende dar continuidade a sua
estratégia, especialmente diante da impossibilidade de acordo com o centro político. Os
encaminhamentos da UP, visando aprofundar a implementação do seu programa como forma
de garantir a sua unidade orgânica, mantiveram o clima de polarização.52
A organização e a mobilização da classe média demonstraram que as sucessivas
ações da esquerda e dos setores populares através de ocupações, as intervenções diretas do
governo em diversas áreas da economia, os problemas de desabastecimento, bem como as
freqüentes greves e conflitos violentos geraram uma grande insegurança em setores daquela
sociedade. Insatisfação que foi canalizada pela direita como um fator de afirmação da sua
estratégia.
O papel que havia sido desempenhado pela classe média nas políticas pendulares dos
Radicais encontrava cada vez menos espaço, sendo que as ações da UP eram dirigidas no
50 AGGIO, op. cit., 2002, p. 128. 51 Ibidem, p. 137. 52 Ibidem, p. 141.
88
sentido de rejeitar a sua continuidade. Além disso, o elemento popular afirmado pela UP
afrontava a identidade desse setor, como destacam Garretón e Moulian:
O elemento obrerista do discurso da Unidade Popular, sua reivindicação do povo como sujeito da política não era compatível nem com o elitismo das camadas médias [...] nem com a sua luta permanente para defender as fronteiras que deviam separar as camadas médias dos operários e do povo; nem com a sua ideologia meritocrática e a sua convicção de que a condição social de cada um refletia sua capacidade, sua disciplina ou sua laboriosidade.53 [grifos do autor] [tradução nossa]
A conjuntura de 1973 é caracterizada por uma polarização em que a Democracia
Cristã estava situada ao lado da direita, por não conseguir reafirmar sua postura alternativista
com o seu decréscimo eleitoral neste ano. Por outro lado, as relações de Allende com a UP se
deterioraram, principalmente, pela insistência de setores da esquerda na necessidade de
estruturar um “pólo revolucionário” e abandonar a estratégia da legalidade. O que se pode
notar é que a demanda por autoridade, espalhada pela sociedade e projetada nos atores
políticos, conseguiu ser captada e muito bem operada pela direita.
Observa-se nesta trajetória do socialismo chileno, principalmente, a partir das
inflexões ocorridas a partir de meados da década de 1940, a construção de um imaginário, a
partir do qual se estabeleceu uma concepção abstrata daquela sociedade, com base em teorias
revolucionárias, sem a capacidade para interpretar as particularidades da história e da
formação social e política do país. Rompeu-se assim, com uma história pautada por
compromisso e gradualismo, e que havia possibilitado as transformações pelas quais passou a
sociedade chilena, combinando desenvolvimento, democracia política e participação, de cujo
início, o PS também foi tributário.
A década de 1960 caracterizou-se pela expectativa de mudança expressa em
diferentes facetas nos projetos de mudança estrutural do país, a partir de concepções que
pensavam aquela sociedade em termos de atraso e subdesenvolvimento, bem como do
questionamento da viabilidade daquele modelo capitalista para o desenvolvimento do Chile.
No meio intelectual, a generalização da idéia do atraso e do desajuste entre a
“estrutura política e a sócio-econômica” se constituiu numa das principais características dos
debates e das formulações teóricas e políticas que vieram a animar os grupos de esquerda
nestes anos. Enquanto que as formulações da CEPAL apresentaram alternativas de
53 GARRETÓN, M. Antonio; MOULIAN, Tomás. La unidad popular y el conflito político en Chile. Santiago: Ediciones Minga, 1983, p. 100.
89
desenvolvimento, que alimentaram o projeto da Democracia Cristã. Neste momento de
refundação das propostas políticas nesse quadro de novas demandas e da possibilidade de
transformações profundas, nota-se também um momento de refluxo dos partidos tradicionais.
A sociedade chilena viveu neste contexto a expectativa da “Revolução em
Liberdade” proposta pelo emergente centro político que se apresentava como uma alternativa
aos campos extremos do sistema político. Pela esquerda, a aposta num governo popular
representou a culminação de um longo processo político que para ela havia começado em
1938, com estratégias que variaram da participação no poder sob o predomínio do centro,
chegando à vocalização de um projeto que estabelecia a necessidade do socialismo para a
transformação da sociedade.
O importante a destacar é que, após a vitória de Allende, os conflitos vividos no
interior da UP explicitaram as deficiências do projeto da via chilena ao socialismo e,
principalmente, as dificuldades impostas pelos elementos que compunham a cultura política
do socialismo chileno, que nunca compreendeu aquele projeto como uma via democrática, a
não ser retoricamente, como fator de legitimação ideológica dos discursos partidários.
Nota-se que a diversidade no interior da Unidade Popular remonta às origens do
socialismo e que adquiriu uma modalidade especial após a Revolução Cubana, como uma
experiência que parecia dar a resposta ao que a esquerda encarava como a “história frustrante
das alianças com o reformismo” e das derrotas eleitorais. Essa linha ruptural dentro da
esquerda é a manifestação desse clima ideológico que, dialeticamente, ela contribuiu para
forjar, e que se expandiu desde a década de 1960. Esta linha trouxe elementos como a relação
entre o modelo estratégico soviético e a revolução nos países subdesenvolvidos, a idéia da
necessidade do socialismo e a convicção fortemente desenvolvida pelos intelectuais do
fracasso do capitalismo e da condição de crise total na sociedade, para estabelecer o
imperativo da transformação global.
CAPÍTULO 3
JULIO CÉSAR JOBET E A CULTURA POLÍTICA SOCIALISTA
91
3.1 Análises e debates: as faces de um protagonista
Na América Latina, o debate político passou a ser liderado, principalmente após o
segundo pós-guerra, por intelectuais socialistas.1 O pensamento de esquerda formou-se
representado pela intelectualidade que se destacou na interpretação dos processos históricos e
na formulação de projetos políticos para seus países ou para o subcontinente como um todo.
Foram homens que buscaram desenvolver propostas para a transformação da sociedade a
partir das suas perspectivas teóricas. A atuação intelectual e política de Julio César Jobet se
enquadra nesse contexto de difusão do marxismo no subcontinente.
Visualizamos nos itens anteriores que o desenvolvimento da esquerda chilena se
desenhou principalmente na busca de alternativas que superassem as contradições entre a
estabilidade política e a questão social do país. Foram debates que se ampliaram de acordo
com o desenvolvimento do seu pensamento político, e que indicariam ao longo do século as
diferentes vias de transformação, em especial teorias ligadas à tradição revolucionária da
esquerda pós-1917.
O que podemos destacar é que o processo de radicalização da esquerda chilena teve
como um dos seus principais fatores a atuação dos seus intelectuais na realização de uma
renovação das orientações internas, buscando reconstituir as principais categorias analíticas e
do pensamento político que foram mobilizadas para concretizar um determinado projeto
socialista. Esta investigação apresenta os intelectuais como figuras centrais, como
protagonistas numa defesa de tradições políticas e de esquemas ideológicos que significou um
rompimento com a cultura concertacionista característica do socialismo chileno até os anos
quarenta.
O Chile é um país que se destaca pela constante atuação dos seus teóricos na esfera
política e, principalmente, no movimento socialista, que conferia especial espaço aos seus
intelectuais na organização e difusão das idéias e debates políticos. Como afirma Jocelyn-
Holt, a este protagonismo se deve, dentre outras questões, o diagnóstico crítico da sociedade 1 RICUPERO, Bernardo. Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo no Brasil. São Paulo: Editora 34, 2000.p. 26.
92
senhorial, a visão histórica do Chile como país economicamente atrasado, a radicalização
ideológica, a crítica às instituições públicas, que passaram a ser vistas como obstáculos
oligárquicos que impediam efetuar as mudanças estruturais.2
Buscamos indicar até aqui, em meio às inflexões ideológicas que marcaram a política
chilena, as atuações dos principais intelectuais socialistas representantes dessa nova fase do
socialismo chileno. Nomes como o de Oscar Waiss, Alejandro Chelén, Raul Ampuero e Julio
César Jobet, bem como as orientações que buscaram imprimir nas ações do Partido Socialista,
no intuito de demonstrar que a sua participação teve influência direta nessa mudança de
postura que ocasionou uma radicalização dos seus pressupostos.
De acordo com Federico Gil, os profissionais e intelectuais constituíam um grupo de
especial importância nos assuntos partidários. Tinham respeito e prestígio na organização, e
seus trabalhos nas diversas comissões internas tinham forte peso. Além disso, esses
intelectuais desempenhavam importantes funções como representantes intermediários entre o
partido e as instituições públicas e privadas, como a CORFO (Corporación de Fomiento), a
CEPAL e a Universidade do Chile, bem como em grupos de pressão daquela sociedade, como
a Sociedade Nacional de Agricultura.3
Além disso, a atuação destes intelectuais era de fundamental importância na
formação teórica dos militantes, e se via favorecida pela estrutura de funcionamento do
partido, dividido em núcleos, cujo objetivo era o de formação política das suas bases. As
atividades se davam, sobretudo, com o estudo coletivo e individual do marxismo e das
publicações do partido e dos seus membros.4
Dentre esses intelectuais, Julio César Jobet merece destaque devido a sua vasta
produção, tanto historiográfica, como política. Não por acaso, Jobet é reconhecidamente uma
das maiores referências intelectuais do socialismo chileno, na medida em que traduziu em
2 LETELIER, Alfredo J H. Os intelectuais-políticos chilenos: um caso equivocado de protagonismo contínuo: os intelectuais e a política na América Latina. Cadernos Adenauer, Rio de Janeiro, ano 4, n. 5, p. 65-97, 2003, p. 66. 3 GIL, Federico. El sistema político de Chile. Santiago: Ed. Andrés Bello, 1969, p. 310. 4 SARGET, op. cit., p. 94.
93
seus trabalhos os princípios e categorias que orientaram este processo de busca de uma nova
identidade para o socialismo, e que sempre se posicionou como um porta-voz do partido.
Entendemos que a atuação de maior importância de Julio César Jobet se dá no
contexto do final dos anos cinqüenta. A historiografia identifica nesse período, em setores da
sociedade chilena, a difusão de uma espécie de decepção generalizada a respeito das
possibilidades de mudança no tipo de dinâmica política baseada nos pactos e na sua real
capacidade para conduzir as transformações na sua estrutura econômica e na sua organização
social, que ainda apresentavam aspectos da sua ordem tradicional.
A década de 1950 marcaria o colapso do modelo político que governou o país desde
os anos trinta, caracterizada por políticas de coalizão durante os governos radicais (Partido
Radical), que favoreciam acordos entre as diferentes tendências políticas. Tratava-se então de
um momento de negação de um processo construído desde o final dos anos trinta,
denominado por Eugenio Tironi como “arreglo democrático”, caracterizado por um
entendimento entre as forças sociais e políticas do Chile e pela congregação do
desenvolvimento com pautas integradoras no plano social, no qual o Estado assumia o seu
papel central; elementos que constituíam o que havia de essencial na particularidade chilena.5
Conforme indicamos no capítulo anterior, a década de 1950 foi marcada pela nova
configuração que passou a adquirir o sistema político chileno, na qual o sistema institucional
sofreu alterações devido à nova postura assumida pelos partidos políticos e, ao mesmo tempo,
pela busca de novas alternativas distintas da prática de acordos políticos, vivenciada desde a
década de 1930.
Como decorrência, teria emergido na primeira metade da década de 1960 uma
generalizada sensação de crise e de desenvolvimento frustrado, aumentando o terreno de
aceitação da idéia de que a sociedade chilena necessitava passar por mudanças profundas.
Nesse sentido, a esquerda assumia uma oposição aberta ao governo e ao seu “reformismo”,
fazendo reaparecer, sob o impacto da Revolução Cubana (1959), a temática da iminência do
5 AGGIO, op. cit., 2002, p. 155.
94
socialismo, e contribuindo ainda mais para a polarização ideológica do sistema político
chileno. 6
No meio intelectual, a generalização da idéia de atraso e do desajuste entre a
estrutura política e a sócio-econômica se constituiu numa das principais características dos
debates e das formulações teóricas e políticas que viriam a animar os grupos de esquerda nos
próximos anos. As obras do economista Aníbal Pinto, Chile, un caso de desarrollo frustrado,
de 1956, e a obra intitulada Ni estabilidad, ni desarrollo: la política del Fundo Monetario,
publicada em 1960, são trabalhos que se tornaram referência para a esquerda e para os
partidos de centro do país.
A crítica de Pinto à política do governo Jorge Alessandri (1958-1964) baseada no
constrangimento do protagonismo do Estado e das limitações protetoras à produção nacional
seria interpretada pela esquerda como uma manifestação antiimperialista e pelo centro como
nacional-desenvolvimentismo.7 Para o autor, o descompasso entre a infraestrutura e a
superestrutura havia se tornado insustentável no contexto de crise social que vivia o país, o
que tornava imprescindível a concretização de uma alternativa política capaz de refundar o
desenvolvimento chileno em outros moldes para superar o atraso.
Obra de impacto na historiografia e na análise estrutural do país foi o Ensayo crítico
del desarrollo económico social de Chile, de Jobet, publicada em 1951. Esta publicação teve
grande repercussão porque além de resgatar temas da denominada “questão social” e seus
principais autores e momentos das lutas operárias, o trabalho teceu duras críticas à ordem
tradicional e à democracia do país, destacando os limites daquele sistema. A visão da América
colonizada e dependente, como herança da sua formação histórica é reforçada e dá o tom das
idéias e propostas socialistas na versão do antiimperialismo e da Segunda Independência
Nacional e Continental.
No entanto, trabalhos como o de Jobet e o de Pinto buscaram tecer críticas às
estruturas daquele país e ao alcance da democracia, sem propor um novo tipo de compromisso
6 AGGIO, op. cit., 2002, p. 103. 7 COSTA, Janaína Capistrano. As relações entre executivo e legislativo no contexto da crise da democracia chilena em 1973. 2005. 230f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais)- Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2005, p. 55.
95
político capaz de realizar transformações significativas dentro da lógica política daquela
sociedade. O que veremos adiante é que Jobet propôs um projeto político de legitimação de
um patrimônio ideológico partidário baseado em concepções bastante convencionais da
esquerda mundial, abstraindo-se da realidade política do seu país e das exigências que aquela
sociedade trazia consigo.
Como um historiador marxista vinculado a um partido político, uma das questões que
despontam como mais interessantes e importantes refere-se à maneira como se relacionam,
em Julio César Jobet, suas concepções historiográficas e seus posicionamentos políticos.
Como historiador, Jobet concebeu os fatos do passado e buscou as origens das questões que o
inquietaram no seu tempo. A partir dessas considerações, visamos indicar as principais
características do seu pensamento e as idéias políticas subjacentes, para apreendermos a sua
proposta para o projeto socialista que se tornou uma das linhas de maior expressividade nesse
processo de radicalização da esquerda.
O seu trabalho historiográfico começou a se destacar a partir da década de 1940 e se
enquadrou num período de mudanças de enfoque, acompanhada de uma nova abordagem
metodológica apreendida pelas novas gerações de historiadores. Entre outros métodos de
análise, esses novos intelectuais assimilaram o marxismo como concepção de mundo e forma
de construção do conhecimento histórico, influência fortalecida pelo seu engajamento no
movimento socialista. Seu trabalho veio representar uma proposta de ruptura com a
historiografia predominante.
Visualizar no trabalho de Jobet a questão da relação do intelectual com o seu meio
não é uma tarefa muito difícil, já que o historiador, como um marxista e dirigente partidário,
evidenciou em seus escritos que o trabalho teórico serve de ferramenta para a atividade
política e social. Entendia que o historiador é um homem de uma época e de uma classe social
determinada, portanto, influenciado pelas paixões e anseios de classe.8 Cabe destacar que
buscamos não priorizar o enfoque à discussão do seu trabalho historiográfico, já debatido em
8 JOBET, op. cit., 1951, p. 14.
96
trabalho anterior9, visando discutir mais o seu protagonismo político. Dessa forma,
articulando as suas idéias com o seu projeto socialista em um contexto determinado.
A análise da história chilena é empreendida por Jobet no sentido de identificar as
continuidades e as principais características que marcaram o seu processo histórico desde o
período da colonização até o momento vivido pelo historiador. É possível observar que seu
trabalho sofreu a influência de diferentes momentos políticos que culminaram em oscilações
em toda a sua abordagem histórica.
Para compreender a formação chilena, Jobet ocupou-se da discussão em torno do
caráter da colonização do país realizada pela Espanha e que delineou a estrutura política,
econômica e social chilena. Para o historiador, ao chegarem à América no século XVI,
Espanha e Portugal viviam uma transição para o sistema capitalista no âmbito econômico,
mas permaneciam com traços feudais nas relações políticas e sociais. O mais importante para
o presente trabalho é que Jobet realiza uma análise das questões do seu tempo buscando
estabelecer sua relação com a formação histórica nacional, realizada a partir da análise do
nexo colônia-nação.
Nesta dimensão, Jobet se aproximou das idéias de Mariátegui a respeito da
colonização peruana, no sentido de indicar a coexistência dos sistemas feudal e capitalista
naquela sociedade. Podemos afirmar que Jobet não foi capaz de transcender idéias que já se
mostravam questionáveis por outros intelectuais, como Caio Prado Jr e André Gunder Frank.
Comparativamente, é possível dizer que, evitando caracterizar o sistema vigente no Brasil
como um modo de produção específico, Caio Prado Jr indicou como aspecto fundamental da
colonização o peso dos fatores externos na formação da sociedade. Dessa forma, ele superou
teses em voga no período, ao não procurar um feudalismo local.
Em sua abordagem, Jobet também evitou prender-se a um modelo explicativo com o
intuito de demonstrar autonomia, como afirmou o próprio autor, e realizou uma miscelânea
conceitual ao conceber as relações sociais de caráter feudal e a produção para a Metrópole
como mercantil; utilizou, dessa forma, termos como “semifeudalismo” na caracterização do
9 CURY, Márcia Carolina de O. Entre o passado e o futuro: a análise da história chilena e o projeto socialista de Julio César Jobet. Trabalho de Conclusão de Curso (História). Franca: UNESP, 2004.
97
sistema de exploração instaurado no Chile, e formulou teses superadas e debatidas no
momento mesmo de sua produção.
A interpretação histórica de tendência denominada conservadora, com a qual Jobet
empreende os primeiros debates, indica que a conquista e colonização da América tiveram a
motivação idealista de estender a civilização cristã. Historiadores como Diego Barros Arana,
Francisco A Encina, Alberto Edwards e Jose Toribio Medina são alguns dos principais nomes
da historiografia do final do século XIX citados por Jobet.
Além da defesa da colonização, predominava nas idéias desses autores a concepção
da superioridade branca. Para eles, o sangue espanhol teria se concentrado nas altas classes
sociais, o que justificava o combate à mestiçagem, encarada como a responsável pela origem
das classes populares e pelo “atraso na evolução” do povo chileno. A principal advertência do
historiador marxista se deu no sentido da ausência dos setores populares como sujeitos
históricos nessas investigações, de forma que a evolução e o desenvolvimento do país se
confundiram exclusivamente com a trajetória e os interesses das classes dominantes.
Outro tema bastante desenvolvido por Jobet é a consolidação do liberalismo no país,
que, segundo ele, expandia-se e consolidava-se em razão do desenvolvimento de uma
burguesia mineira e comercial vinculada às transformações econômicas que se iniciaram por
volta de 1860. O caráter dual que assumiu esse processo, que teve, de um lado, o ataque às
instituições conservadoras do país e, por outro, a aliança burguesa com a oligarquia local no
âmbito econômico, caracterizaram, na leitura de Jobet, a singularidade do liberalismo chileno.
O historiador concebeu esta primeira fase do liberalismo nacional como o
desenvolvimento de uma economia classista atrasada, feudal-capitalista, como expressão de
um “falso liberalismo”, à medida que foi importado das nações européias e era alheio à
realidade econômica e social do país. Assim, o novo sistema teria servido para fortalecer os
grupos que detinham a riqueza e para intensificar a exploração de uma classe sobre a outra.
Com a sua perspectiva totalizante da história, Jobet se dedicou a examinar a
consolidação da classe burguesa e o processo de sua afirmação na arena política. Pois, o
processo de estruturação econômica da burguesia “demo-liberal” teria constituído a base do
98
desenvolvimento correlativo da sua consolidação política. Assim, somente quando essa classe
se integrou como tal, independentemente, com base em recursos econômicos próprios e ao
apresentar-se a conjuntura favorável, surgiu com força para conquistar o poder político,
“indispensável para consagrar juridicamente sua hegemonia”.
Esta análise norteia uma das principais características do seu trabalho, e que
influenciaria as proposições políticas de Jobet voltadas ao caráter da revolução socialista e à
democracia chilena, na medida em que Jobet visualiza neste setor a classe inimiga dos
trabalhadores e um dos principais obstáculos para a revolução socialista, o que caracteriza a
concepção classista da sua proposta política.
Sua análise se pautou na idéia de que nas sociedades divididas em classes
antagônicas, a conquista do poder político se apresenta como objetivo das classes novas ou
em formação. Por essa razão, a ação da burguesia nacional buscou ocupar o governo e
implementar seu programa democrático liberal. O processo econômico que constituiria o
nascimento dessa burguesia foi marcado pelo desenvolvimento das ferrovias, maior
exportação de produtos agrícolas, aumento do comércio e, principalmente, pelo auge da
mineração, com destaque para a exploração do cobre. Para o autor, esse foi o momento de
transição da economia semifeudal para a capitalista, bem como o desenvolvimento da
burguesia e do movimento demo-liberal que esta representava.
Para o historiador, o Chile vivenciou um desenvolvimento significativo, porém em
desarmonia com seu verdadeiro caráter econômico e social, ou seja, sem uma conexão com os
“verdadeiros anseios e perspectivas nacionais”, na sua concepção, identificados sempre com
os anseios populares. O país passou a ser um vasto mercado de produtos manufaturados
estrangeiros e provedor de matérias-primas, especialmente minerais. Jobet visualizou a
manutenção dessa situação ao longo de um século por favorecer a determinados setores que
controlavam a economia e o Estado, mas que resultava negativa para o país no seu conjunto e
espoliadora para os trabalhadores.
Para Jobet, a forma assumida pelo liberalismo no Chile significou a manutenção da
economia colonial do país delimitada pela agricultura, denominada semifeudal, e pela
99
exploração do minério para exportação, baseada na proeminência de um mineral em
diferentes períodos: ouro na colônia, prata no segundo terço do século XIX (denominada
república conservadora), cobre até a Guerra do Pacífico (república liberal), salitre desde fins
do século XIX (república parlamentar e penetração do imperialismo inglês), cobre novamente
desde a ditadura de Carlos Ibáñez del Campo (domínio do imperialismo norte-americano).10
A introdução do liberalismo representou, portanto, a efetivação da dependência de
fatores externos e a exploração estrangeira e, ao mesmo tempo, o fortalecimento da burguesia
e da oligarquia nacional com o desenvolvimento da indústria extrativa, do comércio e a
manutenção da estrutura latifundiária. A abordagem de Jobet indicou que a formação de uma
burguesia forte aliada ao imperialismo impediu a formação de grandes capitais nacionais
necessários para o desenvolvimento industrial independente no país. O Estado deveria ser
capaz de administrar as riquezas nacionais no sentido de promover as transformações
estruturais necessárias para a “libertação do povo”.
A intervenção estatal deveria ser realizada por “verdadeiros estadistas ocupados da
questão nacional” para empreender uma ampla reforma agrária, grande industrialização, a
nacionalização das riquezas minerais, dos meios de transporte, de comunicação e de crédito.
A planificação da economia deveria ocorrer conjuntamente à reforma educacional, indicada
como requisito básico para o funcionamento de uma “democracia fecunda e disciplinada”.11
Na sua leitura, no momento de romper com o modo de produção semifeudal, o
liberalismo econômico e político deu um passo decisivo no progresso nacional. Mas a
formação de uma classe dirigente de domínio político e econômico trouxe consigo um perigo
para a autonomia nacional: o capital imperialista favorecido pela adesão daquela classe aos
princípios do liberalismo de não-intervenção. Essa questão teria se traduzido na incapacidade
da classe dirigente ao não utilizar a riqueza nacional para o desenvolvimento interno. A sua
hipótese apostava no papel decisivo do Estado na acumulação de capital e no gerenciamento
desse processo que, tanto poderia destinar-se ao desenvolvimento nacional, quanto aos
interesses de uma minoria, havendo prevalecido, na sua concepção, esse último.
10 JOBET, op. cit., 1951, p. 52. 11 Ibidem, p. 77.
100
Não obstante a oposição à idéia da revolução por etapas, Jobet não fugiu à regra da
concepção que predominava na esquerda latino-americana da necessidade de superação do
feudalismo local. Além disso, a visão de um Estado técnico e gerenciador a favor do
progresso e desenvolvimento nacional revela mais uma perspectiva que Jobet compartilhou
com os intelectuais marxistas do seu tempo, além de não se diferenciar da perspectiva
presente nas proposições do Partido Radical e da Frente Popular.
Por outro lado, assim como Mariátegui e Caio Prado Jr., o historiador chileno
afirmava buscar compreender sua realidade concreta para elaborar projetos de ação
específicos. Da mesma maneira que Ricupero avaliou em relação ao pensamento daqueles
intelectuais, nota-se no pensamento de Jobet que, ao indicar o passado colonial como
obstáculo ao desenvolvimento da nação, o socialista observou que as revoluções burguesas
não seguiram a “via clássica” de ruptura; ao mesmo tempo em que não proporcionaram um
deslocamento das classes dominantes.12
A despeito das mudanças ocorridas na sua teoria em relação ao papel atribuído à
burguesia e ao capital, como veremos adiante, o princípio organizativo e diretivo dos partidos
na política apresentou-se como uma constante. No que concerne ao gerenciamento do Estado,
para Jobet, os partidos políticos do período não teriam contribuído para a superação do atraso
do país devido à falta de uma concepção técnica e de um sentido orgânico e construtivo por
parte desses grupos que manejaram as instituições.
Estas abordagens constituíram seu trabalho historiográfico que, em oposição à
denominada “história oficial”, adotou uma perspectiva totalizante de análise, de maneira a
abarcar setores antes desconsiderados e tecer críticas à estrutura econômica nacional. Jobet
visava, assim, elaborar uma nova visão a respeito da sociedade chilena, resultante dos
conflitos entre as classes e do papel desses grupos nos diferentes aspectos do devir histórico.
A sua proposta visava expor a contradição notada entre “o que era escrito e exaltado
pela historiografia”, que caracterizava a história chilena como uma evolução, e a “condição
em que se encontrava o país”; superar uma historiografia limitada à crônica política, que
12 RICUPERO, op. cit., p. 67-69.
101
desconhecia a subordinação do país e a exploração da classe trabalhadora, entendendo que
esta não havia tido seus próprios historiadores. E, em determinada fase do seu pensamento,
afirmou orientar seu enfoque da história sob a ótica do movimento operário.13
Sujeito histórico engajado, Jobet foi influenciado pelos diferentes processos políticos
e debates intelectuais ao longo da sua trajetória. Na constante busca de vias para a superação
do atraso e da dependência, o historiador indicou inicialmente, a alternativa de um Estado
forte, gerenciador, que utilizasse o caráter liberal das instituições políticas do país. Um Estado
técnico, auxiliado pela burguesia liberal, deveria superar a fase semifeudal do Chile e garantir
o bem-estar à população. Nessa etapa, conforme indicou Zemelman, houve uma profunda
influência de autores liberais do pensamento social chileno, adeptos de Augusto Comte e
outros nomes do positivismo e liberalismo europeus, além da literatura enciclopedista,
socialista utópica e jauresiana francesa.
Como reflexo do desenvolvimento do marxismo na América Latina e no Chile, a
radicalização do seu discurso marcou uma grande mudança de enfoque, que passou a ser
orientada pela ótica do desenvolvimento do movimento dos trabalhadores e das “classes
médias radicalizadas”. Nesse período de fortalecimento do debate teórico marxista e da luta
política na esquerda, o caráter do liberalismo e, principalmente, o papel da burguesia,
passaram a ser questionados no pensamento de Jobet, momento no qual passou a predominar
a concepção de enfrentamento de classes.
Nesse contexto, forjou-se a crítica mais significativa no seu trabalho e que foi
recorrente na historiografia a partir dos anos cinqüenta, referente ao regime político vigente
no Chile. O sistema democrático chileno, caracterizado como limitado pelo historiador, foi
apontado como o principal responsável pelo acentuado antagonismo de classe. Tal
entendimento influenciou profundamente a sua atuação e ocasionou profundos embates
teóricos no Partido Socialista. Sob essa perspectiva, Jobet apontou como uma das causas do
funcionamento de uma democracia formalista e burocrática a falta de uma consciência
13 ZEMELMAN, Hugo. Prólogo. In. JOBET, op. cit., 1982, p. XIV.
102
política de amplos setores do povo e de uma verdadeira organização da vontade popular por
parte dos grupos políticos.
Esta crítica está presente na sua obra de 1951, na qual o autor expõe ainda uma
variada temática que abarca a origem do movimento operário, o desenvolvimento do
pensamento social no Chile, a presença do imperialismo no país e a história do Partido
Socialista. A problemática central desta análise é a preocupação com a origem do
subdesenvolvimento e a formação daquela sociedade. A reação do Congresso chileno à sua
indicação como embaixador do Chile na Iugoslávia, em 1953, ilustra a controvérsia em torno
da figura de Jobet. A oposição se deu devido à publicação do seu ensaio no período, que foi
declarado “maldito e antichileno” pelos parlamentares, principalmente, por tecer críticas à
democracia do país, identificada como um dos seus principais valores.
Inúmeros críticos chilenos e estrangeiros dedicaram artigos em jornais, revistas e
anais das universidades para discutir os trabalhos de Jobet de maneira a destacar os eixos que
permearam a sua interpretação histórica; debate que ficou evidentemente marcado pelas
ressalvas referentes à vinculação socialista de Jobet. Dentre as principais avaliações da
importância e do papel de Jobet, as atribuições que mais se destacam são o seu pioneirismo na
análise da história nacional a partir de uma abordagem marxista, que também lhe rendeu
muitas críticas, mas também o reconhecimento por abordar temas até então negligenciados
pela historiografia do país.
No entanto, mais do que um ensaísta que analisou a história nacional, denunciando
injustiças sociais e que criticou a presença imperialista no Chile, Jobet é sempre identificado
como um dos principais nomes do socialismo, como um intelectual responsável pela
divulgação dos princípios do socialismo científico, como um autor que buscou relacionar a
história da esquerda contemporânea com os primeiros pensadores e movimentos nacionais, e
como o responsável pelo resgate e exaltação de uma tradição intelectual de esquerda.14
14 Entre os artigos publicados destacam-se: ROBNOVITCH, Rosa. Un ensaysta quimicamente puro. La Nación, Santiago, 12 sep. 1971, Suplemento, p. 15; GARCÍA, Pablo. Una Nueva Obra de Julio César Jobet. La Nación, Santiago, 12 nov. 1973, Suplemento, p. 3; GUERRERO, Victor P. La producción ensaystica de Julio César Jobet. Occidente, Santiago, n. 279, nov. 1978, p. 39-42; DURÁN, Germán S. História: Julio César Jobet y el Ensayo Crítico del desarrollo económico social. Occidente, Santiago, n. 350, ene./feb./mar. 1994, p. 48-50.
103
Além de dirigente do Partido Socialista, desde a sua fundação, Jobet se empenhou na
difusão de um pensamento revolucionário e dos seus princípios, consagrando-se como uma
referência intelectual e como historiador da organização. Suas postulações se orientaram de
acordo com a idéia de que, na América Latina, a luta de classes assumiu condições distintas
das nações altamente industrializadas, definindo, dessa forma, um papel diferente para suas
classes sociais, em especial, à burguesia local, que, na sua concepção, não teria um papel
revolucionário.
Como uma maneira de destacar a originalidade do PS e de diferenciá-lo do Partido
Comunista, com o qual travou debates e disputas ao longo da sua trajetória, Jobet procurou
enfatizar a independência do seu partido frente às Internacionais, às quais submeteu a severas
críticas. Na sua leitura, a II Internacional limitou-se ao reformismo e à colaboração de classes;
seu rápido desenvolvimento e a ausência de uma linha revolucionária teriam distorcido as
finalidades assinaladas por seus fundadores. Reproduzindo muitas das críticas da III
Internacional, Jobet afirmava:
Embriagada por triunfos eleitorais participou do poder em seus governos de concentração nacional, em companhia de inimigos da classe trabalhadora, garantindo, desse modo, a existência do regime burguês, e em circunstâncias decisivas para a sorte do capitalismo, demonstrou-se inapta para dirigir os movimentos proletários [...]15[tradução nossa]
É interessante notar que a declarada oposição de Jobet ao comunismo soviético, num
contexto de forte difusão de uma postura anticomunista, fez muitos críticos não associarem a
figura do intelectual ao novo posicionamento mais radical assumido pela esquerda, e
relacionarem a sua imagem à postura mais flexível que marcou a trajetória inicial do Partido
Socialista, caracterizando-o como representante do socialismo democrático; crítica que
demonstra até certo desconhecimento dos seus últimos trabalhos panfletários e a apreensão
somente dos seus discursos expostos nas suas primeiras publicações, bem como das
autodefinições do autor, que se dizia um marxista não dogmático.16
Conforme indicamos, outro tema bastante discutido por Jobet foi o das organizações
e movimentos populares, no intuito de identificar as expressões de classe no quadro das lutas
15 JOBET, op. cit., 1987, p. 24. 16 GUERRERO, op. cit., p. 42, GARCÍA, op. cit., p. 3.
104
sociais. Em diversos trabalhos, o historiador abordou a formação da classe operária chilena
nas suas primeiras agremiações e organizações políticas. Suas análises relacionaram as lutas
políticas do seu tempo com as experiências do passado. Nesse sentido, identificou as
tendências socialistas do país como uma continuação legítima das tentativas organizativas, de
aspirações democráticas e de lutas sociais dos trabalhadores iniciadas no século XIX. Sob
esse aspecto, sua obra chegou a ser identificada como um “catalisador na criação de uma nova
identidade para o povo chileno”.17
Para Jobet, as experiências adquiridas pelos trabalhadores nestas lutas os conduziram
à iniciativa de buscar a sua unidade no âmbito sindical e, posteriormente, partidário. O
movimento operário nacional estaria, em sua primeira etapa, “débil e com escassa consciência
de classe”.18 Sob essa perspectiva, Jobet diferenciou o movimento dos trabalhadores numa
escala evolucionista, na qual a passagem para um estado revolucionário da luta estaria na
fusão do movimento com o pensamento socialista.
Nesse longo processo de “formação da consciência revolucionária” do proletariado
chileno, Jobet observou, com especial interesse, o trabalho ideológico dos pensadores
políticos liberais e socialistas dos dois últimos séculos. Entre eles, destacou como a principal
ponte entre as lutas do passado e do seu tempo a figura de Luís Emílio Recabarren.
É importante observar que a mudança de enfoque para a ótica do movimento dos
trabalhadores, que mencionamos anteriormente, destacou-se no momento em que o
historiador concebeu a burguesia como aliada do imperialismo e da aristocracia nacional e
incapaz de realizar as transformações do país. A missão que era anteriormente destinada à
burguesia gerenciadora do Estado foi transferida ao proletariado. Tendências significativas da
esquerda passaram a entender esse curso do desenvolvimento capitalista como dependente e a
questionar a suposta potencialidade progressista, democrática e antiimperialista da burguesia
nacional. O principal grupo a defender essa idéia pertencia ao Partido Socialista.
17 JIMENEZ, Michael F. apud. JOBET, Julio César. Despedida Melancólica. Occidente, Santiago, n.263, oct./nov. 1975, p. 60. 18 JOBET, op. cit., 1987, p. 54-55.
105
O questionamento das positividades do liberalismo para o progresso nacional
também marcou essa nova fase do seu pensamento. Na sua visão, a democracia, ainda que
tenha permitido algumas mudanças no quadro social do país, não teria passado de uma
expressão do capitalismo em uma fase do seu desenvolvimento, o que não poderia garantir a
emancipação dos trabalhadores. Sob o regime capitalista, a democracia havia constituído
somente uma etapa na marcha da sua libertação.
Sem dúvida, a democracia, apesar de suas imperfeições e de suas limitações em benefício da classe dominante, outorgou certos avanços às massas trabalhadoras, permitindo-lhes conquistar direitos políticos, algumas vantagens econômicas e, sobretudo, desenvolver suas organizações de luta [...] e nada mais. Somente um regime socialista poderia acabar com todas as desigualdades [...]19[tradução nossa]
Caberia, portanto, ao proletariado guiado pela teoria socialista dos partidos, o papel
de agentes revolucionários. Nesse quadro, Jobet incluiu a chamada pequena burguesia que, na
sua visão, também era explorada e prejudicada pelas ações do Estado e do imperialismo.
O papel de liderança do movimento popular era identificado no grupo do qual era
dirigente. Para ele, a formação do PS, em 1933, significou a cristalização do movimento
revolucionário e o nascimento da verdadeira representação de classe; a organização
representava o instrumento genuíno da ação revolucionária das massas contra o regime
burguês.
Sua formação [do Partido Socialista] significava a soldadura da contradição existente [...] entre o incremento da classe trabalhadora e sua consciência de classe, e a profunda crise de direção e organização que sofria o movimento operário chileno.20[tradução nossa]
Jobet ocupou-se obstinadamente da organização e posicionamento partidários.
Considerando o papel de vanguarda a ser assumido pelo PS, a coesão interna tornava-se uma
questão crucial. Para ele, a composição heterogênea e a “mentalidade pragmática” dos
componentes do partido teriam gerado as “perigosas contradições” que marcaram a história da
organização socialista chilena, o que nos indica a sua posição antialiancista que marcaria a sua
atuação até os anos setenta. Na sua concepção era necessário formar-se uma organização
sólida e disciplinada de maneira a estender um sistemático trabalho de doutrina para fundir os
19 JOBET, op. cit., 1987, p. 20. 20 JOBET, op. cit., 1951, p. 197.
106
componentes do partido em uma unidade ideológica e política através de uma assimilação
correta dos princípios teóricos e programáticos do socialismo.
Além das novas experiências revolucionárias que exerciam influência sobre os
socialistas, dos fracassos eleitorais, da crise interna que abalou o socialismo no início da
década de 1950, a sensação de crise e da necessidade de mudança que se generalizavam, as
inflexões ocorridas no pensamento socialista estão relacionadas com as modificações
experimentadas pelas análises intelectuais dos anos sessenta. Estas novas interpretações
buscavam mostrar os limites do desenvolvimento capitalista em países com uma
industrialização tardia e delimitada pela dinâmica do sistema capitalista mundial.
A partir da difusão destas concepções, expandiu-se a idéia de que a resolução da
crise da sociedade chilena requeria uma rápida transformação socialista. Estas análises,
revestidas de legitimidade científica, careciam de uma perspectiva na qual os dados estruturais
sobre os limites do desenvolvimento capitalista se vinculassem com uma análise da dinâmica
das classes sociais, do universo ideológico cultural e da natureza do Estado, sumariamente
descrito como Estado burguês, e dos atores político-sociais.21
Outro elemento que podemos identificar nestas colocações de Jobet é a forte
influência exercida pela teoria organizativa leninista, a partir da qual Jobet concebeu o partido
socialista como um instrumento de educação política dos trabalhadores e, a exemplo da
proposta de Lênin, de superação das “lutas espontâneas e econômicas” dos trabalhadores.
Para Jobet:
[...] a vanguarda do processo revolucionário chileno deve estar constituída pelos partidos da classe operária como força motriz da luta social. É responsabilidade destes partidos reencontrar-se com as lutas das massas, ajudar a superar o caráter economicista que, todavia predomina em muitos setores e orientá-la em seu sentido político revolucionário.22[tradução nossa]
Nas obras analisadas, podemos observar claramente sua visão teleológica acerca do
movimento operário, na qual o historiador utiliza como elemento definidor da evolução das
lutas dos trabalhadores a vinculação deste movimento à luta político-partidária. A classe
operária teria, primeiramente, uma escassa consciência de classe e seria imatura; junto ao
21 GARRETÓN; MOULIAN, op. cit., 1983, p. 143. 22 JOBET, op. cit., 1987, p. 351.
107
campesinato, estariam alheios às questões políticas e compunham a “forma embrionária da
luta consciente”.
Jobet afirmou que a política sindical do PS deu um novo sentido às organizações, de
maneira a criar um clima de unidade e superar a “greve pela greve”. As formulações leninistas
também estão presentes na concepção de que a consciência política de classe só pode ser
levada ao operário do exterior da luta econômica e da esfera das relações entre operários e
patrões.23 Nesse sentido, conferiu ao PS o papel de aglutinador e esclarecedor da luta
operária:
[...] sem dúvida, todo partido de massas, com consciência de sua responsabilidade histórica no desenvolvimento do movimento operário, está obrigado a manter estreitas relações com os sindicatos e a exercer algumas funções específicas em seu seio; e o partido de massas pode ser o condutor da ação sindical [...]24[tradução nossa]
A partir destas observações, podemos compreender melhor o pensamento de Jobet,
de implementação do Estado dos Trabalhadores, articulado pelo nexo partido/ sindicatos/
movimento popular, no qual a postulação marxista desempenharia o papel central de
aglutinadora desses elementos. A teoria seria, portanto, a ferramenta do partido na condução
da população, designada como massas, rumo à revolução socialista.
O seu trabalho teórico pode ser comparado à controvérsia do seu projeto político.
Suas análises da história nacional superaram proposições comuns ao seu contexto, referentes à
abordagem de cunho mais conservador da historiografia chilena. No entanto, seu projeto foi
limitado ao pensamento de sua época e ambiente, pautado numa perspectiva presa a teses
esquemáticas de análise da constituição e das contradições de uma sociedade, sem conseguir
apreender o que havia de essencial das particularidades da sociedade chilena, que permitiu um
processo de modernização com democracia naquele país.
A atuação e o pensamento de Jobet se confundem com a trajetória e os ideais do PS e
da esquerda chilena, até 1973, que mesclaram diversos elementos na sua cultura política,
combinando subsídios da cultura operária com aspectos das concepções das classes médias, e
apresentando momentos de alternância na predominância dos pressupostos do partido. A sua
23 JOBET, op. cit., 1987, p. 62. 24 Ibidem, p. 47.
108
influência no pensamento político chileno, através de obras de críticas àquela estrutura
econômica e social, engajamento e proposta de transformação fez de Jobet um protagonista da
história política do país, principalmente, como porta-voz de uma cultura política de ruptura.
Entendendo suas atividades políticas e teóricas de maneira uniforme, trabalhou temas
recorrentes na esquerda latino-americana, como atraso, imperialismo e dominação. Assim,
articulava as discussões das questões do seu tempo com o debate histórico, no intuito de
apontar alternativas para a transformação da sociedade. Suas concepções eram baseadas em
um programa revolucionário e, ao mesmo tempo, buscava assentar suas idéias no modelo do
socialismo científico para interpretar a realidade chilena, cuja complexidade Jobet não foi
capaz de apreender.
Jobet construiu a história chilena de maneira a indicar as continuidades nas formas de
dominação e a necessidade de “despertar as massas” para o seu papel histórico de libertação.
A proposta de criação do Estado dos Trabalhadores, portanto, requeria o papel de aglutinador,
identificado no Partido Socialista. Essa interpretação de Jobet acerca da história do
movimento operário atribui aos trabalhadores não atrelados ao movimento partidário uma
falta de consciência, o que denota a desvalorização de diversas expressões de luta das
camadas populares chilenas, e também o intuito de autojustificação25, já que a tarefa de
imprimir a consciência nos trabalhadores se destinava ao partido e aos seus intelectuais.
Ao se contrapor à historiografia denominada oficial, Jobet desenvolveu suas
formulações históricas com a função ideológica de legitimar o seu projeto socialista e,
principalmente, o papel do seu grupo político. Para manter sua pretensão hegemônica, Jobet
construiu uma outra história “oficial”, a da legitimação da vanguarda partidária. O que
podemos observar nas análises e propostas dos intelectuais socialistas, como Jobet, é a
constante recorrência ao patrimônio doutrinário do campo teórico-ideológico socialista.
A valorização desse patrimônio socialista no Chile contribuiu para a emergência do
debate e do questionamento acerca da situação histórica nacional, bem como para a
reivindicação de transformações sociais e estruturais, e para a mobilização de um projeto
25 HAUPT, Georges. Por que a história do movimento operário? Revista Brasileira de História, São Paulo, v.5, n.10, p. 208-231, mar./ago. 1985.
109
político. Mas, ao mesmo tempo, obscureceu a compreensão das características históricas
particulares daquele país, afetando, consequentemente, o caráter do projeto de transformação
que deveria se apresentar como algo novo para a sociedade chilena.
Desenvolvendo análises em torno do movimento operário, questão agrária,
dependência nacional, imperialismo e desenvolvimento capitalista no Chile, Jobet atuou no
sentido de construir uma nova ótica de reflexão da história que desse corpo teórico ao Partido
Socialista e que legitimasse uma nova proposta política para as questões nacionais.
Alternativa que era identificada no partido no qual militou e contribuiu ativamente para a
formulação das concepções revolucionárias, marcando a trajetória deste intelectual que
desenvolveu sua atividade com uma fidelidade partidária.
3.2 Julio César Jobet e o socialismo: a construção de uma identidade partidária
Conforme destacamos, a partir de 1958, a esquerda acentuou o seu discurso classista,
bem como a sua perspectiva anti-reformista, com idéias pautadas nas concepções do
marxismo difundidas pelos intelectuais que a conformavam; enclausurou-se em um tipo de
discurso que opunha reforma e revolução, além da idéia da necessidade de pensar o governo
popular como uma preparação da ruptura revolucionária. Mesmo assim, de acordo com
Moulian, a esquerda foi capaz de exercer uma forte influência político-cultural na sociedade
chilena. Essa eficácia ideológica não proviria do marxismo como sistema teórico, mas,
segundo o autor, da capacidade simbolizadora que adquiriu o discurso obrerista e anti-
reformista dentro do setor mais radicalizado da esfera popular. Nas palavras de Moulian:
Dentro de uma sociedade com forte heterogeneidade estrutural e bastante dividida, este discurso operava como princípio de identidade, fixava os limites que singularizavam e diferenciavam a uma parte dos setores populares. O discurso marxista em uso serviu para separar o popular-revolucionário-operário do popular-reformista-pequeno-burguês, para delimitar e, por isso, para cristalizar a existência de cada universo [...] A influência cultural da esquerda repousa nesta capacidade de criar identidade. Sua força expansiva residia na capacidade de gerar idéias-força e símbolos que o colocavam em relação com certos núcleos básicos da cultura popular radicalizada.26 [tradução nossa]
26 MOULIAN, op. cit., 1983, p. 97.
110
Essa participação dos partidos de esquerda nas lutas populares, a associação da
emancipação com a proposta do socialismo, a identificação com as suas reivindicações se
expressaram também na produção artística, criando uma épica popular que favoreceu essa
capacidade de apropriação, criando-se uma memória coletiva que associava as lutas populares
com a esquerda. No âmbito da literatura, entre os anos trinta e cinqüenta também se observa
um desenvolvimento criativo e a emergência de posturas com orientações diversas,
claramente imersos no clima político e ideológico do período.
Um exemplo significativo nota-se na figura do escritor Pablo Neruda, que, impelido
pelos eventos políticos de sua época, como a Guerra Civil Espanhola e a sua incorporação ao
Partido Comunista, distanciou-se dos temas mais subjetivos da poesia e aderiu às questões da
poesia militante, cujos versos se propunham “a expressar a causa do povo e ativar as forças
contrárias ao avanço do imperialismo”, temática cuja expressão mais forte se encontra na obra
Canto General, publicada em 1950.
Já na década de 1960, o movimento cultural denominado Nova Canção Chilena
também teve destaque com a sua inserção no movimento internacional de canções de protesto.
Nas obras dos criadores da Nova Canção se observa uma inclinação a resgatar e reivindicar
acontecimentos e personagens históricos vitais para a identidade coletiva da esquerda, e um
interesse por musicalizar poemas com ressonância militante de autores como Neruda e
Bertold Brecht.
De acordo com Sofia e Consuelo, se a Nova Canção funda suas raízes musicais no
folclore, suas composições se caracterizam por um marcado compromisso político com o
destino das classes populares, com a sua condição presente e com a sua projeção futura,
conforme o projeto da esquerda, cujas campanhas e manifestações animaram os cantores e
conjuntos musicais do movimento, especialmente na campanha de 1970.27
Ao final dos anos sessenta, e à medida que o país entrava em um processo de
radicalização das forças políticas, de aceleração das demandas sociais e políticas e exigências
de maior participação, viveu-se este momento intenso no mundo da cultura popular e da
27 CORREA; FIGUEROA, op. cit., p. 232.
111
comunicação de massas. Desde antes da eleição de 1970, existiam diários de esquerda, em
tom de humor, como Clarín e Puro Chile. Por outro lado, com a vitória da Unidade Popular
surgiram, na direita, meios que também recorreram a este tom periodístico, como o diário
Tribuna e o semanal Sepa; além das manifestações artísticas universitárias na música, na
dança e no teatro.
Outro dado importante do período diz respeito ao forte empreendimento editorial,
cujo maior exemplo representa a editorial estatal Quimantú, estabelecida pelo governo da
Unidade Popular. O projeto da Quimantú visava a difusão da leitura através da publicação de
textos clássicos em edições mais econômicas vendidas em quiosques. Aspirava também criar
“consciência crítica” na população e dar formação política aos chilenos, em especial, na
doutrina marxista. Um dos trabalhos publicados nesta linha de formação política foi o de
Jobet, editado em 1972, História do Partido Socialista do Chile.
A editora lançou ainda coleções como Nosotros los chilenos, que buscava destacar o
papel protagonista que o governo da UP atribuía aos setores populares, apresentando textos
com ilustrações que remetiam ao mundo do trabalho, aos costumes e aos episódios históricos
do país; criou-se revistas voltadas para o entretenimento e formação, como a revista Paloma,
que se dirigia às mulheres, mas também aos homens para difundir a idéia de um novo
conceito de família; revistas de discussão intelectual e temas culturais, como La Quinta de la
Rueda.28
Desde a década de 1950, vinha ocorrendo no mundo intelectual e partidário essa
ampla discussão acerca dos problemas que afetavam aos países subdesenvolvidos; debate
incentivado pela frustração que provocava a percepção dos limites a que estava submetido o
projeto industrializador aplicado posteriormente à Grande Depressão dos anos trinta. A
produção política de Jobet se insere no amplo debate que se desenhou com a chegada dos
anos sessenta entre diferentes bandeiras de luta que colocaram no centro da discussão a
necessidade da transformação e da integração de setores sociais até então marginalizados e
que mobilizou diferentes setores da produção cultural e intelectual do país.
28 CORREA; FIGUEROA, op. cit., p. 234.
112
Conforme indicamos, por um lado, apresentou-se o influxo exercido pelas idéias da
CEPAL, unido ao desencanto gerado pelo fracasso das políticas livre-cambistas
impulsionadas pelos governos da década de 1950, que originou novos projetos de cunho
desenvolvimentista, representado na proposta da Democracia Cristã. A idéia apresentada pelo
economista chileno Jorge Ahumada, de forte influência sobre a proposta centrista, era acerca
da necessidade de uma revolução das estruturas tradicionais impulsionadas “de cima”,
buscando subverter as estruturas tradicionais que vinham operando historicamente, e que
eram apontadas como as causas da “crise integral”. Ele destacava, dessa maneira, a existência
de vários desequilíbrios estruturais entre os distintos setores da economia que afetariam a
todos os aspectos da vida social.29
Por outro lado, apresentou-se a proposta de uma transformação global presente no
projeto socialista, de acentuado caráter anti-reformista, pautado numa concepção restrita da
revolução, somente como um processo insurrecional que substituiria o “Estado burguês” pelo
poder popular exercido pela classe operária. Como podemos notar, a disputa entre os dois
principais projetos do período se acirrou na medida em que a proposta democrata-cristã
afetava diretamente as posições da esquerda, que se apresentava naquele momento como o
movimento mais identificado com as posturas de mudança radical e transformação de cunho
popular. Enquanto que a DC se apresentava com uma proposta progressista, também voltada
para os setores marginalizados, com um tom rupturista.
Esta proposta da Democracia Cristã se inseria numa teorização do desenvolvimento
social que rechaçava a luta de classes como princípio explicativo da história. Dessa maneira, o
debate se acentuava especialmente sob esse aspecto, já que contra a leitura do marxismo
apresentada pelos socialistas, a DC apresentava como referencial a “teoria da
marginalização”, centrando a sua política na temática da integração social; esta criticada pela
esquerda como um reformismo que em nada alteraria as relações de produção e de exploração
do capitalismo.30
29 CORREA; FIGUEROA, op. cit., p. 239. 30 AGGIO, op. cit., 2002, p. 100.
113
A trajetória de Jobet no socialismo chileno é expressão direta desse debate e do
posicionamento assumido pelo socialismo neste período, marcado pelo forte anti-reformismo
e pela postura classista. Esta relação de Jobet com o socialismo chileno é uma relação
recorrente na política chilena entre a produção intelectual e uma cultura política determinada.
Relação que diz respeito, portanto, à interseção entre a produção teórica e os comportamentos
e acontecimentos concretos, à produção de sentidos para uma coletividade, assim como à
canalização e reprodução dos ideais e reivindicações de uma sociedade ou grupo determinado
para a constituição de uma cultura política.
Duas dimensões analíticas são essenciais no socialismo chileno que podemos
apreender nas proposições de Jobet e dos dirigentes vinculados a ele. São elas as dimensões
do socialismo como necessidade histórica e como revolução. A concepção do socialismo
como necessidade se fortaleceu especialmente após a Revolução Cubana, impondo-se a idéia
de que o socialismo constituía a única alternativa possível para a crise histórica do
desenvolvimento chileno. Esta concepção se mesclava com a idéia de revolução, já que
através dela, o necessário se tornava possível. Essa forma de projetar o socialismo recorria a
uma tradição para a qual a transformação da sociedade se coroava com a revolução estatal.
Nas palavras de Moulian:
Como existia esta contradição entre o necessário e o possível não era raro que ao intensificar-se a crise social se buscasse resolver mediante o recurso lírico: o otimismo, a esperança no triunfo, o avançar sin transar. A linguagem se esquerdizava quando a realidade se degradava. [tradução nossa] [grifos nossos]31
Estas perspectivas do socialismo, como necessidade e como revolução, podem ser
apontadas como o principal eixo da proposta socialista de Jobet e dos dirigentes próximos a
ele, principalmente, Carlos Altamirano, secretário geral do PS durante o governo da Unidade
Popular. Jobet e Altamirano representavam a proposta que projetava a implantação do Estado
dos trabalhadores num “processo ininterrupto de confrontação”. Tese desenvolvida e
defendida em grande parte da sua trajetória no intuito de construir uma linha programática
dentro do seu grupo e que exerceria grande influência no choque com o conteúdo democrático
da proposta de Allende, em 1970.
31 MOULIAN, op. cit., 1983, p. 171.
114
No primeiro processo eleitoral disputado após a unificação socialista, identificado
também como o início desta fase classista do socialismo, Jobet, como representante do
Comitê do PS de Santiago, teve importante papel na articulação da aliança da esquerda, a
Frente de Ação Popular. Jobet e Raul Ampuero orientaram a introdução da tese no programa
do partido, que estava baseada na concepção de que a tarefa da sua geração consistia em
romper com as experiências pautadas nos compromissos de classe, e buscar a construção de
um governo popular. Em suas próprias palavras, não se tratava de realizar a “última etapa das
transformações burguesas”, senão em dar o primeiro passo na revolução socialista.32
Não obstante a sua oposição à aliança com os comunistas, declarada na sua
participação no Congresso pela Liberdade da Cultura, Jobet representou a postura do partido
nas demais publicações oficiais, defendendo a união dos partidos representantes da classe
trabalhadora como um importante instrumento de luta na construção do governo popular, e
afirmando que as divergências ideológicas dos dois partidos seriam superadas. Dessa forma, a
sua postura de historiador e teórico oficial do partido fica evidente, na medida em que o
intelectual suprimiu posturas mais pessoais para defender a tese do partido e se mostrar como
um porta-voz da política popular.
As declarações de Jobet provocaram reações do Partido Comunista através da sua
imprensa. O que chama a atenção neste episódio é que na reunião do Congresso da Unidade
Socialista, em Santiago, Jobet alcançou a votação necessária para ocupar um posto no Comitê
Central; aprovou-se, também uma resolução segundo a qual se ditava a incompatibilidade
entre a atividade de dirigente do PS e a participação nas tarefas do Congresso pela Liberdade
da Cultura, entendida, na época, como uma represália ao posicionamento assumido por Jobet,
de crítica à união com os comunistas. Dessa forma, Jobet acatou às ordens do partido e
renunciou a suas atividades no Congresso cultural.
O que podemos verificar é que a sua atuação se deu diretamente na formação e
condução da FRAP, que era concebida “como uma tática de classes e revolucionária,
orientada a separar de maneira categórica a burguesia dos setores explorados”. Sem
32 JOBET, op. cit, 1987, p. 240.
115
questionar o caráter desta transformação no quadro institucional e revelando mais uma vez a
concepção instrumental acerca da democracia vigente no país, Jobet afirmava:
Um caminho novo supõe a mudança do sistema capitalista democrático burguês por outro de orientação socialista, resultado da direção do governo pelas classes trabalhadoras. O instrumento para levá-lo a cabo é uma nova organização de forças políticas e sociais não comprometidas com o regime dominante.33 [tradução nossa]
Para o dirigente, o movimento que esteve muito próximo de alcançar a vitória, em
1958, sofreu um grande desgaste devido à debilidade dos partidos que a compunha e,
principalmente, pelas fraudes eleitorais. Mas, ainda que a coalizão tenha se fragilizado, a
experiência teria garantido uma maior coesão dos grupos socialistas até a eleição de Salvador
Allende pela Unidade Popular, em 1970.
Estas afirmações do historiador, após a derrota da FRAP, indicam os efeitos da
Revolução Cubana (1959) sobre parte da esquerda chilena. O paradigma insurrecional, que
não se apresentava como alternativa concreta até a formação da aliança, ganhou força e
assumiu posição importante nas discussões dos socialistas que combinavam formas de luta
com a necessidade de transformar rapidamente o governo popular em revolução socialista.34
Jobet e os dirigentes próximos a ele entendiam que a postura a ser adotada deveria
ser de oposição ao modelo da Frente Popular, para adotar uma “nova política revolucionária”,
e que esse caminho se opunha radicalmente à tese de que a “fase democrático-burguesa”
constituía uma etapa necessária. As orientações presentes nos programas e declarações
socialistas, a partir da década de 1950, principalmente a partir da formação da FRAP, são
baseadas nas concepções difundidas por seus intelectuais, como Jobet, Waiss e Chelén, que
passaram a adquirir cada vez mais importância nos debates internos à medida que o partido
necessitava fundamentar cientificamente as suas teses.
Exemplo dessa importância adquirida por seus intelectuais é a abundante publicação
dos seus textos, especialmente na Revista Arauco e no periódico Occidente. A revista mensal
Arauco foi dirigida na prática por Jobet, que, segundo Sarget, sofreu permanentemente com a
falta de colaboradores regulares. O intelectual socialista confiou à autora ter freqüentemente
33 JOBET, op. cit, 1987, p. 240-241. 34 MOULIAN, op. cit., 1991, p. 69.
116
redigido sozinho números inteiros da revista, atribuindo assinaturas variadas a seus próprios
artigos.35
Com esse amplo espaço ocupado pelos intelectuais socialistas, a cobrança pela
adoção de uma postura ruptural pelos partidos da esquerda passou a ser o eixo central destas
publicações. Dentre estes dirigentes, destaca-se Jobet, para quem o processo revolucionário de
Cuba representou uma nova dimensão na luta de classes da América Latina ao demonstrar a
“impotência da burguesia como força progressiva e revolucionária, bem como a validade da
violência revolucionária para alcançar o poder, ao legar a tática específica da guerrilha”.36 A
partir de então, passou a ser absolutamente rechaçada a aplicação da política de “conciliação
de classes”, como a vivenciada na Frente Popular. Não por acaso, Jobet é apontado como o
mais documentado crítico da Frente Popular.37
O radicalismo crescente no seio da esquerda chilena após a Revolução Cubana
acirrou o debate político e contribuiu, posteriormente, para uma incompreensão em relação ao
conteúdo politicamente democrático do projeto da Unidade Popular. Ainda que Jobet tenha
reconhecido o significado da vitória de Allende como um novo ciclo na história social e
política do Chile, a “via pacífica”, conforme sua denominação, colocava-se novamente como
o principal obstáculo à libertação nacional.
Na sua concepção, a “via eleitoral no quadro democrático burguês” não excluiria o
problema constante para atingir o socialismo que se tratava de substituir o Estado capitalista,
derrubar a burguesia e suas instituições repressivas. Entendendo que o Estado representativo
moderno significava uma autoridade política exclusiva da burguesia para gerenciar seus
assuntos e interesses, Jobet estabelecia que as contradições e a exploração do sistema seriam
abolidas somente por meio da revolução:
A necessidade da classe trabalhadora de conquistar seu bem-estar econômico, e o anseio da classe detentora em conservar seus privilégios, opondo resistência à democratização da riqueza determina a luta entre essas duas classes. A classe capitalista está representada pelo Estado atual, que é um organismo de opressão de uma classe sobre a outra. Eliminadas as classes, deve desaparecer o caráter opressor do Estado, limitando-se este a guiar, harmonizar a proteger as atividades da sociedade [...] O socialismo só poderá ser realizado por meios revolucionários e as
35 SARGET, op. cit., p. 327. 36 JOBET, op. cit.,1987, p. 317. 37 ELGUETA, op. cit., p. 127.
117
forças fundamentais dessa revolução são os trabalhadores da indústria, do campo, da técnica e da inteligência, possuídos de uma clara e profunda consciência socialista. O novo regime socialista só pode nascer da iniciativa e da ação revolucionária das massas trabalhadoras.38 [tradução nossa]
Essa postura presente no socialismo chileno reflete a releitura da idéia de
“necessidade histórica”, realizada pelos intelectuais da corrente mais radical da teoria da
dependência, e bastante influente na década de 1960, que visava afirmar a necessidade
imediata do socialismo, a partir de uma lógica estrutural. Esse discurso veio se contrapor às
teses etapistas e buscava demonstrar que na América Latina não havia condições de
viabilidade para uma nova tentativa modernizadora no marco do capitalismo.
Esta abordagem dos “dependentistas” mais radicais, como André Gunder Frank,
Teothônio dos Santos e Rui Mauro Marini se enquadra numa revisão da historiografia que
visualizava a existência e a necessidade de superação de um feudalismo local. Nesta visão se
apoiava a tese gradualista, para defender a idéia de que o subdesenvolvimento era a forma de
ser do capitalismo atrasado, e não uma etapa superável. Esta idéia é formulada numa nova
proposta de análise sobre a relação metrópole-satélite.
Com estas afirmações, os autores tentavam superar a idéia na qual o socialismo
aparecia postergado, e substituí-la por um discurso de corte igualmente estruturalista sobre a
atualidade do socialismo. Pode-se afirmar então que esta constitui a chave de leitura da época,
e que foi absorvida e representada também no socialismo chileno através dos seus
intelectuais: a prontidão da revolução, entendida como um processo ruptural, argumentada
como necessidade e não como possibilidade. A colocação de reformas passou a ser
considerada como uma política descompassada em relação ao tempo histórico.39
O socialismo iugoslavo também foi um modelo que exerceu influência significativa
no pensamento de Jobet, merecendo destaque em grande parte das suas publicações,
especialmente ao longo da década de 1960. A referência ao processo daquele país incide
38 JOBET, Julio César. Teoría, Programa y Política del PSCH. Arauco, Santiago, v. 4, n. 27, p. 65, 1962. 39 Além desta influência, um nome bastante recorrente no período é o de Regis Debray. Seus textos políticos influenciados pelo castrismo representavam a concepção da necessidade imediata do socialismo e da luta armada. Para ele, a “história havia dado o seu veredicto”, os problemas em torno do caráter da revolução já estavam resolvidos pela prática da revolução cubana. A premissa de Debray era que “Cuba havia feito passar bruscamente a luta de classes latino-americana a um nível superior”. MOULIAN, op. cit., 1993, p. 250-251.
118
especialmente sobre dois aspectos: “um novo tipo de democracia, baseada na autogestão” e a
sua “autonomia frente ao comunismo soviético”. A defesa da autogestão aparece como um
elemento bastante contraditório do seu pensamento, já que como um intelectual influenciado
pelas idéias vanguardistas de Lênin, essa proposta aparece obscurecida no seu pensamento.
Ainda que os dirigentes não apresentassem um projeto muito claro a respeito da
participação popular no governo da UP, Jobet e Altamirano defenderam este caminho no
processo de construção do socialismo, além de pressionarem a gestão de Allende no sentido
de acelerar o processo revolucionário, conferindo-lhe um imediato caráter socialista. Junto a
Altamirano e Chelén, Jobet compôs esse quadro de intelectuais que impôs uma dinâmica mais
radical ao socialismo no período, buscando uma caracterização ideológica e classista do
movimento. Esse novo sentido conferido pelos intelectuais do socialismo visava reconstruir a
identidade do grupo que, no contexto de sua formação, enfatizava a composição social
heterogênea e a oposição à definição de classe do partido, evidenciada nas declarações de
Marmaduque Grove, seu principal líder nas décadas de 1930 e 1940.
Como afirmamos, Jobet atuou no sentido de conferir uma identidade classista e
revolucionária ao socialismo – esta última entendida somente como um processo insurrecional
–, visando também se contrapor ao movimento comunista ao criticar as experiências de
aliança do comunismo com forças políticas concebidas como burguesas e com programas
“reformistas”. O autor defendia também um caráter democrático do socialismo em
contraposição às tendências do comunismo internacional; e procurava destacar uma
identidade nacional, fazendo frente a um movimento “dependente de diretrizes internacionais,
estranhas às questões do país”. Para tanto, a referência à experiência da Frente Popular se
mostra constante:
A aliança radical-comunista anulou a independência da classe trabalhadora e de seus partidos e entregou a direção do movimento democrático à pequena burguesia, mais desorientada e perigosa por sua limitação e demagogia [...] A posição justa [do PS] era a de criar uma frente classista, polarizando o descontentamento crescente das massas trabalhadoras, porque somente assim se conseguiria a independência do PS e uma posição de ataque não subordinada a outros partidos.40 [tradução nossa]
40 JOBET, Julio César. El Partido Socialista y el Frente Popular en Chile. Arauco, Santiago, n. 85, p. 27-28, 1967.
119
A influência exercida por Jobet pode ser caracterizada como indireta, mas ativa, visto
que o PS caracterizava-se pela grande importância conferida aos seus intelectuais e à
formação teórica dos seus quadros, e principalmente, na afirmação da sua proposta socialista a
partir da fundamentação científica e dos debates teóricos internos. Nesse sentido, Jobet pode
ser considerado como um dos principais organizadores daquele grupo.
É possível afirmar que, a despeito das ambigüidades e oscilações presentes no seu
discurso ao longo da sua trajetória, a radicalização da proposta socialista foi o nexo que
predominou na sua ação política e que esteve entre as linhas de maior expressividade no
partido, a partir da década de 1950. A sua atuação na proposta da FRAP e ao longo da década
de 1960 expressa o caráter de suas reflexões e propostas inseridas no movimento socialista
numa constante reafirmação da identidade revolucionária e de classe.
O que buscamos demonstrar aqui é que teses elaboradas e difundidas por intelectuais
como Jobet contribuíram para uma radicalização ideológica do socialismo, desenvolvendo a
idéia da oposição entre reforma e revolução no seu seio e imprimindo a concepção de um
processo revolucionário de confronto entre classes. Esta tese não foi capaz de apreender a
complexidade da formação histórica daquele país, cujo mais importante processo se
caracterizou pelo entendimento ente as forças sociais e políticas do Chile e pela congregação
do desenvolvimento com pautas integradoras no plano social.
Os temas relacionados com o nacionalismo, a democracia, o antiimperialismo e,
principalmente, a revolução adquiriam significado no rompimento com o “Estado burguês”.
Estes homens utilizaram, portanto, conceitos e interpretações-chave de caráter convencional
no plano da cultura política da esquerda, demonstrando sua limitação na formulação de
proposições que superassem o âmbito da estrutura econômica e que abarcassem o aspecto
político e de novas relações sociais no interior da sociedade projetada, que não fosse
entendido somente como a tomada do poder.
Ao recriarmos sucintamente o campo cultural da esquerda, o que procuramos
apreender é o discurso que orientava as ações daquela nova direção do PS, e que buscava
legitimar-se naquele momento político. O intelectual que era referência naquele grupo tinha o
120
papel de produzir teoricamente um discurso que forjasse um imaginário no qual a realidade
aparecesse simbolicamente elaborada, no sentido de orientar ações e mobilizar vontades
coletivas, colocando-se, ao mesmo tempo, como um porta-voz do seu partido.
Nessa tarefa, Jobet buscava estabelecer a revolução socialista como ilusão
libertadora. Como afirma Moulian41, a proposta socialista era apontada como o único modelo
de boa ordem, principalmente, por sua consonância com certas características culturais da
época, que (dialeticamente) a esquerda contribuiu para formar. Instaurou-se como a única
teoria que, por sua radicalidade, podia “dar conta” do capitalismo.
Compreender esse campo cultural da época que compunha os discursos e propostas
políticas nos permite apreender o sentido que os sujeitos históricos davam às suas ações por
meio dos seus discursos. Observar as idéias-força, os conceitos-chave, a lógica que
imprimiam na forma de fazer política é uma maneira de não nos prendermos em análises que
buscam “revelar” os interesses reais que ocultaria a retórica. Parte da esquerda de 1969 se
caracterizava pela cabal oposição ao modelo político caracterizado pelos compromissos,
concebido como reformistas, rechaçando assim, a concepção acerca do socialismo como
agregação de reformas.
Em meio às inflexões políticas e ideológicas do período, além da influência da
Revolução Cubana, a experiência da “Revolução em Liberdade”, da Democracia Cristã,
também exerceu fortes efeitos sobre a esquerda ao realizar profundas mudanças de corte
reformista e modernizador a partir de uma retórica revolucionária e uma mobilização mais à
esquerda deste setor com uma maior radicalização da sua proposta.
Por outro lado, a linha proposta pela esquerda da UP deve ser encarada como uma
manifestação do clima ideológico que havia se criado e difundido na esquerda, especialmente
na década de 1960, como a confiança no socialismo, a “crença” fortemente desenvolvida
pelos intelectuais no fracasso do capitalismo e a profunda esperança na mudança total e
imediata. A formação da FRAP, em 1957, já reunia alguns aspectos desta conjuntura da
esquerda que buscamos destacar.
41 MOULIAN, op. cit., 1993, p. 241.
121
Os Congressos de Liñares (1965), de Chillán (1967) e de La Serena (1971) são os
momentos nos quais se definem os elementos ideológicos de ruptura e a sua caracterização
leninista. O período anterior, compreendido entre 1961 e 1964, é caracterizado por Jobet
como um momento de refluxo político, de maneira a delimitar a nova fase do socialismo
como a verdadeira expressão revolucionária daquele movimento. Dessa forma, Jobet chamava
para a transformação revolucionária do regime vigente pela classe operária, afirmando que
somente uma concepção revolucionária marxista-leninista permitiria a congruência efetiva
entre a estratégia e a ação diária. Defendia assim, a posição de vanguarda do PS.
Como afirma Aggio, quando a esquerda chilena atuou como força política que
postulava a transformação social a partir de fora do aparelho de Estado, ela havia conseguido
demonstrar a sua capacidade de construir e vocalizar um discurso fundado na perspectiva dos
governados, centrando-se nas temáticas da igualdade e do direito à não-opressão. Dessa
maneira, não tomava para si a necessidade de ordem e unidade do Estado, apostando até
mesmo na sua ruptura. Esse discurso, somado aos elementos ideológicos da esquerda, teria
garantido a ela a sua legitimidade revolucionária. O desafio posto à UP como ator político era,
portanto, o de construir um discurso a partir do Estado, dar e assegurar-lhe legitimidade
perante toda a sociedade, ao invés de continuar perseguindo a ruptura revolucionária.42
O discurso mais radical e as referências a uma política de classe se apresentam como
elementos definidores da retórica socialista no governo da Unidade Popular. O documento de
1971, que registra as resoluções do Congresso de La Serena, indica os rumos e perspectivas
adotadas pelas lideranças do PS nesse processo. A vitória da UP simbolizava, na linguagem
das lideranças socialistas do período, como Jobet e Altamirano, a derrota da burguesia e do
imperialismo, na medida em que gerava condições favoráveis à classe operária e às massas
para uma conquista “efetiva” do poder e para iniciar a construção do socialismo no país.
De acordo com as suas declarações, além da consciência e experiência dos
trabalhadores, o contexto também era favorável devido à correlação de forças presente e o
controle sobre parte do aparato governamental. Nesse sentido, coloca-se um dos pontos mais
42 AGGIO, op. cit., 1992, p. 64.
122
importantes para se compreender o debate da esquerda no período da UP: a questão do
governo popular que, para parte dos socialistas, deveria se fortalecer e superar o controle da
institucionalidade exercido pelas “classes de posse”, reunidas no Partido Democrata Cristão e
no Partido Nacional.
A participação operária no governo não poderia limitar-se a sua dependência do
aparato governamental, os trabalhadores deveriam preparar-se para se incorporarem ao
exercício do poder por meio do manejo das instituições. Para tanto, o fortalecimento dos
comitês da UP e a sua conversão em instrumento das massas trabalhadoras era a medida
apontada como o caminho imediato para a criação do poder popular.
O caminho para a construção do socialismo era indicado em algumas medidas
programáticas como a nacionalização das empresas imperialistas, dos bancos; uma reforma
agrária apoiada na mobilização dos camponeses; a incorporação dos trabalhadores ao
exercício do poder, desenvolvendo a gestão operária nas empresas nacionalizadas,
construindo uma nova estrutura política que culminasse na Assembléia do Povo.
Esse Congresso representa um dos momentos mais importantes da história do partido
na medida em que reforçou o sentido de ruptura e de confrontação de classes no discurso
socialista. Na concepção desses socialistas, as medidas tomadas pelo governo da UP
reforçavam “a potencialidade revolucionária da situação e intensificavam a polarização de
classes”. Em especial, a pressão para uma aceleração do processo revolucionário se tornou o
ponto crucial do debate político da esquerda, como podemos observar:
A contradição entre as forças crescentes das massas e o poder da burguesia define esta etapa como um período essencialmente transitório. Nosso objetivo, portanto, deve ser de afirmar o governo, dinamizar a ação das massas, afastar a resistência dos inimigos e converter o processo atual em uma marcha irreversível para o socialismo.43 [tradução nossa]
Quanto às perspectivas para o governo da UP, Jobet estabeleceu que, ainda que esse
processo tenha sido muito significativo e de início de um novo ciclo na história social e
política do país, não era viável ratificar a disputa eleitoral. Nas suas próprias palavras, não
seria possível “substituir o Estado capitalista e derrubar a burguesia e as suas instituições
43 Resolución política Congreso de La Serena. (jan. 1971). In: JOBET, Julio César. El Partido Socialista de Chile. Santiago: PLA, 1971, p. 183.
123
repressivas”, tarefa possível somente pela “revolução de operários, camponeses e estudantes”.
A concepção acerca da revolução socialista como um confronto de classes se destaca no
seguinte excerto:
A UP ao desatar um conjunto de profundas mudanças estruturais intensificará, fatalmente, o conflito entre detentores e proletários, camponeses e pobladores [...] dia a dia irá rompendo a institucionalidade burguesa e abrindo caminho para um novo sistema socialista. O êxito da UP aumentará na medida em que dirigir um ataque ao regime capitalista e à situação dependente e subdesenvolvida do Chile e propague seu programa claro e realista de uma alternativa socialista verdadeiramente revolucionária. Ao mesmo tempo deve consolidar-se a unidade dos partidos operários e de todos os elementos verdadeiramente revolucionários no seio da UP [...]44[tradução nossa]
Jobet reafirmou as posições declaradas por Altamirano de que deveria haver,
primeiramente, a transição de uma “velha esquerda”, dominada essencialmente por uma
concepção “reformista e parlamentar”, para uma “nova esquerda revolucionária”, adotando
metas definidas direcionadas à ruptura da institucionalidade burguesa, termo utilizado para
referir-se às estruturas do Estado.
Aos partidos caberia a responsabilidade de unir-se à luta das massas e de ajudar a
superar o caráter economicista que predominaria em muitos de seus setores e orientá-la em
um sentido político revolucionário. O discurso vanguardista pautado na doutrina leninista da
revolução, sempre enfatizado pelo PS, apresentava-se como elemento importante nesse
contexto de fortalecimento do discurso ideológico, de maneira a reafirmar o papel de
liderança revolucionária e de representante da classe trabalhadora chilena nesse processo de
transformações:
Necessitamos um PS vigorado pela aplicação estrita do centralismo democrático; que se desenvolva em primeiro lugar entre a classe operária: que reconheça a legitimidade e necessidade da luta ideológica, que eduque sua militância nela [...] Só cumprindo estas premissas o PS poderá preparar-se a si mesmo e às massas para o decisivo enfrentamento com a burguesia e o imperialismo.45 [Grifos nossos] [tradução nossa]
O que podemos notar é que estes intelectuais ligados ao socialismo foram incapazes
de compreender aquela sociedade na sua complexidade política e social, concebendo-as
somente com categorias abstratas, como “Estado burguês” e “burguesia inimiga da classe
operária”. Assim, a construção do socialismo era idealizada como um processo da classe
44 JOBET, op. cit., 1971, p. 187. 45 Ibidem, p. 184.
124
operária em luta contra a burguesia, para conquistar o poder do Estado e transformar o seu
caráter de classe.
Em outras palavras, trata-se de uma proposição que se apresentava inteiramente
convencional frente à teoria socialista, e não como algo novo para aquela realidade social. As
afirmações constantemente reiteradas de que o Chile apresentava uma realidade histórica
particular para a construção do socialismo foram, com exceção do presidente Allende,
assumidas mais como retórica do que como um imperativo para a elaboração de uma nova
teoria da transição socialista.46
Estas recorrências às teses universais do socialismo, às suas categorias abstratas se
acentuaram após a declarada adesão do PS ao marxismo-leninismo. De acordo com Sarget, a
leninização do partido tem maior relação com uma reação contra a ameaça da DC, e que
permitiria uma adaptação da organização, dos seus métodos de ação e de trabalho. Além da
vontade de uma ruptura com um passado humanista e pluralista, um endurecimento
dogmático do pensamento e a adoção de uma linguagem estritamente marxista. Mas,
principalmente, como uma tentativa de modernizar o partido, de lutar contra as práticas
caudilhistas, para tornar o aparelho obediente às regras da racionalidade, organização,
disciplina, e pela difusão, na juventude socialista, do ideal de rigor e de pureza
revolucionária.47
Por outro lado, destacamos o empobrecimento do socialismo na sua capacidade de
contribuir com elementos válidos para uma estratégia revolucionária eficiente na complexa
realidade histórica do Chile. Para Moulian, a leninização produziu um partido dividido, no
qual o mundo da teoria e o da política real tendia a uma dissociação. Essas novas
considerações teóricas serviriam apenas como sistema simbólico, como mecanismo de uma
imagem política, mais que como guia de ação.48
No entanto, entendemos que estas orientações acabaram por gerar ações extremas
por parte da esquerda que obstaculizaram a efetiva concretização de um projeto político
46 AGGIO, op. cit., 1992, p. 63. 47SARGET, op. cit., p. 168. 48 MOULIAN, op. cit., 1983, p. 89.
125
pautado na história e na realidade daquele país, com as suas instituições políticas, as suas
composições social, econômica e cultural; caracterizando-se, portanto, como uma ação efetiva
desses homens que tiveram responsabilidades naquele processo.
A idéia de que, no Chile, o marxismo consistiu num componente importante da
cultura política nacional e que se desenvolveu como um dos sistemas hegemônicos no âmbito
das ideologias políticas, cuja influência podia ser sentida para além dos partidos de esquerda,
certamente se deve à atuação de homens que, como Jobet, dedicaram-se a difundir concepções
a respeito da sua realidade. Nessa tarefa, transplantaram conceitos e concepções teóricas para
a interpretação da sociedade da qual faziam parte e traduziram as teses da linguagem
filosófica e política do marxismo em idéias-força ou símbolos mobilizadores no socialismo
chileno, de maneira a se concretizarem em comportamentos e ações políticas com
conseqüências diversas.
Ainda que não possa ser identificado como um dirigente político, Jobet pode ser
considerado como um intelectual que participou ativamente daquele processo de radicalização
da esquerda, já que desempenhou um papel organizador no Partido Socialista, na medida em
que publicou e difundiu posições doutrinárias. Jobet foi porta-voz de uma posição
determinada daquele movimento político que gerou ações e conseqüências conhecidas para
aquela experiência de governo da esquerda que deveria ter se apresentado como uma
alternativa nova frente ao que já havia proposto a esquerda ortodoxa.
Jobet pode ser caracterizado como o intelectual da ruptura. Seu pensamento dirigiu a
esquerda política do Chile para um caminho oposto ao seguido até a década de 1940,
representando uma cultura política que passou a ser predominante. Trata-se de um intelectual
que negava a sua realidade e fazia uma leitura a partir de um imaginário que legitimava,
naquele momento, a linha insurrecional para o socialismo chileno.
Dessa forma, entendemos que a teoria socialista intensamente desenvolvida por Jobet
buscava construir um discurso hegemônico no campo partidário e popular. Elaborada
intelectualmente para dar sentido teórico à ação dos diferentes setores sociais e, ao mesmo
tempo, legitimar o papel de vanguarda de seu partido, a ação político-intelectual de Jobet
126
procurou traduzir retoricamente os anseios de radicalização de parte da sociedade para o
ambiente sistematizado da política chilena.
O choque provocado por um protagonismo dessa natureza contribuiu intensamente
para a construção e cristalização de uma cultura política que se mostrou bastante convencional
no campo da esquerda. Ela evidenciaria uma concepção mecanicista de transplantação de um
modelo revolucionário que buscou direcionar o processo de construção do socialismo a partir
de uma estratégia confrontacional que levou a polarizações irreversíveis.
127
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Entendemos que, em determinados processos históricos modernos, os intelectuais
partidários, enquanto teorizadores podem ser apontados como meros aclimatadores de uma
produção elaborada segundo cânones externos. Mas enquanto organizadores da vida política
se mostram capazes de conectar-se com as necessidades de parte importante do movimento
popular, fortalecendo a sua identificação com a organização partidária.
Ao analisarmos a atuação de um intelectual da importância de Jobet, é possível
apreender a ressonância que as suas formulações tinham para a delimitação de práticas, a
partir de concepções elaboradas acerca da realidade chilena. O que poderíamos pensar num
primeiro momento é que a palavra de um intelectual pode ser só mais uma em meio a tantas
formulações, idéias e concepções, inclusive, entre os dirigentes políticos. No entanto, o lugar
ocupado por Jobet, como uma referência intelectual, como um formulador e difusor das idéias
de um grupo determinado da esquerda, permite afirmar que a sua prática mostrou-se bastante
influente e até determinante nos rumos do partido.
O que observamos é que num grupo como o Partido Socialista do Chile,
caracterizado pela busca da fundamentação científica para as suas propostas, com base no
marxismo, a ação dos seus intelectuais adquiriram relevância significativa na interpretação
daquela realidade, na elaboração de projetos revolucionários, na formação dos militantes e no
debate político com os demais grupos nacionais e internacionais. Esta intervenção dos
intelectuais nos rumos do PS é notada, principalmente, a partir de meados da década de 1940,
quando tem início o questionamento quanto às formas da sua atuação político-institucional.
Este é um contexto no qual se inicia o choque entre diretrizes internas, bem como a
emergência de uma cultura política de ruptura, que afetaria diretamente os rumos da esquerda
e, consequentemente, do seu governo. Para compreendermos a formação dessa cultura política
de ruptura no socialismo chileno, bem como a sua influência nas orientações do partido,
optamos por entendê-la inserida num processo mais amplo da trajetória desse segmento
político, apreendendo quais eram as suas características e com quais elementos daquele
movimento ela desejava romper.
128
O socialismo chileno tem como singularidade ter se constituído enquanto um grupo
de forte representação e poder de pressão institucional. Trata-se de um grupo com forte
tradição histórica que remonta, desde as lutas operárias do século XIX, até concepções
políticas dos setores médios e de movimentos de trabalhadores do século XX. Destacamos,
portanto, que o governo da Unidade Popular, uma das maiores experiências da história da
esquerda, foi um episódio permeado por toda uma tradição.
Concebemos aqui a história do Partido Socialista em duas etapas. A primeira
demarcada do momento da sua fundação até a reunificação do socialismo, em 1957; enquanto
que a segunda abarca desse momento até a divisão de 1979; sem, no entanto, caracterizar-se
como momentos estanques. Em outras palavras, são momentos nos quais elementos diversos,
concertacionistas e rupturais se imbricavam na conformação da cultura política socialista,
além da sua identificação latino-americanista, popular e dos objetivos de ocupação do poder
serem elementos compartilhados por grupos internos com orientações diferentes.
Para apreendermos as inflexões na identidade do socialismo chileno, buscamos
compreender essa trajetória socialista de atuação no sistema institucional, característica
principalmente do período de governo da Frente Popular, e que entendemos ter contribuído
para o fortalecimento da democracia chilena. A sua cultura política, que denominamos
concertacionista, contribuiu para a constituição de um espaço onde todos os sujeitos sabiam
poder disputar e debater projetos políticos, representando os segmentos sociais que
constituíam a sua base de apoio. Essa característica, nós entendemos ser um dos principais
elementos da história da esquerda, e que foi incompreendida por parte da historiografia.
O momento de inserção da esquerda no quadro institucional pode ser encarado como
crucial para a compreensão das interpretações realizadas acerca desse segmento político, bem
como da sua trajetória mesma. A historiografia, em geral, apontou as negatividades da
atuação da esquerda chilena, através de denominações, como errática, ou mesmo, inserindo-a
no modelo do populismo, numa perspectiva que entendemos ser a da criação de uma
expectativa em torno de qual deveria ser a atuação dos socialistas. Da mesma maneira,
buscamos nos contrapor a uma interpretação que entendemos ser teleológica, na medida em
129
que ela identifica na história de cisões e conflitos entre as correntes internas do socialismo o
inevitável conflito e a inviabilidade do seu governo.
Primeiramente, entendemos que a formação do PS se deu num contexto de
emergência de uma diversidade de sujeitos sociais e políticos com um conjunto de projetos
contestadores da ordem e com novas propostas para o desenvolvimento. Além disso, que os
resultados políticos do processo no qual a esquerda estava inserida não se aproxima em nada
dos resultados obtidos pelas experiências políticas denominadas populistas.
A perspectiva da presente pesquisa foi a de compreender os elementos que
compunham a cultura política do socialismo chileno. Não buscamos, dessa forma, comprovar
um determinado tipo de ação política, ou fazer a leitura desse objeto com uma expectativa
determinada quanto ao seu comportamento e quanto aos resultados daquele processo. O nosso
intuito foi apreender as tensões presentes na base do projeto político do socialismo chileno, a
partir do desenvolvimento de uma cultura política de ruptura que veio a predominar e alterar,
em alguns aspectos, a sua identidade.
Foi possível identificar o desenvolvimento dessa cultura política de ruptura, a partir
da influência de uma das suas principais referências intelectuais. Esta análise foi realizada sob
a perspectiva de recriação do campo cultural da época. Em outras palavras, a proposta foi
compreender as tensões, conflitos do desenvolvimento político do país, considerando os
grupos que emergiram e se fortaleceram, os impactos das diferentes conjunturas e do clima
cultural predominante sobre a esquerda chilena.
As inflexões ocorridas no socialismo ocorreram na década de 1950. Estas mudanças
começaram a se delinear na década anterior, quando parte significativa dos seus dirigentes e
intelectuais passou a questionar a participação do partido nos governos radicais. O que
podemos notar é que estes questionamentos e a cobrança por uma atuação de corte mais
radical começaram a desenhar uma nova cultura política, que adquiriu tons mais definidos
principalmente nos anos sessenta.
Esta nova liderança do Partido Socialista apresentava como principal característica a
obsessão pela idéia da necessidade da “superação do reformismo”, identificado sempre com a
130
experiência da Frente Popular e dos governos radicais, ou seja, um modelo a ser negado pelo
“socialismo revolucionário”.
A generalização da idéia do atraso e do desajuste entre a estrutura política e a
infraestrutura econômica apresentou-se como uma das idéias centrais das formulações que
animaram os grupos de esquerda do país. Este pensamento era representado pela
intelectualidade que se destacou na interpretação dos processos históricos e na formulação de
projetos políticos.
Estas idéias estavam em consonância com a perspectiva da década de 1960, que se
caracterizou pelo auge das denominadas “alternativas globais”, através das quais se identifica
na esquerda a aposta no fim dos compromissos políticos característicos das décadas
anteriores; e no centro político, a consolidação das idéias modernizadoras com mudanças
estruturais, causando forte impacto sobre a proposta socialista.
Estas urgências pelas transformações globais suscitadas na década de 1960 foram
resultado, conforme destacamos, das propostas impulsionadas no mundo político,
institucional e intelectual, mas também como resposta às mudanças sociais que vinham
ocorrendo desde meados do século e que adquiriram variados contornos, dentro da lógica de
cada segmento político. A expectativa de mudança expressa em diferentes facetas dos projetos
de transformação estrutural daquele país esteve presente em diversas concepções que
pensavam aquela sociedade em termos de atraso, de desajustes ou de crise total.
Nesse contexto, assistiu-se à produção de cunho político e a um forte movimento
cultural que envolvia intelectuais nacionais com grande repercussão, como Pablo Neruda. A
produção artística engajada da Nova Canção Chilena também foi um grande destaque, bem
como os debates no âmbito político e econômico entre nomes das mais variadas tendências,
como a produção da CEPAL, que orientou o projeto da Democracia Cristã; todos anunciando
a possibilidade, ou a necessidade de um novo Chile.
A esquerda, a partir do questionamento da viabilidade do modelo capitalista para o
desenvolvimento do país, da sua obsessão pela idéia de crise total e da necessidade da
revolução, apresentava-se como a única alternativa capaz de transformar a sociedade. Sob esta
131
perspectiva, o socialismo deste período, diferente da década de 1930, imprimiu decisivamente
a dualidade entre reforma e revolução, compreendendo esta última somente como um
processo insurrecional de confronto de classes.
A partir de 1957, o socialismo chileno acentuou o seu discurso classista e a sua
perspectiva anti-reformista, pautada nas concepções do marxismo que eram difundidas pelos
intelectuais que o conformava. Este discurso atravessou a década de 1960 e o seu governo −
que tinha como principal proposta a construção do socialismo em democracia –,
estabelecendo a necessidade de encarar o governo popular como uma preparação da ruptura
revolucionária.
O que procuramos demonstrar foi que neste processo de radicalização da esquerda, a
atuação dos seus intelectuais teve um papel decisivo para a formulação das orientações
internas, na medida em que eles buscavam imprimir categorias analíticas e políticas que se
apresentassem como legitimamente revolucionários na mobilização de um determinado
projeto de socialismo.
No entanto, ao tentar destacar as especificidades locais, estes intelectuais buscaram
mais legitimidade como expressão do movimento revolucionário nacional do que a
apresentação de projetos genuínos. Nesse contexto, Jobet foi reconhecidamente uma das suas
maiores referências, que expressou em seus trabalhos historiográficos e panfletários os
princípios e categorias que orientaram essa busca por uma “identidade revolucionária” para o
socialismo, portando-se sempre como porta-voz do partido.
O mais importante a destacar é que Jobet é a expressão máxima de um dos setores da
esquerda que buscava romper com a trajetória inicial do partido, e que constituía a sua direção
majoritária naquele momento. As postulações de Jobet e dos intelectuais próximos a ele se
prenderam mais à tentativa de validação de uma determinada “fórmula revolucionária” do que
à compreensão histórica e das condições políticas e sociais específicas do Chile.
Suas idéias negligenciaram a composição do país que se estruturou politicamente
pautada em projetos de transformação que combinavam mudança e gradualismo; uma vez que
a democracia era encarada por estes socialistas como o espaço de defesa dos interesses
132
burgueses e de dominação sobre as camadas populares e, por conseguinte, de perpetuação do
capitalismo no Chile. Romper com a democracia, tomar o poder do Estado e afirmar o poder
popular, nesse sentido, garantiria o caráter revolucionário e não reformista daquele processo.
É possível afirmar que o trabalho teórico de Jobet superou proposições do seu
contexto no que concerne à abordagem historiográfica ao se contrapor às interpretações de
cunho conservador da história chilena. No entanto, seu projeto político mostrou-se bastante
limitado ao seu ambiente e a sua época, mostrando-se pautado numa perspectiva presa a teses
esquemáticas acerca da constituição e das contradições da sociedade. Suas formulações
tiveram o objetivo de legitimar um determinado projeto socialista e, principalmente, o papel
do seu grupo político.
Por outro lado, não podemos desconsiderar a importância do patrimônio ideológico
socialista para o questionamento da situação histórica chilena e para a inserção de
reivindicações políticas e sociais dos setores populares na pauta política do país, que resultou
na mobilização de projetos que consolidaram uma tradição de esquerda no Chile. No entanto,
neste contexto, a recorrência a esquemas abstratos obscureceu a compreensão das
características particulares daquela sociedade, afetando o projeto de transformação que
deveria se apresentar como uma alternativa nova e viável para os chilenos.
Nesse processo de busca pelo caminho revolucionário, as experiências russa,
iugoslava e cubana foram exaustivamente citadas pelos líderes partidários responsáveis pela
projeção e condução do governo popular, mas que se mostraram incapazes de pensar a “via
chilena” como um processo revolucionário inovador tanto para a esquerda como para o país.
Estes homens tinham no socialismo somente a “necessidade histórica” e a “revolução” como
horizonte para a construção de uma nova sociedade.
Esta concepção socialista tinha como característica a proposta de rompimento com
uma história de projetos modernizadores que também privilegiaram a integração social como
pautas reformadoras para aquela sociedade, e que, além dos setores populares, teve como um
dos protagonistas os setores médios. Além disso, a base que combinava mudança e
gradualismo não se assentava nessa proposta que tinha como perspectiva a tomada do poder,
133
quebrando assim a lógica dos compromissos políticos pautados num consenso entre os
diversos componentes políticos e sociais. Estes foram elementos que caracterizaram este
projeto de socialismo baseado numa idéia que identificava a emancipação nacional com a
tomada do poder e com a revolução, entendida como um confronto decisivo de classes.
Procuramos destacar neste trabalho uma importante expressão da interseção entre a
produção teórica e os acontecimentos concretos, que foi a relação de Jobet com o socialismo
chileno. Visamos demonstrar que ele foi o intelectual da ruptura, que realizou uma leitura da
realidade legitimadora da linha insurrecional para o socialismo daquele país, a partir da
concepção mecanicista de transplantação de um modelo revolucionário; perspectiva que foi
incapaz de apreender a proposta democrática de Salvador Allende, gerando polarizações
irreversíveis naquele processo.
A perspectiva de recriação do campo cultural da esquerda nos permitiu entender o
discurso e as teses bastante convencionais que orientaram as ações daquela direção do
socialismo e, assim, compreender a lógica que esta imprimia na sua forma de fazer política.
Longe de negarmos o papel dos diversos segmentos políticos e sociais do Chile no trágico
desfecho do governo da Unidade Popular, o nosso objetivo foi apreender a responsabilidade e
os limites da cultura política de uma esquerda que tinha a possibilidade histórica de construir
o socialismo em democracia, mas que o perseguia como um processo insurrecional, e
vivenciou, dessa forma, mais que uma derrota, o fracasso de um governo.
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