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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO EM BUSCA DA TRADUÇÃO CONSAGRADA DE MARIO QUINTANA Márcia da Anunciação Barbosa 2012

universidade federal do rio de janeiro em busca da tradução

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Page 1: universidade federal do rio de janeiro em busca da tradução

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

EM BUSCA DA TRADUÇÃO CONSAGRADA DE MARIO QUINTANA

Márcia da Anunciação Barbosa

2012

Page 2: universidade federal do rio de janeiro em busca da tradução

EM BUSCA DA TRADUÇÃO CONSAGRADA DE MARIO QUINTANA

Márcia da Anunciação Barbosa

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos necessários à obtenção do Título de Doutor em Letras Neolatinas (Estudos Lingüísticos Neolatinos – Língua Francesa)

Orientadora: Márcia Atálla Pietroluongo

Rio de Janeiro,

Maio de 2012

Page 3: universidade federal do rio de janeiro em busca da tradução

EM BUSCA DA TRADUÇÃO CONSAGRADA DE MARIO QUINTANA

Márcia da Anunciação Barbosa

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras

Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos

requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas

(Estudos Lingüísticos Neolatinos - Língua Francesa). Aprovada por:

________________________________________________________

Professora Doutora Márcia Atálla Pietroluongo - UFRJ, Orientadora

___________________________________________________________

Professora Doutora Maria Paula Frota - PUC - RJ

____________________________________________________________

Professor Doutor Marcelo Jacques de Moraes - UFRJ

____________________________________________________________

Professora Doutora Helena Franco Martins - PUC - RJ

____________________________________________________________

Professora Doutora Maria Cristina Batalha - UERJ

____________________________________________________________

Professora Doutora Branca Falabela Fabrício - UFRJ, Suplente

____________________________________________________________

Professora Doutora Maria Mercedes Riveiro Quintans Sebold - UFRJ, Suplente

Page 4: universidade federal do rio de janeiro em busca da tradução

À minha querida avó Numinanda Barbosa (in Memoriam) que não mediu

esforços para a realização dos meus sonhos e cujas lições de amor e vida me

guiaram pelos caminhos corretos. Obrigada por ter me mostrado que a

honestidade e o respeito são essenciais à vida e por ter me ensinado a lutar pelos

meus objetivos.

Page 5: universidade federal do rio de janeiro em busca da tradução

AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus, meu refúgio e força.

A toda minha família pelo apoio constante. Em especial meus pais Guilherme e Lucy Bárbara e ao meu filho Jorge Lucas.

Ao meu companheiro Jean-François Gamaury pelo apoio e incentivo constante.

À minha professora e orientadora, Márcia Atálla Pietroluongo pelo acompanhamento e revisão do presente estudo.

A todos os meus professores do curso de Doutorado: em especial ,Angela Maria da Silva Corrêa, Anamaria Skinner e Aurora Consuelo Alfaro Lagorio, com quem muito aprendi.

Aos professores Maria Paula Frota e Marcelo Jacques pelas orientações e direcionamento dados ao trabalho por ocasião do Exame de Qualificação.

Ao amigo Marcelo Vianna Lacerda de Almeida pelo incentivo e por partilhar comigo tudo o que aprendeu durante o seu próprio caminho acadêmico.

À amiga Débora de castro Barros pelo incentivo e pelas longas conversas ao telefone, sempre disponível a me ajudar.

À amiga Angeli de Oliveira Pacheco pela amizade, incentivo e força espiritual.

Aos meus amigos do Colégio Pedro II, em especial, Aline de Paula Alves, Jorge de Azevedo Moreira, Luciana Santos da Silva e Valéria Aparecida Trambaioli de Rocha e Lima pelo incentivo.

A todos os funcionários da Faculdade de Letras, pela atenção, pela disposição, e prontidão com que sempre me atenderam.

Àqueles que direta ou indiretamente contribuíram para que eu chegasse até aqui.

A todos meu carinho e muito obrigada.

Page 6: universidade federal do rio de janeiro em busca da tradução

FICHA CATALOGRÁFICA

BARBOSA, Márcia da Anunciação

Em Busca da Tradução Consagrada de Mario Quintana.

Rio de Janeiro, 2012.

Tese (Doutorado em Letras Neolatinas)

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras.

Orientador: Profa. Doutora Márcia Atálla Pietroluongo

Introdução. 1. A tradução no Brasil e a língua francesa. 2. A tradução literária no contexto social – fidelidade, etnocentrismo e invisibilidade do tradutor. 3. A consagração da tradução de Em busca do tempo perdido. 4. A luta pela legitimidade no campo – as novas traduções de Em busca do tempo perdido. Conclusões. Referências Bibliográficas.

Page 7: universidade federal do rio de janeiro em busca da tradução

“O escritor não precisa inventar, mas traduzir, porque o único livro verdadeiro é

aquele que existe em cada um de nós. O dever e a tarefa de um escritor são os de

um tradutor.” (Marcel Proust)

Page 8: universidade federal do rio de janeiro em busca da tradução

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................13

1. A TRADUÇÃO NO BRASIL E A LINGUA FRANCESA..............................17

1.1. A TRADUÇAO ESCRITA NO BRASIL DO SÉCULO XVI AO XVIII

................................................................................................................................18

1.2. O CRESCIMENTO DA TRADUÇÃO NO BRASIL NO SÉCULO XIX

COM OS ROMANCES-FOLHETINS .................................................................22

1.3. A TRADUÇÃO NO SÉCULO XX, NO BRASIL .........................................28

1.4 AUTORES-TRADUTORES NAS TRADUÇÕES DA EDITORA

GLOBO..................................................................................................................33

1.4.1. AS COLEÇÕES DA EDITORA GLOBO...................................................34

1.4.2. A TRADUÇÃO PIONEIRA DE A COMÉDIA HUMANA..........................39

1.5. A EDITORA GLOBO E A TRADUÇÃO DE EM BUSCA DO TEMPO

PERDIDO .............................................................................................................43

1.5.1. MARIO QUINTANA TRADUTOR ...........................................................45

2. A TRADUÇÃO LITERÁRIA NO CONTEXTO SOCIAL - FIDELIDADE,

ETNOCENTRISMO E INVISIBILIDADE DO TRADUTOR

................................................................................................................................51

2.1. A FIDELIDADE E A VISÃO TRADICIONAL DA TRADUÇÃO

LITERÁRIA ..........................................................................................................55

2.2. O ETNOCENTRISMO E A RELAÇÃO DO TRADUTOR COM A

CULTURA DE CHEGADA E DE PARTIDA......................................................60

2.3. TEORIAS SOBRE A TRADUÇÃO LITERÁRIA – A TEORIA DOS

POLISSISTEMAS.................................................................................................73

2.4. A TRADUÇÃO LITERÁRIA COMO OBJETO SOCIOLÓGICO ...............78

Page 9: universidade federal do rio de janeiro em busca da tradução

3. A CONSAGRAÇÃO DA TRADUÇÃO DE EM BUSCA DO TEMPO

PERDIDO .............................................................................................................81

3.1. A TRADUÇÃO E A TEORIA DOS CAMPOS SIMBÓLICOS DE PIERRE

BOURDIEU ..........................................................................................................82

3.1.1. O FUNCIONAMENTO DO CAMPO DE PRODUÇÃO LITERÁRIA

................................................................................................................................86

3.2. EVIDÊNCIAS DE FUNCIONAMENTO DO CAMPO – AS INSTÂNCIAS

DE CONSAGRAÇÃO DA TRADUÇÃO DE EM BUSCA DO TEMPO

PERDIDO .............................................................................................................90

3.2.1. O FRANCÊS E A ORIGEM FAMILIAR DE QUINTANA

................................................................................................................................98

3.2.2. A POSIÇÃO TRADUTIVA “VISÍVEL” DE MARIO QUINTANA.....102

3.2.3. AFRIMAÇÕES DE AMOR À TRADUÇÃO E DE ABNEGAÇÃO DOS

LUCROS FINANCEIROS ..................................................................................106

3. 2.4. A MÍSTICA DO ACASO NO OFÍCIO DA TRADUÇÃO –HISTÓRIAS

FOLCLÓRICAS SOBRE A TRADUÇÃO DE PROUST. AS

CAPAS.................................................................................................................109

4. A LUTA PELA LEGITIMIDADE NO CAMPO – AS NOVAS TRADUÇÕES

DE EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO ............................................................117

4.1. A TRADUÇÃO DE FERNANDO PY........................................................119

4.2. A ESTRATÉGIA DE CONSERVAÇÃO DA EDITORA GLOBO: A

TRADUÇÃO “DEFINITIVA” ...........................................................................134

4.3. A LUTA PERMANENTE NO CAMPO: ANUNCIADA NOVA

TRADUÇÃO DE PROUST A SER LANÇADA EM 2012................................141

5. CONCLUSÕES ...............................................................................................147 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................152 7. ANEXOS .........................................................................................................157

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RESUMO

BARBOSA, Márcia da Anunciação. Em busca da tradução consagrada de Mario Quintana. Orientadora: Márcia Atálla Pietroluongo. Rio de Janeiro: UFRJ, 2011. Tese (Doutorado em Estudos Lingüísticos Neolatinos – Língua Francesa).

Nesse trabalho, procuramos compreender o que faz uma tradução de

determinada obra ser considerada definitiva. O estudo se deteve na tradução

de importantes obras francesas, em particular, a que constitui nosso objeto

de estudo - Em busca do tempo perdido de Marcel Proust. Traduzida por

Mario Quintana, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Lucia

Miguel Pereira, esta obra foi lançada pela Editora Globo na década de

quarenta, momento em que se consolida a atividade da tradução no Brasil.

Partimos da perspectiva de que a relevância dessa tradução se deveu muito

ao papel daquilo que é denominado de autores-tradutores – escritores que

exerceram a atividade da tradução -, e desse modo analisamos a condição

consagrada de Mario Quintana como tradutor, a partir de seu

reconhecimento como autor literário e, inversamente, o quanto o próprio

Quintana também alcança reconhecimento ao traduzir Proust. No âmbito

dessa análise, empregamos a teoria dos campos simbólicos de Pierre

Bourdieu, uma vez que são as instâncias deste campo de produção que

geram o produto raro e singular, tal como a tradução de uma obra literária.

Palavras chave: Estudos da Tradução; Teoria dos campos simbólicos;

Tradutor Literário.

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RESUME

BARBOSA, Márcia da Anunciação. Em busca da tradução consagrada de Mario Quintana. Orientadora: Márcia Atálla Pietroluongo. Rio de Janeiro: UFRJ, 2011. Tese (Doutorado em Estudos Lingüísticos Neolatinos – Língua Francesa).

Dans cette thèse, nous analyserons ce qui fait que la traduction d’une

oeuvre soit considérée importante. Notre étude s’est fondée sur la traduction

d’oeuvres littéraires françaises importantes, notamment celle qui constitue

notre objet d’investigation – À la recherche du temps perdu, de Marcel

Proust. Traduite au Brésil par Mario Quintana, Carlos Drummond de

Andrade, Manuel Bandeira et Lucia Miguel Pereira, cette oeuvre a été

publiée par Editora Globo, dans les années quarante, période durant laquelle

l’activité de traduction se consolidait au Brésil. Nous partirons du principe

que l’importance de cette traduction peut être attribuée au rôle des

écrivains-traducteurs – les écrivains qui ont exercé l’activité de traduction.

Ainsi, analyserons-nous, en particulier, la position consacrée de Mario

Quintana, à partir de son succès comme auteur littéraire et, par ailleurs, sa

consécration à partir de son travail en tant que traducteur de l’oeuvre de

Proust. Dans cette analyse, nous nous fonderons sur la théorie des champs

symboliques de Pierre Bourdieu, étant donné que ce sont les instances de ce

champ de production qui confèrent à la traduction littéraire sa rareté et son

originalité.

Mots-clés : Etudes de la traduction ; Théorie des champs symboliques;

Traducteur Littéraire.

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ABSTRACT

BARBOSA, Márcia da Anunciação. Em busca da tradução consagrada de Mario Quintana . Orientadora: Márcia Atálla Pietroluongo. Rio de Janeiro: UFRJ, 2011. Tese (Doutorado em Estudos Lingüísticos Neolatinos – Língua Francesa).

This paper seeks to understand what makes a translation of a given

work be considered a definitive translation. The study focused on the

translation of important French works, in particular, the book: À la

recherche du temps perdu (In search of lost time) by Marcel Proust.

Translated into Portuguese as Em busca do tempo perdido by Mario

Quintana, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira and Lucia

Miguel Pereira, this work was released by Editora Globo during the 1940s,

a time when translation was becoming consolidated in Brazil. We begin

with the assumption that the relevance of this translation was largely due to

the role of what are called author-translators, that is, writers who also

translate. Therefore, we analyzed the established condition of Mario

Quintana as a translator, based on his recognition as a literary author, and,

inversely, how much recognition Quintana also received by translating

Proust. Within the scope of this analysis, we used Pierre Bourdieu’s theory

of symbolic fields, since it is the instances of this field of production that

create a rare and unique product, such as the translation of a literary work.

Key words: Translation Studies; Theory of symbolic fields; Literary

Translator.

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INTRODUÇÃO

Constantemente relegado a um plano secundário ao longo da história da tradução

no Brasil, apagado na maioria das vezes, observamos que, na Era Vargas (de 1930 a

1945), o tradutor literário passa a ter destaque. Época em que interessava saber quem era

o tradutor, em que seu nome contava para o sucesso de vendas da obra traduzida. Época

dos autores-tradutores. Considerado um dos períodos mais produtivos da tradução

literária no Brasil, foi dos anos 1930 a meados dos anos 1950 que a tradução teve no País

o seu clímax. É interessante observar que essa época de pleno desenvolvimento da área é

marcada pela diminuição de traduções de obras de língua francesa e pela suplantação

daquelas advindas da língua inglesa. Entretanto, apesar do declínio do número de

traduções de obras do francês, paradoxalmente, é também nesse período que são

traduzidas importantes obras francesas. Primeiramente, interessou-nos o porquê da

tradução de obras francesas que, até então, não haviam sido traduzidas, justamente

quando a língua francesa começava a perder seu prestígio e quando a língua inglesa se

sobrepunha à francesa. Ora, algumas dessas traduções são consagradas até hoje, como

Em busca do tempo perdido, que teve Mário Quintana como tradutor dos quatro

primeiros volumes, sendo lançada pela Editora Globo em 1948, mesmo após o

surgimento de outras traduções. Assim, a questão central da pesquisa é como essa

tradução alcançou valor e reconhecimento pelo público.

Acreditamos que a consagração dessa tradução se deva ao papel de seu tradutor,

Mário Quintana. Ao irmos em busca do tradutor, analisando sua condição de consagração

no campo da tradução a partir de sua posição consagrada como autor literário,

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avaliaremos a tradução como um bem simbólico. Entretanto, acreditamos que não

somente a qualidade da tradução seja a responsável por sua consagração, mas todo um

jogo de forças presente no campo de produção literário. Nessa perspectiva, a teoria de

Pierre Bourdieu, com seu conceito de habitus adquirido e relacionado com as estratégias

operadas por um campo e por determinados agentes desse campo, nos guiará. O nome e

os escritos de Pierre Bourdieu estão cada vez mais presentes no campo dos Estudos da

Tradução, principalmente por meio de estudiosos como Daniel Simeoni, Gouanvic Jean-

Marc e Inghiller Moira. Pascale Casanova, entretanto, se fez pioneira quando, em 1999,

publicou La république mondiale des lettres, em que evidencia a mudança no contexto

dos Estudos da Tradução ao associá-la à teoria bourdieusiana. Segundo Pascale Casanova

(2002), o tradutor constitui uma das instâncias a situar no espaço literário, e de sua

posição, dentre outros fatores, depende o grau de legitimidade da tradução. Assim, quanto

maior o prestígio do tradutor, mais nobre é a tradução, mais ela se consagra.

Primeiramente, no primeiro capítulo, faremos um histórico da tradução literária no

Brasil, ressaltando a influência da cultura francesa em diferentes períodos, mostrando a

posição dos tradutores ao longo da história e a formação do espaço social da tradução no

Brasil. Destacaremos a fase histórica que é central neste trabalho, a Era Vargas,

mostrando, então, as mudanças no País e no cenário mundial no período histórico em que

os Estados Unidos passam a ter papel dominante. Ao tratar da tradução literária no

referido período, observaremos que o número de traduções de língua inglesa sobrepõe-se

ao de língua francesa, ressaltando as mudanças na tradução a partir desse momento.

Assim, quem eram os tradutores antes? Quem eram nesse período? Depois,

discorreremos sobre as principais obras traduzidas do francês nesse período: A comédia

Page 15: universidade federal do rio de janeiro em busca da tradução

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humana, de Balzac, e Em busca do tempo perdido, de Proust, mostrando como aumentou

a qualidade das traduções nesse momento.

No segundo capítulo, verificaremos, em diferentes teorias, a concepção do que seja

uma boa tradução, bem como o posicionamento do tradutor diante da tradução.

Observaremos que, em uma visão dita tradicional, a questão da fidelidade é apresentada

como essencial ao julgamento do que seja uma boa tradução. Depois, por meio das

teorias de Antoine Berman e Lawrence Venuti, constataremos como esses autores

salientam certos aspectos sociais que se refletem no posicionamento do tradutor diante do

seu fazer. Um exemplo disso é a tradução etnocêntrica ou não etnocêntrica, que incidirá

na visibilidade ou não do tradutor. Observaremos que, segundo Johan Heilbron e Gisele

Sapiro,1 além do texto em si, questões propriamente sociológicas surgem, principalmente

no que concerne às funções da tradução e de seus agentes no espaço em que se

encontram.

No terceiro capítulo, analisaremos as tensões que se instauram no campo, a partir

da tradução de Em busca do tempo perdido, de Proust. Compreenderemos, então, não

apenas quem são os tradutores, mas também como muda o status da tradução, sendo o

tradutor também escritor ou intelectual consagrado. Observando a consagração sob o viés

de Pierre Bourdieu, mostraremos a recepção que teve essa tradução, até chegarmos ao

ponto central deste trabalho: a consagração da tradução de Em busca do tempo perdido.

Destacaremos o tradutor que mais contribuiu para a consagração dessas obras: Mário

Quintana. Para isso, partiremos da abordagem realizada por Bourdieu em A produção da

crença, em que toma como objeto de análise entrevistas que demonstram, segundo o

1 HEILBRON, Johan; SAPIRO Gisèle. La traduction littéraire – un objet sociologique. Paris: Actes de la Recherche en Sciences Sociales, 2002. v. 144, p. 3-5.

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próprio Bourdieu, uma “espécie de harmonia estabelecida entre o habitus do criador e a

posição que ele ocupa no campo, isto é, a função que lhe foi atribuída, embora ele a

tenha, aparentemente, produzido”.2

No quarto capítulo, observaremos que em todos os campos há os consagrados e os

pretendentes em luta por legitimação. No espaço social da tradução não é diferente.

Assim, mostraremos a luta por legitimidade efetivada pela nova tradução de Em busca do

tempo perdido feita por Fernando Py para a Ediouro em 2002, mostrando que há sempre

referência à tradução de Quintana por parte da crítica. Analisaremos, então, as estratégias

acionadas pelo “pretendente” Fernando Py para firmar-se no campo e como se dá essa

disputa. Será mostrada a reação da Editora Globo ao relançar sua tradução, atualizada,

que se autodenomina “Proust Definitivo”. A fim de exemplificarmos a permanente luta

no campo, mostraremos que uma nova tradução de Em busca do tempo perdido será

lançada em 2012 pela Companhia das Letras, em parceria com a britânica Pengui, e como

essa tradução já se demarca em relação à tradução consagrada pela Editora Globo.

Por fim, apresentaremos as conclusões obtidas neste trabalho, que apontam o

caminho aberto pela pesquisa ao refletirmos sobre a questão da consagração, bem como

sobre a questão da denegação das traduções em língua francesa, diante da supremacia

daquelas em língua inglesa.

2 BOURDIEU, Pierre. A produção da crença – contribuição para uma economia dos bens simbólicos. Tradução Guilherme João de Freitas Teixeira e Maria da Graça Jacintho Setton. Porto Alegre: Zouk, 2001.

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1 A TRADUÇÃO NO BRASIL E A LÍNGUA FRANCESA

Neste capítulo, mostraremos, a partir das pesquisas de Lia Wyler (2003),

Sônia Maria de Amorim (2000) e Simone Souza (2004), além de outros

pesquisadores na área da historiografia da tradução, um panorama da tradução

literária no Brasil, desde o período colonial até meados do século XX, com o

objetivo de demonstrar que a presença da língua e da cultura francesas no Brasil

contribuiu para a valorização da tradução no País. Mostraremos que o crescimento

da produção de literatura traduzida se deveu ao fato de que a língua francesa era

parte dos costumes da classe dominante em diferentes períodos históricos do País.

Essa hegemonia ocorreu até meados dos anos 1930, momento em que a cultura e a

língua francesas perderam sua supremacia, em função da transferência do poder

da influência linguística do francês para o inglês no mapa mundial.

Observaremos, também, como se transformou a atividade da tradução ao

longo de cada período histórico, até chegarmos à Era Vargas, momento em que

surgem os autores-tradutores, a fim de compreendermos como as traduções

naquele período histórico alcançaram um valor que, até então, não apresentavam.

Finalmente, analisaremos a influência desses autores-tradutores sobre o

reconhecimento obtido pelas traduções, que contribuíram sobremaneira para a

valorização da tradução de uma maneira geral e para o trabalho dos tradutores.

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18

1.1 A TRADUÇÃO ESCRITA NO BRASIL DO SÉCULO XVI AO SÉCULO XVIII

A tradução escrita no Brasil enfrentou sérios obstáculos ao seu

desenvolvimento, principalmente a falta de demanda, uma vez que somente a elite

da época manifestava interesse pela leitura de textos, fossem estes traduzidos ou

não. Nesse período, embora já existissem algumas escolas e livros no Brasil

Colônia, a maioria absoluta da população era iletrada. Assim, a falta de um

público leitor e a proibição da impressão no País, que perdurou até a chegada da

Família Real, em 1808, consistiram em obstáculos à tradução.

Entretanto, apesar da proibição da impressão no Brasil, ainda assim

circulavam livros no País, principalmente por meio dos jesuítas, que inicialmente

copiavam à mão as cartilhas de leitura e importavam livros, de maneira legal ou

ilegalmente, construindo as primeiras bibliotecas. Essas obras das bibliotecas dos

jesuítas constituiriam, por cerca de dois séculos, a base da formação cultural e

intelectual do público letrado da época. Essas bibliotecas foram importantes para a

manutenção do plurilinguismo, uma vez que contavam com muitas obras em

francês, espanhol, italiano, latim e grego. Mas o francês já se sobressaía,

indiscutivelmente, não somente com obras no original, como também em

traduções indiretas de outras línguas.

Afirma Wyler que o estrangeiramento das elites brasileiras pode ser

explicado pelas influências culturais a que o Brasil estava exposto: a portuguesa, a

espanhola e a francesa, e esta por intermédio dos portugueses, profundamente

marcados pela cultura francesa. Dessa maneira, essa influência cultural francesa

se estabeleceu no Brasil com os jesuítas, tendo o francês chegado a competir com

o português pelo privilégio de ser língua nacional. É importante lembrar que é

Page 19: universidade federal do rio de janeiro em busca da tradução

19

somente com a Constituinte de 1823 que o português é decretado língua oficial do

Brasil.

Constatamos, então, que no Brasil Colônia as primeiras traduções tinham

como objetivo a catequização. Não existia até esse momento a noção de autoria de

tradução. Logo, não existia a figura do tradutor como sujeito autor da tradução, e

tampouco a tradução como obra disposta de um valor autônomo, o que evidencia

o fato de que, nesse momento histórico, ainda não havia um espaço social próprio

de atividade da tradução.

Observamos, assim, que o francês se fazia presente principalmente por meio

dos colonizadores portugueses, sobretudo os jesuítas, que eram fortemente

influenciados pela cultura francesa, e que muitas das obras presentes nas primeiras

bibliotecas do País eram em língua francesa. É importante lembrar a hegemonia

que a cultura francesa alcançou nos séculos XVII e XVIII, não somente no Brasil,

mas em várias partes do mundo. A partir do auge da monarquia de Luís XIV,

quando a França se tornou uma potência mundial, e ao longo dos séculos XVII e

XVIII, a cultura francesa tornou-se o modelo ideal a ser copiado nas artes, nos

modismos e no comportamento.

Com a chegada da Família Real, o modo de vida das Cortes europeias passa

a fazer parte da vida social do Brasil. Dois fatores correlatos viriam a mudar o

quadro da ausência de tipografias – embriões das futuras editoras –, proibidas até

então pela metrópole: o advento da Impressão Régia, inaugurada em 13 de maio

de 1808, no Rio de Janeiro, por D. João VI, e, consequentemente, o aumento do

público leitor. A Impressão Régia, inicialmente, tinha por função publicar

documentos, passando, mais tarde, a publicar, também, qualquer obra, inclusive

romances.

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20

No artigo intitulado “Adaptações e livros baratos para a Corte: folhetos

editados na Impressão Régia do Rio de Janeiro entre 1808 e 1822”, Simone

Cristina Mendonça de Souza (2004) traça um panorama editorial da época,

mostrando as obras publicadas pelos folhetos editados pela Impressão Régia, cujo

formato se assemelhava aos dos livros que compunham a chamada Bibliothèque

Bleue. Esse panorama é importante para observarmos que a tradução e a

adaptação de obras francesas se fizeram de maneira ampla nesse período.

Dentre os livros de prosa de ficção publicados pela Impressão Régia que

circularam no Brasil no período de 1808 a 1822, destacamos algumas traduções

ou adaptações de obras francesas:∗

– A choupana india. Escripta em francez pelo autor de Paulo e Virginia (o

abbade Saint Pierre), e vertida em português. 1811.

– Cartas de huma peruviana. Traduzidas do francez na língua portuguesa

por huma senhora. Tomo I, 1811 e Tomo II, 1812.

– A boa mãi. Novella: traduzida do francez. 1815.

– O castigo da prostituição. Novella: traduzida do francez. 1815.

– As duas desafortunadas. Novella: traduzida do francez. 1815.

– A infidelidade vingada. Novella: traduzida do francez. 1815.

– A má mãi. Novella: traduzida do francez. 1815.

– Triste effeito de huma infidelidade. Novella: traduzida do francez. 1815.

Assim, essas traduções são oferecidas a um novo público leitor. Além disso,

segundo Wyler, multiplica-se o número de tradutores no Brasil no período de

1808 a 1890. Segundo Souza (2004), esses livros não constituíam propriamente

uma tradução, mas uma adaptação, com capítulos recortados, versões de obras

∗ Optamos por manter os títulos com a grafia da época.

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francesas, provavelmente alteradas e resumidas. Souza faz uma aproximação

desses livros publicados pela Impressão Régia com os da Bibliothèque Bleue,

analisados por Roger Chartier (1990).

Os livros da Bibliothèque Bleue seguiam uma fórmula editorial de reedição

de textos já consagrados e escritos originalmente para um público intelectual e

que eram adaptados a fim de se tornarem mais acessíveis a um público de

menores condições socioeconômicas. Dividiam-se os textos em parágrafos

menores, inseriam-se resumos e recapitulações, além de cortes nos capítulos,

principalmente das descrições, e da simplificação das estruturas das orações.

Dessa maneira, afirma Souza, observa-se a interferência do editor na

formatação das impressões, modificando o formato do livro, alterando a

disposição do texto, inserindo ou retirando ilustrações, excluindo períodos do

texto original, considerados longos, ou mesmo resumindo o original.

Outro fator relevante é que a chegada da Família Real propiciou, também, a

criação de instituições de ensino e, consequentemente, um aumento no número de

pessoas alfabetizadas no País, mas ainda inexpressivo para a formação de um

público leitor.

Em 1821, um fato importante facilita a entrada de livros estrangeiros no

País: a supressão de censura ou licença sobre esses livros. Assim, a França

mantém seu domínio cultural, exportando legalmente livros para o Brasil, quando,

então, algumas livrarias são abertas. Dessa forma, havia uma preponderância de

livros de autores franceses no Brasil sobre os de outras nacionalidades. Além

disso, os livros importados tinham um preço menor, uma vez que o custo do papel

ainda era muito alto, por conta do imposto sobre sua importação.

O Brasil dessa época vivia sob forte influência cultural da França. Nesse

Page 22: universidade federal do rio de janeiro em busca da tradução

22

contexto, duas editoras francesas se destacaram para a cultura livresca do País:

Laemmert e Garnier. Essas duas editoras importavam grande quantidade de livros

franceses para uma elite rica e culta brasileira, enquanto o restante da população

brasileira – cerca de 84% – ainda não sabia ler. O mercado de livros se dividia

entre os irmãos Laemmert e a livraria Garnier, de seu fundador e editor, Baptiste

Louis Garnier. Esse editor lançou clássicos estrangeiros e foi um dos primeiros a

editar os autores brasileiros, tais como José Veríssimo, Olavo Bilac, Artur

Azevedo, Bernardo Guimarães, Silvio Romero, João do Rio e Joaquim Nabuco.

Além disso, Garnier foi o primeiro e o principal editor de Machado de Assis, de

cujas obras comprou os direitos autorais.

Em relação à tradução, o estabelecimento de sua atividade no País ocorre

com a constituição do mercado de obras literárias, a partir do gradativo

crescimento do público leitor. Os tradutores não eram mais os religiosos, nem a

tradução tinha como objetivo a catequização. Temos, então, a tradução e a

adaptação de obras literárias, sobretudo as francesas, com o objetivo de atender às

demandas desse público. Entretanto, o nome do tradutor ainda não é citado nas

obras traduzidas, e, desse modo, a autoria da tradução permanece incógnita.

1.2 O CRESCIMENTO DA TRADUÇÃO NO BRASIL NO SÉCULO XIX COM OS ROMANCES-FOLHETINS

Na segunda metade do século XIX, ocorrem importantes avanços no campo

educacional, sobretudo no âmbito do ensino primário, que passa a ser oferecido

em diversas escolas do País. Esse avanço é relevante, pois acarreta o crescimento

de um público leitor, que faz aumentar o número das traduções, sobretudo nos

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23

jornais. Segundo Wyler, mesmo com vários obstáculos de ordem política,

ideológica e econômica, a política tradutória prospera no Brasil no século XIX. A

tradução passa a ser disseminada no meio social através dos jornais – existentes

em números razoáveis no País –, graças aos romances-folhetins.

A invenção dos romances-folhetins é atribuída ao francês Émile Gerardin,

na França. Esse gênero de narrativa teria se inspirado no sucesso dos melodramas

encenados no teatro, nos quais sempre havia elementos sensacionalistas que

prendiam a atenção do espectador. Por volta de 1836, Gerardin decidiu publicá-

los em jornais com características semelhantes. Esses romances, publicados no

rodapé das páginas dos jornais franceses, chamou grande atenção do público, que

se habituou a procurá-los nesses periódicos, nos quais se apresentavam divididos

em capítulos – estratégia que gerava uma curiosidade no público, impulsionando

as vendas dos jornais. Observamos, então, que o romance-folhetim atende às

novas demandas de um mercado editorial.

No Brasil, o gênero do romance-folhetim foi introduzido por Justiniano José

da Rocha, jornalista e político de destaque no Segundo Reinado (1849-1889), que,

ao perceber a popularidade do romance-folhetim na França, escreveu ele próprio

alguns desses folhetins e traduziu vários outros do francês para jornais brasileiros.

Como o fascínio nacional pela Europa, sobretudo pela França, era imenso e a

produção brasileira de folhetins era escassa, tivemos um grande número destes,

traduzidos do francês, no Brasil do século XIX. Quanto ao romance-folhetim,

afirma José Paulo Paes (1990): “tão grande foi a voga do folhetim romântico no

Brasil que logo se verificava um desequilíbrio entre a apetência do público e a

capacidade nacional de produção”. Assim, a tradução passou a ser estimulada para

atender à demanda dos jornais, envolvida com a publicação dos folhetins

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24

franceses.

Quanto à maneira de traduzir, observamos que a versão dos romances-

folhetins franceses feita para o português seguia moldes muito em voga na França:

a denominada Belles Infidèles (Belas Infiéis). Essa maneira de traduzir consistia,

em linhas gerais, no abandono da fidelidade literal, adaptando o texto traduzido à

língua do leitor de determinada classe social. Na verdade, tratava-se do culto à

tradução dita elegante, uma vez que a tradução se conformava às regras das

classes dominantes. Esse gênero se consolidou na França no século XVII, com o

intuito de se ajustar ao gosto de leitura das classes privilegiadas, eliminando,

assim, das traduções dos clássicos da Antiguidade o que era estranho ou

deselegante. Entretanto, difundiu-se pelo mundo, por séculos, segundo os valores

morais da época e do local em que as traduções eram publicadas. Assim, eliminar,

remodelar e modificar partes do texto era permitido nas traduções para o francês,

em nome da polidez e da moral.

Importante ressaltar que o estilo de tradução “belles infidèles” possui

características muito peculiares ao período e ao momento histórico francês do

século XVII, assim, o que salientamos como ponto comum é uma tradução mais

voltada à cultura alvo, com o objetivo de facilitar a compreensão do público leitor.

Como verificamos na justificativa de Justiniano da Rocha ao comentar suas

traduções do francês de romances-folhetins:

Será traduzida, será imitada, será original a novela que ofereço, leitor benévolo? Nem eu mesmo que a fiz vo-lo posso dizer. Uma obra existe em dois volumes, e em francês que se ocupa com os mesmos fatos; eu a li, segui seus desenvolvimentos, tendo o cuidado de reduzi-los aos limites de apêndices, cerceando umas, ampliando outras circunstâncias, traduzindo os lugares em que me parecia dever traduzir, substituindo com reflexões minhas o que me parecia dever ser substituído; uma coisa só eu tive em vista, agradar-vos.3

3 ROCHA, Justiniano. A paixão dos diamantes. Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, p. 27-30, mar. 1839.

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25

Entretanto, um modelo de tradução mais voltado para o público alvo não

era o único motivo para as adaptações nas traduções da época. Segundo Lenita

Esteves (2005), na tradução dos romances-folhetins, o tradutor exercia, por vezes,

o papel de autor, ou seja, as obras eram adaptadas. Ora, muitos desses romances

eram traduções dos que estavam sendo publicados quase simultaneamente nos

jornais franceses naquele momento. Assim, quando acontecia um atraso na

chegada dos originais, o tradutor continuava a escrever a história, a fim de que a

publicação não fosse interrompida. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o

romance-folhetim intitulado Rocambole, de Ponson du Terrail, cuja tradução

vinha sendo publicada pelo Jornal do Commercio. O tradutor chegou mesmo a

matar alguns personagens, e, quando chegaram novamente os originais, o tradutor,

Souza Ferreira, teve de “ressuscitar” personagens para conciliar novamente a

história da tradução com a do original. Assim, o objetivo principal era a venda dos

jornais, podendo ser feitas até mesmo modificações nas traduções, a fim de

alcançar esse objetivo. Quanto aos tradutores, estes se mantinham quase sempre

incógnitos e raramente assinavam suas traduções, exemplificado por Maria

Arnoldo Coco, a partir do texto do Jornal das Senhoras, do dia 3 de julho de

1853:

[...] agradecemos ao tradutor incógnito o valioso presente que nos fez, e recomendamos a todos a leitura desta história verdadeira e contemporânea cuja versão, se não é servil, se não traduz palavra por palavra, dificilmente encontrará no original uma ideia, um pensamento, que no português não tenha a frase equivalente.4

Desse modo, no século XIX, no que concerne à tradução literária, não

4 COCO, Maria Arnoldo. O triunfo do bastardo: uma leitura dos folhetins cariocas no século XIX. Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio, Rio de Janeiro 1990. 2 v.

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somente o romance-folhetim, mas também as peças de teatro tiveram destaque na

preferência dos nossos tradutores. A pesquisa de Wyler mostra que, no período

entre 1839 e 1854, foram publicados pelo menos 74 romances-folhetins franceses

nos vários periódicos do Rio de Janeiro, em uma média de cinco romances por

ano. A popularidade da tradução dos romances-folhetins levou vários escritores

brasileiros da época a se dedicarem às traduções. Observa-se, então, o início da

participação de autores literários na atividade da tradução. Entretanto, esses

autores desmereciam a atividade de tradução, por considerá-la inferior, sem

necessidade de grandes reflexões:

A tradução é o elemento dominante, nesse caos que devia ser a arca santa onde a arte pelos lábios dos seus oráculos falasse às turbas entusiasmadas e delirantes. Transplantar uma composição dramática francesa para a nossa língua é tarefa de que se incumbe qualquer bípede que entende de letra redonda. O que provém daí? O que se está vendo. A arte tornou-se uma indústria.5

Assim, a tradução era considerada como cópia, algo que não necessitava de

reflexões ou criatividade. O original era visto como arte, ao passo que a tradução

era vista como algo destituído de criatividade, tal como o trabalho mecânico da

indústria e, logo, menor. Essa oposição entre o texto original (atividade artística) e

o texto traduzido (trabalho mecânico) está presente ao longo da história do ofício

literário, e dessa visão provavelmente decorre a desvalorização da tradução e do

trabalho do tradutor.

Quanto aos romances-folhetins, Machado de Assis criticava o excesso de

folhetins com ambientação francesa no País, uma vez que, para ele, a tradução

seria um obstáculo à formação de uma literatura nacional:

Em geral, o folhetinista aqui é todo parisiense; torce-se a um estilo estrangeiro, e esquece-se, nas suas divagações sobre o boulevard e o Café Tortoni, de que está

5 ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. v. III, p. 788-789.

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sobre um adam lamascento e com uma grossa tenda lírica no meio de um deserto. Alguns vão até Paris estudar a parte fisiológica dos colegas de lá; é inútil dizer que degeneraram no físico como no moral.6

O próprio Machado de Assis, além de ter escrito em francês, traduziu muitas

obras francesas para o português. É interessante constatar que Machado, antes de

publicar seu primeiro romance, já havia traduzido Os trabalhadores do mar, de

Victor Hugo. Quanto à atividade de Machado como tradutor, Eliane Ferreira

(2004) chega a relacionar 48 textos traduzidos pelo escritor, tendo ele estreado

como tradutor em 1856, com o poema Minha mãe, de William Cowper. Machado,

segundo Ferreira, traduziu 16 peças de teatro, 24 poemas, dois ensaios, dois

romances e um conto. Dentre os autores por ele traduzidos estão Lamartine,

Alexandre Dumas Fils, Chateaubriand, Racine, La Fontaine, Alfred de Musset,

Molière, Victor Hugo, Beaumarchais, Shakespeare, Charles Dickens, Edgar Allan

Poe, Schiller e Heine. Apesar de essa listagem incluir, em sua maioria, autores

franceses, veem-se, também, autores ingleses, americanos e alemães. Entretanto,

segundo Ferreira, a única língua que Machado conhecia bem era o francês, tendo-

se utilizado, então, da tradução indireta do francês para traduzir obras de outras

línguas. O próprio Machado, ao comentar sua tradução de Schiller, afirmara não

saber alemão e que traduzira aqueles versos de uma versão francesa.

Observamos, então, que o crescimento da atividade tradutória no Brasil

deveu-se principalmente às traduções dos romances-folhetins. Machado de Assis

foi um dos primeiros autores-tradutores, tendo traduzido, conforme

exemplificado, diversos textos de importantes autores, principalmente franceses.

Apesar desse fato, a atividade tradutória ainda era desvalorizada, permanecendo o

6 ASSIS, Machado de apud WYLER, Lia. Línguas, poetas e bacharéis – uma crônica da tradução no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2003. p. 93.

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tradutor incógnito na grande maioria das vezes – exceto quando se tratava de um

autor reconhecido, tal como era Machado de Assis. Contudo, mesmo ele

privilegiava, em suas traduções, a maneira de traduzir própria das Belles Infidèles,

de modo a atender ao público consumidor das obras. Remodelar, cortar e suprimir

foram recursos válidos em nome da “inteligibilidade” da tradução, tal como nos

aponta um crítico da revista Veja:

Uma faceta pouco conhecida de Machado de Assis é a de tradutor. Mas ele a teve. Dedicou-se, sobretudo, aos poetas estrangeiros e deixou algumas joias nesse campo, como sua versão para o poema O Corvo, do americano Edgar Allan Poe. Mais raras foram as ocasiões em que ele trabalhou sobre textos em prosa. Em 1870, deu início à tradução de Oliver Twist, do inglês Charles Dickens. Não foi o seu melhor momento. Machado não partiu do original, mas de uma versão em francês do romance. Adotou o procedimento duvidoso de resumir ou cortar passagens inteiras da obra.7

1.3 A TRADUÇÃO NO SÉCULO XX NO BRASIL

A tradução no início do século XX, no Brasil, sofreu importantes

transformações. A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) provocou a interdição

do comércio marítimo entre a Europa e o restante do mundo ocidental, fazendo

com que o Brasil voltasse atenção para si mesmo. Assim, em relação ao mercado

de livros, houve um grande crescimento editorial no País. Autores nacionais

passaram a ser reconhecidos, e, além disso, as publicações nacionais e as

traduções de textos estrangeiros cresceram em números inéditos. Nesse período,

várias editoras se estabeleceram no mercado brasileiro.

Outra importante mudança se deu no âmbito da educação. Em 1930, ao

assumir pela primeira vez a Presidência da República, Getúlio Vargas implanta no

7 VEJA. Periódico. São Paulo. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/200302/p_131.html>. Acesso em: 19 ago. 2011.

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País um projeto educacional a fim de minimizar o analfabetismo e qualificar o

trabalhador brasileiro. A política educacional de Vargas representou uma ampla

reforma do ensino, acabando por incentivar a indústria editorial, o que

imediatamente consolidou o mercado dos livros didáticos e a médio prazo

ampliou o público leitor em geral.

Junto com a alfabetização, houve, também, o estímulo à publicação de

livros, revistas e jornais, bem como o incentivo à tradução de obras inéditas.

Outro fator que contribuiu para o incremento da tradução nesse período foi o alto

custo da importação de livros, que muito os encarecia no âmbito do mercado

nacional. O resultado é que o livro produzido no País se tornou mais acessível em

comparação ao importado, e, assim, houve um crescimento das traduções,

diminuindo, consequentemente, ainda mais a importação de livros franceses. O

número de editoras nacionais em atividade no País cresceu quase 50% entre 1936

e 1944. Os títulos e exemplares publicados por tais editoras quadruplicaram entre

1930 e 1950.

Em 1937, Vargas criou o Instituto Nacional do Livro (INL), a fim de

alavancar o processo de difusão do livro no Brasil. Caberia a esse Instituto

selecionar as obras consideradas “raras” e “preciosas” – segundo um critério de

interesse da cultura nacional – e subsidiar sua tradução. As demais traduções

produzidas fora desse Instituto teriam de passar pelo controle do Serviço de

Divulgação da Chefatura de Polícia, que tinha o objetivo de controlar a produção

intelectual, visando aos interesses do regime de Governo.

Segundo Maria Clara Castellões de Oliveira (2008), nos anos 1940, ocorrem

outros fatores que determinam o papel desempenhado pela tradução. Além do

Estado Novo, temos, também, o advento da Segunda Guerra Mundial, que tornou

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30

ainda mais difícil a importação de livros europeus. Entretanto, essa interrupção da

vinda de livros europeus propiciou a abertura de espaço para a entrada de livros

provenientes dos Estados Unidos, em acordo com as ligações que o Brasil passou

a manter com esse país, intensificando as trocas culturais entre os dois países.

Também nesse período, Vargas intensificou a censura política, criando o

Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), a fim de controlar a entrada no

País de publicações que pudessem atentar contra a ideologia e o programa de

Governo. Dessa maneira, toda a produção intelectual no Brasil passou a ser

vigiada pelo DIP. Dentro dessa censura muito rígida, os escritores que não se

enquadravam nas regras do Governo eram presos, e suas obras, censuradas ou

destruídas.

A censura na Era Vargas contribuiu significativamente para que muitos

escritores passassem a se dedicar à tradução, pois essa era uma maneira de manter

contato com seu público leitor. Foi o período, então, do surgimento dos autores-

tradutores – escritores capazes de legitimar traduções de obras estrangeiras,

dando-lhes credibilidade a partir do reconhecimento conquistado como escritor.

Podemos dizer que, nesse momento, no Brasil, constituiu-se um espaço próprio e

valorizado da atividade de tradução, funcionando como uma espécie de campo

interno ou subcampo da produção literária. Tal afirmação se baseia no fato de que,

pela primeira vez, houve a formação de um mercado propriamente brasileiro de

obras literárias traduzidas, composto de editores, tradutores (escritores) e leitores

dispostos a consumir essas obras.

Sobre a Era Vargas, afirma Maria Clara Castellões de Oliveira:

Esse estado de coisas exigiu que as companhias editoras tivessem em seus quadros um número considerável de profissionais para exercerem as tarefas de tradução. O fato de ainda não existir a profissionalização do ofício tradutório fez com que fossem contratados para tanto escritores cujos nomes renderam maior credibilidade

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às traduções lançadas no mercado. Do ponto de vista desses escritores, a tradução passou a ser uma forma alternativa de expressão diante da censura que vigorava no período, tendo se transformado na sua principal fonte de renda durante o Estado Novo.8 Nessa afirmação, podemos claramente observar que a profissionalização do

tradutor não se reduziu a uma espécie de funcionamento pragmático do mercado

editorial, mesmo porque já existiam tradutores trabalhando de maneira incógnita.

Importa assinalar que a valorização dessa profissionalização se deveu à atração de

autores consagrados ou em vias de consagração para conferir legitimidade às

traduções nesse período.

Também nesse período, as editoras passaram a investir nas traduções, de

maneira mais consistente e em maior escala, organizando coleções de autores

estrangeiros, principalmente coleções de obras de ficção de autores já falecidos,

para economizar com pagamentos de direitos autorais. Esse período foi, também,

de grande crescimento do número de tradutores no mercado e de valorização da

atividade da tradução em função da atuação do que se denomina autores-

tradutores – escritores reconhecidos, atraídos para a atividade da tradução.

Nessa época, duas das editoras de maior relevo no País, a José Olympio,

com sede no Rio de Janeiro, e a Editora Globo, com sede em Porto Alegre,

passaram a contar com um grande número de escritores em seu quadro, uma vez

que estes trariam maior publicidade às traduções. Dentre os escritores da primeira

metade do século XX, destacam-se Monteiro Lobato – um pioneiro dos autores-

tradutores –, Rachel de Queiroz, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles,

Manuel Bandeira, Érico Veríssimo e Mário Quintana.

8 OLIVEIRA, Maria Clara Castellões de. A cleptomania do tradutor: a tradução no Brasil da década de 40 do século XX. Anais do XI Congresso Internacional da Abralic. São Paulo: USP, 2008.

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Segundo Wyler, a maioria dos autores-tradutores conhecia bem o francês,

que nesse momento começava a perder a hegemonia para o inglês. Tal fato

ocasionou que as obras literárias de outras línguas fossem traduzidas

principalmente do francês, e, desse modo, esta foi também a língua da tradução

indireta nesse período. Lembremo-nos que muitas obras da literatura russa, por

exemplo, foram traduzidas, indiretamente, de traduções francesas.

Outra consequência do reconhecimento das traduções elaboradas pelos

autores-tradutores, na Era Vargas, foi o crescimento da crítica em relação às

traduções, como afirma Maria Clara Castellões de Oliveira:

Uma das consequências do crescimento da publicação de traduções no Brasil durante o Estado Novo foi a criação de um espaço público de crítica dessa atividade, que, como mencionado, se deu em 1944, no suplemento literário do Diário de Notícias. Por iniciativa de dois tradutores, Raul Lima, redator-chefe desse jornal, e Guilherme Figueiredo, diretor de seu suplemento literário, abriu-se nesse periódico um espaço para que seus leitores pudessem enviar comentários sobre traduções que teriam lido. Entre as opiniões emitidas, destacaram-se as de um mineiro de Barbacena, Agenor Soares de Moura, que logo se viu convidado para assinar uma seção permanente desse suplemento, intitulada “À margem das traduções”.9

O livro ocupava um lugar importante no cotidiano da classe letrada, e os

jornais tinham um papel essencial no sucesso de um livro, pois eram lidos com

regularidade, sendo um dos principais divulgadores das obras e constituindo uma

das instâncias de consagração destas:

Era um tempo livresco, digamos assim. Um tempo em que se liam livros, e também se escrevia sobre eles para chamar a atenção dos indiferentes. A escrevia sobre B e B escrevia sobre C. E se estabelecia desse modo uma espécie de equação crítica, ou uma rodinha de elogio mútuo [...]. O livro era noticiado. Era comentado. E ainda não existiam feiras de livros nem outros supermercados literários.10

9 OLIVEIRA, Maria Clara Castellões de. Op. cit. 10 TOSTES, Theodomiro. Nosso bairro: memórias. Porto Alegre: Fundação Paulo do Couto e Silva, 1989.

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Assim, as traduções eram comentadas, discutidas principalmente nos

jornais. Ora, esse interesse pela crítica não se deve somente ao aumento do

número de traduções na Era Vargas, mas também à importância de quem as

traduzia. Dessa forma, houve um interesse maior da crítica por serem essas

traduções feitas por autores-tradutores. Aos críticos interessava comentar

traduções de um autor-tradutor, e não de um “tradutor qualquer”, uma vez que

haveria um reconhecimento e uma valorização desses críticos através da

reduplicação.

1.4 AUTORES-TRADUTORES NAS TRADUÇÕES DA EDITORA GLOBO

Segundo o Anuário brasileiro de literatura, entre 1938 e 1943, a Editora

Globo detinha 36% de títulos no gênero de ficção e 11% dos livros didáticos. O

restante dos títulos era distribuído entre a literatura infantil e as biografias. Outras

cinco editoras do mercado editorial, nessa época, foram: Companhia Editora

Nacional, Civilização Brasileira, José Olympio, Francisco Alves e

Melhoramentos. Dentre estas, a Globo consistia na única a figurar fora do eixo

Rio–São Paulo.

Nos anos 1942 e 1943, a Globo se posicionou entre as empresas da indústria

editorial com o maior número de traduções; com relação às edições de autores

nacionais, sua produção abrangia aproximadamente 51% do mercado. A Editora

Globo efetuou vários investimentos, com o objetivo de baratear o custo, visando

ao aumento das vendas para o público leitor. Cuidados com o tamanho da tiragem,

o preço final ao consumidor relacionado com o tipo de papel e o formato pocket

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34

book, os direitos autorais, os honorários de tradução, a propaganda, os pontos de

venda e o desenho da capa das coleções foram algumas das estratégias lançadas

para aumentar as vendas. Assim, várias coleções foram lançadas, e cada uma

delas mantinha certas características que correspondiam aos interesses de

diferentes grupos do público leitor. Érico Veríssimo, editor à época, com a

preocupação de trazer ao público leitor os mais diversos gêneros da literatura, foi

responsável pela divulgação de autores considerados eruditos e de leitura “difícil”,

tais como Virginia Woolf, Roger Martin du Gard e Marcel Proust.

1.4.1 AS COLEÇÕES DA EDITORA GLOBO

Érico Veríssimo, como editor responsável dessa editora, trouxe sua

bagagem de leitor e conhecedor das literaturas francesa, inglesa e alemã. Existia

também, segundo Sonia Amorim (2000), uma preocupação consciente em formar

um público leitor, explicitada em várias ocasiões pelo próprio Érico Veríssimo.

Assim, as coleções foram editadas seguindo uma hierarquia do que era entendido

como “complexidade”. Primeiramente, com o objetivo de seduzir leitores,

procurou-se lançar obras dotadas de leituras tidas como mais amenas, para então

conduzir gradativamente esse público leitor a obras consideradas mais elaboradas.

Ora, a publicação de traduções eliminava uma série de etapas no processo

de edição, tornando mais vantajoso esse tipo de publicação para a editora, assim

explicado por Amorim: “o editor estrangeiro já deu conta de quase tudo: escolheu

autor e obra, definiu formato, tipologia, configuração visual do livro, sem contar

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35

que já correu o risco de editar algo inédito [...]”.11

Para hierarquizar e facilitar o consumo das edições de literatura traduzida, a

Globo criou nove coleções dentro desse período mais prolífico das edições – entre

1930 e 1950 –, que são as seguintes: Amarela, Biblioteca dos Séculos, Catavento,

Clube do Crime, Espionagem, Globo, Nobel, Tucano e Universo.

A Coleção Amarela dedicou-se ao gênero policial. A avidez com que os

leitores procuravam os romances policiais fez da Coleção Amarela uma das mais

consumidas e rentáveis da editora. Conforme o Relatório da Diretoria da Globo,

relativo à passagem dos 100 anos da empresa, o primeiro filão de vendas

descoberto por Henrique Bertaso – um dos editores da Globo – foi o das novelas

policiais, obras traduzidas de autores praticamente desconhecidos no Brasil. Dessa

forma, surgiu com grande sucesso de vendas, com forte apelo popular, tendo

como principais autores Edgar Wallace e Agatha Christie. A Coleção Amarela se

constituiu na mais longa das coleções, tendo edições durante 25 anos, até 1956.

A Coleção Universo durou 10 anos, de 1932 a 1942. Tratava-se de uma

coleção ligada aos romances de aventuras. Destacavam-se, nessa coleção, os

livros de viagens e aventuras do escritor alemão Karl May, que teve mais de 24

títulos traduzidos, totalizando mais de 234.500 exemplares vendidos.

A Coleção Nobel foi a coleção de maior prestígio editada pela Globo. É

importante ressaltar que ela exerceu uma influência inegável sobre uma geração

de leitores e, segundo Amorim, foi provida de grande admiração pela

intelectualidade brasileira da época. Essa coleção oferecia ao leitor tanto obras

reconhecidas mundialmente em sua época quanto de vanguarda, algumas, com

lançamentos quase simultâneos no exterior e no Brasil. A Coleção Nobel

11 AMORIM, Sônia Maria de. Em busca de um tempo perdido – edição de literatura traduzida pela Editora Globo (1930-1950). São Paulo: Edusp, 2000. p. 71.

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influenciou uma geração de leitores, na medida em que trouxe traduções para o

português do Brasil de várias obras inéditas – entre elas Em busca do tempo

perdido, de Marcel Proust –, como bem aponta Osman Lins em seu Tributo à

Coleção Nobel:

Tinha a coleção Nobel algumas características interessantes. Ao contrário de todas as coleções que conheço e que acolhem títulos brasileiros e portugueses, só publicava livros em tradução. Quer dizer: apresentava-se francamente, sem falsos patriotismos, como uma coletânea de livros traduzidos, o que delineava com clareza o seu perfil, não admitindo confusões. [...] Muitos dos que, como eu, despertávamos para a literatura em pontos afastados do Brasil e carecíamos de informações sobre autores e obras do nosso tempo, encontrávamos na Nobel uma espécie de guia, uma porta aberta para segmentos importantes do que se escrevia em nosso século. [...] Testemunho, em primeiro lugar, como leitor. Horas das mais valiosas da minha vida foram dedicadas à leitura. E dessas, grande parte é devida à edição da Nobel.12

É na Nobel, segundo Sônia Amorim, que encontramos o mais consagrado

corpo de tradutores de todas as coleções. Entre esses tradutores, os autores que

mais traduziram obras foram Érico Veríssimo e Mário Quintana. Foi na década de

1940, período mais produtivo da Nobel, que se implantou na Editora Globo um

sistema de tradução inédito até então. Foi criado um espaço interno inteiramente

dedicado aos tradutores, onde eles trabalhavam integralmente, com remuneração

fixa e melhores condições de exercício de sua atividade. Desse modo, a

contratação dos autores-tradutores com salário fixo, nesse regime de trabalho

integral, tinha como objetivo intensificar a produção editorial das traduções, o que

acarretou a valorização do ofício do tradutor e o maior reconhecimento de sua

profissão.

O problema dos tradutores foi um dos mais sérios enfrentados até hoje pela Globo. Dezenas de obras foram mutiladas por maus tradutores [...]. Hoje, porém, os tradutores assim arregimentados são homens conscientes de seu trabalho, que fazem dele sua profissão.13

12 LINS, Osman. Evangelho na taba: outros problemas inculturais brasileiros. São Paulo: Summus Editorial, 1979. p. 75. 13 MARTINS, Justino apud AMORIM, Sônia Maria de. Em busca de um tempo perdido – edição

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37

A convivência entre os autores-tradutores era vantajosa, uma vez que, nesse

espaço de produção, eles se relacionavam, de modo que se tornava cada vez mais

especializada e intelectualizada – logo, valorizada – essa produção das traduções,

assim explicitada por Justino Martins: “Ocorre-lhes, porém, diversas vantagens

desse método de trabalho, tais como a facilidade de consultar obras de erudição,

de trocar ideias entre si e mesmo adquirir o aperfeiçoamento literário que só um

ambiente intelectualizado pode oferecer.”14

Em relação às vendas por números de exemplares, segundo números da

editora, figura em primeiro lugar a tradução de Em busca do tempo perdido, de

Marcel Proust, e, em segundo lugar, Jean-Cristophe, de Rolland. A presença de

obras traduzidas da língua francesa nos dois primeiros lugares de vendagem na

editora.

Criada por Érico Veríssimo, a Biblioteca dos Séculos era uma coleção

dedicada às obras literárias tidas como os clássicos da literatura universal. Apesar

de ter tido uma duração relativamente longa, 13 anos, editou pouco, cerca de dois

títulos por ano. O pequeno número de títulos deveu-se à maneira especialmente

cuidadosa com que tratada essa produção editorial – cuja extensão das obras

editadas alcançava as 700 páginas por obra.

O texto do folheto de propaganda mostra como a Biblioteca dos Séculos se

apresentava ao seu público:

É preciso que se leiam os escritores do passado, as obras dos precursores do pensamento e da literatura moderna [...] Estes livros não têm apenas valor histórico ou tradicional: são livros vivos, livros eternos, livros de ontem, de hoje e de

de literatura traduzida pela Editora Globo (1930-1950). São Paulo: Edusp, 2000. p. 95. 14 MARTINS, Justino apud AMORIM, Sônia Maria de. Op. cit., p. 95.

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38

amanhã [...]. E foi no intuito de proporcionar ao leitor brasileiro a oportunidade de formar uma cultura geral de sólidos fundamentos que a Livraria do Globo organizou a “Biblioteca dos Séculos”, da qual fazem parte somente aquelas obras que atravessaram o tempo e a crítica, figurando, portanto, nas estantes eternas.15

Assim, as obras traduzidas das duas coleções, a Nobel e a Biblioteca dos

Séculos, se distinguiram no cenário literário brasileiro. A Coleção Biblioteca dos

Séculos se constituiu em várias obras consideradas clássicas, tais como Diálogos,

de Platão, traduzido do grego pelos professores Jorge Paleikat, Leonel Vallandro e

João Cruz Costa. Entre outros lançamentos, foram também traduzidos: Vontade de

potência, do filósofo alemão Friedrich Nietzsche; O contrato social e O discurso

sobre a origem e desigualdade entre os homens, de Jean Jacques Rousseau;

Ensaios, de Montaigne; A poética e A metafísica, de Aristóteles; O vermelho e o

negro, de Stendhal; A comédia humana, de Honoré de Balzac; Guerra e paz, de

Leon Tolstói. Nessa mesma coleção, a parte crítica e iconográfica de A comédia

humana ficou a cargo do intelectual Paulo Rónai. Na Coleção Nobel, por sua vez,

encontravam-se autores reconhecidos, tais como Cecília Meireles, Érico

Veríssimo, José Lins do Rego, Leonel Vallandro, Marques Rebello, Sérgio Millet.

Para a obra de Proust, foi contratado Mário Quintana.

Ao analisarmos alguns dados dessas pesquisas, é interessante notar que,

apesar do início de declínio da quantidade das traduções de obras francesas,

houve, em contrapartida, a tradução de importantes obras do francês que, até

então, não haviam chegado aos leitores brasileiros. Outra observação importante é

que, das inúmeras coleções da Editora Globo, as obras traduzidas do francês

ocupavam muitas vezes o primeiro lugar em vendagem. Além disso, as traduções

de A comédia humana, de Honoré de Balzac, e de Em busca do tempo perdido, de

15 AMORIM, Sônia Maria de. Op. cit., p. 98.

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39

Marcel Proust, são consideradas marcos da história da tradução no Brasil. Parece-

nos que uma mudança social relativa à hierarquia das línguas no mundo, ou seja, o

fato de o francês ter perdido sua hegemonia, propiciou que obras consideradas

relevantes no cenário literário e traduzidas dessa língua alcançassem maior

distinção. Assim, ao traduzir obras francesas, logo “distintas”, a Editora Globo

passou a obter maior prestígio, que se reverteu em lucros financeiros.

1.4.2 A TRADUÇÃO PIONEIRA DE A COMÉDIA HUMANA

Segundo Amorim, poucos países editaram de forma completa A comédia

humana, de Balzac: Inglaterra, Itália e Alemanha. Os dezessete volumes de A

comédia humana correspondem aos volumes 30 a 46 da Biblioteca dos Séculos.

Os volumes tinham em média 600 páginas. O primeiro foi publicado em 1946 e

teve quatro edições, totalizando 20 mil exemplares impressos, fazendo deste um

dos best-sellers por tiragem da Biblioteca dos Séculos.

Coube a Paulo Rónai, um dos maiores estudiosos de Balzac, a tradução de A

comédia humana, que se constitui em um verdadeiro monumento editorial. Para

Sonia Amorim, algumas características dessa tradução a qualificam e a

distinguem de outras edições, sendo esta considerada, segundo o Museu Balzac,

de Paris, a melhor edição estrangeira da obra. Amorim destaca o que diferencia a

tradução brasileira das outras:16

– Tradução: Trata-se de uma tradução nova, que tomou por base a melhor

edição francesa, publicada pela Pléiade. Os tradutores, cerca de 20, foram

16 Fonte: AMORIM, Sônia Maria de. Op. cit., p. 116-118.

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40

recrutados dentre os melhores de Porto Alegre e grandes nomes das letras

nacionais, dentre os quais: Aurélio Buarque de Holanda, Brito Broca, Carlos

Drummond de Andrade, Gomes da Silveira, Mario Quintana.

– Restabelecimento da divisão em capítulos: Por motivos de economia,

vários editores franceses foram suprimindo, ao longo do tempo, a divisão em

capítulos e os títulos existentes nas primeiras edições e nos manuscritos de

Balzac. A própria edição da Pléiade trazia um texto compacto, com extensos

parágrafos, sendo, consequentemente, bastante cansativos. A tradução brasileira

reintroduziu a divisão em capítulos e títulos primitivos, tornando a leitura mais

acessível e prazerosa ao nosso leitor.

– Documentação crítica: Vinte e seis ensaios críticos sobre o autor e a obra,

escritos por grandes mestres da crítica, alguns contemporâneos de Balzac,

acompanham a edição.

– Documentação iconográfica: Cento e sessenta ilustrações, que incluem

gravuras, desenhos e fotografias, constituem o acervo iconográfico, selecionado

também por Paulo Rónai.

– Biografia do autor: No volume I, uma biografia do autor, especialmente

escrita para essa edição, mostra o Balzac romancista, historiador, empresário.

– Prefácios: Cada um dos 89 romances e contos é precedido por um estudo

tradutório, que inform ao leitor o texto subsequente, estabelecendo uma conexão

com o restante da obra.

– Notas de pé de página: Cerca de 12 mil notas de pé de página foram

escritas para a edição brasileira de A comédia humana, em uma média de uma por

página.17

17 BARROS, Débora de Castro. As notas do tradutor como lugar discursivo: uma análise das notas

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41

Assim, na tradução de A comédia humana, contamos com tradutores de

peso; entretanto, o nome que se destaca é o de Paulo Rónai. Observamos que, para

traduzir uma obra consagrada e obter reconhecimento para essa tradução, é

necessário contratar tradutores de nome e reconhecimento, que possuam “marcas

de distinção”, ou seja, características perceptíveis nas preferências de consumo e

estilo de vida de determinado indivíduo que permitem que ele seja identificado

por outros membros da sociedade como pertencente a determinada classe social,

ao mesmo tempo que torna possível que ele se diferencie dos demais membros de

sua classe. No caso de Paulo Rónai, essas marcas são seu cabedal cultural.

Primeiramente quanto à formação, Rónai nasceu em Budapeste, em 13 de

abril de 1907, tendo feito seus estudos na capital húngara e se formado em

Literatura e Línguas Latinas e Neolatinas, em 1923, na Universidade Loránd

Eötvös. Filho do livreiro judeu Miksa Rónai, desde os sete anos já nutria uma

grande vontade de decifrar línguas. Rónai conta em Como aprendi português e

outras aventuras que, adolescente, alimentava “em segredo a esperança de

assenhorear-me, com o tempo, do maior número possível de idiomas: vinte, trinta,

talvez ainda mais”. Um de seus professores lhe assegurou que “só os 15 primeiros

eram difíceis”. E, nessa empreitada, o próprio Paulo Rónai declarava que, em sua

juventude, passeava por sebos europeus e adquiria os mais diversos livros e

gramáticas para estudá-los depois. Principiou o estudo de várias línguas, dentre

elas o hebraico, o finês (língua da família magiar que os candidatos a professor de

húngaro precisavam saber), o sânscrito, o dinamarquês (o qual não foi além da

primeira aula) e o turco. Porém, por razões diversas – “falta de tempo, de

de duas traduções brasileiras de O pai Goriot. Rio de Janeiro, 2009. Dissertação (Mestrado em Letras Neolatinas – Estudos Linguísticos Neolatinos – Opção Língua Francesa) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.

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42

entusiasmo, de perseverança”, conforme relata no mesmo livro –, o poliglota,

versado em muitas línguas, lamenta não ter aprendido todas elas.

Além disso, era professor de latim e de língua italiana em colégios de

Budapeste, tendo, também, se especializado em literatura francesa ao defender

uma tese sobre Balzac, em 1930. Assim, com bolsa de estudos do governo

francês, passou uma temporada na Sorbonne, entre 1930 e 1932. Nesse período,

graças a uma coleção de poesia de línguas latinas que conheceu na França, teve

seu primeiro contato com a língua portuguesa, por meio de As cem melhores

poesias da língua portuguesa, antologia organizada por Carolina Michaëlis.

Grande estudioso de Balzac (constam várias publicações suas sobre o

escritor francês), destacou-se por seu trabalho de editor em A comédia humana, o

qual implicava diversas tarefas, a saber: selecionar os tradutores e orientar a

tradução, bem como dar unicidade à obra mediante uma revisão cuidadosa –

durante a qual acabou por gerar inúmeras notas de tradução ao longo dos 17

volumes da edição brasileira.

Constam várias premiações recebidas por Rónai, inclusive do governo

francês, por seu trabalho com A comédia humana. Apesar de não ter sido

creditado publicamente pela Editora Globo, Rónai também é o organizador da

edição brasileira dos sete volumes de Em busca do tempo perdido, de Marcel

Proust.18 Como a primeira edição dessa obra saiu em outubro de 1948 e, na época,

Rónai tinha registro na carteira como chefe de escritório da Editora Globo, ficou

provada a sua atuação, o que foi corroborado em algumas entrevistas suas.

Assim, Paulo Rónai é reconhecido e legitimado não por ser unicamente

tradutor, mas por ser o intelectual que traduz. Esse fato valoriza a figura do

18 ESQUEDA, Marileide. O tradutor Paulo Rónai: o desejo da tradução e do traduzir. Tese (Doutorado) – Unicamp/IEL, Campinas, 2004.

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43

profissional da tradução, uma vez que não é qualquer um que traduz. Aproxima-se

o tradutor do intelectual. Além disso, Paulo Rónai tem papel fundamental na

qualidade das traduções literárias, deixando um legado que associa a tradução

literária à circulação de nível de conhecimento.

1.5 A EDITORA GLOBO E A TRADUÇÃO DE EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO

Vimos que, nos anos 1930, surgiu no País um novo foco de indústria

editorial fora do eixo Rio–São Paulo. Era a Editora Globo, localizada em Porto

Alegre, de propriedade de José Bertaso. Nela trabalharam e colaboraram as

principais autoridades literárias do País. Tinha como editor, à época, o

reconhecido escritor Érico Veríssimo, que veio a se tornar peça-chave da editora.

Veríssimo foi convidado a realizar o trabalho de editor na recém-criada Seção

Editora e tornou-se conselheiro literário da Globo, incentivando as publicações de

traduções. A partir de 1931, a editora passou a ser comandada por Henrique

Bertaso e Érico Veríssimo, tornando a Globo destaque no mercado editorial

brasileiro, principalmente graças às traduções de clássicos estrangeiros. Nesse

período, a tradução alcançou números nunca antes vistos no mercado editorial

brasileiro. A posição do tradutor no campo se modificou. Temos, então, os

autores-tradutores e o intelectual, que também passa a exercer o papel de tradutor,

como é o caso de Paulo Rónai.

É importante verificar não apenas o trabalho de pesquisa de Sônia Amorim

(2000) em sua dissertação de mestrado, transformada em livro intitulado Em

busca de um tempo perdido – edição de literatura traduzida pela Editora Globo,

Page 44: universidade federal do rio de janeiro em busca da tradução

44

no qual aponta as edições de literatura traduzida pela Editora Globo entre os anos

1930 e 1950, mas também outro relevante trabalho de pesquisa sobre essa editora,

elaborado por Elisabeth Rochade Torresini (1999), intitulado Editora Globo: uma

aventura editorial nos anos 30 e 40. Sirvo-me de dados presentes nessas

pesquisas a fim de analisar uma questão específica em nosso trabalho: as obras

francesas consagradas traduzidas nesse período.

Em busca do tempo perdido, em francês À la recherche du temps perdu, é

uma obra romanesca de Marcel Proust escrita entre 1908-1909 e 1922, publicada

entre 1913 e 1927 em sete volumes, sendo os três últimos postumamente. A

tradução brasileira foi iniciada por Mário Quintana (o primeiro volume, em 1948;

o segundo, em 1951; e os demais, durante a década de 1950) e editada pela

Editora Globo, de Porto Alegre.

Os originais surgiram nas seguintes datas:

– Du côté de chez Swann (pela Grasset, em 1913; depois uma versão

modificada foi lançada pela Gallimard em 1919).

– À l’ombre des jeunes filles en fleurs (pela Gallimard, em 1919; recebe o

prêmio Goncourt no mesmo ano).

– Le côté de Guermantes (pela Gallimard, em 1920-192,1em dois volumes).

– Sodome et Gomorrhe I et II (pela Gallimard, em 1921-1922).

– La prisonnière (póstumo, em 1925).

– Albertine disparue (póstumo, em 1927; título original: La fugitive).

– Le temps retrouvé (póstumo, em 1927).

Ao verificarmos quem são os tradutores, temos Mário Quintana, responsável

pelos quatro primeiros volumes: No caminho de Swann (1948), À sombra das

raparigas em flor (1951), O caminho de Guermantes (1953) e Sodoma e Gomorra

Page 45: universidade federal do rio de janeiro em busca da tradução

45

(1954). O quinto volume, A prisioneira, coube a Manuel Bandeira e Lourdes

Souza de Alencar (1954); o sexto, A fugitiva, a Carlos Drummond de Andrade

(1956); e o sétimo e último, O tempo redescoberto, a Lúcia Miguel Pereira

(1956). Apesar de não se poder dizer que Proust fosse um autor popular, o fato é

que sucessivas tiragens da Globo se esgotaram.

Para realizar tal empreitada, a editora lançou mão da experiência de publicar

A comédia humana, de Balzac, entre 1945 e 1955, em 17 volumes. O

empreendimento Balzac foi orquestrado por Paulo Rónai, que coordenou a equipe

de tradutores e selecionou pessoalmente as introduções dentre o que de melhor

havia na crítica internacional. Já a Recherche sairia em sete volumes, e o

cotejamento com o original francês foi realizado também por Paulo Rónai.

A partir desses projetos, segundo Teresa Dias Carneiro (2007), a Editora

Globo passou a contratar tradutores de renome em tempo integral; além disso, o

nome do tradutor passou a ser citado na página de rosto, o que raramente

acontecia anteriormente. Esse fato contribuiu para um aumento da

responsabilidade e da visibilidade do tradutor. Outra mudança em relação ao

tratamento da tradução foi o fato de todas as traduções passarem por uma revisão

em dois estágios: primeiramente, por um cotejamento com o original e, depois,

por uma revisão gramatical e tipográfica. Em um terceiro estágio, as modificações

eram discutidas entre o revisor e o tradutor. Assim, esses projetos tiveram

importância fundamental na melhoria de qualidade das traduções literárias no

Brasil, bem como na melhoria das condições de trabalho do tradutor.

1.6 MÁRIO QUINTANA TRADUTOR

Page 46: universidade federal do rio de janeiro em busca da tradução

46

Dentre os autores-tradutores, destaca-se Mário Quintana. Nascido no dia 30

de julho de 1906, na cidade de Alegrete, no Rio Grande do Sul, o poeta iniciou na

infância o aprendizado da língua francesa, idioma muito usado em sua casa. Aos

13 anos, em 1919, foi estudar em regime de internato no Colégio Militar de Porto

Alegre, onde também estudou o idioma.

Em 1930, a Revista do Globo e o Correio do Povo publicam seus versos e,

quatro anos depois, a Editora Globo lança a primeira tradução de Quintana, seis

anos antes de seu primeiro livro editado. Trata-se de uma obra de Giovanni

Papini, intitulada Palavras e sangue, publicada na época em que esse autor

italiano era reconhecido no Brasil. A partir daí, segue-se uma série de obras

francesas traduzidas para a Editora Globo. O poeta foi um dos responsáveis pelas

primeiras traduções no Brasil de obras de autores canônicos. A tradução exerceu

grande influência na carreira de escritor de Mário Quintana.

Dois anos depois, ele transferiu-se para a Livraria da Editora Globo, onde

foi trabalhar com Érico Veríssimo, também fluente em língua francesa. É por essa

época que seus textos publicados na revista Ibirapuitan chegam ao conhecimento

de Monteiro Lobato, que pede ao poeta gaúcho uma nova obra. Quintana escreve,

então, Espelho mágico, que só é publicado em 1951, com prefácio de Lobato.

Mário Quintana traduziu clássicos da literatura mundial. O número exato

das obras que traduziu, no entanto, é controverso, pois o poeta gaúcho usava

pseudônimos e nem mesmo se lembrava de quantos livros traduzira, fato por ele

confessado em inúmeras entrevistas. Exímio conhecedor da língua francesa,

afirmava ter vindo da Belle Époque, e foi desse idioma que trouxe a maior parte

das obras que traduziu. Mário Quintana costumava reclamar da desvalorização da

Page 47: universidade federal do rio de janeiro em busca da tradução

47

atividade. Dizia que uma tradução, quando bem feita, era a estreia do autor

estrangeiro na literatura de língua portuguesa e se ressentia de que isso não fosse

levado em conta pelos críticos e leitores. De 1937 a 1946, pelo menos uma obra

por ano de algum autor estrangeiro seria lida em português graças ao poeta-

tradutor.

Em 1948, é publicada sua tradução mais famosa: o volume No caminho de

Swann, de Em busca do tempo perdido. Da obra de Marcel Proust, Quintana

traduziria, ainda, os volumes À sombra das raparigas em flor, em 1951, O

caminho de Guermantes, dois anos depois, e Sodoma e Gomorra, em 1954.

Lançada no Brasil pela Editora Globo, a tradução do francês teria também a

participação dos poetas Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, que se

ocupariam dos três volumes restantes. “Uma boa companhia”, dizia Quintana, em

alusão aos colegas.

A fim de exemplificar a importância para a tradução no Brasil da estreita

ligação entre Quintana e a Editora Globo, apresentamos a seguir, ordenados por

ano de publicação, diversos autores estrangeiros consagrados que foram por ele

traduzidos para a referida editora:

Traduções

PAPINI, Giovanni. Palavras e sangue. Porto Alegre: Globo, 1934.

MASYAT, Fred. O navio fantasma. Porto Alegre: Globo, 1937.

VARALDO, Alessandro. Gata persa. Porto Alegre: Globo, 1938.

LUDWIG, Emil. Memórias de um caçador de homens. Porto Alegre: Globo,

1939.

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48

CONRAD, Joseph. Lord Jim. Porto Alegre: Globo, 1939.

STACPOOLE, H. de Vere. A laguna azul. Porto Alegre: Globo, 1940.

GRAVE, R. Eu, Claudius imperador. Porto Alegre: Globo, 1940.

MORGAN, Charles. Sparkenbroke. Porto Alegre: Globo, 1941.

YUTANG, Lin. A importância de viver. Porto Alegre: Globo, 1941.

BRAUN, Vicki. Hotel Shangai. Porto Alegre: Globo, 1942.

FULOP-MILLER, René. Os grandes sonhos da humanidade. Porto Alegre:

Globo, 1942 (em parceria com R. Ledoux).

MAUPASSANT, Guy de. Contos. Porto Alegre: Globo, 1943.

LAMB, Charles; LAMB, Mary Ann. Contos de Shakespeare. Porto Alegre:

Globo, 1943.

GIDE, André. A escola das mulheres. Porto Alegre: Globo, 1944.

MORGAN, Charles. A fonte. Porto Alegre: Globo, 1944.

MAUROIS, André. Os silêncios do coronel Branble. Porto Alegre: Globo, 1944.

LEHMANN, Rosamond. Poeira. Porto Alegre: Globo, 1945.

JAMES, Francis. O albergue das dores. Porto Alegre: Globo, 1945.

LAFAYETTE, Condessa de. A princesa de Clèves. Porto Alegre: Globo, 1945.

BEAUMARCHAIS. O barbeiro de Sevilha ou a precaução inútil. Porto Alegre:

Globo, 1946.

WOOLF, Virginia. Mrs. Dalloway. Porto Alegre: Globo, 1946.

PROUST, Marcel. No caminho de Swann. Porto Alegre: Globo, 1948.

BROW, Frederick. O tio prodigioso. Porto Alegre: Globo, 1951.

HUXLEY, Aldous. Duas ou três graças. Porto Alegre: Globo, 1951.

MAUGHAM, Somerset. Confissões. Porto Alegre: Globo, 1951.

PROUST, Marcel. À sombra das raparigas em flor. Porto Alegre: Globo, 1951.

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49

VOLTAIRE. Contos e novelas. Porto Alegre: Globo, 1951.

BALZAC, Honoré de. Os sofrimentos do inventor. Porto Alegre: Globo, 1951.

MAUGHAM, Somerset. Biombo chinês. Porto Alegre: Globo, 1952.

THOMAS, Henry; ARNOLD, Dana. Vida de homens notáveis. Porto Alegre:

Globo, 1952.

GREENE, Graham. O poder e a glória. Porto Alegre: Globo, 1953.

PROUST, Marcel. O caminho de Guermantes. Porto Alegre: Globo, 1953.

______. Sodoma e Gomorra. Porto Alegre: Globo, 1954.

BALZAC, Honoré de. Uma paixão no deserto. Porto Alegre: Globo, 1954.

MÉRIMÉE, Prosper. Novelas completas. Porto Alegre: Globo, 1954.

MAUGHAM, Somerset. Cavalheiro de salão. Porto Alegre: Globo, 1954.

BUCK, Pearl. Debaixo do céu. Porto Alegre: Globo, 1955.

BALZAC, Honoré de. Os proscritos. Porto Alegre: Globo, 1955.

______. Seráfita. Porto Alegre: Globo, 1955.19

Mário Quintana, além da atividade ligada à poesia, traduziu não somente os

quatro volumes de À la recherche du temps perdu, de Proust, como também,

dentre outros autores franceses, Voltaire, Honoré de Balzac e André Gide.

Também, como já visto, traduziu reconhecidos autores de língua inglesa, como

Aldous Huxley, Virginia Woolf e Joseph Conrad. Muitos desses autores estrearam

na língua portuguesa graças às suas traduções. Observamos que exerceu sua

atividade de tradutor principalmente ao longo da década de 1930, continuando a

traduzir, paralelamente a seu trabalho como poeta, nos anos 1940 e 1950.

19 DITRA. Dicionário de tradutores literários no Brasil. Florianópolis. Disponível em: <http://www.dicionariodetradutores.ufsc.br>. Acesso em: 10 maio 2010.

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50

Cláudia Borges de Faveri e Eleonora Castelli, no artigo intitulado “Em

busca do tradutor: Proust e Mérimée por Mario Quintana”, no qual estudam as

traduções feitas pelo poeta Mário Quintana de Carmen, de Prosper Mérimée, e de

À sombra das raparigas em flor (À l’ombre des jeunes filles en fleur), de Marcel

Proust, baseando-se na análise das etapas do processo tradutório empreendida por

Antoine Berman e na abordagem do “tradutor de carne e osso”, de Anthony Pym,

denotam a estreita ligação do trabalho de tradução de Quintana com a Editora

Globo de Porto Alegre.

Assim, observamos o passo à frente que representaram as traduções dos

autores-tradutores nesse período, bem como a valorização do trabalho dos

tradutores a partir daí. Dessa forma, as traduções foram legitimadas por esses

tradutores. Constatamos, também, que textos canônicos foram traduzidos nesse

período e que o tradutor literário, muitas vezes relegado a um plano secundário ao

longo da história da tradução no Brasil, apagado, na maioria das vezes, na Era

Vargas (anos 1930 a 1945), passou a ter um destaque. Época em que interessava

saber quem era o tradutor e a importância de seu nome para o sucesso de vendas

da obra traduzida. Época dos autores-tradutores.

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51

2 A TRADUÇÃO LITERÁRIA NO CONTEXTO SOCIAL – FIDELIDADE, ETNOCENTRISMO E INVISIBILIDADE DO TRADUTOR

No capítulo anterior, observamos, ao traçarmos uma pequena historiografia

da tradução no Brasil, que a chegada da Família Real propiciou a formação da

atividade da tradução no País. Assim, os tradutores não eram mais os religiosos, e

as traduções passaram, gradativamente, então, a constituir um mercado e a atender

às demandas de um pequeno público letrado e da nobreza aqui instalada,

podendo-se dizer que se tratava de um começo das traduções literárias no Brasil.

Constatamos que o século XIX viu aumentar o número de obras traduzidas,

principalmente graças aos romances-folhetins, e que alguns escritores, como

Machado de Assis, por exemplo, foram responsáveis por inúmeras traduções.

Notamos que a atividade da tradução no País somente obtém maior

reconhecimento a partir da primeira metade do século XX, com a estruturação de

um espaço social de produção de atividade de tradução formado por editoras, tais

como a Editora Globo e a José Olympio, tradutores – escritores atraídos para essa

atividade – e público leitor, formado de diversas classes sociais no Brasil.

Observamos, também, quanto à maneira de traduzir, que o modelo chamado na

França de Belles Infidèles era o mais presente nas traduções no País até o século

XIX, tendo sido essa a maneira preponderante de traduzir obras literárias,

seguindo regras que privilegiavam a língua e a cultura de chegada, cuja intenção

seria a de facilitar a leitura pelo público consumidor de tais obras. Essa maneira

de executar uma tradução, ainda presente nos dias de hoje, traz à tona questões

que sempre foram caras aos estudos tradutológicos: a fidelidade e o etnocentrismo

Page 52: universidade federal do rio de janeiro em busca da tradução

52

nas traduções, que são apontados, também, como determinantes para se avaliar

uma tradução.

Observamos que, na Era Vargas, houve um crescimento das críticas em

relação às traduções. Assim, estas eram comentadas e havia uma circulação de

valores que as qualificavam de boas ou más. Procuraremos mostrar como o

conceito do que seja uma boa tradução varia de acordo com diferentes

perspectivas.

A respeito da “definição” de tradução literária, Joseph Lambert (1998)

declara que esse conceito não é tão evidente quanto possa parecer. Afirma

Lambert que, assim como o conceito de “literatura”, o de tradução também não é

consensual, e suas fronteiras com conceitos como “adaptação” e “imitação” não

estão claras na maioria das vezes, tampouco estão traçadas da mesma forma em

diferentes momentos da história, nem sequer em um mesmo período histórico da

mesma comunidade linguística. Assim, a chamada “tradução literária” é o lugar

no qual a discussão das diferenciações entre “tradução”, “adaptação”,

“transcriação” e “imitação” parece ser mais frequente.20 Não discutiremos

propriamente a origem de tais conceitos; entretanto, é necessário que tenhamos

consciência de que eles põem em xeque o valor da tradução pelo ângulo da

oposição original versus cópia, o que será explicitado ao longo do trabalho.

A fim de refletirmos sobre o valor de uma tradução, partiremos da pergunta

de Paulo Henriques Britto (2007): É possível avaliar traduções? Afirma o autor

que as traduções somente poderiam ser julgadas por pessoas que delas não têm

necessidade, cabendo, portanto, aos críticos avaliar as traduções, com o objetivo

20 CINTRÃO, Heloísa Pezza. Notas para um estudo da tradução literária do espanhol no Brasil. In: ROJO, Sara et al. (Orgs.). Anais do V Congresso Brasileiro de Hispanistas [e] I Congresso Internacional da Associação Brasileira de Hispanistas, 2008. p. 2.723-2.731.

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53

de orientar o consumidor sobre as traduções disponíveis no mercado. Mas, haveria

como avaliar objetivamente o valor de uma tradução? Sobre essa questão, indaga:

Como avaliar a nova tradução do Ulysses de Joyce feita por Bernardina da Silveira Pinheiro em relação à antiga, assinada por Antônio Houaiss? Ou a nova tradução de Proust de Fernando Py em comparação com a empreendida no passado por um grupo de tradutores que incluía Carlos Drummond de Andrade e Mário Quintana?21

Ao discutir a questão da avaliação de uma tradução, Britto recorre a

Lefevere, para quem apenas o leitor bilíngue, conhecedor do tipo de obra que

julga, estaria capacitado para emitir tais juízos de valor. O autor levanta outra

colocação possível em relação à avaliação das traduções, ao afirmar ser “possível

defender uma outra posição: a de que ninguém deve fazer o trabalho de avaliação

de traduções”.22 Afirma que os argumentos em favor dessa posição são vários e

que possivelmente o principal deles seja o fato de que todos os juízos de valor são

relativos, que não há critérios absolutos com base nos quais se possam estabelecer

avaliações definitivas. Nesse caso, conclui: “na melhor das hipóteses, a crítica só

revela que o crítico que aprova/reprova uma tradução parte de pressupostos

semelhantes a/diferentes dos que são adotados pelo tradutor em questão”.23

Chama a atenção, também, para o fato de não haver uma linha nítida separando,

por exemplo, as traduções das adaptações, sendo inúmeros os casos limítrofes, o

que bastaria para desqualificar a proposta de diferenciar uma categoria da outra.

Ao discutir essas questões em relação à tradução, Britto indaga: “será

possível não avaliar?” Ao que ele mesmo responde: “É simplesmente impossível,

em algum momento, não julgar; o máximo que se pode fazer é suspender por

algum tempo o ato de julgar, e escamoteá-lo quando ele surgir. Mais cedo ou mais

21 BRITTO, Paulo Henriques. É possível avaliar traduções?. Tradução em Revista, Rio de Janeiro: PUC-Rio, n. 4, 2007. Disponível em: <http://www.maxwell.lambda.ele.puc-rio.br/cgibin>. 22 Id. 23 Id.

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54

tarde, somos levados a fazer juízos de valor e a agir com base neles”. Afirma que

“mesmo o leitor sempre se perguntará se a tradução é de fato confiável; se tiver

acesso ao original e condições de consultá-lo, ele o fará – e, neste momento,

estará novamente avaliando a tradução”.

A crítica seria, então, a principal responsável pela emissão de valores em

relação à tradução. Em relação à crítica de traduções no Brasil, o trabalho de

Regysane Botelho Cutrim Alves (2009) mostra que são poucas. Em nossa

pesquisa, observamos que há de fato pouca, para não se dizer quase nenhuma,

crítica em relação ao nosso objeto de estudo, a tradução de Em busca do tempo

perdido efetuada por Mário Quintana. O que há, em abundância, é a emissão de

juízos de valores, com ínfima base reflexiva, sem haver tampouco critérios

estabelecidos para a emissão desses juízos, o que nos conduz à conclusão de que,

como se trata de uma tradução de tal modo consagrada pela estrutura do campo,

não se consegue distinguir entre a significação estabelecida para a tradução e

aquilo que constitui o arbitrário dissimulado pelo efeito da legitimação. Assim,

essa questão da consagração e da legitimação conduziu nosso interesse para a

teoria dos campos simbólicos, de Pierre Bourdieu, que mostra a produção social

de um bem simbólico, no nosso caso, a tradução, além de possuir a vantagem de

tornar evidente como se constitui o valor de uma tradução e a sua consagração

estabelecida pelo campo de produção simbólica.

Primeiramente, verificaremos, em diferentes teorias, a concepção do que

seja uma boa tradução. Observaremos que, em uma visão dita tradicional, a

questão da fidelidade é apresentada como essencial ao julgamento do que seja

uma boa tradução. Depois, com as teorias de Antoine Berman e Lawrence Venuti,

veremos a tradução sob uma perspectiva social, uma vez que esses autores

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55

demonstram certos aspectos sociais que incidem no posicionamento do tradutor

diante do seu fazer. Um exemplo disso é a definição da tradução como

etnocêntrica, e não o fato de ser etnocêntrica como critério de qualidade de uma

tradução. Apresentaremos, em seguida, a teoria dos polissistemas, que analisa a

tradução sob uma perspectiva sociológica.

Por fim, enfatizaremos a importância de se estudar a tradução sob uma

perspectiva sociológica para a compreensão de sua consagração dentro de um

campo. Nessa perspectiva, observaremos que, segundo Johan Heilbron e Gisele

Sapiro,24 além do texto em si, questões propriamente sociológicas surgem,

principalmente no que tange às funções da tradução e a seus agentes no espaço em

que se encontram.

2.1 A FIDELIDADE E A VISÃO TRADICIONAL DA TRADUÇÃO LITERÁRIA

Solange Mittmann (2003), ao resgatar algumas teorias a respeito da

tradução, apresenta três autores que compartilham daquilo que a autora chama de

uma perspectiva tradicional da tradução:* Eugene A. Nida, Erwing Theodor e

Paulo Rónai. Consideramos importante expor algumas questões apresentadas por

esses autores, a partir da leitura de Mittmann, uma vez que dessa concepção

tradicional advém um modo recorrente de considerar a tradução e o tradutor, e da

qual decorre a desvalorização da tradução e, consequentemente, do tradutor.

24 Ibid. * Esse quadro constitui uma visão geral e por isso foram escolhidos teóricos da segunda metade do século XX, pois acreditamos que essa concepção dita tradicional ainda esteja muito presente nos estudos sobre a tradução.

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56

Eugene Nida introduziu, a partir dos anos 1960, uma novidade em

metodologia de tradução da Bíblia que ficou conhecida como equivalência

dinâmica. Segundo esse método, o tradutor começaria por decompor

analiticamente a estrutura de superfície da mensagem em seus conceitos básicos,

transferindo depois esses conceitos da língua de origem para a receptora,

reestruturando, em seguida, todo o material transferido, de modo a construir uma

mensagem “coerente”, no estilo da língua receptora. Assim, Nida considera a

tradução como um mecanismo capaz de transportar de modo transparente uma

mensagem de uma língua para outra. Segundo o autor, esse mecanismo se

iniciaria com a decodificação pelo tradutor – que, nesse momento, ocupa o papel

de receptor da mensagem de uma língua A e termina com sua recodificação na

língua B. Nessa perspectiva da tradução como transferência, Nida alerta para o

perigo da distorção da mensagem original em função da interferência exercida

pelo tradutor, a partir de sua subjetividade e de seu envolvimento emocional.

Outro autor que também concebe a ideia de tradução como transferência é

Theodor. A fim de que essa transferência se efetive, Theodor enfatiza a

necessidade da “interpretação correta” do texto original pelo tradutor. A respeito

da tradução literária, afirma que o primeiro passo do trabalho do tradutor é a

decodificação das informações, sendo o segundo sua recodificação em um novo

texto. Nessa perspectiva, a tradução é vista como transposição, cabendo ao

tradutor “aproveitar todos os recursos que seu idioma lhe reserva”, a fim de

“oferecer uma mensagem o mais próxima possível ao texto original”. Ressalta,

ainda, em relação à tradução literária, que o tradutor deve ser capaz de recodificar,

além do sentido da mensagem, “as suas conotações culturais e civilizatórias”.

Theodor apresenta a distinção entre tradução, versão e recriação. Define a

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57

tradução como “trabalho consciente e exato de transposição de um idioma para

outro, entretanto, desprovido de cunho artístico”; dessa maneira, a tradução está

baseada na correspondência entre as palavras. Para o autor, a versão é “o trabalho

de transposição, exato e artístico”, que busca “conservar a harmonia do todo”, e a

recriação é o trabalho de passagem de um texto para outro idioma, artístico, mas

pouco exato. Assim, para Theodor, a tradução e a versão exigem uma

transposição exata, ao passo que a inexatidão caracterizaria a recriação.

Também nessa perspectiva tradicional, segundo Mittmann, Paulo Rónai

define a tradução como “reformulação de uma mensagem num idioma diferente

daquele em que foi concebida”. Salienta Rónai que a tradução não é uma

atividade mecânica de substituição de palavras, como se estivessem isoladas, já

que “as palavras não possuem sentido isoladamente, mas dentro de um contexto”.

É importante ressaltar que o autor chama de contexto as palavras, as frases, a

página, o parágrafo ou o que for necessário para determinar “o sentido” e,

consequentemente, reformulá-lo na língua de chegada. O importante, para Rónai,

é a “mensagem do texto original”. Dessa maneira, a tradução não seria uma

transferência de sentidos de uma palavra para outra equivalente, mas a

transferência de uma mensagem. Nesse sentido, a “fidelidade”, segundo o autor,

seria respeitar a língua de tradução, respeitando o que diz o autor do original, sem

interferir ou deformar a mensagem, pois o tradutor faz o papel de “procurador do

autor, antes que seu colaborador”.

Sob essa ótica, a boa ou a melhor tradução seria aquela que decodificasse a

mensagem do original, uma vez que esses três autores concebem a tradução como

decodificação do pensamento do autor. Observamos, também, que a subjetividade

do tradutor é tomada como empecilho para a tradução ideal, cabendo-lhe lutar

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58

para manter-se o mais neutro possível, a fim de fazer fluir a mensagem do

original. Sob essa perspectiva, essas teorias tomam como base para o estudo da

tradução apenas o texto e a língua. Nessa visão tradicional, tem-se a ideia da

tradução como uma atividade meramente mecânica, em que seu agente, o tradutor,

é visto como uma “ponte” entre as ideias do chamado texto original, ou entre as

ideias desse texto e o texto traduzido. Assim, há uma idealização do texto original,

confundindo-se o sentido com as intenções do autor, uma vez que se acredita na

transparência e na estabilidade dos sentidos. O texto original é visto como

sagrado, e o tradutor quase sempre é visto como um “mal necessário”, esperando-

se dele sua “neutralidade”, a fim de que seja um mero canal ou ponte, para que o

texto original flua no texto traduzido, e cujo maior mérito seria o apagamento total

de sua figura. Nesse contexto, grande parte das teorias voltadas para a reflexão

sobre a tradução, de uma maneira geral, tratavam dessa atividade como uma

simples transferência de signos e significados, tendo o tradutor, nesse processo,

um papel, quase mecânico, de mediador, bastando que possua um conhecimento

gramatical adequado de dois ou mais idiomas e um bom dicionário para realizar a

sua tarefa.

Podemos observar que, na perspectiva, dita tradicional, o valor da tradução

é estabelecido por uma pretensa transparência do tradutor, que efetivaria uma

transposição com uma relação direta entre o original e o texto traduzido. A ideia é

de que haveria uma fidelidade entre o original e a tradução. Na verdade, não há

como a subjetividade do tradutor estar excluída do trabalho produzido. Não há

como esse trabalho estar fora das relações sociais e da cultura produzida em torno.

Torna-se impossível o tradutor estar isento do trabalho exercido, uma vez que ele

mesmo participa da sociedade da cultura em que vive.

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59

Lenita Esteves (1997), ao levantar a questão da originalidade, afirma que o

chamado texto original, por ser um texto “inédito”, “diferente”, “inventivo”, seria

único. Espera-se do texto traduzido que não seja o original, “embora a grande

quimera alimentada nessa atividade seja justamente a de que a tradução seja o

original”. Assim, a tradução deve repetir, de alguma maneira, a inventividade de

um texto original, mas existe uma necessidade de que essa repetição seja de algum

modo diferente e inferior, pois essa inferioridade da tradução garantiria o valor, a

inventividade e a autonomia de um texto original. Sobre essa questão, afirma:

Voltemos à questão da não perfeição das cópias. Por que será que uma tradução, na qualidade de cópia de um “original”, nunca é perfeita? Ou, pelo menos, não é perfeita eternamente? Na minha opinião, justamente pelo estatuto de cópia que a tradução tem. Costuma-se dizer que as traduções envelhecem, e o original não. Mas como um texto do século XVII pode ser mais atual que uma tradução desse mesmo texto feita há apenas vinte anos? Se aceitarmos que traduções diferentes, realizadas em diferentes épocas e contextos, conferem a esse texto do século XVII colorações diversas, está respondida a questão, que não consistia na verdade em nenhum enigma. Assim, uma tradução teria as “marcas” da época em que foi produzida. Mas e o original, por que ele não teria essas mesmas marcas?25 (grifos nossos)

É justamente o estatuto de cópia que faz com que a tradução não seja única,

assim como o tradutor também não o é, uma vez que uma mesma obra pode ser

traduzida por vários tradutores. Nessa perspectiva, o original, sim, seria único,

assim como o autor desse original.

25 ESTEVES, Lenita. Tradução fiel: a quem? a quê? por quê?. Estudos Acadêmicos Unibero, São Paulo, v. 5, p. 64-71, 1997.

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2.2 O ETNOCENTRISMO E A RELAÇÃO DO TRADUTOR COM A CULTURA DE CHEGADA E DE PARTIDA

Conforme acabamos de observar, os estudos da tradução literária, vistos

pelo ângulo dos estudos linguísticos apresentados, tinham por base uma tradição

que objetivava o acesso direto ao “sentido” do texto, considerando-se unicamente

a relação entre as línguas de chegada e partida. Dessa maneira, era colocada de

lado a diversidade dos agentes implicados na tradução – tradutores, estudiosos da

produção literária, escritores, mediadores diversos e mesmo o público em seu

espaço histórico e social de recepção das obras. Graças às rupturas operadas pelo

pós-estruturalismo nessa concepção dita tradicional, principalmente em relação às

novas teorias de concepção da linguagem, que questionam a estabilidade dos

sentidos, temos uma nova noção da tradução, não mais como uma transmissão

imediata de mensagens, mas como produção de sentidos. Destarte, o papel do

tradutor passou a ser tema de destaque nas pesquisas sobre o fazer tradutório. A

tradução, que, até então, era tida como uma atividade que não necessitava de

grandes reflexões, sendo estudada geralmente sob a perspectiva da prática, passa a

ser percebida como um espaço para discussões e reflexões que não ficam restritas

ao texto e à língua. Assim, para alguns teóricos, já havia a necessidade de abordar

o assunto de forma a possibilitar espaço para uma teoria que se ocupasse de

maneira mais específica de questões referentes à tradução. Por conta disso, em

meados do século XX, mais precisamente entre as décadas de 1970 e 1980, teve

início um processo de institucionalização de uma área voltada especificamente

para os Estudos da Tradução. Nesse novo cenário, teóricos como o francês

Antoine Berman e o americano Lawrence Venuti passam a se destacar como

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61

pensadores da tradução na contemporaneidade, ao propor reflexões sobre a

tradução que vão além da dicotomia teoria/prática:

[...] Não se trata aqui de teoria de nenhuma espécie. Mas sim de reflexão [...]. Quero situar-me inteiramente fora do quadro conceitual fornecido pela dupla teoria/prática, e substituir esta dupla pela da experiência e da reflexão. A relação entre a experiência e a reflexão não é aquela da prática e da teoria. A tradução é uma experiência que pode se abrir e se (re)encontrar na reflexão.26

Apresentaremos as concepções dos teóricos Lawrence Venuti e Antoine

Berman, pois eles configuram uma ruptura em relação à perspectiva tradicional,

principalmente no que tange à questão do etnocentrismo na tradução e à posição

tradutiva do tradutor, apresentando uma nova perspectiva do que seria uma

“melhor” tradução de um original.

O teórico americano Lawrence Venuti (2002) difere daqueles teóricos

tradicionais, sobre os quais discorremos anteriormente, principalmente na crítica

que faz à tradução doméstica ou etnocêntrica e à invisibilidade do tradutor.

Afirma Venuti que a tradução é estigmatizada como uma forma de escrita

desencorajada pela lei de direitos autorais e depreciada pelas academias,

apontando que o fator preponderante para a marginalidade da tradução é a

impossibilidade de ser provida de autoria. Assim, enquanto a autoria é valorizada

como originalidade, autoexpressão, produção de um texto único, a tradução é vista

como derivada, não sendo autoexpressão, nem um texto único, mas uma imitação

de outro texto. A tradução seria, assim, desmerecida, pois traria como marca a

falta de autenticidade, a distorção e a contaminação de algo que seria original e

único.*

26 BERMAN, Antoine. A tradução e a letra, ou o albergue do longínquo. Tradução Marie-Hélène Catherine Torres, Mauri Furlan e Andréia Guerini. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007. p. 18; grifos do autor. * Em fevereiro de 1998, foi sancionada a Lei no 9.610, que consolidou as regras de direitos autorais no Brasil. Essa lei considera a tradução como uma obra protegida pelo direito autoral.

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Segundo Venuti, as traduções são produzidas por muitas razões e para

diferentes públicos, e, desse modo, o tradutor tenderia a tomar uma posição diante

do texto original que se expressasse nos princípios e nos esquemas de execução

das traduções. Segundo o autor, duas são as posições efetivadas pelo tradutor: a

tradução doméstica ou etnocêntrica, que pretende afastar a estranheza ao

privilegiar a clareza, a fácil legibilidade, a linguagem mais familiar; e a não

etnocêntrica, que é favorável à cultura de partida.

Na maneira de traduzir denominada doméstica ou etnocêntrica, o texto

traduzido se apresentaria como se fosse escrita original, uma expressão da

intenção do autor estrangeiro, uma vez que a figura do tradutor estaria oculta.

Esse tipo de tradução criaria a ilusão de estarmos lendo o texto original na língua

de chegada. Já a maneira de traduzir não etnocêntrica realizaria o contrário, ou

seja, não traduziria de forma a privilegiar a cultura de chegada, mas demonstraria

o “estrangeiro” na tradução.

Essa ocultação da figura do tradutor, entendida como uma invisibilidade de

sua posição na tradução, é discutida por Venuti27 em The translator’s invisibility –

a history of translation, uma referência no campo dos Estudos da Tradução. Nessa

obra, o autor aponta que essa é a posição mais comum na produção das traduções,

responsável pela invisibilidade do tradutor28 e por sua consequente

marginalização. Venuti29 afirma que, uma vez que editores e leitores desejam uma

leitura fluente por parte do leitor, sem que o faça pensar ou mesmo perceber que

se trata de uma tradução, privilegia-se um “apagamento” do tradutor,

possibilitando que as traduções sejam lidas como se escritas no original,

27 VENUTI, Lawrence. The translator’s invisibility: a history of translation. Londres: Routledge, 1995. 28 FROTA, M. P. Lawrence Venuti e a teoria da (in)visibilidade do tradutor. In: A singularidade na escrita tradutora. Campinas: São Paulo, 2000. Cap. II, p. 71-136. 29 VENUTI, Lawrence. Escândalos da tradução.Tradução Laureano Pelegrin. Bauru: Edusc, 2002.

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63

eliminando-se, assim, as diferenças culturais. O teórico propõe uma posição de

visibilidade do tradutor que acarretaria a valorização de seu trabalho, tanto em

termos de regulamentação e de remuneração quanto de prestígio cultural. O norte-

americano reconhece que alguma apropriação etnocêntrica é inevitável, mas

afirma que o tradutor deve se mostrar visível e revelar em seu texto o elemento

estrangeiro e seu modo de significar. Dessa forma, o texto traduzido não

apareceria como doméstico.

Venuti critica a visão tradicional de autoria, segundo a qual a tradução é

definida como uma representação inferior ao original, sendo este, sim,

considerado a expressão autêntica da personalidade e das intenções de seu autor.

Para Venuti, o tradutor não deveria aceitar sua condição demérita e lutar pela

legitimidade do produto de seu ofício. Essa estratégia se constituiria em um tipo

de ato tradutório no qual o texto traduzido parecesse realmente uma tradução, ao

não apagar traços da cultura do original. Desse modo, Venuti (1995) questiona o

tradicional conceito de autoria única do texto original, criticando o conceito de

sujeito cartesiano, e afirma, em relação à subjetividade, que esta é: “[...]

constituída por determinações culturais e sociais que são diversas e mesmo

conflitantes, que medeiam qualquer uso da linguagem e que variam segundo cada

formação social e cada momento histórico”.30

Ao conceber a subjetividade como uma dimensão necessariamente

constituída pelo social e pelo histórico, Venuti nega a possibilidade de autoria

como criatividade absolutamente individual. Nega, assim, a dicotomia entre a

tradução livre e a tradução fiel, ao mostrar que nem uma nem outra podem de fato

ocorrer, já que não é possível ao tradutor despojar-se de sua bagagem ideológica e

30 Ibid.; tradução nossa.

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64

cultural que o constitui como sujeito. Assim, a suposta neutralidade do ato

tradutório é apresentada como um efeito ilusório, gerada por determinada posição

do tradutor.

Segundo Venuti (1995, p. 15), a tradução etnocêntrica forma a subjetividade

dos leitores dos textos traduzidos na língua de chegada, por propiciar um processo

de “espelhamento” e seu autorreconhecimento na obra traduzida. O teórico afirma

que o texto estrangeiro torna-se inteligível quando o leitor se reconhece na

tradução, identificando os valores domésticos que motivaram a seleção daquele

texto estrangeiro em particular e que nele são inscritos por meio de estratégia

específica. Assim, as traduções colocam os leitores em inteligibilidades

domésticas que também são posições ideológicas, conjuntos de valores, crenças e

representações que favorecem os interesses de certos grupos sociais em

detrimento de outros. Essa fluência das traduções atende a imposições

econômicas, uma vez que, quanto mais “legível”, isto é, quanto mais o seu leitor

nela reconhecer sua própria cultura, mais “consumível” e rentável a tradução será.

As ideias de Lawrence Venuti se coadunam com as de Antoine Berman,

quando este propõe uma resistência às tendências etnocêntricas da tradução, visto

que para ambos a tendência etnocêntrica da tradução seria responsável por essa

invisibilidade (e, consequentemente, por seu desmerecimento) do tradutor. Nesse

ponto, não nos deteremos na extensa teoria tradutória do autor francês. Entretanto,

esse aspecto de sua teoria é relevante, na medida em que nos conduz ao que

Berman denomina posição tradutiva. Esse aspecto nos interessa, uma vez que a

posição tradutiva, tal como nos é apresentada por Berman, constitui-se em uma

posição social do tradutor diante do texto original a ser traduzido. Afirma Berman

que não há tradutor sem posição tradutiva, embora ela não seja claramente

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65

anunciada. Para ele, a fidelidade ao sentido é a infidelidade à letra, fidelidade

relacionada com o jogo de significantes. O tradutor deveria assumir uma posição

de visibilidade, com liberdade para buscar uma relação que não apenas

assimilasse o estrangeiro, mas que fizesse aparecer relações entre as culturas de

partida e de chegada. Sob esse ponto de vista, tanto para o teórico norte-

americano quanto para o teórico francês o tradutor deve se posicionar diante do

texto que traduz, preservando características fundamentais para colocar o Outro

em evidência.

Nesse sentido, o teórico francês baseia seu conceito de tradução ética na

relação entre as culturas doméstica e estrangeira, incorporada pelo texto traduzido.

Para Berman, uma tradução de má qualidade seria a que apresenta uma atitude

doméstica, ou seja, a posição da tradução etnocêntrica, ao passo que uma boa

tradução visaria a pôr fim a essa negação, pois esta representa “uma abertura, um

diálogo, uma hibridação, uma descentralização” e, dessa maneira, força a língua e

a cultura domésticas a registrarem a “estrangeiridade” do texto traduzido.

Em A prova do estrangeiro, um estudo tradutológico no qual se instaura um

debate político e ético que aponta a relação entre a própria cultura na qual a

tradução é feita e a cultura do “Outro” (em maiúscula para designar o estrangeiro,

o que é de fora), Berman (1984) propõe uma visada ética da tradução com o

objetivo de defender a tradução como abertura ao Outro. Isso, segundo ele, torna-

se possível a partir do momento em que se identificam as deformações típicas que

redundam em uma tradução etnocêntrica – o que Berman chamará de “má

tradução”. No entanto, ele também admite a impossibilidade de que a relação

travada com o Outro seja isenta de traços etnocêntricos. Assim, uma analítica da

tradução, que auxilia na identificação dos elementos deformadores, oferece a

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66

possibilidade de que as interferências deformadoras sejam, ao menos,

minimizadas durante o fazer tradutório. Nesse sentido, uma “boa tradução”, na

análise de Berman, seria aquela em que as características etnocêntricas são

amenizadas, apresentando, assim, uma nova maneira de concepção de valor.31

A prova do estrangeiro discute conceitos relativos à tradução na Alemanha

do século XVIII. Dos conceitos bermanianos, três serão destacados e

apresentados, a fim de que possamos discutir questões importantes à prática da

tradução etnocêntrica e não etnocêntrica: a Weltliteratur (literatura mundial), a

Bildung, processo no qual a relação de si mesmo se afirma em relação ao

estrangeiro, produzindo uma relação de interação, e a Translation, como teoria

que mostra a passagem de uma língua-cultura a outra. Nessa obra, Berman mostra

como Madame de Staël, com a tradução de Goethe, introduz na consciência

europeia a ideia de um mercado literário mundial, a Weltliteratur, como um vasto

espaço de diálogo e de troca que oferece a cada literatura nacional o modo de se

renovar. Berman nos apresenta, assim, uma necessidade maior da tradução que a

comumente reconhecida. A partir da prática dos poetas românticos alemães,

mostra que uma cultura não pode permanecer voltada para si mesma, que ela

necessita de outras culturas para se constituir.

Desse modo, o teórico francês demonstra o complexo diálogo instaurado

pela tradução ao mostrar que esta não é simplesmente um espelho em que a obra

literária admira seu reflexo, mas, antes, a relação da obra consigo mesma. O texto

traduzido permite, dessa maneira, um novo olhar sobre o texto de partida. A

tradução intervém, então, não somente na relação entre si e o outro, mas na

relação consigo mesmo. A partir do conceito de Weltliteratur, muda-se a relação

31 PETRY, Simone Christina. A noção bermaniana de relação sob o viés derridiano da hospitalidade. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Letras, UFPR, 2011.

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com o estrangeiro. Essa relação, que antes era de troca e de recusa, tende, então à

interação, à troca, como reitera Berman: “Com a chegada da literatura mundial, a

relação torna-se mais complexa, na medida em que as diversas culturas buscam, a

partir de então, contemplar-se no espelho das outras, a buscar nelas o que não

podem encontrar em si mesmas.”32

Outro conceito, o de Translation, dá conta da interação entre a tradução e o

meio literário. A Translation pode ser definida, de maneira simplificada, como

uma teoria geral de passagem de uma “língua-cultura a outra”. Segundo Berman,

cada ato de tradução se dá em uma mediação que compreende ao mesmo tempo

determinantes conceituais, estéticos e políticos. Assim, a Translation é essencial à

questão da consciência histórica, aparecendo como interação e revelação.

Ao mostrar a Weltliteratur, discutindo e ampliando essa ideia, Berman

levanta questões importantes à tradução, mas destacamos aqui aquela que sempre

foi fulcral: a fidelidade. Para discutir a ideia de original, partimos da citação do

poeta Octávio Paz,33 estando diametralmente oposta à que se encontra

tradicionalmente no campo: “Todo texto é único e é, ao mesmo tempo, a tradução

de outro texto. Nenhum texto é completamente original porque a própria língua

em sua essência já é uma tradução.”

A partir dessa afirmativa, questiona-se o conceito de originalidade, ligado

diretamente ao de fidelidade, uma vez que, tradicionalmente, acredita-se que há

um texto original, concebido por um autor que ali deposita conscientemente suas

ideias, cabendo à tradução a tarefa de transportá-las. Assim, Berman, ao discutir a

Weltliteratur, questiona a identidade da cultura nacional, reconduzindo a crítica

32 BERMAN, Antoine. A prova do estrangeiro. Tradução Maria Emília Pereira Chanut. Santa Catarina: Edusc, 2002. p. 117. 33 Apud ARROJO, Rosemary. Oficina de tradução. São Paulo: Ática, 2003.

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em relação à tradução na direção da impossibilidade do “original” e da

“fidelidade”.

Já discutimos a Weltliteratur e a Translation, verificando como a tradução

revela questões das relações culturais a partir da relação com o Outro. Passaremos

agora a outro conceito trabalhado pelo autor francês, o da Bildung, relacionando-o

com a questão da tradução etnocêntrica, analisando, também, a tradição das Belles

Infidèles na França. A palavra alemã Bildung significa, genericamente, cultura.

Observa-se a natureza circular e alternante da Bildung, a de ser ao mesmo tempo

progressão e retorno. Vejamos como isso se dá em relação à tradução. Na cultura

alemã do século XVIII, a tradução tem um papel essencial. Assim, à medida que a

Bildung se define como certa provação (ou prova) do estrangeiro, a tradução se

manifesta como um dos principais agentes da formação de um povo. Entretanto, a

história da tradução tem mostrado que essa prova do estrangeiro é geralmente

recusada. Berman observa, como prova disso, que o povo francês é

essencialmente etnocêntrico, dando como exemplo o gênero de tradução intitulado

Belles Infidèles.

Referindo-se às Belles Infidèles, Berman (1985) afirma que esse gênero, que

dominou as traduções na França nos séculos XVII e XVIII, pode parecer

ultrapassado, mas continua muito vivo. As Belles Infidèles, conforme observamos

no capítulo anterior, constituíam-se, em linhas gerais, em um afrancesamento das

obras traduzidas, procurando-se produzir textos traduzidos como se tivessem sido

escritos originalmente em francês. As Belles Infidèles podem ser definidas como

“traduções que para agradar e se adaptar ao gosto e ao costumes da época seriam

versões revistas e corrigidas por tradutores conscientes da superioridade da língua

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para a qual traduz”.34 Assim, palavras consideradas imorais, cenas que pudessem

chocar o público francês eram cortadas ou adaptadas. Esse procedimento nas

traduções provocou fortes críticas. O próprio nome, Belles Infidèles, vem de uma

expressão utilizada por Ménage (1613-1691), que, ao criticar as traduções de

Nicolas Perrot, compara: “Elas me lembram uma mulher que amei muito em

Tours, que era linda, mas infiel.” Assim, os críticos franceses da época

identificavam a fidelidade como uma qualidade à tradução; entretanto, apesar de à

época terem surgido algumas traduções que se propunham mais “fiéis”, estas não

caíram no gosto do público, que preferiram as “belas infiéis”, que eliminavam

elementos estranhos à cultura receptora da tradução. Para Berman, a realização da

proposta das Belles Infidèles deixou traços de uma tradição etnocêntrica de

tradução. Observa Berman,que há uma tendência mundial à tradução etnocêntrica,

em maior ou menor grau, mas sempre com traços de etnocentrismo.

Entretanto, para o autor, uma boa tradução, uma tradução ética é justamente

aquela que realiza o inverso das Belles Infidèles, ou seja, uma tradução que não

apaga a língua e a cultura estrangeiras. Dessa maneira, a boa tradução seria a

“tradução da letra”, a que se abre, “no plano da escrita, a uma relação com o

Outro” e “fecunda o Próprio pela mediação do estrangeiro”. Berman propõe uma

tradução ética, poética e pensante que se vale tanto da reflexão sobre o próprio

processo tradutório e de composição do texto original (tradução como crítica)

como da experiência da obra e da língua, ou, em última análise, do Outro. Como

afirma:

Fazer uma experiência com o que quer que seja [...] isso quer dizer: deixá-lo vir sobre nós, que nos atinja, que nos caia em cima, nos deite ao chão e nos transforme noutro. Nesta expressão “fazer” não significa precisamente que somos os

34 HORGUELIN, Paul. Anthologie de la manière de traduire: domaine français. Montréal: Linguatech, 1981. p. 76, 230 p.; Les instruments de la docilité. Palimpsestes, Paris: Presses de la Sorbonne Nouvelle, n. 8; tradução nossa.

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operadores da experiência, “fazer” quer dizer aqui, tal como na locução “faire une maladie”, passar por, sofrer de uma ponta à outra, aguentar, acolher aquilo que nos atinge submetendo-nos a ele.35

Outra consequência da tradução etnocêntrica seria a invisibilidade do

tradutor, uma vez que, ao traduzir de tal forma que não se perceba que se trata de

uma tradução, ao eliminar o que é estrangeiro, o tradutor se apaga, tornando-se

invisível, pois, conforme observamos, na visão bermaniana, a tradução

etnocêntrica priva o leitor do caráter estrangeiro do texto traduzido, negando, de

certa forma, o processo de tradução. A consequência é a produção de textos

traduzidos sem deixar marcas da tradução, que passam como originais. Assim, na

perspectiva da tradução etnocêntrica, a invisibilidade é o maior mérito do tradutor.

Quanto à posição tradutiva, é improvável ao tradutor alcançar, na prática,

uma visada pura da tradução, ou ainda, escolher apenas não fazer uma tradução

etnocêntrica. Isso porque não é possível se desvincular totalmente de pressupostos

ideológicos – constitutivos de uma opção etnocêntrica –, já que estes estão

enraizados nas inúmeras culturas, e o tradutor está ligado à sua cultura e a

determinadas práticas sociais.

Devemos nos interrogar se, em relação ao público leitor, esse tipo de

tradução não etnocêntrica não correria o risco de se tornar ininteligível. Tanto

Berman quanto Venuti defendem que a tradução preocupada em reduzir o próprio

etnocentrismo não se arrisca necessariamente a ser ininteligível e, logo,

culturalmente marginal. Um projeto tradutório pode se distanciar das normas

domésticas a fim de evidenciar a “estrangeiridade” do texto traduzido e criar um

público leitor mais aberto a diferenças linguísticas e culturais. Entretanto, o

tradutor pode evitar recorrer a experiências estilísticas tão alienadoras que possam

35 BERMAN, Antoine. A tradução e a letra, ou o albergue do longínquo. Op. cit., p. 18.

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recusar a inteligibilidade do texto traduzido e, assim, causar o próprio fracasso.

Berman, assim como Venuti, afirma que uma ética tradutória não deve se

restringir a uma noção de fidelidade.

Notamos pontos comuns entre os dois teóricos. Ambos manifestam-se a

favor da visibilidade do Outro nas traduções, ao afirmarem que o tradutor deve

tornar-se visível ao revelar o Outro e seu modo de significar. Observamos,

também, que a questão do tipo de tradução, se etnocêntrica ou não, apresenta o

tradutor confrontado com uma escolha: ser fiel à fonte ou levar em consideração a

cultura de chegada. Ora, não podemos acreditar na “livre” escolha do tradutor. O

tradutor está inserido dentro de um tempo, de um lugar, ou seja, mais do que

determinar, ele é determinado pelo contexto social, econômico e político do qual

faz parte.

Pudemos observar, com as concepções de Berman e de Venuti, que a

maneira de conceber a tradução muda de polo; assim, ao invés de concebê-la

dentro da perspectiva do texto, elementos sociais são considerados, sobretudo na

questão da recepção das obras. Vimos, também, que, para os dois teóricos, a

concepção de uma boa tradução seria aquela que não priva o público do gosto

estrangeiro, ou seja, uma tradução não etnocêntrica. Dessa maneira, anuncia-se a

relação da tradução com a cultura; entretanto, há uma limitação em reconhecer o

papel ideológico do tradutor nessa relação entre as culturas. Como deveria

ocorrer, pois, para esses teóricos essa relação do tradutor com as culturas? Como

o tradutor deve deixar transparecer o Outro, sendo parte da cultura de chegada?

Seria qualquer tradutor que tomaria determinada posição tradutiva? Ou deveria ele

dispor de determinado capital cultural para efetivar essa relação? Parece-nos que

há uma idealização desse tradutor.

Page 72: universidade federal do rio de janeiro em busca da tradução

72

Em relação à posição tradutiva do tradutor, algumas reflexões devem ser

feitas. Para que serve (politicamente) essa invisibilidade do tradutor? Já dissemos

que a noção corrente é a de que “o tradutor nunca pode fazer o que o original fez”;

assim, a tradução é vista como cópia de um original, este, sim, tido como produto

raro, produzido por um criador único, o autor. Acreditamos que esse apagamento

da figura do tradutor se constitua em uma produção simbólica do campo, que

mostra quem é valorizado dentro dele. A invisibilidade ou a visibilidade do

tradutor consistem em estratégias efetivadas pelo tradutor para se posicionar de

maneira social diante da obra a ser traduzida. Esse posicionamento se reflete no

resultado da tradução, visto que, ao assumir qualquer das posições, o tradutor

oferece ao público leitor uma tradução mais ou menos acessível. Na posição

tradutiva relacionada com a invisibilidade do tradutor, a intenção é de que o texto

traduzido não pareça uma tradução do texto original proveniente de outra cultura.

Acreditamos que tais estratégias já se constituem em uma forma de consagração.

Destarte, qualquer das estratégias assumidas pelo tradutor, seja a da invisibilidade

ou a da não invisibilidade, reverte-se em consagração para ele e sua tradução, uma

vez que a invisibilidade ou a visibilidade do tradutor trata-se de um

posicionamento no campo que constitui uma prática que demonstra uma posição

mais ou menos consagrada dentro do campo, ou seja, são formas sociais de

construção da prática da tradução. Retomaremos a questão da visibilidade ou da

invisibilidade do tradutor no próximo capítulo, ao observarmos a posição visível

do tradutor Mário Quintana.

Page 73: universidade federal do rio de janeiro em busca da tradução

73

2.3 TEORIAS SOBRE A TRADUÇÃO LITERÁRIA: A TEORIA DOS POLISSISTEMAS

Observamos que as teorias de Berman e de Venuti apresentam uma

perspectiva diferente da concepção tradicional de tradução, ao deslocarem a

questão para o universo da recepção das obras, ou seja, ao observá-las para além

do texto. Foi a partir dessa contextualização que teóricos como Lieven d’Hulst,

Raymond van den Broeck e Theo Hermans, juntamente com André Lefevere, o

israelense Gideon Toury e a britânica Susan Bassnett, propuseram uma

abordagem para estudar as traduções literárias que tomava como base a visão da

literatura como sistema, inicialmente desenvolvida pelos formalistas russos e

retomada na década de 1970 por Itamar Even-Zohar, teórico da tradução

israelense que formulou a teoria dos polissistemas.36

O modelo inicial proposto por Itamar Even-Zohar (2007) visava a elaborar

uma base teórica capaz de explicar as particularidades da história da literatura

israelense e das traduções literárias realizadas nessa cultura, utilizando as ideias

dos formalistas russos envolvidos com a historiografia literária, tomando o

conceito de sistema para designar uma estrutura formada por várias camadas de

elementos que se relacionam. Baseada na noção sistêmica proposta por Tinianov,

a teoria dos polissistemas concebe determinada cultura como um grande sistema

que é internamente composto por subsistemas que se relacionam com outros

sistemas paralelos. Assim, dentro do polissistema de uma cultura, figura, por

exemplo, o sistema literário, que, por sua vez, abriga o sistema da literatura

traduzida. É importante ressaltar que os elementos do polissistema se encontram

em luta constante. Na disputa pela consagração, eles lutam pela centralização, 36 MARTINS, Marcia do Amaral Peixoto. As contribuições de André Lefevere e Lawrence Venuti para a teoria da tradução. Cadernos de Letras, Rio de Janeiro: UFRJ, n. 27, dez. 2010.

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74

pela hegemonia, a fim de se tornar um cânone. Nessa disputa, segundo o autor,

ocorreria uma tensão entre os princípios literários primários (inovadores) e os

secundários (conservadores). Dessa maneira, uma obra primária passaria a ser

considerada consagrada ao chegar ao centro e manter-se por algum tempo nessa

posição. Ao alcançarem a consagração, os adeptos que antes adotavam uma

estrutura inovadora passam a adotar uma postura conservadora, pois lutam para

manter-se no centro e passam a rejeitar o que é novo.

Para os Estudos da Tradução, Even-Zohar abriu espaço para uma discussão

sobre o papel e a importância da literatura traduzida em um dado polissistema.

Salienta o autor que nem sempre as obras traduzidas ocuparão uma posição

periférica em determinado polissistema literário, apresentando três situações em

que essas obras podem assumir uma posição central e exercer um papel mais

influente nesse polissistema: (i) quando uma literatura em fase de

desenvolvimento utiliza modelos antigos, encontrados na literatura traduzida,

como critério de referência; (ii) quando a literatura nacional de um país ou região

se revela fraca e acaba obscurecida por outra maior; (iii) quando a literatura

nacional enfrenta uma crise ou momento decisivo, e os modelos antigos deixam

de ter apelo e geram um vácuo no sistema literário, possibilitando a introdução de

novos modelos por via da tradução.

A teoria dos polissistemas proposta por Even-Zohar contribui, então, para

ampliar a noção de tradução. Anteriormente baseada em fórmulas, textos que não

seguiam essas determinações eram comumente tidos como “imitações”,

“adaptações” ou “versões”. Even-Zohar, ao invés de restringir as discussões a

uma noção tradicional sobre a equivalência existente entre o texto-fonte e o texto-

alvo, passou a concentrar seus estudos no texto traduzido, por considerá-lo parte

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75

integrante do polissistema-alvo. A abordagem voltou-se, então, para o polo

receptor, resultando em um grande volume de trabalho descritivo sobre a natureza

do texto-alvo, ou seja, o produto da tradução, passando os textos traduzidos a ser

vistos como resultado de procedimentos gerais, determinados pelo polissistema-

alvo. Essas reflexões mostram a importância da tradução no contexto maior dos

estudos literários. Se, anteriormente, em uma visão tradicional, acreditava-se na

capacidade do tradutor – tal como um produtor neutro – de obter um texto

equivalente, a teoria dos polissistemas, ao contrário, acredita que as normas

sociais e as convenções literárias da cultura de chegada influenciam as decisões

tradutórias.

A partir da concepção de Even-Zohar da literatura como um polissistema

inserido em outro maior, o da cultura, temos em André Lefevere e no conceito de

patronagem por ele desenvolvido alguns aspectos relevantes em relação à

tradução. Lefevere define, em linhas gerais, a patronagem como o poder exercido

por pessoas, instituições, partidos políticos, classes sociais, editores e mídia sobre

o sistema literário. Assim, o patrocinador, mesmo do lado de fora do sistema

literário, não interfere diretamente no seu funcionamento, mas delega autoridade

aos profissionais para fazê-lo em seu nome. Segundo o autor, há, no sistema de

patronagem, três elementos centrais: o ideológico, que determina a forma e o

conteúdo do que será publicado; o econômico, que define a remuneração dos

(re)escritores; e o status, que confere aos (re)escritores reconhecimento e

prestígio. O sistema literário, segundo Lefevere, pode ser controlado por

patronagens diferenciadas ou não diferenciadas. A patronagem diferenciada

centraliza seu interesse no sucesso econômico, e isso necessariamente não fornece

status. Já a patronagem não diferenciada envolve os três elementos – o ideológico,

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76

o econômico e o status. Nesse sentido, o patrocinador – que é sempre o mesmo –

tenta regular a relação entre o sistema literário e os outros sistemas de uma

cultura. Ele controla o (re)escritor, o produto de seu esforço intelectual e sua

distribuição.

Ao relacionar a tradução com a cultura e suas estruturas de poder, Lefevere

mostra o papel das editoras e das instituições, que, por meio de incentivo e de

patrocínio, interferem nas decisões editoriais e na implementação de políticas

culturais. Dessa maneira, a tradução é vista, também, sob a perspectiva de

elementos políticos e ideológicos. Quanto ao tradutor, Lefevere salienta seu papel

de “reescrever”, deslocando o conceito de fidelidade para além da exatidão,

salientando que a posição tradutiva depende de uma série de fatores:

Na maior parte dos casos, os tradutores [...] reescrevem, tanto no nível do conteúdo quanto no estilo [...]. Pode-se mostrar, portanto, que a “fidelidade” em tradução não é exatidão, nem primeiramente uma questão de ajustes no nível linguístico. Envolve, mais precisamente, uma complexa rede de decisões tomadas pelos tradutores nos níveis da ideologia, da poética e do universo do discurso.37

Nessa perspectiva, a teoria dos polissistemas apresenta, conforme

observaremos, muitos traços em comum com a teoria dos campos simbólicos de

Pierre Bourdieu, na medida em que se reconhece a existência de uma instituição

literária, autônoma, bem como sua relação com outros sistemas. Assim, a teoria

dos polissistemas e todos os conceitos que lhe são inerentes (nuclear, periférico,

tensional, primário, secundário etc.) explicam a diferença fundamental entre

tradução literária e literatura traduzida. Entretanto, a teoria dos polissistemas

descreve a luta por um posicionamento central dentro do sistema literário, baseado

em uma lógica interna. Dessa maneira, não concebe que dessa luta por

posicionamento legítimo participam pessoas com sua origem familiar e social, ou 37 LEFEVERE, André apud RODRIGUES, Cristina Carneiro. Tradução e diferença. São Paulo: Unesp, 2000. p. 129.

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77

seja, não leva em conta que uma hierarquia social, cultural, determina uma

maneira mais ou menos ousada de se posicionar dentro de um espaço social.

Acreditamos que, ao lutar pelo posicionamento central e pela manutenção como

cânone, não está em jogo apenas a luta pelo posicionamento legítimo, mas a

angariação de capital simbólico a priori, com vistas a arrecadar lucros financeiros

mais adiante.

Essa questão é tratada por Rainier Grutman, em seu artigo Le virage social

dans les études sur la traduction – une rupture sur fond de continuité38, no qual

aponta não somente a contribuição que trabalhos associados à teoria de Pierre

Bourdieu trouxeram à tradutologia, como levanta pontos em comum entre a

teoria dos polissistemas de Even-Zohar e a teoria dos campos simbólicos de Pierre

Bourdieu. Dentre as distinções feitas pelo autor, destacamos o conceito de

‘sistema’ (Zohar) e ‘campo’ (Bourdieu). Nas duas teorias, tanto o campo, quanto

o sistema se caracterizam pela luta. Para Grutman, no conjunto semiótico que é o

sistema de Even-Zohar, os elementos, sejam eles concretos ou abstratos (como os

gêneros literários, por exemplo), vistos individualmente ou reagrupados em

repertórios, ocupam diversas posições que se tornariam ultrapassadas e assim

migrariam do centro para a periferia do sistema ou, inversamente, na medida em

que a inovação por eles apresentada passasse a ser reconhecida pelo centro e se

tornasse uma referência. Essas migrações, motores da mudança no sistema

literário, são acompanhadas de transformações graças às quais são atribuídas

38 GRUTMAN, Rainier. Le virage social dans les études sur la traduction – une rupture sur fond de continuité. Publicado em Carrefour de la Sociocritique- números 45 e 46. P.136-152. Toronto, 2009. Disponível em: <http://uottawa.academia.edu/RainierGrutman/Papers/682824/LE_VIRAGE_SOCIAL_DANS_LES_ETUDES_SUR_LA_TRADUCTION_UNE_RUPTURE_SUR_FOND_DE_CONTINUITE> Acesso em 13/06/2012.

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78

novas funções aos elementos formais constitutivos do repertório. Para Grutman, a

ausência de reflexão explícita sobre os agentes de mudança literária mostra a

pertinência de suprir essa lacuna pelos aportes da teoria dos campos simbólicos.

Em Bourdieu, no espaço social denominado campo, os agentes lutam por

consagração ao tomar posições em função de suas disposições socialmente

adquiridas denominadas habitus, permitindo a determinado autor (ou grupo,

revistas, etc.) perceber os impasses, ou ao contrário, as possibilidades de

inovação. Assim, graças não somente ao seu talento, mas também

consideravelmente favorecidos por seu habitus, os agentes ocuparão uma série de

posições, como dominantes ou pretendentes.

2.4 A TRADUÇÃO LITERÁRIA COMO OBJETO SOCIOLÓGICO

Conforme já dissemos, o campo de pesquisa denominado Translation

Studies (Estudos da Tradução), constituído a partir dos anos 1970, fez emergir

trabalhos com concepção diferente da tradicional. Assim, ao invés de estudar as

traduções unicamente por meio da relação original versus tradução, os Translation

Studies se interessam cada vez mais pelas questões concernentes ao

funcionamento das traduções dentro de diferentes contextos de produção e de

recepção, ou seja, ao invés de se fechar em problemáticas puramente intertextuais,

por meio da relação do original com sua tradução, questões propriamente

sociológicas são suscitadas, como as que levam em consideração as funções das

traduções, as editoras, os editores e os tradutores no espaço no qual se situam.39

39 HEILBRON, Johan ; SAPIRO Gisèle. La traduction littéraire – un objet sociologique. Paris: Actes de la Recherche en Sciences Sociales, 2002. v. 144, p. 3-5.

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Assim, acreditamos que a tradução constitua um objeto sociológico e que suas

práticas são determinadas socialmente.

Segundo Johan Heilbron e Gisele Sapiro (2002), autores que trabalham sob

a perspectiva sociológica de Pierre Bourdieu, em vez de se tomar como base a

problemática intertextual na relação original/tradução, questões propriamente

sociológicas surgem, principalmente no que tange às funções da tradução e a seus

agentes no espaço em que se encontram. Para esses autores, a tradução das

literaturas estrangeiras depende da estrutura do espaço de recepção, uma vez que

este também é regido pela lógica do mercado ou por uma lógica política; assim, a

recepção será em parte determinada pelas representações da cultura de origem e

do status da língua. Afirmam, ainda, os autores que a tradução apresenta múltiplas

funções, tais como instrumento de mediação e troca, mas constitui, também, um

modo de legitimação, dos quais autores e mediadores podem se beneficiar. Assim,

a tradução nas línguas centrais constituiria uma consagração que modificaria a

posição de um autor no campo de origem, ao passo que, para as literaturas

nacionais em vias de construção, a tradução constituiria um modo de acumulação

de capital literário. Dessa forma, no nível das instâncias, se os editores detiverem

importante capital literário, terão o poder de consagrar os autores que são

traduzidos. Em relação aos mediadores, pode haver a consagração desses autores,

bem como a consagração do tradutor.

Pierre Bourdieu (1998) põe em xeque a mística do autor como criador

único, pois, para o teórico francês, o autor faz a obra e é ao mesmo tempo

construído socialmente pelo campo literário. Essa noção é claramente apontada

por Fernanda Maria Abreu Coutinho:

[...] o conceito de campo literário é uma possibilidade versátil de entendimento da engrenagem que envolve a produção, a circulação e o consumo do material

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80

artístico, por ser estreitamente vinculado à noção de valor, bem como pressupõe tomadas de posição que definem a boa ou má acolhida das obras em seu interior e sua duradoura ou efêmera permanência na memória do sistema literário. Propõe Bourdieu que se esqueça o papel que cada um destes elementos, escritores, leitores, editores, livreiros, críticos, escola etc. exerce por si mesmo, reenquadrando-os através de uma lógica interativa.40

No âmbito do nosso objeto de estudo, observaremos, no próximo capítulo,

por meio de diversos exemplos, como as instâncias do campo de produção

literária cooperam para consagrar traduções que passam a ser consideradas como

boas traduções. A tradução de Em busca do tempo perdido, de Proust, elaborada

pelo reconhecido escritor Mário Quintana, passa, nessa perspectiva, a ser

considerada como “imortal” ou “definitiva”. Embora Mário Quintana ainda não

fosse efetivamente consagrado no momento em que traduziu Proust, já era

reconhecido no meio dos intelectuais e escritores, o que possibilitou a Érico

Veríssimo lhe confiar traduções de importantes obras de língua francesa. Nesse

sentido, as traduções elaboradas por Quintana alcançaram devidamente sua

consagração a partir da circularidade de valores operados dentro do campo de

produção literária. Assim, quando se apresenta como tradutor de obras de autores

“imortais”, tais como Voltaire, Balzac e Proust, Mário Quintana amealha

gradativamente a consagração dentro do campo.

40 COUTINHO, Fernanda Maria Abreu. Pierre Bourdieu e a gênese do campo literário. Revista de Letras, UFC, v. 1-2, n. 25, –jan./dez. 2003.

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3 A CONSAGRAÇÃO DA TRADUÇÃO DE EM BUSCA DO

TEMPO PERDIDO

Vimos no capítulo anterior que não há uma concepção única do que seria

uma boa tradução de uma obra literária. Assim, verificamos que, na visão dita

tradicional, a fidelidade ao texto e às ideias do original é condição para uma “boa

tradução”. Constatamos, por meio das teorias de Antoine Berman e de Lawrence

Venuti, que a discussão sobre o etnocentrismo e o não etnocentrismo na tradução

conduz a outra concepção do que seria uma boa tradução, sendo, segundo esses

autores, aquela que não privilegia a cultura de chegada, ou seja, que não priva o

público do gosto estrangeiro. Na teoria dos polissistemas, constatamos que as

relações entre os agentes são levadas em conta, e a tradução é vista dentro da

perspectiva das relações entre eles. Anuncia-se, também, a relação da tradução

com a cultura; entretanto, o papel do tradutor nessa relação entre as culturas é

visto sem demonstrar todo um jogo de forças que se trava no espaço social da

tradução. A fim de esclarecer as relações sociais produzidas entre os diversos

atores posicionados no espaço social da produção literária (editores, tradutores,

autores-tradutores, críticos e recepção), fundamentamo-nos nos preceitos teóricos

de Pierre Bourdieu, que, por meio de sua teoria dos campos simbólicos, indica

como é possível entendermos como determinada obra, no nosso caso uma

tradução, alcança um valor único ou venha a ser considerada a tradução

“definitiva”.

Neste capítulo, veremos, por meio de diversas evidências, como as

instâncias do campo de produção literária cooperam para consagrar traduções que

passam a ser consideradas como boas traduções, ou, como no caso aqui abordado,

uma tradução imortal ou definitiva. Primeiramente, discorreremos sobre a teoria

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dos campos simbólicos, de Pierre Bourdieu, e apresentaremos as instâncias de

produção, legitimação e recepção de uma obra dentro de um campo de produção

de bens simbólicos. Depois, observaremos a circularidade de valores dentro do

campo de produção literária, que acabam por produzir a crença em um objeto

“raro” e “insubstituível”. Nesse sentido, mostraremos as evidências da

consagração da tradução de Em busca do tempo perdido, elaborada por Mário

Quintana, a partir do funcionamento do campo de produção.

3.1 A TRADUÇÃO E A TEORIA DOS CAMPOS SIMBÓLICOS, DE PIERRE BOURDIEU

Segundo Pierre Bourdieu (2007), o campo de produção de bens simbólicos

artísticos e intelectuais definiu-se como um campo autônomo, em oposição às

esferas que até então dominavam a produção desses bens – as esferas religiosas e

aristocráticas, por volta do século XV na Europa:

Embora a vida intelectual e artística estivesse sob a tutela, durante toda a Idade Média, em grande parte do Renascimento e, na França, com a vida na corte, durante todo o período clássico, de instâncias de legitimidade externas, libertou-se progressivamente, tanto econômica como socialmente, do comando da aristocracia e da Igreja, bem como de suas demandas éticas e estéticas.41

Em relação ao campo de produção literária, essa transformação se deu com

a invenção da imprensa, que possibilitou ao público em geral o acesso a obras

literárias. A função artística, antes sob o jugo das autoridades religiosas e do

poder aristocrático, se modifica. Assim, produtores de obras literárias passam a

41 BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Tradução Sergio Miceli, Silvia de

Almeida Prado, Sonia Miceli e Wilson Campos Vieira. São Paulo: Perspectiva, 2007. p. 100.

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criar dentro de um espaço autônomo, ditando suas próprias regras e padrões.

Dessa maneira, afirma Bourdieu, ocorre o processo de autonomização do campo:

Destarte, o processo de autonomização da produção intelectual e artística é correlato à constituição de uma categoria socialmente distinta de artistas ou de intelectuais profissionais, cada vez mais inclinados a levar em conta exclusivamente as regras firmadas pela tradição propriamente intelectual ou artística herdada de seus predecessores, e que lhes fornece um ponto de partida ou um ponto de ruptura, e cada vez mais propensos a liberar sua produção e seus produtos de toda e qualquer dependência social.42

Cabe ressaltar que, nesse momento, surge uma nova categoria do artista em

oposição ao não artista (artesão). Na medida em que se constitui o campo de

produção simbólica, instaura-se uma oposição entre o campo da indústria cultural

e o campo de produção erudita, por meio da “dissociação entre a arte como

simples mercadoria e a arte como pura significação, cisão produzida por uma

intenção meramente simbólica e destinada à apropriação simbólica”.43 Segundo o

sociólogo francês,44 o campo de produção autônomo se define de forma variada

nas diferentes áreas artísticas e intelectuais, e a oposição existente entre esses

campos se define da seguinte maneira: o campo de produção erudita detém

normas próprias de condução, avaliação e legitimação de suas próprias obras,

enquanto o campo da indústria cultural produz obras destinadas ao “grande

público” e às frações não intelectuais das classes dominantes. Assim, enquanto as

obras produzidas pelo primeiro campo encontram seu reconhecimento no próprio

campo, já que os produtos são direcionados aos próprios produtores de bens

simbólicos, seus pares artísticos e frações intelectuais das classes dominantes, as

obras da indústria cultural esforçam-se por atingir na concorrência do mercado o

seu reconhecimento e avaliação.

42 Ibid., p. 100. 43 Ibid., p. 100. 44 Ibid., p. 100.

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84

Nessa perspectiva, houve um aumento da produção de obras literárias, tais

como romances e folhetins, originadas de escritores que passaram a estabelecer as

próprias regras do campo, constituindo-se em representantes e juízes de uma

tradição artística a partir da constituição de uma economia de bens simbólicos,

propiciada pelo aumento do público leitor. A ampla difusão dessas obras foi,

então, possibilitada pela produção em larga escala no âmbito da Revolução

Industrial.

Para Bourdieu, o campo consiste no espaço em que ocorrem relações entre

os agentes e as instituições, espaço esse sempre dinâmico e que obedece a leis

próprias, cujo motor são as disputas ocorridas em seu interior, no qual o objetivo

de seus componentes é a legitimidade para exercer o domínio sobre a produção de

bens literários. A consequência principal é a arrecadação de um capital simbólico

que se exprime na forma de lucros financeiros. Na dinâmica desse campo, há uma

luta em que o escritor se empenha para se afirmar como artista legítimo, disposto

a produzir “autêntica” literatura. É importante ainda ressaltar que o campo de

produção simbólica, ao qual se refere Pierre Bourdieu, não se reduz meramente a

um campo de atuação profissional, mas se estrutura em um espaço de relações

sociais.

Conforme verificaremos pela teoria de Bourdieu, nesse campo de produção

autônomo efetiva-se o valor de um bem simbólico, tal como uma obra literária

traduzida, na medida em que há a circulação de valores e qualidades acerca dessas

obras entre as instâncias do campo. É importante ainda ressaltar que houve a

necessidade de efetuarmos uma transposição da análise de Bourdieu para o nosso

objeto de estudo, uma vez que o autor examina, em sua teoria, o campo da

produção artística na Europa.

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85

Primeiramente, uma questão a ser definida é que o espaço da atividade da

tradução não se constitui em um campo autônomo, uma vez que a produção de um

texto traduzido já não é a criação de um texto original e a autoria da obra

traduzida permanece, conforme observamos nas capas das traduções. Na verdade,

a tradução é uma atividade pertencente ao campo de produção literária – este, sim,

legítimo como uma produção “cultural” –, do qual extrai a sua legitimidade.

Michaela Wolf afirma que não há campo da tradução; entretanto, sua explicação

reside no fato de que os tradutores não lutariam por posicionamento, uma vez que

trabalham subordinados a regimes de trabalhos independentes, sujeitos a prazos.

Ora, sob essa perspectiva, Wolf não leva em consideração que, a despeito desse

modo de trabalho, o tradutor luta por um posicionamento em outro nível, além do

profissional – o posicionamento simbólico. É a partir dessa posição que ele

arrecada os ganhos financeiros de sua prática profissional. Ou seja, Wolf ignora

que os tradutores alcancem um posicionamento simbólico no campo literário, que

lhes confere trabalhos mais ou menos notáveis e de remuneração diferenciada.

Entretanto, embora haja luta por legitimidade entre os tradutores, eles não formam

um campo autônomo, mas participam do campo de produção simbólica da

atividade literária, na medida em que sua atividade tende a se demarcar em

relação à atividade literária propriamente dita. Desse modo, escritores e tradutores

lutam por legitimidade dentro do campo de produção de literatura, embora os

tradutores em geral detenham um posicionamento legítimo inferior ao dos

escritores. Daí podermos afirmar que maior valor é conferido a determinada

tradução quando o tradutor é um escritor, e que esse autor-tradutor, por sua vez,

angaria prestígio ao traduzir obras de autores consagrados.

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86

Assim, examinaremos as relações entre escritores e tradutores dentro do

funcionamento do campo de produção literária – estruturado sobre regras próprias

–, pois a partir daí poderemos compreender o valor alcançado por determinadas

traduções, elaboradas de escritores dotados de legitimidade no campo de produção

literária, bem como os reflexos e a consagração para o próprio trabalho de

escritor.

3.1.1 O FUNCIONAMENTO DO CAMPO DE PRODUÇÃO LITERÁRIA

Examinamos anteriormente a estruturação do campo de produção literária e

a posição da atividade da tradução nesse campo de produção cultural. Observamos

como escritores consagrados no campo de produção foram capazes de promover

suas traduções junto ao público, uma vez que esses autores não eram somente

tradutores que comumente denominamos profissionais, contratados para a tarefa

de tradução de uma obra qualquer. Desse modo, torna-se fácil entender como se

deu a consagração da tradução de importantes obras francesas, em particular a que

constitui nosso objeto de estudo – Em busca do tempo perdido –, traduzida pelo

escritor e poeta Mário Quintana em 1948.

Podemos verificar que a consagração dessas obras traduzidas se deveu

muito ao papel daquilo que é denominado autores-tradutores – escritores e

intelectuais que exerceram a atividade da tradução. Interessa-nos sobremaneira

essa relação autor–tradutor, pois é a partir do reconhecimento de um autor

literário que se manifesta o valor da tradução por ele produzida. Ao autor literário

que exerce a função de tradutor, por sua vez, não interessa associar seu nome a

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87

traduções destituídas de valor simbólico, mas, sim, a traduções de autores

consagrados. Assim, ao irmos em busca do escritor, analisando sua posição

consagrada como autor literário, concebemos o valor da tradução como um bem

simbólico.

Em relação à consagração, afirma Bourdieu que: “[...] é a raridade do

produtor (isto é, a raridade da posição que ele ocupa em seu campo) que faz a

raridade do produto”.45

Em outra afirmação, esse autor também define que: “[...] o poder mágico do

criador [...] não poderá agir se não for mobilizado por uma pessoa autorizada, ou,

melhor ainda, se não for identificado com uma pessoa e seu carisma, além de ser

garantido por sua assinatura”.46

Dessa maneira, podemos afirmar que não há como mensurarmos

objetivamente o valor da tradução, mas, sim, observar que tal valor ocorre a partir

da assinatura de quem a executou – escritor consagrado sobre o qual se produz a

crença de um autor único e insubstituível. Assim, não é possível apontar,

analisando apenas os elementos textuais da obra traduzida, a qualidade da

tradução. Isso não quer dizer que não haja qualidades intrínsecas às traduções;

entretanto, não é apenas a qualidade do texto traduzido que determina a

consagração de uma tradução. Dessa maneira, o que nos interessa é observar a

circularidade dos valores do campo de produção que produzem sua consagração.47

Essa consagração é por vezes tão poderosa que não se consegue distinguir entre a

45 BOURDIEU, Pierre. A produção da crença – contribuição para uma economia dos bens simbólicos. Tradução Guilherme João de Freitas Teixeira e Maria da Graça Jacintho Setton. Porto Alegre: Zouk, 2001. 46 Id. 47 ALMEIDA, Marcelo Vianna Lacerda de Almeida. A eficiência do signo gráfico empresarial: forma consagrada pelo campo do design nas instâncias da cultura visual moderna. Tese (Doutorado em Design) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio, Departamento de Artes & Design, Rio de Janeiro, 2010.

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reconhecida qualidade da tradução e aquilo que constitui o “arbitrário

dissimulado”48 pelo efeito da legitimação; ou seja, a tradução de Mário Quintana

se apresenta com uma inegável qualidade, afastando a possibilidade de haver

outra que “revele” o texto original. Observamos que essa qualidade é atribuída a

partir de um julgamento operado dentro do campo de produção.

Segundo Bourdieu, a principal função do campo de produção simbólica é a

consagração dos autores e das obras que fazem com que o público as reconheça

como autênticas obras da literatura. No espaço da atividade da tradução, sempre

demarcado em relação à atividade literária no âmbito do campo de produção,

verificamos que a tradução de Mário Quintana para Em busca do tempo perdido,

de Marcel Proust, constitui-se em indubitável exemplo desse funcionamento do

campo. Afirma Bourdieu que qualquer bem simbólico produzido nesses campos

autônomos de produção somente alcança valor a partir da circularidade de valores

das instâncias desse campo. Para entendermos como é operada a consagração da

tradução elaborada por Mário Quintana, faz-se necessário observarmos a

circularidade de valores entre essas instâncias do campo, capaz de alçar a tradução

a uma espécie de “modelo” único e singular para acesso à obra original.

Bourdieu (2007) aponta a cooperação entre as três instâncias do campo de

produção simbólica como o elemento gerador do produto consagrado e

reconhecido. A primeira é a instância de produção e refere-se àqueles que estão

envolvidos na produção dos bens simbólicos, que, nesse caso, se compõe dos

autores, dos editores e dos tradutores, no âmbito das editoras. A segunda é a

instância de legitimação e consagração das obras do campo, constituída de

instituições tais como: (i) as escolas e as universidades dotadas dos cursos de

48 BOURDIEU, Pierre. Op. cit., 2007.

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89

Letras, capacitadas a reproduzir o conhecimento do que seria a “verdadeira”

literatura e a classificar os autores-produtores, distinguindo-os entre clássicos e

vanguardistas, além de formar agentes dispostos a manter a autonomia do campo;

(ii) as academias, as bienais, os eventos nacionais e internacionais de literatura –

antigos salões –, dotados de autoridade para apresentar e premiar autores

consagrados; (iii) as instituições de conservação de obras literárias – bibliotecas e

centros culturais privados capazes tanto de conservar quanto de expor obras

consagradas de autores legítimos; e, por último, (iv) os meios de difusão –

suplementos literários de jornais e periódicos especializados, providos de críticos

e articulistas autorizados a escrever artigos e resenhas, discernindo para o público

leitor o que há de excelente em literatura e tradução, e ainda as peças de

propaganda sobre obras literárias. A terceira instância consiste na instância de

recepção – o público leitor das obras literárias lançadas pelas editoras, que se

divide em diversos grupos de interesse por variadas “classes” de literatura,

determinadas pela instância de consagração. Segundo o autor, nem todas as

instâncias de consagração têm o mesmo poder para consagrar. Na concorrência

pela legitimidade, é possível observar que é a autoridade para consagrar que faz

com que a legitimação proposta por ela se torne duradoura.

Ao analisar a constituição do campo literário no qual se articulam todos os

processos de consagração de uma obra literária, Bourdieu (1998) reafirma que a

produção, a editoração, as expectativas de mercado e a presença em revistas

literárias, na mídia e nas instituições educacionais seriam algumas das

engrenagens do mecanismo consagrador das obras, as quais somente podem ser

avaliadas na perspectiva desse valor literário a elas atribuído.

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90

A seguir, examinaremos o funcionamento das instâncias do campo de

produção literária que, por meio da circularidade de valores em seu interior,

conferem raridade ao bem simbólico, tal como a tradução de uma obra literária.

Assim, poderemos observar com nitidez esse funcionamento do campo simbólico

por meio de diversas evidências que demonstram como a obra de Proust pode ser

apreciada pelo público brasileiro por meio da tradução do reconhecido escritor

Mário Quintana.

3.2 EVIDÊNCIAS DE FUNCIONAMENTO DO CAMPO – AS INSTÂNCIAS DE CONSAGRAÇÃO DA TRADUÇÃO DE EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO

Conforme observamos, três são as instâncias de produção simbólica do

campo a que se refere Bourdieu. Em relação a nosso objeto de estudo, a tradução

de Proust elaborada em 1948, notamos que a instância de produção do campo se

estruturou sobre a Editora Globo, que dispunha dos autores-tradutores – escritores

em vias de consagração –, tais como Mário Quintana, Carlos Drummond de

Andrade e Manuel Bandeira; do revisor Paulo Rónai; e do editor e escritor

consagrado Érico Veríssimo. O papel das instâncias de consagração na época

dessa tradução ficou reservado à crítica em jornais a respeito dessa tradução, que

fez com que a obra fosse amplamente aceita pelo público letrado pertencente à

instância de recepção.

A Editora Globo, localizada em Porto Alegre, tinha como editor, à época, o

escritor Érico Veríssimo, que veio a se tornar peça-chave da editora, já na

condição de escritor consagrado. Em 1931, Veríssimo – reconhecido pelo

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91

empresário Henrique Bertaso – foi convidado para realizar o trabalho de editor na

recém-criada Seção Editora e veio a se tornar conselheiro literário da Globo, com

autoridade para selecionar as obras a serem traduzidas. É importante notar, na

perspectiva do funcionamento do campo com vistas à legitimação, que, além de

selecionar as obras a serem lançadas, Veríssimo também atuava como tradutor,

assinando traduções de obras originais providas de distinção e utilizando um

pseudônimo quando as obras eram consideradas menores ou “comerciais”.

Segundo Sônia Amorim (2000), algumas das traduções de Veríssimo,

principalmente na Coleção Amarela, voltada para o gênero policial, com grande

tiragem na época, eram assinadas por Gilberto Miranda, pseudônimo do escritor.

Comenta Veríssimo:

[...] trata-se duma “personalidade de conveniência” que inventei, uma espécie de factótum literário [...] Gilberto Miranda não tem idade [...] Miranda continua jovem: tem sempre trinta anos, a mesma cara, a mesma disposição para o trabalho e continua a ser suficientemente cínico (ou prático) para emprestar seu nome a qualquer empreendimento literário, por mais medíocre que seja.49

A partir de 1931, a editora passou a ser comandada por Henrique Bertaso e

Érico Veríssimo, tornando a Globo destaque no mercado editorial brasileiro,

principalmente graças às traduções de clássicos estrangeiros. Nesse período, a

tradução alcançou números nunca antes vistos nesse mercado. A posição do

tradutor no campo se modificou. Temos, então, os autores-tradutores e o

intelectual, que também passa a exercer o papel de tradutor, como é o caso de

Paulo Rónai. A tradução desses clássicos deu à Editora Globo o prestígio

necessário para obter uma posição de destaque no campo das editoras, e os

autores-tradutores, por sua vez, tiveram papel importante na legitimação das

traduções. O próprio termo (autores-tradutores) cunhado na primeira metade do

49 VERÍSSIMO, Érico. Um certo Henrique Bertaso. Porto Alegre: Globo, 1972.

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92

século XX,50 denota que se trata de uma produção simbólica do campo, que

mostra uma distinção em relação ao tradutor comum, ou seja, trata-se de uma

categoria específica, que o coloca no mesmo grau de comparação com o autor.

Ao traçarmos uma pequena historiografia da tradução no Brasil, observamos

que as críticas em relação às traduções aumentaram na Era Vargas, e concluímos,

então, que esse aumento se deveu, também, à presença dos autores das traduções.

Assim, o crescimento da crítica em relação às traduções demonstra o valor que

elas passaram a ter naquele período histórico. É importante notar que a crítica não

é feita a qualquer tradução. Uma tradução, para ser objeto de crítica, geralmente

tem seu original já consagrado. Assim, como textos canônicos foram traduzidos

na Era Vargas por tradutores de “renome”, os autores-tradutores, a crítica passou a

demonstrar interesse por essas traduções.

Mas, por que a crítica não se interessava pela tradução até o momento dos

autores-tradutores? Bourdieu, ao falar da estrutura e do funcionamento do campo

de produção erudita, demonstra que o sistema de produção de bens simbólicos se

estrutura a partir de várias relações que acontecem entre as instâncias de

produção, de reprodução e de difusão desses bens. Desse modo, o campo de

produção se define de forma variada nas diferentes áreas artísticas e intelectuais,

como uma oposição entre um campo de produção erudita, que tem suas próprias

normas de condução, de avaliação e de legitimação de suas próprias obras, e o

campo da indústria cultural, que produz obras destinadas ao “grande público” e às

frações não intelectuais das classes dominantes. Como já assinalado, enquanto as

obras produzidas pelo primeiro campo encontram seu reconhecimento no próprio

campo, já que os produtos são direcionados aos próprios produtores de bens

50 ROLIM, Lia. Práticas de tradução no Ocidente: uma retrospectiva histórica. Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio, Rio de Janeiro, 2006.

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simbólicos, ou seja, seus pares artísticos e frações intelectuais das classes

dominantes, as obras da indústria cultural esforçam-se por atingir na concorrência

do mercado o seu reconhecimento e avaliação.

Conforme Bourdieu, à medida que o campo de arte se autonomiza, dá-se o

desenvolvimento de uma indústria cultural que coincide com o aumento do

número de potenciais consumidores das obras produzidas, graças também ao

acesso de maior parcela da população ao ensino elementar, organizando-se um

mercado de bens intelectuais. Notamos, entretanto, a representação dos autores

como “criadores únicos e insubstituíveis”, ao passo que o tradutor não tem o

mesmo status, uma vez que a tradução é vista como cópia, e não como criação.

Assim, a existência desse artista autônomo, criador de obras únicas e

insubstituíveis, não encontra correspondência na tradução, exceto quando o

tradutor é legitimado no campo literário.

Acreditamos que seja possível, a partir dessa oposição entre o campo da

produção erudita e o campo da indústria cultural, entender principalmente a

estruturação e o funcionamento do campo, bem como as relações internas entre os

produtores, a representação que eles produzem entre si e entre eles e o campo, e a

lógica de execução, concepção e estruturação dos bens produzidos. Sob essa ótica,

no espaço social da tradução, há de se fazer uma distinção entre traduções

produzidas para atender à indústria cultural, dependente do mercado, e as

traduções de obras consagradas, como Em busca do tempo perdido. Assim o

tradutor, de obras pertencentes ao campo da indústria cultural tenderia a ser

menos valorizado que o tradutor de obras ligadas ao campo da produção erudita.

Para os críticos, é mais interessante comentar traduções de obras consagradas,

principalmente as elaboradas por autores-tradutores, como Mario Quintana, por

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94

exemplo, do que as traduções de um tradutor qualquer, uma vez que a valorização

do produto, ou seja, dessas traduções, agregaria valor também a esses produtores

das instâncias de legitimação, ou seja, aos críticos.

Dentre as críticas publicadas à época da tradução de Mario Quintana,

destaca-se uma seção de crítica de tradução de 1944 a 1946 no jornal carioca

Diário de Notícias, intitulada “À margem das traduções”, a qual, com as iniciais

C.T. (supostamente Crítico de Traduções), era assinada por Agenor Soares de

Moura. O anonimato serviria para protegê-lo de uma tarefa nada fácil, ou seja,

criticar as traduções desses consagrados escritores da literatura brasileira. Outro

crítico que se destaca é Paulo Rónai. Também escritores como João Cabral de

Melo Neto e Manuel Bandeira se dedicaram às críticas de traduções. Assim, a

crítica corrobora a circularidade dos valores de determinadas traduções.

Em relação à instância de recepção, observamos, no Capítulo 1, como uma

série de transformações permitiram a formação de um público leitor que viria a se

tornar consumidor dessas traduções. Assim, na Era Vargas, o aumento da

escolaridade e o crescimento econômico do País proporcionaram o fortalecimento

de um público leitor fortemente incrementado pelo surgimento de editoras de

porte, tais como Globo e José Olympio, com suas coleções hierarquizadas do mais

“popular” ao mais “erudito”. O público leitor aceita e reconhece o valor das

traduções por meio da circularidade dos valores a elas atribuídos.

As instâncias do campo de produção literária cooperam para consagrar

traduções que passam a ser consideradas como boas traduções, ou, como no caso

aqui abordado, como tradução “imortal” ou “definitiva”. Pascale Casanova (2002)

afirma que o tradutor é uma das instâncias a situar no espaço literário mundial. De

sua posição dependerá a operação da tradução efetuada, a posição do texto (ou do

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95

autor) traduzido, ou seja, seu grau de legitimidade. Ressalta, ainda, ser a tradução

uma das formas de transferência de capital literário e que, assim sendo, o valor da

tradução e seu grau de legitimidade dependerão do capital linguístico-literário do

tradutor e do capital linguístico-literário da língua de chegada, além do grau de

legitimação do editor, do prestígio da coleção ou da revista em que o texto

traduzido aparece. Pode-se afirmar, então, que da posição do mediador no campo

nacional, da posição da língua-alvo e, secundariamente, da posição do editor

dependerá o grau de legitimidade do livro traduzido: “Quanto maior o prestígio do

mediador, mais nobre é a tradução, mais ela consagra.”51 Assim, compreender o

papel do tradutor supõe inseri-lo em um conjunto. O tradutor não é um

consagrador único, ele se encontra em uma cadeia complexa de mediadores, que

compreende agentes literários, editores, críticos etc.

A respeito dos tradutores, Pascale Casanova (2002) observa que alguns

podem ser nomeados de “consagradores consagrados”, que ela denomina,

também, “consagradores carismáticos”, cujo poder de consagração depende do

grau de sua própria consagração. São os que consagram de uma maneira pessoal,

em oposição aos “consagradores institucionais”, que seriam os pertencentes a

instituições acadêmicas ou escolares. Segundo a autora, no caso dos tradutores

“consagradores carismáticos”, que podem ser escritores, intelectuais respeitados,

por exemplo, a tradução já seria por si mesma uma consagração e não precisaria

ser legitimada nem por comentários nem por análises ou prêmios; ao passo que,

sendo o tradutor pouco dotado ou desprovido de capital específico, ou seja, com

pouca consagração, a operação de troca de capital seria, então, transferida a outros

mediadores mais dotados, como os prefacistas, analistas e críticos prestigiados.

51 CASANOVA, Pascale. Consécration et accumulation de capital littéraire: la traduction comme échange inégal. Paris: Actes de la Recherche en Sciences Sociales, 2002. v. 144, p. 17.

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96

Como o tradutor não apresenta, nesse caso, um capital necessário à consagração

da tradução, a legitimação dessa tradução é embasada por outros protagonistas do

espaço literário. A cadeia depende, de um lado, da posição do tradutor, do grau de

legitimidade inicial conferido pela própria tradução, e, de outro, de seu lugar de

publicação.

Nessa perspectiva, conforme observamos, alguns tradutores, segundo

Pascale Casanova, podem ser nomeados de “consagradores consagrados” ou

“consagradores carismáticos” e seu poder de consagração depende do grau de sua

própria consagração, ou seja, os tradutores que consagram de uma maneira

pessoal – como é o caso do escritor Mário Quintana. No campo, dentre outros

fatores, a consagração de uma tradução depende da posição que o tradutor ocupa,

isto é, de seu posicionamento como agente no campo de produção. Isso é

importante, porque tal posição determina o significado do trabalho do tradutor e

das práticas, dos esquemas e dos princípios técnicos envolvidos na produção,

capazes de, pela circularidade e pela reciprocidade de reconhecimento no campo,

explicitar a posição desse tradutor, tanto nesse campo quanto na hierarquia

cultural da sociedade. Sob essa ótica, a consagração de uma tradução depende da

posição desse tradutor pertencente ao campo e de suas relações com as instâncias

de legitimação e de consagração. Isso explica por que uma posição mais ou menos

consagrada ou legítima de um tradutor reveste a tradução de um reconhecimento

maior ou não. Assim, uma tradução assinada por Mário Quintana, tradutor

consagrado no campo da tradução, apresenta mais possibilidades de

reconhecimento do que uma tradução elaborada por outro tradutor em busca de

reconhecimento.

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97

Entretanto, como afirma Bourdieu, nunca podemos expor a posição de um

agente no campo sem admitir os vetores de força que partem de outros integrantes

em diversas instâncias. Observaremos, assim, que as instâncias de legitimação

apontam a relevância que determinado tradutor tem ou não no campo,

estabelecendo uma aceitação por todos. Nessa relação, os mecanismos sociais – a

origem social, a formação familiar e cultural – podem orientar os produtores para

certa posição no campo.

Notaremos, também, uma reduplicação da consagração do autor do original

em relação ao tradutor. Assim, ao traduzir Proust, autor consagrado, Mário

Quintana também busca sua própria consagração, ocorrendo, assim, uma espécie

de transferência de prestígio do autor para o tradutor, uma vez que Proust constitui

esse artista autônomo, criador de obras únicas e insubstituíveis.

Segundo Bourdieu (2001), pode-se mostrar uma “espécie de harmonia

estabelecida entre o habitus do criador e a posição que ele ocupa no campo, isto é,

a função que lhe foi atribuída, embora ele a tenha, aparentemente, produzido”. Por

isso, entrevistas de Mário Quintana serão utilizadas neste recorte, em cujos

enunciados verificaremos seu domínio da língua francesa, aspectos biográficos

que demonstram como se deu sua relação com a língua e a cultura francesas, o

que ele pensa sobre o ofício da tradução, o que fala sobre os autores que traduziu,

em especial Proust, bem como sua relação com seus pares consagrados ou não

consagrados.

Agora, nos debruçaremos sobre as evidências da consagração pelo ponto de

vista da instância de produção, especificamente enfocando o autor-tradutor Mário

Quintana. Esse conjunto de evidências abrange: (i) entrevistas com Mário

Quintana; (ii) críticas e resenhas em suplementos culturais que tecem

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98

considerações sobre essa tradução; (iii) opiniões e considerações em blogs

dedicados à atividade literária; e (iv) capas de livros em que é exposto o nome

(assinatura) de Quintana. Embora também se constituam em evidências da

consagração da tradução de Quintana, as traduções mais recentes dessa obra de

Proust serão apresentadas no próximo capítulo, visto que necessitam de melhor

análise no que se refere à luta constante por legitimidade diante de uma tradução

já consagrada tal como a de Quintana.* Veremos que essas novas traduções

somente reforçam a consagração de Quintana, uma vez que elas, em busca de

legitimidade, se demarcam em relação à tradução “definitiva” da Editora Globo.

3.2.1 O FRANCÊS E A ORIGEM FAMILIAR DE QUINTANA

Podemos observar que a origem familiar e social de Quintana lhe confere

distinção como autor-tradutor que conhece e manuseia a língua francesa desde o

âmbito familiar. Assim, nesse recorte, observaremos que Mário Quintana valoriza

em seu discurso a importância da língua francesa no mundo, que, embora

estivesse perdendo a condição de língua hegemônica mundial para a língua

inglesa, manteve seu status de língua relacionada com a produção cultural –

artística e intelectual. Ao fazê-lo, Quintana denota o valor de distinção da língua

que ele mesmo domina. Além disso, ressalta a importância do francês como

língua de tradução, uma vez que importantes obras da literatura mundial puderam

ser lidas graças às traduções francesas, citando principalmente a tradução do russo

para o francês. * A primeira tradução é de Fernando Py. PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004. A segunda tradução terá a assinatura de Mario Sergio Conti, e seu primeiro volume será lançado ainda neste ano 2012 pela Editora Companhia das Letras.

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A seguir, em suas entrevistas, notaremos como a origem familiar e social de

Quintana lhe permite se distinguir como um autor-tradutor que conhece

profundamente a língua da qual traduz. Mário Quintana revela sua estreita ligação

com a língua francesa, idioma que aprendeu desde muito cedo, em casa.

Minha mãe lecionava francês. Aprendi com meus pais, naquele tempo todo mundo falava francês, fazia parte da educação das moças: estudar piano, estudar pintura e falar francês. Acho uma coisa muito engraçada. Eu me lembro que, quando houve uma revolução lá em Alegrete, foi feita quase toda em francês – as senhoras iam visitar as madames e se comunicavam em francês para os criados não saberem o que é que se estava tramando.52 (grifos nossos) [...] o francês era moda e a minha mãe era professora de francês. Então, quando a gente, por exemplo, não queria que os empregados soubessem o que a gente estava dizendo, aí se falava em francês. Grande parte da revolução de 23, por exemplo, foi preparada em francês, porque se reuniam as senhoras dos oficiais para tomarem chá e comunicavam as coisas todas em francês. Imagine que na minha terra, em Alegrete, se fez revolução em francês.53 (grifos nossos) [...] Meu pai foi conspirador da revolução de 23. Então, para os criados não entenderem as conspirações e também as coisas íntimas, falava-se em francês.54 (grifo nosso) A culpa foi também de meu pai, que adorava La Fontaine e me fez decorar algumas de suas fábulas antes que eu as pudesse ler. Assim as névoas e perigos do Cabo Tormentório eram varados pelo riso claro e simples do bonhomme fabulista. Não admira, pois, que, mais tarde, eu adorasse Racine, a par de Shakespeare.55 (grifos nossos)

É interessante notar que Quintana demonstra como aprendeu francês dentro

de casa com a família, algo que não era acessível a qualquer família. Toda família

ocupa uma posição no espaço social. Ao receber uma educação ligada a uma

posição de determinada classe, Mário Quintana reproduz de maneira espontânea,

em seus pensamentos e palavras, as relações sociais existentes no momento da

aprendizagem. Observamos que Quintana relaciona a aprendizagem da língua

52 PENA AZUL DE LITERATURA E ARTE. Entrevista a Hermes Rodrigues Nery. Disponível em: <http://medei.sites.uol.com.br/penazul/geral/entrevis/quin.htm>. Acesso em: 17 ago. 2010. 53 REVISTA TERRA. Entrevista com Mario Quintana. Disponível em: <http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI1090046-EI6595,00.html>. Acesso em: 9 maio 2010. 54 PENA AZUL DE LITERATURA E ARTE. Entrevista a Hermes Rodrigues Nery. Op. cit. 55 Entrevista concedida a Edla van Steen e publicada no livro Viver & escrever. Porto Alegre: L&PM, 2008. v. 1.

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francesa com a de outras artes. Assim, o francês constitui um elemento de

distinção ligado às artes, tais como a pintura e a música. O francês é citado como

uma língua não acessível aos empregados, logo, como elemento de distinção de

determinada classe social. Em várias entrevistas compiladas, Quintana repete essa

mesma história, ressaltando sempre que sua relação com a língua francesa se deu

desde a infância, que sua mãe era professora de francês e que o francês era falado

em sua casa, o que pode ser confirmado nos exemplos a seguir, nos quais a

palavra “francês” se repete inúmeras vezes. Assim, ao ressaltar todo o tempo a

importância da língua francesa e de como foi influenciado por ela, Quintana se

demarca como legítimo conhecedor da língua e da cultura francesas.

A França era a capital literária do mundo. Eu, quando estava na farmácia do velho, tinha conta numa livraria francesa. Eles mandavam os boletins e eu encomendava. Tudo vinha direto de Paris para Alegrete.56(grifos nossos) [...] francês era o veículo literário do mundo naquele tempo, e até há pouco tempo. E nós devemos muito ao conde de Belchior de Vogué, que traduziu os russos. Se os russos não tivessem sido traduzidos para o francês nós desconheceríamos Dostoiévski até hoje. O que é desconhecer uma terça parte da alma humana. Porque a alma humana está dividida em três partes, uma em Shakespeare, outra na Bíblia, outra em Dostoiévski. Pelo menos para mim.57 (grifo nosso) O que devemos à França não é a cultura francesa, é a cultura universal. Toda obra, para universalizar-se, teria de passar pelos tradutores franceses. (grifo nosso)58

Em outra entrevista, percebe-se a própria valorização a partir do domínio de

uma língua hegemônica como o francês. Quintana se demarca como leitor de

autores franceses, por quem demonstra profunda admiração, mostrando a estreita

ligação com a literatura francesa, identificando-se com Appollinaire e Verlaine, o

que lhe traz capital simbólico como autor e tradutor. Assim, Quintana, ao se

demarcar como conhecedor da língua e da cultura francesas, angaria prestígio.

56 REVISTA TERRA. Entrevista com Mario Quintana. Op. cit. 57 PENA AZUL DE LITERATURA E ARTE. Entrevista a Hermes Rodrigues Nery. Op. cit. 58 Id.

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Fala de um lugar próprio, uma vez que seu capital cultural lhe dá o direito de falar

desse lugar.

A gente sempre admira o que mais se parece com a gente, não é? O que mais se parece comigo ou com quem mais eu me pareço foi Guilhaume Appollinaire, e outro que a gente não pode deixar de admirar é o mestre dos simbolistas, o Verlaine. Os outros são discípulos, seguidores, continuadores.

Uma estratégia acionada por Mário Quintana para valorizar seu

conhecimento da língua francesa consistiu em desmerecer a língua inglesa, bem

como a literatura norte-americana. O objetivo de tal estratégia estava em valorizar

o conhecimento que tinha, o que está evidenciado no exemplo a seguir, quando,

ao ser interpelado pelo entrevistador, defende invariavelmente a língua francesa:

Não posso esquecer que minha infância se passou na belle époque, quando até os americanos sabiam falar francês. Tenho uma amiga que foi para a Alemanha apenas sabendo francês [...]. Aproveito a ocasião para lançar o meu protesto contra essa ideia de tirarem a língua francesa do currículo escolar. (grifo nosso)

Quintana reivindicava que o francês voltasse ao currículo escolar, por isso,

podemos apreender que o francês fazia essencialmente parte desse currículo no

Brasil. Exemplos da estratégia de “desmerecimento” da língua inglesa e da cultura

norte-americana estão evidenciados a seguir:

[...] Mas a minha queixa é contra os americanos. Já disse e repito que, se há males que vêm para bem, há bens que vêm para mal. Exemplo: os Estados Unidos ganharam a guerra. Resultado: o povo, em geral, só lê os best-sellers americanos que eles nos impingem. São tão ruins que chego a acreditar que sejam apenas literatura de exportação [...]59

Ao ser indagado se gosta da literatura norte-americana, Quintana responde:

[...] gosto de Scott Fitzgerald, o que não é de admirar porque ele pertence à minha geração: o mesmo caldo de cultura, a mesma sensibilidade. Gosto de Edgar Poe, e eu não compreendo como é que ele foi aparecer por lá. Deve ter havido um engano de país ou de planeta.

59 Entrevista concedida a Edla van Steen e publicada no livro Viver & escrever. Op. cit.

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Ao desmerecer a língua inglesa, que passava a prevalecer, Quintana revela

que se distinguia como conhecedor da língua francesa, o que acabou lhe rendendo

o cargo de tradutor da Editora Globo, a convite de Érico Veríssimo, valorizando,

assim, seu capital cultural:

Como há males que vêm para bem, os Estados Unidos ganharam a guerra, e eu com ela. Todo mundo começou a estudar inglês – como ainda hoje –, mas o Érico (Veríssimo) lembrou que eu era o único conhecido que falava francês e me chamou para a Editora Globo.60 (grifo nosso)

3.2.2 A POSIÇÃO TRADUTIVA “VISÍVEL” DE QUINTANA

A posição que um tradutor ocupa no campo da tradução, isto é, seu papel de

agente na produção, interessa-nos, uma vez que determina o significado do

trabalho do tradutor e das práticas – esquemas e princípios técnicos – envolvidas

na produção, capazes de, pela circularidade e reciprocidade de reconhecimento no

campo, explicitar a posição de determinado agente tanto nesse campo quanto na

hierarquia cultural da sociedade. Observemos, portanto, na prática, o

funcionamento nesse campo de produção, juntamente com os outros integrantes

do espaço da tradução.

No capítulo anterior, discutimos as tendências ao etnocentrismo nas

traduções e a invisibilidade do tradutor. Observamos que a noção corrente é de

que “o tradutor nunca pode fazer o que o original fez”, e que, dessa maneira, a

tradução é vista como cópia de um original, este, sim, tido como produto raro,

produzido por um criador único, o autor. Segundo Venuti, ao realizar uma

tradução etnocêntrica, o tradutor, ao tentar apagar os traços da tradução, acabaria

60 QUINTANA, Mario. Instituto Estadual do Livro. Mario Quintana. Autores Gaúchos, Porto Alegre: IEL/ULBRA/AGE, 1996.

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103

ele mesmo por apagar-se. Venuti afirma que o tradutor deve utilizar como

estratégia de tradução o não apagamento dos traços da cultura de partida, a fim de

que sua figura não seja também apagada, o que é defendido, também, por Lenita

Esteves:

A partir do momento em que se aceitar de forma geral a ideia de que o tradutor interfere no texto que traduz; que, em resumo, ele não é invisível, ele assumirá também responsabilidades mais sérias em relação a esse texto. O que aconteceu tempos atrás com a noção de autoria pode ser aplicado para a tradução. Se o tradutor interfere no texto que produz, o que considero inevitável, ele também é um pouco responsável por ele. É preciso que se tenha um rigor, um cuidado ao traduzir que muitas vezes não se tem. Assim como a tradução não pode ser qualquer coisa, o tradutor não pode ser qualquer tradutor.61

Seria possível ao tradutor fazê-lo de forma consciente? Poderia qualquer

tradutor fazer evidenciar a cultura da língua de partida e não se apagar?

Acreditamos que esse apagamento da figura do tradutor constitua uma produção

simbólica do campo, que mostra quem é valorizado ou não dentro dele. Assim,

não depende unicamente da vontade do tradutor que ele seja visível; essa

visibilidade dependerá do seu nível de consagração, determinado pelo campo.

Na evidência a seguir, Quintana concebe uma boa tradução, aquela que

segue o estilo do autor, definindo, desse modo, o que seria sua concepção de uma

boa tradução:

Aquela que segue o estilo do autor, e não o do tradutor. Os períodos de quadra e meia de Proust (sim, o período dele dava volta na quadra) não poderiam ser divididos em pedacinhos, por amor da clareza ou coisa que o valha, como acontece às vezes na tradução castelhana.62 (grifos nossos)

Desse modo, Quintana não somente se demarca como um tradutor não

etnocêntrico, como também critica quem faz uma tradução nos moldes

etnocêntricos, ao afirmar que os períodos de Proust “não podem ser divididos em

61 ESTEVES, Lenita M. R. Tradução fiel: a quem? A quê? Por quê?. p. 12. Disponível em: <http://www.lenitaesteves.pro.br/MicrosoftWord-fielaquem.DOC.pdf>. Acesso em: 24 ago. 2011. 62 Entrevista concedida a Edla van Steen e publicada no livro Viver & escrever. Op. cit.

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pedacinhos por amor à clareza ou coisa que o valha”. Na estratégia de Quintana,

não há preocupação em facilitar a vida do leitor, que se evidencia na maneira

“literária”, e não “literal”, de sua tradução, conforme afirma:

Há sempre uma diferença entre tradução literal e tradução literária. Creio que a tradução de um autor é, nada mais, nada menos, a estreia desse autor na literatura da língua para a qual ele foi traduzido. Daí, a responsabilidade enorme de traduzir um Proust, um Voltaire, gente assim.

Os críticos parecem corroborar essa ideia:

Ao longo deste trabalho recorreremos à tradução de Em busca do tempo perdido publicada pela Editora Globo; tradução que recebe, nos quatro primeiros volumes dos 7 que compõem a edição brasileira, a assinatura do poeta Mário Quintana. A recorrência, nesta comunicação, ao texto traduzido, em lugar daquele em francês, justifica-se, inicialmente, pela alta qualidade da tradução de Quintana e dos demais responsáveis pelos três volumes finais. Quintana traduziu Proust à maneira de Proust, respeitando aqueles períodos do romancista que dão volta e meia na página.63 (grifos nossos)

Em suas entrevistas, Mário Quintana se posiciona como tradutor,

demonstrando sua relação com a tradução e com o ofício de escrever: “Mas, como

eu ia dizendo, traduzia porque gostava daqueles livros. E quanto mais difícil o

livro, mais eu gostava”64 (grifos nossos).

Em outro trecho, afirma que começara a traduzir desde muito cedo, sem

compromisso profissional. Essa relação com a tradução está ligada a um

constructo social mais valorizado, pois remete a uma forma “natural”, portanto,

“genuína”, do ofício de traduzir, especificamente obras do francês: “Cheguei a

começar por conta e risco uma tradução da Ifigênia, de Racine, e do Sonho de

63 ANAIS do V Congresso de Ciências Humanas, Letras e Artes da Ufop. Disponível em: <http://www.ichs.ufop.br/conifes/anais/LCA/lca2602.htm>. Acesso em: 20 abr. 2010. 64 CASA DE CULTURA MARIO QUINTANA. Disponível em: <http://www.estado.rs.gov.br/marioquintana>. Acesso em: 10 ago. 2009.

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uma noite de verão, as quais infelizmente se perderam. Ou felizmente, nunca se

sabe.”65

Mário Quintana valoriza a tradução e o ofício do tradutor; contudo, não

menciona a tradução de escritores menos renomados, mas as traduções de

escritores consagrados, e especialmente da língua francesa, e, ao fazê-lo, valoriza

a si mesmo, como observamos no exemplo a seguir, já citado anteriormente:

Há sempre uma diferença entre tradução literal e tradução literária. Creio que a tradução de um autor é, nada mais, nada menos, a estreia desse autor na literatura da língua para a qual ele foi traduzido. Daí, a responsabilidade enorme de traduzir um Proust, um Voltaire, gente assim. (grifos nossos)

No enunciado seguinte, o entrevistador qualifica Quintana de um tradutor de

“obras clássicas”. Já na indagação do entrevistador se abre a possibilidade de

Quintana responder a essa pergunta valorizando a mística de Proust como autor de

difícil tradução:

– E como foi traduzir Proust? (pergunta do entrevistador) – Foi uma coisa horrível. Mas eu gostei, exatamente por causa da dificuldade. A dificuldade é uma coisa que pode cansar, mas é o mesmo que a ginástica, faz bem. [...] Uma barbaridade traduzir aqueles períodos que dão volta na esquina e não se sabe onde vão parar. (resposta de Quintana)66 (grifos nossos)

Percebe-se que Mário Quintana cita os autores “imortais” por ele traduzidos,

tais como Merimée, Voltaire e Proust, o que lhe rende capital simbólico.

Observamos, também, a maneira como Quintana se utiliza da mística de Proust,

como “gente assim”, “que não é brinquedo”, “difícil”, para valorizar seu próprio

trabalho – uma empreitada de “dificuldade” que, segundo ele, pela qual há de se

ter amor, de grandes proporções, e que não há dinheiro que pague. Amealha,

assim, consagração ao se colocar como tradutor de obras tidas como difíceis: “[...]

65 Entrevista concedida a Edla van Steen e publicada no livro Viver & escrever. Op. cit. 66 QUINTANA, Mario. Instituto Estadual do Livro. Mario Quintana. Autores Gaúchos, Porto Alegre: IEL/ULBRA/AGE, 1996.

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106

De maneira que é uma enorme responsabilidade. Olha que eu traduzi Proust, o

que não é brinquedo. E traduzi Voltaire, traduzi Merimée, traduzi esta gente

assim”67 (grifos nossos).

3.2.3 AFIRMAÇÕES DE AMOR À TRADUÇÃO E DE ABNEGAÇÃO DOS LUCROS FINANCEIROS

A seguir, podemos verificar que, em algumas entrevistas, Mário Quintana se

mostra como tradutor abnegado, tal como um autor que trabalha por “amor à

arte”, na medida em que não busca lucros financeiros: “Traduzi Proust por amor à

dificuldade da tradução. Quando soube que Proust estava incluso no programa

editorial da Globo, pedi para traduzi-lo, por medo que caísse em outras mãos”

(grifos nossos).

Ao afirmar ter traduzido por “amor”, Quintana demarca-se em relação a um

“tradutor comum” que tira da tradução seu sustento. Antes, coloca-se na posição

de artista “abnegado”, interessado na “arte pela arte”. Como se a associação entre

arte e dinheiro não pudesse ser feita. Assim, lança mão do que Bourdieu chama de

denegação, ou seja, negar um lucro material, a fim de colher capital simbólico.

Afirma, também, ter traduzido Proust por “medo que caísse em outras mãos”.

Desse modo, coloca-se como um tradutor interessado pela arte, sem interesse

material, o que podemos comprovar ainda no exemplo a seguir, no qual afirma

que até “pagaria” para traduzir Proust:

Antes de tudo, Proust foi para mim um trabalho e um prazer ao mesmo tempo, porque olha que traduzir Proust... Ele tem períodos enormes que dão volta na página e eu devia traduzir preservando a mesma clareza do original. Tanto que

67 PENA AZUL DE LITERATURA E ARTE. Entrevista a Hermes Rodrigues Nery. Op. cit.

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107

comentei com o Érico Veríssimo, que dirigia o setor de traduções da Editora Globo: “Estou gostando tanto de traduzir o Proust que, se eu tivesse dinheiro, eu é que pagava para vocês”. [...]68 (grifos nossos)

Quintana não fala da tradução de uma obra qualquer, mas de uma obra de

Proust, autor consagrado e tido como difícil de ser traduzido. Ao afirmar que

traduzira Proust “por amor”, ele se coloca como artista abnegado, sem interesse

material, associando a tradução a um trabalho artístico. Quintana se contradiz,

uma vez que, na mesma entrevista, afirma ter pedido demissão da Editora Globo

por não ter sido contemplado com aumento salarial:

Retirei-me do quadro de funcionários da Globo quando, por ocasião de um aumento de salário, eu não fui contemplado, sob a alegação de que me demorava muito na tradução de Proust. Traduzi da primeira até a quarta parte (Sodoma e Gomorra).69 (grifos nossos)

O que é corroborado em outra entrevista, na qual Quintana demonstra sua

insatisfação por não ter recebido aumento. Como fora informado de que tal fato se

devera à demora em fazer a tradução de Proust, demonstra indignação, afirmando

que deveria levar tanto tempo para traduzir quanto Proust levou para escrever.

Assim, Quintana se demarca como um tradutor diferenciado, não um tradutor

qualquer, colocando-se na posição de autor. Notamos que suas afirmações acerca

do seu “amor” à tradução em oposição ao tradutor comum o direciona para uma

posição mais ousada e consagrada dentro do campo da tradução.

Quando houve o primeiro aumento geral, fui o único a não ser aumentado. Naturalmente, tomei satisfações. A resposta que me deram foi que eu levava muito tempo na tradução. “Você, afinal, levou quatro meses para traduzir um volume.” Ora, eles não compreendiam que eu tinha que demorar tanto tempo quanto Proust levara para escrever o original, para fazer uma tradução digna. Queriam que eu traduzisse com a mesma velocidade com que traduzia romances sem civilização nenhuma, ditados para uma estenógrafa em uma semana. Por causa disso,

68 CASA DE CULTURA MARIO QUINTANA. Disponível em: <http://www.estado.rs.gov.br/marioquintana>. Acesso em: 10 ago. 2009. 69 Id.

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108

abandonei minhas funções de tradutor na Globo e fui trabalhar no Correio do Povo.”70 (grifos nossos)

Podemos observar que há uma reduplicação da consagração do autor do

original em relação ao tradutor. Assim, ao traduzir Proust, autor consagrado,

Mário Quintana também se consagra, ocorrendo, assim, uma espécie de

transferência de prestígio do autor para o tradutor. Proust se constitui nesse artista

autônomo, criador de obras únicas e insubstituíveis, que valida no campo de bens

artísticos a constituição de um campo de produção erudita, caracterizado por uma

autonomia em conduzir as operações de produção, avaliação e legitimação dentro

do próprio campo.

Na entrevista que segue, Quintana afirma que não se dá valor ao trabalho do

tradutor. É interessante notar que elogia apenas os pares consagrados, por meio

dos quais possa alcançar mais prestígio: Bandeira e Drummond, não citando Lúcia

Miguel Pereira, que traduziu O tempo redescoberto em 1956:

Não se dá valor ao trabalho do tradutor. Isso sempre me deixou indignado. A tradução é uma coisa muito séria. [...] Eu traduzi quatro volumes do Proust. Os outros foram traduzidos por Manuel Bandeira e por Carlos Drummond de Andrade. Fiquei em ótima companhia e acho que Proust não pode se queixar da gente, pelo menos da parte do Bandeira e do Drummond.71 (grifos nossos) O fato de citar apenas Drummond e Bandeira nos leva a algumas reflexões.

Pierre Bourdieu (1998), ao tentar definir as regras próprias à criação artística,

analisa a configuração do campo intelectual francês no final do século XIX,

período no qual, segundo o autor, esse campo atinge o seu maior grau de

autonomização. Nesse período, as transformações sociais decorrentes do

desenvolvimento das forças produtivas desestabilizavam a posição do artista, que

70 REVISTA TERRA. Entrevista com Mario Quintana. Op. cit. 71 GOVERNO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Disponível em: <http://www.estado.rs.gov.br/marioquintana/entrevistas/Entrevista%20com%20Patricia%20Bins>. Acesso em: 17 abr. 2010.

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109

era, então, obrigado a optar entre servir ao mercado e aos salões da burguesia e

engajar-se nas causas políticas. Bourdieu cita como exemplo o poeta francês

Charles Baudelaire, que teria percebido como nenhum outro a nova configuração

do campo intelectual, ou seja, a de que o “verdadeiro” valor do escritor não seria

garantido por seu empenho na esfera política ou pelo mercado, nem estaria

associado à volta a um mecenato aristocrático nos moldes do século XVIII, mas,

sim, pelo reconhecimento de seus pares. Esse reconhecimento não seria imediato,

mas a longo prazo, e, dentro desse processo, o papel da crítica seria

importantíssimo.

3.2.4 MÍSTICA DO “ACASO” NO OFÍCIO DA TRADUÇÃO – HISTÓRIAS FOLCLÓRICAS SOBRE A TRADUÇÃO DE PROUST – AS CAPAS

A consagração da tradução de Mário Quintana se evidencia pela

circularidade de valores no campo. Ao analisarmos os relatos em relação à

maneira como Quintana traduzia, constatamos uma idealização do ato da

tradução, feita com “despojamento”, sem “pompa ou solenidade”. O que é

corroborado no exemplo a seguir:

Examinando mais de perto o trabalho que Quintana executava e constatando a excelência da tradução, Broca exclamou algo como: “É incrível, como você consegue fazer?”, ao que Quintana respondeu sorrindo, ao mesmo tempo em que acendia um novo cigarro: “Com o primeiro da série Em busca do tempo perdido, tive alguma dificuldade. Agora, as coisas estão bem mais fáceis.”72

Algumas histórias são contadas a respeito da famosa tradução de Proust.

Essas histórias sobre a tradução de Quintana para a obra de Proust não são

72 Artigo de Elias Pinto. Jornal Diário do Pará. 25 fev. 2007. Disponível em: <http://www.achanoticias.com.br/noticia.kmf?noticia=5830965>. Acesso em: 19 mar. 2010.

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110

gratuitas e, além de denotarem a consagração do tradutor, constituem uma

reduplicação dessa consagração, uma vez que, pela circularidade do campo, ao

falar da relação de Quintana com a tradução, o crítico ou o jornalista também se

consagram. Ora, o que poderiam ser apenas histórias pitorescas sobre a tradução,

na verdade, são evidências da consagração de Quintana como tradutor. Somente

um tradutor consagrado teria histórias comentadas a respeito da tradução de

Proust, que chegam a soar como folclóricas, como as que passamos a relatar.

No começo da década de 1950, em visita à editora, o crítico Brito Broca,

autor de A vida literária no Brasil de 1900, observara Mário Quintana traduzir

Proust “como se estivesse copiando um texto numa folha de papel almaço. Ficou

impressionadíssimo”, conta José Otávio Bertaso no livro A Globo da Rua da

Praia. “Os longos períodos proustianos eram traduzidos por Quintana sem a

menor hesitação. Decerto, para os padrões do eixo Rio–São Paulo, uma tradução

de Marcel Proust deveria revestir-se de toda pompa e solenidade, e não do

despojamento e da facilidade aparente com que Mário Quintana procedia.”73

Alguns fatos que cercam a tradução de Em busca do tempo perdido chegam

a ser citados como atípicos, como veremos no exemplo a seguir, relatado por um

crítico e que foi tratado por ele como “Proust no galinheiro”:

Doutra vez, em seu quarto de pensão, traduzindo um dos volumes de Proust, o poeta deixou sobre a mesa mais da metade de sua produção cuidadosamente manuscrita e esqueceu a janela aberta. Voltando de madrugada de mais uma noite de boemia, se deu conta de que uma súbita ventania, seguida de uma forte chuva, havia espalhado pelos pátios de sua pensão e galinheiros circunvizinhos mais de duzentas laudas de seu trabalho. Outras evidências mostram que a consagração da tradução de Quintana de

Em busca do tempo perdido somente cresce com o tempo. As capas das traduções

da obra de Proust pela Editora Globo, por exemplo, constituem prova disso.

73 Ibid.

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111

Fig. 2. Imagem da capa de No caminho de Swann, a primeira edição de 1948 do primeiro volume de Em busca do tempo perdido.

Na primeira tradução, datada de 1948 (Fig. 2), observamos que o nome de

Mário Quintana não apareceu na capa, apenas na folha de rosto. Tal fato

demonstra que o autor-tradutor já apresentava certa consagração que permitia a

citação de seu nome como tradutor em um local de relativo destaque. Entretanto,

essa consagração ainda não era suficiente para figurar na capa da obra – local

destinado, em princípio, apenas ao nome do autor da obra original. Essa situação,

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112

da ausência do nome de Quintana na capa das traduções, se repetiu nas décadas de

1950 (Fig. 3) e 1960, isto é, seu nome ficou reservado à folha de rosto.

Fig. 3. Imagem da capa de No caminho de Swann, edição de 1956.

Ao longo das sucessivas traduções, nos anos 1950, notamos que seu nome

ainda não consta da capa. Tal fato nos permite afirmar que nomes de tradutores

nas capas, mesmo autores-tradutores, somente ocorrem após um processo de

duradoura consagração.

A próxima capa data do ano 1981. Notamos que o nome de Quintana

aparece nela; entretanto, em letras menores, na parte inferior e longe do título e do

nome do autor (Fig. 4).

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113

Fig. 4. Imagem da capa de No caminho de Swann, edição de 1981.

Percebemos uma significativa mudança na imagem da capa de 1988, na qual

o nome de Quintana não somente se destaca, como também fica mais próximo ao

título – o nome do tradutor aumenta de tamanho de acordo com seu

reconhecimento (Fig. 5).

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114

Fig. 5. Imagem da capa de No caminho de Swann, edição de 1988.

Ao observarmos a capa de 2005, percebemos que a consagração se torna

gradativamente mais consolidada, na medida em que o nome do tradutor não

deixa mais de se apresentar na capa, e seu nome figura, de certa forma, próximo

ao do autor e ao título da obra (Fig. 6).

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115

Fig. 6. Imagem da capa de No caminho de Swann, edição de 2005.

Outro fato interessante e que demonstra a consagração da tradução de

Quintana é que a editora, ao lançar as histórias em quadrinhos do clássico de

Proust, faz referência ao nome dos tradutores da primeira tradução de Em busca

do tempo perdido. Em 2003, a Jorge Zahar Editora lançou uma adaptação em

quadrinhos de Em busca do tempo perdido – no caminho de Swann. O site

“Universo em Quadrinhos”, a fim de referendar a obra de Proust e mostrar a

importância que ela tem, menciona que foi traduzida para o português por Carlos

Drummond de Andrade e Mário Quintana:

Uma novidade tão inesperada quanto agradável acaba de chegar às livrarias, pela Jorge Zahar Editora. Trata-se de Em busca do tempo perdido – no caminho de

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116

Swann: Combray. Adaptação de um clássico da literatura mundial, escrito por Marcel Proust, para a linguagem dos quadrinhos.74 Para se ter noção da importância de Em busca do tempo perdido, um longo romance em sete volumes, no Brasil a obra foi traduzida por escritores como Carlos Drummond de Andrade. Para os conhecedores de Proust, no entanto, a melhor tradução para o português é de Mário Quintana, escritor, crítico e poeta gaúcho.75 (grifos nossos)

Assim, a fim de ressaltar a importância da obra de Proust que acabara de ser

lançada em quadrinhos, cita a tradução da Editora Globo e, evidentemente, os

tradutores que a consagraram. Essas evidências demonstram como as instâncias

do campo de produção literária cooperam para consagrar a tradução à medida que

há uma circularidade de valores relativos à tradução de Quintana, contribuindo

para a crença em um objeto “raro” e “insubstituível”, como a tradução de Em

busca do tempo perdido, elaborada por ele.

No próximo capítulo, veremos como o espaço da atividade da tradução no

campo da atividade literária é eficaz em sua luta por legitimidade, na medida em

que podemos observar o lançamento de outras traduções de Em busca do tempo

perdido. Uma delas foi lançada pela Editora Ediouro nos anos 1990 e elaborada

por Fernando Py; outra, a ser lançada brevemente pela Editora Companhia das

Letras, está em fase de elaboração por Mario Sergio Conti. Desse modo,

verificaremos a luta incessante por legitimidade nesse espaço social da tradução,

uma vez que o lançamento de novas traduções e a ação das instâncias de

consagração evidenciam a disputa dessas traduções posteriores com a tradução

“definitiva” de Mário Quintana.

74 UNIVERSO EM QUADRINHOS. Disponível em: <http://www.universohq.com/quadrinhos/2003/n01122003_02.cfm-01/12/2003>. Acesso em: 1 set. 2009. 75 Ibid.

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117

4 A LUTA PELA LEGITIMIDADE NO CAMPO – AS NOVAS TRADUÇÕES DE EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO

Neste capítulo, poderemos constatar como é vigoroso o funcionamento do campo

em sua busca de legitimação. Observaremos como duas novas traduções de Em busca

do tempo perdido, a de Fernando Py, lançada em 1993 pela Ediouro, e a de Mario

Sergio Conti, que deverá ter seu primeiro volume lançado em 2012 pela Companhia das

Letras, pretendem demonstrar a si próprias como legítimas diante daquela que se diz a

“definitiva”, como se intitula a edição da Editora Globo, relançada em 2006, que tem

como tradutores Mário Quintana, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e

Lúcia Miguel Pereira.

Como a tradução de Quintana inaugura a obra de Proust no Brasil, é inevitável

que se faça uma relação com as traduções posteriores. Antoine Berman (1985, p. 105),

ao refletir sobre a retradução, assinala que é necessário distinguir “dois espaços (e dois

tempos) de tradução: o das primeiras traduções e o das retraduções”. Nesse contexto,

entende Berman que as primeiras traduções não são nem podem ser as maiores. Para

esse autor, a retradução encontra-se em uma posição crítica privilegiada, que lhe

permite e, em certo sentido, obriga a constituir-se em função de um diálogo temporal e

retórico-formalmente marcado. Afirma o teórico francês que a retradução não tem

relação apenas com o original, mas com dois, ou seja, com a primeira tradução também.

Assim, quando afirma que a retradução há de se relacionar não somente com o

original, mas também com a primeira tradução, Berman demonstra como essas

traduções posteriores têm de se demarcar em relação às primeiras. No caso das

traduções posteriores à tradução de Quintana, notamos que a primeira tradução

encontra-se de tal modo consagrada no campo de produção literária que as traduções

posteriores se apresentam como pretendentes (BOURDIEU, 2001) à dominação do

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118

campo, encetando uma verdadeira luta por legitimidade no interior do campo. Como

exemplo dessa luta, apresentaremos tanto a tradução de Em busca do tempo perdido

elaborada por Fernando Py – lançada pela Ediouro em 1993 – quanto uma nova

tradução a ser lançada em 2012 pela Companhia das Letras, cuja elaboração está a cargo

de Mario Sergio Conti.

Se há quase que um consenso de que as traduções, produzidas em determinado

momento, devem sofrer modificações que as tornem “atualizadas”, a pergunta que se

faz é: qual o sentido de elaborar uma nova tradução de uma obra clássica, tal como a de

Proust, uma vez que já se tem uma tradução reconhecida como “definitiva”? Podemos

observar que, na perspectiva de funcionamento do campo de produção simbólica, tais

retraduções têm por objetivo – que vai além de atender às demandas do público – lutar

por legitimidade própria diante daquela previamente reconhecida como única. Não nos

parece que o interesse de duas outras editoras, ao lançarem nos dias de hoje a tradução

de Em busca do tempo perdido, seja o de apresentar ao público a obra de Proust.

Cremos que o mais importante para elas seja recolher prestígio, ou seja, capital

simbólico, na medida em que contariam com uma obra clássica de porte em seu

catálogo. Esse prestígio cultural amealhado pela editora lhe traz os lucros financeiros

adquiridos por possuir uma obra clássica que lhe possibilita o reconhecimento para a

venda de tantas outras obras de seu catálogo, contidas nos segmentos considerados

culturais e comerciais.

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119

4.1 A TRADUÇÃO DE FERNANDO PY

Em 1993, cerca de meio século depois do lançamento da tradução da Editora

Globo, a Ediouro lançou uma nova tradução de Em busca do tempo perdido, em sete

volumes, elaborada por Fernando Py. Em 2002, uma segunda edição, revista, foi

lançada de maneira condensada em apenas três volumes. Ora, o relançamento da

tradução de Py não foi por acaso. Nesse mesmo ano, a Ediouro adquiriu a Editora Agir,

uma das mais tradicionais do País, e assim agregou seus 3.500 títulos ao catálogo, dos

quais 600 considerados como clássicos. Dentre essas obras estão livros de reconhecidos

autores brasileiros. A Ediouro atingiu a marca de mais de 2 milhões de livros de ficção e

não ficção vendidos em 2001, posicionando-se entre as maiores editoras do País. O

ritmo dos lançamentos também foi dinâmico, com mais de 10 títulos novos lançados por

mês. No final do ano 2006, adquiriu 100% do controle acionário da Editora Nova

Fronteira. A luta dessa editora por reconhecimento se fez notar na medida em que se

propôs relançar a obra Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust. Para a tarefa da

tradução dessa obra, foi escolhido o escritor Fernando Py. A escolha desse autor

literário não foi aleatória, pois Fernando Py é poeta, colunista, crítico literário e

tradutor. Reconhecido articulista, colabora em diversos jornais, entre eles O Globo,

Jornal do Brasil, Jornal da Tarde, Estado de Minas e Correio do Povo. Sua biografia

mostra, de modo similar à de Quintana, um relacionamento com a língua francesa desde

a infância em um colégio fundado por professoras belgas. De sua origem familiar, além

da língua francesa, fazia parte a língua espanhola. Além disso, em seus estudos

primários também aprendeu a língua inglesa.

Sua atividade como tradutor inclui vários tipos de obras, tais como as

enciclopédias (Grande Enciclopédia Delta Larousse e a Enciclopédia Mirador

Page 120: universidade federal do rio de janeiro em busca da tradução

120

Internacional), obras de divulgação científica, romances, livros de contos, de poesia,

principalmente da língua francesa. De suas traduções, destacam-se, além de Em busca

do tempo perdido, as obras da autora francesa Marguerite Duras. Podemos observar que

esse autor-tradutor detém certa legitimidade no campo que lhe confere o

reconhecimento necessário à sua contratação pela editora para a tradução da obra de

Proust e para “fazer frente” à tradução consagrada de Mário Quintana, pertencente à

Editora Globo.

Observamos, então, que se instaura uma luta entre as duas traduções pela própria

legitimidade dentro do campo de produção literária. Essa disputa, conforme Bourdieu

aponta, consiste em uma luta entre dominantes – representados pela tradução de

Quintana – e pretendentes – representados pela tradução de Py. A fim de observarmos

as estratégias de Fernando Py para “enfrentar” a tradução de Quintana, recorreremos às

indicações de Bourdieu, para quem cada campo de produção simbólica se constitui em

palco de disputa entre dominantes e pretendentes, evidenciada pelos critérios de

classificação e de hierarquização dos bens simbólicos produzidos e, indiretamente, pelas

pessoas e instituições que a produzem. Assim, os indivíduos e as instituições que

representam as formas dominantes da cultura buscam manter sua posição privilegiada,

apresentando seus bens culturais como superiores àqueles que buscam legitimidade no

campo. É o que Bourdieu chamou de violência simbólica, quando o arbitrário, imposto

como natural, é dissimulado no processo de inculcação dos valores dominantes. Aos

pretendentes restaria reconhecer o status da dominação e se armar de estratégias para

reagir contra tal dominação.

A seguir, observaremos diversos enunciados que demonstram essa luta entre a

tradução de Fernando Py – com pretensões à consagração no campo da atividade da

tradução – e a de Mário Quintana, em posição consagrada. Nos enunciados a seguir, de

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121

Fernando Py, há o reconhecimento do próprio tradutor de que o principal problema de

sua tradução foi superar a tradução de Mário Quintana (juntamente com Carlos

Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Lúcia Miguel Pereira). Fernando Py o faz

por meio do prefácio de sua tradução de Em busca do tempo perdido, em um

subcapítulo intitulado “Critérios desta tradução”: “O principal desafio foi enfrentar os

antigos tradutores.”76 “[...] não é tarefa tranquila traduzir uma obra de vulto como a de

Proust. Ainda mais quando já existem outras em português”.77

Nesses enunciados, o próprio tradutor Fernando Py reconhece que seu principal

desafio é “enfrentar” a tradução já consagrada e seus tradutores. Ao reconhecer esse

desafio, Py busca reconhecimento, já que a tarefa de “enfrentar” os antigos tradutores

não é dada a um tradutor qualquer; sendo assim, compara-se aos tradutores consagrados.

Nas afirmações a seguir, observamos novamente o uso do termo “enfrentar” (a

tradução de Mário Quintana) para definir a tarefa de Fernando Py:

Py enfrentou a tradução já consagrada entre nós, publicada no início dos anos 50 pela Globo.78 (grifo nosso) [...] o fato de um único tradutor ter enfrentado esse desafio.79 (grifo nosso) [...] não é o que pensa o poeta Fernando Py, que assina a segunda tradução da grande catedral literária francesa Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust. Com o objetivo “de tornar mais palatável” o texto do autor francês, Py enfrentou a tradução já consagrada entre nós, publicada no início dos anos 50 pela Globo de Porto Alegre.80 (grifo nosso)

Já nos dois enunciados a seguir, vemos que há questionamento da qualidade da

tradução de Fernando Py. Embora sejam expostos elogios à sua tradução, no primeiro

enunciado o crítico alerta o público da instância da recepção para uma “magnífica 76 MENDES, Taynèe. Os desafios da tradução dos clássicos da literatura universal . Jornal do Brasil. 10 abr. 2010. Disponível em: <http://www.jb.com.br/cultura/noticias/2010/04/10/os-desafios-da-traducao-dos-classicos-da-literatura-universal>. Acesso em: 15 jun. 2010. 77 PROUST, Marcel. No caminho de Swann / À sombra das moças em flor. Tradução Fernando Py. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004. p. 12. 78 MENDES, Taynèe. Os desafios da tradução dos clássicos da literatura universal . Jornal do Brasil. Op. cit.. 79 Id. 80 Id.

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tradução” desse mesmo volume, deixando entrever sua preferência. No segundo, um

leitor lamenta, no espaço dos comentários do público no próprio site da editora da

tradução de Py – a Ediouro –, que a tradução não seja a de Mário Quintana.

A tradução de Py é boa? Poderia ser, às vezes, menos prosaica. Entretanto, só a façanha de traduzir sozinho um livro como esse já merece o louvor de quem gosta de ler. Mesmo assim, não custa prevenir ao meu leitor de que há uma magnífica tradução desse mesmo volume, feita por Lúcia Miguel Pereira (sucedendo Mário Quintana, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, responsáveis pelos anteriores), com o título O tempo redescoberto.81 Um ótimo livro, sem sombra de dúvida. Inesquecível para aqueles que conseguem navegar nas reflexões que não cessam de ocorrer ao longo do livro. Pena haver somente o primeiro da coleção (composta por 7 livros) e a tradução não ser a do Mário Quintana. Tudo seria mais fácil se tivéssemos bons tradutores em todas as línguas. Confiáveis, ao menos. Houve melhores quando, além de Quintana, mestres como Drummond, Bandeira e Millôr traduziam. Há alguns que hoje merecem respeito. [...] esse cidadão chamado Fernando Py, que fez nova tradução de Proust em edição bonita, elegante, que vem dentro de uma caixa. A embalagem bonita esconde péssima versão em português, do que se deduz que o senhor Py pode até saber francês, mas não sabe bom português.82 (grifos nossos)

Podemos verificar nesses enunciados que a tradução de Fernando Py se demarca,

de maneira inequívoca, em relação à tradução de Mário Quintana. O reconhecimento de

Py, no primeiro enunciado apresentado, evidencia de maneira clara a consagração de

Quintana, na medida em que a sua atividade da tradução da obra de Proust deve

considerar a incontornável tradução anterior e se define como um enfrentamento.

Ora, o próprio tradutor Fernando Py usa a tradução de Mário Quintana como

referência, o que está evidenciado no prefácio de sua tradução, em um subcapítulo

intitulado “Critérios desta tradução”, no qual justifica a mudança dos títulos de Em

busca do tempo perdido, tendo sempre de citar a tradução da Editora Globo. Ao citá-la,

Py demonstra conhecimento do campo e do jogo. Sabe exatamente a posição dominante

81 MACHADO, Cassiano Elek. Principal obra de Marcel Proust é relançada no Brasil. Folha de S. Paulo. 30 mar. 2002. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u22602.shtml>. Acesso em: 10 mar. 2010. 82 IDEIAS. Disponível em: <http://www.revistaideias.com.br/ideias/coluna/monoglota>. Acesso em: 9 ago. 2010.

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de Quintana e se coloca em busca da consagração, lançando mão de estratégias. Essas

estratégias são acionadas no interior do campo de produção pelo pretendente Fernando

Py, com o propósito de assim enfrentar, disposto de argumentos “objetivos”, a tradução

“imortalizada” de Quintana:

[...] O “Tempo recuperado”, pois de modo algum se trata de uma redescoberta. De outra parte, “Du côté de chez Swann” [...] preferimos manter o título já consagrado no país, pois o termo “caminho” indica melhor em português a situação do “côté” em francês [...]. Em “À l’ombre des jeunes filles en fleurs”, preferimos verter “jeunes filles” para “moças”, vocábulo de uso corrente no Brasil.

Essa luta observada no campo entre dominantes e pretendentes, definida por

Bourdieu em A produção da crença, se estrutura sobre a “estratégia de

desmerecimento”, assim definida:

É a luta entre os detentores e os pretendentes, entre os detentores do título (de escritor, de filósofo, de sábio etc.) e seus desafiantes, como se diz no boxe, que faz a história do campo: o envelhecimento dos autores, das escolas e das obras é resultado da luta entre aqueles que marcaram época (criando uma nova posição no campo) e que lutam para persistir (tornar-se “clássicos”) e aqueles que, por seu turno, só podem marcar época enviando para o passado aqueles que têm interesse em eternizar o estado presente e em parar a história.83

A seguir, observaremos diversas estratégias de desmerecimento utilizadas por

Fernando Py e pelas instâncias de legitimação para confrontar a posição consagrada da

tradução de Quintana.

Bourdieu afirma que os pretendentes, ou seja, aqueles que estão em busca da

consagração no interior do campo de produção, tendem a desmerecer as obras de seus

antecessores dominantes julgando-as ultrapassadas, no intuito de superá-las e, assim,

obter a posição legítima. Uma primeira estratégia de desmerecimento consiste em se

colocar como um tradutor atualizado, moderno, apresentando em sua tradução um

Proust mais “palatável”, atualizado para os dias de hoje, e classificar a tradução de

Quintana de ultrapassada. Dessa maneira, a tradução de Fernando Py é apontada como 83 BOURDIEU, Pierre. Razões práticas. Campinas: Papirus, 1996. p. 69.

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um Proust mais “palatável”, ou seja, uma tradução mais acessível ao público leitor, e a

pretensão de apresentá-lo como “preocupado em facilitar” o entendimento da obra pelo

público leitor lhe confere um valor, na medida em que a obra de Proust poderia, então,

ser lida por uma maior parcela de leitores. Ao observarmos a proposta da tradução de

Fernando Py de um Proust “palatável’, verifica-se um aspecto marcante nessa tradução

que se opõe à de Quintana: a tendência de preservar aspectos culturais franceses em sua

tradução. Nesse sentido, notamos que Quintana, em nenhum momento, em seus

enunciados, afirmou querer “facilitar” a leitura de Proust. A posição dessa tradução no

campo de produção é a de uma tradução não etnocêntrica, que se atém à cultura-fonte,

levando o leitor à atmosfera francesa. Essa característica de Quintana nos levou a

discutir questões levantadas por Berman e por Venuti no que tange às tendências

etnocêntricas da tradução e à invisibilidade do tradutor. É pertinente indagarmos se há

objetivamente tendências opostas nas duas traduções ou se são estratégias utilizadas

pelos dois tradutores para mostrar seu posicionamento no campo de produção literária.

Percebe-se que, nessa primeira estratégia de desmerecimento, Py mudou os títulos das

obras e usou, por exemplo, o termo “moças” em oposição ao termo “raparigas”, para

traduzir o termo em francês “jeunes filles”, então utilizado por Quintana. Tal tradução

foi produzida no intuito de apresentar um termo mais moderno, sem que possamos

julgar objetivamente qual seria o termo mais apropriado, uma vez que a tradução de

Quintana foi elaborada em outra época e representava a imagem de outra mulher. A

seguir temos dois enunciados que evidenciam tal estratégia:

Com o objetivo “de tornar mais palatável” o texto do autor francês, Py enfrentou a tradução já consagrada entre nós, publicada no início dos anos 50 pela Globo de Porto Alegre. O poeta Mário Quintana traduziu No caminho de Swann, À sombra das raparigas em flor, O caminho de Guermantes e Sodoma e Gomorra, para só então passar a bola para Manuel Bandeira, que ficou com A prisioneira, em parceria com Lourdes Sousa de

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Alencar. Carlos Drummond de Andrade se encarregou de A fugitiva, e Lúcia Miguel Pereira finalizou a tarefa com O tempo redescoberto.84 (grifo nosso) Fernando Py mudou alguns títulos dos romances do ciclo já consagrados em português. Em À sombra das raparigas em flor, esse jeunes filles foi vertido para moças. Ficou À sombra das moças em flor. Em Le temps retrouvé, Py julgou mais acertado o título O tempo recuperado em vez de O tempo redescoberto, na tradução anterior de Lúcia Miguel Pereira, o último título.85 A busca de Fernando Py foi oferecer uma linguagem mais acessível que acarretaria, consequentemente, maior número de leitores. De imediato pode-se notar a alteração do título À sombra das raparigas em flor para À sombra das moças em flor, justificado pela conotação pejorativa em algumas regiões do Brasil. O último livro, Le temps retrouvé, foi traduzido como O tempo recuperado em vez de O tempo redescoberto, usado pela Globo.86 (grifo nosso)

Uma segunda estratégia de desmerecimento acionada é afirmar que a tradução da

Editora Globo não fora feita por um único tradutor. Dessa maneira, na busca de

consagração, Py procura desmerecer a tradução de Quintana, ao afirmar a sua vantagem

em ser o tradutor único da obra completa no País, evidenciado no enunciado a seguir,

publicado no Jornal do Brasil: “Se por um lado rivalizar com grandes escritores era um

problema, por outro o fato de ser tradutor único deu-me a vantagem de uniformizar o

estilo, já que a tradução da Globo prejudicou a uniformidade da obra.”87

Essa mesma estratégia de desmerecimento também se apresenta na crítica

especializada sobre a tradução de Py. Elogia-se o fato de ser Py o único tradutor da

obra, o fato de ele ter lido a obra de Proust por 26 anos, e de terem sido necessários

quatro anos para concluir essa tradução:

Único até agora a fazer o trabalho completo e sozinho, Py começou a traduzir a obra a pedido da Ediouro em maio de 1991, e fez apenas uma exigência: a ausência de prazos para a entrega. A fim de reproduzir em português a fluência musical de cada frase, a simetria e as comparações metafóricas – principais desafios em matéria de tradução

84 EDITAR & REESCREVER. Disponível em: <editarereescrever.blogspot.com/2011/02/o-desafio-da-traducao-literaria.htlm>. Acesso em: 12 maio 2010. 85 DIÁRIO DO PARÁ. Coluna de Elias Pinto. 25 fev. 2007. Disponível em: <http://www.achanoticias.com.br/noticia.kmf?noticia=5830965>. Acesso em: 10 abr. 2010. 86 EDITAR & REESCREVER. Disponível em: <editarereescrever.blogspot.com/2011/02/o-desafio-da-traducao-literaria.htlm>. Acesso em: 12 maio 2010. 87 MENDES, Taynèe. Os desafios da tradução dos clássicos da literatura universal . Jornal do Brasil. Op. cit.

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literária – sem falar da extensão dos parágrafos de Proust, demorou quatro anos para entregar o original completo.88

[...] a Ediouro lançou uma tradução revista e ampliada de Em busca do tempo perdido, assinada pelo poeta e advogado Fernando Py. Ele costuma dizer que sua tradução é “definitiva por enquanto”. Contudo, tendo em vista a extraordinária dificuldade colocada pela tradução da prosa de Proust, creio que o fato de um único tradutor ter enfrentado esse desafio, saindo-se dele muito bem, é mais um sinal de que temos sim, no Brasil, tradutores de grande envergadura. (grifos nossos)

Na verdade, Mário Quintana foi um dos tradutores de Em busca do tempo perdido; dos sete volumes que compõem essa obra, há também uma (ou mais) traduções de Carlos Drummond de Andrade. Para muitos, são traduções que, apesar de excelentes, pecam pela desunião do conjunto, isto é: os volumes teriam perdido a unidade por terem sido traduzidos por pessoas diferentes. Dizem as más línguas, inclusive, que os textos de Quintana e Drummond foram publicados sem revisão.89 (grifos nossos)

A falta de padronização é reconhecida principalmente quando se compara a tradução dos primeiros quatro volumes.90

A terceira estratégia de desmerecimento se apresenta no fato de Py criticar as

expressões consideradas por ele “lusas”, utilizadas por seu antecessor “como se

estivesse elaborando uma tradução para ser lida em Lisboa”.

Ele se deixou levar pelo linguajar tipicamente regional, preenchendo as traduções que lhe couberam de gauchismos, além de vocábulos e expressões lusas, como se estivesse elaborando uma tradução para ser lida em Lisboa – comenta [...].91 Além do estilo próprio de cada autor que transparece facilmente, Py – que já traduziu mais de 30 livros, entre eles o inacabado romance póstumo de Proust, Jean Santeuil – critica o excesso de expressões gaúchas e lusitanas presentes no texto de Quintana.92

A quarta estratégia para enfrentar a tradução anterior consiste nas afirmações da

crítica acerca do original usado como base por Fernando Py para sua tradução: a edição

francesa considerada como a “versão definitiva” da obra de Proust, inteiramente

concluída e editada pela Gallimard em 1954. O argumento utilizado pela instância de

legitimação atual é a proximidade da tradução de Py do original, que, embora não tenha

88 BALAIO DE NOTÍCIAS. Aracaju, ed. 38, 14-21 set. 2003. Disponível em: <http://www.sergipe.com.br/balaiodenoticias/entrevistaj38.htm>. Acesso em: 10 maio 2010. 89 Id. 90 Site da empresa de traduções SPS, de Portugal. Disponível em: < http://sps-traducoes.com.pt/wp2 >. Acesso em: 10 jul. 2010. 91 Id. 92 Id.

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o mesmo prestígio da anterior consagrada – graças ao “estofo literário de seus

tradutores” –, lhe é conferido o valor de ter sido elaborada a partir de um original

concluído e definitivo.

[...] a primeira edição da Globo foi feita e lançada antes do aparecimento da edição crítica francesa de Pierre Clarac e André Ferré pela Gallimard, de 1954, deixando a desejar quanto à exatidão do texto.93 Se a primeira tradução ganha em prestígio (e no estofo literário dos tradutores, que vez ou outra vem à tona), o trabalho do poeta carioca, que já traduziu mais de 30 livros –incluindo o inacabado romance proustiano “Jean Santeuil” e a grande biografia do autor, de Georges Painter – tem algumas vantagens. Proust morreu antes de concluir a publicação da obra, e não chegou a fazer a revisão final nem dos livros que editou em vida. A primeira edição crítica saiu na França em 1954. Py usou a que, na época em que traduziu pela primeira vez a “Recherche”, era considerada a versão definitiva, a feita em 1987 pela Gallimard.94 (grifos nossos)

Observamos que, em meio à estratégia de desmerecimento, Py coloca sua

tradução como mais próxima do original, como mais “fiel” perante a tradução de

Quintana, por este ter utilizado um original considerado inacabado. Por não deter o

mesmo prestígio de Quintana, são propostos argumentos segundo os quais a tradução de

Quintana não foi tão fiel ao original. A fidelidade ao original é posta em questão e

Quintana é apontado como tradutor comum, passível de “infidelidades”. Alerta-se para

o fato de que existe um “original” a ser tomado como referência para uma tradução

“fiel” à obra de Proust e, portanto, essa tradução seria superior à tradução consagrada de

Quintana.

Em meio à luta pela legitimidade no campo de produção, torna-se difícil definir

com objetividade qual seria exatamente a melhor tradução da obra de Proust. A

pergunta incontornável, que se apresenta ao público leitor, ao ser lançada uma nova

tradução, é a seguinte: qual seria a melhor tradução de Em busca do tempo perdido?

93 MENDES, Taynèe. Os desafios da tradução dos clássicos da literatura universal . Jornal do Brasil. Op. cit.. 94 Id.

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É interessante notar, no enunciado a seguir, como determinado agente da instância

de consagração do campo qualifica – de posse das duas traduções a que nos referimos –

a tradução de Quintana como a melhor. Entretanto, essa qualificação não se baseia em

quaisquer critérios técnicos, uma vez que o jornalista não aponta objetivamente qual é a

“longa e torneada frase de Proust” que “ainda se ajusta melhor entre nós no torno

moldado por Quintana”:

Pesada, medida e comparada, depois de uma breve hesitação (não sou nenhum especialista; fiz minha Aliança Francesa mal e porcamente; baseio-me mesmo é no gosto, no tato e audição, e no paladar olfativo, se é que isso existe, por se tratar de Proust), confesso que ainda prefiro a primeira versão, que leva principalmente a assinatura do poeta gaúcho Mário Quintana, responsável pela tradução dos quatro primeiros volumes de Em busca do tempo perdido. Cheguei a ler No caminho de Swann simultaneamente, com os livros espalmados sobre a mesa, a tradução de Quintana, a de Fernando Py e o original. Doideiras. Mas acho que a longa e torneada frase de Proust ainda se ajusta melhor entre nós no torno moldado por Quintana.95

A expressão no enunciado “a longa e torneada frase de Proust ainda se ajusta

melhor entre nós no torno moldado por Quintana” revela-nos o habitus que conduz o

tradutor em sua prática, tal como um agente pertencente ao campo de produção

simbólica. O “torno” a que se refere o jornalista são justamente os princípios e os

esquemas legítimos do campo operados pelo autor-tradutor para dar forma legítima à

tradução da obra original. Tais princípios e esquemas, longe de se constituírem em

normas objetivas para a elaboração da tradução, são uma construção cultural levada a

efeito pelo próprio campo de produção literária que conduz o tradutor em sua prática.

Em artigo intitulado “The pivotal status of the translator’s habitus”, Daniel Simeoni96

afirma, corroborando as afirmações de Bourdieu, que, embora existam normas e regras

que guiem os tradutores e intérpretes na prática profissional, o que é determinante na

maneira de traduzir é a influência do campo com suas regras, que acabam sendo

95 DIÁRIO DO PARÁ. Coluna de Elias Pinto. 25 fev. 2007. Op. cit. 96 SIMEONI, Daniel. The pivotal status of the translator’s habitus. Target, v. 10, n. 1, p. 1-39, 1998.

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incorporadas, não de modo consciente pelo tradutor, na sua luta pela legitimidade no

interior do campo.

Em blogs dedicados à literatura, verificamos comentários que comparam as duas

traduções e observamos que não há critérios objetivos para analisar a tradução. Trata-se

de julgamentos sociais emitidos por agentes das instâncias de legitimação do campo,

por meio de adjetivos e qualificações que lhes conferem maior ou menor valor.

Traduzir o Proust não deve ser nada fácil, mas vamos lá, o Fernando Py mantém os parágrafos e as frases no seu tamanho original, o que é um belíssimo e honesto reconhecimento pela linguagem elaborada do autor. Mas o Quintana e seus companheiros colocaram mais vida, tomaram mais opções deliberadas, fizeram escolhas mais cuidadosas de certas palavras.97 Confesso que tenho lá uma queda por essa tradução, pois foi por ela que cheguei até Marcel Proust, mas ainda assim creio que a melhor é mesmo a de Mário Quintana (e outros), da Editora Globo. A tarefa de traduzir Proust e seus longos períodos não é nada fácil, mas Quintana, em especial, conseguiu manter o espírito do original praticamente intacto, na minha humilde opinião.98 [...] claro, os tradutores da Globo são só gente grande, mas tem aquele problema de ter sido feita a várias mãos, falta uma certa unidade de estilo e tem uns lusitanismos tipo “raparigas em flor” difícil de engolir. E a nova tradução supera alguns desses problemas, mas claro, nunca cotejei detalhadamente.99

No primeiro dos três enunciados, notamos que a comparação entre as duas

traduções ocorre de maneira mais geral, na qual apenas são apontadas duas questões: o

honesto reconhecimento da escrita elaborada de Proust na manutenção do tamanho das

frases originais por Py e a vida colocada por Quintana, por meio de escolhas cuidadosas

de certas palavras. Tais questões envolvem qualificações das traduções, sem que

possam ser apontadas objetivamente a honestidade e a vida existentes as traduções.

No segundo enunciado, embora o leitor do blog afirme que foi por meio da

tradução de Py o seu primeiro contato com a obra de Proust, declara que a tradução de

97 ORKUT. Comunidade dedicada à literatura. Disponível em: <http://www.orkut.com/CommMsgs?cmm=82607&tid=486935&na=3&nst=11&nid=82607-486935- 2433923162387649970. Acesso 29/09/2011>. 98 Id. 99 Id.

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Quintana mantém “o espírito do original praticamente intacto”. Novamente verificamos

que se torna impossível indicar objetivamente no que consiste o “espírito do original”.

Já no terceiro enunciado, podemos observar como o leitor aponta uma questão

crucial relacionada com os princípios e esquemas do campo: a utilização de um termo

que deveria, em princípio, corresponder de maneira eficaz a seu correspondente

original, dada a tradução consagrada de Quintana. O leitor reconhece nos tradutores da

Editora Globo “só gente grande”, mas registra o “problema de ter sido feita a várias

mãos”, o que indicaria uma falta de “unidade de estilo”. Entretanto, a afirmação mais

relevante para a nossa análise é a que considera os lusitanismos do “tipo ‘raparigas em

flor’” como algo “difícil de engolir”, visto que aponta claramente um termo que parece

inadequado ao original justamente na tradução ocupante da posição consagrada e

dominante do campo, desconhecendo, inclusive, a pertinência dessa escolha à época de

sua publicação.

A seguir, poderemos constatar, ao compararmos trechos das traduções de Mário

Quintana e de Fernando Py, que não há uma forma melhor ou mais adequada para

retratar o sentido da obra original. Trata-se, conforme observamos, de um julgamento

social acerca da tradução, pois não há, exceto a necessidade da aplicação da

correspondência básica entre as palavras das diferentes línguas, valor intrínseco em

determinado termo expressivo utilizado para descrever o termo correspondente na

língua original – no caso aqui examinado, a língua francesa.

PROUST, Marcel. À l’ombre des jeunes filles en fleur. Paris: Gallimard, 1979. p. 3.

Autour de Mme Swann Ma mère, quand il fut question d’avoir pour la première fois M. de Norpois à dîner, ayant exprimé le regret que le professeur Cottard fût en voyage et qu’elle-même eût entièrement cessé de fréquenter Swann, car l’un et l’autre eussent sans doute intéressé l’ancien Ambassadeur, mon père répondit qu’un convive éminent, un savant illustre, comme Cottard, ne pouvait jamais mal faire dans un dîner, mais que Swann, avec son

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ostentation, avec sa manière de crier sur les toits ses moindres relations, était un vulgaire esbroufeur que le marquis de Nortois eût sans doute trouvé, selon son expression, puant.

Tradução de Mário Quintana

PROUST, Marcel. À sombra das raparigas em flor. São Paulo: Globo, p. 18.

Em torno da Sra. Swann Quando pela primeira vez se tratou de convidar o Sr. de Norpois para jantar em nossa casa, como lamentasse minha mãe que o Professor Cottard estivesse em viagem e que ela própria houvesse deixado completamente de frequentar Swann, pois tanto um como outro certamente interessariam ao ex-Embaixador, respondeu-lhe meu pai que um conviva eminente, um sábio ilustre como Cottard nunca faria má figura à mesa, mas que Swann, com sua ostentação, com aquele jeito de proclamar aos quatro ventos as mínimas relações, não passava de um vulgar parlapapão que o Marquês de Norpois sem dúvida acharia, segundo sua expressão, “nauseabundo”.

Tradução de Fernando Py

PROUST, Marcel. À sombra das moças em flor. Rio de Janeiro: Ediouro. 2004, p. 336.

Em torno da Sra. Swann Quando se cuidou de receber ao jantar, pela primeira vez, o Sr. de Norpois, tendo minha mãe lamentado que o professor Cottard estivesse viajando e que ela própria tivesse deixado completamente de frequentar Swann, pois ambos teriam sem dúvida interessado o antigo embaixador, meu pai respondeu que um conviva eminente, um sábio ilustre, como Cottard, jamais poderia fazer má figura num jantar, ao passo que Swann, com sua ostentação, sua mania de alardear aos quatro ventos as suas relações, era um vulgar fanfarrão que o marquês de Norpois sem dúvida teria achado, conforme sua própria expressão, “nauseante”.

Em relação aos termos utilizados, a tradução de Quintana parece-nos mais

literária, mais ajustada a um tipo de princípio e esquema literário do campo de produção

literária, por se tratar de um autor-tradutor, bem como pelo distanciamento do tempo,

fazendo seu português soar como mais pomposo. Daí o emprego dos lusitanismos, tal

como “rapariga”, talvez mais próximo da época e do contexto da obra original. Py

parece ter a preocupação em atualizar os termos, mostrar-se mais atual e acessível ao

publico leitor. Essa análise, entretanto, baseia-se em critérios subjetivos. Ao

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examinarmos as duas traduções, não temos como efetivamente colocar uma como

inequivocamente superior à outra:

– “pois tanto um como outro” × “pois ambos” – Observa-se uma síntese na

tradução de Py.

– Cottard nunca faria má figura à mesa × Cottard jamais poderia fazer má figura

num jantar

– nauseabundo × nauseante.

Assim, constatamos que a consagração ou não de uma primeira tradução pode ser

percebida pela luta empreendida pelas traduções que vêm depois dessa. No caso da

tradução de Em busca do tempo perdido, observa-se que as outras traduções se fazem à

sombra da tradução de Quintana e de seus pares, tida como referência. Percebemos que

ocorre uma demarcação entre elas, ou seja, uma relação entre o legítimo, representado

pela tradução de Quintana, pertencente à Editora Globo, e o não legítimo ou em busca

de legitimidade, figurado pela tradução de Fernando Py, lançada pela Ediouro.

Verificamos que a tradução de Quintana é a dominante no campo, a partir da

crença produzida pelo próprio campo. Fernando Py, por sua vez, não detém a mesma

consagração, daí sua posição de pretendente. Podemos constatar essa menor

consagração ao observamos que, ao contrário do que ocorre nas capas das traduções de

Quintana para a Editora Globo, o nome do tradutor Fernando Py – evidência de

reconhecimento do agente – não figura nas capas dos volumes de Em busca do tempo

perdido das obras traduzidas pela Ediouro:

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Fig. 7. Capa da tradução de Em busca do tempo perdido. Ediouro, 2002. v. 1.

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Fig. 8. Capa da tradução de Em busca do tempo perdido. Ediouro, 2002. v. 3.

4.2 A ESTRATÉGIA DE CONSERVAÇÃO DA EDITORA GLOBO: A TRADUÇÃO “DEFINITIVA”

Observamos as estratégias de desmerecimento dos pretendentes. Agora,

observaremos estratégias de conservação da posição dominante, ou seja, daqueles

consagrados no interior do campo. Em 2006, quatro anos depois do lançamento pela

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Ediouro da edição mais recente da tradução de Fernando Py, a Editora Globo relançou a

tradução reconhecida de Quintana. Como estratégia de conservação, imprimiu como

destaque nas capas a expressão “Proust Definitivo”, para determinar de maneira cabal

ser essa a tradução irrevogável da obra de Proust.

Nesse campo de produção, a posição dominante aparece na assinatura e na forma

como se classifica a obra de maior valor. Nesse caso, a Editora Globo, detentora da

tradução consagrada de Em busca do tempo perdido, se opõe aos pretendentes por meio

daquilo que Bourdieu denomina estratégias de conservação, que têm por objetivo a

manutenção do capital simbólico progressivamente acumulado ao longo do tempo.

É interessante notar que, de todas as reimpressões e reedições lançadas pela

Editora Globo* da obra traduzida de Proust, somente na edição de 2006 (Fig. 9) passou

a figurar a expressão “Proust Definitivo”. Tal fato demonstra que a Editora Globo

acionou uma estratégia de conservação para reafirmar sua posição consagrada, a partir

do momento em que a tradução de Py foi lançada para desafiar a posição estável e

definitiva de quem domina o campo de produção.

* A primeira edição foi lançada em 1948 e teve inúmeras reimpressões. Houve a segunda edição, revista, em 1988, com 15 reimpressões. A edição “definitiva” foi lançada, acrescida de prefácio, resumo, notas e posfácio, em 2006, com uma nova reimpressão em 2008.

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Fig. 9. Capa da tradução de Em busca do tempo perdido. Globo, 2006. v. 1.

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Fig. 10. Capa da tradução de Em busca do tempo perdido. Globo, 2006. v. 2.

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Fig. 11. Capa da tradução de Em busca do tempo perdido. Globo, 2006. v. 3.

Observaremos, a seguir, enunciados que evidenciam essa luta entre dominantes e

pretendentes pelo domínio do campo de produção literária. Os enunciados, selecionados

de jornais online dedicados à literatura e de sites de editoras, demonstram como a

tradução assinada por Quintana, que é intitulada “definitiva”, lançada em 2006 pela

Editora Globo, se constitui em um modelo para quaisquer outras que porventura

venham a se apresentar:

A Editora Globo está relançando a obra de Marcel Proust Em busca do tempo perdido, cuja tradução é feita por um time respeitoso, no qual figuram nomes como os de Mário Quintana, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira. Esta nova edição, além de demonstrar a importância perpétua das obras de arte que são significativas, demonstra o interesse dos brasileiros por Proust e vem brindar os seus leitores com uma revisão (necessária, haja vista a idade da tradução) de Olgária Matos e posfácio da respeitada

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filósofa Jeanne-Marie Gagnebin, estudiosa de Benjamin, que se refere ao francês em vários momentos de sua obra. Traz ainda a nova edição um material com prefácio, cronologia, notas e resumo do historiador, articulista e professor da USP Guilherme Ignácio da Silva.101 (grifos nossos) E é o tema por excelência de Em busca do tempo perdido, seu ciclo de romances em sete volumes, que os brasileiros têm a sorte de poder ler na tradução de Mário Quintana, Carlos Drummond de Andrade e outros. No final de 2006, a Editora Globo começou a relançá-los, com maior aparato editorial (notas, resumos etc.) e projeto gráfico de Raul Loureiro, muito feliz na escolha das cores de capa e da elegante fonte Walbaum.102 (grifos nossos) Esta reedição pela Editora Globo de Em busca do tempo perdido, obra capital de Marcel Proust, um dos maiores escritores do século XX, é de grande importância para seus velhos e novos amantes. À sombra das raparigas em flor saiu em 1951, magistralmente traduzido por Quintana. Esta reedição ultrapassa as anteriores porque foi cuidadosamente preparada. À sombra das raparigas em flor conta com revisão de Maria Lúcia Machado, traz prefácio, notas e resumo de Guilherme Ignácio da Silva e posfácio de Rolf Renner, professor da Universidade de Freiburg (Alemanha).103 (grifos nossos)

No terceiro enunciado, há a curiosa afirmação de que a edição “ultrapassa” as

anteriores – não somente a tradução posterior de Fernando Py, como as edições lançadas

pela própria editora. Podemos verificar o acionamento da estratégia de conservação do

capital simbólico, na medida em que essa edição foi “cuidadosamente preparada” para

reafirmar sua posição consagrada, ao apresentar diversificado material referente à

própria tradução – prefácio, cronologia, posfácio, entre outros. Entretanto, o texto

“magistralmente traduzido por Quintana” se mantém, tal como nas edições anteriores.

A Editora Globo começou a relançar uma das maiores obras de ficção do século XX, Em busca do tempo perdido de Marcel Proust. Na capa dessa edição está estampada a audaciosa frase “Proust Definitivo”. Audaciosa principalmente porque não se trata de uma nova tradução, mas sim das traduções já clássicas de autores como Mário Quintana, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade. Audaciosa também porque há pouco tempo a Ediouro lançou uma caixa belíssima com todos os sete tomos, divididos em três volumes, com uma excelente tradução de Fernando Py. Mas, apesar disso tudo, o termo “definitivo” realmente se justifica.104 (grifos nossos)

101 JORNAL OPÇÃO. Periódico sobre literatura. 21-27 jan. 2007. Disponível em: <http://www.jornalopcao.com.br/posts/opcao-cultural>. Acesso em: 10 maio 2010. 102 EDITORA PERSPECTIVA. Disponível em: <http://www.digestivocultural.com/ensaios/ensaio.asp?codigo=192.>. Acesso em: 20 out. 2011. 103 EDITORA GLOBO. Disponível em: <http://globolivros.globo.com/busca_detalhesprodutos.asp?pgTipo=COLECOES&idProduto>. Acesso em: 10 maio 2010. 104 ODISSÉIA 2005. Disponível em: <http://odisseia2005.blogspot.com/2006/12/proust-para-comear-bem-o-ano.html>. Acesso em: 17 maio 2010.

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Podemos observar no enunciado anterior, de um blog dedicado à literatura,

evidências da luta entre a tradução daquele que domina o campo e a tradução proposta

pelo pretendente à dominação. Essa nova tradução é vista como “audaciosa”, visto que

se confronta com uma “excelente tradução de Fernando Py”, mesmo tendo relançado as

“traduções clássicas de autores como Mário Quintana, Manuel Bandeira e Carlos

Drummond de Andrade”. Tais qualificações são atribuídas às duas traduções, sem que

possamos observar uma análise objetiva dos termos empregados nos textos traduzidos.

No enunciado a seguir um leitor expõe sua dúvida em relação ao que seria a

edição “definitiva”:

Comprei o primeiro volume de “Em Busca do Tempo Perdido” de Marcel Proust, tradução de Mário Quintana, a edição definitiva. Mas agora “tá” difícil achar o segundo volume na edição definitiva, há alguma diferença relevante entre a definitiva e a não definitiva?105 (grifos nossos)

É interessante notar como o leitor que adquiriu o primeiro volume da edição

“definitiva”, na tentativa de adquirir o próximo volume dessa obra traduzida, enuncia

sua dificuldade para entender objetivamente o que distingue uma tradução definitiva de

uma tradução não definitiva, uma vez que a qualificação não é intrínseca à obra, ou seja,

não está localizada nos elementos textuais constituintes da tradução, mas em uma

crença.

105 YAHOO. Lista de discussão sobre diversos assuntos. Disponível em: <http://br.answers.yahoo.com/question/index?qid=20101008164716AAtR7Y>. Acesso em: 20 ago. 2010.

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4.3 A LUTA PERMANENTE POR LEGITIMIDADE NO CAMPO: ANUNCIADA NOVA TRADUÇÃO DE PROUST PARA 2012

A Companhia das Letras anunciou, para este ano 2012, o lançamento de uma nova

tradução de Em busca do tempo perdido, por meio da marca criada em parceria com a

editora britânica Penguin, dedicada aos clássicos – a marca Penguin-Companhia. A

obra ganhará edição com a extensão de sete volumes. O primeiro volume deverá ser

lançado ainda no segundo semestre de 2012. É interessante notar que há um selo

diferenciado da editora dedicado aos clássicos, nesse caso, o Penguin-Companhia, fruto

da associação da Companhia das Letras com a Editora Penguin:

O selo Penguin-Companhia das Letras editará em português obras do riquíssimo catálogo da Penguin [...]. Grandes títulos do atual catálogo da Companhia e algumas obras-primas da língua portuguesa serão publicados nas duas séries. O cuidado com os livros começa na escolha do tradutor, e passa pela seleção do rico material de apoio que acompanha cada edição: são cronologias, prefácios escritos por especialistas, notas que contextualizam e enriquecem as obras.106 (grifo nossso) Selo criado em parceria com a britânica Penguin e dedicado aos clássicos, o Penguin-Companhia prepara o lançamento de outro gigante da literatura: a série Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, que inspirou a escrita de, entre outros, Gilberto Freyre. A obra ganhará edição em sete volumes. O primeiro deve sair no 2o semestre de 2012.107

Nesses enunciados, a notícia do lançamento dessa nova tradução foi divulgada

tanto em jornais, como a Folha de S. Paulo, quanto em revistas, como a Veja. Nota-se,

nessas peças de divulgação, que o nome do tradutor Mario Sergio Conti não é ainda

citado, embora no primeiro enunciado se faça uma menção ao “cuidado” relacionado

com a “escolha do tradutor”.

Em um artigo do blog Conteúdo Livre, denominado “Livro de Proust pode ganhar

novo título brasileiro”, o escritor Marco Rodrigo Almeida – colaborador do periódico

106 EDITORA COMPANHIA DAS LETRAS. Disponível em: <http://www.companhiadasletras.com.br/penguin/quemsomos.ph>. Acesso em: 15 out. 2010. 107 VEJA. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/blog/meus-livros/tag/em-busca-do-tempo-perdido/>. Acesso em: 12 maio 2010.

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Folha de S. Paulo – apresenta certos aspectos da futura tradução de Mario Sergio Conti

que nos interessam na análise do funcionamento do campo de produção literária:

[...] O jornalista Mario Sergio Conti apenas começa sua epopeia.

Conti, 56, vai traduzir nos próximos anos os sete volumes que compõem a obra “Em Busca do Tempo Perdido”, de Marcel Proust. [...] com notas explicativas e textos introdutórios.

O primeiro volume deve sair no segundo semestre do ano que vem.

A ideia é fazer uma versão barata, com introdução didática, atualizada para o público do século 21.

Conti vem traduzindo aos poucos, nas folgas do horário de trabalho como editor da revista “Piauí”.

Ele descobriu Proust aos 18 anos e desde então vem lendo o autor também em francês e inglês. Além da intimidade com a obra, Conti tem a seu favor centenas de livros escritos sobre o autor francês nas últimas décadas, que permitem um trabalho mais acurado.108

Assim, nos enunciados acima, podemos observar diferentes afirmações, nas quais

já se antecipa o valor da tradução a partir do seu produtor: o escritor e editor Mario

Sergio Conti. Além de o trabalho ser qualificado como uma “epopeia” – um grande

acontecimento, por isso dotado de “notas explicativas e textos introdutórios” –, o

tradutor é apresentado, a exemplo de Mário Quintana e de Fernando Py, como um

profundo conhecedor da obra de Proust e da língua francesa.

Sobre a tradução de Quintana, afirma Conti:

A primeira tradução brasileira do livro, feita por Mário Quintana na década de 40, foi um ato heroico. Quase não havia bibliografia sobre Proust na época.

Os 60 e poucos anos que separam as traduções dão margem a novas abordagens –inclusive no título da obra.109

108 CONTEÚDO LIVRE. Disponível em: <http://sergyovitro.blogspot.com/2011/04/peitando-os-classicos-marco-rodrigo.html>. Acesso em: 10 maio 2010. 109 Idem.

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Podemos verificar, nos enunciados acima que a citação da tradução de Quintana

evidencia uma forma de Conti colocar “louros em si mesmo”, na medida em que elogia

o ato “heroico” de Quintana por ter traduzido Proust na década de 1940, época em que

havia pouca bibliografia crítica sobre Proust. Embora sua tradução nem tenha ainda sido

lançada, Conti traz o nome de Quintana à cena e demonstra seu conhecimento do

funcionamento do campo de produção simbólica, pois, ao reconhecer quem é

consagrado, se consagra pela implícita comparação ao tradutor Quintana. É interessante

notar que Conti em nenhum momento cita o tradutor Fernando Py e a tradução deste da

obra de Proust, pois ele entende que a luta por legitimidade se dá sobretudo com

Quintana, que detém a sólida consagração no campo de produção, com quem os outros

dois tradutores se interessam em medir forças.

O tradutor Mario Sergio Conti, a exemplo de Fernando Py, empreende

previamente a luta por legitimidade de sua tradução por meio da utilização de algumas

estratégias, tal como a do desmerecimento da tradução consagrada de Quintana.

Inicialmente, similar a Py, Conti propõe uma versão mais atualizada da obra e aponta a

tradução de Quintana como “antiga” e “ultrapassada”: “Os 60 e poucos anos que

separam as traduções dão margem a novas abordagens – inclusive no título da obra.”110

Nos enunciados a seguir, observamos que Conti se utiliza da estratégia de

desmerecimento em relação à tradução de Quintana, ao indicar o que seria para ele a

“solução mais apropriada”, “a que mais se aproxima” ou “a mais correta” para a

tradução da obra de Proust. Nessa estratégia, a pretensão de Conti é, na verdade,

destituir aspectos da tradução de Quintana; para isso, ele utiliza o argumento de que o

original deve ser “respeitado”, ou seja, propõe uma tradução mais “fiel” ao original de

Proust. A tradução de Fernando Py não é citada por Conti.

110 CONTEÚDO LIVRE. Disponível em: <http://sergyovitro.blogspot.com/2011/04/peitando-os-classicos-marco-rodrigo.html>. Acesso em: 10 maio 2010.

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Ele defende que “Em Busca do Tempo Perdido” não é a solução mais apropriada para o original “À la Recherche du Temps Perdu”. “A palavra ‘recherche’ pode ser tanto ‘busca’ como ‘procura’. Mas acho que ‘à la recherche’ se aproxima mais de ‘à procura’. ‘Busca’, no sentido de ‘descoberta’, está mais no verbo ‘quêter’. Talvez eu faça essa mudança, ainda não decidi.” Uma frase do início do primeiro livro da série, “No Caminho de Swann”, também recebe nova interpretação.

O tradutor conta que “Longtemps, je me suis couché de bonne heure” foi traduzido por Quintana como “Durante muito tempo, costumava deitar-me cedo”. O mais correto, explica, seria “Durante muito tempo, deitei-me cedo”. “A escolha adoça e atenua a aspereza da frase original de Proust. Por isso novas traduções são sempre úteis: para atualizar a visão que temos sobre as obras.”

Observamos como é vigorosa a luta por legitimidade no campo de produção

simbólica. No campo de produção literária, observamos relações objetivas – estratégias,

por meio de objetos, enunciados, citações – entre indivíduos ou instituições que

competem por um mesmo objeto. Classificamos a tradução de Mário Quintana na

posição dos dominantes, ou seja, aqueles que detêm em maior grau o poder de constituir

objetos raros pelo procedimento da griffe; aqueles que possuem maior capital simbólico.

Assim, conforme afirma Bourdieu (1984) sobre o processo de consagração, o que

faz o valor é a conivência efetuada entre os agentes do sistema de produção de bens

consagrados. Os circuitos de consagração são mais poderosos quando são mais longos,

mais complexos e mais ocultos aos olhos de quem deles participa e se beneficia. Dessa

forma, um ciclo de consagração eficaz é um ciclo no qual A consagra B, que consagra

C, que consagra D, que consagra A. Quanto mais invisível é o ciclo de consagração,

quanto menos sua estrutura é reconhecida, maior é o efeito da crença.111

Uma tradução consagrada, a da Editora Globo, uma posterior, de Fernando Py

pela Ediouro, uma reação do dominante, “Proust Definitivo”, e uma segunda tradução

pretendente a ser lançada. Assim como Fernando Py, Mario Sergio Conti contesta o

“monopólio” da tradução de Quintana. Entretanto, como afirma Bourdieu, essa revolta

tem limites. O limite é o respeito constituído dentro do campo. Por isso, não se pode

111 BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983. p. 154-161.

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desqualificar demais a tradução anterior, uma vez que, se “qualquer um” for capaz de

traduzir Proust, o campo é que é desprestigiado. “Esta é a lei geral dos campos”, afirma

Bourdieu,112 os detentores da posição dominante, os que têm maior capital específico, se

opõem por uma série de meios aos recém-chegados, os pretendentes, que nesse caso são

representados pelas traduções de Proust feitas por Fernando Py e Mario Sergio Conti.

Os antigos possuem estratégias de conservação que têm por objetivo obter lucro do

capital progressivamente acumulado, como a Editora Globo, ao lançar “Proust

Definitivo”. Os recém-chegados possuem estratégias de subversão orientadas para uma

acumulação de capital específica, que supõe uma inversão mais ou menos radical do

quadro de valores, uma redefinição mais ou menos revolucionária dos princípios da

produção e da apreciação dos produtos e, ao mesmo tempo, uma desvalorização do

capital detido pelos dominantes. Ora, no espaço social da tradução, assim como

acontece no campo artístico, a cada surgimento de uma nova tradução em lugar de outra

já consagrada, um embate se trava entre os estreantes, em busca de reconhecimento, e

os consagrados, que buscam manter as prerrogativas que contribuíram para sua

aceitação e conservação contra as investidas dos recém-chegados. Após a inserção,

torna-se necessário lutar pela permanência e pela distinção, superando as “provas”

definidas pelos anteriormente legitimados na busca do reconhecimento das produções.

No campo de produção, é possível também observar, além das estratégias de

desmerecimento próprias da luta entre os agentes do campo, a estratégia de denegação

acionada pelas instâncias de produção do campo – as editoras. Denegação, definida por

Bourdieu (2001), como uma estratégia utilizada pelos agentes do campo para alcançar

os lucros financeiros, embora ajam como se tal preocupação não existisse, uma vez que

a lógica comercial é considerada brutal com a preocupação apenas centrada nos índices

112 Ibid.

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de venda. Os editores, nesse caso, demonstram “desinteresse” por dinheiro, visto que

arte e dinheiro não devem se misturar. O objetivo dos agentes, nessa estratégia, é

recusar aquilo que é considerado comercial, para assim amealhar o capital simbólico,

que posteriormente se verterá de forma duradoura nos lucros econômicos, a partir do

prestígio simbólico adquirido pela rejeição dos lucros “fáceis” e “imediatos”.

Uma das evidências da denegação aparece no modo pelo qual as novas traduções

de Em busca do tempo perdido devem ser apresentadas ao público leitor: sua

apresentação em um selo catalogado como não comercial, mas cultural, por exemplo. A

outra evidência se verifica no fato em si de uma editora nos dias de hoje se propor

produzir uma nova tradução de uma obra clássica tal como Em busca do tempo perdido,

de Proust, quando já se observa a existência de uma tradução reconhecida como de

qualidade no País.

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5 CONCLUSÕES

Nesta pesquisa, analisamos a questão da consagração da tradução de Em busca do

tempo perdido, levando em conta a consagração de seu principal tradutor, o escritor Mário

Quintana. Observamos que não somente a qualidade da tradução contribui para essa

consagração, mas todo um jogo de forças presente no campo de produção literário.

Para chegarmos a esse entendimento, no primeiro capítulo, traçamos um histórico da

tradução literária no Brasil, no qual destacamos a presença e a influência da literatura e da

cultura francesas em diferentes períodos. Observamos que os primeiros tradutores foram os

jesuítas, e que somente com a chegada da Família Real ao País e com a criação da

Impressão Régia passamos a ter a publicação e consumo de romances traduzidos. Nesse

período, entretanto, o nome do tradutor permanecia incógnito. Notamos que foi somente na

segunda metade do século XIX, graças ao aumento do público leitor, propiciado pela maior

oferta de ensino no País, que houve um incremento no número de traduções. Essas

traduções foram disseminadas no meio social pelos jornais, graças aos romances-folhetins.

Nesse período, tivemos os primeiros autores que se dedicaram à atividade da tradução,

como Machado de Assis, por exemplo. Quanto à maneira de traduzir, observamos que os

moldes das Belles Infidèles eram os mais utilizados. Vimos, também, que a tradução no

século XX passou por profundas transformações no Brasil, não somente por conta da

Primeira Guerra Mundial, que provocou a interrupção da importação de livros da Europa,

propiciando a tradução de romances, mas também pela implantação no País de um projeto

educacional por Getúlio Vargas, nos anos 1930, possibilitando a ampliação do público

leitor. Nesse período, a Editora Globo teve importante participação no mercado editorial

brasileiro, com a tradução de inúmeras obras em diversas coleções. Destacamos o papel de

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Érico Veríssimo como editor, bem como a contratação de autores-tradutores para a

elaboração dessas traduções, como Mário Quintana, Carlos Drummond de Andrade,

Manuel Bandeira, entre outros. Observamos, também, que, nesse período, foram traduzidas

importantes obras, como A comédia humana, de Honoré de Balzac, e Em busca do tempo

perdido, de Marcel Proust, e notamos um crescimento das críticas em relação às traduções,

graças, sobretudo, ao prestígio de quem as traduzia.

No segundo capítulo, observamos que a concepção do que seria uma boa tradução

varia nas diferentes teorias. Na visão tradicional, a fidelidade ao texto original é condição

primordial para uma “boa tradução”. Nas teorias de Antoine Berman e de Lawrence Venuti,

a tradução etnocêntrica ou a não etnocêntrica nos conduziram à discussão sobre a posição

do tradutor diante da tradução e nas teorias tradutórias, e que, para esses autores, a tradução

não etnocêntrica, aquela em que o tradutor não é invisível, seria a melhor tradução.

Constatamos que a invisibilidade ou a visibilidade do tradutor trata-se de um

posicionamento no campo, que se apresenta de modo prático, mas que, na verdade,

constitui uma prática que demonstra uma posição mais ou menos consagrada dentro do

campo, ou seja, são formas sociais de construção da prática da tradução. Notamos que em

algumas teorias a relação entre a tradução e a cultura é tomada como base, e, nessa

perspectiva, na teoria dos polissistemas, constatamos que as relações entre os agentes são

levadas em conta, entretanto sem demonstrar o jogo de forças que se trava no espaço social

da tradução. Assim, com o objetivo de esclarecer as relações sociais produzidas entre os

diversos atores posicionados no espaço da produção literária, ou seja, editores, tradutores,

autores-tradutores, críticos e recepção, empregamos o autor francês Pierre Bourdieu, a fim

de, com a teoria dos campos simbólicos, podermos compreender como determinada

tradução, no nosso caso, Em busca do tempo perdido, alcança um valor único.

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No terceiro capítulo, pudemos observar esse funcionamento do campo simbólico por

meio de diversas evidências que demonstraram como a obra de Proust pôde ser apreciada

com a tradução de Mário Quintana pela Editora Globo, e como as instâncias de produção

simbólica do campo contribuíram para sua consagração. Constatamos, assim, que as

instâncias do campo de produção literária cooperam para consagrar traduções que passam a

ser consideradas como boas traduções, ou, como no caso aqui abordado, tradução imortal

ou definitiva. Para isso, além de discorrermos sobre a teoria dos campos simbólicos de

Pierre Bourdieu, na qual apresentamos as instâncias de produção, de legitimação e de

recepção de uma obra dentro de um campo de produção de bens simbólicos, também

observamos a circularidade de valores dentro do campo de produção literária que acabam

por produzir a crença em um objeto “raro” e “insubstituível”. Em relação a nosso objeto de

estudo, a tradução de Proust elaborada pela Editora Globo em 1948, notamos que a

instância de produção do campo se estruturou sobre a Editora Globo, que dispunha dos

autores-tradutores – escritores em vias de consagração –, tais como Mário Quintana, Carlos

Drummond de Andrade e Manuel Bandeira; do revisor Paulo Rónai; e do editor e escritor

consagrado Érico Veríssimo. Constatamos que o papel das instâncias de consagração na

época dessa tradução ficou reservado à crítica em jornais acerca dessa tradução, que fez

com que a obra fosse amplamente aceita pelo público letrado pertencente à instância de

recepção. Assim, observamos que tradução alcançou valor a partir da consagração no

campo de produção literária, e tomamos como base as evidências da consagração pelo

ponto de vista da instância de produção e de legitimação. Entrevistas com Mário Quintana,

críticas e resenhas em suplementos culturais que teciam considerações sobre essa tradução,

opiniões e considerações em blogs dedicados à atividade literária, bem como capas de

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livros nas quais é exposto o nome de Quintana, foram utilizadas a fim de demonstrar essa

consagração.

Como também se constituem evidências da consagração da tradução de Quintana, as

traduções mais recentes da obra de Proust foram apresentadas no Capítulo 4. Vimos que

essas novas traduções somente reforçam a consagração de Quintana, uma vez que, em

busca de sua própria legitimidade, se demarcam em relação a uma tradução “definitiva”.

Verificamos, também, como é vigoroso o funcionamento do campo em sua busca de

legitimação, ao observarmos como duas novas traduções de Em busca do tempo perdido, a

de Fernando Py, lançada em 1993 pela Ediouro, e a de Mario Sergio Conti, que deverá ter

seu primeiro volume lançado em 2012 pela Companhia das Letras, pretendem demonstrar a

si próprias como legítimas diante daquela que se diz a “definitiva”, como se intitula a

edição da Editora Globo, relançada em 2006. Constatamos, assim, que, no espaço social da

tradução, a cada surgimento de uma nova tradução em lugar de outra já consagrada, um

embate se trava entre os estreantes, em busca de reconhecimento, e os consagrados, que

buscam manter as prerrogativas que contribuíram para sua aceitação e conservação contra

as investidas dos recém-chegados. Notamos que, após a inserção, torna-se necessário lutar

pela permanência e pela distinção, superando as “provas” definidas pelos anteriormente

legitimados na busca do reconhecimento das produções. Ao examinarmos o campo de

produção, pudemos observar Uma tradução consagrada, a da Editora Globo, uma posterior,

de Fernando Py pela Ediouro, uma reação do dominante, “Proust Definitivo”, e uma

segunda tradução pretendente a ser lançada. Dessa maneira, foi possível observar, além das

estratégias de desmerecimento próprias da luta entre os agentes do campo, a estratégia de

denegação acionada pelas instâncias de produção do campo, ao traduzirem a obra de Proust

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com o intuito de colherem capital simbólico que mais tarde será convertido em lucro

financeiro.

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6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Obras traduzidas

PROUST, Marcel. No caminho de Swann - Em busca do tempo perdido. Tradução de Mário Quintana. Porto Alegre: Globo, 1948, v. 1.

________. A sombra das raparigas em flor - Em busca do tempo perdido. Tradução de Mário Quintana. Porto Alegre: Globo, 1948, v.2.

____. O caminho de Guermantes - Em busca do tempo perdido. Tradução de Mário Quintana. Porto Alegre: Globo, 1953, v. 3.

____. Sodoma e Gomorra - Em busca do tempo perdido, Tradução de Mário Quintana. Porto Alegre: Globo, 1954, v. 4.

____. A Prisioneira - Em busca do tempo perdido, Tradução de Lourdes Souza de Alencar e Manuel Bandeira. PortoAlegre: Globo, 1954, v. 5

____. A Fugitiva - Em busca do tempo perdido, Tradução de Carlos Drummond de Andrade. Porto Alegre: Globo, 1956, v. 6.

PROUST, Marcel. O tempo redescoberto - Em busca do tempo perdido, Tradução de Lúcia Miguel Pereira. Porto Alegre: Globo, 1956.

____. Em busca do tempo perdido. Trad. Fernando Py. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.

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157

7. ANEXOS

ENTREVISTAS DE MARIO QUINTANA:

ENTREVISTA 11

“- O senhor diz que gosta de fazer projetos a longo prazo, para “desafiar o diabo”.

Que último desafio o senhor lançou?

QUINTANA: - O último desafio foi uma viagem – gorada – a Paris. O próximo, já em

execução, é aprender a falar inglês. Eu era apenas tradutor de francês da Editora

Globo. Aprendi, sozinho, a língua inglesa numa gramática, para traduzir. Mas apenas

lia o que estava escrito, sem saber a pronúncia. Agora, estou lidando com um curso de

inglês da Inglaterra por meio de fitas cassete. O primeiro tradutor de Virginia Woolf no

Brasil fui eu. A tradução foi bem recebida pela crítica.”

PATRÍCIA BINS – Você sobreviveu a vida inteira de escrever: em jornais,

revistas, traduzindo excelentes livros e, claro, como poeta. Se viesse ao mundo de novo,

escolheria o mesmo modo de viver (e de sobreviver)?

QUINTANA – O mesmíssimo modo, sem tirar nem pôr. (entrevista disponível no site:

http://www.estado.rs.gov.br/marioquintana/entrevistas/Entrevista%20com%20Patricia%

1:. ENTREVISTA a HERMES RODRIGUES NERY julho 1988 disponível no site: http://medei.sites.uol.com.br/penazul/geral/entrevis/quin.htm. 1Site Pen Azul de Literatura e Arte. Entrevista a Hermes Rodrigues Nery. Disponível em: <http://medei.sites.uol.com.br/penazul/geral/entrevis/quin.htm>. Acesso em: 17 ago. 2010. 1Revista Terra. Entrevista com Mario Quintana. Disponível em< http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI1090046-EI6595,00.html>. Acesso em 09 maio 2010.

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158

20Bins.pdf.

“- O senhor traduziu Proust, Voltaire. Como foi seu contato inicial com a língua

francesa?

QUINTANA: - Minha mãe lecionava francês. Aprendi com meus pais, naquele tempo

todo mundo falava francês, fazia parte da educação das moças: estudar piano, estudar

pintura e falar francês. Acho uma coisa muito engraçada. Eu me lembro que, quando

houve uma revolução lá em Alegrete, foi feita quase toda em francês — as senhoras iam

visitar as madames e se comunicavam em francês para os criados não saberem o que é

que se estava tramando.” (ENTREVISTA A HERMES RODRIGUES NERY julho 1988

disponível no site: http://medei.sites.uol.com.br/penazul/geral/entrevis/quin.htm)

QUINTANA: - Meu pai foi conspirador da revolução de 23. Então, para os criados não

entenderem as conspirações e também as coisas íntimas, falava-se em francês.”

(ENTREVISTA in AUTORES GAÚCHOS. MARIO QUINTANA, Ed. Da ULBRA, 1996)

“ Dentre os poetas franceses quais os que mais admira?

QUINTANA: - A gente sempre admira o que mais se parece com a gente, não é? O que

mais se parece comigo ou com quem mais eu me pareço foi Guilhaume Appollinaire, e

outro que a gente não pode deixar de admirar é o mestre dos simbolistas, o Verlaine.

Os outros são discípulos, seguidores, continuadores.”

(ENTREVISTA a HERMES RODRIGUES NERY julho 1988 disponível no site:

http://medei.sites.uol.com.br/penazul/geral/entrevis/quin.htm)

“- Francês e Latim saíram do currículo das escolas. Isso empobrece culturalmente o

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aluno de hoje?

QUINTANA: - O latim nunca fez parte do meu currículo -eu fui educado no Colégio

Militar de Porto Alegre, uma escola fundada pelos militares que eram positivistas e não

queriam saber de nada que cheirasse a padre... Mas retirar o francês foi a maior

injustiça, o francês era o veículo literário do mundo naquele tempo, e até há pouco

tempo. E nós devemos muito ao conde de Belchior de Vogué, que traduziu os russos. Se

os russos não tivessem sido traduzidos para o francês nós desconheceríamos

Dostoiévski até hoje. O que é desconhecer uma terça parte da alma humana. Porque a

alma humana está dividida em três partes, uma em Shakespeare, outra na Bíblia, outra

em Dostoiévski. Pelo menos para mim.”

ENTREVISTA (A HERMES RODRIGUES NERY julho 1988 disponível no site:

http://medei.sites.uol.com.br/penazul/geral/entrevis/quin.htm)

- Além de poeta, o senhor é tradutor de obras clássicas, como vários volumes de Marcel

Proust. Que semelhança pode existir entre o trabalho de tradução e o ofício da criação

poética?

QUINTANA: - Há sempre uma diferença entre tradução literal e tradução literária.

Creio que a tradução de um autor é, nada mais, nada menos, a estréia desse autor na

literatura da língua para a qual ele foi traduzido. Daí, a responsabilidade enorme de

traduzir um Proust, um Voltaire, gente assim.

-Como tradutor, como vê esta profissão?

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QUINTANA: - Eu acho uma coisa de grande responsabilidade. Porque eu creio que a

tradução de um poeta para a nossa língua é nada mais, nada menos, que a estréia deste

poeta na literatura brasileira. De maneira que é uma enorme responsabilidade. Olha

que eu traduzi Proust o que não é brinquedo. E traduzi Voltaire, traduzi Merimée,

traduzi esta gente assim.

- E como foi traduzir Proust?

QUINTANA: - Foi uma coisa horrível. Mas eu gostei, exatamente por causa da

dificuldade. A dificuldade é uma coisa que pode cansar, mas é o mesmo que a

ginástica, faz bem.

ENTREVISTA 2 – (publicada em 1989 na Crisis – disponível em

http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI1090046-EI6595,00.html)

- Quantos livros você traduziu?

QUINTANA - Eu traduzi para a Livraria do Globo, cento e trinta e oito livros. No

tempo em que eu era criança, o francês era moda e a minha mãe era professora de

francês. Então, quando a gente, por exemplo, não queria que os empregados soubessem

o que a gente estava dizendo, aí se falava em francês. Grande parte da revolução de 23,

por exemplo, foi preparada em francês, porque se reuniam as senhoras dos oficiais

para tomarem chá e comunicavam as coisas todas em francês. Imagine que na minha

terra, em Alegrete, se fez revolução em francês. Que barbaridade! Naquele tempo as

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161

comunicações com a Europa eram bem mais fáceis que hoje. A França era a capital

literária do mundo. Eu, quando estava na farmácia do velho, tinha conta numa livraria

francesa. Eles mandavam os boletins e eu encomendava. Tudo vinha direto de Paris

para Alegrete.

ENTREVISTA 3- concedida à Edla van Steen e publicada no livro: Viver & escrever. V.

1. Porto Alegre: L&PM, 2008.

- Entre outros autores você traduziu Proust e Virginia Woolf. Foi amor pelas obras ou

alguma necessidade financeira que o teriam levado à tradução?

QUINTANA: - Traduzi Proust por amor à dificuldade da tradução. Quando soube que

Proust estava incluso no programa editorial da Globo, pedi para traduzi-lo, por medo

que caísse em outras mãos. Retirei-me do quadro de funcionários da Globo quando,

por ocasião de um aumento de salário, eu não fui contemplado, sob a alegação de que

me demorava muito na tradução de Proust. Traduzi da primeira até a quarta parte

(Sodoma e Gomorra). Por felicidade, o restante foi cair em excelentes mãos (Manuel

Bandeira e Carlos Drummond de Andrade). E Virginia Woolf? Pois foi isso mesmo: eu

não tive medo de Virginia Woolf! Mrs. Dalloway é um denso, belo, misterioso poema.

Brito Broca julgou a minha tradução à altura do autor. Fiquei contente de ter sido o

outro livro de Virgínia (Orlando) traduzido por um poeta como Cecília Meireles. Em

tempo: quem me introduziu na vida literária foi Cecília Meireles. Lembro que ela

publicou a Canção do Meio do Mundo no suplemento do Diário de Noticias, com uma

bela ilustração de Correia Dias. Outro que sempre fez muito por mim foi Augusto

Meyer, o nosso último humanista. O que mais me admira em Augusto Meyer é a

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admiração que eu tenho por ele. Embora apenas quatro anos mais velho do que eu,

sempre o considerei um mestre. A saudação que ele me fez de improviso na Academia

Brasileira de Letras em 1966, o Aurélio Buarque de Holanda me confessou que era

uma obra-prima, com o perdão da palavra. Não sei se foi gravada.

- No seu entender, o que é uma boa tradução?

QUINTANA: - Aquela que segue o estilo do autor, e não o do tradutor. Os períodos de

quadra e meia de Proust (sim, o período dele dava volta na quadra) não poderiam ser

divididos em pedacinhos, por amor da clareza ou coisa que o valha, como acontece às

vezes na tradução castelhana. Mas a maior alegria que tive como tradutor foi quando a

minha tradução dos Romans, Voltaire, um calhamaço enorme. Com jóias como

Cândido e A princesa da Babilônia, foi remetida à apreciação de Paulo Rónai,

especializado em literatura clássica francesa. Ele devolveu os meus originais com a

seguinte nota: “É preciso ortografar”. A tradução de Voltaire foi também a meu

pedido. Você há de espantar-se que eu, assombrado com Camões, envolto de Virginia

Woolf, tenha me comprazido na luz mediterrânea de Voltaire. A culpa foi também de

meu pai, que adorava La Fontaine e me fez decorar algumas de suas fábulas antes que

eu as pudesse ler. Assim as névoas e perigos do Cabo Tormentório eram varados pelo

riso claro e simples do bonhomme fabulista. Não admira, pois, que, mais tarde, eu

adorasse Racine, a par de Shakespeare. Cheguei a começar por conta e risco uma

tradução da Ifigênia, de Racine, e do Sonho de uma noite de verão, as quais

infelizmente se perderam. Ou felizmente, nunca se sabe. Bem, eu estava falando nas

minhas atuais leituras. Há uma época de ler e uma época de reler, como diria o

Eclesiastes. Agora, para descanso, estou na época de desler. E, como continuo insone

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(uma vez escrevi que não tenho medo do sono eterno, mas da insônia eterna), agora

leio principalmente para adormecer. É uma leitura de fora para dentro, como quem

olha distraidamente a televisão. As outras leituras, as leituras de dentro para fora,

excitam o cérebro e não são recomendáveis no meu caso. Leio ficção científica, uma

espécie de volta a O tico-tico. A falar verdade, o que de melhor e pior se publica

atualmente nos Estados Unidos são as novelas de ficção científica. Entre elas, descobri

as de um grande poeta, Ray Bradbury. É dessas obras que a gente gostaria de ter

escrito.

- Você gosta da literatura norte-americana?

QUINTANA: - Gosto de Scott Fitzgerald, o que não é de admirar porque ele pertence à

minha geração: o mesmo caldo de cultura, a mesma sensibilidade. Gosto de Edgar Poe,

e eu não compreendo como é que ele foi aparecer por lá. Deve ter havido um engano de

país ou de planeta. Gosto de Gertrude Stein (Três Vidas eu já li outras tantas vezes).

- Só?

QUINTANA: - Só. Não posso esquecer que minha infância se passou na belle époque,

quando até os americanos sabiam falar francês. Tenho uma amiga que foi para a

Alemanha apenas sabendo francês. Como eu lhe observasse que era pouco, ela

respondeu: "Não vale a pena conhecer alemães que não saibam francês". Aproveito a

ocasião para lançar o meu protesto contra essa idéia de tirarem a língua francesa do

currículo escolar. O que devemos à França não é a cultura francesa, é a cultura

universal. Toda obra, para universalizar-se, teria de passar pelos tradutores franceses.

Se não fosse a França. o mundo ocidental teria perdido Dostoiévski. Imagine você o

que teríamos de conhecimento da alma humana se não conhecêssemos Dostoiévski.

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Nada. Ou quase nada. Pois me lembrei agora de Shakespeare. Mas a minha queixa é

contra os americanos. Já disse e repito que, se há males que vêm para bem, há bens

que vêm para mal. Exemplo: os Estados Unidos ganharam a guerra. Resultado: o povo,

em geral, só lê os best-sellers americanos que eles nos impingem. São tão ruins que

chego a acreditar que sejam apenas literatura de exportação. Enquanto isto, os livros

brasileiros bons não são reeditados. Nem são reeditadas as traduções de bons livros

estrangeiros. Onde está, por exemplo, a minha tradução de Poeira, de Rosamond

Lehman, o meu Sparkenbrook, de Charles Morgan?

ENTREVISTA 4 in AUTORES GAÚCHOS. MARIO QUINTANA, Ed. Da ULBRA, 1996

QUINTANA: - Meu pai foi conspirador da revolução de 23. Então, para os criados não

entenderem as conspirações e também as coisas íntimas, falava-se em francês.”

Fala de sua entrada para a Ed. Globo, como tradutor, aos 28 anos:

QUINTANA: - Como há males que vêm para bem, os Estados Unidos ganharam a

Guerra, e eu com ela. Todo mundo começou a estudar Inglês-como ainda hoje, mas o

Érico (Veríssimo) lembrou que eu era o único conhecido que falava francês e me

chamou para a Editora Globo.

Lembra o quanto foi difícil traduzir Proust e sua obra Em busca do tempo perdido:

QUINTANA: - Uma barbaridade traduzir aqueles períodos que dão volta na esquina e

não se sabe onde vão parar.

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ENTREVISTA 5: (Casa de Cultura Mário Quintana.

http://www.estado.rs.gov.br/marioquintana/ averi, Cláudia Borges de ; Castelli,

Eleonora. Em busca do tradutor: Proust e Mérimée por

MárioQuintanaUFSC.http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/viewFil

e/6588/6066)

Mas, como eu ia dizendo, traduzia porque gostava daqueles livros. E quanto

mais difícil o livro, mais eu gostava. Por isso, entre todos os autores que traduzi, o que

me deu mais satisfação foi Virgínia Woolf. Mesmo porque o páreo era duro: antes de

mim, quem havia traduzido a Virgínia no Brasil era nada menos do que Cecília

Meireles. Eu tinha que ser digno da minha amizade e admiração pela Cecília.[...]

Antes de tudo, Proust foi para mim um trabalho e um prazer ao mesmo tempo,

porque olha que traduzir Proust... Ele tem períodos enormes que dão volta na página e

eu devia traduzir preservando a mesma clareza do original. Tanto que comentei com o

Érico Veríssimo, que dirigia o setor de traduções da Editora Globo: “Estou gostando

tanto de traduzir o Proust que, se eu tivesse dinheiro, eu é que pagava para vocês”. [...]

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“Quando houve o primeiro aumento geral, fui o único a não ser aumentado.

Naturalmente, tomei satisfações. A resposta que me deram foi que eu levava muito

tempo na tradução. “Você,afinal, levou quatro meses para traduzir um volume”. Ora,

eles não compreendiam que eu tinha que demorar tanto tempo quanto Proust levara

para escrever o original, para fazer uma tradução digna. Queriam que eu traduzisse

com a mesma velocidade com que traduzia romances sem civilização nenhuma, ditados

para uma estenógrafa em uma semana. Por causa disso, abandonei minhas funções de

tradutor na Globo e fui trabalhar no Correio do Povo.”