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nguyenkiet
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Otfried Hffe
Immanuel Kant
Traduo CHRISTIAN VIKTOR HAMM
VALERIO ROHDEN
Martins Fontes So Paulo 2005
II. O QUE POSSO SABER? A CRTICA DA RAZO PURA
4. O PROGRAMA DE UMA CRTICA TRANSCENDENTAL DA RAZO
4.1 - O campo de batalha da metafsica ("Prefcio" primeira edio)
Kant denomina a cincia fundamental filosfica, por ele projetada, de filosofia transcendental. Para diferenci-la da filosofia transcendental medieval, pode-se falar de filosofia transcendental crtica. Kant a desenvolve primeiro com referncia razo como faculdade de conhecimento. Esta ele chama tambm de razo terica ou especulativa, diferena da razo prtica, ou seja, da faculdade de desejar. Por isso a primeira crtica pode ser chamada mais exatamente "crtica da razo especulativa pura" (B XXII). O fato de Kant renunciar ao adjetivo adicional in dica que ele, ao redigir esta obra, estava pensando somente numa nica crtica da razo.
Ainda que s vezes a argumentao tome um caminho sinuoso nos seus pormenores, a Crtica da razo pura
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, no seu conjunto, uma obra bem composta. O "prefcio" primeira edio expe, num tom dramtico, a trgica situao em que se encontra a razo humana, uma situao que exige a sua prpria crtica, determinando as investigaes seguintes e encontrando seu desenlace somente depois de uma grande volta na segunda parte, a saber, na "Dialtica".
Sem explicaes prolixas Kant nos confronta com a condio precria da metafsica, a qual aparece como necessria e ao mesmo tempo impossvel. Pois impem-se razo humana certas questes que no podem ser rejeitadas, mas tampouco podem ser respondidas (A VII). Tais questes no podem ser rejeitadas porque a razo busca, ante a variedade de observaes e experincias, certos princpios gerais que revelem essa variedade, no como um caos, seno como um todo estruturado, como coeso e unidade. J as cincias naturais procuram por tais princpios, que elas unificam em teorias gerais. A metafsica no quer outra coisa a no ser continuar perguntando at o final, em vez de parar a meio caminho. A interrogao se completa com certos princpios que no esto j condicionados por outros; os princpios ltimos so incondicionais. Enquanto a razo se mantiver na experincia, sempre vai encontrar condies cada vez mais remotas, mas nunca algo incondicionado. Para poder, apesar disso, pr fim interrogao, a razo "recorre a princpios ... que transcendem toda experincia possvel, mas que parecem, no obstante, to insuspeitos que at o senso comum consente com eles" (A VIII). Parece que o ltimo fundamento da experincia se encontra alm de toda a experincia. Por isso sua investigao se chama metafsica, literalmente: alm (meta) da fsica, da natureza.
A tentativa de obter conhecimentos independentemente da experincia precipita a razo "em escurido e
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contradies" (ibid.). Por um lado, mostrar Kant mais tarde, h boas razes para afirmar que o mundo tem um comeo, que Deus existe, que a vontade livre e a alma imortal; por outro lado, podemos tambm encontrar boas razes para afirmar o contrrio, assim como que no possvel dizer qual a posio certa. Como os princpios afirmados devem formar a base da experincia, parece natural verific-los na experincia. Mas esta no pode ser o critrio, j que os princpios metafsicos esto, por definio, alm de toda experincia. Aquilo que constitui a metafsica, a saber, o transcender da experincia, tambm a razo de que ela seja impossvel como cincia. No so obstculos externos que se opem metafsica. sua prpria natureza, ou seja, o conhecimento independente da experincia ou conhecimento puro da razo, que a estorva; assim, a metafsica se toma campo primordial de disputas interminveis (A VIII).
A primeira das partes litigantes constitui a metafsica racionalista, representada na poca moderna por nomes como Descartes, Espinosa, Malebranche e Leibniz, entre outros. Kant pensa, todavia, primeiro na metafsica escolar de Wolff, que nesta poca prevalece nas ctedras universitrias. Wolff considera a experincia como fonte genuna de conhecimento, mas acredita, porm, na possibilidade de conhecer algo sobre a realidade com o mero pensar (razo pura). Kant toma os racionalistas por dogmticos e despticos porque impem ao homem determinadas suposies bsicas sem crtica prvia da razo, por exemplo, que a alma de natureza simples e imortal, que o mundo tem um comeo e Deus existe.
As controvrsias entre os dogmticos fazem com que a metafsica acabe em anarquia, e como segunda parte litigante aparecem os cticos, que minam "os fundamentos
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de todo o conhecimento . . . em uma ignorncia artificial" (B 451) e "liquida(m) sumariamente toda a metafsica" (B XXXVI). Mas eles no podem impedir que os dogmticos continuem sempre retomando a palavra. Para Kant, John Locke (1632 -1704) que em tempos recentes fez a tentativa de pr fim a todas as disputas mediante uma "fisiologia" (teoria da natureza, literalmente) "do entendimento humano" (A IX). John Locke, que rejeita no An Essay concerning Human Understanding [Ensaio acerca do entendimento humano, 1690] a doutrina cartesiana das idias e princpios inatos, representa o empirismo, doutrina que fundamenta em ltima instncia todo conhecimento em uma experincia interna ou externa, negando assim qualquer possibilidade de um conhecimento extra-emprico. J que David Hume, o filsofo cujo ceticismo despertou Kant do "sono dogmtico" (cf. captulo 3 .1), tambm pertence aos empiristas (cf. B 127 s.), Kant entender, na "Dialtica transcendental", a luta pela metafsica como uma disputa entre o racionalismo e o empirismo.
As controvrsias entre os dogmticos, os cticos e os empiristas levam quela indiferena que, se no elimina as perguntas da metafsica, ao menos as exclui do campo de uma filosofia que pretenda ser cientfica. Esta a posio de um iluminismo vulgar que trata com desprezo a metafsica, outrora "rainha de todas as cincias" (A VIII s.) . Mas a indiferena em relao metafsica, diz Kant, no pode ser mantida; porque "aqueles pretensos indiferentistas . . . , na medida em que pensam realmente alguma coisa", recaem "inevitavelmente em afirmaes metafsicas" (A X). Com efeito, fazem enunciados sobre os ltimos princpios, sobre o fundamento emprico ou supra-emprico do conhecimento, tomam partido na disputa - contradizendo-se - e renovam o campo de batalha da metafsica.
O QUE POSSO SABER? A CRTICA DA RAZO PURA
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Figura 6. Crtica da razo pura. Folha de rosto da primeira edio.
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Kant no se esquiva das perguntas da metafsica nem adere a uma das partes litigantes. Segue a nica via, ainda inexplorada, que libera realmente a metafsica de sua situao aportica: o estabelecimento de um tribunal. Em lugar da guerra aparece o processo judicial, que examina imparcialmente as possibilidades de um conhecimento puro da razo, ratifica as aspiraes legtimas e rejeita as pretenses sem fundamento. Um exame dessa natureza, que envolve discernimento e justificao, se chama, no sentido original do termo, "crtica" (em grego krinein: distinguir, julgar, levar ante o tribunal) . O ttulo kantiano de "Crtica" no significa uma condenao da razo pura, seno uma "determinao tanto das fontes, como da extenso e dos limites dela, porm tudo a partir de princpios" (A XII) . (Encontramos as primeiras tentativas de uma crtica na pergunta, primeiro de Locke, depois de Hume, sobre a capacidade humana de conhecimento.)
Uma vez que todo conhecimento independente da experincia no pode ter, por definio, o seu fundamento na experincia, precisa ser investigada a possibilidade de um conhecimento puro da razo pela prpria razo pura. No tribunal que Kant instaura para resolver o caso " dogmatismo contra empirismo e ceticismo", a razo pura que se julga a si mesma. A Crtica da razo pura o autoexame e a autolegitimao da razo independente da experincia.
na autocrtica que a razo manifesta o seu poder; mas este poder serve para sua autolimitao. Na primeira parte da Crtica, na Esttica e na Analtica, encontra-se o cdigo que contm um primeiro juzo sobre a disputa em torpo da metafsica: em contraposio ao empirismo existem fundamentos independentes da experincia, e por isso um conhecimento rigorosamente universal e necessrio; porm este conhecimento se limita, contrariamente ao ra-
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cionalismo, ao mbito da experincia possvel. Logo, na segunda parte, na Dialtica, o processo levado a cabo formalmente decidido de forma definitiva. Com relao a objetos alm de toda a experincia, a razo se mostra sem consistncia. Assim que ela se move somente no mbito de seus prprios conceitos, incorre em contradies. Kant recusa tanto o empirismo como o racionalismo; existem idias puras da razo - mas meramente como princpios regulativos a servio da experincia.
No decorrer do auto-exame, a razo rejeita o racionalismo porque o pensamento puro no capaz de conhecer a realidade. Porm, a razo rejeita tambm o empirismo. verdade que Kant admite que todo conhecimento comea com a experincia; mas no resulta disso, como supe o empirismo, que o conhecimento provenha exclusivamente da experincia. Pelo contrrio, mesmo o conhecimento emprico se mostra impossvel sem fontes independentes da experincia.
Uma forma bsica do conhecimento emprico consiste na conexo de dois eventos, como causa e efeito. Locke derivou os conceitos de causa e efeito da experincia, admitindo, contudo, a possibilidade de um conhecimento alm da experincia. Kant considera isso um " devaneio" (B 127); certos supostos fundamentais da experincia, como o princpio de causalidade ("todas as transformaes sucedem conforme ao princpio de causa e efeito"), no so produto da experincia, nem possibilitam um conhecimento alm da experincia. Mas os supostos fundamentais tambm no nascem do hbito (psicolgico), como acredita Hume (ibid. ). Eles so universalmente vlidos, de modo que Kant finalmente, em contraposio ao ceticismo, acha possvel um conhecimento objetivo. Demonstrando a existncia de certas condies da experincia no empricas e, portanto, universalmente vlidas, Kant mostra
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que a metafsica possvel, mas, em contraposio ao racionalismo, somente como teoria da experincia, e no como uma cincia que transcende o mbito da experincia; e, diferena do empirismo, no como teoria emprica, seno como teoria transcendental da experincia (cf. cap. 4 .5) .
Convencido da importncia histrica de sua crtica da razo, Kant fala orgulhosamente da " erradicao de todos os erros" (AXII). Ele acredita ter especificado as questes, " com base em princpios e de forma completa" (ibid. ) afirmando ousadamente "que no deve haver um s problema metafsico que no tenha sido solucionado aqui ou para cuja soluo no se tenha fornecido ao menos a chave" (A XIII) . Esta pretenso de Kant parece, pelo menos, exagerada. A idia de que "nada resta posterioridade seno a sistematizao de tudo em forma didtica" (A XX) desmentida no s pela histria da filosofia posterior a Kant, como tambm pelo desenvolvimento do pensamento do prprio Kant at seu Opus postumum. No entanto, no resta nenhuma dvida : o programa kantiano de uma crtica da razo e seus elementos principais, como a virada copernicana para o sujeito transcendental e a ligao entre teoria do conhecimento e teoria do objeto, a demonstrao de elementos apriorsticos em todo conhecimento e a distino entre fenmeno e coisa em si, causaram uma profunda reforma da P rimeira Filosofia, que tradicionalmente chamada metafsica .
4.2 A revoluo copernicana ("Prefcio" segunda edio)
diferena do primeiro P refcio, no qual Kant ainda precisa chamar a ateno do leitor, o P refcio segunda
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edio deixa transparecer a serenidade de um autor que est seguro do carter revolucionrio de suas idias. Kant integrou os Prolegmenos sua Crtica alcanando assim, em algumas partes, uma clareza maior. Como os problemas aparecem em geral mais distintamente na segunda edio, a seguinte exposio basear-se- nela. A idia principal a revoluo copernicana do pensamento.
Kant pretende levar a metafsica "ao caminho seguro de uma cincia" (BVII) . Por isso ela no pode cada vez recomear, mas deve avanar. Fazer progressos s possvel quando se procede conforme a um plano e se seguem metas e quando os especialistas na matria concordam no que se refere forma do procedimento. Mas na metafsica no existe um consenso sobre o mtodo; por isso, ela no pode esperar nenhum progresso, apesar do esforo de dois mil anos. Na Crtica da razo pura Kant pretende fornecer esse novo mtodo. O escrito ainda no contm a metafsica como cincia, mas sim o seu pressuposto necessrio; ele um "tratado do mtodo" (B XXII) .
A exemplo de trs disciplinas universalmente reconhecidas at hoje como cincias, a lgica, a matemtica e a cincia natural, Kant mostra como se descobre o caminho seguro da cincia . O caso mais simples o da lgica . Visto que ela investiga nada mais que as "regras formais de todo o pensamento" (B IX), ela seguiu "desde os tempos mais remotos" (B VIII), nomeadamente desde Aristteles, o caminho seguro da cincia . Como nela o entendimento " s se ocupa de si mesmo e de sua forma", a lgica simplesmente o "vestbulo das cincias" (B IX) e desempenha na crtica da razo o papel de padro negativo para as cincias reais.
As cincias reais tambm se ocupam de objetos. Aps uma fase de " andar s cegas", elas encontram o caminho
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seguro da cincia "graas intuio feliz de um s homem". Essa intuio fundadora da cincia consiste em uma "revoluo no modo de pensar" (B )([). No caso da matemtica, esta revoluo aconteceu j na Antiguidade e consiste numa idia que se pratica em toda demonstrao geomtrica : para os fins da cincia, no basta ver simplesmente uma figura geomtrica ou meramente perseguir seu conceito; preciso constru-la a priori segundo conceitos prprios (B XI s.). Esta idia tem graves conseqncias: de uma coisa s se pode saber com certeza aquilo que se colocou no seu conceito; s mediante um pensar e um construir criativos toma-se possvel o conhecimento cientfico. Porm, aquilo que se coloca no objeto no pode proceder dos nossos preconceitos pessoais; do contrrio, tratar-se-ia de ocorrncias arbitrrias mas no de um conhecimento objetivo. A matemtica como cincia se deve ento a uma condio aparentemente impossvel: um suposto subjetivo que, no entanto, objetivamente vlido.
Na cincia natural, Kant descobre a mesma estrutura bsica. Para se tomar cincia, tambm a fsica necessita de "uma revoluo do seu modo de pensar" (B XIII). Esta consiste na idia proposta pelo filsofo britnico Bacon (1561-1626), mas s realizada nos experimentos de Galilei e de Torricelli, de que a razo s conhece da natureza "o que ela mesma produz segundo o seu projeto" . Como confirmam os cientistas modernos em sua prtica e em sua teoria, eles no desempenham ante a natureza o papel "de um aluno que se deixa ditar tudo o que o professor quer, mas sim o de um juiz nomeado que abriga as testemunhas a responder s perguntas que ele lhes prope" (ibid.).
Para que tambm a metafsica alcance finalmente a dignidade de uma cincia, Kant prope que ela faa igual-
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mente uma revoluo em seu modo de pensar, uma revoluo que coloque, como no caso da matemtica e da cincia natural, o sujeito cognoscente numa relao criadora com o objeto. Kant entende sua proposta como uma hiptese, como um experimento da razo que s pode se justificar pelo seu prprio sucesso. Sua filosofia transcendental no pretende de modo algum, como se objeta freqentemente, ser uma teoria infalvel, o que significaria contradizer a condio mnima da epistemologia atual, ou seja, o postulado de falibilidade. S que a refutao dos projetos transcendentais de pensamento no possvel com os recursos das cincias empricas. Por tratar-se de experimentos da razo, s podem validar-se por meio da razo ou, porm, fracassar ante ela .
O experimento da razo confirma-se em duas etapas. Por um lado, acredita Kant, sua proposta permite fundamentar a objetividade da matemtica e da cincia natural (matemtica); isto ocorre na "Esttica transcendental" e na "Analtica transcendental" . A Crtica da razo pura contm em suas duas primeiras partes uma teoria filosfica da matemtica e da cincia natural matemtica . Em oposio a algumas tendncias do neokantismo, que reduzem a primeira crtica da razo a uma mera "teoria da experincia" (Cohen, 1924), o escrito tem mais uma parte, a "Dialtica transcendental". Nesta ltima, Kant mostra que no modo tradicional de pensar o objeto da metafsica, o incondicionado, "no pode ser pensado sem contradio" (B XX) . Em contrapartida, com o novo modo de pensar, as contradies (antinomias) desaparecem. Nisso reside a contraprova em favor da revoluo no modo de pensar: a razo se reconcilia consigo mesma, de modo que o experimento pode ser considerado bem-sucedido e a proposta verdadeira e fundada.
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Kant compara sua proposta com a descoberta do astrnomo Coprnico; o experimento da razo tornou-se, por isso, clebre como " revoluo copernicana". Kant v a importncia histrica de Coprnico no na refutao de uma teoria astronmica tradicional. Coprnico faz algo muito mais fundamental: ele supera a perspectiva de uma conscincia natural, evidenciando o carter ilusrio da idia da rotao do Sol em torno da Terra, encontrando a verdade, antes, numa nova posio, no mais natural, do sujeito ante seu objeto, ou seja, ante o movimento do Sol e dos planetas. De modo semelhante, na Crtica da razo pura, Kant pretende apresentar mais que uma mera refutao de teorias metafsicas. Ele supera no apenas o racionalismo, o empirismo e o ceticismo; funda, sobretudo, uma nova posio do sujeito em relao objetividade. O conhecimento no deve mais regular-se pelo objeto, mas sim o objeto pelo nosso conhecimento (B XVI).
Esta exigncia pode parecer absurda conscincia natural. Pois fala -se, em contraposio a um conhecimento subjetivo, de um conhecimento objetivo somente onde se vem as coisas como so em si, portanto, independentes do sujeito. A revoluo kantiana do modo de pensar exige que a razo humana se livre desta sua perspectiva natural limitada, ou seja, do realismo gnosiolgico. Kant afirma que a necessidade e a universalidade que pertencem ao conhecimento objetivo no nascem, como ns costumamos pensar, dos objetos, mas se devem ao sujeito cognoscente. No obstante, Kant no quer dizer que o conhecimento objetivo depende da constituio emprica do sujeito, da estrutura do crebro, da filognese e das experincias sociais do homem. Tal afirmao seria at absurda para Kant. O que investigado so as condies do conhecimento objetivo que independem da experin-
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cia, condies estas que se encontram na constituio premprica do sujeito.
A revoluo copernicana de Kant significa que os objetos do conhecimento objetivo no aparecem por si mesmos, mas eles devem ser trazidos luz pelo sujeito (transcendental). Por isso eles no podem mais ser considerados como coisas que existem em si, mas como fenmenos. Com a mudana do fundamento da objetividade, a teoria do objeto, a ontologia, passa a depender de uma teoria do sujeito, de modo que no pode mais haver uma ontologia autnoma. O mesmo vale para a teoria do conhecimento. O substancial da Crtica da razo pura consiste na interligao de ambos os lados; uma teoria filosfica do ente, ou seja, daquilo que um objeto objetivamente, s pode ser elaborada, segundo Kant, como teoria do conhecimento do ente, e uma teoria do conhecimento apenas como determinao do conceito da objetividade do objeto.
4.3 A metafsica como cincia, ou sobre a possibilidade de juzos sintticos
a priori ("Introduo")
Kant explica o modo especfico do saber da metafsica, isto , o conhecimento puro da razo, e tambm o carter do saber da matemtica e da cincia pura da natureza mediante uma dupla diviso disjuntiva : 1) os conhecimentos so vlidos ou a priori ou a posteriori; 2) os juzos so ou sintticos ou analticos. A relevncia gnosiolgica e epistemolgica dessas duas distines no tem diminudo at hoje. No entanto, as definies de Kant no se mostram mais suficientemente exatas, e a procura de
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conceitos precisos d lugar a dificuldades que fizeram com que pragmatistas como M. G. White e Quine colocassem em dvida a utilidade de tais conceitos.
A priori - a posteriori
Primeiro Kant assume, como se fosse natural, aposio do empirismo, seguindo a crtica de Locke referen te s idias inatas de Descartes e afirmando que, pelo menos segundo o tempo, "todo nosso conhecimento comea com a experincia" (B 1). certo que tambm racionalistas como Leibniz ou Wolff no teriam dvida em afirmar com Kant que no possvel conhecimento algum sem "objetos que afetem nossos sentidos e em parte produzam por si prprios representaes, em parte ponham em movimento a nossa atividade do conhecimento" (ibd. ). Mas o incio no tempo - isso que Locke no v (cf. XVIII 14)- no significa a origem reat da primazia temporal no se segue que no exista outra fonte de conhecimento fora da experincia . Por isso, o empirismo que sustenta esta exclusividade incorre em uma generalizao inadmissvel. A hiptese de que "mesmo o nosso conhecimento de experincia seja um composto do que recebemos por meio de impresses e do que o nosso prprio poder de conhecimento (apenas provocado por impresses sensveis) fornece de si mesmo" (B 1) , segundo Kant, tambm compatvel com a primazia temporal da experincia e merece por isso uma investigao mais detalhada. Com esta hiptese Kant prope uma mediao entre o empirismo de Locke e o racionalismo de Descartes.
O conhecimento que tem sua origem na experincia Kant chama-o de a posterori ("posterior", por se basear em impresses sensveis); e o conhecimento que inde-
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pendente de toda impresso dos sentidos chama-se a priori ("anterior", porque sua fundamentao independe de qualquer experincia) . De acordo com a crtica ao empirismo e o programa de um conhecimento puro da razo, Kant se interessa por aqueles conhecimentos que so puramente a priori, j que " a eles no se mescla nada de emprico" e se realizam no s "independentemente desta ou daquela experincia, mas de modo absolutamente independente de toda a experincia" (B 3) .
Para distinguir entre o conhecimento puramente apriorstico e o conhecimento emprico, Kant indica duas caractersticas que j foram introduzidas por P lato e Aristteles (p. ex., nos Segundos analticos, cap. I 2) a fim de discernir o verdadeiro saber (episteme: cincia) da mera opinio (doxa): a necessidade rigorosa, em virtude da qual algo no pode ser outra coisa do que ela , e a generalidade absoluta que "no permite nenhuma exceo como possvel" (B 4) . Como a experincia somente comprova fatos, mas no a impossibilidade de poder ser outra coisa nem a impossibilidade de uma exceo, a generalidade absoluta e a necessidade rigorosa so, de fato, as caractersticas do a priori puro.
Analtico - sinttico
O primeiro par conceitual " a priori- a posteror" distingue os conhecimentos, segundo sua origem, em conhecimentos da razo ou da experincia. O segundo par conceitual, "analtico - sinttico", responde pergunta acerca do que decide a verdade de um juzo: "O fundamento legtimo da ligao entre sujeito e predicado se encontra no sujeito ou fora dele?" Ainda qe algumas explicaes de Kant possam causar um mal-entendido psicolgico, Kant no entende por "juzos" os processos psicolgicos
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do ato de julgar, mas - de modo lgico - enunciados ou afirmaes, a saber, aquela ligao (sntese) de representaes que pretende validade objetiva. Para Kant os juzos ... lingisticamente tm a estrutura de sujeito e pn:dido, a partir da qual surge a definio de juzos analticos e sintticos. No entanto, como existem juzos que no possuem estrutura de sujeito-predicado, a definio kantiana teria que ser ampliada.
Kant designa como analticos todos os juzos cujo predicado est contido ocultamente no conceito do sujeito (B 10) . Assim ele considera como analiticamente verdadeira a afirmao de que todos os corpos so extensos, porque se pode verificar independentemente de toda experincia pela mera anlise do sujeito "corpo" que este contm em si o predicado " extenso" . Sobre a verdade de proposies analticas decidem unicamente os conceitos do sujeito e do predicado, assim como o princpio de contradio (B 12), que Kant considera como princpio de toda a lgica formal (cf. B 189 ss.) . Segundo Leibniz, proposies analticas so verdadeiras em todos os mundos possveis, segundo Kant sua negao implica uma contradio. No entanto, para M. G. White e W.V. O. Quine, ambas as explicaes no resolvem o problema, j que os conceitos de "mundo possvel" e de "autocontradio" precisam por sua vez ser explicados. Mas at essa crtica controversa.
Para Kant, "analiticamente verdadeiro" no tem o mesmo significado que "verdadeiro por definio", uma vez que ele considera a definio exata e completa como uma condio mais rigorosa; juzos analticos podem ser formados com conceitos cuja definio exata e completa (ainda) no se conhece. Juzos analticos podem versar sobre objetos que pertencem ao mundo da experincia e
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podem afirmar, por exemplo, que todo "Schimmel" [cavalo branco] branco, que nenhum solteiro casado, ou - com Kant (B 192) - que um homem inculto no culto. Porm, a verdade do contedo afirmado no se decide pela experincia, mas unicamente com a ajuda de leis lgicas elementares, pressupondo as regras semnticas daquela lngua em que a afirmao formulada. Ainda que as regras semnticas constituam fatos empricos e possam variar, os juzos analticos so, segundo Kant, necessariamente verdadeiros. Pois a analiticidade no se refere a regras semnticas, mas- uma vez pressupostas as regras semnticas- somente relao entre o conceito do sujeito e o conceito do predicado. Se as regras semnticas mudam e, por exemplo, se " Schimmel" no significa mais "cavalo branco", ento no teramos mais um juzo analtico, apesar de usarmos o mesmo termo.
Sintticos so todos os juzos no-analticos, ou seja, todas aquelas afirmaes cuja verdade - supostas as regras semnticas da linguagem - no pode ser encontrada unicamente com a ajuda do princpio de contradio, ou, mais geralmente, com a ajuda das leis lgicas. Juzos analticos s explicam o sujeito atravs do predicado; juzos sintticos, ao contrrio, ampliam o conhecimento acerca do sujeito.
A dupla distino "analtico - sinttico" e "a priori -a posteriori" permite ao todo quatro possibilidades de combinao: (1) juzos analticos a priori; (2) juzos analticos a posteriori; (3) juzos sintticos a priori e (4) juzos sintticos a posteriori. Duas destas, a saber, (1) e (4), no so problemticas, enquanto uma terceira possibilidade (2) descartada. Juzos analticos so vlidos a priori por seu prprio conceito (1), por isso no pode haver juzos analticos a posteriori (2) . O fato de que a ampliao (sin-
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ttica) do conhecimento humano se d pela experincia bvio para ns e no oferece nenhuma dificuldade; os juzos empricos ( 4) so sempre sintticos .. (1311);' seu fundamento constitudo pela experincia.
diferena dos juzos analticos a posteriori, os juzos sintticos a priori (3) so possveis conceitualmente. A questo se essa possibilidade conceitual pode realizarse, isto , se h de fato juzos sintticos a priori e, portanto, a ampliao do conhecimento anterior a toda a experincia, esta questo decide sobre a possibilidade da metafsica como cincia . Pois, diferena da lgica, a metafsica deve ampliar o conhecimento humano; seus enunciados so sintticos. Como a metafsica consiste em um conhecimento puro da razo, ela carece da legitimao pela experincia; seus juzos so vlidos a priori. Assim a per gunta fundamental da Crtica da razo pura : "Como so possveis juzos sintticos a priori?" Esta pergunta ao mesmo tempo a " questo vital" da filosofia . Da resposta dependem, com efeito, a possibilidade da existncia de um objeto prprio de investigao para a filosofia e a possibilidade de um conhecimento genuinamente filosfico, diferente do conhecimento nas cincias analticas e empricas.
primeira vista um conhecimento independente da experincia e ao mesmo tempo sinttico parece inslito e, por isso, bastante remota a possibilidade de uma filosofia autnoma. No entanto, as possibilidades aumentam consideravelmente se no s na metafsica mas tambm em todas as cincias tericas ocorrem, como Kant afirma, juzos sintticos a priori. Neste caso, o conhecimento da metafsica no ficaria fora do "continuum das cincias". Na sua primeira fase, o empirismo lgico (Schlick, Carnap, Reichenbach) afirmar que j o conceito de um
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conhecimento sinttico a priori contraditrio, pois a lgica e a experincia so as nicas fontes de conhecimento. Porm, mais tarde ele admitir que as cincias empricas contm proposies, a saber, proposies nomolgicas, que podem ser apenas confirmadas ou falsificadas pela experincia, mas no fundamentadas por ela.
Segundo Kant, o carter sinttico a priori da geometria e, em geral, da matemtica se fundamenta sobretudo nos princpios como, por exemplo, que a linha reta a distncia mais curta entre dois pontos (B 16) . Mesmo que os teoremas matemticos possam ser deduzidos dos princpios de modo puramente lgico e tenham, portanto, aspecto lgico, eles somente so vlidos sob o pressuposto dos princpios sintticos, motivo pelo qual Kant afir ma que "juzos matemticos so em geral sintticos" (B 14) . No caso da cincia natural (fsica), apenas os seus princpios possuem carter sinttico a priori. Como exemplos Kant cita elementos da fsica clssica : o princpio da conservao da matria e o princpio da igualdade de ao e reao, isto , o terceiro axioma de Newton (B 17 s.) .
Como a matemtica e a cincia natural devem a sua validade objetiva a elementos independentes da experincia, a pergunta fundamental da Crtica sobre a possibilidade de juzos sintticos a priori divide-se, primeiro, nas duas perguntas especficas: como so possveis 1) a matemtica pura e 2) a cincia natural pura . A elas se acrescenta, como pergunta bsica, 3) como possvel a metafsica como cincia. Kant responde s duas primeiras perguntas na esttica transcendental e na analtica transcendental. A primeira parte da Crtica oferece, pois, uma epistemologia da matemtica e da cincia natural, mas no no sentido de uma teoria emprico-analtica, mas de uma crtica da razo. Alis, a Crtica desenvolve uma teoria de
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cincias no filosficas exclusivamente para a matemtica e a cincia natural matemtica . Pois, para Kant, so unicamente estas cincias que representam exemplos indubitveis de conhecimento objetivo. As cincias da histria, da literatura e as cincias sociais no so tomadas em considerao. Isso no tem a ver apenas com o fato de que estas estavam pouco desenvolvidas na poca de Kant. Kant possui um conceito muito rigoroso de cincia que no abarca tudo o que se entende hoje por ela . A "cincia autntica" exige que a sua certeza seja apodtica (necessria); "conhecimento que pode conter certeza meramente emprica apenas um saber em sentido imprprio" (MAN, IV 468) . Na Crtica, Kant afirma que aquele mundo real, que consideramos objetivo em oposio a todos os mundos fictcios ou subjetivos, coincide com o mundo da matemtica e da cincia natural matemtica .
Sem dvida, uma das razes fundamentais do enorme sucesso e da influncia duradoura da Crtica da razo pura deve-se a esta dupla circunstncia: primeiro, Kant no s reconhece a primazia do saber da matemtica e da cincia natural matemtica, mas tambm o fundamenta filosoficamente; e, segundo, desvenda no decorrer da fundamentao at alguns elementos e condies da matemtica e da fsica que no provm das cincias especficas, mas, ao contrrio, so sempre j pressupostos por elas. Assim, a tarefa secular que a filosofia assume com o nascimento da cincia natural matemtica encontra uma soluo satisfatria para ambas as partes: para o impulso investigador das cincias especficas autnomas, que recusam toda determinao por parte da filosofia; e para o legado metafsico da filosofia, que determinou a histria do esprito do Ocidente desde os gregos, com a sua pretenso a "verdades eternas".
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No entanto, a fundamentao filosfica da investigao cientfica autnoma no representa para Kant um fim em si. Os matemticos, cientistas da natureza e tericos da cincia, que se ocupam do estudo da Crtica da razo pura, s vezes no vem que, na verdade, a inteno de Kant saber - e esta a terceira e principal pergunta - como possvel a metafsica como cincia . A investigao dos elementos sintticos a priori da matemtica e da cincia natural pura fornece a base para isso. As condies que possibilitam a nica objetividade inquestionvel, a objetividade da matemtica e da cincia natural pura, so as que decidem sobre a possibilidade de um conhecimento objetivo tambm fora da experincia, ou seja, sobre a possibilidade da metafsica como cincia . Na segunda parte da Crtica, na dialtica transcendental, Kant aborda esta questo. Tambm neste contexto ele se ocupa de uma "realidade", isto , da "metafsica como disposio natural", a qual possui, no obstante, no mbito do conhecimento, uma predisposio auto-iluso. A razo humana cr que pode conhecer objetos alm de toda experincia . Porm, todas as tentativas de responder s "perguntas naturais" sobre o comeo do mundo, sobre a existncia de Deus etc. levam a razo a contradies. Tais questes s podem ser resolvidas se se reconhece o resultado da revoluo copernicana, a saber, a distino entre fenmeno e coisa em si, e se limita o conhecimento objetivo ao mbito da experincia possvel.
4.4 A matemtica contm juzos sintticos a priori?
J Leibniz acreditara que a matemtica pode ser fundamentada s a partir de definies e do princpio de
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contradio (Nouveaux essais sur l'entendement humain [Novo ensaio sobre o entendimento humano], livro IV, cap. VII) e que ela , portanto, uma cincia analtica. Na pesquisa mais recente, a crtica ao carter sinttico a priori da matemtica quase uma opinio comum. Foram sobretudo o matemtico e filsofo Gottlob Frege (1848-1925) e o matemtico David Hilbert (1862-1943) que defenderam o carter analtico da matemtica, Frege com a prova de que o conceito de nmero e, atravs dele, os conceitos fundamentais da aritmtica podem ser definidos incontestavelmente com recursos meramente lgicos (Grundlagen der Arithmetik [Fundamentos da aritmtica], 1884), e Hilbert, por meio da axiomatizao da aritmtica e da geometria. Os filsofos e matemticos A N. Whitehead (1861-1947) e B. Russell (1872-1970), na sua obra Principia Mathematica, e o filsofo Rudolf Carnap (1891-1970) fizeram com que a tese do carter analtico da matemtica se incorporasse filosofia analtica e ficasse, desde ento, quase incontestada.
De outro lado, Albert Einstein (1879-1955), luz do desenvolvimento da geometria no euclidiana e de sua aplicao na teoria geral da relatividade, afirmou que at os axiomas da geometria so proposies empricas, ao passo que o fsico Henri Poincar (1854-1912) os considera como convenes; em ambos os casos os axiomas perdem seu carter apriorstico. Assim, os matemticos e os filsofos negam o carter sinttico da matemtica, e os fsicos seu carter a priori.
Ao contrrio do que se poderia supor, ambas as vertentes so compatveis entre si. preciso, no entanto, distinguir entre a geometria matemtica (pura) e a geometria fsica (aplicada) . Neste caso, a geometria matemtica pode ser vlida a priori, mas s porque ela analtica.
O QUE POSSO SABER? A CRTICA DA RAZO PURA 55
A geometria fsica passa a ser, ao contrrio, um sistema de hipteses empiricamente verificveis sobre as propriedades do espao fsico. Ela tida como sinttica, mas s porque se funda na experincia e, portanto, renuncia sua pretenso apriorstica. Tanto a geometria matemtica como tambm a geometria fsica perdem seu carter de conhecimentos sintticos a priori, de modo que a concepo de Kant parece hoje "completamente errada".
Como Kant tem em vista a matemtica pura, a tese do carter emprico da geometria aplicada no o atinge. Mas tambm a afirmao do carter analtico da matemtica pura no to indiscutivelmente clara como o sups a filosofia analtica durante muito tempo. Essa posio contestada j por duas importantes correntes matemticas: a escola intuicionista do holands L. E. J. Brouwer (1881-1966) e a concepo construtivista (operativa) de Paul Lorenzen (Enfhrung in die operative Logik und Mathematik, 1955) ou de E. Bishop (The Foundations oJConstructve Mathematics, 1967) . Mesmo entre filsofos que se sentem ligados ao pensamento analtico, como, por exemplo, J. Hintikka ou, j anteriormente, E. W. Beth e, seguindo a ambos, Brittan (caps. 2-3), o carter analtico da matemtica considerado com ceticismo. O argumento principal de Hintikka este: pertencem matemtica intuies e representaes individuais; ambas no pertencem lgica, assim como a matemtica no exclusivamente analtica. Segundo K. Lambert e C. Parsons (cf. Brittan, 56 ss.), entre os axiomas da geometria h enunciados existenciais (como, por exemplo, "h pelo menos dois pontos"); mas os enunciados existenciais no pertencem s verdades lgicas, que segundo Leibniz so vlidas em todos os mundos possveis; os enunciados existenciais da matemtica no so vlidos "em todos os mundos pos-
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sveis", mas somente em todos os mundos "realme/te possveis". /
Segundo Brittan (69 ss.), a analiticidade da geometria pura pode ser entendida em trs aspectos, porm nenhum deles convincente. Em um primeiro sentido, a geometria pura pode ser considerada como analtica, porque o contrrio dos enunciados geomtricos seria autocontraditrio. Mas este no o caso, j que o axioma das paralelas, por exemplo, discutvel, de modo que resultam descartadas apenas as proposies da geometria euclidiana, no de toda geometria; fundada, pelo contrrio, uma nova geometria, no euclidiana. (Correspondentemente, h duas teorias de conjuntos, cada uma delas livre de contradies.) Em um segundo sentido, a geometria pura analtica porque suas proposies s podem ser deduzidas com a ajuda de definies e da lgica. A geometria seria ento uma verdade puramente lgica e teria que valer para todos os mundos possveis; na realidade, porm, isso no assim na geometria euclidiana. Em outras palavras: se as proposies da geometria fossem verdadeiras no sentido puramente lgico, ento teriam que s-lo em todas as interpretaes; na realidade, em algumas interpretaes de constantes no lgicas, encontramos proposies geomtricas como verdadeiras e outras como falsas. Finalmente, pode-se considerar a geometria pura como um conjunto de proposies no interpretadas, quer dizer, no se pode falar de pontos, linhas e superfcies, mas de P's, S's, B's etc., isto , de conceitos elementares de uma teoria axiomatizada (no sentido de Hilbert). Neste contexto, uma proposio tomada como analtica porque no est interpretada e , portanto, "vazia" e "sem contedo", e a geometria matemtica se converte em uma cincia analtica, j que ela no
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afirma nenhum contedo. Brittan tem objetado que neste caso se est confundindo uma distino, a saber, aquela entre proposies no interpretadas e proposies interpretadas, com um argumento. No entanto, mais importante a objeo de que as proposies no interpretadas no constituem ainda uma geometria, uma vez que no tratam de conceitos e relaes espaciais. S a interpretao espacial (interpretao de primeiro grau) dos axiomas faz de um conjunto de proposies no interpretadas uma geometria, enquanto a interpretao (de segundo grau) da geometria matemtica leva a uma geometria fsica.
Tendo em vista estes argumentos, h boas razes, tambm segundo Frege, Hilbert e Russell, para considerar a matemtica como cincia no analtica e a matemtica pura como um conhecimento sinttico a priori. (Os argumentos do prprio Kant so expostos no prximo captulo.)
Se apesar disso se considera a matemtica pura como analtica, quais so as conseqncias para a Crtica da razo pura? Para Kant, a tese do carter sinttico a priori da matemtica relevante em dois sentidos. Por um lado, ela deve, para a crtica da razo como teoria da metafsica, integrar uma cincia problemtica no conjunto das cincias reconhecidas. Para atenuar as dvidas sobre a metafsica, Kant mostra que pelo menos o tipo de enunciado de uma metafsica cientfica, a saber, dos juzos sintticos a priori, fica acima de qualquer dvida. Esse tipo de enundado se encontra num mbito que, desde a Antiguidade, ningum tem questionado sua cientificidade, a saber, na matemtica. Esta observao pode reduzir as dvidas quanto possibilidade de uma metafsica cientfica, mas no pode garantir a sua cientificidade. Ao contrrio, uma
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/ metafsica cientfica poderia ser possvel mesrr;io se no houvesse nenhum conhecimento sinttico a priori em outros lugares. A resposta pergunta crucial d primeira Crtica, se possvel uma metafsica cientfica, independe, portanto, do carter sinttico a prori da matemtica.
Por outro lado, pode-se dizer que, para a crtica da razo como teoria do conhecimento objetivo, a tese do carter sinttico a prori da matemtica um motivo para procurar os pressupostos apriorsticos de todo conhecimento. Se o conhecimento objetivo sinttico a prior, seus pressupostos devem s-lo tambm. J que, no entanto, os pressupostos esto localizados em um nvel mais profundo do que o prprio conhecimento, a afirmao de Kant sobre a existncia de pressupostos sintticos poderia ser mantida mesmo sob a condio da no-validade da hiptese epistemolgica a respeito do modo de conhecimento da matemtica.
4.5 O conceito de transcendental
Kant chama de transcendental a investigao com a qual ele responde trplice pergunta sobre a possibilidade dos juzos sintticos a pror. Este conceito central para a crtica da razo est exposto "parcialmente a mal-entendidos horrveis" (Vaihinger, I 467). Do mesmo modo que "transcendente" e "transcendncia", o termo "transcendental" pertence ao verbo latino "transcendere", que literalmente significa "ultrapassar um limite". Se os termos "transcendente" e "transcendncia" sugerem um mundo alm do nosso mundo da experincia, Kant refuta a idia segundo a qual o " alm", o mundo supra -sensvel, seja algo objetivo para o qual possa haver um co-
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nhecimento vlido no mbito do terico. verdade que tambm na investigao transcendental de Kant se ultrapassa a experincia. Porm, o sentido desse ultrapassar se inverte. Pelo menos no incio, Kant se volta para trs, no para a frente. No mbito terico, ele no busca um "transmundo" atrs da experincia, "muito longe" ou em "alturas etreas", mundo esse do qual Nietzsche escarnece como objeto da filosofia tradicional. Kant pretende desvendar as condies prvias da experincia. No lugar do conhecimento de um outro mundo, aparece o conhecimento originrio de nosso mundo e de nosso saber objetivo. Kant investiga a estrutura profunda, pr-empiricamente vlida de toda experincia, estrutura que ele -conforme ao experimento de razo da revoluo copernicana - presume no sujeito. No "retrocesso" reflexivo, a crtica da razo procura os elementos apriorsticos que constituem a subjetividade terica.
Com Kant, o conceito do transcendental adquiriu uma naturalidade que faz com que no se coloque mais a pergunta pela sua origem. J no final do sculo XVIII se afirma que o conceito foi introduzido por Kant. Na verdade, j a filosofia da Idade Mdia conhece este conceito. Ela entende por transcendentais, ou por " transcendentia", aquelas determinaes ltimas do ente que ultrapassam os limites de sua diviso em espcies e gneros e que valem sem restrio para tudo o que . Tem carter transcendental aquilo que j sempre pressupomos ao pensar entes como tais: ens, a entidade do ente; res; a qididade ou objetividade; unum, a unidade e indivisibilidade interna; verum, a cognoscibilidade e referncia ao esprito; bonum, o carter valioso e apetecvel.
Antes de Kant existe no apenas a "filosofia transcendental dos antigos" (B 113), que ele prprio no co-
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. .
nheceu. Os metafsicos dos sculos XVII e XVIII, especialmente Wolff e Baumgarten, falam tambm do " transcendental". Wolff emprega a expresso tanto em sua acepo antiga, primariamente ontolgica, como tambm num sentido novo, mais gnosiolgico, no contexto da " cosmologia transcendentalis" por ele criada. Em Baumgarten, com cuja filosofia Kant se ocupa continuadamente nas suas aulas, "transcendental" significa algo equivalente a "necessrio" ou " essencial"; no seu caso mal se pode falar de um transcendere, seja qual for o seu alcance (Hinske, 1968, 107) . No o mrito menor de Kant ter recuperado a esse conceito esvaziado - ainda que depois de um laborioso processo de clarificao - a dimenso da superao e tambm ter possibilitado, a partir de sua prpria perspectiva, uma nova compreenso dele. Apesar de todas as vacilaes, bem naturais em um conceito to carregado de tradio, a noo j meio vaga de "transcendental" adquire em Kant novamente a fora de um conceito filosfico. De acordo com a virada copernicana, os significados ontolgico e gnosiolgico esto nele estreitamente entrelaados.
Na introduo Crtica, Kant chama de transcendental "todo conhecimento que em geral se ocupa no tanto com objetos, mas com o nosso modo de conhecer objetos, na medida em que este deve ser possvel a prior (B 25) (mas com os nossos conceitos a prior de objetos: A 11 s.)" . O conhecimento transcendental uma teoria da possibilidade do conhecimento a prior ou, em uma palavra, uma "teoria do a prior'' (Vaihinger, I 467) . Isso no significa, como esclarecer Kant mais adiante, que qualquer conhecimento a priori transcendental. Tambm a matemtica e a cincia natural so, segundo Kant, conhecimentos a priori ou contm tais elementos.
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Transcendental significa, na Crtica, somente aquele conhecimento "pelo qual conhecemos que e como certas representaes (intuies ou conceitos) so aplicadas ou possveis unicamente a pror'' (B 80) .
Com o " que e como" Kant quer indicar a dupla tarefa do conhecimento transcendental. Este demonstra, primeiro, que certas representaes "no so de origem emprica" (B 81) e mostra, segundo, " a possibilidade pela qual podem, no obstante, se referir a priori a objetos da experincia" (ibid. ). Em virtude da primeira condio, todos os pressupostos empricos do conhecimento humano, por importantes que possam ser, permanecem excludos do programa da filosofia transcendental; unicamente o conhecimento no emprico da experincia transcendental. Em virtude da segunda condio, as proposies da matemtica e da cincia natural so objeto da teoria transcendental mas no fazem parte dela; chamam -se transcendentais aqueles pressupostos que no possuem carter matemtico nem fsico, mas esto sempre "intervindo" quando praticamos matemtica ou fsica.
Uma interpretao que ignore esta dupla tarefa da investigao transcendental no faria jus idia fundamental da Crtica; um pensamento sistemtico que no a reconhea no pode se chamar transcendental no sentido de Kant. Em razo da dupla determinao, dividemse tanto a esttica transcendental (s na segunda edio) como a analtica transcendental dos conceitos em duas partes principais. No marco de uma abordagem ou deduo " metafsica", so procuradas no sujeito representaes a priori; e na abordagem ou deduo "transcendental", em sentido estrito, mostrado como as representaes a priori so imprescindveis para qualquer conhecimento objetivo.
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Uma compreenso dos presst?pstos independentes da experincia de cada conhecimento de objetos no aumenta o conhecimento dos objetos. Por isso a crtica transcendental no entra em concorrncia com as cincias particulares, tampouco com as protocincias e as teorias da cincia. As cincias particulares tentam conhecer seu objeto especfico; as protocincias introduzem os conceitos bsicos necessrios; as teorias da cincia explicam a formao de conceitos e os mtodos. diferena delas, a crtica transcendental pergunta se racional, ou melhor, se faz sentido pensar como possvel o esforo das cincias particulares em buscar um conhecimento especfico de objetos e em expor as suas hipteses a continuadas tentativas de refutao. A crtica no se ocupa das questes habituais sobre o carter verdadeiro ou falso de (sistemas de) proposies, mas pergunta se e como pode haver uma relao objetiva, isto , verdadeira, com os objetos. Investiga como se pode pensar sem contradies e aporias a verdade do conhecimento objetivo, entendida como conhecimento obrigatrio, geral e necessrio.
A Crtica de Kant contm, em sentido transcendental, uma "lgica da verdade" (B 87) . No procura - no sentido semntico - o significado de "verdade", nem - no sentido pragmtico - um critrio para poder decidir quais (sistemas de) proposies so verdadeiras. Num sentido mais radical, a Crtica aborda, na sua primeira parte, a possibilidade fundamental da verdade e a questo acerca do que so, em geral, objetos objetivos que permitam enunciar uma proposio verdadeira. Com isso Kant recorre definio tradicional da verdade como adequao (correspondncia) do pensamento ao objeto; mostra, porm, que, conforme revoluo copemicana, o objeto no um emsi independente do sujeito, mas constitudo somente pelas condies apriorsticas do sujeito cognoscente.
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A compreenso das condies pr-empricas do conhecimento objetivo est ligada compreenso de seus limites. Neste sentido, a utilidade da crtica da razo "realmente apenas negativa com respeito especulao". A crtica serve "no para a ampliao, mas apenas para a purificao da nossa razo" (B 25) .
Ainda que Kant tenha contribudo consideravelmente para a investigao das cincias naturais no seu perodo pr-crtico (cf. cap. 2 .2), a Crtica no pretende mais ampliar o saber cientfico. Isto no significa, no entanto, como se costuma objetar, que ela seja "no fundo irrelevante". certo que ela no promove diretamente o saber sobre objetos, seno o saber sobre o saber de objetos. Mas, em primeiro lugar, a Crtica pode indiretamente alcanar importncia para as cincias particulares, no contexto de discusses de seus fundamentos. Ademais, a reflexo transcendental proporciona um conhecimento de segundo grau; a cincia se faz transparente a si mesma e se concebe como racional.
A idia da cincia leva consigo a pretenso de conhecimento objetivo. Esta pretenso rejeitada pelos cticos, desde a Antiguidade at David Hume, como injustificada; eles afirmam que no h nenhum conhecimento objetivo, isto , um conhecimento universal e necessrio. Nesta situao, a crtica transcendental considera a pretenso de objetividade como algo condicionado, ou seja, como uma conseqncia para a qual ela busca a condio ou legitimao. Caso a busca tenha sucesso, esta pretenso de conhecimento objetivo pode considerar-se como justificada em um duplo sentido. O fundamento de legitimao do conhecimento (segundo Kant, as formas puras da intuio, os conceitos e princpios puros) mostra, primeiro, que possvel um conhecimento objetivo e, segundo, no que ele consiste. No obstante certas obscuri-
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dades, ou at talvez contradies, Kant no parte, como se afirma por exemplo no neokantismo, da idia de que a matemtica e a cincia natural representam um fato indubitvel. Seria uma pressuposio dogmtica, incompatvel com a idia da crtica da razo. Kant parte, em vez disso, da idia de que a cincia ou o conhecimento objetivo consiste em um saber universal e necessrio. Logo, ele pergunta, de acordo com os cticos, se algo assim pode ser possvel. Sua resposta tem dois aspectos: primeiro, possvel um conhecimento universal e necessrio com base em intuies puras e conceitos e princpios puros; mas, segundo, somente como matemtica e fsica (cincia natural universal) . Em poucas palavras: a cientificidade da matemtica e da fsica no premissa, mas concluso; no base da prova, mas seu objetivo.
Neste empreendimento, " objetividade" tem dois sentidos diferentes, relacionados entre si. Por um lado, " objetividade" (no sentido veritativo) designa a propriedade de conhecer o mundo real e, portanto, de ser vlido no s para este ou aquele sujeito, mas universal e necessariamente. Por outro lado, " objetividade" (no sentido referencial) significa a relao do conhecimento com objetos reais, ou seja, com fatos, e no com fices ou meros produtos da imaginao. Assim, o primeiro significado pressupe o segundo. S porque so sabidos os fatos dados (objetos) no conhecimento objetivo, este pode formular enunciados objetivos. Como este significado o mais fundamental, Kant se interessa por ele em primeiro lugar.
5 . A ESTTICA TRANSCENDENTAL
A esttica transcendental da primeira Crtica no uma teoria do belo ou do gosto (cf. cap. 13.2), seno uma
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cincia dos princpios da sensibilidade ou da intuio (em grego: aisthesis) a priori. Como parte da crtica transcendental, ela no investiga a intuio em geral, mas unicamente suas formas puras, espao e tempo, como fontes de conhecimento. Por isso, o fato de que certos problemas de uma teoria geral da intuio no so discutidos no pode ser imputado a Kant, mas a uma falsa expectativa.
Na sua configurao definitiva, a Esttica transcendental tem duas partes claramente diferenciadas. Na exposio metafsica, Kant mostra que espao e tempo so formas puras da intuio, na exposio transcendental, mostra que essas formas possibilitam o conhecimento sinttico a priori. Assim, a esttica transcendental oferece, por um lado, uma nova soluo na disputa da filosofia moderna sobre a " essncia" do espao e do tempo e contm, por outro lado, a primeira parte da fundamentao kantiana da matemtica e da cincia natural geral.
A possibilidade de um conhecimento a priori mediante conceitos gerais do entendimento algo que sempre foi afirmado, antes e depois de Kant. Mas a tese de que a intuio e, portanto, a sensibilidade, implica tambm certos elementos no empricos e que estes so imprescindveis para a matemtica e a fsica, deve ser atribuda unicamente a Kant. Por isso, a Esttica transcendental, no obstante todos os problemas que ela provoca (cf. Vaihinger, II), constitui uma das partes mais originais da primeira crtica da razo.
5.1 Os dois troncos de conhecimento: sensibilidade e entendimento
Seguindo a Baumgarten, Kant distingue entre a faculdade cognitiva inferior e a superior, isto , entre a sen-
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sibilidade e o entendimento (s vezes tambm: a razo) no sentido amplo do termo. Paralelamente s trs partes da lgica tradicional, a faculdade superior do conhecimento articula-se em entendimento no sentido estrito ("conceitos"), faculdade de julgar ("juzos") e razo no sentido estrito ("concluses") (cf. B 169) . A Crtica da razo pura adota esta diviso. Comea com (1) a teoria da sensibilidade na Esttica transcendental, seguem - dentro da Analtica transcendental - (2) a Analtica dos conceitos e (3) a Analtica dos princpios; a Crtica finaliza com (4) a teoria das concluses (da razo) na Dialtica transcendental e (5) com uma Doutrina transcendental do mtodo.
A Esttica transcendental afirma que o conhecimento - considerado do ponto de vista lgico, e no psicolgico - se deve ao conjunta de duas fontes de conhecimento: a sensibilidade e o entendimento. Ambas as faculdades tm o mesmo peso e dependem uma da outra.
(1) A relao imediata do conhecimento com os objetos e o ponto de referncia de todo pensamento a intuio, a qual percebe um particular imediatamente. A intuio supe um objeto dado. A nica possibilidade mediante a qual nos podem ser dados objetos reside na sensibilidade receptiva, ou seja, na capacidade da mente de ser afetada por objetos; por isso que podemos ver, ouvir, cheirar, saborear e tocar. (Kant se pronuncia mais detalhadamente sobre a sensibilidade e sobre os cinco sentidos no primeiro livro da Anthropologe in pragmatischer Hinsicht.) Somente a sensibilidade receptiva possibilita ao homem as intuies. Uma intuio ativa, espontnea e intelectual, ou seja, uma viso criadora, algo impossvel para o homem. A ao do objeto sobre a mente chama -se sensao; ela constitui a matria da sensibili-
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dade. Devido falta do intelecto formador, o objeto da sensibilidade o indeterminado, contudo determinvel; ele representa o material do conhecimento. A sensibilidade pressupe como fundamento necessrio a finitude de todo conhecimento humano. O homem no pode produzir os objetos do conhecimento por si mesmo, nem coloc-los ante si, como a razo infinita de Deus o pode. Ele precisa de objetos previamente dados. A descoberta que nos leva da posio pr-crtica de Kant sua Crtica consiste na idia de que os nossos conceitos puros do entendimento no podem prescindir da sensibilidade, isto , que no possvel conhecer nada sem os sentidos.
(2) A mera recepo de algo dado ainda no produz nenhum conhecimento. Em um conhecimento as sensaes no so simplesmente reproduzidas, mas elaboradas. Para isso precisa-se de conceitos, que se devem ao entendimento em sentido estrito e com cuja ajuda as sensaes so "pensadas", isto , reunidas e ordenadas segundo regras.
Kant no fundamentou a suposio de que "h dois troncos do conhecimento humano" (B 29). Ele apenas supe que sensibilidade e entendimento "talvez brotem de uma raiz comum, mas desconhecida a ns" (ibid.). A ausncia de uma derivao mais profunda corresponde inteno kantiana de uma crtica da razo que no pretende fornecer uma "fundamentao ltima" do conhecimento, como Descartes, o Idealismo Alemo ou Husserl. Mas mostra tambm que uma crtica da razo no constitui a ltima palavra da filosofia. No entanto, a tese inicial de Kant encontra uma justificao indireta pela soluo bem-sucedida do problema fundamental, de escapar das aporias do empirismo e do racionalismo mediante uma posio nova, mediadora. Em contrapartida,
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a definio da sensao como "efeito" do objeto gera dificuldades internas crtica, as quais, j segundo a opinio de F. H Jacobi, Fichte e Schelling, no podem ser superadas sem ir alm da Crtica.
Com o reconhecimento da sensibilidade, Kant d razo ao empirismo em sua concepo fundamental de que o conhecimento humano necessita de algo previamente dado, e rejeita um racionalismo puro. Com a constatao da necessidade do entendimento, Kant d razo idia do racionalismo, segundo a qual no h nenhum conhecimento sem o pensamento, e critica um empirismo puro; em termos modernos: Kant se manifesta contra a separao rigorosa entre linguagem de observao e linguagem de teoria, j que todo conhecimento, at o saber cotidiano, contm elementos tericos (conceituais) : "Sem sensibilidade nenhum objeto nos seria dado, e sem entendimento nenhum seria pensado. Pensamentos sem contedo so vazios, intuies sem conceitos so cegas" (B 75; cf. B 33).
Com a distino de duas fontes de conhecimento interdependentes, Kant nega a idia de Leibniz de uma diferena meramente gradual entre sensibilidade e entendimento. Ao contrrio de Leibniz, ele no considera a intuio como um pensar imperfeito que carece de claridade. Na realidade, diz Kant, a intuio tem outra origem; ela provm da sensibilidade, isto , de uma fonte independente do entendimento e imprescindvel para todo conhecimento. O desconhecimento desse fato forma, segundo Kant, a base da metafsica leibniziana, e o esclarecimento deste desconhecimento a sua refutao.
(3) Na segunda parte da Analtica transcendental, Kant investiga, como outra faculdade cognitiva, a faculdade do juzo, isto , a capacidade de subsumir (conceitos do entendimento) sob regras.
O QUE POSSO SABER? A CRTICA DA RAZO PURA 69
Em todas as trs faculdades, indispensveis para o conhecimento humano, Kant encontra um elemento noemprico: na sensibilidade, as formas puras da intuio, o espao e o tempo; no entendimento, os conceitos puros do entendimento, as categorias; no Juzo, os esquemas transcendentais e os princpios do entendimento puro.
Sinopse das trs faculdades do conhecimento
Sensibilidade Entendimento
O objeto dado por meio de O objeto, uma multiplicidade uma afeco do nimo. indeterminada da intuio,
pensado, ou seja, determinado.
A capacidade do nimo de ser afetado se chama sensibilidade (receptividade) . O efeito exercido pelo objeto, a matria da sensibilidade, se chama sensao.
A relao com o objeto mediante a sensao chama-se emprica (a posteriori) .
O objeto indeterminado (conceitualmente) de uma intuio emprica o fenmeno.
A capacidade de determinar o objeto, ou seja, de produzir representaes por si mesmo (espontaneamente), se chama entendimento, a faculdade dos conceitos (regras) .
A relao com o objeto mediante as categorias do entendimento se chama pura (a priori) .
O objeto [Gegenstand] como fenmeno determinado pelo entendimento se chama objeto [Objekt] .
As formas puras da intuio so Os conceitos puros do enten-o espao e o tempo. dimento so as categorias.
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Faculdade do juzo
O juzo a faculdade de subsumir sob regras, ou seja, de discernir se algo cai ou no sob uma regra dada. As condies da possibilidade de aplicar conceitos puros do entendimento a fenmenos so determinaes temporais transcendentais; so tanto conceituais como sensveis: so os esquemas transcendentais, um produto transcendental da faculdade imaginativa.
A cada categoria corresponde uma modificao da intuio do tempo; por exemplo, o esquema da substncia a permanncia no tempo; o esquema da necessidade a existncia de um objeto em todo tempo.
Os juzos sintticos, que "derivam" dos conceitos puros do entendimento, conforme s condies dos esquemas a prior, e servem de base a todos os outros conhecimentos a priori, so os princpios do entendimento puro: para os juzos analticos, o princpio da contradio; para os juzos sintticos, os axiomas da intuio, as antecipaes da percepo, as analogias da experincia (p. ex., o princpio da causalidade) e os postulados do pensamento emprico.
5.2 A exposio metafsica: o espao e o tempo como formas a priori da intuio
A exposio metafsica do espao e do tempo se sucede a um duplo processo de abstrao (B 36), que isola, primeiro, no complexo total do conhecimento os componentes da intuio e do entendimento, e elimina de-
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pois na intuio tudo o que pertence sensao, isto , cores, sons, impresses de calor etc. Restam assim as formas da intuio independentes de toda experincia, ou seja, as representaes originrias de espao e tempo. Essa exposio metafsica porque revela as representaes originrias do espao e do tempo, a espacialidade e a temporalidade, como intuies dadas a priori (cf. B 38) . Ela mostra, primeiro, que se trata de representaes a priori e, segundo, que estas no tm carter de conceito mas de intuio.
Sob o espao no nos representamos apenas o espao intuitivo dos objetos da experincia e da cincia natural, mas tambm o espao da ao e o espao vivencial ou afetivo da psicologia, da arte e da literatura. De modo semelhante, distinguimos o tempo intuitivo do tempo do agir e do vivencial. Entretanto, na Esttica transcendental trata-se exclusivamente do espao intuitivo: relaes de coextenso e justaposio; e do tempo intuitivo: relaes de sucesso e simultaneidade. S delas Kant afirma que possuem um ingrediente independente da experincia.
Espao e tempo pertencem a duas esferas distintas. O espao a forma intuitiva do sentido externo, que nos fornece, atravs dos cinco sentidos, as impresses acsticas, ticas, gustativas . . . , enquanto o tempo pertence ao sentido interno com suas representaes, inclinaes e seus sentimentos. No entanto, o sentido interno tem a primazia, j que toda representao dos sentidos externos sabida pelo sujeito, sendo assim tambm uma representao do sentido interno. Conseqentemente, o tempo a forma de toda intuio, imediatamente da interna e mediatamente tambm da externa. Contudo, a prioridade do tempo no to ampla que faa do espao um subgnero ou possa ser substitudo por ele. Para Heidegger, a primazia do tempo motivo de ver na Crtica da razo
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pura uma predecessora de sua prpria ontologia fundamental, apresentada sob o ttulo Sein und Zeit [Ser e tempo] . Com efeito, o tempo desempenha na Crtica um papel muito mais importante que o espao; como, por exemplo, na deduo transcendental das categorias e sobretudo no captulo do esquematismo, que Heidegger analisa minuciosamente (cf. cap. 7.1) . A prioridade do tempo explica talvez tambm por que na dissertao inaugural de 1770 o tempo abordado antes do espao.
Kant justifica a tese de que o espao e o tempo so formas puras da intuio com quatro argumentos. Com os dois primeiros ele mostra, contra o empirismo, que espao e tempo so representaes apriorsticas; e com os outros dois, contra o racionalismo, que eles no possuem carter conceitual, mas intuitivo. (No caso do tempo, um outro argumento, intermedirio, j pertence exposio transcendental; cf. B 48.)
Espao e tempo - esse o primeiro argumento, de carter negativo - no podem derivar da experincia, j que subjazem a qualquer intuio externa ou interna. Para que eu possa perceber uma cadeira "fora de mim" e "ao lado da mesa", j pressuponho - alm das representaes de mim mesmo, da mesa e da cadeira - a representao de um "fora", isto , de um espao no qual a cadeira, a mesa e o eu emprico ocupam determinada posio entre si, sem que esse espao seja uma propriedade da cadeira, da mesa ou do eu emprico. Entre as propriedades da percepo externa encontramos cores, formas e sons, mas no o espao. Analogamente, os processos psquicos possuem determinadas qualidades que percebemos em sucesso temporal, sem que alguma destas sensaes possua a qualidade do tempo. A este primeiro argumento negativo segue outro positivo: espao e tempo so representaes necessrias. Pois podemos imaginar
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um espao e um tempo sem objetos ou sem fenmenos, mas no que o espao e o tempo no existam. Mesmo na esfera da sensibilidade h algo que j existe "previamente", e no s a partir da percepo emprica. Espao e tempo se devem estrutura apriorstica do sujeito cognoscente.
Bennett objetou, contra o carter apriorstico do tempo, que tambm possvel supor o contrrio, sem nenhuma contradio, a saber, um mundo no temporal, j que a proposio "todos os dados sensveis so temporais" no analtica. Conseqentemente, Bennett (1966, 49) no considera a temporalidade como necessria, mas apenas como no dispensvel ao pensamento, embora contingente. Segundo Kant, no entanto, necessrio aquilo que no pode ser de outro modo (B 3) . Isso acontece com o espao e o tempo como formas puras da intuio de todo o conhecimento humano. Pois a intuio sensvel capta objetos concretos que no caso da percepo externa s podem ser dados como ao lado, atrs ou acima de outros objetos; e, no caso da percepo interna, s antes de, junto com ou depois de outros estados internos.
No segundo par de argumentos, Kant conclui, primeiro, da unicidade e unidade do espao e do tempo, que estes no so conceitos (discursivos), mas intuies. Pois os conceitos se referem a exemplares independentes; o conceito de mesa, por exemplo, se refere a todos os exemplares de mesas, enquanto existe s o todo de um nico espao e de um tempo unitrio, que contm em si todos os espaos e tempos parciais como elementos no independentes. O segundo argumento prova o cc.rter intuitivo mostrando que a representao de espao ilimitada, enquanto um conceito pode ter uma quantidade indefinida de representaes no em si, mas s sob si.
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5.3 A fundamentao transcendental da geometria
demonstrao "metafsica" de que espao e tempo so formas puras da intuio Kant junta uma exposio transcendental bastante sucinta. Ela deve mostrar que espao e tempo no so meras representaes ("entes do pensamento"), mas possuem uma funo constitutiva de objetos; pois so espao e tempo mediante os quais se tornam possveis os objetos de um conhecimento sinttico a priori. Por serem espao e tempo formas da intuio que independem da experincia, pode haver uma cincia independente da experincia, a saber, a matemtica. A forma pura da intuio do espao torna possvel a geometria, o tempo torna possvel a parte a prori da teoria geral do movimento (mecnica) e, segundo os Prolegomena ( 10; cf. KrV, B 182), devido numerao, tambm a aritmtica. Dessa forma, a Esttica transcendental contm uma parte da fundamentao filosfica da matemtica e da fsica. Mas, abstraindo de dificuldades imanentes exposio, nem para a matemtica Kant desenvolve uma teoria completa. Pois, por um lado, Kant conclui sua fundamentao da validade objetiva da matemtica somente com os axiomas da intuio (cf. cap. 7.3) . Por outro, uma filosofia da matemtica exige muito mais que sua fundamentao transcendental.
A exposio transcendental do espao conecta-se com a idia da geometria enquanto cincia que "determina sinteticamente e mesmo assim a priori as propriedades do espao" (B 40) . A pergunta transcendental de que tipo deve ser a representao do espao para que seja possvel tal conhecimento dele. A resposta de Kant tem trs graus: primeiro, o espao no pode ser um conceito, mas tem que ser uma simples intuio, j que no se po-
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dem obter proposies sintticas a partir de meros conceitos. Segundo, o espao tambm no pode ser uma intuio emprica, caso contrrio a geometria no teria carter apriorstico. No terceiro argumento Kant passa, em detrimento da clareza argumentativa, da geometria pura (matemtica) geometria aplicada (fsica) (como em Prol., 1 parte) : uma intuio externa que precede os objetos e apesar disso os determina a priori s possvel se ela deriva do sujeito e indica a forma de uma intuio externa.
Dos trs argumentos segue-se que s o resultado da exposio metafsica do espao, como uma forma subjetiva, mas pura da intuio, torna compreensvel a geometria como conhecimento sinttico a priori; s porque o espao uma intuio a priori, torna-se possvel a geometria pura; e porque o espao , alm disso, a forma que devem assumir todos os objetos empricos enquanto intuies nossas, torna-se possvel a geometria aplicada.
No decorrer da fundamentao transcendental, Kant cita como exemplo de uma proposio necessria da geometria "o espao s tem trs dimenses" (B 41) . No contexto da intuio natural e da geometria euclidiana, a nica que se conhecia na poca de Kant, esta proposio correta. Mais tarde, porm, descobriram-se geometrias no-euclidianas, das quais a de Riemann aplicada teoria geral da relatividade. Assim, hoje em dia a geometria euclidiana no universalmente vlida nem na matemtica nem na fsica, e a esttica transcendental de Kant, que afirma essa validade universal, parece irremediavelmente ultrapassada. Ser que tm razo os crticos que vem na teoria kantiana da geometria s mais um exemplo de como qualquer saber a priori, que os filsofos proclamam desde Plato, se desfaz com o progresso das cincias?
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Para escapar desta conseqncia fatal, Bri:icker (22) props distinguir dois tipos de espao: (1) o espao tridimensional euclidiano, dado intuitivamente, com o qual at toda fsica deve comear e que ele chama de espao transcendental; (2) o espao emprico, que os fsicos adotam no decorrer de suas experincias e ao qual convertem os resultados alcanados no espao transcendental. Com essa distino Bri:icker ameniza a tese kantiana da unicidade da geometria euclidiana, conferindo a ela uma posio transcendental de exceo. Algo parecido faz Strawson (277 ss.) com a "geometria fenomenal" que ele desenvolve para defender Kant das "concepes positivistas".
A primazia transcendental da geometria euclidiana no s faz jus representao natural do espao. Explica tambm o fato de que, at hoje, se considera a geometria euclidiana tridimensional como matematicamente possvel e, no mbito intermdio entre a fsica atmica e a astrofsica, como empiricamente vlida. Apesar disso, surgem graves dvidas quanto a uma posio transcendental de exceo. Kant no fundamenta a tridimensionalidade do espao nem na exposio metafsica nem na exposio transcendental, e no seu primeiro escrito Von der wahren Schiitzung der lebendgen Kriifte [Sobre a verdadeira avaliao das foras vivas] ( 9-11) at chegou a considerar possveis os espaos no-euclidianos. O carter apriorstico da intuio, a que se refere a exposio transcendental, abordado na exposio metafsica unicamente para a forma bsica de toda intuio externa, isto , para o mero "separado" ou "um-ao-lado-do-outro" sem nenhuma propriedade estrutural. Terminologicamente ela deve ser designada como " espacialidade" ou como " espao em geral". A mera espacialidade ainda no o objeto da geometria. Este objeto s surge mediante a objetivao
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da espacialidade; mediante imaginao e posio que o matemtico representa a simples forma da intuio como um objeto prprio, dotado de certas estruturas, que ele investiga no contexto da geometria pura sem recorrer experincia. Entre o espao como condio transcendental e o espao como objeto da geometria h uma diferena insupervel . Por isso, na exposio transcendental as trs dimenses do espao no constituem, com razo, nenhum argumento em favor da possibilidade da geometria. So apenas um exemplo para uma proposio supostamente apodtica; so o predicado de um enunciado geomtrico, no de um enunciado transcendental. No so os enunciados matemticos e fsicos que tm um sentido transcendental, mas somente - num grau inferior - suas condies que, conforme a revoluo copernicana, repousam na " constituio" no-emprica do sujeito cognoscente. Em virtude de sua problemtica mais geral, nem a exposio metafsica nem a exposio transcendental do espao esto ligadas a uma determinada geometria. A Crtica permanece neutra ante a alternativa posterior de uma " geometria euclidiana ou no-euclidiana".
Segundo a objeo mais importante contra Kant, a geometria no uma cincia sinttica, mas analtica. Pode-se opor a esta objeo, como j mencionado (cf. cap. 4.4), que toda geometria uma cincia do espao e, portanto, pressupe a espacialidade. A espacialidade , no entanto, como mostra a exposio metafsica, a forma pura da intuio externa. No nasce da experincia nem de meros conceitos (definies) e tem, por isso, um carter sinttico a pror. Em conseqncia, pode-se dizer que tambm a geometria, na medida em que vista desde seu pressuposto ltimo, a espacialidade, constitui um conhecimento sinttico a prori, mesmo que se construa a
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geometria analiticamente (axiomaticamente); algo que, entretanto, controverso entre os matemticos (cf. cap. 4.4) .
Como a geometria investiga um objeto, o espao, que tem como pressuposto a forma pura da intuio do sentido externo, a espacialidade, ela pode ser empiricamente substanciosa e fornecer o fundamento de teorias cientficas sobre objetos externos. Mas dado que a esttica transcendental fundamenta unicamente a espacialidade e no determinadas representaes espaciais, ela no pode nem privilegiar a geometria euclidiana em relao s geometrias no-euclidianas nem declarar uma determinada geometria matemtica o fundamento de teorias fsicas. Portanto, temos que distinguir trs graus: (1) a espacialidade transcendental, (2) o espao matemtico e (3) o espao fsico. Cada um dos graus subseqentes depende do anterior, sem dele poder ser derivado. Os enunciados de geometrias matemticas no podem ser fundamentados atravs da filosofia transcendental; o marco geomtrico de teorias fsicas no depende s de conhecimentos matemticos, mas tambm de conhecimentos empricos; no compete de modo algum crtica transcendental da razo julgar a alternativa "concepo clssica (newtoniana) ou concepo relativista (einsteiniana) do espao-tempo" .
Essa exposio crtica aqui esboada da Esttica transcendental de Kant tem uma qudrupla conseqncia. Em primeiro lugar, no se segue do carter sinttico a priori da intuio geral do espao que os axiomas especficos do espao de uma geometria sejam sintticos a priori. verdade que se poderiam considerar as proposies da geometria matemtica como sintticas a priori no sentido fraco, isto , como no ligadas a um pressuposto no analtico, a saber, a espacialidade transcendental. Entre-
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tanto, esse pressuposto no tem o sentido de uma premissa dentro de determinada argumentao geomtrica, mas o fundamento transcendental de qualquer geometria. Portanto, no constitui um argumento suficiente para chamar um espao geomtrico e seus axiomas de sintticos a priori num sentido estritamente epistemolgico. Segundo, a geometria (matemtica) pura possui, ante Kant, um carter cognoscitivo s num sentido muito limitado. Ela no estabelece a estrutura da realidade emprica, mas oferece vrias geometrias matematicamente possveis, entre as quais a fsica escolhe independentemente, conforme experincia. Terceiro, a Esttica transcendental no est ligada, nem na exposio metafsica, nem na exposio transcendental, situao histrica da matemtica e da fsica. Quarto, a fundamentao transcendental da geometria e da fsica, a partir das formas puras da intuio, no tem um voto direto nas controvrsias cientficas de fundamentao. A deciso sobre a matemtica axiomtica ou a matemtica construtivista, assim como a deciso a favor ou contra a fsica relativista, no pode ser tomada por uma crtica da razo. Uma teoria transcendental invarivel relativamente s muitas mudanas na matemtica ou na fsica.
5.4 Realidade emprica e idealidade transcendental de espao e tempo
O carter do espao e do tempo bastante controverso na metafsica moderna (quanto ao espao, cf. Heimsoeth, I 93-124): so eles algo objetivo e real ou algo meramente subjetivo e ideal (Berkeley) ? E, se so reais, eles representam substncias (Descartes), atributos da subs-
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tncia divina (Espinosa), ou uma relao das substncias finitas (Leibniz) ? As diversas teorias levam a a porias que Kant tenta superar com sua nova soluo: espao e tempo so algo totalmente diferente de todas as outras entidades conhecidas; so as formas a priori da nossa intuio externa e da nossa sensao interna (humana) .
Dado que o conhecimento emprico no possvel sem sensaes externas e internas, e que estas, no entanto, no so possveis sem espao e tempo, as formas puras da intuio possuem "realidade emprica" (B 44 com B 52) . Em contraposio ao "idealismo dogmtico" do filsofo e telogo britnico G. Berkeley (1684-1753) que, segundo Kant, considera o espao com todos os objetos como mera imaginao (B 274), para Kant, espao e tempo so vlidos objetivamente: sem eles no pode haver objetos da intuio externa e interna e, conseqentemente, nenhum conhecimento objetivo. Disso no se segue, entretanto, que espao e tempo existam em si, ou seja, em forma de substncias, propriedades ou relaes. So, bem pelo contrrio, as condies sob as quais unicamente podem aparecer os objetos para ns; elas possuem, diz Kant, "idealidade transcendental" (B 44 com B 52). Com essa teoria Kant refuta tambm a idia de Newton do espao como Sensorium Dei, infinito e uniforme, mostrando assim que reconhece a fsica dele como modelo de uma cincia exata sem adotar cegamente seus pressupostos filosficos.
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