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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
MESTRADO EM HISTÓRIA
RABIB FLORIANO ANTONIO
A DINÂMICA DO CAPITAL AGRÁRIO: CRÉDITO E INVESTIMENTOS NA REALIDADE DOS FAZENDEIROS DE VASSOURAS (1850-1888)
Juiz de Fora
2012
UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
MESTRADO EM HISTÓRIA
A DINÂMICA DO CAPITAL AGRÁRIO: CRÉDITO E INVESTIMENTOS NA REALIDADE DOS FAZENDEIROS DE VASSOURAS (1850-1888)
Dissertação apresentada à banca de pós-graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em História por Rabib Floriano Antonio
Orientador: Anderson Pires
Juiz de Fora
2012
Rabib Floriano Antonio
A DINÂMICA DO CAPITAL AGRÁRIO: CRÉDITO E INVESTIMENTOS NA REALIDADE DOS FAZENDEIROS DE VASSOURAS (1850-1888)
Dissertação apresentada à banca de pós-graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em História por Rabib Floriano Antonio
Juiz de Fora, 08 de janeiro de 2013
Banca Examinadora
____________________________________
Dr. Anderson Pires – Orientador
____________________________________
Profa. Dra. Mônica Ribeiro de Oliveira
_____________________________________
Prof. Dr. Ricardo Salles
Antonio, Rabib Floriano. A dinâmica do capital agrário : crédito e investimentos na realidade dos fazendeiros de vassouras (1850-1888) / Rabib Floriano Antonio. – 2012. 131 f. : il. Dissertação (Mestrado em História)–Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2012. 1. Café - Aspectos econômicos - Vassouras (RJ). 2. Crédito. 3. Brasil - História - Império. I. Título. CDU 338:633.73(815.32VASSOURAS)
AGRADECIMENTO
Agradeço a realização deste trabalho ao Prof. Dr. Anderson Pires, orientador dedicado
e exímio intelectual. Não só foi um orientador, mas acima de tudo um incentivador e um
amigo, um farol cuja luz permanecerá guiando meu caminho intelectual para sempre.
Agradeço à Prof. Dra Mônica Ribeiro de Oliveira (UFJF) e ao Prof. Dr. Ricardo
Salles (UNIRIO) pela gentileza de aceitarem participar da banca de qualificação e defesa
deste trabalho. A leitura, a crítica e a discussão proporcionada por esses professores só vieram
de encontro ao enriquecimento da pesquisa e acrescentaram novas ideias para o futuro.
Agradeço ao Prof. Ms. Magno Fonseca Borges, à Dna. Isabel, ao Sr. Cássio e aos
alunos do projeto Jovens Talentos por me receberem no Centro de Documentação Histórica
da USS com carinho e profissionalismo. Lá eu não só reconheci excelência profissional como
também uma profunda amizade.
Agradeço a minha companheira Beatriz Aparecida Magalhães de Souza, meu amor,
que sob meus ombros lia as páginas que escrevi. Deu-me não só suporte para terminar essa
pós-graduação, mas acima de tudo o incentivo e o equilíbrio que o processo da pesquisa e do
trabalho e das situações do dia-a-dia muitas vezes enfraquecia. Agradeço ao Kalil, meu filho,
que nasceu junto com a pós... e sentava no meu colo muitas vezes para me ver digitar até
pegar no sono. Agradeço aos meus tios, avó e principalmente pais, Nádia e João, que foram
meus grandes incentivadores em tudo na vida e que serei eternamente grato.
Agradeço aos amigos que me enviaram textos, os que me substituíram no trabalho
quando precisava viajar à UFJF e os torceram para que tudo desse certo. Em especial aos
meus irmãos acadêmicos Bruno Vittoretto, Felipe Duarte e Fernando Lamas. Bons congressos
aqueles!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! Assim percebi que um trabalho é feito de muitas vidas.
Agradeço à amiga Cíbila Farani, que ajudou a deixar mais suave a dureza dos meus
parágrafos com suas preciosas dicas e a Prof. Dra. Junia Nogueira, uma grande amiga, que
com zelo e uma dedicação profissional inigualável fez a correção gramatical da obra.
Os agradecimentos finais vão para a secretária da Pós Graduação em História da
UFJF, Ana Mendes, por todo o suporte dado com cuidado e profissionalismo em tempo hábil.
Ao Prof. Alexandre Fonseca, colega e amigo, que muitas vezes dialogava sobre as questões
gerais tanto da historiografia como da História Econômica, me dando importantes
informações para a construção das minhas idéias. Ao Prof. Adriano Novaes, importante
pesquisado do Vale do Paraíba Fluminense, pelos textos e informações que muito
contribuíram para o desenrolar de nebulosos pontos que a pesquisa se encontrava.
A todos, muito obrigado!
RESUMO
O objetivo desta dissertação é ampliar a discussão sobre a questão do crédito e da
institucionalização dos mercados enquanto elementos constituintes no desenvolvimento
econômico da economia cafeeira no Vale do Paraíba Fluminense no século XIX, através da
análise de inventários, testamentos e outras fontes primárias disponíveis no acervo da
Universidade Severino Sombras, de Vassouras (RJ), que conserva grande parte da
documentação da elite cafeicultora que viveu e atuou na cidade ou se relacionou a ela durante
o século XIX.
A grande problemática que aqui se faz presente é tentar entender como uma economia
de commodities, oriunda de um sistema colonial de base escravista, que se mantém no
processo de inserção da economia-mundo de bases capitalistas, em transformação conseguiu
encadear elementos financeiros, em especial particulares, para manter a inserção de capital em
uma economia onde as bases monetárias e instituições creditícias se viam aparentemente
insuficientes para manter a economia exportadora, em especial o café, visto que o produto
dependia de investimentos constantes de capital para se manter nos períodos de entressafra e
nas quedas de preço.
Palavras-chaves: Cafeicultura; Crédito; Império; Rede de Commoditie; Vassouras (RJ).
SUMMARY
The goal of this dissertation is to expand the discussion on the issue of credit and the
institutionalization of markets while constituents in economic development of the coffee
economy in Vale do Paraíba Fluminense in the nineteenth century, through the analysis of
inventories, wills and other primary sources available in the library University Severino
Shadows, Brooms (RJ), which retains much of the documentation of the coffee-growing elite
who lived and worked in the city or was related to her during the nineteenth century.
The big problem that is present here is trying to understand how an economy of
commodities originating from a basic colonial slave system, which remains in the integration
process of the world economy to a capitalist basis, succeeded in transforming financial chain
elements, especially particular, to maintain the insertion of capital in an economy where the
monetary base and lending institutions were seen apparently insufficient to maintain the
export economy, in particular coffee, since the product depended on constant capital
investments to keep us off-season periods and the price drops.
Key-words: Coffee production; Credit; Commodity Chains; Empire (Brasil); Vassouras (RJ).
LISTA DE GRÁFICOS
Exportação do café brasileiro (1787-1833) em toneladas.........................................................40
Valor das fazendas de café da Província do Rio de Janeiro em 1883.......................................46
Preço Médio 1821-1880 (Valor de importação do EUA em Dolar).........................................50
Preço Médio 1821-1880 (Valor de importação do EUA em Dolar).........................................51
Variação do preço dos alimentos (Valor em mil-reis)..............................................................54
Preço no varejo de Vassouras (1850-1861).............................................................................55
Evolução do crédito da Casa Souto junto ao Banco do Brasil. (mil-réis)................................81
Composição da Riqueza do Barão de Itambé, 1866................................................................94
Volume de crédito fornecido pelo Barão de Itambé e o resgate ............................................96
Montante emprestado pelo Barão de Itambé entre 1850 e 1866 ............................................97
Brasil: Produtos de Exportação (1821-1830) – Receita das exportações em (%).................101
Registros de Hipotecas de Vassouras (1840-1880)...............................................................103
Composição dos investimentos financeiro do Barão de Vassouras, 1884/1887...................105
Composição dos investimentos financeiro do Barão de Vassouras, 1884/1887...................108
Distribuição de Títulos de Barão e outro no Brasil 1840-79............................................... 112
LISTA DE TABELAS
Renda Per Capita das Regiões Brasileiras – 1872................................................................... 44
Características econômicas das fazendas da Província do Rio de Janeiro em
1883...........................................................................................................................................45
Evolução da Produção Fluminense de Café - 1839-1857.........................................................48
Empréstimos de Anna Bernardina Carvalho Leite...................................................................93
Empréstimos de Barão do Itambé............................................................................................95
Distribuição das opções de aplicação do Barão de Itambé.......................................................95
Relação de Empréstimos e Quitações do Barão de Itambé (1859-1866)..................................96
Evolução da prática de juros entre o Barão de Itambé e o Barão de Vassouras.....................105
Empréstimos de Barão Guaribu..............................................................................................107
LISTA DE MAPAS
Mapa 01 - Carta Geográfica da Província do Rio de Janeiro, 1858............................33
Mapa 02 - Carta Geográfica da Província do Rio de Janeiro, 1858............................37
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................12
CAP I – A FORMAÇÃO DO COMPLEXO: O CAFÉ COMO PRODUTO DE
EXPORTAÇÃO, TEORIA DA “LINKAGE” E A FORMAÇÃO DO VALE DO
PARAÍBA FLUMINESE COMO COMPLEXO
EXPORTADOR......................................................................................................................18
1. O café e sua história, o mundo e as interrelações.................................................................19
1.1. O café como produto de exportação................................................................................. 19
1.2. O Brasil no mercado internacional do café.......................................................................29
1.3. A construção do Vale do Paraíba Fluminense como complexo cafeeiro ligado ao Rio de
Janeiro. ....................................................................................................................................32
CAPÍTULO II – A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO SISTEMA BANCÁRIO E DE
FINANCIAMENTO BRASILEIRO E SUA ATUAÇÃO NO SÉCULO
XIX...........................................................................................................................................57
2.1. Antecedentes das transformações......................................................................................58
2.2 As relações pessoais de crédito..........................................................................................61
2.3. A segunda metade do século XIX e suas transformações..................................................68
2.4. A questão dos bancos e as casas comerciais......................................................................71
CAPÍTULO III: FIANCISTAS, CREDORES E FAZENDEIROS EM VASSOURAS:
CRÉDITO E INVESTIMENTO DAS ELITES...................................................................83
CONCLUSÃO.......................................................................................................................121
REFERÊNCIAS....................................................................................................................124
Fontes .................................................................................................................................... 125
Bibliografia ........................................................................................................................... 126
13
Esta dissertação tem como objetivo analisar o processo de transformação das relações
de crédito e investimentos em Vassouras (RJ) durante os anos de 1830 a 1888. Ela se
debruçará especialmente sobre a formação do complexo cafeeiro dessa cidade e sobre as
mudanças econômicas e financeiras que ocorreram ao longo do século XIX no Brasil e no
Vale do Paraíba Fluminense para sustentar tal economia.
Um dos grandes problemas enfrentados no desenvolvimento desta pesquisa reside no
fato de que são poucos os trabalhos que estudam diretamente a questão do crédito em
Vassouras. Sua principal obra de referência foi o livro clássico de Stanley Stein, do qual
foram extraídos os nomes das principais famílias envolvidas com as questões de
financiamento; o contexto geral da produção e os fatores das crises do século XIX que se
referem à região. Somando-se ao trabalho citado, ainda temos a dissertação de mestrado de
Célia Maria Loureiro Muniz, intitulada A Riqueza Fugaz: trajetórias e estratégias de famílias
de proprietários de terras de Vassouras, 1820-1890, importante para analisar as famílias
hegemônicas da cidade e suas relações com a produção. Este trabalho é um avanço sobre
alguns pontos nebulosos ou superficiais de Stein como, por exemplo, o aprofundamento da
diversidade ocupacional do território, o enquadramento de proprietários em relação à
propriedade de terras e escravos e a discussão mais detalhada dos inventários destas famílias.
As obras de J. C. Vargens Tambasco ajudaram no entendimento da formação do complexo
cafeeiro, de suas relações com o ambiente de Vassouras e das características do produto.
Também cito o trabalho de Tamira Moura, um artigo de graduação disponível no Centro de
Pesquisa e Documentação Histórica do Centro de Ensino Superior de Valença, intitulado
Família Teixeira Leite e suas relações familiares e econômicas no século XIX, que nos ajudou
a compreender alguns pontos em relação a este grupo financeiro específico de Vassouras. O
Vale era o Escravo, de Ricardo Salles, foi uma leitura constante ao abordar a posição dos
senhores fazendeiros e suas relações com a escravaria que, sem sombra de dúvida, era um
bem importante até mesmo no processo de financiamento.
Para suprir a carência de textos específicos, foram utilizados inventários do acervo do
centro de documentação da Universidade Severino Sombra, em Vassouras, importantes para a
compreensão das estratégias dos homens de negócios ao obter e oferecer crédito nas
sociedades agrárias de exportação. E, do ponto de vista teórico, utilizamos trabalhos das
regiões da Zona da Mata mineira e de São Paulo; em especial, os autores Anderson Pires,
Rafael Marquese et al, Ricardo Marcondes, Mônica de Oliveira, Hernan Saéz, Pelaez e
Suzigan e Rita Almico, descritos nas referências, foram fundamentais para criar o corpo de
referências deste trabalho.
14
Para entender as mudanças nas relações de financiamento de Vassouras juntamente
com as mudanças na legislação, são importantes algumas reflexões gerais sobre a posição do
homem em relação à economia. Segundo Schumpeter, todo homem, ao viver em sociedade,
comporta-se economicamente ou fazendo parte diretamente das organizações produtivas de
bens e serviços ou dependendo daqueles os que produzem.
Todos devem, ao menos em parte, agir economicamente; cada um deve ser um “sujeito econômico” (Wirtschaftssubjekt) ou depender de um deles. Mas, tão logo os membros dos grupos sociais se tornam especializados ocupacionalmente, podemos distinguir classes de pessoas cuja atividade principal é o comportamento econômico ou os negócios, de outras classes em que o aspecto econômico do comportamento é eclipsado por outros aspectos. Nesse caso, a vida econômica é representada por um grupo especial de pessoas, embora todos os outros membros da sociedade também devam agir economicamente.1
Em sociedades especializadas “a vida econômica é representada por um grupo especial
de pessoas, embora todos os outros membros da sociedade também devam agir
economicamente”.2 Esse grupamento definido por Schumpeter aparece, na realidade imperial
de Vassouras, através dos homens de negócios, sejam comerciantes de café, investidores,
financistas ou credores e partimos da ideia de que, nessa sociedade, há indivíduos que se
aproximam mais ou menos do conceito schumpeteriano. Para ele, é possível pensar o
desenvolvimento econômico através de determinados agentes da economia. De forma
simplificada, são pessoas que se colocam na posição de empreendedores ou de vanguarda no
processo produtivo e garantem o progresso de um dado sistema através de suas ideias, de sua
capacidade de mobilizar financiamentos, de introduzir tecnologia, ou seja, de mobilizar
alguma situação não tentada.
Para Schumpeter, o crédito, foco principal de nosso trabalho, se caracteriza da
seguinte forma:
(...) em princípio, não é possível o empréstimo dos serviços do trabalho e da terra pelos trabalhadores e proprietários da terra. Nem pode o próprio empresário tomar emprestados meios de produção produzidos. Pois no fluxo circular não haveria estoques ociosos para as necessidades do empresário. Se em um lugar ou outro porventura existirem exatamente os meios de produção produzidos de que o empresário necessita, então é claro que este pode comprá-los; para isso, contudo, precisa outrossim de poder de compra. Mas não pode simplesmente tomá-los emprestados, pois são necessários para os propósitos para os quais foram produzidos e o possuidor não pode e não quer esperar pelo seu retorno — que o empresário pode realmente devolver-lhe, mas apenas mais tarde — e também não pode e não quer arcar com nenhum risco. Se, não obstante, alguém o faz, então ocorrem duas transações, uma compra e uma extensão do crédito. (...)3
O produtor, depois de concluir a sua produção e vender o seu produto, saca contra seus fregueses, para transformar imediatamente seus direitos em “dinheiro”. Então esses produtos servem de “base” — in concreto, digamos, conhecimentos de embarque — e mesmo que o título não esteja respaldado por
1SCHUMPETER, Joseph A. Teoria do Desenvolvimento Econômico. São Paulo, Nova Cultural, 1997. p. 23-4. 2Ibidem, p. 24-5. 3Ibidem, p. 102.
15
dinheiro existente, está, ao invés, baseado em bens existentes e assim ainda, num certo sentido, em “poder de compra” existente.4
Os investimentos, créditos e formas de financiamento formaram um mercado.
Mercado, para Polanyi5 é todo sistema controlado por mercados e seus agentes, garantindo
uma ordem específica de produção e distribuição de bens. Já o conceito de
“Institucionalização dos Mercados”, do historiador holandês C.J. Zuijderduijn, demonstra,
através da formação dos mercados de capitais na Holanda, a importância do capital particular
e o processo de institucionalização dos mercados para o desenvolvimento do capitalismo
holandês.6
Com o processo de especialização nas sociedades de forma geral, alguns homens se
concentraram em determinados ramos das atividades econômicas: alguns faziam o papel de
produtores, outros de distribuidores, outros eram consumidores, outros faziam serviços e
alguns se dedicavam a empréstimos e créditos de acordo com sua acumulação de capital.
Durante muitos anos, os historiadores relegaram o crédito e o mercado de capitais a um plano
inferior em relação ao desenvolvimento histórico das economias. É comum encontrarmos
textos na historiografia tradicional que deslocaram a relação do crédito a partir da ascensão
das instituições bancárias mundiais no final dos setecentos ou, no Brasil, a partir dos
oitocentos. De forma geral, os pesquisadores preferiram entender a formação das economias
baseando-se na esfera do trabalho ou das tecnologias, mas pouco na esfera dos investimentos
de capital, dos mercados financeiros e das linhas de crédito. O crédito, nas suas mais variadas
formas, era muitas vezes confundido ou reduzido ao conceito de usura.
No entanto, trabalhos recentes passaram a ver as relações creditícias e de
endividamento como importantes elementos para a compreensão das relações econômicas e
do próprio crescimento e desenvolvimento econômicos. Muitos desses trabalhos, como é o
caso do Medieval Capital Markets, de J. Zuijderduijn, observam o crédito como elemento
importante no processo de transformação econômica nas sociedades. Para este autor, o
mercado de capitais, pouco estudado, contribuiu para o desenvolvimento do Oeste europeu
desde ano 1000 d.C. Muitas “escolas” desconsideram a importância das relações de crédito e
de investimento para o desenvolvimento das economias de mercado. “Many writers continue
to regard the idea of medieval capital markets as scarcely credible”7. O tradicionalismo dos
pesquisadores acarretou a observação do fenômeno do crédito sem levar em consideração sua
4Ibidem, p. 105. 5POLANYI, Karl. A Grande Transformação. Rio de Janeiro, Campus, 2000. p. 89. 6ZUIJDERDUIJN. C. J. Medieval Capital Markets. Boston, Brill, 2009. p. 184. 7Ibidem, p. 05.
16
dinâmica intrínseca ao processo econômico ou tendeu a olhá-lo como subjetivo ao processo
de desenvolvimento.8
Pode-se analisar que a sociedade européia, que se estabelece na formação de uma
economia mercantil, em relação às tomadas de empréstimos financeiros ainda sofre certos
tabus recorrentes das usuras medievais. Mas, por outro lado, com o aumento do metal
circulante graças às descobertas das minas americanas, o desenvolvimento de novas áreas
agrícolas e dos negócios típicos das colônias garantiu um mercado de crédito crescente e cada
vez mais necessário no mundo econômico em transformação.9
Como foi mencionado em momento anterior, no Brasil, até fins do século XVIII, esse
mercado “define-se por cortes étnicos, sexuais, raciais e jurídicos”.10 O não pagamento dos
compromissos financeiros a partir dos créditos era acompanhado de um processo duplo: a
desintegração moral do indivíduo perante a sociedade e as cobranças judiciais de acordo com
legislação do Reino que, em geral, causavam transtornos, se não as sanções legais. Segundo
Santos11, “quando condenados, os devedores poderiam ter seus bens penhorados ou, ainda, se
viam ameaçados de prisão”.
O crédito no século XVIII era muito mais uma ideia de confiança que um valor
econômico per si – situação que gradativamente mudaria em meados do século XIX, quando
começaram a institucionalizar os mercados de crédito no Brasil. Nesse caso, a relação de
crédito passaria a estar ligada à tradição do registro. Quando se diz que havia uma dívida sem
crédito, quer dizer que ela não fora registrada em qualquer lugar, nem em papel, nem em
qualquer documento escrito, baseando-se somente na palavra.12 São essas relações que
tendiam a se superar na economia do Vale do Paraíba Fluminense em meados do século XIX,
principalmente pelas características peculiares da produção cafeeira.
A região média do Vale do Paraíba Fluminense recebeu parte considerável de sua
formação demográfica das áreas mineiras, já que se caracterizava anteriormente como uma
passagem obrigatória das tropas de Minas Gerais à praça mercantil do Rio de Janeiro.13
Podemos notar, nos inventários de Vassouras do século XIX, a ligação de muitas famílias
influentes às áreas mineiras, como a própria família Teixeira Leite. A construção
8 Ibidem, p. 07-9. 9Cf. LEVY, Maria Bárbara. História financeira do Brasil Colonial. Rio de Janeiro, IBMEC, 1979. p. 89-120. 10MENZ, Maximiliano M. O Crédito e a Economia Colonial: século XVIII. In: CARRARA, Angelo Alves. (Org.). A Vista ou a Prazo: comércio e crédito nas Minas Setecentistas. Juiz de Fora, Ed. UFJF, 2010. 11SANTOS, Raphael Freitas. O Ouro e a Palavra: endividamento e práticas creditícias na economia mineira setecentistas. In: CARRARA. Angelo. Op. cit. p. 71. 12Ibidem, p.72-3 13Cf. FRAGOSO, João. Homens de Grossa Aventura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
17
demográfica, social e econômica da região está ligada ao esgotamento das minas e ao
deslocamento, para regiões do hemisfério sul, das áreas produtoras do Império.
Visto esta pequena introdução, optamos, então, por desenvolver este trabalho em 3
capítulos. O capítulo I abordará a ascensão do café como produto de consumo desde suas
origens remotas na África até se tornar uma commodity importante no mercado internacional.
Também descreveremos como o Brasil se tornou um dos principais produtores dessa
mercadoria e como a região do Vale do Paraíba Fluminense se estabeleceu como uma das
mais importantes produtoras de café deste período.
O capítulo II abordará as transformações econômicas e financeiras que irão ocorrer ao
longo do século XIX, em especial durante e a partir da década de 1850. Parece-nos
interessante discutir estas mudanças, pois elas vão influenciar as oportunidades de
investimentos dos atores pesquisados neste trabalho.
O capitulo III tratará também da institucionalização dos mercados a partir de 1850 e de
algumas leis que serão fundamentais para o processo de ampliação de investimentos dos
cafeicultores e financistas de Vassouras. Neste capítulo, também trataremos especificamente
dos dados encontrados nos inventários.
18
CAP I – A FORMAÇÃO DO COMPLEXO: O CAFÉ COMO PRODUTO DE
EXPORTAÇÃO, TEORIA DA “LINKAGE” E A FORMAÇÃO DO VALE DO PARAÍBA
FLUMINESE COMO COMPLEXO EXPORTADOR.
19
Para se entender o processo de financiamento e de investimentos de agentes –
financiadores e produtores – de tão peculiar commodity, o café no século XIX, e suas
transformações advindas de redes que vão encadear vários ramos interligados nesse processo
produtivo, tanto no mercado interno quanto no externo, é necessário compreender o processo
de formação do complexo cafeeiro do Brasil e sua importância no mercado internacional. Para
tanto, este capítulo seguirá alternando seu foco analítico entre a macro e a microrregião, em
“jogos de escalas” que favorecerão um sentido na dinâmica dos investimentos ocorridos em
Vassouras e suas transformações ao longo do século XIX. Deste modo, a análise estará
baseada em três esferas que vão se inter-relacionar durante o desenvolvimento deste trabalho:
a formação de um mercado de commodities, o café como produto de exportação e a
importância do desenvolvimento cafeeiro no Vale do Paraíba Fluminense (ligado ao
complexo do Rio de Janeiro) como área integrante da rede internacional dos negócios de café.
1. O café e sua história, o mundo e as interrelações.
1.1. O café como produto de exportação
Muito se estuda sobre o café e seus efeitos nos mercados internacionais durante o
século XIX. Este produto se caracteriza como uma commodity, ou seja, um produto primário
que se volta a um mercado externo, geralmente produzido em larga escala para atender a uma
demanda de massa do mercado internacional.14 Ou, para Hopkins e Wallestein, “uma rede de
trabalho e de processos de produção, cujo resultado final é um produto acabado”.15
Desde o processo de expansão marítimo-comercial europeu, as relações de mercado no
plano internacional foram se configurando como uma rede global de relações dinâmicas.
Essas transformações levaram a economia da esfera regional para a mundial porque os
produtos primários de exportação, como o café, saíram de suas esferas de comércio local e
atingiram locais mais distantes através do comércio terrestre e marítimo. Braudel nos aponta
essa importância das ligações e das cadeias que ligam o local ao universo mais amplo,
há uma certa economia que liga entre si (...) os diferentes mercados do mundo, uma economia que arrasta consigo apenas raras mercadorias e, também, os metais preciosos, viajantes privilegiados que
14SANDRONI, Paulo. Novíssimo Dicionário de Economia. 6ª ed. São Paulo, Editora Best Seller, 2001. p. 112. 15HOPKINS, Terence. K; WALLERSTEIN, Immanuel. Commodity chains: construct and research. In: GERREFI, Gary; KORZENIEWICS, Miguel. Commodity chains and global capitalism. Londres, Praeger, 1994. p. 19. “a network of labor and production processes whose end result is a finished commodity”.
20
já nesta época dão a volta ao mundo... Estas ligações, estas cadeias, estas correntes de tráfico e esses transportes essenciais como deixariam de atrair a atenção dos historiadores?16
Originário da Abissínia – atual Etiópia – ou do Oriente Médio, o café já era conhecido
como bebida antes de chegar à América. Segundo Taunay17, as qualidades da rubiácea como
fonte de vigor e ânimo foram descobertas por um pastor etíope chamado Caldi, que observou
que suas cabras ficavam agitadas ao comer certas folhagens das planícies. Levadas aos
mosteiros, os monges da Abissínia fizeram infusão dessas folhas e descobriram que o poder
revitalizante os ajudava a fazer as vigílias e rezas durante o período noturno. Com o passar do
tempo e o aumento das relações entre os povos, o café acabou por chegar à Arábia,
supostamente no século V. O escritor e poeta Schahab-Edin relatou, em seus manuscritos, os
poderes afrodisíacos do café. Tamanha foi a fama que o café obteve com o “povo do deserto”
que recebeu o título de “vinho do Islã”, o que provocou sua perseguição pelos muçulmanos
ortodoxos em Meca, ainda no ano de 1511, colocando-o como uma bebida demoníaca. Pouco
tempo depois, o café acabou sendo rotulado como um dom ao mundo árabe.18 Segundo uma
velha lenda muçulmana, o grão teria sido criado pelo Arcanjo Gabriel, a fim de restaurar as
forças de Maomé que, após ingeri-la, foi capaz de derrotar quarenta mil cavaleiros e
conquistar igual número de damas.
Da Arábia, no século XV, o café se espalhou para outras regiões. Na Europa, foi se
tornando comum o hábito de consumi-lo, tanto pelas propriedades já citadas como por se
afirmar que era estimulante cerebral. Cabe aos holandeses a fama de serem os primeiros
propagadores de café no mundo em moldes comerciais por causa de uma muda da rubiácea
trazida de Java para o Jardim Botânico de Amsterdã. Na Itália, o café entrou em 1615 pelos
portos de Gênova e Veneza. Os cristãos ortodoxos, assim como os muçulmanos, conferiam
propriedades satânicas ao café. Encaminhado ao Papa Clemente VIII, adepto convicto da
bebida, ele afirmou a toda cristandade suas benesses, dando-lhe bênção. Assim, a cotação do
café elevou-se na Europa.
Na década de 1650, Jacobs, um judeu libanês, instalou uma casa de café em Oxford,
sendo o primeiro estabelecimento de café da Europa. O grego Pasquá Rossé abriu em Londres
outro estabelecimento e mandou divulgar no Publish Adviser o mais antigo anúncio de café
do mundo, que dizia: “Na travessa Bartolomeu, por detrás da Bolsa Velha, pode se tomar uma
16
BRAUDEL, Fernand. A Dinâmica do Capitalismo. Lisboa, Editorial Teorema, 1985. p. 49. Utilizamos aqui o conceito de Braudel sobre economia-mundo e da “mundialização” dos mercados, mas deixando claro que o autor não participou da teoria das commodities chains. 17
Cf. TAUNAY, Afonso. História do café no Brasil. Rio de Janeiro: Depto Nacional do Café, 1939. 18
Ibidem.
21
bebida chamada café, muito saudável e portadora de excelentes virtudes: fecha o diafragma,
aumenta o calor interno, ajuda a digestão, aguça o espírito, (...) é vendida tanto de manhã
como às três horas da tarde”.19 O hábito de tomar café agradava o pragmatismo inglês, pois,
ao contrário do álcool, não prejudicava o trabalho. As mulheres inglesas protestaram, dizendo
que gastava a força viril dos homens tornando-os áridos como as areias da Arábia, de onde
viera o “grão maldito”.
O café ficou conhecido em Paris pelas festas do embaixador de Maomé IV, Soliman
Agá Mustafá. Nelas, era servido o mais puro café árabe.20 Em 1713, foi assinado o tratado de
Utrecht, que definiria as fronteiras do Brasil. Luiz XIV, rei da França, ao assiná-lo, exigiu dos
holandeses mudas de café que foram plantadas não só na França como também nas
possessões francesas da América.
Os alemães misturavam o café com leite, mas uma medida de Frederico, o Grande,
proibiu a bebida na Prússia por medo de desvio de divisas do país e de a tradição do consumo
de cerveja acabar. Nem mesmo na música o café deixou de ser retratado, pois Bach compôs a
“Cantata do Café” em 1781.
Os holandeses levaram o consumo do café para os Estados Unidos no século XVII, em
especial para a nova Amsterdã.21 Enfim, o café chegou à América como alternativa de
incremento aos produtos coloniais.
Mas o estudo do café vai além de sua história linear e se torna complexo quando é
entendido a partir da perspectiva de Frank, Marichal e Topik22, que descrevem a formação de
uma rede internacional geradora de uma cadeia de relações produtivas de comércio e consumo
do café.
Nas semanas que antecederam 14 de julho de 1789, Camille Desmoulin e outros revolucionários parisienses se reuniram no Café Foy, o Precope e outras casas de café politizadas para traçar o enredo da tomada da Bastilha e elaborar os Direitos do Homem. Eles defendiam a liberdade e a igualdade neste espaço público burguês, definindo o plano para a derrubada da monarquia. Mas nunca pensaram sobre as contradições incorporadas no café que beberam enquanto discutiam idéias grandiosas. Não pensaram na libertação dos negros da África que cultivaram o café nas colônias francesas de São Domingos ou em libertar as colônias. Um século mais tarde, os trabalhadores da fábrica e escritório nos Estados Unidos e Europa Ocidental em suas paradas para o café deram pouca importância para os escravos brasileiros ou índios maias da Guatemala que trabalhavam nos campos de café para fornecer
19UKERS, Willian H. All About Coffee. New York, The Tea and Coffee Trade Journal Company, 1922. p. 77. 20Cf. TAUNAY, Op. cit. p. 194-203. 21Cf. TAUNAY, Op. cit. e PENDERGRAST, Mark. Uncommon Grounds. New York, Basic Books. 2010. p. 10-20. 22TOPIK, Steve & SAMPER, Mario. The Latin American Coffee Commodity Chain: Brazil and Costa Rica. IN: TOPIK, Steve. MARICHAL, Carlos. ZEPHYR, Frank. (Org.). From Silver to Cocaine: Latin American Commodity Chains and the Building of the World Economy, 1500–2000. Durham, NC and London, Duke University Press, 2006. p. 118-146
22
aos trabalhadores as suas bebidas. A bebida de lazer no Norte exigiu um trabalho árduo no sul. Isso ainda era uma realidade no século XX.23
Esse trecho ilustra de forma simples, porém não menos importante, o que seriam as
commodities chains – redes de mercadorias – que se estendem do produtor ao consumidor, da
planta à xícara, sem esquecer as características próprias, singulares, do cultivo do café. De
certa forma, as pessoas na América, durante os séculos XVIII e XIX, estão intimamente
ligadas ao café e à sua produção camponesa, como também aos estudos históricos referentes a
essa economia, à sua elaboração, distribuição e consumo, que não apenas ocupam diferentes
continentes, mas, também, diferentes modos de produzi-lo. Fora dessa teoria, porém, a
história ignora, por vezes, os agentes de transações comerciais, financistas, exportadores,
transportadores navais e importadores. Por fim, entende-se muito superficialmente o papel do
café e sua relação com o mundo.24
O café é uma commodity singular, pois garantiu, pelo menos por dois séculos, bons
negócios internacionais. Ele permite o estudo de relações entre as produções em determinadas
áreas e o consumo em outras juntamente com seus efeitos de cadeia – linkage25. Durante
décadas, presenciaram-se vários tipos de linkage com as mais diversas formas de rede da
commodity do café de acordo com a peculiaridade de cada país ou região como, por exemplo,
o Brasil e a Costa Rica, que se inseriram nos mercados internacionais por caminhos e
organizações produtivas diferentes.26
É importante lembrar que não se pode entender uma commodity dissociada da
organização mundial da qual ela faz parte. Há uns quatrocentos anos, essas redes
internacionais de comércio foram se configurando historicamente. Ozveren27 afirma que
houve uma mudança gradual do modelo de comércio marítimo adotado, na época de
predomínio do Mediterrâneo, para uma rede de comércio (ou uma commodity chain) a partir
23Ibidem, p. 118 . “For the weeks that preceded July 14 1789 Camille Desmoulin and other Parisian revolutionaries gathered at the Café Foy, the Precope and other political coffeehouses to plot the storming of the Bastille and draft the Rights of Man. They championed liberty and equality in this bourgeois public space as they set in motion the overthrow of the monarchy. But they gave no thought to the contradictions embodied in the coffee they sipped as they discussed grand ideas. Few contemplated freeing the African slaves who grew the coffee in France’s colony of St. Domingue or freeing the colony. A century later the factory and office workers in the United States and Western Europe taking their coffee breaks gave scant thought to the Brazilian slaves or the Guatemalan Mayan Indians who labored in the coffee fields to provide the workers their drinks. The leisure drink in the North demanded strenuous work in the South. This was still largely true in the twentieth century.” Tradução livre. 24Ibidem, p. 119. 25Cf. PIRES, Anderson. Minas Gerais e a cadeia global da “commodity” cafeeira – 1850/1930. Revista
Eletrônica de História do Brasil. V. 9, n. 1, v.9 n.1, jan-jul., 2007. 26TOPIK, Steve & SAMPER, Mario. Op.cit. p. 118-46. 27ÖZVEREN, Eÿup. The Shipbuilding Commodity Chain, 1590-1790. In: HOPKINS, Terence K; WALLERSTEIN, Immanuel. Op. cit. p 26-7.
23
da conquista, por parte dos povos europeus, de novos mercados fornecedores. Por volta de
1590, o comércio marítimo se desloca da orla do Mediterrâneo e alcança o Mar do Norte e,
conseqüentemente, dá aos países que lá se situavam as condições de expandir suas atuações
nesses comércios internacionais. Novas tecnologias vão ser criadas e outras aperfeiçoadas
para a ampliação dos mercados. Pode-se citar, por exemplo, o desenvolvimento do Fluyt,
pelos holandeses, o mais econômico navio de carga da época. Há um avanço no processo que,
a partir do século XVII, gerou uma posição de superioridade aos holandeses. Enquanto os
ingleses mal tinham organizado seus construtores de navios em associações – gildas – os
holandeses, há tempos, já vivenciavam uma infraestrutura básica para seus construtores em
particular. As construções navais continuaram a se expandir sobre as colônias da América do
Norte, que garantiam territórios livres para as praças de comércio marítimo. O novo alicerce
naval-mercantil que se configurava incentivou a expansão e intensificou o comércio. Essa
vantagem competitiva dos holandeses em relação à manufatura dos navios os libertou das
pesadas rendas pagas aos comerciantes do estuário do Tâmisa, responsáveis pela organização
das construções navais.
Segundo os dados de Vogel28 em 1670, o volume de transporte nos navios eram de
568.000 toneladas para as Províncias Unidas, 94.000 toneladas para a Inglaterra e 80.000
toneladas para a França. Depois de 1750 o total das operações portuárias de praças navais
holandesas foram reduzidas às atividades de moinhos movidos a vento e à operação das
grandes gruas. Özveren29 atribui este fenômeno ao efeito da força que os Atos de Navegação
da Inglaterra imprimiram aos países participantes do comércio marítimo, em especial à
Holanda e à sua atuação no Báltico.
Com a redução das atividades marítimas, os influxos de ferro sueco preocuparam os
ferreiros das companhias de Londres. Em 1700, a Inglaterra passaria à marca de transporte de
500.000 toneladas, embora os holandeses subissem para 900.000 toneladas transportadas. Em
1730, a navegação comercial Russa disputava o Báltico. Com a participação da América
como mercado e praça de construção de navios, o Atlântico ganhou importância durante o
século XVIII. Já no fim do século, há um significativo aumento nos índices atlânticos em
relação ao Báltico com superioridade da Grã-Bretanha.
A Costa Atlântica monopolizou 51 por cento de novas construções e 60 por cento dos novos navios. A necessidade de compra de embarcações estrangeiras foi superada. Quanto à Espanha, os custos de produção de Havana foram de menos de metade dos custos de produção no continente. Devido não só
28Ibidem. p. 27. 29Loc. cit.
24
ao preço mais baixo de madeira, mas também para reduzir os custos de trabalho devido à utilização de escravos.
Por volta de 1790, a Grã-Bretanha (não incluindo o que foi agora os Estados Unidos) apresentou 26 por cento da tonelagem de transporte mundo, a França 21 por cento e apenas 12 por cento holandesa.30
Dessa forma, é possível notar as intensas transformações que as commodities estavam
proporcionando à estrutura das economias em várias partes do Atlântico e do Índigo desde as
primeiras integrações de mercados no início da Idade Moderna. Assim, as Companhias das
Índias, tanto inglesa como holandesa, contribuíram sobremaneira para a entrada de produtos
na Europa. Como mostra José da Silva Lisboa, Visconde de Cairú31, “Os produtos d´América
importados à Europa forneceram aos habitantes deste grande Continente muita variedade de
mercadorias, que não possuíam, e que contribuíram para a sua utilidade e delícia, e portanto
aumentaram os seus cômodos gozos.”32 Essa venda de commodities, alerta Cairú, movimenta
a economia geral do sistema, criando uma rede direta e indireta de mercados globais. Ele
exemplifica com o caso da Hungria e da Polônia, que não exportam seus “supérfluos”
diretamente à América, mas, ao demandarem produtos como açúcar, chocolate e tabaco,
decerto os compram dela. A renda dessa importação, em geral, é estabelecida pela venda da
indústria húngara e polonesa para outros países, o que acarreta a porção de valor para a
compra desses produtos. Logo, Cairú leva em consideração que “sendo aquelas mercadorias
do Novo Mundo trazidas de tais lugares, vêm a criar neles um novo e mais extenso mercado
ao seu produto supérfluo, com que se pagam os gêneros referidos. Que, aliás, sem isto não
existiriam.”33. Como há uma circulação de produtos que incluem os novos produtos
americanos, Cairú termina sua análise demonstrando que o novo continente pôs em
movimento uma economia global pela exportação dessas novas mercadorias. Ele defendia
uma livre circulação de mercadorias que, rompidos os monopólios europeus sobre a América,
poderia, então, fazer cairem os preços gerais no comércio.
Durante todo o século XIX, foi garantido o afluxo de mercadorias em todo o globo.
Este foi um século de paz e representou a consolidação de uma economia de mercado, visto
que o comércio pode expandir-se e concretizar um intenso índice de transações mercantis e de
30Ibidem. p. 30. The Atlantic coast monopolized 51 percent of new construction and 60 percent of new tonnage. The need for the purchase of foreign vessels was eliminated. As for the Spanish, the costs of production of Havana amounted to less than one-half of the costs of production in the mainland. This was due not only to the lower timber price, but also to lower labor costs because of the use of slaves. Around 1790, Great Britain (no longer including what was now the United States) had 26 percent of world shipping tonnage, France 21 percent, and the Dutch only 12 percent. (Tradução livre) 31LISBOA, José da Silva. Estudo do Bem Comum e Economia Política. Rio de Janeiro, IPEA, INPES, 1975. 32Ibidem. p. 375. 33Ibidem, p. 376.
25
investimentos financeiros.34 Foi se consolidando o padrão ouro para garantir o dinamismo nas
cotações de câmbio e os preços iam se tornando auto-reguláveis.35 Para Hopkins e
Wallerstein36, a direção desse movimento estaria associada à relação periferia-centro em que
esses efeitos interzonais formariam uma rede de commodity que abasteceria os mercados e as
necessidades dos países do centro.
A configuração deste mercado internacional de commodities coincide com o
nascimento do credo liberal. Para Polanyi, “O liberalismo econômico foi o princípio
organizador de uma sociedade engajada na criação de um sistema de mercado.”37 A crença,
até então muito difundida, era estabelecer livre negociação na mão de obra, liberação do
acesso aos bens (entre eles, a terra) e automatismo da criação e negociação do dinheiro.
Para tal, de certa forma, o credo liberal incidia na proposta de uma mudança social
intensa nos países que formavam suas economias capitalistas, em especial nas suas relações
entre agentes. Uma delas era a dissolução das suas relações orgânicas no meio econômico
substituindo-as por uma organização mais individualista e contratual. Em outras palavras, as
relações que incidiam sobre parentescos, amizades, vizinhança, credo deveriam ser
substituídas, pois restringiam a liberdade econômica. Polanyi38 mostra que essas
transformações nas economias européias foram lentas e graduais, iniciadas no século XV e
perpassando o XVIII.
Se estas transformações afetavam os países de economias centrais neste período de
tempo, no meio dos processos produtivos, ou seja, nos elos, nas redes que ligam o macro ao
micro, essas transformações também eram sentidas. Visto essa dinâmica, a questão está em
compreender os processos de organização das commodities como um processo social – de
acordo com os interesses e estruturas de cada sociedade -, que pode ser entendido como
“caixas”39, ou seja, as cadeias que interligam os processos podem ser reorganizadas,
reagrupadas ou separadas. Há locais em que pode haver fusões de etapas de processo
produtivo e em outros, não. Nas palavras de Hopkins e Wallerstein, “É bem possível que o
que está organizado em um lugar como duas ou mais caixas separadas é organizado em outro
como uma única caixa.”40 Essa característica mutável das organizações das commodities pode
34POLANYI, Karl. Op. cit., p. 17-35 35Idem, p. 30-1. 36HOPKINS, T; WALLESTEIN. Op.cit. p. 17-9. 37POLANYI, Op. cit., p. 166. 38Ibidem, p. 198-213. 39Acepção do termo de Hopkins e Wallerstein, que aborda como “caixa” um dado processo de produção muito específico. 40Hopkins, Terence; Wallerstein, Immanuel. Op. cit. p. 18. “It is quite possible that what is organized in one place as two or more separate boxes is organized in another as a single box.”
26
explicar sua importância local e sua singularidade nos processos produtivos, explicar como
cada região, de acordo com sua organização, pode provocar efeitos diferentes nas redes a
partir de uma mesma commodity.
De acordo com Pires41, Harold Innis, historiador da economia canadense, teria
desenvolvido a Teoria do Produto Principal (Staple Thesis). Para Innis, existe uma relação
direta entre as relações do produto principal e as relações sociais que perpassam uma dada
sociedade.
(...) são as determinações desta com a evolução dos fenômenos sociais, geográficos e culturais, além das modificações que viriam a sofrer como parte da integração das sociedades ao mercado mundial, que se colocavam como centro de análise.42
Innis aponta para a importância de que o processo parte de relações entre os vários
fatores produtivos, os elos, na acepção de Pires43, que conectam todo o processo produtivo e
suas relações recíprocas que se estabelecem desde as produções locais às relações de consumo
final do produto. A rede, nessa teoria, é entendida na sua totalidade. Assim, universo
internacional e da produção local se inter-relacionam. A busca pelo estudo das unidades
produtivas e de suas interligações não se dissociam da macroeconomia, em que os mercados
internacionais atuam e provocam mudanças ou são influenciados pelas atuações das
microeconomias.44 A particularidade da teoria é entender que esses elos e essas relações
dinâmicas entre micro e macro podem ser analisados além das concepções dos Estados
Nacionais, mesmo que estes façam parte do processo produtivo, contemplando redes ditas
secundárias ou que aparentemente não influenciam no contexto econômico geral de um dado
país. O que queremos dizer é que o estudo do produto em si nos desloca para a análise dos
elos que interligam os processos produtivos e para seus efeitos dentro deste processo.
O segundo ponto da teoria de Innis diz que o ambiente é um elemento constituinte de
um dado produto de exportação.45 Em outras palavras, os fatores naturais influenciam nas
formas de organização da produção, nas relações sociais e na organização espacial dos
mercados. Alguns autores corroboram com Innis direta ou indiretamente, como é o caso de
Dean46, que associa o processo de devastação da Mata Atlântica ao processo de expansão da
fronteira agrícola, em especial, a do café. No sentido oposto, a commodity de café também
41Cf. PIRES, Anderson. Minas Gerais e a Cadeia Global da “commodity” cafeeira – 1850/1930. Revista Eletrônica de História do Brasil. UFJF, Juiz de Fora, jan- jul 2007, vol. 09, num. 01. 42Ibidem, p. 07. 43Loc. cit. 44Idem, p. 08. 45Cf. PIRES, Op. cit, 2007. 46Cf. DEAN, Warren. A Ferro e Fogo: a história e a devastação da mata atlântica brasileira. São Paulo, Cia das Letras, 1996.
27
necessitava de expansão sobre a mata nativa para se manter competitivo nos mercados
internacionais. Quando os cafezais ficavam velhos e perdiam produtividade e valor, novas
plantações iam surgindo e ampliando a fronteira de produção das fazendas.
Para Samuelson, o intercâmbio entre países poderia vir a ser um fator importante não
só para a troca de produtos, mas, acima de tudo, seria um elemento de equalização dos
rendimentos que atinge diferentemente uma série de países. Até a década de 1950, discutia-se
muito a questão da inserção do capital como elemento propulsor das economias periféricas.
Hirschman47 descreve em seu artigo que, segundo Paul Baran, o capital estrangeiro poderia
até impulsionar a economia, mas reforçaria as estruturas de poder existente, tornando-se
socialmente nocivo. Em outra análise, confronta os trabalhos de Baldwin e de Galenson e
Leibenstein afirmando que, em determinado momento, a renda distribuída incentivaria o
desenvolvimento das indústrias enquanto a aplicação de recursos de capitais e o
reinviestimento rápido e recorrente dos lucros aumentariam o desenvolvimento econômico.
Ainda para este autor, a partir da esfera da produção, elabora-se o efeito de
encadeamento em que o desenvolvimento econômico se dá a partir de uma dada produção
específica que se propaga em efeitos posteriores e anteriores e si mesma. Os efeitos de
encadeamentos retrospectivos levam aos fatores que serão utilizados pela produção e os
prospectivos, ao aparecimento de um mercado fornecedor de insumos, por exemplo. Além
desses, os efeitos de encadeamento fiscal geram novas arrecadações a partir dos vários setores
produtivos que surgem consequentes à dada commodity.48 Apesar de ter sido desenvolvida
inicialmente para a indústria, o efeito de encadeamento pode ser aplicado de forma ampla,
como por exemplo, no setor primário (commodities). Vista desta forma, a teoria se torna
complementar à tese do produto primário de exportação, abordado por Innis, que defende que
as economias de países novos, como também o desenvolvimento destes, são amplamente
caracterizados por produções – e conseqüentemente exportações – do setor primário.49 Assim
sendo, cabe ressaltar aqui o café como commodity principal de muitos países pós-
independentes, como é o caso do Brasil e de outros países da América Latina, ganhando
posições privilegiadas em relação ao mercado internacional. Segundo Pires, “Por outro lado,
se lembrarmos que estamos lidando com uma das mais importantes e valiosas ‘commodities’
47HIRSCHMAN, Albert (1985). “Desenvolvimento por Efeitos em Cadeia: uma abordagem generalizada.” In SORJ et alii. Economia e Movimentos Sociais na América Latina. Brasiliense, São Paulo. p. 34-5. 48Cf. PIRES, Anderson. Café, Bancos e Finanças em Minas Gerais: Uma Análise do Sistema Financeiro da Zona da Mata Mineira – 1889-1930. Tese de doutorado, São Paulo, USP, 2004. 49Idem, p. 38-9.
28
presentes no comércio internacional – tanto do século XIX quanto do XX –, podemos
imaginar a quantidade de recursos que esta economia conseguiu mobilizar.”50
Essa matéria valiosa, abundante no Vale do Paraíba Fluminense por características
próprias durante todo o século XIX, forma por si mesma uma rede de elos que garantem a
série de efeitos prospectivos, retrospectivos e fiscais, mantida pelo fato de não ser somente o
mais importante produto de exportação como também por formar uma elite de domínio local
conhecida como “Barões do Café”. O produto proporcionou um vasto estímulo à formação
desses efeitos de encadeamento entre produtores de commodities, pequenos produtores locais,
comerciantes, tropeiros, capitalistas, criadores de animais dentre outros. Para Hirschman,
O que nos vem à mente como exemplo é a situação dos países plantadores de café, como o Brasil e a Colômbia. Em ambos os países o café tem sido crucial na criação nos padrões de ocupação da terra (Settlement patterns), redes de transporte e repercussões do consumo, porém, somente bastante tarde na sua carreira de produto primário de exportação é que rendeu alguma contribuição fiscal (...)51
Mas os elos dos produtos nas teorias das commodities chains não dependem tanto da
vontade do produtor, mas de múltiplos fatores que compõem as características próprias de
cada produto. Em muitos casos, as questões técnicas nessas economias são mais
preponderantes que as razões do desenvolvimento econômico.52
Para Hischman,53 o expansionismo foi mais uma rigidez no processo de produção na
cafeicultura que uma opção. Sua análise aborda a importância de buscar novas terras para a
sustentabilidade da lavoura cafeeira, o que explica a singularidade do plantio do Vale e sua
necessidade do investimento constante na expansão da fronteira agrícola. Terminando a
análise,
(...) um novo modo de produção está intimamente ligado à existência, no tempo apropriado, de uma atividade econômica específica, que apresente uma afinidade mais forte com este modo de produção do que a que é constatada mais tarde, quando o modo de produção já se tornou ubíquo e dominante, e, portanto, parece ser, e na realidade já se tornou, independente dessa atividade.54
Esse modo de produção, baseado nas análises de Marx, pode não operar de forma
semelhante se comparada em períodos e regiões diferentes. O que a cultura cafeeira pode
provocar em uma determinada região – como o acirramento da escravidão e encadeamentos
financeiros – pode não gerar em outra região. Essa análise garante a especificidade da
50PIRES, Anderson. Op. cit. 2007. p. 21. 51HIRSCHMAN, Albert. Op. cit, p. 42. 52Idem, p. 49; conferir também o trabalho de VITTORETTO, Bruno Novelino. Do Parahybuna à Zona da Mata: terra e trabalho no processo de incorporação produtiva do café mineiro (1830-1870). Dissertação de Mestrado, UFJF, 2012. 53HIRSCHMAN, Albert. Op. cit., p. 76. 54Loc. cit.
29
commodity e o processo de superação do modo de produção a ela ligado.55 Mas, ao mesmo
tempo, o produto primário está imerso em situações que são inerentes à sua produção em
qualquer parte. A teoria de Hirschman56 ora se aproxima e ora de afasta do postulado de
Marx, pois, ao mesmo tempo em que garante uma concepção geral da análise, também abre
perspectiva para o localismo, a especificidade e a singularidade do produto.
O interessante na teoria geral que o autor aborda está no deslocamento da relação entre
produto primário de exportação e Estado, ou, pelo menos, abre uma importante discussão. O
desenvolvimento através dos produtos primários de exportação requer intrínsecos parâmetros
que vão além da esfera do Estado, como terras, ferramentas, adequação técnica, crédito, etc.
Podem agir com ele ou além dele. Isso ajuda a compreender a forma de organização pessoal
do crédito em Vassouras alavancado por particulares, mesmo antes do aparecimento de
instituições de mercado controladas pelo Estado.
1.2. O Brasil no mercado internacional do café.
Há uma vasta literatura sobre o café no Brasil. Essa literatura aborda a totalidade da
história da produção, visto que se estende desde as análises das origens até os movimentos da
economia cafeeira nos fins do século XX. Citamos aqui, por exemplo, o trabalho de Martins
& Johnston, cujas relações com a cafeicultura iam muito além do mundo acadêmico57.
Taunay, um clássico do tema, dá crédito à W. Ukers, que publicou All About Coffee, porém
ressalva: “apesar do título imodestíssimo, repitamol-o [sic!], apresenta a obra de Ukers – tão
importante e tão cheia de capítulos primorosos – a parte brasileira por assim dizer
insignificante”58. O próprio E. Taunay publica, na década de 1930, a História do Café no
Brasil, obra fundante no tema distribuída em 15 volumes, publicada pelo Departamento
Nacional do Café. Ainda podemos citar Roteiro do Café e outros Ensaios, de Sérgio Milliet e
O Problema do Café no Brasil, de Delfim Netto.
Curiosa é a obra de Learne sobre a comparação entre Brasil e Java no que se refere à
cultura do café. Em 1883, C. F. van Delden Learne foi nomeado agente do “Departament of
the Interior of Bavária” e encarregado pelo Governo Holandês de missões especiais no Brasil
55Tal fenômeno explicaria como duas regiões produtoras de café como o Vale do Paraíba Fluminense e a Zona da Mata Mineira tomaram rumos diferenciados quanto ao seu desenvolvimento histórico. Cf. PIRES, Anderson. Op. cit., 2009. 56Cf. HIRSCHMAN, Op.cit., p. 78-9. 57BACHA, Edmar; GREENHIL, Robert. 150 Anos de Café. Rio de Janeiro, Marcelino Martins & E. Johnston, 1993. 58TAUNAY, Afonso. Op. cit, 1939. Tomo I. p. 15.
30
e de assuntos da cultura e do comércio do café em possessões das Índias Holandesas. Na
segunda metade do século XIX, a pedido do governo holandês, Learne escreveu um tratado
sobre a cafeicultura do Brasil e de Java que cobria prioritariamente o ano de 1885. Sua obra é
divida em doze capítulos principais, dos quais a maioria fala do Brasil. Os onze capítulos que
abordam a realidade brasileira dão um panorama profundo da cafeicultura no tocante à região
(São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais), clima, grãos, forma de plantio, imigração, mão de
obra escrava, comércio, financiamento, bancos, exportação (incluindo as taxas por país
comprador), entre outras informações valiosas. Além dos dados da cafeicultura, um dos
capítulos foi dedicado à História política brasileira desde o período colonial até o Império.
Atualmente, Learne é uma referência para estudos de commodities, em especial da economia
cafeeira na segunda metade do século XIX. No Brasil, seus principais leitores foram Sérgio
Buarque de Holanda, citando-o em Raízes do Brasil; Hildete Pereira de Melo, em A O Café e
a Economia do Rio de Janeiro: 1888/1920; Warren Dean, no seu A Ferro e a Fogo, entre
outros.
Na literatura mais contemporânea podemos citar os trabalhos de Topik, Marichal e
Frank, na obra From Silver to Cocaine59, que contribuíram, em um de seus capítulos, com o
debate sobre a inserção do café como commodity na economia global formando uma cadeia de
ligações que vão desde a produção, distribuição e consumo até todos os encadeamentos que
podem dele surgir. Há também o Uncommon Grounds, de Mark Pendergrast, que segue a
tendência da historiografia recente e insere o Brasil como elemento integrado, no século XIX,
aos mercados internacionais.
O café, como anteriormente descrevemos, não é próprio da América. Taunay aponta
como marco a chegada do café no Brasil em 1727.
Para a edição especial do “o Jornal”, de outubro de 1927, escreveu Basílio de Magalhães, eruditíssimo artigo: Quem era Francisco de Mello Palheta, introductor do cafeeiro no Brasil, reconstrução penosa e profunda, de uma biographia até então cheia de lacunas e incertezas.60
O café é uma commodity que, antes da produção em larga escala, característica do
século XIX, era produzida timidamente nas colônias americanas e consumida pelas elites.
Para Pires,
A Cadeia Global do café sofreu importantes mudanças no decorrer do século XIX. Seu espaço social de demanda vinha se transformando substancialmente desde o final do século anterior. De uma bebida exótica de luxo, restrita ao consumo das elites, o café gradualmente foi se incorporando ao crescente mercado de consumo de massa inerente à expansão industrial que vinha sofrendo o centro do sistema
59TOPIK, Steve; MARICHAL Carlos. ZEPHYR, Frank. (ORG.). Op. cit. 60PIRES, Anderson. Op. cit, 2010 p. 283
31
mundial. Esse processo de “comoditização” do café só ocorreu, contudo, devido às suas características físicas como um forte estimulante e o papel que a generalização de seu consumo desempenhou na disciplina e rigidez típicas das linhas de montagem do novo processo de produção.61
Taunay62 descreve detalhadamente a chegada das primeiras mudas ao Brasil ligando-
as a Francisco de Mello Palheta que, em visita à Guiana Francesa, as teria trazido ao Brasil,
episódio que ficou, quase de forma pitoresca, registrado na História. Relata o autor:
“...foi feita a Palheta, em um passeio, durante o qual, sem dúvida chegaram a algum cafezal, onde Ella (Mme. Claude d´Orvillers), para acudir ao desejo que viu luzir nos olhos do militar paraense, apanhou bons punhados de rubras cerejas da rubiácea e lhas metteu num bolso da casaca, ante o sorriso condescendente do marido.”63
É evidente que Taunay aborda, em sua obra, outras discussões sobre a entrada do café
em fronteiras nacionais, mas, por ele, esta seria a mais significativa explicação.
Tanto Taunay (1939)64 quanto Lapa (1993)65 descrevem um Brasil, na primeira
metade do século XVIII, com problemas fronteiriços com a Guiana Francesa. O então
governador do Maranhão, João Maria da Gama, enviou o Sargento-mor Francisco de Mello
Palheta como representante a fim de tratar das negociações. Ao retornar ao Brasil, Palheta
trouxe mudas que foram plantadas no Maranhão e desceram até atingir outras áreas. A planta
se estabeleceu em várias propriedades da colônia.
Em torno de 1800, o café brasileiro começa a ganhar projeções, mas é com a vinda da
Família Real ao Brasil, em 1808, que surgem novas rotas ligando o Rio de Janeiro ao interior
da província a fim de dinamizar o fluxo de abastecimento, já que ocorreu repentinamente um
aumento demográfico com a transferência da Corte portuguesa. Esta situação fez com que se
exigissem não só produtos de primeira necessidade, como também um abastecimento de
produtos de melhor qualidade. Rapidamente, a Coroa providenciou a abertura de rotas de
abastecimento, como a Estrada da Polícia e a Estrada do Comércio. Com a abertura dos
portos, os produtores brasileiros tiveram acesso a um mercado global devido à quebra do
monopólio estabelecido por Portugal. Esses portos não foram só exportadores de
commodities, mas um elemento de entrada de escravos, o que contribuiria para as quedas dos
preços do café ao produzi-lo em larga escala e com mão de obra cativa.66
61PIRES, Anderson. Op. cit., 2007. 62TAUNAY, Afonse. Op. cit . 63Ibidem. 64LAPA, José Roberto do Amaral,. A Economia Cafeeira. 5ª Ed. São Paulo, Brasiliense, 1993. 65Loc. cit. 66Cf. MARQUESE, Rafael de Bivar & TOMICH, Dale. O Vale do Paraíba escravista e a formação do mercado mundial do café no século XIX. IN: GRINBERG, Keila & SALLES, Ricardo (ORG.). O Brasil Império (1808-1889). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, Cap.8, Vol.2 (1831-1870).
32
1.3. A construção do Vale do Paraíba Fluminense como complexo cafeeiro ligado
ao Rio de Janeiro.67
Neste contexto, os caminhos do Vale do Paraíba começaram a se desenvolver no
século XVII, na fase final do processo de mineração nas Minas Gerais, mas vão ganhar força
quando o Vale desenvolve as lavouras de café. Para Novaes68, baseando-se nos trabalhos de
André João Antonil,69a média de viagem do interior das Minas Gerais até o porto do Rio de
Janeiro chegava a trinta dias. Os caminhos tortuosos do Vale do Paraíba Fluminense
superavam, em dificuldades, os caminhos paulistas.
Já nos anos de 1698 até 1704, ainda no período colonial, a Coroa Portuguesa inicia o
processo de abertura do Caminho Novo, que, segundo Novaes70, teria sido usado como
alternativa para proteger as mercadorias dos ataques de piratas e corsários. Foi encarregado
Garcia Rodrigues Paes de abrir o caminho a partir da Fazenda Garcia em direção ao Rio de
Janeiro. Essa rota passou por Vassouras, como demonstra Novaes, indo dos portos de Irajá,
Pilar e Iguaçu; logo depois, rumava serra acima até chegar à Serra do Tinguá (área de
Vassouras). Daí para frente, seguia em direção a Roça dos Alferes (Paty do Alferes), fazenda
Pau Grande, Paraíba do Sul, Paraibuna (Monte Serrat), Rocinha Negra (Simão Pereira),
Matias, a Fazenda Juiz de Fora, Chapéu D´Uvas, Borda do Campo (Barbacena), Registro
Velho e Encruzilhada do Campo, de onde bifurca para Vila Rica e São João d´El Rey.71
67Refere-se aqui à Bacia do Médio Paraíba Fluminense. 68NOVAES, Adriano. Os Caminhos Antigos do Território Fluminense. <http://www.institutocidadeviva.org.br/inventarios/sistema/wp-content/uploads/2008/06/oscaminhosantigos.pdf> acessado em 06 de mar. 2012. 69ANTONIL. Cultura e Opulência do Brasil, publicado em 1711. 70NOVAES. Adriano. Op. cit. p. 61. 71Loc. cit.
33
Mapa 01
Carta Geográfica da Província do Rio de Janeiro, 1858.
Fonte: Fonte: Arquivo Nacional. In: NOVAES, Adriano. Op. cit. p. 60.
Além destes, outros caminhos foram importantes para o desenvolvimento da região e
ficaram conhecidos como as vias alternativas. Em 1723, Bernardo Soares de Proença,
fazendeiro próspero de Suruí, em troca de sesmarias, coordenou a abertura do Atalho do
Caminho Novo ou Caminho de Inhomirim, Caminho de Estrela ou Variante do Proença, que
ia do Cais dos Mineiros (Praça XV de Novembro) até o Porto de Estrela, passando pelas
fazendas da Mandioca, Córrego Seco, Secretário e Vila de Sebolas. Essa estrada deu
34
dinamismo ao fluxo de cargas no Vale do Paraíba Fluminense, vindo, mais tarde, a se
incorporar em outros projetos rodoviários.72
Em 1725, a Estrada Real de Santa Cruz, ligando o Rio de Janeiro a São Paulo, foi
aberta garantindo o transporte de ouro pela região. Em 1750, a Estrada do Rodeio passou a
ligar o Atalho do Caminho Novo ao Rio de Janeiro.
“Construída entre 1813 e 1817 pela Real Junta de Comércio, Agricultura, Fábrica e
Navegação do Estado do Brasil e Domínios Ultramarinos, daí o nome Comércio.”73 Assim
Novaes justifica o nome do novo trecho que passava não só por Vassouras, mas também por
Valença, e cujo objetivo inicial era ligar, por essa rota, os territórios mineiros ao porto do Rio.
Já a Estrada da Polícia tinha um objetivo bem definido: ligar Rio e Minas pelo coração central
do Vale. Passava por Sacra Família do Tinguá, Serra do Mata Cães, Fazenda de José
Rodrigues Alves (Barão de Santa Fé), seguia as margens do Paraíba encontrando a Fazenda
Santa Mônica até Valença e continuava até o Presídio de Rio Preto.74
Quanto ao acesso à terra, havia duas formas de adquiri-las na colônia: na forma de
recebimento de sesmarias (i) por abrir os caminhos para tropas ou por referência à atuação dos
serviços públicos ou (ii) na forma que se definia por homens que por ali passavam e
construíam paragens para os tropeiros, já no momento de flexibilidade da legislação que
impedia a colonização no Vale Médio do Rio Paraíba, uma vez que essas possessões
privilegiavam o abastecimento do mercado interno, visto que era rota de passagem de muitas
mulas para abastecimento e transporte de ouro e mercadorias.75
Mas não podemos deixar de observar que o ritmo da colonização inicial do Vale se
deu a partir da abertura do Caminho Novo. O “certão [sic!] ocupado por índios brabos”76 foi
cortado pela estrada que subia toda a Serra do Mar até o Engenho Pau Grande. O Caminho
Novo era a espinha dorsal de onde surgiram, no Vale do Paraíba, outras ramificações que
compunham a rede que daria suporte à abertura mais intensa de várias propriedades
produtoras.
Fator preponderante no processo de ocupação de Vassouras foi a crise da economia do
ouro em Minas Gerais, já sentida pelos primeiros proprietários que se haviam estabelecido ao
longo do Caminho Novo e na Serra do Tinguá:
72Conferir os trabalhos Novaes, op.cit. e TAMBASCO, J. C. V .A Vila de Vassouras e a Economia do Café: a ascensão e o declínio da cafeicultura no Vale do Paraíba (1833-1888). Vassouras, Edição do Autor, 2010. 73Idem. p. 65. 74Loc. cit. 75STEIN, Stanley. Op. cit, p. 35-6. 76MUNIZ, Célia Maria Loureiro. A Riqueza Fugaz: trajetórias e estratégias de famílias de proprietários de terras de Vassouras, 1820-1890. Tese de Doutorado, UFRJ, 2005. p. 28.
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(...) os agricultores dependentes do trânsito pelo Caminho Novo, na Capitania do Rio de Janeiro, e em particular aqueles de há muitos anos estabelecidos na região do Tinguá [Serra do Tinguá], também se sentiam atingidos pelos efeitos da decadência das minas, em decorrência da queda do trânsito pela variante da Roça do Alferes. (TAMBASCO & VARGENS, 2007:28.)
Ao longo do século XVIII mais de quatrocentos mil indivíduos, entre paulistas na grande maioria, cariocas, baianos, portugueses, índios e escravos negros, percorreram as perigosas e traiçoeiras trilhas, que uniam o planalto, onde havia a fortuna e também a desgraça para muitos aventureiros.77
Como não havia uma grande tradição de produtividade da terra, aliada ao esgotamento
do mercado internacional do açúcar, que entrara em crise pela produção do açúcar de
beterraba, entre outros motivos, aconteceu que certos fatores produtivos foram liberados para
que uma nova cultura pudesse florescer naquela região: o café. Podemos notar o efeito
prospectivo oriundo da transformação da economia açucareira fomentando a produção de
outros gêneros para o mercado interno e subsídios para o café.
(...) contrato registrado em cartório, em 07 de janeiro de 1794, nos informa de um arrendamento de uma “fábrica de descascar arroz”, que é como se referia, naquela época aos estabelecimentos de beneficiamento desse grão. No presente caso, arrendava-se o estabelecimento e a escravaria ali empregada. Não há informações sobre o porte da atividade, mas os cuidados contratuais, em particular sobre os zelo e manutenção que deveriam ser dados aos escravos, além do valor do arrendamento, 1.600$000 por safra, indicavam a importância do negócio.78
As estradas viriam acrescentar suporte ao processo de desenvolvimento da lavoura79.
Desde o final século XVIII, o Rio de Janeiro viria a ser recortado por uma série de estradas,
consequência de uma elevação da demanda externa via porto da cidade do Rio de Janeiro e do
mercado interno. As estradas eram rústicas, a princípio, mas não impediam o escoamento das
mercadorias diversas com certa eficiência. O sistema era peculiar à colônia, o transporte no
lombo de mulas.
Para escoar a produção crescente do Vale do Paraíba na década de 1820, havia que se ultrapassar os obstáculos da topografia acidentada e da distância dos portos do litoral. Nesse ponto residiu a maior contribuição da economia da mineração para a cafeicultura oitocentista. Em resposta à demanda mineira, elaborou-se, na segunda metade do século XVIII, um complexo sistema de criação e comercialização de mulas que articulava o sul da América portuguesa às capitanias de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, fornecendo o meio básico de transporte para todo o centro-sul da colônia.80
Não era só a questão da mineração, mas todo o comércio livre de mercadorias se fazia
sobre essas bestas, incluindo o café. Os animais eram aproveitados da estrutura de criação já
vigente na região do Vale e no sul do país. As mulas não só resistiam à topografia acidentada
do Vale, com morros arredondados e constantes aclives e declives, mas também à distância 77LAMEGO, Paulo. Op. cit.. p. 31 78TAMBASCO, J. V. C. A vila de Vassouras e as Freguesias do Tinguá. Vassouras: Edição do Autor,. 2004, p.106 79LIMA, Célio de Aquiar. Onde há fumaça há fogo: a influência da economia cafeeira na construção da estrada de ferro Pedro II: 1855-1889. Dissertação de Mestrado, USS, Vassouras, 2007. 80MARQUESE e TOMICH. Op. cit, 2008. p. 17
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percorrida até os portos no Rio de Janeiro, em especial nas fases mais tardias da produção de
café. Essas áreas se encontravam mais a oeste devido ao desgaste do solo. Em resumo, as
trilhas tornavam-se impraticáveis se não fossem a toque das mulas.
O percurso legado à cafeicultura, pela cana e pelo comércio interno de produtos, se
dividia em três opções: o Caminho Novo, a Estrada do Leste e a Estrada do Oeste. A mais
importante era a primeira, com um fluxo de mais de duzentas mulas diárias, na metade do
século XIX.81 Esta ligava o litoral a Minas. A Estrada do Leste partia da Praia Grande até a
Guanabara e percorria Inhomirim até Iguaçu. Já a Estrada do Oeste estendia-se de São
Cristóvão em direção à Guaratinguetá, passando por Bananal e Areias. Em 1720, abriu-se
uma nova trilha em direção a São Paulo, a partir do Caminho Velho.
A partir de 1740-1750, a serra do Mar era vencida, na sua porção fronteira à Itaguaí, em direção a São João do Príncipe e, daí, em direção à Bananal, formando uma nova variante para a viagem por terra, para a Capitania de São Paulo”82
Essa estrada tinha dupla função. Inicialmente, garantia a entrada de mulas para o
interior do Rio, via São Paulo, além de servir posteriormente à penetração do café em terras
paulistas. No complexo de estradas abertas pela ocupação das fazendas canavieiras e de
produção para o mercado interno, a variante do Proença, uma estrada secundária no complexo
do Caminho Novo, passava pela Serra do Couto até a região da Sacra Família do Caminho
Novo do Tinguá e de Paty de Alferes. Essas estradas estariam dando suporte a todo futuro
complexo de redes de escoamento do café de Vassouras.83 Logo no início do século XIX, o
conselho da Real Junta de Comércio, criada em 1788, mandou construir novas vias de
comunicação pela região do Médio Paraíba. É neste contexto que surgem a Estrada Real, a
Estrada do Comércio e a Estrada da Polícia, cortando o que antes eram as Áreas Proibidas.
81TAMBASCO, J. V. C. Op. cit, 2004, p. 134 82TAMBASCO, J. V. C. A Vila de Vassouras e o Vale Médio do Paraíba. Vassouras: Edição do Autor, 2007. p. 136-7 83Vassouras teve origem através da doação da Sesmaria no “sertão da Serra de Santana, Mato Dentro por detrás do Morro Azul" (posterior Sesmaria de Vassouras e Rio Bonito), doada para Francisco Rodrigues Alves e Luis Homem de Azevedo em 5 de outubro de 1782. (Cf. TAMBASCO, J. V. C. Op. cit. 2004)
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Mapa 02
Carta Geográfica da Província do Rio de Janeiro, 1858.
Fonte: FERREIRA, Luiz Damasceno. História de Valença. Valença, Gráfica Valença, 1978. p.8.
Pelo mapa traçado em 1808 por Ignácio de Souza Werneck, nota-se a inexistência de
estradas de suporte ao escoamento da produção de larga escala (estrada carroçável). As redes
que compõem o sistema viário aos portos de Pilar e Iguaçu trafegavam pelo Caminho do
Azevedo, Caminho do Tinguá, Caminho da Aldeia ou Caminho do Werneck e ligavam-se ao
Caminho Novo. Era exatamente através dessas rotas que a Zona da Mata Mineira escova sua
produção e por elas também vinham capital e colonos para o povoamento da região.
Dessa forma, a produção mineira e seu escoamento no porto do Rio de Janeiro vão
tornando viável o processo de ocupação e de desenvolvimento no Vale Médio do Rio Paraíba
e as transformações nos níveis de exploração econômica da região. As estradas, muitas vezes,
se abriam pelo capital agrário acumulado nas etapas produtivas anteriores. Em 1811, com o
desenvolvimento, no Vale, da lavoura de cana-de-açúcar, da tímida lavoura de café e dos
demais produtos, iniciou-se a construção de um novo complexo de escoamento, a Estrada do
Comércio, sob a responsabilidade de Custódio Ferreira Leite e Francisco Leite Ribeiro.84
Devido à sua construção com boa largura carroçável e áreas protegidas com paredões de
84A construção da Estrada do Comércio foi incentivada pela Real Junta de Comércio, Agricultura, Fábrica e Navegação. Para Tambasco (2004, p. 147) seu nome deriva da própria Junta. Já para Stein (1990, p.34) ela deriva de uma região de Vassouras denominada Commercio.
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pedras para evitar desmoronamento, origina-se o marco que encerraria a era das trilhas,
picadas e rotas de mulas.
A outra estrada de relevância na região era a Estrada da Polícia, aberta para proteger o
país nas suas fronteiras ao Sul e proporcionar um meio de transporte para o comércio de gado
e de mula provenientes desta região, como também para propiciar as ligações com o Rio de
Janeiro para escoamento de mercadorias de exportação. Essa estrada garantiu um aumento de
fluxo na região do Vale Médio do Paraíba, o que incentivou, vistas as condições de estrutura,
o assentamento de pequenos agricultores e meeiros que contribuíram para o alargamento da
produção destinada ao mercado interno e externo. As relações que se estabeleciam na grande
propriedade açucareira no Vale agora dividiam o espaço com uma série de pequenos
produtores.85 A nova estrutura de estradas carroçáveis gerou uma nova realidade. Estes
pequenos agricultores, surgidos das condições que se abriram no início do século XIX,
juntamente com os tradicionais latifundiários fomentariam a rede de abastecimento, transporte
e financiamento do complexo econômico da região.
As lavouras de café foram subsidiadas por uma infraestrutura preexistente no Vale,
gerando os efeitos de encadeamento. As estradas estreitas e as carroçáveis abertas pelo
escoamento de ouro e de produtos agrícolas para a cidade e os portos do Rio de Janeiro
favoreceram a entrada de colonos, alguns com capital da própria lavoura canavieira e da
mineração, que investiram no início da lavoura cafeeira da região. Em relação à Vassouras:
Famílias mineiras aí se estabeleceram e investiram capital acumulado na mineração. Assim a lavoura de café do Vale coincide com a decadência das minas de ouro em Minas Gerais. Os futuros fazendeiros, recebendo grandes doações de terra da Coroa em forma de sesmarias, construíram uma ou mais fazendas.86
Essas características próprias deram à região uma vantagem como commodities, pois o
solo, a mão de obra, a característica peculiar do café, as montanhas em “meia laranja” e as
disponibilidades creditícias, características no Vale, em pouco tempo combinar-se-iam para
ganhar os mercados internacionais, influenciar os preços globais e complementar
significativamente uma ampla rede de produção, negociação e distribuição do café no
mundo.87
85TAMBASCO, J. C. V. Op. cit, 2004. p. 154. 86ALMEIDA, Ana Maria Leal. Famílias de Elite: Parentela, Riqueza e Poder no Século XIX. Artigo Científico, Vassouras: Universidade Severino Sombra. 2010. p. 04-5 87O termo aqui utilizado refere-se à rede de commodities desenvolvidas à partir da inserção de produtos de baixo valor agregado, mas que foram importantes pois desenvolveram redes mundiais de comércio. TOPIK, Steve; MARICHAL. Carlo, FRANK, Zephyr. Op. cit. p. 02
39
Já no final do século XVIII, ocorreram importantes mudanças na estrutura da
Província do Rio de Janeiro. Tambasco afirma que essas mudanças ocorreram na própria
transferência da sede do Vice-Reino do Brasil, que teria sido palco para o desenvolvimento de
um “rápido crescimento das transações comerciais de exportação pelo porto do Rio de
Janeiro...”88. Ainda para o autor, o período que cobre de 1775 a 1805 é muito favorável para a
expansão da agricultura. Nesta data, o açúcar aumenta 300% no volume de exportação e
500% no valor da exportação. A mesma realidade é observada nos grãos e a província passa a
ser exportadora de arroz89. Esse favorecimento teria condicionado o aumento demográfico na
província; além disso, os índices de exportação e valorização dos produtos agrícolas no
período estimularam a colonização no interior da Capitania. Outro fator seria apontado por
Stein90 como a decadência da exploração aurífera das Minas Gerais, o que levaria à
liberalização do processo de colonização pela coroa portuguesa no século XVIII. Assim, o
autor demonstra que:
Os novos rumos dos acontecimentos atuaram no sentido de completar o povoamento de Vassouras... o esgotamento das minas do norte, a expansão do cultivo do café em direção aos terrenos elevados do Vale do Paraíba e a eliminação de um pequeno grupo de índios coroados onde agora está situada Valença, na margem norte do Paraíba.91
Isso soma essa conjuntura a alguns pontos do trabalho de Fragoso92. A mudança da
sede administrativa do Vice-Reinado do Brasil, em 1763, para o Rio de Janeiro, deslocou o
processo de ocupação aumentando consideravelmente as atividades sócio-econômicas na
capital da província e, em especial, no porto do Rio de Janeiro gerando o fortalecimento da
burguesia comercial e financeira daquela área.93 Os “homens de grosso trato”, como eram
chamados, introduziam escravos, ajudavam na oferta de créditos na colônia e redistribuíam ou
exportavam produtos do interior. Essa dinâmica da praça comercial do Rio de Janeiro com o
interior – em especial com a província de Minas Gerais - favoreceu o desenvolvimento das
áreas do Vale, em especial, de Vassouras.
As estradas abertas na primeira metade do século XIX dariam suporte ao escoamento
do café do Vale (ou, por que não, do Brasil, já que a maioria estaria concentrada nas áreas do
Rio de Janeiro, da Zona da Mata e do Vale do Paraíba), durante o século XIX. Através delas,
88TAMBASCO, J.C.V. Op cit, 2007. p. 26. 89Idem, p. 27. 90STEIN, Stanley. Op. cit, 1990. p. 31-2. 91Ibidem, p. 33. 92Cf. FRAGOSO, João. Op. cit. 2001. 93FLORENTINO, Manolo e FRAGOSO, João. Homens de Grossa Aventura. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1998.
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mercadorias iam e vinham do interior ao porto, assim como se fazia, por elas, um fluxo de
capital e créditos.
O café só começa a ter uma projeção nos mercados internacionais a partir do século
XIX, quando alcança a província do Rio de Janeiro. Graças às condições típicas das serras
fluminenses, a cultura tímida que chega ao Vale disputando espaço com as plantações de
cana-de-açúcar, rapidamente foi assumindo a infraestrutura de muitas propriedades
canavieiras e incorporando sua tradição agrária, como a mão de obra escrava e técnicas
agrárias94.
Com as mudanças internacionais do século XVIII, a posição das exportações
brasileiras começaram a sofrer alterações. Entre 1791 e 1807, houve quedas graduais na
produção cubana (abaixo de 1000 toneladas), mas esta se recuperou até 1821, chegando à
marca de 10.000 toneladas anuais95. Entre 1820 e 30, os preços internacionais do café caíram
e Cuba, Jamaica e Java dominavam o cenário mundial de países exportadores. Para
Marquese,96 o café brasileiro se equiparou ao das grandes regiões cafeicultoras do Globo.
Segundo o mesmo autor, esse quadro se ampliava gradualmente.
Gráfico 01
Exportação do café brasileiro (1787-1833) em toneladas.
Fonte: MARQUESE, R; TOMICH, D. Op. cit. p. 355-356
94Idem, p. 18. 95MARQUESE. Rafael Bivar; TOMICH, Dale. Op. cit. p. 360 96Idem. p. 341.
400 15006100
13500
67000
0
10000
20000
30000
40000
50000
60000
70000
80000
1797-1811 1812-1816 1817-1821 1822-1823 1833
41
Marquese ainda aborda que as quedas de preços internacionais acabaram por provocar
um ganho aos cafeicultores entre 1827 e 1830 graças à desvalorização do câmbio.97 Não se
pode esquecer, como já foi abordado, outros fatores que foram importantes para a composição
deste quadro de crescimento, como a geografia do Vale, as matas preservadas garantindo a
fronteira aberta, as estradas e picadas abertas no eixo Minas - Rio e os ancoradouros naturais
dos rios. Essas condições garantiram a “montagem de fazendas com escala inédita de
operação”98.
Entre 1831 e 1833, o Brasil passa a ter um crescimento acelerado na exportação de
café, o que o coloca como o seu principal exportador.99 Entre 1843 e 1846, há uma brusca
queda na exportação cubana e jamaicana; em contrapartida, o café brasileiro eleva sua
exportação distanciando-se dos demais países100. Entre variações de crescimento e quedas
conjunturais, há uma tendência de crescimento de exportações do café brasileiro enquanto os
demais países exportadores ou declinaram ou apenas se estabilizaram, sem qualquer alteração
significativa em relação ao panorama internacional.
Para Topik,101 o Brasil não se limitou a responder a demanda mundial, mas ajudou a
criá-la através da produção de café bastante barato para torná-lo acessível para os membros da
América do Norte e da classe trabalhadora da Europa.
As mudanças sofridas pela economia mundial como, por exemplo, as revoluções
industriais ou as independências americanas - que geraram uma nova dinâmica comercial com
o fim dos exclusivismos de determinados países monopolistas -, as novas formas de transporte
terrestre ou naval, os conglomerados financeiros do século XIX, entre outros fatores, levaram
às sociedades escravistas americanas a uma necessidade de aumentar a produtividade de suas
atividades exportadoras sob o risco de serem completamente retiradas dos mercados
internacionais.
Nesse movimento, os destinos do sul dos Estados Unidos, de Cuba e do Brasil – cada qual se especializando na produção escravista, em larga escala, de algodão, açúcar e café – entrelaçaram-se de modo estreito. Em cada uma dessas novas fronteiras da mercadoria surgiram unidades produtivas
97MARQUESE, Rafael Bivar; TOMICH, Dale. Op. cit. p. 360. 98Idem, p 358. 99LEARNE, C. F. Van. Delden. Brasil and Java: Report on Coffee - culture in America, Asia and Africa (1185). London, W.H. Allne, 1885. p. 253-315. 100Idem. Análise do gráfico do autor . p. 360. 101TOPIK, Steve apud PENDERGRAST, Mark. Op. cit. p. 21. “Brazil did not simply respond to world demand (...) but helped create it by producing enough coffee cheaply enough to make it affodable for members of North America´s and Europe´s working class”.
42
escravistas com plantas inéditas, cujas combinações de terra, trabalho e capital romperam com os padrões anteriormente vigentes no mundo atlântico.102
Para manter-se no mercado, o Brasil, e em especial o Vale Médio do Paraíba
Fluminense, organizou suas produções extremamente especializadas nesse mercado. As
plantations escravistas assumiram proporções maiores, mas, acima de tudo, a escravaria
aumentou em tamanho e se tornou mais concentrada nas mãos dos cafeicultores mais ricos. O
tipo de café mais barato constituía outra estratégia para um mercado recente: atingir a classe
mais baixa da população mundial.
Quanto ao problema da escravidão, alguns trabalhos têm mudado a forma de se
entender o século XIX, como é o caso das reflexões de Dale Tomich103, que, ao demonstrar o
acirramento do processo escravocrata no Brasil, Cuba e Estados Unidos durante aquele
século, evidenciou a própria contradição ao que, até então, se pensava no “fim do processo
escravista” em detrimento à nova ordem mundial. Dentro desta perspectiva, Tomich cria o
conceito de “Segunda Escravidão”, uma estrutura escravocrata do século XIX, na América,
diferente em relação aos séculos anteriores. Diferente porque, enquanto países livres, Estados
Unidos, Brasil e Cuba – enquanto colônia em processo de libertação – tinham, como
objetivos, a inserção no mercado internacional como nações independentes. O processo dessa
inserção se teria dado pelo acirramento da escravidão, segundo o autor.
As transformações internas ocorridas na política norte-americana, em especial a
expansão americana sobre a Louisiana e as invenções como o “Clermont”, de Robert Fulton,
que dinamizaram o transporte sobre as áreas de produção norte-americanas, ampliaram a
capacidade de exportação em momentos de crescimento das economias mundiais.104
Além disso, com a atuação do Império Napoleônico sobre os países ibéricos, houve,
segundo Marquese105, um fortalecimento das elites estabelecidas na América, em especial
Cuba, como também, no caso do Brasil, a transferência do sistema de poder para a colônia
elevando-as como centro de decisões políticas.
Em 1830, a Inglaterra aumenta suas pretensões antiescravistas através de uma série de
medidas dentre as quais evidencia o autor,
102
MARQUESE, Rafael Bivar. O Vale do Paraíba cafeeiro e o regime visual da segunda escravidão: o caso
da fazenda Resgate. Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Sér. v.18. n.1. p. 83-128. jan.- jul. 2010. p. 84. 103MARQUESE, Rafael Bivar. PARRON, Tamis Peixoto. Internacional escravista: a política da Segunda Escravidão. Topoi, v. 12, n. 23, jul.-dez. 2011, p. 97-117. 104ROBERTSON, W. S. Os Estados Unidos da América do Norte de 1789 aos dias atuais. In: LEVENE, Roger. (org.) P. História das Américas. São Paulo, Editora Brasileira, 1965, vol XII. p. 03-339. 105MARQUESE, Op. cit. 2011. p. 100.
43
(...) a Grã-Bretanha intensificou seu papel de protagonista mundial do antiescravismo na década de 1830. A radicalização do movimento antiescravista britânico (com a passagem da plataforma de libertação gradual para a da emancipação imediata), a abolição da escravidão nas West Indies (com o início do processo de aprendizagem aprovado em agosto de 1833) e a fundação da Sociedade Americana Antiescravista em dezembro de 1833 geraram duras reações dentro dos Estados Unidos.106
Já em Cuba, a superação dos conflitos entre escravistas e antiescravistas se deu por
conta de questões políticas em relação ao absolutismo do rei espanhol, culminando com o
resultado de unificação de forças contra a Inglaterra. No Brasil, essa superação se deu
lentamente a partir de acordos com o poderio britânico desde o processo de independência
que visavam conter o tráfico e abolir a escravidão. Algumas leis no Brasil começaram a tentar
minimizar o processo, como foi o caso da lei de 07 de novembro de 1831, que resultou na
proibição do tráfico e na libertação de africanos que desembarcassem no país. Quatro anos
depois, os Saquaremas iniciaram um combate ao antiescravismo nos seus discursos políticos
apoiados pelos cafeicultores do Vale do Paraíba. A ascensão dos Saquaremas garantiu a
continuidade e o aprofundamento do tráfico transatlântico de escravos. Em 1840, mais de
300.000 cativos desembarcaram ilegalmente no país, 60.000 a mais que na década anterior.107
Em 1842, findavam os pactos comerciais entre Brasil e Inglaterra. Esta última exigiu a
inserção de leis abolicionistas em troca da manutenção dos privilégios do açúcar caribenho.
As reações foram imediatas e vários parlamentares chegaram a afirmar que a Inglaterra não
nos poderia retaliar como fez com a China por supor que o Brasil teria apoio tanto dos
Estados Unidos quanto da França.108 De certa forma, havia, no Brasil, um vínculo no discurso
político que pode ser refletido nas ideias do Marquês de Paraná, em 1845, que relacionava a
destruição da instituição escravista com a própria destruição da sociedade brasileira.109 A
partir de 1850, com a decretação do fim do tráfico de escravos no país, houve um aumento
substancial no tráfico interno de escravos, o que acarretou a sua manutenção.
A tensão internacional teria sido superada por essas três regiões distintas, mas que
tinha em comum a manutenção do regime escravista:
Até os anos 1830, portanto, esses espaços criaram marcos legais e amplos acordos domésticos para enfrentar os desafios associados a impasses locais e ao sistema interestatal regulado pela Grã-Bretanha. Cada país mirou, sem dúvida, os eventos ocorridos nos outros lugares e incorporou as experiências anteriores num processo de aprendizagem cumulativa, mas não há evidências explícitas de apoio entre eles no plano internacional.110
106Idem, p. 101. 107MARQUESE, Rafael Bivar. Op. cit. 2011. p. 104. 108Idem, p. 107. 109Idem, Op. cit, 2011. 110Idem.
44
A expansão do café gerou riqueza no Vale do Paraíba Fluminense definindo a
autoridade dos fazendeiros junto à burocracia governamental que daria estabilidade e
sustentabilidade ao Império Brasileiro111. Para Salles112 esses cafeicultores ainda se dividem
em dois grandes segmentos, os que vão se aproximar do Estado pelos meios políticos e por
influências indiretas e os que vão se dedicar exclusivamente à lavoura. Melo113 alerta que o
café foi uma resposta positiva ao Ato Adicional de 1834 que separou a cidade do Rio de
Janeiro da região fluminense. Essa criação teria concentrado o sistema administrativo, os
portos e o centro mercantil, político e cultural e a produção do café no Vale da Província
equilibraria esse efeito sobre o território.
Melo ainda apresenta o resultado dessa concentração em renda per capta pelas
províncias:
Tabela 01
Renda Per Capita das Regiões Brasileiras – 1872.
Em libras Índice Rio de Janeiro=
100% Norte 3,3 19%
Nordeste 4,3 25% Pernambuco 12,1 71%
Leste 12,3 72% Bahia 4 24%
Rio de Janeiro e Minas 17 100% Sul 3,1 18%
São Paulo 3 18% Centro-oeste 0,5 3%
Fonte: MELO, Hildete Pereira. Op. cit. p. 45
A renda per capita do Rio de Janeiro e de Minas Gerais (segundo a autora, Minas se
ligava ao complexo exportador do Rio de Janeiro), supera as dos demais estados pela
dinâmica da exportação cafeeira.
A produção do Vale voltava-se ao porto do Rio de Janeiro, por isso Melo chama esse
fenômeno de Zona Rio114, que é a zona de influência mercantil que o Rio de Janeiro faz sobre
outras áreas de produção ao seu entorno, a saber, o Vale do Rio Paraíba Fluminense e também
111MELO, Hildete Pereira. O Café e a Economia do Rio de Janeiro: 1888/1920. Tese de doutorado, UFRJ, 1993. 112SALLES, Ricardo. E o Vale era o Escravo. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2008 113MELO, Hildete Pereira. Op. cit. p. 43-5 114O termo teria sido inspirado nos trabalhos de C. F. van Delden Laerne, op. cit. 1885.
45
a Zona da Mata Mineira. Essa zona de influência, segundo Melo, correspondia a uma área de
155.000km quadrados tendo, como referência, a estrutura portuária da capital da província.
Esse espaço definia-se no Vale do Paraíba Fluminense115. Os dados extraídos de Delden
Learne mostram que, em 1880, estavam plantados nessa região 700.000 hectares de café que
eram exportados pelo porto do Rio de Janeiro. Só nas fazendas da Província do Rio estavam
produzidos mais de 254.000 hectares e, especificamente no Vale, esse índice é pouco maior
que 149.500 hectares. De acordo com Learne, o Vale supera, em 1883, a produção das demais
regiões da província.
Tabela 02
Quadro de características econômicas das fazendas da Província do Rio de Janeiro em
1883
DISTRITO Número
de Fazendas
Tamanho da fazenda em hectare
Número de arbusto
Número de
escravos
Valor dos escravos em
mil-réis
Valor das fazendas em
mil-réis
TOTAL 360 254.221 50.432.020 18.885 22.855.995 26.668.693
Vale do Paraíba
216 149.833 37.810.543 11.975 13.763.400 186.84.706
% em relação às demais regiões da
Província do RJ.
60 59 75 63 60 70
Fonte: Tabela adaptada de LEARNE, C. F. V. D. Op cit. p. 218-219.
Ao observarmos o Gráfico 02, percebemos que, pela importância econômica, as
fazendas de café do Vale acabaram se tornando mais valorizadas na segunda metade do
século XIX que as demais fazendas de açúcar ou mistas, como também em relação às
fazendas de fora dessa região. Logo, o Vale se tornava uma das principais regiões produtoras
do país por, pelo menos, por 90 anos.
115MELO, Hildete Pereira. Op. cit. p. 74.
46
Gráfico 02
Valor das fazendas de café da Província do Rio de Janeiro em 1883. (valor em mil-réis)
Fonte: Gráfico confeccionado à partir dos dados de LEARNE, C. F. V. D. Op. cit. p. 218-219.
O desenvolvimento da cultura do café e seu ápice foram possíveis por características
peculiares do Vale. Para Gileno de Carli116, o Rio Paraíba do Sul tem um “sentido mais
civilizador de todos os rios. O grande rio foi o motivo de duas culturas, que no tempo
porfiaram numa posição de destaque na economia brasileira... cortando as ondas dos cafezais
e depois a baixada dos canaviais”. Para Saint-Hilaire117, o Rio Paraíba era uma forma de
transporte explorada como alternativa na relação entre capital e interior, facilitando o
abastecimento e exportando mercadorias.
Depois de se estabelecer nas áreas litorâneas, plantadas em lugar que antes a mata fora
derrubada para produção de carvão, o café toma os morros que o Paraíba do Sul corta. Para
Learne118, a “Serra Acima” representa um platô além das terras costeiras distribuídas em vales
que garantem a peculiaridade da produção de café desta região. Esse platô é o berço e a
estrada do Paraíba. No serpentear do rio e no plantio do café no Vale Médio, várias cidades
iam surgindo como Vassouras, Barra Mansa, Valença, Paraíba do Sul e Resende, que
mantiveram, em todo período imperial, o café como principal fonte de renda.119
O auge do período da produção no Vale Médio do Paraíba foi entre 1830 a 1880
quando, segundo Melo, “O cultivo era o negócio mais lucrativo do Império e o Vale do
116Gilenodi Cari apud MELO, Hildete Melo. Op. cit. p. 74. 117Saint-Hilaire apud MELO, Hildete Melo. Op. cit, p. 74. 118LEARNE, C. F. V. D. Op. cit. 263-4. 119MELO, Hildete Pereira. Op. cit. p. 97.
0
2000000
4000000
6000000
8000000
10000000
12000000
14000000
Açúcar Café Café / Açúcar Café Café / Açúcar
outras regiões do RJ Vale do Paraíba
47
Paraíba do Sul foi, por excelência, a terra do café...”120 A família Werneck foi a principal
cafeicultora no início da colonização desta região em especial. Os inventários e cartas da
família Werneck apontam para uma safra de café de 3$000 contos em 1813 e em 1818
apontam para três mil pés de café de sete anos por 6.000$000121.
Segundo Machado122, havia uma intensa luta por terras nos primeiros anos da
colonização, o que resultou em uma série de pendências jurídicas que só começaram a se
resolver por uma ordem de D. Pedro I, que determinou a medição das propriedades e a
demarcação de cada limite. Ainda assim, essa atitude do Imperador foi muito pouco efetiva na
resolução das pendências jurídicas em relação à terra, mesmo quando ele decidiu extinguir, na
região do Vale do Paraíba, a concessão de sesmarias, em 1823. Muitas vezes, a situação se
resolvia fora dos tribunais, com jagunços geralmente contratados por latifundiários. Esse
conflito vai se arrastando até a Lei de Terras, de 1850, que legitimou as sesmarias e garantiu o
preço da terra. Esse embate remeteria ao conceito de Wakefiled, que dizia que a região que
facilitava o acesso à terra não conseguiria captar trabalhadores livres, por isso deveria recorrer
à escravidão. Essa característica fundamentou a organização fundiária no Vale: os grandes
latifundiários se estabeleceram na produção em escala ampla, voltada ao complexo cafeeiro
exportador, e os posseiros menos influentes se estabeleceram em pequenas propriedades
dedicadas ao abastecimento local. A terra concentrou-se e os conflitos diminuíram depois da
aprovação da Lei. O café se alastrava e ganhava mercados internacionais.123
Vale ressaltar que a geografia de Vassouras resulta de movimentos geológicos que
geraram a depressão característica do Vale do Paraíba. Tal fenômeno estendeu-se por uma
larga faixa de território compondo uma região protegida por serras e, ao mesmo tempo, com
terrenos acidentados que, pela a ação dos ventos, se desgastou formando morros redondos.
A região fluminense, entre Resende e Pati do Alferes, provavelmente no mesmo momento do tectonismo referido, intrusões de magma granítico preparariam um futuro leito fluvial, com bruscas mudanças de direção, meandros caprichosos e alguns encaichoeiramentos de corredeiras.124
A riqueza mineral do solo, o clima de temperaturas elevadas, o solo, de maior
profundidade, rico em salitre e argila, formaram a área adequada para a produção de açúcar e,
posteriormente, o café. Para Tambasco,
120Ibidem. p. 84 121MACHADO, Humberto. F. Escravos, Senhores & Café. Niterói, Cromos, 1993. P. 32-3. Associado às informações dos documentos dos Werneck no Centro de Documentação Histórica de Vassouras. 122 Ibidem, p. 78. 123 Ibidem, p. 33-6. 124 TAMBASCO, J. C. V. Op. cit. 2010. p. 22-3.
48
No Brasil, as culturas homogêneas, arbustivas e permanentes, como a do café, não se desenvolveram fundadas em experiência agrícola herdada do século XVIII, nem se beneficiaram das práticas portuguesas do cultivo das vinhas e olivais.125
Essas plantations foram sendo desenvolvidas através de um aprendizado próprio do
cultivo que ganhou força nas “encostas do recôncavo da Guanabara”126 e por ali subiu a serra
até alcançar as terras do Vale Médio do Rio Paraíba.
Já no início da década de 1870, o Brasil produzia aproximadamente quatro milhões de
sacas de café,127 sendo que 75% dessa produção se concentraram na região fluminense. A
evolução era nítida em relação ao Vale durante o século XIX, garantida pelo crescimento do
mercado externo e pela alta de preços da saca de café. Para Sebastião Ferreira Soares,
responsável pelas Notas Estatísticas sobre a Produção Agrícola e Carestia dos Gêneros
Alimentícios no Império do Brasil, 1860:
Desde que o café produzido no Brazil começou a encontrar maior número de consumidores nos mercados europeos, e por essa causa a ser mais procurado nos do paiz, o seu preço, seguindo a lei da demanda, se elevou por fórma tal, que induzio os produtores a fazer a sua cultura em maior escala; e como o lucro proveniente das colheitas era animador, os grandes lavradores de café só de cultiva-lo se occuparão, abandonando em grande parte até a cultura dos gêneros necessários para a alimentação dos seus trabalhadores, e, sem calcularem com as provisões do futuro, ávidos fixarão suas vistas nos vantajosos lucros que obtinhao no presente; e nem ao menos refletirão que, deixando de produzir aquelas espécie se tornavão somente consumidores e concorrentes do mesmo mercado, para onde até então mandavão o excedente do seu consumo, do que infalivelmente teria de resultar a subida dos preços dos gêneros que deixavão de produzir, os quaes se iriao se elevando n´uma tal razão que afinal tenderiao a absorver os lucros provenientes da única lavoura preferida.128
Os índices obtidos neste documento mostram uma evolução tanto na produção quanto
no preço da arroba de café na primeira metade do século XIX, de acordo com a tabela a
seguir. Tivemos um aumento de cerca de 75% na produção em arrobas e de 139% no valor
total da produção.
Tabela 03
Evolução da Produção Fluminense de Café - 1839-1857
Ano Produção em arroba Valor total da produção
em réis
1839-1844 5.693.037 18.371:430$399
1852-1857 9.997.868 43.990:619$200 Fonte: SOARES, S.F. Notas Estatísticas sobre a Produção Agrícola e Carestia dos Gêneros
Alimentícios no Império do Brasil. Rio de Janeiro, J. Vileneuve e Companhia, 1860. p. 20.
125 Ibidem, p. 26. 126 Ibidem. 127 Ibidem, p. 29. 128 SOARES, Sebastião Ferreira. Notas Estatísticas sobre a Produção Agrícola e Carestia dos Gêneros Alimentícios no Império do Brasil. Rio de Janeiro, J. Vileneuve e Companhia, 1860.p. 19.
49
Para Melo, “O café seguiu os passos da lavoura canavieira nas terras do Rio de
Janeiro, começando nos arredores da capital, aproveitando a estrutura de plantação
existente”.129 São fundadas várias fazendas de exploração do açúcar na região, estabelecendo-
se como núcleos de povoamento. Em Vassouras, os latifúndios canavieiros foram as fazendas
Pau Grande, Secretário e Ubá. Como não havia uma grande tradição de produtividade da
terra, aliada ao esgotamento do mercado internacional do açúcar que entrara em crise, entre
outros motivos, pela produção do açúcar de beterraba, não havia mais sentido o investimento
nesta commodity nas áreas do Médio Vale do Paraíba Fluminense. Logo, certos fatores
produtivos foram liberados para que uma nova cultura pudesse florescer naquela região.
Um fator relevante dentro da teoria do efeito de encadeamento está no fato de que a
escravidão se ampliou – e intensificou – com a produção do Vale. A escravidão não nasce,
como já foi abordado anteriormente, por causa da cafeicultura, ou seja, não foi a lavoura
cafeeira que criou a escravidão, muito menos o seu tráfico atlântico, mas, sem sombra de
dúvida, o crescimento do mercado consumidor do café no século XIX não só aumentou como
intensificou os mecanismos de reprodução deste modo de produção.
Escravizar era colocar sob um determinado regime de trabalho compulsório estranho
um indivíduo que, dele, não iria usufruir de nada ou de quase nada. Essa forma de
organização produtiva é comumente chamada de “modo de produção” e teve, em Karl Marx,
seu maior expoente.130 Esse modo de produção envolve os movimentos transatlânticos de
comércio e a distribuição interna dessas mercadorias especiais.
O Modo de Produção Escravista, entre todos os que encontramos ao longo da História da Humanidade, tem como peculiaridade o fato de não se ter consolidado pela interação continuada e consentida dos sujeitos históricos da produção, mas a eles imposto por uma classe dominante e em contextos históricos específicos.131
Por ter estas características, o escravismo torna-se, por natureza, um modo de
produção de alta concentração de riquezas. Longe de ser “novidade”, seu tráfico funcionou
através da atuação de comerciantes portugueses e, depois, de colonos do Brasil e entrou no
Império em momento de pressões internacionais contra sua permanência instituída.
Ao mesmo tempo, havia um novo sentido para o escravismo do Império e, nesse
contexto, estava inserido o Vale do Paraíba e, consequentemente, Vassouras. Logo, uma nova
análise pode ser desenvolvida a partir da ideia que nos apresenta Tomich e Marquese. As
129MELO, Hildete Pereira. de. A Zona Rio cafeeira: uma expansão pioneira. Revista Brasileira de Gestão e Desenvolvimento Regional, v. 4, n. 3 (número especial), ago/2008, Taubaté, SP, Brasil. p. 51 130TAMBASCO, J. C. V. Op. cit., p.105. 131Ibidem, p.106.
50
commodities chains dinamizaram o comércio internacional e parecia que este teria sido criado
unicamente para elas, para o gozo de sua circulação e alcance entre produtores e
consumidores. Porém, parece inconcebível entender o volume de produção alcançado no
século XIX sem entender o desenvolvimento das forças que produziram esse fenômeno
econômico. Entre 1820 e 1835, ocorreram abruptas quedas no preço do café no mercado
internacional que repercutiram positivamente nos ânimos dos cafeicultores do Brasil. (ver
gráficos 03 e 04, seguintes)
a desvalorização cambial favoreceu claramente os exportadores. A série de Luna e Klein se encerra em 1830; a de Nova Iorque, por outro lado, indica alta de quase 30 % nos preços pagos em dólares entre 1830 e 1835. Os índices das exportações brasileiras encontram notável correspondência com esses preços: a produção cresceu sensivelmente nos anos de 1826 a 1828, fruto de cafezais que foram plantados antes de 1823, quando os preços estavam em alta; de 1828 a 1830 (cafezais plantados entre 1824 e 1826, preços externos e internos em baixa), a produção estacionou em torno de 27.000 t; de 1831 a 1834 (cafezais plantados entre 1827 e 1830, preços externos estacionados, mas os internos em alta), saltou de 32.940 t para 67.770 t.132
Gráfico 03
Preço Médio 1821-1880 (Valor de importação do EUA em Dolar)
Fonte: BACHA, Edmar; GREENHIL, Robert. Op. cit. p. 333-4
132MARQUESE, Rafael Bivar; TOMICH, Dale. Op.cit. 355-356.
-
2.00
4.00
6.00
8.00
10.00
12.00
14.00
16.00
18.00
20.00
22.00
24.00
1821
1823
1825
1827
1829
1831
1833
1835
1837
1839
1841
1843
1845
1847
1849
1851
1853
1855
1857
1859
1861
1863
1865
1867
1869
1871
1873
1875
1877
1879
Preço Médio Import. …
Preço Médio 1821
Fonte: BACHA, Edmar; GREENHIL, Robert.
A partir de 1840, Vassouras já exporta em larga escala atingindo o apogeu e, por volta
de 1861 a 1865, consolidou definitivamente o
As sedes das fazendas passaram a refletir a ascensão da produção em larga escala e a
comunidade, agora privada do mercado externo e obrigada a se desprender do tráfico
internacional de escravos, voltava
coloniais. Nas palavras de Salles,
O patriarcalismo e o paternalismo, nas novas condições demográficas e sociais resultantes da extinção do tráfico internacional de cativos, pareciam então, estar perto de moldar uma comunidade escrava mais estável, centrada nacrioulização dos plantéis, no maior equilíbrio em sua composição sexual e etária, no aumento do número de famílias estáveis, na disseminação do cultivo de roças familiares.
Logo, Vassouras despontava rumo ao crescimento e, para Stein,
estrutura geral movimentaram a segunda metade do século XIX na cidade. A retração do
tráfico atlântico se reverteu para o mercado escravista doméstico e os comerciantes
escravocratas ligados ao mercado internacional revertiam seus montantes para o m
financeiro gerando casas bancárias no Rio de Janeiro.
133SALLES, Ricardo. Op.cit. p. 151134Idem, p. 151 135Cf. STEIN, Stanley. Op. cit, 1990.
0
2000
4000
6000
8000
10000
12000
14000
160001
82
1
18
23
18
25
18
27
18
29
18
31
Exp
ort
açã
o b
ras.
10
00
£ /
US
$ 1
0(6
)
Gráfico 04
Preço Médio 1821-1880 (Valor de importação do EUA em Dolar)
Fonte: BACHA, Edmar; GREENHIL, Robert. Op. cit. p. 324-5.
A partir de 1840, Vassouras já exporta em larga escala atingindo o apogeu e, por volta
de 1861 a 1865, consolidou definitivamente o éthos social “senhorial-escravis
As sedes das fazendas passaram a refletir a ascensão da produção em larga escala e a
comunidade, agora privada do mercado externo e obrigada a se desprender do tráfico
internacional de escravos, voltava-se para a mão de obra já reproduzida no país desde te
coloniais. Nas palavras de Salles,
O patriarcalismo e o paternalismo, nas novas condições demográficas e sociais resultantes da extinção do tráfico internacional de cativos, pareciam então, estar perto de moldar uma comunidade escrava
centrada nacrioulização dos plantéis, no maior equilíbrio em sua composição sexual e etária, no aumento do número de famílias estáveis, na disseminação do cultivo de roças familiares.
Logo, Vassouras despontava rumo ao crescimento e, para Stein,
estrutura geral movimentaram a segunda metade do século XIX na cidade. A retração do
tráfico atlântico se reverteu para o mercado escravista doméstico e os comerciantes
escravocratas ligados ao mercado internacional revertiam seus montantes para o m
financeiro gerando casas bancárias no Rio de Janeiro.
. p. 151
, 1990.
18
31
18
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18
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63
18
65
18
67
Exportação bras. 1000£ …
51
importação do EUA em Dolar)
A partir de 1840, Vassouras já exporta em larga escala atingindo o apogeu e, por volta
escravista”.133
As sedes das fazendas passaram a refletir a ascensão da produção em larga escala e a
comunidade, agora privada do mercado externo e obrigada a se desprender do tráfico
se para a mão de obra já reproduzida no país desde tempos
O patriarcalismo e o paternalismo, nas novas condições demográficas e sociais resultantes da extinção do tráfico internacional de cativos, pareciam então, estar perto de moldar uma comunidade escrava
centrada nacrioulização dos plantéis, no maior equilíbrio em sua composição sexual e etária, no aumento do número de famílias estáveis, na disseminação do cultivo de roças familiares.134
Logo, Vassouras despontava rumo ao crescimento e, para Stein,135 as mudanças da
estrutura geral movimentaram a segunda metade do século XIX na cidade. A retração do
tráfico atlântico se reverteu para o mercado escravista doméstico e os comerciantes
escravocratas ligados ao mercado internacional revertiam seus montantes para o mercado
18
67
18
69
18
71
18
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18
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18
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52
Vassouras, cuja prosperidade se encontrava irrevogavelmente comprometida com a monocultura, estava pronta para ampliar ainda mais sua extensão em acres. Com bom crédito no Rio, o fazendeiro de Vassouras incumbiu-se de melhorar e embelezar seu estabelecimento e apurá-lo, um desejo fomentado pelo seu contato mais próximo com a capital litorânea. Consciente da sua nova posição econômica e importância como fazendeiro de café, ele nunca duvidou de suas habilidades em liquidar, com as novas safras de café, as dívidas contraídas.136
O movimento financeiro e produtivo fortalecia-se a ponto de gerar confiança à
movimentação de formas alternativas de crédito, seja por empréstimo de dinheiro, seja por
crédito em conta corrente.
Ampliou-se a exportação e importação de vários gêneros trazendo recursos para
emergência de novos meios de transporte mais modernos, como no caso das ferrovias.
Já a segunda metade do século para a cidade foi curta, seria a era do breve século XIX
de Vassouras, cuja crise assola por volta de 1870 e 1880, mas que também representou seu
apogeu e grandeza. Salles137 divide em quatro períodos identificados o desenvolvimento da
economia exportadora de Vassouras, a saber:
1821-1835: implantação;
1836-1859: expansão do café e da plantation escravista;
1851-1865: apogeu da economia vassourense no século XIX;
1866-1880: grandeza.
Esse crescimento é acompanhado pelo aumento da produtividade média dos escravos.
Salles aponta o aumento de produtividade por pé de café de 118,49 pés para 3800,13 por
escravo entre 1821 e 1876. Essa crescente proporção devia-se ao produto principal ter-se
voltado ao mercado internacional e ser, naquele ambiente externo, uma commodity de
sucesso. Enquanto os mercados internacionais se aqueciam com produtos cada vez mais
baratos e úteis em um dado contexto histórico, mais as plantations de Vassouras
movimentavam-se em direção a esse mercado. Para isso, a aquisição de escravos e a
manutenção dos investimentos pareciam uma constante necessária.
Para Gorender,138 analisando a questão sob o ponto de vista do marxismo, no
escravismo há uma separação entre o os bens de produção e a força de trabalho – justificável
pela própria natureza exploratória do processo escravista –, o que daria uma vantagem ao
proprietário sobre o estabelecimento da mão de obra livre, uma vez que o escravo poderia ser
explorado como capital (porque em pouco tempo se paga como investimento, gerando lucro
posteriormente, além de “ganhar o status” de poder ser hipotecado em caso de necessidade),
136Idem. p. 56. 137SALLES, Ricardo. Op. cit. p. 150 138GORENDER, Jacob. O conceito de modo de produção e a pesquisa histórica. In: LAPA, J. R. do A. Modos de Produção e Realidade Brasileira. Petrópolis, Vozes, 1980. p. 43-65.
53
renda capitalizada (porque gera acumulação de riquezas não só pelo que produz, mas pelo
próprio ser como “mercadoria especial” que pode ser vendida) e reprodução de capital (a
partir do momento em que se estimula a família escrava e, naturalmente, o nascimento de
crianças já na estrutura escravocrata)139.
Na cidade, o acúmulo de escravos gerava uma estratificação social em relação às
riquezas, dividindo os senhores em microproprietários, ou seja, os que detinham de 1 a 4
cativos; os pequenos proprietários, que detinham 05 a 19 cativos; os médios de 20 a 49;
grandes proprietários, de 50 a 99 cativos; e os megaproprietários, com mais de 100 escravos
em seus plantéis. Em geral, os megaproprietários eram uma parcela reduzida da população
produtiva, ocupando cerca de 9% dos produtores locais, enquanto os pequenos somavam
39%.140
Salles141 aponta uma acentuação da concentração de escravos na mão das elites.
Enquanto havia quedas entre os pequenos proprietários, os grandes adquiriam novas peças e
estabilizaram-se depois de 1850. Os megas detinham 50% dos cativos, enquanto os grandes
ocupavam pouco acima dos 20%. Esse capital humano concentrado se transformaria em uma
base econômica de investimento para superar crises no mercado através da hipoteca. O ato de
hipotecá-los garantia não só os meios financeiros para obter crédito como também haveria
possibilidade de resgate do escravo, que poderia ser inserido na fazenda como mão de obra ou
vendido no mercado interno. Stein142 já aponta que a crise das fazendas do café, a partir de
1850, não estaria desvinculada da concentração de produção de café. Muitos fazendeiros
teriam abandonado suas roças de subsistência no objetivo de aumentar as terras cultiváveis
com novos cafezais
Os fazendeiros de Vassouras acreditavam que as crises dos altos preços de gêneros de
subsistência eram passageiras e continuavam apostando na regularização dos preços e na
estabilidade dos mercados de produtos locais. Seus investimentos concentravam-se cada vez
mais nas plantations e conforme a curva de produtividade do escravo aumentava, juntamente
aumentavam os ganhos em escala.
A absorção da mão de obra escrava pelas grandes fazendas na década de 50 e,
posteriormente, pelo empreendimento da ferrovia gerou uma demanda que foi suprida pela
venda dos escravos das fazendas de produção local.143 Isso acarretou a alta dos preços gerada
139Neste último item, apontamos como referência os trabalhos de SALLES, Ricardo. Op. cit. 140Idem, págs 155-6. 141 Ibidem, p. 161. 142STEIN, Stanley. Op.cit p. 74. 143STEIN, Stanley. Op. cit. p. 75.
54
pelos escravos puxados pela economia “mais forte”, o que tornava a produção da pequena
propriedade de gêneros alimentícios impraticável sob o sistema escravocrata. Para Lacerda
Werneck, “Eles ficaram reduzidos a dependentes dos grandes fazendeiros (...)”144. O ano de
1850 foi o ano da grande elevação dos preços agrícolas que se seguiu até 1859. (Ver gráfico
5)
Gráfico 05
Variação do preço dos alimentos (Valor em mil-reis)
Fonte: STEIN, Stanley. Op. cit. p. 76.
144WERNECK, L. Ideias sobre a colonização precedidas de uma sucinta exposição dos princípios gerais, p. 36 e 39 In: STEIN, Stanley. Op cit. p. 75.
1850-1 1854-5 1858-9
Milho (alqueira)
Feijão (alqueire)
Toucinho de fumeiro
(arroba)
Arroz (arroba)
Açucar (arroba)
Carne-seca (arroba)
55
Gráfico 06
Preço no varejo de Vassouras (1850-1861)
Fonte: STEIN, Stanley. Op cit. p. 77.
Segundo Stein145, os pequenos produtores passaram a assumir a função do
abastecimento local para os grandes proprietários e, às vezes, comprava-se da própria capital
da província os gêneros de que precisavam.146
Entre 1850 e 1870, o panorama da região vai mudando gradativamente com as novas
transformações que passam a ocorrer no Brasil. A extensão das áreas agricultáveis – em
especial do café – começar a diminuir em tamanho, obrigando o agricultor a transferir a
fronteira agrícola para outras áreas ou a dinamizar seu capital em outros investimentos como
ações de companhias, mercados financeiros, hipotecários ou títulos da dívida pública.
O capítulo que aqui se encerra dará suporte aos demais, pois não desvincula a região
do médio Paraíba de dois processos que o formaram: a dinâmica do mercado de commodities
no plano internacional – e sua consequência, a ocupação de terras e orientação da produção
para o mercado externo – e a relação do financiamento e dos investimentos do Vale com o
complexo exportador e financeiro do Rio de Janeiro.
No capítulo seguinte, será descrito o contexto que levou à diversificação das estruturas
financeiras e bancárias do país, demonstrando como a sociedade brasileira buscou novas
alternativas para se adequar à crescente demanda de crédito para os investimentos nacionais,
145STEIN, Stanley. Op. cit. p. 74. 146Cf. Inventário do Barão de Itambé. Nota de compra anexo.
0%
100%
200%
300%
400%
500%
600%
1850-1 1855-6 1860-1
Arroz (kg)
Açúcar (@)
carne Fresca (kg)
Milho (alq)
Toucinho de fumeiro
(kg)
Bacalhau (kg)
56
em especial para a produção de café, que ganhava cada vez mais os mercados externos. Mais
à frente, abordaremos o papel do crédito particular e dos investimentos pessoais da elite, que
se vinha configurando como resultado encadeado da necessidade de suprir a demanda dos
vassourenses ligados ao complexo cafeeiro no Rio de Janeiro.
57
CAPÍTULO II – A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO SISTEMA BANCÁRIO E DE
FINANCIAMENTO BRASILEIRO E SUA ATUAÇÃO NO SÉCULO XIX.
58
O que foi exposto no Capítulo I deste trabalho mostra como havia, em Vassouras, um
movimento de ascensão econômica que se perpetuou por quase um século através de braços
escravos, aquecimento das demandas internacionais por parte do produto principal, opção
livre de acesso à terra - e sua valorização posterior - e geografia propícia.
O presente capítulo visa fornecer uma análise dos problemas financeiros do Império
para se entender a dinâmica de investimento dos cafeicultores de Vassouras através das
mudanças que se vão operar no Brasil, em especial na segunda metade do século XIX. Parte-
se do pressuposto de que a cidade está integrada ao complexo cafeeiro e financeiro do Rio de
Janeiro por um lado e pelo aquecimento das exportações em relação ao mercado
internacional, por outro, o que faz acreditar que as mudanças na praça mercantil do Rio de
Janeiro e a história das instituições ao longo do XIX se relacionam com as mudanças de
opções dos cafeicultores e financistas.
2.1. Antecedentes das transformações
A particularidade do café como um produto inelástico gerava sempre um descompasso
entre as alterações de demanda e de produção, no sentido de que a alteração de produção
demorava a responder ao mercado. Além disso, o produto ora estava em ascensão ora sofria
crises inerentes à sua própria natureza ou por fatores imprevisíveis, como pragas e pressões
econômicas externas. Para suprir suas necessidades, os agentes econômicos buscavam formas
de adquirir crédito e financiamento para suas lavouras e para aquisição de bens de uso
agrícola ou pessoal, visto a carência de moeda circulante no período estudado.147
O século XIX foi um tempo de avanços na estrutura financeira do país, os problemas
de financiamentos presentes na colônia teriam que ser superados. O Novo Mundo
gradativamente surgia sobre o Atlântico; negociações, acordos e novas formas de
relacionamentos mercantis estavam se formando. Era um período de transição quando novas
influências e pensamentos econômicos estavam, gradativamente, alterando as formas de
relacionamento.
Os textos de Smith pregavam a livre-iniciativa e tomadas de decisões mais
descentralizadas em relação ao Estado. Ele via, no homem, duas tendências fundamentais, a
saber: a necessidade de poupança e a necessidade de troca. A poupança serviria aos homens
147Cf. PIRES, Anderson. Op. cit. (1993), SAEZ, Hernam Enrique Lara. Nas Asas de Dédalo: um estudo sobre o meio circulante no Brasil entre os anos de 1840 e 1853. São Paulo, Humanitas, 2010. e SALLES, Ricardo. Op. cit. 2008.
59
como um elemento de segurança. O medo da carência de provisões e a incerteza do futuro
deram ao indivíduo a capacidade de criar formas e instrumentos capazes de tornar essa
situação algo sobre o que se possa ter controle ou seguridade. A proposta de troca é bem mais
antiga e vem ao encontro da crescente necessidade do homem como ser social. Cabe ao
comércio148 uma relação de troca de mercadorias umas pelas outras que se acredita serem
mais convenientes para cada parte envolvida.149
Mas como se operariam as relações de troca num mundo em constante
desenvolvimento econômico? E como se operaria o desenvolvimento das áreas de produção
do século XIX que, segundo Marquese150, estariam se inserindo neste mundo que se
estabelecia em mercados internacionais?
Em relação à macroeconomia do Império, para Levy151, a estrutura financeira no
Brasil pode ser dividida em duas grandes partes: as chamadas bolsas de valores e os bancos
comerciais. Segundo a pesquisadora, o aumento institucionalizado de empresas destinadas a
oferecer crédito só se inicia a partir da segunda metade do século XIX. Antes, o mercado de
crédito estava nas mãos de indivíduos que o ofereciam como corretores ou banqueiros. Com a
integração do Brasil aos mercados internacionais, ao longo do Império, a economia deixou de
ser mercantil e o capital comercial passou a se subordinar a uma acumulação capitalista
mundial. Levy defende a formação de um sistema financeiro como “pedra angular” no
processo econômico da esfera política.
Há um fluxo constante do capital produtivo reconvertido em capital financeiro, num contínuo processo de financiamento da reprodução do sistema. O capital financeiro passa a constituir uma parcela do capital total, funcionando de maneira autônoma e assegurando o financiamento das operações econômicas. As disponibilidades monetárias não são mais vendidas ou alugadas como mercadorias e escapam às determinações de equivalência para vincularem-se à produção social, do qual participam através da determinação das taxas de juros. 152
Assim sendo, essas negociações entre os que ofertam o crédito e seus tomadores se
dão de forma direta ou indireta como, por exemplo, através de empréstimos de dinheiro, de
abertura de contas ou de hipotecas, dando suporte aos tomadores desses empréstimos ou
crédito no intuito de se manterem dentro da esfera da vida econômica. Assim, ao mesmo
tempo, se constituem um mercado formal e um informal. 148Usamos aqui o termo de Polanyi que vincula o mercado a alguma atividade cujo objetivo é o ganho, em particular, o ganho monetário. O mercado é uma relação de trocas e, nesse sentido, uma economia de mercado “se origina da expectativa de que os seres humanos se comportem de tal maneira a atingir o máximo de ganhos monetários.” (Cf. Polanyi. Op. cit. p. 88) 149Cf. SMITH, Adam. A Riqueza das Nações. São Paulo, nova Cultural, 1985. 150Cf. MARQUESE, Rafael Bivar.; TOMICH, Dale. In: GRIMBERG, Keila; SALLES, Ricardo. Op. cit. p.341-83. 151Cf. LEVY, Maria Bárbara. História da Bolsa de Valores do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, ABMEC, 1977. 152 Ibidem, p. 04
60
Durante todo o século XIX, o café se torna importante não só no processo de formação
de um mercado fornecedor – e tomador – de créditos como também, segundo Levy,153 na
formação e expansão das bolsas de valores. Mas, antes deste contexto se formar, o panorama
financeiro e bancário do Brasil Império se apresentava de forma bem diferente. Com a vinda
da Família Real para o Brasil, os primeiros bancos são fundados. Para Guimarães154 e Levy,155
foi o café que trouxe a possibilidade de aparecimento dos bancos comerciais particulares, já
que se necessitava de financiamento para sua inserção no mercado internacional. Podemos
notar que, desde o período colonial, havia formas diferenciadas de crédito que se adaptaram
às diferentes realidades históricas e às diferentes particularidades de cada produto ou região.
Para tornar-se possível uma periodização mais detalhada, é da maior importância ultrapassar os limites meramente circulacionistas do capital usurário e considerar o processo produtivo, que cria as mercadorias transacionadas no mercado e, assim, inicia e dá continuidade ao circuito. Essa tarefa só pode ser realizada se, a cada periodização proposta, corresponder um tipo de inter-relação entre as transações financeiras e o processo produtivo propriamente dito. Esse método tem a vantagem adicional de escapar à falsa noção dicotômica que se opõe ao “lado real” ao “lado financeiro” da economia. O segundo elemento a ser considerado na periodização é o Estado, que exerce, a nível jurídico-político, o papel de gestor da oferta de moeda, cuja validade torna socialmente reconhecida. Essa administração resulta das contradições que se manifestam no decorrer da reprodução do sistema e que, por sua vez, garantem e consolidam o poder do próprio Estado. As várias percepções da sociedade sobre a moeda e o crédito, no decorrer do tempo, proporcionaram outro elemento para a categorização dos distintos momentos históricos.156
Durante o período colonial, o que nos mostra Levy157em relação ao crédito é a
especificidade no processo de financiamento como elemento intrínseco às economias de
exportação, como foi o caso do açúcar. O período colonial era muito marcado pela presença
do “agente usurário” como elemento de acumulação prévia para o sistema pré-capitalista. Em
algumas regiões, como em São Vicente e nas demais áreas de produção de açúcar, ainda havia
alguma moeda em prata que facilitava a transação, mas, nos imensos espaços de pouca
presença da moeda, as relações mercantis se faziam a crédito. O açúcar tornou-se um meio de
troca durante o período colonial, porém o estímulo dado às exportações no século XVII,
graças à conjuntura do mercado externo, teria impulsionado a circulação das moedas. Mesmo
assim, tal circulação não atingiu a dinâmica esperada e as contas correntes se tornaram opções
para vendas a crédito não necessariamente monitorizado que, muitas vezes, estavam ligadas
às confrarias religiosas e mercadores. Com a queda nos preços do açúcar nacional devido às
pressões antilhanas, o lucro dos produtores baixou para manter-se em operação produtiva,
153Idem 154GUIMARÃES, Carlos Gabriel. Bancos, Economia e Poder no Segundo Reinado: o caso da sociedade bancária Mauá, MacGregor & Companhia (1854-66). Tese de Doutorado, USP, 1997. p. 51. 155Cf. LEVY, Maria Bárbara. Op. cit. 1979. 156Ibidem, p. 26. 157Ibidem.
61
porém, as taxas de juros mantiveram-se constantes ou aumentaram a lucratividade dos
usurários.
Ao iniciar-se o século XIX, percebemos modificações inerentes à própria mudança do
eixo econômico para as áreas do Rio de Janeiro, da Zona da Mata Mineira e do Oeste Paulista.
Tanto Marcondes como Pires158 abordam a figura dos comerciantes como elementos
dinâmicos no início do processo de acumulação e financiamento da primeira grande produção
do Brasil independente, a saber, o café.
2.2 As relações pessoais de crédito
Os elementos do crédito e outras formas de investimento sofreram mudanças a partir
do século XIX, quando a independência do Brasil forçou o Estado brasileiro a modificar suas
estruturas econômicas do ponto de vista de regulação da nova economia de mercado a qual o
país recém-formado estava prestes a ingressar.
Marcondes159, ao analisar Junia Ferreira Furtado e Katia Maria Abud, afirma que as
novas categorias de agentes, apesar de difíceis de analisar, se dividiam grosso modo em
homens de negócio e comerciantes. Os homens de negócios poderiam ser comerciantes de
escravos, de terras e outros elementos importantes na economia colonial/imperial; já os
comerciantes menores, como vendeiros e quitandeiros, tinham uma esfera menor de atuação
nas regiões. Era comum existir um agente que ligava a fazenda ao mercado internacional, ou
seja, ao efetivo processo exportador. Era o comissário. Ele se enquadrava no primeiro caso e,
em geral, fazia o papel de financista e “catalisador”160 da produção que estava dispersa em
diversas unidades em maior ou menor grau. A figura do comissário, então, foi fundamental
para criar uma padronização no comércio.161
Kuniochi162 acredita que há um desvalimento material, em certos períodos, das
famílias produtoras e a figura do comissário garantiria a transição ou, pelo menos, a
intermediação entre o mundo mercantil com suas cobranças e o mundo familiar com suas
158Cf. MARCONDES, Renato Leite. A Arte de Acumular na Gestão da Economia Cafeeira: formas de enriquecimento no Vale do Paraíba Paulista durante o século XIX. Tese de Doutorado, USP, 1998. e PIRES, Anderson. Capital Agrário, Investimentos e Crise na Cafeicultura de Juiz de Fora (1870-1930). Dissertação de Mestrado, UFRJ, 1993. 159MARCONDES, Renato Leite. Op. cit. 1998. p. 163-5. 160PIRES, Anderson. Op. cit. 1993. p. 48-9. 161Idem, p. 49. 162KUNIOCHI, Márcia Naomi. Os Negócios no Rio de Janeiro, Crédito, Endividamento e Acumulação (1844-1857). < http://www.abphe.org.br/congresso2003/Textos/Abphe_2003_88.pdf> acessado em 13 de junho de 2009.
62
necessidades. Eles eram os homens que se ligavam ao comércio internacional através da
exportação e da importação. Em geral, faziam o transporte de mercadorias do interior da
província para o porto e introduziam produtos variados naqueles locais. Por outro lado,
também traziam algum crédito para os lavradores mais interioranos.
No tocante ao comissário, aborda Guimarães,
No tocante à forma de financiamento para o setor agrícola, essa não se modificou substancialmente com os primeiros bancos brasileiros. Mesmo com o surgimento de novos ativos, analisando os estatutos e os balanços do Banco Comercial do Rio de Janeiro, o mais importante do período 1830/1840, e que serviu de referência para os demais bancos, chegamos à conclusão de que o banco privilegiou principalmente o curto prazo e as atividades comerciais. Mesmo utilizando recursos de terceiros, através dos depósitos à vista, o banco emprestava sob a forma de desconto de letras, e através de um intermediário, que podia ser um comissário ou um outro comerciante ligado ao setor importador e exportador. Se os comissários eram os únicos que estavam avalizados pelo banco para pegar os empréstimos, e eles eram acionistas dos bancos, concluiremos que ao repassar ao agricultor o empréstimo, o lucro da operação ficava com o banco e o comerciante, seu acionista.163
O comissário fazia, no início, uma espécie de representação dos fazendeiros que o
contratavam para realizar a negociação do café com o ensacador. Ele unia as várias produções
existentes que, em geral, se apresentavam sem padronização. Sua ação, como agente do
complexo cafeeiro, ia além das negociações e penetrava nas esferas da própria fazenda ao
financiar a produção – ou parte dela – principalmente nos períodos de entressafra para
garantir sua manutenção.
Nas primeiras décadas de produção do século XIX, era comum a informalidade nessas
relações. Segundo Franco, as “transações se desenvolviam quase inteiramente dentro de
pequenos grupos, entre pessoas interligadas por relações mais inclusivas e mais duradouras
que os contactos formais e impessoais de negócios.”164 A conseqüência de um compromisso
não cumprido era a queda da reputação, no caso do comissário, da reputação profissional, ou a
“desclassificação social”165. Essas relações que, aparentemente, configuram um regime antigo
não são mais do que adequações de propósitos sociais ao propósito de lucro. Na visão de
Franco,
os propalados liames de confiança, solidariedade e auxilio que uniam o fazendeiro e comissário aparecem como uma técnica em que esses componentes da ordem “tradicional” foram reelaborados e transferidos para o plano dos negócios( ...) 166
Estas relações que perpassaram os primeiros contatos entre os homens de negócios não
são próprias do Brasil e, sim, resquícios do passado histórico europeu, como demonstra
163GUIMARÃES, Carlos Gabriel. Op. cit. 1997. p. 55-6. 164FRANCO. Maria Silva de Carvalho. Homens livres na Ordem Escravocrata. 4ª Ed. São Paulo, Unesp, 1997. p. 174. 165Idem 166Ibidem
63
Muldrew167. Para ele, a confiança, como vínculo social, é um fator necessário para as inter-
relações comerciais que são formadas pela boa reputação, a honestidade e a confiabilidade.
Com a complexidade das relações de crédito e o não cumprimento de obrigações, tornaram-se
também comuns os tratados que garantissem as “honestidades”. Isso fazia da reputação uma
garantia, uma forma, uma diretriz de acesso aos empréstimos e créditos. O autor remete às
relações culturais ligadas à formação da questão moral168, mas, ao mesmo tempo, alerta para
uma transformação sócioeconômica quando as relações pessoais passaram a ser vistas como
elementos dentro de uma sociedade que se apresentava cada vez mais inserida na competição
de mercados e nas disputas econômicas. Essas mudanças aumentaram as relações
interpessoais que garantiriam a manutenção das trocas e as renegociações. Os estudos de
Muldrew sobre a Inglaterra nos séculos XVI e XVII o levaram a concluir que havia uma
construção própria dessas relações baseada na cultura florescente nesses séculos.
Havia um comprometimento de fatores morais e religiosos entre o credor e o devedor
na sociedade estudada por Muldrew. A tônica entre o credor e o devedor, muitas vezes, era
perpassada por conceitos do mundo cristão fortemente difundidos em toda a Idade Média. A
existência terrena era encarada como uma relação de crédito, uma cessão de Deus, e o
pagamento se concretizaria na morte de uma vida reta segundo preceitos religiosos
relacionados a padrões de honestidade, ao comprometimento, à responsabilidade, ao zelo ao
próximo. Esse dogma espiritual, naquela sociedade do XVI e XVII, influenciava as relações
de trocas porque eram os aparatos mentais de que a sociedade disponibilizava para garantir
que os empréstimos seriam quitados. Uma vida não condizente com os preceitos de
honestidade poderia ser uma dívida que influenciava a entrada no céu. E o tempo de ajuste da
dívida, de pagamento, na mentalidade cristã, corresponderia ao Juízo Final. Essa crença,
muito divulgada na Europa, servia como “punição” ao mal pagador e ao avarento.
Cabe lembrar que não era só o Juízo Final que representava o “ajustamento de contas”
do homem, mas também o seu momento de morte.
Porque o pecado original foi equacionado com a dívida, o perdão de Deus tinha de ser buscado no cômputo do Fim do Mundo. A vida também foi vista como um empréstimo do Senhor e a morte como um pagamento dessa dívida.
Assim, a ligação, e obviamente relacionada entre dívida e crença constitui um parte essencial da teologia básica cristã. (...) Tanto na teoria jurídica quanto na concepção metafórica sobre a dívida, em verdade na promessa de repetição que foi feita quando os débitos foram realizados.
167MULDREW, Craig. The Economy of Obligation: the culture of credit and social and relations in Early Modern England. Hempshire, Palgrave. p.123-74. 168Em especial, a influência do cristianismo.
64
Como o conceito dívida, a obrigação moral de tal dever era incomum, em que o devedor era subordinado ao credor, desde que ele lhe devia esta dívida, e esse foi certamente verdades para as relações entre o homem e Deus169
Le Goff170, em sua Bolsa e a Vida, descreve essas relações e o drama que os
comerciantes sofriam em seus momentos de morte no que se relaciona, na transição da Idade
Média à Moderna, ao conflito entre pobreza, humildade e avareza com as novas relações de
trocas que se estariam formando como a acumulação de bens e capital.
Com a ascensão das ideias protestantes e do humanismo, começaram a se produzir
escritos que garantissem alguma reflexão sobre a sociabilidade do comércio. Richard
Baxter171, em seus textos editados em 1578, começa uma aproximação das ideias de relações
comerciais com as novas propostas de seu tempo. Para ele, o estado da humanidade não
poderia ser uma realidade sem contratos, portanto, não poderia ser um pecado negociar ou ter
riquezas. Caso contrário, o Evangelho teria destruído as ligações de pleno direito da sociedade
humana. Nesse ponto, o humanismo de Baxter quase remete à livre negociação como direito
natural do homem.
Ainda referindo-se ao ideal cristão, a caridade passa a ser quase um elemento
intrínseco ao fiel e o empréstimo ou crédito, quase uma imposição, uma obrigação de ceder à
quem pede – market of obligation, para usar o termo de Muldrew. Era inaceitável que, tendo-
se condições para tal, fossem negados uma ajuda, um empréstimo ao próximo.
Não se pode deixar de observar que, ao remeter esse pensamento ao estudo de
Vassouras, durante a primeira metade do XIX, a questão da reputação não se restringia
somente ao indivíduo, mas se estendia à família e aos membros do clã, conforme será
apresentado em momento oportuno neste trabalho. Dessa forma, o crédito tornou-se sinônimo
de reputação. Nesses tipos de sociedades desvalidas e estabelecidas em bases de uma
economia moral, as considerações ganham um patamar mais elevado dentro do debate aqui
traçado, já que a segurança material, ou seja, os bens são uma preocupação constante. Eles
nunca poderiam ser tomados como garantias, pois eram difíceis de acumular e, sendo assim,
169MULDREW, Craig. Op. cit. p. 133. “Because original sin was equated with debt, God´s forgiveness had to be sought at the doomsday reckoning. Life was also seen as a loan by the Lord, and death as a payment of this debt. (…) Thus, the twin, and obviously related, notions of debt and belief formed an essential part of basic Christian theology. In the both legal theory an in metaphorical conceptions about debt, the ethical root of the obligation was focused on the duty to replay the debt, rather than the promise to replay which was made when the debt was undertaken (…) With the concept of debt, the moral obligation of such duty was unequal, in that the debtor was subordinate to the creditor as long as he owed him such duty, and this was certainly true of the relationship between man and God.” (Tradução livre do autor) 170 Para maior entendimento do assunto recomendamos a leitura de LE GOFF, Maurice. A Bolsa e a Vida. Rio de Janeiro: Brasiliense. 171BAXTER apud MULDREW, Craig. Op. cit. p. 143.
65
supria-se essa situação com outras formas de garantia social, como a exposição pública dos
acordos.172
Cabe ressaltar que há uma ligação entre as famílias emprestadoras. Era comum uma
família tomar crédito ou empréstimo de outra mais bem estabelecida e emprestar para os
menos estabelecidos na esfera social, gerando uma cadeia de financiamentos e de geração de
créditos crescente. Às vezes, os empréstimos eram especulativos através da variação de juros.
Fontanari encontra exemplos desse fato para o interior paulista.
Como garantia o devedor hipotecou um sítio de cultura na Fazenda Bebedouro, contendo 10.000 pés de café e uma casa coberta de palha. Nota-se que o credor se valeu de uma divisão dos riscos, pois teve acesso a um crédito com taxa de juros de 12% a.a, junto aos comissários Penteado & Dumont, e repassou esse capital a um pequeno cafeicultor local, com juros de 24% a.a..173
Essas características foram mudando conforme o aparecimento e a estabilização de
uma economia de mercado. A substituição da economia moral por uma economia de mercado
– ou a diminuição da atuação das relações morais e éticas por relações mais institucionais ou
ligadas ao pensamento liberal – pode ser entendida através do contexto de desenvolvimento
da Europa durante os séculos XVIII e XIX, como nos mostra Polanyi. Na sua visão174, no
período das grandes civilizações na Antiguidade, e até anteriormente a elas, a economia
comportava-se de uma forma evidentemente diferente daquela encontrada a partir do século
XVII. Discordando de Adam Smith, de que o homem primitivo era propenso à barganha, à
troca e à permuta, ou seja, um homem voltado naturalmente à economia, mas afirmando que
essa era, sem dúvida, uma relação do nascimento do capitalismo, o autor afirma que, na
verdade, toda economia primitiva se baseava não em laços econômicos, mas em fortes laços
sociais, quer fossem eles fomentados pela religião, pelas tradições, pela política local. Cada
comunidade mantinha os laços econômicos de subsistência pelas festas rituais ou tradicionais
de acordo com sua cultura. Enfim, o homem primitivo não era subordinado à economia de
mercado, mas, sim, a economia era inserida e subordinada ao contexto social em que ele
vivia.
“Ele [o homem primitivo] não age desta forma para salvaguardar seu interesse individual na posse de bens materiais, ele age assim para salvaguardar sua situação social, suas exigências sociais, seu patrimônio social. Ele valoriza os bens materiais na medida em que eles servem aos seus propósitos.
172Cf. MULDREW, Craig Op. cit. 173FONTANARI, Rodrigo. O crédito de vizinhança: capitais e reciprocidade na economia cafeeira paulista, 1889-1914. Trabalho apresentado na IV Conferência Internacional de História de Empresas & VI Encontro de Pós-graduandos em História Econômica. USP, 2012. p. 14. 174POLANYI, Karl., Op. cit 2000. p. 65
66
Nem o processo de produção nem o de distribuição está ligado a interesses econômicos específicos relativos à posse de bens.”175
Polanyi176 e Dobb177 defendem a mesma tese de que somente com o advento de um
comércio externo (global trade) houve a mudança qualitativa que favoreceria a formação da
economia de mercado em que as relações de troca, de permuta e de barganha seriam
essenciais para a estruturação social. Esse momento seria a construção do limiar de uma nova
era, uma era que determinaria as condições para o que se chamou de Revolução Industrial e
que tanto marcou a sociedade do século XVIII em diante. A presença ou ausência do dinheiro
não afetavam necessariamente o sistema econômico das sociedades, constituindo apenas base
de troca que favoreceria os mercados locais, de pouca importância e pouco competitivos.
Essa realidade também pode ser percebida no Brasil durante a colônia e no início do
Império, pois era comum as relações pessoais influenciarem fortemente as decisões
econômicas, como nos mostra Oliveira178.
Estamos diante de uma certa coletividade que, mesmo com a presença de uma diversificada hierarquia social, com diferentes níveis de riqueza, e acesso à terra, (...) foi marcada pela constituição de uma forte elite agrária, com fortunas consolidadas na propriedade de vastas terras, grande número de escravos, além da presença de uma cadeia interna de crédito, responsável pelo financiamento da própria dinâmica agrícola local.179
A pesquisadora identificou, em seus estudos para a Zona da Mata Mineira, um
conglomerado de relações familiares perpassadas por casamentos, compadrios ou alianças que
poderia ser a estratégia das famílias para pagamento de dívidas ou acumulação de riquezas.
Esses casamentos se classificariam como “endogâmicos", e seus arranjos poderiam ser feitos
para, em geral, adquirir propriedades territoriais ou alastrar para outro estado, no caso o Vale
do Paraíba Fluminense, a posse da terra. As alianças, muitas vezes, eram realizadas em áreas
geográficas diferenciadas180 e as uniões favoreciam novas relações que poderiam atingir os
fatores econômicos como o perdão de dívidas, os privilégios comerciais entre outras
situações. Por fim, o compadrio era também uma estratégia, as ligações de apadrinhamento
assentavam-se no poder aquisitivo do indivíduo que detinha riqueza.
Kuniochi afirma que essas relações de honradez eram comuns na primeira metade do
século XIX no que se refere ao crédito. Ela as atribuiu às tradições portuguesas que aqui se
175Idem, p. 65 176Ibidem. 177DOBB, Maurice. A Evolução do Capitalismo. Rio de Janeiro, Guanabara, 1987. 178OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de. Negócios de Família: mercado, terra e poder na cafeicultura mineira (1780-1870). Juiz de Fora, Funalfa, 2006. 179Idem, 2006. p. 164. 180Como é o caso relatado da emigração dos produtores e comerciantes da Comarca do Rio das Mortes procurando oportunidades de fronteira aberta na Zona da Mata Mineira.
67
perpetuaram através das medidas de Dom João VI, que formalizou as atividades mercantis
portuguesas através da criação do Tribunal Real de Junta e Comércio, Agricultura, Fábricas e
Navegação.
Nessa época, prevaleciam as regras de conduta pessoal, em que princípios como honra, honestidade e boa fé influíam para consolidar o nome do mercador na praça e perante seus pares. Esses atributos valiam a todos que participavam dos negócios no Brasil, matriculados ou não.181
Logo, a forma de organização desta sociedade era tornar pública qualquer situação
adversa aos interesses das classes dos comerciantes ou mudanças nas relações ou natureza dos
negócios.
Mesmo após a publicação do Código Comercial, que viria a estabelecer as normas
para o desenvolvimento das atuações mercantis, ainda se utilizava o anúncio público, por
meios de jornais, sobre as transações creditícias. Kuniochi relata importante passagem sobre
um desentendimento de cobrança entre José Maria Porciúncula e Manoel Pedro Ferreira
envolvendo, na nota, João Gomes Ribeiro de Avelar, fonte extraída do Jornal do Commercio.
Esse desentendimento iniciou-se por cobrança de dívidas de crédito e terminou em duas
publicações no referido jornal, as duas no mesmo dia 20 de fevereiro de 1845. É interessante
notar que João Gomes Ribeiro Avelar, apresentado no artigo da pesquisadora, era o Visconde
de Paraíba, irmão do Barão de Guaribu, importante nobre cafeicultor de Vassouras, do Barão
de São Luís e da Baronesa de Paty do Alferes. A exposição do crédito era comum e envolvia
mesmo os que ocupavam alta hierarquia na sociedade. Assim sendo, não havia, nesse
momento, uma proteção ao nome e, sim, uma garantia pública dos negócios e de seus
cumprimentos. Apesar de aparentemente se mostrar como uma rede de relacionamento
pautada pela honradez, não se pode deixar de perceber uma intrínseca estratégia de pressionar
os indivíduos a pagarem suas dívidas contraídas.
Mais à frente, em análise de uma execução de dívida, a autora transcreve um
importante relato sobre a exposição que as instituições davam aos devedores: “Serão
arrematadas as casas do falecido José Marcellino Pinto (...). Todas as vendas são para o
pagamento da execução que Antonio Dias de Souza Castro move contra a viúva e filhos. (JC,
11/02/1851)”182. Ao contrário da análise de uma rede social que abrangeria as relações
mercantis, agora, as leis passaram a fragmentar certas relações sociais de segurança e de
proteção expondo a família a uma situação de desvalimento. Isso fazia com que o mercado
181KUNIOCHI, Op. cit, p. 201. 182Idem. p. 203.
68
fosse garantido, balizado em uma Lei Comercial, e as instituições credoras pudessem lançar
mão mais efetivamente de um retorno do seu “capital” investido.
Já Fontanari183, ao estudar Casa Branca, no interior paulista, demonstrou uma forte
atividade creditícia. Segundo sua pesquisa, havia uma concentração de empréstimos na região
ligada não aos bancos de empréstimos, mas, sobretudo, aos financistas locais. Seu estudo, que
abrange a década de 1870 até 1904, fixa a defesa de um autofinanciamento da cafeicultura
que acompanha a conjuntura econômica de cada período.
Uma das colocações é a questão dos vários níveis de empréstimos. A primeira consideração a ser feita é que o crédito no complexo cafeeiro era “multifacetado”, ou seja, subsistiram diferentes modalidades de financiamentos na cadeia creditícia; e que as mesmas guardavam íntimas relações com os movimentos conjunturais. É fato, entretanto, que se houve diversidade quanto à origem dos capitais, as formas de financiamentos mais praticadas foram as hipotecas e os penhores agrícolas, pois em com uma conjuntura marcada pela baixa circulação monetária, somente seria possível a concessão de empréstimos com garantias reais.184
Mesmo em período avançado em relação ao recorte temporal deste estudo, Fontanari
defende a tese de que houve dificuldades na interiorização dos créditos bancários na região
abrindo espaços para a atuação de agentes locais fornecedores. O crédito poderia ser feito em
dinheiro ou em abertura de conta corrente no que ele chama de “crédito de vizinhança”185 que,
por sua vez, apesar de se estabelecer nas relações de confiança, vai além dos vínculos
parentais.
2.3. A segunda metade do século XIX e suas transformações
Ainda que influenciados por certa cultura oriunda da primeira metade do XIX, os
homens de negócios sentiram o processo de mudança nas regras de mercado adequando a
tendência econômica do Império cada vez mais às exigências que impunham os mercados
internacionais.
Algumas mudanças econômicas começaram a ocorrer em meados do século XIX e
movimentaram indivíduos em direção à política do Império justamente no processo de
formação da economia cafeeira. Um desses movimentos foi a forte presença dos ingleses no
Brasil,como ressalta Guimarães186 ao analisar o caso de Samuel Phillips & Co e demonstrar as
operações desta companhia pelo estudo de uma família inglesa de origem judaica que se 183Cf. FONTANARI, Rodrigo. Op. cit. 184Idem. p. 09. 185Ibidem. p. 08. 186GUIMARÃES. Carlos Gabriel. Finanças e Comércio no Brasil da primeira metade do século XIX: a atuação da firma inglesa Samuel Phillips & Co, 1808-1831. XIV Encontro Regional da ANPUH- RJ, 2010. <http://www.encontro2010.rj.anpuh.org/site/anaiscomplementares>, acessado em dezembro de 2011.
69
estabeleceu no Império. O estudo aponta também para o levantamento das tendências da
historiografia, uma em direção à participação mais efetiva dos ingleses nessa primeira metade
do século, em especial no Rio de Janeiro, e outra tendência que era garantida pela forma com
que a operação inglesa evitava o desenvolvimento nacional.
A auto-afirmação em ser judeu fortaleceu a firma comercial e seus negócios, mesmo atuando num mercado hegemonicamente católico e socialmente escravista, como era o Império Luso-brasileiro, depois, o Império do Brasil. Com toda crítica à usura, aos juros cobrados, a firma comercial Samuel Phillips &Co era reconhecida na praça mercantil do Rio de Janeiro, e de Londres, como uma firma financeira. Foi no setor financeiro, mais do que na venda de commodities, que ela se destacou.187
A partir de 1850, a balança comercial brasileira começa a ficar positiva e há um
estímulo ao estabelecimento de novos créditos e operações mercantis. O crescimento
favorável encorajou o investimento em vários setores, em especial o exportador. Novas
modalidades de crédito e de empréstimos surgiram e passaram a concorrer com as notas
promissórias e a letra de câmbio. O vale bancário passou a ser um ativo muito especial porque
foi utilizado no período do Império como alternativa de moeda de crédito.188 Influenciados, na
década de 1850, pelo discurso do Barão de Mauá e pela nova legislação, começaram a
aparecer bancos emissionistas que poderiam colocar na praça tais vales bancários, além de
ações, a ponto de suprir as demandas de crédito.
O começo do longo surto cafeeiro no Brasil, a prosperidade geral do mundo nos anos de 1850/60, a adaptação no Brasil dos princípios do estabelecimento de bancos por meio da emissão de ações, e outros fatores, contribuíram para o desenvolvimento contínuo dos bancos de emissão.189
Uma das propostas levantadas por Mauá juntamente com negociantes favoráveis ao
desenvolvimento financeiro era defender a tese da livre associação ou a garantia de
associações de capitais através das sociedades anônimas como elemento para manutenção do
crescimento econômico. Para eles, a associação anônima garantiria o fortalecimento do
investimento e o “progresso”. Muitas casas bancárias surgiram por essas associações. Outra
medida importante para o saneamento financeiro se dá em 1851, quando o governo autoriza o
Banco do Brasil e, posteriormente, o Banco de Pernambuco a emitir vales que garantiriam
uma canalização dos investimentos aos bancos.190
Essa ampliação do poder bancário fez com que, entre 1841 e 1854, o número de
estabelecimentos no Brasil crescesse de 1 para 5, conforme evidencia Pelaez e Suzigan191.
187Idem 188GUIMARAES, Carlos Gabriel. Op. cit. 1997. p. 57. 189PELAEZ, Carlos Manuel e SUZIGAN, Wilson. Op. cit. p. 76 190Idem, p. 77. 191Idem, p. 79.
70
Vale lembrar que não havia, até 1850, qualquer legislação específica que garantisse o
funcionamento das operações de comércio ou das associações, as chamada sociedades
anônimas.
Era comum, antes do estabelecimento dos bancos, que os comerciantes e comissários
assumissem os empréstimos e créditos necessários ao desenvolvimento da economia, assim
como transações em conta corrente, em especial ao setor agrícola. Muitos bancos se formaram
a partir da ligação ou da associação destes indivíduos.
Note-se que era comum o financiamento do setor comercial, ligado ao comércio
exterior, em detrimento do setor agrícola que, muitas vezes, carecia de crédito.192 Esse crédito
era suprido ou pelos empréstimos locais ou pelos comissários do café. Os prazos poderiam
variar de acordo com cada situação, região ou momento histórico. Para Pires,193 o crédito
exercido pelos comissários poderia ser a curto prazo e passava a ser “identificado como
movimento de giro ou a reprodução simples da unidade.” Essa forma de crédito era muito
comum no Vale do Paraíba Fluminense e Paulista. Sua desvantagem era ser feito na base da
remessa de café que, por vezes, se tornava irregular.
Marcondes identifica o “vácuo” do sistema bancário como condição para a
manutenção do crédito pessoal que, por sua vez, promoveria um processo de acumulação.
Entretanto, a inexistência de um sistema bancário desenvolvido abriu oportunidades para as pessoas com disponibilidades de recursos para realizar esse financiamento. Destarte, a experiência da continuidade das condições propícias à cafeicultura e a reduzida oferta de crédito resultaram em empréstimos efetuados a taxas de juros elevadas e a prazos curtos.194
Outra forma de crédito levantada pelo pesquisador teria sido a de longo prazo,
geralmente utilizada não para suprir as fazendas com produtos necessários à sua reprodução,
mas para investimentos de maior vulto como, por exemplo, o início de uma nova plantação de
café ou a compra de propriedades produtoras.195
Para manter o financiamento tanto em dinheiro quanto por crédito em conta corrente,
os comissários precisavam de vultosas quantias de dinheiro, muitas arroladas no comércio de
café. Havia um duplo ganho na figura do comissário: o primeiro, como comerciante do café
que, através da comissão, dava-lhe lucros sobre a venda; o segundo estaria na reinserção do
capital no complexo cafeeiro sob a forma de crédito ou em empréstimo a juros, o que lhe dava
um retorno sobre o montante emprestado.
192GUIMARAES, Carlos Gabriel, Op. cit, 1997. p. 58. 193Cf. Cf. PIRES, Anderson. Op. cit,, 1993. p. 49. 194MARCONDES, Renato Leite. cit. 1998. p. 175. 195Cf. PIRES, Anderson. Op. cit, 1993. p. 50.
71
Para Pires196, as possibilidades de crédito iam além da figura do comissário. Existiam
outros agentes, como os chamados “capitalistas”, que eram pessoas que emprestavam seu
capital por um juro estabelecido em um intervalo de tempo. Às vezes, suas atividades pessoais
no século XIX se restringiam a emprestar seu dinheiro e a esperar o retorno financeiro,
vivendo quase exclusivamente dessa atividade. Em outros casos, suas atividades dividiam
espaço como outros negócios, como a própria cafeicultura, comércios ou outras atividades
agrárias.197
Havia também aqueles que usavam recursos oriundos de heranças e dotes enxergando,
na atividade credora, um importante elemento para inversão de capital além dos cafezais.
Mas a situação nem sempre lhes era favorável, em especial aos tomadores de
empréstimos. Os prazos dados pelos comissários e comerciantes em geral eram curtos. Por
isso, qualquer atraso nas colheitas ou problema das safras geravam estagnação nos
pagamentos comprometendo o credor e o devedor. Já os empréstimos a longo prazo, praticado
em geral pelos “capitalistas”, eram caros. Para Saes, a taxa de juros girava de 12 a 18% ao ano
para São Paulo.198
Pires demonstra que, na região da Zona da Mata Mineira, a situação era semelhante à
de São Paulo. Para o pesquisador mineiro, a atividade creditícia nas áreas de cafeicultura da
Zona da Mata atendeu a uma dinâmica própria gerando possibilidades de crédito a partir da
origem local. E, muitas vezes, “as demandas e ofertas de liquidez” coexistiam e se efetivavam
em um mesmo espaço.199
2.4. A questão dos bancos e das casas comerciais
Tanto o Barão de Cairu quanto o Conde de Linhares já apontavam em direção da
necessidade de uma organização monetária no Brasil. O conde acreditava que o sistema
bancário e as instituições creditícias eram um fator importante no processo de modernização
econômica. Linhares era leitor de Smith e o economista escocês acreditava que
Embora o papel-moeda devesse ficar muito mais circunscrito à circulação entre os próprios comerciantes, os bancos e banqueiros poderiam ainda estar em condições de dispensar mais ou menos a mesma assistência à indústria e ao comércio do país, como tinham feito quando o papel-moeda era quase a única moeda em circulação. (...) Embora, portanto, não se permitisse emitir qualquer papel-moeda, a não ser em quantias tais que se circunscrevesse em certa medida à circulação entre os comerciantes, ainda assim, seja em parte para o desconto de letras de câmbio reais, seja também para
196Idem, p. 51 197Idem, p. 51 198SAES, Flávio Azevedo Marques apud MARCONDES. Renato Leite. Op. cit, 1998. p. 178. 199PIRES, Anderson. Op cit, 1993. p. 52
72
emprestar através de contas de caixa, os bancos e banqueiros poderiam ainda estar em condições de liberar a maior parte desses comerciantes da necessidade de conservar uma parte considerável de seu capital sob a forma de dinheiro não aplicado e disponível para atender a pedidos ocasionais. Poderiam ainda estar em condições de dispensar a máxima ajuda que os bancos e banqueiros podem, com justeza, dar a todos os comerciantes.200
Neste contexto, o Banco do Brasil nasce como um grande financiador das altas
despesas do governo – os volumes de dinheiro necessários para financiar o comércio exterior,
a exportação de manufaturas nacionais devido à necessidade de capital de giro – e a promoção
de poupança e capital. A estrutura financeira do banco no momento da criação correspondia a
1200 ações a 1000 contos de réis cada, porém novas ações poderiam ser criadas.201 Antes das
legislações que regulassem as transações bancárias e de investimentos, o Banco do Brasil já
tinha permissão de realizar o redesconto de letras de câmbio, juros hipotecários, depósitos de
metais preciosos, diamantes e dinheiro, além de emissões de moeda e operações de câmbio.202
Conclui-se que a estrutura financeira do país teria surgido como um suporte necessário
à própria realidade de desenvolvimento da corrente economia do século XIX e sua amplitude.
A organização de uma estrutura financeira que ampliasse o acesso ao crédito garantiria opções
para investidores e tomadores de créditos. Mas, para Levy, houve um descompasso entre
essas estruturas nascentes, originadas de intervenções desordenadas do Estado, as políticas
monetaristas ortodoxas e a introdução do capital internacional.203
O primeiro Banco do Brasil é um exemplo deste processo. Seu objetivo era subsidiar
as contas públicas, em especial as que se organizavam em torno do eixo mais importante do
país naquele momento, a província do Rio de Janeiro. A então sede do governo imperial
concentrava não só a elite aristocrática, oriunda dos últimos dias da colônia, como também se
constituía como principal eixo econômico, já que sua formação como área politicamente
estratégica teria, como objetivo, a fiscalização da região mineradora.
Em relação à natureza da economia, o Banco do Brasil representa uma alternativa à
mentalidade da época ao introduzir “novas formas” de operação do crédito em detrimento ao
monetarismo até então vigente.
A estreita organização financeira colonial era substituída por uma instituição de crédito organizada para aumentar o meio circulante. Como instituição, o Banco do Brasil representou uma vitória contra a mentalidade metalista ainda dominante nos homens de Estado em Portugal, pois dava ênfase ao crédito e à circulação de mercadorias, reservando o ouro ao pagamento das importações.204
200SMITH, Adam. Op. cit, 1983. p. 328. 201Cf. SUZIGAN, Wilson. & PELAEZ, Carlos Manuel. Op. cit, p. 49. 202Idem, p. 49. 203LEVY, Maria Bárbara. Op cit, 1977 , p.47. 204Idem p. 50.
73
O descompasso existente entre as reservas do Banco do Brasil e as contas do Real
Erário gerava pressões que, muitas vezes, superavam a capacidade creditícia do banco. Além
disso, como ainda era instável sua atuação e baixa a liquidez na praça, não havia grande
procura em relação às ações do banco. A saída foi, então, as emissões de notas do banco.
A realidade é que a instituição passou a financiar a emissão de divisas para os
mercados internacionais – em especial, na manutenção da escravidão e na compra de produtos
ingleses –, além da defasagem oriunda das crises no processo de independência, gerou-se uma
substituição monetária por situações creditícias. Porém, as pressões do próprio Estado na sua
busca pelo crédito somada à dívida alta asfixiaram o crédito a particulares. O Banco do Brasil
logo seria liquidado, no ano de 1833, arrastado a uma crise pelas agitações políticas e guerras
no sul do país, entre elas, o financiamento da Guerra da Cisplatina (1825-1828).205
Antes de 1850, o sistema financeiro brasileiro funcionou sem nenhuma legislação
específica. A carência de papel-moeda circulante fazia com que os bancos operassem por uma
série de ativos e créditos gerais, como as notas promissórias e as letras de câmbio. A expansão
da agricultura e o crescimento geral das exportações careciam de constante giro de capital
realizado graças aos vales bancários que, segundo Guimarães, circulavam em toda
província.206
O capital passa, então, neste período, a existir em duas realidades: nas mãos de
particulares e como capital bancário ao se institucionalizar através de uma série de legislações
muito específicas, como o Código Comercial, a Lei de Terras e as leis abolicionistas. Essa
legislação aparece como forma de legitimar as práticas financeiras que estão surgindo mais
intensamente no século XIX. Ela garantiu o fortalecimento de práticas de crédito e as atuações
financeiras então defendidas pela classe dos proprietários.
O problema da emissão de moeda e da difusão do crédito se tornou mais crônico a
partir de 1853. A escassez, unida ao crescimento econômico movimentado pelas demandas
externas, gerou a necessidade de ampliação da oferta de moeda. Em torno disso, o governo do
Rio de Janeiro se viu obrigado a repassar para os bancos o dinheiro necessário, mas somente
Mauá o recebeu e em parte.207 Então, houve a necessidade de se monopolizar o banco
emissor. Para o Marques de Itaboraí, a concorrência dos bancos particulares em emitir o
crédito era a causa do descontrole e das crises comerciais.208 Surgiu, então, um projeto:
205Idem, p. 51-2 206GUIMARÃES, Carlos Gabriel. Op. cit, p. 53. 207SUZIGAN, Wilson. & PELAEZ, Carlos Manuel. Op. cit. p. 78-83 208Idem, p. 80.
74
As operações básicas do Banco [do Brasil], seriam as de depósito, redesconto e emissão de notas. O capital fixado em 30.000 contos para dar início às operações, mas poderia se aumentado posteriormente. O presidente do Banco seria nomeado pelo Imperador dentre os acionistas que tivessem 50 ações ou mais. O Banco emitiria notas, conversíveis à vista em ouro ou papel constituindo-se em moeda legal. A emissão total de notas deveria ser inferior ao dobro do fundo de capital, a não ser que houvesse autorização especial do governo. O Banco substituiria as notas em circulação pelas de sua emissão no montante de 2.000 contos por ano.209
Ainda em 1853, o Banco do Brasil, pertencente a Mauá, e o Banco Commercial do Rio
de Janeiro se fundiram para formar um só Banco do Brasil monopolizado pelo governo. Entre
1853 a 54, o Banco cumpriu a função de diminuir a escassez de crédito. Executou, naquela
data, o redesconto de 99 mil contos de réis210, considerado uma boa soma para o período.
Acrescente-se a isso, entre outras operações, a geração de créditos para as casas comerciais do
Rio de Janeiro, cumprindo, uma de suas principais funções: aumentar as formas de acesso a
esse recurso financeiro que, neste caso, teria sido para pequenas e médias transações.
O então segundo Banco do Brasil conseguiu suprir aquilo em que o primeiro não teve
êxito. Durante as atividades do primeiro banco, as casas bancárias atuaram como credoras, em
especial, às práticas mercantis. O próprio Banco Comercial do Rio de Janeiro emitiu vales
com rendimentos de 2% ao ano que, apesar de renderem muito pouco, atraíam investidores.
Para Levy, a “criação deste ativo financeiro distribuído e controlado pelo banco fornece um
quadro da tentativa de adaptação desta instituição financeira às reais necessidades de
endividamento da economia.”211
Guimarães e Suzigan & Pelaez apontam para situações diferenciadas em relação ao
lastro monetário do Brasil durante o século XIX. Para Guimarães,
A carência do meio circulante, ou seja do papel-moeda em circulação, e o crescente giro dos negócios, ligados à expansão do comércio e da agricultura, fizeram com que os vales bancários circulassem pelas províncias. Embora não pudessem ser utilizados na compra de títulos da dívida pública interna emitidos pelo governo, os vales bancários tornaram-se tão importantes quanto esses títulos...212
Já para Suzigan e Pelaez,
A taxa de crescimento do estoque da moeda acelerou-se significativamente no período de 1814/21, quando o estoque de moeda aumentou à taxa média anual de 21,1%. Taxas tão elevadas somente se experimentaram durante as duas guerras mundiais e no atual pós-guerra – períodos caracterizados por inflação acelerada. Contudo, boa parte de tal expansão pode ser explicada pelo baixo nível inicial do estoque de moeda. Conquanto não se disponham de estimativas razoáveis do nível de preços, os registros históricos conhecidos seguem de maneira indiscutível uma rápida inflação. Esse comportamento foi consequência de descuidada política inflacionária do Governo.
209Ibidem, p. 80-1. 210Ibidem. p. 82. 211LEVY, Maria Bárbara. Op. cit, 1977, p.54. 212GUIMARÃES, Carlos Gabriel. Op. cit, 1997. Pág.
75
Com a declaração de independência de 1822, o primeiro imperador prosseguiu com a política inflacionária. De 1822 a 1829, o estoque de moeda cresceu à taxa média anual de 10,0%, o custo de vida no Rio de Janeiro a 12,9% e a taxa de câmbio ajustada pelos preços por atacado na Inglaterra a 7,9% ao ano. Paralelamente, a taxa de câmbio do mil-réis depreciava-se à taxa média de 8,5% ao ano.213
Em suma, entre 1828 e 34, os estoques de moeda cresciam de forma livre, pois não
havia bancos no Brasil (1830-8) que controlassem tal processo; mas, de 1839 a 1851
aparecem vários bancos emissores.214 Até 1853, o Banco do Brasil mantinha o monopólio da
emissão de créditos. Porém, nesse ano, Souza Franco, proeminente economista liberal e então
Ministro, começou uma oposição à Lei Bancária de 1853 que estabelecia direitos de
exclusividade do Banco do Brasil nos negócios bancários, quebrando as intenções do
conservador Visconde de Itaboraí. Ocorreu, então, um conflito em relação ao fluxo de
moedas, pois, ao mesmo tempo em que o Banco do Brasil era a unidade emissora, os bancos
particulares também emitiam seus estoques, fazendo com que o governo perdesse o controle
da situação.215
Como a autorização de bancos de emissão conflitava com a lei bancária de 1853, acabava privando o Governo do controle no estoque de moeda e impossibilitava-o de administrar as variáveis da economia. (...) somente um estoque de moeda predominantemente metálica poderia fornecer condições para que se efetuassem transações com estabilidade e pudesse haver continuidade no crescimento. Essa política impediu, na prática, novas emissões enquanto os bancos não tivessem a capacidade de efetuar a troca de suas notas por moeda metálica, para alguns significou um entrave ao desenvolvimento do sistema bancário e da própria economia brasileira.216
No contexto, a década de 50 foi marcada por um debate entre os defensores da
pluralidade de emissões e os centralizadores. O principal argumento dos adeptos do
pensamento da pluralidade bancária era a facilidade que o crédito alcançaria. Haveria maior
liberdade das casas bancárias em emitir os créditos sem as barreiras burocráticas e, com essa
atuação, se poderiam vencer as distâncias inerentes à própria dinâmica da demografia e da
produção do Império. Por outro lado, os metalistas defendiam que o crédito deveria ser
amplamente retraído sob a alegação de que, caso fosse liberado, haveria descontrole
econômico. Os títulos, então, deveriam convertidos em ouro para facilitar o processo. Houve
um grande debate a respeito de qual política adotar, mas era inegável para todos os deputados
envolvidos que qualquer decisão atingiria um grupo de agentes econômicos em especial.
Aborda Saez que:
213SUZIGAN, Wilson & PELAEZ, Carlos Manuel. Op.cit, p. 33. 214Idem, p. 34. 215Ibidem,. p. 87. 216SÁEZ, Hernan Enrique Lara. Op cit, p. 29.
76
É desta forma que “os capitalistas” aparecem nos discursos associados a valores positivos. Eram eles que investiriam os capitais permitindo “desenvolver a riqueza pública, e na execução prática da obrigação de que se encarregam de fornecer aos mercados o meio circulante necessário” através dos bancos criados por eles. Admitindo que existiam algumas figuras-chave, agentes inseridos na sociedade que pela relevância “naturalmente” obtida seriam promotores do bem comum.217
Os deputados acreditavam que a política de desenvolvimento creditício seria viável
apoiando os capitalistas que, por sua vez, dinamizariam os créditos de variadas formas. Na
transcrição do discurso do deputado Joaquim Villela de Castro Tavares, feita por Saez, pode-
se notar que o governo acreditava nas habilidades dos negociantes locais para fazer valer a
política econômica de melhoria das condições de liquidez,
Porque elas giram só entre pessoas de certa ordem, são empregadas em grande (sic) pagamentos ou em troco, e as pessoas que as recebem conhecem perfeitamente essas notas, se têm meios de verificar se são verdadeiras ou falsas; se o nobre deputado levar uma nota de 200$ ou 500$ a um negociante, verá que ele conhece todas as minuciosidades da estampa. Ora, isto não acontece com as notas de pequeno valor, porque essas giram por todas as mãos. E isto é tanto verdade, que a falsificação dá-se principalmente nas cédulas de 1$ e 2$ sem que tenham sido impressas por estampa, cédulas até feitas com lápis; levam-nas de a uma quitandeira, a uma pessoa que não tem conhecimento de notas, e elas aceitam com a maior facilidade possível; o que não acontece com as notas de grande valor.218
A liquidez da moeda pesava em vários aspectos da economia, não só no financiamento
direto dos produtos de exportação do país, mas também na própria dinâmica cotidiana das
regiões. Para Granziera o cultivo dos gêneros destinados ao consumo da fazenda ia sendo
substituído pelos plantios específicos de exportação219. Uma nova realidade ia surgindo
através da separação entre as unidades produtoras de gêneros de exportação e as unidades
produtoras para o consumo interno. Nessa análise, continua Granziera, o distanciamento entre
as unidades exportadoras e de abastecimento interno exigiu uma nova dinâmica de
especialização e um aumento da quantidade de cativos e provocando o encarecimento dos
produtos dos gêneros alimentícios. Esse contexto descrito implicava a necessidade de moeda
para o financiamento do tráfico interno bem como para a compra de insumos alimentares para
os próprios cativos, que agora estavam em maior número. Os alimentos tendiam a encarecer
pela demanda crescente e pela escassez de oferta gerada pela especialização da
cafeicultura.220. Essa realidade foi demonstrada anteriormente por Stein, neste trabalho, para
Vassouras.
Já do ponto de vista da esfera do Estado em relação ao contexto geral da estrutura,
pela análise de Saez221, os deputados acreditavam que havia um corpo separado na esfera
217Idem. p. 116. 218Idem, p. 118 219GRANZIEIRA, Rui. Op cit, 1976. p. 19. 220Idem, p. 19. 221Cf. SÁEZ, Hernan Enrique Lara. Op. cit. e SALLES, Ricardo. Op. cit.
77
social que primava pelo desenvolvimento econômico e financeiro. Seriam esses os capitalistas
e comerciantes que, em busca das riquezas e das operações com o capital, estariam em
patamar superior às massas, porém não “desvinculado” delas222. Essa noção, sob uma ótica
diferente, encontra-se em Salles, que defendia a divisão da elite de Vassouras assentada em
dois grupos: produtores, que se envolviam com as questões políticas; e os que se afastavam
desse corpo e se especializavam nas questões produtivas, mercantis e financeiras, incluindo a
geração dos créditos.
Assim, o Código Comercial Brasileiro que, segundo Guimarães223, teria sido
elaborado por uma comissão composta por notáveis representantes do partido conservador e
por comerciantes ligados à praça mercantil do Rio de Janeiro, começou a estipular a
regulamentação da profissão de banqueiro e das operações feitas pelos bancos. Houve
também a diversificação dos ativos financeiros. O Código estabeleceu as formas dos contratos
mercantis, as regras de hipoteca, o penhor e a formação das companhias comerciais. Os
bancos tiveram garantida a mobilização dos créditos seja por forma de depósitos de capitais
de terceiros, seja por empréstimos dos valores requeridos.
As hipotecas serviam como garantia de obrigações de dívidas ou estabeleciam-se
como contratos utilizados para assegurar as obrigações de dívidas feitas. Havia, na sociedade
brasileira, antes da promulgação do Código Comercial, um apreço pelos bens de raiz. Terras,
escravos e moradia eram, sem sombra de dúvida, fundamentais para a sociedade agrária
exportadora. Logo, antes de 1850, era comum a prática da hipoteca dos bens de raiz, já que
não havia maior diversificação dos ativos nesse período. 224
Outro fator recorrente para a diversificação dos ativos e como recurso de crédito foi o
penhor mercantil. Esse se fazia pelos chamados bens móveis em garantia a uma obrigação
comercial. Esses bens móveis poderiam ser mercadorias, títulos, ações de companhias e
empresas, porém escravos e animais não poderiam objetos do penhor mercantil.
Art. 271 - O contrato de penhor, pelo qual o devedor ou um terceiro por ele entrega ao credor uma coisa móvel em segurança e garantia de obrigação comercial, só pode provar-se por escrito assinado por quem recebe o penhor.
Art. 272 - O escrito deve enunciar com toda a clareza a quantia certa da dívida, a causa de que procede, e o tempo do pagamento, a qualidade do penhor, e o seu valor real ou aquele em que for estimado; não se declarando o valor, se estará, no caso do credor deixar de restituir ou de apresentar o penhor quando for requerido, pela declaração jurada do devedor.
222Para Saez essa elite estava dentro de um mesmo corpo social, mas destacava-se por sua especialização em um determinado setor que não era o interesse de todos. 223GUIMARÃES, Carlos Gabriel. Op cit, 1997. p. 86. 224Idem. p. 89
78
Art. 273 - Podem dar-se em penhor bens móveis, mercadorias e quaisquer outros efeitos, títulos da Dívida Pública, ações de companhias ou empresas e em geral quaisquer papéis de crédito negociáveis em comércio.225
Já a organização das sociedades em Companhias de Comércio ou em sociedades
anônimas dá outra tônica ao capital. Essas se definem como sociedades compostas por um
grupo de homens, juntamente com seus investimentos e de forma organizacional, para
empreender alguma atividade útil. A vantagem das sociedades anônimas era que poderiam
delegar à população (que tinha capital) suas ações e a quantidade delas limitaria aos sócios a
esfera de atuação nessas companhias. A importância desta lei recai na mobilização de capital
associado que iria movimentar, pelo menos em parte, os negócios do café, mesmo que
indiretamente, através da atuação dos comissários. Com as dificuldades do Banco do Brasil
em promover uma efetiva política monetária, os bancos comerciais começaram a atuar na
Praça do Rio de Janeiro captando depósitos de capitais e revertendo-os aos que buscavam
financiamento. De acordo com Guimarães226, tais atividades foram regulamentadas pelo
artigo 19, do Decreto n° 737, de 25 de novembro de 1850.
A legislação facilitou o processo de diversificação dos investimentos e deu um novo
aspecto ao mercado financeiro no Brasil. Havia uma instabilidade financeira em relação aos
órgãos oficiais de crédito. A carência de financiamentos abriu margem para que agentes
particulares, em especial antes de 1850, pudessem ocupar essas lacunas e suprir a demanda de
crédito em uma economia crescente no Vale do Paraíba. Essa era uma economia que, ao
mesmo tempo, recebia influência dos mercados internacionais de commodites e neles
influenciava uma vez que, graças à escravidão, terras livres, financiamento e crédito,
conseguia concorrer e baixar os preços de seu produto, contribuindo para a popularização do
café enquanto gênero de exportação.
O crédito no século XIX, em especial na sua segunda metade, assumiu uma função
primordial no desenvolvimento da economia cafeeira. Essa mudança foi alcançada devido ao
aumento do capital no país que, como conseqüência, gerou uma substancial condição de
crédito, começando gradativamente em meados do século XIX, pois antes havia escassez de
bancos em toda região do Vale do Paraíba tanto o Fluminense quanto o Paulista. O acesso ao
crédito, nesta fase, não era muito fácil, pois era assegurado por hipotecas das propriedades
225Código Comercial Brasileiro. < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L0556-1850.htm> 226GUIMARÃES, Carlos Gabriel. Op. cit. p. 89
79
rurais. Em alguns casos, percebemos que se hipotecavam escravos, o que começou a se tornar
uma prática mais intensa entre os fazendeiros. 227
O sistema de crédito hipotecário, oferecido pelos bancos e garantido por esse
movimento de diversificação da atividade financeira, teve seu inicio na cidade do Rio de
Janeiro e foi-se proliferando por todo o Vale, atingindo grandes extensões, cortando o Rio
Paraíba, atravessando estados. O crédito hipotecário era uma saída ao financiamento pelo seu
prazo estendido e pelas garantias que exigia, em geral, propriedades. O tempo médio para os
fazendeiros quitarem suas dívidas com os bancos variava de 2 a 4 anos, oscilando as taxas de
juros de banco para banco mas, grosso modo, podemos classificá-las com uma variação de
6% a 15% ao ano dependendo da região ou da cidade. Geralmente, o Vale do Paraíba
Fluminense seguia uma tendência e o Vale do Paraíba Paulista seguia outra228 de variações de
juros, mas seguiam o mesmo padrão de crédito hipotecário. Percebe-se que, quanto maior era
a garantia emprestada, maior era o prazo para ser pago o empréstimo229.
Mas existe uma mudança de comportamento de empréstimos apontada por Granzieira.
Segundo o autor,
Empurrado cada vez mais para longe dos centros exportadores, o fazendeiro via multiplicar-se, entre ele e o embarque, uma série de agentes não afeitos às estritas relações pessoais, tão ao seu gosto, como bem caracterizou Maria Sylvia de Carvalho Franco. E o foco desse processo multipolar era a relativa autonomia que a vida econômica do Município da Corte ia adquirindo, para o que sem dúvida, concorria a retração da unidade produtora como mercado para o comércio, agora renovado.230
Para ele, estaria começando a ocorrer no Vale uma nítida separação entre o capital
mercantil e o capital financeiro, o que o autor definiu como “solidariedade funcional”, fruto
de um processo de urbanização. As relações que antes sustentavam os processos de “salvação
pública” à falência, ou, na visão de Polanyi231, a malha social de relações que evitava o
desvalimento dos indivíduos, a ajuda mútua, perdiam-se para os novos arranjos que estavam
se formando a partir de 1850. “Era muito raro o aparecimento de uma falência até 1850 apesar
de não haver formalização do Código Comercial”, dizia o escriturário da Fazenda e
posteriormente do Tesouro Nacional, Dr. Sebastião Ferreira Soares.232
227MÜLLER, Elisa Moedas e Bancos no Rio De Janeiro no Século XIX. <http://www.ie.ufrj.br/eventos/seminarios/pesquisa/moedas_e_bancos_no_rio_de_janeiro_no_seculo_xix.pdf>, acesso em 21/12/2010 e FONTANARI, Rodrigo. Op.cit. 228Guardadas as devidas diferenças regionais e temporais. 229Cf. MARCONDES, Renato Leite. O financiamento hipotecário da cafeicultura no Vale do Paraíba Paulista (1865-67). Revista Brasileira de Economia, vol. 56, n° 1, rio de Janeiro, mar de 2002. 230GRANZIEIRA, Rui. Op. cit, 1976. p 20-1. 231Cf. POLANYI, Karl. Op. cit. 232SOARES, Sebastião Ferreira apud GRANZIEIRA, Rui. Op. cit, p. 22.
80
Essa política econômica, que se formou com o aumento das casas bancárias no Rio de
Janeiro e com sua diversidade em relação aos fatores de crédito, financiamentos e papéis
negociáveis, provocou o aumento de liquidez gerando soluções para os produtores do Vale,
que puderam adquirir escravos, produtos alimentícios que estavam com preço elevado e
gêneros necessários à manutenção e à expansão da cafeicultura. Muitas vezes, presos aos
papéis dos bancos comerciais, os produtores do Vale os trocavam ou negociavam abrindo o
leque de investimentos que ia sustentar seus negócios agrícolas.
Em 1857, as economias européias e a norte-americana entraram em uma crise de
repercussão internacional. O Brasil, como país próximo e inserido no contexto internacional
da economia do século XIX, em especial por causa do café, sofreu o impacto e o soldo
metálico da Caixa Matriz do Banco do Brasil registrou uma queda de 33,3%.233 A economia
se desestabilizou e foram cobrados os empréstimos para fazer frente à crise.
Ao lado das casas bancárias, os empréstimos pessoais de agentes econômicos – em
geral, a classe produtora, detentora de algum capital – aproveitando o mercado, crescia
através de empréstimos locais a juros que corriam em torno de 1% a.m. Depois de certa
calmaria, em 1864 ocorreu uma das mais importantes crises do século XIX, a Crise do Souto.
Ela se deu principalmente pela Casa Souto, uma das maiores casas bancárias do Rio de
Janeiro, ter investido mais de 8.000:000$000 e ter, como dívida junto ao Banco do Brasil,
mais de 20.000:000$000.
Com um volume de negócios com o Banco do Brasil superior a 60 mil contos de réis por ano, ao fechar as portas em 10/09/1864, levou pânico à Praça do Rio de Janeiro. Esse fato desencadeou uma crise de liquidez sem precedentes, promovendo a quebradeira de outras casas bancárias, numa espécie de efeito dominó, quando a Casa Souto suspendeu seus pagamentos. (...) As causas para esse abalo na economia brasileira são variadas, indo desde o boato sobre a recessão econômica vivida pela Europa, as conseqüências da política restritiva do governo no ano de 1860, a ameaça do declínio das exportações brasileiras – o que ameaçaria a economia como um todo – e impactos no comércio exterior, até as expectativas negativas da fragilidade da economia brasileira para resistir a uma crise internacional com a estrutura monetária que nós tínhamos.234
233Some-se, a essa situação, o desgaste do Ministério do Visconde de Souza Franco. Alguns autores, como Saez, defendem que a crise internacional apenas acelerou o já desgastado plano econômico da gestão Souza Franco, visto a dureza das críticas econômicas do relatório feito por Visconde de Inhomirim ao período em questão. 234ALMICO, Rita de Cassia. Dívida e Obrigação: As relações de crédito em Minas Gerais, séculos XIX e XX. Tese de Doutorado, UFF, Niterói, 2009. p. 99.
81
Gráfico 07
Evolução do crédito da Casa Souto junto ao Banco do Brasil. (mil-réis)
Fonte: Relatório sobre as causas da Crise do mês de Setembro de 1864.. In: SAEZ, Hernan Enrique Lara. op. cit. p. 59.
Assim, da mesma forma que o aumento de transações comerciais havia lhe proporcionado a expansão da rede apoio e o aumento de contatos nas atividades que desempenhara durante sua ascensão, os registros indicam que, em seu momento de revés, o Visconde do Souto também perdeu parte dos seus espaços de atuação e, provavelmente, também foi alijado de parte do suporte de que antes gozava. Sua quebra ocorreu de forma abrupta na manhã do dia 10 de setembro de 1864. 235
A crise do Souto abalou a economia brasileira na década de 1860 inclusive na variação
dos preços do café. Ao se espalhar a notícia, dez dias depois o banco sofreu a pressão dos
saques, tanto das grandes casas bancárias que com ela negociavam como a dos correntistas
menores. Pelo menos, noventa e cinco casas bancárias faliram. A atuação do Banco do Brasil
na tentativa de salvaguardar a crise gerou certa estabilidade.236
O Banco do Brasil foi autorizado a emitir moeda sem lastro metálico num volume superior ao dobro do fundo disponível, tendo suas notas transformadas em moeda legal. A emissão do Banco do Brasil chegou à casa dos 25.167 contos de réis em agosto de 1864 e, em setembro, superou os 43 mil contos, mantendo esse patamar nos meses seguintes.237
No período, também funcionavam os bancos hipotecários que garantiam os negócios
territoriais, porém as práticas de cunho efetivo sobre a terra se tornavam inexequíveis.
Nenhum empréstimo com caução em terras podia ultrapassar a metade do valor da garantia
235SAEZ, Hernan Enrique Lara. O 11 de setembro de 1864 da praça carioca: a crise do Souto e a
transformação da política econômica brasileira. Acessado em http://www.iseg.utl.pt/aphes30/docs/progdocs/HERNAN%20SAEZ.pdf no dia 18/12/2011 236 Idem 237 ALMICO, Rita de Cássia. Op. cit, 2009. p. 99.
82
estabelecida no contrato hipotecário; caso o devedor não pagasse, ele deveria entregar sua
propriedade e podia exigir metade do valor ao credor.238 Logo, as casas bancárias pouco se
utilizavam deste recurso.
A última crise que abalaria o período até 1880 foi a Crise de 1875, que se expandiu
pelo período e foi sentida evidentemente em 1876. Almico239 aponta para uma crise cujas
causas estão na queda dos estoques da moeda. Para sanar a situação, o governo autorizou a
emissão de 25 mil contos de reis em bilhetes com garantias de juros a 5% a.a. e 25 mil contos
em dinheiro.
Conclui-se que, de 1815 – período de elevação do Brasil à Reino Unido – até o início
da década de 1880, houve uma intensa movimentação financeira acerca do problema da
liquidez, de financiamento, de crédito e de opções de investimento por parte da elite
brasileira. As políticas emissionistas ora eram incentivadas e ora eram combatidas, mas, de
forma geral, nota-se uma ligação entre importação, exportação, crédito e emissão que garantia
o impulso da economia. Porém, as crises internas de emissão conjuntamente com as crises
internacionais que retraíram o consumo das commodities, em especial o café, geraram
pressões que alteraram o plano seguido para o desenvolvimento e a saúde financeira e
econômica do Império.
No centro do jogo estavam os cafeicultores de Vassouras que, entre escolhas e crises,
optavam por formas diversas de buscar financiamentos para superar as características ímpares
da produção de café para exportação. Voltavam-se para empréstimos pessoais, bancários e das
casas comerciais, sejam por vias próprias ou de agentes comissários. Isso demonstra que
estavam inseridos em um sistema do complexo cafeeiro ligado ao Rio de Janeiro, que será
apresentado no capítulo seguinte.
238 GRANZIEIRA, Rui. Op cit, p. 133 239 ALMICO, Rita de Cássia. Op cit, 2009. p. 99-100
83
CAPÍTULO III: FINANCISTAS, CREDORES E FAZENDEIROS EM
VASSOURAS: CRÉDITO E INVESTIMENTO DAS ELITES.
84
O objetivo deste capítulo é apresentar dados empíricos sobre as mudanças de
investimento que ocorreram em Vassouras, considerando-se que estava relacionada tanto com
as mudanças financeiras e econômicas estabelecidas no século XIX como as variações no
panorama internacional.
O Código Comercial, a Lei de Terras e a Lei de Hipotecas foram, basicamente,
aprovadas em períodos próximos criando regras gerais para o desenvolvimento da economia
do Império. Note-se que a formação de um mercado de capitais – que é um recurso dos
investimentos financeiros e um efeito de encadeamento na economia – só pode ser bem
estabelecida com a formação das bases institucionais que acompanham a formação do próprio
Estado. “This territorial institutional framework – consisting of government agents
responsible for legislation, jurisdiction, and policing – was a prerequisite for the functioning
of the capital market”.240
Então, o nascimento do Estado brasileiro surgiu na conformação de uma sociedade
agrária. As cidades eram apenas apêndices da sociedade rural. Eram os fazendeiros ou seus
filhos que compunham o corpo político elegendo-se ou fazendo eleger quem os apetecesse. A
elite agrária se multiplicava em câmaras, parlamentos, ministérios e outras posições de
mando. O mundo político era o mundo rural e a política econômica e administrativa era
voltada aos senhores da terra.241 O Brasil transitou de colônia ao Império sem grandes abalos
em suas estruturas, mas com uma missão: modernizar-se como empresa agrícola. Sérgio
Buarque de Holanda faz um providencial relato das transformações ocorridas em meados do
século XIX.
Mesmo depois de inaugurado o regime republicano, nunca, talvez fomos envolvidos, em tão breve período, por uma febre tão intensa de reformas como a que se registrou precisamente nos meados do século passado [XIX] e especialmente nos anos de 51 a 55. Assim é que em 1851 tinha início o movimento regular de constituição das sociedades anônimas; na mesma data funda-se o Banco do Brasil, que se reorganiza três anos depois em novos moldes, com unidade e monopólio das emissões; em 1852, inaugura-se a primeira linha teleférica do Rio de Janeiro. Em 1853 funda-se o Banco Rural e Hipotecário, que, sem desfrutar dos privilégios do Banco do Brasil, pagará dividendos muito mais avultados. Em 1854 abre-se ao tráfego a primeira linha de estrada de ferro do país – os 14,5 quilômetros entre o porto de Mauá e a estação do Fragoso. A segunda, que irá ligar a Corte a capital da província de São Paulo, começa a construir-se em 1855.
A organização e expansão do crédito bancário, literalmente inexistente desde a liquidação do Banco do Brasil , em 1829, e o conseqüente estímulo à iniciativa particular; a abreviação e o incremento dos negócios, favorecido pela rapidez maior na circulação das notícias; o estabelecimento, enfim, de meios de transportes modernos entre os centros de produção agrária e as grandes praças comerciais do Império são algumas das conseqüências mais decisivas de tais sucessos.242
240ZUIJDERDUIJN. C. Op. cit. pág. 27 241Cf. MATTOS, Ilmar Rohloff de. Tempo Saquarema. São Paulo, Hucitec, 1987. 242HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo, Cia das Letras, 1995. p. 74
85
A lei de 1844, ou Tarifa Alves Branco, com o objetivo de salvar o déficit da receita
pública do Império taxou as importações de certos produtos em 30%, mas manteve inalteradas
as taxas de exportação. Diversos autores têm diferentes interpretações sobre os efeitos da
tarifa no desenvolvimento da manufatura, mas, de forma geral, ela parece ter favorecido a
manutenção do capital na economia doméstica ao evitar que houvesse grandes remessas ao
exterior devido à importação.
A política do governo tinha como objetivo deflacionar a moeda nacional. Segundo a
crença da política econômica do período, a crise se daria através da taxa de câmbio que
determinava o valor do mil-réis. As alterações cambiais, então, determinariam a política
monetária nacional cuja adoção de um novo padrão monetário (com cotação de 1$000 por 43
2/10 pences) foi implementada por Araújo Viana e favoreceu, em geral, as províncias
exportadoras, em especial Minas e Rio de Janeiro. Já em 1846, em decreto único de 28 de
novembro, de n° 487, o Império garantiu o lastreamento da moeda em relação ao seu peso e
valor nominal, garantindo a conversibilidade da moeda em libra através do Padrão-Ouro,
dando ênfase ao processo de exportação e garantindo a centralização das operações
financeiras e o controle do sistema bancário.243
A Lei de Terras (Lei 601, de 18 de setembro de 1850) foi a base do sistema
hipotecário, mas, antes, A Lei de Registros Públicos de 1846 já garantia o registro fundiário.
A legitimação de posses – um dos aspectos essenciais da Lei de Terras de 1850 – ainda persistirá, ao lado de uma complexa teia legal (muitas delas estaduais) regulamentando processos de discriminação de terras públicas, matriculação de terras discriminadas ou possuídas pela União, legitimação de posses.
Esse conjunto normativo teve como objetivo regularizar a propriedade, proporcionando um título legítimo que deveria ser apresentado ao registro imobiliário. O que sustento é que, desde 1846 até a vigente lei de registros públicos (Lei 6.015/73), houve uma nítida trajetória e desenvolvimento do sistema registral que não experimentou qualquer desvio com o advento da Lei de Terras de 1850 e seu decreto regulamentador.244
A Lei de Terras objetivava garantir, entre outros fatores, a regularização da
propriedade no Brasil, separando terras públicas das terras privadas; restringir o acesso à terra
após seu início de vigência e dar fé aos títulos de propriedade para que se tornassem créditos
territoriais. Indiretamente, essa lei garantiu que o crédito, de forma geral, pudesse ser tomado
para várias finalidades que não a colonização e como garantia dos empréstimos para a
cafeicultura no Vale.
243GUIMARAES, Carlos Gabriel. Op. cit. p. 72. 244JACOMINO, Sérgio. Cadastro, registro e algumas confusões históricas. < http://www.educartorio.com.br/docs_IIseminario/Jacomino.pdf > acessado em 2011. p. 06-7
86
Em 1854, o Registro do Vigário (ou Registro Paroquial) garantia o regulamento da Lei
de 1850, um passo importante visto que a seguridade, publicidade e especialidade passariam a
ser mais definidas na Lei. Desde 1774, admitia-se a hipoteca como direito, que passou do
Direito Romano ao Português, mas este era falho. De acordo com Rodrigues,
(...) é sabido que muitos sujeitos, que, aliás, desejariam fazer girar, e reproduzir seus fundos, recusam dá-los sobre hipotecas de bens de raiz por ignorarem se tais bens estão sujeitos, em todo ou em parte, a outros contratos e por temerem os prejuízos que de tais fraudes se têm seguido; donde também resulta que muitos proprietários são privados de fazer duplicadamente produtivas suas propriedades, obtendo sobre elas fundos, com que as possam melhorar, aumentar, ou entrar em outras especulações.245
Em 14 de novembro de 1846, o registro de hipotecas passou a ser transladado em
cartório com objetivo de dar publicidade e especificidade à propriedade e às relações de
negócios que viriam junto a ela.
Em 1864, ocorreu um avanço sobre o debate da lei tomando a forma jurídica da Lei
Hipotecária de 1864. Por tal lei, deveriam ser transcritos “todos os títulos de transmissão entre
vivos da propriedade imóvel e todos os ônus recaídos sobre a mesma”.246 A Lei de Hipotecas
tentava corrigir um problema do Registro Paroquial, que era a declaração pessoal do
fazendeiro ao pároco local, que anotava a posse no livro de registro. Muitos fazendeiros
utilizaram brechas na lei e na fiscalização para dar falsos testemunhos sobre a terra. Osório,
citado por Rodrigues, diz que: “desde a existência da lei (...) o Registro do Vigário tem sido
apresentado como uma prova de domínio de particulares sobre terras, em geral, devolutas”247
As lutas locais entre famílias e posseiros não garantiram a funcionalidade da
Regulamentação de 1854, abrindo margem para que o processo de distinção entre terras
públicas e privadas permanecesse. O que estava em jogo no debate do registro da terra era sua
forma como elemento de crédito. Alguns dos legisladores e jurisconsultos envolvidos na
reforma da legislação hipotecária defendiam a obrigatoriedade do registro da alienação entre
vivos e da oneração dos imóveis, para facilitar o crédito sobre eles.248
Essas mudanças garantiram a continuidade do processo escravista de produção voltado
ao mercado externo, mas, ao mesmo tempo, viabilizava as relações do capital como o crédito
e a inversão de excedentes para o mercado interno e para as atividades urbanas, que eram ou
não escravistas.249
245RODRIGUES Apud JACOMINO, Sérgio. Op. cit. p. 08. 246RODRIGUES, Pedro Parga. A Lei Hipotecária de 1864 e a propriedade do século XIX. < http://www.encontro2008.rj.anpuh.org/resources/content/anais/1205339972_ARQUIVO_artigoregistroanpuh.pdf > acessado em 2010- texto referente a ANPUH – Rio – XIII Encontro: Identidades. p. 01 247OSÓRIO apud RODRIGUES, Pedro Parga. Op cit. p. 04. 248 Ibidem. Op. cit. p. 05. 249Idem, pág. 27.
87
A função econômica é apenas uma das múltiplas funções da terra. Ela serve também
de locus de moradia, de elemento da paisagem e de local de culto aos homens, como, por
exemplo, os cemitérios. A terra contém, em si, elementos econômicos e sociais à vida do
homem. Ela não era tratada como mercadoria em comunidades primitivas, era um recurso que
se poderia explorar com certa exclusividade, mas não comprar ou vender livremente. Como a
terra se tornou um bem comercializável através da conscientização da população a seu
respeito como um bem econômico. Para ele, também, em sociedades arcaicas, as culturas
poderiam ser comercializadas, mas a terra era livre, talvez por sua abundância.250
Deste modo, as tribos primitivas vêem uma árvore e seu produto (p. ex. azeitona ou cacau) como pertencente àquele que planta e cultiva, sem levar em conta quem administra a terra onde ela está. Para o povo de Sierra Popoluca, no Mexico, por exemplo, as árvores eram tradicionalmente possuídas, mas não a terra onde cresciam. A posse da terra começou apenas com a introdução da cultura do café, que requeria um cultivo intensivo.251
Segundo Pipes, o esgotamento da terra, ou seja, a escassez de terras férteis seria a
explicação para sua condição de propriedade. A produtividade era substancial para o
desenvolvimento das sociedades agrárias e a empresa privada (no sentido de oposto ao
comunal e não em relação ao Estado) seria a opção que garantiria o uso racional da terra. Tal
situação de propriedade já era, de certo modo, exercida no Brasil desde tempos coloniais.
Para Polanyi252, o desmembramento da terra e sua separação como elemento
subordinado ao mercado eram vitais para o nascimento de uma economia baseada nas
tradições de mercado. “Separar a terra do homem e organizar a sociedade de forma tal a
satisfazer as exigências de um mercado imobiliário foi parte vital do conceito utópico de uma
economia de mercado”253
O que Polanyi254 chama, para a época dos Tudors, de capitalismo agrícola foi a
institucionalização da terra como elemento para o mercado, juntamente com seu cercamento e
conversões, assim como, no Brasil, o preço da terra se estabelecia pela legalização da compra
e venda: a Lei de Terras.
Se, para a Europa, a criação do mercado de terras estava acompanhada pelo desfecho
da Revolução Industrial e, supostamente, pela expansão dos mercados de produtos
industrializados255, no Vale, esta situação envolvia os interesses políticos e econômicos das
elites locais e o aumento dos mercados internacionais do café. O processo de modernização
250Cf. PIPES, Anderson. Op. cit. 251PIPES, Richard. Propriedade & Liberdade. Rio de Janeiro, Record, 2001. p. 113-4 252POLANYI, Karl. Op. cit, 2000 253Idem, p. 214. 254Ibidem, p. 215. 255Idem.
88
das relações de mercado no Brasil passava, antes de tudo, por uma cuidadosa reforma agrária,
não no sentido tomado hoje em dia, da distribuição, mas de uma organização jurídica da terra
que evitasse a expropriação fundiária e garantisse a continuidade da terra como elemento
fundamental para a economia de exportação. Era natural, no Vale do Paraíba, na Zona da
Mata Mineira e, mais tarde, no Oeste Paulista, que a terra se concentrasse graças à
peculiaridade da produção de café.
O café é uma cultura agregadora de terras que, na sua produtividade, esgotava o solo e
expandia-se sobre terras virgens, antes como fronteira aberta e posteriormente pelo ato de
compra e registro. No Brasil, herdeiro das tradições feudais portuguesas, a terra, local
privilegiado da sua economia, era também um elemento de esteio político e, juntamente com a
posse de escravos, um definidor da hierarquia social. Para Brito, “A propriedade da terra
revela-se, portanto, como uma das dimensões mais significativas de uma ordem social
historicamente fundamentada na desigualdade institucionalizada e formalmente reconhecida,
cuja persistência, no Brasil, ultrapassou os limites da sociedade escravista.”256
Por várias questões, a terra era, então, um bem que até 1860 gerava uma resistência em
ser hipotecada e que, como mercadoria pura, viria a sofrer ainda uma modificação nos anos
seguintes, quando a presença dos bancos hipotecários foi gerando oportunidades para que elas
fossem dadas como garantia.
Na análise de Brito257, a propriedade imobiliária surgiu como uma transferência da
renda capitalizada na mão de obra para a renda territorial no processo de substituição do
trabalho escravo. Baseado nos trabalhos de José de Souza Martins258, a autora defende que o
capital do fazendeiro estava cristalizado no escravo e que aquele pagava um tributo ao
traficante com base em ganhos futuros. Com a crise do trabalho escravo, que se inicia em
1850 com a Lei Eusébio de Queirós, houve necessidade de transferência da “renda
capitalizada” para a terra.
A renda territorial surge da metamorfose da renda capitalizada na pessoa do escravo; surge, portanto, como forma de capital tributária do comércio, como aquisição do direito de exploração da força de trabalho. A propriedade do escravo se transfigura em propriedade da terra como meio para extorquir trabalho e não para extorquir renda. A renda capitalizada não se constitui como instrumento de ócio
256BRITO, Mônica Silveira. Modernização e tradição: urbanização, propriedade da terra e crédito hipotecário em São Paulo, na segunda metade do século XIX. Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, 2006. p. 31. 257Idem. p. 32-33 258José de Souza Martins foi um expoente do estudo em relação à terra no Brasil. Sociólogo, professor da USP, escreveu, entre outras obras O Cativeiro da Terra, estudo amplo sobre a formação da propriedade da terra no Brasil.
89
mas como instrumento de negócio. Engendra, portanto, um capitalista que personifica o capital produtivo subjugado pelo comércio, a produção cativa da circulação.259
A lógica da Lei de Terras de 1850 era garantir esse processo de transição. A elite
agrária percebia que seus investimentos em homens sofriam uma rápida transformação tanto
por pressões nacionais como internacionais. Desde 1822, os ingleses pressionavam o governo
brasileiro a promover a extinção do tráfico de escravos; o movimento se intensificou até a
citada Lei Eusébio de Queirós, que proibia o tráfico para o Brasil. Era necessário viabilizar o
processo de transição através da rede de empréstimos que ia se formando nas regiões agro-
exportadoras. O crédito de hipotecas entrou em vigor em determinadas províncias do Império
em 1873, porém, alguns casos de hipotecas de fazendas e propriedades em Vassouras são
encontrados em datas anteriores.260
Ainda mantendo-se na análise da autora, nem sempre os credores estavam interessados
nas propriedades e, sim, no retorno do capital creditado. Muitas vezes, mais na forma do
produto comercializado – já que alguns credores eram negociantes de café – do que nas
propriedades completas, com suas plantações, instalações e toda a especificidade e
manutenção da sua produção. Para solucionar a questão, em 1885 passou a ser comum outra
forma de obter crédito: a penhora dos cafezais, das cerejas ainda no pé ou do fruto colhidos261.
Assumida esta nova estratégia, a ênfase no empreendimento econômico do café, que até então recaía sobre o trato do cafezal e a colheita (uma vez que era no trabalho que se configurava a renda capitalizada) passou a incidir sobre a formação da fazenda, pois o seu valor de mercado estava nos frutos que podia produzir, no trabalho materializado nas plantações. O que interessa, sob essas novas circunstâncias, é o número de cafeeiros e sua produtividade, de forma que a preferência dos produtores acabou por incidir sobre a abertura de fazendas em terras novas, onde a produção podia ser muito maior que a das antigas.262
Antes de 1850, os pequenos e médios valores creditados não eram caucionados por
qualquer hipoteca; somente alguns casos de valores maiores possuem uma forma de hipoteca,
como exemplificamos:
Devo que pagarei ao senhor João Barbosa 205 oitavas de ouro em pó precedidas de um negro que comprei do gentio moçambique por nome Francisco a qual quantia pagarei a ele dito ou a quem este me mostrar da feitura deste a um ano e para sua clareza lhe dei este de minha letra e sinal hoje 28 de fevereiro de 1720.263
Nota-se que, neste momento, não há nenhum sinal de bens hipotecados. As relações de
crédito eram baseadas na palavra do devedor como principal garantia, além de constar que a
259MARTINS apud BRITO, Mônica Silveira. Op. cit. p. 33. 260Idem, p. 34-5. 261Idem, p. 34. 262Loc cit. 263SANTOS. Op. cit. p. 78
90
relação entre crédito e dívida perpassava todas as camadas sociais gerando um
“endividamento generalizado”264
Retomando o conceito de Schumpeter265, o oferecimento de formas de crédito em
sociedades ainda não institucionalizadas e nas capitalistas é uma forma de impulsionar uma
atividade produtiva e, ao mesmo tempo, uma especialização dela. De uma forma ampla, o
crédito insere o conceito de serviços e mercadorias antecipadas com prazo determinado para
pagamento.
Admitir que o dinheiro, em sociedades econômicas, é um mero facilitador das trocas é
um erro. O dinheiro se desmembra em formas diferenciadas em relação à sua natureza: meio
de troca, reserva de valor e unidade de valor. O meio de troca é o facilitador nas relações de
comércio garantindo uma padronização nas unidades que estabelecem as trocas, ou seja, um
instrumento de pagamento; a reserva de valor é a capacidade que a moeda tem de ser
poupada, ou seja, guardada para utilização futura; e a unidade de valor é a capacidade que a
unidade padrão da moeda tem de expressar o valor das coisas e serviços mediante a indicação
da quantidade de uma unidade monetária.266
Já o crédito tem sua função econômica garantida pela circulação de bens e
mercadorias, pois antecipa a renda ou garante continuidade no processo produtivo em
momentos de escassez monetária. Como sobre ele também incidem os juros, tornando-o um
capital financeiro, ele é a dinâmica da troca e a reprodução de si mesmo.
Segundo Schumpeter267, os homens de negócios, muitas vezes, necessitam das
relações de endividamento. Muitos, antes de se tornarem “creditores” e “depositores”268 de
riqueza, eram devedores dos agentes credores. Essas relações são comuns nos inventários da
elite cafeicultora e capitalista de Vassoura, no interior do Vale do Paraíba Fluminense. Alguns
nomes de indivíduos ligados à lista de devedores em um momento se tornaram credores em
outro. O próprio Barão de Itambé, capitalista por excelência em Vassouras, está na lista de
dívidas do inventário de José Teixeira Leite269. Enquanto Anna Bernardina aparece como
devedora do Barão de Itambé, é credora de muitos indivíduos.
264Idem, pág. 86 265Cf. ALMICO, Rita de Cassia. Pedir e emprestar: o mercado do crédito em uma comunidade cafeeira. <http://www.cedeplar.ufmg.br/seminarios/seminario_diamantina/2010/D10A067.pdf> acesso em 10/03/2011 266Cf. GALVES, Carlo. Manual de Economia Política Atual. Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 1981. P. 261-2. 267SCHUMPETER, Joseph A. Op. cit. p.. 97. 268Termo utilizado pelo Schumpeter na obra Teoria do Desenvolvimento Econômico. 269Centro de Documentação Histórica da Universidade Severino Sombra.
91
Mas o crédito em si acarreta um risco que se subentende nos processos de confiança e
garantias. Nos Princípios de Economia, de Fetter270, este afirma que o crédito é um negócio
cuja renda deriva das promessas que os agentes devedores se empenham para pagar.
Os depósitos mencionados acima obviamente também surgem, em grande parte, do desconto de papel comercial dessa espécie. Esse bem poderia ser considerado o caso normal de concessão de crédito ou de colocação de instrumentos de crédito nos canais do comércio, e todos os outros casos seriam chamados anormais. Mas, mesmo nos casos em que não se trata de liquidar uma transação normal de mercadorias, geralmente exige-se uma caução, e, portanto, o que chamamos “criação” seria apenas uma questão de mobilização dos ativos existentes.271
Schumpeter entende que a discussão da moeda não é puramente uma questão no
âmbito da troca de mercadorias, mas algo além, que é a credibilidade que a moeda toma no
meio econômico e que faz dela uma mercadoria. Essa confiança era necessária na produção de
café pelo alto grau de endividamento, já discutido neste trabalho, devido à inelasticidade do
produto. Além do mais, em momentos de safra, precisa-se de capital antecipado para contrato
de trabalhadores – em geral, escravos – para a colheita do café. No inventário do Barão de
Guaribu, presenciamos essa atividade. Ele se endividou com D. Margarida, esposa do Capitão
Luiz José Barbosa dos Santos em 15 contos de réis para obtenção de escravos (alugados) para
a colheita de café de 1841 a 1845.
Pendergrast272 considera o processo de duração das plantas, que podem produzir por
20 ou 30 anos. Elas se tornam bens de capital e, por isso, precisam de manutenção constante
para que não desapareçam. Visto assim, o processo de endividamento torna-se uma realidade
necessária no processo produtivo do café no Vale, pois era necessário investir capital
constantemente nos momentos de produção desta commodity.
Para Pires273, ao estudar a estrutura agroexportadora do complexo cafeeiro da Zona da
Mata Mineira, existe uma dinâmica que as economias naturalmente encadeiam até atingir a
esfera dos recursos financeiros de dada economia, a partir de um complexo central, no caso, o
cafeicultor.
A produção cafeeira, meramente por ser uma produção agrícola, mas também por suas especificidades físicas ou agronômicas, já impõe uma estrutura de demanda de recursos financeiros cuja não satisfação pode comprometer, naquelas economias em que predominou todo o seu processo de reprodução e acumulação de capital, envolvendo o conjunto do sistema que nele se fundamenta. Por outro lado, à medida que também se constitui no elemento determinante da formação e distribuição de renda destas economias, condiciona não só a própria possibilidade da existência de recursos disponíveis para empréstimos, como também o seu volume e propensão de sua transferência para outros setores do sistema, o que delimitaria, em suas linhas gerais, também a estrutura de oferta de recursos financeiros.
270FETTER Apud SCHUMPTER, Joseph A.. Op. cit. pág. 104. 271Idem, pág. 105. 272PENDERGRAST, Mark. Op. cit, pág. 87. 273PIRES, Anderson. Op. cit.
92
À medida que a estrutura da procura e também da oferta de recursos monetários estariam determinadas, direta ou indiretamente, pela organização de produção do produto principal, poderíamos caracterizá-las como linkages, ou efeitos de encadeamentos financeiros.274
O autor debruça-se sobre a economia de exportação de Minas Gerais e enxerga que,
nas economias agroexportadoras da Zona da Mata Mineira, os proprietários agrícolas, por
diversas situações, são suscetíveis ao endividamento de uma forma intensa, por sinal. Essa
situação corresponde a uma singularidade das produções agrícolas que é a “defasagem entre a
renda decorrente da comercialização da safra (...) e as necessidades correntes dos
produtores”.275 E continua a expor afirmando que a defasagem é provocada por uma
necessidade inerente à sazonalidade – períodos de crise, secas, geadas – ou às retrações do
mercado interno, sendo suscetíveis à mesma variação dos mercados internacionais. Isso
provocaria, por parte dos produtores, a busca por capital para manter os negócios nesses
períodos, ou seja, o crédito a curto prazo. Ele garantiria a operacionalidade da lavoura e a
manutenção do complexo como um todo nos momentos em que não houvesse renda através
da venda dos produtos ou quando esta se tornava insuficiente. Uma peculiaridade do século
XIX era a ampla utilização do crédito por agentes privados visto que, nesse tempo, as
instituições bancárias não eram tão disseminadas no país e as que existiam não agiam
diretamente com os produtores, em geral, do interior do país.
Assim como em várias regiões produtoras de café, ao analisar os inventários de
Vassouras, é comum notar agentes que disponibilizavam suas riquezas pessoais sob a forma
de crédito objetivando lucro a curto prazo, o que, em geral, a historiografia reconhece como
“capitalistas”. Nota-se em alguns inventários também que essa inserção do crédito alimentava
pequenos e médios produtores e demais indivíduos da cidade que, por um motivo ou outro,
recorriam ao crédito. Os pequenos e médios produtores seguiam a lógica da sazonalidade de
suas produções e da demanda interna, em geral. Mas, sem sombra de dúvida, as maiores cifras
creditadas iam para a elite agrária do município em questão, cuja capacidade de “resgate da
dívida” era maior devido ao montante negociado e à sua parcela de consumidores no mercado
internacional e também ao fato de o crédito ser oferecido em melhores condições.
Essa adoção generalizada do crédito de agentes locais tinha certa lógica pautada na
informação. Em uma sociedade sem institucionalização dos mercados e sem elementos
jurídicos que garantissem os vários tipos de investimentos, que buscava estratégias para se
criar uma forma de operar a economia, a credibilidade (que é atrelada ao ato creditício) e a
“certeza” de retorno do capital investido eram fundamentais. Assim, os homens que já viviam 274PIRES, Anderson. Op. cit. p. 194. 275Idem, p. 195.
93
na localidade conheciam melhor os seus credores no que se refere à situação financeira,
quantidade de bens, capacidade de pagamento, honradez etc. Como não havia outros
instrumentos de averiguação de informação, as relações de parentesco, amizade,
conhecimento e credibilidade eram o de que se poderia lançar mão no momento. O nome da
família fazia as vezes de caução material, já que havia instrumentos legais eficientes para
recuperar o bem creditado, como inventariar as dívidas ou publicá-las.
Este é o exemplo de João Evangelista Teixeira Leite, casado com Anna Bernardino
Carvalho Leite. No inventário dela, datado de 1851, encontramos um montante de 144
empréstimos somando Rs$328:660$276. Entre seus empréstimos, havia um de 2:920$000
para a Câmara Municipal de Vassouras, o que mostra que os empréstimos tinham tanto
natureza pessoal como institucional. O maior valor emprestado foi para José Manuel da Silva
Ferreira, no valor de 18:619$641.
É interessante notar que esses empréstimos foram cedidos por volta da década de
1840, ainda no processo de desenvolvimento da cafeicultura, e a maior parte deles se
concentravam em pequenos montantes de até cinco contos de réis [Tabela 03]. Já sua fortuna
é distribuída em 55% de Bens de Raiz, incluindo suas fazendas, 42% de ativos – empréstimos
-, 1% em escravos e 2% em bens móveis.
Tabela 04
Empréstimos de Anna Bernardina Carvalho Leite
Valor em Réis Distribuição dos empréstimos.
Acima de 15:000,000 3%
De 10:000,000 a 15:000,000 3%
De 5:000,000 a 10:000,000 11%
De 1:000,000 a 5:000,000 35%
Até 1:000,000 48%
Fonte: Inventário de Anna Bernardina Carvalho Leite, CDH – USS.
Anna Bernardino Carvalho Leite fazia parte de uma importante e influente família de
Vassouras que se dividia entre fazendeiros e capitalistas. Mesmo os fazendeiros não deixavam
de emprestar parte da sua fortuna em um movimento de inserção de crédito para os mais
variados fins e sob diferentes aspectos. Torna-se necessário, pela natureza deste trabalho, um
estudo mais detalhado sobre os 144 devedores de Anna Bernardino, mas, pelo que se conclui
através do que foi possível analisar, uma parte compunha-se de famílias tradicionais da
cidade, mas outros, nem tanto. Não foi possível perseguir todos os documentos da lista que
94
aparecem no inventário, mas dentre os que foram encontrados, pudemos verificar que a maior
parte dos créditos emitidos foi para pequenos e médios produtores, muitos em períodos de
entressafra.
A família Teixeira Leite chegou ao município de Vassouras através de Custódio
Teixeira Leite, que havia sido encarregado de construir uma ponte na região que ligaria a
Estrada da Polícia ao lado esquerdo do Paraibuna. Este, por sua vez, devia quase 8:000$000 a
Anna Bernardina.
Um dos mais importantes credores do clã Teixeira Leite foi, sem dúvida, Francisco
José Teixeira (Barão de Itambé). Talvez seu inventário (1866) seja o mais rico para se analisar
os efeitos da economia sobre a atuação da oferta de crédito. Descrito como capitalista pela sua
quase exclusiva atuação como credor e investidor em papeis, o Barão de Itambé acumulou
uma das mais importantes fortunas de sua época. Os empréstimos de foram de
Rs$740:838$162. Sua riqueza estava distribuída da seguinte forma:
Gráfico 08
Composição da Riqueza do Barão de Itambé, 1866.
Fonte: Inventário do Barão de Itambé, CDH – USS.
Seu empréstimo de maior volume foi para a casa comercial Teixeira Leite &
Sobrinhos, no montante de Rs$553:542$000. Assim como o caso de Anna, seus credores se
Bens móveis
1%
Bens de
Raiz
1%
escravos
1%
empréstimos
89%
Dívida
passiva
8%
Bens móveis
Bens de Raiz
escravos
empréstimos
Dívida passiva
95
distribuem por várias camadas sociais, mas há um montante maior de empréstimos, que se
concentram mais nos valores maiores, com maior risco [Tabela 05].
Tabela 05
Empréstimos de Barão do Itambé
Valor em Réis Distribuição dos empréstimos. acima de 50:000,000 2%
de 25:000,000 a 50:000,000 2%
de 20:000,000 a 25:000,000 8%
de 15:000,000 a 20:000,000 8%
de 10:000,000 a 15:000,000 4%
de 5:000,000 a 10:000,000 13%
de 1:000,000 a 5:000,000 36%
até 1:000,000 28%
Fonte: Inventário de Barão de Itambé, CDH – USS.
De acordo com a Tabela 06, a maior inversão do capital do Barão de Itambé se
encontrava no empréstimo e no crédito, seguido de Letra, seja vencida ou não. Na década de
50 e 60, as escrituras de hipoteca são garantidas por uma legislação que gera maior
credibilidade na transação hipotecária.
Tabela 06
Distribuição das opções de aplicação do Barão de Itambé
Valor em Réis Distribuição dos empréstimos.
Crédito 59%
Letra vencida 14%
Letra 12%
Escritura de Hipoteca 7%
Outros 5%
Papel de contrato 3%
Fonte: Inventário de Barão de Itambé, CDH – USS.
Podemos notar, no inventário do Barão, um interessante movimento de acesso ao
crédito e pagamento entre 1859 e 1866.
96
Gráfico 09
Volume de crédito fornecido pelo Barão de Itambé e o resgate (1859-1866)
Fonte: Inventário de Barão de Itambé, CDH – USS.
Foram feitos os seguintes empréstimos e quitações ao Barão:
Tabela 07
Relação de Empréstimos e Quitações do Barão de Itambé (1859-1866)
Ano Empréstimo Quitações
1859 1 4
1860 2 2
1861 5 5
1862 3 5
1863 7 5
1864 12 4
1865 6 14
1866 3 5
Total 38 44
Fonte: Inventário de Barão de Itambé, CDH – USS.
1 1
5
3
7
12
6
3 4
2
5 5 5 4
14
5
-
2
4
6
8
10
12
14
16
1859 1860 1861 1862 1863 1864 1865 1866
Empréstimos Pagamento
97
Segundo os movimentos do Gráfico 09 e da Tabela 07, o sistema creditício local
estava aquecido. Entre 1863 e 1866, ocorreram dois fenômenos que podem explicar as curvas
do gráfico e seus momentos de pico. Entre 63 e 64, ocorreram graves crises de cunho
ambiental nos cafezais de Vassouras: uma praga, conhecida como “praga da bruxa”, vinha
afetando e comprometendo a produção de café daqueles anos. Para manter-se operante no
mercado, a única saída viável era lançar mão de empréstimos para garantir a manutenção da
fazenda até a situação se equilibrar. Um segundo fenômeno estaria ligado à praça mercantil do
Rio de Janeiro. A Crise do Souto, já citada nesse trabalho, alterou a capacidade creditícia dos
bancos comerciais do período; a crise se avolumou e o crédito ficou escasso. Esses fenômenos
mostram um aumento significativo na curva do gráfico entre 1863 e 1864. É interessante notar
que a curva se inverte no ano seguinte.
A Tabela 06 também nos mostra que o total de dinheiro emprestado foi recuperado, o
que mostra a capacidade de pagamento das elites locais. As crises demandaram um número
muito maior de capital para supri-la do que em períodos anteriores, como mostrado no
Gráfico 10.
Gráfico 10
Montante emprestado pelo Barão de Itambé entre 1850 e 1866
Fonte: Inventário de Barão de Itambé, CDH – USS.
$0.000
100$000.000
200$000.000
300$000.000
400$000.000
500$000.000
600$000.000
700$000.000
800$000.000
18
50
18
51
18
52
18
53
18
54
18
55
18
56
18
57
18
58
18
59
18
60
18
61
18
62
18
63
18
64
18
65
18
66
Rs$
98
O Barão de Itambé contribuiu como agente particular credor com um movimento
financeiro num momento em que havia muitos obstáculos para que o produtor pudesse lançar
mão de seus créditos, visto que os bancos nem sempre emprestavam direto aos cafeicultores.
Em 1851, o inventário de Maria Ismênia Teixeira Leite totalizava um ativo de
407:722$492 baseado em empréstimos (créditos) para vários ramos da sociedade, como a
família Werneck, importante no processo de colonização do Vale. Os demais devedores são
famílias cujos sobrenomes não encontramos entre os considerados grandes proprietários.
Foram pagos o montante de 556:403$037, ou seja, cerca de 36% do capital inicial.
Com as leis que vão garantir uma nova forma de negociar terras, de hipotecar e de
associar capital, a partir de 1850, a situação começa a mudar para os indivíduos de Vassouras.
De acordo com Zuijderduijn,276 muitas sociedades não conseguem participar de um
efetivo mercado de “trocas” sem que lhe garantam as condições de direito de propriedade,
direito de hipoteca e bem e créditos baixos, elementos que, para o pesquisador, promovem o
desenvolvimento de uma dada economia. A formação de um mercado de capital ganha
amplitude a partir do estabelecimento de leis que regulam o processo de hipoteca, a garantia
das propriedades e as suas transferências. Nas sociedades em processo de institucionalização
de mercados, fornecer um registro imobiliário aos proprietários torna as negociações muito
mais seguras, gerando uma forma privilegiada de acúmulo de capital e incentivo para o
desenvolvimento econômico.277
Uma nova era em relação ao financiamento agrícola no Brasil chegou, com a conversão do Banco do Brasil e do Banco Predial em instituições de crédito hipotecário. A guerra com o Paraguai havia sido vencida, e havia uma alta de preços do café gerando um ambiente de atuação para os bancos hipotecários de acordo com a legislação de 1864 e 1865. (...) As companhias poderiam acumular grandes quantidades de capital para investir em plantações por longos períodos, com melhores condições de crédito criadas por uma lei clara que garantia terra e escravos. Com risco diminuído, plantadores pagariam taxas de juros iguais ou inferiores à taxa de desconto, eliminando assim o lucro do intermediário. [tradução livre]278
276ZUIJDERDUIJN, C. Op. cit. págs. 01-2. “Many societies do not provide participants in economic exchange with the means to obtain clear answers to these questions; without clear ownership rights over the capital goods they possess, they cannot mortgage their possessions, and they have a low creditworthiness” 277Cf. MARCONDES, Renato Leite. Op cit, 1998. 278SWEIGART, 1980 apud MARCONDES, Renato Leite. Op. cit. p. 179. “A new era in agricultural finance in Brazil arrived with the conversion of the Banco do Brasil and the Banco Predial into mortgage institutions. The war with Paraguay had been won, and high coffee prices were propitius for the mortgate banks envisioned in the legislation of 1864 and 1865. (...) Companies would amass large amounts of capital to invest in plantations for long terms, under the improved credit conditions created by the clear registration of collateral: land and slaves. With risk diminished, planters would pay interest rates at or below the discount rate, thus eliminating the profit of the middleman.”
99
Na análise de Zuijderduijn,279 países que não garantiam situações legais para o direito
de propriedade depararam-se com dificuldades para o desenvolvimento dos mercados de
capitais – estruturas criadas e mantidas por elementos de instituição pública ou privada que,
ao garantirem as economias que produzem em escala (pela própria introdução e negociação
do capital para investimento e manutenção das estruturas produtivas), tendem a baratear os
preços para o mercado amplo.
Os grupos de interesse que, a partir de 1850, passaram a legislar em prol da
institucionalização dos mercados de terra e crédito eram oriundos da elite agrária e comercial
ligada ao Rio de Janeiro.280 Para Stein,
A liderança desse grupo heterogêneo [de homens livres] era constituída por um pequeno, mas influente segmento de fazendeiros. Numericamente insignificantes, os fazendeiros e seus parentes dominavam cada paróquia efetivamente através das eleições, em atividades ligadas à justiça (eles eram eleitos juízes de paz), e como oficiais da Guarda Nacional. Entre os fazendeiros, algumas famílias ou clãs exerciam um papel dominante nos negócios do município.
As origens das famílias dos fazendeiros que exerciam a hegemonia social, econômica e política em Vassouras, no século XIX, reportam ao século XVIII, tanto em terras portuguesas como nas possessões insulares, das cidades de minas de ouro, em Minas Gerais, às áreas dentro de Vassouras e arredores.281
Uma das formas encontradas pelos diversos agentes econômicos dessas sociedades
para obter crédito e manter a produtividade foi a hipoteca de bens. No caso de Vassouras, ela
se estabeleceu, entre outros casos, pela terra e por escravos, que eram hipotecados para a
obtenção de dinheiro e de garantias para os mais variados fins. Não é incomum encontrarmos
esse tipo de hipoteca nas sociedades em formação de mercados de capitais na Europa também.
Zuijderduijn observa que os agentes buscam os créditos hipotecando seu “capital abstrato”
(abstract capital),282 que são os valores dos seus créditos seguros, ou, ajustando melhor para a
realidade do Brasil, seus bens de capital. Esses créditos, em geral nas economias agrárias do
Vale do Paraíba Fluminense e em especial em Vassouras, se estabeleceram pela hipoteca dos
bens de raiz, que são bem aceitos pelos credores em geral.
As garantias de contrato, estabelecidas de fato em 1850, davam segurança para um
tipo de mercado altamente sensível. Os contratos de obrigação definiam prazos e formas de
cobrança assegurando, a ambas as partes, os direitos que davam estabilidade ao processo.283
Os participantes [do mercado] precisam contrair obrigações que podem ser executadas por muitos anos, o que significa que eles exigem contratação de instituições, fornecendo-lhes os meios para obter
279ZUIJDERDUIJN. C. Op. cit, p. 16-7. 280GUIMARÃES. Carlos Gabriel. Op.cit, 1997. p. 62-92. 281STEIN, Stanley. Op. cit, 1990.p. 153-4 282 ZUIJDERDUIJN, C. Op. cit. p. 07. 283 Cf. JACOMINO, Sérgio. Op. cit..
100
provas, de preferência por escrito. Instituições contratantes são inúteis sem as organizações que pode arbitrar conflitos e executar decisões judiciais.284 [tradução livre]
Como já foi dito em outros momentos, são escassos os estudos específicos para o
entendimento das relações creditícias (nas suas variadas formas) e de investimentos no Vale
do Paraíba Fluminense, principalmente em relação a uma sociedade cuja dinâmica econômica
gravita entre relações pessoais, marcadas por redes de parentesco, e relações capitalistas que,
por vezes, eram recém-institucionalizadas, como as estabelecidas a partir de 1850.
Muitas das transformações que começaram a se operar em 1850 – por
responsabilidade das elites locais ou das elites do Rio de Janeiro – modificaram certas
estruturas do complexo. Dele faziam parte o transporte – inicialmente, em animais e,
posteriormente, pelo transporte ferroviário, cuja ampliação de deu pelos investimentos das
elites locais comprando ações das ferrovias, em especial da Estrada de Ferro D. Pedro II,285 –
a produção de alimentos, as importações e exportações, o beneficiamento, a expansão de
fronteiras agrícolas, a negociação de capital, o controle de mão de obra, o acesso e
estabilização da posse da terra, entre outros fatores. Todas essas atividades eram necessárias à
produção de café e, sobretudo, à acumulação do capital.
Manter este mercado, principalmente após a década de 1850, com as proibições de
importação de escravos que assolavam o Vale do Paraíba Fluminense, era preocupante e a
produção de café precisava de “algo a mais” para fomentar a lavoura. Ridings286 comenta a
questão institucional no Brasil em relação aos bancos, aos créditos governamentais e a um
mercado de crédito que garantisse juros baratos para manter o sistema produtivo.
Os problemas bancários de crédito e moeda ameaçaram o desenvolvimento econômico do Brasil na segunda metade do século XIX. O mais importante foi o crédito pouco expansivo para a agricultura. Sem ele plantadores não poderiam modernizar suas operações ou em alguns casos até mesmo sobreviver. O próprio comércio também sofreu com crédito caro e de raro (…), o que levantou as taxas de juros e dificultou as transações comerciais mais simples. 287 [tradução livre]
284ZUIJDERDUIJN. C. Op. cit. p.08. The capital market requires other institutions as well. Participants need to contract obligations that can run for many years; this means they demand contracting institutions, providing them with the means to obtain evidence, preferably in writing. Contracting institutions are useless without organizations that can arbitrate conflicts and execute court decisions. 285Cf. LIMA, Célio de Aquiar. Op.cit.. 286Cf. RIDINGS, E. Business Interest Group in Nineteenth Century Brasil. Cambridge, Cambridge University Press, 1994 287Idem, p. 132. Problems of banking, credit, and currency threatened Brazil´s economic development in the second half of the nineteenth century. The most crucial was inexpansive credit for agriculture. Without it planters could not modernize their operations, as business interest group urged, or in some cases even survive. Commerce itself also suffered from expansive credit and from periodic shortages of currency, which lifted interest rates and made ordinary business transactions difficult.
101
Para Guimarães,288 a produção em alta escala, voltada para o mercado internacional,
possibilitou a criação dos primeiros bancos comerciais privados nas praças mercantis.
Gráfico 11
Brasil: Produtos de Exportação (1821-1830) – Receita das exportações em (%)
Fonte: IBGE. Anuário Estatístico 1939-1940. In: GUIMARÃES, Carlos Gabriel (1997), p. 55289
Em Vassouras, famílias ligadas ao fornecimento de crédito e ao mercado de capitais
ofereciam a custos baixos – 1% ao mês – empréstimos que financiavam a lavoura em épocas
de crise ou para a sua modernização, como é o caso clássico do Barão de Itambé290. Essa
posição nos garante afirmar, com certo conforto, que não havia uma prática de usura já que,
muitas vezes, os juros eram mais baixos que os praticados pelo oeste paulista.
Vassouras também foi palco de uma dessas experiências financeiras bancárias, o que a
retira do conceito de ter vivido apenas de créditos pessoais ou dos da praça mercantil do Rio
de Janeiro. Aproveitando o clima liberal que a economia brasileira sentiu na década de 1850,
com o aumento da autonomia creditícia das províncias, em especial com a ascensão de Souza
Franco ao ministério e com as reformas que garantiram aos bancos se tornarem. João
Evangelista Teixeira Leite, o Barão de Vassouras, possuidor de fazendas e cafeicultor,
associou seu capital e se tornou, em 1858, o Presidente do Banco Commercial e Agrícola do
288Cf. GUIMARÃES, Carlos Gabriel. Op. cit. 289Gráfico adaptado da tabela apresentada pelo autor. 290 nventário do Barão de Itambé – CDH da Universidade Severino Sombra.
Brasil: Produtos de Exportação - 1821-1890.
0
10
20
30
40
50
60
70
1821
-30
1831
-40
1841
-50
1851
-60
1861
-70
1871
-80
1881
-90
(%)
Café
Açúcar
Algodão
Borracha
Couros e Peles
Fumo
Cacau
Outros
102
Rio de Janeiro, instituição que se tornou emissora pelo decreto n°1971 de 31/08/1857. Sendo
um dos acionistas majoritários, o Barão de Vassouras assumiu a presidência juntamente com
o Dr. José Antonio de Oliveira Silva, Francisco José Gonçalves, Conselheiro Antonio
Henrique de Miranda Rego, Dr. Ignácio da Cunha Galvão, Francisco José de Mello e Souza,
Pedro Alcântara Machado e Dr. Francisco Assis Vieira Bueno, que faziam parte da
Diretoria.291
O Banco Commercial e Agrícola foi organizado em forma de sociedade anônima, já
garantido desde o Código Comercial de 1850, e, segundo Guimarães, formado pela associação
de 20.000:000$000 divididos em cem mil ações. Pelos artigos 2 e 3 do decreto n° 1971, o
Banco deveria abrir duas filiais, uma em Vassouras e outra em Campos, e mais quatro
agências nas principais cidades cafeicultoras do Vale do Paraíba.292 Pelo artigos 15 e 16,
Artigo 15. a faculdade de emittir bilhetes ao portador e vista, não podendo a somma emitida pelo banco, compreendida a emissão das Caixas Filiaes e agencias, exceder a 50% do capital realizado do banco. Os bilhetes emittidos pelo banco central não serão menores de 20$000, nem menores de 10$000 os que o forem pelas caixas filiaes e agencias.
Artigo 16. O Banco terá um fundo disponivel representado por moeda corrente, barras de ouro de 22 quilates e prata de 11 dinheiros, na importancia de hum quarto da sua emissão; e a Directoria poderá, para maior regularidade da circulação dos titulos emittidos, estabelecer semanal ou mensalmente com os Bancos de emissão que existirem no paiz a troca reciproca de seus bilhetes, pagando-se o saldo em conta corrente; e bem assim offerecer caução em valores equivalentes à décima parte de sua emissão”. 293
A situação limítrofe estabelecida pelos artigos, entre 20:000$000 e 10:000$000, não
era, evidentemente, prerrogativa do banco, mas essa característica do empréstimo acabou por
garantir ao credor local de Vassouras a sua operação de crédito no mercado sem uma
concorrência direta.
As crises dos anos de 1857 e 1858 provocaram uma saída volumosa de cambiais do
Brasil pressionando os recém-formados bancos. A origem é apontada nas quedas de preços
das commodities, que retraíram a até então expansiva economia norte-americana. Os ingleses,
baseados na Peel Banking Act, de 1844 – que, resumidamente, seria o controle dos bancos
ingleses por um banco central, – e vendo que o Brasil era um país tipicamente exportador de
commodity, logo exigiram o pagamento das dívidas. Como a vigência, no Brasil, era o padrão
ouro, as reservas de cambiais lastreadas no ouro subiram, por exemplo, de 460.107 libras em
291GUIMARÃES. Carlos Gabriel. O império e o crédito hipotecário: o estudo de caso do Banco Commercial e Agrícola 1858-1861. Artigo não publicado apresentado no Seminário “O Vale do Paraíba e a Segunda Escravidão” e "O Vale do Paraíba no século XIX e nas primeiras décadas da República", ocorrido em Vassouras entre os dias 23 e 25 de novembro de 2012. 292Idem 293Ibidem.
103
1855 para 956.651 libras em 1859, somente na província do Rio de Janeiro, cuja praça
mercantil foi tomada pelo pânico. A crise cambial prejudicou a exportação de café e estagnou
a tendência ao crescimento.294
Passada a crise, em 1858, os bancos começaram a funcionar baseados em letras
caucionadas em penhor e hipotecas. Porém, em Vassouras, o Banco sentiu dificuldade de
operar a transação de letras em relação às hipotecas. Para Guimarães, a explicação estaria
evidente no Relatório de 1860, que apontava uma crítica aos intermediários – comissários –
que extorquiam com “usuras escandalosas” os lavradores. Esses optavam pelo penhor cujos
juros eram baixos apesar do curto prazo em relação aos empréstimos cauçados por
hipotecas.295
Essa realidade iria mudar a partir de meados de 1865 quando houve um aumento
considerável de movimentos caucionados em hipoteca nos inventários e registros
pesquisados, conforme gráfico abaixo:
Gráfico 12
Registros de Hipotecas de Vassouras (1840-1880)
fonte: Fundo do CDH - USS
Houve aumento de empréstimos entre 1859 e 1860 de cerca de 20%, o que mostra a
necessidade de liquidez da crise. Quanto aos depósitos, não houve grande sucesso conforme
apontado no Relatório apresentado à Assembléia Geral dos Accionistas em 30 de setembro de
1859, transcrita por Guimarães:
A verba dos depósitos é quase nulla; este mesmo facto é menos devido á falta de confiança que merece este nascente estabelecimento [Grifo nosso], do que ao concurso simultâneo de outras causas, como sejam _ novidade do estabelecimento, escassez de reservas accumuladas, emprego mais lucrativo do
294 Ibidem. 295Ibidem.
0
10
20
30
40
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79
18
80
104
capital em um paiz novo, onde elle não abunde. Algumas destas causas podem ser removidas com o tempo; e então poderá também este estabelecimento funccionar como verdadeira caixa econômica (...)
Em 1860, o Relatório apresentado à Assembléia Geral dos Accionistas na mesma data
já relatava a confiança que os duzentos correntistas tinham dado ao Banco.
Devido aos problemas já desenvolvidos no capítulo II desse trabalho, estava próximo
o fim do Banco Commercial e Agrícola. Com a crise de 1857, houve a fragilização da figura
de Souza Franco no ministério e, com ele, de sua política descentralizadora em relação à
emissão de créditos e financiamento. A ascensão de Salles Torres Homem, Visconde de
Inhomirim, ao Ministério começou a selar o destino do Banco Agrícola.
(...) o Visconde de Itaboraí, que retornou para a presidência do banco após a queda de Souza Franco, a diretoria alegava que o banco só poderia desempenhar bem as suas funções, caso o ministro encaminhasse à Assembleia, medidas que fizessem o banco retornar as condições impostas pela Lei n.º 683, de 5/07/1853. Em outras palavras, significava retornar o monopólio das emissões ao Banco do Brasil, acabando com a pluralidade bancária e, também, com os bancos emissores como o Banco Commercial e Agrícola..296
O início da derrocada se daria pela Lei dos Entraves que, entre outras determinações,
regulava restritivamente aos bancos emissores e associações anônimas a emissão de vales
bancários e aumentava o rigor em relação à criação de sociedades anônimas. O resultado foi a
retração do sistema bancário. O Banco Agrícola passou a operar de forma conservadora,
restringindo o crédito, em especial o penhor a curto prazo, comprando ações e apólices da
dívida pública. Evidentemente, os empréstimos emitidos anteriormente começaram a ser
pagos e houve aumento dos depósitos acarretando o aumento dos dividendos entre os
acionistas. Em 1862, o Banco Commercial e Agrícola do Rio de Janeiro foi incorporado pelo
Banco do Brasil com intuito de sustentar a economia monetária e creditícia centralizadora
estabelecida pela Lei dos Entraves.297
A Lei dos Entraves mudou as opções de crédito em Vassouras substituindo o padrão
de penhor pela hipoteca de terras, conforme demonstrado no Gráfico 12, e de escravos.
Guimarães conclui sua exposição afirmando que o Banco Commercial e Agrícola não
introduziu qualquer “modernização” no processo financeiro. O autor supõe haver uma relação
entre os comissários e os acionistas do Banco, o que o leva a crer que muitos acionistas do
Banco e de suas filiais eram comissários de Vassouras ou de Campos.
Ao analisar o inventário do Barão de Vassouras, percebemos uma série de situações
que apontam para uma mudança de comportamento em relação à sociedade de mercado que
296Ibidem 297Ibidem
105
se forma. Seus inventários datam de 1884 e 1887. Eles mostram o pensamento já “capitalista”
do Barão. Pode-se notar uma ordem interessante de sua visão à sua filha. Lê-se, na página 41v
do inventário de 1884, sobre a divisão das cinqüenta apólices da dívida pública em seu poder:
“As apólices formarão um capital permanente e inalienável, livre e isento de todo e qualquer ônus e responsabilidades, penhor, hipoteca, fiança, abono, penhora, execução, sugeiçao (sic!) dividas próprias antigas, ou modernas (...) só podendo usar os lucros nunca vendê-los.”
O Barão investiu muito em crédito e hipotecas, conforme o Gráfico 14. Em apólices da
dívida pública, soma-se apenas o montante de 400$000. É importante notar que os créditos a
juros mudam em relação aos praticados pelo Barão de Itambé.
Tabela 07
Evolução da prática de juros entre o Barão de Itambé e o Barão de Vassouras
Ano % a.m. % a.a.
Barão de Itambé 1866 1% 12%
Barão de Vassouras 1884/1887 1% 10% a 12%
Gráfico 13
Composição dos investimentos financeiro do Barão de Vassouras, 1884/1887
Fonte: Inventário de Barão de Vassouras, CDH – USS.
Crédito
42%
Hipotecas
7%
Apólice da
Dívida Pública
0%
Créditos
repassados aos
filhos na partilha
(descontados em
partilha)
51%
Crédito
Hipotecas
Apólice da Dívida Pública
Créditos repassados aos
filhos na partilha
(descontados em partilha)
106
O aumento do volume de exportações do café e as demandas inerentes ao processo em
relação ao crescimento internacional geraram um encadeamento financeiro dentro de
Vassouras que, aos poucos, foi se definindo entre os agentes. Os juros passaram a obedecer a
uma lógica própria da commodity e, muitas vezes, pressionados pela praça mercantil do Rio
de Janeiro ou pelos bancos do governo.
Quanto ao Barão de Vassouras, segundo Muniz298 ao analisar seu inventário, sua
fazenda – composta de 162 escravos, 25.000 pés de café e 225 alqueires de propriedade – só
representava 16% de seu patrimônio; os 84% restantes representavam dívidas ativas.
Já Francisco José Teixeira Leite, ao falecer, decidiu, em testamento, não dividir a
Fazenda Cachoeira em herança aos filhos e, sim, apenas lhes dar as dívidas ativas. Para
Muniz,299 essa atitude era uma percepção da crise da cafeicultura e a aposta que os lucros
advindos das dívidas seriam melhor riqueza. Em importante trecho de seu testamento,
Francisco José afirmou: “enfim, o suplicante foi sempre mais comerciante e capitalista, do
que fazendeiro, tendo estabelecimento agrícola mais por passatempo.”. Seu patrimônio
também se compunha de Ações do Banco do Brasil, Apólices de Empréstimos, Fundos em
Londres e Ações da Ferrovia D. Pedro II.
O inventário de Cláudio Gomes Ribeiro de Avellar, o Barão de Guaribu, é um
documento, no mínimo, curioso. O Barão é dono de quatro fazendas: Antas, União, Guaribu e
Encantos. Nos primeiros dois inventários, de 63 e 74, não foram encontrados quaisquer
volumes expressivos de investimentos fora escravos, terras e café. Mas eles aparecem no
inventário de 1886 e se compõem de nove letras a 1% a.m. que, em quatro anos, lhe
garantiram 29% do capital aplicado, ou seja, um lucro de 14:512$592. Apesar de ser um
importante cafeicultor, não deixou de lançar-se ao crédito. Seu inventário mostra o montante
de 152:195$620 em empréstimos (sem o cálculo do prêmio), que se distribuem na seguinte
forma:
298MUNIZ, Celia Maria Loureiro. Op. cit, 2005. 299Idem.
107
Tabela 08
Empréstimos de Barão Guaribu
Valor em Réis Distribuição dos empréstimos. acima de 50:000,000 0%
de 25:000,000 a 50:000,000 0%
de 20:000,000 a 25:000,000 16%
de 15:000,000 a 20:000,000 05%
de 10:000,000 a 15:000,000 4%
de 5:000,000 a 10:000,000 16%
de 1:000,000 a 5:000,000 19%
até 1:000,000 50%
Fonte: Inventário de Barão de Guaribu, 1886, CDH – USS.
Vassouras quase viveu uma sociedade exclusivamente cafeeira. A colonização do
território era área proibida pela Coroa portuguesa até os finais do século XVIII e a experiência
açucareira foi relativamente tímida na área estudada. A entrada do café por volta dos últimos
anos do século XVIII em uma sociedade colonial – já que o Brasil eleva-se a Reino só em
1815 - leva-nos a concluir que esta experiência de plantio para o comércio externo sofreu, em
todo século XIX, duas grandes realidades: a da primeira metade, consistindo em uma
organização e expansão da produção; e outra realidade no meio do século XIX e posterior,
baseada em relações institucionalizadas, logo, reguladas, de acesso ao capital, à terra, ao
trabalho (nas variadas formas em uma sociedade de transição) e de determinações próprias da
política econômica300.
O comendador Francisco José Teixeira Leite, também considerado “capitalista”, segue
a tendência do Barão de Itambé. Vivendo de negócios financeiros, seu montmor está
distribuído da seguinte forma:
300 Neste último caso, conferir o trabalho de Ricardo Salles, O Vale era o Escravo.
108
Gráfico 14
Composição dos investimentos financeiro do Barão de Vassouras, 1884/1887
Fonte: Inventário de Barão de Vassouras, CDH – USS.
Marx faz uma análise da questão do crédito e do seu papel inicial nas sociedades de
transição para economias amplas de mercado.
(...) o sistema de crédito, que, em seus primórdios, se insinua furtivamente como modesto auxiliar da acumulação, levando por fios invisíveis recursos monetários, dispersos em massas maiores ou menores pela superfície da sociedade, às mãos de capitalistas individuais ou associados, mas logo se torna uma nova e temível arma na luta da concorrência e finalmente se transforma em enorme mecanismo social para a centralização dos capitais.
À medida que se desenvolve a produção e acumulação capitalista, na mesma medida desenvolvem-se concorrência e crédito, as duas mais poderosas alavancas da centralização. Paralelamente, o progresso da acumulação multiplica a matéria centralizável, isto é, os capitais individuais, enquanto a expansão da produção capitalista cria aqui a necessidade social, acolá os meios técnicos, (...)301
Apesar de Marx analisar o crédito em relação ao processo industrial, pode-se aplicar
parte deste pensamento à economia agroexportadora do Vale. Como foi anteriormente
abordado, a cafeicultura em Vassouras quase coincide com o processo de ocupação da região.
O capital provém do interior da província de Minas Gerais e do litoral do Rio de Janeiro
através da migração das famílias e vai constituir o capital inicial (ou primitivo) da
agroexportação do Vale302. A concentração da produção voltada ao mercado externo e, por
301MARX, Karl. O CAPITAL: Crítica da Economia Política. São Paulo, Nova Cultural, 1996. p. 258. 302Cf. STEIN, Stanley. Op.cit.
Bens móveis
0%
Mobilia
1%
Escravos
4%
Bens de Raiz
17%
Dívida ativa
78%
Bens móveis
Mobilia
Escravos
Bens de Raiz
Dívida ativa
109
processos anteriores – mercado de açúcar ou por capital oriundo dos negócios auríferos das
Minas Gerais –, nas mãos de um grupo privilegiado como a família Correa e Castro e,
posteriormente, os Teixeira Leite, gerou em Vassouras certa propensão à poupança. Essa
poupança, de acordo com a análise de Pires para a Zona da Mata, elevaria também a
disponibilidade de capital interno.303
Watkins304 afirma que “... apenas quando há muitas oportunidades nos mercados
internos à disposição dos investidores é que o montante da poupança local definirá, de
maneira significativa, a taxa de investimento”. Nesta perspectiva, o aparecimento do crédito
em Vassouras para vários fins decorreu de oportunidades que a economia cafeeira de
exportação legou através da busca pelos créditos para a lavoura. Alguns cidadãos de
Vassouras viam, nas suas poupanças pessoais, não formas de entesouramento, mas reservas
para empréstimos a juros que gerariam um retorno lucrativo do capital cedido.
Mesmo que para muitos casos a função de “capitalista” (que tem sido aleatoriamente confundida com a de “usurário”) não signifique mais que uma atividade secundária, não deixa de ser significativo a existência de recursos na forma de poupança disponível para empréstimos na riqueza de fazendeiros de café. Além de representar a existência dos elos de encadeamento financeiros que estamos caracterizando, sua presença vem colocar em evidência o quanto o crédito e o financiamento (e, portanto, o endividamento), entendidos como relações de natureza não só econômica mas também social, constituíam parte integrante do funcionamento e dinâmica das economias que vão se fundamentar na produção de café.305
De acordo com a leitura de súplicas de dívidas, cobranças judiciais de dívidas e de
inventários, podemos concluir que o pedido de empréstimo poderia ser para muitas
finalidades, desde a manutenção das fazendas e da produção até empréstimos pessoais para
honrar as dívidas cotidianas. O volume de capital emprestado variava de 100 reis a 12 contos.
Em Vassouras, até o presente momento, identificamos três grupos credores: o primeiro
composto por dois particulares, cujo crédito é oriundo dos próprios produtores de café que,
em momentos de poupança, utilizavam suas reservas para empréstimos diversos; o segundo
formado por indivíduos que não estavam necessariamente ligados à produção, apesar de
fazerem parte de certa “elite agrária”, que denominaremos “capitalistas de Vassouras” pelo
fato de seus negócios principais serem os empréstimos. E o terceiro, institucional, que são os
bancos de forma geral – quase todos localizados no Rio de Janeiro, com exceção do Banco
Agrícola de Vassouras, que teve curtíssima duração.
Tal diversidade já fora apontada por Pires,
303PIRES, Anderson. Op. cit. p. 196. 304Watkins apud Pires, Anderson. Op. cit. p. 197. 305Idem, p. 188.
110
Um leitor mais atento poderia acusar nossa análise de tautológica, advertindo que, afinal de contas, ... os mesmos atores sociais que estão a demandar financiamento seriam os mesmos a prover os recursos financeiros. Esta crítica seria válida se considerássemos a classe dos grandes proprietários de terra como uma massa invariável, inerte, de comportamento uniforme e, principalmente, destituída de níveis significativos de diferenciação em sua posição financeira, grau de endividamento, níveis variados de lucratividade.306
Tanto na Zona da Mata Mineira, analisada por Pires, quanto em Vassouras, apontada
por Stein e verificada em inventários e em outras fontes do Centro de Documentação
Histórica de Vassouras, encontra-se uma diversidade de “tipos” de elite agrária afinada com
várias formas de pensamento político e econômico. Essa diversidade dá a tônica ao
desenvolvimento das diferentes formas de investimento em Vassouras.
As variações do complexo cafeeiro amplo307 geram, pela característica fundamental da
ineslaticidade do produto em questão e pela dinâmica da produção, endividamentos
constantes, que são supridos por capital acumulado nas mãos de outros elementos daquela
sociedade. Essa relação entre demanda e oferta de capital faz germinar o mercado financeiro.
Não obstante, nos mercados em formação ainda tímidos das economias agrárias de
exportação antes de 1850, podemos notar amplamente as relações de conhecimento pessoal,
relações de amizade ou parentesco308, mas como não poderia de ser já que a necessidade de
garantir a posição social, o prestígio ainda manter forte na malha social, e o retorno com certo
grau de certeza de capital creditado! Enfim, o credor do Vale do século XIX transita numa
sociedade baseada em relações de mercado que ele próprio estava construindo, mas ainda
dependente das tradições de um antigo regime baseado nas relações de Corte. Neste ambiente,
ele procurou resguardar seus interesses individuais.
Para Polanyi.
A descoberta notável de pesquisa histórica e antropológica recente é a economia que o homem, como regra, está submerso em suas relações sociais. O homem não age de modo a salvaguardar o seu interesse individual na posse de bens materiais, agem de modo a salvaguardar a sua posição social, suas reivindicações sociais, suas vantagens sociais.309 [Tradução livre]
Mas não podemos deixar de analisar também que este homem que salvaguarda sua
posição social o faz pautado em uma sociedade de classes que estabelece a posse – de terras e
escravos – como elemento fundamental de distinção social. Suas classes políticas mais
306Ibidem, p. 198 307O termo aqui neste momento inclui tanto toda a cadeia de produção do complexo cafeeiro do Vale como também seus mercados consumidores no panorama internacional. 308Cf. PIRES, Anderson. Op. cit. p. 199. 309POLANYI, Karl .Economieprimitive, arcaiche e moderne. <http://www.graffinrete.it/cittanova/articolo.php?id_vol=18> acessado em maio de 2009.
111
influentes eram, sobretudo, detentores de posses que quase naturalmente mantinham relações
sociais e interesses comuns a fim de conservar os seus privilégios de classe.
Como a economia de exportação do Vale durante o século XIX garantia a produção e
a comercialização por parte de um grupo muito restrito, as relações de crédito tornavam-se
não só uma forma privilegiada de acumulação como também, graças à dinâmica já discutida
neste trabalho da relação oferta-demanda de crédito, permitiam a determinados indivíduos na
sociedade se especializarem como credores ou banqueiros. Assim sendo, o capital financeiro
(ou creditício) se articulava, no processo de acumulação, com o capital mercantil ou capital
comercial oriundo da produção agrária.
É certo, conforme analisado em inventários e súplicas de dívidas, que parte do capital
emprestado no século XIX em Vassouras também se destinava ao consumo de necessidades
ou para questões de subsistência cotidiana. Muitas vezes, um investimento era perdido pelo
não pagamento por parte do devedor (que morria ou entrava em falência ou não tinha
rendimentos para cumprir momentaneamente seu compromisso) ou pelo perdão parcial ou
total da dívida por parte do credor.
Público e privado, muitas vezes, se misturavam na mente dos homens que viveram não
só a Idade Média, mas, fundamentalmente, a Idade Moderna e o período colonial brasileiro,
incluindo parte do Império. As primeiras notas que regulavam essas questões são da Lei de
Dom Fernando, por volta de 1375, referente às sesmarias, prática que se transferiu à
colônia.310 Não se tinha muito padrão ao se estabelecerem, inclusive, medidas. Consta que, de
acordo com Ulisses Albuquerque, referindo-se ao ano de 1815 no Brasil: “O medidor enchia o
cachimbo, acendia-o, montava a cavalo, deixando que o animal marchasse a passo. Quando a
cachimbo se apagasse, acabando o fumo, marcava uma légua.”311
Honorato (2002), em um artigo sobre modernização portuária no Império do Brasil,
aponta certa dificuldade na questão público-privado-estatal específica sobre as terras
litorâneas, mas que incide uma luz – mesmo que indireta – sobre o problema já em 1831. Ele
diz:
Se o instituto da precariedade do domínio privado dos terrenos litorâneos confunde-se com a própria história do direito, deve-se ter em mente que tais terras eram entendidas como coisa comuma todos – res communesomnium – como nos ensina Clovis Bevilacqua, e não como uma propriedade do Estado.312
310PEREIRA apud JACOMINO, Jorge. Op. cit. p. 02. 311Idem, pág. 04-5
312HONORATO, Cezar. T. O Estado Imperial e a modernização portuária. In LAPA, R. do A; SZMRENCSÁNYI, Tamás (org). História Econômica da Independência e do Império. São Paulo, Hucitec/USP, 2002.p. 163.
112
As relações de propriedade e de regularização viriam a mudar com o próprio
fortalecimento da economia. Desde a década de 1840, os liberais do Rio de Janeiro
consolidavam o poder nas esferas do Estado e parte destes liberais, segundo Mattos,313 era
composta pela elite senhorial agroexportadora, muitos da classe de negociantes ligados à
exportação e à importação. Esse grupo privilegiado, aproveitando a oportunidade de
modernizar a economia nacional, abriu um amplo processo de reformas, leis e decretos que
garantiam a formação de um amplo mercado financeiro no Império. Relembramos que os
políticos criaram importantes medidas institucionais, como a Reforma Tarifária de 1844; a
Reforma Monetária de 1846; o Código Comercial, a Lei de Terras e o fim do tráfico
internacional em 1850. As leis foram formas mediadoras da legitimação dos interesses das
novas classes no poder e de seus objetivos na modernização da economia do Império.314
Gráfico 15
Distribuição de Títulos de Barão no Brasil (1840-79)
Fonte: Guimarães, 1997:67 (adaptado)
313Cf. MATTOS, Ilmar Rohloff. Op. cit. 314GUIMARÃES, Carlos Gabriel. Op. cit. p. 60.
Distribuição de títulos de Barões 1840-79
0
50
100
150
200
250
1840-49 1850-59 1860-69 1870-79
Outros Barões Barões de Café
113
O Gráfico 15 representa a quantidade de títulos de Barões do Café em relação aos
demais títulos entre 1840-79. Isso corresponde ao período que Ilmar Mattos aponta como o
“Tempo Saquarema”.315
A cafeicultura definia uma nova relação de mercado, muito mais ativa e dinâmica. O
produto era o principal elemento de interesse do capital. Contudo, a alta de preços no mercado
internacional do café e a natureza expansiva da produção geravam conflitos de posse no
âmbito interno do acesso à terra. Como o mercado crescia e a terra fértil e propícia se
esgotava, os fazendeiros buscavam disputar as terras férteis do Vale para agregá-las às suas
propriedades. Enquanto havia terra disponível, o preço era irrisório ou inexistente; mas o
valor da terra agregado ao valor do café gerou um disputado mercado na região acabando por
ser regrado na Lei de Terras.
David Harley, citado por Brito, atenta à forma capitalista das propriedades imobiliárias
existentes quando a propriedade se tornou uma forma especial de capital financeiro, entrando
no circuito de ampliação de capital, financiamento e juros; enfim, quando a terra, representada
por títulos, assumiria “um caráter de capital fictício”.316
O crescimento do mercado de hipotecas desempenha papel importante no processo pelo qual a renda da terra é absorvida pelo processo de circulação do capital em geral e, portanto, no movimento histórico pelo qual a propriedade territorial alcança seu papel plenamente capitalista.317
Não podemos esquecer que a estratégia dos mercados nascentes, como é o caso desta
pesquisa, sempre sobrepõe novas estratégias às formas primitivas de organização da produção
e do acesso à terra.
Um aspecto importante para a análise do processo de constituição do mercado imobiliário está, portanto, em compreender o movimento histórico no qual, no quadro de uma dada sociedade, a propriedade imobiliária é introduzida no processo de abstração que caracteriza a racionalidade capitalista, ganhando mobilidade e servindo como equivalente de capital. 318
A mobilidade da propriedade fundiária se deu nas relações de compra e venda de
terras, comuns nos inventários e nos registros de hipotecas. A publicidade da negociação
gerou credibilidade e garantias pelas quais se podia acionar juridicamente. A negociação,
garantida pelas leis que estabeleciam os direitos de propriedade no Brasil e as garantias das
hipotecas, caracterizou a mobilidade da propriedade fundiária e imobiliária.
Outro elemento fundamental para a formação dos mercados foi o Código Comercial.
O Código nasceu de um debate e, de acordo com as Disposições Gerais no Capítulo IV, a lei 315Cf. MATTOS, Ilmar Rohloff. Op. cit. 316Idem, p. 37-8. 317Ibidem, pág. 38. 318Ibidem, pág. 39.
114
garantiu as práticas tradicionais e abriu perspectivas às garantias de compra, venda,
financiamento, transporte, cobranças e representações mercantis.
O debate histórico da regulamentação comercial no Brasil se iniciou logo após a
independência, através de uma comissão para elaborar o Código presidida pelo Visconde de
Cairu. Em 1832, outra comissão foi presidida pelo Visconde de Sepetiba e, em 1843, uma
nova comissão foi nomeada pelo governo. Essa demora na aprovação de um Código
Comercial se dava por questões políticas e por falta de um projeto político maior em relação
ao Império. Só em 1850, uma comissão formada por José Clemente Pereira, Caetano Alberto
Soares, José Thomaz Nabuco de Araújo, Francisco Ignacio de Carvalho Moreira e Irineu
Evangelista de Souza concluiu o projeto de estabelecer um Código Comercial ao país.319
Para Muniz, “em 1850, com o aumento do preço dos escravos e para facilitar o crédito,
o Império estabeleceu um Código Comercial que legislou sobre falências, contratos e
hipotecas tornando as operações comerciais mais claras e seguras”.320 Já para Guimarães, ele
garantiu uma legislação mercantil própria incluindo a organização de bancos.321
O Código estabelecia duas formações em relação às organizações de associação de
capital: a sociedade anônima e a sociedade comercial. Segundo o Diccionário Universal de
Commercio, de Alberto Jaqueri Sales, citado por Guimarães,
(...) Sociedade: Esta palavra no commercio se diz genericamente a huma caza de negócios, em que há dois, ou mais interessados; entende-se também colletivamente do contrato, ou escriptura feita entre os socios.
No primeiro sentido a palavra sociedade he synonima a de companhia (...) acrescentarey somente neste, que nas condições, na administração e na liquidação da sociedade he que o negociante carece de toda a sua prudência adquirida pela experiência e pela lição pois que em primeiro lugar, há poucos contratos em que a boa fé e a probidade se fação mais necessarias; segundo o, que uma sociedade mercantil he susceptivel de todas a condiçoens, em que as partes querem concordar, e que nesse amplo arbitrio se devem precaver todas as circunstâncias que poderem alterar, ou prejudicar a boa fé do contrato (...).322
As companhias podiam ser fundadas, o capital delas poderia ser dividido em ações e o
sócio se responsabilizaria pela cota de ação que lhe era devida (valor da ação)323. Assim
sendo, abriu-se a possibilidade de associação de capital em atividades de risco e garantiram-se
novas formas de investimentos a partir da segunda metade do século XIX. Já nas associações
comerciais, a responsabilidade dos sócios é ilimitada. Na prática, em ambos os casos, a
responsabilidade era ilimitada, somente sendo regulamentada pelo decreto 3.708, em 1919.
319GUIMARÃES, Carlos Gabriel. Op. cit. p. 83-7 320MUNIZ, Celia Maria Loureiro. Op. cit 2005.p. 29. 321GUIMARÃES, Carlos Gabriel. Op. cit. p. 87. 322Idem, p. 93. 323Ibidem, p. 94.
115
Mas tais condições deram oportunidade aos donos de capital acumulado de se associarem e de
expandirem seus negócios, inclusive nas relações de crédito. 324
No Código Comercial, já se previa o uso da boa-fé como cláusula geral. De acordo
com o art. 131,
Art. 131. Sendo necessario interpretar as clausulas do contracto, a interpretação, além das regras sobreditas, será regulada sobre as seguintes bases:
1. A intelligencia simples e adequada, que for mais conforme á boa fé, e ao verdadeiro espirito e natureza do contracto, deverá sempre prevalecer á rigorosa e restricta significação das palavras;
2. As clausulas duvidosas serão entendidas pelas que o não forem, e que as partes tiverem admittido; e as antecedentes e subseqüentes, que estiverem em harmonia, explicarão as ambiguas;
3. O facto dos contrahentes posterior ao contracto, que tiver relação com o objecto principal, será a melhor explicação da vontade que as partes tiverão no acto da celebração do mesmo contracto;
4. O uso e pratica geralmente observada no commercio nos casos da mesma natureza, e especialmente o costume do lugar onde o contracto deva ter execução, prevalecerá a qualquer intelligencia em contrario que se pretenda dar ás palavras;
5. Nos casos duvidosos, que não possam resolver-se segundo as bases estabelecidas, decidir-se-ha em favor do devedor. (CÓDIGO COMERCIAL BRASILEIRO DE 1850)
A boa-fé era uma forma de interpretação dos contratos que, quando conflituosos,
podiam ser analisados, por regra estabelecida em lei, através da “inteligência” simples
significando que a lei procurava dar agilidade à execução dos contratos. Assim, as partes
poderiam explicar as questões ambíguas dos contratos em juízo. Já os costumes locais eram
levados em conta pela lei, o que dava certo ar de familiaridade aos contratantes ao adotá-la. A
flexibilidade da lei poderia garantir agilidade ao processo, bem como levar ao trâmite legal as
tradições estabelecidas nessa sociedade em transição.
No Capítulo VII do Código, que correspondia aos assuntos comissariados, havia a
garantia de uma série de procedimentos para os atos de crédito de variadas formas:
negociação de prazos, contratos mercantis, formas judiciais de cobrança, definição das marcas
nas mercadorias compradas, entre outras situações. O comissário era o responsável também
pela manutenção do sistema quando a situação, muitas vezes, fugia ao controle dos produtores
e estes se viam na necessidade de se abastecerem com recursos externos. Franco, citada por
Marquese,325 afirma que os comerciantes e traficantes do período, na transição de uma tímida
economia agrária para uma crescente e pesada economia agroexportadora, eram solicitados ao
324Ibidem, p. 96. 325MARQUESE, Rafael Bivar & TOMICH, Dale. Op. cit. p. 16.
116
máximo para suprir as demandas dos mais variados créditos e negócios. Havia uma
combinação de capital já acumulado dos processos coloniais com uma nova economia de
mercado nascente que viria a encontrar, nos efeitos de encadeamento, um sustentáculo nas
relações financeiras e creditícias. Nas palavras de Franco, “(...) as próprias práticas de
comércio amoldaram-se de forma a permitir que o dono de terras, parco de recursos
financeiros, adquirisse os meios de produção que necessitava, ficando garantidos, porém, ao
negociante ágios elevados das quantias que empatava”326. Guimarães completa, “(...) mesmo
utilizando recursos de terceiros, através dos depósitos à vista, o banco emprestava sob a forma
de desconto de letras, e através de um intermediário, que podia ser um comissário ou um
outro comerciante ligado ao setor importador e exportador”. 327
Já o debate sobre o crédito hipotecário foi polêmico desde a década de 1850 e não
pode, de forma alguma, ser dissociado dos debates de propriedade da terra. De acordo com
Brito “Em 1854, já corria na Câmara dos Deputados, projeto versando sobre o assunto, no
qual se apontava a necessidade de adequação da legislação então vigente à ambicionada
modernização”.328 A Câmara afirma que o crédito hipotecário está intimamente entrelaçado
com as “transacções que se aventão na pratica dos negócios; importa o desenvolvimento da
indústria, o progresso da agricultura e a prosperidade material de um paiz (...)”329. A câmara
continua comparando o Brasil com Alemanha, Suíça, Hungria, Holanda, Grécia e Bélgica,
afirmando que estes países estão na vanguarda do sistema hipotecário. A preocupação das
elites brasileiras era adequar o capitalismo nascente no Brasil aos instrumentos de mercado
das economias internacionais garantindo que o mercado de crédito pudesse operar. Como já
foi afirmado, a Lei de Hipotecas tinha, como norte, a ideia de especificidade e publicidade
para torná-las dignas de fé pública. A elite reconhecia que as relações de crédito estabelecidas
seriam de fundamental importância para o crescimento econômico.
“É hoje geralmente admitido que a especialidade e publicidade das hypothecas são os princípios fundamentais de um bom regimem hypothecario; sem elles não é possível garantir-se o crédito, que é a alavanca priomordial da agricultura e da industria; pela especialidade restringe-se a obrigação a limites certos e determinados, deixando fora, no gyro das transacções a parte livre dos bens do devedor; pela publicidade tornão-se a todos conhecidos os encargos e obrigações da propriedade, como elles devem ser, a fim de firmarem a base da confiança publica e a garantia dos interesses individuais. (Reforma Hipotecária de 1856)330
326 Ibidem. 327GUIMARÃES, Carlos Gabriel. Op. cit. p. 58. 328BRITO, Mônica Silveira. Op. cit. p. 136. 329Ibidem. p. 136. 330Ibidem.p. 137.
117
Para Levy331, ainda na primeira metade do século XIX, os ativos financeiros eram
pouco diversificados; existiam apenas, formalmente, as letras de câmbio332 e as notas
promissórias333. Para resolver o problema da falta de liquidez, e pelo surgimento de casas
bancárias a partir de 1830, as instituições financeiras começaram a emitir vales bancários. O
protecionismo gerado pela tarifa Alves Branco (1844), a ascensão dos preços do café na
primeira metade do século XIX e a criação do Código Comercial geraram uma demanda por
crédito em vários setores da sociedade brasileira. Em 1838, para resolver o problema
monetário e as solicitações de crédito, foi criado o Banco Comercial do Rio de Janeiro, que
passou a emitir papel comercial com o intuito de promover um ativo financeiro que
proporcionasse renda fixa e correspondesse às expectativas econômicas do período. Esta
prática foi seguida por várias outras praças fundadas.
Para que haja qualquer crédito territorial, a propriedade da terra deve ser reconhecida,
por isso a publicidade, a Lei de Terras e o registro das propriedades passariam a ser
fundamentais para que se pudessem hipotecar os bens na busca do crédito.
Em 1864, surgiu a Lei de Hipotecas. Poderiam, pela tal lei, serem hipotecados não
somente as propriedades em si, mas os acessórios das propriedades, como máquinas,
escravos, plantações entre outros. Em 1866, o Banco do Brasil passou a receber escravos
como garantias, ampliando o acesso ao crédito hipotecário334 e beneficiando profundamente
os cafeicultores do Vale do Paraíba. Tal prática só deixou de ser utilizada em 1884, alguns
anos antes da abolição.
Para Brito335, a implantação do crédito hipotecário foi um processo lento e com
algumas falhas. Dez anos após a lei, o governo, através do Decreto n° 2.387 de 06 de
novembro de 1875, garantia as amortizações e juros às letras hipotecárias na busca de
fomentar essa prática econômica. Os empréstimos hipotecários dos bancos eram relativamente
caros, em geral giravam em torno de 6% de juros e o prazo de pagamento era, em média, de
cinco anos. As letras de hipotecas serviram, mais tarde, como recursos de jogo financeiro no
sentido de serem utilizadas no Encilhamento. Os bancos davam aos fazendeiros as letras de
331Cf. LEVY, Maria Bárbara. Op. cit. 1977 332Letras de Câmbio são títulos negociáveis no mercado onde uma pessoa dá a ordem a uma segunda que pague uma determinada quantia a uma terceira, em geral nos negócios de cunho internacional. A letra de câmbio deve conter o valor do pagamento, a data e o local para efetuá-lo (Cf. SANDRONI, Paulo. Op. cit. e LEVY, Maria Bárbara. Op. cit.). 333As Notas Promissórias são ordem de comprometimento entre dois agentes onde um deles se compromete a pagar o valor estabelecido na nota em determinada data. (Cf. SANDRONI, Paulo. Op. cit.) 334Idem. 335BRITO, Mônica Silveira. Op. cit. p. 140.
118
hipotecas, negociadas a longo prazo, e resolviam o problema da liquidez monetária,
garantindo reservas para investir onde quisessem.336
Porém, no financiamento do Vale, o banco não funcionava sozinho; havia certa
relação entre as casas bancárias e o comissariado do café. Nenhum comissário tinha o poder
de um grande banco, como o Banco do Brasil, mas fazia uma ponte entre as casas bancárias
do Rio de Janeiro e os cafeicultores do interior do Vale do Paraíba Fluminense.
Constituindo de longe, o mais ativo e poderoso setor do comércio do Rio de Janeiro, os comissários sacavam abundantemente sôbre as vinte e uma casas bancárias fundadas na década de 50 e 60. A despeito dos serviços prestados pelos estabelecimentos bancários aos comissários, os capitais de que dispunham eram relativamente restritos; individualmente, nenhum dêles possuía o capital do Banco do Brasil, instituição oficial, com seus 30.000 contos.337
O artigo 264 do Código Comercial estabelecia as informações necessárias a qualquer
atuação jurídica quanto às relações de crédito.
Art. 264 - As cartas de credito devem necessariamente contrahir-se a pessoa ou pessoas determinadas, com limitação da quantia creditada; o commerciante que as escreve e abre o credito fica responsavel pela quantia que em virtude dellas for entregue ao creditado até a concorrencia da somma abonada.
As cartas que não abrirem credito pecuniario com determinação do maximo presumem-se meras cartas de recommendação, sem responsabilidade de quem as escreveo.
Logo em seguida, o artigo 265 garantia todas as questões relativas a hipotecas. A
publicidade dos acordos era a tônica do Código, ou seja, todas as ações deveriam ser
garantidas. No registro das escrituras de hipotecas, especificavam-se a natureza da dívida, a
importância, a causa que antecede à hipoteca, a situação dos bens hipotecados, entre outras
informações.
Em geral, o trâmite do processo era rápido e seguia os padrões gerais nos quais, a
partir de uma dívida não paga, o credor pedia à Justiça local a execução da dívida. O devedor,
muitas vezes, tinha a opção de defender-se tentando negociar a dívida ou aumentando prazos
de pagamento, como consta nos processos intitulados “súplicas de dívidas”. A partir da
petição do credor, o juiz determinava o trâmite do processo de acordo com a Lei. A situação
toda era transcrita nos autos do processo como a causa da hipoteca, a descrição do bem, a
situação da hipoteca, os termos do resgate do bem, os prazos. Em caso de não pagamento da
dívida, a hipoteca era executada, indo o bem a leilão por edital público – em geral, nos jornais
locais. A lei também previa o caso de um bem ser duas ou mais vezes hipotecado
simultaneamente. Nesse caso, o artigo 270 prevê que:
336Idem. 337STEIN, Stanley. Op. cit. págs. 280-1
119
Art. 270 - Se alguma cousa for hypothecada a dous ou mais credores, estes preferirão entre si pela ordem estabelecida nos (arts. 884 e 885): mas se o valor da cousa hypothecada cobrir todas as hypothecas, ou se paga a primeira ainda houver sobras, nestas, ou no excedente do valor ficarão radicadas a segunda ou mais hypothecas.
Havia sempre a preocupação de apresentar a documentação que comprovasse a dívida,
caso contrário, o depoimento do devedor era anotado nos autos do processo, garantindo a
credibilidade do ato da cobrança.
As constantes crises e a sensibilidade das alterações de preço e produção em relação à
demanda do mercado externo levaram à política econômica brasileira a adotar mecanismos de
adequação já na segunda metade do século XIX. Em 1888, o Visconde de Ouro Preto
determinou a emissão de títulos da dívida como forma de crédito para garantir a expansão da
economia e a continuidade da produção brasileira no mercado internacional. Entretanto, como
a aquisição de crédito desta forma precisava de garantias baseadas na produtividade das
fazendas, os fazendeiros de Vassouras viram-se alijados do processo.
O comissário também contribuía para o processo de especialização da lavoura
estimulado pela ampliação do consumo nos mercados internacionais. Em 1860, o Barão de
Paty teria comprado cerca de doze sacas de milho do comissário para suprir sua alimentação,
visto que em sua fazenda, em 60, haviam-se esgotado as terras para o plantio de roça de
subsistência. Todos os fatores de produção da fazenda teriam sido voltados para a extração
máxima dos benefícios do mercado internacional de café338.
Porém Franco, citado por Brito,339 analisa a imobilidade do capital como crédito
introduzido pelo comissário. Como era creditado aos donos de fazendas cafeeiras, o retorno
demorava por causa da produção de café, que ditava o dinamismo desses investimentos.
Mesmo os grandes volumes de capital disponibilizados pelos comissários eram diluídos entre
os fazendeiros. Brito ainda afirma que essa dispersão e engessamento do capital na produção
cafeeira impediam o surgimento de um sistema bancário que pudesse dispor recursos e
movimentar o sistema financeiro.
Mommsen, analisado por Dobb,340 debruça-se sobre a formação de uma economia
monetária e mercantil e aponta o aparecimento, no meio do processo da formação capitalista
européia, da figura do credor, que passa a existir quando a economia mercantil atinge espaços
nos mercados distantes.
“Enquanto o regime da antiga guilda artesanal, onde o artesão vendia seus produtos a varejo no mercado da cidade, presumivelmente não se incluia nessa definição, o capitalismo poderia ser
338Cf. MUNIZ, Célia Maria Loureiro. Op. cit. p. 23. 339BRITO, Mônica Silveira. Op. cit. p. 44. 340MOMMSEN apud DOBB, Maurice. A Evolução do Capitalismo. Rio de Janeiro, Guanabara, 1987. p. 16.
120
considerado já presente assim que os atos de produzir e vender a varejo se separam no espaço e no tempo pela intervenção de um comerciante atacadista que adiantava o dinheiro para a compra de artigos com o fito subseqüênte venda com lucro.” 341
Fragoso, já em seu Homens de Grossa Aventura, demonstrou que as formas de
enriquecimento nos fins do XVIII não estavam concentradas somente na fidalguia ou em uma
classe privilegiada do sistema, mas dissolvida entre elite, homens livres que voltavam-se ao
mercado interno, exportadores, financiadores, colonos e estrangeiros, enfim, miríades de
indivíduos que buscavam suas formas de ascensão social e econômica dentro da lógica do
sistema, que nada mais era que a acumulação e o enriquecimento.342
341Idem. p. 16. 342Cf. FRAGOSO, João. Op cit.
122
Concluímos que o século XIX foi um tempo de intensas transformações para Brasil
recentemente independente. A formação do complexo cafeeiro forçou o país a repensar suas
instituições, seu dinamismo econômico e suas finanças.
Através da teoria de encadeamento de Hirschman, conseguimos concluir que a
dinâmica da produção de café fez aparecer um mercado financeiro local para suprir uma
demanda por crédito, necessária visto a característica inelástica do produto. Até onde se pode
perceber, a elite financeira da região ou, pelo menos, muitos de seus indivíduos, cumpriu o
papel de financiadora invertendo seus capitais e suas poupanças particulares, gerando créditos
ao invés de investir diretamente em terras. Esses empréstimos são cômodos, pois eram
relativamente fáceis de serem alcançados – já que dependiam da confiança e honradez, com
juros relativamente baratos (1% a.m).
Como objetivos secundários, descrevemos o desenvolvimento das estradas que
garantiram o escoamento efetivo da produção de café por um tempo até a vinda da ferrovia.
Por fim, percebemos, a partir de 1870, um movimento crescente em relação às hipotecas,
mostrando que a crise no Vale se avolumava e que o endividamento provocado pelo
esgotamento da produção (seja por escassez de terras ou envelhecimento dos cafezais e crise
de mão de obra) tornou-se mais intenso.
Através do Barão de Itambé, percebemos o movimento de empréstimos e
demonstramos a capacidade de pagamento dos devedores naquele espaço temporal.
Trouxemos à tona novos atores ao debate do crédito, como Anna Bernardina, até
então, uma figura obscura em relação a este assunto.
Por fim, discutimos como o ouro das Minas Gerais, ainda no século XVIII, aumentou
a liquidez e garantiu uma considerável expansão da moeda, o que levou à instalação da Casa
da Moeda na Praça Mercantil do Rio de Janeiro. Porém, com a crise das Minas, houve
retração no meio circulante e a Casa da Moeda viu-se obrigada a restringir a cunhagem no
início do século XIX343. Juntamente com a situação apresentada e por questões do mercado de
ações, o Banco do Brasil teve sua atuação encerrada em 1829.
A situação seria ruim se não houvesse os agentes do crédito privado que garantiram o
investimento nas atividades da capital e do interior do Rio de Janeiro. Eram financistas – ou,
de acordo com alguns autores “capitalistas” –, em geral comissários e comerciantes.
As casas comerciais e as casas bancárias funcionavam como verdadeiros bancos.
Mesmo antes da instituição da Lei Comercial de 1850, as casas comerciais e as casas de
343Cf. MÜLLER, Elisa. Op. cit.
123
desconto viabilizavam transações financeiras importantes para suprir um estrangulamento
gerado pela falta de liquidez da moeda. Tais negociações do mercado de crédito (seja na
forma de títulos ou letras) se organizavam sem a tutela nem o controle do Estado. As atuações
desses novos bancos geraram novas formas de crédito e investimento, tais como: letras, vales,
bilhetes, warrants, notas, cupons etc344. Apesar das limitações ocorridas no período, os vales
passaram a ser transacionados como principal moeda de crédito privado e as letras de câmbio,
como elemento de transação de dívidas no comércio exterior, já que se tratava de um período
de forte exportação de commodities.345
Quando estávamos na conclusão desta dissertação, o Centro de Documentação de
Vassouras nos comunicou a ampliação do fundo de inventários. Isso nos leva a crer que o
assunto está longe de ser esgotado, pelo contrário, o estudo do movimento creditício pode
contribuir para um melhor entendimento de como o Brasil, país agroexportador e
escravocrata, durante o século XIX foi capaz de não só se inserir no mercado internacional
como também de se sustentar por um período de tempo.
Acreditamos, por fim, que os registros de hipotecas e a movimentação financeira geral
podem nos dar algumas respostas positivas sobre as questões nebulosas que ainda assolam os
estudos sobre a crise que assolou o Vale do Paraíba Fluminense.
344 Cf. ANDRADE apud GUIMARÃES, Carlos Gabriel. Op. cit. p. 56 345 Cf. MÜLLER, Elisa. Op. cit.
125
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