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Universidade Federal de Pernambuco Centro de Informática Graduação em Engenharia da Computação Impacto do Progresso Tecnológico na Educação Básica: Um Estudo Prospectivo Arthur Barcellos Lopes de Lima Trabalho de Graduação Recife, Pernambuco Novembro de 2019

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Universidade Federal de Pernambuco

Centro de Informática

Graduação em Engenharia da Computação

Impacto do Progresso Tecnológico na Educação Básica: Um EstudoProspectivo

Arthur Barcellos Lopes de Lima

Trabalho de Graduação

Recife, PernambucoNovembro de 2019

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Universidade Federal de Pernambuco

Centro de Informática

Arthur Barcellos Lopes de Lima

Impacto do Progresso Tecnológico na Educação Básica: Um EstudoProspectivo

Trabalho apresentado ao Curso de Graduação em Engenharia da

Computação do Centro de Informática da Universidade Federal

de Pernambuco como requisito parcial para obtenção do grau de

Bacharel em Engenharia da Computação.

Orientador: Hermano Perrelli de Moura

Recife, PernambucoNovembro de 2019

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Às crianças do Divino.

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Agradecimentos

A Deus.

À minha família.

Aos amigos.

Ao professor Hermano Perrelli de Moura, pela liberdade e independência como me deixou

conduzir este trabalho, sendo sempre solícito e paciente quanto às dúvidas que eu lhe levava.

3

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"O perigo não está na multiplicação das máquinas, mas no

número crescente de homens habituados desde a infância a

desejar apenas o que as máquinas podem dar."

– GEORGES BERNANOS

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Resumo

Da aurora da educação na Grécia Antiga aos tempos atuais, vários ideais de educação foram

criados, praticados, abandonados, restabelecidos e desprezados. No entanto, até o século XX,

os métodos utilizados para transmissão desses ideais permaneciam inalterados, e consistiam

basicamente da comunicação oral e escrita, e da presença física do mestre e do aluno. Mas,

desde então, a tecnologia tem avançado cada vez mais rapidamente, em ritmo exponencial, e

revelado novas expectativas. Este trabalho tem como objetivo realizar uma análise dos impactos

que os avanços tecnológicos imprimem de maneira geral na Educação Básica, e, mediante um

estudo de prospecção futura, realizar uma conjectura levando-se em conta o aspecto do indivíduo

que está sendo educado em face às novas tecnologias inseridas em seu ambiente educacional.

Palavras-chave: Estudos do Futuro, Educação, Tecnologia, Futuribles, Prospectiva, Mé-

todo Científico Aplicado às Informações.

5

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Abstract

From the dawn of education in Ancient Greece to modern times, many ideals of education

were created, practiced, abandoned, restored and scorned. However, until Twenty Century

the methods used to transmit those ideals stayed unaltered, and consists basically of oral

and written communication, and the physic presence of the professor and the student. But,

since then, technology has advanced very quickly, in exponential pace, and has revealed new

expectations. This work aims realize an analysis of impacts that technological advancement

prints in general manner in Basic Education and, upon a prospective future study, realize

a conjecture taking into account the aspect of individual that is educated in face of news

technologies inserted in your educational environment.

Key-words: Future Studies, Education, Technology, Futuribles, Prospective, Scientific

Method Applied to Information.

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Conteúdo

Lista de Tabelas 9

Lista de Figuras 10

1 Introdução 11

1.1 Motivação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

1.2 Objetivos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13

1.3 Estrutura do Documento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13

2 Referencial Teórico 15

2.1 A Educação e a Tecnologia: Uma Breve Análise Histórica . . . . . . . . . . . . . 15

2.1.1 A Rispidez da Tabula e do Stylus Grego . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15

2.1.2 O Codex Romano . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18

2.1.3 A Velha Pena e as Novas Cores Medievais . . . . . . . . . . . . . . . . . 20

2.1.4 A Prensa Moderna . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22

2.1.5 A Diversificação Técnica Contemporânea . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26

2.2 Da Previsão à Prospecção . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29

2.2.1 O Passado das Questões Futuras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29

2.2.2 A Polêmica das Questões Futuras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30

2.2.3 Fictio Quaerens Veritatem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33

2.2.4 O Pós-guerra e os Estudos Prospectivos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35

3 Metodologia 37

3.1 O Método Científico Aplicado às Informações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37

3.1.1 As Sete Fases da Produção de Informações . . . . . . . . . . . . . . . . . 39

3.1.2 Os Quatro Estágios do Pensamento Criador . . . . . . . . . . . . . . . . 43

3.2 Futuribles . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46

3.2.1 Definições . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48

7

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3.2.2 Maneiras de Pensar o Futuro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51

3.2.3 O Fórum Previsional . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55

3.3 Integração dos Métodos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 56

4 Facta 60

4.1 Questões Eviternas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60

4.2 As Certezas Estruturais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61

4.2.1 O Caráter Institucional da Escola . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 62

4.2.2 A Ritualização do Progresso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 64

4.3 Os Três Triângulos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65

4.3.1 O Triângulo do Domínio Existencial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66

4.3.2 O Circuito Triangular Humano . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 70

4.3.3 O Triângulo da Aprendizagem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71

5 Futura 74

5.1 Os Pré-conhecidos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 74

5.1.1 A Evolução Tecnológica Acelerada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 74

5.1.2 A Fomentação de Escolas Mais Tecnológicas . . . . . . . . . . . . . . . . 77

5.1.3 A Avaliação e Informatização do Sistema Educacional . . . . . . . . . . . 79

5.1.4 A Dependência Tecnológica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81

5.1.5 A Influência da Indústria do Entretenimento . . . . . . . . . . . . . . . . 84

5.2 Cursos, Velocidades e Reflexos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 86

5.2.1 1a Camada - 10 anos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87

5.2.2 2a Camada - 20 anos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 90

5.2.3 3a Camada - 30 anos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 94

5.3 A Cena Futura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97

6 Conclusão 106

Bibliografia 108

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Lista de Tabelas

3.1 As Sete Fases da Produção de Informações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40

3.2 Comparação entre as fases da produção de informações. . . . . . . . . . . . . . 40

5.1 O Ciclo de Vida de uma Tecnologia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75

9

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Lista de Figuras

2.1 Processo dialético hegeliano. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27

3.1 Fluxograma para Produção de Informações. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42

3.2 Os Quatro Estágios do Pensamento Criador em relação às Sete Fases da Produção

de Informações. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46

3.3 Esquema Geral das Certezas do Sujeito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49

3.4 Tipos de Previsão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51

3.5 Esquema geral da combinação dos métodos de Platt e Jouvenel. . . . . . . . . . 57

4.1 Espectro Institucional. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63

4.2 Representação Geométrica dos Domínios Existencial, Humano e da Aprendizagem. 66

4.3 Representação Geométrica do Domínio Existencial. . . . . . . . . . . . . . . . . 67

4.4 O Circuito indivíduo ↔ sociedade ↔ espécie . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 70

4.5 Representação Geométrica da Conexão onde ocorre a Aprendizagem. . . . . . . 73

5.1 Representação da Cena Educacional Futura. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 98

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Capítulo 1

Introdução

1.1 Motivação

Os documentos mais antigos em que podemos, de forma proveitosa, extrair algo sobre os

primórdios da educação no Ocidente são as obras de Homero [19]. A Ilíada e a Odisseia

descrevem um ideal cavalheiresco e incentivam a imitação do herói, mais bem representados

nas figuras de Aquiles, de Heitor e de Odisseu. As ações desses personagens, dentre outros,

versados nos monumentais poemas homéricos, influenciaram toda a Grécia Antiga a perseguir

seus exemplos heroicos .

Porém, alguns séculos se passaram até que a obra homérica se tornasse de fato um documento

escrito. Todos os seus mais de 27 mil versos foram passados de geração em geração através da

tradição oral. Eis aqui a mais absoluta ausência de tecnologia, nem mesmo a mais rudimentar,

no nascimento da educação ocidental.

Ortega y Gasset fez um interessante comentário ao analisar a herança greco-romana nas

civilizações Europeia e Islâmica no que diz respeito à administração, ao direito, à concepção do

Estado, à ciência e à poesia durante o período da Idade Média:

“Con lo cual no va dicho que ambos adoptasen igualmente todas esas disciplinas.

Por ejemplo, mientras los árabes absorben inmediatamente las ciencias helénicas,

permanecen impermeables a la poesía antigua. Los europeos hicieron estrictamente

lo contrario.” [24]

Interessante destacar o fato de que a civilização Europeia, que em seu início teve maior

contato com a poesia do que com as ciências helênicas, séculos mais tarde tornar-se-ia uma

civilização muito mais avançada tecnologicamente do que a Árabe.

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Mas apesar de todo o avanço tecnológico, a leitura e a escrita ainda continuam sendo os

nossos principais meios de adquirir e repassar o conhecimento acumulado, pois qualquer ser

humano de inteligência normal tem a capacidade operá-las. No entanto, nem sempre foi assim.

Isso só foi possível graças à invenção do alfabeto.

Segundo Bodmer, “o alfabeto tornou a representação escrita do conhecimento humano aces-

sível ao conjunto da humanidade”. E continua:

“O uso da escrita pictográfica e ideográfica, como da primitiva escrita silábica, sem-

pre foi a prerrogativa de uma casta privilegiada de sacerdotes e eruditos. A invenção

do alfabeto permitiu democratizar a leitura, como a invenção do algarismo 0 tornou

possível a democratização da arte de calcular.” [4]

A invenção do alfabeto foi o primeiro grande empreendimento humano na busca de tornar o

conhecimento mais acessível a todos. O segundo veio com Johannes Gutemberg ao inventar a

prensa móvel, e o terceiro com a invenção da internet. E desde então a tecnologia tem avançado

de forma ainda mais rápida.

Kurzweil, em seu livro The Ages of Spiritual Machines, descreve esse crescimento exponen-

cial da tecnologia. Para isso, ele formulou uma teoria chamada de Lei dos Retornos Acelerados

[15]. Essa lei pode ser vista como uma extensão da já bem conhecida Lei de Moore, que trata

do crescimento exponencial na complexidade dos circuitos integrados. Ainda no mesmo livro,

Kurzweil afirma que a Lei dos Retornos Acelerados é um processo evolucionário. E sendo um

processo, de acordo com Jouvenel,

“[. . . ]o processo fornece a ocasião do evento, mas não determina sua natureza.” [14]

Este último aspecto é o que pretendemos abordar neste trabalho: a natureza do impacto

do progresso tecnológico na Educação Básica. Isto será feito não apenas através de uma visão

institucional da educação — pois talvez futuramente as escolas como as conhecemos hoje pos-

sam não mais existirem — mas compreendendo-se de forma geral como o conjunto necessário

de conhecimentos básicos que um indivíduo precisa obter para tornar-se intelectualmente in-

dependente. Contudo, consideraremos o que consta no texto da Lei de Diretrizes e Bases da

Educação Nacional para situar de que indivíduo estamos tratando [5].

O foco aqui será o indivíduo perante o ambiente educacional que o cerca: como influencia,

molda, incentiva ou desestimula as suas capacidades cognitivas; de que maneira as tecnologias

influenciam o processo de aprendizagem, e como as futuras gerações serão educadas em um

ambiente ainda mais tecnológico.

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1.2 Objetivos

O objetivo geral deste trabalho é realizar uma análise dos impactos que os avanços tecno-

lógicos imprimem de maneira geral na Educação Básica mediante um estudo de prospecção

futura, levando-se em conta o aspecto do indivíduo que está sendo educado em face às novas

tecnologias inseridas em seu ambiente educacional.

São objetivos específicos deste trabalho:

1. Realizar uma breve análise histórica da educação e como as tecnologias foram sendo

inseridas em seu contexto.

2. Compor um breve ensaio sobre a problemática do futuro, mostrando o desenvolvimento

histórico até chegar aos métodos prospectivos utilizados neste trabalho.

3. Analisar como atualmente o uso das tecnologias impactam na aprendizagem de crianças

e adolescentes.

4. Elaborar uma conjectura sobre o futuro da Educação Básica em consequência dos avanços

tecnológicos que sugerem um maior impacto de mudança na sociedade.

1.3 Estrutura do Documento

Doravante, este trabalho está organizado da seguinte forma: o Capítulo 2 compreende duas

análises históricas breves, com as quais pretende-se inserir o leitor no contexto geral da Educação

e dos Estudos do Futuro, apresentando-lhe uma visão geral de algumas circunstâncias históricas

que são relevantes para o entendimento do que virá a seguir nos próximos capítulos.

O Capítulo 3 apresenta a metodologia utilizada na execução deste trabalho. Em verdade,

trata-se da integração de duas metodologias: o Método Científico Aplicado às Informações e o

método dos Futuribles. Essas duas metodologias são primeiramente apresentadas em separado

e, em seguida, como foi realizada a integração de ambas.

Os capítulos seguintes consistem da aplicação da metodologia: o Capítulo 4 apresenta uma

análise dos fatos recentes que concernem à Educação, identificando os processos dominantes

e as tendências fortes no âmbito educacional. Também neste capítulo estão contidas análises

filosóficas, sociológicas e pedagógicas que servem para dar respaldo à prospecção futura realizada

no capítulo seguinte.

No Capítulo 5 estão descritos: os pontos de apoio necessários para a realização da pros-

pecção futura; os cursos, velocidades e reflexos dos acontecimentos até o horizonte de futuro

13

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estabelecido; e a descrição da Cena Futura, que é a prospecção futura propriamente dita e

embasada em todo o conteúdo analisado.

Por fim, no Capítulo 6 são apresentadas as conclusões, relembrando os resultados obtidos,

contribuições, pontos positivos e negativos, e possíveis trabalhos futuros.

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Capítulo 2

Referencial Teórico

Este capítulo é composto por duas partes. A primeira é uma breve análise histórica da edu-

cação, no esforço de rastrear os principais ideais educacionais de várias povos que contribuíram

significativamente na formação do Ocidente, e como foram sendo inseridas as tecnologias no

ambiente educacional em cada época. Já a segunda parte trata-se de uma descrição histórica

de fatos relevantes no contexto da previsão e dos estudos do futuro.

2.1 A Educação e a Tecnologia: Uma Breve Análise His-

tórica

A presente seção busca através de um breve resgate histórico esclarecer as origens da edu-

cação ocidental e a sucessão de acontecimentos que fizeram com que ela fosse se modificando

através dos séculos, da Grécia Antiga até o século XX, também apresentando as tecnologias

utilizadas no sistema educacional de cada época.

2.1.1 A Rispidez da Tabula e do Stylus Grego

A Grécia Antiga é o ponto de partida da educação ocidental. Educação que a princípio era

basicamente militar, e encontrava o seu modelo nos versos dos poemas homéricos. A partir

disso criou-se uma cultura cavalheiresca baseada na imitação do herói, uma tradição passada

de forma oral. O ideal do homem grego era afirmar-se como primeiro em sua categoria, distinto

e superior [19].

Devido a revoluções táticas no combate militar, esse ideal cavalheiresco, de fundo pessoal,

transmuta-se em ideal totalitário. As guerras não eram mais decididas por combates pessoais

entre cavalheiros; as guerras eram decididas por um exército bem treinado. A educação espar-

15

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tana nos revela esse novo ideal: o devotamento ao Estado. Para o cidadão espartano a πόλις

(pólis) era tudo. De forma que Tirteu, o melhor intérprete desta nova ética canta:

“É belo morrer, abatido na linha de frente, como um bravo que combate pela pátria.”

É nesse espírito que o Estado espartano estabelece uma educação organizada inteiramente

em função de suas necessidades: a ἀγωγή (agogê). Até os sete anos de idade a criança per-

manecia com a família, quando então era recrutada pelo Estado, ao qual seria obediente até

a morte. O período da ἀγωγή consistia em treze anos, nos quais o jovem era submetido a um

regime de vida áspero e severo, sendo estimulado a desenvolver resistência à dor. Sua virilidade

e combatividade era desenvolvida aos golpes.

Falamos aqui de um tempo em que ainda não existia escola, em que a mãe era julgada

competente apenas para a criação do bebê (a criança lhe era retirada aos sete anos) e que o

pai era absorvido pela vida pública de uma sociedade aristocrática. Desse modo, Henri-Irénée

Marrou afirma:

“Para o homem grego, a educação (παιδέια) residia essencialmente nas relações pro-

fundas e estreitas que uniam, pessoalmente, um espírito jovem a um mais velho -

que era, ao mesmo tempo, seu modelo, seu guia e seu iniciador -, relações essas que

uma chama passional iluminava com um turvo e cálido revérbero.”

“A opinião comum e, em Esparta, a lei consideravam o amante como moralmente

responsável pelo desenvolvimento do amado: a pederastia era reputada a forma

mais perfeita, mais bela de educação (τὴν ξαλλı́στην παιδέια) 1.” [Ibid.]

Perdida em seus excessos, a sociedade espartana adormece educacionalmente, restando ape-

nas os espetáculos de barbárie ocasionados pelo contínuo exagero dos rigores. Enquanto isso,

em Atenas, a educação floresce.

É na sociedade ateniense que a educação deixa de ter um caráter essencialmente militar e

passa a ter um caráter civil. Porém, o elemento militar não desaparece completamente, pois

a cidade sustenta incessantemente guerras contra os seus vizinhos. O que acontece é que o

aspecto militar perdeu sua importância central na educação grega. Por um tempo, o ideal

cavalheiresco ficou resumido à prática de esportes como a corrida a pé, o salto em extensão,

o lançamento de disco e de dardo, a luta, o boxe e o pancrácio. Após isso e educação foi se

distanciando cada vez mais desse ideal, deixando-o para os atletas profissionais.1Xenofonte, Constituição de Esparta, 2, 13.

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Em Atenas a educação deixa de ser um privilégio aristocrático e se estende a todas as

crianças gregas: surgem as escolas. Contudo, por tratar-se agora de uma educação coletiva,

tende a vulgarizar-se. Acontece uma democratização de uma educação amena, que poderia ser

melhor denominada de instrução.

Marrou descreve muito bem o papel das escolas na sociedade grega:

“[...] a escola não desempenha ainda na educação o papel preponderante que assu-

mirá a partir da Idade Média no Ocidente.”

“O mestre de primeiras letras é encarregado de um setor especializado da instrução,

provê tecnicamente a inteligência da criança, mas não é ele quem educa. O essencial

da educação é a formação moral, a do caráter, do estilo de vida. O ‘mestre’ está

encarregado apenas de ensinar a ler, o que é muito menos importante.”

“A associação, que nos parece hoje natural, da instrução primária e da formação

moral é, entre nós, uma herança da Idade Média [...].” [Ibid.]

Portanto existiam duas figuras: a do “pedagogo” (παιδαγογός), um escravo encarregado de

levar a criança da casa até a escola, supervisioná-la, protegê-la dos perigos do caminho, além de

formar o caráter e a moralidade do seu pupilo; e a do “mestre” (διδάσκαλος ou γραμματιστής),

o instrutor da escola que ensina apenas a ler.

Na escola a criança aprendia a arte da leitura da seguinte forma: primeiro o alfabeto;

superado o primeiro obstáculo, então ia-se para as sílabas; concluindo o estudo das sílabas,

finalmente chegava-se às palavras. A partir daí era introduzido às crianças pequenos textos e

antologias, ainda com as sílabas cuidadosamente separadas, pois, diferente da escrita moderna,

os antigos usavam a scriptio continua2, o que fazia da leitura uma tarefa mais árdua para os

pequenos. Intimamente ligada à leitura estava a recitação, onde as crianças também aprendiam

a decorar todo os textos. O ensino da escrita era guiado da mesma maneira que o ensino da

leitura, indo do mais simples ao mais complexo; da escrita do alfabeto à escrita de textos

corridos.

Os instrumentos utilizados pela criança na escola consistiam de tabuinhas de madeira (ta-

bula) ligadas entre si por charneiras, umas tinham superfície de cera, enquadrada numa mol-

dura, onde a escrita era feita através de cortes com um punção, o stylus, uma espécie de bastão

metálico alongado no qual o lado oposto era arredondado para servir como apagador; outras

tabuinhas eram escritas à tinta – conservada sólida, sendo triturada e diluída previamente pelo2Sistema de escrita sem espaços, divisões ou pontuações, normalmente utilizados pelos povos antigos.

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professor ou qualquer outro – aplicada à madeira com uma pena apontada e fendida; uma pe-

quena esponja servia como apagador [Ibid.]. O papiro também era utilizado nas escolas, porém

era um material relativamente raro e custoso.

Na instrução primária, além da leitura e da escrita era ensinada a matemática. Tratava-se

de um modesto programa, sem muita ambição. Basicamente aprendia-se a lista dos números

inteiros, cardinais e ordinais – seus respectivos nomes e símbolos. Aprendiam também a contar

com os dedos: para os antigos revelava-se uma verdadeira arte, pois conseguiam simbolizar

os números inteiros de 1 até 1.000.000 por meio das duas mãos. As quatro operações básicas

estavam para muito além da instrução primária, prova disso era o uso comum que se fazia de

instrumentos para o cálculo, como o ábaco.

Apesar do distanciamento do ideal militar, a educação grega não deixou de ser brutal. Os

mestres recorriam frequentemente a castigos corporais como maneira de impelir o espírito do

aluno, através do medo, a superar as dificuldades de aprendizagem. A pedagogia dos antigos

era um doutrinamento passivo, baseada na repetição da matéria até ser assimilada pelo aluno.

No ensino secundário, em relação ao ensino das letras, a figura do “mestre” (γραμματιστής)

sede o lugar à figura do “gramático” (γραμματικός), e este, por sua vez, sederá lugar à do

“retórico” (σοφιστής ou ρήτωρ) no ensino superior. O “gramático” conduzia os jovens alunos

aos estudos literários dos clássicos, principalmente os textos de Homero, mas também as fábulas

de Esopo, o teatro de Eurípides, Sófocles e Aristófanes, os estudos históricos de Tucídides e

Heródoto, dentre muitos outros. Era praticada a leitura, recitação, memorização, compreensão

e análise gramatical desses textos. O aluno era submetido a exercícios práticos de redação

elaborados meticulosamente e excessivamente regulados, fazendo jus ao dito de Isócrates:

“A raiz da educação é amarga, mas seus frutos são doces.”

Concluindo, embora existissem variantes, a essência do programa educacional grego, pelo

menos aquela a que concerne aos filósofos, era constituída pelas sete artes liberais. Artes estas

que a Idade Média herdaria através da tradição e que compreendiam as três artes literárias do

Trivium: gramática, retórica e dialética; e as quatro disciplinas matemáticas do Quadrivium:

aritmética, geometria, astronomia e música. Essa divisão era tradicional desde Arquita de

Tarento, senão desde o próprio Pitágoras [Ibid.].

2.1.2 O Codex Romano

A cultura romana inicialmente desenvolvera-se à margem da cultura grega. Era uma socie-

dade aristocrática campesina, onde os proprietários rurais exploravam as suas terras com suas

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próprias mãos. A educação, para eles, é antes de tudo a iniciação progressiva de um modo de

vida tradicional:

“Desde que toma consciência, e já por seus brinquedos, a criança esforça-se por

imitar os gestos, o comportamento, os trabalhos dos mais velhos. À medida que

cresce, faz-se admitir, silenciosa e reservada, no círculo dos grandes. Escuta os

velhos falarem – sobre a chuva e o bom tempo, sobre os trabalhos e os dias, sobre

os homens e os animais, – e inicia-se desse modo em toda uma sabedoria. Pouco a

pouco, associa-se aos trabalhos do campo, acompanha o pastor ou o lavrador, tenta

preencher seu papel e considera uma honra o fato de a julgarem digna dele.” [Ibid.]

Esse espírito campesino fundamenta a originalidade da educação romana baseada no mos

maiorem, o respeito incontroverso aos hábitos e costumes ancestrais. Mais do que uma simples

ética, o mos maiorem era um ideal de vida que se estendia a todas as atividades humanas.

Para o romano, o ambiente em que se dava essa educação era no meio familiar. E é aqui

onde aparece a maior diferença entre a educação grega e a romana: enquanto na Grécia a mãe

deixava seu filho aos cuidados de um escravo, em Roma era a própria mãe que se incumbia dessa

tarefa; enquanto a criança grega era retirada do seio familiar aos sete anos, a criança romana

passava aos cuidados do pai nessa mesma idade. Em suma, a constituição familiar romana

era forte, e sobre ela pairava a soberana autoridade do paterfamilias, considerado o verdadeiro

educador. No interior da casa paterna, a criança não só era educada na tradição nacional

mas também na tradição de sua própria família. Completado os dezesseis anos terminava a

educação familiar, o jovem agora era considerado um cidadão romano, porém sua formação

ainda não estava concluída: antes de servir ao exército ele se dedicava um ano ao tirocinium

fori, o aprendizado da vida pública.

A educação romana comparada com a grega era mais cívica, familiar e também mais religi-

osa. A piedade romana era notada pela importância que davam aos sinais dos deuses3, pela fé

em sua providência. Nas crianças era inculcado um sistema rígido de valores morais que, dife-

rentemente do imoralismo espartano em favor do Estado, era necessário antes de tudo respeitar

as leis da justiça, da moral e do direito: tudo é devido ao Estado, mas nem tudo é permitido.

Esclarecidas essas diferenças entre a civilização grega e romana, falar da educação pública

e das escolas romanas não mais seria do que uma repetição do que foi dito das escolas gregas,

pois como escreveu Horácio:3V. seção 2.2.1: O passado das questões futuras.

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“A Grécia conquistada conquistou por sua vez seu selvagem vencedor e trouxe a

civilização ao rude Lácio4.”

Os instrumentos educacionais utilizados nas escolas também eram quase os mesmos dos

gregos, com exceção do codex, que era formado por cadernos ligados que permitiam apresentar

edições compactas de obras volumosas, o que conhecemos hoje como livro. Então a educação

romana permanece basicamente grega, tendo estrutura e conteúdo semelhantes, havendo mais

tarde uma adaptação ao espírito latino com a introdução do estudo do Latim, e de novos

escritores ao programa de estudos: Virgílio junta-se à Homero.

Roma sucumbi e deixa um legado educacional e civilizatório do tamanho e da grandeza do

Império que criou. Afinal, Roma foi uma nação civilizadora e que conseguia incorporar, como

nenhuma outra nação antes dela, a cultura dos povos conquistados à sua própria. Talvez tenha

sido esse um dos seus grandes triunfos que lhe renderam o sucesso como nação.

2.1.3 A Velha Pena e as Novas Cores Medievais

Antes do Império Romano sucumbir por completo com a queda do Império Bizantino, ele

absorve o cristianismo em sua cultura. Ou melhor: o cristianismo absorve a cultura romana,

pois a Igreja adota o latim como sua língua por excelência, na qual todos os Doutores da Igreja

deixaram seus escritos.

Como já mencionado anteriormente, a educação medieval dá continuidade à tradição rece-

bida dos antigos, adotando as sete artes liberais, o Trivium e o Quadrivium, como programa de

estudos, herança do gregos que foi passada aos romanos e que agora chega aos povos medievais,

principalmente através da figura de Santo Agostinho de Hipona. Seus escritos proporciona-

ram essa assimilação da cultura clássica ao pensamento medieval, mas isso não se deu de uma

forma tão tranquila. Depois de fortes e brutais perseguições sofridas pelo Império Romano,

das invasões bárbaras, das tentativas de civilizar os povos bárbaros, os cristãos, a duras penas,

conseguiram criar um ambiente apaziguador e unificador na Europa encabeçado pela Igreja.

Tal ambiente que mais tarde proporcionou a criação das universidades.

Conforme ia desaparecendo as instituições oficiais criadas pelos romanos, entre elas as escolas

públicas, em meio ao barbarismo foram surgindo as chamadas escolas paroquiais, sob adminis-

tração exclusivamente eclesiástica, onde os párocos deveriam ensinar as crianças o canto dos

Salmos, as verdades da fé, e os mandamentos da Lei de Deus . Obviamente que esses ensina-

mentos implicavam o conhecimento dos rudimentos da escrita e da leitura, porém o conteúdo do4“Greacia capta ferum victorem cepit et artes intulit agresti Latio.”

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programa era puramente eclesiástico [21]. Para Rui Afonso da Costa Nunes, o nome paróquia

(parokia) é muito sugestivo, pois significa estada ou permanência em país estrangeiro. Pois era

assim que os cristãos em suas comunidades se consideravam: estrangeiros e peregrinos na terra.

As escolas paroquiais representavam o nível de ensino elementar, e no empenho da formação

de novas escolas públicas, aos párocos era prescrito que não deixassem de atender às famílias

que lhes confiassem os filhos para aprender as letras, que os acolhessem com summa charitate

e sem exigir qualquer tipo de pagamento aos pais.

Outro tipo de escola medieval era a monástica. Surgiram espontaneamente no começo

da Idade Média, formadas por clérigos seculares, homens que procuravam o mosteiro para

se consagrarem inteiramente a Deus pela imitação de Cristo. Essas comunidades monásticas

futuramente iriam dirigir as escolas episcopais, através de determinação feita no II Concílio

de Toledo [Ibid.]. O nível superior de ensino era representado por essas escolas episcopais ou

catedralícias. Eram nelas que se ensinavam as sete artes liberais, conforme orietação dada por

Santo Agostinho5. Durante toda a Idade Média a educação era o principal objetivo da atividade

monástica. Nunes também explica que além das artes do Trivium e do Quadrivium existiam

outras:

“Além das sete arte liberais que os letrados deviam conhecer, havia as sete artes

mecânicas, necessárias à vida social e à utilidade dos homens: as artes da tecelagem,

do ferreiro, da guerra, da navegação, da agricultura, da caça e da medicina, e às

quais ainda se acrescentavam as do teatro, da dança, da luta e da condução de

veículos.” [Ibid.]

Também intensificou-se o estudo da matemática com a introdução dos algarismos arábicos

no Ocidente, devido principalmente ao ingresso da medicina e ciências exatas árabes, sendo

também inventado, nessa mesma época, um novo ábaco chamado de tábua de cálculos [Ibid.].

A antiga pena ainda continua a ser utilizada como instrumento para a escrita, porém o conteúdo

com o qual ela é preenchida começa a diversificar:

“Na Idade Média generalizaram-se vários processos de produção de tintas de va-

riadíssimas cores, de que as belas iluminuras e a vasta literatura da época dão

testemunho. Foram sendo descobertos inúmeros produtos químicos capazes de pro-

duzir tintas coloridas: sais de cobre e de crómio, óxidos de ferro, ácido pícrico,

etc.” [31]5Agostinho de Hipona, De Doctrina Christiana

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As tintas eram guardadas em chifres de veado (cornu), e eram chamadas de atramentum

librarium para diferenciar-se das tintas de sapateiro (atramentum sutorium). As penas, diferen-

temente das de ganso utilizadas pelos romanos, era feita de cana, mais conhecida como cálamo;

todos esses instrumentos faziam parte scriptorium do copista medieval.

Não somente na escrita e nas iluminuras, mas sobretudo no esplendor dos vitrais da catedrais

góticas, expressão máxima do simbolismo e da cultura medieval, podemos observar as variações

de cores produzidas nesse período.

Os monges medievais, mais especificamente os monges carolíngios do mosteiro de Tours,

além de generalizerem o uso de espaço entre palavras, de modo a facilitar a leitura, também

desenvolveram a letra minúscula carolina (de Caroulus Magnus), deixando as letras maiúsculas

a serem utilizadas apenas em títulos de relevo, como os dos capítulos, donde vem o nome de

“capitais”. Apesar de logo após surgirem elegantes letras góticas, os humanistas do Renasci-

mento adotaram a minúscula carolina, de forma que, fixada por Gutemberg nos tipos de metal,

serviu de letra de imprensa.

2.1.4 A Prensa Moderna

O fim da Idade Média foi marcado por uma série de crises e catástrofes, e a elas se acres-

centaram a Guerra dos Cem Anos, o Exílio de Avinhão e o Cisma do Ocidente e a Revolução

Protestante. Essas crises afetavam diretamente o clero da Igreja, e afetando-os, consequente-

mente também afetava a educação, pois como vimos, era a Igreja a única provedora da educação

durante a Idade Média na Europa.

Esses acontecimentos foram fatores decisivos para as mudanças que viriam a se manifestar

no período do Renascimento, principalmente no campo da educação, que é o objeto em questão

neste trabalho. Contudo uma catástrofe se sobrepõe às demais, sendo talvez uma das principais

desencadeadoras desses acontecimentos mencionados: a Peste Negra.

A Grande Peste dizimou boa parte da população europeia, e dessa forma, em meio a essa

calamidade, escassearam-se os professores e os alunos. Isso proporcionou mudanças na educação

de tipo médio e secundário, queixas do declínio da qualidade do ensino, adoção de professores

leigos pelas cortes reais – antes o quadro de professores era composto basicamente por monges

– e utilização cada vez mais comum da língua vernácula nos estudos. A Peste Negra provocou

um vácuo na tradição educacional que vinha desde os antigos.

Coube aos humanistas tentarem buscar esses conhecimentos em vias de se perder. E assim

o fizeram, porém, como era um época em que o paganismo voltava a crescer na sociedade, não o

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fizeram sem haver uma forte campanha contra a já decadente escolástica medieval, perdida em

seus excessos – daí desenvolveram-se certos preconceitos sobre a educação medieval que chega-

ram até os dias atuais. Os humanistas também tiveram acesso aos livros (ainda codex ) clássicos,

outrora proibidos para o público em geral e conservados nos mosteiros apenas aos estudiosos,

o que gerou muita polêmica de como esses clássicos deveriam ser estudados e incorporados no

programa de estudos moderno.

Na educação moderna o homem e a natureza passaram a ser o centro e o motivo principal

dos estudos e da contemplação:

“No início da Idade Moderna a educação passou por modificações profundas, tanto

na sua concepção como nos meios usados para a consecução do seus objetivos.

Primeiramente, ela começou a visar de modo claro e definido à formação integral

do homem, o seu desenvolvimento intelectual, moral e físico, em contraste com a

educação medieval que se esmerava na formação religiosa e intelectual [...].”

“Quanto aos meios usados nas escolas para o alcance dos seus novos objetivos,

trataram os humanistas de publicar textos críticos das grandes obras da cultura

clássica concernentes às letras, à filosofia e às ciências [...].” [22]

Com a elevação do homem a objeto máximo de contemplação, os humanistas passaram

acreditar que apenas por meio da razão humana pudessem organizar uma sociedade perfeita,

justa e feliz aqui na terra. Daí que começaram a surgir as utopias6. Essas descrições imaginá-

rias de mundos perfeitos revelam os desejos e os anseios do homem daquela época por certas

instituições e regras sociais, dentre elas, é claro, estão as utopias educacionais, tais como: a

instituição de um sistema educacional público universal, crianças começando a ser educadas

logo após a amamentação, aprendendo o alfabeto de forma divertida, vestindo roupas coloridas

e aprendendo dentro de um ano mais do que os adultos em quinze.

Na prática, as crianças eram educadas pelos seus mestres – que agora já não eram neces-

sariamente ligados ao clero, mas leigos que demostrassem conhecimento prévio – com o auxílio

dos Horn-books, uma tábua de madeira onde era impresso as letras do alfabeto ou outros textos

com o intuito de ensiná-las a ler e escrever. Também é dessa época a primeira menção ao mo-

derno lápis, feita pelo suiço-alemão Konrad von Gesner. Ele “descreveu um novo instrumento

de escrita, no qual a grafite seria inserida num invólucro de madeira [31].”

As doutrinas educacionais humanísticas deram origem aos ginásios modernos e às escolas

de nível superior que não faziam parte de universidades [22]. Os métodos pedagógicos se6V. seção 2.2.2: A polêmica das questões futuras.

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diversificam, vários autores publicam suas obras pedagógicas, a invenção da prensa móvel por

Gutemberg impulsiona a publicação de livros, os jesuítas e missionários cruzam oceanos para

civilizar os nativos. Eis uma época de grande efervescência.

O ensino a partir do século XVII ainda continuou estritamente humanista, contudo co-

meçaram a surgir novos sistemas de pensamento que desencadearam algumas inovações nas

concepções educacionais. Dentre elas são destacáveis o surgimento da ciência moderna, o mé-

todo experimental e sua imediata repercussão no currículo escolar e a criação de uma pedagogia

científica através da organização de uma Didática [23]. O principal representante da doutrina

científica a respeito do método foi René Descartes, que enunciou na segunda parte do seu Dis-

cours de La Méthode, Pour Bien Conduire La Raison, & Chercher La Vérité dans Les Sciences,

as quatro regras famosas:

1) “Le premier était de ne recevoir jamais aucune chose pour vraie que je ne la connusse

évidemment être telle; c’est-à-dire, d’éviter soigneusement la précipitation et la préven-

tion, et de ne comprendre rien de plus en mes jugements que ce qui se présenterait si

clairement et si distinctement à mon esprit, que je n’eusse aucune occasion de le mettre

en doute.”

2) “Le second, de diviser chacune des difficultés que j’examinerais, en autant de parcelles

qu’il se pourrait, et qu’il serait requis pour les mieux résoudre.”

3) “Le troisième, de conduire par ordre mes pensées, en commençant par les objets les plus

simples et les plus aisés à connaître, pour monter peu à peu comme par degrés jusqu’à

la connaissance des plus composés, et supposant même de l’ordre entre ceux qui ne se

précèdent point naturellement les uns les autres.”

4) “Et le dernier, de faire partout des dénombrements si entiers et des revues si générales,

que je fusse assuré de ne rien omettre.” [8]

A terceira regra foi logo estendida ao terreno escolar, porém, o matematismo de Descartes

foi confutado no século XVIII por Giambattista Vico, professor da Universidade de Navarra,

que declara que ao método pedagógico compreende:

• Instrumenta : os instrumentos são a nova crítica, a análise matemática, a

química, o microscópio, o telescópio, a bússola, polaris lapidis urna.

• Adiumenta : os recursos auxiliares, por sua vez, são as obras paradigmáticas

dos grandes autores nas várias áreas do saber, os livros e as universidades.

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• Finem : o objetivo único e indubitável dos estudos é a verdade. [23]

Esse tema do método para se alcançar a verdade já preocupara diversos pensadores desde

a Antiguidade.

Na Idade Moderna existiram diversos tipos de educação. Entre esses tipos, a educação dos

nobres tinha caráter particular, onde os príncipes possuíam um ou mais preceptores, embora

sempre tendo um como o principal, que ministravam os conteúdos visando a continuidade

e estabilidade do trono real. Outro tipo era a educação popular, principalmente de iniciativa

religiosa, tendo como destaques, a fundação da primeira escola para meninos pobres na paróquia

de Saint-Georges por Carlos Démia; a criação do Instituto dos Irmãos das Escolas Cristãs por

São João Batista de La Salle; e o trabalho do escolápios, fundado por São José de Calasanz,

que inicialmente tinha o objetivo de educar meninos pobres, mas aos poucos passaram a educar

os filhos da burguesia e da nobreza por toda a Europa [Ibid.].

A educação feminina também foi bastante discutida nessa época, chegando Fénelon a dizer:

“A má educação das mulheres é mais prejudicial que a dos homens, pois a desordem

dos homens procedem muitas vezes da má educação que receberam de suas mães e

das paixões que outras mulheres lhes inspiraram numa idade mais avançada.” [Ibid.]

As ideias de Fénelon influeciaram a Marquesa de Maintenon, educadora mais insigne do

século XVIII no terreno da educação feminina e fundadora da escola de Saint-Cyr; a Marquesa

de Lambert, que publicou livros de educação como Avis à son Fils, Avis à sa Fille e Reflexions

Nouvelles sur les Femmes ; o Abade Claude Fleury e o célebre pedagogo Charles Rollin [Ibid.].

E por último, mas não menos importante, a educação especial dos indígenas realizada pelas

Missões Jesuíticas, principalmente na América do Sul. O principal objetivo era o ensino da

doutrina da fé católica e a formação de um povo de agricultores. Os índios além de aprenderem

o catecismo, também aprendiam a arte do cultivar erva-mate, tabaco, açúcar, algodão, milho,

etc.; aprendiam várias artes mecânicas, tais como a de ferreiro, torneiro, carpinteiro, curtidor,

entre outras. Aprendiam não só a tocar instrumentos musicais mas também a fabricá-los.

Os índios que trabalhavam no campo não estavam ocupados na escola, que era dirigida por

um mestre índio orientado por um missionário. A escola era frequentada por crianças que

revelassem capacidade intelectual, e lá aprendiam a ler7, escrever e contar; as outras crianças

eram direcionadas às artes mecânicas.

A educação europeia alcançava vagarosamente o Novo Mundo enquanto no Velho Continente

aconteciam revoluções sociais, políticas, filosóficas e econômicas de grandes proporções. Esses7A leitura era feita em guarani, castelhano e latim.

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acontecimentos seriam um prenúncio do que estava por vir no século XX: um ruptura ainda

mais forte com a tradição e catástrofes imensamente maiores do que a Peste Negra.

2.1.5 A Diversificação Técnica Contemporânea

O século XIX foi marcado por grandes expectativas quanto aos avanços tecnológicos, onde

autores como Júlio Verne8 mexiam com o imaginário popular com suas histórias que descreviam

máquinas incríveis que possibilitariam aos seres humanos feitos inimagináveis e um futuro

altamente tecnológico. O positivismo de Comte9 e o materialismo histórico de Marx10 eram as

ideologias reinantes na época, influenciadas pela cultura científica e filosófica cartesiana e pelo

idealismo de Kant11 e Hegel12.

À época começaram a surgir novos instrumentos educacionais: o lápis, como o conhecemos

hoje, industrializado por Kaspar Faber [31]; a Magic Lantern13, um tipo primitivo do projetor

de imagens; o famoso, e ainda usado, Quadro Negro14; e a máquina de escrever. Todos esses

instrumentos iriam se popularizar durante o século seguinte.

Por outro lado, a partir do surgimento da psicanálise por Freud15, começaram a aparecer

estudos sobre psicologia educacional e análise comportamental. Assim, as escolas se tornaram

verdadeiros laboratórios para os testes dessas diversas “teorias educacionais” difundidas em

princípios do século XX.

O período entre guerras revelou-nos um educação similar à do passado: como não perce-

ber certas características análogas às da educação espartana no fascismo italiano, no nazismo

alemão e no comunismo soviético? Sendo que agora estimulado por uma máquina gigantesca

de propaganda ideológica e manipulação comportamental feita pelo Estado para adestrar as

mentes das crianças e dos jovens? E isso não aconteceu apenas dessa forma mais abertamente

conhecida, mas também secreta.

Segundo Charlotte Thomson Iserbyt [13], ex-conselheira sênior do Departamento de Edu-

cação dos EUA, enquanto aconteciam as duas Grandes Guerras Mundiais na primeira parte

do século XX, uma outra guerra era travada silenciosamente no sistema educacional americano

sem que as pessoas soubessem, e que continuaria após findada a Segunda Guerra Mundial. As8V. Seção 2.2.3: Fictio quaerens veritatem9Isidore Auguste Marie François Xavier Comte (1798-1857)

10Karl Heinrich Marx (1818-1883)11Immanuel Kant (1724-1804)12Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831)13https://online.purdue.edu/ldt/learning-design-technology/resources/evolution-technology-classroom14Ibid.15Sigmund Schlomo Freud (1856-1939)

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“armas” utilizadas nessa guerra silenciosa eram muito mais efetivas e sofisticadas:

• A dialética hegeliana (crença comum, consenso e comprometimento)

• O gradualismo (dois passos para frente; um para trás)

• A fraude semântica (redefinir os termos para obter concordância sem compreensão).

A dialética hegeliana é um processo formulado por Hegel que pode ser ilustrado da seguinte

forma:

Figura 2.1: Processo dialético hegeliano.

A tese representa uma prática estabelecida ou uma crença comum que é oposta a antítese,

usualmente uma crise de oposição fabricada ou criada pelo agente de mudança, causando na

tese um comprometimento próprio, incorporando parte da antítese para produzir uma síntese,

também chamada de consenso.

Para ilustrar o gradualismo, recordemos da história do sapo que é colocado em um recipiente

de água fria que é gradualmente aquecida até chegar ao ponto de ebulição, levando o sapo à

morte sem que ele perceba. O gradualismo funciona desse modo, através de uma série de “crises

criadas” utilizando-se do processo da dialética hegeliana para se levar a uma mudança radical

que nunca seria aceita de outra forma.

A fraude semântica tem haver com a manipulação das palavras e dos termos, de forma que

não fique evidente o verdadeiro objetivo que está por trás delas. Ideias que não seriam aceitas

pela crença comum são travestidas de uma forma que fiquem “aceitáveis”, fazendo as pessoas

concordarem sem entendimento prévio.

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Iserbyt afirma que o objetivo dessa guerra, que se intensificaria após a derrota do Eixo,

seria:

“[...] become the war to end all wars. If citizens on this planet can be brainwashed

or robotized, using dumbed-down Pavlovian/Skinnerian education, to accept what

those in control want, there will be no more wars. If there are no rights or wrongs,

there will be no one wanting to “right” a “wrong.” Robots have no conscience.

The only permissible conscience will be the United Nations or a global conscience.

Whether an action is good or bad will be decided by a “Global Government’s Global

Conscience,” as recommended by Dr. Brock Chisholm, executive secretary of the

World Health Organization, Interim Commission, in 1947.” [Ibid.]

Não se pode negar que existiram durante o século XX bons educadores, porém foram ofusca-

dos, pois eles não buscavam “inovação” no campo educacional, mas dar continuidade à tradição

recebida e reformar o que for necessário, pois um método pedagógico mal elaborado pode com-

prometer intelectualmente a criança pelo resto de sua vida. Isso soaria reacionário para uma

época em que o desejo de rompimento com o passado e a abolição do conceito de verdade se

faziam presentes. O importante era o futuro, e como o jovem da época seria moldado para

viver nele. O que podemos afirmar é que, diferentemente de todos os modelos educacionais an-

teriores, esse modelo de manipulação comportamental imposto pelo Estado através das escolas

é um criação original do século XX, fato bem documentado por Pascal Bernardin [3].

A diversificação técnica dos instrumentos educacionais se fez fortemente presente nesse pe-

ríodo. Nos anos 30 surgiram os retroprojetores; nos anos 40, as canetas esferográficas e os

televisores; nos anos 50, os fones de ouvido, os videoteipes, e as fotocopiadoras; nos anos 70,

as calculadoras de mão se popularizaram; nos anos 80, a IBM lança o primeiro computador

pessoal; e nos anos 90, para completar a revolução tecnológica ocorrida durante todo o século,

é criada a World Wide Web, e precisamente em 1993 a NSF (National Science Foundation)

remove as restrições para o uso comercial da Internet.

Conforme foram sendo criadas essas inovações tecnológicas, elas iam sendo assimiladas no

sistema educacional. Porém, apesar do grande avanço tecnológico ocorrido desde o fim da

Segunda Guerra, a escola, em geral, continuou sendo durante todo o século XX da forma como

foi definida pelo filósofo e pedagogo Ivan Illich, “um processo que requer assistência de tempo

integral a um currículo obrigatório, em certa idade e com presença de um professor” [12].

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2.2 Da Previsão à Prospecção

Dos tempos mais obscuros aos dias atuais, o futuro sempre foi matéria de interesse para a

humanidade. Do caráter vinculado ao misticismo até os estudos sociais modernos, esta seção

aborda um pouco da história da relação do homem com o futuro.

2.2.1 O Passado das Questões Futuras

“Todo poder é um poder sobre o futuro, sendo uma capacidade de ação afetar esse futuro”

[14]. Apesar dessa frase ter sido escrita por Bertrand de Jouvenel no século XX, ela parece

ser uma verdade universalmente reconhecida desde os tempos mais remotos da humanidade.

O indivíduo capaz de prever situações sempre possuiu um lugar de destaque nas civilizações

antigas, principalmente perante a realeza. Jouvenel não deixa de destacar que em nenhuma

língua, principalmente nas mais antigas, falte um termo denominando aquele (ou aquela) que

tem a faculdade de prever: mantis, vates, kahin, etc [Ibid.].

A primeira parte da afirmação de Jouvenel, “Todo poder é um poder sobre o futuro”, era

mais comumente considerada pelos povos antigos. Já a segunda parte da afirmação, sobre a

capacidade de afetar o futuro, se trata de um pensamento moderno. Para exemplificar isso,

podemos citar a peça de Sófocles, Édipo Rei, onde o personagem principal, Édipo, para evitar o

cumprimento de uma profecia recebida pelo oráculo, desencadeia toda uma série de ações que,

a despeito de sua vontade, o leva na verdade ao cumprimento do que foi profetizado. Essa peça

ilustra bem a forma de pensar do homem arcaico, pois para ele o futuro era concebido como

pré-existente.

Outro personagem da peça, Tirésias, o adivinho, dirigindo-se a Édipo tentando elucidá-lo

sobre sua desgraça, exclama o drama do mantis (profeta):

“Pobre de mim! Como é terrível a sapiência

quando quem sabe não consegue aproveitá-la!” [29]

Essa fala do adivinho também pode ser interpretada sutilmente como uma lição válida

ainda nos dias atuais: Tirésias era cego, no entanto, sabia; já Édipo, mesmo sadio da visão, não

conseguia enxergar os fatos e o que estava por vir. O mesmo Tirésias ainda aparece na obra de

Homero, nos cantos X e XI da Odisseia, quando Odisseu desse ao Hades para consultá-lo sobre

o modo de salvar a si próprio e os companheiros, e encontrar o caminho de volta para Ítaca.

Sucedendo os gregos nessa obsessão pelo futuro vieram os romanos, os quais adotaram boa

parte das crenças divinatórias gregas. Entre outras práticas realizadas para prever o futuro

29

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no antigo Império Romano estão o exame das vísceras de certos animais, ritual conduzido por

um sacerdote denominado haruspicius, e a observação do vôo de pássaros. Essas práticas não

tinham a intenção de prever um futuro a longo prazo, sua intenção era a de um futuro mais

imediato [28]. Tais rituais perduraram desde o período monárquico do Império Romano até a

República, onde Marco Túlio Cícero escreveu a obra De Divinatione, que com o objetivo de

refutar tais crenças herdadas do gregos, nos fala com maiores detalhes sobre a arte de adivinhar

tão popular aos romanos [14].

Diferente dos antigos adivinhos são os profetas das religiões judaica e islâmica, pois suas

ações descritas, respectivamente, na Torá e no Alcorão, nos mostram que eles vão muito além

de meros adivinhos, sendo suas profecias, inspiradas divinamente, verdadeiros marcos históricos

que moldaram civilizações inteiras. Do mesmo modo, também as profecias bíblicas marcaram

a civilização Ocidental, chegando até os dias atuais.

2.2.2 A Polêmica das Questões Futuras

Outra atividade que fascinou a humanidade desde os tempos mais obscuros foi a observação

dos astros, e através dela, o poder de prever as estações do ano, os períodos da lua, as condições

de tempo, a época da colheita, etc; e com isso, o surgimento simultâneo da crença de que existe

uma correlação entre as conjunções siderais e as conjunturas humanas: a astrologia.

Durante a Idade Média essa crença na influência direta dos astros sobre a vida humana,

podendo-se prever o futuro pessoal através das conjunções celestes, foi condenada pela Igreja

como heresia. Pode-se verificar isso através dos escritos de Santo Agostinho de Hipona e São

Tomás de Aquino.

Sobre essa questão em particular, o Aquinate tem um escrito onde ele discorre sobre o tema

em questão, De iudiciis astrorum [1]. Citando Agostinho, ele escreveu:

“In primis ergo oportet te scire quod uirtus celestium corporum ad immutanda inferi-

ora corpora se extendit. Dicit enim Augustinus V De ciuitate Dei Non usquequaque

absurde dici potest ad solas corporum differentias afflatus quosdam sydereos perue-

nire.”

Tomás de Aquino afirma que a força dos corpos celestes se estende aos corpos inferiores,

produzindo neles mudanças, e cita o pensamento de Agostinho de que nem sempre é um absurdo

dizer tal suposição, pois, continua Tomás de Aquino:

“Et ideo, si aliquis iudiciis astrorum utatur ad prenoscendum corporales effectus,

puta tempestatem et serenitatem aeris, sanitatem uel infirmitatem corporis, uel

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ubertatem et sterilitatem fructuum, et cetera huiusmodi que ex corporalibus et natu-

ralibus causis dependent, nullum uidetur esse peccatum.”

Se alguém se serve do juízo dos astros para conhecer coisas que dependem de causas naturais

conhecidas, como por exemplo, ocorrência de tempestades, a saúde e a enfermidade dos corpos

ou a abundância e esterilidade das colheitas, não há nisso pecado, afirma Tomás de Aquino.

Porém, ele adverte que a vontade do homem não está submetida às necessidade dos astros, pois

com isso pereceria o livre arbítrio:

“Hoc autem omnino tenere oportet, quod uoluntas hominis non est subiecta neces-

sitati astrorum; alioquin periret liberum arbitrium, quo sublato non deputarentur

homini neque bona opera ad meritum, neque mala ad culpam [...].”

E, por fim, condena a prática:

“[...] Sed dyabolus, ut omnes pertrahat in errorem, immiscet se operibus eorum qui

iudiciis astrorum intendunt [...].”

E assim o foi também durante o Renascimento. A Igreja continuava a condenar a prática

astrológica, sendo que agora em uma sociedade que estava por um lado cada vez mais interessada

em resgatar costumes antigos, e por outro em formular utopias:

“As utopias renascentistas são descrições imaginárias de mundos ou sociedades mais

perfeitas e nas quais não só aparecem os desejos e os sonhos de vida humana justa e

feliz – como se o homem pudesse nesta vida organizar a sociedade perfeita apenas por

meio da razão – como também nelas se exprimem os anseios por certas instituições

ou por certas regras sociais que viriam a ser perfeitamente exequíveis em épocas

posteriores [...].” [22]

Nessa época também viveu o famoso vidente Nostradamus que ainda hoje suscita interesse

por parte das pessoas sobre as profecias que realizou em seus escritos no século XVI.

Discorrendo rapidamente sobre esse tema, Jouvenel também relata a influência da astrologia

no meio acadêmico científico nesse mesmo período:

“É preciso notar, quanto ao prestígio da astrologia, que, se por um lado foi alimen-

tado pela superstição de uma influência dos astros sobres os problemas humanos,

por outro lado repousava sobre uma base mais intelectual, a convicção de que tudo

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acontece no universo em função de uma grande mecânica cuja a parte mais visível é

a celeste, podendo ela nos ensinar, por simples correspondência, sobre todo o resto.”

[14]

E não deixa de destacar, citando o Dictionnaire Historique et Critique, de Pierre Bayle,

que:

“[...] no tempo de Descartes, o cargo de Professor Real de Matemática pertencia a

Jean-Baptiste Morin, astrólogo apaixonado e inteligente o bastante para que Des-

cartes não desdenhasse discutir suas críticas concernentes ao estudo da luz.” [Ibid.]

Outro fato interessante é o do filósofo, matemático e astrônomo Pierre Louis Moreau de

Maupertuis. Segundo Jouvenel, ele foi “o primeiro homem que deu ao termo ‘previsão’ seu

sentido atual”. E não fez isso sem gerar um certa polêmica.

Maupertuis, que era o então presidente da Academia de Berlim, escreveu em suas Lettres,

no ano de 1752:

“Nosso espírito, cuja a principal propriedade consiste em perceber a si mesmo, e

perceber o que lhe é presente, tem ainda duas outras faculdades, a lembrança e a

previsão. Uma é a volta sobre o passado, a outra uma antecipação do porvir. Parece

que é por essas duas faculdades que o espírito do homem difere mais do animal.”

[Ibid.]

Estando em uma época que passava por mudanças revolucionárias, e também devido a uma

certa inabilidade por parte de Maupertuis, o modo como ele utilizou a palavra “previsão” para

formular a simetria lembrança-previsão no trecho citado, provocou uma veemente reação por

parte de Voltaire, que o tomou por alvo de um série de críticas, como esta, onde ele finge que

a obra criticada é de um jovem impostor fazendo-se passar por Maupertuis:

“É preciso, antes de tudo e mais nada, que o jovem autor aprenda que a previdência

não tem nada a ver com a previsão; que a palavra previsão é usada unicamente para

designar o conhecimento pelo qual Deus vê o porvir. Seria bom que ele conhecesse

a força dos termos, antes de se pôr a escrever .” [Ibid.]

Se consultarmos os dicionários da época veremos que, apesar da contribuição de Maupertuis

para a mudança de significação da palavra “previsão”, e não o desmerecendo completamente,

Voltaire tinha inegável razão. À época a palavra “previsão” vinha carregada de todo uma

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significação teológica, no sentido de uma posse plena e segura do futuro. Porém, hoje mesmo

estando nós mais acostumados com o sentido utilizado por Maupetuis, no sentido de “uma

opinião sobre o futuro”, o termo ainda conserva alguma reminiscência do seu sentido clássico e

forte [Ibid.].

2.2.3 Fictio Quaerens Veritatem

A palavra ficção deriva da palavra latina fictio, particípio de fingo, que significa literalmente

modelar, e esta, por sua vez, também dá origem a outra palavra, figulus, que significa oleiro.

E o oleiro é aquele que dá forma concreta a algo pré-existente em seu espírito [14]. É muito

conveniente utilizarmos, nesses termos, a palavra ficção para caracterizar as obras de certos

escritores que com uma formidável capacidade imaginativa tiveram as criações de seu espírito

transmutadas em realidade concreta: a ficção tem a pretensão de realidade.

Júlio Verne foi um desses escritores, suas obras inspiraram e direcionaram o futuro, que

reproduziu a sua arte [28]. Os trabalhos de Verne podem ser divididos em três fases 16. A

primeira, marcada pelo seu tom positivista, onde, depois de ter escrito o romance distópico

Paris au XXe siècle rejeitado por Hetzel, seu editor, em 1863, vindo a obra a ser publicada

apenas ao final do século seguinte, Verne aprendeu a lição, e pelas duas décadas seguintes es-

creveu romances de aventura e ficção científica que foram verdadeiros sucessos. É nessa época

que foram escritos De la Terre à la Lune (1865) e Vingt Mille Lieues Sous les Mers (1870).

No primeiro desses romances, o escritor imaginou uma viagem à lua realizada em um módulo

no formato de bala tripulado por três astronautas, tendo como local de lançamento a Flórida.

É impressionante como essa descrição se aproxima de forma notável com a missão Apollo 11,

ocorrida em 1969. Já no segundo romance, Verne descreve um submarino, o Nautilus, pratica-

mente autossuficiente, que pode ficar muito tempo em operação sem a necessidade de atracar

em algum porto. Essa ideia se concretizou em 1954, com o lançamento do primeiro submarino

nuclear pela marinha americana sob o nome de USS Nautilus (SSN-571)17. A segunda fase é

considerada um período pessimista, onde ao tom ideológico positivista pró-científico da fase

anterior dá-se lugar a obras que exploram os perigos da tecnologia. A terceira fase trata-se da

publicação de suas obras póstumas.

Outro escritor conhecido pelas previsões assertivas de suas obras é Aldous Huxley. Em sua

obra mais famosa, o romance distópico Brave New World, ele descreve uma sociedade futura

completamente organizada em um sistema científico de castas através da manipulação genética16V. https://www.britannica.com/biography/Jules-Verne17V. https://www.history.navy.mil/browse-by-topic/ships/submarines/uss-nautilus.html

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e da abolição da vontade livre pelo condicionamento comedido. Quase todos já leram ou pelo

menos já ouviram falar dessa sua obra ficcional, contudo o que poucos sabem é que quase três

décadas depois da publicação de Brave New World Huxley escreveu outra obra chamada Brave

New World Revisited, sendo que desta vez não se tratava de uma obra ficcional. Logo no começo

deste último livro ele faz um comentário à sua obra mais famosa:

“In 1931, when Brave New World was being written, I was convinced that there was

still plenty of time. The completely organized society, the scientific caste system,

the abolition of free will by methodical conditioning, the servitude made acceptable

by regular doses of chemically induced happiness, the orthodoxies drummed in by

nightly courses of sleep-teaching — these things were coming all right, but not in

my time, not even in the time of my grandchildren. I forget the exact date of the

events recorded in Brave New World; but it was somewhere in the sixth or seventh

century A.F. (After Ford).” [11]

E na sequência ele confessa a sua surpresa:

“Twenty-seven years later, in this third quarter of the twentieth century A.D., and

long before the end of the first century A.F., I feel a good deal less optimistic than

I did when I was writing Brave New World. The prophecies made in 1931 are

coming true much sooner than I thought they would. [...] The nightmare of total

organization, which I had situated in the seventh century After Ford, has emerged

from the safe, remote future and is now awaiting us, just around the next corner.”

[Ibid.]

Ainda em Brave New World Revisited, Huxley comenta sobre outro grande escritor, George

Orwell, escritor de 1984. Huxley escreve que no ano de 1948, com a ascensão do nazismo na

Alemanha e do comunismo na Rússia, os tempos se mostravam mais de acordo com as projeções

amplificadas do romance distópico de Orwell, porém com o desenvolvimento tecnológico do pós-

guerra, a obra orweliana foi perdendo força enquanto os novos fatos que surgiam iam traçando

um caminho correspondente ao descrito em Brave New World. Isso é verdade em parte, pois

até os dias atuais essas duas obras ainda são lidas e bastante consideradas. 1984 ainda nos

revela traços proféticos como a manipulação da opinião pública através do jogo de palavras,

filosofias e experimentos sociais que estimulam o “duplipensar”, mais conhecido atualmente por

dissonância cognitiva, e também a vigilância onipresente do Big Brother, fato bastante atual

em um mundo cada vez mais vigiado por câmeras.

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Antes de passarmos a relatar os acontecimentos do pós-guerra em relação às previsões

humanas, gostaria de citar um último autor, já que para alguns ele é considerado o fundador

dos estudos do futuro: H. G. Wells. Apesar de ser muito conhecido pelas suas obras ficcionais,

como The War of the Worlds e Time Machine, ele também escreveu, dentre outras, a obra

não-ficcional Anticipations of the Reaction of Mechanical and Scientific Progress upon Human

life and Thought, em 1901, com o propósito de descrever o desenvolvimento mundial em uma

faixa de 100 anos à frente de seu tempo, argumentando em favor de uma “exploração sistemática

do futuro” [30]. Talvez essa tenha sido uma das primeiras obras a encarar o futuro como uma

forma de estudo social.

2.2.4 O Pós-guerra e os Estudos Prospectivos

Após as duas Grandes Guerras e com o início da Guerra Fria, o potencial destrutivo do

homem ficou mais do que patente. A preocupação com o destino da humanidade ficou muito

em voga com a ameaça de um nova guerra que poderia ser a última. Isso incentivou o desen-

volvimento de instrumentos de planejamento de maior longo prazo para tentar evitar eventuais

situações sem retorno. Foi nesse clima de tensão que aconteceu o fortalecimento da prospectiva

militar americana, e, do outro lado do Atlântico, onde a Europa estava sendo reconstruída,

ocorreu um desenvolvimento da prospectiva econômica [28].

Um dos trabalhos que mostram os fundamentos da produção de inteligência durante esse

período, e que ainda hoje serve de referência como método para a produção de informações

estratégicas, foi escrito pelo general Washington Platt [26]. A sua obra é indicada como re-

ferência histórica pelo Centro de Estudos Kent da Agência Central de Inteligência dos EUA

(Central Intelligence Agency - CIA), nestes termos:

“A study of intelligence production from the perspective of the working analyst, with

an emphasis on useful tools and methods which makes it tend to treat social science

methodology as something peculiar to intelligence. The author had experience in

combat intelligence during World War II and in intelligence production thereafter.”

[25]

É importante ressaltar que, apesar da datação da obra, ela é atual enquanto metodologia

de trabalho, podendo ser utilizada para estudos, pesquisas e teses.

Enquanto nos Estados Unidos da América a prospectiva militar influenciou a criação de

centros de referência de estudos prospectivos como a Rand Corporation e o Hudson Institute,

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na Europa, mais precisamente na França no período entre guerras, Gaston Berger fundou o

Centre Universitaire International et des Centres de Prospective, no qual assumiu a posse da

cadeira de diretor de estudos filosóficos 18. Foi Berger que relançou nos anos 60 a palavra

“prospectiva”, retirando-lhe do conteúdo a força de previsão que estava demasiado impregnada

de profecia; e a partir de sua obra é que surge a mudança definitiva de mentalidade de um

futuro único (previsão clássica) para os vários futuros possíveis (prospectiva) [28]. De fato, foi

ele quem cunhou o termo La prospective, reconhecida escola de pensamento na área de estudos

do futuro [30].

Dentre os que sucederam o legado de Berger, é notável o trabalho do filósofo, economista

e diplomata Bertrand de Jouvenel. Dando continuidade a exploração desses futuros possíveis,

Jouvenel criou o termo Futuribles (em francês, a junção das palavras futures e possibles) para

designar o método em que se busca criar melhor compreensão do mundo contemporâneo e

explorar as evoluções possíveis - ou futuros possíveis - os fatores relacionados e as estratégias que

devem ser adotadas [27]. Ou melhor, como ele próprio definiu: “Um futurible é um descendente

do presente que comporta uma genealogia” [14].

O trabalho de Jouvenel forneceu uma fundação intelectual essencial que permitiu o ramo de

estudos do futuro tornar-se uma importante atividade intelectual não apenas na França mas

também na Itália, Estados Unidos, e outros tantos países; porém, apesar do papel fundamental

nesse campo, os Futuribles nunca se popularizou nos Estados Unidos, sendo limitado à Europa

Ocidental [30].

***

O esforço histórico realizado neste capítulo, na tentativa de mapear os ideais educacionais

e a problemática do futuro nas atividades humanas, serve para inserir o leitor no contexto

de ambas as áreas, da Educação e dos Estudos do Futuro, e culmina com a menção de dois

autores: Washington Platt e Bertrand de Jouvenel. É com esses dois nomes que encerro este

capítulo, pois a abordagem metodológica de ambos foram utilizadas neste trabalho e está melhor

especificada no capítulo seguinte.

18https://fr.wikipedia.org/wiki/Gaston_Berger

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Capítulo 3

Metodologia

Este capítulo apresenta a metodologia utilizada na execução deste trabalho. Trata-se da

combinação de dois métodos: o Método Científico Aplicado às Informações, como descrito por

Washigton Platt [26]; e o método dos Futuribles (futuríveis, em português), criado por Bertrand

de Jouvenel [14]. Cada método é apresentado separadamente nas duas primeiras seções, e na

terceira é mostrado como esses métodos foram integrados para formar a metodologia base deste

trabalho.

3.1 O Método Científico Aplicado às Informações

Para Washington Platt, como descreve em seu livro A produção de Informações Estratégicas

[26], o problema começa com um conjunto de fatos heterogêneos relacionados com a situação

a que se está investigando. Esses fatos heterogêneos são chamados de informes, ou seja, a

matéria-prima, inacabada. O método para produzir informações consiste em transformar os

informes em um produto acabado e refinado ao qual chamamos de Informação. De acordo com

o método apresentado por Platt, isso nos leva à “operação de reunir os fatos de acordo com

o método científico, num esforço para obter o proveito máximo do material disponível para a

produção da Informação acabada”.

No ramo da produção de informações, “um fato, surpreendentemente, significa muito pouco,

a não ser relacionado com outros fatos, ou posto em destaque seu significado”. Isso implica

que o analista raramente deve contentar-se em relatar um fato, mas sim em apresentar fatos

correlatos, propiciando uma comparação. Como se está trabalhando com uma massa de dados

para exame, naturalmente, “alguns desses dados são válidos, outros nada têm a ver com o

caso, outros relacionam-se remotamente com o assunto. Alguns são verdadeiros, outros falsos,

e outros parcialmente verdadeiros”. Por isso, esses dados, ou informes, devem ser selecionados,

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avaliados, interpretados e integrados; a partir disso, tirar conclusões e verificá-las, e por fim, o

quadro final e as conclusões devem ser apresentados de forma clara e correta.

Neste trabalho os informes foram extraídos de livros, teses, artigos acadêmicos e notícias

de sites midiáticos, variando em uma escala entre fontes mais copiosas e de conhecimento bem

estabelecido, como é o caso dos livros, a fontes mais sucintas e imediatas, como é o caso dos sites

de notícias. As primeiras foram consultadas com o intuito de revelar uma maior profundidade

em relação ao assunto em questão, de forma elucidativa; e estas últimas, com o intuito de obter

fatos atuais de forma bruta e apenas descritiva.

Platt também explica que existem três níveis distintos de informação, e que cada um deles

deve ser examinado de modo diferente, com o objetivo de responder as seguintes indagações:

1. Situação – Que estão fazendo?

2. Possibilidades – Que podem fazer?

3. Intenções – Que farão?

No nível 1 exige-se apenas o conhecimento dos fatos: as fontes consultadas não precisam

necessariamente ter grande compreensão do assunto em questão, basta apenas ter a capacidade

de descrevê-lo, sem interpretá-lo. Perguntas sobre a situação são respondidas por fatos puros,

e neste trabalho, notícias jornalísticas serviram bem a esse propósito. O nível 2 já exige o

conhecimento de uma arte ou ciência. Nesse nível as fontes devem ser especializadas, possuindo

conhecimento técnico do assunto investigado, expondo métodos, procedimentos e análises. Ao

propósito de investigar as possibilidades, teses e artigos acadêmicos foram consultados neste

trabalho. Já para responder à pergunta do nível 3, é necessário ter um conhecimento íntimo

da situação como um todo, o que envolve, segundo Platt, ter ciência do Espírito do Povo. Esse

nível “exige saber criador e julgamento, produtos da experiência e de estudo profundo. Só uma

pessoa impregnada do modo de pensar do povo em estudo, e conhecedora das personalidades

envolvidas na questão terá sucesso ao prever intenções”. No intuito de suprir esse nível, as fontes

consultadas neste trabalho são basicamente livros, pois contemplam o assunto de forma mais

profunda e elaborada, onde supõe-se que os autores devam ter tomado maior tempo meditando

sobre o assunto. Obras de filosofia, sociologia, antropologia, história, dentre outras foram

consultadas, pois essas áreas de estudos esforçam-se por ter uma compreensão abrangente do

homem e de sua ações, o que leva também, consequentemente, à responder a pergunta: Que já

foi feito?. Só deste modo é possível ter uma visão mais ampla das circunstâncias em que está

instalado o assunto investigado.

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“ ‘Situação’ e ‘Possibilidades’, ambas apoiam-se em fatos objetivos que podem ser medidos

e contados, pelo menos em teoria. Com intenções ou ‘linhas de ação prováveis’ vamos buscar a

bola de cristal e colocamo-la bem no centro da mesa”, escreve Platt. Conforme nos distanciamos

das informações obtidas de maneira objetiva e nos aproximamos das Informações Estratégicas,

as “intenções” e “linhas de ação prováveis” tornam-se mais respeitáveis.

3.1.1 As Sete Fases da Produção de Informações

Existem várias versões do chamado “método científico” produzidas por diversos autores, de

modo que para cada pessoa haverá um interpretação diferente. Porém, os aspectos básicos são

muito parecidos: coleta de dados, formulação de hipóteses, verificação das hipóteses e conclusões

baseadas nos aspectos examinados. Além do mais a essência do método científico pode ser

encontrada na descrição feita por Descartes1 em Discours de La Méthode [8]. Partindo desses

aspectos básico do método científico e tendo ciência do processo que os oficias de informações

normalmente utilizam na produção de informações, Platt faz uma adaptação do método de

produção de informações estratégicas baseado no método científico. Esse novo método possui

sete fases, as quais podem ser conferidas na Tabela 3.1.

Segundo Platt, a seleção de fases listadas na Tabela 3.1 é a que melhor se adapta à pesquisa

nas informações. É adicionada uma fase de Levantamento Geral antes de iniciar uma coleta

de dados, pois sem isso, exatamente no começo, há pouca orientação para a coleta de informes

e outras atividades de pesquisa. Na Tabela 3.2 pode-se observar uma comparação entre o

procedimento padrão para a produção de informações realizada por um oficial de informações,

e a produção de informações baseada no método científico adaptada por Platt.1V. Seção 2.1.4: A Prensa Moderna.

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Tabela 3.1: As Sete Fases da Produção de InformaçõesFase Nome Descrição

1aLevantamento

Geral

Um levantamento do problema completo e dos campos

adjacentes onde se pode colher algum auxílio. Plano

geral para a conduta do trabalho, incluindo prazo, pessoal

e principais fontes de informes julgadas disponíveis.

2aDefinição dos

Termos

Definição e explicação do que queremos, ou não queremos,

dizer com cada termo ou conceito, deixando tudo bem claro

para nós mesmos, para nossos revisores e para nossos clientes.

3aColeta de

InformesReunião dos informes existentes, mas não a busca de campo.

4aInterpretação dos

InformesAvaliação, classificação, análise e interpretação dos informes.

5aFormulação de

hipóteses

Formulação de hipóteses experimentais indicando questões

específicas que servirão para testá-las.

6a Tirar Conclusões

Investigação destinada a provar ou reprovar a hipótese de

trabalho estabelecida na 5a fase, e a elaboração das conclusões

finais.

7a Apresentação Elaborar o relatório final.

Tabela 3.2: Comparação entre as fases da produção de informações.Fases da produção de

informações normalmente

consideradas pelo oficial de

informações

Fases da produção de informações

de acordo com o método científico

Seleção de informes

– Levantamento geral do problema

– Definição dos termos

– Coleta de informes

Avaliação dos informes

Interpretação dos informes

– Interpretação dos informes,

incluindo avaliação

Integração – Formulação de hipóteses

Conclusões – Conclusões

Apresentação – Apresentação

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Pode-se acreditar, por vezes, pela forma como são relacionadas as fases do método científico

por diversos autores, que a pesquisa científica é, essencialmente, uma corrente contínua de

fases lógicas, que se sucedem uma após a outra até chegar ao resultado final. Porém, isso

não é verdade. E isso se aplica do mesmo modo quando estamos falando da produção de

informações. A Figura 3.1 mostra como o processo se realiza na realidade. O trabalho pode

progredir sequencialmente, da 1a à 7a fase, mas também pode dar saltos de fase, como está

representado na Figura 3.1 pelos canais A, B e C. Após realizar um Levantamento Geral, pode-

se sentir a necessidade de realizar um coleta de dados para simples conferência (canal A); ou,

como quase sempre acontece, o Levantamentos Geral sugere à nossa mente certas hipóteses

(canal B); ou ainda, a partir do Levantamento Geral é percebido a necessidade de desenhos,

esquemas e gráficos para o relatório final (canal C).

Existem também algumas ideias que trazidas de volta às fases anteriores podem modificar

não só essas fases como também as conclusões parciais alcançadas durante o trabalho. Ideias

originadas da Interpretação de Informes, da Formulação de Hipóteses, das Conclusões finais, ou

das tentativas de esboço da Apresentação final, podem evidenciar a necessidade de uma nova

Coleta de Informes, e, desse modo, um novo informe pode modificar qualquer raciocínio que dele

deriva. Tudo isso está representado no fluxograma da Figura 3.1 pelas linhas de realimentação

(canais N, R, U e V, respectivamente).

Ao definir termos, interpretar os informes ou formular hipóteses, novas concepções podem

aparecer, o que leva à necessidade de realizar um Levantamento Geral sobre os novos conceitos

que surgem, e sem os quais seria impossível dar continuidade ao trabalho (canais M, P e S, res-

pectivamente). Quase da mesma forma, a Interpretação dos Informes pode revelar que certas

definições apresentadas no início do trabalho não estão de acordo com os novos conceitos que

vieram à tona, fazendo com que as definições anteriores tenham que ser modificadas (canal Q).

Já o trabalho de formular hipóteses está intimamente atrelado à Interpretação dos Informes,

sendo bem comum o retorno a essa fase para que a Formulação de Hipóteses tenha consistência

(canal O). E por fim, o canal T, que representa o movimento feito quando se chega à determi-

nadas conclusões em que os informes precisam ser reinterpretados, seja por simples conferência

ou por ter-se chegado à conclusões inverossímeis.

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Figura 3.1: Fluxograma para Produção de Informações.

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3.1.2 Os Quatro Estágios do Pensamento Criador

Paralelamente às fases da produção de informações existem os estágios do pensamento

criador. Platt afirma que o pensamento criador trata-se “do processo através do qual a massa

de dados é tratada construtivamente, resultando daí a solução de um problema, ou a produção

do quadro representativo de uma situação”. Este presente trabalho se incumbe deste último

aspecto, no esforço de apresentar, através de uma prospecção futura, um quadro geral do

impacto do progresso tecnológico na educação básica.

Seja nos campos das ciências naturais, do escrito criador, das ciências sociais e da produ-

ção de informações, o pensamento criador constitui-se de quatro estágios, que se dispõem na

seguinte ordem cronológica: Acumulação, Incubação, Inspiração e Verificação.

Por conveniência, e no intuito de facilitar a exposição dos estágios, cada um deles é consi-

derado separadamente a seguir, como se ocorressem sequencialmente. Porém, na realidade há

recobrimento no tempo, de modo que, por exemplo, o estágio de Incubação pode começar du-

rante o estágio de Acumulação, como pode-se averiguar na Figura 3.2. Os círculos representam

a atividade central de cada estágio do pensamento criador, entretanto, os limites variam de

acordo com cada situação, e não são, de forma alguma, tão definidos quanto mostra a figura.

A seguir, a explicação de cada estágio:

1o Estágio – Acumulação

Através dos retângulos circunscritos na região que representa o estágio, ilustrado na Figura

3.2, podemos ver que o estágio de acumulação abrange mais do que a Coleta de Informes.

Tanto o Levantamento Geral do problema quanto as Definições dos termos também fazem

parte desse estágio. Platt salienta que “a acumulação refere-se à volumosa massa de fatos

mais ou menos pertinentes, erros, preconceitos, ideias, conceitos e valores, armazenados

em nossa mente, resultado de nossa educação, cultura e experiência”. Uma parte da

acumulação sucede de dados específicos coletados para o projeto de informações. Já

outra parte, grande e influente, começou a acumular-se desde a juventude. É nesta última

parte que deve-se ter cuidado, esforçando-se para se proteger de predisposições e ideias

preconcebidas.

“A leitura ampla sobre todos os assuntos, mesmo remotamente relacionados com o pro-

blema em tela, muitas vezes estimulará a imaginação, pondo em evidência analogias

interessantes, ao passo que um estudo profundo do problema embotará a mente”, afirma

Platt. Isso é verdade até para assuntos que parecem totalmente não relacionados, como

quando Nikola Tesla em sua biografia escreve que teve a inspiração para o seu motor de

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indução ao relembrar certo trecho do poema Fausto de Goethe 2.

2o Estágio – Incubação

Ao estágio de acumulação sucede-se o estágio de incubação, que é caracterizado como

uma espécie de “digestão mental”, onde são assimilados os fatos acumulados no estágio

anterior. Neste estágio a mente se aplica especificamente aos informes do problema em

questão, que foram alterados e influenciados de modo geral pela acumulação de toda uma

existência. A maior parte da atividade mental neste período é inconsciente, pois a medida

que coletamos informes a mente já começa a se debruçar sobre eles, não sendo de forma

alguma necessário terminar a coleta dos informes para começar uma meditação serena.

Contudo, nossa mente é limitada, e só consegue dar a devida atenção à uma coisa de

cada vez, podendo focar de forma demasiada em um ponto e ignorando outros assuntos

relacionados que poderiam dar andamento à investigação; ou focar em coisas marginais e

não importantes na resolução do problema.

Afim de evitar tais situações e tirar um melhor proveito de nossas mentes nos limites das

percepções, ou além delas, seguem algumas condições:

Primeiro: Um grande interesse no problema e o desejo de solucioná-lo. Isso proporciona à

nossa mente o impulso necessário na direção do problema. Além disso, o problema deve

ser bem formulado.

Segundo: Ausência de outros problemas que possam atrapalhar o problema original. Estar

absorvido pela tarefa ao ponto de o subconsciente voltar-se a ela com frequência.

Terceiro: A mente deve ter armazenado um grande número de informes relativos ao as-

sunto.

Quarto: Material armazenado na mente de forma sistemática, para ser bem assimilado

e ter utilidade. Uma massa de dados sem catalogação é inútil. Melhor seria dispor de

poucos fatos bem ordenados.

Quinto: Quem está investigando, ter prazer em tratar do assunto e sentir-se livre de

quaisquer interrupções.

3o Estágio – Inspiração

Após cumpridos os dois primeiros estágios, inicialmente dedicando um estudo demorado

a respeito do problema (Acumulação), e depois tendo sido o problema maduramente2TESLA, Nikola. Minhas invenções: a autobiografia de Nikola Tesla. São Paulo: Editora Unesp, 2012. 116

p.

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apreciado pela mente (Incubação), chega-se a um momento em que deve-se escolher uma

possível tentativa de resolução. Eis o momento de formular uma ou mais hipóteses, aban-

donando temporariamente outras maneiras possíveis de abordar o estudo que pareçam

menos promissoras.

Neste estágio é importante que haja condições favoráveis para que a inspiração ou o

lampejo de um ideia aconteça, fruto dos resultados da Acumulação e Incubação. Platt

destaca que em um estudo realizado para saber sobre a ocorrência da inspiração, ou

da intuição científica, a um certo número de pesquisadores, a característica essencial

encontrada em seus relatos foi o espairecimento agradável, livre de interrupção mental.

“Uma vez destacado pela inspiração um aspecto promissor, é ele enquadrado numa hipó-

tese e testado no curso do estudo”, afirma Platt.

4o Estágio – Verificação

Este estágio corresponde à verificação das hipóteses, levantadas no estágio anterior, e à

retirada de conclusões. A partir do momento em que se apresenta uma solução em parti-

cular, pode-se estudá-la de forma crítica, e daí, consequentemente, verificá-la, modificá-la

ou abandoná-la. No campo das ciências físicas isso é feito através de um experimento

em laboratório; já no campo da produção de informações isso é feito através da busca de

fatos adicionais e cruciais, e também através de “experiências mentais”. Nestas, fazemos

perguntas a nós mesmos, tais como:

– Admitindo que nossa solução esteja certa, que evidências podemos encontrar?

– Que outras condições devem existir?

– Essas condições são possíveis, ou prováveis?

– É este o quadro geral que se deveria formar de acordo com as condições conhecidas,

com o bom senso e as experiências anteriores?

É importante notar que se uma solução nova levar a resultados aparentemente bizarros, isso

exige, apenas, uma maior cautela, não havendo motivos para descartá-la sumariamente.

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Figura 3.2: Os Quatro Estágios do Pensamento Criador em relação às Sete Fases da Produção

de Informações.

3.2 Futuribles

Bertrand de Jouvenel afirma que quando falamos dos feitos passados e futuros nas línguas

ocidentais modernas, os diferenciamos apenas pela posição no tempo, relativamente ao momento

em que se fala. Diferenciá-los dessa forma lhes confere o mesmo caráter substancial. O espírito

fica melhor servido pelo contraste mais enérgico da língua latina: facta e futura.

Essas palavras, “passado” e “futuro”, não se originam do mesmo verbo. A palavra “passado”

se origina do verbo “fazer”, do latim: facere, factum, facta; já a palavra “futuro” vem do verbo

“ser”, do latim: esse, futurum, futura. Portanto, se o acontecimento passado vem do verbo

“fazer”, somente ele é um “feito” consumado, terminado e formado. Na língua latina, o que não

pertence ao “já feito” se opõe ao “não feito”, como pode-se observar pelos opostos: perfectum –

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infectum. Tudo que nas línguas ocidentais não é “feito passado” é designado na língua latina

como infectum, pertencendo à esfera do “não feito”.

Esse contraste, tão bem evidenciado no latim, revela algo sobre a natureza do porvir: com

relação ao passado, a vontade do homem é inútil, sua liberdade nula e o seu poder inexistente,

pois a partir do momento em que alguma coisa entra no domínio da existência não há como

fazer com que ela deixe de ter existido. Isso está alheio à vontade humana, e resta apenas

encarar o fato ou cair no abismo da mentira e manipulação. Já com relação ao futuro, para o

homem como agente, é um domínio de liberdade e poder; e para o homem enquanto conhecedor,

é um domínio de incerteza.

Os facta, isto é, as coisas que já adentraram a esfera do ser, servem ao espírito como matéria-

prima a ser transformada em estimações dos futura. Desse modo, uma má investigação dos facta

consequentemente levará a um raciocínio errado em estimações futuras, pois o que só pode ser

objeto real de conhecimento é o que se diz respeito ao passado, mas as informações que mais

interessam ao homem são aquelas que apontam para o futuro.

Afim de evitar a ilusão de que existe uma “ciência do futuro”, Jouvenel elimina do vocabulá-

rio o termo futurologia, e adota o termo conjectura, que, segundo ele, está mais de acordo com o

processo de construção intelectual que visa a criação de um futuro verossímil através da imagi-

nação e derivado de estados presentes mais ou menos conhecidos. Essa questão do vocabulário

é importante, e ainda mais quando se trata de um terreno tão desconhecido quanto o futuro.

Isso já gerou muita polêmica em outras épocas3, e continua a gerar ainda hoje. Por isso Jou-

venel afirma que “uma mensagem de um homem para um homem não pode ser compreendida,

senão na medida em que ambos tenham um léxico em comum”. E também acrescenta que “toda

representação intelectual de uma realidade é fundamental e necessariamente inadequada; mas

que, não obstante, é indispensável representar as coisas para delas falar, e que, quanto mais a

representação for correta, mais a linguagem será facilitada”.

Foi com esse espírito que Jouvenel cunhou o termo futuribles (adaptado para o português

como futuríveis), escolhido para designar o empreendimento intelectual orientado para o porvir,

em que, não podendo abranger os futura, encara tão somente os “futuros possíveis”. Em suas

próprias palavras: “um futurible é um descendente do presente que comporta uma genealogia”.3V. Seção 2.2.2: A Polêmica das Questões Futuras

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3.2.1 Definições

No intuito de formar um vocabulário comum e no esforço de que a mensagem proferida neste

trabalho chegue ao leitor o mais perto possível de como ela foi concebida, é necessário apresentar

algumas definições, mostrando o modo e o sentido com que certas palavras são utilizadas por

Jouvenel e que também são utilizadas na descrição deste trabalho.

Comecemos por “ficção”, que aqui será utilizada para denotar o que é imaginado e literal-

mente modelado. A ficção tem uma importância capital, pois toda vontade se direciona a um

objeto, e o objeto da vontade no homem nada mais é do que uma ficção do espírito que ele

tenta transformar em realidade. O termo “ficção” não será encarado neste trabalho como uma

mera fantasia, mas sim como um “desígnio”, do inglês “design”, que por sua vez vem de “sig-

num”, imagem. Imagem que é formada no espírito do homem, e que enquanto for contemplada

e subsistir em seu interior, será o princípio de suas ações. E por “ação” consideremos toda

conduta que não é necessariamente resultante de pressões exteriores exercidas sobre o sujeito

que a pratica.

O porvir imaginado exerce uma atração tão forte no homem que determina suas ações

presentes. A imagem criada em sua mente é lançada à frente, como está muito bem designado

na palavra “projeto”, que vem de pro-jacio (do latim, pro, “diante de”, “adiante”; e jacio, “lançar”,

“jogar”. “Projetar é, pois, jogar alguma coisa no tempo futuro”, afirma Jouvenel; e as chances

da realização de um projeto são determinadas pela força da “intenção” do sujeito, ou seja,

a capacidade de esforçar-se em seguir na direção de um objetivo a ser alcançado (a palavra

“intenção” vem de in-tendere, “estender”, “estender-se”, “esforçar-se”).

Dadas essas definições, é importante salientar os quatro pontos que permeiam o projeto

pessoal de qualquer indivíduo:

1o) Sem representação não ocorre nenhuma ação, apenas reações;

2o) A ação contínua, sistemática, tende a validar uma representação projetada no porvir;

3o) A afirmação de um futuro vale na proporção do vigor da intenção;

4o) O homem que age com a firme intenção de realizar seu projeto é um criador do futuro.

Ao realizar um projeto, todo indivíduo se atem a um quadro de certezas subjetivas que lhe

servem como índice de orientação. “São aspectos do futuro que o sujeito trata como se fossem

conhecidos, sem colocá-los em dúvida, baseando neles seus cálculos e sua ação”, a esse aspectos

Jovenel denomina-os de pré-conhecidos. A palavra “certeza”, quando utilizada no decorrer deste

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trabalho, se refere a uma certeza do sujeito, que pode ser desmentida pelos acontecimentos

futuros. Para Jouvenel isso não é um negação de uma certeza objetiva, mas por falta de melhor

qualificativo, terá que ser entendido aqui sempre como uma certeza subjetiva, isto é, a do ponto

de vista do sujeito.

Para nós, enquanto indivíduos, existem dois tipos de “certezas” com as quais podemos lidar.

“Em todos os casos em que nossas certezas sobre o futuro são caracteres inerentes a uma ordem

a qual temos confiança”, trataremos aqui de certezas estruturais, que podem advir tanto da

ordem natural das coisas ou da ordem social do meio; já nos casos celebrados especificamente

pelo indivíduo em que “o acontecimento oposto ao esperado não é levado em consideração”,

trataremos de certezas suficientes, ou de garantias contratuais, as quais advêm basicamente da

ordem moral. O esquema geral do que foi descrito sobre as certezas do sujeito pode ser visto

na Figura 3.3.

Figura 3.3: Esquema Geral das Certezas do Sujeito

Para realizar a conjectura, ou melhor, a prospecção futura, no sentido de buscar e extrair

do vasto campo das informações aqueles dados que possuem maior valor de possibilidade futura

em relação aos demais, tem-se que observar as ideias do sujeito e os meios de ação que o sujeito

possui para colocar suas ideias em prática, e como essas ideias se relacionam com as certezas

estruturais e certezas suficientes que permeiam a vida do sujeito.

Para compreender melhor de onde vieram suas ideias e de como o sujeito as transformam

em realidade, é importante entender um pouco como funciona a dinâmica do conhecimento e

do poder. Analisando os aspectos dessa dinâmica, Jouvenel afirma que “para uma determinada

pessoa, que seja ao mesmo tempo sujeito que conhece e que age, o futuro divide-se em futuro

dominante e futuro dominável :

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• Futuro dominante: É aquele sobre o qual o sujeito que conhece e que age não tem nenhum

poder de mudar.

• Futuro dominável : É aquele sobre o qual o sujeito que conhece e que age tem poder de

mudar.

Nas relações humanas existem diferentes dimensões e diferentes estágios de poder. O futuro

que para um indivíduo é dominante, pode ser dominável para um agente mais poderoso que

se encontra em outro estágio na escala do poder, e o conhecimento recebido por esse agente a

respeito de um acontecimento futuro, incita, frequentemente, dependendo dos meios de inter-

venção que esse agente possui, a agir a favor ou contra a realização desse acontecimento futuro.

Dessa forma pode-se notar a inter-relação entre conhecimento e poder.

A previsão, vista como esforço de antecipação de acontecimentos específicos, oferece esse

“conhecimento” ao agente, que só poderá agir se tiver ciência de uma representação futura,

conforme afirma o 1o ponto do projeto pessoal de qualquer indivíduo: “sem representação não

ocorre nenhuma ação, apenas reações”. Ciente disso, Jouvenel distingue três tipos de previsões,

e de que forma elas são úteis aos agentes que exercem o poder:

• Previsão de Linha de Futuro: É a previsão de um curso tido por natural.

• Previsão de Conselho: Ocasião fornecida pela existência de “um poder” e que apresenta,

em leque, os diferentes futuros possíveis, ou “futuríveis”, segundo os diferentes empregos

daquele poder.

• Previsão de Série: Previsão de uma série de futuríveis, que podem ser:

– Interior: Proposta pelo especialista.

– Exterior: Proposta pelo observador.

O esquema geral dos tipos de previsão pode ser visto na Figura 3.4.

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Figura 3.4: Tipos de Previsão

É importante ressaltar que “o que aparece como sendo uma linha de futuro para um sujeito

de certo grau de poder, pode ser convertido num leque de futuríveis para outra pessoa num

estágio superior de potência”: a previsão de conselho é o tipo de previsão que é útil a todo

o poder que age, seja ele grande ou pequeno, e a previsão de linha de futuro, interfere na

elaboração da previsão de conselho sob a dupla forma de futuro dominável e futuro dominante,

isto é, diante do curso natural das coisas, resta saber ao sujeito que age se ele possui os meios

de ação para modificar ou não essa linha de futuro.

3.2.2 Maneiras de Pensar o Futuro

Segundo Jouvenel, ao se pensar o futuro o sujeito pode fazê-lo a partir de três atitudes

diferentes:

1) Primus : “Tal é o processo, tal o resultado. Tomai consciência dele, e estancai o fator

determinante, pois que sois senhores.”

2) Secundus : “Tal é o processo, tal o resultado; e parece-me pouco provável que os homens

façam o que devem fazer para impedi-lo.”

3) Tercius : “Tal é o processo, e é inerente ao processo que as exortações de Primus não

afetem o inevitável resultado.”

A exortação de Primus surge como uma advertência, e sugere uma conduta a ser seguida

para evitar a linha de futuro que propôs; já Secundus, apesar de manter uma predição condi-

cional, apresenta uma previsão das chances de realização de tal predição, propondo toda uma

gama de possibilidades futuras; e Tercius apresenta uma única linha de futuro, e nada mais do

que isso.

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É natural do homem preferir a predição única às previsões múltiplas. A concepção de um

futuro possível custa um trabalho intelectual intenso, e não temos o costume de recomeçá-la

várias vezes, e ainda mais se estivermos trabalhando em várias, conforme afirma Jouvenel:

“Primeiramente abrir o leque de possibilidades, e em seguida fechá-lo, passando da previsão

múltipla ao prognóstico mais provável, ou mesmo à predição, é um trabalho que não nos é

natural”.

Ao invés disso, Jouvenel sugere que o mais comum seria imaginar uma sequência futura ao

estado atual, e depois fazer o esforço para imaginar outras possíveis, que desvalorizem a pri-

meira, para livrarmo-nos da possessão adquirida pelo investimento feito na primeira sequência

futura. “Isso nos repugna, mas seria muito saudável fazê-lo”, adiciona Jouvenel.

Para o desenvolvimento de um sequência futura, ou de um futuro possível, implica reconhe-

cer, em princípio, que existem costumes observáveis nessa matéria, e que examiná-los é condição

sine qua non para o seu aperfeiçoamento. E eis aí que surgem dois conceitos importantes: o

de processo e o de intervenção. Esses dois conceitos aparecem habitualmente em nossa mente

revelando um contraste, o qual podemos observar a partir da acepção geral de ambos:

• Processo: O fenômeno observado desenvolve-se por um concurso complexo de ações, for-

muladas por uma multidão de agentes, que não visam de forma alguma produzir o fenô-

meno.

• Intervenção: O fenômeno observado é o efeito desejado pela ação consciente de um agente.

A intervenção tem uma causa final, ou seja, existe uma razão, um propósito, uma finalidade

do fenômeno existir; já o processo só tem causas eficientes, isto é, o fenômeno considerado é

determinado diretamente pelos agentes que o produzem. “Assim, o processo fornece a ocasião

do evento, mas não determina a sua natureza”, afirma Jouvenel, dando o seguinte exemplo:

“[...] No mesmo momento, dois grandes países industriais atingem o mesmo ápice de

depressão econômica e de desemprego. No mesmo mês, tanto num quanto noutro,

produz-se o evento de um governo novo que se atira vigorosamente contra o problema

do desemprego. Num governo e noutro, não somente é desenvolvida a atividade do

Estado em matéria econômica, mas também propõem-se mudanças constitucionais

(como o reforçamento do poder central em detrimento dos poderes locais), próprios

a dar ao Estado uma postura durável nas diretrizes econômicas. Assim, os papéis

dos dois homens parecem obedecer a um modelo de retroação, não só em relação

ao processo quente da crise atuante, mas também em relação a um processo frio de

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desenvolvimento econômico a longo prazo, em que se pode supor maior atuação dos

poderes públicos.”

O semelhante processo pelo qual passaram ambos os países não revela a natureza do evento

nem as intenções reais dos seus líderes, pois o processo descrito acima se passou em janeiro de

1933, e os nomes dos líderes dessas nações eram Roosevelt e Hitler!

Jouvenel conclui que “não se poderiam prever as ações de Hitler estudando o processo, mas

sim escutando seus discursos”. Porém não se pode negligenciar a compreensão do processo

a pretexto de que ele não nos dará meios para uma previsão completa. Essa compreensão

é indispensável para a construção intelectual de uma sequência futura, principalmente para

a previsão de conselho. Só através da compreensão do processo pode haver uma intervenção

do agente do poder, que será eficaz se tiver as mesmas dimensões do processo. O estudo do

processo não fornece tudo, mas é condição prévia e necessária para dar seguimento a uma

boa prospecção futura. Ganha-se muito intelectualmente na compreensão do processo, mas

perde-se muito na tentativa de justificar toda a história e englobar todas as ações humanas

num único processo. É daí que há um afastamento da realidade e surgem as ideologias. O que

é importante na elaboração dos futuribles é “encontrar pontos de apoio para a ação desejada,

pelos quais poderemos orientar o curso das coisas, por exemplo, mais numa direção do que

na outra. Portanto, o contraste proposto pelo senso comum entre processo e ação é salutar”,

afirma Jouvenel.

Na sequência estão listadas as etapas na elaboração dos futuribles :

1) Identificar os processos dominantes, apresentando os aspectos das tendências fortes e

pesadas.

2) Fixar os pontos de apoio (pré-conhecidos) para a determinação de um quadro de repre-

sentações futuras.

3) Confrontá-los entre si e com as certezas estruturais subjetivas.

4) Expor a coerência de tais pontos (pré-conhecidos).

5) Estabelecer os cursos, os reflexos e as velocidades.

6) Criar a cena futura.

7) Realizar conjectura e decisão.

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A partir do momento em que os pontos de apoio, ou melhor, os pré-conhecidos estão bem

fixados e a coerência entre eles bem ajustada, passa-se a estabelecer os cursos, os reflexos e as

velocidades. Os cursos são como correntes que apresentam a tendência de uma cena presente se

transformar em tal cena futura; os reflexos são os encadeamentos de previsões sucessivas, onde

uma certa previsão é considerada com base em uma previsão anterior da qual se tem maior

confiança de que irá acontecer; e as velocidades são os tempos ou as datas que tais previsões se

realizarão.

Na sexta etapa cria-se a cena futura baseada em todas as relações entre os fenômenos

examinados nas etapas anteriores, considerandos seus cursos, reflexos e velocidades. Na próxima

etapa, a última, realiza-se a conjectura, ou a conclusão final, que se tem baseada na cena

construída e nas possibilidades levantadas. A decisão, isto é, a escolha de um certo curso de

acontecimentos baseada em algum critério definido, é necessária dependendo do objetivo pelo

qual se está realizando a conjectura, como veremos a seguir, onde são examinadas as conjecturas

segundo a incidência sobre as ações:

• Conjectura ad hoc: Toda conjectura dirigida a um agente definido, em vista de uma

decisão em curso, e que deve, se acreditada, alterar a decisão. Um exemplo em que é

aplicada esse tipo de conjectura é no domínio dos negócios, onde só se produz a conjectura

sob requisição.

• Conjectura das consequências : Quando o “previsionista” responde a uma pergunta precisa,

proposta pelo agente que decide. Também chamada de previsão “ancilar”, que vem de

ancilla, escrava, serva, utilizada aqui no sentido de servil. Um exemplo desse tipo de

conjectura é quando uma firma ou empresa deseja realizar um prognóstico sobre uma área

específica de atuação no mercado. A previsão das consequências é sempre mais fácil ao

observador desinteressado, o que constitui um forte argumento em favor de uma exposição

livre da decisão, proposta a uma crítica exercida do ponto de vista das consequências.

• Conjectura argumentativa: Em toda a ocasião de conflito entre simpatizantes e oponentes

de uma certa ação, o “previsionista” que formula uma visão das consequências da referida

ação “faz o jogo” de uma das partes, pouco importando sua intenção de neutralidade,

pouco importando que se limite a indicar as consequências, sem avaliá-las. Entre os

exemplos pode-se citar as ações de partidos políticos e de lobistas.

• Conjectura não ligada a uma ocasião de decidir : A conjectura deve “descobrir” o problema

e o propor. Sendo um problema que não está proposto e não figura na ordem do dia.

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Deve chamar atenção a desenvolvimentos que não estão em foco, mas que deviam estar.

3.2.3 O Fórum Previsional

No domínio dos estudos do futuro o desconhecimento de um valor pode facilmente levá-lo à

deterioração, de modo que uma boa previsão pode ser ignorada por inúmeros motivos: aquele

que refinou sua previsão pode terminar por vulgarizá-la, uma previsão pode ser encarada como

brincadeira e inibir o autor ao ponto de calá-lo, e aquele que começou por dizer coisas válidas

termina por contar absurdos.

A solução que Jouvenel apresenta para mitigar essas ocorrências é o que ele chama de fórum

previsional : uma espécie de “mercado-livre de previsões” onde os indivíduos podem trazer suas

previsões e expô-las. É notório que nessa “bolsa de valores previsionais” algumas previsões

chamarão mais atenção do que outras, porém, afirma Jouvenel, que “a esse simples estado de

comparação, se sucederá um estado de melhoramento, por crítica comparativa”. Os “valores

previsionais” mais cotados geralmente se referirão a aspectos e preocupações mais permanentes,

desse modo, por exemplo, o “futuro da educação” sempre estará entre tais valores. Jouvenel

ainda atenta para o fato de “como é importante que esse ‘mercado de previsões’ comporte

uma diversidade de ofertas concorrentes. O monopólio, nessa matéria, seria particularmente

perigoso”.

Na sociedade moderna a ideia de mudança é central. Tudo parece estar fadado a ser modifi-

cado, sendo, desse modo, objeto de conjectura. É desse modo que a previsibilidade assume uma

percepção nova, pois não se espera apenas que a mudança aconteça, mas que seja rápida e con-

tínua. A solução geralmente consiste no governo fixar um estado futuro ao qual se deseja chegar

e praticar todas ações para que esse futuro se realize, seja por decisão própria ou influenciados

por grandes corporações que possuem um interesse particular. Assim, existe o que Jouvenel

afirma ser “o princípio da perfeição da previsibilidade ligado à perfeição da não-liberdade”. Em-

bora a perfeição da previsibilidade seja impossível de ser atingida, a sedução que essa perfeição

exerce no homem acaba por garantir, isso sim, por inúmeras tentativas frustradas de controle,

um modelo de perda de liberdade. Para Jouvenel, “é uma aberração do nosso tempo que tudo o

que seja de interesse geral deva ser feito pelo Estado”, e ainda declara que não é difícil enunciar

um meio para livrar-se de tal servidão, porém a sua realização é que o é:

“O meio, é que todas as intenções prenhes de ações futuras, sejam declaradas, per-

mitindo as comparações de suas compatibilidades e incompatibilidades, levando à

discussão das modificações necessárias para operar a conciliação: as intenções de-

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verão ser flexíveis.”

É desse espírito que se serve o fórum previsional, mostrando a necessidade de se conhecer

as situações que ainda estão em formação enquanto não tenham tomado uma forma imperi-

osamente definitiva, pois, uma vez provada a imprevidência, cair-se-á facilmente no império

da necessidade. Nas palavras de Jouvenel: “sem atividade previsional, não há efetivamente

liberdade de decisão”.

3.3 Integração dos Métodos

Estabelecidos o vocabulário e os conceitos nas duas seções anteriores, agora podemos tratar

das decisões tomadas e de como foram integrados os métodos de Platt e Jouvenel na condução

do trabalho de prospecção futura.

Este trabalho apresenta, segundo o método dos futuribles, uma prospecção futura do tipo

previsão de série exterior, onde uma série de futuros possíveis é proposta por um observador. A

atitude adotada é a de Secundus4, no sentido de que os futuros possíveis apresentados tem uma

certa probabilidade de acontecer, porém, sem afirmar categoricamente que são inevitáveis, pois

neste trabalho é realizada uma conjectura não ligada a uma ocasião de decidir, com o intuito

de colocar ideias em circulação, prontas a participar de um fórum previsional.

A Figura 3.5 mostra o esquema metodológico geral aplicado neste trabalho. Tanto as linhas

de realimentação do fluxograma das Sete Fases da Produção de Informações (Figura 3.1),

quanto as áreas circulares de recobrimento no tempo dos Quatro Estágios do Pensamento

Criador (Figura 3.2), se conservam. Porém, não foram colocadas na Figura 3.5 por motivos de

simplificação, pois deixariam a imagem muito complexa, e desse modo, menos compreensível.4V. seção 3.2.2: Maneiras de Pensar o Futuro

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Figura 3.5: Esquema geral da combinação dos métodos de Platt e Jouvenel.

O empreendimento intelectual foi levado em três linhas distintas e complementares, que

visam atingir o objetivo de um compreensão mais ampla do tema analisado. Inicialmente foi

feito um Levantamento Geral5 nas três vertentes, no intuito de realizar uma breve investigação

do passado, uma análise do presente e uma pesquisa sobre métodos de estudos do futuro.

Essas três linhas de pesquisa foram feitas paralelamente, sem seguir uma ordem específica, até

o momento em que uma delas acabava por influenciar no procedimento das outras, e desse

modo o trabalho foi tomando corpo e direção. Por exemplo, no momento em que foi definido

o método de prospecção futura, a maneira de coletar, organizar e interpretar os informes foi

adequado para o método escolhido. Como foi dito, as realimentações e recobrimento no tempo

dos estágios do pensamento não foram ignorados, na verdade eles fizeram parte do processo

natural de elaboração do trabalho.

Na sequência, as três linhas de pesquisa estão mais detalhadas:5O Método Científico Aplicado às Informações sugerido por Platt foi definido em um Levantamento Geral

anterior, na fase de planejamento do trabalho, por se revelar um método eficaz na condução de uma pesquisa

em produção de informações [25].

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• Investigação do passado: Esta investigação divide-se em duas partes:

– História da Educação: Após um Levantamento Geral das obras que tratavam do

tema, foram selecionadas aquelas que cobriam de maneira objetiva, porém não exaus-

tiva, diversas épocas da história da educação ocidental. A Coleta de Informes foi

feita em cima dessas obras. Obras de filosofia, sociologia e engenharia foram, em

parte, utilizadas como auxílio na Interpretação dos Informes e no preenchimento de

certas lacunas que não foram supridas pelas obras históricas. Os resultados obti-

dos desta pesquisa estão dispersos por várias seções deste trabalho, estando a maior

parte concentrada na seção 2.1 – A Educação e a Tecnologia: Uma Breve Análise

Histórica.

– História da Problemática do Futuro: A pesquisa sobre a história do interesse do

homem pelos acontecimentos futuros foi conduzida do mesmo modo que a da história

da educação. Porém, ao invés da maior parte da Coleta de Informes advir de livros,

como foi o caso da história da educação, ela foi mais diversificada, sendo utilizado

como fontes livros, artigos acadêmicos, dicionários e sites. Os resultados, em sua

maior parte, formam a seção 2.2 – Da Previsão à Prospecção.

• Análise do presente: O estudo da situação presente se deu através de artigos acadêmicos

e notícias colhidas em diversos sites. Essas fontes são do tipo que possuem um conteúdo

mais atual e de publicação mais rápida, se comparadas, por exemplo, com a publicação de

livros. Foi levado mais em consideração o fato bruto descrito na notícia do que qualquer

tipo de interpretação ou especulação do autor da mesma, pois a Interpretação dos Infor-

mes se deu com o auxílio de obras de especialistas das ciências sociais e humanas, como

indicado por Platt e Jouvenel, dentre elas estão obras de filosofia, antropologia, psicologia

educacional e metafísica. Tais obras foram selecionadas pela competências e capacidade

de visão futura de seus autores. Notas de rodapés no decorrer deste trabalho indicam os

locais onde foram colhidas as notícias utilizadas. Livros e artigos acadêmicos utilizados

aparecem nas referências, como de costume. Esta vertente do trabalho compõe, em sua

maior parte, o capítulo 4 e o início do capítulo 5.

• Estudos do futuro: Esta parte tratou, inicialmente, de buscar diversos métodos de pros-

pecção futura, vendo qual deles melhor se adequava ao tema do futuro da educação. Por

buscar criar melhor compreensão do mundo contemporâneo, explorar as evoluções pos-

síveis, os fatores relacionados e as estratégias que devem ser adotadas [27], o método

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dos futuribles se apresentou o mais adequado para tratar de um tema tão multifacetado

como a educação. Na Figura 3.5 a região da linha pontilhada mostra a localização do

método dos futuribles em relação ao esquema geral do trabalho. As Definições formam

a seção 3.2.1, a Formulação de Hipóteses estão localizadas no capítulo 5 e as Conclusões

no capítulo 6.

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Capítulo 4

Facta

Este capítulo contém os fatos recolhidos no esforço de compreensão do estado atual e do

reconhecimento de tendências fortes e processos dominantes na área da educação. Etapa impor-

tante e necessária na realização dos futuribles, pois posteriormente a cena futura será projetada

levando em conta o que foi descrito neste capítulo.

4.1 Questões Eviternas

Existem algumas questões que desde o momento em que foram propostas geraram grandes

debates, percorreram séculos e ainda os especialistas no assunto não chegaram a um consenso

razoável sobre elas, e nem parecem estarem próximo disso. Talvez essas questões nem tenham

uma possível resolução, talvez a tensão que elas causam, gerando discussões a cada geração,

seja sua real e grande utilidade. Chamo essas questões de “questões eviternas”.

Essas questões são importantes neste trabalho porque de alguma forma os educadores no

futuro irão refazê-las em algum momento. Se não as fizerem seria o fim da educação e o princípio

do adestramento, e aí não haveria futuro algum do que imaginar em termos educacionais.

Analisando a história da educação podemos identificar duas dessas questões, e sendo a

Grécia o berço da educação ocidental, não poderiam ter vindo de outro lugar senão de lá. A

primeira dessas questões, que não significa que esteja em ordem cronológica do momento em

que foi proposta em relação à outra, foi feita por Platão, e questiona o seguinte:

1a Questão: “A educação deve permanecer basicamente artística e poética ou deve

tornar-se científica?” [19]

Essa questão envolve outros detalhes que estão embutidos nela, como a antinomia entre a

investigação científica e a educação, descrita por Marrou nos seguintes termos:

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“Se escravizamos um jovem espírito à Ciência, se o tratamos como operário a ser-

viço dos progressos desta, sua educação sofre com isso, tornando-se estreita e de

curta visão. Mas, se por outro lado, estamos bastante preocupados em dar-lhe uma

formação aberta para a vida, organizada em função da sua finalidade humana, sua

cultura não será superficial e de vã aparência?” [Ibid.]

A segunda questão foi rememorada por Ransom Giles, na afirmação de que ainda hoje vigora

o conflito que caracterizava a civilização ateniense:

2a Questão: “O processo educativo é, primordialmente, conservação do passado,

ou implica essencialmente um processo de criatividade?” [6]

Para o mundo atual que se considera “científico” e busca sempre a inovação, essas questões

podem parecer um tanto ultrapassadas. Mas enganam-se, pois justamente a falta desse debate

nos tempos atuais fizeram com que a balança pendesse para um lado, gerando uma crise no

outro. Em relação à primeira questão, podemos alegar o que disse Hugo Von Hofmannsthal:

“Nada está na realidade política de um país que não esteja antes na sua literatura”. Com uma

literatura fragilizada (no caso do Brasil, quase morta), é praticamente impossível entender a

sociedade em que se vive, tornando tudo uma confusão geral onde ninguém consegue compre-

ender ninguém e tudo vira uma questão de torcer para um lado: a literatura, denominador

comum que faria parte do imaginário popular, foi suprimida.

Em relação à segunda questão, como contrapartida ao pensamento inovador dos tempos

atuais, podemos citar George Orwell, que em 1984 disse:

“Quem controla o passado, controla o futuro. Quem controla o presente, controla o

passado.”

Sem conhecer o nosso passado podemos acatar qualquer história que nos é contada e fa-

cilmente somos impelidos a pensar que estamos inovando quando na verdade estamos apenas

renovando algo do passado, incluindo os erros.

4.2 As Certezas Estruturais

Esta seção trata da identificação de certezas estruturais, apresentando seus principais as-

pectos e concepções. Neste trabalho foram identificadas duas delas: o caráter institucional da

escola e a ritualização do progresso.

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4.2.1 O Caráter Institucional da Escola

A escola pode ser definida como “um processo que requer assistência de tempo integral

a um currículo obrigatório, em certa idade e com presença de um professor” [12]. Embora

quando criada em Antenas a escola tivesse papel importante na democratização da educação,

ao mesmo tempo abaixou o padrão de qualidade do que era ensinado. Isso naturalmente

acontece com qualquer coisa que passe por um processo de coletivização. À época, a família

grega não confiava totalmente a educação de sua criança ao professor da escola, por isso existia

duas figuras diferentes: a do pedagogo e a do mestre1. Enquanto um educava, o outro apenas

ensinava determinadas matérias. Acontece que, de lá pra cá, as coisas mudaram muito. Hoje em

dia as famílias possuem demasiada confiança nas instituições escolares promovidas e reguladas

pelo Estado, seja particular ou privada, pois é o Estado que compõe um currículo obrigatório

que é imposto a todas elas.

As pessoas atualmente acreditam que a escola lhe dará uma oportunidade de ascensão social,

e estão certas; pois a obrigatoriedade escolar imposta pelo Estado faz com que um autodidata,

por exemplo, enfrente uma série de dificuldades para ser contratado em algum lugar; porém,

confundir educação com ascensão social é uma característica do nosso tempo. Daí podemos

observar que a educação de hoje possui um caráter empregatício, onde o sistema educacional

serve de escalada social. Illich faz o seguinte apontamento:

“A igualdade de oportunidades na educação é meta desejável e realizável, mas

confundi-la com obrigatoriedade escolar é confundir salvação com igreja. A escola

tornou-se a religião universal do proletariado modernizado, e faz promessas férteis

de salvação aos pobres da era tecnológica. O Estado-nação adotou-a, moldando

todos os cidadãos em um currículo hierarquizado, à base de diplomas sucessivos,

algo parecido com os ritos de iniciação e promoções hieráticas de outrora. O Es-

tado moderno assumiu a obrigação de impor os ditames de seus educadores por

meio de inspetores bem intencionados e de exigências empregatícias; mais ou menos

como o fizeram os reis espanhóis que impunham os ditames de seus teólogos pelos

conquistadores e pela Inquisição.” [Ibid.]

Illich formulou um espectro institucional para classificar as instituições (ver Figura 4.1).

No extremo direito do espectro ficam as instituições que ele chama de “manipulativas”, onde o

serviço é manipulação imposta e o cliente é vítima da propaganda, doutrinação e punição. No1V. Seção 2.1.1: A Rispidez da Tabula e do Stylus Grego

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extremo esquerdo ficam as instituições que ele denominou de “conviviais”, onde o serviço é uma

oportunidade ampliada dentro de limites definidos, enquanto o cliente permanece um agente

livre.

Figura 4.1: Espectro Institucional.

As instituições mais à direita tendem a aumentar as doses de tratamento quando menores

quantidades não alcançam os resultados esperados. No caso da escola, perante um mau resul-

tado, a culpa é sempre falta de investimento, então a solução é aumentar a dose, oferecendo

“mais educação”; a forma como o sistema funciona é pouco questionada. Já as instituições mais

à esquerda são auto-limitativas, possui um objetivo que vai além do seu próprio uso repetido.

Normalmente uma pessoa vai ao cabeleireiro quando há necessidade de cortar seu cabelo; o

cabeleireiro não precisa fazer propaganda para isso, a clientela é atraída pelo contato pessoal

e pela qualidade de seus serviços. Ainda há na Figura 4.1 o exemplo de algumas instituições

que ao longo do tempo se deslocam no espectro, como no caso da força da lei, representada

outrora por um simples xerife que convivia próximo ao cliente, a transmutar-se em um FBI ou

Pentágono, um instituição altamente organizada e burocrática.

Para a sociedade atual, indo bem ou indo mal, a solução para a escola será sempre mais

escola. Illich chamou isso de concordância irracional:

“A concordância irracional hipnotiza os cúmplices que se comprometem numa ex-

ploração mutuamente conveniente e disciplinada. É a lógica gerada pelo compor-

tamento burocrático. E torna-se a lógica de uma sociedade que exige que os admi-

nistradores de suas instituições educacionais sejam publicamente responsáveis pela

modificação comportamental que produzem em seus clientes.” [Ibid.]

Feitas essas considerações, fica demonstrado que o caráter institucional da escola é uma

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certeza estrutural, e tem uma forte tendência de assim permanecer em um futuro de médio

prazo, a não ser que o Estado consiga outra forma de impor um currículo escolar que fomente

os seus interesses, enquanto a população possa responsabilizá-lo por isso.

Obviamente que existem alternativas à escola hoje em dia, a mais conhecida delas é o homes-

chooling, mas há uma certa resistência quanto a essa antiga prática nos dias atuais2. Embora

venha crescendo o número de famílias que praticam o homeschooling no Brasil3, desgostosos

com o ensino escolar, ainda há problemas legais a serem resolvidos. O número de famílias ainda

é muito pequeno perante todo a população, além disso é uma prática que exige certa dedicação

dos pais, o que não é viável para muitas famílias.

4.2.2 A Ritualização do Progresso

Outra característica marcante na sociedade presente é a crença no progresso garantido, ba-

seado principalmente na capacidade racional humana de resolução de problemas e na produção

de novas tecnologias. Isso parece tratar-se ainda da influência das utopias4 humanísticas do

século XVI e, como aponta Edgar Morin, existe hoje uma religião do progresso:

“Em nossas sociedades ocidentais, estão também presentes mitos, magia, religião,

inclusive o mito da razão providencial e uma religião do progresso. Começamos

a tornar-nos verdadeiramente racionais quando reconhecemos a racionalização até

em nossa racionalidade e reconhecemos os próprios mitos, entre os quais o mito de

nossa razão toda-poderosa e do progresso garantido.” [20]

É novamente uma confusão da sociedade contemporânea acreditar que o progresso tecnoló-

gico é o mesmo que o progresso humano, ou que os dois estão atrelados, ou melhor: que um leva

ao outro. Nada como o século XX para nos mostrar o quanto a vida humana foi desvalorizada

enquanto o progresso tecnológico se acelerava. Entretanto é ponto pacífico que o “progresso”,

de uma forma ou de outra, tem que acontecer. Georges Bernanos destacou essa diferença nos

seguintes termos:

“[...] o progresso já não está no homem, mas na técnica, no aperfeiçoamento dos mé-

todos capazes de propiciar uma utilização cada dia mais eficaz do material humano.”

[2]2https://www.dailysignal.com/2019/01/14/the-german-government-forcibly-removed-these-children-from-

their-parents-over-homeschooling/3https://www.gazetadopovo.com.br/educacao/educacao-domiciliar-ganha-forca-no-brasil-e-busca-

legalizacao-7wvulatmkslazdhwncstr7tco/4V. Seção 2.1.4: A Prensa Moderna, e a seção 2.2.2: A Polêmica das Questões Futuras

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A Revolução Industrial causou um metanoia na forma de como o homem era concebido

socialmente: o Homo sapiens foi reduzido a Homo economicus. Bernanos explica que, quer se

intitule capitalista, quer socialista, este mundo está fundado na concepção do homem como um

animal econômico, ideia compartilhada tanto pelos economistas ingleses do século XVIII como

por Marx e Lênin [Ibid.].

Para o Homo economicus tudo gira em torno da quantidade de produção e de consumo dos

bens produzidos, e esse fato não está apenas relacionado às indústrias de bens comuns. Segundo

Illich, o sistema educacional também faz parte dessa concepção econômica, e tem tendência de

transformar-se em um ciclo vicioso:

“Os programas escolares estão famintos de sempre mais instrução; mas, embora

a fome leve à absorção constante, jamais proporciona a alegria de conhecer algo

cabalmente. Cada matéria vem numa embalagem com a instrução de que se continue

a consumir uma «oferta» atrás da outra; a embalagem do ano anterior é sempre

obsoleta para o consumidor deste ano. O comércio dos livros didáticos cria esta

demanda. Os reformadores educacionais prometem a cada nova geração dar-lhe o

melhor e o mais recente. E o público está escolarizado para demandar o que eles

oferecem. [...]”

“Mas o crescimento concebido em termos de consumo sem fim – o eterno progresso

– nunca levará a maturidade. O compromisso com um incremento quantitativo

ilimitado vicia a possibilidade de desenvolvimento orgânico.” [12]

Considerando tudo o que foi exposto aqui, a ritualização do progresso se apresenta como

uma certeza estrutural bem instalada na sociedade atual, e de uma forma como nunca antes

vista. O progresso tecnológico incita ainda mais a essa certeza permanecer presente numa

sociedade futura mais tecnológica.

4.3 Os Três Triângulos

Aqui são apresentados três conceitos visando esclarecer alguns fatos, e que, curiosamente,

podem ser representados geometricamente na figura de triângulos. As três representações vão

da mais geral à mais pessoal: a primeira representação descreve um movimento cósmico que se

manifesta no domínio existencial; a segunda, demostra a relação triádica indivíduo ↔ sociedade

↔ espécie; e a terceira, representa a conexão onde acontece a aprendizagem. Esses triângulos

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são concêntricos e podem ser representados conforme aparecem na Figura 4.2. As ideias por

trás dessas representações geométricas serão desenvolvidas nas seções subsequentes:

Figura 4.2: Representação Geométrica dos Domínios Existencial, Humano e da Aprendizagem.

4.3.1 O Triângulo do Domínio Existencial

Essa representação geométrica foi descrita por René Guénon em seu livro La Règne de la

Quantité et les Signes de Temps para demonstrar um fenômeno que se manifesta no domínio

existencial do nosso mundo [10]. Ele parte do princípio da dualidade cósmica da qualidade e

da quantidade, que correspondem à forma e à matéria da metafísica de Aristóteles. Qualquer

manifestação possível no universo acontece a partir dessa dualidade, as quais são conhecidas

por serem complementares. Simplificando, se algo está no plano da existência, ele possui

necessariamente uma forma e uma matéria; no caso da descrição guénoniana, é o mesmo que

dizer que um ente se manifesta no universo com uma certa qualidade e em uma certa quantidade.

A partir dessa dualidade podemos considerar dois polos: um polo que contém sinteticamente

nele próprio todas as determinações qualitativas, ao qual Guénon denomina o polo essencial,

representando a unidade; e o outro polo que é representado pela quantidade pura, com uma

multiplicidade indefinida onde não há qualquer outra distinção que não seja a numérica en-

tre seus elementos, ao qual ele chama de polo substancial, representando a uniformidade. A

medida que as existências se distanciam do polo essencial (l’unité essentielle) tornam-se me-

nos qualitativas e mais quantitativas. Esse distanciamento gradual da unidade essencial pode

ser considerado sob dois pontos de vista: o da simultaneidade e o da sucessão. De um lado,

podemos simultaneamente classificar os seres manifestados determinando o grau em que se en-

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contram entre os polos, numa espécie de hierarquia. Por outro lado, podemos considerar uma

sucessão de acontecimentos do conjunto manifestado do início ao fim de um ciclo. É a este

segundo ponto de vista que Guénon se refere.

A representação geométrica desse domínio é mostrada na Figura 4.3, onde o pico é o polo

essencial, que é qualidade pura, enquanto que a base é o polo substancial, ou seja, a quantidade

pura, ilustrada pela multiplicidade dos pontos dessa base, em oposição ao ponto único que está

no pico. Se traçarmos linhas paralelas à base para representar os diferentes graus de distan-

ciamento – o que está ilustrado na figura pelas linhas pontilhadas – evidentemente notaremos

que a multiplicidade que simboliza o quantitativo será mais marcante conforme se distancia do

pico e se aproxima da base. Para que esta representação seja a mais exata possível, é necessá-

rio supor que a base está distante indefinidamente do pico, já que o domínio de que estamos

tratando é indefinido por si mesmo. Outra coisa que é importante indicar é que a base, ou

seja, a quantidade pura, jamais pode ser atingida dentro do curso do processo de manifestação,

embora este tenda sem cessar a se aproximar mais e mais da base, e que, a partir de um certo

nível, o pico, isto é, a unidade essencial ou a qualidade pura, seja de alguma forma perdido de

vista. Para Guénon, este corresponde precisamente ao estado atual do Ocidente.

Figura 4.3: Representação Geométrica do Domínio Existencial.

Para dar um exemplo específico seguindo o raciocínio do triângulo do domínio existencial,

tomemos o dinheiro, ou melhor, o sistema monetário. No início da civilização o comércio

era baseado no escambo, isto é, na troca direta de mercadorias. Estamos aqui em um ponto

muito próximo do polo essencial do triângulo, onde a qualidade das mercadorias era a essência

do negócio. Passado algum tempo, as primeiras moedas foram cunhadas. A partir daí as

mercadorias começaram a ser quantificadas através do dinheiro, porém, este ainda carregava

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consigo certo valor intrínseco conservados na qualidade do ouro e da prata, metais nobres e

raros. Vamos nos distanciando do polo essencial. Passado mais algum tempo, foram impressos

os primeiros papéis-moeda, que basicamente possuíam lastro em algum metal nobre: o que

outrora era medida para quantificar mercadorias agora é quantificado por papéis impressos

emitidos por um banco e garantidos por uma nação em seu território. Estamos aqui numa

região entre o polo essencial e o polo substancial, e descendo. Passado um tempo, e a ideia de

que o papel-moeda precisava ter lastro é deixada de lado, e agora é baseado apenas na garantia

da nação, balizada através de sua saúde econômica. Logo após vieram os cheques e os cartões

de crédito, reduzindo o uso cotidiano do papel-moeda. Avançamos para o polo substancial. E

agora, mais recentemente, começaram a surgir as moedas virtuais, que nada mais são do que

a apoteose da quantificação, pois não possuem lastro, não são emitidas por nenhum banco e

não são garantidas por nenhuma nação. São apenas números em uma conta virtual, e o seu

“valor” está atrelado apenas à confiança e ao crédito que os seus usuários as dão, possuindo

caráter altamente especulativo. De fato, Guénon já previa a supressão do dinheiro físico e a

substituição por meios eletrônicos desde os anos 20 do século passado [7].

Guénon cita como exemplo de mais alto grau de predominância da quantidade sobre a

qualidade as máquinas produzidas pela modernidade:

“[...] la machine, produit typique du monde moderne, est bien ce qui représente, au

plus haut degré qu’on ait encore pu atteindre, la prédominance de la quantité sur la

qualité.” [10]

Ponto de acordo com Bernanos, que afirma:

“A civilização das Máquinas é a civilização da quantidade, oposta à qualidade.” [2]

Guénon é um crítico mordaz da civilização ocidental, e afirma, numa crítica ao mundo mo-

derno, que os ideais “democráticos” e “igualitários”, pelos quais se supõe que todos os indivíduos

são equivalentes entre si, nos leva a supor o absurdo de que todos devem ser igualmente aptos

a não importa o que seja; essa “igualdade” é uma coisa a qual a natureza não oferece nenhum

exemplo. Isso demonstra o desejo de criar uma completa similitude entre os indivíduos, como é

bem representada pelas regiões próximas à base do triângulo. É evidente que essa “igualdade”

é um dos “ideais” mais caros ao mundo moderno, e na tentativa de tornar os indivíduos tão

semelhantes entre si quanto a natureza permita, é necessário, a princípio, impor uma educação

uniforme a todos.

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Não é preciso dizer que, como não se pode suprimir completamente as diferenças de aptidões,

essa educação uniforme não dará o mesmo resultado para todos; mas se essa educação não é

capaz de dar a certos indivíduos as qualidades que eles não têm, ela será, pelo contrário,

suscetível a sufocar nos outros todas as possibilidades que excedem o nível comum; é assim que

o “nivelamento” sempre se opera por baixo. A seção 2.1 nos dá exemplos desse nivelamento e

desse distanciamento do polo essencial através dos rompimentos com a tradição educacional.

Podemos também observar esse distanciamento da unidade essencial na formulação do pro-

blema sobre progresso na educação feita por José Ortega y Gasset [9]. Ele começa o raciocínio

da seguinte forma:

“A ideia de educação leva à ideia de uma teoria da educação e esta, por sua vez,

reclama com lógica inegável, uma teoria das coisas humanas, ‘um esclarecimento

filosófico geral’ ao qual a teoria da educação possa apoiar seus sólidos fundamentos.”

Ortega continua a explicar que, apesar do problema primário no progresso da educação ser

o esclarecimento de uma filosofia da educação, existe um outro, anterior a esse, ao qual nos

chega sob a forma de fato bruto: “a diversidade filosófica de nosso tempo”. Historicamente

essa “diversidade filosófica” nos apresenta duas dimensões: uma, a extensão de cada uma das

filosofias no grupo social; outra, o grau de divergência e incompatibilidade entre elas.

Na Europa, até a Reforma Protestante, essas duas dimensões não tiveram verdadeira impor-

tância. O caso mais agudo, apesar de breve e reduzido territorialmente, foi a heresia albigense.

Mas a Reforma dividiu em duas facções vários países da Europa, porém, as duas filosofias

ainda possuíam o Cristianismo como base comum. Contudo, a cisão dos grupos sociais foi tão

profunda que originou a época denominada “guerras de religião”. O cansaço da luta fez com

que surgisse, pela primeira fez na Europa, o princípio da tolerância, expressada teoricamente

pelo filósofo Locke. No entanto, a tolerância, fez com que fosse possível se espalhar por toda a

Europa uma nova filosofia, que não era religiosa: o racionalismo do século XVIII. Essa filosofia

tomava para si um imperativo que ainda não tinha tomado parte na história: o imperativo de

reformar. Esse propósito era em si mesmo revolucionário, pois pretendia romper com toda a

ordem política e continuidade com o passado. Tal desejo resultou na Revolução Francesa, e

como esse racionalismo reformista era menos compatível com as religiões tradicionais do que

estas entre si, a revolução deixou o corpo social mais profundamente fracionado do que as

“guerras de religiões”. Divisão que se perpetrou até os dias atuais. No entanto, algumas crenças

ainda permaneciam comuns a todos, e resumiam-se em três: na cultura (nas ciências, nas letras,

nas artes e na técnica), nas normas morais dos séculos precedentes e na ideia de pátria. Mas,

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no começo do século XX, a expansão do socialismo inicia uma nova situação, pois a filosofia

socialista não reconhece os valores da cultura. Com a agudização do socialismo, na forma do

comunismo, é dado o último passo nesse fracionamento. O comunismo ataca inteiramente a

moral estabelecida, substituindo-a por outra totalmente contrária. Por exemplo, o filho tem

a obrigação de denunciar seu pai. Dessa forma, as três crenças comuns que restavam na Eu-

ropa desapareceram por completo. Agora a incompatibilidade das filosofias tornou-se extrema.

Percebemos assim o primeiro traço característico da “diversidade filosófica” de nosso tempo:

o extremismo. Porque, inevitavelmente, o extremismo comunista levou as outras filosofias a

tornarem-se extremas [Ibid.].

Considerações terminadas, agora vamos descer um degrau e passar do domínio existencial

ao domínio humano.

4.3.2 O Circuito Triangular Humano

Edgar Morin, em seu livro Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro [20], descreve

a relação triádica que existe no contexto humano, representada na Figura 4.4, constituída pelo

circuito indivíduo ↔ sociedade ↔ espécie. Em suas próprias palavras:

“Os indivíduos são produtos do processo reprodutor da espécie humana, mas este

processo deve ser ele próprio realizado por dois indivíduos. As interações entre

indivíduos produzem a sociedade, que testemunha o surgimento da cultura e que

retroage sobre os indivíduos pela cultura.” [Ibid.]

Figura 4.4: O Circuito indivíduo ↔ sociedade ↔ espécie

Essa relação é de suma importância, e nenhum desses três elementos em particular deve

sobressair-se aos demais, embora, como diz Morin, possamos “considerar que a plenitude e a

livre-expressão dos indivíduos-sujeitos constituem nosso propósito ético”. Esse circuito indiví-

duo ↔ sociedade ↔ espécie é bastante complexo e deve estar ligado por fortes linhas para que

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nenhum desses elementos faça-se absoluto e fim supremo desse circuito. Cada um desses ele-

mentos é, simultaneamente, meio e fim; e a complexidade humana não pode ser compreendida

se dissociada desses três elementos que a constituem:

“[...] todo desenvolvimento verdadeiramente humano significa o desenvolvimento

conjunto das autonomias individuais, das participações comunitárias e do senti-

mento de pertencer à espécie humana”. [Ibid.]

Porém, como já mencionado anteriormente, podemos notar que, dentre esses três elementos,

o que vem sendo mais sufocado é o indivíduo. Devido ao pensamento uniformizante e igualitário,

destacado por Guénon, os direitos individuais estão sendo cada vez mais reduzidos, e aquele que

não adere ao pensamento predominante na sociedade é automaticamente rotulado por algum

nome feio e excluído. Não é necessário, também, mencionar as atrocidades cometidas durante

todo século XX na intenção de construir um sociedade melhor ou aperfeiçoar a espécie humana.

E não nos enganemos achando que isso se trata de um passado remoto onde esses problemas já

foram superados. A sociedade atual, munida cada vez mais de alta tecnologia, tem a ilusão de

que, como nunca antes, tem as ferramentas necessárias para poder construir essa tal sociedade

melhor e moldar uma nova espécie de ser humano. Os projetos de “cidades inteligentes” e os

experimentos genéticos com humanos estão aí para provar isso.

O ser humano, ultimamente, ao mesmo tempo em que foi uniformizado, também foi simpli-

ficado; e é sobre isso que Morin contra-argumenta. Para ele, o século XXI deve abandonar essa

forma simplificada de concepção do homem, e adotar a que destaca a complexidade existente

nele, a qual ele chama de Homo complexus :

“Por isso, a educação deveria mostrar e ilustrar o Destino multifacetado do humano:

o destino histórico, todos entrelaçados e inseparáveis. Assim, uma das vocações

essenciais da educação do futuro serão o exame e o estudo da complexidade humana.”

[Ibid.]

No entanto, desejar que assim o seja e observar o que realmente é de fato, vai aí uma grande

diferença. Pois isso tudo depende de agentes para os quais o futuro se apresenta como dominável

e qual as intenções deles sobre as pessoas as quais o futuro irá recair como dominante.

4.3.3 O Triângulo da Aprendizagem

Platão e Aristóteles afirmavam que o conhecimento nasce do espanto. Essa afirmação parece

ter influenciado Catherine L’Écuyer a desenvolver a ideia da educação no espanto (la educación

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en el asombro), que se opõe à educação no behaviorismo (la educación en el conductismo).

O behaviorismo parte do princípio segundo o qual tudo é programável e o aspecto volitivo é

irrelevante porque a criança depende completamente do seu entorno para aprender. Segundo

sua postura, a educação se reduziria a “bombardear com informação” (mais é melhor) e a

treinar hábitos comportamentais (como mera repetição mecânica de ações) [16]. Por um lado,

esse “mais é melhor”, é bem afeiçoado à civilização da quantidade descrita por Guénon; e por

outro lado, o behaviorismo pode ser encarado também como mais uma tentativa de moldar

uma sociedade através dos estímulos comportamentais provocado na espécie humana desde a

mais tenra idade, o que é criticado por Morin.

L’Écuyer então propõe uma pedagogia contrária ao behaviorismo. Em suas próprias pala-

vras:

“De acuerdo con la educación en el asombro, el aprendizaje nace desde dentro; es

un ‘deseo’ interno. El entorno sería importante pero no sería per se lo que hace

que el niño aprenda y, consecuentemente, ‘más’ no sería necesariamente ‘mejor’.”

[Ibid.]

Para L’Écuyer, o mistério é uma infinita oportunidade de conhecer, o que naturalmente

desperta espanto, um desejo de conhecer. Na repetição mecânica das ações, não há verdadeira

educação porque não há espanto e não há espaço para a beleza. A beleza é o que dá sentido a

rotina da criança, sendo a própria sensibilidade dos pais e dos educadores que permite perceber

as necessidade dela e o que é bom, belo e verdadeiro para ela. É o que a faz sintonizar com a

beleza.

Tendo isso em consideração, L’Écuyer descreve como acontece o processo de aprendizagem

através da representação de um triângulo, o qual ela dá o nome de triângulo do espanto (El

triángulo del asombro), do qual fazem parte a criança, a figura de apego e a realidade (Figura

4.5). A conexão entre a criança e a figura de apego aponta para a realidade, onde a figura de

apego é um facilitador para que a criança chegue a ela, como explica L’Écuyer:

“Según la educación en el asombro, el profesor es un facilitador en el proceso de

conectar la mente, la voluntad y el corazón del niño con lo que es verdadero, bueno

y bello, de tal manera que cuando el niño sea adolescente o adulto, será capaz de

identificar y descobrirlo por ‘sí solo’.” [Ibid.]

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Figura 4.5: Representação Geométrica da Conexão onde ocorre a Aprendizagem.

O ensinamento e o conhecimento não se sucedem de forma mágica. A criança necessita

de uma figura de apego para mediar entre si e a realidade. De fato, estudos confirmam que

crianças com apego seguro com seu cuidador são mais curiosos intelectualmente. As crianças

aprendem melhor com uma iteração humana do que com um entorno enriquecido [Ibid.].

***

As ideias expostas neste capítulo foram levadas em consideração para a identificação e

elaboração dos pré-conhecidos, que são abordados e desenvolvidos no próximo capítulo.

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Capítulo 5

Futura

Neste capítulo são apresentados e desenvolvidos os pré-conhecidos, expondo a coerência e

as objeções contrárias a cada um deles, para, na sequência, serem estabelecidos os cursos, as

velocidades e os reflexos na criação da cena futura.

5.1 Os Pré-conhecidos

Cada pré-conhecido apresentado a seguir é iniciado por uma explanação e exposição dos

fatos em que foram baseados, e, ao final, são mostradas as objeções que podem vir a mudar o

curso da tendência para a qual o pré-conhecido aponta.

5.1.1 A Evolução Tecnológica Acelerada

O processo de crescimento exponencial tecnológico, descrito por Ray Kurzweil, deve ser

levado em consideração na projeção futura. As ideias e projeções apresentadas por Kurzweil

fazem parte da ritualização do progresso1, de modo que o progresso tecnológico é visto por uma

perspectiva otimista e entusiástica, sem levar muito em consideração os aspectos contrários

ou os impactos sociais que causarão. Contudo, o fator de crescimento exponencial tecnológico

apresentado por ele é um fato observável e pertinente.

Podemos analisar esse fato a partir de um exemplo demonstrado por Kurzweil no qual

ele mostra o ciclo de vida de uma tecnologia [15]. Na Tabela 5.1 estão descritas as etapas

desse ciclo, enquanto paralelamente apresenta o exemplo da tecnologia de gravação fonográfica.

Podemos notar que, para completar o ciclo, a tecnologia do fonógrafo levou aproximadamente

uns 150 anos, enquanto o seu sucessor, o CD (Compact Disc), criado no fim dos anos 1980 para1V. Seção 4.2.2: A ritualização do Progresso.

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começo dos anos 1990, já entra na etapa de obsolescência no começo dos anos 2010, e já deverá

ser considerada um antiguidade ao acabar essa década, ou seja, aproximadamente 30 anos para

completar o ciclo, cinco vezes mais rápido que seu antecessor.

Tabela 5.1: O Ciclo de Vida de uma TecnologiaEtapa Nome Descrição Exemplo (gravação fonográfica)

1 Precursores

Os pré-requisitos de uma tecnologia existem,

e os visionários podem contemplar esses

elementos sendo combinados.

1857:

O fonoautógrafo é

inventado por

Édouard-Léon Scott

de Martinville

2 Invenção

O inventor harmoniza curiosidade, habilidades

científicas e determinação combinando métodos

de uma nova maneira para trazer à vida uma

nova tecnologia.

1877:

O fonógrafo é

inventado por

Thomas Edison

3 Desenvolvimento

Período crucial em que a invenção é protegida e

auxiliada por seus entusiastas, podendo envolver

criações adicionais de maior significância que a

invenção original.

1877- 1940:

Refinamentos foram

feitos para o

fonógrafo tornar-se

comercialmente viável.

4 Maturidade

Apesar de continuar se desenvolvendo,

a tecnologia agora tem vida própria e torna-se

parte independente e estabelecida na sociedade.

1948:

As empresas Columbia

e RCA introduzem,

respectivamente, os

long-playing record (LP)

de 33 rpm e 45 rpm.

5 Pretendentes

Aqui começam a aparecer as primeiras ameaças

para eclipsar a tecnologia vigente. Essas novas

tecnologias ainda faltam um elemento chave de

funcionalidade e qualidade.

1960-1980:

Fita cassete.

1980-1990:

Compact Disc (CD)

6 ObsolescênciaA nova tecnologia obtém sucesso em substituir

a antiga, que começa a declinar gradualmente.

1990-2000:

Declínio do fonógrafo.

7 AntiguidadeA antiga tecnologia agora faz parte da história, e

não é mais usada cotidianamente.2000 em diante.

Esse é apenas um exemplo dentre tantos outros em que tecnologias vêm ascendendo e

decaindo em um período mais curto de tempo. Outro exemplo que é apresentado por Kurzweil

é a famosa Lei de Moore, que descreve o crescimento exponencial dos circuitos integrados.

Dentre os inúmeros exemplos que podem ser citados, as tecnologias que atualmente estão

em ritmo maior de desenvolvimento são a inteligência artificial, a realidade aumentada, a ro-

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bótica, o aperfeiçoamento da rede de computadores, com a difusão da rede 5G, o que tornará

realidade cotidiana a Internet das Coisas, e a biotecnologia, como, por exemplo, a criação de

uma interface cérebro-máquina2. Todos esses ramos tecnológicos que parecem ser desenvolvi-

dos separadamente, tendem, segundo Kurzweil, à singularidade tecnológica, onde um agente

inteligente atualizável e com capacidade de auto-aperfeiçoamento (como um computador que

executa uma inteligência artificial baseado em software), superaria rapidamente a inteligência

humana qualitativamente. Não considerarei essa hipótese aqui, mas sim a que cabe à Bertrand

de Jouvenel, que descobriu uma constante na história universal: a ascensão ilimitada do po-

der, a elitização crescente dos meios de governo por trás de todas as mudanças aparentemente

democratizantes e libertárias [7]. Vejo esse poderio tecnológico como um ferramenta que pode

ser utilizado por aqueles que estão em posse do aparelho do Estado para manter um controle

social uniformizante; algo que já acontece na China, por exemplo.

A educação não está livre disso, pois como vimos historicamente3, o desenvolvimento técnico-

científico tende a se instalar com certa velocidade no meio educacional, assimilando rapidamente

o que é produzido pela sociedade, reação descrita pelo circuito indivíduo ↔ sociedade ↔ espécie

concebido por Morin. Porém, diferentemente do processo evolucionário tecnológico, a inclusão

dessas tecnologias na escola depende da intervenção de um ou mais agentes para que isso

aconteça, e isso será melhor detalhado no próximo pré-conhecido.

Objeções:

• 1a Objeção: Não há muitas objeções contra essa tendência do crescimento acelerado

das tecnologias. O que pode acontecer é uma perda da qualidade da Internet enquanto a

mesma terá um ganho em quantidade, segundo o que afirma o ciclo guenoniano do domínio

existencial4. Ganhará em quantidade não só porque será cada vez mais rápida e mais

potente, mas também porque haverá mais do que uma única internet. Essa fragmentação5,

ocasionada por nações que visam construir sua própria internet e se desconectar da rede

mundial de computadores por medidas de “proteção” ou de controle, consequentemente

reduzirá de maneira qualitativa o propósito da rede, que a princípio visava essencialmente

a conectar pessoas de todos os lugares do planeta. Nesse caso haveria um involução, já2https://www.biorxiv.org/content/10.1101/703801v2.full3V. Seção 2.1, principalmente a subseção 2.1.4.4V. Seção 4.3.1: O Triângulo do Domínio Existencial5V. https://www.forbes.com/sites/zakdoffman/2019/05/01/putin-signs-russian-internet-law-to-disconnect-

the-country-from-the-world-wide-web/ e https://www.nytimes.com/interactive/2018/11/18/world/asia/china-

internet.html

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que a Internet se demostra um dos instrumentos mais democrático criados pelo homem.

• 2a Objeção: Devido a alguns interesses de mercado, algumas invenções tendem a ser

impedidas de evoluírem no ciclo de vida natural das tecnologias. Alguns exemplos dessas

invenções abortadas são a Centennial Bulb6, uma lâmpada que há mais de um século

permanece acesa na unidade de bombeiros da cidade de Livermore, na Califórnia (EUA);

o motor Wankel7 e o seu sucessor, a Quasiturbine, uma alternativa aos motores de cilindro

e pistão; e a Water Fuel Cell de Stan Meyer8, um dispositivo que permitiria os motores

de combustão interna funcionarem com água.

Como pode notar-se, essas invenções tem um potencial imenso de revolucionar o mercado

de seus respectivos setores, e isso incorreria em grande risco para as empresas que domi-

nam esses mercados. Assim, intervenções desleais por parte de grandes empresas acabam

por suprimir o desenvolvimento de algumas tecnologias, congelando seu aperfeiçoamento.

5.1.2 A Fomentação de Escolas Mais Tecnológicas

Este pré-conhecido deriva do anterior. Como já foi dito, diferentemente do processo de

desenvolvimento tecnológico, causado por uma multidão de agentes e que muitas vezes as

descobertas acontecem de forma inusitada e inesperada, o desenvolvimento educacional, por

sua vez, possui agentes bem definidos que realizam uma intervenção em seu curso, de forma

a propor métodos e ferramentas para atingir um objetivo particular. Esses agentes podem ser

filósofos, pedagogos, psicólogos, cientistas, antropólogos, instituições, etc. No entanto, quando

se trata do fomento à inclusão de tecnologias e ao ensino delas, dois agentes se destacam dos

demais: o governo e as megacorporações, muitas vezes agindo conjuntamente.

O futuro da educação é dominável tanto pelo governo, que o exerce pelo poder da lei,

quanto pelas megacorporações, que o exerce pelo poder econômico. Nessa perspectiva, diante

de um sistema educacional determinado por um governo e/ou financiado por megacorporações,

o futuro faz-se dominante sobre o indivíduo, restando a ele, caso não esteja de acordo, buscar

alternativas educacionais fora do sistema oferecido, como o homeschooling ou uma instituição

de ensino criada por um comunidade com a qual tenha interesses em comum. Entretanto, isso

não é acessível a todos, tendo a grande maioria que aceitar ou ignorar aceitando o que lhe é

oferecido.6https://www.bbc.com/portuguese/geral-446121447https://pt.wikipedia.org/wiki/Motor_Wankel8https://pt.wikipedia.org/wiki/Stan_Meyer

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Considerando o caráter materialista da sociedade atual, a qual dá mais valor à quantidade

do que a qualidade, nada mais comum do que a educação se revestir de um caráter empregatí-

cio, onde o objetivo máximo é a obtenção de um emprego de sucesso. Não que isso seja algo

totalmente condenável, pois obviamente ninguém deseja o fracasso, mas o problema é a unifor-

mização das mentes dos estudantes fazendo com que aspectos mais elevados da educação sejam

deixados de lado. Obter um emprego de sucesso deveria ser uma consequência da educação, não

a finalidade. É nesse contexto em que entram as megacorporações, que com boas quantidades

de investimentos oferecem uma educação que irá preparar o indivíduo desde a mais tenra idade

com o que há de mais moderno para que ele possa se tornar um empregado bem sucedido.

Empresas do Vale do Silício são as que estão mais engajadas nesse empreendimento de levar

novas tecnologias para a sala de aula, seja com a robótica9, com realidade virtual e aumentada10

ou com fundos11 que financiam uma rede de escolas, o objetivo principal é “alavancar o poder

transformacional da tecnologia”.

Objeções:

• 1a Objeção: Considerando o fato de que o ciclo12 de vida de um tecnologia vem se redu-

zindo cada vez mais, a velocidade em que uma tecnologia torna-se obsoleta e é substituída

por outra supera a velocidade de investigação dos efeitos que estas mesmas tecnologias

exercem sobre o desenvolvimento, a aprendizagem e a vida familiar da criança. Não seria

racional exigir a prova do dano enquanto se está experimentando com a criança, prova

que chegará sempre tarde, quando o dano já terá sido feito [17].

• 2a Objeção: O fato de que os primeiros a fomentar o uso de tecnologias nas escolas são

os primeiros a reduzir ou incluir a proibição do uso de tecnologias aos seus filhos. Trata-se

aqui das famílias em que os pais trabalham em grandes empresas do Vale do Silício13. A

inclusão de tablets na sala de aula, por exemplo, só são feitas em escolas públicas do Vale

do Silício, enquanto as escolas privadas não os usam, podendo permitir-se o “luxo das

interações humanas”. No que para muitos a inclusão de tecnologias nas escolas públicas

contribuiria para reduzir as desigualdades socioeconômicas, agora se revela um novo tipo

de desigualdade: entre as famílias conscientes da necessidade de limitar o tempo de uso

das novas tecnologias e são capazes de fazê-lo, e aquelas que não [Ibid.].9https://www.showmetech.com.br/qualcomm-leva-robotica-e-conectividade-para-escolas-publicas-de-sp/

10https://edu.google.com/products/vr-ar/expeditions/?modal_active=none11https://www.siliconschools.com/12V. Seção 5.1.1: A Evolução Tecnológica Acelerada13https://www.businessinsider.com/silicon-valley-parents-raising-their-kids-tech-free-red-flag-2018-2

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5.1.3 A Avaliação e Informatização do Sistema Educacional

Com o rápido progresso tecnológico e com o incentivo de governos e megacorporações à

introdução de novas tecnologias nas escolas, a forma de avaliação dos estudantes consequen-

temente também sofrerá modificações. Desde o fim dos anos 1980 essa tendência pôde ser

observada em documentos da UNESCO14, da OCDE15 e de diversos países ditos de primeiro

mundo, como os Estados Unidos e a França. Tudo isso foi muito bem documentado por Pascal

Bernardin em seu livro Maquiavel Pedagogo – ou o ministério da reforma psicológica [3], onde,

a partir de fontes primárias, ele faz a análise da revolução pedagógica baseada nos resultados de

pesquisas psicopedagógicas que está em curso internacionalmente. Nesses documentos podemos

ver a atenção especial dada por essas organizações à implantação de um sistema informatizado

de coleta de dados dos estudantes a nível internacional, incentivando instituições multilaterais

e bilaterais a financiarem os governos a fim de alcançar tal objetivo.

Nos Estados Unidos, já na década de 1990, um número crescente de alunos do primário eram

submetidos a testes destinados a traçar seus perfis psicológicos, e através desses mesmos testes,

determinar as disposições dos pais refletidas por aquelas que forem percebidas nas crianças.

Além disso, esses testes podiam avaliar a influência dos professores mediante a comparação

entre o início e o fim do período escolar. Conforme os resultados obtidos em tais testes, os

alunos eram submetidos a “cursos” especias baseados em livros e filmes concebidos por psicó-

logos e destinados a modificação de comportamento de acordo com técnicas elaboradas pelos

behavioristas16, segundo os quais, em suas teorias, afirmam que o nível escolar desejado deve

ser o da “competência mínima” – é o que Guénon chamava de “nivelamento por baixo”17. Todos

os resultados dos testes psicológicos foram alocadas em um única base de dados informatizado

que concentra toda a informação referente aos Estados Unidos. Tudo isso feito sem que o povo

americano fosse informado e só foi descoberto de modo fortuito [Ibid.].

Ainda na mesma década, só que na França, os professores tiveram que responder a 160

questões para cada aluno, e entre essas questões, as primeiras eram referentes às atitudes da

criança, isto é, à sua psicologia e à sua inserção social. É notável que as diretivas para o

ensino primário recai fortemente sobre a socialização das crianças, o que são chamados de

ensinamentos não-cognitivos e sociais. Entre algumas informações que os professores deveriam14Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.15Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico.16O behaviorismo é uma escola de Psicologia que concebe o homem como um tipo de máquina, a qual basta

introduzir os inputs corretos – em particular a educação – para obter os corretos outputs [Ibid.].17V. seção 4.3.1: O Triângulo do Domínio Existencial

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fornecer, estavam:

• aquisição e autonomia; aprendizado da vida social;

• conhecer e exercer responsabilidades pessoais;

• enunciar regras;

• identificar alguns importantes problemas mundiais; manifestar sensibilidade em vista de

tais problemas;

• afirmar suas escolhas e seus gostos estéticos: explicitá-los e compartilhá-los;

• conhecer os deveres e os direitos da criança, do homem e do cidadão;

• conhecer o funcionamento de um associação, de uma cooperativa;

• conhecer um importante serviço público;

Isso foi nos anos 1990, pois a medida que novas tecnologias apareceram, e continuam a

aparecer, a forma de coletar esses dados se tornam ainda mais fáceis, e sem precisar da ajuda

dos professores. Atualmente, nos Estados Unidos, há casos em que os alunos são monitorados

pelas redes sociais e são testados com a tecnologia de reconhecimento facial18. Embora isso

esteja sendo feito a pretexto da “prevenção de comportamentos agressivos”, não deixa de revelar

a capacidade de invasão de privacidade que o governo e empresas especializadas possuem, pois

além dos alunos da escola, também pessoas que circundam o local passam por essa vigilância.

Há empresas que vendem “análise psicológica” através de aplicativos de “inteligência emocinal”

baseado nas postagens e nas buscas feitas na internet pelos alunos.

Todo esse poder de vigilância e monitoramento proporcionado pela tecnologia facilita a

implantação de um Common Core, ou Base Comum Curricular, como é conhecido aqui no

Brasil, sistema que já foi adotado por alguns estados americanos, mas ainda é tema de grande

debate nos Estados Unidos. Um sistema como esse já nos revela a tendência da uniformização,

da qual nos falava Guénon; e o foco em ensinos não-cognitivos e sociais indica um desequilíbrio

no circuito indivíduo ↔ sociedade ↔ espécie em prol da sociedade, como nos falava Morin.18https://www.diariodepernambuco.com.br/app/outros/ultimas-noticias/46,37,46,10/2019/06/09/

interna_mundo,790512/escolas-dos-eua-vigiam-redes-sociais-e-testam-identificacao-facial-de.shtml

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Objeções:

Existe um linha tênue nas objeções contrárias apresentadas a seguir, pois elas só se tornarão

uma verdadeira possibilidade de mudança da tendência se a sociedade tomar consciência desses

fatos, e mesmo assim de difícil retroação. Caso contrário, a tendência tornar-se-á ainda mais

forte.

• 1a Objeção: Essa primeira objeção se expressa nas palavras de Bernardin:

“Lembremos que tais ensinamentos não-cognitivos e sociais se fazem em detri-

mento da formação intelectual, com vinte por cento das pessoas abaixo dos

25 anos não alcançando o domínio da leitura e da escrita. Assim, as gerações

futuras são privadas dos instrumentos intelectuais que lhes teriam permitido

dominar, sem dificuldades, e em seu devido tempo, as questões abordadas no

ensino não-cognitivo. Além disso, elas poderiam tê-lo realizado com toda inde-

pendência de espírito, livres para formar elas mesmas uma opinião sem sofrer

uma doutrinação precoce. [...] Estamos, com isso, autorizados a pensar que,

ultrapassado certo limite, já não se trata da socialização das crianças, mas sim

da coletivização dos espíritos?” [Ibid.]

• 2a Objeção: Bernanrdin escreveu que com a coleta de dados psicológicos dos estudantes

os especialistas em ciências humanas e sociais terão em suas mãos um temível instrumento

para o estudo e a modificação dos comportamentos, pois:

“Lembremos que, se permitem determinar o perfil psicológico do indivíduo, os

testes psicológicos permitem igualmente a sua modificação e a interiorização,

pelo sujeito avaliado, dos valores desejados.” [Ibid.]

Bernardin, em seu livro descreve várias técnicas de manipulação comportamental, fato

que mostra como as pesquisas nesse campo já estão avançadas e atingem um estado

preocupante.

5.1.4 A Dependência Tecnológica

O locus de controle é a percepção que o indivíduo possui de onde reside a responsabilidade

de suas ações. Uma pessoa com locus de controle interno tem a percepção de que controla suas

ações, enquanto que uma pessoa que possui um locus de controle externo tem a sensação de

que as circunstâncias exercem um controle irresistível sobre suas ações. Diante de uma tela,

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seja da televisão ou do smartphone, o locus de controle da criança é externo, não interno, pois

o que ocorre não é uma atenção sustentável, mas sim um fascinação ante estímulos frequentes

e intermitentes [17].

O processo de sintonia da criança com a realidade se dá através de uma atenção focalizada,

que permite a criança sentir a beleza que o rodeia. Um obstáculo para isso seria um defeito

nos sentidos, podendo esse defeito ser orgânico ou provocado externamente. Este último caso

seria, por exemplo, o de uma criança que tenha sofrido um bombardeamento de informação,

que tenha sido estimulada fortemente desde fora, ou cujos sentidos tenham sido saturados e

sobrecarregados por uma multitarefa tecnológica intensa e/ou por um entorno de consumismo.

Dessa forma, a criança vai perdendo a sensibilidade de perceber a realidade e a capacidade de

se espantar19 diante dela. Por ter sido muito estimulada externamente de forma artificial, a

criança tem cada vez menos material do qual possa esperar algo e pelo qual possa se interessar, e

assim ela se torna passiva e entediada, se fazendo cada vez mais dependente do entorno externo

para poder prestar atenção e aprender, como explica L’Écuyer:

“En otras palabras, la mente del niño se acostumbra a una realidad que no existe

normalmente en la vida real. Y entonces, cuando la mente vuelve a experimentar la

vida ordinaria real, todo le parece extraordinariamente aburrido, porque no puede ver

la belleza en la vida cotidiana. Como no capta la belleza, el niño no se siente atraído

por nada y se distrae fácilmente (la ‘distráccion’ es lo opuesto a la ‘atracción’),

haciéndose así completamente depiendente del entorno externo.” [16]

L’Écuyer cita um estudo de Stanford em que os pesquisadores buscavam comparar em quê

eram melhores os jovens alunos que trabalhavam em modo “multitarefa tecnológica intensa” e

os que não trabalhavam desse modo. Foram observados os seguintes parâmetros:

1) a capacidade de filtrar informação de acordo com sua relevância;

2) a memória de trabalho;

3) e a capacidade de passar de maneira eficaz de uma tarefa à outra.

A conclusão do estudo foi que todos os alunos que trabalham no modo multitarefa se saíram

pior em todos esses parâmetros.

Coisas assim é que deve ter levado a Herbert Simon, prêmio Nobel de economia, a dizer:19V. Seção 4.3.3: O Triângulo da Aprendizagem.

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“O que a informação consome é bastante óbvio: consome a atenção de quem recebe

a informação. Portanto, uma grande quantidade de informação cria um empobre-

cimento da atenção, e uma necessidade de alocar essa atenção eficazmente entre as

abundantes fontes de informação que podem consumi-la.”

E que Bernanos consegue sintetizar ainda mais:

“Estar informado sobre tudo e condenado, assim, a não compreender nada, esse é o

destino dos imbecis.” [2]

Essa incapacidade de filtrar informações de acordo com sua relevância e de poder entender

o valor e a originalidade delas, se deve, principalmente, pela excessiva dependência que os

jovens têm dos motores de busca da Internet. A facilidade apresentada por tais tecnologias

faz com que os jovens se tornem carentes de competências críticas e analíticas na hora de

buscar informações, sendo assim facilmente influenciados pelas informações que tais motores de

buscas consideram mais relevantes, e por isso elas vêm primeiro – Robert Epstein20, Ph.D. em

psicologia em Havard, realizou pesquisas que concluíram que o Google, o maior site de busca

do mundo, tem poder de influenciar eleições dessa mesma forma.

Ivan Illich, décadas atrás, já havia identificado outro problema em relação à complexidade

de artefatos tecnológicos que as indústrias colocavam em circulação na sociedade:

“A indústria cercou as pessoas com artefatos cujo segredo íntimo apenas os espe-

cialistas podem conhecer. O não-especialista é desencorajado a descobrir porque

o relógio faz tic-tac, porque o telefone toca, porque a máquina de escrever elétrica

trabalha, pois sempre há um aviso dizendo que o aparelho pode estragar-se. Pode

ser ensinado porque o rádio transístor funciona, mas não pode descobri-lo por si

mesmo. Esse tipo de procedimento tende a reforçar a existência de uma sociedade

não-inventiva em que os peritos acham mais fácil esconder-se atrás de suas perícias

e a salvo da avaliação.” [12]

Atualmente, junto à complexidade, que continua aumentando, está também a quantidade

crescente de aparelhos tecnológicos que fazem parte do uso cotidiano do indivíduo, e com os

quais cada dia mais cedo ele entra em contato. Sobre isso, e também complementando o

raciocínio de Illich, a educadora Lubienska de Lenval faz a seguinte reflexão sobre a necessidade

de dirigir o esforço da criança:20https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/09/150901_epstein_google_jf_lk

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“No ambiente artificial que o adulto construiu para si, tudo serve para economizar o

esforço. Para ter água, basta abrir uma torneira; para ter luz, aperta-se um botão

elétrico. Tudo o que essas comodidades representam de labor e engenhosidade,

permanece oculto, invisível. Colocada nesse meio, a criança age como aprendiz de

feiticeiro: maneja fórmulas mágicas. Isto representa um duplo perigo: o primeiro é

que a criança faz muitos estragos. Procura-se então preveni-la, impedindo-a tocar

no que quer que seja, de tal modo que um criança idealmente obediente se tornaria

um perfeito imbecil. Mas ela desobedece, faz reinações, adquire experiência e acaba

por se tornar hábil. O segundo perigo, bem mais grave, é que a criança adquire uma

mentalidade de feiticeiro: fia-se nas fórmulas feitas e pretende dominar o universo

por meio de expedientes desse gênero.” [18]

Lubienska de Lenval atina para o fato de que é importante desenvolver na criança o respeito

pelas obras humanas, o amor pelo esforço construtivo, e sobretudo, o gosto pela reflexão que vai

ao fundo das coisas. Isso não deve ser feito por explicações teóricas, pois isso seria impossível, já

que nem a maior parte dos adultos conseguem entender o funcionamento complexo da maioria da

tecnologias que usa no dia-a-dia, mas sim levando as crianças a refazer as primeiras experiências

dos seus antepassados, revelando-lhe o esforço empreendido por eles e quebrando essa aura de

magia aparentemente causada pelas comodidades tecnológicas.

Objeções:

Há poucas objeções quanto à essa tendência. O desenvolvimento tecnológico é patente, e,

a não ser que haja um forte esforço pedagógico para revelar aos pequenos a real medida do

esforço humano para se chegar a essas tecnologias e um retardamento ou limitação do contato

com tecnologias que se apresentam nocivas na infância, a dependência tecnológica será cada

vez maior. Outro episódio que poderia barrar a tendência só se daria por algum acontecimento

catastrófico a nível mundial que inutilizasse o funcionamento das tecnologias vigentes, forçando

a humanidade a recuperar os conhecimentos básicos.

5.1.5 A Influência da Indústria do Entretenimento

A formação educacional do indivíduo não é realizada apenas entre as paredes da escola.

O meio cultural ao qual ele é exposto também revela-se fator determinante na sua formação.

Alguns acontecimentos históricos nos mostram com é difícil a introdução de uma tecnologia

revolucionária na sociedade quando não se tem feito uma familiarização ou habituação das

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pessoas à existência de tal artefato. Podemos ver, como exemplo, as reações provocadas com

a introdução da vacina ou as revoltas dos luddites, que quebravam as máquinas de tecelagem

nos primórdios da Revolução Industrial. Para uns, como Kurzweil, o crescimento exponencial

tecnológico é um processo evolucionário natural, semelhante ao biológico; enquanto que para

outros – hoje mais raros – como Bernanos, possui um caráter suspeito, pois não parece ter sido

previsto nem desejado, que se desenvolveu com rapidez tão assustadora que lembra menos o

crescimento de um ser vivo que a evolução de um câncer.

Tenha um ponto de vista otimista ou pessimista sobre o desenvolvimento tecnológico, o fato

é que a influência da indústria do entretenimento através de livros, filmes, seriados e games21, se

faz presente, habituando o público às tecnologias representadas na ficção ou ao contato direto

com elas, como é o caso dos games.

Quanto aos livros já mencionamos alguns dos pioneiros na produção de literatura de ficção

científica na seção 2.2.3: Fictio Quaerens Veritatem. A eles se juntam outros nomes como

Isaac Asimov, Philip K. Dick, Arthur C. Clarke, dentre outros. Todos eles proporcionaram

aos seus leitores uma ampliação imaginativa e consequentemente uma familiaridade com as

possibilidades tecnológicas que haviam de tornar-se realidade em algum momento.

Em relação ao cinema, se observarmos a lista dos 100 filmes com maior bilheteria22 de todos

os tempos, veremos que aproximadamente 1/3 dos filmes se tratam de ficções científicas que

envolvem alguma tecnologia ainda não existente na época de lançamento dos respectivos filmes;

se pegarmos os 10 primeiros, 90% o são. Os seriados também conseguem desempenhar essa

mesma função, e de modo até mais eficaz, pois devido ao maior tempo de duração com que o

espectador mantém contato com a obra, ele se apega mais aos personagens e consequentemente

ao modo como eles se comportam. As plataformas de streaming fizeram com que filmes e

seriados superassem o nível de alcance em relação aos livros, liberando um quantidade absurda

de conteúdo ao público. A quantidade é um fato; a qualidade, questionável. Contudo, essa é a

“cultura” que atinge as massas atualmente.

Já os games proporcionam um contato mais direto com a tecnologia, e cria uma multidão

de entusiastas que sempre estão em busca de novas experiências. A influência dos jogos virtuais

não é apresentada aqui como causa de uma mudança comportamental no sentido da possível

relação existente entre a conduta tomada pelos gamers virtualmente e o reflexo em sua conduta

na vida real. Aqui a influência apresentada é precisamente esta: a de que os entusiastas dos

jogos virtuais sempre estão buscando novos jogos e novos modelos de video games que lhe21https://exame.abril.com.br/negocios/mercado-de-games-no-brasil-deve-crescer-53-ate-2022-diz-estudo/22https://www.boxofficemojo.com/alltime/world/

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proporcionem experiências mais excitantes, querendo sempre estar na vanguarda das tecnologias

que são apresentadas para dar uma melhor experiência sensível a eles.

Objeções:

Praticamente não há objeções a essa tendência. A indústria do entretenimento, desde sua

criação, cresceu vertiginosamente, proporcionando cada vez mais opções de divertimentos ao

público. Como atualmente vivemos em uma sociedade massificada, a indústria do entreteni-

mento atinge um público muito maior do que a produção de alta cultura consegue alcançar,

transformando assim, aos olhos da maioria da população, a percepção do que realmente venha a

ser cultura, confundindo-a com o simples entretenimento. Livrar-se de um influência da cultura

de massas vai da consciência e da busca interior de cada um, sendo uma tarefa difícil, porém

acessível.

5.2 Cursos, Velocidades e Reflexos

A partir dos pontos de apoio descritos na seção anterior, isto é, os pré-conhecidos, segue-se

o encadeamento das tendências com o estabelecimento de cursos, velocidades e reflexos. Isso

é detalhado nas três subseções seguintes, que estão dispostas em camadas que determinam as

velocidades dos acontecimentos, ou seja, o tempo em que se darão. As três camadas estão ligadas

através dos reflexos das tendências apresentadas em cada uma delas, de forma que as tendências

da camada mais inferior (1a camada) reflete na camada superior a ela (2a camada), e esta, por

sua vez, reflete na camada mais superior (3a camada), em efeito cascata. Foi determinado um

horizonte de 30 anos no futuro, sendo a 1a, 2a e 3a camadas correspondentes aos horizontes de

10, 20 e 30 anos, respectivamente. Esse horizonte foi escolhido por ser, em média, o intervalo

de uma geração. Apesar de toda a influência tecnológica existente atualmente e das mudanças

aceleradas, a educação, ou a cultura como um todo, tende a modificar-se mais vagarosamente

do que os demais setores da sociedade, e para se verificar uma mudança mais profunda, exige-

se um intervalo de tempo maior. É mais ou menos o tempo em que uma ideia em gérmen irá

crescer, criar fortes raízes e dar seus frutos, sejam eles bons ou maus. O pensamento também

é visar um ponto no futuro onde o indivíduo que nasceu hoje será o homem maduro e influente

na sociedade.

Antes de começarmos a descrever propriamente a prospecção futura, e recordando também

o tipo de conjectura apresentada aqui, a qual não está ligada a uma ocasião de decidir e tenta

propor um problema que não figura na ordem do dia, é necessário destacar as seguintes palavras

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escritas por Jouvenel:

“[...] parece-me absurdo excluir o drama da previsão. Pelo contrário, ela é mais útil

do que nunca, quando adverte sobre a possibilidade do drama àqueles para quem

o futuro é dominável, pois que, compreendendo o aviso, podem prevenir o evento;

ou àqueles para quem o futuro é dominante, a fim de que se coloque ao abrigo do

evento [...].

Se os sábios formados em ciências sociais são levados a excluir o drama, é (parece-

me) em razão de suas disposições psicológicas. Primeiramente porque o drama é

um escândalo para os espíritos racionais, um momento de repugnante frenesi em

que reina o absurdo. As cenas de um drama são visões que não entram no contexto

de um espírito racional [...].” [14]

Dito isso, vamos ao drama.

5.2.1 1a Camada - 10 anos

A escola como instituição, e local físico, onde o estudante tem que se descolar para ter acesso

a um professor que lhe dará suporte em tempo integral seguindo um currículo estabelecido, ainda

permanece. Revivemos mais ou menos o que acontecia na sociedade grega23 antiga: devido às

ocupações e compromissos sociais, os pais delegam a educação de seus filhos a terceiros. O

escravo de confiança da família, que era encarregado de supervisionar a criança na antiga

sociedade grega, agora é substituído pela tecnologia, através de um sistema informatizado24

de monitoramento do aluno realizado pelas escolas e fornecido aos pais, com a diferença de

que com esse novo “escravo” não há qualquer tipo de ensinamento moral, sendo isso delegado

às escolas. Esse monitoramento vai desde o desempenho escolar até o acompanhamento das

condições psico-sociais do aluno. Sistemas de câmeras e algoritmos de reconhecimento facial e

monitoramento de redes sociais constantemente capturam informações que são adicionados a

um banco de dados que armazena os perfis dos alunos. Tudo isso implantado com a bandeira

de combater a insegurança nas escolas, e com isso aumentaram o caráter manipulativo25 da

instituição escolar.

O progresso tecnológico é pujante26 e o potencial econômico da escola salta aos olhos. Os

agentes educacionais não perdem a oportunidade de incorporar em sala de aula os artefatos23V. Seção 2.1.1: A Rispidez da Tabula e do Stylus Grego.24V. Seção 5.1.3: A Avaliação e Informatização do Sistema Educacional.25V. Seção 4.2.1: O Caráter Institucional da Escola.26V. Seção 5.1.1: A Evolução Tecnológica Acelerada.

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tecnológicos mais recentes disponíveis no mercado. Grandes empresas de tecnologia realizam

acordos27 com governos para distribuição da sua produção tecnológica no meio educacional,

preparando os indivíduos desde a mais tenra idade a converter-se em público consumidor das

tecnologias que essas empresas produzem ou mão-de-obra especializada para a produção de-

las. O ambiente escolar é enriquecido de uma diversidade tecnológica estonteante. A realidade

virtual e a realidade aumentada são utilizadas como método para apresentar as matérias, propi-

ciando aos alunos uma concepção visual do assunto estudado. A programação de computadores

faz parte da grade curricular obrigatória das escolas, e a robótica básica já é ensinada na maio-

ria delas. O contato com a Inteligência Artificial se faz presente tanto na escola como fora dela,

auxiliando o aluno nos estudos e pesquisas. A familiaridade com as tecnologias faz com que

as crianças desenvolvam bem a coordenação motora fina28, e também habilidades específicas

relacionadas e atreladas às tecnologias com as quais estão em frequente contato. Do mesmo

modo que um pintor precisa do pincel e da tinta e o músico precisa do instrumento musical

para demonstrar suas habilidades, os indivíduos precisam dessas tecnologias como meios de

expressão. Os artefatos tecnológicos são utilizados de forma tão natural que é difícil imaginar

que as coisas poderiam ser feitas de diferente maneira29.

Por outro lado, além das disciplinas técnicas e científicas, predomina nas escolas o ensino

não-cognitivo30 e social, preparando o aluno para viver na sociedade contemporânea visando

um futuro almejado pelos agentes do poder. Esse quadro de matérias e aptidões fazem parte

de uma base comum curricular (Common Core) imposta a todo o sistema educacional. Aos

alunos são ensinadas as condutas sociais que devem seguir para dar continuidade ao progresso

da humanidade, apresentando-lhes problemas a serem superados, desenvolvendo um senso crí-

tico dos acontecimentos contemporâneos e estimulando ao máximo a criatividade. A crença no

progresso da humanidade através da ação do Estado, o qual fornece todo o aparato tecnológico

educacional, é renovada. O Estado é que fornece a educação e a segurança à maior parte da

população, e por isso ele possui um caráter moralizador na sociedade de então. Devido à quan-

tidade de dados em posse do aparelho estatal, advindo do monitoramento escolar e de tantas

outras fontes de coleta de dados em uma sociedade informatizada, é procedimento corriqueiro

que esses dados sejam utilizados em avaliações31 e pesquisas, com o objetivo de realizar uma

mudança de comportamento da sociedade quando necessário, exercendo assim, as organiza-27V. Seção 5.1.2: A Fomentação de Escolas Mais Tecnológicas.28https://www.sciencemag.org/news/2013/12/click-here-improve-your-motor-skills29V. Seção 5.1.4: A Dependência Tecnológica.30V. Seção 5.1.3: A Avaliação e Informatização do Sistema Educacional.31Ibid. (2a Objeção).

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ções políticas ou as grandes corporações, através do aparato tecnológico estatal, o seu papel

de agente para o qual o futuro é dominável. Tais mudanças não são impostas diretamente,

mas surgem como se fossem naturais, através da aplicação gradual32 das concepções almejadas

pelo agente de poder durante a vida escolar dos indivíduos. Como a escola é uma instituição

que se retro-alimenta33, os que são ensinados hoje ensinarão a outros amanhã e assim suces-

sivamente, disseminando as mudanças previamente calculadas através dos testes e avaliações

comportamentais da população, como se não tivessem sido planejadas.

Embora as diretrizes dominantes no sistema educacional que atingem a maior parte da

população sejam essas, existem as exceções. Elas aparecem, basicamente, sob duas formas: um

educação elitizada e um educação associada, em sua maior parte, a uma tradição. A primeira

se manifesta através de escolas onde são contratados professores de alto nível e são proibidos

o contato com qualquer tipo de tecnologia dentro da instituição, o que não quer dizer que

não sejam ensinadas como elas funcionam. É privilegiado a interação humana, com o objetivo

de desenvolver a capacidade linguística do aluno, o que lhe dará, um boa comunicação, força

de expressão e capacidade de liderança. Essas escolas são frequentadas pelos filhos de altos

funcionários de mega-corporações, sobretudo das grandes empresas de tecnologia, e de pessoas

que possuem cargos nas altas esferas do poder. Pode-se até dizer que aqui é formada a próxima

geração para a qual o futuro será dominável. É muito sugestiva a comparação dessa forma de

educar com a educação dada aos príncipes durante o período da Idade Moderna, a qual tinha

o objetivo de dar continuidade e estabilidade do trono real34.

A segunda forma se manifesta de dois modos: ou através do homeschooling, ou através de

pequenas comunidades de famílias com objetivos educacionais semelhantes, que fundam peque-

nas escolas para educarem seus filhos. No primeiro deles, o homeschooling, os pais utilizam-se

de ferramentas tecnológicas não só para entrar em contato com outras famílias que também

praticam homeschooling e possuem mais experiência, mas também para acessar conteúdos, mé-

todos e práticas educacionais, e contratar os serviços de algum professor para ensinar alguma

matéria específica para seus filhos. No entanto, os pais limitam o acesso direto dos filhos às

tecnologias, os quais aprendem as disciplinas diretamente com os pais ou com os mentores.

Já no segundo modo, as pequenas comunidades educacionais, várias famílias se juntam para

contratar um quadro de professores que eduquem seus filhos de acordo com os valores compar-

tilhado por elas. Os pais são participativos nessas comunidades, sendo alguns deles, por vezes,32V. Seção 2.1.5: A Diversificação Técnica Contemporânea.33V. Seção 4.2.1: O Caráter Institucional da Escola.34V. Seção 2.1.4: A Prensa Moderna.

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professores de determinadas disciplinas ou até funcionários de cargos administrativos dessas

escolas. Essas pequenas instituições variam muito de uma para outra, pois para cada grupo

de famílias a realidade é diferente, e tentam realizar as coisas na medida do que for possível:

algumas com mais tranquilidade, outras com muito esforço. O que as unem é o empenho em

dar continuidade a uma tradição educacional, seja ela provinda de uma moral religiosa ou não,

tentando adaptá-la às necessidades atuais.

Se buscarmos uma analogia, as famílias que praticam o homeschooling seguiriam o ideal

romano35, onde acreditava-se que o ambiente em que se dava a educação era no meio familiar.

Na casa paterna era onde se iniciava a criança na tradição o no respeito aos ancestrais, até

que, atingindo uma certa idade, enfrentará o aprendizado da vida pública. Já as pequenas

comunidades educacionais, relembram as antigas escolas paroquiais36 da Idade Média, valendo

o sentido original da palavra parokia, pois essas famílias, em termos educacionais, e num mundo

tecnologicamente desenvolvido, vivem como se fossem em terras estrangeiras. Ambos os modos

desse segundo tipo de educação excepcional presam por conservar, basicamente, o ensino do

Trivium e do Quadrivium e a leitura dos clássicos da literatura, de modo a dar uma sólida

instrução básica nas letras e ciências exatas, e assim, o indivíduo, a medida que cresce, possa

expandir seu imaginário e adquirir conhecimento de forma independente.

O número de indivíduos submetidos às duas formas de educação excepcionais, se comparado

com a massa de indivíduos submetidos à educação progressiva e tecnológica da época, é muito

pequeno. Em resumo, a cena geral da educação dessa época é o seguinte: em um polo está uma

educação elitizada, no outro, uma educação que tenta seguir a uma tradição, e no centro uma

massa enorme de indivíduos educados conforme o que de mais atual e tecnologicamente viável

pode lhe ser oferecido.

5.2.2 2a Camada - 20 anos

Nos dois polos da cena educacional há pouca modificação nos métodos educacionais apli-

cados. A educação elitizada segue seu curso normalmente, quase que de forma anônima; a

educação de tradição37, também segue seu curso discretamente, porém, por vezes, é exposta e

socialmente criticada. Diferentemente dos indivíduos do polo elitizado, os indivíduos do polo35V. Seção 2.1.2: O Codex Romano.36V. Seção 2.1.3: A Velha Pena e as Novas Cores Medievais.37Uso aqui a designação “educação de tradição” para se distanciar do significado, mais comum correntemente,

da chamada “educação tradicional”, que denota, na verdade, o modelo de ensino em sala de aula que temos

atualmente, e que se estabeleceu durante a Idade Moderna.

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tradicional são pessoas comuns que convivem em sociedade normalmente, e por isso possuem

uma maior exposição. A tecnologia é utilizada pelos educadores de ambos os polos, e sobretudo

pelos do polo tradicional, para realizar contatos com outros indivíduos, marcar encontros e

participar de conferências virtuais. Para eles, a tecnologia é sempre utilizada como um meio,

não como um fim. O centro da cena educacional, onde está localizada a educação progres-

siva e tecnológica, é que sofreu grandes mudanças. Como nesse modelo de educação se preza

pela inovação e pelo progresso, nada mais normal do que estar sempre sendo alimentado por

novas teorias e tecnologias educacionais. Enquanto nos tipos de educação dos polos há uma

constância, no do centro o que há é o progresso constante.

As pesquisas no campo da I.A. (Inteligência Artificial) progrediram bastante, chegando a ser

criadas máquinas que simulam conversas com os seres humanos de modo satisfatório. Isso levou

a pedagogos e administradores educacionais a investirem mais nessas novas ferramentas, já que,

segundo eles, os resultados de testes com crianças e adolescentes se mostraram favoráveis. Além

do mais, as I.A.’s já vinham há algum tempo sendo utilizadas para auxiliar os alunos em casa a

fazer trabalhos escolares. Munido de tais alegações o governo justifica a criação de um projeto

de implementação de uma I.A. central educativa, que será programada por psico-pedagogos e

professores das diversas áreas de ensino, e alimentada por um banco de dados com os perfis de

todos indivíduos que passaram pelo sistema educacional, armazenados durante décadas.

No mercado de trabalho o contingente de profissões que são exercidas remotamente, em

regime domiciliar, cresce cada vez mais. Uma parte dos profissionais já são assistidos por I.A.’s

fornecidas por sua empresa para execução de suas funções remotamente. Desse modo, nada mais

natural para uma sociedade que cultua o progresso do que incorporar ao sistema educacional

o que há de mais moderno no mercado. Assim as crianças podem se habituar desde cedo e

estarem preparadas para os novos parâmetros do mercado de trabalho. Então, o que se segue é

uma migração de parte dos indivíduos da escola física para o ambiente domiciliar educacional

assistido pela I.A central educativa disponibilizada pelo governo. Isso atendeu a demanda de

certa parte da população que, influenciada pelo crescimento da prática do homeschooling nos

últimos anos, ainda tinha receio de adotá-la do modo tradicional, por pensar que não conseguiria

conciliar o trabalho com a dedicação que a prática requeria, mas por trabalhar em casa sentia

vontade de tentar. A ideia da I.A central educativa fornecida pelo governo aparece como

solução para essas famílias, fornecendo-lhes uma espécie de pseudo-homeschooling. Algumas

dessas famílias aderiram ao regime integral domiciliar, já outras aderiram ao regime em parte

domiciliar, em parte escolar. De toda forma, a I.A. educativa era o centro que regia todo o

currículo escolar, o aluno estando em casa ou na escola. Sob a visão dos agentes do poder,

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essa manobra é importante para evitar a evasão de alunos do sistema progressivo tecnológico

central para outros modelos de educação localizadas no polo tradicional.

É importante para os agentes do poder que utilizam o aparelho do Estado como instrumento

para suas ações, que se mantenha o caráter manipulativo da instituição escolar. Sem isso não

conseguiriam que o futuro se apresentasse para eles como fator dominável. Perderiam o controle,

e seriam vítimas de um processo alheio às suas vontades, composto de iniciativas particulares

e partindo de uma multidão de indivíduos, e que poderiam desencadear uma série de eventos

que culminariam na perda total, ou em parte, do poder que exercem. Isso se apresenta ainda

mais evidente quando, devido aos avanços da robótica e da inteligência artificial, a maioria

dos trabalhos mecânicos, e tantos outros que demandavam grande esforço e tempo do homem,

foram substituídos pelas máquinas, proporcionando mais tempo livre às pessoas, que podiam

empregá-lo da melhor forma que lhes conviessem. Entretanto, esse tempo livre é preenchido

pelas produções de uma forte e pujante indústria do entretenimento38, que complementa, valida

e contribui na formação do indivíduo educado no sistema progressivo e tecnológico central da

cena educacional de então. Afinal, a maioria das crianças e adolescentes são ensinados através

de simulações virtuais provenientes de tecnologias inventadas pela indústria do entretenimento.

Essas tecnologias são assimiladas pela I.A. central educativa e aplicadas como método educaci-

onal, seja na escola ou em casa. Essas simulações, que se apresentam às crianças em forma de

jogos virtuais, são previamente planejadas e pré-programadas pelos administradores educacio-

nais para que desenvolvam as aptidões estabelecidas no plano curricular educacional unificado.

A I.A. central educativa tem a capacidade de, através do perfil do aluno, poder adaptar a

maneira como as aptidões obrigatórias lhe serão ensinadas. Em suma, ela consegue ensinar a

mesma coisa de milhares de formas diferentes de acordo como o perfil do indivíduo, estabele-

cendo assim uma educação uniformizada e igualitária39. Para o bem comum e desenvolvimento

da sociedade40 como um todo, os aspectos individuais são suprimidos de forma gradual desde

a mais tenra idade, impondo uma educação uniformizada e entretenimento massificado, para

evitar o gênio da contrariedade e contestação, fazendo com que o indivíduo, que cresce nesse

meio, deseje e goste de tudo o que lhe é apresentado, como se ele próprio o tivesse escolhido

livremente sem nenhuma influência externa, e ainda alegando ter opinião própria e pensamento

crítico.

O que vemos acontecer aqui para alguns indivíduos, é o início da substituição da figura de38V. Seção 5.1.5: A Influência da Indústria do Entretenimento.39V. Seção 4.3.1: O Triângulo do Domínio Existencial.40V. Seção 4.3.2: O Circuito Triangular Humano.

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apego41, outrora centrada em um ente familiar ou professor, por uma entidade artificial, que

de agora em diante fará o papel de mediador entre o indivíduo e a realidade. Conhecendo

a caráter mimético42 do ser humano, como concebido por René Girard, em que o indivíduo,

incapaz de desejar algo livremente e de forma autônoma, só o deseja por intermédio de um

outro indivíduo, tentando imitá-lo para alcançar o mesmo objeto desejado, e que esse outro

indivíduo no qual ele se espelha, principalmente nos primeiros anos de sua vida, é identificado

na figura de apego, não é difícil perceber a potencial capacidade de transformação de sua

personalidade a partir de uma maior exposição a uma personalidade artificialmente construída

e programada para gerar estímulos específicos e conduzir às respostas desejadas, dando uma

aparência de liberdade de investigação, porém sempre colhendo dados de seu comportamento,

para posteriormente poder influenciá-lo de melhor maneira, similar ao que os algoritmos43 de

motores de buscas na internet já o faziam de forma menos personalizada. Assim, as crianças e

adolescentes educados e assistidos na maior parte do tempo por uma I.A. tendem a criar uma

empatia pela personalidade artificial, e ,através do mimetismo, desejar todas possibilidades que

a tecnologia pode oferecer. Se o simples objetivo de uma I.A. é se atualizar e estar sempre

munida da mais avançada tecnologia, assim também será o desejo de seus discípulos.

Nesta mesma época começam os primeiros testes em humanos da implantação de interfaces

cérebro-máquina44. Após um longo período de testes em animais, os primeiros indivíduos da

espécie humana a serem escolhidos para testar a nova tecnologia foram pessoas que possuíam

alguma tipo de distúrbio neurológico ou sensorial. Embora a proposta inicial dessa tecnologia

fosse corrigir tais doenças, a sua aplicação não ficou reduzida apenas ao campo médico, e isso se

deve principalmente à afluência de dois fatores: o caráter mimético do ser humano e a intimidade

tecnológica de toda uma geração criada e educada desde a mais tenra idade em contato direto e

contínuo com diversos artefatos tecnológicos. Os primeiros a usarem os implantes de interface

cérebro-máquina sem objetivos clínicos foram aqueles indivíduos que possuíam um contato

acima da já alta média de utilização de tecnologias, como, por exemplo, gamers profissionais e

programadores, e que se submeteram a isso, como eles próprios acreditam, de livre e espontânea

vontade. A nova tecnologia fez com que aumentassem absurdamente seu desempenho em suas

respectivas atividades, o que levou a outros indivíduos, receosos de a utilizarem, a almejarem

tal objetivo. Afinal, as I.A.’s estavam ficando cada vez mais autônomas na realização de tarefas

específicas, e determinados indivíduos temiam por perder seus empregos se apresentassem menor41V. Seção 4.3.3: O Triângulo da Aprendizagem.42https://www.erealizacoes.com.br/blog/teoria-mimetica/43V. Seção 5.1.4: A Dependência Tecnológica.44V. Seção 5.1.1: A Evolução Tecnológica Acelerada.

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desempenho do que elas. Eis uma nova revolução no mercado de trabalho.

A herança de uma educação com um ideal empregatício, baseado na preparação do indivíduo

para ingressar no futuro mercado de trabalho, e a junção disso com o ideal do progresso garan-

tido, requer, como já foi dito, a incorporação do que há de mais avançado tecnologicamente no

mercado ao sistema educacional.

5.2.3 3a Camada - 30 anos

Por esta época, a cena educacional se desenha da seguinte forma: os dois polos permanecem

firmes, conservados a cada geração por seus respectivos membros que foram educados e criados

neles, e guardam consigo o senso de continuidade e respeito ao esforço e trabalho de seus

pais. Essa preservação e esse sentimento de participação na conservação dos valores de seus

ancestrais, dão a esses indivíduos um terreno firme e seguro por onde podem caminhar. Isso

lhes ajuda a conservar as intenções, assimilando as mudanças e reajustando os meios de ação. A

força dos polos, e sobretudo a do polo elitizado, reside nisso. Pois apenas uma ação contínua e

sistemática através de gerações com a firme intenção de realizar um projeto baseado nos valores

compartilhados por pessoas que conservam laços estreitos, sejam famílias ou grupos, é que faz

com que tenham o futuro como dominável.

Embora ambos os polos possuam essa força, as suas respectivas intenções são divergentes,

o que causa, naturalmente, uma disputa, realizada principalmente no campo educacional, e

especialmente na educação básica, pois é onde acontece as fases decisivas do aprendizado.

No polo elitizado, prega-se externamente por uma educação progressiva, tecnológica e não-

cognitiva, visando estabelecer uma sociedade altamente uniforme, organizada e administrada,

enquanto que internamente prezam por educar os seus filhos com uma educação sólida para que

liderem essa sociedade que está sendo construída e financiada por eles. Já o polo tradicional,

não tanto organizado quanto o polo elitizado, e constituído de pequenas comunidades familiares,

prezam por uma educação liberal, onde as famílias teriam uma maior liberdade para escolher

como gostariam de educar seus filhos, indo contra qualquer tipo de uniformização educacional.

Esse combate cultural entre os polos, travados por indivíduos maduros, produtos de ambos os

tipos de educação, tem como campo de batalha, e território a ser conquistado, o centro da cena

educacional. No centro, estão localizados os indivíduos implantados com interfaces cérebro-

máquina, os assistidos por I.A.’s e os que frequentam as escolas progressivas e tecnológicas. Os

indivíduos do primeiro grupo se manifestam em menor quantidade, os do segundo, em uma

quantidade um pouco maior, no entanto a maioria dos indivíduos ainda pertencem ao terceiro

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grupo do centro da cena educacional. Como pode-se notar, a maior parte desse território já foi

conquistado pelo polo elitizado, façanha realizada principalmente através do poder econômico

de que dispõe. Porém alguns fatos vieram à tona, pondo em xeque a continuidade do projeto de

uma sociedade altamente organizada e tecnológica desejada pelo polo elitizado, fazendo com que

o pêndulo da cena educacional começasse a desacelerar na direção para qual se encaminhava,

preparando-se para a mudança de sentido em seu movimento em direção ao polo contrário.

A sociedade já se apresenta em alto nível de automação tecnológica. A robótica avançada

associada a uma inteligência artificial bem desenvolvida fez com que grande parte dos trabalhos

mecânicos, técnicos e científicos outrora exercidos por humanos fossem substituídos por máqui-

nas. Caso algum indivíduo desejasse exercer qualquer encargo em áreas técno-científicas, teria

que fazer uso da interface cérebro-máquina para potencializar sua capacidade. As I.A’s chega-

ram a um estágio muito avançado, e qualquer descoberta científico-matemática são realizadas

através de suas simulações automatizadas ou em pareamento com um cérebro humano. Porém,

a finalidade mais comum a que se começou a ser usada a interface cérebro-máquina foi no ramo

do entretenimento. Esse tipo de conexão proporcionou um turbilhão de novas sensações aos

indivíduos, que podiam escolhê-las e desfrutá-las ao seu bel-prazer.

A maior parte dos empregos45 que ainda são exercidos por humanos estão mais concen-

trados nas áreas da saúde mental, da terapia ocupacional, da assistência social e religiosa,

da cirurgia assistidas por I.A., e mais algumas outras derivadas dessas e que o fator humano

ainda seja estritamente necessário. A economia, por essa época, ia muito bem devido à auto-

mação tecnológica e ao desenvolvimento biotecnológico na produção dos insumos necessários

à população. A ausência de necessidade de que todos os indivíduos da sociedade tivessem

que trabalhar para que a economia funcionasse começou a provocar certas mudanças. Embora

existissem pessoas que trabalhavam por conta própria e apostavam em um mercado made by

human, isso era pequeno comparado à indústria automatizada, e esse tipo de mercado estava

reduzido a locais distantes dos grandes centros urbanos. A consequente ausência de empregos

causada pela automação tecnológica fez com que o governo criasse programas de assistência

a indivíduos naturalmente desempregados, fornecendo-lhe um auxílio financeiro mais do que

necessário para viver comodamente: uma produção pujante e automatizada precisaria de um

público consumidor constantemente ativo.

Os indivíduos do centro da cena educacional foram educados desde a mais tenra idade em

um ambiente altamente tecnológico e conduzidos por um ensino não-cognitivo, priorizando a45V. https://www.theguardian.com/us-news/2017/jun/26/jobs-future-automation-robots-skills-creative-

health

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mudança comportamental para a perfeita adequação à sociedade almejada, em detrimento de

um ensino cognitivo que lhe daria liberdade de aprendizado; foram adquirindo uma dependência

cada vez maior das tecnologias produzidas, sendo expostos a elas com uma maior freqüência; a

interação com inteligências artificiais e o bombardeamento de informações acessados por esses

indivíduos na rede mundial criou uma espécie de psicose informática alterando sua visão da

realidade cotidiana; a artificialização dos vários aspectos da sociedade fez com que o imaginário

do indivíduo empobrecesse e a essência das coisas fossem perdidas, imersas num oceano de

quantidades46 por onde navegava a sociedade. Todos esses aspectos fizeram com que boa parte

dos indivíduos do centro da cena educacional se sentissem desorientados. Eles não possuíam a

estabilidade de que dispunham os polos da cena educacional, estavam no centro do progresso

e das mudanças frequentes. Essa desorientação fazia com que esses indivíduos, tentando se

agarrar a algum aspecto imaginativo de segurança, obedecessem docilmente àqueles que, ao seu

ver, teriam o poder de garanti-la, isto é, o Estado e todo o seu aparato tecnológico.

Esse senso de desorientação impele a um desejo de fuga da realidade, o que foi suprido

imediatamente por tecnologias como, por exemplo, a interface cérebro-máquina, com a qual o

indivíduo podia experimentar diversas sensações que os deslocassem da realidade desconfortável

da vida. Boa parte dos indivíduos vive em um intensa imersão virtual, sendo, para eles, cada

vez mais desinteressante a realidade cotidiana. A indústria do entretenimento cresce. A maior

parte das coisas que são consumidas intelectualmente provém do que as tecnologias podem

oferecer, desde informações até produções artísticas feitas artificialmente por máquinas, que

simulam a música, as artes plásticas, a literatura e o cinema. A diferença entre entretenimento

e alta cultura deixou de existir para esses indivíduos, e a produção cultural do centro da cena

educacional é praticamente nula. São apenas consumidores do que as máquinas podem lhes

oferecer.

A ausência de propósitos e de responsabilidades desses indivíduos adultos, que quando

crianças receberam uma educação progressiva e tecnológica, fazem com que eles se sintam,

de certa forma, pequenos perante o potencial técnico-científico das máquinas. A carência de

liberdade interior e de iniciativa pessoal para produzir alguma obra genuinamente humana

que tenha relevância para os seus pares, fez com que crescesse interiormente nesses indivíduos

sentimentos de inferioridade, insegurança, frustração e isolamento, mesmo estando rodeado por

uma quantidade riquíssima de recursos. Porém, exteriormente apresentavam uma junção de

indiferença e superioridade por viver em uma sociedade que tinha alcançado um alto progresso.46V. Seção 4.3.1: O Triângulo do Domínio Existencial.

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Na verdade eles possuíam a sensação de que as circunstâncias externas exerciam um controle47

sobre eles de forma irresistível, chegando a eles próprios desejarem tal controle de maneira a

amenizar o sentimento de insegurança iminente. Esse tipo de comportamento fez com que a

busca por profissionais de saúde mental aumentasse, e tratamentos fossem desenvolvidos para

atenuar esses sintomas.

Esses acontecimentos puseram novamente em voga no debate público, após décadas de re-

lativo esquecimento, a interpretação do que vem a ser a essência do ser humano, e como ele

deve se relacionar com a tecnologia. Do mesmo modo que no antigo teatro grego os poetas

escreviam suas peças para dar sanção a uma mudança de ordem social através da reinterpre-

tação do mito48, agora, os indivíduos do polo tradicional faziam isso a sua maneira. Através

da produção de diversas obras que tinham como tema principal a relação do homem com a

tecnologia, e que atacavam o mito do progresso garantido, o polo tradicional foi conquistando

espaço no centro da cena educacional, o que fez com que a disputa entre os polos da cena

educacional se tornasse mais acirrada. De um lado um poder econômico; do outro um poder

intelectual. Esse embate cultural mais aberto começou a provocar mudanças na estrutura so-

cial, ao ponto que em certo momento, por meio da influência das obras colocadas em circulação

pelo polo tradicional, voltaram a ser pronunciadas no meio educacional as seguintes questões:

“A educação deve permanecer basicamente artística e poética ou deve tornar-se científica? O

processo educativo é, primordialmente, conservação do passado, ou implica essencialmente um

processo de criatividade?49”

5.3 A Cena Futura

A composição da cena educacional para um horizonte futuro de 30 anos pode ser vista

na Figura 5.1. Nela podemos identificar seis categorias representativas: uma categoria no polo

elitizado, constituída pelas escolas de elite dos agentes do poder; três categorias no centro, cons-

tituídas pelos indivíduos implantados com interface cérebro-máquina, pelos que são assistidos

por inteligências artificiais (I.A.’s), e pelos frequentadores de escolas progressivas e tecnológicas;

e duas categorias que formam o polo tradicional, constituídas pelos indivíduos que praticam

a educação domiciliar (homeschooling) e os que frequentam as pequenas escolas comunitárias

construídas por famílias que partilham dos mesmos valores.47V. locus de controle na Seção 5.1.4: A Dependência Tecnológica.48V. CARPEAUX, Otto Maria. História da Literatura Ocidental - 4a. reimp. - Brasília: Senado Federal,

Conselho Editorial, 2011. 4v. 688p. (Edições do Senado Federal; v. 107-A).49V. Seção 4.1: Questões Eviternas.

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Figura 5.1: Representação da Cena Educacional Futura.

Como foi dito, essas categorias são apenas representativas, já que a realidade sempre se

revela muito mais matizada do que a possamos descrever. Pois, como já mencionado50, Jouvenel

afirma que “toda representação intelectual de uma realidade é fundamental e necessariamente

inadequada; mas que, não obstante, é indispensável representar as coisas para delas falar”.

Essas seis categorias podem ser consideradas sob dois aspectos: ou como possibilidades

independentes de realização futura, ou como uma possibilidade de realização simultânea na

devida proporção em que aparecem na pirâmide da Figura 5.1. Embora este último aspecto é

que foi levado mais em consideração neste trabalho, sobretudo pela forma como foram escritos

os cursos, velocidades e reflexos, o leitor possui essa liberdade de interpretação. O que não é

passível de liberdade de interpretação, e está fixo, é a necessidade de, na representação, existirem

dois polos, sendo um mais revolucionário e o outro mais conservador em termos educacionais,

e um centro que receberá influências de ambos os polos. Trata-se de uma estrutura fixa que é

observável no decorrer da história humana, e por isso é preservada aqui.

Da perspectiva social podemos dizer que o polo elitizado constitui-se de um grupo pequeno,

bem articulado e que possui poder político e econômico. Esse grupo possui meios de ação para

influenciar todos os demais grupos da pirâmide, de forma a instaurar e manter seu projeto

de poder. Ele está bem simbolizado pelo pequeno triângulo encastelado no topo da pirâmide50v. Seção 3.2: Futuribles

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da Figura 5.1. O centro é representado por três trapézios, simbolizando os níveis de mudança

causados pelo progresso tecnológico na maior parte da população, isto é, na massa, e que variam

verticalmente, de cima para baixo, do maior ao menor impacto de mudança provocado. O fato

do centro está comprimido entre polos conota a influencia que recebe de ambas as partes, de

modo que a proximidade geométrica representativa entre as categorias sugere um maior contato

entre os indivíduos dos respectivos grupos. O polo tradicional constitui-se de grupos dispersos

mas que partilham dos mesmos valores de conservação do passado. Ele está simbolizado pelos

dois trapézios achatados na base da pirâmide, que além de simbolizar esse espalhamento dos

grupos, também sugere a forte pressão que recebem de toda a estrutura social acima, porém,

através do seu poder cultural, o polo tradicional pode balançar as estruturas da sociedade

encabeçada pelo polo elitizado.

Após trinta anos de predominância do ensino técnico-científico e não-cognitivo no centro

da cena educacional, ou seja, na maior parte da população, esses indivíduos que receberam

tal instrução agora se encontram em impasse: as máquinas, altamente desenvolvidas, possuem

uma capacidade técnico-científica muito maior que os seres humanos, portanto, nada que lhes

foi ensinado nessa área servirá para realizar algo notável perante o desempenho tecnológico

vigente; por outro lado o ensino não-cognitivo o privou da liberdade interior de aprendizado e

da capacidade de se auto-aperfeiçoar intelectualmente. Ao invés disso, o ensino não-cognitivo

lhes ofereceu um conjunto de regras a serem seguidas e uma mudança comportamental para se

adequar a sociedade almejada pelo polo elitizado, em detrimento da competência linguística e

habilidade de expressão. Como afirmou Jouvenel, “o único projeto indiferente às circunstâncias

é o de auto-aperfeiçoamento. Isso é ponto pacífico, e convém não esquecê-lo”. Anulando-se

sobretudo a capacidade linguística do indivíduo, a qual ele adquire ainda criança durante sua

alfabetização, e que lhe dará os instrumentos intelectuais necessários para que ele venha a

aprender tudo o mais, retira-se-lhe a independência intelectual e, consequentemente, sua ca-

pacidade de auto-aperfeiçoamento, sendo seu destino determinado apenas pelas circunstâncias.

O poeta, escritor e filósofo americano Ralph Waldo Emerson já havia escrito: “Intellect annuls

Fate. So far as a man thinks, he is free”.

Desse modo, a maior parte da sociedade tornou-se dependente das circunstâncias, preferindo

o conforto e “segurança” à liberdade, que consigo traz seus riscos. Na antiga Grécia, o poeta

lírico Píndaro, na sua Primeira Olímpica já alertava sobre esse estado de espírito:

“Quem é fraco nunca enfrenta

grande perigo: mas, se a morte é certa,

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por que ficar sentado à sombra, à espera

duma velhice inglória?”51

Como já mencionado na seção anterior, esse tipo de educação formou indivíduos inseguros,

já que eles próprios não conseguiam ver motivos para pensar o contrário: numa sociedade

em que o mais alto valor é o progresso tecnológico, as máquinas os superaram, e, sem terem

como dar vazão aos seus sentimentos por limitação da linguagem que lhes foi imposta, sofrem

interiormente num estado de letargia que vai da indiferença à frustração.

Segundo L’Écuyer52, a beleza é que dá sentido a rotina da criança. Em uma sociedade em

que tudo é quantificável, isto é, mais significa melhor, não é possível oferecer às crianças a beleza

no sentido em que ela fala, já que a beleza está relacionada à qualidade, e não à quantidade.

O indivíduo do centro da cena educacional foi privado da beleza. Tanto é o fato de que para

eles a ideia de objetividade na qualidade das coisas é motivo de escândalo. “Se muitas pessoas

gostam de tal coisa, é porque há beleza naquilo”, acreditam eles. Novamente a quantidade

se sobrepõe. Os gregos antigos (sempre eles) tinham um nome específico para designar essa

ausência de contato com o belo em fases decisivas da formação do indivíduo. Chamavam-na

apeirokalia53, o que quer dizer simplesmente “falta de experiências das coisas mais belas”. A

ausência da figura de apego na condução da criança às coisas mais belas, as quais lhe dará

um nexo simbólico a uma infinitude de dados sensíveis que chegam até ela por diversos meios,

faz com que, quando adultos, a inteligência desses indivíduos fique deslizando entre abstrações

sem estabelecer pontes com a realidade, tendo raciocínios dispersos, inexpressivos e vazios,

características que demonstram a impotência de conhecer.

Parafraseando Ortega y Gasset [9], não é que o indivíduo do centro da cena educacional seja

idiota. Na verdade, possui mais capacidade intelectiva que o de qualquer outra época. Mas

essa capacidade não lhe serve pra nada. A vaga sensação de possuí-la, aliada à exuberância

tecnológica em seu entorno, serve apenas para ele fechar-se em si mesmo, e não para usá-la. O

caráter personalista de certas tecnologias anulou a intimidade inter-pessoal entre os indivíduos.

A partir dessas tecnologias, sejam as I.A.’s ou os implantes cerebrais, eles têm acesso a uma

infinidade de informações, e consagram-se definitivamente a colecionar tópicos, preconceitos,

pedaços de ideias, ou simplesmente palavras vazias que foram amontoando em seu interior.

Tratam-se de indivíduos interiormente fragmentados.

Todo esse panorama causou um declínio na produção artística. A produção de uma obra de51Jornal do Brasil, 1957.11.03 - Suplemento Dominical, p. 5 (Tradução de Mário Faustino)52V. Seção 4.3.4: O Triangulo da Aprendizagem.53V. CARVALHO, Olavo de. Apeirokalia. Bravo!, Ano I, no1, novembro de 1997.

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arte relevante envole, no sentido aristotélico, a forma como ela é composta, ou no correspondente

guénoniano, a qualidade de sua composição. É justamente a harmonia na forma de uma obra

artística que proporciona o nexo simbólico entre as abstrações e a realidade tão necessária para

o desenvolvimento intelectual do indivíduo. A matéria, ou a quantidade, são necessários, porém

não são essenciais na construção de uma obra de arte. Contudo, como já mencionado, o que se

vê na sociedade de então é o império da quantidade e da matéria. A indústria do entretenimento

produz cada vez mais tecnologias que proporcionam sensações e experiências mais estimulantes.

A diferença entre arte e entretenimento é ignorada no centro da cena educacional.

A influência do polo elitizado no centro da cena educacional consiste em fomentar o maior

consumo de tecnologias e romper com qualquer tipo de tradição. Como já havia escrito Ber-

nanos, “o progresso já não está no homem, mas na técnica, no aperfeiçoamento dos métodos

capazes de propiciar uma utilização cada dia mais eficaz do material humano” [2]. Assim pro-

cedem os agentes do polo elitizado, servindo-se de seu poder econômico para a produção e

incentivo de estudos sociais na formulação de teorias de controle comportamental baseadas nos

dados colhidos tecnologicamente da população. O rompimento com qualquer tipo de tradição,

e o esvaziamento dos valores que ela traz consigo, também é crucial para dar prosseguimento

ao seu projeto de realização de uma sociedade totalmente organizada, tecnologicamente auto-

matizada e administrada por eles. Pois, rompendo-se com a tradição, rompe-se também com

todos os seus valores, restando apenas um valor ao qual todos irão obedecer: o valor econômico.

Ora, o poder econômico pertence justamente ao polo elitizado, o que lhe dará aval para fazer o

que desejar sem os impedimentos morais conservados pela tradição.

A influência oposta vem do polo tradicional, que começou a repercutir com maior intensidade

no centro da cena educacional devido à toda uma produção cultural que abordava o drama

humano da sociedade vigente. Aliado ao fato de que a busca por profissionais de saúde mental

tinha aumentado, o interesse pela produção cultural do polo tradicional cresceu por parte

dos indivíduos do centro que se sentiam angustiados e desorientados numa sociedade onde as

mudanças são frequentes. Buscavam se apegar a algo mais sólido e duradouro, e encontravam

amparo nas obras produzidas pelo polo tradicional. Boa parte desses adultos fragmentados

começaram a querer juntar os seus cacos, e, aliados ao polo tradicional, impedir que mais

crianças sofressem de tal modo como eles.

Em sua produção cultural, o polo tradicional também trouxe de volta a beleza. O impacto

que isso provoca é tímido inicialmente, pois como disse Manuel Bandeira, há, na beleza, um

tanto “De fragilidade e incerteza”54, porém, o efeito a longo prazo, é avassalador. No começo54Verso do poema Madrigal Melancólico do poeta.

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parece estranho a uma sociedade onde reina o entretenimento e o utilitarismo tecnológico, o

impacto causado pelo contato com uma verdadeira obra de arte onde a beleza é revelada. Para

eles, o prazer garantido do entretenimento e o bem-estar utilitário da tecnológica contrastam

completamente com a incerteza, provocada pelas divergência de opiniões que surgem em torno

daquela obra, e com a aparente inutilidade da arte. A essas duas objeções, Oscar Wilde55

responderia o seguinte: “A diversidade de opinião sobre uma obra de arte demonstra que tal

trabalho é novo, complexo e vital”. E também: “Podemos perdoar um homem por fazer alguma

coisa útil, desde que ele não a admire. A única desculpa para fazer alguma coisa inútil é

podermos admirá-la intensamente. Toda arte é completamente inútil.”

Coisas úteis são descartadas frequentemente, mas o que é belo permanece: tecnologias de

tempos em tempos são substituídas por outras mais novas, porém Homero foi lido tanto no

papiro como no e-book; construções consideradas modernas décadas atrás, feitas para serem

úteis em determinadas aspectos, são demolidas para em seu lugar abrigar novas utilidades,

porém antigas construções barrocas, onde existem doze colunas “inúteis” no lugar onde apenas

quatro ou seis colunas seriam o bastante para dar sustentação à estrutura, são preservadas.

A beleza tem um poder transformador que age interiormente no indivíduo, arrancando-lhe do

seu estado de inércia e provocando-lhe de uma maneira que, mesmo após ele se distanciar

fisicamente daquela obra de expressa beleza, sua imaginação fervilha em contemplação à ela.

Já nos entretenimentos tecnológicos, como afirma L’Écuyer, o que há, por parte do indivíduo, é

uma “fascinação ante estímulos frequentes e intermitentes” [17], ou seja, ele está passivo diante

da multidão de sensações emitidas pelo artefato tecnológico, sendo o consequente afastamento

prolongado desse objeto motivo de aborrecimento por parte do indivíduo.

A regra comum no centro da cena educacional, influenciada sobretudo pelo polo elitizado,

é a seguinte: admiração pelas coisa úteis e desprezo pelas coias belas. Isso não só é visto cultu-

ralmente, mas também nas coisas menores. As construções, os meios de transporte, os objetos

pessoais, todos eles desprovidos de beleza, fabricados por uma indústria tecnologicamente au-

tomatizada para serem maximamente eficientes e “seguros”. O visual das cidades assume um

tom asséptico, ou melhor, pan-higiênico, como descreveu Ivan Illich, “um mundo onde todos os

contatos entre os homens e entre os homens e seu mundo sejam resultado de previsão e ma-

nipulação” [12]. Como um navio quebra-gelo, o polo tradicional começa a rachar essa imensa

plataforma de indiferença e apatia em que se encontram os indivíduos do centro da cena edu-

cacional. Aos poucos conseguem restabelecer o debate saudável sugestionado pelas questões55Trechos retirados do prefácio da obra do referido autor, O Retrato de Dorian Gray, Editora Penguin - 1a

Edição, 2012.

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eviternas56, tentando equilibrar a balança que no momento pende para um lado, e que talvez

em algum outro momento da história penda para o outro, e necessite de um novo reajuste.

Mas agora eles tentam mostrar a importância e a força de um educação artística e poética, de

conservação do passado, apostando no que Dostoiévski uma vez escreveu: “A beleza salvará o

mundo”.

***

POST-SCRIPTUM

Ivan Illich escreveu o seguinte: “As máquinas podem nos dar resultados e respostas, mas e a

surpresa da pergunta inesperada que abre novas portas?” Reescrevo essa indagação do seguinte

modo: As tecnologias podem nos dar resultados e suprir as nossas necessidades materiais, mas

e o discurso poético que abre as portas da imaginação e supri as necessidades do espírito? Há

quem diga que as máquinas podem, ou poderão um dia, fazer arte. Mas isso só é dito por

aqueles que possuem um conceito de arte amputado, que acreditam que a função da arte é

expor ideias, difundir concepções, demonstrar irreverência, ou até mesmo chocar. O cineasta

russo Andrei Tarkovski vai mais afundo no conceito de arte, e escreve:

“A função específica da arte não é, como comumente se imagina, expor ideias, di-

fundir concepções ou servir de exemplo. O objetivo da arte é preparar uma pessoa

para a morte, arar e cultivar a alma, tornando-a capaz de voltar-se para o bem.”57

Esse anseio e essa angústia que a raça humana possui perante a ideia da certeza da morte

é o que move aqueles indivíduos munidos de verdadeiro dom artístico a produzir algo que sirva

de um leve consolo ao espírito, fazendo com que este transcenda o imediato e alcance alturas

inimagináveis. A arte ajuda a aliviar a tensão e a gravidade de estar diante da complexidade

paradoxal da realidade na qual estamos instalados. Afinal, em termos de futuro, a única coisa

a qual o homem tem certeza de que acontecerá, é a mesma que produz em seu peito as dúvidas

mais insondáveis: a sua morte. Uma máquina não pode simular isso, não nos pode oferecer

nada quanto a isso, nem nos pode dar alguma explicação os recortes da realidade realizados

pela ciência. Talvez essa dúvida capital seja o que nos une como seres humanos, independente

de crença. Prova disso é que, considerando desde as menores tribos até as grandes civilizações,

embora alguns povos não possuam ciência, tecnologia, economia ou matemática próprias, todos,

sem exceção, possuem um narração poética que funda e dá o sentido de sua existência.56V. Seção 4.1: Questões Eviternas.57TARKOVSKI, Andrei Arsenevich. Esculpir o tempo. 2. ed. -. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 306 p.

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O sentido etimológico da palavra “educação” vem do latim “ex ducere”, que significa “conduzir

para fora”. É justamente o que acontece quando se conta uma história, ou quando se expressa

algo artisticamente: o indivíduo conduz algo que está em seu interior ao mundo exterior,

impactando um outro indivíduo, e este, por sua vez, interiormente impactado por aquilo, começa

a se desenvolver exteriormente, saindo de si mesmo e se instalando no mundo. Tal como na

aurora de qualquer civilização ou de qualquer ideia, também na aurora do homem, isto é, na

infância, é necessário o discurso poético, o qual irá instalar o indivíduo no mundo em que

vive. Sem isso ele fica desorientado, perdido no tempo e no espaço. Entretanto, para haver

um discurso é necessário, no mínimo, dois interlocutores. Sendo um deles a criança, o outro

deve ser um adulto consciente do seu papel de intermediador entre aquele pequeno indivíduo e

a realidade. Isso não é terceirizável.

A palavra “criança”, na língua portuguesa, possui um peculiaridade significativamente re-

veladora em relação ao sujeito o qual designa, e que nas demais línguas latinas não há. Essa

palavra é derivado vernacular de “criar”+“-ança”, no entanto, há outros que dizem ser derivado

da palavra latina creant̆ıa, “criação”; de qualquer forma a palavra “criança” está associada ao

ato de criar. De fato, trata-se de uma necessidade da espécie humana, e que a diferencia das

outras espécies animais. Jouvenel já afirmava que seria impossível a perpetuação dos seres

humanos sem o desenvolvimento da virtude moral de dedicação aos filhos. Conscientes disso,

cabe aqui uma reinterpretação de um mito grego antigo: o mito de Tântalo58.

O mito conta a história de Tântalo, que sacrifica o seu próprio filho à mesa dos deuses, lhes

oferecendo como grande iguaria sem que eles o soubessem. Ao descobrirem a indigna oferenda

Tântalo é lançado pelos deuses ao Tártaro, onde recebe o castigo de viver sob uma árvore

frondosa, cujos os frutos estão ao alcance de suas mãos, enquanto seus pés estão mergulhados

na água. Porém, quando desloca as suas mãos para alcançar os frutos e matar sua fome, os

galhos da árvore se movem, elevando os frutos para além do seu alcance; e quando se abaixa

para saciar sua sede, a água se esvai.

O significado do sacrifício do filho realizado por Tântalo simboliza o falso oferecimento,

em que, vaidosamente, pensa-se estar oferecendo o melhor, porém trata-se de uma má ação.

Já o significado do castigo simboliza a perda total do senso da realidade. A incapacidade de

alcançar os frutos e a água é símbolo da imaginação impotente, que se tornou confusa e alienada,

culminando na esterilidade do espírito.

Compete à presente geração não sacrificar falsamente os seus filhos no altar do progresso

tecnológico, achando que se está realizando algo bom sem sabê-lo se realmente o é. Diferen-58V. DIEL, Paul. O Simbolismo na Mitologia Grega. São Paulo: Attar, 1991.

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temente do mito, em que o castigo recai sobre o pai, o castigo recairá sobre os filhos, que ao

crescerem em um ambiente repleto de estímulos constante e mudanças frequentes, de riquezas

e facilidades tecnológicas, acabarão saturados, tornando-se adultos de imaginação amputada e

entediados com a realidade presente, desejando apenas aquilo que as tecnologias podem lhes

oferecer.

Não se trata aqui de ser contra a tecnologia, mas de como a utilizamos, e principalmente

durante às fases da infância e da adolescência, pois o discurso poético, que fecunda a imaginação,

também antecede a inovação tecnológica. Seria necessário lembrar que, através do discurso

poético, pessoas e civilizações foram inspiradas também a desenvolver-se tecnologicamente?

Seria necessário recordar o que Ortega y Gasset escreveu sobre a civilização Ocidental e a Árabe?

Como aquela absorveu a poesia antiga, enquanto esta permaneceu intocada por ela, apenas

tendo contato com as ciências helênicas, e vejam como se deu o desenvolvimento tecnológico

de ambas? Seria necessário recordar toda a Seção 2.2.3? Ou o fato narrado por Tesla em sua

autobiografia de como um poema de Goethe o inspirou a ideia para a construção do motor de

indução? Acredito que não. O que não podemos é, havendo o mínimo de chance de comprometer

a saúde intelectual de qualquer indivíduo, sacrificá-la em prol do progresso da sociedade. Nas

palavras de Bernanos:

“Quando a sociedade impõe ao homem sacrifícios superiores aos serviços que ela

presta, tem-se o direito de dizer que ela deixa de ser humana, que ela já não é feita

para o homem, mas contra o homem.” [2]

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Capítulo 6

Conclusão

A educação, a princípio, tratava-se basicamente da conservação dos costumes ancestrais,

contudo, atualmente, o ritmo acelerado da produção tecnológica provocou mudanças profundas

na sociedade, de tal modo que a conservação do passado, outrora vista como uma virtude, é

vista agora com desapreço. A mudança agora é vista com bons olhos e trata-se de algo desejável.

Entretanto, essa nova forma de pensar e de agir trouxe consigo a sua cota de incertezas, pois

em uma sociedade onde as mudanças são frequentes o grau de incerteza sobre futuro aumenta.

Daí a importância de se discutir o futuro da educação considerando o impacto que o progresso

tecnológico pode provocar no meio educacional, e sobretudo na educação básica, pois trata-se de

uma fase decisiva na vida de um indivíduo, e caso ele não desfrute de determinadas experiências

importantes para a sua formação, o seu futuro estará seriamente comprometido.

Como contribuição para esse tema, esta trabalho realiza uma prospecção futura, utilizando-

se uma nova abordagem através da integração do Método Científico Aplicado às Informações

com o método dos Futuribles. Tão importante quanto a prospecção em si é a demonstração

do processo pelo qual se chegou a ela, pois isso facilita o debate e a compreensão de onde

surgiram determinadas concepções . A intenção é que essa prospecção futura participe de um

fórum previsional, onde as ideias expostas aqui podem ser expandidas ou criticadas na mesma

proporção e esforço em que aqui foram elaboradas. O fórum previsional é de extrema importân-

cia para dar continuidade a prospecção futura, pois a partir do surgimento e da diversificação

de ideias, sucederá um estado de melhoramento da prospecção provocado pela simples crítica

comparativa, promovendo, assim, meios para reflexões cada vez mais refinados. Com isso, será

possível realizar a expansão de certos pontos abordados na prospecção, e que neste trabalho

não foi possível devido à natural limitação de tempo e espaço imposta a ele. A expansão pode

ser realizada tanto verticalmente, dando continuidade e aprofundando-se nos pontos abordados

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aqui, ou horizontalmente, a partir do surgimento de ideias concorrentes e contrárias, ampliando

a visão sobre os pontos em questão.

Além disso, todo o conteúdo de pesquisa histórica, social e filosófica apresentado aqui, serve

de introdução e mediação entre os profissionais que se ocupam das respectivas áreas da Educação

e da Tecnologia, fazendo com que cada qual tenha, reciprocamente, uma melhor compreensão da

área a qual não é de sua natural formação, estabelecendo um ponto de partida para um diálogo

mais aberto e menos afetado por personalismos da profissão, isto é, pela visão recortada do

profissional que só consegue conceber as coisas a partir dos conceitos específicos da sua profissão.

Todo o material de prospecção futura derivado de um fórum previsional proporciona às pessoas

envolvidas com aquele respectivo tema a oportunidade de tomar decisões mais acertadas, pois

sem nenhuma representação imaginativa preliminar é impossível realizar qualquer tipo de ação,

e isso se revela ainda mais importante quando tais ações irão determinar o futuro de diversos

indivíduos.

A partir do amadurecimento das ideias podemos largar as simples expectativas e o frenesi

provocado pelos avanços tecnológicos, e buscar, de forma mais prudente, um uso mais apro-

priado das tecnologias no meio educacional, prevalecendo o cuidado e a atenção necessária ao

indivíduo humano que está sendo educado, para que não haja apenas o progresso tecnológico,

mas, sobretudo, o progresso humano.

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