Upload
hamien
View
227
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
JLIO DE MESQUITA FILHO
Instituto de Geocincias e Cincias Exatas
Cmpus de Rio Claro
JAMUR ANDRE VENTURIN
A EDUCAO MATEMTICA NO BRASIL DA PERSPECTIVA DO DISCURSO DE
PESQUISADORES
Tese de doutorado apresentada ao Instituto de
Geocincias e Cincias Exatas do Cmpus de Rio
Claro, da Universidade Estadual Paulista Jlio de
Mesquita Filho, como parte dos requisitos para a
obteno do ttulo de doutor.
Orientadora: Prof. Dra. Maria Aparecida
Viggiani Bicudo.
RIO CLARO
2015
Venturin, Jamur Andre A educao matemtica no Brasil da perspectiva do discurso depesquisadores / Jamur Andre Venturin. - Rio Claro, 2015 541 f. : il., quadros
Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista, Instituto deGeocincias e Cincias Exatas Orientador: Maria Aparecida Viggiani Bicudo
1. Matemtica Estudo e ensino. 2. Fenomenologia. 3. Metapesquisa.4. Professor de Matemtica. I. Ttulo.
510.07V469e
Ficha Catalogrfica elaborada pela STATI - Biblioteca da UNESPCampus de Rio Claro/SP
JAMUR ANDRE VENTURIN
A EDUCAO MATEMTICA NO BRASIL DA PERSPECTIVA DO DISCURSO DE
PESQUISADORES
Tese de doutorado apresentada ao Instituto de
Geocincias e Cincias Exatas do Cmpus de Rio
Claro, da Universidade Estadual Paulista Jlio de
Mesquita Filho, como parte dos requisitos para a
obteno do ttulo de doutor.
Orientadora: Prof. Dra. Maria Aparecida
Viggiani Bicudo.
Comisso Examinadora
Prof(a). Dr(a). Maria Aparecida Viggiani Bicudo - Orientador(a)
IGCE/UNESP/Rio Claro (SP)
Prof. Dr. Antnio Joaquim Severino
UNINOVE/So Paulo (SP)
Prof. Dr. Carlos Roberto Vianna
UFPR/Curitiba (PR)
Prof. Dr. Nilson Jos Machado
FE/USP/So Paulo (SP)
Prof. Dr. Roger Miarka
IGCE/UNESP/Rio Claro (SP)
Resultado: Aprovado
Rio Claro, 24 de agosto de 2015
Dedico este trabalho aos meus pais Adilo e Edite
AGRADECIMENTOS
Nesta trajetria, agradeo ao meu pai Adilo Venturin, minha me Edite Leocadia Lora
Venturin e ao meu irmo Jorge. O incentivo deles deu-me nimo para desenvolver o trabalho.
Agradeo professora Dra. Maria Aparecida Viggiani Bicudo, pela orientao, e por estar
presente em toda a trajetria de estudo e de pesquisa.
Agradeo aos professores do Curso de Licenciatura em Matemtica da Universidade Federal
do Tocantins (UFT).
Agradeo Universidade Federal do Tocantins pelo apoio financeiro e incentivo para a
realizao do doutorado.
Agradeo aos professores pesquisadores que, gentilmente, concederam as entrevistas para a
realizao dessa pesquisa.
Agradeo banca de exame de qualificao e de defesa pelas consideraes tericas
apontadas no trabalho.
Agradeo ao Alessandro, pelo dilogo e por socializar sua experincia e
conhecimento em Filosofia.
Agradeo ao Flvio, pela longa jornada de estudos, de discusses e de teorizaes sobre a
fenomenologia husserliana.
Agradeo ao Renato e ao Gustavo, pelo estudo e discusses sobre Heidegger.
Agradeo ao grupo de estudos em Fenomenologia e Educao Matemtica (FEM) pelas
discusses e leituras realizadas.
Agradeo Marli, Anderson (kochym), Flvio, Tas, Rose, Jesaas, Ana Paula, Roger,
Dbora, Maria, Rosa, Bruna, Luciane e Orlando, pelos momentos em que dialogamos e/ou
estudamos Fenomenologia em Rio Claro.
Agradeo tambm aos familiares e amigos que estiveram presentes no movimento de pesquisa
e aos amigos dos longos passeios de bicicleta e das confraternizaes realizadas em Rio
Claro.
Agradeo aos alunos da Universidade Federal do Tocantins que participaram do grupo de
estudo em Educao Matemtica e Fenomenologia. O dilogo, com eles, impulsionou-me a
compreender ideias inicias em Fenomenologia.
Agradeo ao Programa de Ps-graduao em Educao Matemtica da Universidade Estadual
Paulista Jlio de Mesquita Filho (UNESP), Cmpus de Rio Claro pela oportunidade de cursar
o doutorado.
Agradeo aos funcionrios da biblioteca e do Departamento de Matemtica da UNESP pelas
informaes e pelos auxlios tcnicos.
Agradeo Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo (FAPESP) pelo apoio
financeiro concedido a esta pesquisa.
RESUMO
Este trabalho tem como foco de pesquisa a Educao Matemtica por ns interrogada com a
indagao: O que os pesquisadores em Educao Matemtica, no Brasil, dizem da Educao
Matemtica?. O objetivo o de buscar compreender o significado de Educao Matemtica
nos seus diferentes modos de se presentificar nos discursos de pesquisadores que atuam no
Brasil, focando essa rea de investigao e tendo por meta delinear um estilo. Para constituir
os dados da pesquisa, foram entrevistados os professores pesquisadores, que atuam no Brasil,
que foram referenciados no III SIPEM. A Fenomenologia husserliana o solo filosfico
assumido para a realizao da investigao. A anlise de dados consistiu-se em dois momentos:
a Ideogrfica e a Nomottica. No primeiro, so articuladas as unidades de significado a partir
do discurso de cada sujeito significativo, constitudas luz da interrogao. No segundo,
reunimos as unidades de significado, buscando as convergncias; esse o momento em que nos
direcionamos do individual para ncleos de ideias mais abrangentes a qual denominamos de
Ncleos de Significado, que dizem da Educao Matemtica, do que ela est sendo e indicando
linhas que avanam para o seu vir-a-ser. Nesse movimento, constitumos os Ncleos de
Significado: 1) A Produo Cientfica em/na Educao Matemtica; 2) A compreenso de/em
Educao Matemtica; 3) Educao Matemtica e Matemtica; 4) A Prtica do Professor de
Matemtica; 5) A Formao do Educador Matemtico. Estes ncleos de significado foram
interpretados e teorizados.
Palavras-chave: Educao Matemtica; Matemtica; Fenomenologia; Metapesquisa;
Professor de Matemtica.
ABSTRACT
This study focuses on Mathematics Education, which begs the question of the following
inquiry: What do Mathematics Education researchers have to say about Mathematics
Education in Brazil?. The objective is to understand the meaning of Mathematics Education in
the different ways that it presents itself to researchers speeches in Brazil, focusing in this field
of study and trying to outline a style for it. The research data were obtained by interviewing
teachers and researches, who work in Brazil and were referenced in III SIPEM. The Husserlian
Phenomenology is the philosophical method used for this investigation. The data analysis
consisted of two moments: the Ideographic analysis and the Nomothetic analysis. In the first
one, the meaning units were broken up into the speech of each significant individual, established
by the interrogation. In the second moment, we gathered the meaning units, looking for
convergences; this is the moment when we directed ourselves from the individual notion to a
core of more comprehensive ideas, which were referred to as Meaning Cores, explaining what
Mathematics Education is now and indicating what it could be in the future. This way, we
created the following Meaning Cores: 1) The Scientific Production in Mathematics Education;
2) The understanding of/in Mathematics Education; 3) Mathematics Education and
Mathematics; 4) The Practices of a Mathematics Teacher; 5) The Mathematics Teacher
Training. These Meaning Cores were interpreted and theorized.
Keywords: Mathematics Education; Mathematics; Phenomenology; MetaResearch;
Mathematics Teacher.
SUMRIO
CAPTULO I ..........................................................................................................10
VIDA EM MOVIMENTO ........................................................................................ 10
1.1 Possibilidade de compreender rastros de vivncias de outrem ............................. 16
1.2 Da organizao do texto da tese ............................................................................ 17
CAPTULO II ......................................................................................................... 19
FENOMENOLOGIA: INTRODUZINDO SENTIDOS E SIGNIFICADOS .......................... 19
2.1 A matematizao da natureza ................................................................................ 20
2.2 Apresentao do campo de percepo .................................................................. 24
2.3 O sentido do indagado: ir coisa mesma .............................................................. 27
2.4 Buscando expor conceitos nucleares fenomenologia .......................................... 29
2.4.1 Mundo-vida e intencionalidade .......................................................................................30
2.4.2 Da Epoch subjetividade ...............................................................................................31
2.4.3 Da subjetividade-intersubjetividade a caminho da objetividade ......................................34
2.4.4 Compreenso de sentido e de significado para a pesquisa ..............................................38
CAPTULO III ........................................................................................................ 41
O TEMA DE PESQUISA: EDUCAO MATEMTICA ............................................... 41
3.1 Por que este tema de pesquisa se mantm? ....................................................... 44
3.2 A expanso do campo de percepo segundo a literatura estudada ....................... 76
CAPTULO IV ........................................................................................................ 79
EFETUANDO A INVESTIGAO SEGUNDO A VISO FENOMENOLGICA ............... 79
4.1 Em busca de procedimentos de pesquisa ............................................................... 79
4.2 Realidade e conhecimento ..................................................................................... 81
4.3 O movimento de pesquisa em fenomenologia ....................................................... 83
4.3.1 A possibilidade da descrio ............................................................................................85
4.3.2 Indcios de sentido com a voz fenomenolgica ................................................................89
4.4 Da interrogao e o que a interrogao interroga ................................................. 91
4.5 Procedimentos de investigao ............................................................................. 92
CAPTULO V ......................................................................................................... 95
O MOVIMENTO DE DESCREVER, EXPOR E ANALISAR O FENMENO PERCEBIDO .. 95
5.1 A transcrio das entrevistas ................................................................................. 95
5.2 Da anlise ideogrfica e a explicitao das Unidades de Significado .................... 96
5.3 Da Anlise Nomottica: convergncia das Unidades de Significado ................ 447
CAPTULO VI ...................................................................................................... 469
O QUE EXPRESSAM OS NCLEOS DE SIGNIFICADO ............................................ 469
6.1 Ncleo de Significado 1- A Produo Cientfica em/na Educao Matemtica .. 470
6.2 Ncleo de Significado 2 A Compreenso de/em Educao Matemtica .......... 485
6.3 Ncleo de Significado 3 - Educao Matemtica e Matemtica .......................... 496
6.4 Ncleo de Significado 4 A Prtica do Professor de Matemtica ...................... 504
6.5 Ncleo de Significado 5 A Formao do Educador Matemtico ...................... 517
CAPTULO VII ..................................................................................................... 525
EM DIREO A UMA SNTESE COMPREENSIVA A UMA METACOMPREENSO DO
FENMENO INVESTIGADO ..................................................................................... 525
REFERNCIAS ..................................................................................................... 537
10
O Espinoza de um lado epistemlogo, mas sem dvida nenhuma
um libertrio; algum que pensa a liberdade em um alto nvel, porque nada
para ele se conquistar nesta natureza se no houver liberdade, ou seja,
nada se conquistar se este oceano que varrido pelos ventos contrrios
no passar a produzir as suas prprias ondas.
Por Claudio Ulpiano
CAPTULO I
VIDA EM MOVIMENTO
As experincias que me impulsionaram a pesquisar Educao Matemtica
movimentaram-me e mostram um pouco de como estou sendo atualmente1. Poderia questionar
o que sou? Ou como sou? O o qu e o como so duas aberturas que explicitam modos de como
me vejo e o que vejo de mim.2 Poderia ir por outro caminho e descrev-los sem me preocupar
com o o qu e com o como. Poderia, apenas, expressar: eu estou estudando educao
matemtica por acidente.3
Afinal, o que impulsionou, consideravelmente, a escolha deste tema de pesquisa seria:
a curiosidade, o trabalho acadmico, o gosto por Matemtica, o trabalho como funileiro, o jogo
de xadrez, a sala de aula, as viagens, o Curso de Edificaes, as leituras de revista em
quadrinhos, as reprovaes? Nesse caso, eu estaria sendo movido por uma viso bastante
pragmatista sobre as razes que me conduzem a investigar um tema. Debruando-me sobre o
percurso vivenciado, vejo o movimento contextual da academia solicitando-me um ttulo de
doutor para cumprir a funo de pesquisador. Percebo, ainda, que outros temas, que dialogam
1 Escrevo na primeira pessoa do singular quando me refiro as experincias por mim vivenciadas e na primeira
pessoa do plural quando busco outros autores para compor o texto.
As citaes diretas no texto esto sendo marcadas em itlico e no entre aspas como em geral so apresentadas
nos trabalhos acadmicos. As indicaes do autor, ano e pgina da obra referenciada esto em notas de rodap. As
marcaes que os autores fazem em seus textos esto sublinhadas.
Da tese fazem parte todas as entrevistas e suas anlises, fazendo com que o seu volume fique grande, ou seja, com
muitas pginas. Entretanto, essa uma deciso assumida com a orientadora que entende que desse modo so salvos
os dados de pesquisa, como se fosse um banco de dados, disponveis a outros pesquisadores, alm de ser crucial
para o desenrolar do pensamento articulador que acompanha toda a investigao. 2 Essas indagaes abrem perspectivas para que eu possa fazer a crtica, a anlise e a reflexividade do que se
destaca com as experincias vivenciadas. 3 Observo que escrevo Educao Matemtica, com as primeiras letras maisculas, para dizer do campo de
investigao e educao matemtica, com as primeiras letras minsculas para dizer do que se est fazendo, sem
tematizar esse assunto.
11
com o exposto, tambm me puseram em movimento de busca. Compreendo que so aqueles
que esto vinculados s atividades acadmicas e que apontam para a estrutura da Matemtica,
para a possibilidade de existirem outros modos de produo desse conhecimento, praticado no
cotidiano das pessoas em suas comunidades; para o modo pelo qual a Matemtica abordada
na sala de aula; para a interrogao: por que Matemtica; para como a Educao Matemtica
est se mostrando enquanto campo de pesquisa e de prtica profissional. Dou-me conta de que
esses contextos de vivncias profissionais e pessoais anunciaram tramas que se enrolam na vida
vivida.
Percebo que as tramas apontadas ainda no do conta de expressar, em totalidade, toda
a trama que me impeliu a seguir o caminho para estudar Educao Matemtica. Entendo que
algumas das experincias citadas so vestgios do vivenciado e com eles que me identifico e
abro um campo para pesquisa.
Pensando assim e colocando-me na posio de responder indagao de como a
Educao Matemtica est se mostrando procuro focar esse projeto que se destacou com minha
vivncia, indicando que a deciso assumida buscar compreender os modos pelos quais a
Educao Matemtica est sendo vista segundo o discurso de pesquisadores que atuam no
Brasil4. Portanto, a pedra angular para tomar a deciso de tematizar Educao Matemtica se
deu no contexto em que vivencio experincias junto aos outros e com a oportunidade de estudar,
de aprender a pensar e a pesquisar bem como de avanar junto a educadores matemticos.
Dou-me conta, com este movimento de busca por compreenso, que intenciono
realizar uma investigao que abranja: o pensar, o querer entender, o explicitar a Educao
Matemtica, vendo-a em devir.
A esto o impulso e as motivaes para escolha feita. Assim percebo.
x..........x..........x
Os contextos anunciados at aqui mostram algumas marcas e, quando as destaco dizem
de mim e do tema que trago junto fala. H outras vivncias que me impulsionam a tomar
decises, que me levam a pensar e agir no fluxo vivido que so complexas de descrev-las. No
d para expressar e descrever as mincias de como somos. O ser humano complexo. Penso
no haver modo completo para dizer dele: toda tentativa de completude j , em sua origem,
um projeto fracassado. Somos devir. Temos possibilidades. Pensamos, em filosofia, em
4 No 4 captulo explicitamos, com pormenores, quem so esses pesquisadores e como os destacamos enquanto
sujeitos significativos para o desenvolvimento da pesquisa.
12
conceitos filosficos para expressar as atividades mundanas, porm, no determinsticos,
portanto, abertos e, por isso, em movimento de serem compreendidos.
Os outros aspectos de vivncia complementam/no complementam o que sou (em
movimento): a educao dos meus pais, a escola, a religio, o sinal de trnsito5, a sociedade
etc.; ainda assim o que foi tecido at aqui, no determinante no sentido de que continuarei a
fazer o que estou fazendo hoje. A vida apresenta-se em campo de percepo6 com horizonte
em expanso. Clama ateno, dizendo: o horizonte tende a se deslocar de maneira que a linha
que demarca o at onde vai minha viso se movimenta para mais longe, medida que a clareza
vai se fazendo para aquele que olha interrogativamente. Desse modo, o horizonte se evidencia
como abertura de possibilidades quando nos dispomos a avanar, indo alm do que a est.
Avanar traz como marcas: criar novas possibilidades de compreenses, o que no significa,
necessariamente, afirmaes positivas e objetivas sobre o compreendido.
Imbricadas neste movimento esto as leituras em Educao Matemtica, em
Fenomenologia, em Filosofia, em Literatura, os dilogos com os pares, o grupo de estudo e o
questionamento do sentido das coisas permitiram-me expressar uma compreenso de mundo.
O que se mostra7, mostra-se a algum que interroga o que v e que percebe o que se mostra de
uma perspectiva. Se me afasto ou aproximo-me, h outras nuanas do percebido, outras
atuaes para o sentido. E assim o percebido destaca-se em perfis.
Mergulhando nesse movimento e tendo as indagaes formuladas presentes, entendo
que o que ser exposto com a pesquisa o que compreendi nessa experincia vivida e que faz
sentido para mim8, embora no seja fruto de um pensar abstrato e solitrio, mas sempre em
processo de constituio em que estou com os outros em dilogo na realidade mundana.
Esta postura converge com a da Fenomenologia. Entendo-a como uma abertura
leitura de mundo e ao modo de compreend-lo. Para Bicudo (2010) um aspecto que caracteriza
fenomenologia a busca pelo sentido do mundo-vida, na medida em que, pelo olhar
interrogador, destacamos figuras dessa totalidade, visando compreend-las. Buscar o sentido
do que me inquieta, entendo esta afirmao como um lema que abre para uma compreenso
inicial de fenomenologia, visto que indaguei o prprio sentido de Fenomenologia, das ideias
conceituais fenomenolgicas, no me valendo apenas de conceitos referenciados na elaborao
5 Esse aspecto do cotidiano vivido muito importante para mim, pois como sou daltnico, em algumas situaes,
um problema distinguir o passe, a ateno e o pare. 6 Observo que os conceitos em destaque sero retomados e explicitados no decorrer do captulo concernente
fenomenologia. 7 Aqui estou expondo a ideia de fenmeno, como compreendido pela fenomenologia. 8 importante que se entenda, desde j, que no me assumo de modo solipsista, mas busco pelos sentidos que o
mundo faz para mim ao estar com os outros.
13
deste texto. Com esta abertura, estou afirmando que no me ative a um estudo exegtico de
alguns temas e de conceitos fenomenolgicos presentes na obra de Husserl, colaboradores e
autores que trabalham com fenomenologia, mas os estudei, analisando-os e interpretando-os no
mbito do horizonte de minha visada.
Isso por dois motivos.
O primeiro: diz do meu entendimento em Husserl, por ser um leitor iniciante, mais do
que isso e, principalmente, por estar em movimento de ser. Compreendo que certos aspectos de
sua filosofia fenomenolgica vo sendo aclarados medida que se aprofundam aos estudos.
Com esse cuidado, trouxe para o dilogo com a fenomenologia husserliana outros estudiosos
em Husserl.
O segundo motivo: Husserl faz filosofia fenomenolgica pura9. Ele visou rigor e
cientificidade produo do pensar filosfico, o que, conforme explicita, exercita mediante a
postura e procedimentos fenomenolgicos. Como a atividade que realizo a de valer-me de
aspectos, ou de conceitos, da filosofia fenomenolgica para dialogar com a pesquisa que estou
realizando, focando a interrogao que me movimenta, o modo de proceder na constituio de
dados para pesquisa, bem como, o processo de produo do texto, dou-me conta de que
investigo em educao matemtica, no fazendo, portanto, filosofia husserliana pura, mas
filosofia fenomenolgica e vivenciada em educao matemtica. Isto quer dizer que sou eu,
sujeito encarnado, que persigo o sentido, estando situado e ciente do que se mostra no mbito
de afirmaes j formuladas em juzos e avaliadas, quando as escolho e as explicito com o meu
modo de ver o mundo, articulando-o com ideias de outros estudiosos.
Os juzos efetuados so as evidncias das experincias vividas objetivadas em
proposies escritas ou faladas. na ao de expressar uma palavra que se estiliza o devir das
coisas. A escolha vem estilizada com a grafia de minha vida e assim, no movimento de expor a
compreenso, eu promulgo um juzo. Por isso, busco escrever e compreender alguns conceitos
fenomenolgicos na perspectiva de realizar pesquisa, corroborando a viso de Merleau-Ponty,
9 Para Ales Bello (2004) a fenomenologia tomada em si mesma. A mesma autora afirma que o aspecto que
interessa fenomenologia husserliana essa anlise do interior do sujeito e dos sujeitos humanos.(2004, p. 97).
Husserl tem preocupaes em explicitar o modo pelo qual o ser humano evidencia o sentido das coisas deste
mundo. Para tanto, faz uma anlise psicolgica fenomenolgica da constituio da subjetividade, porm vai alm
deste aspecto e expe sua compreenso da constituio da intersubjetividade e objetividade, como ser visto ainda
neste trabalho. Este tema ser tratado no decorrer do texto, dialogando com Merleau-Ponty, Bicudo, Ales Bello e
outros autores, quando expressaremos nossa compreenso fenomenolgica; e assim anunciaremos como estamos
dizendo da radicalidade, por exemplo, no movimento de epoch.
Destaco ainda a importncia do estudo realizado em Fenomenologia com o colega de grupo Flvio de Souza
Coelho para a compreenso de conceitos fenomenolgicos tratados nesse trabalho.
14
para quem o mundo no aquilo que eu penso, mas aquilo que eu vivo; estou aberto ao mundo,
comunico-me indubitavelmente com ele, no o possuo, ele inesgotvel.10
Merleau-Ponty parece dizer o bvio: mundo aquilo que eu vivo. Mas, o bvio perde
o tom de obviedade quando o tematizamos. Portanto, viver o mundo solicita ao. A ao
estar em movimento, em curso, vivenciando experincias. A vivncia da vida exposta no
contexto da prpria vivncia. Isto parece redundante, mas no ; nem circularidade. Isso quer
dizer que o sujeito est consciente do que experienciou e pode retom-lo, tematiz-lo,
abandon-lo, avanando em seu movimento de compreenso. A vivncia11 alimenta e constitui
a realidade mundana. Ela a impulsiona. Em fenomenologia a realidade no dada
positivamente. A realidade vai sendo tecida no movimento de busca do sentido das coisas que
se destacam com as vivncias vividas, na acolhida do percebido pela conscincia em cujos atos
ele articulado j engendrando a expresso dessa articulao mediante a linguagem e a
respectiva comunicao, em partilhamento com os cossujeitos daquele que vivencia. Nessa rede
de co-compreenses e expresses, a realidade do mundo-vida vai sendo constituda
historicamente.
Poderia expressar vivncia como as aes efetuadas em um contexto cultural, poltico,
social que expe, para o outro, cossujeito com quem estou e com quem dialogo as experincias.
Nas vivncias, potencializo prticas e experiencio as coisas mundanas. Vivncia parece se
misturar com a vida12, portanto, vai alm de constituio, um modo de avanar. As vivncias
esto amalgamadas em um campo de percepo. Nele est o outro ser humano e natureza em
geral.
Nessa perspectiva, a afirmao de Merleau-Ponty o mundo no aquilo que eu penso,
mas aquilo que eu vivo pe em movimento e d vida Fenomenologia, aos seus conceitos e,
agora, novas aberturas so elaboradas com a viso de mundo deste pesquisador e estudioso que
me ponho a pesquisar.
10 MERLEAU-PONTY, 2006, p. 14. 11 GADAMER (2012), dialogando com outros pensadores, trata o conceito de vivncia junto com a arte. A arte
vivencial significa, em princpio, que a arte origina-se da vivncia e dela expresso. (2012, p. 117). Sobre o
tema arte, o professor de filosofia Claudio Ulpiano (1997) expressa: so objetivos exclusivos da arte tocar nos
afetos e no perceptos, ou seja, alterar nossos afetos e alterar nossos perceptos (transcrio de trecho do vdeo,
1997). A arte, nesse sentido, a abertura para o novo.
Em Gadamer (2012) a motivao do surgimento da palavra vivncia (Erlebnis) na lngua alem uma formao
secundria da palavra vivenciar (Erleben), que tornou-se comum na dcada de setenta do sculo XIX e aparece
numa carta de Hegel, porm h outras ocorrncias isoladas nos anos de 30 e 40. Vivenciar quer dizer [...] ainda
estar vivo, quando algo acontece[...]. O vivenciado (das Erlebte) sempre o que ns mesmos vivenciamos (das
Selbsterlebte) (GADAMER, 2012, p.105, destaques do autor); tambm, o contedo que vivenciamos que [...]
ganha durao, peso e importncia [...] (p. 105), afirma o autor. 12 GADAMER, 2012.
15
Este um entendimento de mundo para dizer das coisas mundanas. Certamente outras
leituras e experincias podem me levar a outros modos de expor coisas mundanas, realidade e
conhecimento.
Valer-me de ideias da Filosofia fenomenolgica para pratic-la em pesquisa ou
articul-la com a Filosofia da Educao Matemtica e s atividades mundanas, entender que
estou e sou formado social, cultural e politicamente. Nesta formao crio julgamento, gosto,
desejo, expectativa, que me pem em modos distintos de ateno com os aspectos focados dos
sentidos que se destacam no curso das investigaes.
Nesse curso, a ao solicita estar atento ao que se movimenta em meu campo de
percepo. Estar atento uma atividade complexa, que desafia o sujeito da ao, porque o
questionamento das coisas exige abertura espiritual do pesquisador, exige sua ateno ao
fenmeno de pesquisa. o eu, tomado em sua subjetividade13 com o outro, entendendo que o
eu tem experincias prprias, possui um solo histrico que comum aos seres viventes, mas
busca um sentido, o qual se faz ao ser no mundo-vida em que esto os outros, humanos ou no,
portanto, tambm seu companheiro. O mundo-vida diz da totalidade do solo histrico, poltico
e social em que estamos sendo. Portanto, vivemos em uma comunidade14, unida por valores e
modos de compreender a si, ao mundo e vida; em uma sociedade15, organizada de acordo com
posies polticas e ideolgicas de seus cidados; e sempre estamos em movimento sendo,
trazendo consigo o outro, a comunidade, a sociedade com os conflitos e com os diferentes
interesses polticos, religiosos e culturais que modificam a sociedade e a comunidade.
Esse modo de ver o mundo leva-me a entender realidade e conhecimento estando
entrelaados e sendo tecidos no contexto vivido e, ao explicitar entendimento do percebido
nesse contexto vivido, o que se mostra so aspectos, caractersticas, e no a coisa, ela mesma.
O que se mostra aponta para... (o percebido, o compreendido, o experienciado) em um solo
comum a cossujeitos e, por isso, pode haver dilogo em um mesmo horizonte de compreenso.
A compreenso do percebido articulada pelos sujeitos e se mantm pela linguagem, quando
13 A subjetividade e uma totalidade complexa que, de acordo Ales Bello (2006) ao referir-se a Husserl, abrange
o fisiolgico (sensaes e percepes), o psicolgico e o espiritual (entendido esprito como a dimenso do juzo). 14 Husserl e Stein acreditam que a organizao que respeita a pessoa se chama comunidade. A comunidade
caracterizada pelo fato de os seus membros assumirem responsabilidades recprocas. Cada membro considera
sua liberdade, assim como tambm quer a liberdade do outro e, a partir da, verificam qual o projeto conjunto.
O projeto pode ser til para a comunidade, mas deve ser til tambm para cada membro. (ALES BELLO, 2006,
p. 73, destaque do autor). 15
Fazemos parte de organizaes que aparentemente no so, mas poderiam se tornar comunidades, por exemplo,
um grupo de alunos de uma mesma sala de aula. A associao existe um vnculo fsico, corporal, mas aquelas
pessoas formaram esse vnculo por acaso. O termo sociedade descreve esse tipo de grupo, uma vez que os
membros esto ali por uma finalidade comum. No entanto, se eles forem capazes de estabelecer vnculos psquicos
e espirituais, podero tornar-se uma comunidade. (ALES BELLO, 2006, p. 75, destaque do autor).
16
h encontro entre seus campos de compreenso. Entendo que o que est sendo compartilhado
ganha outros sentidos e significados no curso das vivncias, portanto, apontando para... outras
compreenses sempre em movimento de constituio.
Com o acima escrito exponho-me: como me eduquei e educaram-me, como estou me
vendo e ao mundo; portanto, pesquisa.
1.1 Possibilidade de compreender rastros de vivncias de outrem16
A verdadeira filosofia reaprender a ver o mundo e nesse sentido uma
histria narrada pode significar o mundo com tanta profundidade quanto
um tratado de filosofia.
Por Meleau-Ponty
Expressar como o conhecimento produzido, como a cincia humana, natural, a
filosofia, a poltica dizem do mundo e como as pessoas entendem mundo ou expem aspectos
do devir das coisas mundanas uma tarefa complexa, lanando-me em um profundo e
desagradvel labirinto. A trilha, que escolho percorrer, para expressar o que destaco como
educao matemtica sinaliza em linguagens gramaticais, descritivas, com cores, formas,
estilos e traos as marcas histrico-culturais, temporal e espacialmente presentificadas.
Quando busco o sentido das coisas, entendo que elas esto enlaadas com intensidades
que variam de acordo com o que focado, em um curso contnuo em espao e tempo. Este
caminho que torna presentes as marcas histricas-culturais-polticas, algumas mantidas pela
tradio, outras escondidas espera de narradores, outras perdidas, outras destrudas quase por
completo, outras a serem criadas, cujos contornos e efeitos so misturados no encontro do ver
com o visto17 e, ao tatear algumas dessas marcas, impulsionado por uma indagao, histria
vivida e o desejo de avanar, percebo que faz sentido dizer o que est sendo visto dos estilos e
formas, do que evidencio e que comunica uma compreenso do percebido, declarado, agora,
em outra linguagem textual.
Assim, o texto que produzo e comunico com esta pesquisa cria meu rastro neste
labirinto que estranhamente se autoconfigura e, assim, no se deixa aprisionar; o seu
funcionamento como o de um organismo que se expande e cria cdigos que nos
16 Observo que os captulos so numerados com os algarismos romanos e os subtpicos com os indo-arbicos. 17 Ver-visto diz do movimento noesis-noema, como descrito na fenomenologia husserliana.
17
orientam/desorientam cada vez que pensamos abarc-los; j no mais nem o mesmo labirinto.
E, nele, agora, h uma nova possibilidade de movimentar-me, de tatear, de olhar, e de dizer
outras coisas com essa pesquisa.
Esse ponto de vista deixa transparecer a dificuldade sentida em relao s escolhas
assumidas, junto com as possibilidades do que a est para fazer pesquisa e compreender os
rastros deixados por outros.
Percebo-me em movimento e nele minha viso de mundo vai se constituindo,
revelando-se e se escondendo.
1.2 Da organizao do texto da tese
Para esclarecer o leitor o modo pelo qual este texto est organizado, apresentamos a
seguir os captulos que compem esta tese.
No captulo II, explicitamos nossa compreenso de Fenomenologia e de como nos
valemos de conceitos nucleares a esse campo filosfico para desenvolver a investigao. Assim,
tematizamos epoch, subjetividade, intersubjetividade, objetividade, mundo-vida,
intencionalidade, por exemplo.
No captulo III, descrevemos a Educao Matemtica segundo a literatura publicada
na rea. Este captulo no entendido como fundamentao terica. Ns o interpretamos como
a possibilidade de evidenciar perspectivas da historicidade da Educao Matemtica.
No captulo IV, anunciamos o modo pelo qual elaboramos os procedimentos
metodolgicos levando em conta a postura fenomenolgica assumida na pesquisa.
Explicitamos, ainda, a interrogao e o objetivo da investigao, bem como os sujeitos
significativos que foram entrevistados para a constituio dos dados da pesquisa.
No captulo V, apresentamos a transcrio das entrevistas realizadas e relatamos os
pormenores do procedimento de transcrio. Nesta seo, realizamos a anlise Ideogrfica e a
Nomottica. No primeiro movimento de anlise, articulamos as unidades de significado. Estas
expressam nossa compreenso/interpretao do fenmeno de pesquisa. No segundo
movimento, direcionamo-nos para a reunio das unidades de significados, efetuando suas
convergncias. Com este procedimento, constitumos os ncleos de significado.
18
No captulo VI, realizamos o movimento de teorizao do que se evidenciou do
fenmeno de pesquisa, isto , tematizamos os ncleos de significados, anunciando
compreenses do tema inquirido.
No captulo VII, apresentamos uma sntese compreensiva do movimento de teorizao
e nos direcionamos a uma metacompreenso, dizendo do modo pelo qual estamos
compreendendo/interpretando o que foi dito de Educao Matemtica, da perspectiva do
discurso de professores pesquisadores.
19
CAPTULO II
FENOMENOLOGIA: INTRODUZINDO SENTIDOS E SIGNIFICADOS
Ao buscar compreender o que os pesquisadores em Educao Matemtica, no Brasil,
dizem da Educao Matemtica?, caminhando no movimento investigativo de modo
fenomenolgico, entendemos ser importante explicitar ideias nucleares ao pensar e ao proceder
fenomenolgico, destacando, inclusive aquelas importantes Educao Matemtica. Para tanto,
mostrou-se-nos significativo retomar o dito na literatura estudada para dizer de constituio do
conhecimento, de concepo de subjetividade, intersubjetividade e objetividade, que vai
trazendo, junto, o modo de compreender a historicidade do mundo-vida.
Por que Fenomenologia?
Assumir a postura fenomenolgica na pesquisa expressar uma viso de mundo aberta
para... Essa postura apresenta-se continuadamente no contexto profissional do pesquisador e
nas atividades vividas cotidianamente. uma atitude que solicita ateno com as coisas que
esto no campo de percepo, no as tomando como verdades apodticas, mas compreendendo
que, o que a est pode ser entendido subjetivamente e constitudo intersubjetivamente com o
outro. , portanto, uma viso de mundo aberta para... Nessa pesquisa, por exemplo, a postura
fenomenolgica destaca-se no mbito da elaborao da tese e pode ser entendida ao expormos:
os motivos que nos conduziram a nos debruarmos nela, tematizando Educao Matemtica;
os modos pelos quais apresentamos a interrogao, ao se constiturem os dados da pesquisa e
como foram analisados e interpretados. Entendemos que a postura fenomenolgica faz sentido
e se mantm nesta pesquisa, visto que uma possibilidade de ouvir o outro e de expressar
aspectos da regio inquirida, levando em conta as experincias vivenciadas pelas pessoas.
Embora nosso foco de estudo seja a obra de Husserl que tem uma data, a qual pode ser
pensada no perodo que abrange de 1900 a 1938 (este o ano de seu falecimento), o que pode
sugerir que o ali tratado seja especfico desse momento por ele vivido, as questes e crticas
sobre cincia ali apresentadas, ainda so atuais. Isso se evidencia na obra de Capra intitulada O
Ponto de Mutao: a Cincia, a Sociedade e a Cultura, datada de sua primeira edio em 1982.
Nela o autor pormenoriza o modo pelo qual a cincia ocidental se valeu de mtodos
mecanicistas na biologia e na medicina,18 por exemplo.
18
No decorrer de toda a histria da cincia ocidental, o desenvolvimento da biologia caminhou de mos dadas
com o da medicina. Por conseguinte, natural que, uma vez estabelecida firmemente em biologia a concepo
mecanicista da vida, ela dominasse tambm as atitudes dos mdicos em relao sade e doena. A influncia
20
Destacamos neste item uma discusso da matematizao da natureza, tomando por
ponto o texto publicado por Husserl na dcada 1930 e que explicita o modo pelo qual ele
compreende a cincia Matemtica e a constituio do conhecimento matemtico, e com ele
dialogamos trazendo, tambm, autores que esclarecem as questes postas em nosso dilogo.
Entendemos que essa discusso significativa tanto para a Matemtica quanto para a
Educao Matemtica.
A descrio que segue no abrangente nem totalizante; vemos a descrio como
apontamentos, como vestgios de uma verso de histria narrada e registrada em documentos.
2.1 A matematizao da natureza
A descrio dos objetos presentes na natureza era uma ao efetuada pelos antigos
gregos. A matemtica emprica herdada dos egpcios e dos babilnios no os satisfazia como
garantia de verdade. Para eles, as afirmaes matemticas precisavam ser demonstradas pela
razo.19 Os Elementos de Euclides atestam essa afirmao. Nele podemos encontrar o
pensamento matemtico grego organizado segundo regras dedutivas desenvolvidas pelos
matemticos gregos.20
Na idade moderna, com Galileu, a ideia de espao herdada dos antigos gregos
entendida como espao geometrizado, idealizado e, agora, pode ser tratado com maior preciso
do que anteriormente isso devido ao prprio desenvolvimento da cincia natural; a ideia de
matematizar a continuidade (movimento, formao) torna-se possvel, visto que Galileu viveu
em um contexto cientfico que estava em apoteose busca pelo determinismo cientfico. Era a
poca do Renascimento, quando se perseguiam explicaes racionais do pr-cientfico
sustentadas pela matemtica. Ele, como pesquisador da natureza, estabeleceu um mtodo, na
cincia fsica, que serviu como ferramental sofisticado para medir, por exemplo, velocidades e
aceleraes que, expressas matematicamente por meio de frmulas, efetivamente apontava uma
medio cada vez mais exata. A arte de medir, afirma Husserl (2012), no era uma arte pronta,
acabada, ao contrrio, era um [...] mtodo de melhorar sempre novamente o seu mtodo [...]21,
do paradigma cartesiano sobre o pensamento mdico resultou no chamado modelo biomdico, que constitui o
alicerce conceitual da moderna medicina cientfica. O corpo humano considerado uma mquina que pode ser
analisada em termos de suas peas; a doena vista como um mau funcionamento dos mecanismos biolgicos,
que so estudados do ponto de vista da biologia celular e molecular; o papel dos mdicos intervir, fsica ou
quimicamente, para consertar o defeito no funcionamento de um especfico mecanismo enguiado. (CAPRA,
2006, p. 116). 19 BICUDO, 2004. 20 BICUDO, 2004. 21 HUSSERL, 2012, p. 32, destaques do autor.
21
com a inveno de meios tcnicos instrumentais. Deste modo, [...] toda a medio recebe o
sentido de uma aproximao a um polo, decerto inalcanvel, mas ideal idntico, a saber, de
aproximao a uma configurao determinada das idealidades matemticas ou uma das
configuraes a elas pertencentes22.
Husserl (2012) afirma que o processo de medio fornece frmulas numricas, neste
caso, gerais. Ou seja, as frmulas exprimem manifestamente conexes causais gerais, leis da
natureza, leis de dependncias reais sob a forma de dependncias funcionais de valores
numricos23. Com esse mtodo para expressar medidas pode-se compreender que tanto a
natureza quanto os corpos que nela se movimentam podem ser experienciveis e descritos
matematicamente24. Para Husserl
A fsica galilaica assenta sobre esta concepo da natureza, pela qual a ideia
cientfica, h muito pr-dada, de uma regulao universal dos
acontecimentos do mundo e, em especial, dos acontecimentos fsicos, assume
um sentido essencialmente novo (precisamente o sentido de que a natureza
est sujeita a leis incondicionalmente gerais e exatas (leis causais), leis que
fazem da natureza infinita um universo calculvel).25
Assim, na poca de Galileu o modo de compreender espao e tempo firmou-se na
explicao Matemtica de espao geometrizado. O mundo geometrizado, com espao e tempo
entendidos matematicamente, permite ao matemtico descrever os eventos ocorridos: a
natureza pode ser cotejada em forma de linguagem matemtica. Este um dos aspectos do
fisicalismo galilaico: a matematizao da natureza. Os fenmenos so mensurados. Tempo e
espao ho de ser quantificveis. As qualidades percebidas pelos sentidos humanos so
explicitamente excludas, por no ser possvel mensur-las. Ao homem coube apenas ser o
expectador e o realizador do espetculo; entretanto, isola-se do evento, o qual assistido de
longe. Ele no parte do fenmeno que ele mesmo narra. Uma contradio? Para Ferraz (2004)
Galileu compreendia no ser possvel matematizar o gosto, a cor, o cheiro. Estava preocupado
com a matematizao do que fosse possvel escrutinar, efetuando, portanto, um modelo cuja
forma era expressa em uma estrutura com linguagem matemtica.
Galileu estudou as qualidades, ou propriedades dos corpos, que poderiam ser descritas
em linguagem matemtica. Por exemplo, estudou o tempo e a velocidade de um corpo lanado
no espao, at atingir o solo e se props a escrever isso com exatido. Na fsica mecnica, ns
22 HUSSERL, 2012, p. 32 23 HUSSERL, 2012, p. 32. 24 Cf. VENTURIN, 2007. 25 HUSSERL, 2012, p. 279.
22
herdamos tempo e espao dados separadamente, visto que o espao percorrido est em funo
do tempo.
O tempo e o espao so cnones para expressar a forma. Tempo e espao so herdados
na modernidade com a seguinte configurao: o tempo marca o evento ocorrido no espao;
no espao que se calcula o evento. A realidade passa a ser dada; ela previsvel, calculada. A
natureza matematizada. Esse modo de proceder com a cincia sustenta alguns aspectos da
postura filosfica de Descartes.26
Descartes se vale de ideias de outros filsofos, matemticos, e anuncia um mtodo,
que assegura certeza e verdade, para a cincia em geral. O mtodo cartesiano publicado na
obra Discurso do Mtodo e um dos aspectos que o explicita o Cogito, ergo sum Penso, logo
existo. Descartes coloca em destaque as coisas desse mundo. Quando o faz desse modo, o que
est em suspenso (e Descartes pe tudo em suspenso) colocado junto com a dvida.27 Ela
o ponto crucial para ele dizer Cogito, ergo sum. A nica certeza que havia era que ele existia
como um ser pensante. O restante dos juzos versava apenas sobre coisas duvidosas. Com esse
modo de proceder, isto , o pensar em si, conforme ele aponta, a alma privilegiada. A razo28
o cerne de sua filosofia. O corpo apenas matria. Corpo e alma passam a ser entendidos
como entes separados.
Uma perspectiva da filosofia cartesiana a separao de corpo e alma; o dualismo
cartesiano. O ego, a coisa pensante, separado do corpo, a coisa extensa. A coisa pensante, a
partir do ego, produziria conhecimento verdadeiro, universal, no sujeito dvida, ou ao erro.
Nessa perspectiva, as coisas deste mundo, para dizer delas e estabelecer as verdades, so
verificadas dedutivamente, da mesma maneira como a deduo realizada em Matemtica; esse
procedimento poderia ser aplicado a toda espcie de cincia. O homem comparado e
26 Na obra cartesiana Trait du monde, Descartes tambm adotaria praticamente as mesmas concepes
cientficas de Galileu, a principal que a terra se move. Descartes, em uma carta a Mersenne, segundo Kaugroker,
se diz to contrariado com a condenao de Galileu que pensara em queimar seus escritos ou no permitir que
ningum os vejam e que, se a tese de Galileu estiver errada, ento todo o seu sistema filosfico tambm estaria,
pois possvel provar a sua Filosofia a partir desse pressuposto. O Trait du Monde s foi publicado depois de
sua morte, mas boa parte das idias do tratado foram coligidas no Discurso, especialmente nesta quinta parte,
onde escreve sobre as leis do movimento, segundo a qual, Deus criou uma matria, uma extenso geomtrica e
por isso matematizvel, isto , Deus estabeleceu certas regras Matemticas no mundo material que podem ser
descritas ou explicadas matematicamente, a noo mecanicista do mundo. (VAZ, 2007, p. 142). 27 Descartes introduz essa dvida metdica [duvidar de todos os juzos], porque pensa que os juzos que absorveu
de outros esto contaminados por preconceitos. Aps adotar essa dvida universal, ele seguir aceitando como
verdadeiros somente os juzos que ele mesmo pode justificar, conformes ao mtodo que ele desenvolveu.
(SOKOLOWSKI, 2010, p. 63). 28 O racionalismo cartesiano foi colocado em crise pela filosofia contempornea e inclusive criticado por Husserl,
que afirma a importncia da razo, mas no se trata de uma razo absoluta. O conceito de razo cartesiano
contendo idias inatas no tem lugar no esquema terico de Husserl. Como, segundo Descartes, as idias so
contidas dentro da razo (eu, mundo, e Deus), isso induz a pensar que tudo existe dentro do sujeito e daqui deriva
a noo de centralidade do sujeito. (ALES BELLO, 2004, p. 97, n. 50).
23
entendido, a partir da separao corpo e alma, como uma mquina. Essa maneira de pensar foi
herdada pelo ocidente nas cincias humanas, exatas e biolgicas.29
O mtodo de Descartes posto para cincia em geral, simplificadamente, consiste em
iniciar a verificao do objeto para, assim, admiti-lo como verdadeiro. Sendo verdadeiro, para
analis-lo, divide-o em partes, tantas quantas forem necessrias, de modo que cada parte seja
o menos complexa possvel, e as sintetiza das mais simples s mais complexas; posteriormente,
enumera as partes que constituem o que est sendo resolvido para ter certeza de que nada ficou
para trs.30 Hoje, esse mtodo, conforme entendemos, utilizado nas cincias exatas em geral,
bem como nas da natureza e nas humanas. Nas cincias que cuidam do corpo humano h modos
operantes de tratar o ser humano a partir do dualismo cartesiano com a separao de corpo e
alma. Essa conduta pode ser um dos rastros seguidos pela medicina ocidental. Haja vista que
um especialista, um ortopedista, por exemplo, analisar o local onde o indivduo apresenta
sintomas de alterao funcional do corpo somtico e o diagnstico pautado em dados que so
fornecidos, parte por parte, em uma ressonncia, ultrassom ou raio-x com exames de sangue
etc.; a h possibilidades de dizer o que houve localmente. O tratamento do corpo, e
localmente, no com a alma e o corpo entendidos como uma unidade. Esse ponto de vista do
dualismo cartesiano leva-nos a dizer do homem como aquilo que pode ser verificvel.
No campo da Matemtica e da Filosofia cartesiana entendemos que elas marcaram o
estilo, a forma e os tons daqueles que escolheram trilhar pelo rastro cartesiano. Descartes, por
exemplo, algebriza a geometria permitindo efetuar atos generalizadores aos objetos
matemticos; por conseguinte, uma figura poderia ser descrita em uma linguagem algbrica.
O conhecimento racional cartesiano de conceber as coisas deste mundo como uma
mquina, construdo com linguagem matemtica. A possibilidade de descrever o movimento
de um corpo, em uma equao matemtica, o modo pelo qual, por exemplo, Issac Newton
operou e criou o seu clculo diferencial e integral. Esse autor um personagem que se valeu
das ferramentas disponibilizada pelos matemticos anteriores, em especial o modelo
mecanicista de mundo e criou novos resultados, entre eles o clculo diferencial que permite
descrever o movimento dos corpos; no caminho que percorreu esto as marcas histricas
gravadas ao menos por cartesianos e galilaicos.
Newton compreendeu os mtodos algbricos de Descartes; estabeleceu a relao de
diferenciao e de integrao como operaes inversas31; deu o salto cientfico para descrever
29 CAPRA, 2006. 30 Cf. DESCARTES, 2009. (Segunda parte do Discurso do Mtodo). 31 BARON, 1985.
24
o movimento dos corpos na Terra, e no sistema solar; entre outros estudos32. Anunciamos
Newton, pois com o clculo efetivado, problemas que envolvem movimento de corpos na
natureza so solucionados. A cincia natural avana, e com ela fica ainda mais em evidncia a
certeza de que a natureza pode ser descrita e controlada como o funcionamento de uma
mquina33. A cincia natural neste momento constri um caminho que se intensifica, estilizando
o mundo ocidental com a possibilidade do determinismo cientfico.
2.2 Apresentao do campo de percepo
Saber bem que quem somos no conosco, que o que pensamos
ou sentimos sempre uma traduo, que o que queremos o no
quisemos, nem porventura algum quis saber tudo isto a cada
minuto, sentir tudo isto em cada sentimento, no ser isto ser
estrangeiro na prpria alma, exilado nas prprias sensaes?
Por Fernando Pessoa
O caminho percorrido nos mostrou que h uma histria ocidental contada/registrada,
cujos resqucios conduzem a explicaes a respeito do homem tomado em partes, separado em
corpo e alma, como sujeito determinado.
Escolhemos outra trajetria ao valermo-nos de autores que tratam de Fenomenologia.
Entendemos que h outros modos de dizer de homem, conhecimento e mundo de perspectivas
diferentes daquelas cartesianas. Explicitaremos o que est fazendo sentido para mim, at ento,
assumindo uma postura fenomenolgica.
Um modo de expor fenomenologia e que pode se tornar compreensvel no apenas
teorizando-a, mas explicitando uma viso de mundo, de como as coisas se mostram e descrev-
las no horizonte de vivncias cotidianas. Por esse motivo, as leituras realizadas em
fenomenologia nos orientam a expressar aberturas para os conceitos fenomenolgicos, tambm,
segundo a experincia vivida.
Iniciamos o dilogo com Ales Bello (2006), descrevendo o modo pelo qual expe as
dimenses do ser humano, abordado por Husserl em suas obras, como corpo, psique e esprito34.
32 CAPRA, 2006. 33 CAPRA, 2006. 34 Segundo Ales Bello (2006, p.39) [...] o termo alma era usado para indicar tudo aquilo que no era corpo.
Normalmente se diz, ento, corpo e alma. Husserl e seus discpulos analisam a alma em duas partes: [...] psquico
e esprito.
25
Estas dimenses so possibilidades de entender e de expressar a complexidade humana.
Assumimos essa explicitao, pois um modo de nos compreendermos como ser humano.
Assim, esse caminho ser feito e anunciaremos as dimenses corpo, psique e esprito que, ao
explicit-las, pela escrita parecero separadas, porm, como Ales Bello (2006) afirma, elas
esto estritamente imbricadas, articuladas, juntas.
Neste ponto transparece a restrio e a abertura da linguagem escrita. A linguagem
transporta sentidos e significados que se foram fazendo na temporalidade das vivncias havidas
e, ao mesmo tempo, ela no d conta de descrever o que o pensar de um sujeito, em um dado
momento, articula nos atos de sua conscincia ao se ocupar de suas vivncias; e diz mais do
que se quer, pois traz consigo mais sentidos. As palavras que grafamos trazem as experincias
mundanas, carregam ambiguidades de significados que o mundo faz para ns. Somos
linguagem e formados de/na/com linguagem em vivncias. A linguagem escrita apenas um
dos modos de expresso, de presentificao; tentando, quase tenuemente, dizer de um tema.
Mesmo com as dificuldades antevistas, esse exerccio leva a refletir, a imaginar e a pensar em
possibilidades de dilogo.
Retomando a complexidade do ser humano, passaremos a expor as respectivas
dimenses mencionadas. O corpo a dimenso compreendida em atos corpreos. Estes so
instintos em geral, o sentir fome ou sede, por exemplo. Com a corporeidade percebemos as
coisas neste mundo, dizemos das coisas mundanas com ela. O mundo se anuncia pelos sentidos
encarnados no corpo somtico: olfato, viso, paladar, tato e audio. Mesmo estes sentidos no
esto separados; h sinestesias35 que os articulam. O outro aspecto que diz da complexidade
humana refere-se s reaes em geral. Na psique, e nessa dimenso humana, compreendida
em atos psquicos, que pulsa a fora vital de reaes como beber, comer; com a psique
expressamos, tambm, afetos, emoes, medo. Na psique, no h a avaliao, o ato inferir.
Segundo Bicudo (2010), quando focamos os atos psquicos, temos o momento de darmo-nos
conta de..., este movimento entendido na dimenso humana, como esprito. So atos
espirituais: a reflexo, a deciso, a avaliao ou a capacidade de emitir juzo; enfim, aqueles
que estabelecem relaes entre dois sentidos percebidos, por exemplo.
35 Em Husserl [...] o corpo somtico, que no falta jamais ao campo perceptivo, com os seus rgos de
percepo correspondentes (olhos, mos, ouvidos etc.). Estes desempenham aqui, conscientemente, um papel
constante e, com efeito, funcionam no ver, no ouvir etc., em conjunto com a mobilidade egoica que lhes pertence,
a chamada cinestesia. Todas as sinestesias, todo o eu movo, o eu fao, esto interligados na unidade
universal, onde a paralisao sinestsica um modo do eu fao.(HUSSERL, 2012, p. 85-86).
26
Estas dimenses atuam juntas nas possibilidades de expressar as vivncias
transcendentais36 do ser humano do que temos conscincia da a complexidade ao trat-las,
mesmo com o intuito de exemplific-las, uma a uma. As vivncias, em Husserl, so entendidas
como: reflexo, imaginao, lembrana, execuo de atividades, fantasia.37 So aes
manifestadas no dia a dia, quer dizer, h momentos de refletir sobre, de lembrar, de exercer
atividades.
As vivncias anunciam um modo da dimenso humana. Devemos estar atentos para
no generalizar estas vivncias, visto que se manifestam com intensidade diferente quando
pensadas em outra cultura, diz Ales Bello (2004): por exemplo, uma cultura que foca sua
ateno no corpo, ter modos distintos de autoentendimento e mtuo entendimento. Quando
Ales Bello afirma outra cultura, no precisamos projetar uma comunidade distante da realidade
prxima. Pelo contrrio, a cultura escolar, a cultura acadmica e a cultura da roa solicitariam
modos e intensidades diferentes dos atos que expomos ao mobilizarem objetos em seu
cotidiano.
Somos diferentes38.
Esses temas aqui tratados se entrelaam, no decorrer do texto, com outros conceitos
significativos da Fenomenologia. Por isso, na tentativa de evidenciar seus desdobramentos,
buscamos compreender as coisas desse mundo numa atitude natural e na atitude
fenomenolgica. Indagamo-nos, ento: onde nos leva essa busca e deparamo-nos com dois
aspectos importantes a essas atitudes: o fenmeno e o fato.
As descries desses temas tm por alvo expor um rastro que revelam marcas. Marcas
essas que anunciam nosso modo de pensar.
36 Segundo Ales Bello O transcendental aquilo que faz parte da subjetividade, prprio do sujeito, no deriva
de fora; ao passo que transcendente o que est alm do sujeito [...]. O conceito husserliano de estrutura
transcendental o ponto fundamentalmente novo na fenomenologia. Para Husserl, a estrutura transcendental a
estrutura dos atos entendidos como vivncias, de modo que a estrutura transcendental composta por vivncias
das quais ns temos conscincia. (2004, p. 49-50, destaques do autor). 37 ALES BELLO, 2004. 38 Somos diferentes! Uma discusso particular: poderia pensar que por ser daltnico percebo coisas diferentes de
pessoas que no so daltnicas, mas no apenas o motivo de no enxergar as cores que outras pessoas veem que
me d perspectiva diferente. Enxergo cores que para mim so cores vistas, entendo-me em devir, como um sujeito
qualquer. Da minha perspectiva, o que vejo no problema. O problema atribudo pelos outros: assim a diferena
discriminatria, que se transforma, em geral, em preconceito, criada. Isto , o mundo estruturado para pessoas
que veem cores e tonalidades que no percebo, ou as vejo, com outras cores e nuanas. Ser diferente deveria ser
entendido como cada um de ns com possibilidades em devir. Somos todos diferentes no modo de entender e de
refletir sobre as coisas. O tema diferena pode ser discutido enquanto mecanismo de rejeio, excluso, por
exemplo, como ocorre na Educao. Entendo que os valores so estabelecidos cultural e historicamente e formam
nossos juzos. Os juzos so as avaliaes que realizamos. Os nossos valores, ento, se sustentam em juzos prvios.
Portanto, ao escolher ou comparar nos valemos do juzo que pode estar reproduzindo os valores das estruturas
sociais que definem o que normalidade, por exemplo. Da olhar-se para o outro e dizer o que ele deveria ter para
ser igual ao que est posto; o outro olhado pela falta, visto como inferior. Esta prtica derradeira para a
manuteno do status quo do dominador que diz o que as coisas mundanas devem ser e ter, e como ser.
27
2.3 O sentido do indagado: ir coisa mesma
Um aspecto que diz da Fenomenologia e evidencia o seu mago [...] a busca do
sentido que as coisas que esto nossa volta, no horizonte do mundo-vida, fazem para ns39.
Quando buscamos o sentido de alguma coisa, isso se revela nas experincias vivenciadas, em
que o fazer, o lidar com o que dado, no cotidiano, so questionados. O estado de perplexidade
leva-nos a querer clarificar o que nos inquieta; por isso, interrogamos o que se destacou da
realidade vivida. Ao assumir uma atitude de indagao no nos contentamos, simplesmente,
com o visto ou o efetuado, tomado como um fato dado, mas buscamos compreender para alm
do que a est. Essa a atitude fenomenolgica.
Dizemos que ao buscar pelo sentido de... vamos s coisas mesmas com a inteno de
indagar o que isto que preocupa, ou seja, o que pe em movimento de pensar reflexivamente.
Merleau-Ponty (2006) entende que este movimento de
Retornar s coisas mesmas retornar a este mundo anterior ao conhecimento
do qual o conhecimento sempre fala, em relao ao qual toda determinao
cientfica abstrata, significativa e dependente, como a geografia em relao
paisagem primeiramente ns aprendemos o que uma floresta, um prado
ou um riacho40.
Outro exemplo, em consonncia com o de Merleau-Ponty, est no mbito da
Matemtica. O que se apresenta nos rastros histricos da cincia Matemtica ou mesmo pelo
conhecimento matemtico, praticado no dia a dia, como a operao com nmeros, por exemplo,
j no seria mais o suficiente. Essa atitude revela que ao focar um fato e no movimento de o
sujeito voltar-se a..., olha-o, contempla-o, coloca-o em destaque, no mais como um fato, mas
sim como uma inquietao. Coloca-se em posio de buscar um sentido para o que o inquiriu,
o afetou. Assumir a postura de buscar pelo sentido das coisas e, por outro lado, valer-se delas
como fato so duas atitudes diferentes. Olhar para o objeto como um fato dado, , por exemplo,
trabalhar com nmeros reais sem indagar o que um nmero. Neste caso, aceita-se, por
exemplo, como legitimador de nmero o que a Matemtica diz de nmero. O significado est
dado, objetivamente, ao sujeito pela Matemtica no uso e no emprego de propriedades e
definies. Esse significado posto, positivamente, diferente de buscar e de avanar em direo
de outros sentidos que podem se manifestar, ainda no claros, para o sujeito. Essa atitude de
39BICUDO, 2010, p. 26. 40MERLEAU-PONTY, 2006, p. 4., destaque do autor.
28
buscar o sentido de nmero movida pelo esprito que [...] existe, na espao-temporalidade, a
onde est o seu corpo somtico, e a partir da ele vive e atua no mundo, o universo do ente
espao-temporal41.
O movimento de buscar compreender nmero, nas experincias vividas, um modo
de a fenomenologia expressar a possibilidade da constituio de conhecimento com o pr-
predicativo. Segundo Santos (2013), pr-predicativo refere-se a um conhecimento no
tematizado em termos de predicaes objetivas, ainda que possa vir a se desdobrar subjetiva e
intersubjetivamente, por meio de diferentes atos42. um conhecimento pr-terico, afirma
Santos (2013), ou no tematizado, por isso, abrem-se outras possibilidades no campo de
percepo que podem assumir outros sentidos e significados para o olhar indagador que poder
expressar outros modos de compreenso para nmero segundo suas experincias vividas.
No rastro do exposto, compreendemos que um fenmeno no um fato43. Fato, para
Husserl, que, no incio do sculo 1900, foca a lgica e o discurso das cincias positivsticas,
criticando-as, o que pode ser explicado, provado e escrutinado com mtodos postos por essas
cincias.44 O fato dado pontualmente de modo objetivo. Sendo objetivamente dado, passvel
de ser observado, mensurado, podendo ser expresso numericamente. Ele determinado no
espao versus tempo, o que significa que no tomado em movimento de historicidade passvel
41HUSSERL, 2012, p. 240. 42SANTOS, 2013, p. 13. 43O fato um conceito cannico nas cincias positivas e que se nota que nas cincias sociais de 1950, 60, para
c elas tm criado uma certa zona densa em que termos so mencionados com significados diferentes como o fato,
por exemplo, dizendo que ele poderia ser tomado como uma narrativa. Entretanto, narrativa um movimento de
narrar que tem uma temporalidade implcita no discurso narrativo e que conta do que ocorreu em outros
momentos em no aquele que a pessoa est narrando. (Orientao com a Profa. Maria Bicudo no dia 21 de janeiro
de 2015). Outro modo de expor o significado de fato o mencionado pelo historiador Kith Jenkins, que assim se
manifesta: Existiro coisas passadas que paream ser factualmente corretas? Em certo sentido, legtimo
responder que sim. Sabemos, por exemplo, que a chamada Grande Guerra/Primeira Guerra Mundial ocorreu
entre 1914 e 1918. Sabemos que Margaret Thatcher subiu ao poder em 1979. Se essas coisas so fatos ento
conhecemos fatos. Entretanto, tais fatos, embora sejam importantes, so verdadeiros mas banais no mbito das
questes mais amplas que os historiadores discutem. Isso porque eles no esto demasiado preocupados com os
fatos descontnuos (os fatos individualizados), j que essa preocupao s cabe quela parte do discurso
histrico que se chama crnica. No: os historiadores tm ambies, desejam descobrir no apenas o que
aconteceu, mas tambm como e por que aconteceu e o que as coisas significavam e significam. [...] Assim, o que
est em pauta nunca so os fatos de per si, mas o peso, a posio, a combinao e a importncia que eles trazem
com referncia uns aos outros na elaborao de explicaes. (2007, p. 60). Jenkins no est preocupado com a
marcao do fato em tempo e espao, mas, sim, busca compreender o que, por exemplo, motivou a Primeira Guerra
Mundial, como e por que ela ocorreu. 44Esse discurso est presente na obra de Husserl intitulada A Ideia da Fenomenologia. Nela est exposto o mtodo
fenomenolgico em Cinco Lies, tanto da reduo fenomenolgica quanto da constituio dos objetos pela
conscincia; Husserl, inclusive, apresenta uma discusso sobre a atitude natural e a atitude fenomenolgica. Esses
temas foram proferidos por Husserl de 26 de abril a 2 de maio no ano 1907 em Gotinga. Essas ideias percorrem o
desenvolvimento do seu pensamento fenomenolgico. As informaes foram obtidas da nota do editor alemo
Walter Biemel, presente na obra de Husserl. Esta verso foi publicada em 1947. (HUSSERL, 2008).
29
de ser contado ou narrado. Aquela primeira posio , no discurso husserliano, a atitude
assumida pela cincia natural.45
Por outro lado, no movimento de nos colocarmos atentos ao inquirido, caminhamos,
lentamente, em direo a uma atitude fenomenolgica, como diz Sokolowski (2010). Nessa
incurso o fenmeno o que se mostra ao olhar daquele que interroga; o manifesto, quando
colocado em destaque. Em Husserl o que posto em epoch, o que se doa no movimento
de correlao do ver-visto, que esse autor denomina como sntese noesis-noema.
O fenmeno, assim, no mensurado ou comparado, nem pr-estabelecido. Fenmeno
significa o que se mostra, o que aparece, o que se manifesta conscincia46, afirma Bicudo.
Ele inquirido.47
Entendemos a busca pelo sentido das coisas que esto nossa volta como um
movimento que h de ser infinito em finitude humana, enquanto corporificado. Ele no se
esgota. O prprio sentido, o que foi percebido, no expresso em completude no ato de dizer
de... um modo de mostrar que o que anunciamos de... so percepes disso que tateamos,
vemos e ouvimos.
2.4 Buscando expor conceitos nucleares fenomenologia
O objetivo desse subtpico compreender conceitos que, neste trabalho, mostram-se
como importantes para compreender o movimento filosfico fenomenolgico em Husserl.
Portanto, tematizamos mundo-vida, conscincia/intencionalidade, percepo, sentido, epoch
(reduo), subjetividade-intersujetividade-objetividade entre outros conceitos necessrios para
dialogar com estes mencionados.
45 O pensamento natural, que actua com uma fecundidade ilimitada, e progride, em cincias sempre novas, de
descoberta em descoberta, no tem nenhum ensejo para lanar a questo da possibilidade do conhecimento em
geral. Sem dvida, como tudo o que ocorre no mundo, tambm o conhecimento se torna de certo modo para ele
um problema; torna-se objeto de investigao natural. O conhecimento um [facto] da natureza, vivncia de
seres orgnicos que conhecem, um factum psicolgico. Pode, como qualquer factum psicolgico, descrever-se
segundo as suas espcies e formas de conexo e investigar-se nas suas relaes genticas. Por outro lado, o
conhecimento , por essncia, conhecimento da objectalidade (Erkenntnis von Gegenstndlichkeit) e tal em
virtude do sentido que lhe imanente, com o qual se refere objectualidade. O pensamento natural tambm j se
ocupa destes aspectos. Transforma em objeto de investigao em universalidade formal, as leis apriorsticas que
pertencem objectalidade como tal; surge assim uma gramtica pura e, nem estrato superior, uma lgica pura
(um complexo ntegro de disciplinas graas s suas diversas delimitaes possveis) e, alm disso, brota uma
lgica normativa e prtica como tcnica do pensamento e, sobretudo, do pensamento cientfico. (HUSSERL,
2008, p. 39-40, destaques do autor). 46 BICUDO, 1999, p. 28. 47A filosofia fenomenolgica analtica, isto quer dizer que [...] no se parte dos princpios sumos derivando deles
as consequncias, mas parte-se sempre do que se v, buscando compreender e descrever o dado (ALES BELLO,
2004, p. 73). Entendemos que esse o cerne da escola fenomenolgica. o que Husserl expressa com a frase ir
s coisas mesmas.
30
2.4.1 Mundo-vida e intencionalidade
Na fenomenologia husserliana um conceito importante mundo-vida48. Para Husserl,
o mundo o todo das coisas, das coisas, que, num duplo sentido (segundo o lugar no espao e
o lugar no tempo), se distribuem localmente sob a forma espao-temporal do mundo, ele
o todo dos onta espao-temporais49. J se constitui desde sempre como uma historicidade
que carrega consigo o movimento da vida e de seu conhecimento.
O mundo-vida uma totalidade em que esto as produes cientficas, histricas,
culturais, quer dizer, trazendo em sua historicidade essas produes e sentidos e significados
que tambm as constituem. Ele o solo das atividades humanas [...] para toda a prxis, tanto
terica quanto extra-terica50. Ele est sempre em movimento de constituio, visto que ao nos
lanarmos na busca pela compreenso do que a est no mundo, estando atento ao mundo,
intencionalmente voltado a ele, podemos estabelecer relaes com o percebido e, agora, novos
entes presentificam-se no mundo-vida.
De acordo com Husserl no h uma [...] ideia universal finalstica mundo que [...].
Mas este subjetivo e, para o homem, como sujeito para o mundo, vlido como ser na
relatividade, e estes sujeitos vivem sempre com interesses, interesses instintivos mas tambm
representados e volitivos [...]51. Gadamer (2012) afirma, convergindo com a ltima citao, que
o conceito mundo-vida husserliano movimenta-se em constante relatividade de validez, ope-
se ao objetivismo, no tendo a pretenso de ser entendido como mundo que . Destacamos que
o mundo-vida em Husserl entendido como o mundo comum a todos os seres. Ele o solo em
que vivemos com os outros, ser humano ou no.
O movimento de nos voltarmos para..., estando atento a... o movimento intencional,
quer dizer, estar consciente da realizao do ato52. Com isso, estamos nos dirigindo para o
campo da conscincia, diz Bicudo (2010). De acordo com essa autora, a conscincia entendida
como esse movimento de voltar-se para...53 Ela intencionalidade. como um ponto de
48 Em Husserl o conceito Lebenswelt, ou mundo-vida, expressa o mundo com vida, e no apenas o mundo em si,
entendido como j determinado objetivamente. 49 HUSSERL, 2012, p. 116. 50 HUSSERL, 2012, p. 116. 51 HUSSERL, 2012, p. 388. 52 BICUDO, 1999. 53 A conscincia est sendo compreendida como intencionalidade. O ato de voltar-se para... enlaa o percebido,
do mesmo modo, voltar-se para... compreendido como o movimento do sujeito voltar-se para... a subjetividade,
efetuando atos de reflexo.
31
convergncia das operaes humanas, que nos permite dizer o que estamos dizendo ou fazer o
que estamos fazendo como seres humanos54.
Para Husserl, vivemos [...] uma vida intencional, e a intencionalidade da forma
originria , em ato, apontar, ter em vista e, tendo em vista, deter uma posse. A posse, como o
que se tem em vista no apontar (no qual continuo a ser e permaneo), posse no apontar, na
volio, num outro modo da mesma vontade55. Entendemos deter uma posse como o que se
mostrou do fenmeno percebido, pois compreendemos a conscincia como estando aberta ao
mundo, como projeto do mundo, e certos de que ela no o abarca nem o possui, afirma Merleau-
Ponty (2006). Nessa perspectiva, Sokolowski (2010) menciona que fenomenologia no tem a
pretenso de estabelecer a verdade, nem de negar as atividades desenvolvidas no cotidiano das
pessoas. No faz juzo de uma experincia ser mais ou menos marcante, ou expressiva. No
tem como objetivo dizer o que melhor. Ao assumir a atitude fenomenolgica, o sujeito volta-
se para o indagado e expressa, destaca, aspectos do contexto em torno do tema que quer
compreender segundo sua experincia vivida.
2.4.2 Da Epoch subjetividade
Vimos dissertando at o momento sobre mundo-vida, fenmeno e intencionalidade.
Agora, explicitaremos como entendemos o movimento de estar atento a..., segundo a viso
fenomenolgica.
No movimento de estar a tento a... nos voltamos ao focado e o enlaamos com os atos
de percepo possibilitados pelos sentidos. O que focado no est deslocado do mundo. H
um fundo, um contexto, uma totalidade que o abarca. Essa questo ser exemplificada com a
ideia de figura visada e totalidade quando intencionamos uma obra de arte. Ao contemplar um
quadro e ao perceber os entornos que se destacam, analisando um dos tantos aspectos como as
cores, as paisagens, as formas, as tcnicas, a histria, damo-nos conta que h inmeras
possibilidades de falar da obra de arte. Podemos falar de todos eles, de modo comum, no sentido
do como aparecem aos nossos sentidos e conversas primeiras ou podemos destacar um e
aprofundar sentidos e significados que se revelam nessa busca. Cada vez que destacamos um
dos aspectos percebidos, estes dizem algo desse todo.
54 ALES BELLO, 2006, p. 45. 55 HUSSERL, 2012, p. 391.
32
Esse movimento de destacar a figura de seu fundo, ou seja, de explicitar o percebido,
entendido como o ato de coloc-lo em suspenso, ou em epoch. A epoch em Husserl, o
movimento de colocar em evidncia, tambm, a validade efetivada de verdades, teorias,
definies, uso, fins daquilo que conhecido na atitude natural. Esse um ato intencional. Estar
atento a... uma absteno da validade total do mundo com todas as validades l contidas,
empricas, cognoscitivas, de todos os interesses, de todos os atos referentes ou a referir s
coisas mundanas que, como tal, pertenceriam eles prprios ao mundo em sua validade56. No
movimento de epoch, ou de reduo57, no quer dizer que as atividades mundanas sejam
abandonadas. Ns continuamos em movimento com as validades das teorias e prticas. Ao
colocar fora de circuito o inquirido, prosseguimos, incessantemente, experienciando atividades
cotidianas, afirma Husserl (2012). Como j discorremos Husserl trata os conceitos
fenomenolgicos em si, puramente, por isso da radicalidade58. Por outro lado, para ns, a
epoch est sendo entendida como o cuidado para que os conceitos tericos ou prticos do que
dito do fenmeno no conduzam deterministicamente o olhar inquiridor. Merleau-Ponty
explicita uma compreenso sobre a reduo husserliana. Em suas palavras
O maior ensinamento da reduo a impossibilidade de uma reduo
completa. Husserl sempre volta a se interrogar sobre a possibilidade de uma
reduo completa. Se fssemos o esprito absoluto, a reduo no seria
problemtica. Mas porque, ao contrrio, ns estamos no mundo, j que mesmo
nossas reflexes tm lugar no fluxo temporal que elas procuram captar
(porque elas sich einstrmen, como diz Husserl), no existe pensamento que
abarque todo o nosso pensamento59.
Em nossos estudos, observamos que o tema reduo retomado constantemente na
obra A Crise...60 Outra questo que corrobora a impossibilidade de uma reduo completa,
expressa por Merleau-Ponty, a experincia de corpo prprio [...] como um ancoradouro em
um mundo61. Para esse autor, o corpo prprio est no mundo assim como o corao no
organismo; ele mantm o espetculo visvel continuamente em vida, anima-o e alimenta
interiormente, forma com ele um sistema62.
Com a exposio dos conceitos fenomenolgicos intencionalidade, epoch e o
movimento de percepo, direcionamo-nos dimenso da subjetividade. Valer-nos-emos do
modo pelo qual Ales Bello (2004) expe a reduo eidtica e a reduo transcendental com a
56 HUSSERL, 2012, p. 390. 57 Estamos entendendo reduo como abertura para... 58 Sobre esse tema ver o Captulo I. 59 MERLEAU-PONTY, 2006, p. 10-11. 60 Cf. HUSSERL, 2012. Terceira Parte. 61 MERLEAU-PONTY, 2006, p. 200. 62MERLEAU-PONTY, 2006, p. 273.
33
inteno de destacar como o movimento da constituio da subjetividade em Husserl. Para
essa autora a reduo eidtica o movimento na fenomenologia que visa explicitar a essncia
do fenmeno percebido, ou o que se destaca do fenmeno. No primeiro movimento, temos o
que se mostrou do percebido. Entendemos que neste movimento damos conta de expressar
aspectos do fenmeno percebido. O que percebido, mostra-se, sempre segundo perspectivas
vistas do corpo prprio. Ele o ponto zero em que estamos situados e orientados com a
percepo experiencial para dizer do que se mostra63.
O segundo movimento fenomenolgico a reduo transcendental, afirma Ales Bello
(2004). Esse movimento pe em evidncia o que damos conta enquanto ser no mundo. Expor
o transcendental, segundo Bicudo (2010), requer atos de reflexo em cujo movimento se rene
o comum e se separa o diferente; exige snteses reflexivas que abrangem compreensivamente o
que se mostrou com os atos de percepo. Com esses movimentos expomos a intuio
essencial64. A intuio essencial o ver claro; uma evidncia do que foi articulado no
momento da abstrao intencional do que comum, caractersticos nas diferentes experincias
da intuio sensorial65. No compreendemos a intuio essencial como algo que deva ou possa
ser atingido. Isso seria entender essncia numa perspectiva platnica, que a expe como uma
ideia objetiva presente na realidade do mundo das ideias.
Com esses movimentos, temos o percebido manifesto e o compreendido
subjetivamente, quer dizer, trata-se do movimento transcendental realizado por/com atos
reflexivos.
Para Bicudo,
A subjetividade no em si uma mnada fechada, tendo prontas
potencialidades que aguardam atos para ser atualizadas. Ela se constitui no
movimento de abertura ao mundo-vida, levando o percebido conscincia e
operando os atos que avanam na dimenso da compreenso e dos atos de
expresso66.
A subjetividade no um absolutismo em si, como uma mnada, no mutvel; pelo
contrrio, estando voltada para o mundo, d-se conta de seu pertencimento ao mundo e de que
no o possui. Sendo assim, vivemos no mundo e o mundo no um objeto do qual possuo
comigo a lei de constituio; ele o meio natural e o campo de todos os meus pensamentos e
de todas as minhas percepes explcitas67.
63 HUSSERL, 2012. 64 BICUDO, 1999. 65 As intuies sensoriais se do como evidncias direta percebidas no ato de percepo. 66 BICUDO, 2010, p. 35. 67 MERLEAU-PONTY, 2006, p. 6.
34
2.4.3 Da subjetividade-intersubjetividade a caminho da objetividade
Tudo aquilo que sei do mundo, mesmo por cincia, eu o sei a partir de uma viso
minha ou de uma experincia do mundo sem a qual os smbolos da cincia no poderiam dizer
nada68. Iniciamos este subtpico citando Merleau-Ponty, por exemplificar o sentido da
experincia vivida que permite conhecer e dizer das coisas percebidas. Essa afirmao de
Merleau-Ponty essencial para compreendermos o modo pelo qual dialogamos e nos
comunicamos com o outro, constituindo a intersubjetividade acerca do tematizado.
Os atos perceptivos, descritos anteriormente, e os atos reflexivos realizados na reduo
transcendental so os modos pelos quais o percebido se presentifica para o sujeito. A intuio
essencial o ver claro, o que se compreendeu no movimento de percepo, que se manifestam
ao nos lanarmos na busca do sentido do que indagamos. O sentido se manifesta na correlao
sujeito-objeto, na sntese nosis-noema. Sokolowski (2010) especifica que noema69 o
correlato da intencionalidade, o visto, o abarcado, o manifesto. Enquanto, que, noesis o ato
intencional; de onde se percebe com... Entendemos que os atos de percepo so contnuos70;
um olhar traz um aspecto do visto, outro olhar este aspecto continuamente mutvel, esvaziam-
se, preenchem-se, sobrepem-se. Cada vez que nos voltamos s coisas mesmas, no curso
incessante de percepo, destacamos perspectivas focadas, segundo o que se interroga. Para
Merleau-Ponty o mundo fenomenolgico no o ser puro, mas o sentido que transparece na
interseco de minhas experincias, e na interseco de minhas experincias com aquelas do
outro, pela engrenagem de umas nas outras [...]71. nesta interseo de experincias que o
sentido se manifesta e, assim, em todo ato de percepo h um horizonte (consciente) ao qual
o visto est situado. Com o que se manifesta na correlao ver-visto possvel iniciar a
68 MERLEAU-PONTY, 2006, p.3. 69 H de esclarecer que o noema, na atitude fenomenolgica, no um intermedirio, no tomado como sendo
um ato psicolgico, epistemolgico ou semntico: o nome um momento (uma parte abstrata) na manifestao
das coisas [...]. (SOKOLOWSKI, 2010, p. 70). O noema, para Sokolowski, no um elo entre a coisa e a
subjetividade, o que se doa na percepo. 70 [...] a pura coisa da viso, o visvel da coisa , em primeiro lugar, a sua superfcie, e vejo esta no curso
mutvel do ver, ora deste lado, ora daquele, percepcionando continuamente em lados sempre diversos. Neles,
porm, expe-se para mim, numa sntese contnua, a superfcie; cada um dos lados conscientemente uma
maneira de exposio dela. Est aqui implicado o seguinte: enquanto realmente dada, viso mais do que a coisa
d. Tenho, seguramente, a certeza do ser desta coisa, a que simultaneamente pertencem todos os lados, e no modo
pelo qual eu melhor a vejo. Cada lado d-me algo da coisa da viso. No curso continuamente mutvel do ver,
o lado visto cessa justamente de ser ainda efetivamente visto, mas mantido e tomado em conjunto com os
anteriores, que continuam a ser mantidos, e, assim, tomo conhecimento da coisa. (HUSSERL, 2012, p.128,
destaques do autor). 71 MERLEAU-PONTY, 2006, p. 18.
35
descrio do percebido, uma vez que com a descrio inicia-se a formao/exposio/indicao
dos aspectos percebidos, compreendidos, para o outro.
Explicitar o compreendido ao outro, nas palavras de Husserl, constitui a ao de viver
em relao mtua, um viver em comunidade. expressar ao outro o que compreendemos do
percebido.
O que expresso quando expresso em linguagem, articula a intuio essencial, o ver
claro, o que foi compreendido pelo sujeito. Nesse movimento reunimos, separamos e
destacamos aspectos do percebido e anunciamos a intuio essencial72. Para Husserl (2012) o
que anunciamos em discurso diz do percebido e o apresenta como um ndice, ou seja,
[...] a coisa que na sntese concordante da unificao se mostra, a cada vez de
um lado, como esta nica, explicita o seu ser idntico nas suas propriedades
(que se expem em diversas perspectivas). Em termos intencionais, cada uma,
exatamente como isto a, como coisa, um ndice percepcionado das suas
maneiras de apario, que se tornam discernveis (e, sua maneira,
experienciveis) na orientao reflexiva do olhar73.
Derrida faz um estudo em Husserl e afirma que todo discurso, enquanto empenhado
em uma comunicao e enquanto manifesta vividos, opera como indicao74. Assim, o que est
sendo percebido pode ser entendido como um ndice que indica, aponta para... Entendemos que
ao explicitar em linguagem o significado compreendido que se manifesta na correlao ver-
visto, ele carregado pelas palavras articuladas nas sentenas gramaticais e mostram-se como
ndices eles apontam para... Os significados das palavras so expostos pelo sujeito. O
sentido75 no manifesto por completo nas diferentes modalidades da linguagem. O sentido se
faz apenas para o sujeito que percebe e o significado compartilhado. O sentido, ao ser expresso
em linguagem inteligvel, de modo que o outro possa compreender o exposto, vai constituindo-
se em um dilogo intersubjetivo. Essa exposio fruto de um movimento de expresso em que
o sentido percebido pelo sujeito se faz presente, porm, agora, enunciado em palavras cujos
significados j esto histrico-culturalmente presentes. Entendemos que as palavras no esto
soltas no mundo. Elas so contextuais e possuem legitimaes distintas em contextos diferentes
72 BICUDO, 2010. 73 HUSSERL, 2012, p. 139. 74 DERRIDA, 1