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Universidade Federal de Sergipe Centro de Educação e Ciências Humanas Departamento de Psicologia A aluna do Curso de Psicologia da UFS, Mariane Marques de Souza Santos, apresentou a monografia de conclusão do Curso Formação de Psicólogos da UFS em maio de 2006, na cidade de Aracaju, obtendo de todos os membros da banca menção honrosa e a média 10,00. Recomendamos a monografia da mesma, intitulada "A Clínica no Contexto da Reforma Psiquiátrica: uma Proposta Ético-Estético-Política”, uma vez que esta representa uma proposta nova e ousada para a Saúde Mental, bem fundamentada teoricamente e ilustrada com a prática, podendo ser excelente contribuição para a Reforma Psiquiátrica Brasileira. O trabalho enfoca a importância de paradigmas ético-estético-políticos em detrimento de paradigmas da ciência moderna, balizadores da clínica da Psiquiatria Clássica, e demonstra como a clínica de saúde mental pode ser distinguida como uma clínica ampliada, capaz de criar novas formas de existência para quem dela participa. Aracaju, 11 de novembro de 2006 Cybele Maria Rabelo Ramalho Professora Assistente do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Sergipe Psicóloga CRP 3a/0582.

Universidade Federal de Sergipe Centro de Educação e ...newpsi.bvs-psi.org.br/tcc/47.pdf · monografia de conclusão do Curso Formação de Psicólogos da UFS em maio de 2006, na

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Universidade Federal de Sergipe

Centro de Educação e Ciências Humanas

Departamento de Psicologia

A aluna do Curso de Psicologia da UFS, Mariane Marques de Souza Santos, apresentou a

monografia de conclusão do Curso Formação de Psicólogos da UFS em maio de 2006, na cidade

de Aracaju, obtendo de todos os membros da banca menção honrosa e a média 10,00.

Recomendamos a monografia da mesma, intitulada "A Clínica no Contexto da Reforma

Psiquiátrica: uma Proposta Ético-Estético-Política”, uma vez que esta representa uma proposta

nova e ousada para a Saúde Mental, bem fundamentada teoricamente e ilustrada com a prática,

podendo ser excelente contribuição para a Reforma Psiquiátrica Brasileira. O trabalho enfoca a

importância de paradigmas ético-estético-políticos em detrimento de paradigmas da ciência

moderna, balizadores da clínica da Psiquiatria Clássica, e demonstra como a clínica de saúde

mental pode ser distinguida como uma clínica ampliada, capaz de criar novas formas de

existência para quem dela participa.

Aracaju, 11 de novembro de 2006

Cybele Maria Rabelo Ramalho

Professora Assistente do Departamento de Psicologia da

Universidade Federal de Sergipe

Psicóloga

CRP 3a/0582.

1

MARIANE MARQUES DE SOUZA SANTOS

A CLÍNICA NO CONTEXTO DA REFORMA PSIQUIÁTRICA: UMA

PROPOSTA ÉTICO-ESTÉTICO-POLÍTICA

SÃO CRISTÓVÃO- SE

2006

2

Mariane Marques de Souza Santos [email protected]

A CLÍNICA NO CONTEXTO DA REFORMA PSIQUIÁTRICA: UMA

PROPOSTA ÉTICO-ESTÉTICO-POLÍTICA

Monografia apresentada no dia 10 de maio de 2006 como pré-requisito para a conclusão do

curso de Psicologia da Universidade Federal de Sergipe, durante o décimo período, perante a

Banca Examinadora: Esp. Cybele Maria Rabelo Ramalho / Professora Orientadora; Prof. Dra.

Liliana da Escóssia Melo / Professora Convidada; Psicóloga Simone Maria Barbosa /

Profissional Convidada.

3

A CLÍNICA NO CONTEXTO DA REFORMA PSIQUIÁTRICA: UMA

PROPOSTA ÉTICO-ESTÉTICO-POLÍTICA

RESUMO

O presente trabalho monográfico teve como finalidade caracterizar a clinica no contexto da

Reforma Psiquiátrica, bem como destacar a importância de paradigmas ético-estético-políticos

como alicerces para tal clínica, em detrimento de paradigmas da ciência moderna, balizadores da

clínica da Psiquiatria Clássica. Objetivou-se demonstrar como a clínica de saúde mental pode ser

distinguida como uma clínica ampliada – por considerar como importantes todos os planos que

constituem a vida (plano social, subjetivo, político, cultural, biológico etc) – e uma clínica capaz

de criar novas formas de existência para quem dela participa. Nesse sentido, através de um

breve relato de uma experiência de estágio obtida através da participação em dois grupos do

Centro de Atenção Psicossocial Liberdade – a “Oficina de Criação” e o “Grupo Como Vai” –

pretendeu-se evidenciar tais características da clínica na Reforma Psiquiátrica. Chegou-se a

conclusão de que o dispositivo grupal, na medida em que devolve as pessoas acometidas por

transtornos mentais ao campo do coletivo (campo da produção), pode funcionar como um

intercessor de uma clínica ampliada e que fomenta a criação, já que funciona como uma máquina

de descristalização de lugares e papéis que o sujeito constrói em suas histórias, uma máquina de

produção de subjetividade e saúde. Por fim, foi defendida aqui uma proposta de clínica que

pudesse garantir a valorização da vida, a desguetificação das relações, o resgate do coletivo, da

solidariedade, da cidadania, da autonomia, da criação. Para tanto, destacou-se a importância da

manutenção de um movimento constante de resistência por parte daqueles que compõem a

clínica de saúde mental (profissionais de saúde, usuários, familiares, comunidade etc).

Palavras-chave: Clínica em saúde mental. Reforma Psiquiátrica. Paradigmas ético-

estético-políticos.

4

SUMÁRIO

I – Introdução e Justificativa...................................................................................................05

II – Problema e Objetivos........................................................................................................06

III – Procedimentos..................................................................................................................08

IV – Discussão...........................................................................................................................11

1 – História da Loucura, Surgimento da Psiquiatria e Reformas Psiquiátricas................11

1.1) Loucura nos últimos séculos medievais................................................................12

1.2) Período das Grandes Internações..........................................................................14

1.3) Surgimento da Psiquiatria.....................................................................................15

1.4) Reformas Psiquiátricas..........................................................................................19

2 – Reforma Psiquiátrica Brasileira e Surgimento dos Centros de Atenção Psicossocial...26

3 – A Clínica na Psiquiatria Clássica e o Paradigma Científico da Modernidade..............31

4 – A Clínica na Reforma Psiquiátrica e a Construção de um Novo Paradigma................38

5 – Clínica na Reforma Psiquiátrica: Clínica Ampliada e “Clínica da Criação”...............43

5.1) Clínica na Reforma Psiquiátrica: Clínica Ampliada.............................................43

5.2) Clínica na Reforma Psiquiátrica: “Clínica da Criação”........................................49

6 – A Título de Ilustração: Relato de uma Experiência........................................................55

6.1) “Oficina de Criação”.............................................................................................57

6.2) “Grupo Como Vai”...............................................................................................60

V – Conclusão...........................................................................................................................68

VI – Referências Bibliográficas...............................................................................................71

ANEXO A – Alguns textos produzidos na “Oficina de Criação”........................................76

ANEXO B – Alguns desenhos produzidos na “Oficina de Criação”...................................81

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I – Introdução e Justificativa

A Psiquiatria Clássica surgiu no bojo de um modelo epistemológico influenciado pelo

conceito de ciência como produção de “verdade” e pela noção de neutralidade científica. Sendo

assim, a Psiquiatria foi impelida a definir um objeto de estudo que pudesse observar e controlar,

sem que, no entanto, fosse influenciada pelo mesmo. A “doença mental” foi esse objeto. Como

conseqüência disso, a clínica da Psiquiatria desenvolveu-se atrelada a pressupostos que reduziam

a vida das pessoas à sua “doença”, além de esconder a complexidade da relação entre estas e os

profissionais responsáveis pelo seu cuidado.

Diante desse contexto, urge a necessidade de uma proposta de clínica em saúde mental

diferente, que valorize a pluralidade da vida, a diferença; que fomente a criação de existências

singularizadoras e que inclua a loucura como componente básico da condição e singularidade

humana. Daí a importância de escrever a presente monografia sobre como a clínica no contexto

da Reforma Psiquiátrica precisa estar embasada em paradigmas ético-estético-políticos. Tal

proposta de clínica entende que a produção de saúde, para além de uma dimensão meramente

biológica, passa pelo exercício do respeito à alteridade, pela produção de cidadania e de

singularidade e pela expressão de pensamentos e sentimentos.

Essa forma de entender a clínica encontra-se afinada com os princípios da Reforma

Psiquiátrica, movimento este que propõe a desinstitucionalização do saber/ prática da Psiquiatria

Clássica, buscando trazer novas formas de se enxergar a loucura, espaços onde ela possa ser

expressa sem preconceito, dando abertura ao desejo e, a partir daí, criando situações de produção

de subjetividades, as quais auxiliam caminhos de resgate da cidadania dos usuários. Dentro desse

contexto, afirmar a importância da invenção de uma nova clínica é firmar um compromisso

político com o movimento da Reforma Psiquiátrica.

Vale ressaltar ainda que a relevância para a Psicologia enquanto ciência e profissão de um

estudo na área da Saúde Mental encontra-se no fato de que a construção, publicação e divulgação

de experiências e conhecimentos a respeito dessa área, que tem como contexto o movimento da

Reforma Psiquiátrica, é ainda pouca quando comparada a outros campos, haja vista o pouco

tempo de existência de tal movimento aqui no Brasil.

É inevitável construir uma clínica que tem como pano de fundo a Reforma Psiquiátrica

sem aderir a um movimento de resistência contra saberes e práticas capazes de segregar, excluir,

controlar e aumentar o sofrimento de pessoas acometidas por transtornos mentais. Seguindo esse

raciocínio, afirmar a necessidade de uma clínica reinventada é também lutar pela construção de

uma Psicologia que trabalhe a favor da vida, do coletivo, da cidadania.

6

II – Problema e Objetivos

O presente trabalho monográfico teve como finalidade caracterizar a clínica no contexto da

Reforma Psiquiátrica. Para tanto, destaca a importância de paradigmas ético-estético-políticos

como alicerces para tal clínica, em detrimento de paradigmas da ciência moderna, que

fundamentaram (e ainda fundamentam) a clínica da Psiquiatria Clássica1.

Objetivou-se demonstrar como a clínica de saúde mental2 pode ser distinguida como uma

clínica ampliada – por considerar como importantes todos os planos que constituem a vida

(plano social, subjetivo, político, cultural, biológico etc) – e uma clínica capaz de criar novas

formas de existência para quem dela participa. Nesse sentido, através de um breve relato de uma

experiência de estágio em um Centro de Atenção Psicossocial, pretendeu-se demonstrar tais

características da clínica na Reforma Psiquiátrica.

A fim de atingir os objetivos propostos, essa monografia será organizada em seis capítulos.

O primeiro deles, “Introdução e Justificativa” e o segundo, “Problema e Objetivos”. Por meio do

terceiro capítulo, “Procedimentos”, será explicado que o presente trabalho trata-se de uma

monografia teórica, em que a descrição de uma experiência de estágio servirá como ilustração do

que foi mencionado durante a teoria. Como tal experiência aconteceu mediante a participação em

dois grupos do CAPS Liberdade, a “Oficina de Criação” e o “Grupo Como Vai”, ambos serão

devidamente descritos neste capítulo.

O quarto capítulo, “Discussão”, será dividido em seis subcapítulos. Os cinco primeiros

referem-se às discussões teóricas dessa monografia, enquanto que o sexto subcapítulo, associa a

essas discussões, uma experiência prática.

O primeiro subcapítulo, “História da Loucura, Surgimento da Psiquiatria e Reformas

Psiquiátricas”, pretenderá contextualizar a constituição de uma clínica em saúde mental,

reportando-se à história da loucura e à construção de saberes e práticas a ela associadas. Para

tanto, fará explanações sobre: a loucura nos últimos séculos medievais; o período das “Grandes

Internações”; o surgimento da Psiquiatria; bem como sobre as Reformas Psiquiátricas –

1 O termo “Psiquiatria Clássica” refere-se aqui à Psiquiatria que surgiu com Pinel, Tuke, Wagnitz, Rel, Esquirol e seus sucessores. A Psiquiatria intitulada como Clássica sofreu ao longo do tempo algumas transformações significativas, porém incapazes de questionar o saber-poder construtor de idéias e práticas acerca do sofrimento humano. A partir das propostas de reforma da antipsiquiatria e do projeto de desinstitucionalização de Franco Basaglia inaugura-se uma nova concepção de Psiquiatria. 2 O termos “clínica de saúde mental” e “clínica antimanicomial” são utilizado por Lobosque (1997, p.26) para designar a clínica construída no bojo da Reforma Psiquiátrica. Com o mesmo significado, Amarante (2003) se refere a esta clínica como “clínica reformada” ou “clínica na Reforma Psiquiátrica”. Já Rotelli (2001), utiliza a expressão “clínica inventada”.

7

movimentos ocorridos na França, com a Psiquiatria de Setor e com a Psicoterapia Institucional;

na Inglaterra, com a Antipsiquiatria e com as Comunidades Terapêuticas; nos Estados Unidos,

com a Psiquiatria Comunitária; e principalmente na Itália, com o movimento de

desinstitucionalização da Psiquiatria Democrática.

O segundo, a “Reforma Psiquiátrica Brasileira e Surgimento dos Centros de Atenção

Psicossocial”, objetivará mostrar o cenário brasileiro diante da proposta de Reforma Psiquiátrica

iniciada na Itália por Franco Basaglia e seus sucessores, apontando os Centros de Atenção

Psicossocial como locais importantes para a efetivação de uma clínica em saúde mental

reformada, diferente daquela praticada nos manicômios.

Depois, o terceiro subcapítulo, “A Clínica da Psiquiatria Clássica e o Paradigma Científico

da Modernidade”, terá como fim discorrer acerca das bases epistemológicas que fundamentaram

(e fundamentam) a clínica da Psiquiatria Clássica, numa tentativa de denunciar como esta pôde

desenvolver-se restringindo a vida à doença. Neste sentido, como forma de propor uma nova

concepção de clínica, baseada em paradigmas ético-estético-políticos, foi escrito o quinto

capítulo, “A Clínica na Reforma Psiquiátrica e a Construção de um Novo Paradigma”.

Dando continuidade, através do quarto subcapítulo, “Clínica na Reforma Psiquiátrica:

Clínica Ampliada e ‘Clínica da Criação”, após um breve esclarecimento sobre como a proposta

da Reforma Psiquiátrica acontece através do projeto de desinstitucionalização, procurar-se-á

explicar a importância de uma clínica reformada caracterizar-se como uma clínica ampliada e

uma clínica que fomenta novos modos de existência.

Durante o sexto subcapítulo, “A Título de Ilustração: Relato e Análise de uma

Experiência”, após a elucidação a respeito do significado de “oficinas terapêuticas”, serão

descritas e analisadas, de acordo com o referencial teórico já apresentado, as experiências obtidas

em ambos os grupos citados. Nesse capítulo, alguns dos desenhos e textos produzidos nos grupos

pelos usuários, psicóloga e estagiárias, serão expostos a fim de ilustrar melhor o modo de

funcionamento desses grupos.

Por fim, o quinto capítulo tratará da “Conclusão” desse trabalho, enquanto que o sexto

trará as “Referências Bibliográficas” do mesmo.

8

III – Procedimentos

Esse trabalho de conclusão de curso caracteriza-se como uma monografia teórica.

Entretanto, a fim de enriquecê-lo, achou-se por bem incluir aqui a descrição e análise de uma

experiência de estágio bastante relevante para o entendimento da teoria até então exposta. Vale

ressaltar que tal experiência não tem o caráter de uma pesquisa empírica, visto que hora

nenhuma foram definidas hipóteses e objetivos, com a pretensão de se chegar a um determinado

resultado.

A experiência que será aqui relatada foi obtida durante os Estágios Supervisionados de

Psicologia Institucional I e II. Estes estágios acontecem, respectivamente, no nono e décimo

períodos e são pré-requisitos para a Formação em Psicologia do Curso de Psicologia da

Universidade Federal de Sergipe. Podem ser realizados em instituições públicas ou privadas, nos

campos da educação, saúde, trabalho e outros campos que se configuram áreas de atuação da

Psicologia. No caso aqui descrito, os estágios foram realizados na área da Saúde Mental, no

CAPS Liberdade, sediado na cidade de Aracaju –SE, no bairro Siqueira Campos.

Nesse CAPS a aluna participou de algumas atividades. Dentre elas, destacam-se aqui a

“Oficina de Criação” e o “Grupo Como Vai”. A partir da experiência nesses grupos, alguns

acontecimentos significativos serão descritos e analisados com base no referencial teórico que

será exposto sobre a clínica no contexto da Reforma Psiquiátrica. Completando este referencial,

antes do relato da experiência propriamente dito, achou-se por bem contextualizá-la, sendo

preciso, para tanto, definir melhor o que são “oficinas terapêuticas”. Além disso, vale destacar

que o critério de escolha dos acontecimentos descritos, em detrimento de outros, tem a ver mais

com o envolvimento afetivo da aluna nesses grupos, do que com algum tipo de interpretação dos

momentos mais importantes para os grupos.

A fim de se obter um melhor entendimento a respeito desses grupos, faz-se necessário

descrevê-los e caracterizar o modo de funcionamento dos mesmos:

A) “Oficina de Criação”

Esta oficina acontece às sextas-feiras, das 8h 30min às 10h e é coordenada por uma

psicóloga do CAPS Liberdade. Conta com a participação de aproximadamente seis usuários,

com uma média de idade de uns 40 anos. É possível a entrada de novos membros, à medida que

estes se mostram interessados nas atividades realizadas na oficina. A “Oficina de Criação”

acontece na “sala de grupo” do CAPS Liberdade. Nesta há colchões, almofadas coloridas e um

armário onde é guardado o material utilizado nos grupos.

9

Idealizada pelos próprios usuários do CAPS, a oficina funciona da seguinte forma: existem

alguns materiais que estão à disposição dos usuários, tais como cadernos, folhas de papel, lápis,

borracha, hidrocores, tintas, pincéis, giz de cera, revistas, tesoura, cola, entre outros. Cada

usuário escolhe, então, o que deseja fazer naquele dia – textos, poesias, compor letras de música,

desenhos, pinturas etc – e depois de concluída a criação, cada um apresenta aos demais o que

fez, escutando comentários a respeito do que criou.

Seus objetivos são: disponibilizar um tempo e espaço onde os usuários possam desenvolver

seu potencial criativo, seja através da poesia, pintura, música, teatro ou o que ocorrer, a depender

do desejo de cada um dos participantes; auxiliar na promoção de cidadania e na construção

coletiva do bem estar através do contato com o grupo e com a arte; proporcionar o enfrentamento

e debate acerca de aspectos da vida cotidiana; dentre outros.

A estagiária participou da “Oficina de Criação” de agosto de 2005 a abril de 2006.

B) “Grupo Como Vai”

O grupo “Como Vai” acontece às segundas-feiras, das 8h30min às 10h, e é coordenado por

uma psicóloga e duas estagiárias. É um grupo terapêutico que conta com a participação de nove

usuários, sendo que destes, oito são homens e apenas uma é mulher. A média de idade dos

participantes é de aproximadamente de 40 anos. Bastante heterogêneo, seus membros variam em

relação: ao grau de autonomia que possuem, ao número de vezes que freqüentam o grupo e o

CAPS, à capacidade de reflexão, ao transtorno mental que os acometem, entre outras diferenças.

Este grupo acontece na “sala de grupo” citada a pouco e tem como objetivos: realizar

atendimento/ acompanhamento psicoterápico a usuários do CAPS Liberdade; ressignificar o

sentido da “doença”, observando as limitações que ela ocasiona a fim de possibilitar novas

formas de vida; fomentar a possibilidade de criação/ ação sobre o mundo, tendo em vista a

promoção de cidadania e autonomia; criar situações reais de encontro com um Outro;

proporcionar a reinserção nos contextos familiar e social; dentre outros.

A estagiária participou deste grupo de julho de 2005 a abril de 2006.

Por fim, uma vez caracterizados ambos os grupos, vale ressaltar que após cada reunião

destes, era feito um diário de campo, onde era anotado detalhadamente o que acontecia nos

grupos, bem como algumas falas de seus participantes. Além disso, a partir da autorização dos

usuários, a aluna tinha acesso aos materiais produzidos pelos mesmos – desenhos, colagens,

poesias, textos etc –, inclusive tendo a oportunidade de reproduzi-los por meio de xérox ou

cópias manuais. Mediante tal autorização é que esse material poderá ser exposto aqui.

Finalmente, chama-se atenção para o fato de que parte das produções da “Oficina de Criação”

10

aqui exibida foi escolhida pelos próprios usuários desta oficina, que sabiam da confecção dessa

monografia e autorizaram a publicação do material por eles produzidos.

11

IV – Discussão

1 – História da Loucura, Surgimento da Psiquiatria e Reformas Psiquiátricas

Pensar sobre a Clínica em Saúde Mental implica, necessariamente, através de um olhar

histórico-crítico, proceder a um trabalho contínuo de desmistificação e esclarecimento acerca da

gênese e metamorfose do conceito de loucura, como também rever os paradigmas fundantes do

saber e prática psiquiátricos.

Como primeiro passo, se faz necessário elucidar que o que dá o significado a qualquer

conceito é o contexto histórico em que este está inserido. Desta forma, como esclarece Passos e

Pitombo (2003), a constituição do conceito de clínica não se faz de forma linear e totalitária.

Diversos sentidos para a clínica surgiram concomitantemente a diferentes modos de ver, de

pensar e de falar. O mesmo, por sua vez, acontece com o campo específico da Psiquiatria. A

loucura durante as épocas foi reunindo sobre si várias denotações e conotações relacionadas às

forças, aos fluxos a que estava submetida. Nem sempre, por exemplo, a loucura foi vista como

doença mental ou como um problema de integração social.

Acredita-se que analisando a história da loucura, simultaneamente, seria possível

reconhecer diferentes maneiras de conceber o sentido de clínica e de práticas terapêuticas, bem

como perceber as crises de seus paradigmas e modelos, através das várias reformas que passou,

desde seu surgimento, no final do século XVII, até os dias atuais.

Alguns marcos históricos, tais como as grandes internações nos Hospitais Gerais, o

Iluminismo, o surgimento da medicina social, a medicalização do hospital, o Positivismo e o

projeto científico da modernidade, bem como influências políticas, econômicas, culturais e

religiosas, de diferentes épocas, foram fundamentais na constituição de um saber/ prática sobre a

loucura (originária do ato que criou a distância entre a razão e a desrazão) e sobre suas

“variações” – seja na forma de “doença mental” (termo criado com o surgimento da Psiquiatria),

ou na forma de “transtorno mental” (denominação surgida no bojo da Reforma Psiquiátrica).

Assim, cronologicamente, os saberes e práticas sobre a loucura foram se transformando,

ganharam um novo estatuto a partir do surgimento da Psiquiatria. Ao longo dos séculos XIX, XX

e XXI, mudaram de roupagem, mas muito pouco de sua essência foi questionado. Só há pouco

tempo (final do século XX e século XXI) estes saberes e práticas começaram a ser efetivamente

repensados.

Neste sentido, a fim de se esclarecer quais as pretensões de uma Clínica em Saúde Mental

reformada – inspirada principalmente pelas idéias de Franco Basaglia –, e quais paradigmas

12

deseja romper para a construção de uma nova forma de entender e cuidar da loucura optou-se por

realizar um breve histórico a respeito do saber/ prática construído sobre a loucura a partir da

Idade Média até os dias atuais.

Para tanto, achou-se por bem, dividir esse histórico, para fins didáticos, em quatro

momentos, considerando, no entanto, a indissociabilidade e os cruzamentos entre estes: 1) um

período de liberdade e verdade que abarca os últimos séculos medievais (séculos XV e XVI); 2)

o período da “grande internação” (séculos XVII e XVIII); 3) o período após a Revolução

Francesa, em que surge a Psiquiatria (século XVIII e XIX) e 4) o período referente às reformas

psiquiátricas, que culmina com a reforma basagliana (século XX e XXI).

1.1) Loucura nos últimos séculos medievais

Antes do século XIX a experiência da loucura era bastante polimorfa. A loucura tinha uma

grande extensão, embora não tivesse nenhum suporte médico. Com o passar das épocas, esta

extensão, pelo menos em suas dimensões visíveis variaram: algumas vezes permaneceu

implícita, outras vezes emergiu e interagiu sem dificuldade com toda paisagem cultural. Ao

afirmar isto, Foucault (1968) aponta o final da Idade Média como uma época em que a o homem

ocidental estabeleceu uma relação com alguma coisa designada ainda de forma confusa como

“loucura” ou demência, que era, por sua vez, experienciada em estado livre. Neste período, a

loucura circulava, fazia parte do cotidiano das pessoas, do cenário e da linguagem comuns, era

mais exaltada do que dominada.

Vale ressaltar que o advento do Cristianismo durante toda Idade Média trouxe considerável

respeito à figura do louco. Os insanos, assim como os retardados e os miseráveis, eram

considerados parte da sociedade. Vistos como “pobres de espírito”, eram o principal alvo da

caridade dos mais abastados, que assim procuravam expiar seus pecados.

Durante o século XV, na Espanha e na Itália abriram-se os primeiros estabelecimentos

reservados para loucos, onde estes eram submetidos a um tratamento inspirado em grande parte

pela medicina árabe. Estas práticas eram, entretanto, isoladas; a loucura era fundamentalmente

vivenciada em seu estado livre. Foucault (1968) diz, inclusive, que na França, por exemplo, no

começo do século XVII existiam loucos célebres com os quais as pessoas gostavam de se

divertir, sendo que alguns deles chegaram a escrever e publicar livros. De forma geral, pode-se

afirmar então que até meados do século XVII a cultura ocidental foi estranhamente acolhedora

da loucura.

13

Ao final da Idade Média, durante o Renascimento3, costumava-se confinar os loucos num

navio (a “Nau dos Loucos ou dos Insensatos”) que os levava de uma cidade até outra. Daí a

representação da loucura na Idade Clássica como existência nômade. Esta espécie de exílio

ritual, como afirma Frayze-Pereira (1982), fazia com que o louco estivesse em toda parte e ao

mesmo tempo em nenhuma. A loucura, importante por sua ambigüidade, ameaçou e

surpreendeu o mundo, invadindo a imaginação do homem europeu.

Até meados do século XVI a morte – devido às pestes, guerras etc – era o tema que

assombrava a cultura ocidental. Entretanto, no final deste século houve gradativamente uma

mudança nos assuntos que afligiam as pessoas. Da descoberta de que o homem é nada, a

contemplação da existência humana agora estava em pauta e, contígua a esta temática, estava a

loucura. Como explica Foucault (1978), antes a loucura dos homens consistia em ver apenas que

a morte se aproximava, agora a sabedoria consistirá em denunciar a loucura em toda a parte.

Partindo de tal temática, a experiência da loucura durante o Renascimento foi celebrada de

diferentes formas. Assim, os ritos populares, as artes plásticas – “A cura da Loucura”, de Bosch;

“Margot, a Louca”, de Brueghel; “Cavaleiros do Apocalipse”, de Dürer etc –, as obras de

filosofia – “A Nau do Loucos”, de Brant; “Elogio da Loucura, de Erasmo de Rotherdan etc. – e

os textos literários – Shakespeare; Cervantes – testemunharam de modos diversos o prestígio

dessa loucura, cujos enigmas têm sobre o homem um poder de atração.

É interessante notar, como pontua Amarante (1995, p.23), que a percepção social da

loucura na Idade Média, relacionada com uma idéia de alteridade pura, que entende o homem

como experiência originária, mais verdadeiro e integral, marcou a experiência da loucura no final

do século XV como uma “experiência trágica”. Esta visão permitiu que a loucura, inscrita num

universo de diferença simbólica, tivesse um lugar social reconhecido no universo da verdade.

Em contrapartida a essa visão trágica – claramente expressa nas artes plásticas da época,

em que o poder da imagem não é mais de ensinamento, como nas formas ordenadas do mundo

gótico, mas de fascínio, de múltiplos sentidos –, está uma “visão crítica” da loucura,

representada, na mesma época, principalmente pela literatura e pela filosofia. A loucura foi, aos

poucos, apreendida por uma consciência crítica que imprime nesta um sentido moral.

De acordo com Frayze-Pereira (1982, p.59), a “experiência trágica” e a “consciência

crítica” da loucura interpenetraram-se e formaram uma única trama de significações. A loucura,

3 Em um contexto de renascimento comercial e urbano, marcado pelo aparecimento da burguesia, classe ligada ao comércio, e pelo surgimento das monarquias nacionais, a cultura européia sofreu alterações que culminaram com o Renascimento Cultural. Este foi um movimento intelectual (artístico, filosófico, literário e científico) que caracterizou a transição da cultura medieval para a cultura moderna, rompendo lentamente o monopólio cultural até então exercido pela Igreja. Expressava a primeira manifestação de uma cultura burguesa laica, racional e científica. O termo “Renascimento” faz menção a um súbito reviver da cultura clássica greco-romana durante os séculos XIV, XV e XVI (Mello e Costa, 1993, p. 31-32).

14

presente em todas as partes, misturada às demais experiências humanas, era inseparável da

imaginação e do sonho. A sensibilidade à loucura durante o Renascimento, portanto, dizia

respeito à certa maneira de vivenciar o mundo em sua totalidade. Em outras palavras, pode-se

afirmar que até o final do século XVI não havia fundamento para a certeza de que não se estava

sonhando, de que não se era louco. A sabedoria e a loucura estavam muito próximas.

1.2) Período das Grandes Internações

A partir principalmente do século XVII, o pensamento moderno aprisionou filosoficamente

a loucura e esta começou a ser “apreendida” pela razão. Assim, como bem afirma Amarante

(1995), a “visão crítica” da loucura passou a organizar “um lugar de encarceramento, morte e

exclusão para o louco (p.23)”.

Segundo René Descartes (1596-1650), fundador da filosofia moderna, um dos principais

pensadores do Iluminismo4, a razão seria o único caminho para se chegar ao conhecimento

verdadeiro, sendo o “sujeito que duvida” aquele capaz de chegar à verdade. Neste sentido, a

loucura jamais poderia atingi-la, já que o ato de duvidar implica tanto o pensamento como aquele

que pensa. De acordo com este raciocínio, “o eu que conhece não pode estar louco, assim como

o eu que não pensa não existe” (Frayze-Pereira, 1982, p.61). Sendo assim, excluída pelo sujeito

que pensa, a loucura é a condição de impossibilidade do pensamento.

Em outras palavras, a partir do racionalismo moderno, a sabedoria e a loucura se separam,

e a loucura se vê privada do direito de alguma relação com a verdade. Portanto, de acordo com

Foucault (1978), a loucura foi posta fora do domínio no qual o sujeito detém seus direitos à

verdade, sendo que este domínio é a própria razão. Daí então, aos olhos dessa razão, a verdade

da loucura ser posteriormente apontada como falta, defeito, doença.

Vale destacar, no entanto, que nessa época a loucura não foi excluída somente no nível

filosófico. Um conjunto de instituições foram criadas, tendo como objetivo dominar e excluir a

loucura. Foucault (1968, p.78) aponta a segunda metade do século XVII como uma época em

que o mundo da loucura tornou-se visivelmente o mundo da exclusão. Foram criados em toda

Europa estabelecimentos para a internação, denominados Hospitais Gerais. Estes eram “um

4 O Iluminismo foi uma revolução intelectual européia que teve seu ápice no século XVIII, e influenciou decisivamente o pensamento e as ações da humanidade. Esse período foi caracterizado por várias mudanças econômicas, políticas, sociais e culturais, extremamente revolucionárias. Os iluministas criticavam o absolutismo, as velhas instituições econômico-sociais e a Igreja. Propunham um outro tipo de organização da sociedade baseada no liberalismo econômico e político. Duas idéias gerais, herança de Descartes e Newton, foram comuns a todos os pensadores iluministas: 1) a razão é o único guia infalível para se chegar ao conhecimento e 2) o universo é uma máquina governada por leis físicas que podem ser determinadas e estudadas, não se submetendo a interferências divinas (Mello e Costa, 1993, p. 81-83).

15

estranho poder que o rei estabelece entre a polícia e a justiça” (Foucault, 1978, p.50). Faziam

parte da estrutura de uma ordem monárquica e burguesa e eram uma resposta ao mundo de

miséria que se alastrava por toda Europa. Apresentaram-se, segundo Barreto (2005, p.119), como

uma tentativa de tornar as cidades mais habitáveis aos olhos das boas famílias e dos homens de

negócio.

Assim, como explica Foucault (1968), por meio de cartas régias ou de prisões arbitrárias,

eram reclusos ao Hospital Geral (também chamado de Grande Internação), além dos loucos, os

inválidos pobres, os velhos na miséria, os mendigos, os desempregados, os delinqüentes, os

portadores de doenças venéreas, os libertinos de toda espécie etc. Todos aqueles que de alguma

forma mostravam alteração em relação à ordem da razão, da moral e da sociedade da época.

Percebe-se então, seguindo o raciocínio de Foucault (Ibidem), que estas casas não tinham

vocação médica alguma. Os internos dos Hospitais Gerais não estavam ali para serem tratados,

mas sim porque não se pode ou não se deve fazer mais parte da sociedade. Este lugar de

assistência pública, acolhimento, correção e reclusão, na verdade, refletia a intenção da época de

reestruturação do espaço social. Sendo o ócio o maior dos pecados do mundo burguês, nada mais

justo que àqueles que por algum motivo não fossem capazes de participar da produção,

circulação e acúmulo de riquezas, fosse destinada a internação. Daí também os trabalhos

forçados a que eram submetidos os internos, com a finalidade não só de sustento financeiro do

Hospital, mas, sobretudo, de cumprir um papel de sansão e controle moral.

Por fim, o internamento como solução para a reestruturação do espaço social marcou, por

sua vez, a constituição da experiência contemporânea da loucura. Como legado deste período da

Grande Internação, está o fato tanto da loucura, durante tanto tempo manifesta, ter sido

despojada de sua linguagem; como o fato da loucura ter criado parentescos estranhos com as

culpas morais e sociais ligadas à criminalidade, periculosidade, promiscuidade etc.

1.3) Surgimento da Psiquiatria

Durante a segunda metade do século XVIII, como afirma Amarante (1995, p.25), a

“desrazão”, gradativamente, vai perdendo espaço e a alienação, por sua vez, vai ocupando o

lugar como critério de distinção do louco perante a ordem social. Além disso, o internamento

ganha características médicas e terapêuticas, sendo marcado pela convergência entre percepção,

dedução e conhecimento. Deste percurso prático/ discursivo sobre a loucura surge, então, a

doença mental, o objeto fundante da psiquiatria.

16

A fim de melhor entender como se deu estas transformações, se faz necessário voltar ao

período que manteve a loucura silenciosa da segunda metade do século XVII a meados do século

XVIII, qual seja, o período da Grande Internação. A partir da metade do século XVIII, a

população européia reclamava a abolição do internamento. Vários eram os motivos para esta

reivindicação.

Com o desenvolvimento da “medicina social”5 (Foucault, 2001), principalmente da

“medicina urbana” – medicina não dos corpos, mas das condições de vida e do meio de

existência que tinha o objetivo de: analisar os lugares de acúmulo e amontoamento de tudo que,

no espaço urbano, pudesse gerar doença; controlar a circulação do ar e da água e organizar os

diferentes elementos necessários à vida comum nas cidades –, as casas de internação começaram

a ser interpretadas como lugar de um “mal-podridão” misterioso que ameaçava espalhar-se pela

cidade, contaminando com o desatino o ar dos lugares habitados pelos mais honrados cidadãos.

Além disso, como explica Frayze-Pereira (1982, p. 76-78) começaram a surgir protestos

por parte dos internos dos Hospitais Gerais, por causa da mistura de loucos e não-loucos em um

mesmo ambiente, aumentando o risco dos “sãos” se tornarem alienados. Outros fatores, ainda,

como cita Foucault (1968, p. 80), contribuíram para o fim dos Hospitais Gerais, tais como: crises

econômicas que impossibilitavam a manutenção destes estabelecimentos, que, por sua vez,

impulsionaram os internos em condições de trabalhar a gerar riquezas; denúncias aos seqüestros

arbitrários de novos internos; o clima de insatisfação com a opressão, gerado pelo período de

revoluções; entre outros.

Desta forma, ao final do século XVIII, fora dos Hospitais Gerais, os loucos reapareceram

na vida cotidiana. No entanto, esta liberdade não durou muito tempo. Por representarem risco e

periculosidade para a sociedade, o louco passou a ser novamente institucionalizado, dessa vez

pela medicina, ordenadora de um novo espaço hospitalar6. Vale ressaltar que a internação do

louco aparece, aqui, como uma medida bastante coerente. Isto porque, sendo a racionalidade e a

liberdade os constituintes da natureza humana de acordo com a época, e sendo o louco aquele

que por sua irresponsabilidade inocente abole a liberdade, comprometendo a razão, o 5 A medicina moderna é uma medicina social que tem como pano de fundo uma certa tecnologia do corpo social. A evolução da medicina social no Ocidente nos mostra que o primeiro objeto do poder médico não foi o corpo como força de produção. Podem-se reconstituir três etapas na formação da medicina social: a medicina de Estado, a medicina urbana e, por fim, a medicina da força de trabalho. A primeira desenvolveu-se sobretudo na Alemanha, no século XVIII, e tem como marco a organização de um saber médico estatal, a normalização da profissão médica, a subordinação dos médicos a uma administração central. A segunda direção do desenvolvimento da medicina social é representada pelo exemplo da França, no final do século XVIII, caracterizada pela organização do espaço urbano e pelo controle da circulação da água e do ar. E, finalmente, a terceira etapa da medicina social, característica da Inglaterra do século XIX, foi a medicina dos pobres, em que a força de trabalho foi objeto de medicalização, a fim de se garantir tanto a produtividade das indústrias, como se evitar o contágio de doenças dos pobres para os ricos (Foucault, 2001, p. 79-98). 6 O hospital começa a ser medicalizado. Há a transformação do hospital (etimologicamente hospedaria, hotel), instituição social e filantrópica, em uma instituição medicalizada, pela ação sistemática e dominante da disciplina, da organização e esquadrinhamento médicos. (Foucault, 2001, p.99-111).

17

confinamento acaba representando juridicamente o desaparecimento da liberdade já representado

no plano psicológico.

Assim, à loucura, teorizada no fim do século XVIII como erro enraizado na imaginação,

foi destinado o internamento. A casa de internação se transformou, então, em asilo, local este que

ganhou valor terapêutico por procurar conduzir o erro à verdade e a loucura à razão. Já a loucura,

por sua vez, tornou-se objeto médico, recebendo o valor de doença.

O internamento, agora com nova significação, por ser uma medida de caráter médico, foi

realizado inicialmente sob orientação de Pinel na França, Tuke na Inglaterra e Wagnitz e Rel na

Alemanha. A partir destes personagens, inscreveu-se a história da Psiquiatria e, como afirma

Foucault (1968, p.81), observou-se o advento tanto de um humanismo, como de uma ciência

positiva.

Pinel foi um dos fundadores da clínica médica, um dos grandes responsáveis pela

transformação do hospital em uma instituição médica. Além disso, a partir dele houve

apropriação da loucura pelo discurso e prática médicos, daí ter recebido o título de fundador da

Psiquiatria e do hospital psiquiátrico. Suas contribuições vão muito além do ato de desacorrentar

os alienados do Hospital Geral de Bicêtre. Inscrevem-se muito mais no fato de terem sido úteis

para a construção de uma tecnologia de saber e intervenção sobre a loucura e sobre o hospital.

Pinel articulou algumas dimensões, como descreve Castel (1978, p.81), que serviriam de

base para o tratamento do alienado: classificação do espaço institucional, recorrendo, para isso,

ao “isolamento terapêutico”; arranjo nosográfico das doenças mentais e imposição de uma

relação específica de poder entre médico (representante da razão) e o alienado (irracional) – o

“tratamento moral”. Este tratamento, por sua vez, partia da construção teórica de que o doente

mental era portador de uma desordem interna e que o asilo devia apresentar características na sua

constituição física, organização e modo de funcionamento, que possibilitassem, através da ordem

externa, ambiental, restabelecer o equilíbrio interno dos alienados.

Pode-se entender melhor a articulação destas dimensões a partir das próprias palavras de

Pinel:

Um hospício de alienados [...] é destituído de um objeto fundamental, se, através de sua disposição interior, não mantiver as diversas espécies de alienados num tipo de isolamento, não for capaz de separar os mais furiosos daqueles que são tranqüilos, não evitar suas comunicações recíprocas a fim de impedir recaídas e facilitar a execução de todos os regulamentos de polícia interior ou a fim de evitar anomalias inesperadas na sucessão do conjunto de sintomas que o médico deve observar e descrever (Pinel, 1809, p. 193-194, apud Castel, 1978, p.83-84).

Dessa forma, entende-se melhor como o paradigma da internação dominou por tanto tempo

toda a medicina mental. Fica mais claro entender por que a Psiquiatria e o asilo não existiam um

18

sem o outro, bem como o por que de se evitar as vias para a desinstitucionalização, para a

assistência em domicílio, para a confiança no valor terapêutico dos vínculos familiares e das

relações profissionais etc. A hospitalização tornou-se, então, a resposta exclusiva e necessária ao

questionamento da loucura (Castel, 1978, p.86).

Assim, para dar conta de seu papel, o “tratamento moral” dispunha de alguns dispositivos

que tinham a finalidade de destruir a loucura através da introjeção por parte do louco dos

princípios morais: o isolamento e a organização do espaço terapêutico, citados anteriormente,

bem como a vigilância, a repressão, o controle e a ocupação do tempo do interno. Entre esses

dispositivos, de acordo com Lancman (1990), o trabalho do interno era considerado um dos mais

importantes, na medida em que o trabalho deveria ordenar e encadear o tempo do alienado de

forma a afastá-lo dos pensamentos loucos. Neste sentido, o trabalho era um princípio a ser

interiorizado:

Trabalho significa coordenação dos atos, atenção, obediência a um encadeamento de fases de produção que permitirá chegar ao produto; significa existência de regras às quais o alienado deve se adequar. É uma fonte poderosa de eliminação da desordem [...] O trabalho permite o controle de cada ato, de cada gesto; permite coordenar e ordenar o corpo e a mente. O trabalho é, portanto, em si mesmo terapêutico, ocupando assim uma posição central no tratamento (Machado et al., 1978, p.441).

Analisando ainda o “tratamento moral” e seus dispositivos, percebe-se também como foi

construída uma relação de tutela para com o louco a partir de seu internamento nos asilos.

Classificado como insensato, ele não podia ser um sujeito de direitos; irresponsável, não podia

ser objeto de sanções; incapaz de trabalhar, estava impossibilitado de fazer parte do mundo

burguês das trocas e, portanto, devia ser isolado; ilha de desordem e irracionalidade, devia ser

reprimido e administrado segundo normas diferentes daquelas destinadas às pessoas “normais”;

doente mental e perigoso, ao louco foi destinado um tratamento/ punição. Estes rótulos recebidos

pelos loucos, denunciados por Castel (1978), servem, por sua vez, de fundamento para o

entendimento dos pilares constitutivos das práticas manicomiais arraigadas desde Pinel até os

dias atuais.

A alienação mental era entendida por Pinel e Esquirol como um distúrbio das paixões

decorrido das influências morais e intelectuais da sociedade. No entanto, com o passar do tempo,

esta explicação tornou-se insuficiente. Com o desenvolvimento da anatomopatologia e da clínica

médica, muitos médicos questionavam o fato da alienação mental ter uma etiologia meramente

moral. Assim, surgem novas explicações para a alienação baseadas num misto de causas morais

e físicas.

Morel, por exemplo, criou o conceito de “degeneração moral”, incluindo a hereditariedade

como um componente a ser analisado. Já Kraepelin, como explica Amarante (1996, p.57), criou

19

um princípio nosológico-clínico que concebe a doença como um conjunto combinado de aspectos

próprios da natureza de cada uma das unidades nosológicas. Em outras palavras, ele definiu a

doença como uma combinação de diversas perspectivas, tais como a etiologia, a sintomatologia, a

perspectiva prognóstica, a idade, o sexo etc.

Por fim, pode-se dizer que o século XIX marca o momento em que a loucura recebe a

denominação médica de alienação mental, sendo integrada ao campo da psiquiatria. Esta, por sua

vez, a fim de eliminar as barreiras que fazem de sua inscrição no campo da medicina uma

exceção, como pontuam Barreto (2005, p.122) e Amarante (1995, p.26), vai procurar orientação

nas demais ciências naturais, assumindo um matiz eminentemente positivista. Daí se fixar num

modelo centrado na medicina biológica, que se limita a observar e descrever os distúrbios

nervosos intencionando um conhecimento objetivo do homem, característico da clínica médica

moderna.

1.4) Reformas Psiquiátricas

Atualmente, a organização e o modo de funcionamento dos hospitais psiquiátricos

continuam marcados pela influência do “tratamento moral”, acrescido de outros princípios que se

somaram ao conceito de psiquiatria e de doença mental, modificando geralmente só de forma

aparente o sentido das intervenções. Dessa forma, à compreensão moral da loucura, acrescentam-

se as teorias organicistas que desenvolveram sofisticadas técnicas de contenção química da

sintomatologia psiquiátrica, mediante a utilização crescente dos psicofármacos. Somam-se ainda

as técnicas psicologicistas e psicanalíticas que propõem diferentes formas de intervenção na

loucura. De acordo com Lancman (1990), muitas destas mudanças não só não diminuíram as

internações nos asilos, como transcenderam seus limites. A psiquiatria passa, então, a intervir e

medicalizar um contingente cada vez maior de indivíduos.

Percebe-se, então, que desde a iniciativa inaugurada por Pinel de ter reservado aos loucos

internados nos Hospitais Gerais um projeto terapêutico exclusivo, baseado no “tratamento

moral”, os saberes e práticas da psiquiatria começam a ser construídos e constantemente

repensados. Assim, principalmente depois da Segunda Guerra, quando novas questões são

colocadas no cenário histórico mundial, surgem movimentos com o intuito de reformar a

psiquiatria. Ora essas manifestações procuram questionar o papel e a natureza da instituição

asilar, ora do próprio saber psiquiátrico.

Neste sentido, conforme a periodização estabelecida por Birman e Costa (1994) dos

principais movimentos reformistas, ter-se-iam: a psicoterapia institucional e a comunidade

20

terapêutica, representando as reformas restritas ao âmbito asilar; a psiquiatria de setor e a

psiquiatria preventiva, como aquelas que buscam mudanças além do espaço asilar; e, finalmente,

a antipsiquiatria e o projeto de desinstitucionalização de Franco Basaglia, representando

intervenções instauradoras de rupturas com os movimentos de reforma anteriores, já que

questionavam tanto o dispositivo médico-psiquiátrico, como as instituições e dispositivos

terapêuticos a ele associados.

Pode-se dizer que foram esparsas as iniciativas de reforma assistencial nos asilos antes da

descoberta dos psicofármacos, corretores da “passionalidade incontrolável” dos loucos. De

acordo com Barreto (2005, p.124), a primeira iniciativa de reforma partiu de Simon, na década de

20, tendo como proposta base a praxiterapia. Vale ressaltar que, em certo sentido, esta proposta

reabilitava a antiga visão de Pinel das possibilidades de regulação do louco por um conjunto de

intervenções pedagógicas que restituiriam sua sociabilidade.

Em vários lugares do mundo, muitas foram as propostas de se ter uma psiquiatria

reformada. Tosquelles iniciou, em 1940, na França, no Hospital de Saint-Alban, um

encadeamento de reformas inspiradas na Psicanálise e nos princípios da “terapia ativa” de Simon.

Tal intervenção ficou conhecida sob a denominação de psicoterapia institucional e, como explica

Vertzman (1992 apud Barreto, 2005, p.125), propunha a transformação do hospital psiquiátrico

em um lugar terapêutico através de medidas que quebrassem a rigidez hierárquica do asilo e

reorganizassem o espaço como um lugar de trocas, com liberdade de circulação, estruturação de

lugares (ateliês e serviços), contratualidade, acolhimento, dispondo de grades simbólicas e

dispositivos mediadores. Além disso, de acordo com esse movimento reformista, as próprias

instituições teriam características doentias que precisariam ser tratadas.

Apesar de grande parte das experiências ensaiadas a partir do projeto da psicoterapia

institucional ter fracassado, alguns conteúdos destas experiências foram transmitidos a outros

projetos de reforma assistencial. Como exemplos deste legado estão: a importância dada ao

ambiente como operador de processos de (re)estruturação da experiência psicótica; a

reorganização do espaço em ateliês; a idéia dos clubes como organização autônoma (origem da

idéia atual de “empresa social”); o ecletismo adotado em relação às fontes teóricas etc.

Ainda na década de 40, surge na Inglaterra uma linha reformista inspirada em métodos

sociais de tratamento denominada comunidade terapêutica. Este termo inicialmente fazia menção

ao trabalho desenvolvido por Main, Bion e Reichman, no Hospital Monthfield. Mais tarde, em

1959, Maxwell Jones deu continuidade à proposta da comunidade terapêutica, sendo seu

principal sistematizador teórico e prático. O termo “comunidade terapêutica” refere-se a um

conjunto de reformas institucionais, em grande parte restritas ao hospital psiquiátrico, e segundo

21

Amarante (1995, p.28), “marcadas pela adoção de medidas administrativas, democráticas,

participativas e coletivas, objetivando uma transformação da dinâmica asilar”.

Como principais características deste projeto reformista estão: ênfase na “terapêutica ativa”

(terapia ocupacional) fundada por Simon; destaque na estruturação do espaço do hospital

psiquiátrico como ambiente terapêutico que “se trata” para tratar dos pacientes; a idéia de que o

hospital psiquiátrico funcionaria como uma micro-sociedade que reproduziria as variáveis

presentes na sociedade em geral; a valorização da liberdade de circulação e comunicação; a

permissividade oferecida aos internos; o “comunalismo”, em oposição à ênfase no papel

terapêutico especializado do médico; o nivelamento da pirâmide hierárquica tradicional, embora

contraditoriamente existisse a figura da “autoridade latente” que asseguraria a reimposição de

limites e a repressão a infrações em casos de perigo à ordem instituída; a ênfase nos processos de

reaprendizado e reaculturação do paciente etc. (Barreto, 2005, p.126-127; Amarante, 1995, p. 28-

32).

De forma geral, pode-se concluir que tanto a psiquiatria institucional como a comunidade

terapêutica tiveram suas bases centradas ao espaço institucional asilar, afirmando ser este um

legítimo local de tratamento para os loucos. Além disso, esses movimentos não questionaram

sequer a função social da psiquiatria, do asilo e dos técnicos, não se preocuparam com a

influência da psiquiatria então vigente enquanto um saber-poder construtor de idéias e práticas

acerca do sofrimento humano, dos homens e da sociedade.

Já a psiquiatria de setor, inspirou-se nas idéias de Bonnafé e de alguns outros psiquiatras

considerados progressistas. Diante do contexto de pós-guerra, estes reivindicavam

transformações nos manicômios franceses. A psiquiatria de setor trazia como proposta a idéia de

levar a psiquiatria até à população. Neste sentido, como explica Fleming (1976, p.54 apud

Amarante, 1995, p.34), tinha a intenção de tratar o paciente dentro do seu próprio meio social e

com o seu meio, sendo a passagem pelo hospital não mais que uma etapa transitória do

tratamento.

A partir deste movimento foi construído o embrião para um dos princípios do Sistema

Único de Saúde do Brasil, qual seja, o princípio de territorialização. Dessa forma, através do

setor, esquadrinhava-se o hospital psiquiátrico e as várias áreas da comunidade, de forma que,

cada divisão hospitalar, cada equipe de técnicos, correspondesse a uma área geográfica e social.

Dito de outra forma, a mesma equipe que tratava um grupo de pacientes no hospital, passava a

acompanhá-los na comunidade de que estes faziam parte.

A psiquiatria de setor foi incorporada na década de 60 como política oficial francesa. Isso

porque este movimento apresentava muitas vantagens, quais sejam, poder ser menos custosa do

que a psiquiatria asilar e ser capaz de responder tanto à crise dos valores burgueses, como às

22

novas questões patológicas engendradas pelo capitalismo. No entanto, a prática desta experiência

não alcançou os resultados esperados. Amarante (1995, p.35) aponta três motivos para isso:

resistência de grupos de intelectuais que a interpretam como continuação da abrangência política

e ideológica da psiquiatria clássica; oposição dos setores conservadores, que temiam a possível

invasão dos loucos nas ruas; e, por fim, os custos que iriam ser gerados com a implantação de

serviços de prevenção e pós-cura.

A psiquiatria preventiva ou comunitária, por sua vez, nasceu do cruzamento entre a

psiquiatria de setor e a socioterapia inglesa. Sua versão contemporânea teve início nos Estados

Unidos e representou a demarcação de um novo território para a psiquiatria, na medida em que, a

terapêutica das doenças mentais, paulatinamente, dá lugar a um novo objeto, qual seja, a saúde

mental. Consolidou-se, assim, a crença de que as doenças mentais podiam ser prevenidas ou

detectadas precocemente. Ao conhecimento da psiquiatria aliaram-se conceitos da sociologia e da

psicologia behaviorista a fim de fundamentarem teoricamente o tratamento da doença mental,

antes tida como puramente somática, e não psíquica.

Além disso, esta proposta de reforma procurava propiciar a instauração de serviços

alternativos à hospitalização, bem como de medidas que reduzissem a internação. Neste sentido,

a “psiquiatria preventiva” defendia a desospitalização dos internos, já que entendia que os

hospitais psiquiátricos causavam dependência nestes, acelerando a perda dos elos comunitários,

familiares, sociais e culturais, conduzindo-os à cronificação. A fim de viabilizar suas propostas,

equipes multidisciplinares trabalhavam na comunidade como consultores/ acessores/ peritos

fornecendo normas e padrões de valor ético e moral.

Tanto a “psiquiatria de setor” como a “psiquiatria preventiva” avançaram no sentido de

terem ensaiado tentativas de desospitalização. No entanto, não foram capazes de questionar a

psiquiatria como instrumento de saber e poder, de controle e segregação.

Em meio aos movimentos underground da contracultura, Laing, Esterson e Cooper

fundaram na Inglaterra, durante a década de 60, a antipsiquiatria. Esta proposta de reforma

inglesa, por sua vez, de acordo com Barreto (2005, p.127), foi a primeira a adotar uma estratégia

teórico-prática cujo objetivo era a demolição e a deslegitimação do saber psiquiátrico.

Sob influência de referências culturais diversas – fenomenologia, existencialismo, obras de

Foucault, psicanálise, marxismo, entre outras –, a antipsiquiatria entendia a loucura como um fato

social e político. Não sendo um estado patológico, a loucura era uma reação a um desequilíbrio

familiar, uma experiência positiva de libertação. Vale ressaltar que tal proposta de reforma da

Psiquiatria denunciava a cronificação da instituição asilar e baseava seu método terapêutico na

valorização da análise do discurso através do delírio do louco, em detrimento de tratamentos

químicos ou físicos.

23

Pode-se dizer que os resultados obtidos pela antipsiquiatria quanto a organizar as novas

formas de exercício da assistência psiquiátrica não foram muitos. No entanto, vale destacar que o

discurso da antipsiquiatria pôde introduzir uma nova forma de pensar, que haveria de se

prolongar até atingir o ponto de convergência em que a clínica e a política se encontrariam no

projeto da Psiquiatria Democrática Italiana7 de desinstitucionalização radical.

Através principalmente das explanações contidas nos livros de Amarante “Loucos pela

vida: a trajetória da Reforma Psiquiátrica no Brasil” (1995) e “O homem e a serpente: outras

histórias para a loucura e a psiquiatria” (1996) é que se esclarece, aqui, o projeto de

desinstitucionalização de Basaglia.

Como uma crítica radical ao paradigma psiquiátrico, a tradição iniciada por Basaglia e

continuada pelo movimento da Psiquiatria Democrática Italiana afirma a urgência da revisão das

relações a partir das quais o saber médico funda sua práxis. Tal tradição entende como

fundamental uma análise histórico-crítica a respeito da sociedade e da forma como esta se

relaciona com o sofrimento e a diferença.

A prática desencadeada por Franco Basaglia que criticava a Psiquiatria tradicional teve

início na década de 60, num manicômio de Gorizia, com um trabalho de humanização deste

hospital. Inicialmente, as intervenções de Basaglia inspiraram-se nas experiências da comunidade

terapêutica e na psicoterapia institucional. No entanto, a dura realidade institucional, o insucesso

das iniciativas, e a divulgação das obras de Goffman e Foucault, contribuíram para que fossem

realizadas reflexões mais profundas a respeito da possibilidade de reformas eminentemente

asilares, colocando em discussão as relações de tutela e custódia e o fundamento da

periculosidade social contido no saber psiquiátrico.

Dessa forma, de acordo com Barros (1994, p.66), citada por Amarante (1995, p.48-49), as

transformações das instituições asilares precisariam fundamentar-se em alguns eixos, tais como:

A luta contra as atuais estruturas psiquiátricas enquanto repressivo/ custodiais; a luta contra as estruturas psiquiátricas, ainda que reformadas, mas lugar de institucionalização do sofrimento através da doença; a luta contra a institucionalização do sofrimento através da doença; a luta contra o sofrimento como necessidade no mundo do capital e da sociedade de troca, isto é, como universo de não escolha, onde o sofrimento vem transformado em algo mercantilizável.

7 O movimento da Psiquiatria Democrática Italiana (PDI), fundado em Bolonha, em 1973, teve por mérito a possibilidade de denúncia civil das práticas simbólicas e concretas de violência institucional. A possibilidade de ampliação do movimento da PDI e seu alcance permitem, além da competência médico-psiquiátrica-psicológica, alianças com forças sindicais, políticas e sociais. A PDI traz ao cenário político mais amplo a revelação da impossibilidade de transformar a assistência sem reinventar o território das relações entre cidadania e justiça (Amarante, p.48, 1995).

24

O que está em jogo é um projeto de desinstitucionalização, de desmontagem de saberes/

práticas/ discursos comprometidos com uma objetivação da loucura e sua redução à doença.

Luta-se por uma desconstrução da relação entre sociedade e loucura pautada em qualidades

morais de periculosidade e marginalidade, que acabam fortalecendo a correlação entre punição e

terapeutização. Além disso, a partir desse projeto de desinstitucionalização, fica cada vez mais

claro que o manicômio é o espaço que a sociedade reserva para os loucos não para curá-los, mas

para excluí-los. Diante desse fato, Basaglia defende a recusa deste mandato social.

Uma das idéias principais de Basaglia, de acordo com Amarante (1995, 1996, 2003), é a de

que a doença não é condição única, nem a condição objetiva do ser humano que está doente.

Além disso, o aspecto que se encontra doente produzido pela sociedade que o rejeita e pela

psiquiatria que o gere. É neste sentido que se propõe colocar a doença mental entre parênteses, o

que diz respeito à individuação da pessoa doente. Dito de outra forma, a um ocupar-se não da

doença mental como conceito psiquiátrico, e sim a um ocupar-se de tudo aquilo que se construiu

em volta da doença. A inversão está, pois, em colocar, não o doente entre parênteses, mas a

doença mental, isto é, o saber psiquiátrico que sobre ela se produziu.

Dando continuidade a este raciocínio, colocar a doença entre parênteses é a denúncia e a

ruptura epistemológica que permite a observação do “duplo” da doença mental, isto é, do que não

é próprio da condição de estar doente, mas de ser e estar institucionalizado. O duplo, por sua vez,

homogeneíza, objetiva e serializa todos aqueles que entram numa instituição que baseia suas

ações no autoritarismo e na coerção, é a face institucional da doença, construída tomando-se por

base a negação da singularidade do louco.

Assim, como explica Amarante (1996, p.84), de acordo com Basaglia, a institucionalização

seria o complexo de danos derivados de uma longa permanência coagida no hospital psiquiátrico.

Os princípios do autoritarismo e da coerção, donde surgem as regras sob as quais o doente deve

submeter-se incondicionalmente, são expressão e determinam nele uma progressiva perda de

interesse que, através de um processo de restrição do Eu, o induz a um vazio emocional.

Neste sentido, o processo de desinstitucionalização implica a reconstrução do fenômeno

loucura, que significa a superação das antigas instituições com a ruptura do seu paradigma

fundante, “a relação causa-efeito na análise e constituição da loucura” (Ibidem, p.102).

Essa ruptura dá origem a um novo dispositivo, tanto em relação à Psiquiatria tradicional – o

dispositivo da alienação –, como em relação às Psiquiatrias reformadas, que poderia,

provisoriamente, de acordo com Amarante (Ibidem), ser chamado de dispositivo da

desinstitucionalização. Aqui, de acordo com Rotelli (2001), a ênfase não é mais colocada no

‘processo de cura’, mas no processo de ‘invenção de saúde’ e de ‘reprodução social da pessoa’.

25

Explicado o projeto de desinstitucionalização de Basaglia, é importante citar algumas de

suas experiências práticas a fim de melhor entendê-lo. Basaglia iniciou, em 1971, em Trieste, um

processo de desmontagem do aparato manicomial, seguido da construção de novos espaços e

formas de lidar com a loucura. Assim, foram construídos alguns centros de saúde mental, um

para cada área da cidade, funcionando 24h ao dia, sete dias por semana. Foram abertas também

residências para alguns usuários em mais de trinta lugares diferentes. Além disso, merece

destaque a criação de cooperativas de trabalho, novo espaço de produção artística, intelectual ou

de prestação de serviços, que assumiu importante papel na dinâmica e na economia dos Serviços

de Saúde Mental.

Selando todo esse processo de reforma, foi promulgada a Lei 180, de 1978, que proibia a

internação em manicômios na Itália. Por fim, pode-se dizer que a experiência italiana, pela sua

intensidade e eficácia, influenciou movimentos de desinstitucionalização no mundo todo.

26

2 – Reforma Psiquiátrica Brasileira e Surgimento dos Centros de Atenção Psicossocial

O Movimento denominado Reforma Psiquiátrica no Brasil foi constituído a partir do final

dos anos 70, em meio ao clima de efervescência que dominava o país nestes anos de organização

social e civil contra a ditadura militar. Esta efervescência foi impulsionada por movimentos

ocorridos na França, com a Psiquiatria de Setor e com a Psicoterapia Institucional; na Inglaterra,

com a Antipsiquiatria e com as Comunidades Terapêuticas; nos EUA, com a Psiquiatria

Comunitária; e principalmente na Itália, com o movimento de desinstitucionalização da

Psiquiatria Democrática.

Desse modo, de acordo com Amarante (1997), surgem no Brasil vários movimentos com o

objetivo de produzir e organizar o pensamento e as práticas críticas no campo da saúde pública.

Dentre eles, o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM) torna-se o primeiro e

mais importante ator de renovação no campo da saúde mental.

Na década de 70, a partir de vários Congressos, em especial o Congresso de Camboriú e o

Simpósio de Saúde da Câmara dos Deputados, a questão da loucura e da instituição asilar passa a

ser, aos poucos, objeto de interesse e discussão das principais entidades da sociedade civil. A

“questão psiquiátrica” vai tornando-se, assim, uma questão política, ou seja, há um deslocamento

dos aspectos teórico-técnicos em benefício dos políticos-ideológicos.

Neste contexto, este período foi marcado por reivindicações em relação à inversão da

política nacional de saúde mental, de privatizante para estatizante e à implantação de alternativas

extra-hospitalares que significavam a inversão do modelo – de hospitalar para ambulatorial,

diminuindo assim a quantidade de internações; e de curativo para preventivo / promocional.

A Reforma Psiquiátrica8 – não apenas enquanto medidas de caráter técnico-científico ou

organizacional, mas também enquanto um processo permanente de construção de reflexões e

transformações que ocorrem a um só tempo, nos campos assistencial, cultural, e conceitual – vai,

assim, ganhando força aqui no Brasil. As práticas e os pressupostos teóricos da instituição

psiquiátrica tradicional começam a ser vigorosamente questionados.

Desta forma, segundo Amarante (ibidem), retirado o manto de cientificidade da psiquiatria,

torna-se possível percebê-la como instrumento técnico-científico de poder ou como saber e

prática disciplinar e normalizadora. A denúncia da realidade dos hospitais psiquiátricos tornou

possível verificar sua função mais custodial que assistencial, mais iatrogênica que terapêutica,

mais alienadora que libertadora. Se, por um lado, a psiquiatria deixava de ser questão exclusiva

8 Uma vez explicado as reformas pelas quais passou a Psiquiatria, e esclarecido que a proposta de Basaglia e seus seguidores é a que realmente se propunha a uma mudança profunda no saber e prática da Psiquiatria, a partir desse capítulo será utilizado o termo “Reforma Psiquiátrica” para fazer referência unicamente ao movimento de desinstitucionalização desencadeado por Franco Basaglia.

27

dos técnicos para tornar-se uma questão que diz respeito a toda sociedade, por outro, o objeto da

psiquiatria deixava de ser a doença para tornar-se o sujeito da experiência do sofrimento,

considerando sua história e singularidade.

A partir da década de 80, segundo Amarante (2003), ocorre um convênio entre a

Previdência Social e o Ministério da Saúde, no qual a primeira colaborava no custeio,

planejamento e avaliação das unidades hospitalares do segundo, através de uma co-gestão. Este

fato histórico pôde ser considerado como uma primeira experiência no sentido de estabelecer

uma relação de co-participação das instituições públicas do setor de saúde. Além disso, esta co-

gestão foi considerada como o início de uma política de saúde que tem como princípios a

descentralização, a integração interinstitucional, a hierarquização, a regionalização e a

participação comunitária. Tais princípios vão marcar as políticas de saúde nos anos seguintes,

culminando com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS).

Através da I Conferência Nacional de Saúde Mental, realizada em 1987, pôde-se introduzir

na política nacional alguns temas, tais como: a cidadania dos doentes mentais, a necessidade de

revisão da legislação (tanto civil, como sanitária) e a reorientação do modelo médico-psiquiátrico

de assistência.

As inovações introduzidas pela Reforma Sanitária deram brechas para intervenções, como

a realizada na Casa de Saúde Anchieta, em Santos (São Paulo), em que foram observadas a

efetivação da desmontagem do aparato institucional manicomial, com a conseqüente implantação

de uma rede territorial de atenção à saúde mental, substitutiva ao modelo psiquiátrico tradicional;

além de uma série de outras experiências culturais e sociais.

Neste contexto, na década de 90, foram construídos os Núcleos / Centros de Atenção

Psicossocial (NAPS/ CAPS), como protótipos dos novos serviços substitutivos ao aparato

manicomial.

A portaria 224 / 1992, ao estabelecer condições de funcionamento dos serviços de saúde

mental (e manicomiais), dava início a um processo de fechamento de serviços hospitalares

absolutamente precários e qualificava os existentes. Através da Lei 10.216/2001, por sua vez,

fica clara a diretriz de que pessoas acometidas por transtornos mentais devem ser cuidadas em

serviços de tratamento terapêutico substitutivos dos modelos asilares.

Sob forte influência política e ideológica do Movimento de Reforma Psiquiátrica, o

Ministério da Saúde adotou a portaria 189/ 2002 que possibilitava o financiamento de novas

estruturas assistenciais do tipo CAPS, NAPS, hospitais-dia e unidades psiquiátricas em hospitais

gerais. A inovação trazida por esta portaria está no fato de viabilizar a possibilidade efetiva de

financiamento de estruturas não manicomiais, o que, embora fosse um princípio existente desde

os primeiros momentos do MTSM, ainda não tinha sua viabilidade concretizada.

28

É assim que o Movimento da Reforma Psiquiátrica, ao questionar a cientificidade da

psiquiatria – reconhecendo-a como instrumento de poder ou como saber e prática disciplinar e

normalizadora – e ao denunciar a função custodial, iatrogênica e alienadora dos hospitais

psiquiátricos, permitiu que o modelo de atenção à saúde mental pudesse tomar nova forma. É

diante desse contexto que uma clínica “psi” reformada começa a ser delineada, tendo o CAPS

como local privilegiado para sua efetivação.

O CAPS, principal estratégia do processo de reforma psiquiátrica, foi definido como um

serviço comunitário ambulatorial que oferece cuidados intermediários entre o regime

ambulatorial e a internação hospitalar. Têm como proposta acolher pessoas que sofrem algum

tipo de transtorno mental severo e persistente, que lhes impossibilita de viver e realizar seus

projetos de vida. As relações entre trabalhadores e usuários devem estar baseadas no

acolhimento e no vínculo. Além de acolher os usuários, este serviço os apóia em suas iniciativas

de busca da autonomia, estimulando a integração destes a um ambiente social e cultural

concreto, designado como seu território, o espaço da cidade onde se desenvolve sua vida

cotidiana e de seus familiares.

O primeiro CAPS do Brasil foi inaugurado em março de 1986, na cidade de São Paulo:

CAPS Professor Luiz da Rocha Cerqueira. A partir daí, outros CAPS’s foram sendo criados em

outros municípios do país e foram se consolidando como dispositivos eficazes na diminuição de

internações e na mudança do modelo assistencial então vigente. Atualmente, os CAPS’s são

regulamentados pela portaria 336/ 2002 e integram a rede do Sistema Único de Saúde.

Esse serviço alicerça-se nos princípios de acesso universal, público e gratuito às ações e

serviços de saúde; integralidade das ações, cuidando do individuo como um todo; eqüidade,

como o dever de atender igualmente o direito de cada usuário, respeitando as suas diferenças;

descentralização dos recursos de saúde; controle social exercido pelos Conselhos Municipais,

Estaduais e Nacional de Saúde com representações dos usuários, trabalhadores, prestadores,

organizações da sociedade civil e instituições formadoras.

Neste sentido, os CAPS visam: prestar atendimento em regime de atenção diária, gerenciar

os projetos terapêuticos oferecendo cuidado clínico eficiente e personalizado, promover a

inserção social do usuário através de ações intersetoriais, dar suporte e supervisionar a atenção à

saúde mental na rede básica, coordenar junto com o gestor local as atividades de supervisão de

unidades hospitalares psiquiátricas que atuem no seu território, entre outras atividades (BRASIL,

2004a).

Para ser atendido num CAPS, pode-se procurar diretamente esse serviço ou ser

encaminhado pelo Programa de Saúde da Família ou por qualquer serviço de saúde. Ao iniciar o

acompanhamento no CAPS se traça um projeto terapêutico com o usuário. O profissional que o

29

acolheu no serviço, ou outro técnico que tenha estabelecido um vínculo com o usuário, passará a

ser seu Terapeuta de Referência. Este será responsável por: monitorar junto com o usuário o seu

projeto terapêutico singular, definindo as atividades e a freqüência de participação no serviço e o

tipo de atendimento que será destinado – intensivo, semi-intensivo ou não-intensivo, entre outras

atividades.

Os CAPS’s podem oferecer diferentes tipos de atividades terapêuticas. Esses recursos vão

além do uso de consultas e medicamentos, e caracterizam o que vem sendo denominado de

clínica ampliada. Essas atividades podem ser: atendimento individual e em grupo, atendimento

para a família, atividades comunitárias, assembléias ou reuniões de organização do serviço,

oficinas, visitas domiciliares etc.

As oficinas terapêuticas são uma das principais formas de tratamento oferecidas nos

CAPS’s. Estas oficinas são atividades realizadas em grupo com a presença e orientação de um ou

mais profissionais/ estagiários. Podem ser definidas através do interesse e das necessidades do

usuário e das possibilidades dos técnicos do serviço, tendo em vista a maior integração social e

familiar, a manifestação de sentimentos e problemas, o desenvolvimento de atividades corporais,

a realização de atividades produtivas e o exercício coletivo da cidadania (Ibidem).

De acordo com a portaria 336/ 2002, os CAPS’s são diferentes quanto à especificidade da

demanda que atendem, bem como quanto às atividades terapêuticas que realizam, à diversidade

dos profissionais que nele trabalham, à estrutura física etc. Os CAPS I e II são para o

atendimento diário de adultos, em sua população de abrangência, com transtornos mentais e

persistentes. Já o CAPS III além disto, funciona 24 horas por dia, todos os dias da semana. O

CAPSi atende diariamente crianças e adolescentes com transtornos mentais, enquanto que o

CAPSad atende usuários com transtornos decorrentes do uso e dependência de substâncias

psicoativas, trabalhando com a lógica de “redução de danos”.

Os profissionais que trabalham no CAPS integram uma equipe multiprofissional composta

de técnicos de nível superior (enfermeiros, médicos, psicólogos, assistentes sociais, terapeutas

ocupacionais, professores de educação física e outros) e de nível médio (técnicos e/ou auxiliares

de enfermagem, técnicos administrativos, educadores, artesãos etc), além da equipe de limpeza e

cozinha.

Além disso, espera-se que o CAPS esteja articulado à rede de serviço de saúde e a outras

redes sociais. Assim, um dos objetivos deste serviço relaciona-se à articulação e ao tecimento

dessas redes. Cumpre suas funções tanto na assistência direta e na regulação da rede de serviços

de saúde, trabalhando em conjunto com as equipes de Saúde da Família (através, por exemplo,

da realização de apoio matricial às equipes de atenção básica), como na promoção da vida

comunitária e na autonomia dos usuários, articulando recursos existentes em outras redes.

30

Outras estratégias têm sido desenvolvidas a fim de fomentar o tecimento dessas redes.

Como exemplo disso, destacam-se o Programa de Volta Para Casa, que garante o processo de

inserção social dos usuários, promovendo a organização de uma rede ampliada e diversificada de

recursos, incentivando o exercício da cidadania; bem como os Serviços Residenciais

Terapêuticos, que contribuem para construção de espaços substitutivos de atenção em saúde

mental para aqueles usuários que se encontravam institucionalizados e que não têm fortes

vínculos familiares, sociais e culturais; com isso, objetivam também uma redução nas

internações.

Pode-se dizer, então, que o Movimento de Reforma Psiquiátrica tem sido caracterizado

como um dos mais vigorosos e persistentes movimentos sociais no Brasil contemporâneo. Isso

porque este movimento busca trazer novas formas de se enxergar a loucura, espaços onde ela

possa ser expressa sem preconceito, dando abertura ao desejo e, a partir daí, criando situações de

produção de subjetividades, as quais auxiliam caminhos de resgate da cidadania dos usuários.

Diferentemente de outros movimentos, que apenas reivindicavam bens materiais, o

Movimento de Reforma Psiquiátrica aproxima-se dos movimentos de caráter autenticamente

democrático e social, na medida em que reivindica e luta por uma melhor qualidade de vida em

seu sentido mais amplo. Nascido parcialmente no âmbito da Reforma Sanitária, colocou em

discussão o modelo médico-psicológico disciplinador, normalizador, biologizante e

estigmatizador, então vigente, procurando um rompimento efetivo com este.

Por fim, diante deste contexto de redefinição do paradigma psiquiátrico, muitas estratégias

foram e estão sendo postas em prática com o objetivo de interferir na produção do imaginário

social no que diz respeito à loucura, a fim de se romper com preconceitos e estigmas

relacionados a este assunto. Estas iniciativas variaram desde a realização de eventos de caráter

técnico científico – congressos, debates, seminários – a eventos culturais – teatro, cinema,

exposição de arte etc.

O entendimento de como aconteceu a Reforma Psiquiátrica no Brasil e como surgiram os

Centros de Atenção Psicossocial é fundamental para a contextualização tanto da clínica de saúde

mental de forma geral, como da experiência nessa área que será posteriormente descrita. Além

disso, clínica na Reforma Psiquiátrica, por sua vez, pode ser melhor compreendida quando

comparada com a proposta da clínica da Psiquiatria clássica e de seu paradigma fundante, o

paradigma científico da modernidade.

31

3 – A Clínica da Psiquiatria Clássica e o Paradigma Científico da Modernidade

De acordo com a história do conhecimento, como aponta Figueiredo (1991), a Idade

Moderna inaugura-se com a revolução científico-tecnológica, fenômeno este de amplas e

penetrantes repercussões para a sociedade ocidental. A partir do século XVII, pode-se notar uma

crescente preocupação em discutir e estabelecer as condições do conhecimento “verdadeiro”, do

conhecimento científico. Diante deste contexto, há, então, um redimensionamento na relação

sujeito-objeto. Estes aparecem como duas formas separadas, sendo o conhecimento resultante

desta relação, sem que, por sua vez, o objeto produza nada no sujeito. Dessa forma, sob

influência das idéias de Descartes e Bacon9, a subjetividade do cientista é submetida à disciplina

do método, daí o conhecimento ser destituído de qualquer potência inventiva.

Através do uso da razão e da ação instrumental, o homem, desprendendo-se do objeto

estudado – a natureza –, passa a crer que pode dominá-la e controlá-la. Assim, o instrumento vai

acrescentar-se à despretensiosa observação. A finalidade utilitária e a busca da verdade objetiva

vão, por sua vez, emergir como justificativa e legitimação da ciência.

Já no século XVIII, a revolução científico-tecnológica se fortaleceu ainda mais. A

finalidade prático-utilitária da ciência, bem como o progresso da racionalidade econômica e

científica, impulsionaram o desenvolvimento da produção e do comércio. Ciência e capital

articularam-se, trazendo consigo benefícios mútuos.

Neste contexto, os grandes sistemas filosóficos tradicionais viram-se abalados pelo

surgimento das ciências naturais. Estas eram galgadas num modo de existência prático-teórico

em que a natureza era reduzida a um conjunto de leis simples, imutáveis e de causa-efeito. Dessa

forma, cada vez mais o paradigma positivista10 vai sendo legitimado, ampliando-se inclusive para

as ciências sócio-humanas, isso tudo em nome da busca pelas verdades absolutas e de resultados

pragmáticos para a sociedade.

Diante desta composição de fatores é que surgem a Psiquiatria e, posteriormente, a

Psicologia e, com estas, todo um saber-fazer constituidor da clínica que trata pessoas acometidas

por transtornos mentais. De certo, para que pudessem ser consideradas científicas e, portanto,

legítimas, as disciplinas “psi” tiveram que se enquadrar no paradigma positivista. Assim,

9 Segundo o indutivismo de Francis Bacon, “somente são reais os conhecimentos que repousam sobre fatos observados” (Kastrup, 1999, p.30, apud Comte, 1930/ 1942, p.5). 10 De acordo com o Pequeno Dicionário da Língua Brasileira (1973), o positivismo é um sistema criado por Augusto Comte, que se baseia nos fatos e na experiência, e que deriva do conjunto das ciências positivas, repelindo a metafísica e o sobrenatural, caracteriza-se pela tendência para encarar a vida só pelo seu lado prático e útil. Segundo o próprio Comte (1930/ 1942, p.7), citado por Kastrup (1999, p.30), “o caráter fundamental da filosofia positiva é tomar todos os fenômenos como sujeitos a leis naturais invariáveis, cuja descoberta precisa e cuja redução ao menor número possível constituem o objetivo de todos os nossos esforços”.

32

seguindo os passos da ciência moderna, estas eram incumbidas de desencantar o mundo,

modelando-o e compreendendo-o através da teoria aliada à prática e de leis gerais aparentemente

desprovidas de interesse particular.

Tal como explicado anteriormente, com a criação do hospital (século XVII), surge a

possibilidade, como afirma Amarante (1996, p.39), de aglutinar os loucos em um mesmo espaço,

para assim conhecer e tratar suas loucuras. É desta forma que, ao final do século XVIII, surge a

Psiquiatria, sendo Pinel, Tuke, entre outros, os seus percussores.

A clínica da Psiquiatria Clássica, por sua vez, desde seu surgimento, até os dias atuais, tem

sido derivada da clínica médica tradicional, surgida no século XVIII. Em “O Nascimento da

Clínica”, Foucault (2003) aponta que esta, enquanto prática e saber médicos, tem sido

repetidamente narrada, desde o século XVIII, como surgida do próprio leito do doente, suposto

lugar de experiência constante e estável. Ignoram, segundo este autor, teorias e sistemas que

teriam estado em permanente mudança e mascarado, sob sua especulação, a pureza da evidência

clínica.

Desprezam, ainda, de acordo com o mesmo autor (ibidem), o fato de que na aurora da

Humanidade, antes de todo sistema, a clínica era baseada em uma relação imediata – sem

mediação do saber – entre o sofrimento e aquilo que o aliviava. Mais do que de experiência, esta

relação era de instinto e de sensibilidade. Além disso, era estabelecida pelo indivíduo para

consigo mesmo antes de ser tomada em uma rede social. Multiplicada por si mesma, transmitida

de uns aos outros, nesta clínica cada pessoa era ao mesmo tempo sujeito e objeto. Portanto, como

afirma Foucault (ibidem, p.60), “antes de ser um saber, a clínica era uma relação universal da

Humanidade consigo mesma”.

No entanto, com o passar do tempo, esta modalidade de clínica acabou por agregar sobre si

outros aspectos. Logo que a escrita e o segredo foram inaugurados, apenas um grupo privilegiado

detinha o saber e a prática médicos, que agora mediava o sujeito (médico) de seu objeto (doença).

Diante deste contexto é que surge a clínica moderna, como produto do conhecimento

naturalista. Assim, como explica Amarante (2003, p.57), o sensitivismo lockeano – observar,

descrever, comparar e classificar – defendia a idéia de que a doença não seria uma experiência,

mas um objeto da natureza. Portanto, o sujeito foi afastado, suspenso, colocado entre parênteses,

para que a medicina pudesse se ocupar da doença enquanto fato natural.

O princípio epistemológico do isolamento permitiu que o médico tivesse todas as

modalidades de doenças e sintomas em um só lugar, disponíveis para sua observação sistemática

e contínua. Dessa forma, “esta relação com a doença – e não com os sujeitos – ao lado do leito,

no dia a dia da instituição, fundou a clínica” (ibidem).

33

Não é por acaso que a expressão “clínica” provém, dentre outras origens, do grego klinus

ou klinikós, que significa “leito” ou “cama” e traz ainda o sentido de “inclinar-se”, estar ao leito

no dia-a-dia da evolução da doença. Vale ressaltar, que este “inclinar”, ocorreu, segundo

Amarante (ibidem, p.58), mediante o seqüestro social dos indivíduos e de sua posterior

internação em uma instituição fechada. Dessa forma, a clínica surgiu de uma relação com a

doença enquanto fenômeno institucionalizado e enquanto fato objetivo e natural.

Assim, a clínica do século XVIII, e que vigora ainda em sua essência nos dias atuais, reuniu

sobre si várias características. Esta clínica, como afirma Foucault (2003): tinha uma única direção

que ia de cima para baixo – do saber constituído à ignorância –; devia formar um campo

nosológico muito bem estruturado; não era um instrumento para descobrir uma verdade ainda

desconhecida, mas uma forma de dispor a verdade já adquirida e de apresentá-la a fim de que ela

se desvelasse sistematicamente; era derivada de formas já constituídas de saber, não tinha uma

dinâmica própria e capacidade de acarretar, por sua própria força, uma transformação geral do

conhecimento.

Tal clínica era estática, não criava nada, já que: “não pode por si mesma descobrir novos

objetos, formar novos conceitos, nem dispor de outro modo o olhar médico. Ela conduz e

organiza uma determinada forma do discurso médico; não inventa um novo conjunto de discursos

e práticas” (Ibidem, p.69).

De forma geral, esta clínica pode ser muito bem caracterizada de acordo com as palavras de

Galimbereti (1984 apud Rotelli, 2001, p.92-93):

O olhar médico não encontra o doente, mas a sua doença, e em seu corpo não lê uma biografia, mas uma patologia na qual a subjetividade do paciente desaparece atrás da objetividade dos sinais sintomáticos que não remetem a um ambiente ou a um modo de viver ou a uma série de hábitos adquiridos, mas remetem a um quadro clínico onde as diferenças individuais que afetam a evolução da doença desaparecem naquela gramática de sintomas, com a qual o médico classifica a entidade mórbida como o botânico classifica as plantas.

A clínica moderna surge com estas características. Com o passar do tempo, são definidos o

domínio de sua experiência e a estrutura da sua racionalidade. Assim, o olhar clínico adquire o

poder de atingir a forma geral de qualquer constatação científica:

Para poder propor a cada um de nossos doentes um tratamento perfeitamente adaptado à sua doença e a si próprio, procuramos formar, de seu caso, uma idéia objetiva e completa, recolhemos em um dossiê individual (sua observação) a totalidade das informações que dispomos a seu respeito. Nós o observamos do mesmo modo que observamos os astros ou uma experiência de laboratório (Sournia, 1962, p. 19 apud Foucault, 2003, p.14).

34

Em posição periférica aos demais domínios da medicina, a Psiquiatria teve que cada vez

mais se ancorar firmemente na ciência natural, como relatado inicialmente nesta monografia.

Inicialmente, com o tratamento moral, que percebia a loucura como uma perturbação das paixões

dentro do domínio da razão, tão importante para a ciência clássica; depois, práticas de tratamento

repressivas, disciplinadoras e violentas que explicavam a loucura de acordo com bases somáticas,

sediadas na arquitetura cerebral. Ambos os tratamentos baseavam-se numa prática clínica, como

afirma Barreto (2005, p.122), “magnetizada pela ideologia do progresso da ciência atual”.

Pinel, seus contemporâneos e sucessores fundam, então, uma tradição clínica consciente e

sistemática que articulava filosofia e medicina. Surge, então, a Psiquiatria, que nasceu, por sua

vez, num contexto epistemológico em que a realidade era considerada um dado natural, capaz de

ser apreendido, revelado, descrito, mensurado e comparado; e num contexto em que a ciência era

entendida como a produção de um saber positivo, neutro e autônomo, ou seja, a própria

expressão da verdade.

No âmbito epistemológico das ciências naturais de Linneu e Buffon, mais especificamente

do sensitivismo de Condillac e Locke (Foucault, 1978), é que Pinel elaborou o Traité médico-

philosophique sur l’aliénation mentale, a obra prima da Psiquiatria moderna, na qual, segundo

Amarante (2003, p.15), foi oferecido o conceito de alienação mental e consolidado a prática

sistemática do internamento da loucura. Neste contexto, como aponta este mesmo autor, é que se

inaugura uma clínica como sinônimo de tratamento moral ou isolamento terapêutico (oriundo do

klinus – inclinar-se sobre o leito).

Ainda que, o conceito de alienação mental significasse contradição da Razão, como

atentava Hegel, e não a ausência absoluta desta, essa contradição inviabilizaria a Razão Absoluta.

Dessa forma, seria alienado todo aquele em cuja razão houvesse tal contradição. Este, por sua

vez, seria incapaz de julgar, de escolher, e de portanto, ser livre e exercer sua cidadania. Assim, a

clínica fundamentada nestas explicações acabava por controlar os desvios e comportamentos

aberrantes daqueles desprovidos de uma Razão Absoluta, excluindo cidadãos, acabando por

servir às preocupações morais e às estratégias de manutenção da ordem pública então crescentes.

Esta clínica excludente, segundo Barreto (2005, p.121), submete a loucura a uma

consciência crítica que “a aprisiona em dispositivos disciplinares em que é desnudada ao olhar do

médico, que a observa, descreve, classifica, constrói para ela uma cartografia e lhe prescreve um

destino”. É assim que, o hospital psiquiátrico, segundo Foucault (1997 apud Barreto, 2005,

p.120), cumpre a função de um triângulo botânico, “em que as doenças são repartidas numa

grande horta regada de diagnóstico e classificação para obrigar que nos canteiros disciplinados

aflore a verdade da loucura”.

35

Neste sentido, segundo Rotelli (2001, p.90), em torno da doença – objeto bem definido da

Psiquiatria, de acordo com o paradigma clínico –, estruturam-se várias instituições relacionadas

ao conjunto de aparatos científicos, administrativos, de código de referência cultural e de relações

de poder. É assim que, um modelo técnico assistencial é construído calcado na idéia de que a

loucura era uma incapacidade da razão (posteriormente degeneração e, mais tarde, doença

mental). Daí, este modelo ser fundamentado na tutela, na custódia, na disciplina, na vigilância

panóptica, na imposição da ordem, na punição corretiva, no trabalho terapêutico, na interdição

etc. Entende-se, então, como a institucionalização torna-se algo legítimo e imperativo e o

manicômio a expressão deste modelo.

Por fim, de acordo com Passos e Pitombo (2003), o cientificismo que movia (e ainda move)

a prática clínica a atrelava a pressupostos que escondiam sua complexidade e seu caráter

experimental, criador de normas. É neste sentido que, conforme afirma Amarante (2003, p. 49), a

Psiquiatria, surgida no bojo deste modelo epistemológico, influenciada pelo conceito de ciência

como produção de Verdade e pela noção de neutralidade científica, acaba por construir conceitos

– “alienação”, “degeneração” e “doença mental”, “isolamento terapêutico” (que possibilitava a

observação do “objeto em seu estado puro”), “tratamento moral”, “normalidade/ anormalidade”,

“terapêutica”, “cura” etc. Estes, por sua vez, em vez de propor novas formas de existência, de

produção de saúde, ao contrário, engessam a clínica e só fazem repetir sistematicamente práticas

anteriores.

Diante de tudo que foi dito acerca de como a constituição da clínica da Psiquiatria Clássica

foi fortemente influenciada pelo paradigma da ciência moderna, vale ressaltar ainda como o

saber/prática da Psicologia contribuiu, aliando-se à Psiquiatria, para a criação de uma clínica

pautada nos princípios das ciências naturais.

Antes de tudo, é importante ressaltar, de forma resumida, em que contexto e como a

Psicologia surgiu. De acordo com Kastrup (1999, p. 30-31), citando Canguilhem (1956), a

Psicologia surgiu como forma de dar conta dos erros inerentes ao processo de conhecer, os quais

foram mostrados pela física do século XVII. Uma vez que, foi revelado através dos estudos da

física científica, que o “mundo não é como se vê”, tal constatação fez do conhecimento um

problema, exigindo assim, a elaboração de uma teoria, a princípio da percepção, a qual foi

desenvolvida pela psicologia. Dito de outra forma, foi por meio da elucidação de erros e falhas no

processo de conhecer que se abriu espaço para a constituição do projeto para uma Psicologia

científica. Assim, a edificação de uma ciência psicológica esteve fundamentada no discurso da

ciência moderna e nos erros cognitivos residuais, uma espécie de resto do projeto científico da

modernidade.

36

Neste sentido, segundo Figueiredo (1999), edifica-se um sítio armado em torno da

subjetividade. A produção e validação do conhecimento pressupõem um domínio técnico sobre a

natureza, implicando a fiscalização, o autocontrole e a autocorreção do sujeito, ou seja,

implicando a neutralidade científica. Tais pressupostos, por sua vez, vão dar início às

preocupações epistemológicas e, principalmente metodológicas, características da época

moderna. Como conseqüência disso, surge o projeto de Psicologia que Figueiredo (ibdem)

definiu como “ciência natural do subjetivo”.

Diante desta conjuntura, de acordo com Vasconcelos (2003, p.11), instaura-se o solo

propício para a constituição de uma natureza subjetiva interna, “de um eu individual e essencial,

algo diferente e completamente separado da natureza exterior, um mundo à parte, insular, que

precisa ser colonizado”. A construção de uma natureza subjetiva interna fomenta o progresso da

ciência, na medida em que este progresso está diretamente implicado com o processo de

conhecer, controlar e produzir a subjetividade e as diferenças individuais, sendo dessa forma que

o sujeito individual deixa de ser apenas um pesquisador para vir a se tornar um possível objeto da

ciência. Assim, tanto a epistemologia, como a metodologia, demandam o surgimento da

Psicologia com a finalidade de produzir conhecimento acerca dessa subjetividade.

Surge, no entanto, uma contradição. Ao mesmo tempo em que tal projeto da Psicologia

tenta neutralizar a natureza subjetiva interna – definida como um irracional caotizado, que tende

a turvar a “verdade” do mundo, sendo essencialmente hostil à disciplina imposta pelo método

científico –; tal projeto pretende estudá-la através de métodos objetivos. Dito de outra forma, se

por um lado, a ciência moderna pressupõe sujeitos livres e diferenciados, senhores de fato e de

direito da natureza, por outro, procura conhecer e dominar a própria subjetividade, reduzindo e

mesmo eliminando as diferenças individuais (Figueiredo, 1999, p.19).

Como efeito dessa contradição, o sujeito moderno, objeto dessa ciência, é atravessado por

uma seqüência de rupturas – a afetividade, a sensibilidade, a intuição, a invenção, a vivência pré-

reflexiva conflitam com a razão instrumental; ao mesmo tempo que, “a própria razão se distende

em discursos de suspeita, buscando identificar e retirar dos discursos com aspirações racionais os

resquícios da subjetividade cada vez mais dissimulados” (Vasconcelos, 2003, p.13).

Desse modo, a Psicologia, enquanto “ciência natural do subjetivo” – fruto da hegemonia do

paradigma positivista de ciência, bem como da ideologia liberal – acaba por legitimar uma certa

idéia de subjetividade. Trata-se de uma subjetividade natural, privatizada, constituída de maneira

individual no enfrentamento da realidade, uma subjetividade que é pensada de forma

descontextualizada, sendo as influências da sociedade sobre a mesma, reduzidas a meros

obstáculos ao desenvolvimento de capacidades que são inerentes ao sujeito, restringindo, assim,

os fenômenos coletivos a individuais.

37

É assim que, de acordo com Kastrup (1999, p. 31-32), a edificação de uma ciência

psicológica encontra-se situada na tradição da “analítica da verdade”. Primeiro, porque ela se

fundamenta no discurso da ciência e dos erros cognitivos residuais que são revelados por este

discurso; segundo, porque sendo influenciada pelo paradigma positivista, ela se atém às

condições invariantes da cognição sob a forma de leis científicas. Em outras palavras, a ciência

psicológica busca o que a cognição possui da ordem da repetição e da necessidade. A

conseqüência disso, segundo Kastrup (ibidem), é a exclusão da temática da invenção, da criação,

do campo de estudo da Psicologia.

Desta forma, entende-se, portanto, como a Psicologia, unindo-se à Psiquiatria na construção

de uma clínica do que hoje se denomina saúde mental, apresenta uma forte tendência à repetição

de práticas, sustentadas por leis gerais e invariantes inspiradas no paradigma da ciência moderna.

Esta clínica, por sua vez, tem como objeto a “doença privada” de um sujeito, que se encontra tão

reduzido e estático como a própria prática desta clínica.

38

4 – A Clínica na Reforma Psiquiátrica e a Construção de um Novo Paradigma

Pode-se dizer que a reconstrução do conceito de clínica e de sua prática vem sendo uma

das maiores preocupações da Reforma Psiquiátrica. Fica claro, por sua vez, que para que a

relação técnico-instituição-sujeito não seja a reprodução daquela clínica da medicina naturalista,

é necessário tomar como fundamento novos paradigmas centrados no cuidado e na cidadania,

diferente do da ciência clássica, baseado no positivismo. Dessa forma, a garantia para uma

clínica reinventada que promova a construção de possibilidades, a construção de subjetividades,

que permita a possibilidade de ocupar-se de sujeitos com sofrimento, e de responsabilizar-se

pelos mesmos, passaria por um rompimento com o modelo de clínica como sinônimo de

normalização e disciplinarização.

Uma clínica dinâmica entendida como uma experiência complexa de acolhimento do outro

e de produção de desvio ou desinstitucionalização da doença metal, que acompanha o bifurcar de

um processo de vida na criação de novos territórios existenciais, no entanto, precisa de

paradigmas que dêem conta de suas pretensões. A partir destes, de novos modos de conceber o

mundo, a clínica de saúde mental é capaz de construir para si um novo objeto, além de

potencializar a criação de formas instituintes de relação.

De acordo com Mangueira e Escóssia (no prelo), pensar, produzir conhecimentos e práticas

para além do paradigma da ciência moderna tem se apresentado como desafio para pesquisadores

de várias áreas, desde a metade do século XX. Como conseqüência disso, tem-se a elaboração de

novas teorias e conceitos que, ao parir da diversidade e complexidade do mundo e dos fatos

sociais, “operam entre saberes e práticas, entre as dimensões da realidade, entre sujeitos e

objetos, historicamente separados em pólos opostos e excludentes” (p.2).

Nesse sentido, então, se faz necessário desfazer-se de referências e metáforas científicas

para forjar novos paradigmas de inspiração ético-estético-política que pensem as relações

homem/ mundo de forma diferente. Guattari (1999), dentre outros, chama atenção para essa ação

e é através dos argumentos e propostas de seu livro “As Três Ecologias” que aqui serão expostas

algumas de suas idéias.

Antes de tudo, faz-se necessário esclarecer a expressão “produção de subjetividade”. Como

explica novamente Mangueira e Escóssia (no prelo), citando Deleuze e Guattari (1976, 1992,

1996), os processos de subjetividade designam a operação pela qual os indivíduos ou as

comunidades se constituem como sujeitos. Há uma multiplicidade de fatores que são passíveis de

serem definidos como “dimensões constitutivas da subjetividade”. De forma oposta à noção

clássica de sujeito – mônada fechada e isolada do/ para o mundo, um dado anterior e imutável –,

a subjetividade é um efeito de um campo de produção (ou campo de subjetivação). Tal campo é

39

“heterogêneo, constituído por saberes, crenças e coisas, por elementos que são vetores de

subjetivação” (p.2). Assim, família, educação, economia, religião, funcionam como vetores,

concebidos em sua processualidade.

Uma vez entendido o conceito de subjetividade, compreende-se como Guattari (1999)

associa a época contemporânea, exacerbadora de produção de bens materiais e imateriais, em

detrimento da consistência de territórios existenciais individuais e de grupo, como engendradora

de um imenso vazio na subjetividade, que tende a se tornar cada vez mais absurda e sem

recursos. Paralelamente, em nome do primado das infra-estruturas, das estruturas ou dos

sistemas, pode-se dizer que a subjetividade perde sua importância, e aqueles que dela se ocupam

na prática ou na teoria, em geral, só a abordam cheios de precauções, cuidando para não afastá-la

dos paradigmas pseudo-científicos das ciências duras. Assim:

Tudo se passa como se um superego cientista exigisse reificar as entidades psíquicas e impusesse que só fossem apreendidas através de coordenadas extrínsecas. Em tais condições, não é de se espantar que as ciências humanas e as ciências sociais tenham se condenado por si mesmas a deixar escapar as dimensões intrinsecamente evolutivas, criativas e autoposicionantes dos processos de subjetivação (Ibdem, p.18).

Em tais condições, a subjetividade acaba por ser sufocada, “a alteridade tende a perder sua

aspereza” (Ibidem, p. 8). É assim que as relações da humanidade com o socius, com a psique e

com a natureza tendem a se deteriorar cada vez mais, não só por causa de nocividades e

poluições objetivas, como também por um desconhecimento e de uma passividade fatalista dos

indivíduos e dos poderes com relação a essas questões consideradas em sua totalidade.

Diante deste conjunto de fatores, Guattari (Ibidem) propõe uma recomposição das práticas

sociais e individuais, através da articulação ético-estético-política entre três registros

ecológicos11, quais sejam, o meio-ambiente, as relações sociais e a subjetividade humana. De

acordo com o mesmo autor, é importante que no estabelecimento dos pontos de referência

cartográficos12 dessas três ecologias esteja implicada uma lógica das intensidades. Em vez de

limitar muito bem seus objetos, tal lógica considera apenas o movimento, a intensidade dos

processos evolutivos. Tais processos, contrários à idéia de sistema ou estrutura, visam:

11 A ecologia ambiental parte do princípio de que tudo é possível, tanto as piores catástrofes, quanto as evoluções flexíveis. Defende a idéias de que cada vez mais os equilíbrios naturais dependerão das intervenções humanas. Já a ecologia social, consiste em desenvolver práticas específicas que tendam a modificar e a reinventar maneiras de ser no seio da família, do contexto urbano, do trabalho etc., reconstruindo as relações humanas em todos os níveis do socius. Por fim, a ecologia mental tem a incumbência de re-inventar a relação do sujeito com o corpo, com o inconsciente, com o tempo que passa, com os mistérios da vida e da morte. Sua maneira de operar aproxima-se mais daquela do artista do que a dos profissionais “psi” (Guattari, 1999). 12 “A cartografia é um desenho que acompanha os movimentos de transformação de uma paisagem. Neste sentido, ela é sempre provisória e singular. (...) O cartógrafo é aquele que quer envolver-se com o traçar, quer navegar no movimento, quer misturar-se com os acontecimentos, quer compor territórios que não sejam fixos por muito tempo, já que o movimento não cessa” (Galletti, 2004, p.18).

40

A existência em vias de, ao mesmo tempo, se constituir, se definir e se desterritorializar. Esses processos de “pôr a ser” dizem respeito apenas a certos subconjuntos expressivos que romperam com seus encaixes totalizantes e se puseram a trabalhar por conta própria e subjugar seus conjuntos referenciais para se manifestar a título de indícios existenciais, de linha de fuga processual (Ibidem, p.28).

A articulação das práticas ecológicas tem o objetivo de tornar processualmente ativas

singularidades isoladas, recalcadas, que giram em torno de si mesmas; fomentar a criação nas

pessoas. Para tanto, inspira-se em paradigmas ético-estético-políticos, que deslocam, segundo

afirma Neves et al. (1996, p.179), visões planificadas e burocratizadas, requisitando de todos que

trabalham com a produção de subjetividade o contato com regiões de inquietude, a vontade de

criação, a afirmação das diferenças, o compromisso político de resistência às unificações e

totalizações.

Éticos, por fomentarem o desejo pela diferença, além da responsabilidade e do

engajamento não somente dos operadores “psi”, mas de todos aqueles que estão em posição de

intervir nas instâncias individuais e coletivas (seja por meio da educação, saúde, cultura, esporte,

arte, mídia etc). Ressalta-se ainda que é eticamente insustentável se abrigar atrás uma

neutralidade fundada pretensamente sob o controle do inconsciente e um conjunto de métodos

científicos.

Já os paradigmas estéticos, sublinham a importância da criação de novos processos de

subjetivação. Assim, é preciso, aqui especificamente nas práticas “psi”, que tudo seja sempre

reinventado, retornado do zero. Do contrário, os processos se congelariam numa fatal repetição.

Neste sentido, caberia a cada instituição de atendimento médico, de assistência, de educação,

cada tratamento individual, ter como permanente preocupação fazer evoluir sua prática assim

como sua teoria, considerando que:

Os agenciamentos subjetivos individuais e coletivos são potencialmente capazes de desenvolver e proliferar longe de equilíbrios ordinários. Suas categorias analíticas transbordam os territórios existenciais aos quais são ligadas. Com tais cartografias deveria suceder como na pintura ou na literatura, domínios no seio dos quais cada desempenho concreto tem a vocação de evoluir, inovar, inaugurar aberturas prospectivas, sem que seus autores possam se fazer de fundamentos teóricos assegurados pela autoridade de um grupo [...] (Guattari, 1999, p.22).

Por fim, os paradigmas políticos chamam atenção para a necessidade de se estar implicado,

assumindo compromissos e riscos. Além disso, sublinha-se a importância de experiências de

crítica e análise das formas instituídas, a fim de fomentar a produção de diferença entre os

sujeitos, devolvendo-os a um plano de produção que é o plano do coletivo.

41

Diante dessas explicações, fica claro como fundamentar a prática e a teoria da clínica de

saúde mental em um paradigma diferente do da ciência clássica – que considera a natureza

passiva e mecânica e o homem, separado dela, o ser ativo capaz de explicar suas leis gerais –

pode fazer uma grande diferença. Isso porque segundo Prigogine e Stengers (1984), como uma

nova aliança entre o homem e a natureza, entre o sujeito e o objeto, começa a ser forjada, a

explicação dos fenômenos naturais, bem como das relações humanas, pode basear-se na

complexidade e multiplicidade da natureza e das relações humanas, em suas diversidades

qualitativas, em processos irreversíveis, em processos de organização do conhecimento em rede,

em influências da filosofia e da arte etc.

Uma clínica reformada precisa, além de um novo paradigma, de uma concepção de

saúde/doença diferente do da clínica clássica. Nesta direção, a saúde é aqui entendida como um

processo de produção, que lhe confere um caráter histórico e coletivo, capaz de entender o

sujeito como bio-psico-socio-cultural.

Vale ressaltar ainda que o entendimento da saúde como processo de produção, implica

concebê-la não em oposição à doença. De acordo com Escóssia e Mangueira (no prelo), citando

Canguilhem (1978) e Nietzsche (1987), não cabe á saúde ser definida como ausência de doença,

mas sim como um “processo no qual saúde pressupõe doença, através de um confronto e

superação das tendências mórbidas, ou seja, um processo que inclui a superação de estados de

crise” (p.3). Não existiria, portanto, indivíduos em estado de equilíbrio perfeito (a ausência plena

de doença, como afirma Canguilhem (1978), situa-se no campo da patologia e não da saúde),

visto que os organismos estão a todo tempo sendo bombardeados por diversas forças geradoras

de crise.

A saúde seria definida, então, como a capacidade normativa da vida. Em outras palavras,

trata-se da capacidade do organismo de enfrentar as crises a fim de se instaurar uma nova ordem,

novas normas. Nesta mesma direção, Nietzsche (1987 apud Escóssia e Mangueira, no prelo, p.4),

define saúde como a “capacidade plástica dos corpos individuados (biológico, psíquico ou

comunitário) de habitar a multiplicidade, lançando-se no ensaio, na aventura de sua

autoprodução”.

Por fim, entender a saúde como processo de produção implica, necessariamente, entendê-la

como uma experiência que traz consigo uma multiplicidade de determinantes, sendo, portanto,

impossível reduzi-la ao binômio queixa/ conduta, originário do paradigma da ciência clássica,

que traz a dualidade cartesiana da causa-efeito como um de seus pressupostos. Assim, pode-se

definir a saúde ainda como um fenômeno coletivo, decorrente de um plano de forças,

agenciamentos, relações e cruzamentos. É neste plano que acontecem os processos de criação de

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novas formas de vida. Portanto, chama-se atenção para o fato de que o processo de produção de

saúde está intrinsecamente relacionado com o de produção de subjetividade.

43

5 – Clínica na Reforma Psiquiátrica: Clínica Ampliada e “Clínica da Criação”

5.1) Clínica na Reforma Psiquiátrica: Clínica Ampliada

A clínica na Reforma Psiquiátrica, como o próprio nome sugere, só pode ser compreendida

na medida em que os princípios desta Reforma estiverem bem esclarecidos. No capítulo sobre a

“História da Loucura, Surgimento da Psiquiatria e Reformas Psiquiátricas”, mas especificamente

na seção em que a proposta da desinstitucionalização de Basaglia foi estruturada, tais princípios

foram brevemente apresentados. Aqui, completando o trabalho já iniciado, serão esclarecidos

novos conceitos relacionados à Reforma Psiquiátrica para, então, se discorrer sobre a clínica na

Reforma Psiquiátrica como sinônima de uma clínica ampliada.

Como bem explicita Amarante (2003), a Reforma Psiquiátrica não deve ser entendida

como uma mera reforma administrativa ou técnica do modelo assistencial psiquiátrico. Não se

trata de transformações superestruturais, superficiais, sem consistência ou profundidade.

Inclusive esse autor defende a utilização do termo “revolução” como sendo mais adequado que

“reforma”. Respalda essa idéia citando Thomas Kuhn (1975), que utilizou o termo para expressar

uma transformação paradigmática; e Felix Guattari (1989), que o utilizou para expressar uma

transformação radical do saber e da prática psiquiátrica.

Essa reforma com caráter de revolução, tal como explicado anteriormente, baseia-se no

princípio defendido por Basaglia da desinstitucionalização do saber, prática e sistemas que foram

construídos ao redor da Psiquiatria. A desinstitucionalização pode ser entendida como um

processo prático de desconstrução e, simultaneamente, um processo de invenção de novas

realidades. Quando se pensa na desconstrução da Psiquiatria, pensa-se, como aponta Amarante

(ibidem), na desconstrução de uma conjunção de diferentes, porém interligadas dimensões:

teórico-conceitual, técnico-assistencial, jurídico-política e sociocultural.

A dimensão teórico-conceitual diz respeito ao conjunto de questões relacionadas ao campo

da produção dos saberes que embasa e autoriza o saber/ fazer médico-psiquiátrico. Dessas

questões, destacam-se conceitos ligados tanto ao campo da ciência como um todo – “verdade”,

“neutralidade” etc. –, como específicos da psiquiatria – “doença mental”, “normal/ patológico”,

“cura” etc. Assim, quando se afirma que a desinstitucionalização possui uma dimensão teórico-

conceitual, entende-se que através desta se pretende uma (des)construção de conceitos. Neste

sentido, chama-se atenção para a construção de um novo objeto, compatível com uma clínica da

Reforma Psiquiátrica.

Dessa forma, como mencionado, a partir do projeto de desinstitucionalização de Basaglia,

inicia-se a proposta de colocar a doença entre parênteses para favorecer a manifestação da real

44

existência da pessoa aos olhos de uma clínica em Saúde Mental diferente, mais participante. É

nesse sentido que Rotelli (1990, p.30) sugere um novo objeto para a Psiquiatria, qual seja, a

“existência-sofrimento dos pacientes e sua relação com o corpo social”. E também é nessa

direção que Campos (2003, p.56-57) defende uma clínica centrada no Sujeito em seu contexto,

na pessoa real, em sua existência concreta, também considerando a doença como parte dessa

existência.

O projeto de desinstitucionalização coincide, assim, com a reconstrução da complexidade

do objeto que as antigas instituições haviam simplificado. Aqui, a complexidade opõe-se à

naturalização/ objetualização da noção de doença, que passa a ser designada como processo

saúde/ enfermidade, como explicado no capítulo anterior. Stengers (1990, p.151 apud Amarante

2003, p. 53-54) afirma que a noção de complexidade vai de encontro ao paradigma da ciência

clássica e aponta para “a necessidade eventual de inventar novos tipos de problematização, que o

operador não autorizava”. Em tais condições, a complexidade atende ao desafio de resgatar a

singularidade da relação entre sujeito e objeto sem que isso signifique o conhecimento do objeto

em sua “verdade”.

Dentro dessa perspectiva, faz-se necessário uma superação do especialismo dos saberes,

bem como da hegemonia da ciência na apreensão do real. Diante de tal desafio, o conceito de

transdisciplinaridade surge com fundamental importância para se pensar uma clínica em Saúde

Mental reformada. Neves et al. (1996, p. 178) explica que a proposta da transdisciplinaridade é

de desnaturalizar cada disciplina, problematizando sua história, os recortes que imprime nas

práticas e como constrói seus objetos. Assim, procura-se colocar em análise os limites entre as

disciplinas a fim de que essas fronteiras se tornem instáveis, permitindo a produção de um

regime discursivo híbrido.

Entende-se, então, como através da complexificação do objeto da clínica, bem como da

superação do especialismo em busca da transdisciplinaridade, a dimensão teórico-conceitual da

desinstitucionalização proposta pela Reforma Psiquiátrica pode funcionar como um instrumento

tecnológico-político de intervenção que opere entre os limites da teoria e da prática, assim como

entre o sujeito e o objeto.

Se o objeto muda, as antigas instituições precisam ser demolidas para que novas possam

ser construídas à altura do objeto, que não está mais em equilíbrio, mas está por definição. É

nesse sentido que se defende a construção de um modelo assistencial que não esteja baseado na

concepção da loucura como uma incapacidade da Razão. A dimensão técnico-assistencial da

desinstitucionalização, então, diz respeito a desconstrução de um modelo assistencial

psiquiátrico manicomial calcado na vigilância, na disciplina, na custódia, na tutela e no

isolamento.

45

Através da dimensão jurídico-política pretende-se “rediscutir e redefinir as relações sociais

e civis em termos de cidadania, de direitos humanos e sociais” (Amarante, 2003, p. 52-53).

Dessa maneira, problematiza-se o fato da Psiquiatria ter desenvolvido uma teoria/ prática que

constrói uma co-relação entre loucura e periculosidade, irracionalidade, irresponsabilidade civil e

incapacidade.

Faz-se necessário, então, a transformação do “lugar social” da loucura, a fim de que se

possa desconstruir a ideologia psiquiátrica que relaciona a loucura à incapacidade do sujeito de

estabelecer trocas sociais e simbólicas (Ibidem). Uma última dimensão da desinstitucionalização

– a dimensão sociocultural – almejaria, portanto, uma concepção nova da loucura no imaginário

social.

Uma vez entendido que a proposta da Reforma Psiquiátrica acontece através do projeto de

desinstitucionalização e que esta envolve diversos aspectos (teórico-conceitual, técnico-

assistencial, jurídico-político e sócio-cultural), e deixada clara a importância de um paradigma

ético-estético-político para fundamentar a relação do homem com o mundo, pretende-se aqui,

diante deste contexto, caracterizar a clínica da Reforma Psiquiátrica, destacando suas pretensões.

Ao contrário do que afirmam alguns autores, em sua proposta de desinstitucionalização

Basaglia não descuidou da clínica. Preocupando-se com os sujeitos de forma concreta, pensou

uma outra forma de pensar e fazer a clínica. A essa proposta foram acrescidas outras afins,

fundamentadas na experiência de atores que participaram (e participam) do movimento de

Reforma Psiquiátrica.

Diante desse contexto, o objeto da clínica de saúde mental pôde ampliar-se. Abandona-se o

enfoque desequilibrado no aspecto biológico e se considera a dimensão subjetiva e social das

pessoas. Como explica Rotelli (2001, p.97), rompe-se com o modelo bio-médico e com o

psicológico, herdeiro dos mesmos vícios, para se investir no território das “engenharias sociais”

como motores de sociabilidade e produtores de sentido.

Diante dessa configuração, para dar conta desse novo objeto, a clínica da saúde mental só

tem sentido caso possa ampliar-se também. Como fazer isso? Antes de tudo, alguns pré-

requisitos são necessários. Os saberes e práticas dessa clínica precisariam desvincular-se do

paradigma mecanicista a fim de firmar-se em paradigmas étco-estético-políticos13. A ênfase

dessa clínica privilegiaria a pessoa por inteira e não fragmentada em partes, que apenas

teoricamente guardariam alguma noção de interdependência. Além disso, a abordagem

13 Essa proposta pode ser melhor entendida através das discussões dos capítulos “A Clínica da Psiquiatria Clássica e o Paradigma Científico da Modernidade” e “A Clínica da Reforma Psiquiátrica e a Construção de um Novo Paradigma”.

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terapêutica dessa clínica deixaria de se voltar para a noção de cura para fomentar a produção de

subjetividade e de saúde.

De forma geral, uma clínica é considerada ampliada na medida em que considera como

importantes os diversos planos constituintes da vida. É, portanto, uma proposta ética, já que

valoriza a vida em sua pluralidade. Operacionalizando melhor esse conceito, de acordo com a

cartilha da Política Nacional de Humanização (PNH) sobre Clínica Ampliada (Brasil, 2004b), tal

clínica é entendida como:

Um compromisso radical com o sujeito doente visto de modo singular; assumir a responsabilidade sobre os usuários dos serviços de saúde; buscar ajuda em outros setores [...]; assumir um compromisso ético profundo.

Diante dessa definição, faz-se necessário colocar em análise alguns pontos, trazendo-os

para perto do âmbito da Saúde Mental. Inicialmente, interessa aqui esclarecer qual o significado

de singularidade. Para tanto, serão utilizadas aqui as palavras de Lobosque (1997 p.22-23).

Segundo este autor, a singularidade não pode ser confundida com o privado nem com o

individual. O sujeito não é único nem igual a si mesmo. O singular de cada pessoa não reside em

alguma unidade suposta, mas numa discordância fundamental, naquilo que é diferente. Cabe à

clínica, portanto, a função de interpelar tal singularidade, convidando o sujeito a sustentá-la com

o estilo que é seu, sustentar sua diferença, sem precisar excluir-se do social.

Vale notar que esse sujeito singular não está em oposição ao coletivo, nem ao mundo.

Sujeito e mundo se co-engendram participando de um mesmo processo de produção que é

sempre da ordem do coletivo e territorial. Passos (2005) explica muito bem isso. Para este,

atualmente, as pessoas vivem em um “mundo marcado por uma forma de integração dos

processos de produção própria do capitalismo globalizado que se estende em rede” (p.2). É difícil

não se deixar capturar por estas redes do contemporâneo. Daí a necessidade de se construir redes

de resistência que não sejam homogeneizantes, mas redes sintonizadas com a vida, redes

autopoiéticas.

Seguindo o raciocínio desse autor (Ibidem), o capitalismo inventou formas diferentes de

asilar, de enclausurar a céu aberto. Diante desse fato, não basta apenas derrubar os muros do

manicômio. O que se espera, então, da clínica de saúde mental nesse contexto? Antes de tudo, é

preciso romper com a separação realizada entre produção e produto, entre processo de

subjetivação e sujeito.

Para tanto, a clínica que se diz reformada precisa ter como objetivo a devolução do sujeito

ao plano da subjetivação, ao plano coletivo de produção. Tanto Passos (Ibdem) como Barros

(2003, p.3) definem o coletivo como o plano de produção de subjetividade formado por

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diferentes elementos – família, trabalho, meios de comunicação, cidade etc. É o plano das forças

ou vetores de subjetivação. Nele se lida com o que não é de ninguém, não há propriedade

particular, pessoalidades. No coletivo se lida com forças e não com formas, com processos e não

com estados. Tais forças e processos estão espalhados por toda sociedade. Em tais condições, os

autores citados entendem que é no plano do coletivo que acontece a experiência da clínica

ampliada ou psicossocial.

Uma vez entendido o objetivo da clínica ampliada de devolver o sujeito ao plano da

produção – o plano do coletivo –, compreende-se, então, como a clínica de saúde mental, sendo

uma clínica ampliada, pode ser caracterizada também como uma clínica-política.

Em um âmbito micropolítico, a clínica de saúde mental se relaciona com a produção de

modos de criação de si e do mundo implicados com a análise e a crítica das formas instituídas. É

caracterizada como um processo e está situada num plano onde circulam forças, vetores de

subjetivação. Daí a Reforma Psiquiátrica ser caracterizada como um movimento, como algo,

portanto, processual.

A clínica reformada pode ser também definida num âmbito macropolítico na medida em

que produz princípios, diretrizes e ações explícitos, referendados, que se institucionalizam. No

contexto da Reforma Psiquiátrica, como exemplo da instância macropolítica da clínica estão as

mudanças legislativas da lei Paulo Delgado, que culminaram com intervenções realizadas em

antigos asilos psiquiátricos.

Micropolítica e macropolítica, instituinte e instituído. Essas dimensões se revezam a todo

tempo numa clínica-política. É assim que, como destaca Passos (2005), no cotidiano dos serviços

substitutivos14, se fomenta diferentes modos de produção:

Não só modos de produção de bens de consumo como nas oficinas de geração de renda, mas também e, sobretudo, modos de produção da experiência coletiva (as assembléias, as associações, os grupos terapêuticos), modos de produção de outras relações da loucura com a cidade (o AT, os dispositivos residenciais, a luta pelo passe livre), modos de produção de outras formas de expressão da loucura (as oficinas expressivas, as rádios e tvs comunitárias), modos de criação de si e do mundo que não podem se realizar sem o risco constante da experiência de crise.

Como explicado, uma vez que a clínica de saúde mental torna-se ampliada e com o objetivo

de devolver o sujeito ao plano do coletivo, compreende-se melhor o que Lobosque (1997, p.27)

chamou de “princípio da articulação”. Nessa direção, Passos e Pitombo (2003) explicam que a

política, a cidade, as instituições asilares, a família etc. não são elementos exteriores ao domínio

14 Como os serviços substitutivos ao modelo manicomial (CAPS/ NAPS) são, de acordo com a lei 10.216/2001, os principais locais definidos para o cuidado de pessoas acometidas por transtornos mentais, bem como os ordenadores da rede de saúde mental; a partir daqui a clínica da Reforma Psiquiátrica será definida relacionada ao contexto dos CAPS’s, local privilegiado para sua efetivação.

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da clínica. Em vez disso, a clínica na Reforma Psiquiátrica muda de lugar, habitando agora o

limite com seu fora. Nessa direção, Lobosque (1997, p.24) chama atenção para importância da

clínica antimanicomial, habitando estes limites, estabelecer parcerias articulando-se com outros

segmentos, que também buscam uma posição de combate aos diversos dispositivos de exclusão,

que possuem uma posição política em prol da cidadania.

Daí então o CAPS ser um dispositivo – articulado à rede de serviço de saúde e a outras

redes sociais, de outros setores afins – capaz de fazer face à complexidade das demandas

daqueles que estão excluídos da sociedade por transtornos mentais. Neste sentido, o CAPS deve

assumir um papel estratégico na articulação e no tecimento dessas redes, tanto cumprindo suas

funções na rede de serviços de saúde, quanto na promoção da vida comunitária e na autonomia

dos usuários, articulando recursos existentes em outras redes: sócio-sanitárias, jurídicas,

cooperativas de trabalho, escolas, empresas etc.

Como incidência do “princípio da articulação”, por sua vez, está a necessidade da

construção de uma clínica transdisciplinar, como mencionado no início deste capítulo. Nesta

clínica, de acordo com Neves et al. (1996, p.183-184), os saberes não adquirem seu valor a partir

da filiação a um autor ou a determinadas instituições. O único princípio norteador da clínica

transdisciplinar é que os saberes e práticas indissociáveis, construídos através de articulações

com diferentes disciplinas, possam produzir acontecimentos, transformações, movimentos de

ruptura e afirmação da vida, daí a afirmação de que tal clínica é uma “clínica da criação”.

A partir da caracterização da clínica na Reforma Psiquiátrica como sendo uma clínica

ampliada, militante e transdisciplinar, compreende-se como a inclusão de novos elementos

(sociais, políticos etc) nessa clínica é capaz de impeli-la a habitar seus limites, levando-a a

experimentar uma crise15, que implica um processo de diferenciação. Interessante notar que a

diferenciação, como aponta Passos e Pitombo (2003), é uma das características fundamentais dos

novos serviços substitutivos ao manicômio. É neste sentido que diante da construção de uma

clínica reformada, segundo esses autores:

O momento atual é o de afirmar o caráter experimental /processual da clínica em sua positividade, considerando tal positividade também como própria dos novos locais de cuidados, comprometidos com a criação de possibilidades outras para a vida não só de pacientes, técnicos e familiares mas, principalmente, para a vida nas próprias comunidades (Ibidem, p.7).

A partir de tais conclusões, pretende-se aqui analisar a relação da clínica de saúde mental

com a noção de criação. Depois disso, serão destacadas algumas dificuldades na construção de

uma “clínica da invenção”, e apontadas algumas estratégias diante de tais dificuldades.

15 Crise aqui tem o sentido de argüição crítica do que está instituído, desestabilização da forma.

49

5.2) Clínica na Reforma Psiquiátrica: “Clínica da Criação”

A partir do entendimento de que a clínica de saúde mental pretende-se ampliada, de forma

a considerar todos os planos que constituem a vida, surgem aqui outras questões. A clínica

surgida no bojo da Reforma Psiquiátrica é uma “clínica da criação”? O que se entende por

criação neste trabalho? Quem produz diferença, quem cria? Como isso acontece?

Essas questões serão problematizadas aqui sem, no entanto, a pretensão de esgotá-las. Já foi

explicado que a reinvenção da clínica passa necessariamente por uma redefinição do paradigma

que a fundamentava (e a fundamenta) – o paradigma científico da modernidade passa a dar lugar

a paradigmas ético-estético-políticos. Quando se afirma, então, que clínica e criação se

relacionam, na verdade atualiza-se a dimensão estética de tal paradigma, que traz como desafio a

produção de agenciamentos, no sentido da criação de novos processos de subjetivação. Neste

sentido, segundo Rauter (1993), assim como no processo de criação artística, a clínica tem o

papel de produzir mutações no campo da subjetividade, de construir outros modos de vida.

De forma geral, a partir da explicação acima, a relação entre clínica e criação pode ser

compreendida. No entanto, é necessário esclarecer alguns pontos importantes. Inicialmente será

analisado o significado do termo criação. Para tanto, será utilizado como referência o artigo de

Dias (2004): “A vida como vontade criadora: por uma visão trágica da existência”.

Fundamentando suas idéias na obra de Nietzsche, esta autora afirma que criar é a atividade a

partir da qual se produz constantemente a vida.

Assim como os artistas, Nietzsche se apodera da palavra criação para designar um tipo de

fazer que não se esgota em um ato único, nem em vários atos, mas vai além dessa atitude. O ato

de criar não é um mero fazer prático relacionado ao terreno da utilidade, ou a um ato particular.

Em vez disso, criar é uma atividade constante e ininterrupta que está sempre efetivando novas

possibilidades de vida. Nesse sentido, para Nietzsche (2001 apud Dias, 2004, p. 134), criar: “é

vontade de vir-a-ser, crescer, dar forma, isto é, criar e no criar está incluído o destruir”. Dias

(2004, p. 134) continua: “criar é colocar a realidade como devir [...]. Criar não é buscar, não é

buscar um lugar ao sol, mas inventar um sol próprio”.

Sob essa perspectiva, acrescenta-se ainda que o ato criador é doador. Como não se fecha

sobre si mesmo, não guarda para si o que cria, nem cria com uma razão para criar, é um ato que

presenteia porque ama o que cria. Corroborando com essa idéia, fazendo menção ao pensamento

de Nietzsche, Pelbart (2000, p. 67) diz também que o homem cria quando ama. As coisas

acontecem na paixão, na crença desmedida, na sombra, segundo uma perspectiva interessada,

amante, instintiva.

50

Continuando, para que aconteça uma ação criadora assim descrita, é indispensável uma

condição de “embriaguez”. Esta pode ser entendida como um estado de plenitude produzido por

uma tensão de forças que cresce sem cessar, gerando uma superabundância de vida, que explode

em ações. Através da embriaguez, as pessoas são capazes de transfigurar as coisas, de se

elaborarem através da imaginação, até que reflitam sobre sua própria plenitude e próprio prazer

de viver. Dito de outra forma:

O fundamental para que haja criação é sempre um fenômeno de plenitude inicial. Sob a influência desses estados de embriaguez, de plenitude, que correspondem a um acréscimo de força, a um aumento de potência, abandonam-se as coisas e se lhes emprestam a nossa plenitude. Na presença de certas atitudes, certas situações, certos acontecimentos, que nos afetam a ponto de nos mover a transfigurar as coisas, nos desembaraçamos de nós mesmos por sinais e atitudes. Diante desse estado, é impossível manter-se objetivo; não há como inibir esse estado explosivo, não há como suspender essa força que interpreta e inventa. No momento que se sente tocado por algo, e o ser animal responde a essa provocação, produz-se o estado estético – o estado em que se configuram as coisas (Dias, 2004, p.134).

Diante do conceito de Nietzsche de vida como sinônimo de vontade criadora (ou vontade

de potência), entende-se como as forças criadoras, capazes de predominar sobre as forças de

adaptação e conservação, impedem a existência de fixar-se, tornando-a constantemente auto-

inventora. Compreende-se, então, que tudo está ainda por se fazer, não há começo nem fim nas

coisas, tudo está sujeito às leis da destruição.

Já que a realidade do devir é a única realidade, pretende-se aqui libertar o futuro, muitas

vezes paralisado no passado continuamente repetido. Daí, então, a afirmação de Nietzsche (2001

apud Dias 2004, p.143) de que os criadores são aqueles que se tornam eles mesmos o presente. A

vontade de crescer, de dar forma, de devir, que é intrínseca à vontade criadora, precisa do

presente, do inesperado, do acaso. É assim que a ação criadora intervém no presente, modifica o

futuro e recria o passado.

Uma vez que o significado do termo criação tenha sido entendido de acordo com a

concepção de Nietzsche de vida como vontade criadora, fica mais fácil entender a relação entre

clínica e criação. Como mencionado anteriormente, a clínica na Reforma Psiquiátrica, por ser

ampliada e transdisciplinar, acaba por habitar seus limites e, como conseqüência disso, vive um

processo constante de diferenciação. Este processo, por sua vez, potencializa a criação de formas

instituintes de relação entre os envolvidos no processo da clínica – usuários, profissionais de

saúde, familiares etc.

Dessa forma, a clínica de saúde mental pode ser entendida como uma “clínica da criação”

por dois motivos. Primeiro, porque ela mesma está submetida a um processo de diferenciação,

em que as formas instituídas que a compõem são analisadas e criticadas, gerando, quando

51

necessário, uma desestabilização dessas formas através de forças instituintes. Assim, a clínica é

capaz de criar para si novas práticas – formas diferentes de organização de seu trabalho e de

cuidado com os usuários – e novos saberes. Segundo, porque também potencializa novas

possibilidades de vida – criação – naqueles que participam deste processo16.

Respaldando a idéia de “clínica da criação”, destaca-se o fato de que a clínica reformada

não se reduz ao movimento de inclinar-se sobre o leito do doente (sentido epistemológico da

palavra derivada do grego klinikos), tal como a clínica clássica. O ato clínico é entendido como

mais do que essa atitude de acolhimento de quem demanda tratamento, é concebido também

como produção de um desvio (clinamen). Como explica Passos (2005), essa diferenciação, de

acordo com a filosofia atomista de Epicuro, designa o desvio que permite aos átomos ao caírem

no vazio em decorrência do seu peso e de sua velocidade, chocarem-se, articulando-se na

composição das coisas. A cosmogonia epicurista atribui a esses pequenos movimentos de desvio

a potência de geração do mundo. De forma análoga, é na afirmação desse desvio (clinamen) que

a clínica se faz.

Como produzir esse desvio? Como fomentar uma clínica preocupada com a criação de

novas maneiras de viver? Uma clínica liberta de categorias universais modeladoras?

O homem moderno vive uma intensificação das vivências de ruptura e de diversidade.

Vive num mundo que cada vez mais aumenta o contato com os estranhos-em-nós, com o não ser.

Como explica Berman (1986), diante do terror da desorientação e desintegração, da vida que se

despedaça, da ruptura de sentido, existe no homem a busca de uma grande estabilidade, da

manutenção do igual. Como conseqüência disso, as singularidades em sua multiplicidade são

abafadas, os fluxos desejantes são desterritorializados diante de processos de codificação

extremamente endurecidos. Neste contexto, voltando os olhos especificamente para uma clínica

de saúde mental, Barros (2003, p.2) aponta uma dúvida: como afirmar a loucura como modo de

subjetivação num mundo em que o assujeitamento é ‘a’ possibilidade colocada como viabilidade

do “existir”?

Diante dessas reflexões, Rauter (1993, p.115) chama atenção para a aproximação da clínica

com a arte (criação). Em ambas a produção de desvio, de novas formas de existência acontece,

na medida em que, os fluxos desterritorializados sejam capazes de produzir novos universos

existenciais dotados de consistência. Nas palavras de Massaro (1996, p.26), trata-se de através de

16 Vale ressaltar que esses dois sentidos para uma “clínica da criação” não estão separados. Ao contrário, fazem parte de um mesmo processo. Além disso, cabe destacar aqui, que quando se menciona como fazendo parte da prática da clínica, tanto o cuidado com o usuário propriamente dito, como a organização do processo de trabalho, também se reconhece essas duas atividades como inseparáveis. Nesse sentido, a assistência aos usuários de CAPS’s fica difícil de se realizar caso os profissionais não experimentem tanto a quebra de seus especialismos, como mais autonomia para participar do processo de afirmação da loucura como modo de subjetivação. Defende-se aqui que o profissional possa fazer parte da construção de seu trabalho de “clinicar”, que a atividade clínica seja inseparável de sua gestão.

52

um contato com os estranhos-em-nós, objetivar singularidades dispersas, culminando com um

ganho de subjetividades.

Vale lembrar, como mencionado anteriormente, que o plano de produção de subjetividade

é o plano do coletivo. É aí que acontece a criação de novas formas de vida. Uma clínica que

fomenta a produção de desvios, a afirmação da loucura como modo de subjetivação, deve criar,

segundo Barros (2003, p.4), “espaços coletivos para o enfrentamento da construção permanente

do Projeto CAPS”, o que pressupõe: a dimensão de equipe, a relação equipe/ técnico-usuário/

família; a inserção e legitimação do CAPS na rede de saúde e sua construção em base territorial;

além de se investir em redes de sociabilidade e redes urbanas17.

Uma “clínica da criação” é possível quando as pessoas envolvidas nesse processo são

capazes de reconhecer aquilo que as constituem e aquilo que constitui os demais a sua volta. O

grupo, concebido como dispositivo, é o espaço em que isso acontece, onde são criadas práticas

de devir-outro, de produção de si. Entende-se, portanto, o motivo dos CAPS funcionarem por

meio de tantas atividades grupais – oficinas, assembléias, grupos terapêuticos, reuniões de

equipe etc.

O grupo entendido como dispositivo funciona como catalisador existencial, capaz de

produzir focos mutantes de criação. De acordo com Barros (1993a, p. 151-152), “a noção de

dispositivo aponta para algo que faz funcionar, que aciona um processo de decomposição, que

produz novos acontecimentos, que acentua a polivocidade dos componentes de subjetivação”.

Num grupo-dispositivo pretende-se entrar em contato com a multiplicidade, a heterogeneidade e

a fragmentação. Dessa forma, almeja-se instaurar rupturas em tendências totalizadoras,

unificadoras e naturalizadoras. Isso tudo com a finalidade de acionar a capacidade do grupo,

enquanto dispositivo, de se transformar, de irromper em devires que desloquem as pessoas do

lugar privatista e intimista que foram colocadas como indivíduos, para que essas tenham a

possibilidade de vivenciar novos processos de singularização.

Explicando melhor, utilizando as palavras de Barros (1993b, p.188), em um trabalho

grupal são estabelecidas conexões entre pessoas diferentes, entre “modos de existencialização”

diferentes. Isto cria um vasto campo de confrontos, de interrogações. Quando são acionados pelo

dispositivo grupal, as falas rígidas, os afetos cristalizados em territórios fechados, se vêem na

adjacência de uma inquietação podendo, se intensificados, se deslocar do lugar naturalizado a

17 Barros (2003, p.4) propõe ainda, para a construção de uma clínica preocupada com a afirmação da diferença: a articulação do “saber sanitário” e do “saber clínico-institucional” e a afirmação do caráter indissociável entre mudanças de modelos de gestão, implementação do dispositivo-equipe e a transdisciplinaridade.

53

que estavam remetidas. O convívio com o outro18 pode disparar movimentos inesperados, já que

é o desconhecido que percorre as superfícies dos encontros.

Por fim, vale ressaltar que nem sempre a clínica de saúde mental está apta a criar novos

saberes e práticas, nem os usuários dos serviços substitutivos ao modelo manicomial têm a

possibilidade de inventar novas formas de existência para suas vidas. Por vezes, a clínica

cronifica-se. Isso acontece, segundo Barros (2003, p.5), quando seus fluxos param, quando as

explicações são naturalizadas, quando são usadas as mesmas saídas ou quando não se consegue

mais inventar novas perguntas.

Como explica a mesma autora (Ibidem), tal cronicidade pode ser identificada em diferentes

situações. Destaca-se aqui a cronificação dos usuários dos CAPS’s. Retidos neste serviço, muitas

vezes contraditoriamente intitulado de “portas abertas”, são muitos aqueles que se apresentam

como seres passivos frente ao desafio da produção de outra subjetividade, por diversos motivos.

Um deles se deve à cronicidade produzida, freqüentemente, pela fragilidade ou até inexistência

de uma rede de atenção em saúde. Acaba que a clínica, que se propõe antimanicomial, não

cumpre em alguns aspectos a sua meta. Uma vez atendidas, as pessoas permanecem no serviço e

não se tem para onde encaminhá-las.

Além disso, chama-se atenção para a cronificação da prática clínica gerada pela dificuldade

dos profissionais de saúde mental pensarem sobre seu próprio trabalho. São poucas as discussões

que procuram aliar a noção de clínica à análise dos processos de trabalho, à análise das

instituições, à política.

Diante dessas cronificações, falando aqui especificamente dos usuários dos CAPS’s, fica

difícil de se inventar novas formas de existência. Surgem padronizações baseadas num mundo de

supostas regularidades. Em tais condições, os transtornos mentais são considerados como o

mesmo em cada uma de suas múltiplas manifestações, sendo desrespeitada a singularidade das

pessoas acometidas por esses transtornos. Quando isso acontece, supostas verdades são

organizadas, juntamente com um sistema de poder. Aparecem, segundo Campos (2003, p.65),

fiéis defensores da identidade da ontologia contra a variação da vida.

No entanto, contraditoriamente, ou não, espera-se que a clínica de saúde mental possa

basear-se em certos padrões, programações, planejamentos. Algumas regularidades, além de

possíveis, são bastante úteis. Definir, por exemplo, requisitos necessários para a realização de

18 O sentido de outro, aqui, refere-se tanto a outra pessoa – nível molar –, como a outrem – nível molecular. Outrem não é um objeto/ sujeito particular, é multiplicidade, é coletivo. Pode ser compreendido como a “composição de linhas que desenham movimentos imprevisíveis possibilitando a captação de um mundo das margens, de perturbação, que arrasta o pensamento do atual ao impensado” (Barros, 1993b, p.188). No encontro desses dois planos que se atravessam entre si – o molar que codifica e generaliza e o molecular que cria e comporta variações –, é que as linhas de subjetivação se entrecruzam, fazendo com que os agenciamentos se multipliquem, produzindo singularizações.

54

acolhimento dos usuários, apoio matricial, visita domiciliar etc. pode trazer bons resultados para

a prática clínica.

Clama-se, entretanto, pela importância de se duvidar desses padrões para que, sempre que

preciso, outros possam ser criados. O desafio, aqui, é transitar entre o campo de certezas e o

campo da imprevisibilidade da vida cotidiana. Como aponta Rauter (1993), trata-se de um ir e vir

entre o caos e a complexidade. É preciso experimentar o caos e sair dele. “É no contato com o

caos enquanto germe que Deleuze vê a vocação clínica da arte, para além de toda psiquiatria e de

toda psicanálise” (p.117).

Finalmente, diante das explanações acima, pode-se concluir que a questão da clínica no

contexto da Reforma Psiquiátrica deve ser enfrentada como um processo permanente de

invenção. Só assim os usuários de serviços substitutivos ao manicômio serão capazes de criar, de

produzir possibilidades diferentes para suas vidas.

Dentro dessa perspectiva, como forma de ilustrar como a clínica de saúde mental pode ser

caracterizada como ampliada e fomentadora de criação, serão brevemente descritas e analisadas,

aqui, duas experiências obtidas durante o Estágio Supervisionado em Psicologia Institucional I e

II realizados no CAPS Liberdade.

55

6 – A Título de Ilustração: Relato e Análise de uma Experiência

O Movimento de Reforma Psiquiátrica no Brasil provoca transformações éticas nas formas

de tratamento, reconfigurando a clínica da psiquiatria tradicional, já que procura romper com a

violência, segregação e exclusão dos asilos, estimulando a criação das chamadas “novas

instituições”. Como conseqüência destas mudanças, surgem os CAPS, tendo como uma de suas

principais atividades, as oficinas terapêuticas.

Estas, por sua vez, são um dos dispositivos mais importantes dos serviços substitutivos ao

manicômio, funcionam como “intercessores19” de uma clínica ampliada e de uma “clínica da

criação”. Isso porque estão na intercessão entre o campo social e a instituição (CAPS) e, através

delas, o cotidiano dos usuários pode ser reinventado, sendo criados novos territórios existenciais.

Aqui, os participantes das oficinas formam um grupo-dispositivo que, como explicado

anteriormente, é capaz de desestabilizar formas cristalizadas de existência e produzir diferenças,

linhas de fuga.

Neste sentido, as oficinas podem ser definidas como atividades realizadas em grupo com a

presença e orientação de um ou mais profissionais/ estagiários. Podem ser definidas através do

interesse e das necessidades do usuário e das possibilidades dos técnicos do serviço, tendo em

vista a maior integração social e familiar, a manifestação de sentimentos e problemas, o

desenvolvimento de atividades corporais, a realização de atividades produtivas e o exercício

coletivo da cidadania (BRASIL, 2004a, p. 20).

De forma mais detalhada, Galletti (2004) faz um mapeamento da utilização do termo

oficina por alguns autores – Lopes (1996), Leal (1999), Rocha (1997) e Rauter (s/d). Citando

Lopes (1996), conceitua as oficinas como um dispositivo sempre experimental que, além de não

seguir uma fundamentação teórica rígida nem um modelo padrão de funcionamento, é construído

no quotidiano por seus participantes. Segundo a mesma autora, as oficinas possuem um campo

clínico – em que as técnicas são utilizadas como facilitadoras da expressão do sujeito – e um

campo reabilitador – cuja pretensão é inserir ou reinserir o sujeito à sociedade através do

trabalho20, dentre outras formas.

Já Leal (1999 apud Galletti, 2004), identifica três possibilidades para a utilização do termo

oficina – como espaço de criação; como espaço de realização de atividades manuais ou

mecânicas e como espaço de convivência.

19 O termo “intercessor” é utilizado por Galletti (2004), em seu livro “Oficina em Saúde Mental: Instrumento Terapêutico ou Intercessor Clínico?” para caracterizar as oficinas em Saúde Mental. 20 O trabalho, aqui, não tem o mesmo significado da ergoterapia criada no bojo do surgimento da Psiquiatria, que tinha a finalidade de disciplinar, controlar e ocupar o tempo dos internos. Ao contrário, é entendido como um processo coletivo e solidário que funciona como “possibilidade de criação/ ação sobre o mundo”, como “produção de vida/ cultura” (Lopes, 1996, p.110 apud Galletti, 2004, p.32).

56

Peres (1999, p.81) aponta as oficinas terapêuticas como uma forma de facilitar a

experimentação de determinadas emoções relacionadas a temas específicos, no sentido de refletir

sobre as sensibilidades e, dessa forma, analisar e elaborar as conseqüências da produção de

determinados modos de ser no mundo, que poderiam porventura estar atrapalhando a clareza e a

tranqüilidade de escolhas das formas mais potentes em que se deseja produzir a vida. Justamente

por ter estas características, as oficinas são consideradas terapêuticas21.

Pode-se dizer ainda que o universo das oficinas não se define por um modelo homogêneo

de intervenção. Em vez disso, é composto de naturezas diversas, numa multiplicidade de formas,

processos e linguagens. Assim, as oficinas estão localizadas num campo híbrido, móvel, instável,

sem identidade, feito de experimentações múltiplas. Um campo transdisciplinar, aberto à

intercessão com vários campos e saberes – arte, política, trabalho etc. (Galletti, 2004).

Concluindo, diante das explanações acima, entende-se que a clínica tem utilizado a oficina

como forma de intervenção por esta já ter se mostrado como um dispositivo por meio do qual

portadores de transtornos mentais (e por que não, também, os profissionais dos CAPS’s?) são

capazes de encontrar modos de produção de subjetividade que singularizem existências, que

permitam o surgimento de processos criativos, legitimando a pluralidade da vida.

Por fim, destaca-se que o intuito aqui de discorrer acerca das oficinas terapêuticas foi o de

tornar mais claras as explanações a seguir sobre a “Oficina de Criação” e o “Grupo Como Vai”.

Chama-se atenção, no entanto, para o fato de que este último grupo não é considerado pelo

CAPS Liberdade como uma oficina, e sim simplesmente como um grupo terapêutico. Neste

sentido, cabe pontuar as semelhanças e diferenças entre ambos. Para tanto, serão utilizadas aqui

as definições instituídas pelos próprios trabalhadores desse serviço.

Tanto um, como o outro, possuem o objetivo de produzir subjetividades que singularizem

existências, através de situações reais de encontro com um “outro”. As diferenças mais

marcantes entre estes grupos são: enquanto nas oficinas as atividades (produção de textos,

música, teatro, confecção de roupas, dentre outras) são um recurso utilizado como um fim em si

mesmo, nos grupos terapêuticos a atividade é utilizada como um meio, como formas de

expressar idéias, sentimentos, emoções etc. Além disso, participa de um grupo terapêutico um

grupo de pessoas determinado. Já nas oficinas, há uma maior variabilidade, sendo possível a

entrada de novas pessoas sempre.

21 As oficinas são consideradas terapêuticas na medida em que trabalham com a vida, com a saúde, com a singularidade dos modos de existência, e não com processos de normalização e adaptação.

57

6.1) Oficina de Criação

Meu amigo, meu colega, eu agora estou entendendo, o por quê de criar-se a oficina nova. Isso demonstra o quanto temos o poder de aflorar nosso poder de criar sempre coisas novas, mesmo sendo um poema, uma canção, ou outra coisa qualquer, mesmo que a pessoa não tenha nenhuma idéia, sendo assim, peçamos a outras pessoas as idéias necessárias, para a criação de qualquer coisa, mesmo que seja um simples desenho (Texto produzido na “Oficina de Criação” por A. S., usuário do CAPS Liberdade, em 2003).

A. S. não podia ter descrito melhor o sentido da “Oficina de Criação” para aqueles que

porventura tivessem vontade de conhecê-la. Por meio dela o “poder de criar sempre coisas

novas” é aflorado, sendo importante o convívio com outras pessoas, para que “idéias

necessárias” possam fluir. Neste sentido, acredita-se que por meio da arte, principalmente

quando esta é realizada em um grupo-dispositivo, não se está apenas criando poemas, desenhos,

textos, músicas etc. Além disso, novos territórios existenciais podem ser produzidos. Isso

acontece, por sua vez, quando a arte se conecta com o primado da criação, ou com o desejo, com

o plano de produção da vida.

Como explica Rauter (2000, p.271), o plano da produção desejante é também o plano de

engendramento do “mundo humano”. O desejo é por si mesmo revolucionário, por ser produtor

não só de fantasias, mas de “mundos”, e é por isso que a questão das oficinas se reveste de um

caráter imediatamente político. Assim, a “Oficina de Criação22” é considerada terapêutica ou

funciona como vetores de existencialização caso consiga estabelecer outras e melhores conexões

que as habitualmente existentes entre produção desejante e produção de vida material.

É o que acontece, por exemplo, quando alguns usuários desenham ou escrevem sobre seus

planos (concluir o Ensino Médio, fazer vestibular, arranjar um emprego etc), ou simplesmente os

relatam no grupo, e no decorrer do tempo, esses planos que faziam parte do futuro se tornam

presente. A oficina tem a função, então, de romper com o imediatamente dado, com as

cristalizações de seus participantes, a fim de facilitar a expressão criadora e, assim, favorecer a

emergência de novas formas de produção de subjetividade.

Vale ressaltar que nem sempre isso acontece. Durante estes encontros, os usuários estão

livres para criar o que quiserem, sem ter que seguir nenhum tema pré-estabelecido. Acontece

que, mesmo diante dessas circunstâncias, estes podem ou não criar formas próprias de existência

22 Vale ressaltar que esta oficina não tem por finalidade proceder a interpretações acerca das criações dos usuários, a arte aqui não é utilizada como técnica projetiva. Neste sentido, Neubarth (2004, p.213) chama atenção para o perigo que é “clinificar” toda a prática do psicólogo. Citando Labosque (2001), Neubarth conclui que não podemos abordar um campo tão plural como a arte pela mão única de uma determinada disciplina, já que, segundo ela, há fazeres pensantes que não podem, além de não necessitar, inscrever-se no registro da teoria. Assim, a arte ilustra isso muito bem – não apenas a arte dos gênios, mas a arte nossa de cada dia, do convívio, do trabalho etc.

58

no mundo. Tanto podem produzir uma subjetividade singularizadora (com sua evolução

criadora), como uma subjetividade expressa de forma normalizadora (com seus estatutos formais

de verdade).

Durante o tempo que a estagiária esteve na oficina, o que mais chamou atenção foi

presenciar a oscilação de dois momentos: um em que os usuários nitidamente estavam criando,

expressando de forma autêntica suas vidas através de poesias, textos, desenhos 23 e pinturas; e

um outro em que as ações dos usuários eram muito repetidas. A subjetividade está circulando

nos conjuntos sociais e é assumida e vivida por indivíduos em suas existências particulares. Isto

pode dar-se, segundo Barros (1993a, p.150), tanto por um processo de homogeneização

universalizante (repetição), quanto por um processo de composição heterogênea (criação).

Como exemplo desse processo de repetição, estão as inúmeras vezes em que, ao final da

oficina, durante os oito meses em que a estagiária esteve participando desta, certo usuário

cantava e tocava as mesmas músicas24 criadas pelo mesmo já há algum tempo, além do mesmo

se envolver muito pouco com os trabalhos realizados pelos outros membros do grupo. Aqui,

utilizando os termos de Nietzsche, parece que a vontade de potência foi capturada pela vontade

de poder.

Em contrapartida, várias são os momentos que subjetividades singularizadoras são

produzidas, que os participantes, através de suas criações, efetivam novas possibilidades de vida.

Vale notar que a “Oficina de Criação”, funcionando como um intercessor clínico, permite que

isso aconteça na medida em que é capaz de sustentar a singularidade do sujeito com o estilo que

é seu, sustentar sua diferença.

Certa vez chamou-se a atenção de um usuário por este ter chegado atrasado na oficina. Sua

resposta, capaz de sustentar sua diferença, afirmando sua existência de forma singularizadora,

veio depois de uma hora, quando este apresentou o texto que escreveu neste dia:

O atraso é esperar pelo pontual, que é o bicho preguiça que não demora mais tarda. Eu sou cansado, um pouco desligado, bem pouco atrasado, mas como cru o indigesto do pontual preguiça. A vida é cheia de encontros. Muitos demoram, mas a vida tem pressa. Corremos contra o tempo, mas ele é veloz, voa, e a gente atrás sem medo de encontrar o outro que custa a chegar. É tarde de mais, eu já fui pontual, mas a preguiça insiste em me atrasar. Obrigado senhor preguiça pelo dia em que poucos foram pontuais. E eu cheguei atrasado onde todos têm atrasado (Texto produzido na “Oficina de Criação” por J. P., usuário do CAPS Liberdade, em 2005).

23 Ver no ANEXO A e B, respectivamente, alguns textos e desenhos produzidos durante a “Oficina de Criação”. 24 Ver no ANEXO A uma das letras das músicas do usuário citado, no item 2.

59

Ainda neste sentido, no mesmo dia, outra usuária fez um poema intitulado “As Faces da

Vida”, em que afirmava provavelmente sua multiplicidade, as diversas possibilidades de se estar

no mundo, em detrimento de uma identidade rígida: “Umas vezes calma, Outras vezes feroz. Algumas vezes dócil, E outros amargas de difícil paladar. Quantas vezes quis amar, E muitas vezes odiar, Pensei, e às vezes lutei com os desejos do coração. Desejos maus e desejos bons25...” (Texto produzido na “Oficina de Criação” por J. M., usuário do CAPS Liberdade, em 2005).

Além disso, pôde-se perceber que o fato de estarem criando em grupo trouxe um

componente a mais à produção desta subjetividade singular. Nesta oficina, os agenciamentos

produzidos nos encontros das pessoas com as atividades experimentadas, como também nos

encontros com outros componentes de subjetividade de outras pessoas, são capazes de permitir

uma maior facilidade na expansão do universo de referência de cada usuário.

Explicando melhor, a partir do momento em que um corpo entra em relação com outro, ele

tanto afeta como é afetado pelo outro. Assim, são estabelecidas zonas de contágio que

impulsionam os corpos para a vivência de experimentações. Dessa forma, cada pessoa é habitada

por inúmeras possibilidades de ser no mundo, que se atualizam a partir dos encontros que

estabelecem em suas relações.

De acordo com Naffah Neto (1998 apud Peres, 1999), toda pessoa traz consigo

possibilidades de vir a ser as outras pessoas que se relacionam com ela, de forma que, em mim,

existiria o outro e no outro existiria o “mim”. Nesse sentido, através do encontro entre as

pessoas, há uma ampliação do universo de referência destas, possibilitando novas percepções

sobre a existência que facilitariam a reflexão e a elaboração sobre as formas de se compor com o

mundo e consigo mesmo.

São vários os exemplos dessa ressonância entre as subjetividades dos usuários. Chamam

atenção as inúmeras vezes em que os textos e desenhos que produziram tiveram relação direta

com algum dos assuntos que estavam conversando durante a oficina; ou quando um usuário

delirante entrou na oficina cantando e dançando uma música e, imediatamente, todos os outros

começaram a cantá-la também; ou quando textos intensos criados na oficina foram lidos,

afetando os membros do grupo, que comentaram ou demonstraram o quanto se sentiram tocados

pelo mesmo.

Destaca-se aqui, a título de ilustração, um desses textos bastante expressivos: 25 Ver o texto completo no ANEXO A, no item 4.

60

Já se perguntou o por quê de tudo? Já pensou por que não ser o que se quer ser. Já quis mudar o mundo com suas próprias mãos, já quis trazer de volta quem já se foi e não volta mais. Já se sentiu inútil com tantas qualidades mal reconhecidas, já quis ser um poeta, desenhista, estilista, escritor, professor, o que você sempre desejou ser. O tempo passou, os dias, as gerações mudaram e você parou no tempo. Para que tanta cultura, tanto saber, para nada que você usufrua para você se sentir bem no seu viver, como se não tivesse chão e nem espaço. Tudo no mundo abafou o seu brilho e você acaba fora do seu mundo e tudo acabou, não adianta acontecer mais nada, é assim que eu me sinto26 (Texto produzido na “Oficina de Criação” por J. M., usuário do CAPS Liberdade, em 2005).

Por fim, conclui-se que a “Oficina de Criação” tem funcionado como excelente intercessor

de uma clínica que se propõe ampliada e criadora de novos territórios existenciais. De certo, tal

criação nem sempre parece visível. Usuários, psicóloga e estagiária se implicam neste processo

de formas bastante diferentes. O que não impede, no entanto, de se afirmar que, de algum jeito,

todos que participam deste grupo são contagiados por novas subjetividades, tanto pelo contato

com demais participantes, como pelo contato com as atividades realizadas.

6.2) “Grupo Como Vai”

Com o passar do tempo neste grupo, a estagiária notou que o mesmo possuía várias

peculiaridades. Num momento inicial, a fim de entender melhor o funcionamento do grupo,

optou-se por experimentar, a todo tempo, diferentes técnicas (verbais e não-verbais) para

fomentar a expressão de pensamentos, sentimentos, lembranças e ações por parte dos usuários.

Depois de algumas experimentações, as peculiaridades desse grupo ficaram mais visíveis e

mais fáceis de entender. A primeira delas, percebida logo nos primeiros encontros, referia-se à

temporalidade peculiar do grupo. Em muitos momentos a estagiária teve a impressão de estar em

um “mundo” diferente, onde o diálogo e as ações aconteciam em câmera lenta. Esta sensação

pôde, por sua vez, ser melhor compreendida a partir de algumas reflexões de Pelbart (1993),

quando este fala que em instituições de Saúde Mental vigora um outro tipo de temporalidade,

qual seja, a de “guetos lentificados”.

A loucura estaria, assim, segundo este autor, em contraposição ao despotismo da máxima

velocidade, seria a recusa a um determinado tipo de temporalidade e a reivindicação por um

outro. Aqueles acostumados a um outro tipo de temporalidade – regida pelos ditames da

velocidade máxima e, agora cada vez mais, pela instantaneidade, que abole o tempo e o

movimento no espaço – não teriam tempo nem paciência para sustentar o ponto de surgimento

26 Além desse texto, há outros igualmente expressivos no ANEXO A.

61

do tempo e da forma, que brotariam a partir do informe e do indeciso, já que são amantes do

futuro já embutido no presente.

Diante desta reflexão algumas questões puderam ser esclarecidas, diminuindo assim a

ansiedade da estagiária. No entanto, a partir desta reflexão também surgiram alguns desafios:

como, neste grupo, se pode preservar a possibilidade de uma temporalidade diferenciada, onde a

lentidão não seja impotência e onde os movimentos não ganhem sentido apenas pelo seu

desfecho.

Dentro desse movimento de encontrar respostas, a estagiária percebeu também que as

atividades desenvolvidas neste grupo tendiam a ser realizadas pelos usuários, sem, no entanto,

que estes se relacionassem entre si. O contato destes era apenas com quem coordenava o grupo.

Sobre este assunto, Lancetti (1993, p.163) observa que a arma fundamental do coordenador é a

sociabilidade. Em detrimento de interpretar e responder uma a uma as solicitações que lhes são

feitas, o coordenador de um grupo de psicóticos precisa fomentar ações que favoreçam o contato

entre os membros do grupo, ajudando na formação do tecido coletivo. Além disso, de acordo

com o mesmo autor, o coordenador precisa, ao mesmo tempo, liderar e pensar grupalmente,

sendo ele mesmo também um integrante desse dispositivo.

Neste sentido, durante as atividades desenvolvidas, as estagiárias perceberam que suas

propostas deveriam fazer o possível para integrar os componentes do grupo, descentralizando o

diálogo entre coordenadores e usuários, facilitando a circularização da fala. Durante estas

tentativas as estagiárias perceberam, com a ajuda da psicóloga que já acompanhava o grupo há

mais tempo, a dificuldade de se propor ao grupo tarefas estritamente verbais. Os diálogos

apresentavam-se truncados, as respostas em muitas vezes eram monossilábicas, enfim, as

discussões propostas pareciam não fluir muito bem. Optou-se, então, sempre que possível, por

trabalhar com dinâmicas, jogos e diferentes formas de comunicação não-verbais (corporal,

musical, através de colagens, desenhos, etc).

Destes procedimentos, uns deram mais certo que outros. Há aproximadamente uns quatro

meses, pode-se dizer que a configuração do grupo mudou. Um dos usuários que participava do

grupo deixou de freqüentá-lo. Como este monopolizava a fala, por vezes desrespeitando os

demais integrantes, o funcionamento do grupo mudou bastante, possibilitando que um novo

clima fosse gerado. Assim, usuários que tinham uma participação tímida puderam se sentir mais

à vontade para se expressarem.

Com o passar do tempo, os integrantes do grupo foram se familiarizando com as histórias

de vida, crenças e lembranças de cada um, aumentando, assim, o coeficiente de coletivização

entre os mesmos. A partir daí, destacam-se algumas temáticas experienciadas por este coletivo.

62

A expressão dos sentimentos e pensamentos através de desenhos e colagens apresentou-se

bastante intensa em alguns momentos.

Destacam-se aqui três reuniões seguidas. Na primeira, a partir do relato mobilizador de um

usuário, que contou que estava em crise há poucos dias, foi sugerido que cada integrante

desenhasse como se sentia quando estava em crise. Os desenhos impressionaram a estagiária

pela capacidade de expressar tão intensamente certos modos de existência (Ver Figura 1):

“Árvore murcha” (desenho A) – “Sinto-me fraco, sem vida, preciso de água” (E.) –; “Papel

amassado” (desenho B) – “Sinto-me sem forças, sem ânimo, como um papel amassado

esquecido no canto que não serve para nada” (P.S.) –; “Fruta comida e prisão” (desenho D) –

“Sinto-me como uma fruta chupada que jogam fora” (A.) – e “Homenzinho dentro da minha

cabeça” (desenho E) – “Sinto-me como tivesse uma pessoa dentro da minha cabeça confundindo

meus pensamentos” (H.). Os desenhos C e F foram, respectivamente, da psicóloga e de uma das

estagiárias.

Cientes do perigo de se proceder a uma interpretação psicológica e profunda tanto dos

desenhos como das falas dos usuários, a psicóloga e estagiária optaram por tentar fomentar a

autonomia e solidariedade entre eles. Entendendo melhor:

Basaglia nos ensinou que depois de trezentos anos de semiotizar doentes mentais só se conseguiu doença e desrespeito dos direitos humanos, e que se pretendemos alguma mudança temos de ser menos onipotentes e ajudar as pessoas para que possam produzir seus próprios enunciados sobre seu sofrimento e sobre sua vida (Lancetti, 1993, p.167).

63

FIGURA 1- Primeira reunião: Sentimento de cada participante diante da

crise.

A- Árvore murcha B- Papel amassado e homem com moleza C- Intervenção à crise em equipe D- Fruta chupada e homem preso E- Homenzinho dentro da cabeça F- Pessoa que quer acolher mas não sabe como

Durante a segunda reunião, criou-se um contexto propício para que os usuários fizessem

um desenho de como se sentiam naquele grupo. Os títulos dos desenhos e os comentários de seus

respectivos donos foram os seguintes (Ver Figura 2): “Tamanduá” (desenho 1) – “Sei não o que

significa” (A.L.); “União do grupo” (desenho 2) – “Representa um grupo que desabafa. Eu saio

de casa com gosto, acho a segunda um dia agradável, sinto-me à vontade para ouvir e falar”

(Z.L.) –; “Pessoa presa” (desenho 3) – “Meu sentimento é geral, é como se eu estivesse preso,

incapaz de fazer as coisas, como se não existisse”(H. ); “Sala de grupo” (desenho 5) – “É

melhor vim pra cá do que ficar em casa” (B.); “Casa” (desenho 6) – “O grupo é como uma casa

e dentro dela há felicidade” (G.); “Duas pessoas numa mesa” (desenho 8) – “As pessoas estão

64

partilhando seus problemas e há uma união dos corações que gera paz” e “Pessoa e coração”

(desenho 9) – É um grupo que tem amor, que tem acolhimento, me sinto como numa

família”(E.). Os desenhos 4, 7 e 10 foram, respectivamente, das duas estagiárias e da psicóloga.

FIGURA 2- Segunda reunião: Sentimento de cada participante diante do “Grupo Como

Vai”.

1- Tamanduá 2- União do grupo 3- Prisão 4- Pessoas trocando experiências 5- Sala de grupo 6- Casa onde há felicidade 7- Mistura de vidas 8- Pessoas partilhando 9- Acolhimento 10- Pessoas trocando experiências

Diante de tais comentários, alguns componentes do grupo falaram sobre a importância

deste na vida dos mesmos, como também acolheram H. (o membro do grupo que elaborou o

desenho 3), discutindo, com base em suas experiências de vida, sobre algumas coisas que este

65

poderia fazer para se sentir melhor. Experimentou-se aqui o que Galletti (2004, p.99) chama de

“campo de solidariedade”, momento esse de “desejar a singularidade do Outro, expor-se à

alteridade e contaminar-se com o Outro”.

Chama-se atenção para o fato de que a criação deste campo só é possível porque o “Grupo

Como Vai”, funcionando como um grupo-dispositivo, está inserido no projeto de uma clínica

ampliada. Explicando melhor, a solidariedade entre os integrantes desse grupo, bem como a

produção de autonomia, cidadania e de uma existência singularizadora dos mesmos, só são

capazes de acontecer na medida em que se considera as dimensões subjetiva e social das pessoas,

além da biológica.

Na terceira reunião, os integrantes do “Grupo Como Vai” fizeram um painel juntando

todos os desenhos (da primeira e segunda reunião), atribuindo-os significados diferentes ou

iguais do dia em que foram desenhados. Dessa forma, surgiu um grande painel cujo tema foi

“Como o grupo poderia ajudar na crise”, sendo intitulado pelo grupo de “Fraternidade” (Ver

Figura 3).

66

FIGURA 3- Terceira reunião: Painel sobre como o grupo poderia ajudar na crise.

Significado dado pelo grupo ao painel: Do lado esquerdo existem pessoas em crise presas

(3’, E’), com o coração triste (9’), ou sem sair de casa (6’) porque estão com moleza (B’). Ao serem acolhidas (F’, 8’, 2’), sentem-se melhor. Existem vários caminhos (10’). Podem ir a festas; à praça (5’), onde existem árvores (A’, C’) e crianças brincando (4’); ou para os arcos da orla (7’). O tamanduá (1’) defende as pessoas. Quem estava triste, de braços fechados, fica alegre, de braços abertos (D’).

O painel foi surgindo aos poucos, na medida em que eram atribuídos significados aos

diversos desenhos e eram percebidas as relações que poderiam existir entre os mesmos.

Gradativamente, as pessoas foram colocando alguns dos desenhos que se remetiam aos

momentos de crise, do lado esquerdo. Separando-os dos demais desenhos foi colocado um

desenho que representava o acolhimento daqueles que porventura estariam sofrendo por estarem

presos, isolados, solitários etc. A partir do acolhimento do usuário em crise surgem novas formas

de lidar com a mesma. Daí, então, do lado direito do painel os participantes terem colocado

desenhos que representavam as coisas que tinham vontade ou gostavam de fazer – conversar,

jogar bola, brincar, ir a festas e à praça, passear na orla etc.

Ao final do grupo, olhando para o painel, usuários, psicóloga e estagiária partilharam seus

sentimentos diante do que tinha acontecido naquela manhã: “Existem possibilidades para sair da

67

crise” (E.); “Esperança, mudança de pensamento, prosperidade” (P.S); “Novos caminhos,

acolhimento” (B.); entre outros sentimentos.

A partir desta experiência foi possível perceber como um grupo pode funcionar como um

dispositivo, catalisador existencial capaz de produzir criação. Aqui, o encontro de

multiplicidades que habita usuários, psicóloga e estagiárias foi capaz de “libertar a vida”,

considerando-a em sua pluralidade e afirmando, mesmo que momentaneamente, novas formas de

ser e estar no mundo – a praça, a festa, a conversa, em vez da prisão, da solidão, da “moleza”.

Outro fato vivenciado pelo grupo diz respeito às poucas, porém marcantes vezes em que

algum usuário participou do grupo em crise. Nestas ocasiões, sempre que possível, era

fomentada a participação do grupo no sentido de promover a continência necessária ao bem estar

do usuário em crise. Pôde-se perceber nestas situações o quanto que a contensão através do

vínculo é possível e eficaz, embora dê mais trabalho e despenda mais tempo dos envolvidos.

Chama atenção também o importante papel político que o grupo desempenha na

(des)construção de conceitos, principalmente aqueles associados ao transtorno mental. Como

grande desafio, está o de romper com as expressões: loucura = doença = incapacidade; obtenção

de saúde = tomar remédio. É um trabalho árduo, porém necessário quando se acredita que o

grupo como dispositivo analítico pode servir às descristalizações de lugares e papéis que o

sujeito constrói e reconstrói em suas histórias.

Por fim, acredita-se que o “Grupo Como Vai” esteja desempenhando um papel importante

para cada um de seus participantes, em proporções diferentes. Para uns, aquele é um momento

para se “contar e ouvir histórias”; para outros um meio de “se trabalhar a mente” ou de “não

ficar em casa”; para outros um espaço para “papear ou jogar conversa fora”; para alguns uma

forma de se “produzir saúde”. O que importa é que se os usuários estão participando

freqüentemente do grupo, alguma coisa neste faz sentido para cada um. Fica aqui a esperança de

que o grupo possa criar práticas de devir-outro, de produções de si capazes de fomentar o desejo

de seus integrantes por habitar novos territórios existenciais.

68

V – Conclusão

Diante das explanações acima, percebe-se a necessidade de desconstrução de um modelo

excludente de cínica, fundamentado no paradigma da ciência moderna, tal como foi

desenvolvido por Pinel e seus sucessores e que vigora até hoje. Entende-se que a concepção de

loucura como uma incapacidade da razão, a definição da “doença mental” como objeto de estudo

da Psiquiatria e a preocupação com a manutenção da ordem dos valores burgueses foram

fundamentais para a construção de uma clínica baseada na tutela, na custódia, na disciplina, na

vigilância panóptica, na imposição da ordem, na punição corretiva, no trabalho terapêutico, na

interdição etc.

Partindo do pressuposto de que tal modelo de clínica é incapaz de valorizar a vida em sua

pluralidade, conclui-se que outro modelo deva ser construído, tendo por base os princípios da

Reforma Psiquiátrica. Defende-se, portanto, uma concepção de clínica regida por um princípio

estético – a existência como obra de arte, que se cria e recria através de devires. Princípio que é

também ético – já que tem a vida como referência maior –, e político – por assumir

compromissos e riscos, além de propiciar a crítica e a análise de formas instituídas.

Nesse sentido, então, acredita-se que a clínica de saúde mental, fundamentada em tais

princípios, seja uma “clínica da criação” – já que fomenta a criação de existências

singularizadoras, de novas formas de estar no mundo – e uma clínica ampliada – por considerar

como importantes todos os planos que constituem a vida (plano social, subjetivo, político,

cultural, biológico etc).

Cabe aqui ressaltar, que para dar conta dessa proposta de clínica, que considera o ser

humano em sua complexidade, é preciso superar os especialismos e apostar em um modelo de

clínica transdisciplinar capaz de desinstitucionalizar saberes, práticas e estruturas que foram

construídas ao redor da loucura pela Psiquiatria Clássica. Com essa finalidade, então, é que são

criados serviços substitutivos ao modelo manicomial.

Diante dessas conclusões, trazendo as experiências obtidas no “Grupo Como Vai” e na

“Oficina de Criação”, ambos do CAPS Liberdade, crê-se que grupos e oficinas possam funcionar

como dispositivos fundamentais para o funcionamento de uma clínica no contexto da Reforma

Psiquiátrica. Através desses dispositivos, a loucura pode ser afirmada como um modo de

subjetivação e a noção de racionalidade/ irracionalidade que restringe o portador de transtorno

mental a um lugar de desvalorização e desautorização a falar sobre si pode ser desconstruída.

Acredita-se, portanto, que o dispositivo grupal, na medida em que devolve as pessoas

acometidas por transtornos mentais ao campo do coletivo (campo da produção), seja um

intercessor de uma clínica ampliada e que fomenta a criação, já que funciona como uma máquina

69

de descristalização de lugares e papéis que o sujeito constrói e reconstrói em suas histórias, uma

máquina de produção de sentidos, de produção de subjetividade, de produção de saúde. Diante

dessa conclusão, chama-se atenção para importância dos coordenadores de grupos e oficinas de

CAPS’s terem a noção de quão fundamental é seu trabalho, de forma a assumi-lo com

responsabilidade e seriedade.

Por fim, defende-se aqui uma proposta de clínica que garanta a valorização da vida, que

favoreça a desguetificação das relações, que vise o resgate do coletivo, da solidariedade, da

cidadania, da autonomia, da criação. A garantia de uma clínica de saúde mental com essas

características, no entanto, está relacionada a um movimento constante de resistência por parte

daqueles que a compõem (profissionais de saúde, portadores de transtorno mental, familiares,

comunidade etc).

Explicando melhor, acredita-se que a clínica atualiza-se em seu próprio fazer, já que não

existe uma verdade última essencial acerca dos cuidados em saúde mental, mas sim práticas a

serem construídas. Dessa maneira, a resistência refere-se aqui a esse processo de permanente

construção. É imprescindível que esse caráter de permanência do resistir não pare de se exercer.

Isso porque, “resistências instituídas”, que trabalham a favor de uma clínica excludente,

segregadora, rígida, fria e triste, precisam ser superadas. “Eis a tarefa da clínica: experimentar o

limite onde a resistência é pura positividade, onde ela é criadora de mundos” (Barros, 2003, p.8)

Dessa forma, chama-se atenção para a necessidade de os profissionais de saúde mental se

sentirem responsáveis pela manutenção desse movimento de resistência. A implicação nesse

movimento, entretanto, se faz a partir do convencimento de que práticas antigas de assistência à

saúde mental precisam dar lugar a novas. Para que isso aconteça, é fundamental a garantia de

espaços onde novas propostas de clínica possam circular, culminado com um contágio de idéias e

experiências por parte daqueles que a constituem. Nesse sentido, propõe-se aqui a intensificação

de pesquisas, palestras, cursos, oficinas, capacitações, como também publicações na área de

saúde mental.

Destaca-se ainda a importância de que, tanto a graduação em psicologia, como em áreas

como enfermagem, terapia ocupacional, serviço social e medicina, sejam capazes de introduzir

em suas grades curriculares noções fundamentais de saúde mental, contextualizando-as de acordo

com os princípios da Reforma Psiquiátrica. Afinal, os profissionais envolvidos no cuidado de

pessoas acometidas por transtornos mentais, embebidos de conhecimentos que são frutos do

paradigma mecanicista, precisam fundamentar sua prática em uma teoria consistente, que

trabalha a favor de princípios ético-estético-políticos.

Finalmente, pontua-se aqui a satisfação de poder participar, através da confecção dessa

monografia, da construção de saberes relacionados ao campo da saúde mental – campo este em

70

que a aluna esteve por tanto tempo afetivamente envolvida através da experiência de estágio,

vivenciando na prática a constituição de uma clínica afinada com as propostas da Reforma

Psiquiátrica.

71

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Federal de Sergipe, São Cristóvão.

76

ANEXO A – Alguns textos produzidos na “Oficina de Criação”

1) Meu amigo, meu colega, eu agora estou entendendo, o porquê de criar-se a oficina nova.

Isso demonstra o quanto temos o poder de aflorar, nosso poder de criar sempre coisas novas,

mesmo sendo um poema, uma canção, ou outra coisa qualquer, mesmo que a pessoa não tenha

nenhuma idéia, sendo assim, peçamos a outras pessoas as idéias necessárias, para a criação de

qualquer coisa, mesmo que seja um simples desenho (A. S., setembro de 2003).

2) Vem cá morena vem meu coração

Vem meu xodó vamos chamegar

O cavalheiro pede a permissão

Tome uma batida e

Vamos começar.

Rei rei rei Sou Nordestino

E quero lembrar

Rei rei rei Minha sanfona

Não pode parar

Ela foi feita pra gente miúda

Pra gente grande

Sabida ou cabeçuda

É véspera de São João

O sanfoneiro começa a esquentar

O fole no meio do salão

Danado pro forró já começar

Sacode a saia Maria em João

A noite é nossa e vamos festejar

Bota mais lenha neste fogueirão

Estou com frio e quero me esquentar

(E. N., julho de 2005).

3) PREGUIÇA DA PREGUIÇA

O atraso é esperar pelo pontual, que é o bicho preguiça que não demora mais tarda. Eu sou

cansado, um pouco desligado, bem pouco atrasado, mas como cru o indigesto do pontual

preguiça. A vida é cheia de encontros. Muitos demoram, mas a vida tem pressa. Corremos contra

o tempo, mas ele é veloz, voa, e a gente atrás sem medo de encontrar o outro que custa a chegar.

77

É tarde de mais, eu já fui pontual, mas a preguiça insiste em me atrasar. Obrigado senhor

preguiça pelo dia em que poucos foram pontuais. E eu cheguei atrasado onde todos têm atrasado

(J. P., dezembro de 2005).

4) AS FACES DA VIDA

Umas vezes calma,

Outras vezes feroz.

Algumas vezes dócil,

E outros amargas de difícil paladar.

Quantas vezes quis amar,

E muitas vezes odiar,

Pensei, e às vezes lutei com os desejos do coração.

Desejos maus e desejos bons.

Os pensamentos embaralhados, confusos.

Na verdade eu não sou,

Não estou dentro de mim.

Muitas vezes sou o que os outros me transformam.

Em alguns lugares eu me sinto bem, outros não.

Me sinto envergonhada de não ser o que deveria ser.

(J. M., dezembro de 2005).

5) Já se perguntou o por quê de tudo? Já pensou por que não ser o que se quer ser. Já quis

mudar o mundo com suas próprias mãos, já quis trazer de volta quem já se foi e não volta mais.

Já se sentiu inútil com tantas qualidades mal reconhecidas, já quis ser um poeta, desenhista,

estilista, escritor, professor, o que você sempre desejou ser. O tempo passou, os dias, as gerações

mudaram e você parou no tempo. Para que tanta cultura, tanto saber, para nada que você usufrua

para você se sentir bem no seu viver, como se não tivesse chão e nem espaço. Tudo no mundo

abafou o seu brilho e você acaba fora do seu mundo e tudo acabou, não adianta acontecer mais

nada, é assim que eu me sinto (J. M., outubro de 2005).

6) Quando estou com você o tempo passa tão depressa. Nós precisamos, precisamos sim,

eu de você e você de mim. Quem sabe repartir sabe querer bem. O amor que não se renova a

cada dia passa a ser um hábito e termina sendo uma escravidão. O verdadeiro amor começa

quando nada se espera em troca. As horas que passo longe de você parecem tão compridas...O

amor não tem idade, está sempre nascendo. Não se pode ser feliz sem a felicidade do outro. Fica

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sempre um pouco de perfume nas mãos de quem oferece rosas. Se você vier hoje, começarei a

ser feliz antes de sua chegada, que falta você está fazendo, seu lugar é sempre perto de mim.

Uma flor exprime melhor o amor que muitas palavras. Quando se ama se sente feliz também no

silêncio. Quando estou com você o tempo passa tão depressa. A amizade é uma planta delicada,

precisa ser bem cuidada senão morre. Tua alegria é a minha alegria, tua dor é minha dor. A

felicidade não é feita do tamanho da casa, mas sim do tamanho do amor que enche a casa. O

amor não tem fronteiras (A. S., novembro, 2003).

7) A sua frente, todo mundo diz sim.

Medo com responsabilidade, desejo de enfrentar.

Nunca visto seus olhos medonhos do não.

Quero dormir na minha casa,

não tenho paciência pelo sim de Simone e o não de minha família,

são todos um pedacinho de minhas células tronco.

Quero me libertar. Não consigo. Mas pelo sim terei liberdade.

O sol, a lua, governam o dia e a noite.

Não temerei porque sou filho da liberdade

que acostumei a ter, a pegar e a pregar por onde passo,

passarinho livre mora em frente a você.

(J. P., 2005).

8) CAPS LIBERDADE

Hoje eu não estou inspirada, mas tenho muito a falar, gritar, reclamar, tantas coisas que

sonhei e foi tudo em vão, para que tantas pessoas ao meu redor, se eu não tenho ninguém.

Mas gostaria de falar da minha felicidade de ter pessoas que apesar de tão distante do meu

mundo pensam em poder me ajudar.

Eu sei que não sou fruto do meu sonho e penso até que estou num pesadelo.

Necessito acreditar em alguma coisa, acreditar que as coisas possam mudar.

Estou C aminhando

Para A liberdade

A P onto de poder

S onhar,

Me L ibertar,

De I mpossibilidades,

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Das B obagens,

Que E sperei,

Com R azão, acontecer

Uma D ádiva de Deus,

Encontrar A mor, esperança...

...na vida D e todos, apenas

E ncontrar.

Neste lugar, eu não quis entrar, mas acabei me acostumando a ponto de não querer sair,

acabei encontrando refúgio onde eu não tinha nada, nem mesmo sentimentos de esperança (J.

M., setembro de 2005).

9) AS CORES DA VIDA

Muitas vezes o dia amanhece nublado,

Um cinza borrado.

Uma neblina na mente,

Tudo não passa de um branco.

Mas por vezes esse quadro muda.

Depende de você?!

Quando abre os olhos qual a cor que você vê?

Um mundo que apesar de um pouco cinzento,

Começou a azular e até um ar quente como vermelho, amarelo,

E ainda tem a esperança de um novo nascer.

Já ouviu dizer verde é esperança.

É a natureza humana, é a cor da pele que você tem.

O natural, a cor que você pinta.

Você pode estar no escuro, mas pode clarear, colorir e

às vezes esse quadro quem pode pintar é você.

(J. M., 2005).

10) PORTA

Treze vezes bate a porta. Procuro a chave entre a penca de bananas da marmelada que é o

mundo sem porta. A fechadura são seus olhos grudados, não vil metal. E eu cego não enxergo,

mas vejo o prato, a mesa, a hora acesa pra porta fechar. E sete vezes você me nega, a porta

aportou, estamos todos sem porta, e eu sou a fechadura dura trancada. O mundo não abre a porta,

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mas dorme de portas abertas. Você sabe e eu sei o mundo tem porta, mas no céu é difícil achar a

porta de entrada. Obrigado minha porta, eu tenho a chave. A minha está sempre fechada (J. P.,

outubro de 2006).

11) LUCIDEZ

Loucura é a doce mania de repetir gestos ou falar, dizer as mesmas coisas. Obrigado doutor por

me medicar e eu voltar à realidade. Estou lúcido, confortável, recebendo saúde. A loucura bate a

porta não ceie com ela. Diga sempre o gás acabou, a panela furou e ela vai lhe responder: “já

vou.” E você replica a ela: “Vai tarde, nunca mais você irá surtar em minha vida. Se for por falta

de adeus, até nunca mais doença insana.” E eu e nós seremos saudáveis, é justa a lucidez, seja

bem vinda saúde. Obrigado reforma anti-manicomial (J. P., abril de 2006).

12) Eu estava numa praia tomando aquele banho, a água estava gelada e boa. Os mergulhos

eram maravilhosos e doce cada gota de água. Me deram emoção de alegria. Era em Atlântida. As

cores da água era azul e estava nevando, seus pingüins alegres no gelo, brincando nas camadas

de gelo, junto com os filhos, comendo peixe e aquele lindo mar. Pedra de gelo brilha nos olhos,

na luz do sol. Tudo isso era lindo ao redor de mim, as pedras de gelo iam se dissolvendo aos

poucos ao raio de sol. Essa linda brisa é tudo, sinto aquele sono suave e durmo. (J. A., abril de

2006).

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ANEXO B – Alguns desenhos produzidos na “Oficina de Criação”

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