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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS- UFMG INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS- IGC DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA CRISÂNGELA ELEN DE SOUZA Territórios místicos religiosidades e usos das plantas que curam BELO HORIZONTE 2018

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS- UFMG … · Á minha mãe que sempre se esforçou para me proporcionar a melhor educação ... alunos/agricultores da Licenciatura do Campo/FAE-UFMG

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS- UFMG

INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS- IGC

DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA

CRISÂNGELA ELEN DE SOUZA

Territórios místicos – religiosidades e usos das plantas que curam

BELO HORIZONTE

2018

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CRISÂNGELA ELEN DE SOUZA

Territórios místicos – religiosidades e usos das plantas que curam

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao

Departamento de Geografia do Instituto de

Geociências da Universidade Federal de Minas

Gerais, com requisito para graduação em Geografia

na modalidade Licenciatura. Orientação: Profa.

Maria Luiza Grossi Araújo.

BELO HORIZONTE

2018

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Monografia intitulada Territórios místicos – religiosidades e usos das plantas que

curam de autoria de Crisângela Elen de Souza a ser defendida em 12 de julho de 2018

pela banca examinadora constituída pelos seguintes membros:

Nota:_____________.

Professora Drª Maria Luiza Grossi Araújo (Orientadora)

Professora Drª Conceição Clarete Xavier

Professora M.ª Danielle Gregole Colucci

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Dedico este trabalho a todos que estiveram ao meu

lado me apoiando e auxiliando para meu

crescimento cognitivo, pessoal, espiritual.

Gratidão eterna.

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AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar, agradeço a Deus e aos seres de luz que sempre me

auxiliaram nesta caminhada universitária;

Á minha mãe que sempre se esforçou para me proporcionar a melhor educação

possível, e hoje pode me ver formar em umas das melhores universidades

públicas do país;

Às minhas irmãs e meu cunhado, que de uma forma ou outra, sempre me

auxiliaram com recursos financeiros para concluir essa caminhada;

Ao Dedé companheiro, que me apoia nas decisões mesmo que não pareçam

claras, mas são meus sonhos;

Alguns amigos são mais que amigos, são irmãos. Quero agradecer imensamente

a Camila Esteves, irmã acadêmica, que muito me ensina; nossos conhecimentos

têm sido bem além das fronteiras da universidade – geografamos pelo país;

Não posso me esquecer das pessoas que me auxiliaram na academia: a

Professora. e amiga Clenice Griffo (mãe acadêmica), pessoa que me ensinou a

ser professora, e também como escrever artigos, projetos. Sempre embarcava

nas minhas ideias no Centro Pedagógico;

Josenise (FUMP), assistente social e amiga que sempre me ajudou nos auxílios

estudantis e na vida pessoal também. Agradeço a FUMP que me auxiliou na

Universidade até a formatura, me possibilitando dedicar aos estudos na

geografia e no espanhol;

Também gostaria de agradecer a minha orientadora Maria Luiza, pois no

percurso acadêmico sempre me guiou para boas escolhas. Juntas optamos pela

mobilidade acadêmica para o meu crescimento acadêmico e assim foi feito em

2014 na cidade de Viçosa. Ao retornar a Belo Horizonte me apresentou o grupo

AUÊ!UFMG que abriu novos caminhos. Agora na escrita do TCC, além de me

ajudar academicamente, também me auxilia na vida pessoal. Muita gratidão por

me ajudar a colocar no papel nos moldes científicos, o que apenas o coração

sabe explicar.

Márcia Lousada- Marcinha pelo apoio em assuntos estudantis ou não,

auxiliando sempre no protagonismo estudantil, além de apoiar nos momentos

difíceis que na universidade.

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Marina (mãe de Viçosa), imensa conhecedora das plantas e dos florais, me

ajudou a me manter em Viçosa, abriu o horizonte para o mundo das plantas;

Maria de Fátima (LECAMPO-FAE), pela oportunidade de estudar com os

alunos/agricultores da Licenciatura do Campo/FAE-UFMG e a conhecer a

realidade de sala de aula em locais como Araçuaí;

Teca (EDUCAÇÃO E ESPIRITUALIDADE), professora fantástica, que me

auxiliou na busca da espiritualidade e me mostrou que há novas possibilidades

na universidade para além da estrutura rígida a qual somos impostos no curso;

Márcia Lousada- Marcinha pelo apoio em assuntos estudantis ou não, me

auxiliando sempre no protagonismo estudantil, além de apoiar nos momentos

difíceis que a universidade proporciona.

Agradeço a todos e todos os detentores dos saberes tradicionais que me

proporcionaram momentos de aprendizagem e crescimento;

Danielle e Álida, ao estagiar com elas, pude perceber como é a lida com os

estudantes diariamente auxiliando no crescimento pessoal/ acadêmico.

Muitas pessoas aqui não citadas foram e ainda são importantes para minha

formação e para apresentar um bom trabalho de conclusão de curso. Á todos (as)

colegas e amigos da geografia – eternamente grata.

Por fim, agradeço e homenageio Fernando, grande conhecedor das plantas

medicinais, que ao longo dos anos que convivi com ele, conseguiu me ensinar

que o amor está nas pequenas coisas e que as plantas são capazes de nos fazer

felizes e saudáveis. Gratidão, que esteja olhando por nós onde estiver.

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“Cosi ewe, cosi orisà”

“Sem folha, sem orixá”

“A espiritualidade não é feita para ser

quantificada, ela não tem a razão que existe na

terra. Não adianta a fia querer quantificar! Ela é

sentida e é feita para fazer o bem” (Pai José – Casa

de Caridade São Francisco de Assis/ Junho 2017).

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RESUMO

Neste trabalho de conclusão de curso – TCC-2 –, busca-se pesquisar quais são os

territórios e territorialidades das religiões de matrizes africanas, e do Ervanário São

Francisco de Assis, através dos saberes passados por gerações dos mestres: Dona

Lurdes – Casa de Caridade São Francisco de Assis, localizado no bairro Cachoeirinha

em Belo Horizonte; Tantinha e Fernando – Ervanário São Francisco de Assis localizado

na cidade de Sabará; e Pai Ricardo de Moura – Casa de Caridade Pai Jacob do Oriente

localizado na Vila Nossa Senhora dos Passos em Belo Horizonte. Esta pesquisa busca

entender as práticas ritualísticas que envolvem as plantas medicinais como integrantes

dos processos e suas importâncias para os rituais místicos das casas acima citadas –

territórios místicos de religiosidades ancestrais.

PALAVRAS CHAVE: Territórios místicos, religiosidades, plantas medicinais.

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RESUMEN

En este trabajo de finalizasión de curso – TCC-2 –, busca ser investigado cuáles son los

territorios y territorialidades de las religiones de matrices africanas, y del Ervanario San

Francisco de Asís, a través de los saberes pasados por generaciones de los maestros:

Doña Lourdes – Casa de Caridad San Francisco de Asís, ubicado en el barrio

Cachoeirinha en Belo horizonte; Tantinha y Fernando- Ervanário San Francisco de Asís

ubicado en la ciudad de Sabará; y Padre Ricardo de Moura - Casa de Caridad Padre

Jacob del Oriente ubicado en la Vila Nossa Senhora de los Passos en Belo Horizonte.

Esta pesquisa busca los a las prácticas de rituales que envuelven las plantas medicinales

como integrantes de los procesos y sus importes para los rituales místicos de las casas

arriba referenciadas – territórios místicos de religiosidades ancestrales.

PALAVRAS LLAVES: Territórios místicos, religiosidades, plantas medicinales.

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LISTA DE SIGLAS

AMAU- Articulação Metropolitana de Agricultura Urbana

ANVISA - Agência Nacional de Vigilância Sanitária

CCPJO- Casa de Caridade Pai Jacob do Oriente

CCSFA - Casa de Caridade São Francisco de Assis

CSH - Ciência Social e Humanidades

FAE - Faculdade de Educação

ESFDA- Ervanário São Francisco de Assis

LE CAMPO - Licenciatura em Educação do Campo

OMS - Organização Mundial de Saúde

ONG - Organização Não Governamental

RMBH - Região Metropolitana de Belo Horizonte

TCC-1- Trabalho de Conclusão de Curso 1

UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais

UFV - Universidade Federal de Viçosa

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LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 - Localização geográfica dos territórios místicos em Belo Horizonte e

Sabará......................................................................................................................p.20

FIGURA 2 - Negros africanos: cultura religiosa....................................................p.24

FIGURA 3 – Primeira sede da Casa de Caridade Nossa Senhora da Piedade – Rio de

Janeiro......................................................................................................................p.33

FIGURA 4 - Principais linhas na Umbanda cultuadas no Brasil............................p.37

FIGURA 5 - Imagem de Pai Francisco – CCSFA..................................................p.42

FIGURA 6 – Dona Ruth..........................................................................................p.43

FIGURA 7 - Toco onde Pai Francisco trabalha juntamente com seus

instrumento................................................................................................................p.46

FIGURA 8: Cesta com ervas para os banhos espirituais ........................................p.48

FIGURA 9 - Pai Ricardo – Casa de Caridade Pai Jacob do Oriente......................p.49

FIGURA 10 - Imagem Pai Jacob.............................................................................p.49

FIGURA 11 - Orixá Exu..........................................................................................p.53

FIGURA 12 - Orixá Ogum......................................................................................p.53

FIGURA 13 - Orixá Oxossi.....................................................................................p.53

FIGURA 14 - Orixá Ossain.....................................................................................p.53

FIGURA 15 - Orixá Xangô.....................................................................................p.54

FIGURA 16 - Orixá Obaluaê..................................................................................p.54

FIGURA 17 - Orixá Tempo....................................................................................p.54

FIGURA 18 - Orixá Insã.........................................................................................p.55

FIGURA 19 - Orixá Iemanjá...................................................................................p.55

FIGURA 20 - Orixá Oxum......................................................................................p.55

FIGURA 21 - Orixá Nanã.......................................................................................p.55

FIGURA 22 - Orixá Oxalá......................................................................................p.56

FIGURA 23 - Boticas no Brasil colonial.................................................................p.59

FIGURA 24 – Tantinha...........................................................................................p.61

FIGURA 25 - Fernando..........................................................................................p.61

FIGURA 26 - Produtos do Ervanário São Francisco..............................................p.63

FIGURA 27 - Fernando com objetos usados para benzeção...................................p.64

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 12

CAPÍTULO 1 – TERRITÓRIOS E TERRITORIALIDADES 19

1.1 ESPAÇOS MÍSTICOS: TERRITÓRIOS E SUAS TERRITORIALIDADES 23

CAPÍTULO 2 - RELIGIÕES E ESPAÇOS MÍSTICOS NO BRASIL 28

2.1 ORIGENS DA UMBANDA E SEUS FUNDAMENTOS

30

2.2 ERVAS NA UMBANDA 38

2.3 CASA DE CARIDADE SÃO FRANCISCO DE ASSIS - CCSFA 41

2.3.1 ERVAS NA CCSFA

47

2.4 CASA DE CARIDADE PAI JACOB DO ORIENTE- CCPJO 49

2.4.1 ERVAS NA CASA PAI JACOB DO ORIENTE 52

CAPÍTULOS 3– ERVANÁRIO 58

3.1 ERVANÁRIO SÃO FRANCISCO DE ASSIS 60

3.2 OS PROTAGONISTAS DOS SABERES TRADICIONAIS DO ERVANÁRIO 62

CONSIDERAÇÕES FINAIS 66

REFERÊNCIAS 69

APÊNDICE 73

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INTRODUÇÃO

O uso do termo místico assume diferentes perspectivas no cotidiano da

oralidade brasileira. A mesma diversidade de significados é verificada ao se consultar o

dicionário Aurélio Buarque de Holanda (1999), o significado da palavra místico é

amplo. Pode significar aquele que é muito devoto; autor de tratados de mística ou de

obras de misticismo; o que há mistério ou razão incompreensível; aquilo relativo à

mística ou ao misticismo; o que é excelente; catita; misto; contíguo; o que faz parte de

uma miscelânea. Místico também pode ser compreendido como misterioso e

espiritualmente alegórico ou figurado; relativo à vida espiritual contemplativa; devoto,

religioso, piedoso. Para este trabalho, complementarmente, a adoção do místico foi na

qualidade de espaço de devoção, não importando a crença que nele é trabalhada e não

perdendo de vista tudo que percorre a mística ou o misticismo em espaços religiosos.

Os espaços místicos são locais onde não se deve procurar lidar com os fatos

pela razão, e sim pela crença nos acontecimentos (SILVA, 2010). Os tratamentos e

curas místicas, por exemplo, são feitos a partir de plantas medicinais, podendo estas

terem diversas formas de usos em conjunto com rituais e orações. Nesta conexão de

energias, as funções orgânicas, as dores físicas, mentais e/ou espirituais dos seres

humanos são trabalhadas e curadas. Franklin Leopoldo Silva (2010) cita o filósofo

francês Henri Bergson para elucidar que o místico é aquilo que supera a religião

enquanto organização institucional da religiosidade; o místico encontra-se constituído

por uma mística1 que ultrapassa as formas conhecidas e convencionais da realidade.

Espaços místicos, também, são considerados espaços sagrados, que guardam

modificações ao longo do tempo com a inserção de novas práticas culturais. Há neles

uma tensão dada pela (in)conformidade. Por isso, trataremos os espaços místicos nesse

Trabalho de Conclusão de Curso 2 como territórios místicos.

Para as mais variadas etnias indígenas, por exemplo, a espiritualidade

mística advém dos seres superiores e das forças da natureza materializadas na terra na

figura dos Pajés. Os Pajés, por sua vez, são índios geralmente mais velhos que herdam 1 Mística: vida religiosa e contemplativa; atitude baseada em crença ardorosa, sem racionalidade

(Dicionário Espírita, online). Mística, como substantivo, provém do adjetivo Mistikós, derivados do

verbo Múein que quer dizer: fechar os olhos e a boca. Olhos fechados para enxergar somente o segredo, e

a boca para não se revelar, a não ser no momento ou à pessoa certa. Deste verbo grego Múein deriva o

substantivo Mistério, que designa o rito religioso secreto de iniciação que coloca em contato o ser

humano com determinada divindade (MAZZUCO, 2013).

Mística é: i) Vida religiosa e contemplativa; ii). Atitude baseada em crença ardorosa, sem racionalidade.

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de seus antepassados os saberes e ensinamentos de como lidar com doenças e curas

através das místicas no uso das ervas, danças e pajelanças.2

Para os povos africanos de diversas culturas negras trazidas para o Brasil

por meio do exílio forçado pela escravidão no processo da diáspora, ao cruzarem o

oceano Atlântico deixaram para trás suas referências espaciais. Contudo, culturalmente

trouxeram sua sabedoria e fé mística muito delas usando plantas para os tratamentos de

saúde. Chegando ao Brasil esses povos foram proibidos de cultuarem publicamente suas

divindades e realizarem seus rituais místicos. Como resistência, comunidades negras

passaram a exercitar sua sabedoria mística nas senzalas, nos quilombos e cortiços

(SILVA, 2005). Nos espaços, tipicamente urbanos, irão aceitar parcialmente essas

práticas usadas como forma de resistência as suas culturas. A presença dos santos da

Igreja Católica, por exemplo, produziram novas místicas construídas no sincretismo

religioso.3

Os terreiros e ervanários – espaços de experiência e análises desta pesquisa

– são considerados espaços de tensão e espaços de transgressão – ora social, no campo

da aceitação da vizinhança; ora no campo pessoal – nas diversas lutas travadas para a

aceitação da cura pela mística. O território é um conceito fundante da ciência

Geográfica que envolve muitas questões relacionadas ao poder, usado, muitas vezes,

para demonstrar soberania em relação à outra cultura,4 e esta foi à categoria geográfica

escolhida para a análise do tema deste trabalho.

A pesquisa abordará a concepção de territórios místicos e suas

territorialidades em três experiências da Região Metropolitana de Belo Horizonte –

RMBH, a saber: Centro de Caridade São Francisco de Assis, Ervanário São Francisco

de Assis, Casa de Caridade Pai Jacob do Oriente.

Portanto, no âmbito dessa pesquisa encontram-se as seguintes questões

norteadoras: Como esses territórios místicos se encontram organizados sócio

espacialmente? Que territorialidades anunciam desde a perspectiva das religiosidades e

usos de plantas que curam?

2 A pajelança é uma forma de mística, tipicamente indutiva, atuando sobre qualquer elemento vivo e

mantendo estreita relação com os demais reinos da natureza: mineral, vegetal e animal; tem base no

xamanismo indígena. Fonte: http://www.xamanismo.com.br/pajelança> Acessado em: 26/05/2017. 3 É o contato entre diferentes crenças. Para que isso ocorra é necessária a movimentação de povos,

geralmente causada por eventos de larga escala. É por isso que, indo a fundo à compreensão do cenário

histórico, pode-se entender o sincretismo religioso é o contato religioso e seu processo de adaptação,

“conformação” e transformação (RIBEIRO, 2012). 4A ocupação do Novo Mundo, por exemplo, para as classes dominantes da Europa, correspondeu aos

novos territórios de dominação e exploração da riqueza natural e humana.

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O objetivo geral deste trabalho é pesquisar os espaços místicos selecionados

e indicados anteriormente: seus territórios e territorialidades e o uso das plantas

medicinais nos tratamentos e curas místicas. Os territórios selecionados se deram em

função do contato da autora com esses espaços, na disciplina no eixo de formação

Transversal Saberes Tradicionais5, Catar Folhas: Povos de Axé, além do contato com a

disciplina Educação e Espiritualidade e práticas ligadas ao Grupo de Estudos e

Pesquisa AUÊ! UFMG.

Enquanto objetivos específicos são expostos os seguintes itens: i)

cartografar os territórios e as territorialidades místicas selecionadas; ii) registrar as

origens dos rituais e suas características; iii) compreender qual é o papel e a importância

das plantas medicinais para as práticas místicas; iv) identificar através da oralidade

quais são as ervas sagradas usadas pelas entidades que trabalham v) pesquisar os usos

tradicionais das plantas medicinais nos territórios místicos seja na produção de banhos,

preparação de pratos, benzeções, entre outras práticas. Nesse sentido, pretendemos

conhecer técnicas de manejo, cultivo, processamento e usos das ervas empregadas

nesses territórios místicos. Por fim, vivenciar os territórios místicos e seus rituais e

apreender sobre as práticas de cuidados e curas que utilizam plantas medicinais nos

territórios selecionados.

O presente trabalho surgiu da curiosidade em descobrir sobre as práticas

místicas e as utilidades das plantas medicinais nos tratamentos, cuidados e curas nos

espaços místicos como os terreiros e ervanários. Desde o início da graduação em 2011 a

pesquisadora deste estudo teve interesse por questões relacionadas com a terra, e no

curso de Geografia materializado nas disciplinas de geografia agrária, geografia do rural

e geografia cultural. Como havia aspirações por novos aprendizados e a busca por

vivência com pessoas oriundas do campo, optei por fazer disciplinas no curso de

licenciatura do campo – LE CAMPO-FAE/UFMG – e na área de Ciências Sociais

Humanas (CSH), onde conheci pessoas que incentivaram a buscar informações dos

saberes adquiridos pelos antepassados deixados através dos modos de lidar com a terra,

plantas, águas e animais.

5 As Formações Transversais são atividades acadêmicas que abordam temáticas de interesse geral

visando incentivar a formação de espírito crítico e de visão aprofundada em relação às grandes

questões do país e da humanidade. O conjunto de Formações Transversais constitui um espaço comum

de formação para todos os cursos de graduação da UFMG. Fonte: <www.ufmg.br/meulugar/curriculo -

transversal/>

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Os trabalhos com as plantas medicinais iniciaram-se por meio da

mobilidade acadêmica feita na Universidade Federal de Viçosa – (UFV) em 2014, sob a

orientação da professora Maria Luiza Grossi Araújo, quando foram cursadas disciplinas

relacionadas às plantas medicinais, agricultura orgânica, homeopatia, entre outros. Em

paralelo à formação acadêmica foi realizado o estágio na ONG Entre Folhas6 o que

aguçou ainda mais querer saber sobre as plantas. Na ONG trabalhei com técnicas de

plantio, reprodução, poda, processamento de plantas medicinais, técnicas de

radiestesia7, terapia floral

8, manipulação e usos de fitoterápicos

9 e homeopatia

10,

surgindo daí o encantamento pelo mundo das plantas medicinais e curiosidade de saber

mais sobre seus usos.

No retorno à UFMG em 2015, surge o contato entre as plantas medicinais e

as espiritualidades. Este se deu a partir da disciplina Educação e Espiritualidade

cursada na Faculdade de Educação – (FAE)11

, onde uma das atividades requeridas pela

disciplina seria a “experiência espiritual” 12

, a qual possibilitou conhecer a Casa de

Caridade São Francisco de Assis, espaço místico da umbanda localizado no bairro

Cachoeirinha, em Belo Horizonte. A disciplina também auxiliou no entendimento

relacionado à espiritualidade e as plantas, mostrando que as ervas medicinais não têm

apenas funções de cuidar das doenças físicas através do uso tópico em preparações

como chás, xaropes, pomadas, mas, há também funções místicas nos tratos, cuidados e

curas ligados às espiritualidades e a perpetuação de tradições religiosas.

6 O grupo Entre folhas é uma ONG de caráter ambiental, fundada em 1989 com a colaboração de

professores e estudantes da UFV. As atividades do grupo são diversas, porém sempre ligada ao uso e

pesquisas sobre plantas medicinais e terapias alternativas. A ONG está situada na Vila Gianetti, casa 20-

Viçosa- Campus UFV. 7 A palavra Radiestesia é dividida em dois termos: RADIUS, que vem do latim e significa radiação, raio

e AISTHESIS, que vem do grego e significa sensibilidade a captação. (BORTONI). O radiestesista é

apenas um instrumento onde é necessário ser sensível a captação de variadas frequências de energia, está

técnica milenar é usada para diagnósticos de tratamentos como a homeopatia, terapia floral entre outros.

8 A terapia Floral é usada para restaurar o equilíbrio físico, emocional, mental e espiritual. Os florais são

essências vibracionais retiradas das flores que atuam no nível energético do Ser, descobertas em 1928 por

Edward Bach- inglês médico alopata que decidiu mudar seu modo de trabalhar com a medicina ao

observar os princípios da homeopatia, vendo que seria capaz de aliviar o sofrimento das pessoas através

das essências das flores. (AZIZ, 2011)

9 Fitoterápicos são medicamentos obtidos a partir de plantas medicinais. Eles são obtidos empregando-se

exclusivamente derivados de droga vegetal: extrato, tintura, óleo, cera,, suco, e outros. (ANVISA, 2017). 10

O estudo da homeopatia foi iniciado na Alemanha com Samuel Hahnemann, que insatisfeito com sua

profissão de médico e com a pobreza das formas de tratamento das doenças pela alopatia, decidiu

abandonar a medicina oficial, descobrindo pelos seus estudos em 1796, que “o semelhante cura o

semelhante” (CASALI, 2009). A homeopatia é um remédio ao qual são trabalhados os problemas do

corpo físico, espiritual e mental, através das diluições e sucussões. 11

Cursada com a professora Teca- Conceição Clarete Xavier Travalha.

12 Atividade exigida pela disciplina de educação e espiritualidade, para apropriação e aprofundamento

dos temas trabalhados em sala de aula. Esta atividade foi realizada várias vezes ao longo do semestre

letivo, e teve grande valia para interiorizar e praticar as ideas apresentadas na disciplina.

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Paralelamente, procurei na UFMG a formação no eixo de formação

Transversal “Saberes Tradicionais” 13

oferecida pela Pro Reitoria de Graduação desta

universidade. No curso Catar folhas: Saberes e Fazeres do Povo de Axé foram

discutidas as temáticas relacionadas às plantas medicinais em quatro religiões de matriz

africana, a saber: i) IléAséOjúMejiOfáOtun coordenada pela mestre Iyanifá Ifádàara14

;

ii) Guarda de Mossambique de Nossa Senhora das Mercês de Oliveira (MG)

coordenada pela mestre Pedrina Lourdes dos Santos; iii) ManzoNgunzoKaiango,

coordenada pela mestre Mametu Muiandê15

e iv) Casa de Caridade Pai Jacob do

Oriente coordenada pelo mestre Pai Ricardo de Moura. As mestras e o mestre

ministraram aulas e ensinaram sobre os costumes de seus povos, como deve ser o

comportamento perante as entidades divinas e o uso das ervas para os rituais sagrados.

Alguns destes territórios, também, são e serão objeto desta pesquisa.

Posteriormente, através do Grupo de Estudos em Agricultura Urbana –

AUÊ! - UFMG – preparei cartilhas com o registro do trabalho desenvolvido no

Ervanário São Francisco de Assis (ESFDA) coordenado por Tantinha e Fernando16

,

onde ficou estabelecida por meio da pesquisa realizada, que o trabalho desenvolvido no

Ervanário trata-se da prática do uso das plantas medicinais para auxiliar o próximo, em

seus problemas de saúde, através de rituais ou místicas como a benzeção ou

processamento de plantas para confecção de produtos naturais, tais como, xaropes, gotas

digestivas, garrafadas, cosméticos, sabonetes, géis, pós, temperos, entre outros. Esses

conhecimentos foram adquiridos por Tantinha e Fernando através de seus antepassados

e transversalmente em encontros com raizeiros da articulação PACARI17

e AMAU18

.

13

A Universidade Federal de Minas Gerais criou desde o ano de 2014 o eixo de formação Transversal

que tem por objetivo complementar e enraizar a formação de cidadãos, tornando-os capazes de respeitar

as diversas identidades étnicas, raciais e sociais da nossa nação e de entender os fundamentos das suas

múltiplas expressões culturais e científicas. Nas disciplinas ofertadas os estudantes têm aulas com mestres

(pessoas que possuem muita experiência da sua área de atuação), tendo uma formação completa e integra

a respeito de diversas tradições. Fonte: https://www.ufmg.br/meulugar/curriculo-transversal/- Acessado

03/04/2017 14

Ou Iyá Nylsia. 15

Ou Mãe Efigênia. 16

In Memória. 17

A Articulação Pacari é uma rede socioambiental formada em 1999 por organizações comunitárias que

praticam medicina tradicional através do uso sustentável da biodiversidade do Cerrado. Hoje, a sua

atuação abrange aproximadamente 50 organizações de 10 regiões dos estados de Minas Gerais, Goiás,

Tocantins e Maranhão. As atividades da Pacari são de pesquisa popular, assessoria, intercâmbio,

capacitação, produção e registro de conhecimentos, publicação, realização de encontros e participação

em espaços de formulação de políticas públicas (DIAS, 2009). 18

A AMAU é um coletivo de pessoas, grupos comunitários, organizações, pastorais e movimentos sociais

que desenvolvem e apoiam iniciativas de agroecologia na Região Metropolitana de Belo Horizonte

(AUÊ!-IGC/UFMG). Fonte: http://www.aue.ufmg. Acessado em 03/05/2017.

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Para o desenvolvimento do projeto foi utilizada a metodologia participativa,

onde os sujeitos pesquisados não são entendidos como mero objeto de pesquisa, mas

sim parte integrante da mesma. Segundo Fals Borda (2007), para que a pesquisa que

utiliza as metodologias participativas seja proveitosa, tanto pesquisadores, estudantes,

professores e pesquisados devem saber que as pessoas são ligadas por sentimentos,

normas e atitudes com opiniões diversas, e para que os resultados finais sejam

interessantes a todos, as diversas opiniões devem ser respeitadas.

A metodologia utilizada foi dividida em quatro etapas. Inicialmente foi

realizada revisão bibliográfica com autores como, Maria Thereza Lemos Arruda, Milton

Santos, Paulo Freire, Yves Lacoste, Franklin Leopoldo Silva, Vagner Gonçalves da

Silva, Dirce Maria Antunes Suertegaray, Pierre Verger, entre outros. Entretanto, é

importante salientar que os saberes relacionados aos usos tradicionais das ervas

medicinais utilizadas em ritos místicos comumente é repassado entre as gerações

através da oralidade, sendo necessário dar a devida atenção a esta forma de transmissão

dos saberes, que foi largamente empregada neste trabalho.

A segunda etapa dos procedimentos metodológicos foi composta por visitas

ou como nós geógrafos ressaltamos – trabalho de campo19

– aos espaços místicos

selecionados. As visitas serão importantes para o desenvolvimento do trabalho e a

apropriação do tema pela autora, visando sistematizar de forma séria a junção entre os

saberes empíricos e os saberes acadêmicos. Segundo Paulo Freire (1967), o

conhecimento só é efetivo quando o sujeito se sente pertencente a ele. A educação não

está presente somente nas escolas e não pode ser feita apenas de forma bancária, onde o

professor fala e os estudantes escutam, a educação precisa ser libertadora e é necessário

que o sujeito esteja em contato com o objeto de estudo para criar afinidade e se

apropriar do tema.

A primeira visita foi objetivada para proceder às entrevistas aos mestres.

Utilizou-se de roteiro de perguntas estruturado (vide anexos), para coletar informações

acerca da história dos espaços místicos e de quem os coordenam, sobre o uso das ervas

nos rituais, abrangência populacional e geográfica das pessoas que frequentam os

territórios místicos. Portanto, conceitos fundamentais relacionados às religiões, somente

foram transmitidos e transcritos ao trabalho após as visitas de campo. O trabalho de

campo para a formação do geógrafo é uma ferramenta fundamental, uma vez que neste

19

Entende-se trabalho de campo e visita de campo como sinônimo.

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18

espaço/tempo a estudante consegue realizar uma sistematização empírica importante

para seu entendimento de mundo a partir das teorias geográficas estudadas na academia.

Segundo Paulo Roberto R. Alentejano e Otávio M. Rocha-Leão (2006), a

Geografia como ciência, se consolidou com base nas visitas de campo e a

sistematização escrita em cadernetas de campo. O sujeito descreve tudo que conseguiu

observar de relevante, para que o conhecimento empírico seja validado e absorvido. Os

trabalhos de campo sempre tiveram papel fundamental para o geógrafo, uma vez que, o

ensino teórico sozinho não dá conta dos “por quês” existentes nesta ciência que é

dinâmica, atuando com pessoas e lugares/ territórios/ territorialidades. Ao ir a campo, a

geógrafa, coloca em prática o que havia estudado na teoria, buscando apropriar e

aprofundar-se dos conhecimentos acerca do tema trabalhado, observando, escutando e

vivenciando experiências que a sala de aula e os livros não são capazes de ensinar.

Segundo Yves Lacoste (2006), o trabalho de campo em Geografia deve perseguir,

portanto, a ideia de particularidade na totalidade. Sendo assim, outra função importante

da visita de campo é a coleta de dados, uma vez que muitas informações somente foram

transcritas após a conversa com as (os) mestres, pois na bibliografia pesquisada, não há

a riqueza e diversidade de informação que cada mestre pode transmitir sobre sua

religiosidade e territorialidade oralmente.

Na segunda fase, os saberes foram apresentados e discutidos, ao

desenvolver a escrita deste TCC-2.

A terceira fase foi transformar as experiências nos espaços místicos em

material gráfico e, posteriormente, encaminhado aos mestres como forma de

agradecimento pelos saberes passados e atenção atribuída ao trabalho de pesquisa. Ao

encerrar os trabalhos, os (as) mestres (as) serão convidados para a apresentação final do

TCC-2 na UFMG, com o objetivo de que os mesmos se sintam pertencentes ao

ambiente acadêmico através da transmissão de conhecimento para estudantes que

queiram aprender sobre suas culturas místicas.

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19

CAPÍTULO 1 – TERRITÓRIOS E TERRITORIALIDADES

Para um melhor entendimento geográfico sobre os objetos de análise deste

trabalho, faz-se necessário a sistematização sobre o conceito de território, tão

importante para se pensar a geografia.

O conceito território é utilizado em várias áreas de conhecimento.

Entretanto para a Geografia seu emprego é primordial dentro das categorias de análises

geográficas. Segundo a obra de Jean Gottmann (2012), historicamente, a origem do

termo surge no século XVI na Europa, para definir o perímetro de abrangência

econômica dos reinos. Dos séculos XV ao século XX o alcance do conceito é ampliado

para outras partes do mundo em conjunto com ideias relacionadas ao poder nacional e a

economias de mercado. Nos dias atuais, a distância e a topografia, características do

território, não possuem mais a mesma importância devido à globalização, podendo gerar

conflitos em larga escala. Segundo Marcelo José Lopes Souza (2003),

A bem verdade, o território pode ser entendido também à escala

nacional e em associação ao Estado como grande gestor cada vez

menos privilegiado. No entanto, ele não precisa e nem deve ser

reduzido a esta escala ou associação com a figura do Estado.

Territórios existem e são construídos (e desconstituídos) dentro das

mais diversas escalas, da mais acanhada p. ex uma rua à internacional

ex OTAN [...] territórios podem ter um caráter permanente, mas

também podem ter uma existência periódica, cíclica[...] O território

surge, na tradicional Geografia Política, como o espaço concreto em si

(com seus atributos naturais e socialmente construídos), que é

apropriado, ocupado por um grupo social. A ocupação do território é

vista como algo gerador de raízes e identidade [...]. Os limites do

território não seriam, é bem verdade, imutáveis – pois as fronteiras

podem ser alteradas comumente pela força bruta, mas cada espaço

seria, enquanto território, território durante todo tempo, pois apenas a

durabilidade poderia, é claro, ser geradora da identidade

sócioespacial, identidade não apenas do espaço físico, concreto, mas

com o território e, por tabela como poder controlador desse território.

A palavra território normalmente evoca o “território Nacional” e faz

pensar no Estado – gestor por excelência do território nacional –, em

grandes espaços, em sentimento patriótico, em governo, em

dominação, em defesa do território pátrio, em guerras... (SOUZA, p.

81; 84). [Grifo meu]

Como apresentado acima, tratar do conceito território é complexo, portanto,

para justificar este trabalho precisamos nos ater a alguns detalhes destas definições. O

conceito de território que menciono neste trabalho vai para muito além de espaço físico

com dominância de um poder estatal. Quando utilizo o termo território estou tratando de

espaço de culturas e seu contexto místico. O território físico, os quais os terreiros e

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ervanários ocupam são importantes, pois na extensão desses territórios – dos territórios

pesquisados – inscrevem-se territorialidades que nem sempre podem ser quantificadas –

mas, estão lá! As territorialidades atravessam os territórios místicos na manifestação das

espiritualidades, dos saberes, das religiosidades ancestrais. Por sua vez, os territórios,

agora sim falando de espaços físicos, nem sempre são respeitados. Falar de territórios

místicos e sua territorialidade, é por em evidência a importância dos mesmos para a

perpetuação dos saberes, que através deles, são transmitidos. Territórios e

territorialidades místicas trazem outro sentido à cultura. Afastamo-nos do espetáculo

produzido dos ritos e seus dogmas. Aproximamo-nos do devir humano.

Para desenvolver esta pesquisa selecionamos pelo critério cultural e

facilidade da autora a ter acesso aos três territórios para compor o estudo e suas

territorialidades. A Casa de Caridade Pai Jacob do Oriente – CCPJO – localizada na vila

Nossa Senhora dos Passos (Pedreira Padro Lopes) na regional Nordeste de Belo

Horizonte; a Casa de Caridade São Francisco de Assis – CCSFA – localizada no bairro

Cachoerinha – regional Nordeste de Belo Horizonte; e por fim, o Ervanário são

Francisco de Assis – ESFA, localizado em Sabará, Região Metropolitana de Belo

Horizonte. A Figura 1 indica a localização geográfica de cada um dos terreiros e do

ervanário pesquisado.

Figura 1 – Localização geográfica dos territórios místicos em Belo Horizonte e

Sabará

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Os territórios místicos quase sempre são territórios de conflitos e disputa de

poder, sejam nos terreiros pelas interferências políticas/religiosas, dificuldade de

espaços para plantio das ervas sagradas usadas nos rituais (no caso me retrato a Casa de

Caridade São Francisco de Assis – CCSFA e Casa de Caridade Pai Jocob do Oriente –

CCPJO. Nas metrópoles, como Belo Horizontes, os ervanários, frequentemente

deparam com a dificuldade de falta de áreas para extração de plantas básicas para usos

medicinais. Pedro Freire Botelho (2010) discute sobre o problema da falta de acesso às

folhas sagradas. Essa dificuldade muitas vezes, leva os praticantes e ervanários a

recorrer a mercados ou outros tipos de comércios convencionais como as feiras, hortas

comunitárias em busca das ervas, tão básicas para os rituais e produção de remédios,

dando a outras pessoas e, principalmente, a circuitos econômicos macro um papel

central à perpetuação dos saberes. Cada erva é usada de uma forma distinta, e para que

sua força máxima esteja presente é importante observar o local de plantio, água usada

na irrigação, colheita e secagem (quando for o caso). Entretanto, infelizmente devido a

falta de espaço físico e/ou interferências externas este importante ritual do cultivo,

colheita e processamento, quase nunca está sob a regências dos mestres e erveiros,

perdendo-se aqui alguma qualidade no processo histórico cultural.

Ao realizar as visitas de campo, observei que nesses territórios há conflitos por

vezes velados ou ocasionalmente escancarados. Alguns herdados há tempos, podendo

até mesmo serem comparados com a época da escravidão no Brasil. Os escravos

trazidos pelo processo da diáspora para territórios diferentes ao que estavam

acostumados; a proibição dos cultos às suas divindades fez recriar rituais e místicas

enquanto a fé era algo intrínseco a eles, pois era a maneira que tinham de sentirem perto

de seu povo, sua cultura, seus territórios.

Os territórios permitidos aos negros eram as senzalas e, mais tarde na história do

país, as periferias e favelas, o que pode ser observado até os dias atuais, uma vez que

muitos terreiros são localizados próximos a aglomerados urbanos e periferias da cidade.

Território que nem sempre o poder estatal chega para os moradores da mesma maneira

que nos bairros centrais. Em sua obra, Milton Santos (2001) demonstra a preocupação

com o sujeito pertencente ao território, pois o conceito por si só não traz a análise

geográfica. Segundo Milton Santos (2001), ainda nos dias atuais, se pode ver o território

“(...) tal como ele é e a globalização tal como ela é, cria-se uma relação de causalidade

em beneficio dos atores mais poderosos, dando ao espaço geográfico papel inédito na

dinâmica social (SANTOS, 2001, p. 23)”.

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Não raras vezes, os terreiros e ervanários se prestam ao papel que não lhes é dado

– o papel de Estado – que muitas vezes lhe são negados ou subjugados para os

exercícios de atividades místicas –, para atividades do bem comum, com alcance de

maior competência e eficácia do que o poder estatal poderia fazer. A vila Nossa Senhora

dos Passos – Pedreira Prado Lopes – é um exemplo. Na década de 1980-1990 o Estado

não entrava nas ruas e vielas da vila. Nesse período a CCPJO fazia o papel de mediação

entre o Estado e a População, garantido a paz social no seu território. Segundo Pai

Ricardo “Aqui neste cômodo que você está vendo eram realizadas as campanhas de

vacinação do Zé Gotinha. A polícia não vinha aqui não. Dava qualquer problema na

vila, logo vinham chamar agente para resolver, não tinha hora, era qualquer hora”.

Nos dias atuais para além dos trabalhos espirituais realizados na casa, há também

distribuição de roupas, frutas e verduras resultado de doações, o que desonera o poder

público.

Para além das questões materiais, ainda é importante salientar que as atividades

místicas realizadas nas três experiências selecionadas são consideradas de um lado

resistência; de outro é desoneração dos cofres públicos, pois ao receber um passe,

benzeção, remédio natural, chás, os frequentadores sanam suas enfermidades e acabam

por não precisarem procurar os serviços para saúde pública.

Ao se tratar do Ervanário ESFA foi observado que seu território físico

inicialmente era situado em uma comunidade periférica de Belo Horizonte, porém sua

territorialidade abrangia muito além, seja no uso extrativista da mata da Baleia para

colheita de plantas medicinais usadas nos tratamentos, seja pelas pessoas que vinham de

toda parte do Brasil em busca de remédios naturais preparados por Tantinha e Fernando.

Neste momento o Ervanário ESFDA faz o papel que seria do Estado. Tantinha explica:

“Na década de 1990 aprendi a fazer a farinha enriquecida, que as mães precisavam

ficar dias e até meses na fila do posto de saúde esperando para conseguir e

suplementar a alimentação de seus filhos para evitar a desnutrição que era corriqueira

no bairro na época. Depois que aprendi, me juntei as mães vizinhas, e cada uma

comprou um ingrediente – para não onerar ninguém – e assim não precisava mais de

fila, nós mesmas fazíamos nossas farinhas”.

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1.1 Espaços Místicos: territórios e suas territorialidades

O território das plantas que curam se estabelece com a junção dos saberes

indígenas e com os negros desde os porões dos navios negreiros. Os porões destes

navios são os primeiros territórios atribuídos a ambos, ali era território para todos,

crianças nasciam, pessoas adoeciam e morriam, e não raro, seus corpos atirados no mar,

como cita Pai Ricardo: “O mar atlântico também era território dos negros, lá os corpos

eram descartados como se nada estivessem acontecendo, assim como nas senzalas.

Caso o negro não quisesse se dobrar aos desejos do senhor, ele era queimado na

fogueira como se fosse graveto, como se não tivesse importância, e servia de exemplo

para os outros.” Nesse território móvel os negros iniciam sua resistência com os cultos

– mesmo que de forma escondida. Pelo exposto, pode-se retomar a Milton Santos

(2001) quando ele diz que para ele o “(...) território em si, (...) não é um conceito. Ele só

se torna um conceito utilizável para analise social quando consideramos a partir do seu

uso, a partir do momento em que pensamos juntamente com aqueles atores que dele se

utilizam” (SANTOS, 2001, p. 22).

Para entender os territórios das religiões de matriz africana ou afro brasileira foi

importante entender que cada tribo no continente africano antes de ser trazida ao Brasil

cultuava um Orixá específico, formando territorialmente nesse continente um elo de

proteção de todas as divindades. Com isso, a diáspora criou no território brasileiro

muitas Áfricas atravessadas por suas místicas. Vejamos:

A senzala foi um agregador do povo africano. Escravos muitas vezes

apartados de suas famílias e divididos propositalmente em grupos

culturais linguisticamente diferentes, por vezes antagônicos, para

evitar rebeliões, organizaram-se de modo a criar uma pequena África,

o que posteriormente se refletiu nos terreiros de Candomblé, onde

Orixás procedentes de religiões e clãs diversos passaram a ser

cultuados numa mesma casa religiosa (JÚNIOR, 2014, p. 36).

Desta forma, agregaram-se características específicas para os cultos às

Divindades Africanas no Brasil, pois ao contrário do que acontece na África onde a

tradição é de que cada tribo cultue um Orixá, porém a proteção pode ser entendida como

um todo, pois ao juntar o território Africano que cultuavam os Orixás entende-se que

todas divindades eram cultuadas, por tanto, todas as forças da natureza reverenciadas,

formando um elo de proteção em seus “filhos” das mais diversas etnias. Já em território

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Brasileiro os Orixás são celebrados no mesmo culto, devido à mistura das etnias em um

mesmo território, mais tarde a confluência com a tradição indígena também irá

influenciar nos rituais religiosos Africanos e no uso das ervas.

Nesse sentido, Dirce Suertegaray (2001, p. 93) explana que o conceito de território

permite “(...) tratar de territorialidades como expressão da coexistência de grupos, por

vezes num mesmo espaço físico em tempos diferentes”. No caso dos territórios místicos

as relações humanas e sociais que ali acontecem tem uma relação direta com a dimensão

natural do espaço, extraindo dele místicas e energias – as plantas –, por exemplo, para o

alcance da cura física e/ou espiritual. A seguir (Figura 2) há um organograma que faz a

cartografia dos territórios africanos trazidos para o Brasil pela diáspora20

bem como

suas nações.

FIGURA 2 - Negros africanos: cultura religiosa

20

O organograma foi construído a partir da leitura e interpretação do primeiro capítulo do livro

Candomblé e umbanda: caminhos da devoção brasileira (SILVA, 2005).

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A Figura 2 mostra a cartografia de um continente que se viu obrigado a

escravidão perversa, que segregou parte da população africana espalhando-a pelo

mundo tendo como resultado nações dizimadas e outras tantas separadas pela diáspora e

reencontrando em parte no território brasileiro. Segundo estudo de Vagner Gonçalves da

Silva (2005), as nações trazidas na diáspora eram diversificadas, porém, os Bantos e

Sudaneses predominaram em Minas Gerais trazendo consigo seus ritos, saberes e

magias.

Os negros não podiam expressar sua religiosidade, pois eram duramente

reprimidos com castigos físicos e psicológicos. Porém, a perversidade não os fez

desistir e os cultos eram realizados de maneira escondida nas senzalas ou até mesmo em

meio às matas. Para o historiador Ademar Barbosa Junior (2014), quando havia

autorização prévia dos “senhores” ou dos padres, os ritos aconteciam nos terreiros das

casas grandes ou às vezes em igrejas construídas pelos negros e para os negros, pois os

mesmos não poderiam frequentar as igrejas dos brancos, atitude essa que mostra o

poder segregador das religiões cristãs desde os primórdios.

Alguns membros da igreja católica em conjunto com os poderosos “senhores” de

escravos reprimam as manifestações religiosas; quando as permitiam, era por considerar

manifestações folclóricas, sem perigo para os interesses econômicos das elites nacionais

(SILVA, 2005). Entretanto, na realidade o que acontecia nestes territórios místicos era a

ressignificação da ancestralidade de seus povos, pois, neste momento, suas dores eram

saradas e mesmo que longe de seus territórios físicos as divindades através das

territorialidades espirituais ali estavam presentes trabalhando através das curas e passes,

tanto na forma dos Pretos Velhos, como na forma dos Caboclos ou outras entidades.

Aruanda, que é um território não físico, e por isso, não tem localização

geográfica, representa o território místico e sagrado dos Pretos Velhos. Estas entidades

veem de lá para trabalhar aqui na terra. Da mesma forma, a territorialidade dos Orixás

não pode ser mencionada fisicamente, pois estas divindades são forças da natureza e

trabalham nos territórios místicos ou casas espirituais para abençoar os “filhos de terra”.

Essa mistura de territórios e suas territorialidades físicas ou espirituais e o sincretismo

podem ser percebidos na letra da música Ogum:21

21

Autoria de Zeca Pagodinho. Fonte: www.letras.com.br/zecapagodinho.

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Eu sincretizado na fé

Sou carregado de axé

E protegido por um cavaleiro nobre

Sim vou na igreja festejar meu protetor

E agradecer por eu ser mais um vencedor

Nas lutas nas batalhas

Sim vou no terreiro pra bater o meu tambor

Bato cabeça firmo ponto sim senhor

Eu canto pra Ogum[...]

[...] Ele vem de Aruanda

Ele vence demanda de gente que faz...

Os calundós, por sua vez, foram até o século XVIII, os locais “organizados”

que aconteciam cultos africanos, sendo a primeira forma do que conhecemos hoje como

terreiros de candomblé (SILVA, 2005). O nome terreiro vem da experiência territorial

dos negros em fazer seus cultos nos terreiros próximos as casas ou das senzalas,

facilitando a dispersão caso fosse necessário, pois conheciam bem seus arredores e os

locais de onde poderia vir à repressão. Desta forma, os terreiros poderiam ser

entendidos como o território místico mais sagrado dos negros, uma vez que conheciam

amplamente seu espaço físico e usavam este com território de resistência sagrada.

Outra explicação sobre a origem da palavra terreiro foi dada por Pai

Ricardo: “Terreiro vem da tradição. Pois dificilmente você encontrará uma casa que

não tenha começado com fundos próprios do seu fundador. A casa, não é apenas as

partes que nos mostra as paredes físicas ela vai para além. Nossa casa era apenas um

cômodo, que era usado paras as sessões. Mas na maioria das casas as sessões

aconteciam fora da casa nos terreiros”.

Segundo Marcelo Lopes de Souza (2003, p. 87) sabe-se que os territórios

“(...) são no fundo antes relações sociais projetadas no espaço concreto”. Por sua vez, os

territórios místicos possuem quase sempre uma característica básica: são duplamente

utilizados, seja nos terreiros, onde as casas dos zeladores ou mães e pais de Santo são

parte integrante. Eles moram ali ou nos ervanários, que também são muitas vezes, a

extensão da casa de seus fundadores, onde cultivam suas plantas e fazem suas

alquimias.

Pode-se observar que muitas definições são dadas aos territórios místicos

definidos como terreiros. O que é importante ressaltar, que cada terreiro tem sua

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territorialidade – a expressão da ancestralidade mística – própria de cada território

místico. É na territorialidade que se trabalha/ressignifica os saberes ancestrais dos

negros africanos e seus povos através dos cultos ali professados.

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CAPÍTULO 2 - RELIGIÕES E ESPAÇOS MÍSTICOS NO BRASIL

Ao colonizar o Brasil, Portugal trouxe consigo o catolicismo como religião

oficial. Os cultos já existentes no Brasil foram proibidos para que o cristianismo e suas

ideologias fossem impostos aos habitantes do país colonizado. Para a coroa e para a

Igreja Católica, se fazia jus à inserção de uma religião “com princípios” ao povo, pois

assim, a dominação seria mais fácil. Desta forma, a grande maioria dos índios foram

catequizados pelos jesuítas, através de estratégias como o medo onde as doenças e

morte eram ligadas ao pecado, ou seja, a vontade de “Deus”, e para a salvação da alma

seria necessário à conversão a doutrina cristã. Essas práticas, segundo Vagner

Gonçalves da Silva (2005) foram se implantando na mentalidade dos habitantes

brasileiros sutilmente, sendo repassadas às gerações posteriores, chegando até os dias

atuais, onde tudo que é distinto do Cristianismo hegemônico pode ser considerado

perverso, errado, macumba, feitiçaria, entre outros adjetivos pejorativos, ironicamente

em um país de dimensão continental com inserção de diversos povos e culturas.

Trinta anos após a sucessiva dizimação de grande parte dos índios e de seus

cultos, os africanos chegam ao Brasil, trazidos pelos portugueses e vindos de uma

matriz cultural totalmente distinta do cristianismo. Ao desembarcarem aqui, os negros

africanos eram misturados sem respeitar suas crenças ritualísticas, costumes e até

mesmo etnias. Essa foi à primeira tática utilizada pelos “senhores” para evitar rebeliões,

pois como o continente Africano é territorialmente amplo e os povos trazidos para o

Brasil escravizados eram oriundos de muitas tribos distintas com culturas, língua,

religiosidades diferentes, a estratégia de separá-los misturando tribos rivais poderiam

evitar possíveis rebeliões (SILVA, 2010).

Entretanto, não foi isso que ocorreu. Os negros africanos se juntaram com

os indígenas que, por sua vez, já tinham o domínio territorial, e iniciaram o processo de

resistência, e, com toda sua maestria os negros “aceitam” os santos da igreja católica

como forma para cultuar seus Orixás, iniciando o sincretismo religioso, como pode ser

observado na letra da música de Martinho da Vila22

22

Sincretismo Religioso. Fonte: www.m.letras.mus.brmartinhodavila.

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Saravá, rapaziada! - Saravá !

Axé pra mulherada brasileira! - Axé!

Êta, povo brasileiro! Miscigenado,

Ecumênico e religiosamente sincretizado

Ave, ó, ecumenismo! Ave!

Então vamos fazer uma saudação ecumênica

Vamos? Vamos!

Aleluia - aleluia!

Shalom - Shalom!

Al Salam Alaikum! - Alaikum Al Salam!

Mucuiu nu Zambi - Mucuiu!

Ê, ô, todos os povos são filhos do senhor!

Deus está em todo lugar. Nas mãos que criam, nas bocas que cantam, nos corpos que dançam,

nas relações amorosas, no lazer sadio, no trabalho honesto.

Onde está Deus? - Em todo lugar!

Olorum, Jeová, Oxalá, Alah, N`Zambi. . . Jesus!

E o espírito Santo? É Deus!

Salve sincretismo religioso! - Salve!

Quem é Omulu, gente? - São Lázaro!

Iansã? - Santa Bárbara!

Ogum? - São Jorge!

Xangô? - São Jerônimo!

Oxossi? - São Sebastião!

Aioká, Inaê, Kianda - Iemanjá!

Viva a no Nossa Senhora Aparecida! - Padroeira do Brasil!

Iemanjá, Iemanjá, Iemanjá, Iemanjá

São Cosme, Damião, Doum, Crispim, Crispiniano, Radiema. . .

É tudo Erê - Ibeijada

Salve as crianças! - Salve!

Axé pra todo mundo, axé

Muito axé, muito axé

Muito axé, pra todo mundo axé

Muito axé, muito axé

Muito axé, pra todo mundo axé

Energia, Saravá, Aleluia, Shalom,

Amandla, caninambo! - Banzai!

Na fé de Zambi - Na paz do senhor, Amém

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O sincretismo, nem sempre aceito por muitos mestres de terreiros em suas

falas, foi apenas uma estratégia forçada de associação às divindades africanas cultuadas

naquele território físico e místico, como demonstra a musica de Martinho da Vila. O

sincretismo foi à forma encontrada pelos negros para manter viva a cultura trazida de

seus territórios africanos em território brasileiro. Este processo de “aceitação” foi

realizado para que os cultos aos Orixás Africanos pudessem ser celebrados nos terreiros,

quintais e senzalas espalhadas pelo Brasil. Esta aceitação, não foi fácil, houve

resistências quanto à necessidade de deixarem sua cultura e iniciarem a crença às

Divindades que não fossem suas (mesmo que de forma não verídica). No entanto, os

negros perceberam que ao cultuarem, por exemplo, São Lázaro – santo católico que

cuida de pessoas doentes, a energia das práticas místicas eram enviadas a Obaluauê –

Orixá que devido as suas feridas de Lepra, cuida da saúde segundo os povos africanos.

Desta transposição com Obaluauê, todas as outras divindades foram sincretizadas para

que as práticas místicas fossem possíveis de serem realizadas. Assim, o passado, “(...) se

superpõe dialeticamente ao eixo das sucessões, que transmite os tempos externos das

escalas superiores e o eixo dos tempos internos, que é o eixo das coexistências, onde

tudo se funde, enlaçando definitivamente, as noções e as realidades de espaço e tempo"

(SANTOS, 1997, p. 22).

2.1 – Origens da Umbanda e seus fundamentos – experiências empíricas

Refletiu a Luz Divina

Com todo seu esplendor

É do reino de Oxalá

Onde há paz e amor

Luz que refletiu na terra

Luz que refletiu no mar

Luz que veio de Aruanda

Para tudo iluminar

A Umbanda é paz e amor

É um mundo cheio de Luz

É a força que nos dá vida

É a grandeza que nos conduz

Avantes, filhos de fé

Como a nossa lei não há

Levando ao mundo inteiro

A bandeira de Oxalá

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Levando ao mundo inteiro

A bandeira de Oxalá23

Este hino, escrito por José Manuel Alves, no ano de 1960, e apresentado ao

Caboclo das Sete Encruzilhadas24

que se fez símbolo da Umbanda. Desde então, esse

hino é cantado em algumas casas na abertura dos trabalhos até os dias atuais. Vale

ressaltar que devido a grande diversidade de povos e cultos não há como homogeneizar

nenhum ritual ou mesmo cântico nas religiões de matriz africana, pois cada casa é uma

casa, e, dessa maneira, cada mestre conduz seus rituais místicos de acordo com os

ensinamentos recebidos por suas ancestralidades.

Ao pesquisar sobre a religião Umbanda, deparei com algumas versões

acerca de sua criação. Contudo, os fundamentos da Umbanda que serão trabalhados a

seguir, tem seu pilar principal na caridade. Atentar-me-ei a duas referências históricas.

Nelas ficam claras as diferenças entre os autores, não se fazendo juízo de valores para

quem está correto ou não, porém, como citado anteriormente, as tradições são

repassadas pelas gerações através da oralidade, por isso, a pesquisa continuará com os

mestres para assim poder escrever a versão deles e de seus antepassados para a criação

da Umbanda, não havendo, portanto, uma versão única para a criação desta religião.

Segundo Renato Ortiz (1991, p. 15),

O nascimento da religião umbandista coincide justamente com a

consolidação de uma sociedade urbano-industrial e de classes. A um

movimento de transformação social correspondente um movimento de

mudança cultural, isto é, as crenças e práticas afro-brasileiras se

modificam tomando um novo significado dentro do conjunto da

sociedade global brasileira. Nesta dialética entre social e cultural,

observamos que o social desempenha um papel determinante.

De acordo com o autor, desde sua origem a Umbanda é posta a prova e precisa

resistir socialmente, o que não mudou muito nos tempos atuais. Os territórios místicos

ao qual a religião se insere geralmente são territórios de conflitos históricos,

socialmente e culturalmente construídos.

Segundo Ademir Barbosa Junior (2014, p. 35),

23

José Manuel Alves. Livro Essencial da Umbanda, 2014. 24

Entidade incorporada em Zélio, personagem importante da Umbanda.

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32

Antes da manifestação do Caboclo das Sete Encruzilhas e do

trabalho de Zélio Fernandino, houve atividades religiosas

semelhantes ou próximas, no que se convencionou chamar de

“macumba”. No Astral a Umbanda antecipa-se em muito ao ano

de 1908 e diversos segmentos localizaram suas origens terrena

em civilizações e continentes que já desapareceram.

O trecho citado elucida de forma clara o que o autor busca explicar acerca da

origem desta religião largamente difundida no Brasil, pois as histórias sobre sua origem

são passadas através de gerações por frequentadores das casas e até mesmo pelas

mensagens dos espíritos que trabalham nos terreiros. Entretanto, sabe-se que certas falas

podem ser tendenciosas para relatar um fato.

Segundo O livro essencial da Umbanda Zélio Fernandino de Moraes, morador

do Estado do Rio de Janeiro, aos 17 anos em 1908, começou a ter “ataques epiléticos”.

Sua mãe Dona Leonor de Moraes preocupada, o levou a uma curandeira – Dona

Cândida –, que recebia a entidade Tio Antônio. Nessa consulta ficou constatado que seu

filho tinha o dom da mediunidade sendo retratada pela incorporação. Não satisfeita com

a resposta obtida pela entidade, porém muito preocupados com os ataques cada vez mais

repetidos que o filho estava tendo os pais o levaram a um médico que não identificou

doença física alguma, porém o médico recomendou a família que procurasse um padre

para resolver os problemas espirituais do rapaz, pois a medicina nada poderia fazer.

Com receio do que poderia acontecer com seu filho, os pais de Zélio, Senhor

Joaquim Fernandino Costa e Dona Leonor, decidem levá-lo no mesmo ano (1908) à

Federação Espírita de Kardecismo25

em Niterói. Ao adentrar a casa que acontecia a

reunião, Zélio foi convidado a assentar na mesa com os demais médiuns espíritas

Kardecistas. Neste momento, o rapaz incorpora o Caboclo das Sete Encruzilhadas, que

logo sentiu falta de plantas no local, pois para seus trabalhos ritualísticos de cura, se faz

necessário o uso de plantas, assim como acontece com os índios nas florestas –

territorialidade dos Caboclos – então ele se retira da sala e volta com uma rosa nas mãos

colocando-a sobre a mesa iniciando o primeiro processo de benzeção, deixando os

presentes na mesa incomodados, pois o espírito que estava com o rapaz usava

expressões distintas das utilizadas nas reuniões mediúnicas Kardecistas; com sotaque e

25

Kardecismo é a orientação dada na obra de Allan Kardec. Trata-se da maneira de entender e teorizar os

ensinamentos dos Espíritos da Codificação, diferente de Espiritismo que é a doutrina dos Espíritos,

contida nas obras codificadas pelo referido missionário, na qualidade de instrumento encarnado.

Disponível em: <portalkardec.com.br> Acessado em 20/06/2017.

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33

dialetos indígenas, ponderava sobre uso de ervas para fins de cura medicinal, o que não

acontecia naquelas reuniões.

Indagados com o acontecimento, os médiuns que já trabalhavam na casa

ordenaram que o “espírito obsessor” se retirasse da reunião, pois ali não havia espaço

para espíritos como ele. Neste momento com toda sua simplicidade o Caboclo das Sete

Encruzilhadas interroga-os sobre a “seleção” de espíritos que poderiam trabalhar neste

“mundo de terra” naquele ambiente. Muitos espíritos tidos como marginalizados como

os Caboclos, Pretos Velhos e outras entidades não tinham a oportunidade de trabalhar

para o bem nestas casas, mostrando que o desconhecido pode incomodar e até mesmo

assustar. Novamente, em um movimento de resistência, agora mais territorial, o

Caboclo anuncia a todos que a partir daquele dia, surgia no subúrbio do Rio de Janeiro a

primeira tenda (casa) espírita que se dedicaria ao espiritismo libertador e de caridade,

sem maiores preconceitos quanto às falanges que decidirem por bem, ali trabalhar.

FIGURA 3 – Primeira sede da Casa de Caridade Nossa Senhora da

Piedade – Rio de Janeiro

FONTE: Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade, SD.

O relato de Ademir Barbosa Junior (2014) indica o posicionamento do

Caboclo das Sete Encruzilhadas sobre esse novo território e territorialidade:

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34

Se julgam atrasados os espíritos de pretos e índios, devo dizer que

amanhã estarei na casa de meu aparelho26

, às 20 horas, para dar inicio

a um culto em que os irmãos poderão dar suas mensagens e, assim,

cumprir missão que o Plano Espiritual lhes confiou. Será uma religião

que falará aos humildes, simbolizando a igualdade que deve existir

entre todos os irmãos encarnados e desencarnados. E digo mais, cada

colina de Niterói atuará como porta voz, anunciando o culto que

amanhã iniciarei. Deus em sua infinita bondade estabeleceu na morte

o grande nivelador universal, rico ou pobre, poderoso ou humilde,

todos tornariam iguais na morte, mas vocês homens preconceituosos,

não contentes em estabelecer diferenças entre vivos, procuram levar

essas mesmas diferenças até mesmo além da barreira da morte. Por

que não podem nos visitar esses humildes trabalhadores do espaço, se,

apesar de não haverem sido pessoas socialmente importantes na Terra,

também trazem importantes mensagens do além ? (BARBOSA Jr.,

2014, p.21-22).

Com esta citação fica nítido que há distinção do uso do território místico, pois o

Caboclo, que é uma espiritualidade, pretendia fazer uso do território místico físico –

casa Kardecista – que já tinha como fim o trabalho das ancestralidades místicas para

desenvolvimento de curas, mas devido às regras impostas por algumas pessoas, não foi

permitido suas práticas, iniciando-se o culto de Umbanda27

na casa de Zélio com o

nome Caridade Nossa Senhora da Piedade, no subúrbio do Rio de Janeiro. A partir daí,

começa-se uma nova ressignificação sobre centros espíritas, e o que era para ser uma

união de forças, se desdobra em uma “nova” religião em parte do território Brasileiro.

Na primeira reunião guiada pelo Caboclo das Sete Encruzilhadas para o

apropriado funcionamento do espaço místico Caridade Nossa Senhora da Piedade,

algumas regras foram estabelecidas para o funcionamento adequado da casa. A primeira

delas é que não haveria distinção entre ricos e pobres, nesta casa, todos seriam atendidos

igualmente. Algumas regras que foram estabelecidas neste momento são usadas em

muitos centros espíritas até os dias atuais entre elas: trabalhadores da casa usam

vestimentas brancas – esta cor simboliza a paz universal, além de não absorver energias

negativas. Além disso, havia o trabalho de várias entidades na mesma casa, sendo uma

característica típica de nós brasileiros. Desde que trabalhem para o bem, as entidades

eram e são aceitas nos terreiros de boa índole.

No dia de abertura da casa, Zélio recebeu a entidade de Pai Antônio, um Preto

Velho que se recusou sentar-se à mesa como os demais convidados, não por orgulho ou

26

É o mesmo que médium, ou seja, a pessoa que incorpora o espírito para que as atividades espirituais

possam ser realizadas na terra. 27

“Quanto ao nome seria Umbanda: manifestação do Espírito para a caridade”. Fonte: Livro Essencial da

Umbanda, 2014, p. 23.

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soberba, mas sim por ter hábitos antigos vindo lá da terra de Aruanda, e logo pediu um

toco de árvore para assentar e um cachimbo para que pudesse trabalhar. Vejamos:

“Nego num senta aí não meu sinhô, nego fica aqui mesmo, isso é coisa de sinhô e nego

tem que respeitá. Num carece preocupar não. Nego fica no toco, que é lugá de nego.

Minha cachimba. Nego qué o pito que deixou no toco. Manda mureque buscá”.28

Esse

posicionamento é entendido como um convite à humildade e não a submissão ou

dominação.

Na Umbanda, até os dias atuais os trabalhos são iniciados pelos Pretos Velhos

que trabalham sentados em bancos baixos, pitando seu cachimbo e diluindo energias

ruins ou ‘larvas atrais’ que necessitam serem dissolvidas para o equilíbrio das pessoas

que buscam os territórios místicos como espaços de cura. Muitas vezes, esse processo é

realizados através da queima de plantas com fins terapêuticos, uso de fumaça, ou copo

com água em rituais místicos que curam corpo, mente e espírito. Desta forma podemos

perceber as miscigenações de culturas e práticas utilizadas por Caboclos, Pretas e Pretos

Velhos, para “o bem maior” que é a cura e a caridade.

Esta versão sobre o surgimento das casas de Umbanda é lida em livros, sites e

alguns documentos diversos. Entretanto, Renato Ortiz (1986 et. al.) e Vagner Gonçalves

da Silva (2005) alertam sobre as várias ramificações/nomeações da religião pelo país:

“A Umbanda se desenvolve paralelamente em diferentes Estados, sem que exista

relação entre os terreiros, abrangendo a Tenda de Zélio e de Benjamim Figueiredo no

Rio de Janeiro, e em Porto Alegre, a tenda de Otacílio Chorão” (SILVA, 2005, p.25).

Mais uma vez se mostra que os territórios tratados neste trabalho não são únicos. Antes,

pelo contrário, suas práticas são heterogêneas, livres e com princípios semelhantes. O

território aqui tratado, não é de dimensão física, apresenta também dimensão espiritual e

de pertencimento, onde se transita pessoas, espíritos, místicas, curas, libertações,

saberes, ensinamentos, tendo como instrumentos os fios29

de terra e o uso das

plantas/ervas para devidos fins.

Uma crítica pessoal a versão da criação da primeira casa de Umbanda no Brasil

é que centra a atenção desta criação numa pessoa branca, de família consideravelmente

abastarda, realidade bem distinta das pessoas que faziam parte da religião até então.

28

JUNIOR, Ademir Barbosa. Livro Essencial da Umbanda, 2014 p. 23.

29 Entende-se por médiuns.

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Vale apena lembrar que as origens a meu ver, da Umbanda em solo brasileiro são as

reuniões autorizadas ou não pelos “senhores”.

Esta versão da Umbanda pode ser entendida como “branqueamento” dos rituais

negros para que eles possam ter prestígio social e serem aceitos com maior facilidade.

Novamente repete-se a história do sincretismo religioso, com outras roupagens e com

mais força em uma sociedade com muitas crenças religiosas, porém, preconceituosa e

que admite apenas uma visão hegemônica da espiritualidade dita e entendida como

correta. Com a transgressão do Caboclo das Sete Encruzilhadas, rompe-se com o

Kardecismo e pode-se tentar explicar a resistência dos rituais popularizando, dessa

maneira, os acessos às novas práticas espirituais, mas ainda sim, “branca demais” para

uma religião cuja maior população adepta são negros, mestiços e mulatos.

Embora a Umbanda tenha a matriz de sua religião nas práticas ritualísticas

africanas com a atuação dos Pretos Velhos e os ritos cânticos aos Orixás, no Brasil

houve miscigenações de culturas, povos e religiões para então formar a Umbanda como

conhecemos atualmente.

Outra versão sobre o surgimento da Umbanda é dada por Ademir Barbosa Junior

(2014):

Existem heranças por todas as partes para formar as “linhas”

30 que

trabalham nas casas de caridade; dos africanos, o culto aos Orixás e

Pretos Velhos uso de plantas medicinais; do cristianismo uso de

imagens e orações; do indianismo aspectos da sabedoria ancestral

indígena com uso de plantas, ritos espirituais e cultos aos Caboclos; do

Kardecismo estudos aos livros espíritas como O evangelho segundo o

espiritismo psicografado por Allan Kardec e a presença de entidades

médicas como Bezerra de Menezes, estudos sistemáticos em relação à

mediunidade e espiritismo; os baianos, por sua vez, que desmancham

trabalhos e cultuam os Orixás e para finalizar a exposição neste trabalho

e não na miscigenação da Umbanda, assinala-se também a influencia

oriental através dos estudos em relação à Chakras, entre outros.

De acordo com Ademir Barbosa Junior (2014), as origens da Umbanda parecem

mais claras e próximas ao que entendemos com esta religião nos dias atuais. Os rituais

praticados nos espaços místicos são frutos da miscigenação de várias culturas e

Falanges, sendo divididos para que cada um trabalhe em um “segmento” auxiliando nos

30

Linhas ou falagens espirituais são agrupamentos de espíritos afins a determinados orixás que possuem

semelhante vibração e compromisso caritativo: pretos velhos, caboclos, exus, crianças, baianos,

boiadeiros, marinheiros ciganos, orientais das mais diversas etnias, entre outras formas e raças

relacionadas à evolução humana Disponível em: <simplesmenteumbanda.blogspot.com.br> Acessado em

28/05/2018.

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processos de cura desde suas místicas e rituais. Essas linhas trabalham com os espíritos

que já viveram em algum momento na Terra e hoje voltam com seus ensinamentos para

trabalhar através de práticas místicas nas casas espirituais. Dependendo da tradição das

nações há a junção das Falanges com o poder divino dos Orixás nos rituais místicos.

Em seguida apresento um organograma com as principais linhas de trabalho da

Umbanda. O panteão dos Orixás abaixo retratam apenas algumas das principiais

Divindades cultuadas no Brasil.

FIGURA 4- Principais linhas na Umbanda cultuadas no Brasil

FONTE: SILVA, 2005. Adaptado e organizado por Crisângela Elen de Souza, 2018.

Cada linha é responsável por um tipo de atendimento, pois cada uma trabalha

em um “segmento específico” e para cada tipo de linha, há ervas diferentes. Estas ervas

podem variar de acordo com as casas trabalhadas e, principalmente, com a localização

geográfica, pois o Brasil é um país de dimensões continentais e existem vários biomas

em seu território, e cada bioma é responsável por abrigar plantas específicas e as vezes

endêmicas. Pai Ricardo em sua fala explica: “Não adianta falar que a folha de Oxossi é

Orixá

s

Falan

ges

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38

Camboatá sendo que no nordeste não tem. Camboatá é folha de Oxossi aqui em Minas

Gerais”. De acordo com os costumes e regiões há alterações de nomes e usos das

folhas, visando à perpetuação da cultura, as adaptações são realizadas, observando a

energia da planta com a entidade que se pretende trabalhar.

2.2 Ervas na Umbanda

Abaixo foi retratado o Itan31

de Ossain, conhecido como o Rei das Ervas.

Devido às diferenças culturais muitos terreiros, cultuam Oxossi que é o orixá das Matas

como o rei das folhas e não Ossain.

Ossain recebera de Olodumaré o segredo das folhas.

Ele sabia que algumas delas traziam a calma ou o vigor.

Outras, a sorte, as glórias, as honras, ou, ainda, a miséria, as doenças e os acidentes.

Os outros orixás não tinham poder sobre nenhuma planta.

Eles dependiam de Ossain para manter a saúde ou para o sucesso de suas iniciativas.

Xangô, cujo temperamento é impaciente, guerreiro e imperioso, irritado com esta

desvantagem, usou de um ardil32

para tentar usurpar, de Ossain, a propriedade das folhas.

Falou do plano à sua esposa Iansã, a senhora dos ventos.

Explicou-lhe que, em certos dias,

Ossain pendurava, num galho de lroko33

,

uma cabaça contendo suas folhas mais poderosas.

"Desencadeie uma tempestade bem forte num desses dias", disse-lhe Xangô.

Iansã aceitou a missão com muito gosto.

O vento soprou a grandes rajadas, levando o telhado das casas, arrancando as árvores,

quebrando tudo por onde passava e,

o fim desejado, soltando a cabaça do galho onde estava pendurada.

A cabaça rolou para longe e todas as folhas voaram.

Os orixás se apoderaram de todas.

Cada um tomou-se dono de algumas delas,

mas Ossain permaneceu senhor do segredo de suas virtudes

e das palavras que devem ser pronunciadas para provocar sua ação.

E, assim, continuou a reinar sobre as plantas, como senhor absoluto.

Graças ao poder (axé) que possui sobre elas.34

Desta forma, pode-se observar que as ervas possuem um papel de extrema

importância para os rituais místicos. Cada Orixá tem suas folhas, usadas em seus

trabalhos e oferendas, as entidades como Pretos Velhos e Caboclos também utilizam os

poderes das ervas para seus trabalhos de cura místicos.

31

Referente a lendas que ensinam típicas dos africanos. Disponível em:< www.ocandomble.com> Acesso

em 03/072018. 32

Segundo dicionário Aurélio: 1 - Astúcia; manha. 2 - Plano para enganar alguém. Disponível em:

<dicionariodoaurelio.com/ardil> Acesso em 02/07/2018. 33

Árvore sagrada conhecida como Gameleira Branca em Iorubá, sempre presente nos terreiros de

candomblé. Disponível em: <segredodasfolhas.blogspot.com/2011/04/arvore-sagrada-iroko.html> Acesso

em 02/07/2018. 34

Fonte: <raizesespirituais.com.br> Acesso em 02/07/2018.

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39

Praticamente todas as místicas fazem o uso de ervas, desde a defumação,

passando por banhos, benzeções, assopros vindos de cachimbos ou charutos, entre

outras que os poderes místicos das ervas são recorridos.

Como já citado, há muitas casas que trabalham com o Orixá Oxossi e cantam

pontos pedindo licença a Ele para dar inicio aos trabalhos. No ponto a seguir, é possível

perceber o nome popular de muitas ervas usadas com a intenção de descarregar energias

negativas.

Ho! Pai Oxossi.

Daí-me licença pra defumar.

Eu defumo, eu defumo essa aldeia real.

Defuma com as ervas da Jurema.

Defuma com Arruda e Guiné.

Defuba com as ervas da Jurema.

Vamos defumar filhos de fé.

Defuma com as ervas da Jurema

Defuma com arruda e guiné

Defuma com as ervas da Jurema

Defuma com arruda e guiné

Benjoim, alecrim e alfazema

vamos defumar filhos de fé

Defumei, defumei

Em nome de Oxalá

Que todo mal que aqui estiver

Parta para as ondas do mar

O trecho abaixo, retirado do Jornal São Francisco nº 2 (2016) publicado35

tras

uma explicação feita pela vovó Maria Conga sobre magia das plantas astrais:

Por que os pretos Velhos utilizam as ervas? Os filhos sabem da grande

capacidade curativa das plantas. Os principais químicos emanados

desses fitoterápicos são utilizados na magia para a cura das mais

diversas moléstias. De maneira mais simples possível, podemos dizer

que tem grande repercussão etérica, como fiéis potencializadores das

energias vinculadas aos quatro elementos do plano físico, ou seja,

fogo, água, o ar e a terra, que abundam em todo planeta por meio de

vibrações próprias, e que estão presentes na constituição energética de

todos os filhos que se manifestam especialmente nos corpos físicos e

etérico36

. Então, manipulamos as ervas que contém energia que estão

35

Este Jornal é uma referência bibliográfica importante para o trabalho, pois citações retiradas de

psicografias são relatadas neste jornal. Vale lembrar, mais uma vez, da importância da oralidade nas

religiões de matriz africana. 36

O corpo etérico é assim a vida Aura ou corpo de energia que é constituído de matéria sutil que é

invisível a olho nu. Fotografia Kirlian é considerada como prova científica da existência do nosso corpo

etérico. Fotografias Kirlian permitem a visualização, observando e analisando o campo de energia ou o

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faltantes nos filhos, refazendo o equilíbrio do corpo etérico, com

imediato alívio das mazelas que os afligem no campo fisiológico

(PEIXOTO, 2016, p. 131).

O depoimento reafirma a importância das ervas medicinais nos trabalhos

realizados na Umbanda – as plantas medicinais são a resistência ao sistema capitalista

que estamos inseridos; a todo tempo nos mostra que para se tratar os problemas de

saúde se faz necessário o uso de medicamentos alopáticos, fortalecendo as indústrias

farmacêuticas e enfraquecendo a saúde humana aos poucos para continuar gerando

lucros e alimentar o círculo vicioso alopático.

Ao receber um passe e ser defumado com as ervas do cachimbo, ou benzido com

a planta imersa em água, as energias entre pessoa e planta são trocadas, promovendo o

bem estar de quem recebe o passe: “A força Vital, ou energia Cósmica, circula em todas

as coisas vivas, é partilhada pelas plantas, animais e seres humanos. A partir desta

partilha a pessoa e a planta se convertem num só” (TOMPKINS, p. 37).

Para Dona Ruth da Casa de Caridade São Francisco de Assis – CCSFA: “As

plantas servem para descarregar mesmo. Para iniciar os trabalhos queima no

defumador a mistura de Incenso (Plectranthus forsteri), Beijuim (Styrax benzoin) e

Mirra (Commiphora myrrha), para limpar o ambiente.” Na CCSFA inicialmente os

médiuns são defumados, e, posteriormente, todos os frequentadores da casa, sendo esta

a primeira etapa de proteção e descarrego da gira. Todo o processo é feito ao som do

seguinte ponto:

Nossa Senhora defumou seus filhos

Foi para eles cheirar.

Mas eu defumo, eu defumo esses filhos

Que é para sorte e a saúde entrar.37

Durante o passe ao sermos recebidos aos pés de um Preto Velho, ele (a) nos

analisa como um todo e logo percebe o tratamento que precisamos, seja ele defumação,

benzeção com plantas e água, imposição das mãos para alinhamento dos Chakras ou ser

corpo etérico que rodeia nossas formas físicas. Disponível em:

>www.worldpranichealing.com/pt/aura/the-etheric-body< Acesso: 02/07/2018 37

Fonte: http://www.girasdeumbanda.com.br/pontos-cantados/

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passagem do pó de Pemba.38

Eles também sabem qual erva necessitamos para completar

o tratamento em casa, seja em forma de banhos, chás e alimentação. Saberes místicos,

ancestrais e espirituais desenvolvidos pelos médiuns e pelos espíritos. “Nos passes usa-

se as plantas para descarregar” (Dona Ruth, CCSFA).

Dentro desta pesquisa percebeu-se que não há como ter uma receita sobre o uso

das ervas nos rituais místicos Em conversa com Pai José 39

foi dito: “Fia, não tenho

como te falar isso não. As ervas são escolhidas na hora que a fia senta aqui, ai consigo

com a ajuda da parceirada saber o que a fia precisa. Esse é o trabaio do Preto aqui.

Hahahaha. Tem vez que o Preto vem aqui e só receita Alecrim, por que os fios que vem

aqui estão precisando de Alecrim, mas tem vez que o Preto vem aqui e precisa

trabalhar com um montão de ervas. Não tenho como te falar isso. Fia a espiritualidade

não é feita para ser quantificada, ela não tem a razão que existe na terra. Não adianta

a fia querer quantificar. Ela é sentinda e é feita para fazer o bem. Você se sente bem?

Então pronto. É isso.” A fala de Pai José vai de encontro com Silva(2010), onde o

racionalismo estrito recomenda pensar sobre a crença, buscando sempre a razão de tudo,

porém há fatos que não devem ser analisados através da razão, eles acontecem e a

mística está ai! Passaremos em seguida a apresentar os territórios místicos e suas

territorialidades.

2.3 - Casa de Caridade São Francisco de Assis - CCSFA

Senhor, fazei-me instrumento de vossa paz.

Onde houver ódio, que eu leve o amor;

Onde houver ofensa, que eu leve o perdão;

Onde houver discórdia, que eu leve a união;

Onde houver dúvida, que eu leve a fé;

Onde houver erro, que eu leve a verdade;

Onde houver desespero, que eu leve a esperança;

Onde houver tristeza, que eu leve a alegria;

Onde houver trevas, que eu leve a luz.

38

A Pemba é um pó extraído dos Montes Brancos (Kimbanda) e a água que corre no Rio Divino U-Sil. É

empregada em todos os rituais, cerimônias, festas, reuniões ou solenidades africanas. Os médiuns e as

Entidades Espirituais que atuam no Centro de Umbanda costumam desenhar pontos riscados com um giz

de calcário, conhecido como Pemba. Esse giz mineral, além de ser consagrado para ser utilizado nos

pontos riscados, também pode ser transformado em pó e utilizado para outros fins de rituais de limpeza e

proteção. Disponível em: >//pretovelhonaumbanda.blogspot.com.br/< Acessado em: 16/06/2017.

39

Preto velho que trabalha na CCSFA.

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Ó Mestre, Fazei que eu procure mais

Consolar, que ser consolado;

compreender, que ser compreendido;

amar, que ser amado.

Pois é dando que se recebe,

é perdoando que se é perdoado,

e é morrendo que se vive para a vida eterna.40

FIGURA 5- Imagem de Pai Francisco – CCSFA

A Figura 5 representa de um Preto Velho, negro assentado em um toco segurando seu

cachimbo. Segundo a tradição da casa, essa seria a imagem de Pai Francisco. Já as

contas (colares) envoltas em seu pescoço são colocadas para fazer a firmeza, pedindo

proteção. A tradição de uso de imagens pode ser considera influência da Igreja Católica,

40

Oração de São Francisco de Assis. Disponível em: <https://www.bahai.org.br/oracoes/oracao-de-sao-

francisco-de-assis> Acessado em 20/06/2017.

Fonte

: A

rquiv

o p

esso

al

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43

usada no período da escravidão como objeto principal do sincretismo religioso,

presentes nos terreiros até os dias atuais.

Como tratado por alguns geógrafos como Yves Lacoste, o trabalho de campo tem tanta

ou mais importância para o geógrafo que as teorias. No dia 20 de junho de 2017 Dona

Ruth abriu as portas de seu terreiro – a Casa de Caridade São Francisco de Assis – para

as observações e registros necessários do trabalho empírico e que resultou nas páginas a

seguir.

Ruth Avelar, mais conhecida como Dona Ruth é a

fundadora e zeladora da Casa de Caridade São Francisco

de Assis.

De família muito católica, resistentes as práticas

místicas advindas das religiões de matriz africana, teve

seu primeiro contato com Pai Francisco – Preto Velho

mentor da casa – ao passar por problemas de saúde sérios

em sua família.

Assim como Zélio em 1908, Dona Ruth em 1976

foi aconselhada a procurar uma casa espírita para

resolver seus problemas que não eram apenas físicos.

Inicialmente foi resistente, porém com sua filha pequena

doente, se viu em busca da cura. Procurou uma casa

espírita e chegando lá recebeu o primeiro recado: ela era médium de incorporação e

precisava desenvolver seu dom.

Em segunda visita, Dona Ruth já começa seus trabalhos de incorporação

recebendo Pai Francisco, que passa todas as orientações para que ela fundasse uma casa

espírita onde se deveria praticar apenas a caridade com auxilio das entidades. “Minha

incorporação foi muito rápida, desde então trabalho aqui na casa, isso já está fazendo

41 anos. O ensinamento do Pai Francisco veio completo: nome da casa, regras para o

funcionamento, como proceder com os problemas que poderia acontecer como usar as

ervas, etc.”

Inicialmente Dona Ruth trabalhou sozinha em um cômodo no terreiro de sua

residência localizada no bairro Cachoeirinha região Noroeste de Belo Horizonte,

território místico e de resistência, ora utilizado como lar, ora utilizado como templo

místico e divino. Ali seus males ou angustias eram tratados com auxilio de plantas,

FIGURA 6 Dona Ruth.

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44

rezas, místicas e saberes. “Pai Francisco atendia muita gente, entre 20 e 25 pessoas

sozinho nas quartas feiras”. Não tardou e logo um frequentador da casa, que também

tinha o dom da mediunidade de incorporação foi convidado a trabalhar junto a Pai

Francisco. “A partir daí Pai Francisco começou atender domingo também, pois o

ajudante só podia vir aos domingos [...], não tinha muita hora para trabalhar não,

qualquer hora se alguém precisasse Pai Francisco ajudava”.

Com o passar dos anos a casa foi crescendo e aumentando o numero de médiuns

trabalhando sobre supervisão de Pai Francisco. Ele estabeleceu aos novos membros da

casa jejum de alguns alimentos que tendem atrapalhar o contato com as espiritualidades

e orações, para desenvolver seus dons mediúnicos. Atualmente a CCSFA trabalha com

aproximadamente 18 médiuns que se dedicam a caridade através das curas místicas

auxiliando as entidades que ali trabalham. As reuniões acontecem todas as quartas

feiras atendendo em média sessenta pessoas por semana, e as sextas feiras com

atendimento restrito devido às entidades41

, recebendo em média vinte pessoas por

semana. Não se sabe ao certo quantas pessoas já foram atendidas na casa ao longo dos

41 anos de sua existência. Dona Ruth explica que sua casa é situada em Belo Horizonte,

mas suas territorialidades atingem pessoas do país todo, em busca de atendimento.

“Tem gente de São Paulo, Goiás, Belo Horizonte toda, tem muita gente graças a nosso

Pai; isso se deve também ao fato da Casa funcionar durante todo o ano, não havendo

recesso para férias como ocorre em muitas casas. Não há dia e nem hora para praticar

a caridade”.

A prática da caridade trabalha além do limite físico ou do que se pode ver, e

além do que se pode quantificar, ou mesmo especializar. Ao trabalhar como médium em

uma casa, territorialidades são exploradas a todo o momento. Desde o sentido de

pertencimento e resistência local, pois os atendimentos acontecem no momento

presente, indo até as sutilezas de saber que cada entidade que se trabalha com seu

médium vem de territorialidades diversas, carregando consigo a resistência de centenas

de anos. Ao perguntar dona Ruth sobre a função dos médiuns na casa obtive a seguinte

resposta: ”Todo mundo é médium a principio. Cada um tem uma mediunidade, uns é de

incorporação, outros de auxiliar os trabalhos e outros nem se quer incorporam,

recebem as mensagens por intuição. Meu irmão mesmo trabalhou muitos anos me

ajudando aqui, mas nunca incorporou, ele recebia tudo por intuição. O médium é

41

Nas sextas feiras a linha que trabalha é a chamada de linha de esquerda, abrangendo as entidades como

os Exus, Pomba Giras e Ciganas.

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45

importante na umbanda por que ele que recebe as entidades e que trabalha para livrar

todas as coisas ruins. Os médiuns que trabalham hoje na casa foram desenvolvidos por

Pai João, e eles são muito bons! Devido meu problema de saúde e a idade, isso passou

para ele. Todos os médiuns que foram desenvolvidos por Pai Francisco no inicio já

morreram”. Observa-se que os médiuns são tão fundamentais na casa quanto às

entidades que ali trabalham. Na realidade eles se complementam formando um

sincronismo essencial para que os atendimentos místicos e fraternos sejam realizados.

Após tratar de assuntos fundantes para casa CCSFA, perguntei a Dona Ruth o

que é a Umbanda? De que estamos falando? “A umbanda é uma linha42

espiritual. Não

tive muito estudo, então não sei dizer tudo. Mas a umbanda é uma linha espiritual que

trabalha com as correntes das entidades, por exemplo, a corrente dos Pretos Velhos,

Erês, Exus, Caboclos. Tem muitos guias que vem de longe – Angola, Aruanda43

, para

fazer a caridade aqui. Aqui só faz caridade”. Neste trecho fica explicito que os

territórios existem para as espiritualidades e as espiritualidades edificam

territorialidades transcendentais. Fala-se de Aruanda, Angola, territórios místicos dos

Pretos Velhos. Nossos olhos não podem ver estes territórios, assim como não podemos

espacializá-lo, o que para academia pode ser entendido como algo menor, sem

importância, mas nas religiões de matriz africana, principalmente esses dois territórios

são lembrados constantemente, ficando explicito nos dois pontos a seguir:

42

“Faixa de vibração”: alguns cultos afros agrupam as divindades e as identificam por meio de cânticos,

doutrinas ou rituais próprios. Fonte: SILVA, 2005. 43

Colônia específica no plano espiritual, onde residem espíritos de muita luz, constituídos em sua maioria

de Pretos Velhos e Caboclos, e que são os responsáveis espirituais pelo o que nós conhecemos aqui na

terra por Umbanda. Disponível em: <www.umbanda24horas.com.br/> Acessado em 20/06/2017.

Firma Ponto Minha Gente

Firma ponto minha gente Preto

Velho vai chegar

Ele vem de Aruanda

Ele vem pra trabalhar

Saravá Pai Joaquim

Saravá, saravá, saravá

Ele chegou no terreiro

Ele vem nos ajudar.

Lá Vem Vovô

Lá vem vovô descendo a serra

Com sua sacola

Com seu rosário com seu patuá

Ele vem de Angola

Lá vem vovô descendo a serra

Com sua sacola

Com seu rosário com seu patuá

Ele vem de Angola

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46

A umbanda tem muitos territórios e territorialidades. Ao conversar com Dona

Ruth percebi que o território da Umbanda é mais amplo do que a ciência positivista é

capaz de entender e até mesmo de explicar. A própria geografia, que seria até então a

ciência que trata dos assuntos relacionados a territórios e disputas de poderes, não

consegue em autor algum explicar o que seria o território de Aruanda. O místico da

espiritualidade/umbanda não é feito para ser entendido, explicado na lógica racionalista,

do conhecimento científico. O que se sabe é que os Pretos Velhos vem de Aruanda e

que este território é demarcado por suas próprias características, que não são

mensuráveis, mas é muito importante para a Umbanda saber que este território existe,

em outro plano, e que nele, habitam espíritos que querem trabalhar para fazer o bem no

nosso plano físico.

Segundo Dona Ruth: “Os Pretos Velhos foram escravos que viveram há muito

tempo no mundo, e que voltam hoje para trabalhar na Umbanda com a permissão de

nosso Pai, sempre com a permissão dele e o apadrinhamento de Nossa Senhora do

Rosário, por isso, todos os médiuns não incorporam um Preto Velho sem um rosário.

Muitos deles vêm de Aruanda, mas também vem de outros lugares, mas sempre vem

para fazerem o bem.” Ao conversar com a entidade Preto Velho é perceptível a doçura,

cuidado, amor incondicional em suas falas. Atualmente trabalham na casa as vovós:

Catarina, Sinhá, Maria Conga e Maria Amélia, e os vovôs44

: Pai Francisco, Cipriano,

Joaquim de Angola, Joaquim de Aruanda, Malaquias do cruzeiro e de Aruanda, José,

Campelo, Jacó, Antero e Tomé, todos trabalhando em falanges45

.

A figura 7 mostra o banco, “toco” que é usado

por Pai Francisco durante os atendimentos. Ao lado

encontra-se uma caixa de madeira verde onde está seu

cachimbo – importante instrumento de trabalho nos rituais

místicos – que queima as ervas para os trabalhos.

“O cachimbo é usado, pois todos os pretos gostam de

44

Os vovôs, são muito citados neste trabalho, pois é com esta falange que a casa trabalha as quarta feiras,

dia que a pesquisadora frequenta. 45

Conjunto de Espíritos sob a mesma direção e com idênticos objetivos. Retirado do site:

<portalkardec.com.br/livros/dicionário>. Acesso em: 20/06/2017.

FIGURA 7 - Toco onde Pai Francisco trabalha juntamente com seus instrumentos

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fuma. Meu Preto só gostava de fuma, fumo Trevo. Cada Preto prepara seu cachimbo de

acordo com as ervas que a pessoa que está sentada em sua frente no momento do passe

necessita. A fumaça que solta é usada para descarregar todo mal”.

Segundo o site umbandaead os cachimbos são imprescindíveis aos rituais

ligados aos Pretos Velhos.

A origem do cachimbo é muito antiga e ele é encontrado em todos os

continentes, possui diversos formatos e é fabricado com materiais

variados. Na Mãe África o cachimbo é empregado pelos curandeiros

nativos com finalidades mágicas e religiosas (...). Nei Lopes, no Novo

Dicionário Banto do Brasil, afirma que a origem da palavra vem do

idioma kimbundu: kuxiba, "chupar" (a fumaça). Seu forno, onde

colocamos ervas misturadas ou simplesmente tabaco, é a imagem da

Mãe Mata - o feminino sagrado. O tubo, por onde a fumaça é aspirada,

representa o Pai Céu – o masculino sagrado.

As ervas colocadas no forno são as criaturas viventes: os minerais, os

vegetais e os animais. A fumaça é a Natureza em movimento, o sopro

que tudo envolve e o espírito que anima os seres. Quando a fumaça

cobre um objeto ou um vivente, ela infunde o poder do encanto que

liga a Terra ao Céu e o Mundo Humano ao Mundo Divino. Pitar o

cachimbo, dentro de um ambiente religioso, é um ato sagrado. O

cachimbeiro é um veículo dos bons espíritos e um agente da cura dos

males do corpo e da alma (UMBANDAEAD, 2009).

O cachimbo anuncia passagens para outras territorialidades. O cachimbo eleva e

leva a vida terrena – purifica o corpo cansado e sofrido.

2.3.1 – Ervas na CCSFA

O poder das ervas nas casas são guardados como amuletos e nem sempre

são revelados aos frequentadores. Para encerrar a visita pedi Dona Ruth que se possível

dentro de seus costumes se ela poderia passar a receita de um banho que usasse “São

muito bons esses banos, você pode tomar que vai gostar muito. Lembre que não pode

jogar na cabeça, é só do pescoço para baixo”.

Banho de descarrego 1

Ingredientes

5 follhas de Guiné (Petiveria alliacea L),

1 espada de São George (Sansevieria trifasciata) picada em pedaços pequenos,

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48

1 folha de Fumo (Nicotiana tabacum L),

5 pitadas de sal de cozinha.

Modo de preparo:

Coloque todos os ingredientes em uma vasilha e leve ao fogo com 3 litros de água e

deixe cozinhar por 15 minutos. Desligue, espere esfriar, coe e toma o banho do pescoço

para baixo, após o banho de higiene. Para ajudar neste banho você acende uma vela

branca e oferece para seu anjo da guarda.

Banho de descarrego com leite (purificação) - 2

Ingredientes

3 Folhas de Guiné (Petiveria alliacea L

½ copo americano de leite

1 Litros de água.

Modo de preparo:

Colocar todos os ingredientes em uma panela. Leve ao fogo por 5 minutos. Deixe

esfriar e tome o banho do pescoço para baixo. Para ajudar neste banho você acende uma

vela branca e oferece para seu anjo da guarda.

A figura 8 retrata uma das formas

que as plantas podem ser utilizadas

nas práticas místicas. Neste caso, os

banhos. Eles são receitados pelas

entidades para tratar os mais diversos

problemas.

Os banhos são preparados por D.

Ruth com ervas secas, pétalas de

rosas e podem ser adquiridos na

lojinha da CCSFRS. A forma de usar

é indicada de acordo com cada

entidade, e da necessidade da pessoa que busca auxílio.

FIGURA 8: Cesta com ervas para os banhos espirituais

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49

2.4 Casa de Caridade Pai Jacob do Oriente – CCPJO

FIGURA 9 – Pai Ricardo – Casa de Caridade Pai Jacob do Oriente

Ricardo de Moura, zelador

“Pidão” da CCPJO, filho de

Joaquim Camilo Filho, negro que

viveu na década de 40 em

Domingos do Prata na senzala de

uma fazenda, Senhor Joaquim e

sua família tinham o costume de

cuidar da parte espiritual dos

outros negros que ali viviam,

herança de costumes. Devido

fatores econômicos e uma crise

que atingiu a fazenda, eles foram

expulsos e partiram de Minas Gerais para morar no Rio de Janeiro, trabalhando em

atividades como marcenaria.

Sua mãe Maria das Dores de Moura mestiça da cidade de Carmo da mata já

trabalhava com as espiritualidades e com o congado, foi trabalhar e fazer as obrigações

de Santo no Rio de Janeiro onde conheceu senhor Joaquim. Casaram-se e tiveram dois

filhos, vieram morar em Belo Horizonte e fundaram a CCPJO.

Localizada na Vila Nossa Senhora dos Passos

região Noroeste de Belo Horizonte, a CCPJO foi fundada

há quase 60 anos pelos pais de Pai Ricardo como uma

casa de Umbanda com mentor espiritual Pai Jacob. Cada

casa apresenta seus rituais místico de maneira específica,

todas elas perpassadas por saberes ligados a

ancestralidade, religiosidade e uso tradicional das plantas

em seus rituais.

Como a casa é herança das ancestralidades vindas

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FIGURA 10 - Imagem Pai Jacob

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de seus familiares, nos dias atuais, Pai Ricardo passa os ensinamentos místicos para o

irmão e seu filho Gabriel, que são Ogans46

da casa, perpetuando a tradição e a força

familiar ancestral.

A umbanda, tratada como território místico de resistência neste trabalho, é uma

crença envolvida por muitos rituais, com muitas versões a respeito de suas origens

como já citado neste trabalho. Pai Ricardo explica em sua fala como foi importante a

junção dos negros com o indígenas para ter a essência do que hoje é entendido como

Umbanda na sua casa: “A Umbanda não é única, não se sabe quem veio primeiro o ovo

ou a galinha, é um modo de costume de vida. Mas o que se sabe é que os negros mesmo

com disputas territoriais e étnicas se confluíram com os indígenas formando a

resistência religiosa o que possibilitou a formação do que hoje entendemos como

Umbanda. Houve uma identificação ancestral maior com os índios que com os

colonizadores. Os quilombos só puderam existir com a ajuda dos indígenas, pois os

negros não conheciam o território, caso eles conseguissem fugir, iam morrer na boca

da onça, que tinha muito, ou envenenado com alguma coisa que comeu, o que tem aqui

não tem lá não (referindo-se a África), mas nesta confluência foi possível a libertação.”

A fala de Pai Ricardo a respeito da confluência histórica pode ser complementada com o

trecho da música de Clara Nunes, citado por ele próprio durante a entrevista.

Canto das Três Raças47

Um lamento triste

Sempre ecoou

Desde que o índio guerreiro

Foi pro cativeiro

E de lá cantou

Negro entoou

Um canto de revolta pelos ares

No Quilombo dos Palmares

Onde se refugiou

A confluência índio/ negro possibilitou o inicio da resistência territorial e

religiosa, enriquecendo cultural das práticas místicas com a adaptação de plantas nativas

46

Ogan é escolhido pelo Orixá do zelador de uma Casa de Candomblé para diversas funções

dentro do Àse, primeiramente é suspenso, para depois ser confirmado. Ogà não incorpora, não

entra em transe, ele é escolhido justamente por estar sempre lúcido e cumprir diversas funções

que são importantíssimas dentro de toda liturgia. Disponível em: >ocandomble.com< Acesso:

03/07/2018. 47

Disponível em > www.letras.mus.br/clara-nunes <. Acesso em 03/07/2018.

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aos rituais. Outras plantas usadas nas praticas muitas vezes eram trazidas nos navios

pelos negros e pelos portugueses.

A resistência por parte das religiões afro brasileiras desde os tempos da

escravidão foi permeada de dificuldades, seja na falta de liberdade de poder cultuar suas

ancestralidades e seus Orixás, ou mesmo pelo desconhecimento territorial e da

vegetação Brasileira. Contudo, os negros sempre conseguiam esquivar-se das

dificuldades, mantendo foco em sua fé. Fé esta que mesmo após mais de um século de

abolição da escravidão no Brasil ainda é descriminalizada. “Na época da ditadura

militar, nós para nos reunirmos, tinha que ir na delegacia e registrar a ocorrência que

ia acontecer a gira. Chegando lá o delegado nos atendia e manda o escrivão colocar

na ata que em tal dia, tal hora, acontecerá uma reunião de pretos com objetivo de

fé.Caso o regente da casa tocasse sua gira sem essa autorização, a policia entrava no

terreiro, revirava tudo, quebrava imagem, tambor, era uma bagunça. Mas você acha

que agente não resistia? Lembro de muitas vezes minha mãe pedindo para que eu

corresse no terreiro de um pai ou uma mãe que não conseguiu a tal autorização e

carregasse para cá os tambores, imagens, pois se a policia entrasse lá, não teria nada

para estragar, e assim vivemos durante a ditadura militar. Porém hoje não pe muito

diferente, outro dia mesmo, aqui no bairro Santo André, a policia entrou na casa da

mãe e saiu quebrando tudo, pois teve denuncia que tava tendo cárcere privado, e sabe o

que era? Os filhos dela estavam recolhidos na camarinha para obrigação48

, vê se

pode? Ai até explicar que não era aquilo, colocou todo mundo para fora, foi parar na

delegacia, e a tradição foi desrespeitada”.

A falta de respeito aos territórios místicos acaba ocasionando problemas no

desenvolvimento das práticas místicas que necessitam da natureza para sua realização.

As plantas usadas nos rituais sagrados ou oferecidas aos Orixás precisam ser saudáveis

e limpas e está cada vez mais difícil encontrá-los devido problemas relacionados a seus

acessos, como poluição dos rios e córregos próximos a cidade e falta de espaço para

plantio nas grandes cidades Urbanas. “Em termo de território, nós perdemos muito.

Pois olha o que a especulação imobiliária acabou com as matas, com o espaço que

tínhamos para catar uma folha e pegar uma água limpa. Minha religiosidade depende

48

A "Feitura de Santo" é necessária para os que desejam reunir-se ao seu santo, e penetrar nos segredos de seus

orixás, porque é através da "Feitura de Santo" que o orixá é assentado no ori (cabeça) e a partir dai o yawô(pessoa

que está sendo iniciada) tem acesso espiritual de fato e de direito ao entendimento do ocultismo e magia do seu

santo, no que lhe for permitido por Olorum.. Para isso o filho de santo, fica recolhido por um tempo na casa, privado

de algumas atividades, porém muito bem cuidado pelas pessoas responsáveis pela iniciação. Adaptado e disponível

em: > umbandadanatureza.com.br< Acesso: 05/07/2018.

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essencialmente da natureza, onde tiver água é meu lugar, onde tiver uma cachoeira é

minha casa, onde tiver uma mata ou moita é minha cama, onde tiver uma pedra, pode

ser considerado meu Orixá”.

2.4.1- Ervas na Casa Pai Jacob do Oriente

“Cosi ewè, cosi orisà”

“Sem folha, sem orixá”

“Sem as ervas não tem nada! Não estou desprezando as águas, pois sem ela não tem

nada, mas as ervas são fundamentais, as folhas tem N recursos para nós, desde o poder

da medicina até alimentação, ela tem o valor energético junto aos Orixás, nas bênçãos

dos Orixás”.

As ervas nos rituais místicos, são essenciais para que as práticas sejam

realizadas, sem elas, os trabalhos não são completos. Na falange dos Pretos Velhos os

cachimbos são instrumentos fundamentais nas curas, Pai Ricardo fala sobre sua

importância: “O cachimbo é importante, desde a madeira que é feita, até o cabinho que

é feito de chifre de boi, até o fumo que é misturado com as plantas e usados nos passes,

usados para equilibrar psiquicamente, espantar larvas atrais”. A seguir há um ponto

cantado por Pai Ricardo, explica qual é o papel do cachimbo e das ervas usados pelos

Pretos Velhos.

A fumaça do cachimbo do vovô sob pelo ar que nem andorinha

A fumaça do cachimbo do vovô sob pelo ar que nem andorinha

A fumaça do cachimbo do vovô corta demanda e ninguém adivinha

Cada Orixá tem suas ervas favoritas como citado no Itan de Ossain, e com elas

trabalham. Biogeograficamente falando, não é possível afirmar que as plantas usadas na

CCPJO serão a mesma usada no Brasil inteiro, devido a diferenças de biomas.

Nas próximas páginas esta listado as ervas usada para e pelos Orixás e entidades

da casa nos rituais místicos de cura, prosperidade, amor, descarrego, entre outros, todas

informações extraídas da entrevista com Pai Ricardo.

“São plantas de poder para os Orixás e plantas de cura.”

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É a comunicação é o principio. Quem não se comunica se

instrumbica. Exu é um Orixá louvadíssimo, ele é o mais

perto do ser humano, porém ele é divino, e nós humanos

não somos divinos. Ervas: Espinhentas- coqueiro

espinhento -, Pimenta, Mamonas, Juá bravo, Coqueiro de

espinho, tem uma folha que parece São Gonçalino mas é

espinhenta por baixo, Urtiga, Cansanção. São as ervas

que precisam de mais cuidados ao ser preparadas, assim

como a comunicação.

Senhor dos caminhos, senhor do progresso- além do

cavaleiro/guerreiro- Sua missão é orientar as

ferramentas para facilitar o convívio do homem. Ervas:

Peregum, Cana de Macaco, folha de Manga Espada,

Comigo ninguém pode, Lança de Ogum aquela

redondinha, Guiné baiano, Jaborandi.

Ele é o caçador, não matador de animas. Ele pode

procurar folhas, procurar trabalho, amor. Ele vai em busca

as coisas. Ervas: Camboatá, São Gonçalino, Angar,

Camboatá, Saião, Folha santa, Espinho cheiroso, Alfazema

Jurema, Cipó prata, Abre caminho, ele tem uma infinidade.

Dentro desta linha trabalham os Caboclos.

Tem confluência com orixá Oxossi

O senhor de todas as folhas. Ele tem a reza de todas as

folhas. Ele distribuías folhas para os Orixás de acordo

com a necessidade ou o agrado de cada filho de santo

para o Orixá..

Dentro desta linha trabalham os Caboclos.

FIGURA 11 - Orixá Exu F

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FIGURA 12 - Orixá Ogum

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FIGURA 13 - Orixá Oxossi

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FIGURA 14 - Orixá Ossain

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Senhor da justiça. Conhecedor da lei dos homens e a

justiça é diferente. A lei dos homens é falha, Xangô não!

Eu ando na lei dos homens, mas rogo a justiça de

Xangô. A Justiça não é falha, a lei dos homens é.

Senhor das pedreiras, alto das cachoeiras. Ervas: Erva

do Trovão da trovoada. Ervas: Capeba, Cipó São João,

Cipó Caboclo. Algumas hortaliças agrião, Elevante,

Saião folha da Costa.

Senhor do cemitério, senhor das almas trabalha na

linha dos pretos velhos. Ervas: Sabugueiro,

Quaresmeira roxa e branca, palhas de milho, Palha da

Costa, pipoca, Barbatimão. Plantas com características

do local que ele fica (cemitérios).

Dentro desta linha trabalham os pretos Velhos.

Rei da Nação de Angola- Quase todas as folhas

principalmente as cheias e suculentas são folhas e

frutos de Tempo.. Ervas: Coqueiros, Palmas, Palmeiras.

FIGURA 15 - Orixá Xangô F

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FIGURA 16 - Orixá Obaluauê

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FIGURA 17 - Orixá Tempo

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Panteão feminino representado por águas e suas derivações- Origem da vida-

Senhora dos Raios e Ventos - Ervas: Embaúba

prateada, Peregum, Malva cheirosa, Palma banca, rosa

vermelha, Palma de Santa Rita, Espada e folha de Santa

Rita.

Senhora das águas, de todas as águas. Representa o

ventre gestado .Ervas:Rosa Branca, Manjericão

Branco, Burganville Branco, Lavanda, Alfazema,

Marcelinha e Manjerona.

Rainha das águas doces, cachoeiras e dos rios.

Representa o ventre gestado. Ervas: Poeijo, Cipó

chumbo, Rosas Amarelas, Flor e folha do maracujá.

É a mais velha dos Orixás, está ligada ás lagoas

brejosas, pântanos que são mais antigos. Ervas

Quaresmeira, Alfavaca, Hortelã, Hortência, Berinjela.

FIGURA 18 - Orixá Insã

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FIGURA 19 - Orixá Iemanjá

FIGURA 20 - Orixá Oxum

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FIGURA 21 - Orixá Nanã

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56

Saião, Boldo, Folha de algodão, Rosa Branca, Palma

Branca, Capim de São José , Lagrima de Nossa Senhora

As plantas com seus poderes medicinais em conjunto com pessoas, entidades,

Orixás, são importantes para as curas místicas. Um necessita do outro, ao buscar

tratamento para os males em lugares não convencionais ás práticas da medicina

tradicional cartesiana alopática, a pessoa se cura, não só pela matéria orgânica que

compõe a planta, este processo passa por processos tão sutis que somente a crença em

algo superior pode explicar. Adauto Novaes (2010, p. 13) cita: “O que seríamos nós sem

o socorro daquilo que não existe? Pouca coisa, e nossos espíritos desocupados de

desfaleceriam se as fábulas, as abstrações, as crenças, os monstros, as hipóteses e os

pretensos problemas metafísicos não preenchessem como seres e imagens sem objetos

nossas profundezas e nossas trevas naturais”.

Encerrando a entrevista pedi à Pai Ricardo a receita para compor o trabalho e a

uma das partes dos processo metodológicos, ele ofereceu um defumador, “pois ele é

curador, pois quem pensa que está só fazendo fumaça está errado. Nós fazemos o

defumador com carvão que é usado para filtrar as larvas astrais, usa-se em brasa para

dissipar as energias e as plantas harmonizam”.

Defumador

Casca de laranja, bagaço de cana, Alecrim da horta, Alfazema jurema, Alfazema

Semente, Guiné, Rosmaninho, tudo seco e misturado.

Modo de fazer:

Acenda o carvão em um defumador ou lata furada. Quando o carvão estiver em

brasas coloque as ervas secas e deixe queimar. Este é um grande defumando para sentir

o cheirinho de casa, para queimar as lavras astrais, se centralizar, tratar o ambiente.

Fo

nte

pin

tura

sdeo

rixa

s.b

log

spo

t.co

m

FIGURA 22 - Orixá Oxalá

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Chá

Usar a planta Tilha para fazer um chá, adoçar com mel. Beber sempre após as

18:00 horas, e ter o propósito de deitar e descansar. Age como antidepressivo, tirando

insônia e permitido que a pessoa descanse.

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CAPÍTULO 3 – ERVANÁRIO

Eu plantaria um pé de erva doce

Se dono dessa terra eu fosse.

Eu plantaria um pé de agrião,

Se dono eu fosse desse chão. (BIS)

E plantaria majeriroba,

E plantaria manjericão,

Pimenta dágua eu plantaria,

Eu plantaria pinha e pinhão

E plantaria pro meu consumo

Flores e frutos e erva cidreira,

E capim sando por todo canto,

Por todo canto erva cidreira

Uma doce, outra amarga,

Quebra-pedra e arruda,

Hortelã da folha larga,

Hortelã da folha miúda (BIS)

Lalaialalalaiá, lalaiáalalalalaiá, lalalaiá- Laiá-laiá.49

O termo ervanário pode ser usado de duas formas: a primeira para

identificar as pessoas que detém o conhecimento tradicional sobre o uso das ervas

medicinais, ou a para denominar locais onde são cultivadas ervas medicinais sendo elas

de pequeno, médio ou grande porte usadas para fazer remédios caseiros para benzeções

e outros fins.

A história dos ervanários – lugares de cultivo de plantas e preparação de

alquimias – é retratada por Camargo (2014) como locais semelhantes às boticas

existentes no Brasil no século dezoito. As boticas localizavam-se junto aos colégios

jesuítas, únicos espaços autorizados a manipularem remédios naturais. Os remédios

feitos pelos jesuítas muito se pareciam com as triagas50

que eram fármacos

antiguíssimos feitos à base de vinho, mel e plantas, usadas para cuidados básicos de

saúde.

49

Doces ervas. Letra e música Livardo Alves. Cantor. O compositor nasceu e foi criado no bairro

paraibano do Jaguaribe, em João Pessoa, lá vivendo até os 32 anos. Foi homenageado em sua cidade natal

com uma estátua em tamanho natural sentado num banco de praça onde parece observar os passantes da

cidade que tanto cantou. Disponível em: http://dicionariompb.com.br. \Acesso em 28/05/2017. 50

O termo, de origem grega – Theriake – e latim – Theriaca – que significa antídoto contra

envenenamentos de qualquer origem, exceto os corrosivos (SANTOS, 2009).

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FIGURA 23 - Boticas no Brasil colonial

FONTE: http://pharmagistral.blogspot.com.br

As triagas foram caindo em desuso e as composições feitas pelos jesuítas

foram proibidas de serem produzidas com a expulsão deles do Brasil no século XVI,

ocorrendo um retrocesso no cultivo de plantas medicinais nativas e exóticas e o

desenvolvimento de remédios caseiros (CAMARGO, 2014).

Paralelamente, haviam as sabedorias herdadas dos antepassados indígenas,

dos negros de suas diversas etnias e dos portugueses vindos para o Brasil. As práticas

místicas feitas com as ervas, imposição das mãos, orações, entre outras, deviam ser

secretas e quem era pego praticando ”magia”, mesmo que isso significasse apenas o ato

de benzer outra pessoa era perseguido podendo ser até mesmo morto.

Porém, havia a resistência materializada em pequenas farmácias caseiras e

ervanários, locais nos quais se cultivavam plantas medicinais e eram preparados

xaropes, garrafadas e se faziam benzeções. Segundo Fernando – raizeiro e fundador do

Ervanário São Francisco de Assis: “Ervanário é o lugar aonde as pessoas iam para se

tratar de algumas enfermidades, como se fosse um posto de saúde tradicional”.

Os ervanários foram cercados de mistérios e misticismo, devido o

produto principal destes locais serem as plantas medicinais, que trabalham junto

com a fé de quem pratica os rituais nestes espaços, atuam curando doenças, e

auxiliando pessoas a viverem melhor:

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É a religiosidade que confere à medicina popular seu caráter sacral,

condição que faz alimentar no homem e no grupo social ao qual

pertence, a crença nos “poderes” sobrenaturais do curador de

interpretar doenças, indicar terapias e de preparar remédios, aos quais

se admite de eficácia garantida (CAMARGO, 2014, p. 5).

Há indícios que as garrafadas atuais têm suas origens nas triagas, devido ao

modo de preparo e ingredientes utilizados. Nos dias atuais, as garrafadas feitas pelas

(os) raizeiras (os) se faz o uso principalmente de plantas medicinais, sendo específicas

para cada “mau” que a pessoas está sofrendo, fazendo o uso de no mínimo três plantas

acrescidas de vinho e deixadas apurar por no mínimo 28 dias – devido às quatro fases

da lua. Caso deseje intensificar a força das substancias das plantas empregadas nos

preparos, pode-se enterrar a garrafa depois de bem vedada, mesclando as energias entre

plantas e terra.

3.1 Ervanário São Francisco de Assis

O Ervanário São Francisco de Assis, começou em um quintal de 70 m2

no

bairro Alto Vera Cruz, região Leste de Belo Horizonte em 1999. Nesta ocasião havia

cerca de 170 espécies de plantas cultivadas por Tantinha51

e Fernando52

, além disso,

eles também praticavam extrativismo em uma mata próximo ao local de moradia, onde

retiravam cascas, frutos, sementes e plantas, tudo de maneira respeitosa a natureza e

usados para preparação de fitoterápicos.

Com a venda da mata para uma grande empresa de construção civil e a

impossibilidade de continuar a extração Tantinha e Fernando decidem comprar uma

área em Sabará (RMBH) onde eles poderiam plantar as árvores típicas do Cerrado que

são usadas nas preparações de fitoterápicos como o barbatimão (Stryphnodendron),

pacari (Lafoensia pacari), e em benzeções: alecrim do campo (Baccharis

dracunculifolia ) e plantas domesticas como a arruda (Ruta graveolens), guiné

(Petiveria alliacea L).

51

Aparecida Arruda.

52 Fernando Vieira (in memória).

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3.2- Os protagonistas dos saberes tradicionais do ervanário

FIGURA 24 - Tantinha

Aparecida Ana de Arruda Vieira, mais conhecida

como Tantinha é uma mulher forte guerreira, – mãe,

esposa, raizeira, grande conhecedora das plantas

medicinais e fitoterapia. Inicialmente com a profissão

de costureira e mais tarde por necessidade de cuidar

da saúde de sua família resgata dentro de si a herança

deixada por sua avó raizeira. A partir daí surge o

Ervanário São Francisco de Assis, com o intuito de

ajudar famílias do Alto Vera Cruz, devido a

dificuldades de acesso a saúde publica de qualidade.

Mais tarde, com o crescimento urbano e dificuldades

de acesso as plantas, o Ervanário é transferido para

Sabará dando continuidade aos trabalhos.

“Lá na mata onde colhíamos as plantas, foi ficando

difícil. Então juntamos umas economias e conseguimos comprar aqui. Queríamos os

dois lotes, mas o dinheiro não deu. Queríamos o outro só para preservar as plantas que

tem lá. Lá tem muito Barbatimão, Pacarí...” (Tantinha).

FIGURA 25 – Fernando

Fernando Luis, inicialmente, foi resistente a busca

de Tantinha por remédios caseiros. Policial

Militar e com um bom plano de saúde (há vinte e

poucos anos atrás), não acreditava que as plantas

poderiam curar seu filho mais velho que passava

por sérias crises consecutivas de bronquite.

Tantinha cansada de procurar médicos e dar

antibióticos a seu filho, busca ajuda de um padre

da paróquia próximo a sua casa. Foi indicado o

xarope de umbigo de bananeira, que curou

definitivamente as crises de bronquite. Ainda

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resistente Fernando por diversas vezes dificultou o acesso de Tantinha nos cursos para o

aprendizado das ervas. Ela acabou convencendo o esposo ao ver a melhora de saúde seu

filho e de sua família. Após algum tempo também ingressou no mundo das plantas

medicinais. Mais tarde, Fernando conhece um senhor benzedor que logo lhe ensina o

ofício, e como ele carregava consigo o “dom”, rapidamente aprendeu e herdou os

apetrechos de benzedor do senhor que falece três meses depois de conhecê-lo.

“Inicialmente não foi fácil à escolha de entrar ou não nas práticas de

benzeção, fiquei refletindo por uma semana, entretanto as pessoas foram chegando e

logo eu já estava benzendo”. (Fernando)

Fernando morreu no mês de maio de 2017, deixando três filhos, Tantinha e

muito ensinamento e amor ao próximo. Mostrou como é importante preservar a natureza

e respeita-la.

“Se não fosse o poder das plantas eu já teria morrido há 10 anos depois do

transplante de rins.” (Fernando)

3.3- Os saberes místicos herdados dos antepassados.

Tantinha produz variados cosméticos e produtos alimentícios integrais com

a ajuda das propriedades medicinais contidas nas plantas. Voltando um pouco na

história, Tantinha inicia o curso com o Frei, visando aprender sobre plantas medicinais

para cuidar de sua família. No mesmo curso ela aprende a fazer farinha enriquecida para

desnutrição infantil. Vendo o sofrimento de outras mães do Alto Vera Cruz, com seus

filhos sofrendo por desnutrição e precisando ficar esperando na fila, inicia cursos em

sua casa para fazer a farinha enriquecida, melhorando a vida de muitas pessoas.

Mais tarde, aprende sobre medicina popular e inicia fazer o xarope de

umbigo de bananeira, para tratar bronquite (o mesmo dado a seu filho que melhorou as

crises).

Com o passar dos anos, Fernando e Tantinha começam a dar cursos sobre

alimentação integral e uso das plantas medicinais aumentando consideravelmente a

cartela de produtos oferecidos pelo casal.

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FIGURA 26 – Produtos do Ervanário São Francisco

Sabonetes líquidos e de barra de

Barbatimão;

Géis de rosas;

Pó de mandioca;

Gosta digestiva;

Xarope de abacaxi;

Shampoos naturais

O poder das plantas está na resistência a indústria química farmacêutica. As

plantas são usadas em todos os produtos, e Tantinha aprendeu respeita-las extraindo

delas, através da colheita na época correta, boas praticas de processamento as principais

forças ativas que são necessárias para cuidar dos seres vivos.

“Os nossos remédios possuem um ingrediente especial que nos diferencia

daqueles vendidos nas farmácias: energia e intuição. Não trabalhamos apenas com o

princípio ativo das plantas, trabalhamos o poder transformador da natureza e a troca

de boas energias.” (Tantinha).

Receita Tantinha

Xarope Umbigo de bananeira

1 umbigo de banana

Folhas de eucalipto

Folhas de hortelã

Açúcar mascavo ou rapadura.

Retire algumas pétalas do umbigo da bananeira e pique-o em pedaços pequenos.

Em um pote de vidro grande coloque pedaços em camadas intercalando-os com 3 folhas

de eucalipto, 3 folhas de hortelã e o açúcar.

Deixe descansar por 48 horas

Coe com um pano de prato, armazene em vidros escuros e esterilizados e guarde na

geladeira.

Adulto: 3 colheres de sopa por dia

Criança: 3 colheres de chá por dia.

Já Fernando, com seu jeito calmo e sereno de ser, foi grande conhecedor de plantas

nativas do cerrado. Visitas em campo com ele era aprendizado garantido!

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FIGURA 27 - Fernando com objetos usados para benzeção

Ao lidar com as plantas e seus poderes místicos, Fernando trabalhava muito

bem! Utilizando os objetos doados pelo Frei (terço, livro, crucifixo, estola), um copo

com água e as plantas, fazia as orações e através do poder místico que envolve o ritual,

aliviava as dores físicas, mentais e espirituais.

“Tanto as práticas das raizeiras como as benzeções, fazem o uso constante

de plantas e suas propriedades energéticas, que servem não só para curar doenças,

mas principalmente, proteger, fechar o corpo”. (Fernando)

As plantas mais usadas eram o Alecrim do campo e Arruda, mas assim

como relatado pelos pretos velhos, Fernando também pressentia qual planta era

importante no ato de benzer quando a pessoa se apresentava a sua frente. A este dom,

ele chama de intuição;

“Esse uso das plantas é tão simples e tão poderoso. Eu já tinha uma

sensibilidade, mas ela (Tantinha) me ajudou a desenvolver. Essa coisa de falar com as

plantas, não é bem assim, é uma comunicação extrassensorial. A pessoa está passando

mal, ai vem àquela planta, você pode indicar e pode ter certeza que a planta vai fazer

bem para aquela pessoa.” (Fernando).

Fernando mostra sua preocupação com a falta de interesse dos jovens, pois

as místicas estão se perdendo no tempo, e a indústria farmacêutica ocupando o território

que antes pertenciam as curandeiras, benzedeiras, parteiras.

Fotos: Tiago Cupertino

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“Hoje em dia os jovens não querem saber sobre esses conhecimentos. Uma

forma de a gente manter viva a tradição é repassar o conhecimento. Antigamente o

conhecimento era passado de pai para filho, ou de avó para neta, e ficava restrito

apenas naquele ciclo. Hoje se não passar o conhecimento para quem tem interesse, ele

vai se perder no tempo.”

Ao lidar com os problemas de resistência a medicina tradicional, o casal em

conjunto com povos tradicionais dos estados que predomina o bioma Cerrado, se

uniram e conseguiram formular o protocolo comunitário Biocultural das raizeiras do

Cerrado através da articulação Pacari. Uma ferramenta política que visa à garantia do

exercício das práticas de cura por meio do direito consuetudinário53

, fundamentado na

tradição e nos costumes. Em conjunto com o protocolo também foi produzido a

Farmacopeia do Cerrado54

.

Fernando nos deixa em 2017 após lutar muito contra problemas de saúde.

Abaixo segue a oração que usava em suas benzeções:

Deus te fez Deus te gerou

Que Deus acanhe quem te acanhou

Com dois te puseram

Com três eu tiro

Com as três pessoas da Santíssima Trindade

Pai filho espírito santo

.(falar o nome da pessoa) por onde santo Antônio e mãe Herculana andou, nem

um mal ficou

.

.(falar o nome da pessoa) três e três seis este mal passou

Três três, seis este mal acabou.

Finaliza com um pai nosso é uma ave Maria

53

O direito consuetudinário nada mais é do que o costume, a norma de moral, ou seja, costume é o nome

dado a qualquer regra social resultante de uma prática reiterada de forma generalizada e prolongada, o

que resulta numa certa convicção de obrigatoriedade, de acordo com cada sociedade e cultura específica.

Disponível em: http://www.recantodasletras.com.br/resenhas/2635967- Acessado 09/06/2017. 54

É o resultado de uma pesquisa popular sobre nove plantas prioritárias para a prática da medicina

tradicional do Cerrado. O livro, de autoria de 262 Raizeiras e Raizeiros do Cerrado, contém

conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade e o acesso a esses conhecimentos, para fins de

pesquisa científica e desenvolvimento de produtos comerciais, deve estar de acordo com a Lei 13.123, de

20 de maio de 2015. A Farmacopeia Popular do Cerrado pretende ser precursora à elaboração de

farmacopeias tradicionais nos diferentes biomas brasileiros, vislumbrando a elaboração da Farmacopeia

Tradicional Brasileira, como um instrumento político para o reconhecimento social da medicina

tradicional praticada por povos e comunidades tradicionais. DIAS, Jaqueline Evangelista;

LAUREANO, Lourdes Cardozo. Farmacopeia do Cerrado. Goiás: Articulação Pacari

(Associação Pacari), 2009

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Considerações finais

Por que pesquisar sobre “Territórios místicos – religiosidades e usos das plantas

que curam”? A estrutura social que vivemos no mundo atual é transpassada por

preconceitos culturais, sociais, étnicos que se materializam nos territórios. Desta forma,

pesquisar e trazer as informações e reflexão sobre territórios místicos, em especial os

territórios da umbanda e dos ervanários – para a universidade, é introduzir a discussão

sobre o estudo de outras religiosidades e os usos de plantas como medicinais e cura –

uma dimensão das outras espiritualidades e da necessidade de entendermos as

diversidades do mundo não hegemônico.

Esta é uma posição para abrir horizontes antes não imagináveis! Vivemos em

tempos que o que não é perceptível aos olhos, é tido como algo menor ou inválido. No

entanto, é fundamental atentarmos ao fato de que todo movimento social é fundado em

movimentos culturais, onde as crenças e suas manifestações religiosas são uma parte

desse processo. O mundo hegemônico é tecido sobre estruturas sociais ordenadas pelas

posições políticas aprovadas nos imaginários sociais e coletivos. No entanto, não

podemos esquecer-nos do mundo místico tecido nas margens do mundo legal. A fé e as

crenças se tornam, dessa maneira, intrínsecas ao ser humano para sua sobrevivência

mística espiritual. As religiosidades originárias dos povos africanos, transpostas nos

territórios brasileiro pela diáspora, nos faz pensar: como se apresentam essas

religiosidades e místicas? Como elas tecem nos ritos e rituais as novas práticas para se

viver neste novo e estranho mundo?

Esta pesquisa procurou introduzir elementos que desenham os espaços místicos

da Casa de Caridade São Francisco de Assis, no bairro Cachoeirinha, a Casa de

Caridade Pai Jacob do Oriente, no bairro Lagoinha, e o Ervanário São Francisco de

Assis em Sabará, Região Metropolitana de Belo Horizonte. Procurou-se indicar como

essas realidades que fogem a explicação da norma culta constroem seus territórios e as

territorialidades que expressam. O trabalho desenvolveu-se a partir das visitas em

campo – a experiência pessoal da pesquisadora no ambiente sócioespacial e material dos

territórios e a experiência de fé nas crenças ali implantadas: seus territórios e

territorialidades e o uso das plantas medicinais nos tratamentos e curas místicas. Os

territórios selecionados se deram em função do contato da autora com esses espaços, na

em disciplina de formação transversal feita na UFMG – Saberes Tradicionais , Catar

Folhas: Povos de Axé. Além desse contato, o curso da disciplina Educação e

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Espiritualidade e atividades ligadas ao Grupo de Estudos e Pesquisa AUÊ! UFMG me

conduziram a aproximação da temática da pesquisa.

Passado e presente são recorrentes na pesquisa. A cartografia - a do mapa e a

dos textos – tentaram os registros a ampliação das representações históricas e

geográficas que temos e não temos do mundo místico. Registrar as origens dos rituais e

suas características nos leva a compreender o papel e a importância das plantas

medicinais para as práticas místicas – as plantas nos trazem o retorno de um mundo

quase esquecido, nascido nas senzalas e resistindo nos tempos modernos – nos

territórios dos terreiros, nas casas de caridade e ervanários, elas mesmas, crítica,

sincretismo e abalo das tradições do cristianismo, nome das certezas do saber divino e

da segurança no Deus ocidental. A pesquisa identifica através da oralidade dos Pretos

Velhos e das sabedorias apreendidas com a ancestralidade o sentido das ervas usadas

nos territórios místicos e, como elas traçam o trajeto das novas territorialidades

espirituais, que não cabe aos ideais racionais da tecnologia e da ciência ou dos

acontecimentos científicos.

Os territórios místicos e as territorialidades ali presentes se opõem aos fatos ou a

realidade estruturante do mundo ordenado. As plantas curam pela resistência mística,

pela crença, pela desobediência, pelo encantamento, pela transcendentalidade do corpo

no espírito – potentes construções ilógicas erigidas numa base histórica da experiência

humana frágil e, ao mesmo tempo forte das religiões consideradas não oficiais. As ervas

sagradas usadas pelas entidades e benzeções que trabalham e transitam num autêntico

mundo dos espíritos que para ser conhecido é preciso estar dentro – é preciso ir neles

para sair deles e voltar a eles com outra visão de mundo e espaço errante com seus

territórios místicos e suas territorialidades. Pesquisar os usos tradicionais das plantas

medicinais nos territórios místicos seja na produção de banhos, preparação de pratos,

benzeções, chás, entre outras práticas, é prezar o quanto da crença é potencializada

através das plantas. As crenças esquecidas dos homens lógicos, certos, positivos são

retomadas em relação ao outro na expressão daquilo que imprime o que ela é –

religiosidades, política e sociedade em movimento – uma vez que, sempre estiveram em

simbiose com o lugar da história na humanidade das mulheres e homens – bruxos,

sábios, curandeiros, espiritualistas – tudo junto, estado mental consentido que nos levam

às incertezas da subjetividade – o mais humano dos territórios humanos!

Nesse sentido, pode-se conhecer o manejo, o cultivo, o processamento e,

principalmente os usos das ervas empregadas nesses territórios místicos. As crenças têm

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suas razões na periferia de Belo Horizonte e da Região Metropolitana de Belo Horizonte

– elas têm suas causas – o abandono do homem – sentido amplo do termo – que se

buscam nas práticas de amor generoso e caridoso em relação ao outro e sua dor, seu

vazio, sua busca. As crenças e as ervas são registros das práticas daquilo que o espírito

admite e o corpo quer e não pode afirmar como verdade ou provável verdade diante do

próprio espanto. De início, o corpo quer esquecer, não acredita, mas esta ali a adoecer, a

chagar-se voluntariamente. As ervas elevam o corpo no encontro com o espantoso,

retirando o véu da cegueira voluntária, para o reconhecimento e compreensão de si

próprio – fenômeno da crença. As ervas abrem o corpo para que as pessoas possam na

diáspora, acreditar nelas mesmas, nas dores que são capazes de fazer a si mesmas. As

ervas são o encontro do corpo no espírito e do espírito no corpo – ações da crença, ato

de fé de origem inconsciente na consciência.

Os territórios místicos se encontram organizados sócio espacialmente nas

periferias de Belo Horizonte e da Região Metropolitana de Belo Horizonte. São espaços

de resistência histórica da diáspora no campo das crenças e das religiosidades não

hegemônicas consideradas profanas. A representação do espetáculo do homem

capitalístico encontra-se na imagem da realidade urbana planejada o papel da cidade

como reprodutora da ordem hegemônica ratificada no Estado.

O Estado no seu arranjo racional de mundo social e legal limitou as práticas

humanas à tecnociência – desumanizou os espaços no projeto moderno de sociedade

ajuntada irremediavelmente à produção econômica. Os terreiros e seus territórios, por

sua vez, são considerados dentro dessa ordem lógica, a da razão espacial, espaços da

banalidade. Não seriam, no entanto, contrariamente, a periferia e a periferia da periferia

a identificação daquilo que a cidade e o urbano esquecem e dissimulam? Os territórios e

as territorialidades Umbanda e dos Ervanários se identificam com a vida em

profundidade, que compensa a barbárie da ordem e do progresso a qualquer preço –

poder e consumo reproduzidos nessa relação. Os terreiros são territórios de um outro

poder – o alcance do estoque das qualidades humanas, da realidade da vida individual

mínima, espaços da diferença, espaços da esperança!

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APÊNDICE

Ficha de pesquisa TCC- Crisângela Aplicado na CCSFA- Dona Rute e

CCPJO- Pai Ricardo.

Nome:_______________________________________________________________

Data:___/___/___

Endereço:____________________________________________________________

Religião:____________________________________________________________

Papel exercido:__________________________________________________________

Visita: ( )1 ( )2

1. Como você se tornou um mestre?

2. O que é a Umbanda? De onde surgiu? Como ela chegou até o Centro São

Francisco?

3. Como a Umbanda é transmitida?

4. Como é organizado o terreiro de Umbanda?

5. Como é organizada a sala de passes?

6. Qual a função do cachimbo nos passes?

7. Como se torna um médium? Qual o papel dele na Umbanda?

8. Quem são os Pretos Velhos? Que entidades são?

9. De onde vêm as pessoas que freqüentam o terreiro?

10. Você sabe me dizer quantas pessoas aproximadamente recebem bênçãos neste

terreiro?

11. As plantas utilizadas nos passes e rituais são cultivadas no Centro?

( ) Sim ( ) Não - De onde vem?

12. Quais plantas são utilizadas nos passes?

13. Qual a função de cada planta nos rituais místicos?

14. Quais as formas de uso? (posologia)

15. Qual a função social dos terreiros de Umbanda?

16. Você poderia me fornecer uma receita de ritual que utiliza uma plantas para a

cura de um mau?

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QUESTIONÁRIO Aplicado no ESFDA - Tantinha e Fernando

1. O que é ser raizeira?

2. Como iniciou os trabalhos como raizeira?

3. Quais são as plantas que mais. Como de dá o acesso as plantas?

4. Fale um pouco sobre a noção da espiritualidade/ religiosidade em relação as

plantas usadas.

5. Quais são os principais desafios relacionados à:

a. Produção:

b. Comercialização:

c. Divulgação do trabalho

d. Perpetuação dos saberes tradicionais

e. Atender a demanda solicitada

f. Ajudar no processo de cura das pessoas que procuram o Ervanário?

6. O que é ser benzedor?

7. Existe alguma conexão religiosa no trabalho desenvolvido com as plantas por

vocês? Qual? Como?

8. Qual a visão das outras pessoas sobre o trabalho com as plantas medicinais?

9. Quais são os desafios de se trabalhar com plantas medicinais na RMBH?

10. Quem são as pessoas que buscam a cura popular? Em quais circunstâncias? Com

quais objetivos?

11. Quais os produtos mais vendidos pelo Ervanário?