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105 Tradução: A Busca pela Linguagem Pura Giuliano Tosin 1 Resumo O artigo apresenta reflexões a partir das teorias da tradução, abordando conceitos-chave do assunto como traduzibilidade, fidelida- de, transgressão, originalidade e desvio, além de outros, diretamente ligados a ele, como ideologia, cultura, poder e temporalidade. O per- curso apresentado permite estabelecer uma comparação das ideias vi- gentes na perspectiva culturalista, sobretudo na obra de Susan Bassnett e André Lefevere, com vertentes como a abordagem estético-formal de Haroldo de Campos, a filosofia de Walter Benjamin e Jacques Derrida, a linguística de Roman Jakobson, entre outras. Ressalta os contrastes e afinidades existentes entre elas, e conclui destacando as características do tradutor na atualidade. Palavras-chave Tradução; Língua; Linguagem; Comunicação. Abstract e article presents reflections from the theories of translation, addressing key concepts of the subject, as translatability, loyalty, tres- pass, originality and deviation, and other directly connected to it, such as ideology, culture, power and temporality. e route presented allows a comparison of the ideas prevailing in the culturalist perspective, especially in the work of Susan Bassnett and André Lefevere, with others such as the aesthetic-formal approach of Haroldo de Campos, the philosophy of Walter Benjamin and Jacques Derrida, the linguistics from Roman Jako- bson, among others. Highlights the contrasts and affinities existing betwe- 1 Doutor em Arte e Mediação pelo IA-UNICAMP. Professor de Comunicação Social e Artes Visuais na FAAT Faculdades. Professor do Curso de Pós- Graduação em Marketing Político e Propaganda Eleitoral da ECA-USP.

tradução: A Busca pela Linguagem pura

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tradução: A Busca pela Linguagem pura

Giuliano Tosin1

Resumo O artigo apresenta reflexões a partir das teorias da tradução,

abordandoconceitos-chavedoassuntocomotraduzibilidade,fidelida-de, transgressão, originalidade e desvio, além de outros, diretamente ligadosaele,como ideologia,cultura,podere temporalidade.Oper-curso apresentado permite estabelecer uma comparação das ideias vi-gentesnaperspectivaculturalista,sobretudonaobradeSusanBassnetteAndréLefevere,comvertentescomoaabordagemestético-formaldeHaroldodeCampos,afilosofiadeWalterBenjamineJacquesDerrida,alinguísticadeRomanJakobson,entreoutras.Ressaltaoscontrasteseafinidadesexistentesentreelas,econcluidestacandoascaracterísticasdo tradutor na atualidade.

palavras-chaveTradução;Língua;Linguagem;Comunicação.

AbstractThe article presents reflections from the theories of translation,

addressing key concepts of the subject, as translatability, loyalty, tres-pass, originality and deviation, and other directly connected to it, such as ideology, culture, power and temporality. The route presented allows a comparison of the ideas prevailing in the culturalist perspective, especially in the work of Susan Bassnett and André Lefevere, with others such as the aesthetic-formal approach of Haroldo de Campos, the philosophy of Walter Benjamin and Jacques Derrida, the linguistics from Roman Jako-bson, among others. Highlights the contrasts and affinities existing betwe-

1 DoutoremArteeMediaçãopeloIA-UNICAMP.ProfessordeComunicaçãoSocial e Artes Visuais na FAAT Faculdades. Professor do Curso de Pós-GraduaçãoemMarketingPolíticoePropagandaEleitoraldaECA-USP.

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en them, and concludes approaching the characteristics of the translator today.

Key WordsTranslation; Language; Communication.

OTradutoreseuOfício

Umclássicosobretradução,ATarefadoTradutor,ensaioescritoporWalterBenjaminparaservirdeprefácioàsuatradu-çãodepoemasdeCharlesBaudelaire,parecepropícioparacons-tituir-se como ponto de partida para situar o debate acerca do assunto.Consideradopormuitosumtextocomplexoeobscuro,apresentaumpontodevistafilosófico idealista eplatônico, in-fluenciadodiretamentepelatesededoutoradodeBenjaminsobreromantismoalemão,apresentadadoisanosantes.Oensaiosituaaprática da tradução como a busca por algo enigmático, misterioso e oculto nas línguas, que proporciona o encontro com aquilo que não é dito, não é comunicado nos enunciados, com uma essência metafísicaetranscendente.Atraduçãoestabeleceumcanalparao contato comuma instância alémda linguagem.O trechodoensaio, selecionado a seguir, ilustra um pouco o teor das propo-sições do autor:

Aquelas traduções que escolhem para si o papel de intermediá-rio, que em nome doutro transmite ou comunica, não conseguem transmitir senão a comunicação, ou seja, o inessencial. É esta uma das características por que se reconhece uma má tradução. Não será então aquilo que para além da comunicação existe numa poe-sia – e até o mau tradutor concede que aqui se situa o essencial – o que geralmente se cognomina de inapreensível, misterioso e “poéti-co”?(Op. Cit.,p.38)

O percurso obscuro proposto por Benjamin para inter-pretaratraduçãofoiretomadoporoutrosautores,eseucaráter

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enigmático rendeu ensaios com análises e interpretações (Jac-quesDerrida,PaulDeMann,HaroldodeCampos,entreoutros),demodoque,por suanatureza,pode ser consideradobastante“aberto” a diferentes leituras. Mas seus aspectos metafísicos eenigmáticos devem ser considerados uma premissa por quem buscacompreendê-lo.SuzanaLages,noartigorecenteintituladoBabelRevisitada:RelereRe-traduzirATarefadoTradutor,che-gouacaracterizá-locomo“irritantementeenigmático”,umavezque,nolugardeinformaroleitorsobreosprocedimentosutiliza-dos pelo tradutor para superar as dificuldades em transpor para alínguaalemãapoesiadeBaudelaire,nãocitasequerumversotraduzido,ocupando-seunicamentede“sustentarsuaparadoxalconcepção de tradução, em que o enigma e a obscuridade têm um papelcentral”.Aindanaspalavrasdaautora,“Benjaminbate-secontra toda e qualquer finalidade comunicativa da tradução do textoliterário,poisidentificaoelementopropriamenteliterário,poético com aquilo que vai além do plano da comunicação empí-ricaequeseligaaalgomisterioso”.(Ibid., p.38)

Esse mistério reside, sobretudo, no encontro com aqui-loqueBenjaminchamounoensaiode“Línguapura”,ou“Puralinguagem”,dependendodatraduçãoparaoportuguês.Seriaum“domíniopredestinadoe inacessívelondeas línguassereconci-liameatingemtodaasuaplenitude”,(Ibid.,p.41)umlugarqueconteria os alicerces de todas as línguas, algo como uma língua absoluta e verdadeira, superior a todas e que a todas contém. To-dasaslínguasapontamparaa“Línguapura”,ou,segundoBenja-min,“aquiloqueserepresentaouprocurarepresentarnoadvirdas línguas será aprópria essênciadaLínguapura”. (p. 42)Elaconteria a chave para os mistérios de toda a comunicação:

Nesta Língua pura – que já nada pretende exprimir e que já nada exprime, e que pelo contrário é como que a palavra inexpressiva e criadora que é o conteúdo em todas as línguas – reúne-se finalmen-te toda a comunicação, todo o significado, e toda a intenção num nível em que já não se diferenciam ou distinguem uns dos outros. (Op. Cit.,p.42)

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A “Língua da verdade” conserva, silenciosamente, “semtensõesnemconflitos”,osmaisantigoseprofundosmistériosdopensamento,eaelaasdiferenteslínguassereferem.Oexercíciodatradução,porsuavez,transferindosignificadosatravésdedi-ferenteslínguas,expressaarelaçãomaisíntimaentreelas,reve-lando que as mesmas não são alheias entre si, mas pertencem a algomaior,quereverenciamcadavezquefuncionam–a“Línguapura”,pontodeconvergênciaentretodas.

Benjamincitaassagradasescriturasjudaicascomoexemplodamanifestaçãoda“Línguapura”,eusaigualmenteumaimagemdessa tradição religiosa para ilustrar o modo como se dão as rela-çõesentreasdiferenteslínguasnocontextodeumalínguamaior.Essaimageméadovasoquebrado,umaimagemcabalística.Paraoautor, se quisermos juntar novamente os cacos de um vaso quebra-do,“estestêmdecorresponderunsaosoutros,semseremtodavianecessariamente iguaisquanto às suas ínfimasparticularidades”.Do mesmo modo, a tradução, ao invés de imitar o original para se aproximardele,deve“insinuar-secomamornasmaisínfimaspar-ticularidadestantodosmodosdo‘quererdizer’originalcomonasuapróprialíngua”,parajuntá-lascomosefossemcacosdovasoquebrado,paraque“depoisdeasjuntarelasnosdeixemreconhe-cerumaLínguamaisamplaqueasabranjaaambas.”(Ibid.,p.41)

ÉimportanteobservartambémaquiloqueBenjamincha-made“traduzibilidade”deumaobra.(Ibid.,p.38)Paraele,atra-duçãoé,antesdemaisnada,umaforma,inspiradaemoutrafor-maanterior,queporsuavez,possuíaemsuaorganizaçãoformalumaleiquedeterminavaoquantoelaeratraduzível.Sendoassim,asobraspossuemdiferentesnaturezas,algumasmaispropíciaseoutras menos, para a tradução. Todas contêm, em suas entreli-nhas,suas“traduçõesvirtuais”,emgrausvariados.Podeocorrerdeaobrapossuirumanaturezamuitopropíciaàtradução,desuaforma “exigir” e “reclamar”uma tradução. ParaBenjamin, estatraduzibilidadeéoqueconectaatraduçãoeooriginal,comoex-plica no trecho que segue:

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O fato da traduzibilidade ser própria de certas obras não significa que a sua tradução lhes seja necessária e essencial mas sim que um determinado significado, existente na essência do original, se expressa através da sua traduzibilidade. É evidente que uma tra-dução, por muito boa que seja, nunca consegue afetar ou mesmo ter um significado positivo para o original. Ela mantém no entanto com o original uma estreita conexão através da traduzibilidade. E esta conexão é tanto mais estreita e íntima por não afetar o origi-nal, podendo ser denominada como conexão natural, ou mesmo, num sentido mais rigoroso, como relação vital.(Op. Cit.p.38)

Atarefadotradutorseriacaptaraessênciadaobraoriginalatravésdesuatraduzibilidadeeintegrá-laauma“Língua”únicaeverdadeira.Atradução,paraBenjamin,deveapenastocardeleveo original, e somente num ponto infinitamente pequeno do seu significado,paraemseguidacontinuaroseuprópriocaminho.Oautoralemãocitadiferençasfundamentaisentreospropósitosdoautordooriginaledatradução,considerandooprimeiro(origi-nal)ingênuoeprimário,enquantoasegundanorteia-seporumaintenção jáderivada.Porém,aocontráriodoqueocorrecomaobra original, a tradução não se encontra situada no centro da “florestadalíngua”,masforadesta,esementrarnela,atraduçãoinvoca-aparaum lugarondeum“eco”,atravésdaprópria“res-sonânciadaobra”,podeser transmitidoauma línguaestranha.(Ibid.,p.42)

Comentandoo ensaiodeBenjamin,HaroldodeCampos(1987,p.67)defineque,deacordocomasideiasdoautor,atradu-çãoseria“omomentoparadisíacoda‘verdade’daslínguas,desuatransparência na plenitude de uma redenta linguagem universal, quando a tradução se ultimaria como inscrição interlinear, abso-lutizadanarevelaçãodalínguasagrada.”ParaHaroldodeCam-pos(Ibid., p.67)opapeldotradutor,deacordocomBenjamin,ébemmaiordoquereivindicarsualiberdadenatradução;éumpapelderesgate.Otradutortemqueoperarum“desocultamento”,uma“remissão”,no“sentidosalvíficodapalavra”queBenjamin

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utiliza, para expor o “modode representação, de ‘encenação’, omodode intencionar, omodode significardooriginal”.Comoexemplificouoautoralemão,“embrot e painoconteúdoédefatoomesmo,maso ‘mododepretenderexpressá-loé jádiferente”.(1979, p.40)Este “modode significar”não é o “significado”daobra,seuconteúdodenotativo,masasua“formasignificante”,asintençõesocultasemseumododedizer.Oexercíciodatraduçãorevela,portanto,a“Línguapura”,queestápordetrásdaslínguasecontém a intenção de tudo o que quer ser dito.2

A questão da vida da obra e de sua sobrevida através da traduçãoéoutropontomarcantenoensaiodeBenjamin:

Não é metafórica mas sim literalmente que se deve entender a vida e sobrevivência de uma obra de arte. Já mesmo nos tempos do pen-samento mais acanhado e primitivo se suspeitava que se não devia atribuir vida apenas a seres e corpos orgânicos. (...) Só se faz inteira justiça a este conceito de Vida quando se reconhece a sua existência em tudo aquilo que dá origem à história e que não se limita a ser simplesmente o palco onde esta é representada. (...) A história mos-tra-nos como as grandes obras de arte descenderam das suas fontes, deixa-nos ver como estas adquiriram a sua forma durante a vida do artista, e revela-nos o período fundamentalmente eterno da sua so-brevivência através das gerações vindouras, dando-se a esta última fase, quando ela de fato se verifica, o nome da glória.(1979,p.38)

Benjamin acreditava, ao contrário de muitos autores daépoca,queastraduçõeserambemmaisdoque“merasinterme-diárias”que“sósurgemquandoumaobraatingiuaépocadasuaglória”.(1979,p.39)Ooriginaldeveasuasobrevivência,ouper-manêncianahistória,àtradução,vistoque“avidadaobraorigi-nal chega até as traduções constantemente renovada e com um

2 Benjaminapontaasatividadesdoautoredotradutorcomointrinsecamentediferenteseincomparáveis,elembraqueahistórianãoconfirmaopreconceitocorrentequedizque“otradutordeimportânciaépornecessidadeumgrandepoeta,eopoetainsignificanteummautradutor.”(1979,p.40)

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desenvolvimentocadavezmaisamploerecente.”(p.39)Oautordiz que a tradução acende a “eternaflamada sobrevivência daobraoriginal”parao“fogoinfinitodorenascerdaslínguas”.(p.40)Emoutropontodoensaio,voltaadestacarquea tradução,muitomaisdoquetransmitiroconteúdodooriginal,fazcomqueelerenasçadenovo,emdiferentesaspectos.

AleituradeJacquesDerridaparaesteantológicoensaiodeBenjaminsobreoqualoranosdebruçamoséotemacentraldolivroTorresdeBabel.Nele,oautorfrancêsanalisaomitobíblicodaTorredeBabelàluzdeATarefadoTradutor.Partedaconstata-çãodequeBabel,antesdetudo,setratadeumnomepróprio,umnomequenãosabemosexatamenteoquesignifica,senãoatravésdafiguração,dametáfora.OmitodeBabel edas inadequaçõesentreaslínguasnãoformaumafiguraemmeioaoutras,elaé“omitodaorigememsipróprio”,a“metáforadametáfora”,a“tra-duçãodatradução”.(Derrida,2002,p.11)OnomepróprioBabeldeveriapermanecerintraduzível,denominandooinominável,ouseja, Deus, que é a origem da linguagem.3Masemfunçãodeuma“confusãoassociativa”geradanumambienteondesefalavaumalínguaúnica,passou-seadefinirtambémBabelcomoumapala-vraquesignifica“confusão”.(p.12)OpoderdenomearpertenciaexclusivamenteaDeus,ocriadordalínguaúnica,masdiantedosacrilégio humano de tentar tocar os céus com a torre, a penitência impostapelacóleradivinafoiexatamenteanularodomdaslín-guas, desunindo-as e dando margem, indiretamente, à tradução.

SegundoDerrida,antesdoepisódiodeBabelagrandefa-mília semítica acabara de fundar seu império e pretendia uni-versalizá-lo, juntamente com sua língua. Esta pretensão levou

3 É interessante observar como Jacques Derrida aponta a diversidade designificados da palavra “tarefa”, que intitula o ensaio de Benjamin. Essessignificados podem trazer outras dimensões de compreensão do texto; sãoeles:“dever,dívida,taxa,contribuição,imposto,despesadeherançaesucessão,nobreobrigação”.(2002,pp.62-63)Todoscolocamotradutornumacondiçãode dependência e débito, como se o autor do original também não fosseendividado,taxado,obrigadoporoutrostextosdeondeextraiusuacriação.

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àpuniçãodivina,“por teremqueridoassimseassegurar,porsimesmos,umagenealogiaúnicaeuniversal”.(Ibid.,p.17)Diantedestaconstatação,oautorquestionasenãosepodefalardeumciúmedeDeus,umressentimento“contraessenomeeesselábioúnicosdoshomens”,queolevouaimporseunomedePai.(p.18)Essaviolentaimposiçãogerouadesconstruçãodatorreedalín-guauniversal, trazendo confusão e a consequentedispersãodagenealogia. Com esse gesto, Deus impôs e interdisse ao mesmo tempoanecessidadedatarefaimpossíveldatradução.Amaldi-çãocontrao“imperialismolinguístico”dossemitasdestinouoshomensaofardodatradução,comsuaimpossibilidade.Se,porum lado, Deus livrou o restante do mundo de ser submetido ao impériodeumanaçãoparticular,limitouaprópriauniversalida-de com a univocidade impossível das línguas.

DerridavêcomoproblemáticaatraduçãodeATarefadoTradutor,senãoforvistasobaóticadeumaobraquefuncionaelamesmacomo“aassinaturadeumaespéciedenomeprópriodes-tinadaaassegurarsuasobrevidacomoobra”.(Ibid.,p.35)Alei-turadeDerridaparaoensaiodeBenjaminconsideraqueoautoralemãovênatraduçãoacriaçãodeumcontratoespecial:“noseusentido quase transcendental, seria o contrato ele mesmo, o con-tratoabsoluto,aforma-contratodocontrato,oquepermiteaumcontratoseroqueeleé.”(p.43)Essecontratoexpõeasrelaçõesmaisíntimasexistentesentreaslínguas,todasassuasafinidades,no sentido de representarem algo possível dentro da essência da “Linguagempura”,segundoDerrida:

A tradução é transposição poética (Umdichtung). O que ela libera, a “linguagem pura”, nós teremos que interrogar a essência disso. Mas notemos por enquanto que essa liberação supõe ela mesma uma liberdade do tradutor, que ela mesma não é mais do que uma relação com essa “linguagem pura”; e a libertação que ela opera, eventualmente transgredindo os limites da língua traduzante, por sua vez transformando-a, deve estender, ampliar, fazer crescer a linguagem.(Op. Cit.p.47)

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Em seguida, Derrida resgata no ensaio original o pontoque compara o contrato da tradução ao contrato de casamento. A traduçãoesposaooriginalcomodoisfragmentosquesejuntam,eessajunção,noseioda“Língua”maior,verdadeiraeabsoluta,gera um crescimento, um aumento e uma sobrevida para as obras easprópriaslínguas,quesealteramapartirdessecontato.“Éoque chamei o contrato de tradução: himineu ou contrato de ca-samento com promessa de inventar um filho cuja semente dará lugaràhistóriaeaocrescimento.”Ecompleta:“Benjaminodiz,natraduçãoooriginalcresce”.(Ibid., p.50)Écomosecadalínguaestivesse“atrofiadanasuasolidão,magra,paradanoseucresci-mento, enferma”, e graças à tradução, emais especificamente à“suplementaridadelinguísticapelaqualumalínguadáaoutraoquelhefalta”atravésdatradução,queestáseguroo“santocresci-mentodaslínguas”,atéofimmessiânicodahistória.(p.67)

Ocontatodos“corpos”dosnoivosnocontratodatradução,entretanto,éapenasfugidio,ou“fugitivo”,conformeatraduçãodaobradeBenjamin.Osdoissetocamlevementeemumpontoinfi-nitamente pequeno do sentido, onde as línguas afloram. Derrida (Ibid., p.48)analisaessecontatoequestionasobreoquepodeseropontoinfinitamentepequenodosentidoaoqualBenjaminserefere,eemquemedidaépossívelavaliá-lo:

Acompanhemos esse movimento de amor, o gesto desse amante (liebend) que trabalha na tradução. Ele não reproduz, não restitui, não representa; no essencial ele não devolve o sentido do original, a não ser nesse ponto de contato ou de carícia, o infinitamente pe-queno do sentido. Ele estende o corpo das línguas, ele coloca a lín-gua em expansão simbólica; e simbólica aqui quer dizer que, quão pouco de restituição haja a cumprir, o maior, o novo conjunto mais vasto deve ainda reconstituir alguma coisa. Não é talvez um todo, mas é um conjunto cuja abertura não deve contradizer a unidade. (...) Se o crescimento da linguagem deve também reconstituir sem representar, se aí está o símbolo, pode a tradução aspirar à ver-dade? Verdade, será esse ainda o nome do que faz a lei para uma tradução?(Op. Cit.,p.50)

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Esse ponto infinitamente pequeno constitui-se, ainda naleituradeDerrida(Ibid., p.57),o“limitedatradução”.Neleo“in-traduzívelpuro”eo“traduzívelpuro”seencontram,eseconcre-tizaa“verdade”.Derridaobservaqueapalavra“verdade”aparecediversasvezesnoensaiodeBenjamin,eesclarecequenãosetratada verdade como fidelidade em relação ao original, o que seria muitoóbvio,tampoucodeumaadequaçãodalínguaaosentidoouà realidade.Averdade,nocontextodeBenjamin, constitui--seemsiprópria,maisumenigmadoensaio.Ofilósofofrancêsdizque“averdadeseriadepreferênciaalinguagempuranaqualosentidoealetranãosedissociammais.”Atradução,aindase-gundoDerrida,trazconsigoumapromessadereconciliaçãodaslínguas,umapromessa simbólica se cumprecadavezqueduaslínguassecasamcomopartedeumtodomaior,uma“Línguasu-prema”,ouo“ser-línguadalíngua”queéverdadeiraàmedidaquese referea simesma,enelacada línguanatural tentaconstruirseus significados.

ObrarecentecomreferênciasmarcantesaoensaioATarefadoTradutor,olivroWalterBenjamin:TraduçãoeMelancolia,deSuzanaLages,trabalhacomanoçãodequeaimpossibilidadedatraduçãoéograndefantasmaqueassombraahistóriaeateoriada tradução.Esta colocao tradutor emumpermanente estadomelancólico,apartirdatristeconsciênciadesuaincapacidadederesgatar algo do original que ficou para trás com a tradução. A constatação da não-coincidência entre as línguas acarreta o re-conhecimentoda impossibilidadede se traduzirdeuma línguapara a outra sem que ocorram perdas. Dessa sensação de perda, porsuavez,decorreumasensaçãodeimpotência,econsequente-mente, a melancolia.

Aautoradescreveque,paraapsicanálisecontemporânea,o termo melancolia significa um estado psíquico tendencialmen-te patológico, emque o sujeito alternamomentos de profundatristeza,comenormeempobrecimentoedesvalorizaçãodoego,e momentos de muito entusiasmo, nos quais o ego recompõe sua

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imagem,apresentandoumexcessodeautoconfiança(fasemaní-aca).Lagesaproximaamelancoliadatradução,afirmandoqueahistóriadatraduçãoedostradutoresquechegouaténósatravésdosestudosdetraduçãopodeserdescritacomoumahistóriaderebaixamentoedesvalorizaçãodoegodequemtraduz.Poroutrolado,existeumaexigênciaexageradadequeotradutortenha“ca-pacidadessobre-humanas”,noquedizrespeitoaconhecimentosculturaiselinguísticos.Osdoispolosextremosrepresentambemacaracterísticamelancólica.

SegundoLages(Op. Cit.,p.30),aimpossibilidadedetradu-zirtemsidointerpretadapelosestudosdetradução,namaioriadasvezes,comoumfatornegativo,comoum“entraveàreflexão”,algo que empobrece o tema e desprestigia o tradutor. Trata-se, paraaautora,deumpreconceitoqueofuscaoquepoderia ser“umpontoapartirdoqualquestionaranaturezadalinguagemedopensamentohumano.”Oquepodetersidointerpretadopejo-rativamentepelasteoriasé,naconcepçãodeLages,umsentimen-toquehabitatodootradutor.Aconsciênciadesuaexistêncianãoreduzacondiçãodotradutorquecomeleconvive.Seurecalqueéumobjetoperdido,massuapráxisnãodeixadefazersentidosemalcançá-lo.Entretanto,aidealizaçãodatraduçãoidênticaaooriginal é uma marca que persiste no cenário ambíguo de seu in-consciente.

Afiguradotradutormelancólicodemonstraaincorpora-ção do recalque, a partir da constatação de sua impotência dian-te do objeto inalcançável. Como salienta a autora, a tradução é umaatividadederenúncia,naqualotradutorabdicadetraduzir“tudooqueseencontrapotencialmentenooriginal”,esehabituaaconvivercomumaincompletudequeéprópriadacondiçãodalinguagemedotraduzir.Elaconsiderainerenteaotradutorsaberconviver com a diversidade na estruturação de significados das diferenteslínguas,“pelaqualcertosconteúdosdeumalínguacor-respondemapenasparcialmenteaosconteúdosdeoutralíngua.”(Ibid., p.66)

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Analisando estudos contemporâneos sobre tradução sobaperspectivamelancólica,Lagesconstataquearecorrentecon-tabilizaçãodeperdaseganhosusadaparaanalisarprocessosdetraduçãotambémreforçanitidamenteatesedamelancolia.Nela,normalmente, as perdas são consideradas “irrecuperáveis” e osganhos,apenas“compensaçõeslimitadas”,oquerefletemaisumavezumainclinaçãopejorativa,umapreferênciapelonegativo,tí-picodamelancolia.Emoutroextremo,algunsestudosmostramummovimentodereaçãoàangústiamelancólica,quetentasairdo círculo vicioso da contabilidade de perdas e ganhos até chegar àconcepçãodaatividadedotradutorcomouma“atividadeautô-noma”.Essaatituderepresentariaolado“maníaco”datradução,aparteviolentaeentusiasmadaquebuscarompertriunfalmentecomooriginal,usandoacriaçãoebuscandosuaprópriaorigi-nalidade.Aautorasalientaqueessa“mania”nãodeveserinter-pretada negativamente, pois faz parte damelancolia como umtodo, é a sua face alegre, vital e extrovertida. (Ibid., pp. 72-73)ObservandoATarefadoTradutorsobosaspectosdamelancolia,ecomparando-aaTorresdeBabel,deDerrida,Lagesrealizaumadistinçãosubstanciadanascaracterísticashistóricasquecercamavisãomodernaepós-moderna.Asegundateriaconseguidosupe-rar a perda que a primeira não soube renunciar.

AquiloqueseTraduz

Continuaremos compondo o panorama acerca da tradu-çãoacrescentando-lheoutrasreferênciasoriundas,sobretudo,dodebateculturalista.Essas referências foramselecionadasprinci-palmentedaobradeSusanBassnetteAndréLefevere,doisdosprincipais autores culturalistas que abordam a tradução. A eles serão acrescidos outros, cujas perspectivas coincidem ou contri-buemcom sua visão.Pretendemosmostrar que, numprocessodetradução,traduz-sejuntocomotextofatorescomoideologia,cultura, poder, tempo, entre outros.

NolivroPoéticadaTradução,MárioLaranjeiraapresentaadefiniçãoetimológicade“traduzir”,ecolocaalgunsquestiona-

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mentosaelavinculadosquedespertamreflexõessobreotrânsitodeconteúdosqueelapromove.Segundooautor,apalavraorigi-nal latina “transducere” (trans + ducere) significa “levar atravésde”.Aprimeirasériedeperguntasporelecolocadasdiantedessadefiniçãoé:“Oqueseleva?Informação?Emoção?Imagem?(...)Deonde?Paraonde?Medianteoquê?”Segundooautor,“asres-postasaestasúltimasperguntasexpandemolugardatradução,levam-no para além do linguístico, situam-no em qualquer área dacomunicaçãoculturalemgeral”.(1993,p.15)

Ofenômenodatraduçãotranscendeabuscapelaequiva-lênciadeummesmotextoemduaslínguasdiferentes.ParaRo-manJakobson,atraduçãoéumaatividadeonipresentenaforma-çãodesentidoatravésdesignos.Observaoautor:“osignificadode um signo linguístico não é mais que sua tradução por um ou-tro signo que lhe pode ser substituído, especialmente um signo no qualeleseachedesenvolvidodemodomaiscompleto”.(1971,p.64)TomandoporbaseestudosdeCharlesPeirce,Jakobsonafirmaquequalquerdecodificaçãofeitapelamentediantedesignosqueseapresenteméumatodetradução.Olinguistaconcluique“ne-nhum espécime linguístico pode ser interpretado pela ciência da linguagem sem uma tradução dos seus signos em outros signos pertencentesaomesmoouaoutrosistema”.(p.66)Ultrapassandooenfoqueestritamentelinguístico,oautorressaltafatoresdatra-duçãoquetranscendemalinguagemnaexpressão(metalinguísti-cos),esãopermeadosporoutrasmanifestaçõesculturaisqueaelasãoacrescidas,sempreatravésdeprocessosdetradução.Paraele:

Em sua função cognitiva, a linguagem depende muito pouco do sistema gramatical, porque a definição de nossa experiência está numa relação complementar com as operações metalinguísticas – o nível cognitivo da linguagem não só admite, mas exige a interpre-tação por meio de outros códigos, a recodificação, isto é, a tradução. (Op. Cit.,p.70)

Todo ato de comunicação, ou seja, de transmissão de con-teúdos,nãoésenãoatraduçãodeumamensagememnovasin-

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terpretações.Mascadainterpretaçãoapresentadesvioseperdasemrelaçãoàmensagemanterior.Essasperdasinevitáveisnãone-cessariamentecomprometematransmissãodoconteúdoanterioremtermos factuais, emborapossamgerarnuances interpretati-vas.Sãocaracterísticasinerentesàtradução,independentedafor-maqueelaocorra.Quantoàtraduçãoliteráriaepoética,iremosperceber que a questão dos desvios em relação à obra original e a impossibilidade de reconstruí-la em outro sistema são as preocu-pações centrais de seus estudos.

Amaioriados estudos teóricos sobre tradução literária epoética realizados nos últimos anos busca visivelmente ultra-passar os questionamentos que vinham tradicionalmente sendo propostossobreo tema,passandoavalorizarmaiso tradutoreseu trabalho, numa perspectiva denominada “ideológica” ou“culturalista”.Paraessaperspectiva,opercursode transferênciapromovido pela tradução se dá permeado por complexidades,frutosdatensãoqueseinstauraapartirdomomentoemqueotradutor estabelece com o autor da obra original uma relação de disputa.ConformeSusanBassnett (1998, p. 25), os debates re-centessobretraduçãotêmfocadocadavezmaisaexploraçãodasrelaçõesentreoqueéchamadoconvencionalmentede“tradução”e“original”.Essesdebatessãoinevitavelmenteligadosaquestõesqueenvolvemautoridadeepoder,sobretudonoquedizrespeitoàatuaçãodotradutorcomorepresentantedeumaculturadiferentedaquelaemqueooriginalfoiproduzido.

OescritorVictorHugojáobservaraque,quandoseofere-ce uma tradução para uma determinada cultura, essa cultura irá olhar para a tradução quase sempre como um ato de violência contrasiprópria.Traduzirumescritorestrangeiroéacrescentarnovidadesaumalíngua,masesse“alargamentodohorizonte”dalíngua não agrada quem habitualmente dele se aproveita, ao me-nosnãonocomeço.Porisso,paraHugo,aprimeirareaçãoéderepulsa contrao idiomaestrangeiro, e a cultura faz tudooquepodepararejeitá-lo.Seu“gosto”érepugnanteparaela.Suas“lo-

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cuçõesnãousuais”,suas“viradasdefraseinesperadas”,sua“cor-rupção selvagem”dos hábitos da língua, parecem simular umainvasão. Segundo o autor, essa reação é muito compreensível, pois quemgostariadepensar em infundiruma substânciadeoutropovoemseuprópriosangue?(ApudLefevere,1992a,p.18.)

EmconsonânciacomaopiniãodeVictorHugo,masade-quando-a a um tom mais compatível com a contemporaneidade, AndréLefevere(1992a,p.14)afirmaquetodaa traduçãopodeserpotencialmenteameaçadora,umavezqueconfrontaa“cultu-radechegada”comoutra,quepossuiseumododeveravidaeasociedade.Portanto,osvalorespresentesnaquiloqueétraduzidopodem ser eventualmente interpretados como potencialmente subversivoseprecisamsermantidosafastados.4

Detodomodo,oestudoeacompreensãodosfatorescul-turaispresentesnotextodepartida,ou“original”,comosuaépo-caeseucontexto,sãodeterminantesparaatradução.ComodizLefevere,referindo-seà tradução literária,os textosnãosãoes-critosnovácuo:assimcomoalinguagem,aliteraturapreexisteaseuspraticantes.Osescritoresnascemnumacertaculturaenumacerta época e herdam a linguagem dessa cultura, suas traduções literárias e poéticas, suas características materiais e conceituais, enfim,seu“universodediscurso”.Otradutorprecisacaptaresseuniverso e saber como lidar com ele no momento da tradução, para que amesmanão transformeo original em algo soltonotempoenoespaço.Lefeverefazquestão,entretanto,dechamaraatençãoparaofatodequeosescritoresnãosãomerosreceptoresda cultura na qual escrevem, mas ao contrário, podem escrever semosparâmetrosditadosporela,ouaindatentardriblá-losou

4 LauroAmorimobservaque,paraatradiçãoquepressupõeapossibilidadedetraduções marcadas pela neutralidade, as traduções nem sempre acarretam al-gumaformadeviolência.Nessatradição,oautorémenos“visível”,tentandoproduzirtraduçõesquedãoaoleitoraimpressãodeestarlendoopróprioori-ginal.Maslogicamente,asuposta“invisibilidade”dotradutorquefundamentaessatradiçãoéalgoabsolutamentequestionável.(2005,p.35)

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iralémdeles,umavezquenemapoéticaouaideologiadeumacultura são monolíticas. Cabe ao tradutor perceber quando isso ocorre.(1992b,p.86)

Oautorlembraque,noscasosemqueotextooriginalcho-ca-se com a ideologia da cultura na qual sua tradução será inse-rida,ostradutoresprecisamadaptarotexto,oquenormalmenteacarretasériastransformações,quandonãosãodeixadosdeforacertos trechos. Cita também os casos em que algumas caracterís-ticasdouniversodediscursopresentesnotextodepartidasãoin-compreensíveisnaculturadechegada,sejapornãoexistiremsimi-lares,ouporadquiriremnessasignificadosdiferentesdooriginal.Emambososcasos,otradutorprecisasubstituirascaracterísticaspor outras análogasda cultura-alvo, ou tentar explicar ao leitorouniversodoautordamelhormaneirapossível,sejanoprefáciodatradução,emnotasderodapéetc.(1992b,p.87)ParaLefevere,ostradutorestêmquetomardecisõescadavezmaisimportantesnos níveis de ideologia, da poética e do universo do discurso, para conseguirtransporaculturaeaépocadotexto-fonte.Essasdeci-sões,porsuavez,estarãosempreabertasàcríticadosleitores,quesubscrevemumaideologiadiferenteenemsempreestãosatisfei-tos com as estratégias que os tradutores escolheram para tornar os elementosdouniversododiscurso“inteligíveisoumaisfáceisdeintuir”.(p.88)Éindispensável,detodomodo,entenderaposiçãodo original na literatura da qual ele provém e em sua cultura, pois sem esse conhecimento torna-se impossível a construção das ana-logias necessárias para o processo de tradução.5

AlgunsaspectosabordadosnasreflexõesdeFriedrichNiet-zschesobre tradução tambémcabemserapresentados.Oautor

5 SusanBassnett(2003,p.140)apresentaumasituaçãopeculiarmentecuriosaaosereferiracasosdetraduçãodetextospertencentesaumperíodomuitoremotonotempo,quandonãosóosautoreseseuscontemporâneosjámorreram,masosignificadoeocontextodaobratambémestãomortos.Éoqueacontececoma écloga,porexemplo,umgêneroextintoondeéimpossívelafidelidadeàformadaestruturaoriginal,sealínguadechegadanãoforcolocadaemdestaque.

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consideraqueomaisdifícilnatraduçãodeumalinguagemparaoutra é traduzir o “tempo” de cada estilo, aquilo que está fun-dado“nocaráterdaraça”,oufalandodemaneirafisiológica,emseu“metabolismo”.Faladetraduçõesbemresolvidasemtermosdesignificado,masquesão“generalizaçõesinvoluntárias”doori-ginal, que às vezes podem ser consideradas “falsificações”. Issoocorre,aindasegundoNietzsche,porqueessastraduçõesfalhamaotraduziro“tempo”dooriginal,semoqualtodasaspalavrasecoisasdelesetornamperigosas.(2001,p.183)

Captarascaracterísticasdouniversodaculturaondeotex-tooriginalfoiproduzido,ouseuuniversodediscurso,nospare-ce ser um passo indispensável para uma tradução, por permitir evitar possíveis distorções não propositais em relação à obra de partida.Éfundamentaltambémconheceroautoresabercomoeleseinseriuouseinserenouniversodaculturaemquevive.Oautortrazparasuaobraatraduçãodeseudiálogocomaculturaque convive, o tradutor deve entender isso e saber trabalhar essa abordagem em cada caso. Ao perceber os traços da cultura como partedaquiloquesetraduz,abre-seumdomíniomaisamplodepercepção da obra pelo tradutor. Ao ler o universo que cerca o discurso e o amarra ao seu tempo, o tradutor prepara a obra para a tradução. É importante observar que cada tradutor irá ler esse universoapartirdaóticadoseuprópriotempo.Teremos,então,obras originais ressurgindo de diversas maneiras, a partir das cul-turas de chegada em que ocorrem, ou em outros termos, a língua, culturaeépocaparaaqualsãotraduzidas.

LauroAmorimobservaqueas traduções são fatos cultu-rais influenciados consideravelmente pelas normas vigentes na culturadechegada.Asomissões,acréscimoseatualizações,en-treoutros,são“opçõestradutóriasqueteriamumarelaçãomuitopróximacomasnormasoutendênciasqueinfluenciamarealiza-ção de uma tradução em uma determinada época, em uma certa cultura.”(2005,p.63)Aorecriarascaracterísticasdotempodaobraoriginalnasuaprópriacultura,otradutorreacendeasdispu-

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tas de poder entre as normas e valores da sua cultura e os da obra original,promovendoumconflitoideológico.Temosdelembrarqueessadisputapodeserviolenta,edeixarmarcasna línguaenaculturadechegada.Essasmarcasfazemcomquealínguanãoseja mais a mesma depois da tradução, o que coincide com a ideia presenteemATarefadoTradutor,deWalterBenjamin,naqualatraduçãoaltera,modificaalínguadechegada,transformando-aeconcedendo-lhe vida nova.

Conclusão:ATarefadoTradutornaAtualidade

Ouniversodiscursivodeumtextooriginaléinegavelmentetransformadocomatradução,eaobraresultantedesseprocessopassa a carregar características do tempo de chegada. Seja como parte proposital do projeto ou não, em uma tradução, o tempo de partidasempreacabasendo,dealgumaforma,adequadoaodechegada. A atualidade como tempo de chegada para traduções é marcada pela presença de um temperamento maníaco, segundo o qual o tradutor, diante da constatação da impossibilidade da tra-dução literal da obra original, concentra suas potencialidades em violá-la,deixandoexplícitasasmarcasdesuaintervenção.

Iniciativas assumidas, como reinvenção, recriação, trans-criação, obra inspirada etc., se estabelecem como uma iniciativa sintomática do contexto contemporâneo. Seu gesto caracterizauma tomada de posição ativa, que gera a reivindicação de uma nova autoria, à medida que o resultado do processo que propor-cionam vai se desprendendo aos poucos dos compromissos de fidelidadeparacomaobraoriginal.Oquesesobressainessasitu-açãoéaansiedade,porpartedequemtraduz,eminfluenciarnoresultado.Issodecorredaformaçãodeumaconsciênciacontem-porâneaamplasobreaatividadedatradução,quesemanifestaemvariadosníveis,quecoincidemcomdiferentesgrausde interfe-rência nas obras de partida.

Aposição atual em relação ao ofício do tradutor renun-cia,eminúmeroscasos,àbuscapelaidentidadecomooriginal,

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conformando-se com a perda da suposta originalidade na tradu-ção.Issosetornoupressupostoparaconstituirumnovopontodepartidaparaatarefadatradução,noqualotradutorpodetirarde seus ombros um pouco do peso da dívida eterna, da maldição ancestraldeBabel.Teremos,assim,umtradutormenosoprimi-do,sobreoqualnãorepousamexpectativassobre-humanasquepoderiam vir o atormentar. Fica para trás a melancolia moderna e aangústiadoinalcançável,einstaura-seoladoeufóricodabipo-laridademelancólica,quequestionaeviolaaoriginalidade.

Se é impossível transpor a barreira das línguas, a atitude maníaca(pós-moderna)tentamaneirascriativasdecontorná-la.Oconformismomodernocedelugaraumaposturaativadotra-dutor,outromododesepostaranteasdificuldadesdesuatarefa,peloqualelepartiráembuscadesuaautonomia,suaprópriaori-ginalidade e estilo.

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