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Universidade Federal de Sergipe
Centro de Educação e Ciências Humanas
Departamento de Psicologia
A aluna do Curso de Psicologia da UFS, Mariane Marques de Souza Santos, apresentou a
monografia de conclusão do Curso Formação de Psicólogos da UFS em maio de 2006, na cidade
de Aracaju, obtendo de todos os membros da banca menção honrosa e a média 10,00.
Recomendamos a monografia da mesma, intitulada "A Clínica no Contexto da Reforma
Psiquiátrica: uma Proposta Ético-Estético-Política”, uma vez que esta representa uma proposta
nova e ousada para a Saúde Mental, bem fundamentada teoricamente e ilustrada com a prática,
podendo ser excelente contribuição para a Reforma Psiquiátrica Brasileira. O trabalho enfoca a
importância de paradigmas ético-estético-políticos em detrimento de paradigmas da ciência
moderna, balizadores da clínica da Psiquiatria Clássica, e demonstra como a clínica de saúde
mental pode ser distinguida como uma clínica ampliada, capaz de criar novas formas de
existência para quem dela participa.
Aracaju, 11 de novembro de 2006
Cybele Maria Rabelo Ramalho
Professora Assistente do Departamento de Psicologia da
Universidade Federal de Sergipe
Psicóloga
CRP 3a/0582.
1
MARIANE MARQUES DE SOUZA SANTOS
A CLÍNICA NO CONTEXTO DA REFORMA PSIQUIÁTRICA: UMA
PROPOSTA ÉTICO-ESTÉTICO-POLÍTICA
SÃO CRISTÓVÃO- SE
2006
2
Mariane Marques de Souza Santos [email protected]
A CLÍNICA NO CONTEXTO DA REFORMA PSIQUIÁTRICA: UMA
PROPOSTA ÉTICO-ESTÉTICO-POLÍTICA
Monografia apresentada no dia 10 de maio de 2006 como pré-requisito para a conclusão do
curso de Psicologia da Universidade Federal de Sergipe, durante o décimo período, perante a
Banca Examinadora: Esp. Cybele Maria Rabelo Ramalho / Professora Orientadora; Prof. Dra.
Liliana da Escóssia Melo / Professora Convidada; Psicóloga Simone Maria Barbosa /
Profissional Convidada.
3
A CLÍNICA NO CONTEXTO DA REFORMA PSIQUIÁTRICA: UMA
PROPOSTA ÉTICO-ESTÉTICO-POLÍTICA
RESUMO
O presente trabalho monográfico teve como finalidade caracterizar a clinica no contexto da
Reforma Psiquiátrica, bem como destacar a importância de paradigmas ético-estético-políticos
como alicerces para tal clínica, em detrimento de paradigmas da ciência moderna, balizadores da
clínica da Psiquiatria Clássica. Objetivou-se demonstrar como a clínica de saúde mental pode ser
distinguida como uma clínica ampliada – por considerar como importantes todos os planos que
constituem a vida (plano social, subjetivo, político, cultural, biológico etc) – e uma clínica capaz
de criar novas formas de existência para quem dela participa. Nesse sentido, através de um
breve relato de uma experiência de estágio obtida através da participação em dois grupos do
Centro de Atenção Psicossocial Liberdade – a “Oficina de Criação” e o “Grupo Como Vai” –
pretendeu-se evidenciar tais características da clínica na Reforma Psiquiátrica. Chegou-se a
conclusão de que o dispositivo grupal, na medida em que devolve as pessoas acometidas por
transtornos mentais ao campo do coletivo (campo da produção), pode funcionar como um
intercessor de uma clínica ampliada e que fomenta a criação, já que funciona como uma máquina
de descristalização de lugares e papéis que o sujeito constrói em suas histórias, uma máquina de
produção de subjetividade e saúde. Por fim, foi defendida aqui uma proposta de clínica que
pudesse garantir a valorização da vida, a desguetificação das relações, o resgate do coletivo, da
solidariedade, da cidadania, da autonomia, da criação. Para tanto, destacou-se a importância da
manutenção de um movimento constante de resistência por parte daqueles que compõem a
clínica de saúde mental (profissionais de saúde, usuários, familiares, comunidade etc).
Palavras-chave: Clínica em saúde mental. Reforma Psiquiátrica. Paradigmas ético-
estético-políticos.
4
SUMÁRIO
I – Introdução e Justificativa...................................................................................................05
II – Problema e Objetivos........................................................................................................06
III – Procedimentos..................................................................................................................08
IV – Discussão...........................................................................................................................11
1 – História da Loucura, Surgimento da Psiquiatria e Reformas Psiquiátricas................11
1.1) Loucura nos últimos séculos medievais................................................................12
1.2) Período das Grandes Internações..........................................................................14
1.3) Surgimento da Psiquiatria.....................................................................................15
1.4) Reformas Psiquiátricas..........................................................................................19
2 – Reforma Psiquiátrica Brasileira e Surgimento dos Centros de Atenção Psicossocial...26
3 – A Clínica na Psiquiatria Clássica e o Paradigma Científico da Modernidade..............31
4 – A Clínica na Reforma Psiquiátrica e a Construção de um Novo Paradigma................38
5 – Clínica na Reforma Psiquiátrica: Clínica Ampliada e “Clínica da Criação”...............43
5.1) Clínica na Reforma Psiquiátrica: Clínica Ampliada.............................................43
5.2) Clínica na Reforma Psiquiátrica: “Clínica da Criação”........................................49
6 – A Título de Ilustração: Relato de uma Experiência........................................................55
6.1) “Oficina de Criação”.............................................................................................57
6.2) “Grupo Como Vai”...............................................................................................60
V – Conclusão...........................................................................................................................68
VI – Referências Bibliográficas...............................................................................................71
ANEXO A – Alguns textos produzidos na “Oficina de Criação”........................................76
ANEXO B – Alguns desenhos produzidos na “Oficina de Criação”...................................81
5
I – Introdução e Justificativa
A Psiquiatria Clássica surgiu no bojo de um modelo epistemológico influenciado pelo
conceito de ciência como produção de “verdade” e pela noção de neutralidade científica. Sendo
assim, a Psiquiatria foi impelida a definir um objeto de estudo que pudesse observar e controlar,
sem que, no entanto, fosse influenciada pelo mesmo. A “doença mental” foi esse objeto. Como
conseqüência disso, a clínica da Psiquiatria desenvolveu-se atrelada a pressupostos que reduziam
a vida das pessoas à sua “doença”, além de esconder a complexidade da relação entre estas e os
profissionais responsáveis pelo seu cuidado.
Diante desse contexto, urge a necessidade de uma proposta de clínica em saúde mental
diferente, que valorize a pluralidade da vida, a diferença; que fomente a criação de existências
singularizadoras e que inclua a loucura como componente básico da condição e singularidade
humana. Daí a importância de escrever a presente monografia sobre como a clínica no contexto
da Reforma Psiquiátrica precisa estar embasada em paradigmas ético-estético-políticos. Tal
proposta de clínica entende que a produção de saúde, para além de uma dimensão meramente
biológica, passa pelo exercício do respeito à alteridade, pela produção de cidadania e de
singularidade e pela expressão de pensamentos e sentimentos.
Essa forma de entender a clínica encontra-se afinada com os princípios da Reforma
Psiquiátrica, movimento este que propõe a desinstitucionalização do saber/ prática da Psiquiatria
Clássica, buscando trazer novas formas de se enxergar a loucura, espaços onde ela possa ser
expressa sem preconceito, dando abertura ao desejo e, a partir daí, criando situações de produção
de subjetividades, as quais auxiliam caminhos de resgate da cidadania dos usuários. Dentro desse
contexto, afirmar a importância da invenção de uma nova clínica é firmar um compromisso
político com o movimento da Reforma Psiquiátrica.
Vale ressaltar ainda que a relevância para a Psicologia enquanto ciência e profissão de um
estudo na área da Saúde Mental encontra-se no fato de que a construção, publicação e divulgação
de experiências e conhecimentos a respeito dessa área, que tem como contexto o movimento da
Reforma Psiquiátrica, é ainda pouca quando comparada a outros campos, haja vista o pouco
tempo de existência de tal movimento aqui no Brasil.
É inevitável construir uma clínica que tem como pano de fundo a Reforma Psiquiátrica
sem aderir a um movimento de resistência contra saberes e práticas capazes de segregar, excluir,
controlar e aumentar o sofrimento de pessoas acometidas por transtornos mentais. Seguindo esse
raciocínio, afirmar a necessidade de uma clínica reinventada é também lutar pela construção de
uma Psicologia que trabalhe a favor da vida, do coletivo, da cidadania.
6
II – Problema e Objetivos
O presente trabalho monográfico teve como finalidade caracterizar a clínica no contexto da
Reforma Psiquiátrica. Para tanto, destaca a importância de paradigmas ético-estético-políticos
como alicerces para tal clínica, em detrimento de paradigmas da ciência moderna, que
fundamentaram (e ainda fundamentam) a clínica da Psiquiatria Clássica1.
Objetivou-se demonstrar como a clínica de saúde mental2 pode ser distinguida como uma
clínica ampliada – por considerar como importantes todos os planos que constituem a vida
(plano social, subjetivo, político, cultural, biológico etc) – e uma clínica capaz de criar novas
formas de existência para quem dela participa. Nesse sentido, através de um breve relato de uma
experiência de estágio em um Centro de Atenção Psicossocial, pretendeu-se demonstrar tais
características da clínica na Reforma Psiquiátrica.
A fim de atingir os objetivos propostos, essa monografia será organizada em seis capítulos.
O primeiro deles, “Introdução e Justificativa” e o segundo, “Problema e Objetivos”. Por meio do
terceiro capítulo, “Procedimentos”, será explicado que o presente trabalho trata-se de uma
monografia teórica, em que a descrição de uma experiência de estágio servirá como ilustração do
que foi mencionado durante a teoria. Como tal experiência aconteceu mediante a participação em
dois grupos do CAPS Liberdade, a “Oficina de Criação” e o “Grupo Como Vai”, ambos serão
devidamente descritos neste capítulo.
O quarto capítulo, “Discussão”, será dividido em seis subcapítulos. Os cinco primeiros
referem-se às discussões teóricas dessa monografia, enquanto que o sexto subcapítulo, associa a
essas discussões, uma experiência prática.
O primeiro subcapítulo, “História da Loucura, Surgimento da Psiquiatria e Reformas
Psiquiátricas”, pretenderá contextualizar a constituição de uma clínica em saúde mental,
reportando-se à história da loucura e à construção de saberes e práticas a ela associadas. Para
tanto, fará explanações sobre: a loucura nos últimos séculos medievais; o período das “Grandes
Internações”; o surgimento da Psiquiatria; bem como sobre as Reformas Psiquiátricas –
1 O termo “Psiquiatria Clássica” refere-se aqui à Psiquiatria que surgiu com Pinel, Tuke, Wagnitz, Rel, Esquirol e seus sucessores. A Psiquiatria intitulada como Clássica sofreu ao longo do tempo algumas transformações significativas, porém incapazes de questionar o saber-poder construtor de idéias e práticas acerca do sofrimento humano. A partir das propostas de reforma da antipsiquiatria e do projeto de desinstitucionalização de Franco Basaglia inaugura-se uma nova concepção de Psiquiatria. 2 O termos “clínica de saúde mental” e “clínica antimanicomial” são utilizado por Lobosque (1997, p.26) para designar a clínica construída no bojo da Reforma Psiquiátrica. Com o mesmo significado, Amarante (2003) se refere a esta clínica como “clínica reformada” ou “clínica na Reforma Psiquiátrica”. Já Rotelli (2001), utiliza a expressão “clínica inventada”.
7
movimentos ocorridos na França, com a Psiquiatria de Setor e com a Psicoterapia Institucional;
na Inglaterra, com a Antipsiquiatria e com as Comunidades Terapêuticas; nos Estados Unidos,
com a Psiquiatria Comunitária; e principalmente na Itália, com o movimento de
desinstitucionalização da Psiquiatria Democrática.
O segundo, a “Reforma Psiquiátrica Brasileira e Surgimento dos Centros de Atenção
Psicossocial”, objetivará mostrar o cenário brasileiro diante da proposta de Reforma Psiquiátrica
iniciada na Itália por Franco Basaglia e seus sucessores, apontando os Centros de Atenção
Psicossocial como locais importantes para a efetivação de uma clínica em saúde mental
reformada, diferente daquela praticada nos manicômios.
Depois, o terceiro subcapítulo, “A Clínica da Psiquiatria Clássica e o Paradigma Científico
da Modernidade”, terá como fim discorrer acerca das bases epistemológicas que fundamentaram
(e fundamentam) a clínica da Psiquiatria Clássica, numa tentativa de denunciar como esta pôde
desenvolver-se restringindo a vida à doença. Neste sentido, como forma de propor uma nova
concepção de clínica, baseada em paradigmas ético-estético-políticos, foi escrito o quinto
capítulo, “A Clínica na Reforma Psiquiátrica e a Construção de um Novo Paradigma”.
Dando continuidade, através do quarto subcapítulo, “Clínica na Reforma Psiquiátrica:
Clínica Ampliada e ‘Clínica da Criação”, após um breve esclarecimento sobre como a proposta
da Reforma Psiquiátrica acontece através do projeto de desinstitucionalização, procurar-se-á
explicar a importância de uma clínica reformada caracterizar-se como uma clínica ampliada e
uma clínica que fomenta novos modos de existência.
Durante o sexto subcapítulo, “A Título de Ilustração: Relato e Análise de uma
Experiência”, após a elucidação a respeito do significado de “oficinas terapêuticas”, serão
descritas e analisadas, de acordo com o referencial teórico já apresentado, as experiências obtidas
em ambos os grupos citados. Nesse capítulo, alguns dos desenhos e textos produzidos nos grupos
pelos usuários, psicóloga e estagiárias, serão expostos a fim de ilustrar melhor o modo de
funcionamento desses grupos.
Por fim, o quinto capítulo tratará da “Conclusão” desse trabalho, enquanto que o sexto
trará as “Referências Bibliográficas” do mesmo.
8
III – Procedimentos
Esse trabalho de conclusão de curso caracteriza-se como uma monografia teórica.
Entretanto, a fim de enriquecê-lo, achou-se por bem incluir aqui a descrição e análise de uma
experiência de estágio bastante relevante para o entendimento da teoria até então exposta. Vale
ressaltar que tal experiência não tem o caráter de uma pesquisa empírica, visto que hora
nenhuma foram definidas hipóteses e objetivos, com a pretensão de se chegar a um determinado
resultado.
A experiência que será aqui relatada foi obtida durante os Estágios Supervisionados de
Psicologia Institucional I e II. Estes estágios acontecem, respectivamente, no nono e décimo
períodos e são pré-requisitos para a Formação em Psicologia do Curso de Psicologia da
Universidade Federal de Sergipe. Podem ser realizados em instituições públicas ou privadas, nos
campos da educação, saúde, trabalho e outros campos que se configuram áreas de atuação da
Psicologia. No caso aqui descrito, os estágios foram realizados na área da Saúde Mental, no
CAPS Liberdade, sediado na cidade de Aracaju –SE, no bairro Siqueira Campos.
Nesse CAPS a aluna participou de algumas atividades. Dentre elas, destacam-se aqui a
“Oficina de Criação” e o “Grupo Como Vai”. A partir da experiência nesses grupos, alguns
acontecimentos significativos serão descritos e analisados com base no referencial teórico que
será exposto sobre a clínica no contexto da Reforma Psiquiátrica. Completando este referencial,
antes do relato da experiência propriamente dito, achou-se por bem contextualizá-la, sendo
preciso, para tanto, definir melhor o que são “oficinas terapêuticas”. Além disso, vale destacar
que o critério de escolha dos acontecimentos descritos, em detrimento de outros, tem a ver mais
com o envolvimento afetivo da aluna nesses grupos, do que com algum tipo de interpretação dos
momentos mais importantes para os grupos.
A fim de se obter um melhor entendimento a respeito desses grupos, faz-se necessário
descrevê-los e caracterizar o modo de funcionamento dos mesmos:
A) “Oficina de Criação”
Esta oficina acontece às sextas-feiras, das 8h 30min às 10h e é coordenada por uma
psicóloga do CAPS Liberdade. Conta com a participação de aproximadamente seis usuários,
com uma média de idade de uns 40 anos. É possível a entrada de novos membros, à medida que
estes se mostram interessados nas atividades realizadas na oficina. A “Oficina de Criação”
acontece na “sala de grupo” do CAPS Liberdade. Nesta há colchões, almofadas coloridas e um
armário onde é guardado o material utilizado nos grupos.
9
Idealizada pelos próprios usuários do CAPS, a oficina funciona da seguinte forma: existem
alguns materiais que estão à disposição dos usuários, tais como cadernos, folhas de papel, lápis,
borracha, hidrocores, tintas, pincéis, giz de cera, revistas, tesoura, cola, entre outros. Cada
usuário escolhe, então, o que deseja fazer naquele dia – textos, poesias, compor letras de música,
desenhos, pinturas etc – e depois de concluída a criação, cada um apresenta aos demais o que
fez, escutando comentários a respeito do que criou.
Seus objetivos são: disponibilizar um tempo e espaço onde os usuários possam desenvolver
seu potencial criativo, seja através da poesia, pintura, música, teatro ou o que ocorrer, a depender
do desejo de cada um dos participantes; auxiliar na promoção de cidadania e na construção
coletiva do bem estar através do contato com o grupo e com a arte; proporcionar o enfrentamento
e debate acerca de aspectos da vida cotidiana; dentre outros.
A estagiária participou da “Oficina de Criação” de agosto de 2005 a abril de 2006.
B) “Grupo Como Vai”
O grupo “Como Vai” acontece às segundas-feiras, das 8h30min às 10h, e é coordenado por
uma psicóloga e duas estagiárias. É um grupo terapêutico que conta com a participação de nove
usuários, sendo que destes, oito são homens e apenas uma é mulher. A média de idade dos
participantes é de aproximadamente de 40 anos. Bastante heterogêneo, seus membros variam em
relação: ao grau de autonomia que possuem, ao número de vezes que freqüentam o grupo e o
CAPS, à capacidade de reflexão, ao transtorno mental que os acometem, entre outras diferenças.
Este grupo acontece na “sala de grupo” citada a pouco e tem como objetivos: realizar
atendimento/ acompanhamento psicoterápico a usuários do CAPS Liberdade; ressignificar o
sentido da “doença”, observando as limitações que ela ocasiona a fim de possibilitar novas
formas de vida; fomentar a possibilidade de criação/ ação sobre o mundo, tendo em vista a
promoção de cidadania e autonomia; criar situações reais de encontro com um Outro;
proporcionar a reinserção nos contextos familiar e social; dentre outros.
A estagiária participou deste grupo de julho de 2005 a abril de 2006.
Por fim, uma vez caracterizados ambos os grupos, vale ressaltar que após cada reunião
destes, era feito um diário de campo, onde era anotado detalhadamente o que acontecia nos
grupos, bem como algumas falas de seus participantes. Além disso, a partir da autorização dos
usuários, a aluna tinha acesso aos materiais produzidos pelos mesmos – desenhos, colagens,
poesias, textos etc –, inclusive tendo a oportunidade de reproduzi-los por meio de xérox ou
cópias manuais. Mediante tal autorização é que esse material poderá ser exposto aqui.
Finalmente, chama-se atenção para o fato de que parte das produções da “Oficina de Criação”
10
aqui exibida foi escolhida pelos próprios usuários desta oficina, que sabiam da confecção dessa
monografia e autorizaram a publicação do material por eles produzidos.
11
IV – Discussão
1 – História da Loucura, Surgimento da Psiquiatria e Reformas Psiquiátricas
Pensar sobre a Clínica em Saúde Mental implica, necessariamente, através de um olhar
histórico-crítico, proceder a um trabalho contínuo de desmistificação e esclarecimento acerca da
gênese e metamorfose do conceito de loucura, como também rever os paradigmas fundantes do
saber e prática psiquiátricos.
Como primeiro passo, se faz necessário elucidar que o que dá o significado a qualquer
conceito é o contexto histórico em que este está inserido. Desta forma, como esclarece Passos e
Pitombo (2003), a constituição do conceito de clínica não se faz de forma linear e totalitária.
Diversos sentidos para a clínica surgiram concomitantemente a diferentes modos de ver, de
pensar e de falar. O mesmo, por sua vez, acontece com o campo específico da Psiquiatria. A
loucura durante as épocas foi reunindo sobre si várias denotações e conotações relacionadas às
forças, aos fluxos a que estava submetida. Nem sempre, por exemplo, a loucura foi vista como
doença mental ou como um problema de integração social.
Acredita-se que analisando a história da loucura, simultaneamente, seria possível
reconhecer diferentes maneiras de conceber o sentido de clínica e de práticas terapêuticas, bem
como perceber as crises de seus paradigmas e modelos, através das várias reformas que passou,
desde seu surgimento, no final do século XVII, até os dias atuais.
Alguns marcos históricos, tais como as grandes internações nos Hospitais Gerais, o
Iluminismo, o surgimento da medicina social, a medicalização do hospital, o Positivismo e o
projeto científico da modernidade, bem como influências políticas, econômicas, culturais e
religiosas, de diferentes épocas, foram fundamentais na constituição de um saber/ prática sobre a
loucura (originária do ato que criou a distância entre a razão e a desrazão) e sobre suas
“variações” – seja na forma de “doença mental” (termo criado com o surgimento da Psiquiatria),
ou na forma de “transtorno mental” (denominação surgida no bojo da Reforma Psiquiátrica).
Assim, cronologicamente, os saberes e práticas sobre a loucura foram se transformando,
ganharam um novo estatuto a partir do surgimento da Psiquiatria. Ao longo dos séculos XIX, XX
e XXI, mudaram de roupagem, mas muito pouco de sua essência foi questionado. Só há pouco
tempo (final do século XX e século XXI) estes saberes e práticas começaram a ser efetivamente
repensados.
Neste sentido, a fim de se esclarecer quais as pretensões de uma Clínica em Saúde Mental
reformada – inspirada principalmente pelas idéias de Franco Basaglia –, e quais paradigmas
12
deseja romper para a construção de uma nova forma de entender e cuidar da loucura optou-se por
realizar um breve histórico a respeito do saber/ prática construído sobre a loucura a partir da
Idade Média até os dias atuais.
Para tanto, achou-se por bem, dividir esse histórico, para fins didáticos, em quatro
momentos, considerando, no entanto, a indissociabilidade e os cruzamentos entre estes: 1) um
período de liberdade e verdade que abarca os últimos séculos medievais (séculos XV e XVI); 2)
o período da “grande internação” (séculos XVII e XVIII); 3) o período após a Revolução
Francesa, em que surge a Psiquiatria (século XVIII e XIX) e 4) o período referente às reformas
psiquiátricas, que culmina com a reforma basagliana (século XX e XXI).
1.1) Loucura nos últimos séculos medievais
Antes do século XIX a experiência da loucura era bastante polimorfa. A loucura tinha uma
grande extensão, embora não tivesse nenhum suporte médico. Com o passar das épocas, esta
extensão, pelo menos em suas dimensões visíveis variaram: algumas vezes permaneceu
implícita, outras vezes emergiu e interagiu sem dificuldade com toda paisagem cultural. Ao
afirmar isto, Foucault (1968) aponta o final da Idade Média como uma época em que a o homem
ocidental estabeleceu uma relação com alguma coisa designada ainda de forma confusa como
“loucura” ou demência, que era, por sua vez, experienciada em estado livre. Neste período, a
loucura circulava, fazia parte do cotidiano das pessoas, do cenário e da linguagem comuns, era
mais exaltada do que dominada.
Vale ressaltar que o advento do Cristianismo durante toda Idade Média trouxe considerável
respeito à figura do louco. Os insanos, assim como os retardados e os miseráveis, eram
considerados parte da sociedade. Vistos como “pobres de espírito”, eram o principal alvo da
caridade dos mais abastados, que assim procuravam expiar seus pecados.
Durante o século XV, na Espanha e na Itália abriram-se os primeiros estabelecimentos
reservados para loucos, onde estes eram submetidos a um tratamento inspirado em grande parte
pela medicina árabe. Estas práticas eram, entretanto, isoladas; a loucura era fundamentalmente
vivenciada em seu estado livre. Foucault (1968) diz, inclusive, que na França, por exemplo, no
começo do século XVII existiam loucos célebres com os quais as pessoas gostavam de se
divertir, sendo que alguns deles chegaram a escrever e publicar livros. De forma geral, pode-se
afirmar então que até meados do século XVII a cultura ocidental foi estranhamente acolhedora
da loucura.
13
Ao final da Idade Média, durante o Renascimento3, costumava-se confinar os loucos num
navio (a “Nau dos Loucos ou dos Insensatos”) que os levava de uma cidade até outra. Daí a
representação da loucura na Idade Clássica como existência nômade. Esta espécie de exílio
ritual, como afirma Frayze-Pereira (1982), fazia com que o louco estivesse em toda parte e ao
mesmo tempo em nenhuma. A loucura, importante por sua ambigüidade, ameaçou e
surpreendeu o mundo, invadindo a imaginação do homem europeu.
Até meados do século XVI a morte – devido às pestes, guerras etc – era o tema que
assombrava a cultura ocidental. Entretanto, no final deste século houve gradativamente uma
mudança nos assuntos que afligiam as pessoas. Da descoberta de que o homem é nada, a
contemplação da existência humana agora estava em pauta e, contígua a esta temática, estava a
loucura. Como explica Foucault (1978), antes a loucura dos homens consistia em ver apenas que
a morte se aproximava, agora a sabedoria consistirá em denunciar a loucura em toda a parte.
Partindo de tal temática, a experiência da loucura durante o Renascimento foi celebrada de
diferentes formas. Assim, os ritos populares, as artes plásticas – “A cura da Loucura”, de Bosch;
“Margot, a Louca”, de Brueghel; “Cavaleiros do Apocalipse”, de Dürer etc –, as obras de
filosofia – “A Nau do Loucos”, de Brant; “Elogio da Loucura, de Erasmo de Rotherdan etc. – e
os textos literários – Shakespeare; Cervantes – testemunharam de modos diversos o prestígio
dessa loucura, cujos enigmas têm sobre o homem um poder de atração.
É interessante notar, como pontua Amarante (1995, p.23), que a percepção social da
loucura na Idade Média, relacionada com uma idéia de alteridade pura, que entende o homem
como experiência originária, mais verdadeiro e integral, marcou a experiência da loucura no final
do século XV como uma “experiência trágica”. Esta visão permitiu que a loucura, inscrita num
universo de diferença simbólica, tivesse um lugar social reconhecido no universo da verdade.
Em contrapartida a essa visão trágica – claramente expressa nas artes plásticas da época,
em que o poder da imagem não é mais de ensinamento, como nas formas ordenadas do mundo
gótico, mas de fascínio, de múltiplos sentidos –, está uma “visão crítica” da loucura,
representada, na mesma época, principalmente pela literatura e pela filosofia. A loucura foi, aos
poucos, apreendida por uma consciência crítica que imprime nesta um sentido moral.
De acordo com Frayze-Pereira (1982, p.59), a “experiência trágica” e a “consciência
crítica” da loucura interpenetraram-se e formaram uma única trama de significações. A loucura,
3 Em um contexto de renascimento comercial e urbano, marcado pelo aparecimento da burguesia, classe ligada ao comércio, e pelo surgimento das monarquias nacionais, a cultura européia sofreu alterações que culminaram com o Renascimento Cultural. Este foi um movimento intelectual (artístico, filosófico, literário e científico) que caracterizou a transição da cultura medieval para a cultura moderna, rompendo lentamente o monopólio cultural até então exercido pela Igreja. Expressava a primeira manifestação de uma cultura burguesa laica, racional e científica. O termo “Renascimento” faz menção a um súbito reviver da cultura clássica greco-romana durante os séculos XIV, XV e XVI (Mello e Costa, 1993, p. 31-32).
14
presente em todas as partes, misturada às demais experiências humanas, era inseparável da
imaginação e do sonho. A sensibilidade à loucura durante o Renascimento, portanto, dizia
respeito à certa maneira de vivenciar o mundo em sua totalidade. Em outras palavras, pode-se
afirmar que até o final do século XVI não havia fundamento para a certeza de que não se estava
sonhando, de que não se era louco. A sabedoria e a loucura estavam muito próximas.
1.2) Período das Grandes Internações
A partir principalmente do século XVII, o pensamento moderno aprisionou filosoficamente
a loucura e esta começou a ser “apreendida” pela razão. Assim, como bem afirma Amarante
(1995), a “visão crítica” da loucura passou a organizar “um lugar de encarceramento, morte e
exclusão para o louco (p.23)”.
Segundo René Descartes (1596-1650), fundador da filosofia moderna, um dos principais
pensadores do Iluminismo4, a razão seria o único caminho para se chegar ao conhecimento
verdadeiro, sendo o “sujeito que duvida” aquele capaz de chegar à verdade. Neste sentido, a
loucura jamais poderia atingi-la, já que o ato de duvidar implica tanto o pensamento como aquele
que pensa. De acordo com este raciocínio, “o eu que conhece não pode estar louco, assim como
o eu que não pensa não existe” (Frayze-Pereira, 1982, p.61). Sendo assim, excluída pelo sujeito
que pensa, a loucura é a condição de impossibilidade do pensamento.
Em outras palavras, a partir do racionalismo moderno, a sabedoria e a loucura se separam,
e a loucura se vê privada do direito de alguma relação com a verdade. Portanto, de acordo com
Foucault (1978), a loucura foi posta fora do domínio no qual o sujeito detém seus direitos à
verdade, sendo que este domínio é a própria razão. Daí então, aos olhos dessa razão, a verdade
da loucura ser posteriormente apontada como falta, defeito, doença.
Vale destacar, no entanto, que nessa época a loucura não foi excluída somente no nível
filosófico. Um conjunto de instituições foram criadas, tendo como objetivo dominar e excluir a
loucura. Foucault (1968, p.78) aponta a segunda metade do século XVII como uma época em
que o mundo da loucura tornou-se visivelmente o mundo da exclusão. Foram criados em toda
Europa estabelecimentos para a internação, denominados Hospitais Gerais. Estes eram “um
4 O Iluminismo foi uma revolução intelectual européia que teve seu ápice no século XVIII, e influenciou decisivamente o pensamento e as ações da humanidade. Esse período foi caracterizado por várias mudanças econômicas, políticas, sociais e culturais, extremamente revolucionárias. Os iluministas criticavam o absolutismo, as velhas instituições econômico-sociais e a Igreja. Propunham um outro tipo de organização da sociedade baseada no liberalismo econômico e político. Duas idéias gerais, herança de Descartes e Newton, foram comuns a todos os pensadores iluministas: 1) a razão é o único guia infalível para se chegar ao conhecimento e 2) o universo é uma máquina governada por leis físicas que podem ser determinadas e estudadas, não se submetendo a interferências divinas (Mello e Costa, 1993, p. 81-83).
15
estranho poder que o rei estabelece entre a polícia e a justiça” (Foucault, 1978, p.50). Faziam
parte da estrutura de uma ordem monárquica e burguesa e eram uma resposta ao mundo de
miséria que se alastrava por toda Europa. Apresentaram-se, segundo Barreto (2005, p.119), como
uma tentativa de tornar as cidades mais habitáveis aos olhos das boas famílias e dos homens de
negócio.
Assim, como explica Foucault (1968), por meio de cartas régias ou de prisões arbitrárias,
eram reclusos ao Hospital Geral (também chamado de Grande Internação), além dos loucos, os
inválidos pobres, os velhos na miséria, os mendigos, os desempregados, os delinqüentes, os
portadores de doenças venéreas, os libertinos de toda espécie etc. Todos aqueles que de alguma
forma mostravam alteração em relação à ordem da razão, da moral e da sociedade da época.
Percebe-se então, seguindo o raciocínio de Foucault (Ibidem), que estas casas não tinham
vocação médica alguma. Os internos dos Hospitais Gerais não estavam ali para serem tratados,
mas sim porque não se pode ou não se deve fazer mais parte da sociedade. Este lugar de
assistência pública, acolhimento, correção e reclusão, na verdade, refletia a intenção da época de
reestruturação do espaço social. Sendo o ócio o maior dos pecados do mundo burguês, nada mais
justo que àqueles que por algum motivo não fossem capazes de participar da produção,
circulação e acúmulo de riquezas, fosse destinada a internação. Daí também os trabalhos
forçados a que eram submetidos os internos, com a finalidade não só de sustento financeiro do
Hospital, mas, sobretudo, de cumprir um papel de sansão e controle moral.
Por fim, o internamento como solução para a reestruturação do espaço social marcou, por
sua vez, a constituição da experiência contemporânea da loucura. Como legado deste período da
Grande Internação, está o fato tanto da loucura, durante tanto tempo manifesta, ter sido
despojada de sua linguagem; como o fato da loucura ter criado parentescos estranhos com as
culpas morais e sociais ligadas à criminalidade, periculosidade, promiscuidade etc.
1.3) Surgimento da Psiquiatria
Durante a segunda metade do século XVIII, como afirma Amarante (1995, p.25), a
“desrazão”, gradativamente, vai perdendo espaço e a alienação, por sua vez, vai ocupando o
lugar como critério de distinção do louco perante a ordem social. Além disso, o internamento
ganha características médicas e terapêuticas, sendo marcado pela convergência entre percepção,
dedução e conhecimento. Deste percurso prático/ discursivo sobre a loucura surge, então, a
doença mental, o objeto fundante da psiquiatria.
16
A fim de melhor entender como se deu estas transformações, se faz necessário voltar ao
período que manteve a loucura silenciosa da segunda metade do século XVII a meados do século
XVIII, qual seja, o período da Grande Internação. A partir da metade do século XVIII, a
população européia reclamava a abolição do internamento. Vários eram os motivos para esta
reivindicação.
Com o desenvolvimento da “medicina social”5 (Foucault, 2001), principalmente da
“medicina urbana” – medicina não dos corpos, mas das condições de vida e do meio de
existência que tinha o objetivo de: analisar os lugares de acúmulo e amontoamento de tudo que,
no espaço urbano, pudesse gerar doença; controlar a circulação do ar e da água e organizar os
diferentes elementos necessários à vida comum nas cidades –, as casas de internação começaram
a ser interpretadas como lugar de um “mal-podridão” misterioso que ameaçava espalhar-se pela
cidade, contaminando com o desatino o ar dos lugares habitados pelos mais honrados cidadãos.
Além disso, como explica Frayze-Pereira (1982, p. 76-78) começaram a surgir protestos
por parte dos internos dos Hospitais Gerais, por causa da mistura de loucos e não-loucos em um
mesmo ambiente, aumentando o risco dos “sãos” se tornarem alienados. Outros fatores, ainda,
como cita Foucault (1968, p. 80), contribuíram para o fim dos Hospitais Gerais, tais como: crises
econômicas que impossibilitavam a manutenção destes estabelecimentos, que, por sua vez,
impulsionaram os internos em condições de trabalhar a gerar riquezas; denúncias aos seqüestros
arbitrários de novos internos; o clima de insatisfação com a opressão, gerado pelo período de
revoluções; entre outros.
Desta forma, ao final do século XVIII, fora dos Hospitais Gerais, os loucos reapareceram
na vida cotidiana. No entanto, esta liberdade não durou muito tempo. Por representarem risco e
periculosidade para a sociedade, o louco passou a ser novamente institucionalizado, dessa vez
pela medicina, ordenadora de um novo espaço hospitalar6. Vale ressaltar que a internação do
louco aparece, aqui, como uma medida bastante coerente. Isto porque, sendo a racionalidade e a
liberdade os constituintes da natureza humana de acordo com a época, e sendo o louco aquele
que por sua irresponsabilidade inocente abole a liberdade, comprometendo a razão, o 5 A medicina moderna é uma medicina social que tem como pano de fundo uma certa tecnologia do corpo social. A evolução da medicina social no Ocidente nos mostra que o primeiro objeto do poder médico não foi o corpo como força de produção. Podem-se reconstituir três etapas na formação da medicina social: a medicina de Estado, a medicina urbana e, por fim, a medicina da força de trabalho. A primeira desenvolveu-se sobretudo na Alemanha, no século XVIII, e tem como marco a organização de um saber médico estatal, a normalização da profissão médica, a subordinação dos médicos a uma administração central. A segunda direção do desenvolvimento da medicina social é representada pelo exemplo da França, no final do século XVIII, caracterizada pela organização do espaço urbano e pelo controle da circulação da água e do ar. E, finalmente, a terceira etapa da medicina social, característica da Inglaterra do século XIX, foi a medicina dos pobres, em que a força de trabalho foi objeto de medicalização, a fim de se garantir tanto a produtividade das indústrias, como se evitar o contágio de doenças dos pobres para os ricos (Foucault, 2001, p. 79-98). 6 O hospital começa a ser medicalizado. Há a transformação do hospital (etimologicamente hospedaria, hotel), instituição social e filantrópica, em uma instituição medicalizada, pela ação sistemática e dominante da disciplina, da organização e esquadrinhamento médicos. (Foucault, 2001, p.99-111).
17
confinamento acaba representando juridicamente o desaparecimento da liberdade já representado
no plano psicológico.
Assim, à loucura, teorizada no fim do século XVIII como erro enraizado na imaginação,
foi destinado o internamento. A casa de internação se transformou, então, em asilo, local este que
ganhou valor terapêutico por procurar conduzir o erro à verdade e a loucura à razão. Já a loucura,
por sua vez, tornou-se objeto médico, recebendo o valor de doença.
O internamento, agora com nova significação, por ser uma medida de caráter médico, foi
realizado inicialmente sob orientação de Pinel na França, Tuke na Inglaterra e Wagnitz e Rel na
Alemanha. A partir destes personagens, inscreveu-se a história da Psiquiatria e, como afirma
Foucault (1968, p.81), observou-se o advento tanto de um humanismo, como de uma ciência
positiva.
Pinel foi um dos fundadores da clínica médica, um dos grandes responsáveis pela
transformação do hospital em uma instituição médica. Além disso, a partir dele houve
apropriação da loucura pelo discurso e prática médicos, daí ter recebido o título de fundador da
Psiquiatria e do hospital psiquiátrico. Suas contribuições vão muito além do ato de desacorrentar
os alienados do Hospital Geral de Bicêtre. Inscrevem-se muito mais no fato de terem sido úteis
para a construção de uma tecnologia de saber e intervenção sobre a loucura e sobre o hospital.
Pinel articulou algumas dimensões, como descreve Castel (1978, p.81), que serviriam de
base para o tratamento do alienado: classificação do espaço institucional, recorrendo, para isso,
ao “isolamento terapêutico”; arranjo nosográfico das doenças mentais e imposição de uma
relação específica de poder entre médico (representante da razão) e o alienado (irracional) – o
“tratamento moral”. Este tratamento, por sua vez, partia da construção teórica de que o doente
mental era portador de uma desordem interna e que o asilo devia apresentar características na sua
constituição física, organização e modo de funcionamento, que possibilitassem, através da ordem
externa, ambiental, restabelecer o equilíbrio interno dos alienados.
Pode-se entender melhor a articulação destas dimensões a partir das próprias palavras de
Pinel:
Um hospício de alienados [...] é destituído de um objeto fundamental, se, através de sua disposição interior, não mantiver as diversas espécies de alienados num tipo de isolamento, não for capaz de separar os mais furiosos daqueles que são tranqüilos, não evitar suas comunicações recíprocas a fim de impedir recaídas e facilitar a execução de todos os regulamentos de polícia interior ou a fim de evitar anomalias inesperadas na sucessão do conjunto de sintomas que o médico deve observar e descrever (Pinel, 1809, p. 193-194, apud Castel, 1978, p.83-84).
Dessa forma, entende-se melhor como o paradigma da internação dominou por tanto tempo
toda a medicina mental. Fica mais claro entender por que a Psiquiatria e o asilo não existiam um
18
sem o outro, bem como o por que de se evitar as vias para a desinstitucionalização, para a
assistência em domicílio, para a confiança no valor terapêutico dos vínculos familiares e das
relações profissionais etc. A hospitalização tornou-se, então, a resposta exclusiva e necessária ao
questionamento da loucura (Castel, 1978, p.86).
Assim, para dar conta de seu papel, o “tratamento moral” dispunha de alguns dispositivos
que tinham a finalidade de destruir a loucura através da introjeção por parte do louco dos
princípios morais: o isolamento e a organização do espaço terapêutico, citados anteriormente,
bem como a vigilância, a repressão, o controle e a ocupação do tempo do interno. Entre esses
dispositivos, de acordo com Lancman (1990), o trabalho do interno era considerado um dos mais
importantes, na medida em que o trabalho deveria ordenar e encadear o tempo do alienado de
forma a afastá-lo dos pensamentos loucos. Neste sentido, o trabalho era um princípio a ser
interiorizado:
Trabalho significa coordenação dos atos, atenção, obediência a um encadeamento de fases de produção que permitirá chegar ao produto; significa existência de regras às quais o alienado deve se adequar. É uma fonte poderosa de eliminação da desordem [...] O trabalho permite o controle de cada ato, de cada gesto; permite coordenar e ordenar o corpo e a mente. O trabalho é, portanto, em si mesmo terapêutico, ocupando assim uma posição central no tratamento (Machado et al., 1978, p.441).
Analisando ainda o “tratamento moral” e seus dispositivos, percebe-se também como foi
construída uma relação de tutela para com o louco a partir de seu internamento nos asilos.
Classificado como insensato, ele não podia ser um sujeito de direitos; irresponsável, não podia
ser objeto de sanções; incapaz de trabalhar, estava impossibilitado de fazer parte do mundo
burguês das trocas e, portanto, devia ser isolado; ilha de desordem e irracionalidade, devia ser
reprimido e administrado segundo normas diferentes daquelas destinadas às pessoas “normais”;
doente mental e perigoso, ao louco foi destinado um tratamento/ punição. Estes rótulos recebidos
pelos loucos, denunciados por Castel (1978), servem, por sua vez, de fundamento para o
entendimento dos pilares constitutivos das práticas manicomiais arraigadas desde Pinel até os
dias atuais.
A alienação mental era entendida por Pinel e Esquirol como um distúrbio das paixões
decorrido das influências morais e intelectuais da sociedade. No entanto, com o passar do tempo,
esta explicação tornou-se insuficiente. Com o desenvolvimento da anatomopatologia e da clínica
médica, muitos médicos questionavam o fato da alienação mental ter uma etiologia meramente
moral. Assim, surgem novas explicações para a alienação baseadas num misto de causas morais
e físicas.
Morel, por exemplo, criou o conceito de “degeneração moral”, incluindo a hereditariedade
como um componente a ser analisado. Já Kraepelin, como explica Amarante (1996, p.57), criou
19
um princípio nosológico-clínico que concebe a doença como um conjunto combinado de aspectos
próprios da natureza de cada uma das unidades nosológicas. Em outras palavras, ele definiu a
doença como uma combinação de diversas perspectivas, tais como a etiologia, a sintomatologia, a
perspectiva prognóstica, a idade, o sexo etc.
Por fim, pode-se dizer que o século XIX marca o momento em que a loucura recebe a
denominação médica de alienação mental, sendo integrada ao campo da psiquiatria. Esta, por sua
vez, a fim de eliminar as barreiras que fazem de sua inscrição no campo da medicina uma
exceção, como pontuam Barreto (2005, p.122) e Amarante (1995, p.26), vai procurar orientação
nas demais ciências naturais, assumindo um matiz eminentemente positivista. Daí se fixar num
modelo centrado na medicina biológica, que se limita a observar e descrever os distúrbios
nervosos intencionando um conhecimento objetivo do homem, característico da clínica médica
moderna.
1.4) Reformas Psiquiátricas
Atualmente, a organização e o modo de funcionamento dos hospitais psiquiátricos
continuam marcados pela influência do “tratamento moral”, acrescido de outros princípios que se
somaram ao conceito de psiquiatria e de doença mental, modificando geralmente só de forma
aparente o sentido das intervenções. Dessa forma, à compreensão moral da loucura, acrescentam-
se as teorias organicistas que desenvolveram sofisticadas técnicas de contenção química da
sintomatologia psiquiátrica, mediante a utilização crescente dos psicofármacos. Somam-se ainda
as técnicas psicologicistas e psicanalíticas que propõem diferentes formas de intervenção na
loucura. De acordo com Lancman (1990), muitas destas mudanças não só não diminuíram as
internações nos asilos, como transcenderam seus limites. A psiquiatria passa, então, a intervir e
medicalizar um contingente cada vez maior de indivíduos.
Percebe-se, então, que desde a iniciativa inaugurada por Pinel de ter reservado aos loucos
internados nos Hospitais Gerais um projeto terapêutico exclusivo, baseado no “tratamento
moral”, os saberes e práticas da psiquiatria começam a ser construídos e constantemente
repensados. Assim, principalmente depois da Segunda Guerra, quando novas questões são
colocadas no cenário histórico mundial, surgem movimentos com o intuito de reformar a
psiquiatria. Ora essas manifestações procuram questionar o papel e a natureza da instituição
asilar, ora do próprio saber psiquiátrico.
Neste sentido, conforme a periodização estabelecida por Birman e Costa (1994) dos
principais movimentos reformistas, ter-se-iam: a psicoterapia institucional e a comunidade
20
terapêutica, representando as reformas restritas ao âmbito asilar; a psiquiatria de setor e a
psiquiatria preventiva, como aquelas que buscam mudanças além do espaço asilar; e, finalmente,
a antipsiquiatria e o projeto de desinstitucionalização de Franco Basaglia, representando
intervenções instauradoras de rupturas com os movimentos de reforma anteriores, já que
questionavam tanto o dispositivo médico-psiquiátrico, como as instituições e dispositivos
terapêuticos a ele associados.
Pode-se dizer que foram esparsas as iniciativas de reforma assistencial nos asilos antes da
descoberta dos psicofármacos, corretores da “passionalidade incontrolável” dos loucos. De
acordo com Barreto (2005, p.124), a primeira iniciativa de reforma partiu de Simon, na década de
20, tendo como proposta base a praxiterapia. Vale ressaltar que, em certo sentido, esta proposta
reabilitava a antiga visão de Pinel das possibilidades de regulação do louco por um conjunto de
intervenções pedagógicas que restituiriam sua sociabilidade.
Em vários lugares do mundo, muitas foram as propostas de se ter uma psiquiatria
reformada. Tosquelles iniciou, em 1940, na França, no Hospital de Saint-Alban, um
encadeamento de reformas inspiradas na Psicanálise e nos princípios da “terapia ativa” de Simon.
Tal intervenção ficou conhecida sob a denominação de psicoterapia institucional e, como explica
Vertzman (1992 apud Barreto, 2005, p.125), propunha a transformação do hospital psiquiátrico
em um lugar terapêutico através de medidas que quebrassem a rigidez hierárquica do asilo e
reorganizassem o espaço como um lugar de trocas, com liberdade de circulação, estruturação de
lugares (ateliês e serviços), contratualidade, acolhimento, dispondo de grades simbólicas e
dispositivos mediadores. Além disso, de acordo com esse movimento reformista, as próprias
instituições teriam características doentias que precisariam ser tratadas.
Apesar de grande parte das experiências ensaiadas a partir do projeto da psicoterapia
institucional ter fracassado, alguns conteúdos destas experiências foram transmitidos a outros
projetos de reforma assistencial. Como exemplos deste legado estão: a importância dada ao
ambiente como operador de processos de (re)estruturação da experiência psicótica; a
reorganização do espaço em ateliês; a idéia dos clubes como organização autônoma (origem da
idéia atual de “empresa social”); o ecletismo adotado em relação às fontes teóricas etc.
Ainda na década de 40, surge na Inglaterra uma linha reformista inspirada em métodos
sociais de tratamento denominada comunidade terapêutica. Este termo inicialmente fazia menção
ao trabalho desenvolvido por Main, Bion e Reichman, no Hospital Monthfield. Mais tarde, em
1959, Maxwell Jones deu continuidade à proposta da comunidade terapêutica, sendo seu
principal sistematizador teórico e prático. O termo “comunidade terapêutica” refere-se a um
conjunto de reformas institucionais, em grande parte restritas ao hospital psiquiátrico, e segundo
21
Amarante (1995, p.28), “marcadas pela adoção de medidas administrativas, democráticas,
participativas e coletivas, objetivando uma transformação da dinâmica asilar”.
Como principais características deste projeto reformista estão: ênfase na “terapêutica ativa”
(terapia ocupacional) fundada por Simon; destaque na estruturação do espaço do hospital
psiquiátrico como ambiente terapêutico que “se trata” para tratar dos pacientes; a idéia de que o
hospital psiquiátrico funcionaria como uma micro-sociedade que reproduziria as variáveis
presentes na sociedade em geral; a valorização da liberdade de circulação e comunicação; a
permissividade oferecida aos internos; o “comunalismo”, em oposição à ênfase no papel
terapêutico especializado do médico; o nivelamento da pirâmide hierárquica tradicional, embora
contraditoriamente existisse a figura da “autoridade latente” que asseguraria a reimposição de
limites e a repressão a infrações em casos de perigo à ordem instituída; a ênfase nos processos de
reaprendizado e reaculturação do paciente etc. (Barreto, 2005, p.126-127; Amarante, 1995, p. 28-
32).
De forma geral, pode-se concluir que tanto a psiquiatria institucional como a comunidade
terapêutica tiveram suas bases centradas ao espaço institucional asilar, afirmando ser este um
legítimo local de tratamento para os loucos. Além disso, esses movimentos não questionaram
sequer a função social da psiquiatria, do asilo e dos técnicos, não se preocuparam com a
influência da psiquiatria então vigente enquanto um saber-poder construtor de idéias e práticas
acerca do sofrimento humano, dos homens e da sociedade.
Já a psiquiatria de setor, inspirou-se nas idéias de Bonnafé e de alguns outros psiquiatras
considerados progressistas. Diante do contexto de pós-guerra, estes reivindicavam
transformações nos manicômios franceses. A psiquiatria de setor trazia como proposta a idéia de
levar a psiquiatria até à população. Neste sentido, como explica Fleming (1976, p.54 apud
Amarante, 1995, p.34), tinha a intenção de tratar o paciente dentro do seu próprio meio social e
com o seu meio, sendo a passagem pelo hospital não mais que uma etapa transitória do
tratamento.
A partir deste movimento foi construído o embrião para um dos princípios do Sistema
Único de Saúde do Brasil, qual seja, o princípio de territorialização. Dessa forma, através do
setor, esquadrinhava-se o hospital psiquiátrico e as várias áreas da comunidade, de forma que,
cada divisão hospitalar, cada equipe de técnicos, correspondesse a uma área geográfica e social.
Dito de outra forma, a mesma equipe que tratava um grupo de pacientes no hospital, passava a
acompanhá-los na comunidade de que estes faziam parte.
A psiquiatria de setor foi incorporada na década de 60 como política oficial francesa. Isso
porque este movimento apresentava muitas vantagens, quais sejam, poder ser menos custosa do
que a psiquiatria asilar e ser capaz de responder tanto à crise dos valores burgueses, como às
22
novas questões patológicas engendradas pelo capitalismo. No entanto, a prática desta experiência
não alcançou os resultados esperados. Amarante (1995, p.35) aponta três motivos para isso:
resistência de grupos de intelectuais que a interpretam como continuação da abrangência política
e ideológica da psiquiatria clássica; oposição dos setores conservadores, que temiam a possível
invasão dos loucos nas ruas; e, por fim, os custos que iriam ser gerados com a implantação de
serviços de prevenção e pós-cura.
A psiquiatria preventiva ou comunitária, por sua vez, nasceu do cruzamento entre a
psiquiatria de setor e a socioterapia inglesa. Sua versão contemporânea teve início nos Estados
Unidos e representou a demarcação de um novo território para a psiquiatria, na medida em que, a
terapêutica das doenças mentais, paulatinamente, dá lugar a um novo objeto, qual seja, a saúde
mental. Consolidou-se, assim, a crença de que as doenças mentais podiam ser prevenidas ou
detectadas precocemente. Ao conhecimento da psiquiatria aliaram-se conceitos da sociologia e da
psicologia behaviorista a fim de fundamentarem teoricamente o tratamento da doença mental,
antes tida como puramente somática, e não psíquica.
Além disso, esta proposta de reforma procurava propiciar a instauração de serviços
alternativos à hospitalização, bem como de medidas que reduzissem a internação. Neste sentido,
a “psiquiatria preventiva” defendia a desospitalização dos internos, já que entendia que os
hospitais psiquiátricos causavam dependência nestes, acelerando a perda dos elos comunitários,
familiares, sociais e culturais, conduzindo-os à cronificação. A fim de viabilizar suas propostas,
equipes multidisciplinares trabalhavam na comunidade como consultores/ acessores/ peritos
fornecendo normas e padrões de valor ético e moral.
Tanto a “psiquiatria de setor” como a “psiquiatria preventiva” avançaram no sentido de
terem ensaiado tentativas de desospitalização. No entanto, não foram capazes de questionar a
psiquiatria como instrumento de saber e poder, de controle e segregação.
Em meio aos movimentos underground da contracultura, Laing, Esterson e Cooper
fundaram na Inglaterra, durante a década de 60, a antipsiquiatria. Esta proposta de reforma
inglesa, por sua vez, de acordo com Barreto (2005, p.127), foi a primeira a adotar uma estratégia
teórico-prática cujo objetivo era a demolição e a deslegitimação do saber psiquiátrico.
Sob influência de referências culturais diversas – fenomenologia, existencialismo, obras de
Foucault, psicanálise, marxismo, entre outras –, a antipsiquiatria entendia a loucura como um fato
social e político. Não sendo um estado patológico, a loucura era uma reação a um desequilíbrio
familiar, uma experiência positiva de libertação. Vale ressaltar que tal proposta de reforma da
Psiquiatria denunciava a cronificação da instituição asilar e baseava seu método terapêutico na
valorização da análise do discurso através do delírio do louco, em detrimento de tratamentos
químicos ou físicos.
23
Pode-se dizer que os resultados obtidos pela antipsiquiatria quanto a organizar as novas
formas de exercício da assistência psiquiátrica não foram muitos. No entanto, vale destacar que o
discurso da antipsiquiatria pôde introduzir uma nova forma de pensar, que haveria de se
prolongar até atingir o ponto de convergência em que a clínica e a política se encontrariam no
projeto da Psiquiatria Democrática Italiana7 de desinstitucionalização radical.
Através principalmente das explanações contidas nos livros de Amarante “Loucos pela
vida: a trajetória da Reforma Psiquiátrica no Brasil” (1995) e “O homem e a serpente: outras
histórias para a loucura e a psiquiatria” (1996) é que se esclarece, aqui, o projeto de
desinstitucionalização de Basaglia.
Como uma crítica radical ao paradigma psiquiátrico, a tradição iniciada por Basaglia e
continuada pelo movimento da Psiquiatria Democrática Italiana afirma a urgência da revisão das
relações a partir das quais o saber médico funda sua práxis. Tal tradição entende como
fundamental uma análise histórico-crítica a respeito da sociedade e da forma como esta se
relaciona com o sofrimento e a diferença.
A prática desencadeada por Franco Basaglia que criticava a Psiquiatria tradicional teve
início na década de 60, num manicômio de Gorizia, com um trabalho de humanização deste
hospital. Inicialmente, as intervenções de Basaglia inspiraram-se nas experiências da comunidade
terapêutica e na psicoterapia institucional. No entanto, a dura realidade institucional, o insucesso
das iniciativas, e a divulgação das obras de Goffman e Foucault, contribuíram para que fossem
realizadas reflexões mais profundas a respeito da possibilidade de reformas eminentemente
asilares, colocando em discussão as relações de tutela e custódia e o fundamento da
periculosidade social contido no saber psiquiátrico.
Dessa forma, de acordo com Barros (1994, p.66), citada por Amarante (1995, p.48-49), as
transformações das instituições asilares precisariam fundamentar-se em alguns eixos, tais como:
A luta contra as atuais estruturas psiquiátricas enquanto repressivo/ custodiais; a luta contra as estruturas psiquiátricas, ainda que reformadas, mas lugar de institucionalização do sofrimento através da doença; a luta contra a institucionalização do sofrimento através da doença; a luta contra o sofrimento como necessidade no mundo do capital e da sociedade de troca, isto é, como universo de não escolha, onde o sofrimento vem transformado em algo mercantilizável.
7 O movimento da Psiquiatria Democrática Italiana (PDI), fundado em Bolonha, em 1973, teve por mérito a possibilidade de denúncia civil das práticas simbólicas e concretas de violência institucional. A possibilidade de ampliação do movimento da PDI e seu alcance permitem, além da competência médico-psiquiátrica-psicológica, alianças com forças sindicais, políticas e sociais. A PDI traz ao cenário político mais amplo a revelação da impossibilidade de transformar a assistência sem reinventar o território das relações entre cidadania e justiça (Amarante, p.48, 1995).
24
O que está em jogo é um projeto de desinstitucionalização, de desmontagem de saberes/
práticas/ discursos comprometidos com uma objetivação da loucura e sua redução à doença.
Luta-se por uma desconstrução da relação entre sociedade e loucura pautada em qualidades
morais de periculosidade e marginalidade, que acabam fortalecendo a correlação entre punição e
terapeutização. Além disso, a partir desse projeto de desinstitucionalização, fica cada vez mais
claro que o manicômio é o espaço que a sociedade reserva para os loucos não para curá-los, mas
para excluí-los. Diante desse fato, Basaglia defende a recusa deste mandato social.
Uma das idéias principais de Basaglia, de acordo com Amarante (1995, 1996, 2003), é a de
que a doença não é condição única, nem a condição objetiva do ser humano que está doente.
Além disso, o aspecto que se encontra doente produzido pela sociedade que o rejeita e pela
psiquiatria que o gere. É neste sentido que se propõe colocar a doença mental entre parênteses, o
que diz respeito à individuação da pessoa doente. Dito de outra forma, a um ocupar-se não da
doença mental como conceito psiquiátrico, e sim a um ocupar-se de tudo aquilo que se construiu
em volta da doença. A inversão está, pois, em colocar, não o doente entre parênteses, mas a
doença mental, isto é, o saber psiquiátrico que sobre ela se produziu.
Dando continuidade a este raciocínio, colocar a doença entre parênteses é a denúncia e a
ruptura epistemológica que permite a observação do “duplo” da doença mental, isto é, do que não
é próprio da condição de estar doente, mas de ser e estar institucionalizado. O duplo, por sua vez,
homogeneíza, objetiva e serializa todos aqueles que entram numa instituição que baseia suas
ações no autoritarismo e na coerção, é a face institucional da doença, construída tomando-se por
base a negação da singularidade do louco.
Assim, como explica Amarante (1996, p.84), de acordo com Basaglia, a institucionalização
seria o complexo de danos derivados de uma longa permanência coagida no hospital psiquiátrico.
Os princípios do autoritarismo e da coerção, donde surgem as regras sob as quais o doente deve
submeter-se incondicionalmente, são expressão e determinam nele uma progressiva perda de
interesse que, através de um processo de restrição do Eu, o induz a um vazio emocional.
Neste sentido, o processo de desinstitucionalização implica a reconstrução do fenômeno
loucura, que significa a superação das antigas instituições com a ruptura do seu paradigma
fundante, “a relação causa-efeito na análise e constituição da loucura” (Ibidem, p.102).
Essa ruptura dá origem a um novo dispositivo, tanto em relação à Psiquiatria tradicional – o
dispositivo da alienação –, como em relação às Psiquiatrias reformadas, que poderia,
provisoriamente, de acordo com Amarante (Ibidem), ser chamado de dispositivo da
desinstitucionalização. Aqui, de acordo com Rotelli (2001), a ênfase não é mais colocada no
‘processo de cura’, mas no processo de ‘invenção de saúde’ e de ‘reprodução social da pessoa’.
25
Explicado o projeto de desinstitucionalização de Basaglia, é importante citar algumas de
suas experiências práticas a fim de melhor entendê-lo. Basaglia iniciou, em 1971, em Trieste, um
processo de desmontagem do aparato manicomial, seguido da construção de novos espaços e
formas de lidar com a loucura. Assim, foram construídos alguns centros de saúde mental, um
para cada área da cidade, funcionando 24h ao dia, sete dias por semana. Foram abertas também
residências para alguns usuários em mais de trinta lugares diferentes. Além disso, merece
destaque a criação de cooperativas de trabalho, novo espaço de produção artística, intelectual ou
de prestação de serviços, que assumiu importante papel na dinâmica e na economia dos Serviços
de Saúde Mental.
Selando todo esse processo de reforma, foi promulgada a Lei 180, de 1978, que proibia a
internação em manicômios na Itália. Por fim, pode-se dizer que a experiência italiana, pela sua
intensidade e eficácia, influenciou movimentos de desinstitucionalização no mundo todo.
26
2 – Reforma Psiquiátrica Brasileira e Surgimento dos Centros de Atenção Psicossocial
O Movimento denominado Reforma Psiquiátrica no Brasil foi constituído a partir do final
dos anos 70, em meio ao clima de efervescência que dominava o país nestes anos de organização
social e civil contra a ditadura militar. Esta efervescência foi impulsionada por movimentos
ocorridos na França, com a Psiquiatria de Setor e com a Psicoterapia Institucional; na Inglaterra,
com a Antipsiquiatria e com as Comunidades Terapêuticas; nos EUA, com a Psiquiatria
Comunitária; e principalmente na Itália, com o movimento de desinstitucionalização da
Psiquiatria Democrática.
Desse modo, de acordo com Amarante (1997), surgem no Brasil vários movimentos com o
objetivo de produzir e organizar o pensamento e as práticas críticas no campo da saúde pública.
Dentre eles, o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM) torna-se o primeiro e
mais importante ator de renovação no campo da saúde mental.
Na década de 70, a partir de vários Congressos, em especial o Congresso de Camboriú e o
Simpósio de Saúde da Câmara dos Deputados, a questão da loucura e da instituição asilar passa a
ser, aos poucos, objeto de interesse e discussão das principais entidades da sociedade civil. A
“questão psiquiátrica” vai tornando-se, assim, uma questão política, ou seja, há um deslocamento
dos aspectos teórico-técnicos em benefício dos políticos-ideológicos.
Neste contexto, este período foi marcado por reivindicações em relação à inversão da
política nacional de saúde mental, de privatizante para estatizante e à implantação de alternativas
extra-hospitalares que significavam a inversão do modelo – de hospitalar para ambulatorial,
diminuindo assim a quantidade de internações; e de curativo para preventivo / promocional.
A Reforma Psiquiátrica8 – não apenas enquanto medidas de caráter técnico-científico ou
organizacional, mas também enquanto um processo permanente de construção de reflexões e
transformações que ocorrem a um só tempo, nos campos assistencial, cultural, e conceitual – vai,
assim, ganhando força aqui no Brasil. As práticas e os pressupostos teóricos da instituição
psiquiátrica tradicional começam a ser vigorosamente questionados.
Desta forma, segundo Amarante (ibidem), retirado o manto de cientificidade da psiquiatria,
torna-se possível percebê-la como instrumento técnico-científico de poder ou como saber e
prática disciplinar e normalizadora. A denúncia da realidade dos hospitais psiquiátricos tornou
possível verificar sua função mais custodial que assistencial, mais iatrogênica que terapêutica,
mais alienadora que libertadora. Se, por um lado, a psiquiatria deixava de ser questão exclusiva
8 Uma vez explicado as reformas pelas quais passou a Psiquiatria, e esclarecido que a proposta de Basaglia e seus seguidores é a que realmente se propunha a uma mudança profunda no saber e prática da Psiquiatria, a partir desse capítulo será utilizado o termo “Reforma Psiquiátrica” para fazer referência unicamente ao movimento de desinstitucionalização desencadeado por Franco Basaglia.
27
dos técnicos para tornar-se uma questão que diz respeito a toda sociedade, por outro, o objeto da
psiquiatria deixava de ser a doença para tornar-se o sujeito da experiência do sofrimento,
considerando sua história e singularidade.
A partir da década de 80, segundo Amarante (2003), ocorre um convênio entre a
Previdência Social e o Ministério da Saúde, no qual a primeira colaborava no custeio,
planejamento e avaliação das unidades hospitalares do segundo, através de uma co-gestão. Este
fato histórico pôde ser considerado como uma primeira experiência no sentido de estabelecer
uma relação de co-participação das instituições públicas do setor de saúde. Além disso, esta co-
gestão foi considerada como o início de uma política de saúde que tem como princípios a
descentralização, a integração interinstitucional, a hierarquização, a regionalização e a
participação comunitária. Tais princípios vão marcar as políticas de saúde nos anos seguintes,
culminando com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS).
Através da I Conferência Nacional de Saúde Mental, realizada em 1987, pôde-se introduzir
na política nacional alguns temas, tais como: a cidadania dos doentes mentais, a necessidade de
revisão da legislação (tanto civil, como sanitária) e a reorientação do modelo médico-psiquiátrico
de assistência.
As inovações introduzidas pela Reforma Sanitária deram brechas para intervenções, como
a realizada na Casa de Saúde Anchieta, em Santos (São Paulo), em que foram observadas a
efetivação da desmontagem do aparato institucional manicomial, com a conseqüente implantação
de uma rede territorial de atenção à saúde mental, substitutiva ao modelo psiquiátrico tradicional;
além de uma série de outras experiências culturais e sociais.
Neste contexto, na década de 90, foram construídos os Núcleos / Centros de Atenção
Psicossocial (NAPS/ CAPS), como protótipos dos novos serviços substitutivos ao aparato
manicomial.
A portaria 224 / 1992, ao estabelecer condições de funcionamento dos serviços de saúde
mental (e manicomiais), dava início a um processo de fechamento de serviços hospitalares
absolutamente precários e qualificava os existentes. Através da Lei 10.216/2001, por sua vez,
fica clara a diretriz de que pessoas acometidas por transtornos mentais devem ser cuidadas em
serviços de tratamento terapêutico substitutivos dos modelos asilares.
Sob forte influência política e ideológica do Movimento de Reforma Psiquiátrica, o
Ministério da Saúde adotou a portaria 189/ 2002 que possibilitava o financiamento de novas
estruturas assistenciais do tipo CAPS, NAPS, hospitais-dia e unidades psiquiátricas em hospitais
gerais. A inovação trazida por esta portaria está no fato de viabilizar a possibilidade efetiva de
financiamento de estruturas não manicomiais, o que, embora fosse um princípio existente desde
os primeiros momentos do MTSM, ainda não tinha sua viabilidade concretizada.
28
É assim que o Movimento da Reforma Psiquiátrica, ao questionar a cientificidade da
psiquiatria – reconhecendo-a como instrumento de poder ou como saber e prática disciplinar e
normalizadora – e ao denunciar a função custodial, iatrogênica e alienadora dos hospitais
psiquiátricos, permitiu que o modelo de atenção à saúde mental pudesse tomar nova forma. É
diante desse contexto que uma clínica “psi” reformada começa a ser delineada, tendo o CAPS
como local privilegiado para sua efetivação.
O CAPS, principal estratégia do processo de reforma psiquiátrica, foi definido como um
serviço comunitário ambulatorial que oferece cuidados intermediários entre o regime
ambulatorial e a internação hospitalar. Têm como proposta acolher pessoas que sofrem algum
tipo de transtorno mental severo e persistente, que lhes impossibilita de viver e realizar seus
projetos de vida. As relações entre trabalhadores e usuários devem estar baseadas no
acolhimento e no vínculo. Além de acolher os usuários, este serviço os apóia em suas iniciativas
de busca da autonomia, estimulando a integração destes a um ambiente social e cultural
concreto, designado como seu território, o espaço da cidade onde se desenvolve sua vida
cotidiana e de seus familiares.
O primeiro CAPS do Brasil foi inaugurado em março de 1986, na cidade de São Paulo:
CAPS Professor Luiz da Rocha Cerqueira. A partir daí, outros CAPS’s foram sendo criados em
outros municípios do país e foram se consolidando como dispositivos eficazes na diminuição de
internações e na mudança do modelo assistencial então vigente. Atualmente, os CAPS’s são
regulamentados pela portaria 336/ 2002 e integram a rede do Sistema Único de Saúde.
Esse serviço alicerça-se nos princípios de acesso universal, público e gratuito às ações e
serviços de saúde; integralidade das ações, cuidando do individuo como um todo; eqüidade,
como o dever de atender igualmente o direito de cada usuário, respeitando as suas diferenças;
descentralização dos recursos de saúde; controle social exercido pelos Conselhos Municipais,
Estaduais e Nacional de Saúde com representações dos usuários, trabalhadores, prestadores,
organizações da sociedade civil e instituições formadoras.
Neste sentido, os CAPS visam: prestar atendimento em regime de atenção diária, gerenciar
os projetos terapêuticos oferecendo cuidado clínico eficiente e personalizado, promover a
inserção social do usuário através de ações intersetoriais, dar suporte e supervisionar a atenção à
saúde mental na rede básica, coordenar junto com o gestor local as atividades de supervisão de
unidades hospitalares psiquiátricas que atuem no seu território, entre outras atividades (BRASIL,
2004a).
Para ser atendido num CAPS, pode-se procurar diretamente esse serviço ou ser
encaminhado pelo Programa de Saúde da Família ou por qualquer serviço de saúde. Ao iniciar o
acompanhamento no CAPS se traça um projeto terapêutico com o usuário. O profissional que o
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acolheu no serviço, ou outro técnico que tenha estabelecido um vínculo com o usuário, passará a
ser seu Terapeuta de Referência. Este será responsável por: monitorar junto com o usuário o seu
projeto terapêutico singular, definindo as atividades e a freqüência de participação no serviço e o
tipo de atendimento que será destinado – intensivo, semi-intensivo ou não-intensivo, entre outras
atividades.
Os CAPS’s podem oferecer diferentes tipos de atividades terapêuticas. Esses recursos vão
além do uso de consultas e medicamentos, e caracterizam o que vem sendo denominado de
clínica ampliada. Essas atividades podem ser: atendimento individual e em grupo, atendimento
para a família, atividades comunitárias, assembléias ou reuniões de organização do serviço,
oficinas, visitas domiciliares etc.
As oficinas terapêuticas são uma das principais formas de tratamento oferecidas nos
CAPS’s. Estas oficinas são atividades realizadas em grupo com a presença e orientação de um ou
mais profissionais/ estagiários. Podem ser definidas através do interesse e das necessidades do
usuário e das possibilidades dos técnicos do serviço, tendo em vista a maior integração social e
familiar, a manifestação de sentimentos e problemas, o desenvolvimento de atividades corporais,
a realização de atividades produtivas e o exercício coletivo da cidadania (Ibidem).
De acordo com a portaria 336/ 2002, os CAPS’s são diferentes quanto à especificidade da
demanda que atendem, bem como quanto às atividades terapêuticas que realizam, à diversidade
dos profissionais que nele trabalham, à estrutura física etc. Os CAPS I e II são para o
atendimento diário de adultos, em sua população de abrangência, com transtornos mentais e
persistentes. Já o CAPS III além disto, funciona 24 horas por dia, todos os dias da semana. O
CAPSi atende diariamente crianças e adolescentes com transtornos mentais, enquanto que o
CAPSad atende usuários com transtornos decorrentes do uso e dependência de substâncias
psicoativas, trabalhando com a lógica de “redução de danos”.
Os profissionais que trabalham no CAPS integram uma equipe multiprofissional composta
de técnicos de nível superior (enfermeiros, médicos, psicólogos, assistentes sociais, terapeutas
ocupacionais, professores de educação física e outros) e de nível médio (técnicos e/ou auxiliares
de enfermagem, técnicos administrativos, educadores, artesãos etc), além da equipe de limpeza e
cozinha.
Além disso, espera-se que o CAPS esteja articulado à rede de serviço de saúde e a outras
redes sociais. Assim, um dos objetivos deste serviço relaciona-se à articulação e ao tecimento
dessas redes. Cumpre suas funções tanto na assistência direta e na regulação da rede de serviços
de saúde, trabalhando em conjunto com as equipes de Saúde da Família (através, por exemplo,
da realização de apoio matricial às equipes de atenção básica), como na promoção da vida
comunitária e na autonomia dos usuários, articulando recursos existentes em outras redes.
30
Outras estratégias têm sido desenvolvidas a fim de fomentar o tecimento dessas redes.
Como exemplo disso, destacam-se o Programa de Volta Para Casa, que garante o processo de
inserção social dos usuários, promovendo a organização de uma rede ampliada e diversificada de
recursos, incentivando o exercício da cidadania; bem como os Serviços Residenciais
Terapêuticos, que contribuem para construção de espaços substitutivos de atenção em saúde
mental para aqueles usuários que se encontravam institucionalizados e que não têm fortes
vínculos familiares, sociais e culturais; com isso, objetivam também uma redução nas
internações.
Pode-se dizer, então, que o Movimento de Reforma Psiquiátrica tem sido caracterizado
como um dos mais vigorosos e persistentes movimentos sociais no Brasil contemporâneo. Isso
porque este movimento busca trazer novas formas de se enxergar a loucura, espaços onde ela
possa ser expressa sem preconceito, dando abertura ao desejo e, a partir daí, criando situações de
produção de subjetividades, as quais auxiliam caminhos de resgate da cidadania dos usuários.
Diferentemente de outros movimentos, que apenas reivindicavam bens materiais, o
Movimento de Reforma Psiquiátrica aproxima-se dos movimentos de caráter autenticamente
democrático e social, na medida em que reivindica e luta por uma melhor qualidade de vida em
seu sentido mais amplo. Nascido parcialmente no âmbito da Reforma Sanitária, colocou em
discussão o modelo médico-psicológico disciplinador, normalizador, biologizante e
estigmatizador, então vigente, procurando um rompimento efetivo com este.
Por fim, diante deste contexto de redefinição do paradigma psiquiátrico, muitas estratégias
foram e estão sendo postas em prática com o objetivo de interferir na produção do imaginário
social no que diz respeito à loucura, a fim de se romper com preconceitos e estigmas
relacionados a este assunto. Estas iniciativas variaram desde a realização de eventos de caráter
técnico científico – congressos, debates, seminários – a eventos culturais – teatro, cinema,
exposição de arte etc.
O entendimento de como aconteceu a Reforma Psiquiátrica no Brasil e como surgiram os
Centros de Atenção Psicossocial é fundamental para a contextualização tanto da clínica de saúde
mental de forma geral, como da experiência nessa área que será posteriormente descrita. Além
disso, clínica na Reforma Psiquiátrica, por sua vez, pode ser melhor compreendida quando
comparada com a proposta da clínica da Psiquiatria clássica e de seu paradigma fundante, o
paradigma científico da modernidade.
31
3 – A Clínica da Psiquiatria Clássica e o Paradigma Científico da Modernidade
De acordo com a história do conhecimento, como aponta Figueiredo (1991), a Idade
Moderna inaugura-se com a revolução científico-tecnológica, fenômeno este de amplas e
penetrantes repercussões para a sociedade ocidental. A partir do século XVII, pode-se notar uma
crescente preocupação em discutir e estabelecer as condições do conhecimento “verdadeiro”, do
conhecimento científico. Diante deste contexto, há, então, um redimensionamento na relação
sujeito-objeto. Estes aparecem como duas formas separadas, sendo o conhecimento resultante
desta relação, sem que, por sua vez, o objeto produza nada no sujeito. Dessa forma, sob
influência das idéias de Descartes e Bacon9, a subjetividade do cientista é submetida à disciplina
do método, daí o conhecimento ser destituído de qualquer potência inventiva.
Através do uso da razão e da ação instrumental, o homem, desprendendo-se do objeto
estudado – a natureza –, passa a crer que pode dominá-la e controlá-la. Assim, o instrumento vai
acrescentar-se à despretensiosa observação. A finalidade utilitária e a busca da verdade objetiva
vão, por sua vez, emergir como justificativa e legitimação da ciência.
Já no século XVIII, a revolução científico-tecnológica se fortaleceu ainda mais. A
finalidade prático-utilitária da ciência, bem como o progresso da racionalidade econômica e
científica, impulsionaram o desenvolvimento da produção e do comércio. Ciência e capital
articularam-se, trazendo consigo benefícios mútuos.
Neste contexto, os grandes sistemas filosóficos tradicionais viram-se abalados pelo
surgimento das ciências naturais. Estas eram galgadas num modo de existência prático-teórico
em que a natureza era reduzida a um conjunto de leis simples, imutáveis e de causa-efeito. Dessa
forma, cada vez mais o paradigma positivista10 vai sendo legitimado, ampliando-se inclusive para
as ciências sócio-humanas, isso tudo em nome da busca pelas verdades absolutas e de resultados
pragmáticos para a sociedade.
Diante desta composição de fatores é que surgem a Psiquiatria e, posteriormente, a
Psicologia e, com estas, todo um saber-fazer constituidor da clínica que trata pessoas acometidas
por transtornos mentais. De certo, para que pudessem ser consideradas científicas e, portanto,
legítimas, as disciplinas “psi” tiveram que se enquadrar no paradigma positivista. Assim,
9 Segundo o indutivismo de Francis Bacon, “somente são reais os conhecimentos que repousam sobre fatos observados” (Kastrup, 1999, p.30, apud Comte, 1930/ 1942, p.5). 10 De acordo com o Pequeno Dicionário da Língua Brasileira (1973), o positivismo é um sistema criado por Augusto Comte, que se baseia nos fatos e na experiência, e que deriva do conjunto das ciências positivas, repelindo a metafísica e o sobrenatural, caracteriza-se pela tendência para encarar a vida só pelo seu lado prático e útil. Segundo o próprio Comte (1930/ 1942, p.7), citado por Kastrup (1999, p.30), “o caráter fundamental da filosofia positiva é tomar todos os fenômenos como sujeitos a leis naturais invariáveis, cuja descoberta precisa e cuja redução ao menor número possível constituem o objetivo de todos os nossos esforços”.
32
seguindo os passos da ciência moderna, estas eram incumbidas de desencantar o mundo,
modelando-o e compreendendo-o através da teoria aliada à prática e de leis gerais aparentemente
desprovidas de interesse particular.
Tal como explicado anteriormente, com a criação do hospital (século XVII), surge a
possibilidade, como afirma Amarante (1996, p.39), de aglutinar os loucos em um mesmo espaço,
para assim conhecer e tratar suas loucuras. É desta forma que, ao final do século XVIII, surge a
Psiquiatria, sendo Pinel, Tuke, entre outros, os seus percussores.
A clínica da Psiquiatria Clássica, por sua vez, desde seu surgimento, até os dias atuais, tem
sido derivada da clínica médica tradicional, surgida no século XVIII. Em “O Nascimento da
Clínica”, Foucault (2003) aponta que esta, enquanto prática e saber médicos, tem sido
repetidamente narrada, desde o século XVIII, como surgida do próprio leito do doente, suposto
lugar de experiência constante e estável. Ignoram, segundo este autor, teorias e sistemas que
teriam estado em permanente mudança e mascarado, sob sua especulação, a pureza da evidência
clínica.
Desprezam, ainda, de acordo com o mesmo autor (ibidem), o fato de que na aurora da
Humanidade, antes de todo sistema, a clínica era baseada em uma relação imediata – sem
mediação do saber – entre o sofrimento e aquilo que o aliviava. Mais do que de experiência, esta
relação era de instinto e de sensibilidade. Além disso, era estabelecida pelo indivíduo para
consigo mesmo antes de ser tomada em uma rede social. Multiplicada por si mesma, transmitida
de uns aos outros, nesta clínica cada pessoa era ao mesmo tempo sujeito e objeto. Portanto, como
afirma Foucault (ibidem, p.60), “antes de ser um saber, a clínica era uma relação universal da
Humanidade consigo mesma”.
No entanto, com o passar do tempo, esta modalidade de clínica acabou por agregar sobre si
outros aspectos. Logo que a escrita e o segredo foram inaugurados, apenas um grupo privilegiado
detinha o saber e a prática médicos, que agora mediava o sujeito (médico) de seu objeto (doença).
Diante deste contexto é que surge a clínica moderna, como produto do conhecimento
naturalista. Assim, como explica Amarante (2003, p.57), o sensitivismo lockeano – observar,
descrever, comparar e classificar – defendia a idéia de que a doença não seria uma experiência,
mas um objeto da natureza. Portanto, o sujeito foi afastado, suspenso, colocado entre parênteses,
para que a medicina pudesse se ocupar da doença enquanto fato natural.
O princípio epistemológico do isolamento permitiu que o médico tivesse todas as
modalidades de doenças e sintomas em um só lugar, disponíveis para sua observação sistemática
e contínua. Dessa forma, “esta relação com a doença – e não com os sujeitos – ao lado do leito,
no dia a dia da instituição, fundou a clínica” (ibidem).
33
Não é por acaso que a expressão “clínica” provém, dentre outras origens, do grego klinus
ou klinikós, que significa “leito” ou “cama” e traz ainda o sentido de “inclinar-se”, estar ao leito
no dia-a-dia da evolução da doença. Vale ressaltar, que este “inclinar”, ocorreu, segundo
Amarante (ibidem, p.58), mediante o seqüestro social dos indivíduos e de sua posterior
internação em uma instituição fechada. Dessa forma, a clínica surgiu de uma relação com a
doença enquanto fenômeno institucionalizado e enquanto fato objetivo e natural.
Assim, a clínica do século XVIII, e que vigora ainda em sua essência nos dias atuais, reuniu
sobre si várias características. Esta clínica, como afirma Foucault (2003): tinha uma única direção
que ia de cima para baixo – do saber constituído à ignorância –; devia formar um campo
nosológico muito bem estruturado; não era um instrumento para descobrir uma verdade ainda
desconhecida, mas uma forma de dispor a verdade já adquirida e de apresentá-la a fim de que ela
se desvelasse sistematicamente; era derivada de formas já constituídas de saber, não tinha uma
dinâmica própria e capacidade de acarretar, por sua própria força, uma transformação geral do
conhecimento.
Tal clínica era estática, não criava nada, já que: “não pode por si mesma descobrir novos
objetos, formar novos conceitos, nem dispor de outro modo o olhar médico. Ela conduz e
organiza uma determinada forma do discurso médico; não inventa um novo conjunto de discursos
e práticas” (Ibidem, p.69).
De forma geral, esta clínica pode ser muito bem caracterizada de acordo com as palavras de
Galimbereti (1984 apud Rotelli, 2001, p.92-93):
O olhar médico não encontra o doente, mas a sua doença, e em seu corpo não lê uma biografia, mas uma patologia na qual a subjetividade do paciente desaparece atrás da objetividade dos sinais sintomáticos que não remetem a um ambiente ou a um modo de viver ou a uma série de hábitos adquiridos, mas remetem a um quadro clínico onde as diferenças individuais que afetam a evolução da doença desaparecem naquela gramática de sintomas, com a qual o médico classifica a entidade mórbida como o botânico classifica as plantas.
A clínica moderna surge com estas características. Com o passar do tempo, são definidos o
domínio de sua experiência e a estrutura da sua racionalidade. Assim, o olhar clínico adquire o
poder de atingir a forma geral de qualquer constatação científica:
Para poder propor a cada um de nossos doentes um tratamento perfeitamente adaptado à sua doença e a si próprio, procuramos formar, de seu caso, uma idéia objetiva e completa, recolhemos em um dossiê individual (sua observação) a totalidade das informações que dispomos a seu respeito. Nós o observamos do mesmo modo que observamos os astros ou uma experiência de laboratório (Sournia, 1962, p. 19 apud Foucault, 2003, p.14).
34
Em posição periférica aos demais domínios da medicina, a Psiquiatria teve que cada vez
mais se ancorar firmemente na ciência natural, como relatado inicialmente nesta monografia.
Inicialmente, com o tratamento moral, que percebia a loucura como uma perturbação das paixões
dentro do domínio da razão, tão importante para a ciência clássica; depois, práticas de tratamento
repressivas, disciplinadoras e violentas que explicavam a loucura de acordo com bases somáticas,
sediadas na arquitetura cerebral. Ambos os tratamentos baseavam-se numa prática clínica, como
afirma Barreto (2005, p.122), “magnetizada pela ideologia do progresso da ciência atual”.
Pinel, seus contemporâneos e sucessores fundam, então, uma tradição clínica consciente e
sistemática que articulava filosofia e medicina. Surge, então, a Psiquiatria, que nasceu, por sua
vez, num contexto epistemológico em que a realidade era considerada um dado natural, capaz de
ser apreendido, revelado, descrito, mensurado e comparado; e num contexto em que a ciência era
entendida como a produção de um saber positivo, neutro e autônomo, ou seja, a própria
expressão da verdade.
No âmbito epistemológico das ciências naturais de Linneu e Buffon, mais especificamente
do sensitivismo de Condillac e Locke (Foucault, 1978), é que Pinel elaborou o Traité médico-
philosophique sur l’aliénation mentale, a obra prima da Psiquiatria moderna, na qual, segundo
Amarante (2003, p.15), foi oferecido o conceito de alienação mental e consolidado a prática
sistemática do internamento da loucura. Neste contexto, como aponta este mesmo autor, é que se
inaugura uma clínica como sinônimo de tratamento moral ou isolamento terapêutico (oriundo do
klinus – inclinar-se sobre o leito).
Ainda que, o conceito de alienação mental significasse contradição da Razão, como
atentava Hegel, e não a ausência absoluta desta, essa contradição inviabilizaria a Razão Absoluta.
Dessa forma, seria alienado todo aquele em cuja razão houvesse tal contradição. Este, por sua
vez, seria incapaz de julgar, de escolher, e de portanto, ser livre e exercer sua cidadania. Assim, a
clínica fundamentada nestas explicações acabava por controlar os desvios e comportamentos
aberrantes daqueles desprovidos de uma Razão Absoluta, excluindo cidadãos, acabando por
servir às preocupações morais e às estratégias de manutenção da ordem pública então crescentes.
Esta clínica excludente, segundo Barreto (2005, p.121), submete a loucura a uma
consciência crítica que “a aprisiona em dispositivos disciplinares em que é desnudada ao olhar do
médico, que a observa, descreve, classifica, constrói para ela uma cartografia e lhe prescreve um
destino”. É assim que, o hospital psiquiátrico, segundo Foucault (1997 apud Barreto, 2005,
p.120), cumpre a função de um triângulo botânico, “em que as doenças são repartidas numa
grande horta regada de diagnóstico e classificação para obrigar que nos canteiros disciplinados
aflore a verdade da loucura”.
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Neste sentido, segundo Rotelli (2001, p.90), em torno da doença – objeto bem definido da
Psiquiatria, de acordo com o paradigma clínico –, estruturam-se várias instituições relacionadas
ao conjunto de aparatos científicos, administrativos, de código de referência cultural e de relações
de poder. É assim que, um modelo técnico assistencial é construído calcado na idéia de que a
loucura era uma incapacidade da razão (posteriormente degeneração e, mais tarde, doença
mental). Daí, este modelo ser fundamentado na tutela, na custódia, na disciplina, na vigilância
panóptica, na imposição da ordem, na punição corretiva, no trabalho terapêutico, na interdição
etc. Entende-se, então, como a institucionalização torna-se algo legítimo e imperativo e o
manicômio a expressão deste modelo.
Por fim, de acordo com Passos e Pitombo (2003), o cientificismo que movia (e ainda move)
a prática clínica a atrelava a pressupostos que escondiam sua complexidade e seu caráter
experimental, criador de normas. É neste sentido que, conforme afirma Amarante (2003, p. 49), a
Psiquiatria, surgida no bojo deste modelo epistemológico, influenciada pelo conceito de ciência
como produção de Verdade e pela noção de neutralidade científica, acaba por construir conceitos
– “alienação”, “degeneração” e “doença mental”, “isolamento terapêutico” (que possibilitava a
observação do “objeto em seu estado puro”), “tratamento moral”, “normalidade/ anormalidade”,
“terapêutica”, “cura” etc. Estes, por sua vez, em vez de propor novas formas de existência, de
produção de saúde, ao contrário, engessam a clínica e só fazem repetir sistematicamente práticas
anteriores.
Diante de tudo que foi dito acerca de como a constituição da clínica da Psiquiatria Clássica
foi fortemente influenciada pelo paradigma da ciência moderna, vale ressaltar ainda como o
saber/prática da Psicologia contribuiu, aliando-se à Psiquiatria, para a criação de uma clínica
pautada nos princípios das ciências naturais.
Antes de tudo, é importante ressaltar, de forma resumida, em que contexto e como a
Psicologia surgiu. De acordo com Kastrup (1999, p. 30-31), citando Canguilhem (1956), a
Psicologia surgiu como forma de dar conta dos erros inerentes ao processo de conhecer, os quais
foram mostrados pela física do século XVII. Uma vez que, foi revelado através dos estudos da
física científica, que o “mundo não é como se vê”, tal constatação fez do conhecimento um
problema, exigindo assim, a elaboração de uma teoria, a princípio da percepção, a qual foi
desenvolvida pela psicologia. Dito de outra forma, foi por meio da elucidação de erros e falhas no
processo de conhecer que se abriu espaço para a constituição do projeto para uma Psicologia
científica. Assim, a edificação de uma ciência psicológica esteve fundamentada no discurso da
ciência moderna e nos erros cognitivos residuais, uma espécie de resto do projeto científico da
modernidade.
36
Neste sentido, segundo Figueiredo (1999), edifica-se um sítio armado em torno da
subjetividade. A produção e validação do conhecimento pressupõem um domínio técnico sobre a
natureza, implicando a fiscalização, o autocontrole e a autocorreção do sujeito, ou seja,
implicando a neutralidade científica. Tais pressupostos, por sua vez, vão dar início às
preocupações epistemológicas e, principalmente metodológicas, características da época
moderna. Como conseqüência disso, surge o projeto de Psicologia que Figueiredo (ibdem)
definiu como “ciência natural do subjetivo”.
Diante desta conjuntura, de acordo com Vasconcelos (2003, p.11), instaura-se o solo
propício para a constituição de uma natureza subjetiva interna, “de um eu individual e essencial,
algo diferente e completamente separado da natureza exterior, um mundo à parte, insular, que
precisa ser colonizado”. A construção de uma natureza subjetiva interna fomenta o progresso da
ciência, na medida em que este progresso está diretamente implicado com o processo de
conhecer, controlar e produzir a subjetividade e as diferenças individuais, sendo dessa forma que
o sujeito individual deixa de ser apenas um pesquisador para vir a se tornar um possível objeto da
ciência. Assim, tanto a epistemologia, como a metodologia, demandam o surgimento da
Psicologia com a finalidade de produzir conhecimento acerca dessa subjetividade.
Surge, no entanto, uma contradição. Ao mesmo tempo em que tal projeto da Psicologia
tenta neutralizar a natureza subjetiva interna – definida como um irracional caotizado, que tende
a turvar a “verdade” do mundo, sendo essencialmente hostil à disciplina imposta pelo método
científico –; tal projeto pretende estudá-la através de métodos objetivos. Dito de outra forma, se
por um lado, a ciência moderna pressupõe sujeitos livres e diferenciados, senhores de fato e de
direito da natureza, por outro, procura conhecer e dominar a própria subjetividade, reduzindo e
mesmo eliminando as diferenças individuais (Figueiredo, 1999, p.19).
Como efeito dessa contradição, o sujeito moderno, objeto dessa ciência, é atravessado por
uma seqüência de rupturas – a afetividade, a sensibilidade, a intuição, a invenção, a vivência pré-
reflexiva conflitam com a razão instrumental; ao mesmo tempo que, “a própria razão se distende
em discursos de suspeita, buscando identificar e retirar dos discursos com aspirações racionais os
resquícios da subjetividade cada vez mais dissimulados” (Vasconcelos, 2003, p.13).
Desse modo, a Psicologia, enquanto “ciência natural do subjetivo” – fruto da hegemonia do
paradigma positivista de ciência, bem como da ideologia liberal – acaba por legitimar uma certa
idéia de subjetividade. Trata-se de uma subjetividade natural, privatizada, constituída de maneira
individual no enfrentamento da realidade, uma subjetividade que é pensada de forma
descontextualizada, sendo as influências da sociedade sobre a mesma, reduzidas a meros
obstáculos ao desenvolvimento de capacidades que são inerentes ao sujeito, restringindo, assim,
os fenômenos coletivos a individuais.
37
É assim que, de acordo com Kastrup (1999, p. 31-32), a edificação de uma ciência
psicológica encontra-se situada na tradição da “analítica da verdade”. Primeiro, porque ela se
fundamenta no discurso da ciência e dos erros cognitivos residuais que são revelados por este
discurso; segundo, porque sendo influenciada pelo paradigma positivista, ela se atém às
condições invariantes da cognição sob a forma de leis científicas. Em outras palavras, a ciência
psicológica busca o que a cognição possui da ordem da repetição e da necessidade. A
conseqüência disso, segundo Kastrup (ibidem), é a exclusão da temática da invenção, da criação,
do campo de estudo da Psicologia.
Desta forma, entende-se, portanto, como a Psicologia, unindo-se à Psiquiatria na construção
de uma clínica do que hoje se denomina saúde mental, apresenta uma forte tendência à repetição
de práticas, sustentadas por leis gerais e invariantes inspiradas no paradigma da ciência moderna.
Esta clínica, por sua vez, tem como objeto a “doença privada” de um sujeito, que se encontra tão
reduzido e estático como a própria prática desta clínica.
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4 – A Clínica na Reforma Psiquiátrica e a Construção de um Novo Paradigma
Pode-se dizer que a reconstrução do conceito de clínica e de sua prática vem sendo uma
das maiores preocupações da Reforma Psiquiátrica. Fica claro, por sua vez, que para que a
relação técnico-instituição-sujeito não seja a reprodução daquela clínica da medicina naturalista,
é necessário tomar como fundamento novos paradigmas centrados no cuidado e na cidadania,
diferente do da ciência clássica, baseado no positivismo. Dessa forma, a garantia para uma
clínica reinventada que promova a construção de possibilidades, a construção de subjetividades,
que permita a possibilidade de ocupar-se de sujeitos com sofrimento, e de responsabilizar-se
pelos mesmos, passaria por um rompimento com o modelo de clínica como sinônimo de
normalização e disciplinarização.
Uma clínica dinâmica entendida como uma experiência complexa de acolhimento do outro
e de produção de desvio ou desinstitucionalização da doença metal, que acompanha o bifurcar de
um processo de vida na criação de novos territórios existenciais, no entanto, precisa de
paradigmas que dêem conta de suas pretensões. A partir destes, de novos modos de conceber o
mundo, a clínica de saúde mental é capaz de construir para si um novo objeto, além de
potencializar a criação de formas instituintes de relação.
De acordo com Mangueira e Escóssia (no prelo), pensar, produzir conhecimentos e práticas
para além do paradigma da ciência moderna tem se apresentado como desafio para pesquisadores
de várias áreas, desde a metade do século XX. Como conseqüência disso, tem-se a elaboração de
novas teorias e conceitos que, ao parir da diversidade e complexidade do mundo e dos fatos
sociais, “operam entre saberes e práticas, entre as dimensões da realidade, entre sujeitos e
objetos, historicamente separados em pólos opostos e excludentes” (p.2).
Nesse sentido, então, se faz necessário desfazer-se de referências e metáforas científicas
para forjar novos paradigmas de inspiração ético-estético-política que pensem as relações
homem/ mundo de forma diferente. Guattari (1999), dentre outros, chama atenção para essa ação
e é através dos argumentos e propostas de seu livro “As Três Ecologias” que aqui serão expostas
algumas de suas idéias.
Antes de tudo, faz-se necessário esclarecer a expressão “produção de subjetividade”. Como
explica novamente Mangueira e Escóssia (no prelo), citando Deleuze e Guattari (1976, 1992,
1996), os processos de subjetividade designam a operação pela qual os indivíduos ou as
comunidades se constituem como sujeitos. Há uma multiplicidade de fatores que são passíveis de
serem definidos como “dimensões constitutivas da subjetividade”. De forma oposta à noção
clássica de sujeito – mônada fechada e isolada do/ para o mundo, um dado anterior e imutável –,
a subjetividade é um efeito de um campo de produção (ou campo de subjetivação). Tal campo é
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“heterogêneo, constituído por saberes, crenças e coisas, por elementos que são vetores de
subjetivação” (p.2). Assim, família, educação, economia, religião, funcionam como vetores,
concebidos em sua processualidade.
Uma vez entendido o conceito de subjetividade, compreende-se como Guattari (1999)
associa a época contemporânea, exacerbadora de produção de bens materiais e imateriais, em
detrimento da consistência de territórios existenciais individuais e de grupo, como engendradora
de um imenso vazio na subjetividade, que tende a se tornar cada vez mais absurda e sem
recursos. Paralelamente, em nome do primado das infra-estruturas, das estruturas ou dos
sistemas, pode-se dizer que a subjetividade perde sua importância, e aqueles que dela se ocupam
na prática ou na teoria, em geral, só a abordam cheios de precauções, cuidando para não afastá-la
dos paradigmas pseudo-científicos das ciências duras. Assim:
Tudo se passa como se um superego cientista exigisse reificar as entidades psíquicas e impusesse que só fossem apreendidas através de coordenadas extrínsecas. Em tais condições, não é de se espantar que as ciências humanas e as ciências sociais tenham se condenado por si mesmas a deixar escapar as dimensões intrinsecamente evolutivas, criativas e autoposicionantes dos processos de subjetivação (Ibdem, p.18).
Em tais condições, a subjetividade acaba por ser sufocada, “a alteridade tende a perder sua
aspereza” (Ibidem, p. 8). É assim que as relações da humanidade com o socius, com a psique e
com a natureza tendem a se deteriorar cada vez mais, não só por causa de nocividades e
poluições objetivas, como também por um desconhecimento e de uma passividade fatalista dos
indivíduos e dos poderes com relação a essas questões consideradas em sua totalidade.
Diante deste conjunto de fatores, Guattari (Ibidem) propõe uma recomposição das práticas
sociais e individuais, através da articulação ético-estético-política entre três registros
ecológicos11, quais sejam, o meio-ambiente, as relações sociais e a subjetividade humana. De
acordo com o mesmo autor, é importante que no estabelecimento dos pontos de referência
cartográficos12 dessas três ecologias esteja implicada uma lógica das intensidades. Em vez de
limitar muito bem seus objetos, tal lógica considera apenas o movimento, a intensidade dos
processos evolutivos. Tais processos, contrários à idéia de sistema ou estrutura, visam:
11 A ecologia ambiental parte do princípio de que tudo é possível, tanto as piores catástrofes, quanto as evoluções flexíveis. Defende a idéias de que cada vez mais os equilíbrios naturais dependerão das intervenções humanas. Já a ecologia social, consiste em desenvolver práticas específicas que tendam a modificar e a reinventar maneiras de ser no seio da família, do contexto urbano, do trabalho etc., reconstruindo as relações humanas em todos os níveis do socius. Por fim, a ecologia mental tem a incumbência de re-inventar a relação do sujeito com o corpo, com o inconsciente, com o tempo que passa, com os mistérios da vida e da morte. Sua maneira de operar aproxima-se mais daquela do artista do que a dos profissionais “psi” (Guattari, 1999). 12 “A cartografia é um desenho que acompanha os movimentos de transformação de uma paisagem. Neste sentido, ela é sempre provisória e singular. (...) O cartógrafo é aquele que quer envolver-se com o traçar, quer navegar no movimento, quer misturar-se com os acontecimentos, quer compor territórios que não sejam fixos por muito tempo, já que o movimento não cessa” (Galletti, 2004, p.18).
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A existência em vias de, ao mesmo tempo, se constituir, se definir e se desterritorializar. Esses processos de “pôr a ser” dizem respeito apenas a certos subconjuntos expressivos que romperam com seus encaixes totalizantes e se puseram a trabalhar por conta própria e subjugar seus conjuntos referenciais para se manifestar a título de indícios existenciais, de linha de fuga processual (Ibidem, p.28).
A articulação das práticas ecológicas tem o objetivo de tornar processualmente ativas
singularidades isoladas, recalcadas, que giram em torno de si mesmas; fomentar a criação nas
pessoas. Para tanto, inspira-se em paradigmas ético-estético-políticos, que deslocam, segundo
afirma Neves et al. (1996, p.179), visões planificadas e burocratizadas, requisitando de todos que
trabalham com a produção de subjetividade o contato com regiões de inquietude, a vontade de
criação, a afirmação das diferenças, o compromisso político de resistência às unificações e
totalizações.
Éticos, por fomentarem o desejo pela diferença, além da responsabilidade e do
engajamento não somente dos operadores “psi”, mas de todos aqueles que estão em posição de
intervir nas instâncias individuais e coletivas (seja por meio da educação, saúde, cultura, esporte,
arte, mídia etc). Ressalta-se ainda que é eticamente insustentável se abrigar atrás uma
neutralidade fundada pretensamente sob o controle do inconsciente e um conjunto de métodos
científicos.
Já os paradigmas estéticos, sublinham a importância da criação de novos processos de
subjetivação. Assim, é preciso, aqui especificamente nas práticas “psi”, que tudo seja sempre
reinventado, retornado do zero. Do contrário, os processos se congelariam numa fatal repetição.
Neste sentido, caberia a cada instituição de atendimento médico, de assistência, de educação,
cada tratamento individual, ter como permanente preocupação fazer evoluir sua prática assim
como sua teoria, considerando que:
Os agenciamentos subjetivos individuais e coletivos são potencialmente capazes de desenvolver e proliferar longe de equilíbrios ordinários. Suas categorias analíticas transbordam os territórios existenciais aos quais são ligadas. Com tais cartografias deveria suceder como na pintura ou na literatura, domínios no seio dos quais cada desempenho concreto tem a vocação de evoluir, inovar, inaugurar aberturas prospectivas, sem que seus autores possam se fazer de fundamentos teóricos assegurados pela autoridade de um grupo [...] (Guattari, 1999, p.22).
Por fim, os paradigmas políticos chamam atenção para a necessidade de se estar implicado,
assumindo compromissos e riscos. Além disso, sublinha-se a importância de experiências de
crítica e análise das formas instituídas, a fim de fomentar a produção de diferença entre os
sujeitos, devolvendo-os a um plano de produção que é o plano do coletivo.
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Diante dessas explicações, fica claro como fundamentar a prática e a teoria da clínica de
saúde mental em um paradigma diferente do da ciência clássica – que considera a natureza
passiva e mecânica e o homem, separado dela, o ser ativo capaz de explicar suas leis gerais –
pode fazer uma grande diferença. Isso porque segundo Prigogine e Stengers (1984), como uma
nova aliança entre o homem e a natureza, entre o sujeito e o objeto, começa a ser forjada, a
explicação dos fenômenos naturais, bem como das relações humanas, pode basear-se na
complexidade e multiplicidade da natureza e das relações humanas, em suas diversidades
qualitativas, em processos irreversíveis, em processos de organização do conhecimento em rede,
em influências da filosofia e da arte etc.
Uma clínica reformada precisa, além de um novo paradigma, de uma concepção de
saúde/doença diferente do da clínica clássica. Nesta direção, a saúde é aqui entendida como um
processo de produção, que lhe confere um caráter histórico e coletivo, capaz de entender o
sujeito como bio-psico-socio-cultural.
Vale ressaltar ainda que o entendimento da saúde como processo de produção, implica
concebê-la não em oposição à doença. De acordo com Escóssia e Mangueira (no prelo), citando
Canguilhem (1978) e Nietzsche (1987), não cabe á saúde ser definida como ausência de doença,
mas sim como um “processo no qual saúde pressupõe doença, através de um confronto e
superação das tendências mórbidas, ou seja, um processo que inclui a superação de estados de
crise” (p.3). Não existiria, portanto, indivíduos em estado de equilíbrio perfeito (a ausência plena
de doença, como afirma Canguilhem (1978), situa-se no campo da patologia e não da saúde),
visto que os organismos estão a todo tempo sendo bombardeados por diversas forças geradoras
de crise.
A saúde seria definida, então, como a capacidade normativa da vida. Em outras palavras,
trata-se da capacidade do organismo de enfrentar as crises a fim de se instaurar uma nova ordem,
novas normas. Nesta mesma direção, Nietzsche (1987 apud Escóssia e Mangueira, no prelo, p.4),
define saúde como a “capacidade plástica dos corpos individuados (biológico, psíquico ou
comunitário) de habitar a multiplicidade, lançando-se no ensaio, na aventura de sua
autoprodução”.
Por fim, entender a saúde como processo de produção implica, necessariamente, entendê-la
como uma experiência que traz consigo uma multiplicidade de determinantes, sendo, portanto,
impossível reduzi-la ao binômio queixa/ conduta, originário do paradigma da ciência clássica,
que traz a dualidade cartesiana da causa-efeito como um de seus pressupostos. Assim, pode-se
definir a saúde ainda como um fenômeno coletivo, decorrente de um plano de forças,
agenciamentos, relações e cruzamentos. É neste plano que acontecem os processos de criação de
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novas formas de vida. Portanto, chama-se atenção para o fato de que o processo de produção de
saúde está intrinsecamente relacionado com o de produção de subjetividade.
43
5 – Clínica na Reforma Psiquiátrica: Clínica Ampliada e “Clínica da Criação”
5.1) Clínica na Reforma Psiquiátrica: Clínica Ampliada
A clínica na Reforma Psiquiátrica, como o próprio nome sugere, só pode ser compreendida
na medida em que os princípios desta Reforma estiverem bem esclarecidos. No capítulo sobre a
“História da Loucura, Surgimento da Psiquiatria e Reformas Psiquiátricas”, mas especificamente
na seção em que a proposta da desinstitucionalização de Basaglia foi estruturada, tais princípios
foram brevemente apresentados. Aqui, completando o trabalho já iniciado, serão esclarecidos
novos conceitos relacionados à Reforma Psiquiátrica para, então, se discorrer sobre a clínica na
Reforma Psiquiátrica como sinônima de uma clínica ampliada.
Como bem explicita Amarante (2003), a Reforma Psiquiátrica não deve ser entendida
como uma mera reforma administrativa ou técnica do modelo assistencial psiquiátrico. Não se
trata de transformações superestruturais, superficiais, sem consistência ou profundidade.
Inclusive esse autor defende a utilização do termo “revolução” como sendo mais adequado que
“reforma”. Respalda essa idéia citando Thomas Kuhn (1975), que utilizou o termo para expressar
uma transformação paradigmática; e Felix Guattari (1989), que o utilizou para expressar uma
transformação radical do saber e da prática psiquiátrica.
Essa reforma com caráter de revolução, tal como explicado anteriormente, baseia-se no
princípio defendido por Basaglia da desinstitucionalização do saber, prática e sistemas que foram
construídos ao redor da Psiquiatria. A desinstitucionalização pode ser entendida como um
processo prático de desconstrução e, simultaneamente, um processo de invenção de novas
realidades. Quando se pensa na desconstrução da Psiquiatria, pensa-se, como aponta Amarante
(ibidem), na desconstrução de uma conjunção de diferentes, porém interligadas dimensões:
teórico-conceitual, técnico-assistencial, jurídico-política e sociocultural.
A dimensão teórico-conceitual diz respeito ao conjunto de questões relacionadas ao campo
da produção dos saberes que embasa e autoriza o saber/ fazer médico-psiquiátrico. Dessas
questões, destacam-se conceitos ligados tanto ao campo da ciência como um todo – “verdade”,
“neutralidade” etc. –, como específicos da psiquiatria – “doença mental”, “normal/ patológico”,
“cura” etc. Assim, quando se afirma que a desinstitucionalização possui uma dimensão teórico-
conceitual, entende-se que através desta se pretende uma (des)construção de conceitos. Neste
sentido, chama-se atenção para a construção de um novo objeto, compatível com uma clínica da
Reforma Psiquiátrica.
Dessa forma, como mencionado, a partir do projeto de desinstitucionalização de Basaglia,
inicia-se a proposta de colocar a doença entre parênteses para favorecer a manifestação da real
44
existência da pessoa aos olhos de uma clínica em Saúde Mental diferente, mais participante. É
nesse sentido que Rotelli (1990, p.30) sugere um novo objeto para a Psiquiatria, qual seja, a
“existência-sofrimento dos pacientes e sua relação com o corpo social”. E também é nessa
direção que Campos (2003, p.56-57) defende uma clínica centrada no Sujeito em seu contexto,
na pessoa real, em sua existência concreta, também considerando a doença como parte dessa
existência.
O projeto de desinstitucionalização coincide, assim, com a reconstrução da complexidade
do objeto que as antigas instituições haviam simplificado. Aqui, a complexidade opõe-se à
naturalização/ objetualização da noção de doença, que passa a ser designada como processo
saúde/ enfermidade, como explicado no capítulo anterior. Stengers (1990, p.151 apud Amarante
2003, p. 53-54) afirma que a noção de complexidade vai de encontro ao paradigma da ciência
clássica e aponta para “a necessidade eventual de inventar novos tipos de problematização, que o
operador não autorizava”. Em tais condições, a complexidade atende ao desafio de resgatar a
singularidade da relação entre sujeito e objeto sem que isso signifique o conhecimento do objeto
em sua “verdade”.
Dentro dessa perspectiva, faz-se necessário uma superação do especialismo dos saberes,
bem como da hegemonia da ciência na apreensão do real. Diante de tal desafio, o conceito de
transdisciplinaridade surge com fundamental importância para se pensar uma clínica em Saúde
Mental reformada. Neves et al. (1996, p. 178) explica que a proposta da transdisciplinaridade é
de desnaturalizar cada disciplina, problematizando sua história, os recortes que imprime nas
práticas e como constrói seus objetos. Assim, procura-se colocar em análise os limites entre as
disciplinas a fim de que essas fronteiras se tornem instáveis, permitindo a produção de um
regime discursivo híbrido.
Entende-se, então, como através da complexificação do objeto da clínica, bem como da
superação do especialismo em busca da transdisciplinaridade, a dimensão teórico-conceitual da
desinstitucionalização proposta pela Reforma Psiquiátrica pode funcionar como um instrumento
tecnológico-político de intervenção que opere entre os limites da teoria e da prática, assim como
entre o sujeito e o objeto.
Se o objeto muda, as antigas instituições precisam ser demolidas para que novas possam
ser construídas à altura do objeto, que não está mais em equilíbrio, mas está por definição. É
nesse sentido que se defende a construção de um modelo assistencial que não esteja baseado na
concepção da loucura como uma incapacidade da Razão. A dimensão técnico-assistencial da
desinstitucionalização, então, diz respeito a desconstrução de um modelo assistencial
psiquiátrico manicomial calcado na vigilância, na disciplina, na custódia, na tutela e no
isolamento.
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Através da dimensão jurídico-política pretende-se “rediscutir e redefinir as relações sociais
e civis em termos de cidadania, de direitos humanos e sociais” (Amarante, 2003, p. 52-53).
Dessa maneira, problematiza-se o fato da Psiquiatria ter desenvolvido uma teoria/ prática que
constrói uma co-relação entre loucura e periculosidade, irracionalidade, irresponsabilidade civil e
incapacidade.
Faz-se necessário, então, a transformação do “lugar social” da loucura, a fim de que se
possa desconstruir a ideologia psiquiátrica que relaciona a loucura à incapacidade do sujeito de
estabelecer trocas sociais e simbólicas (Ibidem). Uma última dimensão da desinstitucionalização
– a dimensão sociocultural – almejaria, portanto, uma concepção nova da loucura no imaginário
social.
Uma vez entendido que a proposta da Reforma Psiquiátrica acontece através do projeto de
desinstitucionalização e que esta envolve diversos aspectos (teórico-conceitual, técnico-
assistencial, jurídico-político e sócio-cultural), e deixada clara a importância de um paradigma
ético-estético-político para fundamentar a relação do homem com o mundo, pretende-se aqui,
diante deste contexto, caracterizar a clínica da Reforma Psiquiátrica, destacando suas pretensões.
Ao contrário do que afirmam alguns autores, em sua proposta de desinstitucionalização
Basaglia não descuidou da clínica. Preocupando-se com os sujeitos de forma concreta, pensou
uma outra forma de pensar e fazer a clínica. A essa proposta foram acrescidas outras afins,
fundamentadas na experiência de atores que participaram (e participam) do movimento de
Reforma Psiquiátrica.
Diante desse contexto, o objeto da clínica de saúde mental pôde ampliar-se. Abandona-se o
enfoque desequilibrado no aspecto biológico e se considera a dimensão subjetiva e social das
pessoas. Como explica Rotelli (2001, p.97), rompe-se com o modelo bio-médico e com o
psicológico, herdeiro dos mesmos vícios, para se investir no território das “engenharias sociais”
como motores de sociabilidade e produtores de sentido.
Diante dessa configuração, para dar conta desse novo objeto, a clínica da saúde mental só
tem sentido caso possa ampliar-se também. Como fazer isso? Antes de tudo, alguns pré-
requisitos são necessários. Os saberes e práticas dessa clínica precisariam desvincular-se do
paradigma mecanicista a fim de firmar-se em paradigmas étco-estético-políticos13. A ênfase
dessa clínica privilegiaria a pessoa por inteira e não fragmentada em partes, que apenas
teoricamente guardariam alguma noção de interdependência. Além disso, a abordagem
13 Essa proposta pode ser melhor entendida através das discussões dos capítulos “A Clínica da Psiquiatria Clássica e o Paradigma Científico da Modernidade” e “A Clínica da Reforma Psiquiátrica e a Construção de um Novo Paradigma”.
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terapêutica dessa clínica deixaria de se voltar para a noção de cura para fomentar a produção de
subjetividade e de saúde.
De forma geral, uma clínica é considerada ampliada na medida em que considera como
importantes os diversos planos constituintes da vida. É, portanto, uma proposta ética, já que
valoriza a vida em sua pluralidade. Operacionalizando melhor esse conceito, de acordo com a
cartilha da Política Nacional de Humanização (PNH) sobre Clínica Ampliada (Brasil, 2004b), tal
clínica é entendida como:
Um compromisso radical com o sujeito doente visto de modo singular; assumir a responsabilidade sobre os usuários dos serviços de saúde; buscar ajuda em outros setores [...]; assumir um compromisso ético profundo.
Diante dessa definição, faz-se necessário colocar em análise alguns pontos, trazendo-os
para perto do âmbito da Saúde Mental. Inicialmente, interessa aqui esclarecer qual o significado
de singularidade. Para tanto, serão utilizadas aqui as palavras de Lobosque (1997 p.22-23).
Segundo este autor, a singularidade não pode ser confundida com o privado nem com o
individual. O sujeito não é único nem igual a si mesmo. O singular de cada pessoa não reside em
alguma unidade suposta, mas numa discordância fundamental, naquilo que é diferente. Cabe à
clínica, portanto, a função de interpelar tal singularidade, convidando o sujeito a sustentá-la com
o estilo que é seu, sustentar sua diferença, sem precisar excluir-se do social.
Vale notar que esse sujeito singular não está em oposição ao coletivo, nem ao mundo.
Sujeito e mundo se co-engendram participando de um mesmo processo de produção que é
sempre da ordem do coletivo e territorial. Passos (2005) explica muito bem isso. Para este,
atualmente, as pessoas vivem em um “mundo marcado por uma forma de integração dos
processos de produção própria do capitalismo globalizado que se estende em rede” (p.2). É difícil
não se deixar capturar por estas redes do contemporâneo. Daí a necessidade de se construir redes
de resistência que não sejam homogeneizantes, mas redes sintonizadas com a vida, redes
autopoiéticas.
Seguindo o raciocínio desse autor (Ibidem), o capitalismo inventou formas diferentes de
asilar, de enclausurar a céu aberto. Diante desse fato, não basta apenas derrubar os muros do
manicômio. O que se espera, então, da clínica de saúde mental nesse contexto? Antes de tudo, é
preciso romper com a separação realizada entre produção e produto, entre processo de
subjetivação e sujeito.
Para tanto, a clínica que se diz reformada precisa ter como objetivo a devolução do sujeito
ao plano da subjetivação, ao plano coletivo de produção. Tanto Passos (Ibdem) como Barros
(2003, p.3) definem o coletivo como o plano de produção de subjetividade formado por
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diferentes elementos – família, trabalho, meios de comunicação, cidade etc. É o plano das forças
ou vetores de subjetivação. Nele se lida com o que não é de ninguém, não há propriedade
particular, pessoalidades. No coletivo se lida com forças e não com formas, com processos e não
com estados. Tais forças e processos estão espalhados por toda sociedade. Em tais condições, os
autores citados entendem que é no plano do coletivo que acontece a experiência da clínica
ampliada ou psicossocial.
Uma vez entendido o objetivo da clínica ampliada de devolver o sujeito ao plano da
produção – o plano do coletivo –, compreende-se, então, como a clínica de saúde mental, sendo
uma clínica ampliada, pode ser caracterizada também como uma clínica-política.
Em um âmbito micropolítico, a clínica de saúde mental se relaciona com a produção de
modos de criação de si e do mundo implicados com a análise e a crítica das formas instituídas. É
caracterizada como um processo e está situada num plano onde circulam forças, vetores de
subjetivação. Daí a Reforma Psiquiátrica ser caracterizada como um movimento, como algo,
portanto, processual.
A clínica reformada pode ser também definida num âmbito macropolítico na medida em
que produz princípios, diretrizes e ações explícitos, referendados, que se institucionalizam. No
contexto da Reforma Psiquiátrica, como exemplo da instância macropolítica da clínica estão as
mudanças legislativas da lei Paulo Delgado, que culminaram com intervenções realizadas em
antigos asilos psiquiátricos.
Micropolítica e macropolítica, instituinte e instituído. Essas dimensões se revezam a todo
tempo numa clínica-política. É assim que, como destaca Passos (2005), no cotidiano dos serviços
substitutivos14, se fomenta diferentes modos de produção:
Não só modos de produção de bens de consumo como nas oficinas de geração de renda, mas também e, sobretudo, modos de produção da experiência coletiva (as assembléias, as associações, os grupos terapêuticos), modos de produção de outras relações da loucura com a cidade (o AT, os dispositivos residenciais, a luta pelo passe livre), modos de produção de outras formas de expressão da loucura (as oficinas expressivas, as rádios e tvs comunitárias), modos de criação de si e do mundo que não podem se realizar sem o risco constante da experiência de crise.
Como explicado, uma vez que a clínica de saúde mental torna-se ampliada e com o objetivo
de devolver o sujeito ao plano do coletivo, compreende-se melhor o que Lobosque (1997, p.27)
chamou de “princípio da articulação”. Nessa direção, Passos e Pitombo (2003) explicam que a
política, a cidade, as instituições asilares, a família etc. não são elementos exteriores ao domínio
14 Como os serviços substitutivos ao modelo manicomial (CAPS/ NAPS) são, de acordo com a lei 10.216/2001, os principais locais definidos para o cuidado de pessoas acometidas por transtornos mentais, bem como os ordenadores da rede de saúde mental; a partir daqui a clínica da Reforma Psiquiátrica será definida relacionada ao contexto dos CAPS’s, local privilegiado para sua efetivação.
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da clínica. Em vez disso, a clínica na Reforma Psiquiátrica muda de lugar, habitando agora o
limite com seu fora. Nessa direção, Lobosque (1997, p.24) chama atenção para importância da
clínica antimanicomial, habitando estes limites, estabelecer parcerias articulando-se com outros
segmentos, que também buscam uma posição de combate aos diversos dispositivos de exclusão,
que possuem uma posição política em prol da cidadania.
Daí então o CAPS ser um dispositivo – articulado à rede de serviço de saúde e a outras
redes sociais, de outros setores afins – capaz de fazer face à complexidade das demandas
daqueles que estão excluídos da sociedade por transtornos mentais. Neste sentido, o CAPS deve
assumir um papel estratégico na articulação e no tecimento dessas redes, tanto cumprindo suas
funções na rede de serviços de saúde, quanto na promoção da vida comunitária e na autonomia
dos usuários, articulando recursos existentes em outras redes: sócio-sanitárias, jurídicas,
cooperativas de trabalho, escolas, empresas etc.
Como incidência do “princípio da articulação”, por sua vez, está a necessidade da
construção de uma clínica transdisciplinar, como mencionado no início deste capítulo. Nesta
clínica, de acordo com Neves et al. (1996, p.183-184), os saberes não adquirem seu valor a partir
da filiação a um autor ou a determinadas instituições. O único princípio norteador da clínica
transdisciplinar é que os saberes e práticas indissociáveis, construídos através de articulações
com diferentes disciplinas, possam produzir acontecimentos, transformações, movimentos de
ruptura e afirmação da vida, daí a afirmação de que tal clínica é uma “clínica da criação”.
A partir da caracterização da clínica na Reforma Psiquiátrica como sendo uma clínica
ampliada, militante e transdisciplinar, compreende-se como a inclusão de novos elementos
(sociais, políticos etc) nessa clínica é capaz de impeli-la a habitar seus limites, levando-a a
experimentar uma crise15, que implica um processo de diferenciação. Interessante notar que a
diferenciação, como aponta Passos e Pitombo (2003), é uma das características fundamentais dos
novos serviços substitutivos ao manicômio. É neste sentido que diante da construção de uma
clínica reformada, segundo esses autores:
O momento atual é o de afirmar o caráter experimental /processual da clínica em sua positividade, considerando tal positividade também como própria dos novos locais de cuidados, comprometidos com a criação de possibilidades outras para a vida não só de pacientes, técnicos e familiares mas, principalmente, para a vida nas próprias comunidades (Ibidem, p.7).
A partir de tais conclusões, pretende-se aqui analisar a relação da clínica de saúde mental
com a noção de criação. Depois disso, serão destacadas algumas dificuldades na construção de
uma “clínica da invenção”, e apontadas algumas estratégias diante de tais dificuldades.
15 Crise aqui tem o sentido de argüição crítica do que está instituído, desestabilização da forma.
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5.2) Clínica na Reforma Psiquiátrica: “Clínica da Criação”
A partir do entendimento de que a clínica de saúde mental pretende-se ampliada, de forma
a considerar todos os planos que constituem a vida, surgem aqui outras questões. A clínica
surgida no bojo da Reforma Psiquiátrica é uma “clínica da criação”? O que se entende por
criação neste trabalho? Quem produz diferença, quem cria? Como isso acontece?
Essas questões serão problematizadas aqui sem, no entanto, a pretensão de esgotá-las. Já foi
explicado que a reinvenção da clínica passa necessariamente por uma redefinição do paradigma
que a fundamentava (e a fundamenta) – o paradigma científico da modernidade passa a dar lugar
a paradigmas ético-estético-políticos. Quando se afirma, então, que clínica e criação se
relacionam, na verdade atualiza-se a dimensão estética de tal paradigma, que traz como desafio a
produção de agenciamentos, no sentido da criação de novos processos de subjetivação. Neste
sentido, segundo Rauter (1993), assim como no processo de criação artística, a clínica tem o
papel de produzir mutações no campo da subjetividade, de construir outros modos de vida.
De forma geral, a partir da explicação acima, a relação entre clínica e criação pode ser
compreendida. No entanto, é necessário esclarecer alguns pontos importantes. Inicialmente será
analisado o significado do termo criação. Para tanto, será utilizado como referência o artigo de
Dias (2004): “A vida como vontade criadora: por uma visão trágica da existência”.
Fundamentando suas idéias na obra de Nietzsche, esta autora afirma que criar é a atividade a
partir da qual se produz constantemente a vida.
Assim como os artistas, Nietzsche se apodera da palavra criação para designar um tipo de
fazer que não se esgota em um ato único, nem em vários atos, mas vai além dessa atitude. O ato
de criar não é um mero fazer prático relacionado ao terreno da utilidade, ou a um ato particular.
Em vez disso, criar é uma atividade constante e ininterrupta que está sempre efetivando novas
possibilidades de vida. Nesse sentido, para Nietzsche (2001 apud Dias, 2004, p. 134), criar: “é
vontade de vir-a-ser, crescer, dar forma, isto é, criar e no criar está incluído o destruir”. Dias
(2004, p. 134) continua: “criar é colocar a realidade como devir [...]. Criar não é buscar, não é
buscar um lugar ao sol, mas inventar um sol próprio”.
Sob essa perspectiva, acrescenta-se ainda que o ato criador é doador. Como não se fecha
sobre si mesmo, não guarda para si o que cria, nem cria com uma razão para criar, é um ato que
presenteia porque ama o que cria. Corroborando com essa idéia, fazendo menção ao pensamento
de Nietzsche, Pelbart (2000, p. 67) diz também que o homem cria quando ama. As coisas
acontecem na paixão, na crença desmedida, na sombra, segundo uma perspectiva interessada,
amante, instintiva.
50
Continuando, para que aconteça uma ação criadora assim descrita, é indispensável uma
condição de “embriaguez”. Esta pode ser entendida como um estado de plenitude produzido por
uma tensão de forças que cresce sem cessar, gerando uma superabundância de vida, que explode
em ações. Através da embriaguez, as pessoas são capazes de transfigurar as coisas, de se
elaborarem através da imaginação, até que reflitam sobre sua própria plenitude e próprio prazer
de viver. Dito de outra forma:
O fundamental para que haja criação é sempre um fenômeno de plenitude inicial. Sob a influência desses estados de embriaguez, de plenitude, que correspondem a um acréscimo de força, a um aumento de potência, abandonam-se as coisas e se lhes emprestam a nossa plenitude. Na presença de certas atitudes, certas situações, certos acontecimentos, que nos afetam a ponto de nos mover a transfigurar as coisas, nos desembaraçamos de nós mesmos por sinais e atitudes. Diante desse estado, é impossível manter-se objetivo; não há como inibir esse estado explosivo, não há como suspender essa força que interpreta e inventa. No momento que se sente tocado por algo, e o ser animal responde a essa provocação, produz-se o estado estético – o estado em que se configuram as coisas (Dias, 2004, p.134).
Diante do conceito de Nietzsche de vida como sinônimo de vontade criadora (ou vontade
de potência), entende-se como as forças criadoras, capazes de predominar sobre as forças de
adaptação e conservação, impedem a existência de fixar-se, tornando-a constantemente auto-
inventora. Compreende-se, então, que tudo está ainda por se fazer, não há começo nem fim nas
coisas, tudo está sujeito às leis da destruição.
Já que a realidade do devir é a única realidade, pretende-se aqui libertar o futuro, muitas
vezes paralisado no passado continuamente repetido. Daí, então, a afirmação de Nietzsche (2001
apud Dias 2004, p.143) de que os criadores são aqueles que se tornam eles mesmos o presente. A
vontade de crescer, de dar forma, de devir, que é intrínseca à vontade criadora, precisa do
presente, do inesperado, do acaso. É assim que a ação criadora intervém no presente, modifica o
futuro e recria o passado.
Uma vez que o significado do termo criação tenha sido entendido de acordo com a
concepção de Nietzsche de vida como vontade criadora, fica mais fácil entender a relação entre
clínica e criação. Como mencionado anteriormente, a clínica na Reforma Psiquiátrica, por ser
ampliada e transdisciplinar, acaba por habitar seus limites e, como conseqüência disso, vive um
processo constante de diferenciação. Este processo, por sua vez, potencializa a criação de formas
instituintes de relação entre os envolvidos no processo da clínica – usuários, profissionais de
saúde, familiares etc.
Dessa forma, a clínica de saúde mental pode ser entendida como uma “clínica da criação”
por dois motivos. Primeiro, porque ela mesma está submetida a um processo de diferenciação,
em que as formas instituídas que a compõem são analisadas e criticadas, gerando, quando
51
necessário, uma desestabilização dessas formas através de forças instituintes. Assim, a clínica é
capaz de criar para si novas práticas – formas diferentes de organização de seu trabalho e de
cuidado com os usuários – e novos saberes. Segundo, porque também potencializa novas
possibilidades de vida – criação – naqueles que participam deste processo16.
Respaldando a idéia de “clínica da criação”, destaca-se o fato de que a clínica reformada
não se reduz ao movimento de inclinar-se sobre o leito do doente (sentido epistemológico da
palavra derivada do grego klinikos), tal como a clínica clássica. O ato clínico é entendido como
mais do que essa atitude de acolhimento de quem demanda tratamento, é concebido também
como produção de um desvio (clinamen). Como explica Passos (2005), essa diferenciação, de
acordo com a filosofia atomista de Epicuro, designa o desvio que permite aos átomos ao caírem
no vazio em decorrência do seu peso e de sua velocidade, chocarem-se, articulando-se na
composição das coisas. A cosmogonia epicurista atribui a esses pequenos movimentos de desvio
a potência de geração do mundo. De forma análoga, é na afirmação desse desvio (clinamen) que
a clínica se faz.
Como produzir esse desvio? Como fomentar uma clínica preocupada com a criação de
novas maneiras de viver? Uma clínica liberta de categorias universais modeladoras?
O homem moderno vive uma intensificação das vivências de ruptura e de diversidade.
Vive num mundo que cada vez mais aumenta o contato com os estranhos-em-nós, com o não ser.
Como explica Berman (1986), diante do terror da desorientação e desintegração, da vida que se
despedaça, da ruptura de sentido, existe no homem a busca de uma grande estabilidade, da
manutenção do igual. Como conseqüência disso, as singularidades em sua multiplicidade são
abafadas, os fluxos desejantes são desterritorializados diante de processos de codificação
extremamente endurecidos. Neste contexto, voltando os olhos especificamente para uma clínica
de saúde mental, Barros (2003, p.2) aponta uma dúvida: como afirmar a loucura como modo de
subjetivação num mundo em que o assujeitamento é ‘a’ possibilidade colocada como viabilidade
do “existir”?
Diante dessas reflexões, Rauter (1993, p.115) chama atenção para a aproximação da clínica
com a arte (criação). Em ambas a produção de desvio, de novas formas de existência acontece,
na medida em que, os fluxos desterritorializados sejam capazes de produzir novos universos
existenciais dotados de consistência. Nas palavras de Massaro (1996, p.26), trata-se de através de
16 Vale ressaltar que esses dois sentidos para uma “clínica da criação” não estão separados. Ao contrário, fazem parte de um mesmo processo. Além disso, cabe destacar aqui, que quando se menciona como fazendo parte da prática da clínica, tanto o cuidado com o usuário propriamente dito, como a organização do processo de trabalho, também se reconhece essas duas atividades como inseparáveis. Nesse sentido, a assistência aos usuários de CAPS’s fica difícil de se realizar caso os profissionais não experimentem tanto a quebra de seus especialismos, como mais autonomia para participar do processo de afirmação da loucura como modo de subjetivação. Defende-se aqui que o profissional possa fazer parte da construção de seu trabalho de “clinicar”, que a atividade clínica seja inseparável de sua gestão.
52
um contato com os estranhos-em-nós, objetivar singularidades dispersas, culminando com um
ganho de subjetividades.
Vale lembrar, como mencionado anteriormente, que o plano de produção de subjetividade
é o plano do coletivo. É aí que acontece a criação de novas formas de vida. Uma clínica que
fomenta a produção de desvios, a afirmação da loucura como modo de subjetivação, deve criar,
segundo Barros (2003, p.4), “espaços coletivos para o enfrentamento da construção permanente
do Projeto CAPS”, o que pressupõe: a dimensão de equipe, a relação equipe/ técnico-usuário/
família; a inserção e legitimação do CAPS na rede de saúde e sua construção em base territorial;
além de se investir em redes de sociabilidade e redes urbanas17.
Uma “clínica da criação” é possível quando as pessoas envolvidas nesse processo são
capazes de reconhecer aquilo que as constituem e aquilo que constitui os demais a sua volta. O
grupo, concebido como dispositivo, é o espaço em que isso acontece, onde são criadas práticas
de devir-outro, de produção de si. Entende-se, portanto, o motivo dos CAPS funcionarem por
meio de tantas atividades grupais – oficinas, assembléias, grupos terapêuticos, reuniões de
equipe etc.
O grupo entendido como dispositivo funciona como catalisador existencial, capaz de
produzir focos mutantes de criação. De acordo com Barros (1993a, p. 151-152), “a noção de
dispositivo aponta para algo que faz funcionar, que aciona um processo de decomposição, que
produz novos acontecimentos, que acentua a polivocidade dos componentes de subjetivação”.
Num grupo-dispositivo pretende-se entrar em contato com a multiplicidade, a heterogeneidade e
a fragmentação. Dessa forma, almeja-se instaurar rupturas em tendências totalizadoras,
unificadoras e naturalizadoras. Isso tudo com a finalidade de acionar a capacidade do grupo,
enquanto dispositivo, de se transformar, de irromper em devires que desloquem as pessoas do
lugar privatista e intimista que foram colocadas como indivíduos, para que essas tenham a
possibilidade de vivenciar novos processos de singularização.
Explicando melhor, utilizando as palavras de Barros (1993b, p.188), em um trabalho
grupal são estabelecidas conexões entre pessoas diferentes, entre “modos de existencialização”
diferentes. Isto cria um vasto campo de confrontos, de interrogações. Quando são acionados pelo
dispositivo grupal, as falas rígidas, os afetos cristalizados em territórios fechados, se vêem na
adjacência de uma inquietação podendo, se intensificados, se deslocar do lugar naturalizado a
17 Barros (2003, p.4) propõe ainda, para a construção de uma clínica preocupada com a afirmação da diferença: a articulação do “saber sanitário” e do “saber clínico-institucional” e a afirmação do caráter indissociável entre mudanças de modelos de gestão, implementação do dispositivo-equipe e a transdisciplinaridade.
53
que estavam remetidas. O convívio com o outro18 pode disparar movimentos inesperados, já que
é o desconhecido que percorre as superfícies dos encontros.
Por fim, vale ressaltar que nem sempre a clínica de saúde mental está apta a criar novos
saberes e práticas, nem os usuários dos serviços substitutivos ao modelo manicomial têm a
possibilidade de inventar novas formas de existência para suas vidas. Por vezes, a clínica
cronifica-se. Isso acontece, segundo Barros (2003, p.5), quando seus fluxos param, quando as
explicações são naturalizadas, quando são usadas as mesmas saídas ou quando não se consegue
mais inventar novas perguntas.
Como explica a mesma autora (Ibidem), tal cronicidade pode ser identificada em diferentes
situações. Destaca-se aqui a cronificação dos usuários dos CAPS’s. Retidos neste serviço, muitas
vezes contraditoriamente intitulado de “portas abertas”, são muitos aqueles que se apresentam
como seres passivos frente ao desafio da produção de outra subjetividade, por diversos motivos.
Um deles se deve à cronicidade produzida, freqüentemente, pela fragilidade ou até inexistência
de uma rede de atenção em saúde. Acaba que a clínica, que se propõe antimanicomial, não
cumpre em alguns aspectos a sua meta. Uma vez atendidas, as pessoas permanecem no serviço e
não se tem para onde encaminhá-las.
Além disso, chama-se atenção para a cronificação da prática clínica gerada pela dificuldade
dos profissionais de saúde mental pensarem sobre seu próprio trabalho. São poucas as discussões
que procuram aliar a noção de clínica à análise dos processos de trabalho, à análise das
instituições, à política.
Diante dessas cronificações, falando aqui especificamente dos usuários dos CAPS’s, fica
difícil de se inventar novas formas de existência. Surgem padronizações baseadas num mundo de
supostas regularidades. Em tais condições, os transtornos mentais são considerados como o
mesmo em cada uma de suas múltiplas manifestações, sendo desrespeitada a singularidade das
pessoas acometidas por esses transtornos. Quando isso acontece, supostas verdades são
organizadas, juntamente com um sistema de poder. Aparecem, segundo Campos (2003, p.65),
fiéis defensores da identidade da ontologia contra a variação da vida.
No entanto, contraditoriamente, ou não, espera-se que a clínica de saúde mental possa
basear-se em certos padrões, programações, planejamentos. Algumas regularidades, além de
possíveis, são bastante úteis. Definir, por exemplo, requisitos necessários para a realização de
18 O sentido de outro, aqui, refere-se tanto a outra pessoa – nível molar –, como a outrem – nível molecular. Outrem não é um objeto/ sujeito particular, é multiplicidade, é coletivo. Pode ser compreendido como a “composição de linhas que desenham movimentos imprevisíveis possibilitando a captação de um mundo das margens, de perturbação, que arrasta o pensamento do atual ao impensado” (Barros, 1993b, p.188). No encontro desses dois planos que se atravessam entre si – o molar que codifica e generaliza e o molecular que cria e comporta variações –, é que as linhas de subjetivação se entrecruzam, fazendo com que os agenciamentos se multipliquem, produzindo singularizações.
54
acolhimento dos usuários, apoio matricial, visita domiciliar etc. pode trazer bons resultados para
a prática clínica.
Clama-se, entretanto, pela importância de se duvidar desses padrões para que, sempre que
preciso, outros possam ser criados. O desafio, aqui, é transitar entre o campo de certezas e o
campo da imprevisibilidade da vida cotidiana. Como aponta Rauter (1993), trata-se de um ir e vir
entre o caos e a complexidade. É preciso experimentar o caos e sair dele. “É no contato com o
caos enquanto germe que Deleuze vê a vocação clínica da arte, para além de toda psiquiatria e de
toda psicanálise” (p.117).
Finalmente, diante das explanações acima, pode-se concluir que a questão da clínica no
contexto da Reforma Psiquiátrica deve ser enfrentada como um processo permanente de
invenção. Só assim os usuários de serviços substitutivos ao manicômio serão capazes de criar, de
produzir possibilidades diferentes para suas vidas.
Dentro dessa perspectiva, como forma de ilustrar como a clínica de saúde mental pode ser
caracterizada como ampliada e fomentadora de criação, serão brevemente descritas e analisadas,
aqui, duas experiências obtidas durante o Estágio Supervisionado em Psicologia Institucional I e
II realizados no CAPS Liberdade.
55
6 – A Título de Ilustração: Relato e Análise de uma Experiência
O Movimento de Reforma Psiquiátrica no Brasil provoca transformações éticas nas formas
de tratamento, reconfigurando a clínica da psiquiatria tradicional, já que procura romper com a
violência, segregação e exclusão dos asilos, estimulando a criação das chamadas “novas
instituições”. Como conseqüência destas mudanças, surgem os CAPS, tendo como uma de suas
principais atividades, as oficinas terapêuticas.
Estas, por sua vez, são um dos dispositivos mais importantes dos serviços substitutivos ao
manicômio, funcionam como “intercessores19” de uma clínica ampliada e de uma “clínica da
criação”. Isso porque estão na intercessão entre o campo social e a instituição (CAPS) e, através
delas, o cotidiano dos usuários pode ser reinventado, sendo criados novos territórios existenciais.
Aqui, os participantes das oficinas formam um grupo-dispositivo que, como explicado
anteriormente, é capaz de desestabilizar formas cristalizadas de existência e produzir diferenças,
linhas de fuga.
Neste sentido, as oficinas podem ser definidas como atividades realizadas em grupo com a
presença e orientação de um ou mais profissionais/ estagiários. Podem ser definidas através do
interesse e das necessidades do usuário e das possibilidades dos técnicos do serviço, tendo em
vista a maior integração social e familiar, a manifestação de sentimentos e problemas, o
desenvolvimento de atividades corporais, a realização de atividades produtivas e o exercício
coletivo da cidadania (BRASIL, 2004a, p. 20).
De forma mais detalhada, Galletti (2004) faz um mapeamento da utilização do termo
oficina por alguns autores – Lopes (1996), Leal (1999), Rocha (1997) e Rauter (s/d). Citando
Lopes (1996), conceitua as oficinas como um dispositivo sempre experimental que, além de não
seguir uma fundamentação teórica rígida nem um modelo padrão de funcionamento, é construído
no quotidiano por seus participantes. Segundo a mesma autora, as oficinas possuem um campo
clínico – em que as técnicas são utilizadas como facilitadoras da expressão do sujeito – e um
campo reabilitador – cuja pretensão é inserir ou reinserir o sujeito à sociedade através do
trabalho20, dentre outras formas.
Já Leal (1999 apud Galletti, 2004), identifica três possibilidades para a utilização do termo
oficina – como espaço de criação; como espaço de realização de atividades manuais ou
mecânicas e como espaço de convivência.
19 O termo “intercessor” é utilizado por Galletti (2004), em seu livro “Oficina em Saúde Mental: Instrumento Terapêutico ou Intercessor Clínico?” para caracterizar as oficinas em Saúde Mental. 20 O trabalho, aqui, não tem o mesmo significado da ergoterapia criada no bojo do surgimento da Psiquiatria, que tinha a finalidade de disciplinar, controlar e ocupar o tempo dos internos. Ao contrário, é entendido como um processo coletivo e solidário que funciona como “possibilidade de criação/ ação sobre o mundo”, como “produção de vida/ cultura” (Lopes, 1996, p.110 apud Galletti, 2004, p.32).
56
Peres (1999, p.81) aponta as oficinas terapêuticas como uma forma de facilitar a
experimentação de determinadas emoções relacionadas a temas específicos, no sentido de refletir
sobre as sensibilidades e, dessa forma, analisar e elaborar as conseqüências da produção de
determinados modos de ser no mundo, que poderiam porventura estar atrapalhando a clareza e a
tranqüilidade de escolhas das formas mais potentes em que se deseja produzir a vida. Justamente
por ter estas características, as oficinas são consideradas terapêuticas21.
Pode-se dizer ainda que o universo das oficinas não se define por um modelo homogêneo
de intervenção. Em vez disso, é composto de naturezas diversas, numa multiplicidade de formas,
processos e linguagens. Assim, as oficinas estão localizadas num campo híbrido, móvel, instável,
sem identidade, feito de experimentações múltiplas. Um campo transdisciplinar, aberto à
intercessão com vários campos e saberes – arte, política, trabalho etc. (Galletti, 2004).
Concluindo, diante das explanações acima, entende-se que a clínica tem utilizado a oficina
como forma de intervenção por esta já ter se mostrado como um dispositivo por meio do qual
portadores de transtornos mentais (e por que não, também, os profissionais dos CAPS’s?) são
capazes de encontrar modos de produção de subjetividade que singularizem existências, que
permitam o surgimento de processos criativos, legitimando a pluralidade da vida.
Por fim, destaca-se que o intuito aqui de discorrer acerca das oficinas terapêuticas foi o de
tornar mais claras as explanações a seguir sobre a “Oficina de Criação” e o “Grupo Como Vai”.
Chama-se atenção, no entanto, para o fato de que este último grupo não é considerado pelo
CAPS Liberdade como uma oficina, e sim simplesmente como um grupo terapêutico. Neste
sentido, cabe pontuar as semelhanças e diferenças entre ambos. Para tanto, serão utilizadas aqui
as definições instituídas pelos próprios trabalhadores desse serviço.
Tanto um, como o outro, possuem o objetivo de produzir subjetividades que singularizem
existências, através de situações reais de encontro com um “outro”. As diferenças mais
marcantes entre estes grupos são: enquanto nas oficinas as atividades (produção de textos,
música, teatro, confecção de roupas, dentre outras) são um recurso utilizado como um fim em si
mesmo, nos grupos terapêuticos a atividade é utilizada como um meio, como formas de
expressar idéias, sentimentos, emoções etc. Além disso, participa de um grupo terapêutico um
grupo de pessoas determinado. Já nas oficinas, há uma maior variabilidade, sendo possível a
entrada de novas pessoas sempre.
21 As oficinas são consideradas terapêuticas na medida em que trabalham com a vida, com a saúde, com a singularidade dos modos de existência, e não com processos de normalização e adaptação.
57
6.1) Oficina de Criação
Meu amigo, meu colega, eu agora estou entendendo, o por quê de criar-se a oficina nova. Isso demonstra o quanto temos o poder de aflorar nosso poder de criar sempre coisas novas, mesmo sendo um poema, uma canção, ou outra coisa qualquer, mesmo que a pessoa não tenha nenhuma idéia, sendo assim, peçamos a outras pessoas as idéias necessárias, para a criação de qualquer coisa, mesmo que seja um simples desenho (Texto produzido na “Oficina de Criação” por A. S., usuário do CAPS Liberdade, em 2003).
A. S. não podia ter descrito melhor o sentido da “Oficina de Criação” para aqueles que
porventura tivessem vontade de conhecê-la. Por meio dela o “poder de criar sempre coisas
novas” é aflorado, sendo importante o convívio com outras pessoas, para que “idéias
necessárias” possam fluir. Neste sentido, acredita-se que por meio da arte, principalmente
quando esta é realizada em um grupo-dispositivo, não se está apenas criando poemas, desenhos,
textos, músicas etc. Além disso, novos territórios existenciais podem ser produzidos. Isso
acontece, por sua vez, quando a arte se conecta com o primado da criação, ou com o desejo, com
o plano de produção da vida.
Como explica Rauter (2000, p.271), o plano da produção desejante é também o plano de
engendramento do “mundo humano”. O desejo é por si mesmo revolucionário, por ser produtor
não só de fantasias, mas de “mundos”, e é por isso que a questão das oficinas se reveste de um
caráter imediatamente político. Assim, a “Oficina de Criação22” é considerada terapêutica ou
funciona como vetores de existencialização caso consiga estabelecer outras e melhores conexões
que as habitualmente existentes entre produção desejante e produção de vida material.
É o que acontece, por exemplo, quando alguns usuários desenham ou escrevem sobre seus
planos (concluir o Ensino Médio, fazer vestibular, arranjar um emprego etc), ou simplesmente os
relatam no grupo, e no decorrer do tempo, esses planos que faziam parte do futuro se tornam
presente. A oficina tem a função, então, de romper com o imediatamente dado, com as
cristalizações de seus participantes, a fim de facilitar a expressão criadora e, assim, favorecer a
emergência de novas formas de produção de subjetividade.
Vale ressaltar que nem sempre isso acontece. Durante estes encontros, os usuários estão
livres para criar o que quiserem, sem ter que seguir nenhum tema pré-estabelecido. Acontece
que, mesmo diante dessas circunstâncias, estes podem ou não criar formas próprias de existência
22 Vale ressaltar que esta oficina não tem por finalidade proceder a interpretações acerca das criações dos usuários, a arte aqui não é utilizada como técnica projetiva. Neste sentido, Neubarth (2004, p.213) chama atenção para o perigo que é “clinificar” toda a prática do psicólogo. Citando Labosque (2001), Neubarth conclui que não podemos abordar um campo tão plural como a arte pela mão única de uma determinada disciplina, já que, segundo ela, há fazeres pensantes que não podem, além de não necessitar, inscrever-se no registro da teoria. Assim, a arte ilustra isso muito bem – não apenas a arte dos gênios, mas a arte nossa de cada dia, do convívio, do trabalho etc.
58
no mundo. Tanto podem produzir uma subjetividade singularizadora (com sua evolução
criadora), como uma subjetividade expressa de forma normalizadora (com seus estatutos formais
de verdade).
Durante o tempo que a estagiária esteve na oficina, o que mais chamou atenção foi
presenciar a oscilação de dois momentos: um em que os usuários nitidamente estavam criando,
expressando de forma autêntica suas vidas através de poesias, textos, desenhos 23 e pinturas; e
um outro em que as ações dos usuários eram muito repetidas. A subjetividade está circulando
nos conjuntos sociais e é assumida e vivida por indivíduos em suas existências particulares. Isto
pode dar-se, segundo Barros (1993a, p.150), tanto por um processo de homogeneização
universalizante (repetição), quanto por um processo de composição heterogênea (criação).
Como exemplo desse processo de repetição, estão as inúmeras vezes em que, ao final da
oficina, durante os oito meses em que a estagiária esteve participando desta, certo usuário
cantava e tocava as mesmas músicas24 criadas pelo mesmo já há algum tempo, além do mesmo
se envolver muito pouco com os trabalhos realizados pelos outros membros do grupo. Aqui,
utilizando os termos de Nietzsche, parece que a vontade de potência foi capturada pela vontade
de poder.
Em contrapartida, várias são os momentos que subjetividades singularizadoras são
produzidas, que os participantes, através de suas criações, efetivam novas possibilidades de vida.
Vale notar que a “Oficina de Criação”, funcionando como um intercessor clínico, permite que
isso aconteça na medida em que é capaz de sustentar a singularidade do sujeito com o estilo que
é seu, sustentar sua diferença.
Certa vez chamou-se a atenção de um usuário por este ter chegado atrasado na oficina. Sua
resposta, capaz de sustentar sua diferença, afirmando sua existência de forma singularizadora,
veio depois de uma hora, quando este apresentou o texto que escreveu neste dia:
O atraso é esperar pelo pontual, que é o bicho preguiça que não demora mais tarda. Eu sou cansado, um pouco desligado, bem pouco atrasado, mas como cru o indigesto do pontual preguiça. A vida é cheia de encontros. Muitos demoram, mas a vida tem pressa. Corremos contra o tempo, mas ele é veloz, voa, e a gente atrás sem medo de encontrar o outro que custa a chegar. É tarde de mais, eu já fui pontual, mas a preguiça insiste em me atrasar. Obrigado senhor preguiça pelo dia em que poucos foram pontuais. E eu cheguei atrasado onde todos têm atrasado (Texto produzido na “Oficina de Criação” por J. P., usuário do CAPS Liberdade, em 2005).
23 Ver no ANEXO A e B, respectivamente, alguns textos e desenhos produzidos durante a “Oficina de Criação”. 24 Ver no ANEXO A uma das letras das músicas do usuário citado, no item 2.
59
Ainda neste sentido, no mesmo dia, outra usuária fez um poema intitulado “As Faces da
Vida”, em que afirmava provavelmente sua multiplicidade, as diversas possibilidades de se estar
no mundo, em detrimento de uma identidade rígida: “Umas vezes calma, Outras vezes feroz. Algumas vezes dócil, E outros amargas de difícil paladar. Quantas vezes quis amar, E muitas vezes odiar, Pensei, e às vezes lutei com os desejos do coração. Desejos maus e desejos bons25...” (Texto produzido na “Oficina de Criação” por J. M., usuário do CAPS Liberdade, em 2005).
Além disso, pôde-se perceber que o fato de estarem criando em grupo trouxe um
componente a mais à produção desta subjetividade singular. Nesta oficina, os agenciamentos
produzidos nos encontros das pessoas com as atividades experimentadas, como também nos
encontros com outros componentes de subjetividade de outras pessoas, são capazes de permitir
uma maior facilidade na expansão do universo de referência de cada usuário.
Explicando melhor, a partir do momento em que um corpo entra em relação com outro, ele
tanto afeta como é afetado pelo outro. Assim, são estabelecidas zonas de contágio que
impulsionam os corpos para a vivência de experimentações. Dessa forma, cada pessoa é habitada
por inúmeras possibilidades de ser no mundo, que se atualizam a partir dos encontros que
estabelecem em suas relações.
De acordo com Naffah Neto (1998 apud Peres, 1999), toda pessoa traz consigo
possibilidades de vir a ser as outras pessoas que se relacionam com ela, de forma que, em mim,
existiria o outro e no outro existiria o “mim”. Nesse sentido, através do encontro entre as
pessoas, há uma ampliação do universo de referência destas, possibilitando novas percepções
sobre a existência que facilitariam a reflexão e a elaboração sobre as formas de se compor com o
mundo e consigo mesmo.
São vários os exemplos dessa ressonância entre as subjetividades dos usuários. Chamam
atenção as inúmeras vezes em que os textos e desenhos que produziram tiveram relação direta
com algum dos assuntos que estavam conversando durante a oficina; ou quando um usuário
delirante entrou na oficina cantando e dançando uma música e, imediatamente, todos os outros
começaram a cantá-la também; ou quando textos intensos criados na oficina foram lidos,
afetando os membros do grupo, que comentaram ou demonstraram o quanto se sentiram tocados
pelo mesmo.
Destaca-se aqui, a título de ilustração, um desses textos bastante expressivos: 25 Ver o texto completo no ANEXO A, no item 4.
60
Já se perguntou o por quê de tudo? Já pensou por que não ser o que se quer ser. Já quis mudar o mundo com suas próprias mãos, já quis trazer de volta quem já se foi e não volta mais. Já se sentiu inútil com tantas qualidades mal reconhecidas, já quis ser um poeta, desenhista, estilista, escritor, professor, o que você sempre desejou ser. O tempo passou, os dias, as gerações mudaram e você parou no tempo. Para que tanta cultura, tanto saber, para nada que você usufrua para você se sentir bem no seu viver, como se não tivesse chão e nem espaço. Tudo no mundo abafou o seu brilho e você acaba fora do seu mundo e tudo acabou, não adianta acontecer mais nada, é assim que eu me sinto26 (Texto produzido na “Oficina de Criação” por J. M., usuário do CAPS Liberdade, em 2005).
Por fim, conclui-se que a “Oficina de Criação” tem funcionado como excelente intercessor
de uma clínica que se propõe ampliada e criadora de novos territórios existenciais. De certo, tal
criação nem sempre parece visível. Usuários, psicóloga e estagiária se implicam neste processo
de formas bastante diferentes. O que não impede, no entanto, de se afirmar que, de algum jeito,
todos que participam deste grupo são contagiados por novas subjetividades, tanto pelo contato
com demais participantes, como pelo contato com as atividades realizadas.
6.2) “Grupo Como Vai”
Com o passar do tempo neste grupo, a estagiária notou que o mesmo possuía várias
peculiaridades. Num momento inicial, a fim de entender melhor o funcionamento do grupo,
optou-se por experimentar, a todo tempo, diferentes técnicas (verbais e não-verbais) para
fomentar a expressão de pensamentos, sentimentos, lembranças e ações por parte dos usuários.
Depois de algumas experimentações, as peculiaridades desse grupo ficaram mais visíveis e
mais fáceis de entender. A primeira delas, percebida logo nos primeiros encontros, referia-se à
temporalidade peculiar do grupo. Em muitos momentos a estagiária teve a impressão de estar em
um “mundo” diferente, onde o diálogo e as ações aconteciam em câmera lenta. Esta sensação
pôde, por sua vez, ser melhor compreendida a partir de algumas reflexões de Pelbart (1993),
quando este fala que em instituições de Saúde Mental vigora um outro tipo de temporalidade,
qual seja, a de “guetos lentificados”.
A loucura estaria, assim, segundo este autor, em contraposição ao despotismo da máxima
velocidade, seria a recusa a um determinado tipo de temporalidade e a reivindicação por um
outro. Aqueles acostumados a um outro tipo de temporalidade – regida pelos ditames da
velocidade máxima e, agora cada vez mais, pela instantaneidade, que abole o tempo e o
movimento no espaço – não teriam tempo nem paciência para sustentar o ponto de surgimento
26 Além desse texto, há outros igualmente expressivos no ANEXO A.
61
do tempo e da forma, que brotariam a partir do informe e do indeciso, já que são amantes do
futuro já embutido no presente.
Diante desta reflexão algumas questões puderam ser esclarecidas, diminuindo assim a
ansiedade da estagiária. No entanto, a partir desta reflexão também surgiram alguns desafios:
como, neste grupo, se pode preservar a possibilidade de uma temporalidade diferenciada, onde a
lentidão não seja impotência e onde os movimentos não ganhem sentido apenas pelo seu
desfecho.
Dentro desse movimento de encontrar respostas, a estagiária percebeu também que as
atividades desenvolvidas neste grupo tendiam a ser realizadas pelos usuários, sem, no entanto,
que estes se relacionassem entre si. O contato destes era apenas com quem coordenava o grupo.
Sobre este assunto, Lancetti (1993, p.163) observa que a arma fundamental do coordenador é a
sociabilidade. Em detrimento de interpretar e responder uma a uma as solicitações que lhes são
feitas, o coordenador de um grupo de psicóticos precisa fomentar ações que favoreçam o contato
entre os membros do grupo, ajudando na formação do tecido coletivo. Além disso, de acordo
com o mesmo autor, o coordenador precisa, ao mesmo tempo, liderar e pensar grupalmente,
sendo ele mesmo também um integrante desse dispositivo.
Neste sentido, durante as atividades desenvolvidas, as estagiárias perceberam que suas
propostas deveriam fazer o possível para integrar os componentes do grupo, descentralizando o
diálogo entre coordenadores e usuários, facilitando a circularização da fala. Durante estas
tentativas as estagiárias perceberam, com a ajuda da psicóloga que já acompanhava o grupo há
mais tempo, a dificuldade de se propor ao grupo tarefas estritamente verbais. Os diálogos
apresentavam-se truncados, as respostas em muitas vezes eram monossilábicas, enfim, as
discussões propostas pareciam não fluir muito bem. Optou-se, então, sempre que possível, por
trabalhar com dinâmicas, jogos e diferentes formas de comunicação não-verbais (corporal,
musical, através de colagens, desenhos, etc).
Destes procedimentos, uns deram mais certo que outros. Há aproximadamente uns quatro
meses, pode-se dizer que a configuração do grupo mudou. Um dos usuários que participava do
grupo deixou de freqüentá-lo. Como este monopolizava a fala, por vezes desrespeitando os
demais integrantes, o funcionamento do grupo mudou bastante, possibilitando que um novo
clima fosse gerado. Assim, usuários que tinham uma participação tímida puderam se sentir mais
à vontade para se expressarem.
Com o passar do tempo, os integrantes do grupo foram se familiarizando com as histórias
de vida, crenças e lembranças de cada um, aumentando, assim, o coeficiente de coletivização
entre os mesmos. A partir daí, destacam-se algumas temáticas experienciadas por este coletivo.
62
A expressão dos sentimentos e pensamentos através de desenhos e colagens apresentou-se
bastante intensa em alguns momentos.
Destacam-se aqui três reuniões seguidas. Na primeira, a partir do relato mobilizador de um
usuário, que contou que estava em crise há poucos dias, foi sugerido que cada integrante
desenhasse como se sentia quando estava em crise. Os desenhos impressionaram a estagiária
pela capacidade de expressar tão intensamente certos modos de existência (Ver Figura 1):
“Árvore murcha” (desenho A) – “Sinto-me fraco, sem vida, preciso de água” (E.) –; “Papel
amassado” (desenho B) – “Sinto-me sem forças, sem ânimo, como um papel amassado
esquecido no canto que não serve para nada” (P.S.) –; “Fruta comida e prisão” (desenho D) –
“Sinto-me como uma fruta chupada que jogam fora” (A.) – e “Homenzinho dentro da minha
cabeça” (desenho E) – “Sinto-me como tivesse uma pessoa dentro da minha cabeça confundindo
meus pensamentos” (H.). Os desenhos C e F foram, respectivamente, da psicóloga e de uma das
estagiárias.
Cientes do perigo de se proceder a uma interpretação psicológica e profunda tanto dos
desenhos como das falas dos usuários, a psicóloga e estagiária optaram por tentar fomentar a
autonomia e solidariedade entre eles. Entendendo melhor:
Basaglia nos ensinou que depois de trezentos anos de semiotizar doentes mentais só se conseguiu doença e desrespeito dos direitos humanos, e que se pretendemos alguma mudança temos de ser menos onipotentes e ajudar as pessoas para que possam produzir seus próprios enunciados sobre seu sofrimento e sobre sua vida (Lancetti, 1993, p.167).
63
FIGURA 1- Primeira reunião: Sentimento de cada participante diante da
crise.
A- Árvore murcha B- Papel amassado e homem com moleza C- Intervenção à crise em equipe D- Fruta chupada e homem preso E- Homenzinho dentro da cabeça F- Pessoa que quer acolher mas não sabe como
Durante a segunda reunião, criou-se um contexto propício para que os usuários fizessem
um desenho de como se sentiam naquele grupo. Os títulos dos desenhos e os comentários de seus
respectivos donos foram os seguintes (Ver Figura 2): “Tamanduá” (desenho 1) – “Sei não o que
significa” (A.L.); “União do grupo” (desenho 2) – “Representa um grupo que desabafa. Eu saio
de casa com gosto, acho a segunda um dia agradável, sinto-me à vontade para ouvir e falar”
(Z.L.) –; “Pessoa presa” (desenho 3) – “Meu sentimento é geral, é como se eu estivesse preso,
incapaz de fazer as coisas, como se não existisse”(H. ); “Sala de grupo” (desenho 5) – “É
melhor vim pra cá do que ficar em casa” (B.); “Casa” (desenho 6) – “O grupo é como uma casa
e dentro dela há felicidade” (G.); “Duas pessoas numa mesa” (desenho 8) – “As pessoas estão
64
partilhando seus problemas e há uma união dos corações que gera paz” e “Pessoa e coração”
(desenho 9) – É um grupo que tem amor, que tem acolhimento, me sinto como numa
família”(E.). Os desenhos 4, 7 e 10 foram, respectivamente, das duas estagiárias e da psicóloga.
FIGURA 2- Segunda reunião: Sentimento de cada participante diante do “Grupo Como
Vai”.
1- Tamanduá 2- União do grupo 3- Prisão 4- Pessoas trocando experiências 5- Sala de grupo 6- Casa onde há felicidade 7- Mistura de vidas 8- Pessoas partilhando 9- Acolhimento 10- Pessoas trocando experiências
Diante de tais comentários, alguns componentes do grupo falaram sobre a importância
deste na vida dos mesmos, como também acolheram H. (o membro do grupo que elaborou o
desenho 3), discutindo, com base em suas experiências de vida, sobre algumas coisas que este
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poderia fazer para se sentir melhor. Experimentou-se aqui o que Galletti (2004, p.99) chama de
“campo de solidariedade”, momento esse de “desejar a singularidade do Outro, expor-se à
alteridade e contaminar-se com o Outro”.
Chama-se atenção para o fato de que a criação deste campo só é possível porque o “Grupo
Como Vai”, funcionando como um grupo-dispositivo, está inserido no projeto de uma clínica
ampliada. Explicando melhor, a solidariedade entre os integrantes desse grupo, bem como a
produção de autonomia, cidadania e de uma existência singularizadora dos mesmos, só são
capazes de acontecer na medida em que se considera as dimensões subjetiva e social das pessoas,
além da biológica.
Na terceira reunião, os integrantes do “Grupo Como Vai” fizeram um painel juntando
todos os desenhos (da primeira e segunda reunião), atribuindo-os significados diferentes ou
iguais do dia em que foram desenhados. Dessa forma, surgiu um grande painel cujo tema foi
“Como o grupo poderia ajudar na crise”, sendo intitulado pelo grupo de “Fraternidade” (Ver
Figura 3).
66
FIGURA 3- Terceira reunião: Painel sobre como o grupo poderia ajudar na crise.
Significado dado pelo grupo ao painel: Do lado esquerdo existem pessoas em crise presas
(3’, E’), com o coração triste (9’), ou sem sair de casa (6’) porque estão com moleza (B’). Ao serem acolhidas (F’, 8’, 2’), sentem-se melhor. Existem vários caminhos (10’). Podem ir a festas; à praça (5’), onde existem árvores (A’, C’) e crianças brincando (4’); ou para os arcos da orla (7’). O tamanduá (1’) defende as pessoas. Quem estava triste, de braços fechados, fica alegre, de braços abertos (D’).
O painel foi surgindo aos poucos, na medida em que eram atribuídos significados aos
diversos desenhos e eram percebidas as relações que poderiam existir entre os mesmos.
Gradativamente, as pessoas foram colocando alguns dos desenhos que se remetiam aos
momentos de crise, do lado esquerdo. Separando-os dos demais desenhos foi colocado um
desenho que representava o acolhimento daqueles que porventura estariam sofrendo por estarem
presos, isolados, solitários etc. A partir do acolhimento do usuário em crise surgem novas formas
de lidar com a mesma. Daí, então, do lado direito do painel os participantes terem colocado
desenhos que representavam as coisas que tinham vontade ou gostavam de fazer – conversar,
jogar bola, brincar, ir a festas e à praça, passear na orla etc.
Ao final do grupo, olhando para o painel, usuários, psicóloga e estagiária partilharam seus
sentimentos diante do que tinha acontecido naquela manhã: “Existem possibilidades para sair da
67
crise” (E.); “Esperança, mudança de pensamento, prosperidade” (P.S); “Novos caminhos,
acolhimento” (B.); entre outros sentimentos.
A partir desta experiência foi possível perceber como um grupo pode funcionar como um
dispositivo, catalisador existencial capaz de produzir criação. Aqui, o encontro de
multiplicidades que habita usuários, psicóloga e estagiárias foi capaz de “libertar a vida”,
considerando-a em sua pluralidade e afirmando, mesmo que momentaneamente, novas formas de
ser e estar no mundo – a praça, a festa, a conversa, em vez da prisão, da solidão, da “moleza”.
Outro fato vivenciado pelo grupo diz respeito às poucas, porém marcantes vezes em que
algum usuário participou do grupo em crise. Nestas ocasiões, sempre que possível, era
fomentada a participação do grupo no sentido de promover a continência necessária ao bem estar
do usuário em crise. Pôde-se perceber nestas situações o quanto que a contensão através do
vínculo é possível e eficaz, embora dê mais trabalho e despenda mais tempo dos envolvidos.
Chama atenção também o importante papel político que o grupo desempenha na
(des)construção de conceitos, principalmente aqueles associados ao transtorno mental. Como
grande desafio, está o de romper com as expressões: loucura = doença = incapacidade; obtenção
de saúde = tomar remédio. É um trabalho árduo, porém necessário quando se acredita que o
grupo como dispositivo analítico pode servir às descristalizações de lugares e papéis que o
sujeito constrói e reconstrói em suas histórias.
Por fim, acredita-se que o “Grupo Como Vai” esteja desempenhando um papel importante
para cada um de seus participantes, em proporções diferentes. Para uns, aquele é um momento
para se “contar e ouvir histórias”; para outros um meio de “se trabalhar a mente” ou de “não
ficar em casa”; para outros um espaço para “papear ou jogar conversa fora”; para alguns uma
forma de se “produzir saúde”. O que importa é que se os usuários estão participando
freqüentemente do grupo, alguma coisa neste faz sentido para cada um. Fica aqui a esperança de
que o grupo possa criar práticas de devir-outro, de produções de si capazes de fomentar o desejo
de seus integrantes por habitar novos territórios existenciais.
68
V – Conclusão
Diante das explanações acima, percebe-se a necessidade de desconstrução de um modelo
excludente de cínica, fundamentado no paradigma da ciência moderna, tal como foi
desenvolvido por Pinel e seus sucessores e que vigora até hoje. Entende-se que a concepção de
loucura como uma incapacidade da razão, a definição da “doença mental” como objeto de estudo
da Psiquiatria e a preocupação com a manutenção da ordem dos valores burgueses foram
fundamentais para a construção de uma clínica baseada na tutela, na custódia, na disciplina, na
vigilância panóptica, na imposição da ordem, na punição corretiva, no trabalho terapêutico, na
interdição etc.
Partindo do pressuposto de que tal modelo de clínica é incapaz de valorizar a vida em sua
pluralidade, conclui-se que outro modelo deva ser construído, tendo por base os princípios da
Reforma Psiquiátrica. Defende-se, portanto, uma concepção de clínica regida por um princípio
estético – a existência como obra de arte, que se cria e recria através de devires. Princípio que é
também ético – já que tem a vida como referência maior –, e político – por assumir
compromissos e riscos, além de propiciar a crítica e a análise de formas instituídas.
Nesse sentido, então, acredita-se que a clínica de saúde mental, fundamentada em tais
princípios, seja uma “clínica da criação” – já que fomenta a criação de existências
singularizadoras, de novas formas de estar no mundo – e uma clínica ampliada – por considerar
como importantes todos os planos que constituem a vida (plano social, subjetivo, político,
cultural, biológico etc).
Cabe aqui ressaltar, que para dar conta dessa proposta de clínica, que considera o ser
humano em sua complexidade, é preciso superar os especialismos e apostar em um modelo de
clínica transdisciplinar capaz de desinstitucionalizar saberes, práticas e estruturas que foram
construídas ao redor da loucura pela Psiquiatria Clássica. Com essa finalidade, então, é que são
criados serviços substitutivos ao modelo manicomial.
Diante dessas conclusões, trazendo as experiências obtidas no “Grupo Como Vai” e na
“Oficina de Criação”, ambos do CAPS Liberdade, crê-se que grupos e oficinas possam funcionar
como dispositivos fundamentais para o funcionamento de uma clínica no contexto da Reforma
Psiquiátrica. Através desses dispositivos, a loucura pode ser afirmada como um modo de
subjetivação e a noção de racionalidade/ irracionalidade que restringe o portador de transtorno
mental a um lugar de desvalorização e desautorização a falar sobre si pode ser desconstruída.
Acredita-se, portanto, que o dispositivo grupal, na medida em que devolve as pessoas
acometidas por transtornos mentais ao campo do coletivo (campo da produção), seja um
intercessor de uma clínica ampliada e que fomenta a criação, já que funciona como uma máquina
69
de descristalização de lugares e papéis que o sujeito constrói e reconstrói em suas histórias, uma
máquina de produção de sentidos, de produção de subjetividade, de produção de saúde. Diante
dessa conclusão, chama-se atenção para importância dos coordenadores de grupos e oficinas de
CAPS’s terem a noção de quão fundamental é seu trabalho, de forma a assumi-lo com
responsabilidade e seriedade.
Por fim, defende-se aqui uma proposta de clínica que garanta a valorização da vida, que
favoreça a desguetificação das relações, que vise o resgate do coletivo, da solidariedade, da
cidadania, da autonomia, da criação. A garantia de uma clínica de saúde mental com essas
características, no entanto, está relacionada a um movimento constante de resistência por parte
daqueles que a compõem (profissionais de saúde, portadores de transtorno mental, familiares,
comunidade etc).
Explicando melhor, acredita-se que a clínica atualiza-se em seu próprio fazer, já que não
existe uma verdade última essencial acerca dos cuidados em saúde mental, mas sim práticas a
serem construídas. Dessa maneira, a resistência refere-se aqui a esse processo de permanente
construção. É imprescindível que esse caráter de permanência do resistir não pare de se exercer.
Isso porque, “resistências instituídas”, que trabalham a favor de uma clínica excludente,
segregadora, rígida, fria e triste, precisam ser superadas. “Eis a tarefa da clínica: experimentar o
limite onde a resistência é pura positividade, onde ela é criadora de mundos” (Barros, 2003, p.8)
Dessa forma, chama-se atenção para a necessidade de os profissionais de saúde mental se
sentirem responsáveis pela manutenção desse movimento de resistência. A implicação nesse
movimento, entretanto, se faz a partir do convencimento de que práticas antigas de assistência à
saúde mental precisam dar lugar a novas. Para que isso aconteça, é fundamental a garantia de
espaços onde novas propostas de clínica possam circular, culminado com um contágio de idéias e
experiências por parte daqueles que a constituem. Nesse sentido, propõe-se aqui a intensificação
de pesquisas, palestras, cursos, oficinas, capacitações, como também publicações na área de
saúde mental.
Destaca-se ainda a importância de que, tanto a graduação em psicologia, como em áreas
como enfermagem, terapia ocupacional, serviço social e medicina, sejam capazes de introduzir
em suas grades curriculares noções fundamentais de saúde mental, contextualizando-as de acordo
com os princípios da Reforma Psiquiátrica. Afinal, os profissionais envolvidos no cuidado de
pessoas acometidas por transtornos mentais, embebidos de conhecimentos que são frutos do
paradigma mecanicista, precisam fundamentar sua prática em uma teoria consistente, que
trabalha a favor de princípios ético-estético-políticos.
Finalmente, pontua-se aqui a satisfação de poder participar, através da confecção dessa
monografia, da construção de saberes relacionados ao campo da saúde mental – campo este em
70
que a aluna esteve por tanto tempo afetivamente envolvida através da experiência de estágio,
vivenciando na prática a constituição de uma clínica afinada com as propostas da Reforma
Psiquiátrica.
71
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Federal de Sergipe, São Cristóvão.
76
ANEXO A – Alguns textos produzidos na “Oficina de Criação”
1) Meu amigo, meu colega, eu agora estou entendendo, o porquê de criar-se a oficina nova.
Isso demonstra o quanto temos o poder de aflorar, nosso poder de criar sempre coisas novas,
mesmo sendo um poema, uma canção, ou outra coisa qualquer, mesmo que a pessoa não tenha
nenhuma idéia, sendo assim, peçamos a outras pessoas as idéias necessárias, para a criação de
qualquer coisa, mesmo que seja um simples desenho (A. S., setembro de 2003).
2) Vem cá morena vem meu coração
Vem meu xodó vamos chamegar
O cavalheiro pede a permissão
Tome uma batida e
Vamos começar.
Rei rei rei Sou Nordestino
E quero lembrar
Rei rei rei Minha sanfona
Não pode parar
Ela foi feita pra gente miúda
Pra gente grande
Sabida ou cabeçuda
É véspera de São João
O sanfoneiro começa a esquentar
O fole no meio do salão
Danado pro forró já começar
Sacode a saia Maria em João
A noite é nossa e vamos festejar
Bota mais lenha neste fogueirão
Estou com frio e quero me esquentar
(E. N., julho de 2005).
3) PREGUIÇA DA PREGUIÇA
O atraso é esperar pelo pontual, que é o bicho preguiça que não demora mais tarda. Eu sou
cansado, um pouco desligado, bem pouco atrasado, mas como cru o indigesto do pontual
preguiça. A vida é cheia de encontros. Muitos demoram, mas a vida tem pressa. Corremos contra
o tempo, mas ele é veloz, voa, e a gente atrás sem medo de encontrar o outro que custa a chegar.
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É tarde de mais, eu já fui pontual, mas a preguiça insiste em me atrasar. Obrigado senhor
preguiça pelo dia em que poucos foram pontuais. E eu cheguei atrasado onde todos têm atrasado
(J. P., dezembro de 2005).
4) AS FACES DA VIDA
Umas vezes calma,
Outras vezes feroz.
Algumas vezes dócil,
E outros amargas de difícil paladar.
Quantas vezes quis amar,
E muitas vezes odiar,
Pensei, e às vezes lutei com os desejos do coração.
Desejos maus e desejos bons.
Os pensamentos embaralhados, confusos.
Na verdade eu não sou,
Não estou dentro de mim.
Muitas vezes sou o que os outros me transformam.
Em alguns lugares eu me sinto bem, outros não.
Me sinto envergonhada de não ser o que deveria ser.
(J. M., dezembro de 2005).
5) Já se perguntou o por quê de tudo? Já pensou por que não ser o que se quer ser. Já quis
mudar o mundo com suas próprias mãos, já quis trazer de volta quem já se foi e não volta mais.
Já se sentiu inútil com tantas qualidades mal reconhecidas, já quis ser um poeta, desenhista,
estilista, escritor, professor, o que você sempre desejou ser. O tempo passou, os dias, as gerações
mudaram e você parou no tempo. Para que tanta cultura, tanto saber, para nada que você usufrua
para você se sentir bem no seu viver, como se não tivesse chão e nem espaço. Tudo no mundo
abafou o seu brilho e você acaba fora do seu mundo e tudo acabou, não adianta acontecer mais
nada, é assim que eu me sinto (J. M., outubro de 2005).
6) Quando estou com você o tempo passa tão depressa. Nós precisamos, precisamos sim,
eu de você e você de mim. Quem sabe repartir sabe querer bem. O amor que não se renova a
cada dia passa a ser um hábito e termina sendo uma escravidão. O verdadeiro amor começa
quando nada se espera em troca. As horas que passo longe de você parecem tão compridas...O
amor não tem idade, está sempre nascendo. Não se pode ser feliz sem a felicidade do outro. Fica
78
sempre um pouco de perfume nas mãos de quem oferece rosas. Se você vier hoje, começarei a
ser feliz antes de sua chegada, que falta você está fazendo, seu lugar é sempre perto de mim.
Uma flor exprime melhor o amor que muitas palavras. Quando se ama se sente feliz também no
silêncio. Quando estou com você o tempo passa tão depressa. A amizade é uma planta delicada,
precisa ser bem cuidada senão morre. Tua alegria é a minha alegria, tua dor é minha dor. A
felicidade não é feita do tamanho da casa, mas sim do tamanho do amor que enche a casa. O
amor não tem fronteiras (A. S., novembro, 2003).
7) A sua frente, todo mundo diz sim.
Medo com responsabilidade, desejo de enfrentar.
Nunca visto seus olhos medonhos do não.
Quero dormir na minha casa,
não tenho paciência pelo sim de Simone e o não de minha família,
são todos um pedacinho de minhas células tronco.
Quero me libertar. Não consigo. Mas pelo sim terei liberdade.
O sol, a lua, governam o dia e a noite.
Não temerei porque sou filho da liberdade
que acostumei a ter, a pegar e a pregar por onde passo,
passarinho livre mora em frente a você.
(J. P., 2005).
8) CAPS LIBERDADE
Hoje eu não estou inspirada, mas tenho muito a falar, gritar, reclamar, tantas coisas que
sonhei e foi tudo em vão, para que tantas pessoas ao meu redor, se eu não tenho ninguém.
Mas gostaria de falar da minha felicidade de ter pessoas que apesar de tão distante do meu
mundo pensam em poder me ajudar.
Eu sei que não sou fruto do meu sonho e penso até que estou num pesadelo.
Necessito acreditar em alguma coisa, acreditar que as coisas possam mudar.
Estou C aminhando
Para A liberdade
A P onto de poder
S onhar,
Me L ibertar,
De I mpossibilidades,
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Das B obagens,
Que E sperei,
Com R azão, acontecer
Uma D ádiva de Deus,
Encontrar A mor, esperança...
...na vida D e todos, apenas
E ncontrar.
Neste lugar, eu não quis entrar, mas acabei me acostumando a ponto de não querer sair,
acabei encontrando refúgio onde eu não tinha nada, nem mesmo sentimentos de esperança (J.
M., setembro de 2005).
9) AS CORES DA VIDA
Muitas vezes o dia amanhece nublado,
Um cinza borrado.
Uma neblina na mente,
Tudo não passa de um branco.
Mas por vezes esse quadro muda.
Depende de você?!
Quando abre os olhos qual a cor que você vê?
Um mundo que apesar de um pouco cinzento,
Começou a azular e até um ar quente como vermelho, amarelo,
E ainda tem a esperança de um novo nascer.
Já ouviu dizer verde é esperança.
É a natureza humana, é a cor da pele que você tem.
O natural, a cor que você pinta.
Você pode estar no escuro, mas pode clarear, colorir e
às vezes esse quadro quem pode pintar é você.
(J. M., 2005).
10) PORTA
Treze vezes bate a porta. Procuro a chave entre a penca de bananas da marmelada que é o
mundo sem porta. A fechadura são seus olhos grudados, não vil metal. E eu cego não enxergo,
mas vejo o prato, a mesa, a hora acesa pra porta fechar. E sete vezes você me nega, a porta
aportou, estamos todos sem porta, e eu sou a fechadura dura trancada. O mundo não abre a porta,
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mas dorme de portas abertas. Você sabe e eu sei o mundo tem porta, mas no céu é difícil achar a
porta de entrada. Obrigado minha porta, eu tenho a chave. A minha está sempre fechada (J. P.,
outubro de 2006).
11) LUCIDEZ
Loucura é a doce mania de repetir gestos ou falar, dizer as mesmas coisas. Obrigado doutor por
me medicar e eu voltar à realidade. Estou lúcido, confortável, recebendo saúde. A loucura bate a
porta não ceie com ela. Diga sempre o gás acabou, a panela furou e ela vai lhe responder: “já
vou.” E você replica a ela: “Vai tarde, nunca mais você irá surtar em minha vida. Se for por falta
de adeus, até nunca mais doença insana.” E eu e nós seremos saudáveis, é justa a lucidez, seja
bem vinda saúde. Obrigado reforma anti-manicomial (J. P., abril de 2006).
12) Eu estava numa praia tomando aquele banho, a água estava gelada e boa. Os mergulhos
eram maravilhosos e doce cada gota de água. Me deram emoção de alegria. Era em Atlântida. As
cores da água era azul e estava nevando, seus pingüins alegres no gelo, brincando nas camadas
de gelo, junto com os filhos, comendo peixe e aquele lindo mar. Pedra de gelo brilha nos olhos,
na luz do sol. Tudo isso era lindo ao redor de mim, as pedras de gelo iam se dissolvendo aos
poucos ao raio de sol. Essa linda brisa é tudo, sinto aquele sono suave e durmo. (J. A., abril de
2006).