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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA HELDER SILVA LIMA AS CANÇÕES DE PROTESTO E O ATIVISMO POLÍTICO NOS ESTADOS UNIDOS ENTRE 1960 - 1966 CURITIBA 2009

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

HELDER SILVA LIMA

AS CANÇÕES DE PROTESTO E O ATIVISMO POLÍTICO NOS ESTADOS UNIDOS

ENTRE 1960 - 1966

CURITIBA

2009

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HELDER SILVA LIMA

AS CANÇÕES DE PROTESTO E O ATIVISMO POLÍTICO NOS ESTADOS UNIDOS

ENTRE 1960 - 1966

Monografia apresentada como trabalho de conclusão de

curso do curso de História, Setor de Ciências Humanas,

Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná.

Orientador: Renato Lopes Leite

CURITIBA

2009

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Conteúdo

RESUMO ............................................................................................................................................ 4

INTRODUÇÃO..................................................................................................................................... 5

DA FRENTE POPULAR À NOVA ESQUERDA: ORIGENS DA CANÇÃO DE PROTESTO, 1930 – 1950 ........... 9

A CANÇÃO E O PROTESTO CÍVIL ENTRE 1960 – 1966..........................................................................20

O PRETÉRITO IMPERFEITO: O FOLCLORE COMO FORMA DA CANÇÃO DE PROTESTO .........................37

FONTES .............................................................................................................................................48

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..........................................................................................................50

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RESUMO

Na primeira metade da década de 1960 nos EUA, músicos lançaram mão de um repertório

musical consagrado como tradicional – depositário da expressão folclórica – para atuar nas

situações políticas da sociedade americana. Tidas como canções de protesto, baseavam-se na

prática do uso político da arte, como fora estabelecida por músicos folcloristas ligados ao

comunismo americano, entre as décadas de 1930 a 1950. Os seis anos, que vão de 1960 a

1966, foram tempo do surgimento da Nova Esquerda e da mobilização negra por direitos

civis. Nesse período estudado, ocorre a rearticulação da pratica de protesto através de

canções, que remonta as décadas anteriores, para uma nova situação política, onde se destaca

o Movimento por Direitos Civis. Este estudo tem como objetivo apreender a relação entre as

canções e o ativismo político da época. Seguindo os preceitos metodológicos da História

Cultural, investigamos o assunto com base na historiografia e em fontes do período, musicas e

documentos escritos. Percebemos que a estética folclórica sobre a qual as canções são

produzidas é um elemento essencial do fenômeno. Os músicos tomavam as canções

folclóricas como uma expressão cultural que remetia a um “passado” bucólico, que se opunha

ao “presente” insatisfatório. Concluímos que a música ajudou àqueles que se engajavam no

movimento de protesto fornecendo um senso de identidade – com uma causa expressada em

signos culturais compartilhados, que congregava valores morais e expectativas comuns.

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INTRODUÇÃO

O objetivo da presente exposição é estudar as relações entre canções de protesto e o

ativismo político da primeira metade da década de 1960, nos EUA. Marcado pelo surgimento

do movimento por direitos civis, o ativismo político difundiu-se para fora do movimento

negro, dando inicio a uma onde de protestos pela qual a década seria lembrada. Dentro desse

contexto, aparecem canções, que se utilizam da forma popular do folclore, para expressar suas

críticas. Mas, de que maneira tais canções relacionam-se com os movimentos sociais, e qual a

importância que elas adquirem para os mesmos?

Buscando suas origens, a prática de protesto por meio da música foi formulada

dentro da esquerda americana, na segunda metade da década de 1930; período em que

vigorou a Frente Popular – uma união entre as esquerdas, socialista e comunistas, anarquistas,

e liberal, contra o fascismo. É particularmente nesse tempo da Frente Popular, que se concebe,

dentro da esquerda comunista, a possibilidade de se utilizar canções folclóricas para veicular

um conteúdo político. Com a atuação de músicos e apoiadores, estabeleceu-se, na década de

1930, um cancioneiro, que estaria na base da prática de protesto através da música, nos anos

seguintes.

Sua forma apropriava-se de um corpus de canções populares, coletadas e

registradas por folcloristas e antiquários. Sobre uma balada popular, adaptavam-se novas

letras, para comentar algum fato político na visão comunista – o apoio a greve sindical, apoio

a um candidato, ou crítica ao governo. Por trás dessa apropriação do folclore estava a

concepção de que essa música era expressão da tradição popular, fruto da experiência do

homem comum frente a sua luta cotidiana. Como era o povo quem construía a história, o

comunismo americano identifica no o agir e sofrer popular a expressão do mesmo ideal

democrático e republicano fundador da nação. De outro modo, também era uma reminiscência

da América pré-industrial, enquanto ainda intocada pelo avanço da urbanidade. Se o

proletariado urbano havia sido alienado de sua consciência cultural, com a canção folclórica a

esquerda não apenas falava a língua do vulgo, mas devolvia-lhe sua própria tradição.

O projeto oposicionista da esquerda viu-se frustrado com o irromper da II Guerra

Mundial. No pós-guerra, o ambiente gerado pela Guerra Fria que começava, impediu que

conseguisse retomar seu projeto popular de atuação. O anticomunismo histérico, como foi

representado pelo macarthismo, acabou por desmembrar politicamente a esquerda americana.

A perseguição ao partido comunista e aos seus membros fechava os espaços de atuação

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possíveis. Mesmo o sindicalismo, o qual até então havia sido sua grande base, não mais

mantinha ligações com o comunismo.

Reprimido politicamente, sem espaço para atuação, sobrevive entre seus membros

uma literatura social, um repertório de signos visuais, e um corpo de canções. Mantido

enquanto uma prática, o protesto através da música sobrevivera ao primeiro decênio de

Guerra Fria, até encontrar no início dos anos 1960 uma nova conjuntura, que lhe propiciou um

novo espaço.

O cenário político modificava-se, com o fim do macarthismo, com a eleição de

Kennedy, e com o movimento social dos negros sulistas, que reivindicavam seus direitos

civis. A própria esquerda se reestruturava, depois de Kruschev relatar a dureza do stalinismo.

O modelo bolchevique de organização de partido comunista, centrado no Komitern soviético,

passava por uma séria revisão de princípios. A velha esquerda, como agora a chamamos, era

confronta pela proposta de uma nova, menos dogmática, e no caso americano, fundamentada

no ativismo estudantil.

Como movimento por direitos civis, não se limitava a atrair a atenção nacional, mas

demandava um posicionamento moral, era esperado que as canções de protesto agora

tratassem do tema. Entretanto, como se tratava de uma prática, que vemos, externa a

comunidade sulista, a mera existência de canções não indicaria vínculos maiores com o

movimento social.

Porém, notou-se que houve uma maior interação entre o movimento social, e a

música de protesto. Logo no inicio da organização que conduziria marchas e passeatas, foi

adotado uma espécie de hino, a canção “We Shall Overcome”. Ela fora adaptada de um velho

hino religioso negro, com novas letras e um novo arranjo, feito em uma sociedade folclórica

do sul. Os responsáveis eram pessoas que anteriormente eram ligados a esquerda, e àquela

prática de protesto através das canções folclóricas.

Guy Carawan, diretor do Highlander Folklore School, propôs que a canção fosse

utilizada em futuras reuniões e passeatas do grupo. Essa canção fora adaptada de um velho

spiritual, com novas letras e arranjo feitos pelo próprio Carawan, com ajuda de Zilphia

Horton, Frank Hamilton, e Pete Seeger. Todos esses músicos foram ligados anteriormente a

esquerda, e continuavam atuando dentro da forma folclórica. Também apareciam outras

canções afro-americanas, derivadas de músicas de trabalho ou religiosas. Tais músicas, dentro

do movimento, funcionavam como força de coalizão, ajudando aqueles que enfrentavam

espancamentos e prisões a manterem-se com esperança e solidariedade sobre uma causa

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comum. Deste modo, a utilização de músicas, que dentro da comunidade negra, eram de uso

cotidiano ou tradicional, mas que não serviam a política diretamente teve a influência dos

músicos folcloristas e de sua concepção de canção de protesto.

Outra forma de relação ocorria quando músicos vinham de cidades no norte ou do

oeste, apoiar a causa no sul. Contando com o apoio da difusão da mídia, atingiam um publico

espectador maior, constituído em sua maioria por jovens e estudantes. Desta forma, as

músicas contribuíram com o levantamento do apoio público nacional para a causa no sul. Esse

apoio nacional era mais desejado pelos dirigentes negros, pois sua principal estratégia de

atuação era pressionar o governo federal a intervir no regime segregacionista dos estados. O

que acabaria realmente acontecendo.

Outro ponto importante, é o entrecruzamento de experiências entre gerações

distintas de ativistas. Uma originária dos anos 1930, e outra da década de 1960. Portanto,

entende-se que os anos 1960 não foram uma época particular, no sentido que não possuía

ligações com o passado, conforme a imagem que os próprios ativistas tentavam passar.

Portanto, as canções demonstram um elo entre dois modelos de esquerda. Primeiro pela

continuidade de uma prática anterior, que é a utilização da música para fins políticos.

Segundo, pelo aparecimento de temáticas referentes a outros contextos. E por último a

assunção dessa prática de protesto através da música por uma nova geração de músicos,

atualizando e mesmo modificando sua forma num ritmo tão rápido quanto as transformações

que passam pelo ativismo político dos anos 1960 – de seu surgimento, sua radicalização, a

desfiguração nos anos 1970. Enfim, a própria forma folclórica da música carrega

intrinsecamente uma articulação com o passado.

Dividida em três capítulos, a monografia sintetizada aqui sintetiza assume o seguinte

formato.

No primeiro capítulo, trate-se das origens da canção de protesto, revistando sua

prática entre os anos 1930 a 1950. No segundo, são analisadas as relações que as músicas

tiveram com os movimentos sociais do início da década. E finalmente, no terceiro capítulo,

interpreta-se a forma folclórica como um elemento de crítica ao tempo presente daquele que o

emprega, ao invocar um passado indeterminado, mas, que, todavia, oferece uma imagem

antagônica às insatisfações do presente.

Utilizamos para pesquisa uma seleção de canções, disponíveis em seu registro

fonográfico. Não sendo puro som, a canção reúne em si a palavra e a música. O canto,

sobretudo o dito popular, serve-se das entoações da linguagem oral e expressões informais do

cotidiano. O efeito dessa particularidade, posiciona o canto próximo da fala, tornando um

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veículo efetivo de comunicação. Registrado a melodia e a letra, temos uma noção mais clara

de como o canto, combinando as entoações e modos de expressão, comunica o seu conteúdo

semântico explicito.

Complementamos as fontes sonoras, com alguns documentos da década de 1960;

fontes do movimento por direitos civis, e do ativismo estudantil. Tais documentos encontram-

se disponíveis na internet, em arquivos digitais de algumas universidades americanas.

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DA FRENTE POPULAR À NOVA ESQUERDA: ORIGENS DA CANÇÃO DE

PROTESTO, 1930 – 1950

O que acontece com uma canção depois de ser escrita? Podemos pensar na distância

entre a obra – significante – e a recepção – onde se completa o significado. Quando o

compositor compõe uma canção e a coloca no mundo, seja tocando-a ou gravando-a, ela

torna-se algo maior que sua intenção original. Se o compositor é hábil, e o contexto propício,

ele pode induzir sua audiência para o significado que intenta. Às vezes fracassa. Em outras, o

contexto muda, e ainda às vezes a canção gravada vai a lugares inimagináveis, no tempo e no

espaço, onde a recepção da obra ocorra totalmente díspar de outros contextos. Antes que na

década de 1960 a canção constituísse um importante elemento para o ativismo político, a idéia

de se utilizar uma canção como arma de protesto surgiu em um contexto anterior;

particularmente, dentro da esquerda durante os anos da Frente Popular.

Canções que comentam sobre a vida social, que falam de situações políticas,

reclamam de injustiças sofridas, talvez sejam tão antigas quanto o hábito de cantar.1 Mas a

maneira como aqui se organiza canções, compõe-se letras e melodias que remetem a música

folclórica, e como com elas intenta-se um papel político muito consciente, é originário do

momento em que as ideologias de esquerda pretenderam não somente aglutinar sob sua égide

o movimento operário, mas guiá-lo na luta de classes.

Observadas as canções utilizadas no período estudado nos anos 1960, percebe-se

que a concepção de protestar utilizando-se da música, assim como o estilo estético que esta

música deveria assumir, já estavam presentes dentro de uma comunidade intelectual, ligada a

esquerda comunista americana. Formada durante os anos da Frente Popular, e atuante até o

início da Guerra Fria, quando a histeria anticomunista desencadeou o desmembramento da

velha esquerda, músicos e compositores, pretendendo contribuir de alguma forma como

avanço político, engajaram-se em criar um corpo de canções de protesto, visando a

conscientização popular.

Enquanto canções feitas por trabalhadores comentando suas condições de vida

possam ser encontradas já em tempos pré-industriais, o surgimento de uma classe de

operariado decorrente da industrialização da sociedade, a qual no século XX ajuntou-se com

os movimentos de esquerda, dirigidos ou centrados nos partidos políticos, produziu uma arte

1 Cf. BURKE, Peter. A cultura popular na idade moderna: Europa, 1500-1800. São Paulo: Companhia das

Letras, 1989.

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que visava servir à realização de seu projeto. A própria discussão sobre a capacidade crítica

que a obra de arte possuiu – ou não – é originária desse contexto.2 Simplificando em termos

gerais, a discussão girou em torno da capacidade das vanguardas artísticas do início do século

XX em oferecer uma arte negativa da sociedade burguesa, na qual, portanto, a crítica é

imanente; e, em outro pólo, forjar uma arte crítica sobre a forma conhecida e didática da

cultura popular. Esta tinha como fundamento inerente, que a cultura popular, como cultura

dos dominados, representava de alguma forma a resistência dos subalternos. Contudo,

enquanto o “povo” vive e pensa sob a tutela dos dominadores, a cultura popular pura não

serviria ao propósito crítico, devendo, portanto, ser submetida a uma reconstrução, onde,

sobre formas populares, se veiculasse outro conteúdo.

Nos Estados Unidos, o sindicato-geral Industrial Workers of the World (IWW)

editou em 1909 o “Little Red Songbook”, livro de canções operárias sobre a fábrica, o

sindicato, as greves, etc, “para atiçar as chamas do descontentamento”.3 Deste modo, com a

organização do movimento operário, começam a aparecer canções exortando os trabalhadores

a juntarem-se ao sindicato, denunciando condições que os põem na luta contra a classe

dirigente, explicando suas condições de vida e ofertando uma solução coletiva – a

organização operária. De outro lado, havia o trabalho dos folcloristas, coletando e

organizando canções populares de regiões afastadas do grande crescimento industrial, antes

que, como criam, elas desaparecessem. De certa forma, as canções operárias do sindicato, e as

canções populares dos folcloristas, encontrar-se-iam fundindo-se, em um cancioneiro popular,

essencialmente de esquerda. O momento dessa fusão foi a conjuntura da década de 1930,

durante a Frente Popular.4

A década de 1930 fora marcada por uma agitação política, decorrentes, entre outros

fatores, da crise econômica e da crise do liberalismo. Foi o período em que o comunismo teve

seu maior prestígio e adeptos na história americana. Já no início da década de 1930, o partido

2 SAFATLE, V. P. O novo tonalismo e o esgotamento da forma crítica como valor estético. In: Vladimir Safatle,

Rodrigo Duarte. (Org.). Ensaios sobre música e filosofia. São Paulo: Editora Humanitas, 2007, v. , p. 56-89. 3IWW Songbook. Songs to Fan the Flames of Discontent. Disponivel em « http://www.sacredchao.net/iww/ »

Acesso 10 de junho de 2009. “Little Red Songbook” é como ficou conhecido, devido ao seu formato e a simbologia de sua capa vermelha. 4 Em 1935, no VII Congresso Mundial da Internacional Comunista, George Dmitrov conclama os comunistas em

todo mundo para, abandonando temporariamente o objetivo de conquista revolucionária do poder, juntarem-se

aos socialistas, sindicalistas e liberais em uma ampla frente popular. O maior objetivo era se opor ao nazismo no

mundo ocidental. Sendo assim, a maior ação da Frente Popular foi a participação na Guerra Civil Espanhola,

combatendo Franco. Mencionar a guerra civil espanhola é importante para o presente caso, na medida em que o

movimento comunista posterior seria marcado pela memória da guerra, passada nas canções da guerra civil

espanhola. LIEBERMAN, Robbie. “My Song Is My Weapon” People‟s Songs, American Comunismo, and the

Politics of Culture, 1930-50. Chigago: University of Illinois Press, 1995. p. 4

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comunista empenha-se em complementar a disputa política iniciando a tentativa de criar uma

cultura proletária que expressasse a experiência viva e pensamentos dos trabalhadores. É nos

primeiros anos da década de 1930 que aparece a idéia de arte como uma arma na luta de

classe, a qual visava à expressão da consciência de classe com vista à ação política radical.

Contudo, na sua concepção, a arte proletária já nascia com uma ambigüidade: Por um lado, o

respeito à pureza ideológica – mantida pelo PC – e a subordinação da estética a política,

limitava a criatividade artística. Pelo outro lado, o empenho dos escritores, cineastas,

dramaturgos, artistas, no que acreditavam, levou-os a produzirem belas obras, que, afinal,

introduziram temas sociais importantes na tradição artística americana.5

Particularmente à música, a primeira tentativa de compor uma obra proletária parte

do grupo de compositores chamado Composer Collective. Suas composições eram inspiradas

na música européia, sendo um dos gêneros mais trabalhados pelo grupo o coro, no modelo da

Internacional; trabalhado para ser uma canção de massa com um motivo revolucionário.

Também o pessoal do Composer Collective se inspirava muito nos compositores russos

Mussorgsky, Balakirev, Borodin, e Rimsky-Korsakov; o que fazia as músicas revolucionárias

americanas soarem como música popular russa. Segundo a autora, o Collective começou a

perceber que suas músicas não obtinham resposta pretendida junto a uma ampla audiência.

Conscientes de seu isolamento, o Collective começou a utilizar-se de melodias mais usuais,

melodias populares, nas suas composições.6

A isso viria se somar, no contexto da década de 1930, o interesse, manifesto tanto

pelo política cultural do New Deal como pela Frente Popular, pelo passado do povo

americano, ou seja, o interesse pelo folclore, pelo american folk past. À guinada para a cultura

popular, já experimentada pelos compositores eruditos do Composer Collective, segue-se a

utilização de canções folclóricas, “autênticas”, como base para uma música política. Fato este

essencial na constituição da cultura do movimento comunista dos anos seguintes. Essa virada

ao folk, por um lado acompanha um movimento maior, além da fronteira do comunismo, pelo

interesse nos produtos folclóricos, como artesanato, música, ditados, literatura oral.7 Para a

formulação comunista, também revelaria a democracia americana e suas raízes, uma vez que

5 LIEBERMAN, Robbie. op.cit. pp. 25-50. GRAHAM, JR. Ottis L. A América na Depressão e na Guerra, 1933-

1945. IN: LEUCHTENBURG, W (org). O Século Inacabado: a América desde 1900. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar, 1976.pp 367-470. 6 LIEBERMAN, Robbie. op.cit. pp. 25-50. 7 Como nota Vivian Catenacci, os folcloristas interessavam-se, diríamos hoje, pelos produtos da cultura popular,

e não pela cultura propriamente dita, ou seja, a cultura popular como campo da experiência humana. Cf.

CATENACCI, Vivian. Cultura Popular entre a tradição e a transformação. IN: São Paulo em Perspectiva. São

Paulo, v. 15, n. 2, 2001. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-

88392001000200005&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 21 Maio 2008.

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o folk é o resultado da experiência do homem comum frente às vicissitudes da história,

portanto, demonstrando que o povo foi participante ativo na construção da nação. Os músicos

pensavam, por conseguinte, quando cantavam as canções folclóricas, estarem devolvendo a

tradição democrática ao povo, ao mesmo tempo incitando eles a se revoltaram contra as

desigualdades sociais. Foi nessa época que as canções populares do repertório colecionado

pelos folcloristas tornaram-se tão valorosas quanto as canções sindicais. A partir de então, a

canção de protesto amalgamava, dentro da alcunha de folk music, a suposta experiência

popular.8

Embora não se possa dizer que toda música folclórica fora engajada, como de fato

havia músicos, folcloristas, apreciadores que não eram sequer politizados, a história da música

de protesto sobressalta, pois a esquerda se relacionou de tal maneira com o conteúdo formal

da música folclórica, que ela passou a fazer parte de sua própria identidade de grupo. Além do

mais, permaneceram pelo menos nos quinzes anos depois da Segunda Guerra Mundial, como

os maiores promotores e organizadores urbanos da música folclórica. Isto se manifesta nos

centros folclóricos criados, em revistas de divulgação, e na direção de gravadoras. É devido a

isso, que nos anos 1960, ao lado de uma nova geração, como ao lado do Movimento por

Direitos Civis, tenha, a então Velha Esquerda, exercido sua influência9.

Ainda durante a Segunda Guerra Mundial formou-se o grupo de músicos Almanac

Singers. O grupo foi central no desenvolvimento do corpo musical de esquerda, pois foi a

primeira tentativa organizada de atuar como músicos militantes. No contexto de sua formação

(1941), o comunismo perdia forças, devido ao pacto nazi-soviético de 1939, e começava o

isolamento que só se intensificaria nos anos seguintes. Nesse tempo, nos diz Lieberman, os

Almanac Singers ajudaram a manter, sem ser apologéticos, a visão de mundo da esquerda,

contribuindo, desta forma, a manter uma cultura de esquerda.10

O uso da canção como uma arma, como o defendia os Almanac Singers, dependia da

identificação da cultura folclórica com ideais progressistas, que servissem à esquerda. Veja-se

bem, nem todo folclore é progressista. Os cantores viam a necessidade de separar o folclore

como o encontravam do folclore como acreditavam que ele deveria ser. O folclore tal como

8 Dentro do comunismo, o povo e sua cultura, antes vistos como melancólica, atrasada, servil, ignóbil, passa a

figurar com quintessência da pureza, de uma cultura comunitária, sem vícios – pois, estes são parasitas de uma

classe dominante, que, alienígena, explora e submete o povo. Segundo Lieberman, a suposição implícita da

pureza revolucionária do “povo”, e por extensão da sua cultura, distorceu a visão da esquerda, trazendo conseqüentemente muitas frustrações. LIEBERMAN, Robbie. op.cit. p 71. 9 Cf. COHEN, Ronald. D. Rainbow quest: the folk revival and American society. 1940 -1970. University of

Massachusetss Press, 2002. Pp. 39 – 92. 10 LIEBERMAN, Robbie. op.cit. pp 14-25.

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encontrado perpetua a ignorância, a perversidade, e a depravação. Portanto, quando os

Almanac Singers cantavam baladas tradicionais e canções de trabalho, na maioria das vezes,

as letras das canções tradicionais eram substituídas por novas, que carregassem uma

consciência progressista. Neste ponto surge um problema básico o qual persistirá sem

resolução na canção popular engajada, qual seja, a tensão entre expressar os desejos e

necessidades do povo, por um lado, e por outro transcender essas carências básicas para

expressar idéias e ações radicais. Contudo, nos anos 1960 essa tensão diminuiria. Não

somente porque a comunidade negra produzia sua própria música, mas também porque não

mais se tem o abstrato povo como alvo da mensagem. Ocorre, então, uma ident ificação do

cantor com sua comunidade, ou público, que compartilham dos mesmos valores e

expectativas.11

Com a morte de Roosevelt em abril de 1945, o novo governo Truman marca o

acirramento no trato das questões internacionais, especialmente com a União Soviética. Foi o

início da longa crise, ou da vida em crise, que recebe o nome de Guerra Fria. Nesse pós-

guerra imediato, o partido comunista muda suas diretrizes. Assume, novamente, a atitude

ortodoxa de oposição, na qual predita uma iminente crise econômica e conseqüentemente

aumento da consciência de classe. Atacam seu país por seu imperialismo e também por apoiar

práticas fascistas na Europa, como a ditadura do governo de Franco na Espanha. É nesse

tempo que o grupo People’s Songs12

é formado.

O People’s Songs foi criado com o objetivo de resgatar, criar e promover a música

folk. A música folk era vista como portadora da tradição democrática americana, em um

sentido populista. Numa particularidade da esquerda americana, o comunismo foi pensado

como o natural desenvolvimento da tradição democrática norte-americana, desde Jefferson e

Lincoln.13

Essa idéia que remonta a época da Frente Popular continua orientando a prática do

People’s Songs, no sentido que estes buscam a expressão democrática quando utilizam o

estilo folk para compor suas músicas.14

11 “The music of the civil rights movement is so intertwined with the music itself that the two cannot be

separated form each other. The music was not, as so much of the Almanac Singers‟ music was, an add-on to a social issue. The music and the issues were parte of the same fabric.” WEISSMAN, Dick. Which Side Are you

On. An Inside History of the Folk Music Revival in America. New York: Continuum, 2005. P. 142. 12 A partir daqui sera utilizado a sigla P.S para se referir ao Peoples Songsters. 13

“People‟s Songsters‟ view of the democratic American past was complemented by their vision of a world

future based on socialism, peace, and people‟s culture. Far form being contradictory, Communism would be a

natural outgrowth of Americanism. The security and the free and full development of each individual, the

ultimate aim of communism in theory, also seemed to be the promise of American democratic rhetoric and

traditions.” LIEBERMAN, Robbie. Op. Cit. p. 104. 14Ibidem. p. 72.

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Além da mensagem política que se expressa na canção, para o People’s Songs há a

concepção essencial do poder da música em tocar os homens. A música não seria um

entretenimento complementar a ação política, como os dirigentes do partido comunista a

encaravam. Para o People’s Songs, a música é a própria ação política, o instrumento, ou arma

com a qual efetivamente se luta por um mundo melhor. Pensavam em criar um movimento

operário cantante. Essa concepção implica que produtos culturais, que levam tanto a emoções

como a racionalidade, são importantes na formação da consciência política das pessoas.

From People‟s Songs‟ point of view, songs appealed strongly to emotions as well as

to intellect and encouraged participation rather than passive listening. The act of

singing together created a sense of unity and strength that might not otherwise exist.

Dramatic examples of the latter function of song as a weapon include the use of

songs to spread a strike, to drown out epithets of the opposition at a meeting, to

build morale and attract publicity on a small picket line. (…) More important than

such limited tactical uses, however, was the ability of songs to move people, the expectation being that a permanent change in consciousness and action would

result.15

O People’s Songs acreditava que as idéias que eles expressavam nas canções

correspondiam aos interesses objetivos do povo. Uma vez que o povo – o qual aparece

amiúde como sinônimo de trabalhadores – era a classe revolucionária por excelência, o

comunismo – verdadeira consciência da realidade – elucidaria ao povo seus próprios

interesses. No primeiro numero do People’s Songs Bulletin, publicação a qual difundia

principalmente canções progressistas, e que, portanto, era o veículo de divulgação do

cancioneiro de esquerda, lê-se que o povo está em marcha e deve ter canções para cantar. E

continua dizendo que no momento, 1949, a verdade deve reafirmar-se junto às vozes do coro.

Era um importante elemento para o movimento comunista a noção de que ele estava do lado

da “verdade”, que ao povo estaria negado evidentemente pela dominação ideológica das

classes superiores. Segundo Lieberman, a idéia de que o povo estava mobilizado era um

pensamento otimista, mas não real. O contexto, na verdade, já anunciava o acirramento do

anticomunismo, marcado pelo macarthismo. O importante é que os princípios da esquerda

continuavam a formar um paradigma de atuação.16

Enquanto provinham-se da música folk tradicional, adequando novas letras a velhas

estruturas, o P.S rejeitava a popular music (pop music) como estúpida e corrompida. Popular,

no inglês, remete a música de produção de massa, composta visando fins comerciais, frívola

por sua própria natureza. De outro modo, a palavra folk tem referência diretamente à “povo”,

e portanto assemelha-se com o que se chama popular, no português. O sentido de música

15 Ibidem. p. 81. 16 Idem.

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15

popular, se vertido para o inglês, estaria mais próximo de folk music, embora a expressão

ânglica folk também remeta à pureza de uma existência bucólica anterior ao capitalismo.

A crise do capitalismo, que a esquerda esperava, não veio. Pelo contrário, o país saiu

fortalecido da Segunda Guerra Mundial, engatando sua economia à manutenção de um

complexo econômico-militar, dinamizado pela Guerra Fria. No plano político, talvez devido a

estabilidade econômica e prosperidade social, viu-se o fortalecimento do conservadorismo. O

crescimento econômico propiciou uma profunda transformação cultural com aquilo que se

pode dizer que foi seu propicio, a cultura de consumo. Escreveu o historiador William E.

Leuchtenburg,

o boom econômico habilitou milhões de americanos a participarem da florescente cultura de consumo. Com uma renda disponível sem precedentes, os consumidores

debicavam muito de seu tempo a instituições que cuidavam de suas necessidades e

caprichos – galerias de compras, com corbeilles de flores pendentes e música

ambiente, lojas de departamentos nos bairros residenciais, com auditórios cívicos,

supermercados com filas e filas de embalagens brilhantemente coloridas. Fazer

compras, embora ainda fosse normalmente uma tarefa doméstica, também se

converteu numa espécie de entretenimento.17

Qual prova maior e definitiva de uma sociedade com milhões de pessoas muito

distantes da preocupação com a subsistência elementar de que o creme dental com riscas

vermelhas, segundo Leuchtenburg.18

Portanto, são esses novos fatores do contexto, que não

foram bem interpretados pela esquerda americana, segundo Lieberman. Mesmo o movimento

trabalhista não permitia uma base de atuação, pois na conjuntura da Guerra Fria, os sindicatos

cortaram suas ligações com o partido comunista. O próprio partido torna-se ilegal, acusado

pelo Comitê de Assuntos Antiamericanos, o governo recorre a uma lei antinazista decretada

durante a Segunda Guerra, segunda a qual era proibido atuar ou advogar para a derrubada do

governo federal. Isolados, o movimento sobrevive voltado a si mesmo. Na perspectiva do

observador posterior, o P.S não conseguiu perceber que suas proposições estavam erradas.

Não havia nenhuma Frente Popular no pós-guerra; o povo não estava muito disposto a receber

a herança democrática passada pelas músicas; e as canções não poderiam por si próprias criar

o tipo de movimento pelo qual esperava o grupo. Portanto, as canções, sem a audiência

devida, só encontram público junto às pessoas ligadas ao movimento, constituindo o senso de

comunidade, expresso em um repertório de signos e práticas comuns, que a autora chama de

cultura do movimento comunista.19

17 LEUCHTENBURG, William. As Dores do Parto do Liberalismo. IN: LEUCHTENBURG, W (org). O Século

Inacabado: a América desde 1900. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1976. p. 755. 18 Ibidem. p. 758. 19 Cf. LIEBERMAN, Robbie. Op. Cit.

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16

Decorre da cultura do movimento comunista a manutenção da prática do protesto

através da música, constituindo o seu legado. Destarte, nos anos 1960, embora não houvesse

uma atuação da esquerda, no sentido tradicional, e tampouco um grande fascínio pela

ideologia, como resultado da desilusão com a URSS (Relatório Kruchev, invasão da Polônia),

a cultura do movimento comunista sobrevivia. E isso é verificável nas antigas canções

recorrentes, nas canções da Guerra Civil Espanhola, mas sobretudo na concepção de que a

música possa transmitir uma mensagem política e ao mesmo tempo cumprir sua função

estética.

No processo histórico desses anos em que as canções solidificaram-se no repertório

cultural do movimento comunista, foram importantes dois espaços: o hootenanny, espécie de

sarau musical, e a campanha presidencial do candidato Henry Wallace.

O termo hootenanny refere-se a uma festa musical, nomeada assim por causa de

Hootin‟ Annie, uma lendária rainha cujos poderes luxuriosos cativavam os serradores.

Portanto, hootenanny é um tipo de apresentação no qual o interprete, embora tome a posição

privilegiada do palco, chama o público a sair de sua condição de mero expectador para

participar no canto da canção. O objetivo é romper com a dicotomia entre o apresentador da

música e o público seu receptor. Como a folk song é a canção do povo, não seria apropriado

que ela fosse utilizada para o tipo de recreação na qual o homem consome o produto que lhe é

ofertado por um sistema industrial de produção de cultura. Como canção que foi criada pelo

gênio do povo, pertence a todos, e o intérprete tem, nesse caso, o papel menos pretensioso de

enunciar e conduzir o canto, para que o público o siga.

Estas festas serviram para solidificar a identidade do movimento comunista, pois,

pelo seu formato e conteúdo, marcavam uma separação com a cultura dominante. No sarau, o

sentido era que todos participassem, pois é o povo que faz cultura e política. Robbie

Lieberman acredita que o hootenanny é por si uma forma crítica de organização do espetáculo

artístico, pois é na sua essência antagônico ao modelo predominante da cultura industrial, a

qual se baseia na individualidade solitária daquele que consome; enquanto no hootenanny o

evento deve ser coletivo. Soma-se que o hootenanny provinha a seus participantes um espaço

físico e cultural onde expressavam sua crença em uma nova ordem social.20

O outro espaço de consolidação da cultura comunista foi a campanha do partido

progressista de Henry Wallace em 1948. Político “new dealer”, no pós-guerra sua campanha

representava uma terceira via, liberal, progressista, e pacifista. Wallace defendeu durante a

20 LIEBERMAN, Robbie. Op. Cit. pp. 115-114

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campanha a cooperação e coexistência pacífica com a União Soviética. O partido comunista

se junta à campanha de Wallace, empreendendo um tremendo esforço eleitoral. O People’s

Songs atua vigorosamente na campanha, compondo, difundindo e apresentando canções em

comícios.

A despeito das energias empregadas, a eleição foi um fracasso total, Wallace

recebeu 2,37% dos votos nacionais. Contudo, o significado de sua campanha presidencial está

menos no seu resultado estatístico do que no sentido que teve para a esquerda como um todo.

A campanha de Wallace representou para o People’s Songs um terreno de teste para sua

concepção de canção como uma arma. As canções e músicas simbolizaram a força do

movimento frente a uma tarefa não muito possível. Embora o fracasso em recriar o clima da

Frente Popular, e mesmo o fracasso em convencer as pessoas a votar em Wallace, as canções

simbolizavam a união da esquerda em uma causa comum, geradora de identidade.

O fracasso levou o People’s Songs a examinar suas causas, chegando a uma crítica

das canções utilizadas na campanha. Concluíram que o principio da arte engajada não estava

errado, mas, pelo contrário, a arte devia tornar-se ainda mais engajada para levar claramente a

crítica social ao povo em um formato estético bem elaborado, mas popular. De certa forma,

essa reavaliação reflete o ambiente hostil a toda esquerda, que então começara. Se o cúmulo

da hostilidade foi o macarthismo, isso não significa - passada a temporada de caça as bruxas -

um abrandamento do red scare.21

Respondendo a um ambiente hostil, o movimento comunista torna-se mais fechado,

mais dogmático, segurando-se em suas certezas, que afinal não durariam muito. A essa

recrudescência, acompanha uma modificação no grupo musical; em 1949, o People’s Songs

acaba devido a falta de fundo para manutenção. Cria-se o People’s Artists, grupo que se

caracterizou por seu dogmatismo ideológico, ligando-se mais diretamente à política geral do

partido comunista do que antes, e por suas canções mais panfletárias, nas quais a matéria

política sobrepunha-se à poética. Essa organização perduraria ao longo dos anos 1960,

portanto, teve uma grande atuação dentro dos novos movimentos sociais. Assumiria no rol

principal de seus temas a paz, a liberdade cívica, e os direitos civis, em prejuízo de lemas que

lembrassem conexão direta com o marxismo, então suspeito pelas recentes revelações sobre a

URSS. Sua publicação, Sing Out! seria a maior publicação do folk revival dos anos 1960.22

21 O “medo vermelho”: a expressão refere-se ao temor contra o comunismo, que foi especialmente forte durante

os anos 1950. 22

TACHI, Mikiko. Commercialism, Counterculture, and the Folk Music Revival: A Study of Sing Out!

Magazine, 1950–1967. IN: The Japanese Journal of American Studies, No. 15 (2004)

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Na segunda metade da década de 1950, o movimento desmorona politicamente;

Entretanto, a cultura do movimento continua. A própria música folk prossegue forte,

alcançando um sucesso crescente, quando passa a figurar em filmes, peças de teatro, rádio e

televisão. Enquanto politicamente a Velha Esquerda se desestruturasse, sua cultura manteve-

se, passando a visão de que é preciso combater a cultura dominante a uma nova geração. A

tese de Robbie Liberman defende que a experiência vivida nos anos em que o movimento

comunista teve algum significado político nos EUA, ou seja, entre 1930-1950, traduzida em

termos culturais, sobreviveu à própria ideologia de esquerda.23

Desta forma a permanência de

canções, como os da guerra civil espanhola, e outros elementos culturais como a literatura e o

cinema, continuaram a fazer sentido àqueles que participavam da cultura do movimento

comunista mesmo depois desse movimento ter soçobrado política e ideologicamente.24

Devido a isso a música folk representou, no início dos anos 1960, um papel importante dentro

da Nova Esquerda e no Movimento por Direitos Civis, já pelo simples fato de entrecruzar a

experiências de duas gerações de ativistas; um indício de origens intelectuais da nova geração.

Quando nos anos 1960 rompeu a era de grande movimentação política, chamada por

Leuchtenburg de “as dores de parto do liberalismo”, para fazer uma metáfora com a geração

de baby boomer25

s da liberal sociedade afluente, ela se postou em antagonismo com a década

predecessor.26

Foi contra a sociedade de consumo, a massificação da vida, e apatia social dos

anos 1950, que a geração estudantil do início dos anos 1960 retoricamente se opôs.27

Em

grande parte, essa visão dos anos 1950 foi fixada pela memória da geração de baby boomers,

como veremos no próximo capítulo.

Para os historiadores Andrew Jamison e Ron Eyerman, essa visão de apatia reinante

no pós-guerra não é verdadeira.28

O que ocorre no pós-guerra, com a histeria anticomunista, é

o ofuscamento e a impossibilidade mesma que vozes discordantes aparecessem, embora

existissem. Ou talvez possuíssem outras formas, que a vista do ideal participativo de

intelectuais e estudantes aparentassem apatia. William Leuchtenburg exprime sobre essa

23 “The evidence led me to conclude that the politics and culture of the movement were inextricably linked and

that this link was an essential, yet relatively neglected, component of the story of American Communism”

Liebermann.Robbie. op.cit. p. XIV 24 Ibidem. 149 –166. 25 A expressão baby boomer refere-se ao grande aumento de nascimentos ocorrido após o fim da II Guerra

Mundial. Constituiu verdadeira explosão demográfica, responsável pelo o aparecimento de uma faixa etária

jovem, socialmente distinguível. 26 LEUCHTENBURG, William IN: op.cit. pp. 931-925. 27

Port Huron Statement of the Students for a Democratic Society. 1962. Disponivel em: «

http://coursesa.matrix.msu.edu/~hst306/documents/huron.html » Acesso em 7, jun. 2008. 28 JAMISON, Andrew.; EYERMAN, Ron. Seeds of the Sixties. University of California Press, 1994.

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questão um juízo sensato, que evita por parte do historiador o elogio pomposo da geração dos

anos 1960 como também o reproche a apatia dos anos 1950. Pois,

se lhes faltava o fervor dos ativista da década de 1960, que lhes sucederiam, também

estavam isentos da sua arrogância. Se tinham uma mentalidade menos cívica,

entendiam o valor de um estilo de vida que era pessoal e não politizado. Além disso,

por mais passivo que fosse o campus, o termo “Geração Silenciosa” não caracteriza

adequadamente as turmas arruaceiras que forneceram as dramatis persoane para West Side Story, de Leonard Bernstein, os delinqüentes juvenis que fizeram disparar

as estatísticas sobre crimes de violência, ou todos aqueles “rebeldes sem causa” que

fizeram da morte de James Dean uma recordação mórbida. 29

Contudo, são as grandes mudanças da sociedade americana ao longo do século XX,

o que inclui o desenvolvimento da sociedade de consumo nos termos industriais, que geraram

o tipo de angústia urbana que é o conteúdo não apenas do musical West Side Story30

, mas que

ocasionará manifestações literárias, artísticas e sociológicas.31

Tal angústia, a qual traduz a

cultura da sociedade industrial avançada, foi também o que desencadeou a reação conhecida

como contracultura, interpretada por Theodore Roszak, em um livro clássico, como uma

revolta contra a cultura tecnocrática.32

O importante, enfim, é entender que as origens do protesto político dos anos 1960

encontram-se na sociedade próspera de consumo que se ergueu no pós-guerra, apesar da

geração de baby boomers dos anos 1960 intentarem romper com o passado, que julgavam

atávico; o que em certo sentido ele era. Posto que as vozes discordantes eram relegadas ao

canto ou a um submundo urbano que emergiria nos anos 1960, como a contracultura. O

ativismo político da década de 1960, revestido pelos próprios militantes como a saída da

apatia, só foi possível porque, em uma nova situação da Guerra Fria, uma nova geração travou

contato com àquelas precedentes vozes, entrecruzando experiências. A música de protesto dos

anos 1960 deve ser entendida, portanto, nesse sentido, como uma prática anterior,

desenvolvida no contexto dos anos 1930, que se manteve ao longo do pós-guerra apesar do

macarthismo, voltando a tona no início dos anos 1960, com o proveito, então, de toda força

dos novos meios de comunicação, do rádio à TV.

29 LEUCHTENBURG, William IN: op.cit. p. 773 30 West Side Story é um musical composto por Leonard Bernstein, baseado em Romeu e Julieta, sobre um

romance entre dois jovens novo-yorkinos, valendo-se de forma hibrida entre ópera erudita européia e os musicais

da Broadway. 31

Na literatura talvez o melhor exemplo seja o movimento beat. A Pop Art é o exemplo em mente no caso. É

significativo que, na década de 1950, os intelectuais críticos da sociedade de consumo que o EUA tornara-se –

como C. Wright Mills, Dwight McDonald, David Riesman, até mesmos os estrangeiros como H. Marcuse e H. Arendt – tenham tido sua formação nos anos anteriores a Segunda Guerra Mundial. Cf. JAMISON, Andrew.;

EYERMAN, Ron. Op. cit. 32

ROSZAK, Theodore. A Contracultura: Reflexões sobre a sociedade tecnocrática e a oposição juvenil.

Petrópolis: Vozes, 1972.

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A CANÇÃO E O PROTESTO CÍVIL ENTRE 1960 – 1966.

A noção de que a onda de protestos civis, que emergiu junto com a década de 1960,

reteve influências intelectuais e práticas de um radicalismo anterior não deve ser entendida

como uma simples continuidade, sobrevivendo incólume às mudanças de conjuntura. Assim,

no caso da música, da prática de canções de protesto baseadas no folclore, ocorrem mudanças

que redefinem a posição do músico e do público, da música e da sociedade. Nem tempo

suspenso, tampouco tempo findo, o passado – sombra pétrea no fundo do folclore – de um

estilo de música, de uma forma de cantar, do manejo das letras políticas, luta contra o

presente. Nos emergentes movimentos civis da década de 1960, dos quais se destacam, a

princípio, o movimento por direitos civis, as canções de protesto lograram participar.

Como resultado do incentivo dado pelo governo Roosevelt, na era do New Deal, ao

resgate da cultura popular americana, do trabalho de folcloristas coletando e publicando o

resultado de suas pesquisas, de divulgadores e promotores que não se limitavam a canção de

protesto da esquerda. Ao longo dos anos 1930 – 1960 um público apreciador de música

folclórica foi se constituindo. De modo que, na segunda metade da década de 1950, a música

folclórica torna-se cada vez mais rentável, passando a ser explorada mais intensamente pela

indústria fonográfica, o que, por sua vez, cria novos consumidores. Os autores americanos

denominam esse fenômeno de folk revival,1 pretendendo salientar a revivência da cultura

popular em uma sociedade industrial, majoritariamente urbana.

Ao passo que a música folclórica torna-se mais lucrativa, o interesse comercial traz

consigo o problema da falsificação. Tenta-se preservá-la de tornar-se um puro produto

comercial, ou melhor, preservar sua autenticidade – a garantia de que o produto comercial tem

verdadeira relação com a cultura popular. Desta forma entendem-se as justificativas que a

revista “High Fidelity”, dá para os ganhos do cantor Pete Seeger.2 O artigo informa o salário

médio anual que o cantor recebe de suas atividades, discos e concertos. O fato de ganhar

dinheiro - pouco dinheiro - com a música folclórica, não a torna comercial de todo; afinal a

bagatela é somente uma quantia justa. O que importa, afinal, é que Seeger não é um falsário a

representar o popular. Então, o autor do artigo se empenha a retratar o cantor como alguém

1Há autores, como Dick Weissman e Ronald Lankford, que consideram o folk revival como esse momento dos

anos 1950, no qual o interesse do público, e na mesma medida o interesse comercial, sobre a música folclórica atingem os níveis mais altos até então. Outros, como Ronald D. Cohen, entendem o folk revival como um único

processo, que vai de 1930 a 1970. 2 BURDEN. J. C. “Pete Seeger” HIGH FIDELITY. Massachusetts: Jan. 1963. Transcrição. Disponível em: «

http://www.peteseeger.net/hifi1963.htm » Acesso em 7, jun. 2008.

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que vive de maneira tradicional, quase arcaica, em sua casa montanhesa, um verdadeiro

conhecedor da música folclórica – apreendida em suas viagens pelo país, em contato com as

fontes originais. Pete Seeger era um veterano; cantor de protesto e divulgador da música

folclórica participara das agitações políticas da década de 1930, fora membro do partido

comunista, perseguido pelo macarthismo, nos anos 1960 representava a geração anterior, na

música e na esquerda. Obtendo um lugar na rede de comunicações, e alguma rentabilidade

com a música, isso não transformava quem ele era: “Seeger has changed little with success.” 3

Em um concerto de 1963, Seeger expõe sua visão sobre a grande difusão pelos

meios de comunicação que a música folclórica vinha usufruindo nos últimos anos. Para ele, os

novos compositores estavam tomando para si o legado da geração de 1930-50, ao fazerem

canções sobre qualquer tema da vida cotidiana, sem se preocuparem com o sucesso comercial

mas apenas em fazer boas canções. Se algum deles, contudo, ou alguma música alcançasse as

paradas de sucesso, não haveria problema algum, já que isso significaria que estavam

alcançando mais pessoas.4 Fato positivo, os meios de comunicação de massa alcançam um

público grande, que satisfaz o desejo do cantor/compositor de comunicar-se. Desejo, talvez,

atormentado de comunicar-se tanto com tanta gente; mas parece recorrente na história

contemporânea a vontade de se fazer ouvir pela nação, pelo povo, por alguns milhões de

indivíduos - pela multidão.5

Esse fato demonstra uma grande mudança de posição da música folclórica em

relação aos meios de comunicação e à cultura de massas, refletida no discurso de um

intérprete que fora importante na tentativa da Velha Esquerda de usar a canção como

instrumento político. Se antes a música folclórica já continha em si um elemento que a

opunha àquela música de grande público, ou seja, àquela divulgada pelo rádio, com objetivos

3 Idem. 4 PAXTON, Tom. My Ramblin Boy. Intéprete: Pete Seeger. IN: SEEGER, PETE. “We Shall Overcome”

Carnegie Hall Concert Live June 8, 1963. Columbia. 1989. 2 CD. 5 Ortega y Gasset deu uma definição clássica: “O conceito de multidão é quantitativo e visual. Se o traduzirmos

para a terminologia sociológica, sem alterá-lo, encontraremos a idéia de massa social. (...) Massa é „o homem

médio‟. Desse modo converte-se o que era apenas quantidade – a multidão – em uma determinação qualitativa; é

a qualidade comum, é o monstrengo social, é o homem enquanto não diferenciado dos outros homens, mas que

representa um tipo genérico. (...) É evidente, até óbvio demais, que a formação normal de uma multidão implica

a coincidência de desejos, de idéias, de modo de ser dos indivíduos que a integram” ORTEGA Y GASSET, José. A Rebelião das Massas. São Paulo: Martins Fontes, 2007.p 44. Para aqueles que compreendem, humanamente,

esse fato historicamente novo da civilização contemporânea, ocorre-lhes grandes preocupações quando não

pesadelos. Robert Paxton acredita que Alexis de Tocqueville, quando visitou os EUA, já no séc. XIX previa

dentro da república democrática americana uma forma de coerção popular que não se enquadrava em nenhuma

teoria política porque jamais existira até então. Essa forma, da sociedade de massas, Paxton vê seus

desenvolvimentos maléficos no fascismo e nazismo do século XX. A preocupação com massa e o poder, para

utilizar o título de Elias Canneti, criou trabalho a vários intelectuais do século XX; a maioria, ora ou outra, de um

jeito ou de outro, deteve-se com o problema não resolvido. Cf. PAXTON, Robert. O. A Anatomia do Fascismo.

Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2007.

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comerciais claros, agora, nos anos 1960, alcançava os grandes meios de comunicação

modernos - o rádio e a televisão.6

Há, nessa concepção de Seeger sobre o papel das mídias em difundir a música para

mais pessoas, não uma resignação à estrutura comercial da indústria fonográfica, e tampouco

um sinal de expropriação e incorporação levada a cabo por uma maléfica Indústria Cultural,

como alguns autores querem acreditar. Por exemplo, para Eduardo Henrique Martins Lopes

de Scoville, na década de 1960 a indústria fonográfica “teve um papel fundamental para

restabelecer a ideologia dominante, assimilando a revolução cultural (contracultura) e a

música associada aos movimentos sociais, políticos e culturais”. 7 E isto porque a indústria

cultural “se utiliza da descaracterização da obra musical e na neutralização de sua eficácia

como manifestação cultural autêntica, abstraindo-a de qualquer envolvimento desfavorável

com a ideológica dominante”.8 Esse processo de neutralização acontece, segundo o autor, pois

a comercialização em larga escala distorce o conteúdo, mesmo que este permaneça inalterado,

o que faz com que seu “fermento corrosivo” só seja “perceptível para uma pequena parcela da

audiência”.9

Fala-se de uma expropriação pela indústria da música, transmutando-a em um

produto o qual não mais contém qualquer sentido crítico que outrora possuiu. O problema

dessa abordagem é que desconsidera que nunca houve um momento, desde a invenção do

gramofone, em que a música esteve dissociada de um mercado de bens culturais.10

A

gravação sonora, fenômeno cultural contemporâneo de reprodução mecânica da arte, que

implica em um sistema de moda, cultura de massas, ou cultura industrializada, algures já

analisada, relaciona-se intrinsecamente com a história da música no século XX, sendo

impossível falar de momentos em que estiveram separados. Luis Tatit, em seu livro O século

da Canção, afirma que os meios mecânicos de reprodução do som impuseram, já nas

primeiras décadas de som gravado, uma triagem da música; excluindo para a extinção formas

6 Cf. pop 7SCOVILLE, Eduardo.H.M.L. A atuação da indústria fonográfica norte-americana no mercado da música

rock/pop na década de 1960. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Paraná, Setor de Ciências

Humanas, Letras e Artes, 2002 p. 2. 8 Ibidem.p. 5. 9Ibidem p. 301. Além de Scoville, posições semelhantes são encontradas em CORRÊA, Tupã Gomes. Rock,

nos passos da moda: mídia, consumo X mercado cultural. Campinas, SP: Papirus, 1989. e PUTERMAN, Paulo.

Indústria cultural: a agonia de um conceito. São Paulo, Perspectiva, 1994. Cf. LIMA, H. S. A Indústria

Cultural: debate sobre a utilização e apropriação do conceito. In: 15º EVINCI. Evento de Iniciação Científica da

UFPR, 2007, Curitiba. 15º EVINCI. Livro de Resumo. Curitiba : PRPPG, 2007. p. 377. 10 O próprio mercado de bens culturais, ou, o mais fundamental, a cultura burguesa se constituiu juntamente com

a formação do mundo contemporâneo, no final do século XVIII. H. Marcuse, nos anos 1930, como W. Benjamin

já fizera antes, para falar de seu tempo estuda o caráter da cultura ao longo do século XIX. Cf. MARCUSE,

Herbert. Sobre o Caráter Afirmativo da Cultura. IN: Cultura e Sociedade. v.1. 2.ed. SP: Paz e Terra, 1997. pp.

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de cantar e tocar que não eram compatíveis com a tecnologia de captação sonora. A limitação

técnica, ao mesmo tempo, fez com que se privilegiassem certos estilos, mais adequados ao

registro fonográfico. Ainda ocorreriam, nas primeiras décadas, outras triagens, igualmente

excludentes, com a mudança da função música para o entretenimento. 11

A utilização desta

forma de som gravado para o entretenimento, constituindo-se a empresa musical já nos

primeiros anos do século XX, inaugura, juntamente com a fotografia, o cinema, a gráfica

moderna, a cultura industrializada.

A música folclórica, conforme apropriada por uma comunidade urbana já nos anos

1930, sempre se relacionou os meios de comunicação modernos, dependendo, de alguma

forma, da relação de troca comercial. O fato novo, evidente a partir da segunda metade da

década de 1950, é que a música folclórica, a qual só ocupara até então uma posição marginal

dentro do mercado, tornar-se um estilo altamente lucrativo, agregando maior valor comercial.

O grande debate que esse fato levanta dentro da comunidade consumidora da música

folclórica, como visto no caso de Pete Seeger, é sobre autenticidade da música; o quanto

folclórico ela ainda permanece.

Mesmo obtendo grande sucesso comercial, a música folclórica não deixaria de

produzir canções de protesto sobre os assuntos políticos de então. Ocupar os espaços da mídia

significava atingir um número maior de pessoas, o que vinha de encontro com o desejo de

comunicar daquele que canta ou enuncia a palavra. Outro modo de entender a questão, o

espetáculo televisivo ou o registro sonoro em disco, perpetua o momento efêmero de

enunciação da palavra, torna possível sua repetição ao êxtase.12

Como também, por exemplo,

o grande do impacto que os discursos de Martin Luther King tiveram foi graças a sua difusão

nacional pela televisão.

Com a emergência do movimento por direitos estudantis, a música passa ter uma

importante função dentro do movimento social, sendo uma parte a comunicação com um

público – consumidor, de massa, que deposita nos meios de comunicação, ou – como quiser

chamar – indústria do entretenimento, o seu lazer.

Já se argumentou que o Movimento por Direitos Civis só conseguiu lograr

resultados porque contou com a televisão a espalhar o espetáculo da segregação racial por

11 TATIT, Luiz. . O Século da Canção. Cotia: Ateliê Editorial, 2004. 12 Os efeitos disso foram discutidos por Guy Debord como sintoma da alienação estrutural da sociedade

contemporânea, que deposita sua experiência no espetáculo – o domínio da imagem, que por definição não é

experiência. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

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todo o país.13

Os movimentos sociais assim como a cultura não se separam do modo de

reprodução da sociedade industrial, mas acontecem dentro dela e com seus recursos.

O protesto no início dos anos 1960 acompanhou as mudanças na conjuntura interna

e externa. Internamente, o fim do macarthismo e do governo conservador Eisenhower,

representou um abrandamento do anticomunismo, e abertura ao debate político. No plano

internacional, foi um momento de revisão da atuação política da esquerda, abalada pelo

relatório Kruschev. A eleição de Kennedy seguiu os trilhos da sociedade afluente, na qual a

classe média ostentava o carrinho de compras de supermercado como troféu de sua vitória

existencial. Porém, a organização dos jovens negros sulistas lembrava à nação que havia

problemas na democracia norte-americana. Com eles, outros estudantes – então um grupo

significativamente grande devido a expansão universitária – demandavam reforma

universitária, reclamavam contra a guerra fria, e manifestavam apoio a causa negra. Logo,

com a intromissão na Guerra do Vietnam, cresceria a oposição ao conflito, ajuntando-se nas

fileiras de reclamações que se manifestavam.

Segundo Anderson, a década de 1960 caracterizou-se pelo ativismo político, que se

expressa no debate de assuntos públicos e demonstrações abertas de inconformismo social. O

amplo movimento de contestação que perpassou toda a década de 1960, é um caleidoscópio

de eventos, pois não podem ser englobados sob um único grupo, ou partido, e tampouco um

ideário político coerente. Para este historiador, tal ativismo envolveu uma variedade de temas

complexos, mas que possuem a similaridade de reclamarem alguma mudança social. Esse

elemento comum o permite apreender o fenômeno do ativismo sob o conceito “the

movement”; o sentimento generalizado de pertencer a um movimento, cuja definição meio

amorfa, indeterminada, como o próprio autor admite, conota a noção de experiência e

13 W. Leuchtenburg lembra a importância que a televisão teve também ao provocar a indignação dos negros

discriminalizados por sua cor e não por seu dinheiro. “A cultura de consumo gerou profundo impacto numa

convulsão da qual se poderia pensar que estivesse muito distante: a campanha pela igualdade dos negros. (...) A

vívida amostra da abastança da sociedade branca nas telas de televisão dos guetos negros ajudou a provocar a ira

pela má distribuição de riquezas e a exigência de uma repartição mais justa. Certo para a maioria dos favelados

do mundo, a posse de um aparelho de TV teria parecido um requintado luxo, mas, numa terra de superabundância, os negros sentiam compreensivelmente que eram vítimas de relativa privação. Além disso, o

fato de muitos viverem bem acima do nível de subsistência significava que um número cada vez maior estava

exposto a formas adicionais de discriminação, quando pretendiam gastar seu dinheiro. Como notou um

observador estrangeiro „somente pessoas que estão relativamente prósperas se preocupam, em primeiro lugar,

com a espécie de serviço e de tratamento que lhes é dispensada num restaurante”. LEUCHTENBURG, William.

Cultura de Consumo e Guerra Fria. IN: LEUCHTENBURG, W (org). O Século Inacabado: a América desde

1900. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1976. p.793. O movimento por direitos civis deve-se, em grande parte, a

emergência de uma “classe média negra”, que não podia auferir suas vantagens por motivos arcaicos que não

deveriam caber na sociedade capitalista.

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propósito comum a uma geração.14

A noção de movimento, portanto, serve para apreender

essa sensação que foi característica ao ativismo político na década de 1960, sensação de estar

do mesmo lado, de apoio mútuo, contra os problemas da sociedade americana, e a favor de

reformar o que se achava insatisfatório.15

Pensando em termos de geração, Anderson diz que a origem do “movimento” nos

anos 1960 está na conjuntura dos anos do pós-guerra, na sociedade que começa a viver sobre

a crise da Guerra Fria. Os anos 1950 foram marcados pelo crescimento econômico,

possibilitando a afluência da sociedade de consumo, na qual a oferta abundante de

mercadorias, e o poder de compra de uma crescente classe média, produziram a impressão de

estabilidade social e bem-estar. Aqueles que tinham vivido as provações da crise econômica

de 1929 e da Segunda Guerra Mundial, nos anos 1950 pretendiam nada mais que a

estabilidade financeira e familiar. Tal ambiente gerou uma mentalidade dualista que se

manifesta no medo do comunismo, encarado como inimigo externo, e defesa patriótica contra

tudo o que fosse aparentemente antiamericano. A histeria anticomunista, para Anderson,

significou mais que a condenação da ideologia marxista, foi um sentimento coletivo contra a

subversão, contra o protesto, contra divergências, preferindo o consenso ao debate. Os

Estados Unidos tornavam-se uma sociedade de classe média, que desfrutando o conforto da

sociedade de consumo, deixava de debater problemas sociais existentes, incômodos, que

permaneciam velados.16

Ainda segundo Willian Leuchtenburg, o início dos anos 1960, é a eleição de John

Kennedy para a presidência. Para este historiador, a administração Kennedy foi depositário de

um idealismo, que representava o comprometimento com o novo, com a renovação da

sociedade – estimulado também pelo fato de ser o mais jovem presidente eleito até então. Em

seu discurso de posse, Kennedy chamava todos a participarem: “E portanto, meus

companheiros americanos, não perguntem o que o seu país pode fazer por vocês; perguntem

antes o que vocês podem fazer pelo seu país.”17

Para Leuchtenburg, o idealismo exerceu forte

14 “Almost a mystical term, „the movement‟ implied an experience, a sense of community and common

purpose.” Terry. H. The movement and the sixties. Oxford, New York: Oxford University Press, 1995. p. IV. Pode-se traçar um paralelo com a importância dada por Helenice Rodrigues da Silva ao conceito de geração

para explicar o Maio de 1968 francês. Geração é entendida, portanto, como um conjunto de experiências

comuns, partilhadas por pessoas mais ou menos da mesma idade, que dão forma e conteúdo ao sentido atribuído

a realidade Cf. SILVA, Helenice Rodrigues da. Fragmentos da história intelectual: entre questionamentos e

perspectivas. Campinas: Papirus, 2002. 15 ANDERSON, Terry. Op.cit. . p. IV 16

Ibidem p.7-16 17 LEUCHTENBURG, William. As Dores do Parto do Liberalismo. IN: LEUCHTENBURG, W (org). Op.cit. p.

833-834.

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influência nos jovens, convidados a participarem da renovação da sociedade, foram

estimulados a organizarem-se.18

Voltando a temática postulada por Anderson, embora Kennedy representasse um

brando idealismo político, foi a organização estudantil negra no sul, em torno do SNCC19

, que

lançou os anos 1960.20

No entanto, a emergência do protesto político nos anos 1960, cujos

participantes eram em sua maioria jovens e universitários, revela que havia problemas na

sociedade que vivia a Guerra Fria. Portanto, quando o Movimento por Direitos Civis nos

estados sulistas ganham notoriedade nacional, ele funcionou como um estopim da década,

pois demonstrou exemplo e coragem em se opor à ordem estabelecida, na busca de melhorias

sociais.

Para Raymond D‟Angelo, em seu estudo The American Civil Rights Movement, foi o

envolvimento estudantil na causa dos direitos civis, que impulsionou e conseguiu organizar o

movimento de massas que lutou pela igualdade negra nos anos 1960. Embora existisse uma

organização como a NAACP21

cuja atuação na suprema corte fora responsável por alguns

ganhos, foi o envolvimento dos estudantes, a sua organização SNCC atuando junto à

comunidade negra, que conseguiu maior articulação e mobilização para a causa. Segundo

D‟Angelo,

The involvement of college students brought enthusiasm and optimism to the

movement – younger, more impatient activists who escalated the civil rights

struggle and broadened its base. Creating a spiral of activity, they were involved

throughout the Southern states, and their tactics spread in several directions,

encompassing sit-ins, freedom rides, jail-ins, boycotts, voter registration drives, and

marches. This was the beginning of a new phase of the movement.22

Em síntese, todos os autores concordam que a participação dos jovens,

particularmente os estudantes, foi essencial. Eric J. Hobsbawm diz que, no contexto da

prosperidade dos “anos dourados”, os anos 1960 viveram uma revolução cultural, que elevou

a juventude como o agente social de maior destaque. Para o comunista inglês, “a radicalização

política dos anos 60 foi dessa gente jovem, que rejeitava o status de crianças e mesmo

adolescentes” e “fazia a fortuna da indústria fonográfica, que tinha de 70% a 80% de sua

produção vendida quase inteiramente a clientes entre as idades de catorze e vinte-e-cinco

18

Idem 19 Student Nonviolent Coordinating Committee 20 ANDERSON, Terry. Op.cit. p. 47 21 National Association for the Advancement of Colored People. 22 D‟ANGELO, Raymond. The American Civil Rights Movement. Readings and Interpretations. McGraw-

Hill/Dushkin, 2001. p.279

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anos”.23

Em grande parte isso se deveu ao aumento das vagas universitárias, cursadas por

estudantes de classe média que devido a abundância econômica gozavam de tempo livre,

entre os estudos e não fazer nada, para se engajar. Remetendo novamente a Anderson:

Student participation and leadership in 1960 set a pattern for the movement during

the entire decade. Students were ideal protesters since compared with the rest of

society they had little to loose. They usually did not have responsibilities such as

families or careers, and often had more free time and more energy.24

Os avanços legislativos que asseguravam direitos civis (Civil Rights Act, 1964) e

direito ao sufrágio (Voting Act Rights, 1965) não produziram satisfação esperada. Com o fim

legal da segregação, ainda restou como problema mais profundo o racismo, que não se

manifestava apenas nos estados sulistas, e contra o qual leis eram pouco efetivas. Neste

momento, o movimento negro radicalizava-se, tornando-se racialmente separatista, e

abandonando os princípios de não-violência. A Guerra do Vietnam que iniciara na

administração Kennedy, com cerca de 16 mil soldados mostrando o que podiam fazer por seu

país, demandava mais recursos humanos e financeiros, sem dar sinal de fim próximo.25

Cabe notar que a caracterização dos anos 1950 como época de consenso e apatia

social origina-se na própria crítica sociológica da época. Entre os críticos que mais se

destacaram podemos mencionar C. Wright Mills; Daniel Bell; Dwight MacDonald; David

Riesman.26

A análise, que advêm da autoconsciência social do período, quando aceita por

historiadores atuais, indica a importância que esses autores clássicos têm na explicação da

sociedade americana contemporânea. Willian Leuchtenberg, no entanto, alerta:

Com essa unanimidade dos testemunhos da época, o historiador tem pouco por

onde escolher, salvo aceitar a caracterização dos anos 50, e talvez deva fazê-lo. Mas

não podemos deixar de perguntar se esses observadores não teriam sido vítimas,

porventura, de um erro de julgamento.27

O ativismo político da década de 1960 será visto pela historiografia em

contraposição a apatia social dos anos 1950. Mesmo o prudente Leuchtenburg aceita que

apesar de não ter sido absoluta como os críticos da época postulavam, a apatia, o consenso, a

23

HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o Breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras,

1995. pp. 317-318. 24 ANDERSON, Terry. Op.cit. p. 49. 25 LEUCHTENBURG, William. IN: op.cit p. 836 26 Cf. JAMISON, Andrew.; EYERMAN, Ron. Seeds of the Sixties. University of California Press, 1994. 27 LEUCHTENBURG, William. Cultura de Consumo e Guerra Fria. IN: op.cit. p. 772.

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homogeneidade medíocre produzida pela sociedade de massas, foi sim uma característica dos

anos 1950.

Em seu estudo, Terry Anderson nos diz que essa interpretação foi reforçada pelos

ativistas dos anos 1960, que pretendiam demonstrar que tomavam a vanguarda da luta

política, contrapondo-se ao conformismo estagnado dos anos 1950. Em geral, a historiografia

seguiu duas matrizes interpretativas: uma que corrobora a percepção dos ativistas, e reforça a

idéia que os anos 1960 foram a época de saudável agitação pública, durante a qual e como

resultado da qual a política saiu dos altos gabinetes da política institucional e voltou

democraticamente para a sociedade civil.28

A outra interpretação, gerada durante a era

conservadora dos anos 1970 e 1980, vê a década de 1950 como anos em que a nação

conquistou grandes avanços, em todas as áreas possíveis; e por contraste negativo, trata a

década de 1960 como anos anárquicos, que só desestabilizaram e atrapalharam o sistema

político americano. Segundo Anderson, esta interpretação diz mais sobre a época de sua

produção, os anos conservadores e neoliberais, do que propriamente sobre história de seu

objeto.29

Portanto uma interpretação é diretamente originária da percepção dos ativistas de

seu próprio papel, e a outra é de críticos mais comprometidos em apoiar a política de Ronald

Reagan. O estudo da historiografia revela discursos históricos produzidos sobre o passado,

que sofrem constantemente revisão e reformulação. A pesquisa histórica deve encarar essas

interpretações como construção social da memória histórica, sem, no entanto, contentar-se em

endossar uma ou outra posição.

Para os historiadores, Ronald Cohen, Dick Weissman, Ronald Lankforf Jr., a música

folclórica teve dois momentos. Durantes os anos 1930-1940 ela estabeleceu-se como estilo

musical próprio, apropriando-se das compilações de baladas e canções feitas por

pesquisadores folcloristas. Nessa primeira fase, teve grande relevância o papel da esquerda na

apropriação das coletâneas de canções populares por músicos, que passam então a atuarem

dentro da estética tradicional. O segundo momento é a grande difusão da música folclórica

entre 1950-1960, o que significa que ela adentra consideravelmente a indústria fonográfica e

os meios de comunicação; antes desse período, ela tinha permanecido fora da grande mídia.30

28

Segundo Noberto Bobbio, conceito de sociedade civil remete à toda a vida social fora do Estado - em

oposição a sociedade política – Estado, ou sociedade-Estado. BOBBIO, Noberto. O Conceito de Sociedade

civil. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1982. pp 24- 32. 29 ANDERSON, Terry. Op.cit p. 32. 30 COHEN, Ronald. Rainbow quest: the folk revival and American society. 1940 -1970. University of

Massachusetss Press, 2002.

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29

A popularização da música folk, para Cohen, deveu-se a sua entrada no mercado do

entretenimento. Encontrando público entre jovens, estudantes, e boêmios, frutos do baby

boomer do pós-guerra, a música folk passou a interessar as grandes gravadoras, gerando o

aumento de gravações e radiodifusão. Segundo esse autor, há uma relação entre o interesse

pela música folk e o surgimento da rebelião estudantil no norte e o Movimento por Direitos

Civis no sul.31

Dick Weissman diz que no movimento por Direitos Civis, canções faziam parte das

marchas e passeatas. Tais canções chamadas de Freedom Songs, geralmente eram derivadas

das músicas de trabalho ou religiosas de origem afro-americana. Substituindo antigas letras

por novas que se referiam a nova situação, as velhas melodias conhecidas eram adaptadas e

utilizadas nas demonstrações públicas. Funcionando como força de coalizão, as canções

ajudavam aqueles que enfrentavam espancamento e prisões, mantendo-os com esperança e

solidariedade. Neste aspecto, o autor faz a distinção entre o músico branco do norte que ia ao

sul, passava algumas semanas cantando em reuniões e passeatas, para depois voltar a sua

cidade ao norte; e aos que viviam todos os dias no ambiente segregado, extremamente hostil à

sua cor da pele, mas que também tinham e criavam sua própria música. O risco assumido por

aquele era incomparavelmente menor ao risco vivido diariamente por este. A atuação do

músico branco, geralmente de cidades do norte, no sul funcionou como manifestação de apoio

público.

Não deve ser pensado que as canções utilizadas no Movimento por Direitos Civis

foram feitas exclusivamente por cantores brancos, os quais estavam, afinal, dentro da

estrutura da cultura de consumo, e recebiam atenção da mídia. Antes, a participação destes,

segundo Weissman, é apenas exterior.

Entretanto, segundo Cohen, os músicos tiveram uma parcela de importância, pelo

menos no plano musical. O caso da Highlander Folk School, localizada em Monteagle,

Tennessee, exemplifica a questão. Dirigida nos anos 1960 por Guy Carawan, pessoa que fora

ligada à esquerda, ela teve um papel importante ao promover a recuperação de antigas

canções de trabalho e religiosas, que descendiam da experiência afro-americana. Foi dentro

desse centro de folclore que foi adaptada a canção “We Shall Overcome”, que viria a se tornar

o hino mais representativo do movimento. Também o cantor do norte não apenas ia ao sul,

mas trazia do sul canções e temas que eram infundidos no público das cidades do norte. Isso

31 Ibidem. p168.

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significava uma forma de atuar no debate político, expressando com as canções os temas

correntes.

Na canção “We Shall Overcome” podemos perceber a conexão entre a música e o

protesto. Adaptando à antiga canção novas letras que tratam da questão imediata do

movimento por direitos civis, temos um exemplo de como ocorria essa relação. A utilização

do folclore na estruturação das músicas de protesto da metade da década de 1960, revela uma

concepção estética originária do movimento comunista durante os anos 1940 – 1950. Em uma

nova conjuntura, a prática de protesto através da música também se modifica, tanto em seus

temas como em sua relação com a audiência.

Entre essas canções, ora aparecem algumas do repertório de esquerda, mas

modificadas, suprimindo-lhes os versos da ideologia subversiva em favor de outros, pela

conquista dos direitos civis. É o caso de “Which Side Are You On?”, escrita por Florence

Reece, esposa de um mineiro do Kentucky, em 1932.32

Há um registro fonográfico feito pelo

grupo Almanac Singers, em 1941. A sua letra original divide nitidamente dois grupos

antagônicos, os trabalhadores e os patrões, e pergunta ao trabalhador de que lado ele está. Se

de um lado os patrões são os exploradores e mentirosos, pela lógica retórica os trabalhadores

devem estar do lado de trabalhadores, o que em termos práticos significava juntar-se e apoiar

o sindicato. Em uma versão do Movimento por Direitos Civis, mantêm-se a estrutura rítmica e

melódica dos versos, mas, com exceção do refrão repetido entre cada estrofe, a letra é

diferente. Não trata mais de sindicato e trabalhadores contra os patrões, são as questões do

movimento negro que preenchem os versos.

1. Comparação entre versões de Which Side Are you On?

Versão Original

(Florence Reece; 1932)33

Come all you good workers,

Good news to you I'll tell

Of how the good old union

Has come in here to dwell.

Refrão:

Versão utilizada peloMovimento por Direitos Civis

(data indeterminada, em torno de 1960) 34

Come all you freedom lovers,

and listen while I tell

Of how the freedom riders

come to Jackson to Dwell, oh.

Refrão:

32

Weisman, Dick. Which Side are you on. 33 Almanac Singers. Talking Union. LP, Keynote, 1941.(CD, Smithsonian Folkways Recordings, 2007) 34

Songs of the Southern freedom movement; Civil Rights in Mississippi Digital Archive. M359 Hazelton

(Margaret J.) Freedom Summer Collection. (Reprodução digital de texto datilografado) Disponível em «

http://cdm.lib.usm.edu/cdm4/document.php?CISOROOT=/manu&CISOPTR=2210&REC=2 » Acesso: 10 de

junho de 2009.

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31

Which side are you on?

Which side are you on?

Which side are you on?

Which side are you on?

My dady was a miner,

And I'm a miner's son,

And I'll stick with the union

'Til every battle's won.

They say in Harlan County There are no neutrals there.

You'll either be a union man

Or a thug for J. H. Blair.

Oh workers can you stand it?

Oh tell me how you can?

Will you be a lousy scab

Or will you be a man?

Don't scab for the bosses,

Don't listen to their lies. Us poor folks haven't got a chance

Unless we organize.

Which side are you on, boys?

Which side are you on (tell me)

Which side are you on, boys?

Which side are you on, (tell me)

My daddy was a freedom fighter

and I'm a freedom son

I'll stick right with this struggle

until the battle's won.

Don't 'tom for Uncle Charlie', don't listen to his lies

'Cause black folks haven't got a chance

until they organize.

They say in Hinds County,

no neutrals have they met

You're either for the Freedom Ride

or you 'tom for Ross Barnett.

Oh people can you stand it,

tell me how you can Will you be an Uncle Tom

or will you be a man?

Captain Ray will holler 'move on'

but the Freedom Riders won't budge

They'll stand there in the terminals

and ever before the judge.

Nos anos 1960 o interesse pela música folclórica perpassa os meios de comunicação

de massa. Se antes era restringido ao interesse dos pesquisadores, o folclore foi apropriado

pela esquerda a qual desenvolveu a concepção de utilizá-lo como arma para a luta de classes.

A atuação dessa esquerda musical era dirigida, embora não restrita, pela agenda de atuação do

comunismo nos anos 1930, que se baseava no sindicalismo. As canções de protesto desse

período lidam, portanto, com questões referentes aos sindicatos e aos trabalhadores urbanos.

Olhando para as canções que circulavam nos anos 1960, a temática de sindicalismo

e luta de classes não são predominantes; elas aparecem em algumas regravações de músicas,

mas sua ocorrência é minoritária.35

As canções de protesto que se referem ao Movimento por

Direitos Civis, como “We Shall Overcome”, são mais ocorrentes.36

Como afirma Anderson,

35.Como é o caso de “Harry Simms” e “Joe Hill's Casey Jones" IN: Seeger, Pete. Dangerous Songs!? Columbia,

LP,1966. (CD 1998, 65261) 36 “Only A Pawn in Their Game”; “The Lonesome Death of Hattie Caroll”; IN DYLAN, Bob. The Times They

A-Changin’. LP, Columbia, LP, 1964. “Keep Your Eyes on the Prize” ; “If You Miss Me at the Back of the

Bus”; “I Ain't Scared of Your Jail”; “Oh Freedom”; “We Shall Overcome”. IN Seeger, Pete. “We Shall

Overcome” Carnegie Hall Concert Live June 8, 1963. Columbia. 2 CD, 1989. “Blowin' In the Wind”. IN:

PETER, Paul, Mary. In the Wind. Warner Bros, LP, 1963. (CD 2005, 518975)

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32

“many folk songs concerned the most important issue of the day in the first half of the 1960s

– civil rights”.37

Em 1963 ocorreu a marcha sobre Washington, cujo principal motivo era pressionar o

congresso para aprovar a Lei dos Direitos Civis (Civil Rights Act). Em frente ao Memorial

Lincoln, onde o famoso discurso de Martin Luther King Jr. foi proferido, cantores ligados à

música folk subiram ao púlpito e cantaram algumas canções. Peter, Paul & Mary, Joan Baez,

Bob Dylan, manifestaram com suas canções o apoio à causa do movimento. Segundo

Weissman, o fato revela as recíprocas relações entre os cantores folk do norte, geralmente

brancos, e o movimento negro do sul. Embora a cultura afro-americana do sul dos Estados

Unidos tenha reconhecidamente uma grande tradição musical, como o blues, o jazz e o

gospel, nessa importante demonstração pública, foram cantores brancos que assumiram o

palco. Weissman diz que foi uma estratégia consciente da organização do movimento ceder

esse espaço a cantores brancos, como forma de publicidade, demonstrando o apoio externo ao

movimento. Além do que esses cantores, atraindo a atenção dos meios de comunicação,

garantiriam uma cobertura maior a marcha, tanto no jornalismo ordinário como em revistas

especializadas. Para os cantores brancos, afirmavam o papel da música em protestar contra

uma situação moralmente intolerável, a favor de uma causa progressista, com a qual o músico

simpatizava.38

A estratégia de buscar o apoio externo, dentre pessoas geralmente brancas que

condenavam o sistema racista de segregação no sul, foi um elemento importante nos

primeiros anos do movimento por Direitos Civis. Raymond D‟Angelo diz que o SNCC ao

organizar o chamado “Freedom Summer”, que trazia estudantes do norte para ajudar na

campanha sulista, tinha a perspectiva da repercussão nacional do fato. Os negros no sul já

vinham sofrendo a violência racial há vários anos, sem no entanto ter qualquer reverberação

em âmbito nacional. Trazendo estudantes brancos, na sua maioria de classe média, para sul,

estes tomaram contato e sofreram a violência da segregação. O fato de estudantes brancos de

classe média linchados por segregacionistas no sul trouxe a cobertura do movimento pela

imprensa de circulação nacional. A estratégia, segundo D‟Angelo, foi amparar-se na cobertura

das mídias de massas, para conseguir apoio público externo para a causa. Uma vez que a linha

de ação do movimento negro foi requisitar a intervenção federal no sistema de segregação

racial dos estados sulistas, o tal apoio nacional era fortemente desejado. Para D‟Angelo, assim

como para Anderson, esse apoio público nacional para a causa do movimento no sul, foi o que

37 ANDERSON, Terry. Op.cit. p. 94. 38 WEISSMAN, Dick. Op.cit. pp. 138 -144.

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pressionou o governo federal a intervir decididamente, acabando judicialmente com a

separação racial.39

Podemos pensar as canções de protesto nesse sentido, ajudando na causa, ao chamar

a atenção e manifestar apoio público para o problema no sul. Coerente com a política

defendida pelo partido comunista americano, o qual condenava o racismo, segundo Willian G.

Ruy, a música folk dos anos 1930, era explicitamente “bi-racial”.40

Nos anos 1960, o apoio à

causa negra pela música folk era esperada, uma vez que essa cena musical tem suas raízes na

atuação de pessoas que foram ligadas à esquerda.

É significativo que depois de 1966, quando ocorre a radicalização do movimento

com o predomínio dos ativistas negros do Black Power, eles rejeitam a canção “We Shall

Overcome”, assim como a participação de brancos.41

No documento do SNCC em que se

posiciona a base do poder negro, acusa-se a participação de brancos como mais uma forma de

apadrinhamento de negros, que, como a Cabana do Pai Tomás, implicitamente está reiterando

a posição subalterna dos negros. Desta forma, brancos quando se dirigem aos negros,

partiriam de uma cultura exterior, que no fundo é a cultura branca dominante, historicamente

responsável pela opressão negra. Portanto, pessoas brancas não podem verdadeiramente

remeter-se a experiência negra, porque a opressão profunda não faz parte da realidade

branca.42

Canções que falam apenas de uma vitória que chegará um dia – como é o de “We

Shall Overcome” - para os radicais negros, apenas delongam ainda mais a sua liberdade, pois

colocam num futuro indefinido, o qual pode nunca chegar, o alcance da liberdade.43

O ideário

do Black Power pretendeu se assentar sobre a ação imediata para a supressão da subordinação

negra à sociedade branca. Segundo Cohen, no momento em que o movimento negro dispensa

intervenções exteriores, as canções de protesto encontravam material suficiente para suas

letras na resistência pacifista contra a Guerra do Vietnam.

Outro importante fator do início dos anos 1960 foi o surgimento da Nova Esquerda.

Como foi comentado anteriormente, os ativistas dos anos 1960 perceberam e narravam seu

39 D‟ANGELO, Raymond. Op.cit. pp. 279 – 288. 40 ROY, William G. Aesthetic Identity, Race, and American Folk Music. IN: Qualitative Sociology, Vol. 25,

No. 3, 2002. pp. 459-469. 41 BASKERVILLE, John D. Free Jazz: A Reflection of Black Power Ideology. IN: Journal of Black Studies, Vol. 24, No. 4. (Jun., 1994), p. 484. 42 Student Nonviolent Coordinating Committee. Possition Paper: The Basis of Black Power. Disponível em: «

http://www2.iath.virginia.edu/sixties/HTML_docs/Resources/Primary/Manifestos/SNCC_black_power.html »

Acesso em 14/08/08. 43 Os versos dessa canção são variações sobre o tema principal: “We shall overcome some day/ (...)We'll walk

hand in hand some day /(...)We shall all be free some day/ (…)We are not afraid some day/ (…)We are not alone

some day/ (…)/The whole wide world around some day” Cada estrofe é intercalada pelo refrão, o qual diz: “Oh,

deep in my heart/I do believe/We shall overcome some day” Conforme transcrição da Biblioteca do Congresso

Americano, disponivel em: « http://www.loc.gov/teachers/lyrical/songs/overcome.html » Acesso em 1, jul, 2008.

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papel em contraposição com a apatia social da década de 1950. Pretenderam ressaltar antes a

singularidade do movimento nos anos 1960 do que percebê-lo derivado de históricas tradições

políticas. Em um manifesto do grupo estudantil SDS (Students for a Democratic Society),

principal órgão da Nova Esquerda americana, atesta-se a autopercepção dos ativistas de sua

geração: "We are people of this generation, bred in at least modest comfort, housed now in

universities, looking uncomfortably to the world we inherit”.44

E adiante no mesmo

documento:

A new left must consist of younger people who matured in the postwar world, and

partially be directed to the recruitment of younger people. (…)

A new left must start controversy across the land, if national policies and national

apathy are to be reversed.45

Estabelecendo sua base nos jovens, com os quais se identificam como uma mesma

geração, e proclamando que a apatia nacional deve ser revertida, percebemos a estruturação

de um discurso que se propõe como novo, contra a sociedade americana da Guerra Fria. A

idéia de novo está nesses três elementos: o jovem – novo por si mesmo; a nova esquerda; e na

definição de seu papel, o inicio da controvérsia, que deveria reverter a apatia corrente.

Segundo Andrew Jamison e Ron Eyerman, um grande mito perpassado pelos ativistas dos

anos 1960 foi sua particularidade histórica, sem ligações com o passado. Para os autores, essa

imagem não corresponde efetivamente ao caso. Segundo eles, a Nova Esquerda, e, de forma

geral, a política nos anos 1960, teve grande influência da agitação social da década de 1930,

decorrentes, entre outros fatores, da crise econômica e da crise do liberalismo. Um elo com o

passado radical encontra-se nos intelectuais. Embora nos anos 1950 o consenso foi

predominante, o pensamento radical da década de 1930, conforme formulado pelos

intelectuais, exerceria influência sobre estudantes e ativistas da década de 1960. Ou seja,

embora a Nova Esquerda pretendesse representar-se sem ligações com o passado, no fundo há

uma influência da crítica social anterior, formada nos anos 1930, na geração de 1960.

Segundo Eyerman e Jamison, as idéias não necessariamente transformam-se em influência

direta, percebida em referências objetivas, porém o mais importante é sua função formativa,

influência profunda, mas que, todavia, não se manifesta aparentemente.46

A historiadora Robbie Lieberman diz que se pode pensar essa conexão entre a Velha

Esquerda e a Nova Esquerda com as canções de protesto. Durante os anos da Frente Popular,

44 Port Huron Statement of the Students for a Democratic Society. 1962. Disponivel em: «

http://coursesa.matrix.msu.edu/~hst306/documents/huron.html » Acesso em 7, jun. 2008. 45 Idem. 46 JAMISON, Andrew.; EYERMAN, Ron. Op. cit. pp. XI, 220.

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na segunda metade da década de 1930, dentro de atuação cultural do movimento comunista

americano, iniciou-se a uso de canções, particularmente aquelas que utilizavam a estética

folclórica, como instrumento de ação política. A autora diz que as músicas produzidas pelos

comunistas continuariam a fazer parte do que ela chamou de cultura de esquerda, a cultura do

movimento comunista. Essa cultura englobaria um repertório de obras, literárias,

cinematográficas e musicais, que continuariam a inspirar profundamente aqueles que fizeram

parte um dia do movimento, mesmo depois desse movimento ter soçobrado politicamente e

ideologicamente. Entre a cultura de esquerda dos anos 1930 a 1950, tiveram grande

significado as canções da Guerra Civil Espanhola, que evocavam o período da Frente Popular,

marcado pela cooperação internacional que lutou contra o autoritarismo de Franco.47

Em uma passagem de Herbert Marcuse, retirada de um prefácio escrito em outubro

de 1964 para uma coletânea de seus textos, lê-se:

Nos campos de batalha e de morticínio da Guerra Civil Espanhola se lutou pela última vez pela liberdade, solidariedade e humanidade no sentido revolucionário:

ainda hoje o que se cantava para e nesse combate são canções que constituem para

a geração jovem a única imagem que permanece de uma revolução possível. Aqui

estava o fim de uma época histórica e o terror da época vindoura se anunciava na

simultaneidade da Guerra Civil Espanhola e dos processos de Moscou.48

Marcuse refere-se ao fim das possibilidades de atuação da velha esquerda, a qual se

pautava na revolução operária. Para ele, no mundo em que emergira da II Guerra Mundial, o

proletariado não era mais uma classe potencialmente revolucionária. Podemos inferir que ao

mencionar as canções da Guerra Civil Espanhola, Marcuse tinha consciência de que elas

continuavam circulando nos anos 1960, e assim transmitiam a geração jovem a imagem de

uma época já passada.

No concerto já mencionado, realizado em 8 de junho de 1963, no Carnigie Hall em

Nova York, Pete Seeger canta uma canção da Guerra Civil Espanhola, “Viva la Quince

Brigada”.49

A canção narra a luta da brigada escocesa contra a falange franquista. A julgar o

entusiasmo com que a canção é recebida pelo público, e pela participação deste cantando

junto, podemos perceber que, como Lieberman disse, as canções da velha esquerda estiveram

presentes nos anos 1960.50

De tal forma, que são sim uma ligação com o passado,

demonstrando que o ativismo político dos anos 1960 não apareceu simplesmente do vazio.

47 LIEBERMAN, Robbie. Op. cit. p. 14 - 24. 48 MARCUSE, Herbert. IN: op. cit. p.41 49 “Vive la Quince Brigada” IN: Seeger, Pete. Op.Cit. 50 A participação do público, ovacionando, aplaudindo e cantando junto é audível na gravação.

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Alias, a relação com o passado não se dá apenas entre gerações, mas, agora, aparece

como o sentido da forma folclórica que as canções de protesto assumiam. Se a prática de

protesto através da música originava-se de um contexto anterior, que perdurou nos anos do

pós-guerra, retomou novo significado ao se incorporar com os movimentos sociais que

emergiram no início da década de 1960, a forma folclórica deve ter contribuído para seu êxito.

Pois, o folclore carrega em si a referência ao passado, que embora indefinido, evoca-se para o

presente, propiciando o apoio do tempo. No caso das canções, onde se misturavam, sem

estranheza, àquelas de conteúdo político elaborado as antigas baladas coletadas por

folcloristas, o folclore, em si, talvez assuma importância própria na contestação do mundo

vigente. Afinal, ele revela uma prática de apropriação de objetos da cultura popular, com fim

específico ao protesto, e, portanto, relaciona-se com a história do interesse pelo espírito do

povo.

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O PRETÉRITO IMPERFEITO: O FOLCLORE COMO FORMA DA CANÇÃO DE

PROTESTO

Meu coração desgosta-se de tudo com uma náusea do estômago. A Távola Redonda foi vendida a peso, E a biografia do Rei Artur, um galante escreveu-a. Mas a sucata da cavalaria ainda reina nessas almas, como um perfil distante. Álvaro de Campos. O engenheiro aposentado. (1931-1935)

Na história do conceito de cultura popular, desde o final do século XVIII, tenta-se,

de bom coração, salvá-la de ser engolida pelo progresso da sociedade. Irracional, simples,

analfabeto, instintivo, carecendo do sentido moderno de individualidade, o povo, não

obstante, preservava na sua naturalidade comunal a poética da vida, o espírito original daquilo

que estava se tornava nação. Era, pois, o depositário da cultura, que o tempo dizia, estava a

modificar-se em passado. Urgia, portanto, o trabalho de homens a coletar e registrar as

manifestações populares, para preservá-las antes que desaparecessem. Resgatada das mãos do

vulgo, a balada popular obtinha seu lugar entre as coleções do homem refinado; estava salva

do tempo.

Se o movimento de interesse pela cultura popular no final do século XVIII, fora de

tal modo intenso, a ponto de ser considerado como o momento em que o conceito – como

categoria distinta de cultura – foi inventado, no século XIX ele se definiria enquanto uma

disciplina, o folclore.1 No século XX, ele continuaria com adeptos, pesquisando, coletando e

catalogando os objetos que encontravam, geralmente em regiões campestres, ainda pouco

modificadas pelo avanço da sociedade industrial. Essa tradição de estudos folclóricos legaria

o material, as canções utilizadas pelos cantores de protesto, conforme haviam concebido

durante a Frente Popular.

Contudo, não se apropriariam tão somente das canções disponíveis feitas pelos

folcloristas, mas, com elas, ganhavam junto a mentalidade destes. No recôndito da civilização

industrial, agora marcada pelo domínio do mercado nas questões da cultura, o gênio popular

continuava a criar suas canções – a expressão de seu agir e sofrer existenciais. Ora, formou-se

1Cf. BURKE, Peter. A cultura popular na idade moderna: Europa, 1500-1800. São Paulo: Companhia das

Letras, 1989.

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na esquerda americana o desejo de colher e devolver essa cultura ao povo, no caso, aos

trabalhadores. Embora durante os anos da Frente Popular, se entenda a relação tecida entre

povo e operário, nos movimentos sociais dos anos 1960, não vigorava os mesmos princípios

trabalhistas. De forma que a utilização do folclore na música, não teria outro motivo que não

o de ser já a esse tempo uma prática consolidada. Entretanto, o folclore possuiu um apelo

intrínseco a sua forma: na remissão a um passado bucólico, oferecia uma contraposição ao

presente. Além do que, a significação popular que carrega, vinha de encontro com a pretensão

da Nova Esquerda, mas também do Movimento por Direitos Civis, de atuar junto à

comunidade, de se organizar em bases na tentativa de retomar o poder concentrado nas altas

esferas do Estado.2

A forma folclórica que reveste as canções estabelece uma ponte temporal entre o

passado e o presente. O folclore articula um tempo complexo, folheado, representando um

modo de percepção subjetiva que a sociedade tem com seu passado. Podemos entender essa

articulação temporal intrínseca ao folclore como regimes de historicidade existentes na sua

concepção. Ou seja, na própria compreensão do que seja cultura popular, iniciada no final do

século. XVIII há inerentemente uma relação temporal específica, segundo a qual, o povo

pertence a um tempo anterior àquele do observador; o popular é o camponês que todos foram,

mas que somente subsiste nas regiões em que a modernidade, tempo do novo e do futuro,

ainda não alcançou.

O historiador François Dosse, sintetizando as idéias de Koselleck, diz:

O futuro permaneceu durante muito tempo retrospectivamente ligado ao passado, e a

desassociarão progressiva das expectativas em relação às experiências passadas,

próprias aos tempos chamados modernos, permite reabrir o passado como recurso

vivo para alimentar o presente.3

Para dar-se conta da experiência temporal própria da modernidade, a qual segundo

Koselleck, inaugura-se no final do século XVIII, o historiador deve atentar para os regimes de

historicidade, assim apreendendo a “pluralidade de maneiras como as comunidades humanas

2 O lema, comum durante os anos 1960, “Power to the people” expressava esse desejo. Além dele, no manifesto

do grupo estudantil de Nova Esquerda, SDS, há um projeto claro de democracia participativa, o qual baseava-se na transferência do poder para níveis comunitários. Segundo Jamison e Eyerman, os manifestantes dos anos

1960 eram influenciados por Saul Alinsky, radical dos anos 1930, que inventara uma forma de organização

comunitária para ação direta. Alinsky rejeitava a analise marxista de classe, preferindo focar sua organização na

comunidade, definida pelo espaço em que as pessoas trabalham e vivem. “Alinsky‟s wake-up call to radical, his

notion of Power to the people, and even his appeal to the founding fathers of American society found receptive

ears in the new generation”. JAMISON, Andrew.; EYERMAN, Ron. Seed of the Sixties. Berkeley, California:

University of California Press, 1994. pp. 178 – 192. 3 DOSSE, F. Introdução. Ensaio de Ego-história: percurso de uma pesquisa. IN: História e Ciências Sociais.

Bauru, SP: Edusc, 2004. p. 56.

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vivem sua relação com o tempo” e de que forma “conceberam os diversos recortes do tempo a

partir de um determinado numero de invariáveis, de categorias transcendentais”.

Parece que o folclore é exatamente uma dessas categorias transcendentais, de que

fala Dosse. Ora,

um regime de historicidade se definiria pela forma que toma no seio de uma

sociedade a articulação entre categorias recebidas e contextos percebidos, entre

significação cultural e imperativos pragmáticos, cada um definindo configurações

singulares.

Destarte, percepção da cultura popular como categoria distinta, conforme o que

ocorreu no final do século XVIII, não estaria também relacionada com a mudança geral na

percepção de tempo, que vem definir a era da modernidade? Revisitando a origem da

formação do conceito de cultura popular, assim como da disciplina do folclore, a questão se

esclarece.

Propondo uma arqueologia do conceito, Renato Ortiz argumenta que toda herança

cultural que pesa sobre sua utilização tem sua origem em dois grupos intelectuais do início da

Idade Contemporânea: os românticos e os folcloristas. Aos primeiros coube a fabricação de

um popular ingênuo, anônimo, espelho da alma das nacionalidades que começavam a formar-

se. Os segundos foram seus continuadores, inventando sobre o sentimento romântico em

relação ao povo uma disciplina, que na sua evolução tentará tornar-se científica, ressoando

positivismo.4

No início da Idade Moderna, a coleta de contos e costumes popular não era uma

preocupação maior dos homens educados, embora desde o século XVI alguns escritores, a

maioria deles clérigos, se ocupassem em falar sobre as superstições e outros vícios heréticos

que “seduzem o povo e intrigam os sábios”5. A preocupação com o povo surge com o espírito

do antiquário, a curiosidade pelas práticas e narrativas do homem comum, seu afã

colecionador, sempre de alguma forma misturado com o ímpeto moralizador, deu origem

primeiramente a coletores individuais, mas que logo se organizaram em clubes e associações.6

O antiquário, pelo menos até o advento do romantismo, não possuía nenhuma predileção

4 ORTIZ, Renato. Românticos e Folcloristas: Cultura Popular. São Paulo: Olho D‟Água, 1992. p. 9

5Referência ao livro do padre Le Brun “História Crítica das Práticas Supersticiosas que seduziram o Povo e

Intrigaram os Sábios” (1702). Outros livros mencionados são “Tratado das Superstições”, de Jean-Baptiste

Thiers (1679), “Antiquitates Vulgares, ou as as Antiguidades das Pessoas Comuns”, escrito pele clérigo Henry

Bourne (1725). “Tais escritos, tinham por finalidade apontar os erros e as crendices das classes inferiores, e se

encontravam em consonância com um espírito moralizador e hostil às manifestações populares” ORTIZ, Renato.

Op.cit. p. 11. 6 A “Sociedade dos Antiquários” é fundade já em 1718, na Inglaterra. A “Sociedade Céltica” de Endiburg, da

qual Sir Walter Scott foi presidente, foi criada em 1820. Em 1807, na França, cria-se a “Academia Céltica”, que

se transformou depois em “Sociedade dos Antiquários da França”.

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especial pelo povo senão o interesse pelo excêntrico, o “amor às antigüidades”, o “gosto do

bizarro”. Quando clérigos, pretendiam, ao elencar as práticas da vulgaridade, combater a

superstição e resquícios do paganismo; tal traço da preocupação com o popular fez com que

os historiadores do século XX pensassem que depois da Reforma e Contra-Reforma, a cultura

popular teria sofrido uma grande modificação, pela atuação das duas Igrejas na direção de

reprimir essas manifestações. Seria com o Romantismo que a cultura popular toma significado

positivo, aparecendo como valor de virtude a ser preservada e não de vício a ser reprimido.7

É essa prática de coleta e registro de um material do qual se cria antigo que se

transformará na pesquisa folclórica do século XIX, caracteristicamente mais preocupada com

a compilação e ordenamento do material e a metodização da coleta, com intuito de conferir

rigor cientifico àquela prática. É de atribuição certa a William John Thoms, fellow da

“Sociedade dos Antiquários” inglesa, o cunho da palavra Folklore. Em uma carta dirigida a

revista The Atheneum, de Londres, em 22 de agosto de 1846:

Suas páginas mostraram amiúde tanto interesse pelo que chamamos, na Inglaterra de

„antiguidades populares‟ ou „literatura popular‟ (embora seja mais precisamente um

saber popular do que uma literatura e que poderia ser com mais propriedade

designado com uma boa palavra anglo-saxônica, folk-lore – o saber do povo), que

não perdi a esperança de conseguir sua colaboração na tarefa de recolher as poucas espigas que ainda restam espalhadas no campo no qual os nossos antepassados

poderiam ter obtido uma boa colheita. [é, tem-se também que resgatar os velhos

espantalhos!]

Quem quer que tenha estudado os usos, costumes, cerimônias, crenças, romances,

refrãos, superstições etc., dos tempos antigos deve ter chegado a duas conclusões : a

primeira, quanto existe de curioso e de interessante nesses assuntos, agora

inteiramente perdidos; a segunda, quanto se poderia ainda salvar, com esforços

oportunos. (...) E que é isso? Uma soma de pequenos fatos, muitos dos quais,

tomados separadamente, parecem triviais e insignificantes – mas, quando

considerados em conjunto com o sitema no qual os entrelaçou sua grande

mentalidade, adquirem um valor que jamais sonhou atribuir-lhes o que primeiro os recolheu. (...)

Tais dados seriam de grande utilidade, não apenas para o inglês estudioso de

antiguidades. As relações entre o folk-lore da Inglaterra (lembre-se de que reclamo a

honra de haver introduzido a denominação folk-lore, como Disraeli introduziu

father-land, na literatura deste país) e o da Alemanha são tão grandes, que esses

dados provavelmente servirão para enriquecer futura edição da “Mitologia” de

Grimm. 8

7 Segundo Renato Ortiz, “esta atitude negativa, restritiva não é um traço exclusivo do antiquário: ela permeia

todo o espírito de uma época”. Os historiadores divergem sobre a avaliação desse período. Para Robert Mandrou,

o advento da imprensa propulsionou uma literatura escrita que suprimiu a mentalidade tradicional das classes

populares. Os historiados da Nova História Cultural têm outra interpretação, baseados em uma concepção de

cultura mais elaborada, perceberam que a cultura popular não era um bem estático que foi subvertido, mas

possuía sua dinâmica própria, que respondeu ao advento da imprensa modificando-se e adaptando-se aos novos

meios de difusão da palavra. 8 Transcrição retirada de LIMA, Rossini Tavares de. Abecê de Folclore. São Paulo: Martins Fontes, 2003, 7ed.

pp. 2-3

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Para que a cultura popular se tornasse um valor positivo, haveria a necessidade dos

românticos. Interpretado por muitos autores como uma sensibilidade que busca dar conta da

dupla transformação que perpassa todo o mundo no final do século XVIII, nomeadamente a

Revolução Francesa e a Revolução Industrial, o romantismo é um movimento amplo. Não se

restringe ao campo das artes, embora sempre contenha alguma intenção estética. “Sensíveis,

reticentes, eles os românticos, são críticos do capitalismo nascente.” No âmbito da discussão

na qual debruçamos, o romantismo se reveste de uma característica peculiar.

Não importa tanto a idéia de revolta, da idiossincrasia do Eu. Seu impacto, a meu

ver, deve ser considerado quando transforma a predisposição negativa, que havia

anteriormente em relação às manifestações populares, em elemento dinâmico para a

sua apreensão. Isto, paradoxalmente, vai afastá-lo inclusive dos próprios ideais

românticos, valorizados pela consciência artística.9

Quer dizer, o artista romântico valoriza a força do Eu, introduzindo e cultuando a

noção de individualidade libertada; livre das regras estabelecidas pela estética classicista. Por

isso, Renato Ortiz diz ser paradoxal a atitude dos românticos frente a cultura popular; pois, “o

popular romantizado retoma inclinações como sensibilidade, espontaneidade, mas enquanto

qualidades diluídas no anonimato da criação. Não é, pois, o indivíduo o ponto nodal, mas o

coletivo.”10

O Romantismo também é ligado ao historicismo, marcado por um tipo

característico de lidar com o tempo e por conseguinte, com todo o passado. A revalorização

do Gótico e da Idade Média, juntamente com os romances de cavalaria e poemas medievais,

traduz um distanciamento do presente. Sua crítica ao capitalismo nascente, ao progresso,

enfim, à modernidade contém esse elemento de recuo a um passado no qual a vida seria mais

pura, autêntica, e digna.

O historicismo talvez possa ser encarado não apenas como a escola histórica a qual

Ranke empresta o nome, mas como uma atitude em relação ao tempo próprio da

modernidade, que põe dentro da história, dentro do passado, do futuro e do presente, toda a

experiência da vida. Como resultado dessa concepção temporal em que tudo é histórico, o

presente é das três dimensões a mais fugaz, pois nunca é fixo. Dito de outra maneira,

enquanto o passado é aquilo que foi, e o futuro aquilo que será, o presente é a dimensão do

efêmero, na qual o futuro realizando-se torna-se passado. Para Reinhart Koselleck, o final do

século XVIII vivencia uma profunda modificação da experiência da vida, a que corresponde a

uma mudança na percepção do tempo, com a finalidade de diagnosticar e dirigir a sociedade

politicamente. Na base dessa transformação que envolveu todas as camadas da sociedade, está

9 ORTIZ, Renato. Op. Cit. p. 18 10 Idem.

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a sensação do movimento, a rápida modificação da qual agora os indivíduos no tempo de sua

existência tem de tomar cuidado, rumo a um futuro aberto.11

Herbert Marcuse interpreta a

estética da época moderna cuja uma das expressões, senão a maior, é o romantismo aqui

debatido nos seguintes termos:

O efêmero que não deixa atrás de si uma solidariedade dos sobreviventes necessita

ser eternizado para poder ser suportado, pois se repete em cada instante da existência

e antecipa a morte também em cada instante. Uma vez que cada instante porta em si

a morte, o instante belo precisa ser perpetuado como tal, para tornar possível algo

como a felicidade. A cultura afirmativa [ o que vale dizer para elucidar, no contexto

do ensaio de Marcuse, cultura afirmativa é a cultura burguesa que se desenvolveu

desde os séc. XVIII até o presente] eterniza o instante belo na felicidade que ela

proporciona; ela eterniza o efêmero.12

O belo buscado pela estética burguesa cumpre seu papel na medida em que pode

eternizar seu instante; ele pára o tempo. “O romantismo é um fato histórico e, mais do que

isso, é o fato histórico que assinala, na história da consciência humana, a relevância da

consciência histórica.”13

Na análise de Jacó Guinsburg, o romantismo corresponde à

historicização geral do modo do homem conceber-se no universo. Contudo, haveria de

aparecer alguns problemas inerentes a todo esse historicismo, fosse por Cronos relativizar

tudo quanto toca, deuses ou mortos, fosse pela incapacidade da civilização industrial baseada

no progresso infinito de realizar sua auto-superação.

A transformação do pensamento, responsável, na virada do século, pela descoberta

da cultura popular pelos intelectuais, é observada nos números crescentes de publicações

sobre as canções, baladas, e contos populares. Talvez, seja Herder o filósofo mais importante

nesse debate, e seu nome deve figurar ao lado dos irmãos Grimm. Não por coincidência, a

Alemanha de então foi o berço do romantismo, sendo que tanto Herder como Goethe,

procederam a coleta de canções populares. A posição preponderante da Alemanha nessa

descoberta da cultura popular deve-se, segundo Renato Ortiz e Peter Burke, a característica

fragmentaria e múltipla do estado e da cultura germânica, o que gerava problemas para a

constituição do moderno estado-nação. Necessidade, pois, de resolver contradição interna

entre elite e povo e então formar uma identidade com a qual enfrentar, no plano externo, os

países centrais (França e Inglaterra, seriam estes?). Para Herder, “cada nacionalidade é modal,

intrínseca, sua essência só pode realizar-se quando em continuidade com seu passado”. Por

isso, “a constituição do Estado-nação se reveste sobretudo de uma dimensão cultural”. É

11 KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Rio de Janeiro: Contraponto, Puc Ed-Rio, 2006. 12 MARCUSE, Herbert. Sobre o caráter afirmativo da Cultura. IN: Cultura e Sociedade. vol. 1. São Paulo: Paz

e Terra. 1997. 13 GUINSBURG, Jacó. Romantismo, Historicismo, e História. IN: GUINSBURSG, JACÓ. [org.] O

Romantismo. Ed. Perspectiva: São Paulo, s/d.

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nesse contexto “que surge o debate sobre cultura popular; parte da intelligentzia alemã volta

sua atenção para as tradições para nelas encontrar o substrato de uma autêntica cultura

nacional”14

Expressão da alma nacional, a poesia autêntica, aquela encontrada na canção e na

poesia popular, representariam a essência da cultura.

Resultara a disciplina da pesquisa folclórica, a qual dispõe da prática de coleta de

material, da pesquisa de campo, como métodos aplicados por intelectuais, na tentativa de

recuperar ou salvar o gênio nacional e a alma popular. Isso resultará na concepção de folclore,

na metodologia dos folcloristas no século XIX: o pesquisador funcionaria apenas como um

médium entre o tesouro perdido e a nação que o reclama. “Como os contos são anônimos, e

nenhuma versão é preferível a outra, pode-se corrigir ou remanejar esta ou aquela expressão

literária”, assim se justificando, muitas serão as intervenções dos pesquisadores.

No século XIX, a cultura popular vê-se entre o ideal romântico e o espírito científico,

que consagra no folclore um determinado tipo de análise da cultura popular, marcado pelo

parâmetro da ciência positivista.

O antiquário tinha um afã colecionador, o folclorista, respaldado pelo Positivismo,

cria o museu das tradições populares. Como diz Michel de Certeau, ele se contenta

em mirar a „beleza do morto‟, pois o que lhe interessa é o passado em vias de

extinção. Diga-se que o folclorista tem plena consciência das mutações sociais que vivencia. (...) O tom nostálgico é revelador; trata-se de lutar contra o tempo. O

esforço colecionador identifica-se à idéia de salvação; a missão é agora congelar o

passado, recuperando-o como patrimônio histórico.15

Enfim, “a idéia de cultura popular associa-se à herança passadista, cujo destino, no

choque com o processo civilizatório, é ser eliminada ou confinada nos museus. Esta

identificação com o popular e o pretérito, se manifesta até mesmo em estudos mais

recentes.”16

Se na Europa a cultura popular serviu a edificação dos estados nacionais ao lhes

proporcionar uma identidade idealizada através da noção de povo, na América Latina,

intentou-se utilizá-la para assistir a resistência dos subalternos às elites, em todo caso,

identificadas com a cultura estrangeira.

No caso dos países de Terceiro Mundo, nos quais as elites ilustradas geralmente são

acusadas de conivência histórica com a exploração estrangeira, constituída pela dependência

colonial e imperialista, entende-se o apelo de resistência que a cultura popular exerça. No

caso dos EUA, cujos cantores engajados também atribuem às manifestações populares uma

potencialidade subversiva, como entender o teor da crítica que o Homem comum pode

propiciar à sociedade industrial tardia, senão como a imagem antagônica dessa própria

14Idem.. 15 Ibidem, p. 39. 16 Ibidem, p. 65.

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sociedade? Assim, qual o sentimento que a realidade urbana, racional, modernista e

industrializada suscita, para que se ache nos objetos da cultura popular uma forma de lha

contrapor?

Na década de 1930, o comunismo americano, no seu projeto da Frente Popular, já

identificava no agir e sofrer do povo comum o ideal democrático, fundador da nação. Esse

povo, categoria social indistinta entre artesão rural e operário urbano, todavia, não se referia

às modernas profissões industriais: o técnico, o engenheiro, o cientista, o burocrata,

definitivamente não são populares.17

Portanto, a cultura popular em que pensavam era muito

semelhante àquela já formatada pelos folcloristas.

A pesquisa folclórica do início do século XX, ainda mantinha do século XIX, os

mesmos pressupostos teóricos sobre o que seja cultura popular. Por exemplo, numa coletânea

de canções americanas organizadas por Carl Sandburg, em 1927, o folclorista dedica o

trabalho àqueles cantores anônimos, que da alegria, do amor e do desgosto, compuseram as

letras contidas no volume. O anonimato do povo, assim como a experiência real em que se

baseiam, dá universalidade à poética expressa nos versos coletados, justificando o interesse

pelos objetos populares.18

O material, reunindo “o gênio de autênticos cantores americanos”, expressaria, para

Sandburg, a própria história do povo americano, pois era testemunho direto da maneira de

viver dos diversos tipos e personagens que o país abriga. O conteúdo das canções expressaria

os conflitos humanos tão bem como o que se poderia encontrar em Shakespeare.19

Além do

que, eram tão antigas quanto àquelas baladas medievais que haviam de sobreviver nos

17 Há uma canção sindicalista, bufona, que conta a história de um engenheiro, “Casey Jones”, que não quisera

aderir a greve dos operários, recusando-se a parar de trabalhar. Casey Jones, enquanto trabalhava sozinho, sofre

um acidente fatal. Morto, sua alma, no céu, encontra São Pedro feliz por lhe ver. O santo porteiro lhe diz que

ainda bem que chegara, pois os anjos estavam em greve e agora tinha alguém para por no trabalho. Furando

novamente o piquete, os anjos se revoltam contra o engenheiro, que é jogado dos céus para o inferno. O diabo,

feliz por lhe ver, achar alguém para trabalhar na fervura da caldeira pela eternidade. A canção é típica do

movimento comunista dos anos 1930-40, mas aparece regravada em 1957. Casey Jones IN: Almanac Singers.

Talking Union. LP, Keynote, 1941.(CD, Smithsonian Folkways Recordings, 2007) Casey Jones IN: SEEGER, Pete. American Industrial Ballads. Smithsonian Folkways, LP,1957. (CD, 1993). 18 SANDBURG, Carl. The American Songbag. New York: Harcourt, Brace & Company, 1943. O livro de

Sandburg, The American Songbag, foi um das importantes coleções de música folclórica, que estabeleceram um

cancioneiro, do qual extraiam os músicos de esquerda suas canções populares. Segundo Cohen, a coleção de

Sandburg reflete a mistura da ideologia de esquerda com um nacionalismo populista, que formavam as bases

intelectuais do autor. Cf. COHEN, Ronald. D. Rainbow quest: the folk revival and American society. 1940 -

1970. University of Massachusetss Press, 2002. p. 11. 19 “There is a human stir throughout the book with the heights and depth to be found in Shakespeare.” Ibidem. p.

VIII.

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recônditos das Montanhas do Apalache; mas, eram também modernas como os arranha-céus,

pois o povo continuava a cantá-las.20

Isso representa uma concepção de que a cultura popular continua a fazer-se, nos

lugares que cabe ao pesquisador da cidade descobrir. Outra coletânea de canções folclóricas, o

livro de John e Alan Lomax, American Ballads and Folk Songs, contêm uma perspectiva

semelhante. Embora, os autores afirmem que o avanço da civilização industrial está

aumentando a dificuldade de se achar cantores populares, as baladas continuam a existir.

Encontra-se ela guardada pelo: “‟cowboy‟, o mineiro, o vagabundo, o lenhador, o soldado, o

marinheiro, o negro agricultor (assim como pelo seu sofisticado sobrinho da cidade), o

velejador dos Grandes Lagos, etc.”21

Todos esses tipos compunham canções cujos conteúdos

descreviam suas experiências cotidianas.

A face iletrada dos sujeitos populares é ressaltada como valor positivo, pois, significa

a experiência espontânea, a qual não se filtrou na elaboração intelectual típica da literatura: “A

life of isolation, without books or newspapers or telephone or radio, breeds songs and

ballads. (…) These people had no literary conventions to uphold”.22

Quando reconhecido o valor próprio da cultura popular, o “poema folclórico”, como

chamado pelos autores, ganha qualidade estética comparável à literatura clássica. Assim,

convergindo com as idéias de Sandburg, acreditam que a canção folclórica americana possui

valor amplo valor humanístico.

We offer a composite photograph of what we and other, in Field and Forest, on

mountain and plain, by the roadside and in the cabin, on big cane or cotton

plantations and in prison camp, have set down of the songs of the people – isolated

groups, interested only in an art which they could immediately enjoy, and thus an art

that reflected and made interesting their own customs, dramas, and dreams. Grimm

has said that the folk song composes itself. It‟s music comes straight from the heart of the people, and its idioms reveal their daily habits of speech. Furthermore, the

individual author is so unimportant that he usually is lost sight of altogether. 23

A noção de povo anônimo, que compõe a si mesmo, é uma herança da grande

corrente de estudos folclóricos do século XIX. A pesquisa, a coleta e a catalogação de

material, criaram um grande corpus de objetos da cultura popular, que passa a refluir para o

20 “It is as ancient as the medieval European ballads brought to the Appalachian Mountains; it is as modern as

skycrapers, the Volstead Act, and the latest oil-well gusher.” Idem. 21

Livre tradução de: “The cowboy, the miner, the tramp, the lumberjack, the Forty-niner, the soldier, the sailor,

the plantation Negro (as also his sophisticated city cousin), the sailor on the Great Lakes, and even the boatman

in the early days of the Erie Canal, all have „made-up‟ songs, describing their experiences or detailing situations

religious, tragic, sentimental, humorous, and at times didactic.” LOMAX, John; LOMAX, Alan. American

Ballads and Folk Songs. New York: Dover Publications, 1994. p. XXVIII. 22 Idem. 23 Ibidem. p. XXVIII.

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“povo”. “Assim, um folclorista ajuda a criar o folclore que outros virão coletar”.24

Do mesmo

modo, inventam o que é chamado de cultura popular, e, porventura, folclore.

Segundo Roger Chartier, até recentemente a pesquisa de cultura popular foi

caracterizada por essa concepção folclórica, para a qual o povo tradicional está a desaparecer:

Foi assim de um extremo ao outro de uma cultura de massa cujos novos meios de

comunicação supostamente destruíram uma cultura antiga, criativa, plural, livre. O

destino historiográfico da cultura popular, portanto, é ser sempre sufocada,

reprimida, destruída, e ao mesmo tempo sempre renascer de suas cinzas. Isso

certamente indica que o verdadeiro problema não é tanto de datar seu

irremediável desaparecimento mas de considerar, para cada época, a maneira

como se estabelecem as relações complexas entre formas impostas, mais ou

menos opressivas e imperativas, e identidades afirmadas, mais ou menos

expandidas ou refreadas.25

[Grifo meu]

O historiador francês propõe, portanto, que se abandone essa perspectiva folclórica,

em favor de “uma abordagem diferente, que concentre sua atenção nos empregos

diferenciados, nas apropriações plurais dos mesmos bens, das mesmas idéias, dos mesmos

gestos”.26

Destarte, podemos apreender o folclore como uma prática que se apropria de

materiais e objetos que circulam numa determinada sociedade; para a qual se designa o

qualificativo de popular.

As músicas de protesto dos anos 1960 são, nesse sentido, uma apropriação de objetos

consagrados pelo cancioneiro; as canções folclóricas são retomadas com fim à servirem de

veículo para as letras engajadas. Contudo, a própria forma folclórica assume seu significado

próprio, senão maior, se entendido que ela articula um passado indeterminado, chamado para

se contrapor ao presente insatisfatório.

A sociedade americana do início dos anos 1960 vivia a época de prosperidade

econômica, em que se via emergência de uma classe média de técnicos e administradores, que

gozavam dos produtos oferecidos pela maior civilização industrial, caracterizando-a como

cultura de consumo. Porém, essa sociedade industrial, assentava-se seu funcionamento

econômico-social, naquilo que David Harvey chamou de fordismo: um conjunto de práticas

de controle sociais, que se estendem ao âmbito do trabalho, da tecnologia, da universidade,

definindo hábitos e configurações do poder político-econômico. Para Harvey, o modelo de

sociedade corporativista, baseada na racionalização da produção e do consumo de massa, que

24 BURKE, Peter. Op. Cit. p. 108. 25CHARTIER, Roger. Leitura e leitores na França do Antigo Regime. São Paulo; Ed. Unesp, 2004. P.15 26 Ibidem. p. 12

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vigorou nos EUA de 1945 a 1973, foi a base material dos vários “movimentos contraculturais

e antimodernistas dos anos 60”.27

Nas palavras do autor:

Antagônicas às qualidades opressivas da racionalidade técnico-burocrática de base

científica manifesta nas formas corporativas e estatais monolíticas e em outras

formas de poder institucionalizado (incluindo partidos políticos e sindicatos

burocratizados), as contraculturas exploram os domínios da auto-realização

individualizada por meio de uma política distintivamente "neo-esquerdista"da incorporação de gestos antiautoritários e de hábitos iconoclastas (na música, no

vestuário, na linguagem e no estilo de vida e da crítica da vida cotidiana.) 28

Portanto, o folclore, remetendo a um passado pré-industrial e bucólico, oferecia aos

ativistas políticos da década de 1960 um tempo antagônico ao que experimentavam no seu

presente. A própria referência ao passado é intrínseca a forma da música folclórica, uma vez

que o folclore carrega a concepção de uma suposta cultura popular que pouco a pouco, a

medida da modernização e industrialização da sociedade, foi sendo perdida. Ao mesmo

tempo, o folclore eleva a suposta cultura do “povo” ao status de tradição autêntica – nacional

e democrática – um passado que se guarda mas, também, ao qual se invoca no presente. Ou

seja, possuindo referência intrínseca a um tempo pré-industrial, o folclore possui em si a

nostalgia de um pretérito indeterminado, que todavia revela-se como ponto de estabilidade

para a ação.

27 HARVEY, David. Condição pós-moderna: Uma pesquisa sobre as Origens da Mudança Cultural. São Paulo:

Edições Loyola, 1992. p. 44. 28 Idem.

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