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Universidade Federal do Rio de Janeiro Johnny Menezes Alvarez O aprendizado da capoeira Angola como um cultivo na e da tradição Rio de Janeiro 2007

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Johnny Menezes Alvarez

O aprendizado da capoeira Angola

como um cultivo na e da tradição

Rio de Janeiro

2007

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O aprendizado da capoeira Angola

como um cultivo na e da tradição

Por Johnny Menezes Alvarez

Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como exigência parcial para obtenção do grau de Doutor em Psicologia.

Orientação: Profª. Drª. Virgínia Kastrup

Rio de Janeiro, dezembro de 2007.

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Por Johnny Menezes Alvarez

O Aprendizado da capoeira Angola

como um cultivo na e da tradição

Rio de Janeiro, 10 dezembro de 2007.

______________________________________________ Virgínia Kastrup, Doutora em Psicologia - UFRJ

_

______________________________________________ Luciana Caliman, Doutora em Psicologia - UFRJ

_____________________________________________ Eduardo Passos, Doutor em Psicologia – UFF

_

____________________________________________ Pedro R. J. Abib, Doutor em Educação – UFBA

_

___________________________________________ Maurício B. de Castro, Doutor em História Social.

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Ficha Catalográfica ALVAREZ, Johnny Menezes O aprendizado na capoeira Angola como cultivo na e da tradição. Rio de Janeiro, UFRJ/Instituto de Psicologia, 2007. Folhas: 227 Tese (doutorado em Psicologia) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Psicologia, 2007. Orientador: Virgínia Kastrup 1- Aprendizagem. 2 – Capoeira Angola. 3 - Tradição

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Resumo da Tese apresentada ao IP/UFRJ como parte dos requisitos necessários para obtenção do grau de Doutor em Psicologia.

O aprendizado da capoeira Angola como um cultivo na e da tradição

Por Johnny Menezes Alvarez

Dezembro/2007

Orientadora: Virgínia Kastrup

RESUMO

Propomos neste trabalho descrever e analisar a experiência de aprendizado da capoeira Angola. Utilizamos como metodologia análises de entrevistas, depoimentos, textos, vídeo e áudio referentes ao mundo da capoeira Angola. Partindo de descrição histórica, acompanhamos o nascimento das primeiras escolas de capoeira, a partir da década de 30 do séc. XX. Destacamos, assim, a formação da escola de capoeira Angola de Mestre Pastinha, enfatizando uma descrição e análise de elementos desse aprendizado, desde os movimentos da ginga, até a constituição da roda, passando pelas questões do aprendizado de uma atenção à espreita, do tempo da vadiação, da musicalidade e o ritmo do aprendizado, da ritualização da capoeira, da ética da mandinga, da política de resistência e do papel do Mestre. Mostramos que por meio desses elementos amplia-se o entendimento do aprendizado da Capoeira Angola para além de uma simples aquisição de habilidades. Discutimos essa cultura do aprendizado presente na Capoeira Angola estabelecendo um diálogo com a psicologia da aprendizagem e também com as idéias de G. Deleuze, A. Kagame, M. Eliade, M. Sodré, V. Kastrup, entre outros. Pudemos averiguar um modo de aprendizado encarnado em uma tradição, na qual aprendizes e Mestres compartilham e cultivam saberes e práticas coletivamente.

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Abstract

We propose in this work to describe and analyze the learning experience of capoeira Angola. Our methodology consists of analyses of interviews, testimonies, texts, video and audio referring to the world of capoeira angola. Starting with a historical description, we accompany the birth of the first capoeira schools in the 1930’s onwards. We give a special attention to the formation of Mestre Pastinha’s school of capoeira Angola, emphasizing both a description as an analysis of the elements of that learning, from the swaying movement up to the constitution of the circle, taking into account questions related to the learning of a lookout attention, a vagrancy time, musicality and the learning rhythm, the ritualization of capoeira, the ethics of the witchcraft, the resistance politics as well as the role of the master. We demonstrate that through those elements one gets a better understanding of the learning of capoeira angola that goes beyond the simple acquisition of abilities. We discuss this learning culture present in capoeira angola with the help of the psychology of learning as well as the ideas of G. Deleuze, A. Kagame, M. Eliade, M. Sodré V. Kastrup, among others. We could verify a way of learning that is rooted in a tradition where learners and masters collectively share and cultivate knowledge and practices.

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Agradecimentos

Ao Instituto de Psicologia da UFRJ por ter acolhido meu trabalho.

Aos funcionários deste Instituto, principalmente a pessoa encantadora de nossa querida secretária Ana. Incansável, prestativa e carinhosa no trato da burocracia

À CNPq pela bolsa de estudos tão necessária para a conclusão da pesquisa.

A Janice Mansur pela rápida e precisa revisão de texto.

A José Ferrão pela tradução do resumo.

Ao grupo de doutorandos e mestrandos que nos últimos 4 anos estiveram comigo em discussões e debates importantes.

À minha querida orientadora Virgínia Kastrup que, desde o mestrado, tem não só acompanhado este percurso como participado de modo generoso e criativo nesta tarefa tão difícil de orientação.

Aos professores Eduardo Passos, André do Eirado, João Rezende, Cláudio Ulpiano e Clauze Abreu por terem, desde a graduação cultivado, através da amizade, o interesse pelo estudo e pelo magistério.

A Maurício Barros de Castro e Wallace de Deus pelo convívio fraterno e mandingueiro desses últimos anos do “Inventário e registro para Salvaguarda da Capoeira como Patrimônio Cultural do Brasil”.

A Frede Abreu pelo acolhimento pessoal, pelo farto material disponibilizado em seu acervo da capoeira e principalmente pelas conversas inteligentes e perspicazes sobre este interessante mundo.

Aos colegas da experiência do “Casarão”, onde pude pela primeira vez conviver com o aprendizado da capoeira Angola.

Aos Mestres de capoeira, representado pela pessoa de Mestre Carlão, com quem tive o prazer de iniciar essa prática e por quem tenho profundo respeito e admiração.

A minha linda e preciosa família: meus dois filhos João e Morena, com quem tenho vivido a beleza dos ritos de iniciação e da circularidade desta vida. Minha amiga, mulher, amante e companheira de vidas Rejane, com quem tenho compartilhado as belezas e dificuldades nos últimos 20 anos.

Aos meus principais mestres da vida, meu pai e minha saudosa mãe. Com quem, desde muito cedo, pude vivenciar e cultivar a rica experiência de aprender com e não como.

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Para minha querida

e saudosa mãe Eliana

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Sendo filho do mundo O homem é natural

Como o vento ventando E a chuva em temporal

Quem ensina o embalo do vento? Percorrendo todo o espaço Rodopiando ao firmamento

E a chuva o seu abraço Quem ensina cá na terra?

Toda a semente de amor brotar Como o sol que nunca erra

Faz a noite ter luar E essa luz divina

É dos olhos a menina De Pastinha o seu olhar

Capoeira é ventania Luz do sol impoluta

Sempre viva dia a dia Fruto povo e sua luta Libertar do cativeiro

Cantando e batendo palma Desejando ser ligeiro Para iluminar a alma

Sonhando ser passarinho Voar pelo azul do céu

Comungar nosso caminho Tirando dos olhos o véu Pois no mundo de rapina Temos que ter muita fé

Só Deus sabe nossa sina E foi Ele que fez mandinga Para nos mantermos de pé

Antônio Gomide

10

INTRODUÇÃO.................................................................................................. 11

CAPÍTULO I – DA RUA PARA A ACADEMIA: O NASCIMENTO DAS PRIMEIRAS ESCOLAS DE CAPOEIRA ...................................................... 25

1.1 – APRENDENDO NA RUA UMA ARTE MARGINAL..................................... 26 1.2 – A CAPOEIRA REGIONAL BAIANA E A VERTENTE DESPORTIVA E MARCIAL DA CAPOEIRA .................................................................................................... 34 1.3 - A CAPOEIRA ANGOLA E A ESCOLA PARA A VIDA: UMA RESISTÊNCIA À MODERNIZAÇÃO DA CAPOEIRA ......................................................................... 42 1.4 - ALGUNS CAMINHOS DA CAPOEIRA NOS DIAS ATUAIS ............................... 50

CAPÍTULO II – APRENDER GINGANDO: DO APRENDIZADO DA GINGA À GINGA DA APRENDIZAGEM .................................................... 57

2.1 – O MOVIMENTO DA GINGA......................................................................... 57 2.2 – O APRENDIZADO DA GINGA COMO AQUISIÇÃO DE COMPORTAMENTOS AUTOMÁTICOS .................................................................................................. 61 2.3 – O APRENDIZADO DA GINGA COMO AQUISIÇÃO DE HABILIDADES ............. 75 2.4 – A CIRCULARIDADE DA GINGA NA CAPOEIRA ANGOLA E OS PROBLEMAS DE UMA APRENDIZAGEM DAS HABILIDADES .......................................................... 87

CAPÍTULO III - APRENDIZADO DA CAPOEIRA ANGOLA COMO UM CULTIVO NA E DA TRADIÇÃO................................................................... 99

3.1 – UM CULTIVO DE HÁBITOS E O APRENDIZADO DA ATENÇÃO ................... 101 3.2 - O TEMPO NO APRENDER: A IMPORTÂNCIA DA VADIAÇÃO....................... 127 3.3 – A MUSICALIDADE E O RITMO DO APRENDIZADO .................................... 146 3.4 – A MAGIA E A ÉTICA DA MANDINGA: UM APRENDIZADO DA MALÍCIA..... 163 3.5 - O PAPEL DO MESTRE E A RODA COMO ESPAÇO PRIVILEGIADO DO APRENDIZADO DA E NA TRADIÇÃO.................................................................. 193

CONCLUSÃO .................................................................................................. 215

REFERÊNCIAS............................................................................................... 224

11

INTRODUÇÃO

Nosso trabalho tem como principal objetivo descrever e discutir a prática de

aprendizado comum à tradição da capoeira Angola. Afastando-se um pouco das

pesquisas em educação, que privilegiam os aspectos relativos a técnicas de ensino,

daremos destaque à descrição e análise da experiência de aprender capoeira. É a

experiência do aprendizado da capoeira Angola, seus processos, práticas e ritos que nos

servem de foco nesta pesquisa. Tais descrições serão acompanhadas de discussões com

algumas teorias psicológicas da aprendizagem. Buscamos, então, sempre seguindo as

pistas do aprendizado da capoeira Angola, apontar seus limites e indicar quais outros

modos de pensar a aprendizagem em psicologia.

Nesse sentido, nosso interesse é dar continuidade à dissertação de mestrado

defendida em 1999 no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRJ, na qual

discutimos dois modelos construtivistas de aprendizagem: aquele proposto por Piaget e

o que se apresenta a partir do trabalho dos biólogos chilenos Humberto Maturana e

Francisco Varela, na conhecida como Teoria da Autopoiese. O interesse pelo

construtivismo se deve ao papel positivo que a experiência exerce enquanto prática de

transformação temporal.

No período em que desenvolvia essas questões em meu mestrado, começava a

me encontrar com o universo da capoeira Angola, participando ativamente do Grupo de

Capoeira Angola Pelourinho (GCAP) em sua subsede em Niterói, coordenada pelo

professor Carlo Alexandre Teixeira (Carlão)1. Nossas atividades aconteciam num

espaço conhecido como “Casarão” no Bairro de São Domingos, reunindo em nosso

grupo pessoas de várias idades e classes sociais. 1 Atualmente já como Mestre de capoeira, Carlão desenvolve um trabalho em seu novo grupo chamado Kabula sediado em Londres e no Rio de Janeiro.

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Durante mais ou menos quatro anos vivenciamos ricas experiências de

aprendizado da capoeira e de suas tradições, numa estreita convivência coletiva e

generosa. Diante do interesse em continuar pesquisando a aprendizagem e de minhas

vivências como aprendiz de capoeira Angola é que surgiu a idéia do presente trabalho.

Penetrar no universo do aprendizado da Capoeira Angola a partir da perspectiva do

aprendiz, descrevendo e analisando suas práticas. Empreender, à luz desses jogos de

aprender capoeira, um diálogo com o campo dos estudos de aprendizagem,

entrecruzando, para a sua compreensão, a psicologia, sociologia, antropologia, filosofia

e artes.

Em linhas gerais, a tradição dos estudos psicológicos da aprendizagem tem

buscado compreender o aprendizado como uma experiência de aquisição de habilidades

que nos permitam resolver problemas. Nesse aspecto, aprender é adquirir condutas

adequadas aos problemas que nos são postos de fora, pelo ambiente físico ou social.

Tais formas de entendimento parecem reduzir a aprendizagem a uma concepção

utilitária e adaptacionista, centrada nas ações que levam os sujeitos a aprender por

automatização. Suas divergências passam mais pelos modos distintos de explicação

desse processo de aquisição, permanência e extinção das habilidades, do que permite

refletir-se sobre novos problemas a respeito da prática de aprender.

Mostraremos como essas explicações psicológicas da aprendizagem visam a um

modelo geral que dê conta de amplas situações de aprendizagem. Inclinados numa

perspectiva teórico e experimental generalista, tais pesquisas acabam reduzindo as

experiências de aprender a “experimentos” de aprendizagem. Dito de outra forma,

algumas pesquisas em psicologia da aprendizagem visam a produção de um modelo, a

partir de experiências ou tarefas controladas pelo pesquisador, que acabam sendo

descritas e explicadas de fora por este. O acesso à experiência rica e fluida do aprender

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acaba sendo reduzida a uma série de procedimentos homogêneos descritos de maneira

mediata pelo observador2. Tal perspectiva que de algum modo é predominante na

história da psicologia científica, é segundo veremos questionada pela tradição das

práticas de aprendizado da capoeira Angola.

Nesse sentido não utilizamos uma metodologia que de algum modo afaste o

pesquisador do objeto pesquisado. Apostamos assim, ser possível estudar as dinâmicas

do aprendizado da capoeira por dentro desta experiência, sem necessidades de

generalizações e mediações controladas pelo observador e seus métodos. Como

Deleuze, acreditamos que o caminho do aprendizado “(...) está, antes de mais nada, do

lado do rato no labirinto, ao passo que o filósofo fora da caverna considera somente o

resultado – o saber – para dele extrair os princípios transcendentais” (DELEUZE, 1988,

p.271).

Na ocasião da apresentação desse projeto eu havia interrompido meu convívio

de aprendizado da capoeira Angola. Visava então voltar a desfrutar desta convivência e

iniciar um trabalho de campo, elaborando relatórios qualitativos e participantes das

rotinas de treinos e rodas de capoeira. Mas por forças de ocasião cheguei ao segundo

ano do doutorado sem uma rotina de treinos, o que me forçou a mudar minha estratégia

metodológica. Comecei a procurar uma bibliografia de capoeira que contivesse de

algum modo descrições dos próprios capoeiras a respeito de seu aprendizado e das

práticas de seus grupos. Mergulhei numa busca de registros, manuscritos de próprio

punho dos Mestres, entrevistas e depoimentos, assim como reportagens jornalísticas,

textos literários, fotos, pinturas e desenhos que descrevessem este universo, tanto da

capoeira atual quanto de seus modos antigos de aprender. Procurei também estudar as

2 A respeito do nascimento da psicologia científica em meados do século XIX, Arthur Arruda nos mostra que a psicologia “(...) para ser reconhecida como científica, seja mais do que a descrição do sujeito empírico, ou das vivências imersas em um mundo de ilusões: ela deve ter, no trato com a experiência imediata, todo o rigor de uma experiência cientificamente mediada e matematizada” (2006: 21).

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diversas teses e livros que discutiam este tema. É bastante recente o interesse acadêmico

pela capoeira. A primeira dissertação que se tem notícia, tendo a capoeira como tema, é

a de Júlio Tavares defendida em 1984 no departamento de Sociologia da Universidade

de Brasília. É, portanto, a partir da década de 80 que a universidade abre suas portas

para pesquisas e publicações sobre a capoeira.

Também por força da ocasião recebo um convite para participar como

pesquisador da construção do Inventário para salvaguarda da capoeira como

patrimônio imaterial do Brasil3. Nestes dois últimos anos pude participar de vários

encontros de capoeira na cidade do Rio de Janeiro, Salvador e Recife, onde consegui

não apenas um farto material para esta tese como também oportunas e ricas experiências

com diversos grupos e Mestres. Sem contar com a reconstituição da memória dos meus

não longos, mas intensos, anos de aprendizado da capoeira no “casarão”, que a pesquisa

para essa tese acabou por reavivar. Somadas a esse material a respeito da capoeira,

principalmente da capoeira Angola, foram acrescentadas análises de textos e livros de

psicologia, sociologia, antropologia, pedagogia, filosofia, literatura e artes em geral.

No primeiro capítulo da tese iniciamos nosso mergulho no universo do

aprendizado da capoeira por meio de uma descrição histórica da formação das primeiras

escolas de capoeira desenvolvidas no Brasil a partir da década de 30 do século XX.

Para chegarmos a estes anos de formação, iniciamos uma descrição dos modos antigos

de aprender capoeira. Destacamos um cenário em que os capoeiristas viviam e

realizavam estas tradições fora dos espaços oficiais, de academias e escolas4. Tempos

onde o aprendizado da capoeira estava ligado ao cenário da rua. Nas festas, no trabalho,

nas praças e botequins é que o capoeira aprendia. Aprendia-se “de oitiva”, ou seja, por

3 Este trabalho foi encaminhado pelo Ministério da Cultura e realizado pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e pelo Museu da República do Rio de Janeiro. Sob coordenação do professor da UFF Wallace de Deus e do pesquisador Mauricio Barros de Castro. 4 Final do século XIX e o início do XX na Bahia.

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observação e prática, sem método ou sistematização. O capoeirista aprendia dentro

deste cenário sem pertencer a grupos ou agremiações, se aproximando daqueles que

melhor sabiam jogar. A relação do aprendiz com o capoeirista era aquela ligada aos

espaços abertos, do trabalho, das festas e reuniões públicas.

Mais tarde, a partir da década de 30 do século XX, na cidade de Salvador,

surgem as primeiras escolas de capoeira. Damos destaque a duas delas, que marcaram

profundamente a história atual da capoeira. São elas: a Escola de Capoeira Regional

Baiana fundada por Manuel dos Reis Machado, o Mestre Bimba, registrada no ano de

1937, e o Centro Esportivo de Capoeira Angola, liderado a partir de 1941 por Vicente

Ferreira Pastinha, o Mestre Pastinha. Tentamos mostrar e apontar as modificações no

aprendizado da capoeira que a criação destas escolas produziu. Ligados a espaços

privados, iniciam-se profundas transformações, como a criação de métodos de ensino,

de uniformes, estatutos, e principalmente de uma rotina ligada às tradições escolares.

A capoeira Regional, hoje hegemônica no Brasil e no mundo, procurou

privilegiar o aspecto esportivo e marcial da capoeira, o que a levou a destacar em suas

práticas de transmissão os esquemas tradicionais de aprendizagem das escolas formais

de uma prática desportiva. Além disso, buscou-se uma eficiência técnica visando a um

aprimoramento dos resultados atléticos, deu-se ênfase à criação de avaliações

sistemáticas [batizado] dos movimentos, golpes, toques e cantos e à criação de espaços

para a competição, inicialmente com outras formas de luta, e depois dentro dos próprios

grupos. Tal perspectiva buscava marcar uma ruptura com o passado marginal, ligado ao

modo de ser malandro, em nome da formação das bases do genuíno esporte nacional.

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A capoeira Angola, que tem na figura de Mestre Pastinha um de seus principais

defensores5, parece empreender outro modo de inserção na modernidade. Mestre

Pastinha também era um crítico do modo antigo de praticar capoeira, discordando da

áurea de violência e marginalidade que a envolvia. Assim, buscava tal como a escola de

Mestre Bimba marcar profundas mudanças nessa tradição, fundando uma escola, com

nome, espaço, estatuto e regras de convívio em perfeita sintonia com esses novos

tempos.

Entretanto, desde o início o centro de capoeira Angola de Mestre Pastinha via

com maus olhos essa acelerada transformação da capoeira em um esporte ou luta.

Pastinha não negava que esses elementos estivessem presentes na capoeira, mas se

esforçava por marcá-la por um aspecto cultural, recuperando sua vinculação com os

ritos e tradições dos ancestrais negros. Aceitava as mudanças de modernizações sem,

contudo se afastar do passado e de suas ligações africanas, preservando a seu jeito seus

rituais e buscando resistir a uma assimilação plena pelos ares modernizantes. Nesse

sentido, as duas escolas nascem com discursos e práticas distintas que irão marcar

profundamente o futuro desta tradição.

Nosso histórico termina por apontar algumas tendências disto que hoje

chamamos de Capoeira Angola e Regional, cientes de que existem múltiplos grupos,

com inúmeras variações desse universo que se transforma e persiste até hoje em nosso

país e no mundo. Esta inserção histórica não visa encontrar uma linha de

desenvolvimento, como caminhos únicos e lineares das práticas de aprendizado da

capoeira, mas apresentar algumas questões que podem nos ajudar a entender o que hoje

se faz para aprender capoeira.

5 Não é certo dizer que a Capoeira Angola tem seu início com Mestre Pastinha, já que este mesmo procura afirmar que a Capoeira Angola é a própria capoeira mãe. Mestre Pastinha para nós é importante porque se deve a ele uma tentativa mais clara de resistência aos ares modernizantes que a capoeira de origem regional procurou realizar a partir da década de 30 do século passado.

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Além disso, diante de minha inserção como praticante no mundo da capoeira

Angola e da colocação do problema do seu aprendizado, como indica o título do

trabalho, estarei quase sempre me referindo a esse campo. É sobre ele que se situam

minhas considerações. Não é objetivo deste trabalho criticar ou analisar outras formas

de praticar e aprender capoeira, que não as da prática da capoeira Angola, centrando

minhas descrições, análises e críticas nesse campo específico. Assim toda vez que me

referir à “capoeira”, falo da capoeira Angola, com exceção do primeiro capítulo, onde

trato da história recente das escolas de capoeira. Se por ventura, ao longo dos outros

capítulos, me referir a outras formas de capoeira serei explícito em sua referência. Tal

particularidade deste trabalho não impede que essas descrições e análises sirvam para as

outras escolas e grupos de capoeira. Mas isso é outra história.

No segundo capítulo iniciaremos a discussão do aprendizado da capoeira por

uma descrição do seu principal movimento que é a ginga. Mostraremos a dinâmica da

ginga e sua importância para o jogo de Angola. Já que é nela que os outros movimentos

se encontram, numa circularidade. Inicialmente desconexos os movimentos e a ginga

vão ganhando com os treinamentos uma maior continuidade e velocidade. À luz dessas

transformações indicaremos como a psicologia da aprendizagem as explicariam.

A primeira vertente é a da psicologia americana conhecida como behaviorista

cujo principal autor é Burrhus Frederic Skinner. Após a apresentação sucinta de alguns

de seus principais conceitos, como o de condicionamento operante e de reforço,

mostramos como o aprendizado da ginga pode ser entendido sob às vistas desses

conceitos. O aprendiz começa imitando e de acordo com os efeitos de suas ações, as

condutas são modeladas. O ambiente exterior vai condicionando, por meio dos

reforçamentos, os comportamentos operantes adequados. Deste modo, o aprendizado da

ginga se explica por um condicionamento que leva o movimento a se realizar cada vez

18

mais automático e continuo, se fixando melhor às circunstâncias estimuladoras.

Aprender é, assim, superar as hesitações iniciais em busca dos comportamentos

automáticos.

Depois, pautando-nos no aprendizado da ginga, analisamos como a teoria de

aprendizagem social de Albert Bandura pode explicar esse aprendizado. Insatisfeito

com o behaviorismo, por ter considerado unicamente os aspectos reforçadores do

ambiente físico e social, Bandura tentará acrescentar às ferramentas

comportamentalistas fatores cognitivos que atuariam como mediadores no processo de

aprendizagem modelada. Propõe no lugar de modelagem o conceito de modelação. Os

fatores cognitivos (atenção, memória, motivação e inteligência) atuam como

mediadores na adequação das condutas aos modelos sociais. Para Bandura na maioria

das vezes aprendemos indiretamente pela observação das condutas dos outros, numa

aprendizagem social. A ginga seria considerada uma habilidade social e o seu

aprendizado se daria por uma modelação desta pelo aprendiz a partir das observações

dos outros. Ainda dentro de uma concepção utilitária e adaptacionista, a teoria das

habilidades sociais restringe o aprendizado a uma prática geral de adequação a certos

modelos sociais.

Após esta discussão mostramos como as principais características da ginga na

capoeira Angola não estão contempladas nessas explicações. Ao contrário de ser um

movimento que busca um automatismo, de respostas cada vez mais submetidas aos

estímulos do ambiente ou as expectativas subjetivas do gingador, mostramos como a

ginga envolve elementos que normalmente são considerados antagônicos. E até mesmo

inversamente proporcionais, nos quais o desequilíbrio seria superado pelo equilíbrio,

hesitação pela continuidade, lentidão pela velocidade, particularidade pela generalidade.

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Tentamos mostrar que a ginga e os demais movimentos da capoeira atravessam

uma experiência distinta daquela da automatização e adequação a modelos. Isto pode

dar certo numa coreografia encenada, na qual cada participante é condicionado a

realizar movimentos previsíveis e velozes, mas num jogo de capoeira não há encenação,

pelo menos nesse sentido. O que os jogadores aprendem é que a ginga é um movimento

de surpresa e de ilusão. Ginga-se para justamente fugir da previsão do golpe seguinte.

Assim o aprendiz vai descobrir o caráter paradoxal que envolve esse movimento. A

ginga atravessa por momentos de indeterminação, ou pequenas interrupções

desequilibrantes. Para tanto utilizamos a noção de “ circularidade criadora” de Francisco

Varela e a de “equilíbrio precário” do artista pernambucano Antônio Nóbrega.

No terceiro capítulo vamos procurar ampliar o sentido de aprendizado da

capoeira. No lugar de treino de habilidades vamos propor a noção de cultivo na e da

tradição. Deslocando o aprendizado da idéia de controle e adequação do aprendiz a

situações prévias e movimentos pré-existentes, a noção de cultivo vem se aproximar

de um cuidado com o aprendiz, criando circunstâncias para que este possa encontrar

os caminhos do aprender. No lugar de um aprender como um aprender com.

Vamos propor também uma alteração no entendimento da noção de hábito ou

rotina. Normalmente atribuída a um processo de fixação de um comportamento que

se repete, vamos mostrar, a partir do trabalho de Félix Ravaisson, que o hábito não é

um estado, mas uma tendência que se forma na repetição de diferenças. Esse autor

compreende que esta constituição se dá numa transformação pela experiência de uma

posição inicialmente receptiva até o advento de uma espontaneidade. Ampliando essa

idéia mostramos como a formação do hábito na capoeira concilia receptividade ou

abertura aos acontecimentos e espontaneidade ou naturalização dessas condutas.

20

O cultivo do hábito como um processo, sempre em construção, exige um

ritmo. Tal ritmo, normalmente ligado à dinâmica dos fazeres, deverá no cultivo da

capoeira Angola, levar o aprendiz a salientar uma mudança na disposição da atenção.

Normalmente associada a um papel de seleção dos estímulos que devem ser focados

para a ação, tentaremos mostrar a importância para a prática da capoeira Angola um

aprendizado de uma atenção desfocada e aberta.

Utilizamos os trabalhos que Virgínia Kastrup tem desenvolvido referentes ao

tema do aprendizado da atenção. No aprendizado da capoeira o aprendiz é levado6 a

cultivar uma atenção flexível e desfocada que serve para distrair o adversário

iludindo-o. A capoeira Angola, por ser mais manhosa e malandra, cultiva nos

angoleiros um jeito de ser imerso numa atenção desfocada que permite ao jogador

sair do esquema sensório-motor que muitas vezes o jogo de capoeira acaba recaindo.

O cultivo de uma outra forma de atenção, menos focada é fundamental para a prática

da capoeira Angola.

Depois de expor as noções de cultivo de um hábito e de uma atenção

desfocada, mostramos a importância do tempo no processo de aprendizado,

enfatizando - a partir dos estudos de Aléxis Kagame a respeito da percepção empírica

do tempo nas culturas de tradição Bantu - um tempo dos eventos, diferente do tempo

homogêneo e geral do relógio, tempo abstrato e desencarnado. Um aprendizado que

exija um tempo a perder, permitindo-nos uma atenção às nuances dos

acontecimentos. Para salientar a importância do cultivo de um tempo qualitativo e

colado nos eventos, abordamos o sentido da vadiação no aprendizado da capoeira

Angola. Vadiamos quando podemos sair do controle do tempo homogêneo e

6 O termo levar é utilizado aqui no sentido musical e rítmico. Como uma levada de forró, samba etc. Portanto somos levados por um ritmo e não para algum lugar prévio.

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histórico, penetrando no tempo próprio dos eventos, tempo das brincadeiras, das

práticas destituídas de objetivos utilitários.

Nesse tempo próprio, no qual os capoeiras cultivam hábitos, localizamos

outros vetores ou forças que atravessam este aprendizado. A paisagem da capoeira

Angola ficaria muito restrita se reduzida aos seus movimentos e hábitos corporais,

visto que estes estão imersos numa tradição. Tradição viva, e não uma mera

reprodução folclorizada. Nesse sentido, abordamos algumas destas dimensões da

tradição viva da capoeira Angola, seus ritos, suas expressões estéticas, seus ritmos, a

magia e a ética da mandinga, os aspectos políticos de resistência e negociação com o

adversário, a dimensão coletiva e em comunhão dos capoeiras, a roda e o papel do

Mestre de capoeira; tudo isso a fim de descrever e compreender suas práticas de

cultivo e aprendizado.

Mostramos a importância dos aspectos estéticos, do grego aisthesis que

significa uma sensibilização à beleza. Tal sensibilização estética é vital para que o

aprendiz da capoeira Angola possa cultivar os aspectos estéticos envolvidos nesta

arte, elementos artísticos tão próprios das tradições afro-brasileiras, do batuque dos

atabaques e pandeiros, dos toques dos berimbaus, da canto das ladainhas, chulas e

corridos. Destaca-se o valor dessa questão rítmica, não apenas por sua beleza, mas

por sua integração com os movimentos ou danças, formando uma circularidade

criativa. Os dançarinos vão se sensibilizando aos toques e ritmos e esses vão

indicando os passos, numa dinâmica auto-regulada. Para tanto usamos o trabalho de

Muniz Sodré a respeito do samba. Aprender dançando e cantando onde os

movimentos seguem uma cadência própria desta estética da existência.

Analisamos o papel que o mistério e o sagrado desempenham no aprendizado

do angoleiro, pensando a importância da ritualização dos fazeres da capoeira Angola,

22

cuja convivência permite ao aprendiz se envolver e respeitar as dimensões sagradas

desta prática. O sagrado aqui será descrito a partir do trabalho de Mircea Eliade que

vislumbra a manifestação das forças misteriosas, dos deuses e dos antepassados nos

eventos e no tempo natural da história. Mas essa forma de ritualização é própria de

culturas que de algum modo se conjuram à importância da história e das

determinações próprias ao tempo dos homens. Desse modo, a ritualização comum da

capoeira ocorre em uma sociedade onde o tempo histórico e cronológico é

determinante. A mandinga, portanto, seria um modo de negociação que Sodré diz se

sustentar numa “forma dissimétrica”. Assim, a noção de mandinga se afasta um

pouco de sua acepção religiosa e se aproxima mais de uma ética, na qual o sagrado e

os ritos se realizam nos espaços profanos, das festas, das ruas e academias; de uma

sacralização do cotidiano, das pequenas coisas, da confecção de um berimbau, da

comida e etc.

Assim, realizamos a análise dos aspectos éticos implicados no aprendizado da

capoeira Angola. A importância da manha e de certa malandragem como um ethos

cultivado pelo capoeirista, e ao mesmo tempo o aprendizado dos fundamentos, dos

valores e regras desta tradição. Vimos como o fundamento ou a regra não se

confundem como os fundamentos e regras morais, descoladas das experiências, mas

como princípios e valores que a seu tempo permanecem sempre de modos diferentes.

Estratégia própria dos povos africanos, que buscam manter os fundamentos se

misturando com o inimigo. Vimos que essa tendência malandra é uma importância

prática política de resistência, que nem se rende ao moderno nem busca a pureza das

tradições do passado. Nela o que fica do passado é o exemplo de combater nos

interstícios do mundo presente de modo dissimulado e iludindo os adversários.

23

Por último vamos tratar de dois temas importantes no aprendizado da

capoeira. O papel dos Mestres e da paisagem da roda como sendo o grande

“professor” nesse cultivo da e na tradição. De saída mostramos existir dois sentidos

para o que seja Mestre. O primeiro, mais próximo dos espaços escolares trata o

Mestre como àquele que sabe algo e por isso pode ensinar. Esse conhecimento será

melhor compreendido e transmitido quanto mais conceitual, sistemático e simples.

Conhece melhor quem não faz e quem faz, por estar muito próximo da ação, não

conhece de modo claro e sistemático. Tal sentido se afasta daquele que encontramos

na tradição da capoeira. Mais próximo dos Mestres de ofício e das artes da cultura

popular, o Mestre da capoeira conhece por que sabe fazer. Mas o fazer da capoeira

não se restringe aos movimentos do corpo, como temos visto até aqui. Assim, uma

das principais tarefas do Mestre na capoeira é ser o guardião dos fazeres e saberes

envolvidos nesta tradição. Assim ele cria com seus companheiros de grupo as

situações ou liturgias próprias para a prática da capoeira.

Porém, realizar com zelo e dedicação as liturgias da capoeira não garante o

aprendizado da capoeira, assim como a continuação da tradição. É necessário cultivar

um engajamento dos aprendizes. E aí entra a segunda função do Mestre. Atuar como

intercessor, como um falseador. Deleuze (1992) propõe esse conceito como forças

transversais que atuam impedindo as formas comuns dos valores dicotômicos; sujeito

e objeto, interior e exterior, certo e errado, bom e mau, verdadeiro e falso etc. O

Mestre atua, portanto quebrando as formas fixas para que o aprendiz possa acontecer

com o acontecimento. Acolhimento e desapego, cuidado e falseamento. Estas duas

posições atuam juntas mostrando na prática que ninguém ensina e ninguém aprende

nada, já que a idéia psicológica de apropriação é justamente o que cega o aprendiz. O

24

falseador atua para que a o aprendiz possa se desapegar de si. Algo aprende e algo

ensina.

Na roda, e não no Mestre e no aprendiz, é que encontramos as grandes

condições para aprender, pois essa ritualística pode reunir todos os elementos

descritos até aqui. O cultivo de uma atenção aberta, o tempo da vadiação, a ética da

mandinga, as manifestações do sagrado, a política da resistência, e os cuidados do

Mestre. A roda, portanto, assim como a grande roda da vida, é onde podemos cultivar

não um saber, mas um aprender a aprender, uma disponibilidade e uma atenção à

vida.

25

CAPÍTULO I – Da rua para a academia: o nascimento das primeiras

escolas de capoeira

A capoeira enquanto uma expressão cultural afro-brasileira vem se mantendo até

os nossos dias, sobretudo, graças a uma memória oral, transmitida de geração para

geração por meio de suas práticas e rituais. Por isso, podemos destacar a importância de

seu aprendizado justamente porque são as práticas de iniciação e de desenvolvimento da

capoeira que tem mantido essa cultura viva. Podemos afirmar também que durante a

sua longa história a capoeira vem se modificando, incorporando e abandonando algumas

das tradições de aprendizado e transmissão.

Nesse sentido, buscaremos neste capítulo narrar e descrever alguns aspectos da

história recente da capoeira no Brasil e de seus processos de aprendizado, indicando

características importantes e discutindo, quando necessário, algumas diferenças que o

tempo se encarregou de gerir. Como toda narrativa sobre a história, principalmente de

uma tradição que se mantém pela oralidade, não pretendemos esgotar o tema, nem

determinar uma única direção histórica dos processos de aprendizado da capoeira, como

se houvesse uma linha em desenvolvimento. Mais do que determinar uma única e

verdadeira linha do tempo, nossa narrativa visa trazer histórias, contadas pela tradição

da capoeira, que nos permitam visualizar a diversidade e riqueza das práticas de

aprendizado de uma cultura popular enraizada em nosso povo.

Essa diversidade começa com as discussões, nem sempre consensuais, a respeito

da origem da capoeira. Como diz Waldeloir Rego no livro Capoeira Angola: ensaio

sócio-etnográfico escrito em 1968: “... no caso da capoeira, tudo leva a crer seja uma

invenção dos africanos no Brasil, desenvolvida por seus descendentes afro-brasileiros

(...) (p.31)”. Nesse sentido, nossa narrativa se prenderá à história brasileira da capoeira,

26

o que não nos impedirá de apontar, quando necessário, para as raízes africanas desta

tradição. Pois como dizem os capoeiristas “a capoeira é brasileira, mas seu fundamento

é africano”.

Nosso roteiro será dividido, então, em três momentos históricos que parecem

caracterizar fases marcantes e distintas da capoeira e de seus modos de aprendizado. A

primeira fase destacará as formas de aprendizado da capoeira existentes no período de

sua completa criminalização (séc. XIX e inicio do XX), até sua descriminalização em

1937. Posteriormente, abordaremos o período que chamamos “escolarização da

capoeira”, no qual são formadas as primeiras academias oficiais e institucionalizadas de

capoeira, destacando-se principalmente as vertentes Regional, de Mestre Bimba, e a

Angola, de Mestre Pastinha. Tal período abarca quatro décadas que se seguiram à

descriminalização da capoeira (década de 30 até os anos 80). Por último, abordaremos o

período que vai da década de 80 até os nossos dias, ou fase contemporânea da capoeira,

no qual podemos observar o crescimento e difusão da capoeira baiana (Regional e

Angola) por todo o Brasil e o mundo, numa proliferação de grupos e vertentes.

1.1 – Aprendendo na rua uma arte marginal

Desde sua origem, no período colonial brasileiro, a capoeira tem sido

considerada uma prática marginal e os seus participantes apresentados muitas vezes

como delinqüentes que a sociedade deve vigiar, controlar e punir. A primeira

codificação penal brasileira, intitulada de “código criminal do Império do Brasil”,

datada de 1830, não possuía uma referência explícita quanto aos praticantes da capoeira,

mas os chefes de policia os enquadravam no capítulo que tratava dos vadios e

mendigos. Com o fim da escravidão e o início da República, a capoeira é inserida “com

27

todas as letras” no Código Penal brasileiro através do decreto de 11 de outubro de 1890,

que assim dizia:

Art. 402. Fazer nas ruas e praças públicas exercícios de agilidade e destreza corporal, conhecidos pela denominação capoeiragem; andar em correrias, com armas ou instrumentos capazes de produzir uma lesão corporal, provocando tumulto ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor ou algum mal:

Pena: de prisão celullar de dois meses a seis meses. (BARBIERI, 1993, p. 117).

Munida agora de um instrumento jurídico específico de incriminação da

capoeira, a polícia pôde reprimir com extrema violência os praticantes desta tradição.

Deste modo, o final do século XIX e o início do século XX é marcado, principalmente

nos arredores das cidades de Salvador, Rio de Janeiro e Recife, por histórias de

combates e conflitos entre as maltas dos capoeiras e as forças policiais.

Esses praticantes, em sua maioria descendentes dos escravos, eram moradores

das comunidades populares nas quais o samba, o candomblé, o batuque e a capoeira

estavam enraizados. Na Bahia (principalmente na região do Recôncavo e na cidade de

Salvador) a presença dos capoeiras era em tudo notada, muito especialmente nas festas

populares, fossem elas profanas ou religiosas. Como não havia academia organizada, a

reunião dos capoeiras se dava em torno dos principais acontecimentos festivos da cidade

ou nos ambientes de trabalho (principalmente o cais do porto), durante as horas de

descanso ou de espera por uma oportunidade de trabalho, assim como nas ruas,

botequins e quitandas. Essa característica informal e não profissionalizante dos

capoeiras desta época vai marcar profundamente o modo como as práticas de

aprendizado serão exercidas. Por serem eles perseguidos pela sociedade oficial e legal,

sua organização deveria ser móvel e dinâmica, dissimulada e malandra. Nesses espaços

sociais, os capoeiras eram identificados por seus feitos individuais, cada praticante

28

trazia para o jogo da capoeira suas singularidades que eram marcadas por características

de sua vida pessoal, sua profissão, suas roupas etc.

A capoeira, dessa forma, era aprendida e desenvolvida no cotidiano, sem ocupar

lugares específicos e próprios para o seu cultivo. Na paisagem dos grandes centros

urbanos é que nasciam os grandes mestres7. Carregando seus instrumentos e armas para,

se caso fosse preciso, usá-las os capoeiras se dirigiam para esses espaços públicos. Lá

chegando abriam uma roda e iniciavam seus rituais de vadiação, movimentos, golpes,

cantos e danças. A rua, portanto, era o lugar principal onde o capoeira praticava sua arte

e desenvolvia suas capacidades. Dentre os nomes famosos dos capoeiras desta época na

Bahia podemos destacar: Besouro Cordão de Ouro (Besouro Mangangá), Dois de Ouro,

Chico Porreta, Sete Mortes e Samuel Querido de Deus, entre outros. (REGO, 1968).

Por não haver um lugar específico para o treino e o jogo da capoeira, o ensino e

a transmissão das tradições dessa arte giravam em torno daqueles espaços abertos e

públicos. Entretanto, por seus praticantes serem considerados ilegais e ate mesmo

imorais, tais relações de ensino e aprendizagem deveriam se dar num ambiente de

enorme cumplicidade e dissimulação por seus integrantes e, por isso, os capoeiras não

viviam exclusivamente de sua prática, todos tinham outras maneiras de ganhar o seu

sustento. A capoeira, portanto, vivia uma relação de ambigüidade, sendo, ora altamente

pública, já que eram naqueles ambientes que as vadiações e combates ocorriam, ora

dissimulada, com rigorosas estratégias de acobertamento. É nesse cenário que os

aprendizes da capoeira deveriam se inserir para instruirem-se nos mistérios dessa arte.

7 Usamos a terminologia “Mestre” para nos referir àqueles que eram reconhecidos nas rodas da vida como excelentes capoeiristas. Mas é importante frisar que além de não ser comum o uso desse termo nesta época, (segundo o relato de Ângelo Decânio (1997-A) é somente após o início da escola de Bimba é que se iniciou a referencia destes como mestres ) o seu sentido é diferente do que hoje, muitas vezes, se entende por mestre, vinculando-o a uma prática de ensino e transmissão da capoeira organizada em escolas.

29

Uma primeira e importante característica dessa forma de aprendizagem é a

relação entre o “mestre” e o aprendiz. Esta relação tem que ser direta, e deve ser

acompanhada de enorme afinidade e ligação afetiva. Não havendo espaços

institucionais específicos para o treino e cultivo da capoeira o aprendiz deveria se

vincular diretamente aos mestres e praticantes. Seu engajamento para com a capoeira

teria de ser pleno, aproveitando sempre as oportunidades para extrair conhecimento dos

mestres, seja numa briga de rua ou tomando uma bebida juntos. Aprendia-se nos

terreiros abertos em frentes às quitandas, botequins, festas e até mesmo no quintal das

residências. Sobre isso nos diz Waldeloir Rego:

Não havia Academias de capoeira, nem ambiente fechado, premeditadamente preparado para se jogar capoeira. Antigamente havia capoeira, onde havia uma quitanda ou uma venda de cachaça, com um largo bem em frente, propício ao jogo. Aí, aos domingos, feriados e dias de santos, ou após o trabalho se reuniam os capoeiras mais famosos, a tagarelagem, beberem e jogarem capoeira. (REGO, 1968 p. 35-36).

Outra característica também muito importante dessa forma singular de

aprendizado é a inexistência, por parte dos mestres, de uma metodologia ou pedagogia

específica para a transmissão de sua arte. Como é na roda da vida que se aprende e se

ensina, podemos dizer que o aprendizado não passa por técnicas formais. Os capoeiras

vão para as rodas para vadiar e jogar e não especificamente para ensinar ou para

aprender. O foco não é o aprendizado ou a transmissão. O mestre não é um professor no

sentido estrito da palavra. O aprendiz deve aproveitar das situações, manter-se atento e

principalmente arriscar-se a realizar o jogo da capoeiragem. De algum modo, o

aprendizado fica muita mais a cargo do aprendiz, que engajado afetiva e

existencialmente na paisagem da capoeira, vai, aos poucos e sem perceber, se inserindo

nessa tradição, a partir da observação e da experiência de suas rotinas. Desse modo, o

aprendizado da capoeira se produz “de oitiva”, ou seja, por observação e prática. Os

30

mestres antigos diziam que aprendiam capoeira “de oitiva”, sem método ou pedagogia

formalizada. O termo “de oitiva” significa no dicionário “de ouvir dizer”

(FERNANDES, 1993). Na capoeira indica um estado de espreita ou espera de um

acontecimento cuja surpresa é eminente. Mestre João Grande numa entrevista dada a

Maurício Barros de Castro afirma:

(...) que oitiva era o nome dado para a atividade dos que ficavam no porto à espera de trabalho. Normalmente a oferta de emprego repentino era gritada por um capataz para o grupo de trabalhadores que passavam o dia na zona portuária na ‘escuta’, de ouvidos abertos, atitude que o falar do povo chamou de oitiva.(Castro, 2007, p. 144).

Assim como não havia um local específico para os treinos e rodas, muito menos

havia um tempo próprio para se dedicar a capoeira. O trabalhador e o capoeirista eram

um só, quer reunidos no cais do porto ou em outros ambientes de trabalho à espreita das

oportunidades de tarefas pesadas, quer vadiando nas horas vagas. Continua Mestre João

Grande em sua entrevista a Maurício:

Capoeira Angola vem do trabalhador, vem de baixo. Trapicheiro, ajudante de caminhão, carregador, doqueiro, pedreiro, carroceiro, pescador, vem de baixo. Quando parava o trabalho já tinha um berimbau lá. O couro comia nas docas. ‘Não tem trabalho hoje não?’. Hoje é capoeira. Debaixo do pé da tamarineira lá o berimbau fazia sucesso. O pessoal jogava ali. Camisa de saco, descalço. (Ibidem, p. 146).

O aprendiz convivia desde o início com as situações próprias do jogo. O lugar

por excelência do aprendizado da capoeira é a experiência concreta e encarnada do

contexto da rua, vinculado aos ambientes de ofício, lazer ou festas; onde o novato

envolvido nestas atividades vai aos poucos e a seu tempo, “de oitiva”, adquirindo um

estilo e um lugar nessa tradição. Tais características exigem que o aprendiz “aprenda a

se virar” desde cedo. Os mais experientes não tratavam o recém chegado como

principiante, exigindo desde o início uma postura de um capoeira. “É na roda que se

aprende” e, entrando nela, o aprendiz não encontrava facilidades, não lhe era dado o

privilégio de ser incipiente. Diante de tremendas exigências, o aprendiz teria que estar

31

sempre atento a se virar de algum modo com os golpes que lhe chegassem. Mestre

Waldemar, importante capoeirista da Bahia, descreveu assim o seu encontro e

aprendizado em 1936 em Periperi, subúrbio ferroviário de Salvador:

Eles (os mestres) vinham para Periperi, aquela roda danada. Foi quando eu peguei a aprender com eles. Eu era rapazinho. Comprava duzentos reis de vinho tinto, aquele copo branco de alça, ele tomava e dizia: ‘pegue na boca de minha calça!’ Eu levava pra pegar na boca da calça dele e ele virava aquela cambalhota desgraçada e já cobria [com] o rabo de arraia. Quando eu ia levantando ele dizia: ‘não levante não, lá vai outro!’ Os alunos deles jogavam com a gente como que [se] a gente já era [fosse] bom. (apud ABREU, 2003 p. 16)

Nessa prática, não há lugar para atitudes de principiantes, ao entrar na roda

todos lidam com o aluno como capoeirista, jogando com ele como se já soubesse jogar.

Isso não significa que o aprendiz já o saiba, mas que sua postura enquanto tal não pode

ser passiva, ele deve jogar com tudo que sabe, agitar-se e expressar os movimentos que

o seu corpo pode realizar, pois só a partir de sua prática, através das rasteiras e golpes,

pode aprender a se esquivar, experimentando concretamente suas falhas e acertos.

Outra característica importante era a não profissionalização do ensino da

capoeira. Nenhum mestre desse período vivia do ensino da capoeira. Neste ponto

destacamos a existência de uma vinculação mais informal e afetiva. Sem a mediação de

aspectos profissionais, como o pagamento de uma mensalidade, a ligação entre o mestre

e aprendiz é profundamente afetiva e torna-se efetiva. A proximidade e a admiração

mútua conecta ambos de modo singular. A autoridade de um mestre, necessária para a

transmissão de uma prática, não se estabelecia por meio de títulos, mas por meio de toda

uma tradição que o seu corpo e sua vida representavam. A proximidade entre os mestres

e seus aprendizes era tão forte e afetiva que não era raro o aprendiz freqüentar os

espaços familiares e até aprender as profissões dos mestres. Sobre essas situações

aplicadas no cotidiano em que os aprendizes da capoeira antiga vivenciavam, nos fala

Abib:

32

Às vezes, esse aprendizado se dava também individualmente, nos quintais e terreiros das casas, onde a proximidade entre o mestre e o aprendiz era um fator essencial. Muitas vezes, como lembra o mestre Moraes – coordenador do Grupo de Capoeira Angola Pelourinho, em Salvador – em seu depoimento, o aprendiz de capoeira era também aprendiz de ofício do seu mestre de capoeira, que podia ser um marceneiro, um sapateiro ou um artesão, profissões comuns entre os mestres de capoeira de antigamente. Moravam no mesmo bairro e tinham, geralmente, a mesma situação econômica, pois eram oriundos da mesma classe social. A convivência entre mestre e aprendiz era então um fator que auxiliava muito o processo de aprendizagem da capoeira (ABIB, 2006, p. 89).

Diferente das práticas de aprendizagem formais, nas quais o vínculo do aprendiz

e do professor é estritamente relacionado às habilidades a serem desenvolvidas, e para o

aprendiz são criadas situações artificiais de treinamento, cujos exercícios devem ser

repetidos exaustivamente de modo serializado e descontextual, para somente no futuro

serem realizados em seu conjunto, as práticas de aprendizagem da capoeira tal com é

ensinada, nesse momento de sua história, prioriza desde o início um aprendizado

encarnado, nas quais evidencam-se as situações reais do jogo e o aprendiz “se vira” para

“de oitiva”, observando e praticando, desenvolver o seu jogo.

Podemos perguntar se os aprendizes da capoeira não recebiam instruções e dicas

dos seus mestres. Por certo, mas aquelas não se reduziam a regras gerais, ou modelos

como um código geral de condutas. Durante as rodas ou nas conversas do dia-a-dia, os

mestres instruíam ou davam “uns toques” nos aprendizes, que diziam respeito às

experiências concretas dos mesmos. É a experiência do aprendiz que guia o modo das

instruções do mestre e não o contrário. Pois nessa tradição o conhecimento não é um

patrimônio formal, estando diretamente relacionado aos problemas reais do cotidiano.

A maior preocupação é que a transmissão dessa prática ou “toque” dos mestres possa

aproveitar-se da experiência concreta das situações de aprendizado.

Não há espaço para formalizações ou teorias, muito menos técnicas ou métodos

gerais para o aprendizado da capoeira. Não há preocupação em esquematizar o

aprendizado segundo técnicas, seqüências de movimentos a serem exaustivamente

33

repetidos. A prática e o cultivo dos movimentos devem ser realizados no calor do jogo,

envolvidos no contexto amplo dos espaços de trabalho ou de festa, onde o aprendiz deve

cultivar os seus conhecimentos auxiliados pelos “toques” do mestre. Se a relação com o

mestre é de proximidade implicando estreita cooperação, podemos dizer que a

transmissão da capoeira não é de responsabilidade direta do “mestre”. Este não ensina

direta e explicitamente, atua diante das situações concretas e cotidianas para, por meio

delas, formar os aprendizes. Nesse tipo de prática é o aprendiz que, de algum modo,

deve tomar para si a responsabilidade direta por seu aprendizado. Suas motivações e seu

engajamento nas rodas e grupos de capoeiragem é que o tornarão um capoeira. Não há

possibilidade de aprender capoeira de fora, pois é no calor da experiência que a capoeira

pode ser aprendida ou entendida na sua acepção concreta.

Segundo Muniz Sodré, algumas tradições asiáticas e africanas se constituem

lado a lado com simbologias basicamente corporais, pois partem do corpo para se

inscreverem no mundo. Sodré indica que “o símbolo ao contrário do signo, não se

universaliza nem se reduz ao conceito. Precisa do aqui-e-agora de uma situação, da

concretude corporal de um indivíduo para interpretá-lo e vivê-lo” (SODRÉ, 2002: 16).

Tal experiência de aprendizado implica a vivencia da capoeira em seus múltiplos

aspectos (arte, luta, jogo, malandragem, mandinga, vadiação, resistência etc.). Sobre

isso continua Sodré:

A capoeira dos velhos mestre baianos jamais foi esporte, e sim um jogo. É o mesmo que dizer que sempre foi arte, cultura. De um lado, a brincadeira, o descompromisso com a seriedade, tudo aquilo que restitui no homem a disponibilidade mental e física da criança. De outro, uma prática integrada de luta, dança, canto, toque e forma de pensar o mundo (SODRÉ, 2002, p.22).

É nesse ambiente perigoso e festivo, de trabalho e de vadiação que os mestres

antigos da capoeira ensinavam e passavam à frente essa tradição, sem escolas formais,

grupos com estatutos, uniformes e métodos específicos. A vadiação da capoeira reinava

34

sem muita visibilidade institucional, nas bordas da ilegalidade. Aprender capoeira

estava diretamente associado a esse cenário no qual as práticas da capoeira mantinham-

se de modo criativo e dissimulado às margens da sociedade que, não só não as

reconheciam, como as criminalizavam. Para se manter nesse mundo o capoeira tinha

que se revelar sempre de modo dissimulado.

1.2 – A Capoeira Regional Baiana e a vertente desportiva e marcial da capoeira

Após anos de criminalização e marginalidade, a capoeira vai aos poucos,

principalmente a partir da década de 20 do século XX, sendo absorvida “oficialmente”

pela sociedade brasileira. Tal absorção permitiu que a capoeira experimentasse

inúmeras transformações. Dessas, a que nos interessa descrever mais de perto, é o

surgimento das primeiras escolas ou academias de ensino e aprendizagem de capoeira.

O primeiro mestre a abrir uma escola de capoeira foi Mestre Bimba (Manuel dos

Reis Machado), em 1932 na cidade de Salvador – BA, no engenho Velho de Brotas. Por

volta de 1937, consegue o primeiro registro oficial do governo para sua academia. O

então Secretário da Educação, Saúde e Assistência Pública registra a academia de

Mestre Bimba como uma escola de educação física, com o nome de Centro de Cultura

Física e Capoeira Regional, destacando o papel desportivo e marcial da capoeira8·.

Mestre Bimba nasceu em 23 de novembro de 1899 no bairro do Engenho Velho,

freguesia de Brotas em Salvador. Seu pai era praticante do batuque, antiga tradição de

disputa e luta, em que dois jogadores, reunidos numa roda disputam um estranho

combate. Um deles unia firmemente as duas pernas, permanecendo imóvel. O 8 Sobre esta história inicial da capoeira regional cf. ABREU, 1999; CAMPOS, 2001; PIRES 2002; SODRÉ, 2002; VIEIRA, 1990, 1998; entre outros.

35

adversário buscaria por meio de golpes desequilibrar o oponente que se esforçaria para

manter-se no lugar sem cair ou se deslocar da base. Tudo isso acompanhado de cantigas

marcadas por palmas, tambor e pandeiro.

Aos doze anos de idade Mestre Bimba é iniciado na capoeiragem pelo africano

Bentinho, capitão da Cia. de Navegação Baiana. Ele, portanto, inicia seu aprendizado na

arte da capoeiragem do modo antigo, “de oitiva”, freqüentando as rodas nas festas e

feiras populares, jogando nas horas vagas de seu trabalho como estivador no cais do

porto, na rua onde executava pequenos serviços, enfim, freqüentando os espaços

públicos de salvador. É justamente com esta tradição que Mestre Bimba buscará uma

ruptura, inventando a Capoeira Regional Baiana. Segundo ele, a capoeira deveria se

transformar para se inserir de modo mais efetivo na sociedade. Estas transformações

deveriam abandonar toda e qualquer vinculação da capoeira com a vida malandra,

enfatizando os seus aspectos desportivos e marciais. Mestre Bimba tenta, portanto,

transformar a capoeira numa ginástica genuinamente nacional.

A capoeira Regional nasce tentando um rompimento da imagem do capoeira

vadio e desordeiro, em nome do capoeira como um desportista saudável e disciplinado.

A construção de uma academia, reconhecida oficialmente pelo estado, onde se realiza a

prática e o treino da capoeira, foi com certeza uma grande idéia de Mestre Bimba para

levar esta tradição para além dos bairros populares. Desse modo, a capoeira Regional

começa a atrair o interesse cada vez maior de um público diversificado, de diversas

camadas sociais, com destaque para estudantes. Esse movimento de Mestre Bimba veio

ao encontro de diversas tentativas desta época, de absorver as culturas e práticas

marginais, buscando, desta forma, a construção de uma identidade nacional, que

desembocará no chamado Estado Novo. Movimentos semelhantes ocorrem com o

36

samba e o candomblé. Essa confluência de interesses políticos é muito bem aproveitada

por Mestre Bimba e sua nascente Capoeira Regional Baiana.

Outra marca empreendida por Mestre Bimba na prática de sua jovem capoeira é

a necessidade de afirmar o seu caráter marcial. Mestre Bimba realiza uma análise

pessimista em relação aos caminhos que a capoeira tradicional vinha ganhando, a qual

os contornos alegóricos e exibicionistas são por eles questionados. Para ele, os aspectos

marciais da capoeira estariam cedendo espaços para um jogo cada vez mais lúdico e

alegórico. Nesse sentido, a capoeira Regional dará destaque à eficiência do combate

marcial, misturando movimentos da capoeira antiga, conhecida como capoeira Angola,

com o batuque e principalmente incorporando movimentos de ataque e de defesa de

outras artes marciais, como o jiu-jitsu. Tais modificações visam elevar a capoeira

Regional à categoria de uma singular e eficiente arte marcial de origem brasileira.

Com o intuito de propagar a eficiência desta capoeira enquanto uma arte de

combate, Mestre Bimba e alguns de seus principais alunos começam a participar de

torneios e lutas, enfrentando oponentes de diversas modalidades marciais. A violência

da capoeira que antes era exercida nas ruas, muitas vezes em combates com a polícia,

passa agora a ser realizada num ringue, com regras e juízes credenciados. O resultado

dessas disputas, muitas vezes favoráveis à capoeira Regional, chega aos principais

jornais da época. Mestre Bimba e sua capoeira passam a ser reconhecidos e sua

academia procurada cada vez mais por jovens interessados a aprender esse esporte

marcial nacional. Deixando de lado o sentido lúdico, malandro e vadio anteriores, a

capoeira Regional se desenvolve como uma prática desportiva e sistemática de luta.

Mais à frente, brecando um pouco esses encontros da capoeira com outros

grupos nos ringues de luta, Mestre Bimba começa a restringir os embates dos capoeiras

a rodas exclusivas. Não interessava mais a ele desafiar e ser desafiado em lutas com

37

outras modalidades, mas afirmar a particularidade da capoeira enquanto um luta

esportiva cujas regras deveriam ser respeitadas. Tal posicionamento ainda mantém

intacto o valor marcial de defesa e ataque da capoeira, mas enfatiza a necessidade de

treinar e jogar apenas com os próprios capoeiristas, segundo as regras e os critérios

particularizados.

Sua escola seguia se desenvolvendo e no final da década de 40 as relações

sociais de Mestre Bimba encontravam-se ampliadas, liderando assim o movimento de

escolarização da capoeira na Bahia. Inicia-se um movimento de retirada da prática e do

cultivo da capoeira das ruas e espaços públicos para os espaços privados constituídos

especificamente para essa prática. Um desses primeiros lugares específicos para o treino

da capoeira foi o conhecido “Roça do Lobo”, criado por Mestre Bimba e seus

companheiros. Sobre este espaço revela Pires:

A roça do lobo era um fundo de quintal, um terreiro. Esse local aparece nos primeiros movimentos de retirada da capoeira das ruas para levá-la até o que hoje, em sua forma de organização de base: as academias, instituições sócio-culturais, enquadradas em uma demanda comercial. Bimba fundou a roça do lobo, nos anos 40, e uma reportagem, que relaciona Bimba a cultura negra, escrita por Ramagem Badaró em 1944, nos dá uma visão desse local de treinamento. (PIRES, 2002, p. 05).

O movimento da capoeira Regional empreende uma padronização e

institucionalização das práticas da capoeira. São realizados estatutos, manuais de

técnicas de aprendizagem, descrição objetiva dos golpes, toques e cantos, utilização de

uniformes e indumentárias especiais, entre outras coisas. No que diz respeito ao

aprendizado da capoeira Regional podemos perceber, nesta prática, a inclusão de todo

os referenciais pedagógicos e educacionais de uma escola tradicional. O fim da

criminalização da capoeira e o crescente interesse dos segmentos sociais médios e altos

da sociedade, permitiram formas novas de sua realização e de seu cultivo.

38

Assim, o aprendizado é cada vez mais desenvolvido nos ambientes fechados das

academias, onde são realizadas rotinas sistemáticas de treinos voltadas para o

aprendizado da capoeira, acompanhadas por sistemas de avaliações. As rodas passam a

ser o lugar para onde os aprendizes vão aplicar os movimentos que treinaram. Nessas

rotinas, Mestre Bimba inclui: exame de admissão, seqüências básicas de ensino,

seqüências de cintura desprezada, batizado, formaturas, cursos de especialização e

toques de berimbau. Segundo Frede Abreu (2003) Mestre Bimba contrapôs, aos velhos

jeitos de se ensinar por ele denominado “oitiva”, um método didaticamente articulado

de ensino da capoeira. É interessante observarmos através do relato de Frede Abreu que

o jeito antigo de aprender e ensinar capoeira ganha um nome e, portanto uma referência,

justamente quando um outro modo mais sistemático e técnico de aprendizado é criado

por Mestre Bimba.

Segundo Mestre Xareu (2001), aluno de Bimba, o exame de admissão consistia

de três exercícios básicos – cocorinha, queda de rins e ponte –, cuja finalidade era

verificar o equilíbrio, a força e a flexibilidade do jovem aprendiz. Mestre Bimba dizia

que, ao contrário dos meninos que aprendiam capoeira na rua, que traziam consigo no

corpo toda a ginga referente à prática da capoeira, o corpo da maioria dos seus alunos,

provenientes da classe média, desconhecia completamente esses movimentos. Sendo

assim, seria necessário um exame adicional para verificar aspectos básicos dos

movimentos dos recém-chegados à sua academia.

Quanto à seqüência de ensino, Mestre Bimba criou o primeiro método de ensino

da capoeira. Trata-se de uma seqüência lógica de movimentos de ataque, defesa e

contra-ataque, podendo ser ministrada para iniciantes numa forma simplificada. Estes

alunos repetiriam estas seqüências fora do contexto do jogo, como movimentos frios e

descontextualizados. Essa repetição mecânica e artificial levaria o aprendiz a realizar

39

determinadas seqüências mínimas necessárias para um jogo. Segundo Mestre Bimba, se

o aprendiz, fosse ele quem fosse, realizasse com afinco e regularidade tais exercícios, no

final de mais ou menos um mês estaria apto para jogar capoeira com relativa eficiência

e segurança. É claro que este recém-praticante não estaria totalmente pronto, mas esta

técnica permitiria que ele pudesse iniciar suas histórias na roda. A estas seqüências

iniciais Mestre Bimba acrescentava treinos específicos denominados por ele de

seqüência de cintura desprezada. Neles são treinados balões e um conjunto de

movimentos ligados, também conhecidos como “projeções”, nas quais o capoeirista

projeta os companheiros para o alto e estes devem cair em pé ou agachados, jamais

sentados. Seu objetivo é desenvolver autoconfiança, responsabilidade, agilidade e

destreza.

O batizado é um dos momentos de grande significado para o aluno, já que após

todos esses treinamentos iniciais ele será apresentado ao grupo e poderá participar pela

primeira vez de uma roda. Coloca-se em cada calouro um nome de guerra, cuja alcunha

doravante passa ser a sua identidade no grupo. Para seu jogo de estréia é escolhido um

aluno veterano, que na qualidade de padrinho, entra na roda para desafiar o calouro, que

deve responder à altura os seus golpes. Sendo aprovado o aluno é recebido por seu

Mestre, que no centro da roda, levanta a mão do calouro, pronuncia seu apelido e o

apresenta para a comunidade. A partir desse momento em diante o aluno poderá

participar das atividades regulares do grupo. Sua aprendizagem começa, na verdade,

com o batizado.

Após todo percurso de desenvolvimento das habilidades básicas do jogo da

capoeira Regional, realizados com eficiência e plasticidade os repertórios de golpes, os

toques dos instrumentos e os cantos, o aluno pode se formar. A formatura é um dia

especial para o mestre e seus alunos. Trata-se de um ritual semelhante à formatura de

40

qualquer escola de ensino formal, com direito a paraninfo, orador, madrinha e medalha.

No inicio, Mestre Bimba realizava a festa de formatura no Sítio Caruano no Nordeste de

Amaralina, na presença de convidados e de toda a Academia Regional Baiana. Os

formandos, todos de branco, eram chamados por Mestre Bimba e diante de todos

exibiam seus repertórios de movimentos, toques e cantos. Ao final desta exibição eles

deveriam passar pela prova de fogo, jogando com um capoeirista graduado, o que ficou

conhecido como “tira medalha”. Nesse desafio o graduado tentaria tirar a medalha do

peito do formando com os pés, manchando assim a roupa e a dignidade deste. Se no

final do jogo a medalha estivesse ainda no peito do formando este era considerado pela

Escola Regional Baiana formado. Por último eram realizadas atividades festivas com

apresentações de maculelê, samba de roda, samba duro e candomblé. É importante frisar

que mesmo incorporando elementos formais e institucionais à atividade da capoeira,

Mestre Bimba mantém vivo os aspectos ritualísticos e festivos das tradições afro-

brasileiras.

O curso de especialização foi criado por Mestre Bimba para ser realizado

secretamente com os seus principais alunos já formados. Tinha como objetivo aprimorar

golpes de defesa e de ataque advindos de adversários perigosos e bem treinados. Sua

duração era de três meses dividido em dois módulos. O primeiro que durava 60 dias era

dentro da academia, onde Mestre Bimba desenvolvia estratégias de combate específicas

e sofisticadas. O segundo módulo, com duração de 30 dias era realizado na Chapada do

Rio Vermelho, e tinha como principais atividades as chamadas “emboscadas”. Seus

alunos veteranos eram colocados na mata com o objetivo de escondidos ficarem

esperando a passagem do aluno especialista. O objetivo do aluno era chegar a um

determinado ponto específico, lutando com “soldados” que sorrateiramente o

41

emboscavam. Ao final do curso, Mestre Bimba realizava uma festa nos moldes da

formatura e entregava aos seus alunos de elite um “lenço vermelho”.

Interessado, de modo nítido, em inserir essa prática tradicional da cultura

popular brasileira nas esferas oficiais da sociedade brasileira, a capoeira Regional de

Mestre Bimba assume um perfil específico de uma prática desportiva e marcial com

elementos culturais e artísticos como música e dança. Seu ensino deve se guiar nos

moldes de uma atividade física e marcial qualquer, obedecendo a técnicas de ensino e

avaliação, que permitam desenvolver no aprendiz habilidades específicas aos

movimentos da capoeira. Estes treinamentos devem ser divididos, tal como na escola ou

nas forças armadas, em etapas hierarquicamente bem definidas, visando a determinados

objetivos que devem ser conquistados no final. Para isso devem ser estabelecidos

rigorosos exames de avaliação.

Essa massificação sistematicamente estruturada do ensino da capoeira leva a

uma mudança radical no seu perfil, seus jogos, seus ritos e suas rodas. Prevalecem os

aspectos atléticos, esportivos e marciais, cultivando nos capoeiras o espírito competitivo

e de auto-superação. Essa preocupação utilitária, individual e competitiva da capoeira

Regional muitas vezes tem levado como veremos, mais à frente, a uma perda de

importantes marcas da capoeira antiga, dos seus aspectos culturais, de sua resistência

política, de sua expressão artística, de seu caráter ritualístico, de sua malandragem,

gozação e vadiação.

Seria radical demais afirmar o total esquecimento desses aspectos pela Capoeira

Regional Baiana, mas parece, que estes novos tempos da capoeira ajudam um certo

tecnicismo, uma automatização do jogar capoeira, supervalorizando seus aspectos

acrobáticos, atléticos e marciais. Tais modificações podem ser observadas pela continua

42

e cada vez maior aproximação da capoeira com as escolas, como práticas de uma

educação física.

É certo que mesmo assumindo para si alguns princípios das escolas de educação

física, a Capoeira Regional Baiana e suas diversas vertentes atuais, têm ajudado bastante

a resistir a Lei (Nº. 9.696/98) que restringe aos profissionais de educação física, o

ensino sistemático de qualquer atividade física. Em sua maioria, ainda hoje, os Mestres

de capoeira não são formados e legitimados por possuírem diplomas universitários.

Alguns até têm se dedicado a uma formação universitária para inserirem estudos e

práticas nesses centros. Todavia, é visível que nos diversos grupos o reconhecimento

não passa pelos títulos acadêmicos. Pires assim escreve sobre a importância de Mestre

Bimba para a história da capoeira:

As mudanças que Mestre Bimba efetivou na prática da capoeira podem ser demarcadas em pelo menos três níveis: as relacionadas à educação física, as relacionadas aos aspectos artísticos e as relacionadas à organização social e política. Os aspectos relacionados à educação física colocaram o corpo em um sistema de desenvolvimento regrado, dirigido para a repetição dos movimentos em séries temporais. Os aspectos artísticos receberam uma forma pré-determinada surgindo uma organização e hierarquia dos instrumentos. Os aspectos sociais e políticos redimensionaram a prática da capoeira, retirando-a das ruas e inserindo-a no contexto de construção dos símbolos nacionais (PIRES, 2002, p. 55).

1.3 - A Capoeira Angola e a escola para a vida: uma resistência à modernização da capoeira

Os capoeirista tem que aprender, o mundo é a escola que nos aprendemos, é a natureza que nos dá prazer, procuramos os elementos de bôa vontade, que ofereça a lições para o bem-esta dos nosso interesse. (apud DECÂNIO, 1997-B, p. 50)9

Em 1941, Mestre Pastinha (Vicente Ferreira Pastinha) se junta a outros

capoeiristas da época e assume a liderança do CECA (Centro Esportivo de Capoeira

9 Vamos manter as citações originais de Mestre Pastinha, sem consertar os seus erros de português, para que estas sejam mais fiéis ao texto do Mestre.

43

Angola). Pastinha nasceu em 1889 na cidade de Salvador, e segundo seus relatos iniciou

seu processo de aprendizado da capoeira por volta dos seus 10 anos. Seu mestre foi Seu

Benedito, um negro natural de Angola na África. Do mesmo modo que Mestre Bimba e

tantos outros mestres da capoeira antiga, Mestre Pastinha aprendeu “de oitiva” a

capoeira freqüentando e vadiando as rodas da cidade de Salvador. Durante toda a sua

adolescência freqüentou a Escola de Marinheiros, onde, segundo seu relato, ensinou

capoeira nas horas vagas para seus colegas de arma. De novo podemos notar a mistura

do aprendizado e do ensino da capoeira com os espaços de ofício. Saiu da Marinha aos

20 anos. Trabalhou como engraxate, vendendo gazetas, no garimpo e na construção do

porto de Salvador. Segundo ele “tudo passageiro, sempre quis viver de minha arte.

Minha arte é ser pintor, artista” (apud PIRES: 2002: 63). É interessante que no início de

sua vida Pastinha tenha tido como grande sonho o de se tornar pintor, e que por mais

que praticasse e ensinasse a capoeira nas horas vagas de seus diversos trabalhos, ele não

parecia ter, nesse tempo, a intenção de se dedicar única e exclusivamente à capoeira.

Assim como Mestre Bimba, Mestre Pastinha não via com bons olhos o momento

que a capoeira baiana atravessava no inicio do século XX, cercada de grupos

desordeiros e de violentos embates entre si e com a polícia10. Segundo ele, essas práticas

não traziam nenhum benefício às formas de resistência da capoeira e sua ascensão

social. A situação de ilegalidade e perseguição da capoeira impedia que esta

desenvolvesse todas as suas potencialidades. Para ele:

A capoeira que veio com os africanos no tempo da colonização, não teve maior desenvolvimento por razões óbvias. Os negros africanos, no Brasil colônia, eram escravos e nessa condição tão desumana não lhes era permitido o uso de qualquer espécie de arma (...) viu-se nessas circunstâncias, a capoeira, tolhida em seu desenvolvimento sendo praticada às escondidas ou disfarçada cautelosamente com danças e músicas de sua terra natal (PASTINHA, 1988, p. 31).

10 Muitos historiadores têm se debruçado sobre este momento (fim da escravidão até a inicio da era Vargas) na história da capoeira, principalmente nas cidades do Rio de Janeiro, Salvador e Recife. Os capoeiras se organizam em grupos de “desordeiros sociais”, conhecidos como maltas, produzindo situações de brigas e conflitos entre si ou com a polícia. Período conhecido como era dos valentões.

44

Nesse sentido, tal como Mestre Bimba, Mestre Pastinha pautara sua vida

tentando encontrar caminhos oficiais que permitissem retirar a capoeira do gueto no

qual ela se encontrava desde seu nascimento. Ambos os mestres aprenderam capoeira na

rua e vivenciaram todas as características dessa época de violência e repressão, tendo

inclusive problemas com a polícia, no entanto, ambos insatisfeitos com este estado de

coisas, procurarão, cada um do seu jeito, modificá-lo.

Essa desilusão com a capoeira “malandra” faz com que Mestre Pastinha fique

mais ou menos 20 anos afastado de sua prática (1920-1940). Nesse curto tempo a

capoeira e o Brasil atravessam importantes mudanças. Sua prática já não é proibida nem

violentamente reprimida pela polícia, já existem centros ou academias oficiais de

cultivo e treinamento desta arte e a sociedade já começa a olhar para a capoeira e seus

integrantes de modo menos resistente. É neste período, de importantes transformações

na pratica da capoeira, que Mestre Pastinha vai se aproximar do Centro de Capoeira

Angola. É importante destacar que o CECA não é o primeiro a se dedicar a capoeira

Angola, já que antes dele já existia o centro de mestre Noronha e Mestre Livino. Outro

dado importante a respeito da origem do CECA é que este já existia antes da chegada de

Mestre Pastinha. Pires escreve que:

segundo Mestre Noronha, o Centro Esportivo de Capoeira Angola teria nascido na Ladeira de Pedra no bairro da Liberdade, sendo Amorzinho, Daniel Coutinho, Totonho de Maré e Livino seus ‘donos proprietários’. Somente com a morte de Amorzinho, eles teriam entregue à direção do Centro a Mestre Pastinha (PIRES,2002, p. 67).

Outro Centro importante de capoeira Angola formado nesta época foi o terreiro

de Mestre Waldemar. Situava-se na rua Pero Vaz, no bairro da Liberdade. Um barracão

construído de madeira com cobertura de palha, cercado por ripas de madeira que

separavam os jogadores do restante da platéia. Nesse lugar eram realizados treinos,

45

rodas de capoeira, de candomblé e outros tipos de encontros festivos. Assim como

Mestre Waldemar, podemos destacar também os Mestres Caiçara, Canjiquinha,

Cobrinha Verde, entre outros que pertencem ao bastião da capoeira Angola dessa

virada. Verdadeiros personagens híbridos que quando jovens vivenciaram e aprenderam

capoeira na rua e “de oitiva” e alguns mais velhos serão os primeiros a desenvolverem-

na em novos espaços, implementando as mudanças necessárias para a manutenção da

capoeira.

Outra característica importante na formação da capoeira Angola é sua

proximidade com a intelectualidade da época que irá tomá-la, em comparação à

Regional, como a verdadeira e pura capoeira, que ainda respeitava suas raízes. Num

livro recente cujo título é “O Barracão do Mestre Waldemar” Frede Abreu assim retrata

este novo convívio, que a partir da década de trinta passa a existir nos espaços de

capoeira:

O barracão de Waldemar, localizado na periferia da cidade, era de difícil acesso para os que não moravam no local. Apesar dessas condições e de outras adversidades, esses três mestres (Waldemar, Bimba e Pastinha) foram capazes de atrair turistas, estudiosos, intelectuais, artistas, folcloristas, jornalistas, transformando seus espaços em agências culturais de referência nacional e internacional.

Jorge Amado, Pierre Verger, Mário Cravo, Eunice Catunda, Alceu Maynard, Oneida Alvarenga, Odorico Tavares, Carlos Ot, Carybé e outros freqüentaram as rodas da liberdade, sendo recebidos por Waldemar, da mesma forma diplomática a eles destinada por Bimba, Pastinha, Noronha e outros mestres (ABREU, 2003, p. 43).

É para esse novo cenário que, no inicio da década de 40, Mestre Pastinha retorna

assumindo a direção do CECA, no qual permaneceu até sua morte em 1981. Nesse

longo tempo de dedicação à capoeira Angola ele ajudará de modo marcante a definir os

fundamentos desta prática de capoeira até os nossos dias. Como o nome já insinua, o

Centro Esportivo Capoeira Angola para Mestre Pastinha é um lugar onde se cultiva e

se transmite os fundamentos de uma prática desportiva que visa alcançar o equilíbrio

46

entre o corpo e a alma. Mesmo considerando a capoeira um esporte, Mestre Pastinha

tentará demarcar diferenças importantes com o esporte praticado pela capoeira

Regional.

Possuindo características próprias, a capoeira Angola não poderia se misturar

com as outras práticas desportivas e marciais como o judô, jiu-jitsu, luta livre entre

outras. Mestre Pastinha aponta:

É lógico que nos referimos a Capoeira Angola, a legítima capoeira trazida pelos africanos e não a mistura de capoeira com boxe, luta livre americana, judô, jiu-jitsu etc. que lhe tiram suas características, não passando de uma modalidade mista de luta ou defesa pessoal onde se encontram golpes e contra golpes de todos os métodos de luta conhecidos (PASTINHA, 1988, p. 35).

A capoeira Angola de Mestre Pastinha surge então com a vontade evidente de se

diferenciar da capoeira Regional que se difundia cada vez mais. Seu principal

diferencial será a tentativa de, mesmo empreendendo inúmeras transformações nos

fazeres da capoeira, preservar elementos dos antigos, de sua ancestralidade. Em

distinção a de Mestre Bimba que visa construir uma identidade da capoeira como sendo

genuinamente brasileira, Mestre Pastinha e sua Capoeira Angola visa a manter viva sua

origens afro-brasileiras.

Desta maneira, a capoeira Angola de Pastinha dará um maior destaque aos

elementos ritualísticos, artísticos, políticos e culturais das tradições afro-descendentes.

Segundo Mestre Pastinha, o aluno de capoeira não pode, de modo algum, se dedicar

única e exclusivamente a treinamentos atléticos e marciais próprios à prática da

capoeira. Esses movimentos, toques, e cantos devem ser vivenciados a partir de todas as

suas cargas ritualísticas. Ele encontra, nos rituais religiosos do candomblé e dos

caboclos, assim como em um ritual de dança e luta praticados na região de Angola na

África, chamado de N’golo, as origens da capoeira Angola.

47

Ciente das dificuldades de tal preservação, e principalmente descontente com os

rumos da capoeira do inicio do século e dos novos ares da capoeira Regional, Mestre

Pastinha avalia ser necessário constituir em seu centro de capoeira Angola regras e

hierarquias que possam ajudar na constituição do cultivo e transmissão da capoeira mãe

(Pastinha, 1969, Pires, 2001). Assim, incorpora à prática da capoeira e de seus treinos

regras e hierarquias novas. Na roda, desenvolve a figura do juiz, ou daquele que

responde pela organização desta, mantendo-a dentro de seus fundamentos. Na rotina

diária do centro, Mestre Pastinha cria funções específicas ocupadas por determinadas

pessoas que se responsabilizarão por elas. Os responsáveis pela orquestra, dos cantos,

dos treinos de movimentos, arquivistas, contra-mestre e mestres. Escolhe um uniforme

que passará a identificar os seus alunos, calça preta e camisa amarela, em homenagem

às cores de seu clube de coração Ypiranga Futebol Clube. Impede seus alunos de jogar

descalços e sem camisa. Proíbe alguns movimentos. Enfatiza o lado lúdico e artístico da

capoeira, destacando os treinos de cantos e toques de instrumentos. Define a “bateria”

ou a “orquestra” com três berimbaus (gunga, médio e viola), dois pandeiros, um

atabaque, agogô e reco-reco. Destaca a importância dos toques e cantos na condução

dos ritmos do jogo. Enfatiza a necessidade de desmistificar a capoeira como a arte dos

valentões, mostrando que esta não deveria ser exercida pela valentia mas pela busca da

integridade física e espiritual. Se necessário a capoeira seria uma excelente arte de

defesa e ataque, mas seus fins principais não podiam ser estes. Destaca a necessidade

dos valores éticos e políticos da capoeira, como a lealdade aos companheiros e à

capoeira, a obediência a regras principais do jogo, e à construção coletiva e social que

esta pressupõe.

Pastinha encontra na tradição conceitos centrais como “malícia”. Ser angoleiro

para ele é usar o tempo todo a malícia, nos golpes, nas defesas e contra-golpes. Iludir

48

sempre que possível o adversário, evitando com isso movimentos mecânicos e

previsíveis. Com isso destaca no aprendizado da capoeira condições para que cada

aprendiz desenvolva estilos próprios de dissimulação, beleza, continuidade e elegância

em seus movimentos, toques e cantos. Seus treinos não visam uma repetição automática

e mecânica dos exercícios, mas uma expressão de estilos próprios. Para Mestre Pastinha

ninguém joga igual a ninguém. Mesmo dentro de um jogo de movimentos e golpes

definidos é a expressão de cada um que marcará sua singularidade e o seu estilo como

jogador.

Diante de todas as características acima mencionadas podemos perfeitamente

destacar a importância da ritualística na capoeira Angola. Destacando-a como elemento

principal em sua transmissão. Mestre Pastinha elaborou com minúcias os procedimentos

de entrada e saída do jogo, a importância das chamadas de mandinga, quando os

oponentes paralisam o jogo num desafio de intensa representação simbólica, a relação

estreita entre os toques e cantos com o tipo de jogo, entre outra coisas. São buscadas,

deste modo, a manutenção das referências dos rituais afro-brasileiros. Tratando a

capoeira como um rito, Mestre Pastinha procura impedir a sua total absorção às práticas

físico-desportiva-marciais. A capoeira é sem dúvida uma atividade física, um esporte e

uma luta, mas é acima de tudo uma reza, um lamento, uma brincadeira, uma resistência,

uma vadiação, uma dança, um canto, uma comunhão. Mestre Pastinha procura, assim,

aproveitar os novos espaços que a sociedade do seu tempo finalmente abriu para a

capoeira, sem aderir plenamente às mudanças impostas a ela por esses novos espaços.

Mudar para manter, esta talvez seja para Mestre Pastinha a urgência do seu tempo.

Daí a necessidade de fundar uma escola. Mestre Pastinha entende ser necessária

a construção de escolas, por meio das quais um ensino sistemático da capoeira seja

mantido e onde possam ser transmitidos os principais fundamentos da capoeira mãe,

49

numa resistência às tendências modernizantes que esta começa a sofrer. Para Mestre

Pastinha a capoeira deve ser encarada como um modo de vida, e o capoeira deve

dedicar-se exaustivamente à sua escola, colaborando da melhor maneira possível na

manutenção e transmissão desta tradição. Aprender capoeira para Mestre Pastinha não

se restringe à realização de movimentos, toques e cantos, mas passa pelo engajamento

do aprendiz para com as raízes e suas tradições. O aprendiz de capoeira Angola não

pode encarar seu aprendizado como uma simples atividade física e marcial, que lhe trará

benefícios individuais de saúde atlética e beleza. O ensino da capoeira Angola deve

formar para a vida.

Considerado por muitos como filósofo da capoeira, Mestre Pastinha nos deixa

por intermédio de suas práticas e de seus inúmeros manuscritos, a idéia de que o

universo da capoeira engloba todos os elementos inerentes à vida, como um

microcosmo em que o universo ali se encontra em sua totalidade. Na roda da vida como

na roda da capoeira o mundo comparece de modo pleno. O aprendizado da capoeira

Angola que Mestre Pastinha ajudou a construir incorporou às formas antigas do

aprendizado da capoeira elementos próprios das escolas formais, sendo criados, então:

um estatuto, cartilhas de procedimentos, treinos e exercícios específicos, hierarquias e

rotinas. Mas estas adesões são para Mestre Pastinha o caminho para preservar e manter

viva, em um mundo radicalmente novo, as antigas tradições da capoeira mãe.

O descompromisso alegre da vadiação, a malícia ácida da malandragem, a

espiritualidade dos rituais religiosos, a beleza das danças e toques, a celebração e a

comunhão de um povo, não cabem em técnicas ou conceitos que consideram apenas as

habilidades. Por isso a escola de Pastinha tende a fundamentar sua transmissão na

capoeira antiga, privilegiando a vivência, ou melhor, a convivência entre os capoeiras

que “pegando pelas mãos os aprendizes” convidam-no a penetrar e desenvolver

50

coletivamente os múltiplos aspectos desta rica tradição. O desafio de Mestre Pastinha

talvez seja conciliar o novo das técnicas e procedimentos das escolas formais com os

ritos e mandingas da antiga capoeira.

Nessa forma de aprendizado o principiante tem que tomar para si a

responsabilidade na aquisição do conhecimento desejado. É ele que deve ditar o ritmo,

sabendo ou procurando saber os seus limites, não se comprometendo com mais do que

possa cumprir. Para Mestre Pastinha um bom aprendiz não é o que obedece cegamente

ao mestre, mas aquele que almeja tomar atitudes próprias. O capoeirista para fortalecer

sua academia ou grupo deve chamar para si a responsabilidade, tornando-se mais atento,

vigilante e convicto. “Grande parte dos capoeiristas prefere que os outros pensem em

seu lugar; o que é raciocínio? É uma faculdade do espírito, devemos fazer uso de

executar uma função” (Pastinha, 1996). Ao mestre caberia a função de ser livre dando o

exemplo para inspirar os aprendizes a buscarem sua liberdade e suas convicções.

1.4 - Alguns caminhos da capoeira nos dias atuais

Entre os anos 30 e os 80 do século XX a capoeira vive mudanças que

fundamentarão a capoeira contemporânea. As escolas de capoeira baiana,

principalmente as vertentes da Regional de Mestre Bimba e a Angola de Mestre

Pastinha se expandem, alcançando o Brasil e o mundo. Dessas sementes nascerão

diversos grupos, cuja filiação aos dois mestres nem sempre será explícita, mas talvez

seja certo dizer que implicitamente a capoeira, tal como ela hoje se apresenta, deve

muito às escolas desses dois mestres. Essa herança é percebida na organização em

diversos grupos e escolas de capoeira.

51

Podemos perfeitamente dizer que a capoeira antiga, que existia de modo

informal, vinculada diretamente a um ethos muito próprio das cidades e suas

comunidades do início do século XX, praticamente desapareceu. A rua, as quitandas e

festas públicas vão cedendo lugar para as academias e espaços privados na prática da

capoeira. O aprendiz, agora deve se matricular numa escola ou grupo de capoeira,

freqüentando regularmente esses espaços e respeitando suas regras e procedimentos.

Não se aprende mais ao modo antigo, “de oitiva”, numa vivência coletiva em espaços

abertos e públicos. A rua que era o espaço próprio para a vadiação só é ocupada agora

para demonstrações, como divulgação dos grupos privados. A capoeira agora ganha

contornos de uma instituição privada, proliferando os grupos particulares com seus

nomes, uniformes e regras de procedimentos particulares.

Diante dos desafios de enquadrar-se aos novos tempos sem perder o contato com

as tradições, a capoeira Angola vai experimentar uma difusão mais tímida, atravessada

por inúmeras crises. Já a Regional que sempre considerou em seus fundamentos uma

ruptura maior com as antigas tradições, vai vivenciar um crescimento ampliado e

diversificado.

Um dos motivos mais marcantes desse crescimento da capoeira Regional é a sua

assimilação plena às práticas físicas e esportivas. Tratada como um genuíno esporte

nacional a capoeira Regional se infiltra rapidamente nas escolas, no currículo das

universidades de educação física, nas academias militares, assim como nas academias

de malhação. Somada à eficiência atlética e marcial da capoeira, podemos também

destacar, como importante aspecto de sua difusão, a manutenção de alguns aspectos

ritualísticos (cantos, movimentos, toques, etc) que de algum modo criam um fascínio, de

uma mística folclórica e de certo modo exótica e “primitiva” que tem sido associada a

capoeira.

52

Encarada desta forma, muitas vezes a capoeira contemporânea tem reduzido o

seu aspecto cultural à uma apreensão folclórica e descontextualizada, que representaria

tradições antigas por meio de simbologias até certo ponto românticas. Essa percepção

da capoeira contemporânea, como um esporte exótico e folclórico de raízes primitivas,

tem ajudado a despertar cada vez mais o interesse de pessoas de diversas origens e

países a aprender o exótico esporte brasileiro. O aumento dessa demanda tem levado à

proliferação de grupos, e à formação cada vez maior de “mestres” de capoeira. De certo

modo, a intuição que levou Mestre Bimba a transformar a capoeira num esporte

nacional, deu certo. Suas transformações, principalmente suas técnicas de ensino e

transmissão da capoeira, têm facilitado sua prática cada vez maior por pessoas muito

diversas.

Por outro lado a capoeira contemporânea vem experimentando uma aproximação

cada vez maior com os espaços escolares. Mestre Xareu, num livro recente intitulado

Capoeira na universidade: uma trajetória de resistência vem indicando a trajetória da

capoeira Regional em direção à escolarização. Em 1972 a capoeira é registrada

oficialmente na Confederação Brasileira de Pugilismo e em 1973 no Conselho Nacional

de Desporto (CND). A partir daí o “esporte” capoeira estreita suas relações com a

formação dos educadores físicos. Assim:

Mestre Carlos Senna, ex-aluno de Mestre Bimba, um defensor ferrenho da capoeira esporte e fundador da Senavox (Centro de Pesquisa, Estudo e instrução de capoeira, fundado em outubro de 1955), em 1980, publicou um inusitado trabalho denominado Capoeira: arte marcial brasileira. Essa publicação mostra a preocupação do autor com os exames, corpo docente, regulamento de competição e súmulas. Ele, fundamenta, também, seu projeto nos valores educacionais e reconhece ser a capoeira uma ‘... incomparável forma de educação física ... (CAMPOS, 2001, p. 70).

Dessa maneira a capoeira penetra nos programas de educação física de três

modos: incluída nos métodos de ginástica tradicional; como conteúdo diferenciado de

ginástica escolar ou como disciplina esportiva de caráter optativo. Destacam-se assim os

53

efeitos da prática da capoeira sobre a força, flexibilidade, resistência, habilidade

específica e composição corporal.

A capoeira passa a ser entendida como um esporte popular, com vigoroso

substrato cultural, que suscitaria nos aprendizes interesses maiores que aprender golpes

e movimentos. Amplia-se assim o conceito da capoeira enquanto um instrumento

completo de educação integral dos jovens estudantes. Sobre isto diz mestre Xaréu:

É importante frisar que o ensino/aprendizagem da capoeira não deve ser voltado apenas para o aspecto técnico de aprender determinada forma de luta e de esporte. O ensino de golpes, contragolpes, esquivas e seqüências deverá ser acompanhado de transmissão de todos os elementos que envolvem a sua cultura, história, origem e evolução, ao tempo em que se estimulará a pesquisa, debate e discussão em seminários, para que o educando tenha participação efetiva no contexto da capoeira como um todo (apud CAMPOS, 2001, p. 87).

Esse encontro com as escolas formais e suas pedagogias centradas no

conhecimento intelectual não deve ser entendido como um caminho de mão única, no

qual a capoeira cede para incluir em suas práticas os ritos da academia. Devemos

considerar que a própria academia também se transforma absorvendo elementos das

tradições da capoeira. Como exemplo desta resistência por dentro dos muros, podemos

destacar o movimento que os profissionais de educação física ligados à capoeira têm

liderado, junto com outras entidades de artes marciais e práticas orientais, para

questionar e derrubar a Lei Nº 9.696/98 que, através de um enorme lobby dos

profissionais de educação física, regulamenta a autorização do ensino sistemático de

qualquer atividade física exclusivamente aos profissionais da área. Segundo essa lei,

somente os graduados nessa disciplina poderiam exercer o ensino sistemático da

capoeira. Por outro lado, esta aproximação do universo da capoeira com as escolas e

suas construções sistemáticas de ensino e aprendizagem alteram a divulgação da

capoeira, muitas vezes afastando-a dos ambientes de tradição popular. Este crescimento

contemporâneo da capoeira Regional deve ser encarado como um desafio: ampliar e

54

difundir a capoeira para outros países e espaços acadêmicos, mantendo vivo os aspectos

ricos e singulares dessa tradição.

A capoeira Angola ao contrário, não experimentou uma difusão como a

Regional. Se perguntarmos a alguém a respeito da capoeira Angola, é muito comum

que se obtenha uma resposta de surpresa, que aponte para o seu desconhecimento,

enquanto que a capoeira Regional é bem mais conhecida. Após uma queda,

principalmente, com a morte e envelhecimento dos antigos mestres de capoeira Angola,

observamos uma retomada deste movimento a partir dos anos 80. Segundo Abib

(...) a capoeira Angola retoma, sobretudo a partir das duas últimas décadas do século XX, um fôlego e um vigor admiráveis, justamente em função de um processo muito bem articulado por importantes lideranças baianas, no sentido de valorização da consciência negra e da africanidade. Segundo o pesquisador Jair Moura (2003), esse processo iniciou-se na década de oitenta daquele século, e teve um caráter político importante, envolvendo militantes do movimento negro e intelectuais baianos, mas também nele, tiveram um papel fundamental alguns mestres tradicionais da então agonizante capoeira Angola, como mestre João Pequeno, mestre João Grande, mestre Curió e mestre Moraes (ABIB, 2004, p. 43).

Tal retomada terá como marca a construção de alternativas à hegemonia da

capoeira Regional. Dentre muitas outras formas de quebra dessa hegemonia, podemos

destacar a recuperação dos antigos modos de aprender capoeira. Frede Abreu num

depoimento dado a Abib (2004) diz que a capoeira Angola se caracteriza justamente por

ter surgido a partir da “cultura do instantâneo”, do “improviso” e do “não racional” nas

senzalas, ruas e praças deste país, e que a sua transmissão tem que considerar essa

atmosfera informal. As regras do jogo da capoeira devem se inscrever no corpo do

capoeirista, sem necessidade de uma apreensão intelectual delas. Sobre isto Abib (2004)

cita Jocimar Dolio que aponta para a importância de aprender com o corpo, e não com a

razão, pois é o físico que estabelece o modo de contato primário com o entorno do

aprendiz que vai “assimilando e se apropriando dos valores, normas e costumes sociais,

num processo de incorporação. Mais do que um aprendizado intelectual, o indivíduo

55

adquire um conteúdo cultural, que se instala no seu corpo, no conjunto de suas

expressões” (Ibidem, p.34). O angoleiro, centrado nessa sua referência corporal

encarnada, construirá seu aprendizado sempre de modo singular. Mestre Moraes define

com muita presteza, a relação do angoleiro com a capoeira que segundo ele:

(...)é muito mais com o sentimento do que com o movimento”. O sentimento do angoleiro expresso na sua forma de jogar, durante a roda, traz a subjetividade como algo característico da estética da capoeira Angola. E a subjetividade não é quantificável, por isso, pode manifestar-se de várias formas segundo cada situação enfrentada pelo capoeira durante o jogo. Essa pode ser considerada uma estética de aprendizagem contínua. (ABIB, 2004, p. 145).

Nesse processo de aprendizado, como vimos acima na tradição dos antigos

capoeiras, cabe a relação mestre e aluno, a toda a atmosfera que inclui elementos éticos,

estéticos e políticos, o aprendizado e a prática da capoeira. Os aprendizes são forçados a

abrir-se às experiências de improviso, comum à vadiação. Esse processo busca

recuperar na capoeira os aspectos lúdicos, da brincadeira, da mandinga, da manha e da

criatividade. Ao mestre não caberia a arrogância de adequar os aprendizes a um

esquema sistemático e automático de movimentos sincronizados, mas oferecer

exemplos e oportunidades para que o aprendiz encontre o seu jogo. Mestre João

Pequeno em seu depoimento a Abib nos diz a respeito de seu aprendizado e de seu

ensino de capoeira Angola hoje em dia no forte de Santo Antonio em Salvador: “eu

aprendi, e dou os golpe que ele dava, eu passo pros meus aluno...mas eu não tinha

aquele jogo, aquele manejo de corpo que ele tinha...é por isso que aqui [referindo-se à

sua academia], eu não forço aluno nenhum que ele pegue meu jeito de corpo, né...”

(ABIB, 2004: 146).

Nessa construção a partir de suas experiências encarnadas são valorizadas os

truques, manhas e malandragens que cada um pode tirar da “cartola” sempre de modo

imprevisto e inusitado. À difusão cada vez mais ampliada da capoeira Regional que

56

privilegia o combate frontal, direto e objetivo, com movimentos que buscam um

aprimoramento técnico de golpes perfeitos e velozes, a capoeira Angola coloca um jogo

mais manhoso, estético e dissimulado. Frede Abreu relata assim a impressão que lhe

causou a visão do jogo de João Grande e João Pequeno:

Quando vi os dois jogando eu senti uma profundidade naquilo, que era uma coisa incrível...as manhas, as gingas. Eu me lembro que eu pensava assim...eles eram os caras que faziam da simulação, a verdade...eles simulavam tanto que a simulação virava verdade, como se eu dissesse assim: o jogo da capoeira é isso aqui (...) É a coisa mais completa de insinuações que eu já vi: os dois jogando (Ibidem, p. 148).

Com essa revitalização, a capoeira Angola contemporânea também ganhou o

Brasil e o mundo. Mas os riscos que a capoeira Regional tem experimentando em sua

difusão também devem ser considerados pela capoeira Angola. É nesse sentido que nos

parece premente explicitar o modo tradicional de aprendizado da capoeira (“de oitiva”).

Deste modo, estamos diante de duas tradições de ensino e aprendizado que

atravessam a história da capoeira. O modelo da escola tradicional, voltado para a

sistematização, racionalização e competição, onde o que importa é o resultado ou a

eficiência do processo de aprendizado e o modo africano e antigo de aprender, onde a

vadiação, a brincadeira e estética de si tornam-se base. Não é justo afirmar que a

capoeira Angola é o patrimônio da forma antiga de aprender e a capoeira Regional da

forma escolar e formal, mas apenas constatar nelas o que historicamente se apresenta

como forma hegemônica de aprender e ensinar. Existem grupos e grupos de capoeira

Angola e Regional. Se olharmos bem de perto para cada um deles poderemos

perfeitamente encontrar no aprendizado do dia-a-dia marcas destas duas tendências. A

história e a tradição da capoeira e de suas formas de aprendizado ainda continuam

abertas, num jogo incompleto sem vencedor ou vencido.

57

CAPÍTULO II – Aprender gingando: Do aprendizado da ginga à ginga da

aprendizagem

2.1 – O movimento da ginga

No início do processo de aprendizado da capoeira Angola o aprendiz se

depara com um movimento de suma importância para essa prática, comumente

denominado de ginga. Trata-se de um movimento de deslocamento, para frente e para

trás, no qual as pernas e os braços se alternam inversamente de modo que, quando a

perna esquerda está na frente o braço direito deve estar também à frente próximo ao

rosto e vice-versa. Desde que surgiram espaços próprios para o treinamento da

capoeira, o aluno é levado a repetir exaustivamente esse movimento, procurando

imitar o Mestre e os outros colegas de treino. Com a ginga vão sendo apresentados os

outros movimentos do jogo de Angola: o aú, o rôle, o rabo-de-arraia, a meia lua, a

esquiva, a negativa etc, que vão formando, com ela, séries alternadas em que esses

movimentos se repetem. Vamos aprendendo que a ginga é um dos movimentos

principais, já que é dela que se iniciam os demais movimentos, assim como esses

também devem se encerrar nela. Espécie de ponto de ancoragem dos movimentos da

capoeira a ginga se alterna o tempo todo. Iniciar e encerrar devem ser aqui

compreendidos como estados provisórios de experiências de treino11, pois o jogo da

capoeira pressupõe uma continuidade de movimentos, dispostas numa circularidade

na qual o começo e o fim da ginga ficam difíceis de serem identificados. Nesse

sentido, mais do que encerrar ou iniciar podemos dizer que ela é um movimento que

mantém o jogo sempre em movimento. Ou seja, o angoleiro quando não está

11 É comum nos treinos de capoeira, exercícios que partindo da ginga se desenrolam em outros movimentos que ao seu fim devem concluir na ginga.

58

realizando os golpes de defesa e ataque deve estar necessariamente gingando,

encaixando nessa os demais movimentos. Gingando, sempre gingando; é assim que o

aprendiz vai aprendendo os golpes da capoeira. Quanto mais contínua e imediata for a

movimentação da ginga e dos outros movimentos maior a destreza do jogador. No

início, o aprendiz é levado a experimentar situações que lhe permitam coordenar seus

movimentos em torno da ginga, buscando encontrar a suavidade de sua continuidade.

Sob este momento diz Mestre Bola Sete:

(...) constatei que, a princípio, eles (os Mestres antigos) transmitiam para os alunos os movimentos básicos de defesa, iniciando as aulas sempre com o treinamento da ginga, a exemplo do Mestre Pastinha, que costumava segurar na mão do aluno durante algum tempo, até que ele dominasse os seus passos, passando a colocar os braços na posição defensiva. (...) Tudo isso sob os olhares atentos dos demais alunos que aguardavam a sua vez. (Cruz, J. L Oliveira ‘Mestre Bola Sete’, 2003, p.34)

Cada aprendiz vai encontrando, auxiliado pelo Mestre e pelos demais

companheiros, o tempo de seu aprendizado da ginga. Nossos Mestres nos indicam o

tempo todo a necessidade de soltar a ginga de modo que os movimentos ganhem uma

suave continuidade. Para tanto o treinamento da capoeira Angola geralmente se

abstém de exercícios distintos dos movimentos da capoeira. Os Mestres raramente

propõem exercícios físicos separados, visto que mesmo os de alongamento são

ensinados a serem feitos durante a ginga, assim como o desenvolvimento de

resistência e força muscular. É gingando que vamos entrando como alunos nos

movimentos do jogo da Capoeira Angola.

Numa série de aulas-espetáculo ministradas em todo o Brasil, o músico,

dançarino e cantor Antônio Nóbrega usa uma definição bastante interessante para a

ginga da capoeira, apontando para uma característica paradoxal desse movimento.

Nóbrega começa dizendo que nas danças clássicas como o balé, o bailarino procura

movimentar-se dentro de uma zona em que o que se busca é o equilíbrio. Nesse

sentido, os principais movimentos são realizados respeitando os eixos horizontais e

59

verticais, gerando deslocamentos equilibrados, perfeitos, suaves e precisos, quase

geométricos. O desequilíbrio torna-se fatal para o bailarino, propiciando geralmente

uma queda ou a deselegância do movimento. O bailarino procura produzir

movimentos contínuos e equilibrados alterando os eixos horizontais e verticais,

evitando sempre o desequilíbrio.

Para Antônio Nóbrega a capoeira e algumas outras manifestações corporais

brasileiras, como o frevo, se caracterizam por um outro tipo de movimento que

perpassa o tempo todo por um estado paradoxal que ele chama de “equilíbrio

precário”. Momentos em que os limites da estabilidade ou da instabilidade do

equilíbrio parecem se confundir numa estranha circularidade. Vendo um angoleiro

jogando observamos movimentos que não estão imersos em zonas de estabilidades,

como no balé, em que o desequilíbrio é evitado. Observamos um movimento que

quase sempre atravessa zonas de equilíbrio precário, lembrando bastante o

movimento de um bêbado voltando para casa andando. Um observador externo ao se

deparar com um bêbado andando tem a estranha sensação de que a todo momento ele

vai cair, mas ele consegue, inexplicavelmente, se reequilibrar e assim novamente se

desequilibrar, num estranho movimento indeterminado e surpreendente. O observador

fica então perplexo, pois não consegue ter a certeza do próximo movimento do

bêbado, nem a segurança de que ele não vai cair. Sobre este estranho movimento nos

fala Mestre Pastinha:

E jogar precisa ser jogado sem sujar a roupa, sem tocar o chão com o corpo. Quando eu jogo, até pensam que o velho esta bêbado, porque fico todo mole e desengonçado, parecendo que vou cair. Mas ninguém ainda me botou no chão, nem vai botar (Pastinha, 1967).

A ginga na capoeira é, portanto, segundo Nóbrega, um movimento que

atravessa zonas de equilíbrio precário. E aqui gostaríamos de enfocar essa estranha

situação do movimento da ginga. Como vimos acima a destreza dos movimentos da

60

capoeira visam a manutenção de uma certa continuidade dos movimentos, mantendo-

se sempre gingando. Mas como conciliar a continuidade suave de movimentos com

zonas imprevisíveis de equilíbrios precários em que temos a nítida sensação de

paradas e cortes da continuidade? Como manter a cadência das seqüências dos

movimentos atravessando zonas de equilíbrio precário? Tais indagações podem

parecer contraditórias principalmente se pensarmos esses dois estados, o do equilíbrio

em continuidade e do desequilíbrio descontínuo como sendo opostos e contraditórios.

Tal dificuldade de tratar a ginga como um movimento que atravessa zonas de

equilíbrio precário pode ser atribuída a idéia recorrente de que um movimento

contínuo deve se realizado de modo automático e sem hesitações.

A idéia de que a continuidade do movimento é o objetivo de todo e qualquer

capoeira, tem como correlato treinamentos e exercícios que vão estimular a

automatização. Tal compreensão dos movimentos da capoeira e de seu exercício o

levaria a achar que, quanto mais contínua e automática for a transposição entre os

diversos golpes e a ginga, maior é a destreza e a eficiência do capoeira. Esse

entendimento tem encaminhado o aprendizado dos movimentos da capoeira para

exercícios que estimulem, através de repetições exaustivas, a execução mecânica e

automática de seqüências de golpes e contra-golpes cada vez mais rápidos.

Velocidade, continuidade e automação seriam assim, sinônimo de habilidade e

destreza de movimentos. Nesse processo de treinamento o capoeira passaria, da

posição de principiante, na qual os golpes são realizados de modo descontínuo e

lento, à posição de iniciado, em que seus movimentos cada vez mais seriam

executados com velocidade e continuidade. A velocidade de golpes contínuos e

automáticos seria considerada como estágio superior da habilidade do jogo da

capoeira.

61

2.2 – O aprendizado da ginga como aquisição de comportamentos automáticos

E aqui já podemos discutir à luz do aprendizado da ginga na capoeira, algumas

ressonâncias com os estudos da aprendizagem em psicologia. Será que quando

aprendemos capoeira, o que está em jogo é a aquisição de um comportamento

automático, mecânico, resultado de uma série de condicionamentos, de conexões

cegas entre situações e condutas específicas? Trata-se de um esforço de repetição de

certos movimentos, que devem ser automatizados à exaustão?

Normalmente, e a tradição dos estudos da aprendizagem não deixa negar, a

explicação desses processos se reduz a técnicas de formação de habilidades que

permitam aos aprendizes se comportarem adequadamente a dadas circunstâncias.

Nesse sentido, apresentaremos agora, sempre à luz da experiência do aprendizado da

capoeira Angola, uma abordagem da psicologia, que buscou compreender este

processo como uma prática de adequação, cada vez mais automática, às

circunstâncias do ambiente.

Uma das primeiras abordagens do pensamento psicológico a privilegiar o

tema da aprendizagem foi o Behaviorismo. Nascido a partir do manifesto de J. B.

Watson “A psicologia tal como o behaviorista vê” (WATSON, 1913) surge criticando

a abordagem mentalista da psicologia clássica (o estruturalismo de Titchener e o

funcionalismo de William James), que consideravam, para explicar o comportamento

humano, variáveis subjetivas ou mentais. Segundo Watson: “O que precisamos fazer

é começar a trabalhar na psicologia fazendo do comportamento, e não da consciência,

o ponto objetivo de nosso ataque” (Apud CANÇADO et al, 2006, p. 181).

62

Mas o interesse do behaviorismo em abandonar o projeto de uma psicologia da

mente, segue na empresa de Watson uma inclinação fundamentalmente metodológica.

Com uma marcante influência do positivismo, o behaviorismo nasce não só

abandonando a noção de consciência, como também tratando o comportamento por

meio de um método objetivo e experimental. Como diz Cançado a respeito do interesse

de Watson:

Ele (Watson) propõe que a psicologia que seja uma ciência empírica e que leve a generalizações amplas sobre o comportamento humano, mantendo-se a uniformidade do procedimento experimental, para que os experimentos dos psicólogos possam, assim como o dos físicos e químicos, ser replicados em qualquer laboratório (Idem, p. 182).

Mas se é com Watson que o behaviorismo se inicia, podemos dizer que é com

Skinner que ele assume características mais bem acabadas. Para Watson o estudo do

comportamento, desprezando a variável mental, era uma imposição de caráter

metodológico, podendo com o tempo ser reconsiderada. Watson não leva às últimas

conseqüências o desenvolvimento da psicologia como um estudo exclusivo do

comportamento. É com Burrhus Frederic Skinner que o Behaviorismo encontra sua

concepção radical. Para ele a necessidade da psicologia se restringir ao estudo funcional

do comportamento não é apenas metodológica, mas filosófica. Ou seja, o

comportamento não deve ser o objeto de estudo da psicologia apenas por não existir na

época (primeira metade da século XX) uma abordagem científica da mente ou do

cérebro, mas por ser esse o único e verdadeiro objeto da psicologia.

Segundo Cançado, Skinner vai criticar a psicologia existente até o início do

século XX, por sua opção atomista e causal do comportamento. Influenciada pela

ciência do XIX, tal psicologia tentava encontrar nos fenômenos psicológicos relações

causais e deterministas, numa espécie de atomismo psicológico. Nesse modo de

compreensão haveria um determinismo causal, estabelecendo relações de necessidade

entre causa e efeito. No início de século XX começam a aparecer críticas ao

63

entendimento dos fenômenos naturais segundo o modelo da causalidade mecânica. No

lugar de relações causais propõem-se relações funcionais. Segundo Cançado (2006,

p.184) isso ocorre tanto com a física do austríaco Ernst Mach, quanto com a teoria da

relatividade de Einstein. Imerso nessa atmosfera, Skinner irá propor uma a psicologia

funcional do comportamento.

Para Cançado a idéia de função deve ser compreendida em termos matemáticos,

de uma relação contingente. A maior parte do repertório de nossos comportamentos

devem ser entendidos como relações contingentes entre circunstâncias ambientais e

determinadas respostas comportamentais. A explicação psicológica deve evitar a queda

nas armadilhas de uma estruturação ou substancialização das variáveis em jogo nas

condutas, sejam elas a consciência, a mente, o cérebro, o meio ambiente e o

comportamento, cujo estudo deve levar em conta apenas as relações funcionais entre

esses últimos. Fica claro o privilégio que esta teoria pretende dar aos comportamentos

como resultantes dos usos e interações do corpo com o seu entorno, e assim, elevar os

estudos da aprendizagem ao aspecto principal de sua psicologia.

Para Skinner os “homens agem sobre o mundo, modificam-no e, por sua vez, são

modificados pelas conseqüências de suas ações” (1978 p. 15). Do ponto de vista

behaviorista o comportamento se refere ao ambiente e ao organismo de modo funcional.

Cabe ao psicólogo comportamental compreender como se constituem, se mantém e se

extinguem determinadas relações entre as circunstâncias e a conduta. O estudo

behaviorista, não considera importante a análise estrutural do ambiente ou do

organismo, cérebro ou consciência como fontes explicativas do comportamento, mas

pretende apenas descrever como se formam, se mantém e se extinguem as relações

funcionais entre o comportamento e o meio ambiente. Desde modo, o behaviorismo vai

dar destaque à aprendizagem, ou seja, vai mostrar como determinadas condutas se

64

originam, se mantém e são suprimidas, sem que para isso lance mão de qualquer forma

explicativa estrutural ou substancialista.

Para Skinner, com exceção dos comportamentos reflexos, todas as nossas

condutas são aprendidas. Nesse modo funcional de compreensão da aprendizagem,

destacam-se a ação, a repetição e as contingências reforçadoras do ambiente como

principais conceitos do behaviorismo. Mas, a principal noção desta psicologia é a de

operante. Inspirada no conceito darwiniano de seleção natural, Skinner vai considerar,

tão-só no plano ontogenético, a seleção das condutas de acordo com seus efeitos.

Segundo ele, como toda conduta é uma ação numa certa circunstância, ela sempre vai

produzir determinados efeitos, que retroativamente selecionam, aumentando ou

diminuindo a probabilidade de, no futuro, tal conduta se repetir em circunstâncias

semelhantes.

Num livro publicado em 1989, um ano antes de sua morte, Skinner aponta para o

que ele julga ser a base explicativa da aprendizagem. Diz ele:

‘Os membros de outras espécies’ adquirem conhecimentos uns dos outros através da imitação, um processo tributável tanto à seleção natural quanto ao condicionamento operante. Às vezes eles modelam o comportamento a ser imitado, mas apenas os membros da espécie humana parecem fazê-lo para que os outros o imitem. Modelação é uma forma de ensino, mas a permanência de seu efeito depende do reforçamento positivo ou negativo (SKINNER, 1995, p. 122)

Mais à frente, Skinner descreve o que seria a aprendizagem da prática japonesa

de dobradura de papel – o “origami”. O aprendiz inicialmente vai imitando o professor,

repetindo um a um os movimentos realizados por este. No final ambos fizeram, por

exemplo, a figura de um pássaro. O aprendiz reproduz com exatidão o processo de

dobradura, mas tal processo ainda não está consolidado, ou melhor, ele não consegue

realizá-lo sozinho. Houve modelação, mas não permanência ou automatização da

prática da dobradura. Os movimentos do aprendiz estão ainda dependentes do instrutor.

A seguir o professor inverte o processo. Ao invés dele servir de exemplo para o

65

aprendiz imitá-lo, propõe que este inicie os movimentos da dobradura para que ele

possa imitar. O aprendiz realiza uma primeira dobradura, se essa for de acordo com o

modelo, o professor imita aquela dobradura (reforço positivo)e, nesse caso o aprendiz

segue para a próxima etapa do processo de dobradura. Se o aprendiz efetivar um

movimento que esteja inadequado à seqüência, o professor fica parado até que aquele

conserte o movimento (ausência de reforço). Nessa seqüência invertida as

conseqüências dos atos do aprendiz atuam como seleção das condutas adequadas. Ao

concluir o processo várias vezes, o aprendiz consegue realizá-lo cada vez mais rápido e

automaticamente, diminuindo os erros e as hesitações. Aprender aqui é adequar-se

funcionalmente a um conjunto de ações prévias guiadas por estímulos ou determinadas

situações (o modo de fazer dobraduras de origami) por meio de um processo de

imitação, repetições e reforços.

É importante destacar que em tal processo o aprendiz experimenta modificações

comportamentais a partir de uma prática corporal sem mediações de aspectos

cognitivos: representações simbólicas ou modelos mentais. Não é uma estrutura lógica

que deve ser aprendida (esquema de relações entre as dobraduras), mas apenas

associações, seqüências de condutas que são selecionadas, aumentando a probabilidade

de sua ocorrência no futuro em circunstâncias semelhantes. É agindo, ou melhor,

reagindo, que o comportamento do aprendiz se molda a um modelo que também é

comportamental12. Tanto o do modelo que se imita quanto o do aprendiz são práticas

concretas que articulam estímulos, respostas e seus efeitos. Não se trata de “esquemas”

de “algo” que se deve imitar, mas de comportamentos, seqüências de práticas reforçadas

pelas circunstâncias do aprendizado. Aprender é condicionar seu corpo a responder de

12 O termo Modelo deve ser aqui entendido como um conjunto de ações que por serem bem sucedidas se repetem. Nesse sentido destacamos que para o behaviorismo radical o modelo a ser imitado não são regras lógicas ou estruturais, mas usos e práticas comportamentais, são hábitos e não sistemas. Nesse sentido o termo indicado é modelagem e não modelo.

66

modo específico a determinadas situações também específicas, aprendendo a

discriminar os estímulos, comportando-se de modo adequado. A aprendizagem é sempre

empírica e prática, feita de repetições e reforçamentos, fora da qual nada acontece.

Portanto, desde sempre, é através de nossas práticas que vamos formando um conjunto

de habilidades. Não há aprendizagem, para Skinner, fora do comportamento ou fora da

ação. O indivíduo é por excelência o lócus do aprendizado, já que é sobre ele que as

contingências reforçadoras atuam, sempre de modo direto.

Podemos, à luz da teoria skinneriana, argumentar que o aprendizado da capoeira

não pode ser reduzido a uma mera aquisição de habilidades motoras individuais,

desconsiderando o ambiente cultural ou social desta prática. Aprendemos capoeira

apenas diante de nossas práticas, de nossos êxitos e fracassos? Ou também podemos

aprender como os outros, trazendo para o condicionamento uma noção de aprendizagem

social?

Para dar conta desse tipo de aprendizagem Skinner considerou a necessidade de

apontar um terceiro nível de atuação das contingências reforçadoras, alem do

filogenético (seleção natural) e do ontogenético (seleção individual), que ele chamou de

nível cultural ou social (1957, 1974, 1978, 1989). Para ele o comportamento humano é

fruto inseparável da ação integrada destes três níveis. O primeiro se refere à seleção de

condutas características da espécie ao longo de seu processo evolutivo, que são

transmitidas de modo hereditário, que Darwin chamou de seleção natural. O segundo

diz respeito à história de reforçamentos de cada indivíduo ao longo de sua vida, que

Skinner chama da aprendizagem condicionada segundo ações do próprio indivíduo. O

terceiro, que Skinner chama de nível cultural, é sobre os comportamentos selecionados

pela interação do organismo humano com seu ambiente social específico, que

selecionam determinadas práticas e usos sociais.

67

Neste aspecto, o “Comportamento Verbal” trouxe um benefício adaptativo

enorme para o animal humano, já que, por meio dele o indivíduo consegue assumir um

grau avançado de cooperação, podendo aprender a partir daquilo que os outros

aprenderam anteriormente, seguindo padrões de conduta socialmente estabelecidos. Os

comportamentos verbais, seja nos domínios da escrita ou da oralidade, vão desempenhar

um papel importante nas seleções sociais, já que disseminam com maior facilidade

determinados usos e práticas por diversos locais e através dos tempos. Nesse sentido,

para Skinner é perfeitamente possível falar em “regras sociais” desde que as

entendamos como um conjunto de descrições de contingências reforçadoras, que

selecionam determinadas práticas sociais. Por exemplo, no futebol, toda vez em que a

bola sair da marcação do campo a partida é interrompida, para recomeçar com a posse

de bola para o time adversário. Essa regra é reforçada socialmente, na medida em que

todo mundo assim se comporta e um jovem que vai aprender a jogar bola, aprende de

acordo com as condutas dos outros. Observando essas condutas, ou por meio da leitura

das regras ou do que se fala entre os convivas, as condutas vão sendo selecionadas.

É importante frisar que esses três níveis são indissociáveis, fazendo com que os

comportamentos humanos respondam à história das espécies, dos indivíduos e da

sociedade. Nas condutas humanas convivem as interações orgânicas da espécie, da

pessoa e do eu. Considerar esses três níveis de contingências reforçadoras é vital para

compreendermos a aprendizagem para Skinner, pois é através deste caminho que ele

evita incorporar variáveis cognitivas de mediação da conduta. O behaviorismo de

Skinner pode ser, conseqüentemente, considerado um funcionalismo empirista radical.

Todos os comportamentos são adquiridos ao longo de histórias filogenéticas,

ontogenéticas e sociais, e só são mantidos porque foram selecionados através do tempo

68

e ainda continuam sendo no presente. As condutas vão se moldando e se especializando

conforme suas ações e reforçamentos.

Os organismos não aprendem apenas em função dos efeitos provocados por suas

condutas, mas também baseados na observação do comportamento de outros

organismos e com eles. Nesses casos, os estímulos a serem discriminados são oferecidos

por outros comportamentos de outros organismos e não por objetos ou eventos; como,

por exemplo, em um vôo de pássaros, nos quais cada ave molda o seu vôo segundo o

vôo das outras ou o canto de uma delas ativa em outras a fuga de predadores; ou,

ainda, quando o galope de um boi desperta o estouro da boiada etc.

Segundo Catania (1999) a discriminação dos comportamentos de outros

organismos, sejam da mesma espécie ou não, possui uma forte vantagem seletiva. Um

predador que pode distinguir se foi notado pela presa tem vantagens enormes para

realizar o comportamento da caça. Desta forma, nos seres vivos mais complexos a

discriminação de comportamentos sociais pode se tornar mais importante para a

adaptação destes do que a de aspectos físicos do ambiente.

Catania julga ser possível encaixar na análise comportamental os chamados

comportamentos complexos, tais como, julgar, avaliar, pensar, falar etc. Tomemos o

exemplo da linguagem. Os estudos de psicologia da linguagem tendem a privilegiar

aspectos estruturais e cognitivos, de regras formais que se aplicariam ao universo

sofisticado dos comportamentos humanos. Separam, de algum modo, os aspectos

referentes a esses processos superiores – significação, entendimento, memória etc. – de

nossas práticas comportamentais. Catania mostra que uma análise puramente estrutural

restringe a psicologia da linguagem a uma busca de regras invariantes e formais da

sintaxe e da semântica, levando-nos a três equívocos “substancialistas”. O primeiro

deles é que “(...) falamos freqüentemente do uso das palavras, como se elas fossem

69

coisas e não um comportamento” (1999, p. 251). O segundo equívoco é que “(...)

também falamos da linguagem como se ela fosse direcionada a eventos ou objetos”

(Ibidem, p. 251). Por último Catania aponta para o equívoco de considerar a linguagem

um receptáculo de significados. Falamos apenas metaforicamente quando dizemos que

as palavras possuem um significado.

Se a linguagem transmite algo, esse algo é o próprio comportamento verbal; na audição e na leitura, nosso próprio comportamento recria alguns aspectos do comportamento dos falantes e dos escritores, os quais constituem nossa comunidade verbal. Compartilhamos nosso comportamento verbal; ele é acima de tudo um comportamento social (ibidem, p. 252).

As palavras, frases ou proposições escritas ou faladas segundo este autor não são

coisas, não se referem às coisas e nem são receptáculos de significações. São

comportamentos e como tal devem ser explicados a partir de uma análise funcional.

Significar, metaforizar, referir etc. são condutas que se explicam a partir de uma

associação de respostas a determinados estímulos, sejam verbais ou não-verbais. O

comportamento verbal não se localiza acima dos comportamentos não-verbais, visto

que, como esses, eles precisam ser discriminados pelo meio ou circunstâncias

ambientais, sejam físicas ou sociais13. Quando uma criança aprende a responder “maçã”

na presença de um objeto, ou observando os outros falando, dizemos, por exemplo,

segundo Skinner, que ela está “tateando” o objeto. Dar uma resposta verbal a um

estímulo não-verbal não significa que a criança aprendeu o que é uma maçã real ou

apreendeu seu significado, mas que uma resposta verbal específica está sendo

discriminada por um estímulo ambiental específico. Do ponto de vista comportamental

não há nem uma maçã real, nem uma maçã ideal (conceitual ou simbólica) que pode ser

substituída por um signo. Trata-se apenas de comportamentos que são construídos

através de uma prática controlada pelas circunstâncias reforçadoras. Na aquisição da

linguagem os estímulos discriminativos são inicialmente aspectos físicos do ambiente

13 Tal descriminação dos estímulos Skinner define como “tato”.

70

(cores, formas, eventos, ações etc), mas com o desenvolvimento do comportamento

verbal, aspectos de um meio verbal podem ser discriminadores para determinados

comportamentos (aprendizagem social). Ser repreendido em público provoca reações

diferentes do que individualmente. Com a sofisticação dos comportamentos verbais e

não-verbais os organismos passam a reagir não apenas aos aspectos físicos do ambiente,

mas também e primordialmente aos aspectos sociais do ambiente, ou ao modo como um

grupo de pessoas se comporta.

Quando alguém sorri para você em certas situações, podemos atribuir a este

sorriso uma intenção de aproximação, o que nos permite agir de acordo com este

estímulo por meio de uma discriminação social. O discernimento desse ato enquanto um

estímulo para uma aproximação depende de um pertencimento social, de relações entre

pessoas numa determinada cultura. Catania chama isto de ambiente social. Mas este

autor adverte para uma conclusão apressada. Dizer que um comportamento social pode

servir de discriminação de atitudes diversas variando o contexto e a cultura não é o

mesmo que dizer que o comportamento social deve ser entendido como transmissão de

informação ou de significações. Os estímulos sociais não carregam em si um sentido ou

significado a ser transmitido. Sorrir não significa algo que devemos interpretar, mas

indica segundo experiências anteriores como devemos nos comportar. Assim, com base

no comportamento dos outros passamos a discriminar o nosso próprio. Só que essa

discriminação não passa por mediações cognitivas ou por representações mentais. Trata-

se ainda de modelagem, de adequação comportamental e não de modelização como

veremos mais a frente com Bandura.

A emergência do comportamento verbal teria permitido que a cooperação entre os seres humanos fosse mais bem-sucedida. Da mesma forma, as pessoas passaram a aprender a partir daquilo que outros haviam aprendido (...) (CANÇADO et al, 2006, P. 187).

71

Ampliando o entendimento de ambiente reforçador podemos dizer que, segundo

os estudos do behaviorismo, na capoeira o aprendiz não só aprende com os efeitos de

seus atos, mas também e fundamentalmente através dos efeitos das condutas alheias,

que chegam a ele através dos comportamentos verbais e não-verbais. Portanto, amplia-

se a noção de ambiente, incluindo o entorno social, no qual os comportamentos são

resultados das interações com os outros. Não jogamos da mesma maneira numa roda ou

num treino, com um Mestre ou com um aprendiz, com um desconhecido ou conhecido,

diante de um público ou em uma roda vazia. Uma rasteira pode ser carinhosa ou

violenta. Amplia-se a noção de determinante físico de nossos condicionamentos para

um determinante social. Nossas condutas não são fruto de nossas experiências

individuais, mas também das experiências dos outros e das relações que estabelecemos

com eles. Um ambiente social nada mais é do que um conjunto de práticas comuns que

um grupo de indivíduos realizam, marcando entre si uma identidade operacional.

Dizemos que há um grupo de capoeira porque vários corpos realizam entre si condutas

marcadas por uma identidade.

Mesmo admitindo um condicionamento em nível social Skinner ainda encontra

no corpo individual o local próprio dessa incidência. Mas com o cuidado de distinguir o

que é local do que é condicionado, o lócus é o corpo individual, todavia o que é

condicionado é o comportamento. Não há conduta fora do corpo. O social pode

perfeitamente ser reduzido a práticas individuais comuns. As seleções filogenéticas,

individuais ou sociais ainda recaem sobre o nosso corpo individual. A aprendizagem

social de Skinner ainda é centrada no indivíduo particular, que se molda aos efeitos da

espécie, de suas práticas e das práticas dos outros. Somos resultado do como nos

comportamos e do como os outros se comportam diante de nós.

72

Nesse sentido “um comportamento que tenha sido aprendido pode sobreviver à

morte do organismo que o aprendeu. Assim, o comportamento sobrevive no que os

outros fazem” (Catania, 1999, p. 235). Podemos, portanto aprender por observação, sem

nenhuma representação mental ou cognitiva, mas desde que consideremos esta

observação como uma ação reforçadora do comportamento dos outros sobre nossa

conduta. Sentado numa roda posso observar determinados movimentos ou atitudes e a

partir deles mudar meus comportamentos.

Segundo Catania “a aprendizagem por observação, às vezes, é tratada como se

fosse, ela própria, um tipo fundamental de aprendizagem (Bandura, 1986), mas

provavelmente ela seria melhor tratada como uma variedade de comportamento de

ordem superior” (Ibidem, p. 239). Encarada como uma forma distinta de aprendizagem

incorporam-se aos aspectos ambientais e comportamentais, aspectos cognitivos,

enquanto vista como uma variedade de comportamento as explicações da aprendizagem

social mantêm-se imersas nos mesmos princípios comportamentalistas.

Uma vez que alguns indivíduos tenham começado a repetir o que outros vocalizavam, o comportamento verbal tornou-se um tipo de comportamento que sobrevive no comportamento do grupo, como um candidato para o terceiro tipo de seleção que discutimos antes, o da transmissão cultural. Dessa forma, o cenário estava pronto para a memória verbal humana, para os sistemas instrucionais e educacionais e para a rápida e ampla disseminação das práticas culturais (Ibidem, p. 241).

Na aprendizagem social nosso comportamento também é reforçado pela

observação do procedimento do outro. É na observação dos outros ou nas histórias

contadas ou lidas, que na maioria das vezes aprendemos a discriminar propriedades de

nosso próprio proceder. Tal fato fica mais evidente no caso do comportamento verbal,

onde aprendemos com os outros a linguagem que escreve nosso próprio desempenho.

Deste modo, o que sabemos sobre nós mesmos é um produto social. “Não vemos a nós

mesmos como os outros nos vêem; vemos a nós mesmos como vemos os outros”

(idem., p. 241). Aprendemos a discriminar nossos comportamentos de acordo com as

73

contingências reforçadoras do grupo social. No exemplo da capoeira, segundo tal

perspectiva, vamos por meio da participação no grupo (treinos, conversas, rodas etc)

aprendendo a discriminar nossas condutas referentes à dinâmica social (como

discriminar um movimento, um canto, um toque, as brincadeiras, brigas, os costumes

sociais). É ainda um corpo se moldando ao ambiente, só que a um ambiente social. Mas

entendendo sempre que este não é composto por um conjunto de práticas que trazem em

si uma dimensão simbólica ou estrutural que o determine, mas um ambiente funcional,

ou um conjunto de práticas ligadas à espécie, ao indivíduo e ao grupo dos indivíduos

que se repetem em função de seus ganhos adaptativos e utilitários.

Vejamos como alguns exemplos do aprendizado da capoeira poderiam ser

explicados pelo Behaviorismo de Skinner. No aprendizado da capoeira tal como no do

origami temos um aprendizado centrado na prática. É fazendo os movimentos, tocando

os instrumentos e cantando que se aprende a jogar, tocar e cantar. Tais condutas só

podem ser aprendidas pelo homem, devido à herança de um corpo, constituído por um

conjuntos de órgãos, que foi selecionado ao longo da filogênese humana. Só podemos

aprender a cantar porque possuímos órgãos fonadores, cérebro etc., assim como só

podemos tocar o berimbau porque nossas mãos podem se amoldar ao instrumento. Mas

não basta nascermos com um corpo humano para sermos capoeiristas. Precisamos

modelar esse corpo de acordo com as condutas específicas dessa prática. Nesse sentido,

as primeiras aulas são de ambientação com os “fazeres" do jogo de capoeira. Nosso

corpo acostumado a outras utilizações deve se adaptar aos movimentos, sons, cantos,

enfim, ao ambiente comportamental da capoeira. São propostos inúmeros exercícios,

que devem ser imitados e realizados repetitivamente, o que permitirá seu refinamento

ou aperfeiçoamento. Para tanto, o professor, geralmente, fica de frente para os alunos e

estes procuram imitar, como num espelho, seus movimentos. A repetição e imitação são

74

determinantes nesse processo de aprendizagem. Mas não basta imitar. É necessário que

o aprendiz ganhe autonomia em relação ao modelo. Sendo assim, o ambiente da

capoeira, cujo principal agente é o professor, começa a reforçar as condutas adequadas

ou punir as inadequadas. O reforço e a punição vão modelando as condutas do aprendiz,

de acordo com suas práticas. Com o tempo e suas repetições, o iniciante vai ganhando

autonomia e adequando-se cada vez melhor às práticas do universo da capoeira. Porém,

como vimos acima, não é apenas o ambiente físico que seleciona as condutas

adequadas, mas também o ambiente social da capoeira. O aprendiz vai sendo moldado

também pelas práticas de seus colegas. Aprende-se por meio das condutas dos outros,

das conversas ou leituras que vão implementando no corpo do principiante hábitos

ligados ao mundo da capoeira.

A prática é o lugar por excelência do aprendizado behaviorista, no entanto, é

ainda utilitária, adaptacionista e principalmente passiva. O aprendiz vai se moldando

aos usos e ritos da capoeira, reproduzindo a tradição. Não há espaço para pensar a

criação de novas formas de condutas, a não ser pela mera casualidade. A tendência é a

repetição do mesmo, esforçando-se sempre por achar uma adequação às circunstâncias.

O behaviorismo de Skinner, no afã de realizar uma psicologia objetiva, parece

radicalizar os princípios funcionais utilitaristas, dando muita importância ao caráter

passivo e adaptativo da aprendizagem. Mesmo ampliando a noção de ambiente,

incorporado a noção social, ainda mantém o entendimento passivo e automático da

prática da aprendizagem, como se esta não comportasse uma atenção e um esforço do

aprendiz. Há nitidamente nesse modo de explicação da aprendizagem uma ausência de

domínios subjetivos como a atenção, o entendimento e afecções.

Dessa forma, as ações ou as práticas seriam explicadas unicamente por

mecanismos automáticos de fixação de condutas, como se a aprendizagem fosse

75

garantida apenas pelo reforço, no qual um corpo totalmente maleável seria modelado e

alcançaria cada vez mais automatizações. Não importa se o iniciante está atento ou não

no momento em que realiza os treinamentos, se compreende ou não os movimentos que

realiza, se esses o marcam afetivamente ou não. Essa explicação não consegue

classificar os diversos modos de engajamento do aprendiz, não consegue discriminar o

que o faz voltar ou continuar treinando. Reduz tudo a automatização de movimentos

sem sentido, esquecendo de abordar as dimensões estéticas, éticas, políticas e místicas

que a capoeira traz. Entende a realização da capoeira como se esta pudesse ser reduzida

à execução automática de seqüências de movimentos em geral. Mestre João Pequeno

diz o seguinte a respeito dos movimentos da capoeira Angola:

Capoeira Angola só tem nove golpes, multiplicados por 2 ou 3: Aú – que você pode dar de vários golpes; Negativa – golpe principal defensivo. Tem a negativa descida e tem a negativa do golpe que a gente faz que vai dar e não dá; Rateira – alta e baixa; Meia lua – de frente e de costas; rabo-de-arraia; cabeçada – baixa e alta; tesoura; corta capim; chapa – de frente, de costas e de lado. (João Pequeno, s/d, P. 13)

Reduzidas à realização mecânica desses movimentos estaríamos simplificando

demais o aprendizado da capoeira. O que com certeza não o faz Mestre João Pequeno

quando afirma que, depois de aprender sua realização, o aprendiz de capoeira já pode

entrar numa roda, mas que isso só é o início, já que lhe falta experiência. Continua o

Mestre (idem, p. 13) “(...) a capoeira se aprende com o amadurecimento, cada dia que

passa a gente aprende mais” e conclui citando Mestre Pastinha e “ainda estou

aprendendo Capoeira”. Nesse modelo de aprendizagem a técnica assume papel de

destaque, tanto na transmissão quanto na avaliação do processo de aprendizagem.

2.3 – O aprendizado da ginga como aquisição de habilidades

76

Comparado ao principiante que não consegue realizar de modo contínuo uma

seqüência de golpes, podemos dizer que o jogador que apresenta movimentos

contínuos e automáticos desenvolveu habilidades que o credenciam a jogar capoeira.

Mas como afirmou acima Mestre João Pequeno ele ainda não é um capoeirista. A

automatização prepara nosso corpo a reagir de modo cada vez mais rápido e preciso a

estímulos ou situações. Somos condicionados a encaixar respostas comportamentais

adequadas a determinadas situações do jogo. Um movimento de rabo-de-arraia, em que

um dos pés do adversário passará com força na altura de nosso tronco e rosto, nos

indica imediatamente, como num reflexo, que o movimento da esquiva deve ser

adequado para evitar tal golpe. Como o jogo da capoeira é jogado por dois oponentes,

podemos dizer que o encadeamento dos movimentos contínuos e automáticos tem que

considerar a movimentação do adversário. Tal automatização não pode ser apenas de

um, mas sim de dois corpos que se entrecruzam em seqüências de movimentos. Um

observador externo ao mundo da capoeira pode perfeitamente avaliar um jogo pela

velocidade e sincronia dos golpes e contra-golpes que dois capoeiras realizam no

interior de uma roda. Podem, perfeitamente, acreditar que tais golpes são realizados

por exímios capoeiras que conhecem a fundo esse belo jogo. Isso seria absolutamente

verdadeiro se a capoeira fosse jogada visando fundamentalmente uma exibição que

agrade os olhos do expectador. E aqui talvez nos deparemos com uma tendência

importante do aprendizado da capoeira que vem assumindo cada vez mais destaque

nos dias de hoje: considerar a capoeira como uma atividade esportiva e marcial de

exibição. Tendência que não parece ser exclusiva da capoeira, mas que atinge também

outras atividades, como é o caso do futebol, entre outras práticas corporais14.

14 Mais à frente destacaremos mais este aspecto de exibicionismo ligado ao entretenimento, quando analisarmos as questões políticas ligadas ao aprendizado da capoeira Angola.

77

Como vimos no capítulo anterior, a capoeira vem sofrendo aos poucos

inúmeras transformações, que de algum modo vão privilegiando o lado esportivo

voltado para a exibição. Quando o interesse da capoeira é agradar, a tendência é que o

jogo ganhe uma dinâmica atlética e acrobática, aos olhos do expectador que avalia de

fora. Embora ainda não esteja presente na capoeira o sentido de competição, comum

em outros esportes nos quais o jogo geralmente termina com um vencedor15, podemos

perfeitamente dizer que ela vem se aproximando dos esportes de exibição. Nessa

tendência exibicionista o jogo da capoeira ganha uma dinâmica em que a luta, a

vadiação e a malícia cedem lugar à dimensão coreográfica. Nesta, os jogadores-

atletas devem representar com grande eficiência um certo padrão de movimentos, que

leva à formação de um estereótipo da capoeira. Corpos nus e atléticos, que realizam

movimentos acrobáticos entre si sem interrupção. Seqüências repetidas de

movimentos cada vez mais ágeis, numa coordenação concatenada de ataques e

defesas.

Nessas seqüências ininterruptas de golpe velozes constatamos a ausência de

pausas ou momentos de hesitação. Os movimentos se desenrolam como se

encenassem a representação de um escript. Os jogadores não só antecipam os

movimentos do oponente como também realizam movimentos facilmente

antecipáveis. Nesse balé ágil e preciso de movimentos de pernas, cabeças e braços, a

surpresa dos golpes pouco ocorre para aqueles que ali jogam. O que é surpreendente

aos olhos de um expectador pouco afeito a esses movimentos, acaba sendo recorrente

para os jogadores, que repetem, no jogo, os seus exaustivos treinamentos, procurando,

sobretudo, oferecer à platéia um espetáculo da “cultura afro-brasileira”. De algum

15 Por mais que alguns grupos de capoeira, principalmente da vertente Regional, tentem realizar campeonatos e competições nos quais são avaliados vários quesitos do jogo, a capoeira em geral não se deixou transformar completamente num esporte de competição. Não há competições entre grupos diferentes, assim como não há regras universais desta prática.

78

modo, a rotina dos treinos se transforma numa busca mecânica de superação física

visando ao aperfeiçoamento de habilidades atléticas.

Essa tendência do aprendizado da capoeira está em consonância com as

principais linhas da psicologia do esporte, que pretendem auxiliar os atletas

profissionais ou amadores “(...) com a finalidade de desenvolver uma boa

performance, uma satisfação pessoal e um bom desenvolvimento da personalidade

por meio da participação” (WEIBERG & GOULD apud SAMULSKI, 2002, p.03).

Esse campo da psicologia aplicada, herdeiro da tradição behaviorista, entende a

prática corporal como superação individual, que engloba aspectos físicos e mentais,

privilegiando vantagens competitivas de performances atléticas. Além disso, por

meio de exercícios mentais e físicos na intenção de controlar o desempenho

individual, visam a uma adequação cada vez maior dessas habilidades às

circunstâncias do esporte. Às habilidades atléticas, que o behaviorismo soube muito

bem descrever e explicar são acrescentadas, na esteira da psicologia cognitiva, a

necessidade de incluir aspectos cognitivos e emocionais na aquisição destas e de

outras habilidades. Não basta desenvolver um condicionamento atlético, é necessário

também um condicionamento mental. Nasce a noção de habilidades mentais, que

devem também ser exercitadas com o objetivo de aumentar o desempenho do atleta.

Caberia ao psicólogo do esporte treiná-las. Nesse sentido é que são desenvolvidos

programas de THP (treinamento de habilidades psicológicas). Segundo Weinberg, R

& Gould, D.:

O treinamento de habilidades psicológicas (THP) refere-se à prática sistemática e consistente de habilidade mentais ou psicológicas. Técnicos e atletas sabem que as habilidades físicas devem ser praticadas regularmente e refinadas por meio de literalmente milhares e milhares de repetições. Tal como as habilidades físicas, habilidades psicológicas como manter e focalizar concentração, regular os níveis de ativação, aumentar a confiança e manter a motivação também precisam ser sistematicamente treinada (2001, p. 248).

79

Até que ponto essas correntes da psicologia, que incluem no entendimento da

aprendizagem variáveis mentais ou cognitivas ainda se mantém no modelo

behaviorista? Como essas novas variáveis atuam na aprendizagem? Para responder a

essas perguntas analisaremos uma vertente importante dos estudos cognitivos conhecida

como “Teoria Social Cognitiva” cujo principal expoente é o psicólogo americano Albert

Bandura. Herdeiro da tradição behaviorista, mas descontente com esta por ter

considerado unicamente os aspectos reforçadores do ambiente físico e social, Bandura

tentará acrescentar às ferramentas comportamentalistas fatores cognitivos que atuariam

como mediadores no processo de aprendizagem. Ciente de que a aprendizagem humana

é iminentemente social, Bandura, ao contrário de Skinner, sente a necessidade de

incorporar a variável cognitiva a ela.

Segundo Juan Ignácio Pozo (2004) a teoria de aprendizagem social de Bandura

realiza de modo explícito uma abordagem mista a respeito da aprendizagem,

considerando tanto aspectos comportamentais próprios do behaviorismo como

formulações cognitivas. Bandura julga necessário implementar modificações nos

princípios behavioristas, introduzindo características cognitivas na explicação da

aprendizagem, mas tentando, ainda, manter-se fiel àquela tradição comportamentalista.

Segundo ele as condutas humanas são iminentemente sociais e adquiridas, o que aponta

para a importância do meio social em sua constituição. Porém, ainda que tentando

preservar facetas importantes do funcionalismo behaviorista, Bandura julga necessário

acrescentar aspectos indiretos ou cognitivos como mediadores no processo de aquisição

das condutas. Para ele, na aprendizagem social aprendemos mais de modo indireto que

de modo direto. A noção de condicionamento e, portanto, a influência das contingências

ambientais continua pertinente, todavia sua atuação deve ser cognitivamente mediada. O

reforço atua melhor quando há seu reconhecimento. As reações condicionadas são em

80

grande parte “auto-ativadas”, portanto cognitivamente selecionadas, a partir das

expectativas geradas por nossas experiências passadas, e não por processos diretamente

evocados. O mecanismo de automatização direta behaviorista cede lugar a um processo

de automatização mediado pelo reconhecimento cognitivo, que analisando as

circunstâncias presentes, evidencia nos repertórios adquiridos aquele que melhor se

ajuste à situação problema. Os efeitos de nossos comportamentos continuam sendo

importantes na determinação de nossas condutas futuras, mas ao invés de um

reforçamento direto, esse efeito fornece informações, que geram hipóteses, que aí sim

serão testadas e, se bem sucedidas, produzirão efeitos reforçadores. A influência do

efeito deve ser analisada cognitivamente para que gere conseqüências reforçadoras no

comportamento futuro.

Quando as pessoas observam os resultados de seu comportamento e do comportamento dos outros, elas desenvolvem hipóteses sobre as prováveis conseqüências de produzir aquele comportamento no futuro. Essa informação serve de guia para o comportamento subseqüente. As hipóteses exatas produzem bons desempenhos e as hipóteses inexatas levam a um comportamento ineficaz (HALL, 2000, p. 463).

O reforço passa a ser muito mais uma operação informativa e motivacional do

que um mecanismo automático e probabilístico. Para tanto, Bandura considera o

conceito de regulação mais apropriado do que o de reforço. Uma diferença é que toda

regulação é antecedente e não conseqüente. O bom regulador se antecipa ao evento e

por isso fortalece uma conduta futura adequada. Na noção de reforço o que importa são

os efeitos de uma ação, desconsiderando aspectos cognitivos como a atenção e o

entendimento. Bandura vai desconsiderar a existência de uma ação “cega” e casual

como base da aprendizagem, inserindo a importância de uma atenção antecipatória

guiada por um modelo cognitivo. Como construímos esse modelo antecipatório?

Através de observações atentas das condutas realizadas pelo agente ou por outras

81

pessoas. A observação de si e dos outros vai gerar modelos ou esquemas que vão

regular nossas ações futuras em circunstâncias semelhantes.

Desse modo, toda conduta é regulada por um modelo cognitivo antecipatório

que se desenvolve a partir de representações mentais das condutas. Na teoria

skinneriana, o reforço age retrospectivamente fortalecendo uma resposta imitativa em

uma associação às circunstâncias anteriores. Para Bandura, entretanto, o reforço facilita

a aprendizagem por permitir que o iniciante atento antecipe (mentalize) a conduta e com

isso possa ensaiar (na prática ou de modo mental) o comportamento observado. Não há

para Bandura necessidade de uma ação direta do reforço sobre a conduta, mas sua ação

é mediada por representações mentais.

Nessa forma de entendimento da aprendizagem, na qual a cognição desempenha

papel de destaque, Bandura sente a necessidade de desenvolver o conceito de “auto-

reforçamento”. Segundo ele, todo comportamento produz sempre dois tipos de

conseqüências: auto-avaliações e resultados exteriores. As últimas teriam um maior

valor de aprendizagem se compatíveis com as primeiras. Não basta efetuar uma

atividade de acordo com a situação, mas aquela deve ser compreendida pelo sujeito da

ação, para que este possa não só repeti-la, como aperfeiçoá-la. Não basta ser eficaz, tem

que se saber eficaz. Poderíamos nos perguntar se esta consciência daquilo que devemos

fazer atua como uma espécie de senso moral ou um guia de nossos deveres. Bandura

esforça-se por mostrar que não é um controle moral, do certo ou do errado, do justo ou

injusto, mas apenas uma consciência prática e utilitária, do adequado e do inadequado.

O “auto-reforçamento” não atua apenas a partir da atenção que temos dos efeitos

de nossas próprias condutas, mas a simples observação da conduta dos outros e das

conseqüências reforçadoras de suas ações podem perfeitamente regular nossos

comportamentos em situações semelhantes. Bandura denomina esse tipo de

82

reforçamento indireto de “reforço vicariante”. O indivíduo pode ser reforçado sem ter

feito nada, apenas observando atentamente os outros se comportarem. Segundo esse

psicólogo a maioria das situações da aprendizagem humana são desta natureza, tendo

como princípios quatro processos constituintes: Atenção, Retenção, Produção e

Motivação.

A atenção inicia o processo da aprendizagem observacional ou vicariante na

medida em que ninguém pode aprender se não estiver atento aos aspectos significativos

do comportamento a ser modelizado. Para Bandura não basta observarmos algo para

aprender, devemos estar atentos, destacando alguns aspectos da situação observada. A

atenção desempenha a função de selecionar o que deve ser fixado ou retido. Todavia,

não basta estarmos atentos, as circunstâncias dos eventos observados devem facilitar

essa escolha, sendo apresentadas com eficácia e simplicidade repetidas vezes,

despertando nossa atenção. Condutas complicadas e não eficazes dificultam nosso foco,

podendo, portanto passar despercebidas. Mas não podemos considerar, apenas, os

aspectos exteriores para explicar o funcionamento da atenção, já que nossos

conhecimentos e orientações atuais influenciam diretamente naquilo a que prestamos

atenção. Tanto as características do observador (sujeito cognoscente) quanto do modelo

observado (objeto cognoscível) influenciam, em geral juntas, o processo atencional.

Não havendo uma sintonia entre esses dois aspectos da atenção, dificilmente estaremos

numa circunstância adequada de aprendizagem. Podemos perfeitamente afirmar, a luz

da teoria de Bandura, que a atenção é fundamental para a seleção dos aspectos

subjetivos e objetivos próprios à aquisição de habilidades e de que não há espaço nessa

teoria para um aprendizado da atenção. Esta atua como uma condição da aprendizagem,

não podendo, portanto ser aprendida.

83

Após selecionarmos atentamente aspectos relevantes do modelo observado e de

modelos antigos retidos em nossa memória, devemos reproduzi-lo mentalmente para

que possa ser fixado por essa aptidão para recordar. Para Bandura, o modelo observado

só pode ser reproduzido pelo aprendiz se houver uma retenção codificada mentalmente.

O aprendiz retém na mente representações simbólicas (imagens ou signos verbais) do

evento observado. Tal como no processo atencional, a retenção é influenciada tanto pelo

modelo observado quanto pelos conhecimentos e expectativas do principiante. O Evento

que nos serve de modelo ocorre e o aprendiz observa atentamente fixando ou retendo na

memória uma representação simbólica do mesmo. Nesse sentido, acontecem dois

processos de escolha fundamentada procedentes do ambiente. Um próprio à atenção e

outro próprio à memória. Ambos entendidos como condição para um aprendizado

adequado e eficaz.

O próximo passo é reeditar o comportamento selecionado e retido, o que

significa traduzir o conhecimento em ação, a representação em atividade. Essa fase da

aprendizagem vicariante é denominada por Bandura como “processo de produção”. Na

verdade o que ocorre é uma reprodução do comportamento eficaz por meio de um

modelo cognitivo. O esquema de aprendizagem vai dos atos para sua representação e

parte desta para ser executado. Tal como nas etapas anteriores, não basta ao iniciante

ter efetuado uma boa e atenta análise e por sua vez conseguido apreender com eficácia o

modelo observado para que ele possa executá-lo. As condições prévias do aprendiz,

tanto motoras como cognitivas, ajudam ou atrapalham a atualização do modelo retido,

assim como as circunstâncias do meio onde o aprendizado ocorrerá também. Seja numa

aprendizagem atlética ou intelectual, a estrutura prévia do seu corpo, bem como da

cognição influenciam na aprendizagem observacional. Portanto, não basta representar

adequadamente um modelo, mas é necessário realizá-lo, colocá-lo em prática. Para tanto

84

deve-se aprender a realizar o modelo e avaliar as circunstâncias propícias. Os resultados

serão avaliados e corrigidos, gerando novos modelos do auto-reforçamento, que por sua

vez acarretarão novas metas e assim por diante, num processo em que a ação é guiada

por modelos mentais forjados a partir das experiências de si ou dos outros.

Entretanto, nem tudo que aprendemos ou que sabemos fazer são transformados

em ações, mesmo que as circunstâncias sejam adequadas. Nesse sentido, Bandura

acrescenta à descrição um quarto elemento que integra com os outros o processo de

aprendizagem social, a motivação. Para ele há uma diferença entre adquirir uma

habilidade e encená-la, entre habilidade e desempenho. Podemos ser habilidosos,

portanto possuir modelos de condutas adequados às situações e por sua vez não

conseguir desempenhá-los adequadamente. Não basta saber fazer, é necessário, segundo

essa teoria, acreditar que podemos fazer. Para que algo que aprendemos seja encenado é

preciso um incentivo. Não se trata de um reforçamento, mas de um processo

motivacional. Devemos construir uma crença de que somos capazes de realizar o

modelo aprendido. A motivação Bandura chamou de “percepção de auto-eficácia” que

é definida por ele “como um julgamento pessoal da capacidade para organizar e

executar cursos de ação para alcançar metas designadas” (BANDURA apud

BORUCHOVITCH, 2006, p. 93). Aquela pode ser obtida direta, indiretamente

(vicariante) por persuasão social ou por estados físicos e emocionais.

A experiência direta é a fonte de informação mais importante de auto-eficácia, pois se baseia na realização do indivíduo. (...) As informações obtidas por meio da observação e comparação com modelos sociais constituem a segunda fonte de auto-eficácia. (...) a outra fonte de informações diz respeito à percepção dos estados físicos e emocionais como ansiedade, estresse, cansaço, dor, alegria, bem-estar etc. (AZZI, 2006, P. 16)

Uma auto-eficácia bem realizada, por sua vez, estabelece um elevado nível de

motivação que se traduz em maior esforço, persistência perante as dificuldades e

85

obstáculos, propósitos mais condizentes com o aprender e com o interesse em cumprir

as metas.

Para explicar a importância da auto-eficácia, Bandura distingue dois

componentes na regulação da aprendizagem: O primeiro é o de uma “expectativa de

eficácia” e o segundo é o de uma “expectativa do resultado”. A expectativa de eficácia

diz respeito à convicção de que podemos realizar o comportamento indicado, enquanto

a expectativa de resultado indica a crença da pessoa de que dado comportamento levará

a dado resultado. A primeira é uma regulação do relacionamento entre o sujeito e o

comportamento, e a segunda entre o comportamento e a circunstância. Podemos estar

convencidos do que fazer (boa expectativa do resultado), mas não nos sentirmos

capazes de realizar (baixa expectativa de eficácia); ou podemos nos sentir capazes,

entretanto não sabermos o que fazer. A auto-eficácia percebida não garante o sucesso da

aprendizagem:

Entretanto, dadas as habilidades apropriadas e os incentivos adequados, as expectativas de eficácia são um determinante maior da atividade que a pessoa vai escolher, de quanto esforço vai dispender e de quanto tempo vai manter o esforço de lidar com situações estressantes. (ibidem, p. 17.)

O acento dado por Bandura aos aspectos cognitivos da aprendizagem social

indica uma consideração das dimensões valorativas e intencionais no aprendizado de

uma atividade qualquer. Tal atitude se afasta da posição reducionista e fisicalista do

Behaviorismo Radical. Mas ainda mantém o cerne do comportamentalismo, na medida

em que aprender é adaptar-se ao ambiente, mesmo que mediado por aspectos

cognitivos. O fundamento da aprendizagem ainda gira em torno da idéia de adequação

eficaz às situações. Centrado na idéia de controle do reforço, Bandura inova

introduzindo a dimensão do auto-controle, de uma aprendizagem auto-controlada. Mas

ainda é a antiga idéia de aprendizagem como adequação, própria às psicologias da

aprendizagem tradicionais.

86

Para aprender capoeira o importante ainda seria, tal como no Behaviorismo

Radical de Skinner, nossa adequação ao ambiente físico ou social desta prática. Ao

esforço corporal segue-se um esforço mental ou cognitivo, de um controle pessoal e

subjetivo que analise todas as situações pessoais (cognitivo e afetivo), comportamentais

e ambientais para gerar uma conduta adequada. Este controle passa por uma

ambientação real ou antecipatória que nos acostume a lidar com as situações exigidas.

Este reforçamento mental e físico parece levar a uma dessensibilização do aprendiz, que

caminha sempre no sentido da automatização. Podemos até melhorar nosso

desempenho, mas esta melhora é acompanhada por uma performance que privilegia o

automático, que não diz respeito a nenhuma capacidade de improvisar e inovar. Ainda

se trata de um modelo de aprendizagem centrado em automatização. Os aspectos

cognitivos atuam apenas para otimizar nossa capacidade de agir adequadamente. Tanto

o aprendiz quanto o perito são explicados pela adequação às circunstâncias, que atuam

como elemento modelador, direta ou indiretamente. Não há espaço para a inovação.

Respondemos melhor ou pior, mas a todo momento estamos constrangidos a responder

adequadamente. Permanecemos ainda em um entendimento da aprendizagem como a

aquisição de uma habilidade, como uma busca constante de nos adaptarmos às

circunstâncias que condicionam a forma de aprender. Mesmo levando em conta a

cognição, a teoria de aprendizagem social de Bandura permanece dentro dos princípios

funcionais e utilitaristas da tradição behaviorista.

87

2.4 – A circularidade da ginga na capoeira Angola e os problemas de uma aprendizagem das habilidades

Considerando este aprendizado como um treinamento de habilidades físicas e

mentais que leva o jogador a adquirir movimentos cada vez mais automáticos e

precisos das situações do jogo, nos perguntamos sobre a eficácia desse modo de

entender o aprendizado para dar conta do jogo de Angola. Seria adequado o

adestramento físico e mental às práticas da capoeira Angola? Como encaixar tais

movimentos acrobáticos às situações paradoxais que os movimentos da ginga do

angoleiro apontam?

Muitas vezes, e isto é muito comum até mesmo dentro da capoeiragem,

pessoas estranhas ao jogo de Angola descreverem essa prática como uma capoeira

jogada devagar, comum aos mais velhos, que não conseguem realizar os

“verdadeiros” movimentos acrobáticos da capoeira. Mas com a aproximação e

vivencia na roda de Angola, notamos que ela não é mais lenta, mas é, sobretudo, mais

pausada. A ginga e diversos outros golpes devem, como vimos no início deste

capítulo, desempenhar um estranho e paradoxal movimento, que insinuam o tempo

todo a possibilidade de paradas, instantes de hesitação que quebram a continuidade

natural e previsível dos golpes. Mas, surpreendentemente, essas quebras não devem

conduzir necessariamente à perda da continuidade dos movimentos, e por ventura à

queda. Ludibriar o oponente sem perder a continuidade do movimento parece ser uma

das sabedorias própria da ginga na Angola. Se o movimento é continuo, sem paradas

de hesitação, o adversário pode antecipá-lo e neutralizá-lo. Sobre isso nos diz Mestre

Pastinha:

A palavra ‘ginga’, em capoeira, significa uma perfeita coordenação de movimentos do corpo que o capoeirista executa com o objetivo de distrair a atenção do adversário para torná-lo vulnerável à aplicação de seus golpes.

88

Os movimentos da ginga são suaves e de grande flexibilidade – confundem, facilmente, a quem não esteja familiarizado com a capoeira, tornando-o presa fácil de um agressor que conheça esta modalidade de luta. (PASTINHA, 1988, p. 50)

Como manter a continuidade de movimentos sem reduzi-los a um

automatismo que seria fatal num jogo como a Capoeira Angola? Como conciliar a

suavidade de movimentos contínuos imersos em zonas de hesitação e paradas?

Num texto publicado na década de oitenta, Francisco Varela (1981) esboça o

que ele denomina de circularidade criativa. No início do artigo, apresenta a figura do

renomado artista holandês Escher, na qual duas mãos se desenham mutuamente,

numa estranha e paradoxal circularidade. Diz ele:

Uma mão se alça do papel e se eleva a um mundo mais vasto. Quando pensamos que abandonou definitivamente o plano de origem, eis que ela recai novamente sobre ele e desenha seu próprio relevo na folha branca. Um círculo se fecha e ao mesmo tempo dois planos coincidem, superpõem-se, confundem-se. Nessa coincidência observa-se que o que desejamos manter em campos separados é inseparável (VARELA, 1981, p. 302).

O segredo em descrever os círculos criativos é a paradoxal situação em que

planos distintos – desenho da mão e a mão que desenha, ao mesmo tempo que se

separam para se destacarem –, permanecem juntos, surgem com características

próprias sem que possam se apartar do seu próprio processo de produção. Os produtos

encontram-se juntos ao processo de produção. Nesta circularidade criativa elementos

que normalmente são pensados como dicotômicos e separados como opostos,

mesclam-se num acoplamento de mútua implicação. Abrindo o movimento para

bifurcações criadoras, que paradoxalmente impedem que os contrários se oponham.

Observando esta obra de Escher fica difícil determinar uma origem do desenho, e

muito menos o seu fim. Algo semelhante ocorre com o movimento da ginga, no qual

planos distintos se destacam sem conseguir se separar, equilíbrios e desequilíbrios,

ataques e defesas. Tal circularidade pode ser quebrada em situações padronizadas de

treinamento, nas quais os exercícios ficam presos à imitação de modelos. Gingar é

89

manter o movimento, porém, como estamos procurando mostrar, essa movimentação

constante e circular, comporta de modo paradoxal hesitações e paradas que se diferem

sem se opor. Pelo contrário, permitem que os movimentos se justaponham em

hesitações, alargando de modo surpreendente suas possibilidades, numa circularidade

criativa. “Circularidade” porque há uma dupla determinação, que impede a abertura

da causalidade linear, “criativa” porque nesse processo tanto o movimento quanto as

paradas se diferenciam, trazendo sempre a dimensão da surpresa e da

imprevisibilidade.

Diante desta característica muito peculiar do movimento da ginga no jogo de

Angola, podemos nos perguntar como aprender a gingar sem cair nas formas usuais

de aprendizagem como adequação a modelos prévios. Como se adequar a um

movimento circular e criativo que de algum modo resiste a uma modelização? Será

que o aprendizado da capoeira Angola nos oferece de singular não é um jeito de

ensinar e aprender o qual se afasta da adequação aos modelos?

Incapaz de ser imitada ou representada em conceitos ou fórmulas, a própria

experiência da ginga na capoeira Angola força o aprendiz a experimentar e sustentar a

estranha e paradoxal situação desses movimentos circulares. Não há, portanto, no

ensino do movimento da ginga um privilégio à preparação física e mental como

aspectos determinantes, mesmo que o aprendiz acabe desenvolvendo o seu físico e

ampliando o seu conhecimento da capoeira. O que destacamos é que conhecer

capoeira ou realizar seus movimentos de modo automático não torna ninguém um

bom capoeirista. Nesse sentido o aprendizado da capoeira Angola vai criando

situações em que o modelo atlético e intelectual seja “furado”, propiciando situações

paradoxais em que somos forçados a gingar. A imitação, repetição e reforçamento dos

modelos, do aprender como o Mestre, cede lugar a um aprendizado com o Mestre, em

90

que inspirados no seu jogo, buscamos encontrar o nosso. É claro que existe uma idéia

de cópia no aprendizado com, mas esta deve ser entendida como a oportunidade para

se contagiar pelo que o outro faz. A imitação como entusiasmo criador nos leva para

além do modelo, ou melhor não imitamos mais, ao contrário, nos contagiamos por

práticas e movimentos que nos servem de inspiração para continuarmos a

experimentar o aprendizado do jogo de Angola. Imitar para diferir é outra forma

paradoxal do aprendizado da ginga, que nos força a encontrar na experiência o tempo

de nossa ginga, já que a pura e simples adequação aos movimentos básicos da

capoeira Angola e seu arremedo pode nos levar a desenvolvermos uma espécie de

ginga automática, que romperia o círculo criativo.

O aprendiz vai aos poucos encontrando nos treinamentos e nas rodas, com a

incrível e paradoxal situação do movimento da ginga, numa continuidade com

pequenas hesitações ou falsos desequilíbrios que abrem o movimento para uma

continuação circular inesperada. Essas zonas de equilíbrio precário da ginga

incorporam ao movimento da capoeira determinadas paradas ou hesitações, que

servem para falsear a continuidade deste, como que abrindo perspectivas de

bifurcações que surpreendam o adversário sem que o movimento perca sua fluidez. A

ginga atravessa por momentos de indeterminação, ou de pequenas interrupções

desequilibrantes que dificultam antecipar os movimentos seguintes. Tais hesitações

ludibriantes assumem na capoeira Angola várias formas, e cada jogador deve ir

descobrindo no seu aprendizado como encontrá-las no seu jogo.

Porém, existe um movimento próprio ao jogo da Angola que encarna a

necessidade de ludibriar o adversário conhecido como parada de chamada ou

chamada de mandinga. Nesse movimento um dos oponentes interrompe o seu jogo,

permanecendo parado ou fazendo pequenos movimentos no mesmo lugar, esperando,

91

ou melhor, desafiando o adversário a se aproximar. Existem diversas posições para a

chamada, como se posicionar de frente ou de costas para o colega de braços abertos,

ou com um dos braços levantados etc. O adversário, no seu tempo e com extremo

cuidado, aproxima-se do oponente, buscando, também a seu modo, impedir que este

saiba como e quando irá abordá-lo. Para isso este realiza, sempre a seu tempo,

movimentos de aproximação. Com extrema cautela, realiza movimentos de defesa,

escora de baixo para cima o corpo do oponente, protegendo-se dos golpes da perna,

cotovelos, mãos e cabeça. Após essa ludibriante proximidade os oponentes se

encontram para iniciar movimentos como numa dança a dois, até que, também no seu

tempo, voltem ao jogo.

A chamada é considerada pelos angoleiros como um dos momentos mais

perigosos e traiçoeiros, justamente porque de uma pessoa parada podem advir golpes

inesperados. Aprender a hesitar, ou a não responder afoitamente com um movimento

ou seqüência, talvez seja uma das principais características desta arte. Não responder

diretamente aos estímulos, aprendendo a parar o movimento sem quebrar a sua

suavidade. Aproveitar as circunstâncias do jogo, criar movimentos inesperados,

ludibriar o adversário, surpreendendo-o com golpes, é uma das principais

características da ginga na capoeira Angola.

Nos parece ser este também o sentido que normalmente damos a jogadores de

outros esportes, quando conseguem realizar jogadas que fogem ao previsível do jogo.

É comum, por exemplo, no futebol, ser atribuída aos jogadores brasileiros a

capacidade de serem bons “gingadores” no trato da bola. Ronaldinho Gaúcho,

Romário, Garrincha são considerados exímios gingadores da bola. Escapam,

surpreendem os marcadores com jogadas inesperadas e belas, que mesmo não

resultando em gol encantam a platéia e principalmente os amantes do futebol.

92

De algum modo o corpo do aprendiz vai cultivando uma atenção ao tempo

desse estranho movimento. Mais do que um aprendizado centrado na atividade de

movimentos como respostas condicionadas às situações do jogo, o aprendizado da

ginga abre-se para a atenção. Esta não é tratada, como em Bandura, como uma

condição seletiva dos estímulos a serem aprendidos, mas como um processo que deve

ser cultivado e aprendido. A atenção da ginga deve ser aprendida. Mas que atenção é

essa que aprendemos com a capoeira Angola? Virgínia Kastrup (2004) num texto em

que discute o aprendizado da atenção inventiva, discute alguns problemas que podem

nos ajudar a entender o aprendizado da ginga. Diz ela:

Os problemas de atenção comparecem hoje em dia na escola, na clínica, nos ambientes de trabalho e nas famílias. É cada vez mais freqüente o diagnóstico de TDA – Transtorno de déficit de atenção – que tem como sintomas baixo rendimento na realização de tarefas, dificuldades de seguir regras e desenvolver projetos a longo prazo e a cujo quadro pode estar associado a hiperatividade e à impulsividade. No contexto escolar o problema é diretamente colocado como incidindo sobre a atenção que é requerida no processo de aprendizagem (KASTRUP, 2004, p. 02).

O que está em jogo nesse processo de aprendizado da atenção é o modo como

fazer com que as pessoas se concentrem mais nas tarefas que lhes são propostas.

Dessa maneira, estar atento é condição sine qua non para que o desempenho da tarefa

se realize com sucesso. Se não estivermos atentos, a nossa aprendizagem, para com as

tarefas propostas, não ocorre. Haveria, portanto dois funcionamentos da atenção, um

estado atento e outro desatento, que de alguma forma estaria inapto para responder

adequadamente às tarefas propostas.

Kastrup (Idem, p.04) propõe “uma ampliação do conceito de atenção em

relação ao ato de prestar a atenção a tarefas e de buscar informações”. Propõe com

isso entender a atenção como um processo variável e não binário, entendo haver tipos

ou formas de se estar atento, escapando da dicotomia presença ou ausência dela.

Desse modo podemos nos perguntar se a atenção que utilizamos na ginga é a mesma

que usamos no conjunto de operações necessárias a tarefas cotidianas, como, por

93

exemplo, ver televisão. O efeito provocado pela ginga, de que nos fala acima Mestre

Pastinha, como um elemento importante de envolvimento ludibriante do oponente,

pode ser considerada como um estado desatento ou como uma outra forma de

atenção? A atenção seria reduzida a um processo de focalização ou poderia existir na

atenção distraída ou uma concentração desfocada? O que nos parece importante frisar

aqui é que o modo de se compreender a atenção como um estado consciente e focado

é incompatível com o movimento da ginga. Imerso nesse estado de imprecisão, no

qual as continuidades do movimento são atravessadas de hesitações e paradas, o

capoeira que está totalmente focado no oponente acaba por ceder aos estímulos,

respondendo afoitamente às armadilhas da ginga.

Nesse sentido, podemos dizer que a ginga exige um funcionamento desfocado

da atenção, uma espécie de atenção flutuante, semelhante a um caçador que num

estado de espreita espera algo que ele não sabe bem quando, de onde e de que modo

virá. Esse estado de espreita é muito parecido com o aprendizado antigo dos capoeiras

que “de oitiva” aguardavam no cais do porto acontecimentos referentes ao trabalho

que podia ou não acontecer. Diferente de situações nas quais o que importa é o foco, a

atenção da ginga exige uma espécie de distração atenta. Uma atenção à duração

(Bergson, 1934/1962), que supõe um problema temporal e não espacial. A prática da

ginga, portanto, seria simplificada se reduzida à prática dos seus movimentos. Mais

do que isso a dificuldade em jogar capoeira não está em saber ou não realizar os

movimentos com destreza, mas principalmente encontrar o tempo para o golpe. Como

vimos acima com Mestre João Pequeno, os movimentos da capoeira são poucos,

cerca de nove, que multiplicados por dois ou três daria no máximo vinte e sete

variações. Como o jogo da capoeira não se confunde com a execução espacial dos

golpes e sim com o tempo de execução deles, a variedade de jogos alcança o infinito.

94

O aprendiz vai, portanto, do seu modo e a seu tempo, forçado pelas inúmeras

situações de jogo, cultivando uma atenção distraída ou desfocada ao tempo do

movimento. A isto, o que é raro e que não se repete, que surge sem avisar, que

desaparece sem deixar rastros: o tempo da oportunidade.

Quando Garrincha ganhou fama internacional com as conquistas das copas de

1958 e 62, vários técnicos e marcadores estudaram seus estonteantes dribles e

descobriram estupefatos que o seu principal recurso era um movimento muito simples

e pouquíssimo original. Driblava sempre com a perna “direita”, para a “direita” no

canto “direito” do ataque. Inúmeros marcadores treinavam exaustivamente um modo

adequado para marcar “Mané”16 e o resultado era um “baile” do jogador brasileiro. O

drible de Garrincha não podia ser compreendido por uma análise de seus

movimentos, mas pelo tempo de sua execução. O que era absolutamente simples e

repetitivo enquanto movimento, ganhava uma dimensão sublime enquanto drible. Tal

como Mané um bom jogador de capoeira Angola não é aquele que varia o tempo todo

seus movimentos, mas que o espera distraído, executando-os de modo inesperado e

preciso “no tempo” e não de acordo com o espaço. Para aprender a gingar, devemos

portanto cultivar uma atenção desfocada ao tempo do movimento, aprendendo a não

reagir imediatamente às situações do jogo, a não ceder aos estímulos.

De algum modo o corpo do aprendiz vai cultivando uma atenção ao tempo

desse estranho movimento que é a ginga. Movimento extensivo e intensivo aberto a

bifurcações temporais. Quem já viu dois bons angoleiros jogando deve ter se

surpreendido com o entrelaçar dos corpos numa plástica de dobras ao infinito, já que

os golpes não interrompem definitivamente o movimento – em momento nenhum

podemos segurar o movimento. A estratégia tanto de defesa quanto de ataque não é

16 Modo como Garrincha era chamado por seus colegas.

95

interromper o movimento, mas aproveitá-lo a seu favor, sem abrir demais sua guarda.

O aprendiz da ginga imerso nesse estranho e paradoxal movimento circular é levado a

cultivar uma experiência corporal atenta às dobras dos paradoxos, da continuidade

descontínua, da abertura fechada, do equilíbrio precário, do se mostrar dissimulando.

Esse estranho modo circular e inventivo de gingar, que de algum modo é

comum à tradição brasileira17, ao samba, ao futebol entre outros, pode ser aprendido?

Vimos, em consonância aos modelos do behaviorismo e do cognitivismo

comportamental de Bandura, que a aprendizagem é entendida como um processo de

aquisição de habilidades, como uma passagem de um não-saber para um saber, que

como tal, é avaliado como um estado adquirido, como um modo de ser geral e

permanente. A transformação é tratada apenas como um estágio intermediário entre

um saber inadequado e um saber adequado, como a passagem de uma inabilidade

para uma habilidade. Essa compreensão acaba por reduzir a aprendizagem da ginga à

uma passagem de movimentos lentos, desequilibrados, hesitantes e descontínuos para

movimentos rápidos, automáticos, equilibrados e contínuos. Incapazes de pensar os

movimentos da ginga numa tensão dinâmica, circular e paradoxal desses pólos

tratados como opostos e excludentes, a psicologia comportamental e cognitiva

acabam sendo insuficientes para compreender o processo de aprendizagem da ginga

na capoeira Angola.

Câmara Cascudo (2001) após uma viagem à África, onde foi buscar os relatos

orais da cultura africana e suas sintonias com os aqui existentes, escreve o livro

intitulado “Made in África”. Num dos capítulos deste livro cujo titulo é “A Rainha

Jinga no Brasil”, Cascudo apresenta através da memória oral dos africanos a história

da rainha Jinga que viveu em Angola por volta do fim do século XVI e início do XVII.

17 Veremos mais a frente a importância da tradição no aprendizado da capoeira Angola.

96

“(...) uma soberana autêntica, na legitimidade de todas as tradições africanas, luxo,

armas, festins, invasões de fronteiras, massacres de suspeitos, consolidação militar”

(Idem pg 36). Guerreira contumaz Jinga é lembrada por suas habilidades de resistir ao

julgo da colonização portuguesa em Angola. “Rendeu-se várias vezes. Ficava serena,

gentil, concordadora, até que brilhasse a hora da reação. Erguia o braço de comando e

os batalhões negros atiravam-se contra os portugueses” (idem pg 33). Mas à frente de

seu texto Cascudo nos mostra como hoje nas tradições brasileiras uma das únicas

rainhas africanas que permanece na memória do povo é a rainha Jinga. A guerreira que

não se mostra inteiramente, que não se deixa ser plenamente identificada pelo inimigo

que por isso é sempre surpreendido. Exemplo de uma guerra de resistência, que alterna

a violência dos combates com momentos de diplomacia e sedução ao colonizador. O

movimento da ginga na capoeira talvez traga consigo tais características. Numa luta

em campo aberto (capoeirão) onde seu corpo é sua arma tanto de defesa quanto de

ataque, a ginga apresenta-se como um movimento de espreita e dissimulação sem

poder se esconder numa tocaia. De novo observamos o caráter paradoxal dessa luta. O

lutador deve seduzir o oponente, oferecendo facilidades, abrindo suas guardas, criando

armadilhas para que este tenha a sensação da facilidade do golpe. O adversário certo de

sua vitória sempre é um oponente mas fácil de ser derrotado, já que displicente, ataca

sem se defender. A ginga astuta não só se defende mas nessa defesa abre a estratégia

do ataque. Do mesmo modo o ataque proveniente de um angoleiro deve considerar

também a defesa. Atacar e defender não são aqui dois movimentos isolados mas que

jogam juntos numa circularidade paradoxal. Nessa luta defender é atacar e atacar é

defender. Para que isso seja possível é necessário que todo o golpe seja velado, pois o

aspecto defensivo do ataque é sempre dissimulado assim como o aspecto ofensivo da

defesa. Mas uma vez a capoeira angola penetra os seus movimentos numa zona de

97

indeterminação, onde os golpes de ataque e defesa sempre agem de modo dissimulado.

O angoleiro é levado por seu mestre a soltar sua ginga para que ela seja bem manhosa,

malandra, mandingada.

Partindo dessa dimensão circular e paradoxal – entre equilíbrio e desequilíbrio,

continuidade e hesitações, paradas e movimento – do aprendizado da ginga é que nós

vamos, no capítulo seguinte, tratar o tema do aprendizado da capoeira Angola como

algo mais que um treinamento para aquisição de habilidades atléticas e sociais.

Mostraremos como o aprendizado da capoeira Angola tenta resistir às transformações

da transmissão da capoeira ao que Luiz Renato Vieira (1998) chamou de “ethos da

eficiência”. Segundo ele este se define “(...) por oposição ao que chamamos (...) de

ética da malandragem, integrando-se a uma leitura metódica e racional do mundo

com vistas ao incremento da eficiência” (VIEIRA, 1998, p. 131). Dentre inúmeras

características o autor destaca, como marco dessas transformações, as inovações

instituídas por Mestre Bimba na concepção pedagógica da capoeira Regional, que

vão se afastando do ethos popular e “sem método” do aprendizado da capoeira

Angola. Luiz Renato descreve essas mudanças como a transformação da “ética da

malandragem” – imersas na informalidade própria aos espaços da capoeira tradicional

ou Angola – por práticas de ensino que visam a “(...) inculcação dos princípios da

obediência, disciplina, organização e respeito à ordem (...)” (idem, p. 158). Continua

o autor:

Certamente não foi em função de seu caráter lúdico e improvisado que a capoeira obteve uma significativa ascensão social a partir de Mestre Bimba. Ao contrário, apenas na medida em que se procurava suprimir a ‘brincadeira’ ou a ‘vadiação’ da luta é que sua aceitação por parte de setores sociais privilegiados tornou-se possível. A capoeira Regional consubstancia um esforço de eliminação, ainda que muito mais presente no âmbito discursivo do que na prática, dos aspectos da capoeira tradicional que estivessem de alguma forma comprometidas com o que chamamos, no capítulo anterior, de ética da malandragem. (idem, p. 163)

98

O aprendizado da capoeira vai se tornando, ao longo do século XX, segundo

Vieira, uma prática disciplinada de treinamentos que visam o rendimento ou a

eficiência do jogar capoeira, perdendo ou pelo menos diminuindo a influência dos

fatores lúdicos, das brincadeiras das rodas de rua, em prol de um treinamento, quase

militar, dos movimentos e golpes. Tal posição nos parece ter de algum modo reduzido

o aprendizado da capoeira, por desconsiderar a importância dos fatores políticos,

estéticos, éticos e místicos que atravessam seu mundo, os quais deveriam e devem

estar presentes na compreensão do aprendiz.

Vimos como a noção de habilidade social reduz todo o processo de

aprendizagem ao plano pessoal, “(...) como um conjunto de desempenhos

apresentados pelo indivíduo diante das demandas de uma situação interpessoal” (DEL

PRETTE, 1999, p. 47). Esses desempenhos podem ser adequados ou não a estas

demandas e os indivíduos devem treinar para adquirir uma competência social que é

definida como: “(...) a capacidade de o indivíduo expressar-se honestamente, defender

direitos, atingir objetivos próprios e de outrem, maximizando as conseqüências

positivas e com perda mínima de reforçadores”. (idem, p. 47-48). Tentaremos no

próximo capítulo abordar, à luz da capoeira Angola, modos de aprendizado que

resistem ao “ethos da eficácia”.

99

CAPÍTULO III - Aprendizado da capoeira angola como um cultivo na e da

tradição

Vimos no capítulo anterior que a noção de habilidade acaba por reduzir o

aprendizado da capoeira Angola a um condicionamento físico e mental de certos

movimentos previamente estabelecidos. Tal compreensão não dá conta do caráter

circular e criativo do jogo da Angola. Buscando, neste capítulo, ampliar o sentido de

aprendizado da capoeira, vamos inicialmente propor uma mudança no modo como

iremos nomear o processo de aprendizado da capoeira. No dicionário encontramos

alguns sentidos para o termo cultivar. Dentre estes destacamos aquele que se

aproxima do ato de plantar. Cultivar é “dar condições para o nascimento e o

desenvolvimento de (uma planta)” (FERREIRA, 1993, p. 97). Portanto não é apenas

o processo de plantio, mas tudo aquilo que lhe envolve. No cultivo a relação

plantador e planta não é de submissão, mas de imbricação e complementação, tanto o

plantador cultiva a planta quanto esta também cultiva nele o interesse pelo cultivo.

Esse fato permite ao plantador um “Dedicar-se, aplicar-se a” (FERNANDES, 2000),

dispondo de tempo e principalmente de cuidado que permite o desenvolvimento de

uma atenção que lhe propicia “ver” o processo de dentro, acompanhando-o.

Cultivar aproxima o aprendizado a um processo de criação, no sentido de criar

uma planta, um animal ou um filho. Neste processo de criação o controle e o

resultado não são mais tão importantes, abrindo o caminho para um processo de

cuidar, dando condições para que as sementes se desenvolvam, permitindo que elas se

expressem. Exige, portanto uma mútua imbricação, um duplo aprendizado, onde

aprendiz e mestre, planta e plantador cultivam-se mutuamente. Assim o cultivo traz

para o aprendizado um cenário onde aprendiz e Mestre fazem parte de uma mesma

100

paisagem. A noção de treinamento reduz o processo de aprendizado a modelação do

aprendiz, buscando enquadrá-lo em esquemas prévios, anteriores a portanto fora da

paisagem do aprendizado. No cultivo há abertura para uma inclusão desses

elementos, normalmente separados - aprendiz e Mestre, teoria e prática, condições e

fazeres – dentro de uma mesma paisagem. O aprendiz e o mestre vão “tateando”

compondo com os elementos da paisagem os caminhos do aprendizado. No cultivo o

processo de aprendizado será destacado sem diferenciação com o produto ou conduta

aprendida. Não haverá separação entre meios e fins, produção e produto.

Além disso mostraremos que o aprendizado da capoeira angola está

diretamente ligado a práticas e fazeres que só podem ser compreendidos à luz da

tradição. Daí também o encontro com um outro sentido do termo cultivo, mais ligado

a noção de cultura. Segundo o dicionário cultivar também é “adquirir cultura”

(FERREIRA, 1993, p. 97). Assim este termo está relacionado a ideia de ser culto, de

aquisição ou apropriação de conhecimento. Segundo Deleuze (2005)18, em suas

longas entrevistas, dadas a Claire Parnet, onde discorre de modo informal por temas

organizados pelas letras do abecedário, ser culto é ter saberes de reserva, saber falar

de tudo. Assim propõe uma outro modo de entender cultura. “Tudo que aprendo,

aprendo para certa tarefa, e, feita a tarefa, esqueço. De modo que se dez anos depois

sou forçado, e isso me alegra, se sou forçado a me colocar em algo vizinho ou no

mesmo tema, tenho que recomeçar do zero” (2005, p. 04). Deleuze nos mostra que

não é muito adequado adquirir ou se apropriar da cultura. Assim cultura estaria muito

18 O Abecedário de Gilles Deleuze é uma realização de Pierre-André Boutang, produzido pelas Éditions Montparnasse, Paris. No Brasil, foi divulgado pela TV Escola, Ministério da Educação. Tradução e Legendas: Raccord [com modificações]. A série de entrevistas, feita por Claire Parnet, foi filmada nos anos 1988-1989. Como diz Deleuze, em sua primeira intervenção, o acordo era de que o filme só seria apresentado após sua morte. O filme acabou sendo apresentado, entretanto, com o assentimento de Deleuze, entre novembro de 1994 e maio de 1995, no canal (franco-alemão) de TV Arte. Deleuze morreu em 4 de novembro de 1995. Algum internauta paciente e muito bem intencionado tomou a iniciativa de fazer a tradução das mais de 7 horas de entrevista feitas a Deleuze por Claire Parnet, compiladas em vídeo. Da onde tiramos nossa referência.

101

mais próximo da idéia de cultivo, de cultivar uma disponibilidade aos encontros, “ de

estar à espreita (...)” (Ibidem, p. 05). A tradição veremos, muito mais do que um

contexto cultural, de acumulo de saberes e conhecimentos, são as paisagens onde se

cultivam modos de ser, sentidos e práticas, ritos e histórias. Sendo assim, pensar o

aprendizado da capoeira angola como um cultivo da e na tradição trará algumas

conseqüências.

Dentre estas, destacaremos neste capítulo, o aprendizado da capoeira Angola

como um cultivo de hábitos. Tal afirmação deverá se sustentar numa ampliação da

noção de hábito corrente nos estudos psicológicos. Reduzido a condutas automáticas,

o hábito é compreendido como um tipo de conduta adquirido através de uma prática,

cuja repetição, leva a um enrijecimento e fixação desta. Veremos que essas análises

psicológicas compreendem o hábito somente como uma conduta já aprendida. Ao

contrário tentaremos ampliar esse conceito, definindo-o como um processo, sempre

inacabado, como um cultivo de uma disposição ou tendência, cuja formação se refere

às mudanças que o engendram. A rotina será vista como um importante espaço de

repetição e diferenciação, no qual as mudanças importantes nos ocorrem, muitas

vezes sem a nossa percepção. Forjado em práticas que colocam num mesmo plano a

repetição e a diferença, o hábito será pensado como uma tendência ou disposição em

aberto, que concilia necessidade e criação, receptividade e atividade, esforço e

repouso, concentração e relaxamento, ação e contemplação, antecipação e hesitação,

repetição e diferenciação.

3.1 – Um cultivo de hábitos e o aprendizado da atenção

Virgínia Kastrup (2001) num texto em que discute o caráter inventivo da

aprendizagem vai marcar uma distinção fundamental entre dois modos distintos de

102

tratar este tema. A aprendizagem como recognição ou solução de problemas e a

aprendizagem como experiência de problematização. Afirma que a primeira reduz a

aprendizagem a modos de aquisição de novas formas de solução de problemas que

nos são colocados de fora. Enunciado como um processo de aquisição de habilidades,

que se desenvolvem numa adequação, cada vez maior, aos problemas que nos

acometem. O aprendizado se explicaria como um caminho que atravessa fases, que

vão de uma etapa inicial – onde as condutas são realizadas pelo aprendiz de modo

precário e pouco costumeiro – até transformarem-se em habilidades próprias e

comuns, portanto habituais (automáticas e fixadas). Vimos nos capítulo anteriores

como a psicologia comportamental e a teoria das habilidades sociais acabam por

reduzir o aprendizado a uma adequação cada vez mais automática aos problemas que

a sociedade nos coloca. O aprendizado dentro destas teorias se encaminharia para

condutas cada vez mais automáticas e adequadas às circunstâncias. Deste modo uma

habilidade bem aprendida se aproxima bastante do sentido que a psicologia tem

proposto para a noção de hábito19. Um comportamento adquirido que se desenvolve

na prática, cuja realização plena são respostas automáticas que damos às

circunstâncias.

Tanto a noção de habilidade quanto a de hábito acabam por se fixar de mais

no plano das ações realizadas. E essas são analisadas como ações gerais realizadas em

ambientes também gerais e homogêneos. Nesse modo de aprendizagem o objetivo

final é que os aprendizes realizem com precisão e automatismo atividades

padronizadas e homogêneas. Como em uma escala de produção industrial o aprendiz

é submetido a práticas técnicas cujos resultados são avaliados segundo um padrão. Os

movimentos do aprendizado representariam a forma geral da adaptação a esquemas 19 Por mais que a escola behaviorista não tenha utilizado o termo “hábito” em seus trabalhos podemos deduzir que a noção de condicionamento operante como uma ação cujo caminho é a automatização, possa ser aqui relacionada à idéia de hábito que buscamos superar.

103

prévios. Caberia aos professores formular técnicas ou meios que possam encurtar e

simplificar a adequação dos principiantes a estas práticas homogêneas.

Luiz Renato Vieira cita uma passagem de um livreto lançado por Mestre

Bimba e seus alunos mais próximos no inicio da construção da Capoeira Regional

Baiana, chamado de “Curso de capoeira Regional”. Afirma Vieira: “Mestre Bimba e

seus colegas mais velhos só tem um desejo (em relação aos novos alunos): torná-los

melhor no menor tempo” (Apud VIEIRA, 1998, p.168). Vieira chama este aspecto da

capoeira Regional de “ethos da eficiência”, que acaba por privilegiar no aprendizado

um modo de encaixar os aprendizes, num menor tempo possível, nos movimentos e

golpes gerais e homogêneos da capoeira. O que reduz esse aprendizado a um

treinamento de respostas ou ações gerais. Diante desse fascínio pela técnica e

eficiência nos diz Deleuze:

(a psicologia) fez da atividade o seu fetiche. Seu pavor obstinado da introspecção faz com que ela só observe o que se mexe. Ela se pergunta como, agindo, se adquire hábitos. Mas, assim, todo o estudo do learning corre o risco de ser falseado, enquanto não se coloca a questão prévia: é agindo que se adquire hábitos... ou ao contrário, contemplando? (Deleuze, 1988, p. 100).

No entanto, parece mais adequado considerar o hábito não como um produto

ou o estado geral de um ato permanente, mas como um processo, sempre em estado

de mudança. Assim, o aspecto motor ligado às ações deve ceder espaço para o papel

da contemplação, de mudança na atenção e na sensibilização. Como nos mostra

Deleuze não se adquire hábitos se mexendo ou buscando se adequar, mas modulando

nossa atenção. É nítido que um capoeirista ao habitar o mundo da capoeira

experimenta modificações em sua sensibilidade, permitindo-se a atentar para

aspectos antes desconhecidos.

Contraímos hábitos o tempo inteiro sem que tenhamos a menor ciência disso.

Há, portanto um caráter espontâneo na formação de nossos hábitos que indica uma

104

mudança, não só em nossos modos de agir, mas na maneira em como percebemos o

mundo (DO EIRADO, 1998). Tal mudança perceptiva impede de amarrar a formação

dos hábitos a rotinas automáticas, repetitivas e cegas. Mais do que automatizar nossas

condutas, os hábitos transformam o modo como percebemos e interpretamos a

realidade. Um capoeirista que participa cotidianamente dos treinos e das rodas não se

dá conta como sua rotina transforma os modos como ele percebe e atribui sentidos a

esse mundo que se lhe afigura tão próprio. E, surpreendentemente, um mundo que se

assemelhava ao principiante como simples e dividido em tipos ou formas gerais,

ganha contornos nunca antes experimentados.

Quando comecei a treinar capoeira Angola, no final da década de noventa,

rapidamente construí modelos ou formas gerais de entendimento. Tanto a

compreensão dos movimentos quanto a dos tipos de capoeira perpassavam por

esquemas simplificados e gerais. Alunos ainda pouco afeitos a essa prática tendíamos

a simplificar a capoeira: só há dois tipos de capoeira a capoeira Angola e a Regional.

Com o tempo nossa sensibilidade foi se ampliando e fomos vendo as várias nuances e

diferenças dentro do universo da capoeira Angola. Ao invés de irmos em direção ao

automatismo e às formas gerais, experimentamos o contrário, um alargamento de

nossas percepções e compreensões da capoeira. Ao invés de nos tornarmos

especialistas e realizadores de uma única habilidade, o hábito amplia nossas

capacidades de ser, inserindo a mudança e a variação. Assim, como, por exemplo, a

visão homogênea e geral que podemos ter de uma cidade é sobre àquela que

desconhecemos ou pouco conhecemos, posto que sobre a que vivemos possuímos

uma visão muito mais diferenciada e ampliada. Não se trata de uma diferenciação por

especialização, cuja tendência é diminuir o foco, mas de uma diferenciação por

ampliação, que não obedeça à generalização. Assim o hábito, enquanto um processo

105

de transformação de nossas sensibilidades e de nossas condutas, não se dirige do

heterogêneo e diferente para o homogêneo e geral; da conduta hesitante para a

automática e reflexa; do particular para o universal.

Antes de analisarmos um pouco mais de perto essas transformações que a

experiência do hábito produz, traremos uma discussão epistemológica desenvolvida

pela teoria da Autopoiese a respeito da construção do conhecimento. Críticos

contundentes do realismo epistemológico que vêem o conhecimento como uma

representação objetiva da realidade, Maturana e Varela (1987, p.69), afirmam que o

conhecer produz um mundo. “O produzir do mundo é o cerne pulsante do

conhecimento, e está associado às raízes mais profundas de nosso ser cognitivo, por

mais sólida que nos pareça nossa experiência”. Esse gerar se estende sobre todas as

dimensões de nossos atos, apontando para uma realidade construída ou como os

autores da autopoiese costumam dizer “uma objetividade entre parênteses”.

No caminho da objetividade entre parênteses, a existência é constituída com o que o observador faz, e o que o observador faz traz à mão objetos que ele distingue em suas operações de distinção (...). Além disso, os objetos que o observador traz à mão em suas operações de distinção surgem dotados das propriedades que realizam as coerências operacionais no domínio da práxis do viver no qual eles são constituídos (MATURANA, 1997, p.250).

Nos acostumamos a pensar a interação como o resultado de relações entre dois

domínios preexistentes e independentes, o que leva o entendimento da relação interativa

como a representação de um desses domínios sobre o outro. O construtivismo da

biologia da autopoiese pensa radicalmente diferente, pois é a interação que produz os

domínios que irão interagir. É o agir autopoiético que produz, como duplo efeito, o si e

o mundo.

O privilégio dado às definições dicotômicas, sujeito/objeto, realismo/idealismo,

organismo/meio, exterior/interior etc., em que um dos pólos atua como o fundamento da

interação, parece encontrar nesta teoria uma imbricação criativa. Essas idéias só são

106

possíveis em sistemas auto-regulados calcados em uma clausura operacional, nos quais

os pólos da atividade cognoscente estão sempre imbricados. A teoria da autopoiese

parte das interações, que produzem como um duplo efeito os pólos da relação cognitiva.

Há, portanto, uma coexistência paradoxal entre o interior e o exterior, o organismo e o

meio, o sujeito e o objeto, uma coexistência em clausura operacional. Eles são distintos,

mas tal distinção obedece à estranha e paradoxal realidade expressa pelas formas

circulares semelhantes a da “banda de Moebius”. É fácil experimentarmos tal situação

inusitada com o uso, por exemplo, de um cinto de calça. Pegamos um cinto e o

esticamos, depois giramos por 180 graus uma de suas extremidades; feito isso,

juntamo-las e começamos a passar nosso dedo numa de suas superfícies. Tal

experimento nos coloca em contato com a incrível sensação de freqüentarmos, sem tirar

o dedo, as superfícies interna e externa do cinto, que se diferenciam, mas coexistem

numa mesma experiência. Uma banda uniface, que se torce de tal forma que seu lado

exterior é uma versão de sua face interna. Tal exemplo nos mostra que os sistemas

autopoiéticos se organizam num fechamento operacional ou numa clausura operacional,

o que inviabiliza a tese de que haja um mundo pré-estabelecido que o sujeito representa.

As modificações que acontecem num sistema operacionalmente fechado não são

determinadas por uma interação instrutiva, mas por uma estrutura atual, que por sua vez

possibilita novas formas de interação do sujeito com o seu mundo. Com efeito, podemos

afirmar que o mundo não preexiste ao sujeito que o conhece, nem tampouco este

responde por si só pela construção do mundo. É conhecendo que se constrói um mundo

e construindo um mundo é que se conhece. “Todo ato de conhecer traz um mundo nas

mãos”. Essa afirmação é importante porque este caráter paradoxal não pode ser tratado

como uma descrição esquemática ou puramente conceitual, mas deve ser colocado em

funcionamento, em experiência. A estranha e paradoxal situação da “banda de moebius”

107

não pode ficar restrita a uma descrição topológica e abstrata, mas deve ser

experimentada. No exemplo acima do cinto, há uma necessidade de passar as mãos em

suas superfícies para experimentar o caráter paradoxal de uma exterioridade interior ou

de uma interioridade exterior. Não se trata, quando falamos em aprendizagem

construtiva, de uma lógica, mas de uma prática ou de uma experiência.

Daí nossa utilização para a descrição do aprendizado da capoeira Angola do

conceito de hábito, e todas as suas implicações com a prática do aprender fazendo. A

ênfase dada ao fazer ou a ação pode se confundir com o que mais criticamos até aqui

neste trabalho, a saber: o aprendizado como um caminho em direção às ações

automatizantes e especializadas. Mas, como vimos, a ação na teoria da autopoiese não

é de um sujeito sobre um mundo, mas produz sujeito e mundo. Nesse sentido esta

noção de ação autopoiética realiza o que Deleuze em seu livro, Diferença e

Repetição, chama, a partir do trabalho de David Hume, de “síntese passiva”: uma

contração no espírito, produzida pela repetição dos eventos, que cria uma diferença.

“Não é feita pelo espírito, mas se faz no espírito que contempla, precedendo toda

memória e toda reflexão.” (DELEUZE, 1988, p. 129).

O hábito é, em si mesmo, anterior a qualquer atividade do sujeito, seja ela motora, cognitiva o motivacional. Enquanto estivermos presos ao mero aspecto psicológico do hábito, estaremos condenados a não enxergar seu problema fundamental, a saber: a emergência do subjetivo, a invenção da subjetividade (DO EIRADO, 1998. p 06).

Nesse sentido, a constituição de si e do mundo como efeito do hábito nos leva

a pensar uma experiência pré-subjetiva e pré-objetiva que produz não apenas um

sujeito capaz de realizar práticas e ações novas, como também a constituição de um

mundo no qual nos tornamos sensíveis. Uma experiência de produção tanto de si

quanto do mundo.

108

Mesmo considerando o hábito como efeito de contrações pré-subjetivas e pré-

objetivas que constituem um mundo e um si, portanto como efeito da criação e da

diferença, ainda podemos pensá-lo como um modo de vida que se preserva? De

algum modo o hábito, liberto do viés realista, ainda traz consigo um caráter de

manutenção ou de preservação de algo que nele se constrói? Como resultado da

diferença, os hábitos se mantêm? Como conciliar diferença e repetição? De novo o

paradoxo nos bate a porta forçando um deslocamento.

Félix Ravaisson (1997) num livro escrito sobre o hábito em 1838 nos diz: “O

hábito é então uma disposição, em relação a uma mudança, engendrada em um ser

pela continuação ou a repetição dessa mesma mudança” (Idem, p.31). Ravaisson

mostra que a repetição própria ao hábito não pode ser uma repetição do mesmo, mas a

de uma mudança. Já que tudo que é suscetível a um hábito é suscetível à mudança. É

a mudança e sua continuidade que deve servir de condição para o desenvolvimento

dos hábitos. Mas se tudo o que é suscetível ao hábito, o é também à mudança, nem

tudo que é suscetível à mudança, é por vez ao hábito. A fim de exemplificar, o autor

mostra que:

(...) se jogarmos uma pedra cem vezes numa fogueira ela permanece a mesma após isso, ao contrário, se jogarmos um gato ele reage, e se o jogarmos cem vezes essa reação persiste de modo cada vez mais consistente, mais precisa, mais imediata, ela torna-se ser (hábito) (RAVAISSON, 1997, p. 31).

A repetição, que para um observador é rotineira e igual, torna-se distinta para

o gato que a experimenta. O modo como ele reage à repetição transforma-se de modo

qualitativo conforme esta se dá. E essa transformação, que no ser que a experimenta

é novidade, e, portanto, não habitual, passa de algum modo a se tornar própria e,

portanto, habitual. “O hábito não implica somente a mutabilidade em qualquer coisa

que dura sem mudar, ele supõe uma mudança na disposição, na potência, na virtude

109

interior desse no qual a mudança se passa, e que não muda” (RAVAISSON, 1997,

p. 31).

A duração da mudança é o paradoxo do processo de criação de hábitos. Não se

trata de uma mudança para algo que dura, mas da duração da mudança. O hábito é

então um processo de mudanças que duram. Essa durabilidade da mudança não é

governada por um princípio de adequação a um suposto mundo prévio, como se

adquirir uma conduta adequada, muito pelo contrário, o hábito vai produzindo uma

individuação, fugindo das existências homogêneas e criando uma necessidade

particular e singular, portanto uma variação. Ao contrário de se encaminhar cada vez

mais às exigências de leis gerais por uma necessidade padrão (realizar movimentos

cada vez mais de acordo com os modelos), o hábito contraído por repetições enseja o

diferente e a singularidade, não sendo, portanto incompatível com o estilo e os modos

próprios de jogar capoeira.

Neste sentido a noção de hábito que aqui buscamos desenvolver se aproxima

bastante do modo como Hubert L. Dreyfus compreende o desenvolvimento de uma

habilidade. O autor expõe o que ele chama de teoria clássica das habilidades. Ele

localiza essa teoria em toda a tradição filosófica racionalista “que vai de Sócrates a

Platão, Leibniz e Kant, depois às formulações clássicas da IA (Inteligência Artificial) e

da Engenharia do Conhecimento (...)” (DREYFUS, 1998, p.303).

Seu principal fundamento se sustenta na idéia de que “compreender um

domínio consiste possuir uma teoria sobre ele” (ibidem, p. 304), entendendo teoria

como a formulação de leis ou princípios gerais e abstratos. O expert ou aquele que

melhor se conduz num certo engenho estaria para esse modo de pensar, realizando ou

atualizando de modo automático e não consciente princípios ou regras gerais dessa

habilidade. Nesse sentido o aprendizado dela se encaminharia de um plano individual e

110

concreto para uma teorização que a descola do lugar em que habita para um plano

abstrato e descontextualizado das regras ou leis da ação.

Dreyfus propõe uma outra perspectiva de análise para se compreender a

formação do expert. De saída, ele inverte o ponto de partida desse aprendizado. Ao

contrário da teoria clássica das habilidades, o iniciante não parte dos casos particulares

para só depois com a prática atingir o “olimpo” das idéias puras e abstratas. O autor

trabalha com uma idéia oposta na qual o iniciante parte de regras abstratas e

descontextualizadas para só mais tarde, quando se tornar expert, alcançar os casos

particulares. Para explicar sua tese Dreyfus irá dividir o aprendizado em cinco estágios

ou fases, nos quais irá propor uma análise fenomenológica de cada uma dessas fases.

A primeira fase ele chama de “estágio do principiante”, descrita assim:

O processo de instrução começa normalmente pela decomposição do meio da tarefa em traços acontextuais que o debutante pode reconhecer sem reconhecer à experiência. Dá-se, em seguida, ao principiante, regras que lhe permitam determinar, em função dos ditos traços, o que convém fazer – assim como um computador aplica um programa” (DREYFUS, 1998, p. 306).

Seguindo sua descrição, o aprendiz de capoeira é tratado do modo como

Mestre Bimba estabeleceu com os módulos iniciantes, decompondo e

descontextualizando os principais movimentos da capoeira. Treinamento repetitivo no

qual o principiante vai aprendendo algumas regras gerais das seqüências básicas dos

movimentos. O mesmo podemos falar do aprendizado dos instrumentos. As regras

ainda muito gerais e desencarnadas não levam em consideração o contexto.

Na medida em que o aprendiz vai exercitando estas regras gerais ele vai

fazendo face a situações reais. Ele vai enriquecendo suas experiências, alargando ou se

encontrando com outros componentes de variação dessa situação que é, a princípio,

muito abstrata. Assim, ele vai entrando na segunda fase de “principiante avançado”.

Ainda aplicando as regras gerais, o principiante avançado já consegue variá-las

111

conforme as circunstâncias. Vai se encontrando com as variáveis situacionais, o que

lhe permite avançar sobre o meio. Começa a reconhecer nelas os esquemas e padrões

das regras abstratas. Aprende a reconhecer na sua prática, por exemplo, as seqüências

que ele treinou, bem como se está sendo bem desenvolvida ou não. No terceiro estágio

o principiante torna-se um aprendiz da “competência”. A experiência vai aumentando

e com isso as variações situacionais e possibilidades de movimentos também se

ampliam. Essa ampliação das exigências de decisões leva o aprendiz a desenvolver

uma escala hierárquica que lhe facilitará em suas tomadas de decisão. Ele forjará à luz

das situações, planos ou esquemas de atitudes que possam não somente facilitar suas

escolhas como também agilizá-las. Com isso, ele melhora e otimiza sua performance.

Mas nosso competente aprendiz ainda tem muitas surpresas já que entre os seus

planos e objetivos, suas realizações e êxitos ainda há muita pouca precisão. Na maioria

das vezes ou o seu plano não funciona ou ele descobre tardiamente qual plano teria

sido melhor. Esses métodos ou regras de resolução ainda são um pouco frustrantes

para o aprendiz competente, visto que tanto podem dar certo quanto não. Diz Dreyfus:

Escolher é inevitável. Enquanto o principiante avançado pode prescindir de reconhecer e de utilizar um aspecto situacional particular até que um número suficiente de exemplos torne a identificação fácil e segura, o nível imediatamente superior, o da competência, exige a escolha de um projeto ou de um objetivo organizador. Além disto, a escolha de uma perspectiva de conjunto afeta o comportamento, de uma maneira mais profunda do que faz geralmente um ponto de vista particular (DREYFUS, 1998, p. 308).

Nesse estágio Dreyfus localiza uma importante e fundamental diferença entre

ele e os dois iniciais. Enquanto nos dois primeiros o aprendiz executa respostas

segundo às regra gerais por ele aprendidas, no estágio da competência o aprendiz já se

responsabiliza pelas suas estratégias de execução. Mesmo quando não exitosas essas

práticas são experimentadas com muito mais emoção, haja vista terem sido forjadas

por ele e não mais extraídas das regras gerais. Há segundo Dreyfus um engajamento do

aprendiz já que é ele responsável por suas escolhas. É essa importante mudança no

112

papel do aprendiz, de uma posição passiva e obediente às regras para uma posição

ativa e engajada que Dreyfus acredita abrir no aprendiz as portas para o

desenvolvimento do expertise.

O quarto estágio é denominado pelo autor de “proficiência”. O executante

competente engajado que esta mergulha cada vez mais na atividade que ele exerce.

Mas esse encantamento com o concreto de seu mundo terá que ser momentaneamente

rompido para que o aprendiz consiga avaliar melhor suas decisões. O que o

engajamento lhe trouxe de vantagem é a avaliação cada vez mais encarnada das

circunstâncias, mas isto não pode levá-lo a agir imediatamente como se reagisse às

situações-problema. Uma hesitação é necessária para que haja uma escolha mais

proficiente.

Já na quinta e última fase denominada de “expertise” encarna tanto a avaliação

quanto a decisão. O esforço inicial tende a sumir e o expertise consegue “assim...

responder a cada situação da maneira imediata e intuitiva (...)” (Ibidem, p.311). Ao

contrário, então, da tradição dos estudos da habilidade, Dreyfus propõe uma mudança

na atitude do aprendiz que inicialmente avalia e decide as situações vividas mediadas

por regras gerais e abstratas e conforme vai aprendendo, vai cada vez mais encarnando

e ampliando estas regras, aumentando assim as variações de casos e exemplos. Tal

direção encaminha o aprendiz para posições espontâneas, imediatas e intuitivas, que

ampliam suas percepções do mundo. Segue, portanto um caminho do geral e

desencarnado para o singular e encarnado.

Esta apresentação de Dreyfus é bastante ilustrativa para o nosso trabalho. Do

mesmo modo que tentamos tratar a noção de hábito como uma experiência que amplia

nossos modos de agir e perceber o mundo, enriquecendo-nos e e propiciando nosso

engajamento, afastando-nos do sentido comum de uma automatização, Dreyfus

113

também o faz com a noção de habilidade. O modo como ele a compreende se distancia

daquele apresentado por nós no segundo capítulo. Ao contrário de levar o aprendiz a

uma aquisição cada vez mais automática e geral das situações, a habilidade é vista

como uma experiência criativa que se dirige para o mundo singular e imediato das

experiências. Desde modo podemos perfeitamente observar o risco de utilizarmos

esses conceitos, visto que nem todo o entendimento de hábito o coloca numa abertura

à criação numa vinculação com a experiência concreta, assim como, nem toda a

compreensão da habilidade a coloca como uma forma de adequação e automatização

dos comportamentos. É importante destacarmos que Dreyfus mesmo empreendendo

uma crítica a teoria clássica da aquisição das habilidades se mantém dentro desses

estudos. Já que ainda trata do aprendizado da habilidade como uma adequação a

tarefas previamente definidas.

Do mesmo modo que, em princípio, o hábito enquanto um cultivo de um modo

singular e próprio, através da experiência, pode e deve ser considerado algo cotidiano e

comum, será que algumas práticas facilitariam esse processo de criação e de cultivo?

Como não buscamos aqui encontrar fórmulas gerais e universais que garantam o

aprendiz a encarnar o seu aprendizado, e muito menos julgamos existir situações ideais

ou propícias para que este aprendizado se dê, procuraremos responder a essa pergunta

indicando os modos que a capoeira Angola tem construído para encaminhar a

transmissão de sua prática. Para tanto continuemos a tratar da noção de hábito.

Como estamos vendo através da tese de Ravaisson, o entendimento do hábito se

desloca de um modo de ser geral e permanente, para um processo de contração pela

continuidade de uma mudança. Em tal processo o hábito atravessa por mudanças

qualitativas nos modos de ação e de percepção das condutas realizadas. Segundo este

autor o aprendiz vai superando os momentos iniciais – submetidos a uma

114

receptividade – transformando-se numa espontaneidade crescente. “A continuação e

repetição da mudança têm efeitos opostos: a receptividade diminui, a espontaneidade

aumenta; tal é a lei geral do hábito: a espontaneidade predomina cada vez mais sobre a

receptividade” (RAVAISON, 1997, p.39). Ravaisson entende que no hábito opera-se

uma distinção, não uma separação, entre as formas iniciais receptivas e submetidas às

situações e as mudanças que ele começa a operar e das quais emergirá a

espontaneidade. A receptividade e dependência do meio externo tende a diminuir

conforme a espontaneidade e independência do meio externo aumenta. O que justifica

a distinção destas duas tendências impossibilitando sua separação.

Mas não confundamos a receptividade inicial de um hábito cultivado com a

passividade de estar entregue às circunstâncias. Ser receptivo a uma mudança não é o

mesmo que ser passivo às circunstâncias. Diferente de na passividade, na receptividade

há uma contração que nos lança em uma atividade que com o tempo irá se impor,

marcando com isso a constituição de um propósito que nos força a seguir cultivando

algo. Se fosse passividade estaríamos completamente refém das mudanças exteriores.

Dizemos que o hábito no início tem uma tendência receptiva alta, justamente para

marcar esse caráter impessoal e ocasional do início de nossos hábitos, visto que não

mudaríamos nossa rotina se não houvesse uma abertura, uma receptividade aos

acontecimentos em nossa volta, que nos force a sair dela, ou melhor, a cultivar novas

rotinas. Essa tensão em nossa rotina não se dá quando nos deparamos com situações de

ignorância ou de não-saber, as quais parecem se colocar os aprendizes iniciantes. O

ignorante é por demais passivo, enquanto o receptivo é por demais curioso. Há

portanto uma distinção entre quem se dedica por passividade e obediência a

determinadas práticas e aquele que por curiosidade e estranhamento se lança a perder

um tempo com o cultivo de uma experiência.

115

Sendo assim, a receptividade que rompe nossas rotinas só pode ser produzida

por uma abertura ao estranho, por uma curiosidade criativa. Isso é importante para a

compreensão do aprendizado da capoeira Angola, pois delimita essa fase inicial pela

qual muitos capoeiristas passam e sobre a qual comentam. Esse momento é mágico.

Algo até então desconhecido e estranho vai ganhando um sentido cada vez mais

encarnado a ponto de muitas vezes o iniciante julgar-se como tendo nascido para isso.

É um desafio que nos convida a explorar o mundo novo que se avizinha, que

estranhamente nos chama a atenção, nos forçando a vasculhar.

Podemos citar relatos dos nossos maiores Mestres de capoeira sobre o início de

seu aprendizado, como também convidar cada um de nós a perscrutar os grandes

encontros, que de algum modo marcaram nossas vidas, nos desafiando a aprender.

Mestre Pastinha assim descreveu seu primeiro encontro com a capoeira:

Quando tinha 10 anos – eu era franzininho – um outro menino mais taludo que eu tornou-se meu rival. Era só eu sair para a rua – lá na venda fazer compra, por exemplo – e agente se pegava em briga. Só sei que acabava apanhando dele, sempre. Então eu ia chorar escondido, de vergonha e de tristeza. Um dia, da janela de sua casa, um velho africano assistiu uma briga da gente. Vem cá, meu filho, ele me disse vendo que eu chorava de raiva depois de apanhar. Você não pode com ele, sabe, porque é maior e tem mais idade. O tempo que você perde empinando raia, vem aqui cazuá que vou lhe ensinar coisa de muita valia (PASTINHA, 1967. ).

Como é bonita essa narração! Encontramos nela elementos de rotina como

apanhar todos os dias de um garoto mais forte e elementos de desafio e surpresa,

“vem cá menino que vou lhe ensinar coisa de muita valia”. O mistério, o

estranhamento de um convite. Se o jovem Pastinha não estivesse receptivo ao convite,

curioso por desvendar o mistério colocado pela situação, certamente deixaria a

oportunidade passar.

Já Mestre João Grande numa entrevista que deu ao instituto Nzinga de

Capoeira Angola (INCAB) em 2004 relata assim seu encontro com a capoeira:

Foi o corta-capim (movimento da capoeira)! Foi o seguinte: passou dois meninos de mais ou menos 19 anos, passou assim na rua e fizeram o corta-

116

capim. Tinha dois senhores na porta de uma venda. Aí Chico falou para Pedro: Pedro, isso aí é dança de nego nagô. Passa na pessoa ali e a pessoa cai. O senhor que falou ficou e o que ouviu foi embora. Eu fiquei ali escutando toda a conversa deles. Eu sou muito curioso. Eu tinha 10 anos nesse dia. Depois eu perguntei ao que ficou: o que é dança nagô? E ele: não sei, é o pessoal que veio da África, que trabalha no engenho de cana. E saí procurando o que era corta-capim. Andei por aí e trabalhei em fazenda de gado, como ajudante de vaqueiro, de lavrador plantando feijão, mangalô, arroz, café, cacau, tudo. Trabalhei como ajudante de tropeiro. Procurei o que era corta capim e ninguém me informou. Em 1953 eu já tava com 20 anos e vim morar em Salvador ... Quando é um dia, passei na ponte que ligava o Tororó ao Garcia, e por ali tinha a roça do lobo. Embaixo da mangueira que tinha ali, os peões faziam uma roda de capoeira. Cheguei lá e encontrei João Pequeno, Barbosa, Gordo, Cobrinha Verde, Tiburcinho, Manuel Carregador. E roda rolando. Eu via os três paus dos berimbaus. Eu perguntei a Barbosa e a João Pequeno: o que é isso? E eles responderam: isso é capoeira! Na hora que eu tava perguntando um cara fez o corta-capim e aí me lembrei de quando tinha 10 anos. Perguntei onde era que se aprendia e João Pequeno disse que me levava lá em Brotas, onde seu Pastinha dava aulas (Mestre João Grande, 2004).

Esse depoimento traz ainda mais dados interessantes. Como é marcante o

encontro do Jovem João com os mistérios do “corta-capim”. Tal acontecimento se

estende ao longo de dez anos e numa tarde já em Salvador, em outro cenário, João se

reencontra com aquilo que tanto procurava e que de nada sabia. De novo um exemplo

duradouro de uma receptividade, de uma abertura ao mistério, ao novo que se

avizinha.

Numa interessante entrevista20 que pude fazer com o Mestre Nestor Capoeira

recentemente este faz um interessante relato sobre seu encontro com a capoeira. De

origem de classe média Mestre Nestor desconhecia completamente a capoeira até os

seus dezessete anos. Após iniciar faculdade de engenharia no campus do fundão da

UFRJ, Mestre Nestor conta que durante um descanso no pátio da faculdade acontece

uma cena que será determinante em sua história da capoeira. Nos conta Mestre

Nestor:

20 No último ano (2006) fui convidado a fazer parte como pesquisador do projeto de Inventário e Salvaguarda da Capoeira como Patrimônio Imaterial do Brasil idealizado pelo Ministério da Cultura e realizado pelo IPHAN e Museu da Republica do Rio de Janeiro. Este projeto, que termina agora em setembro de 2007, foi coordenado pelo prof. Wallace de Deus e sub-coordenado por Maurício Barros de Castro. Dentre muitas atividades realizei junto com Maurício uma longa entrevista com o Mestre carioca Nestor Capoeira.

117

Logo no primeiro mês que eu cheguei lá vi um cara chegando montado numa bicicleta, negão, com uma calça toda riscada, aqueles sapatos plataforma da época, que lá chamavam de cavalo de aço, com um solado que devia ter seguramente uns sete centímetros. Em ele com aquela calça riscadinha, com um coletizinho, um colete desses que usam com paletó, mas sem camisa. O cara entrou e segurando, como se fosse uma baqueta toda listrada, na boca, ou um galho de árvore, sei lá o que era. Aí ele salta da bicicleta e quando ele se vira para treinar é que eu saco - ele encosta o queixo no pescoço - que era uma cobra, maluco. A cobra toda riscadinha, falsa coral, preta, vermelha e branca, sai da boca dele e se enrosca. Criava cobras o Leopoldina. Era o Leopoldina. Eu falei assim “Quem é esse diabo?”. Ele com aquele chapeuzinho dele todo trançado, todo magro, mas todo musculoso com aquela cara. Naquela época o Leopoldina, eu tinha dezoito e ele é treze anos mais velho que eu, tinha 31. Mas ele já tinha essa cara de hoje em dia, já parecia ter uns 55, 60 anos de idade. Só que hoje em dia ele tem 74. Tem a mesma cara de 55. Então, a maior loucura. E aí então quem é esse cara? Pô, esse cara dá aula de capoeira aqui. Pô capoeira pra mim, eu ouvia histórias de capoeira da Lapa.21 (Mestre Nestor Capoeira, 2007).

A partir deste encontro inusitado o jovem Nestor irá buscar Mestre Leopoldina

e começará sua longa história na capoeira. Nos dois exemplos acima poderíamos

dizer que tanto Mestre Pastinha quanto Mestre João Grande já estavam ambientados

com a tradição afro-brasileira, diante de suas origens. Já no caso de Mestre Nestor o

fato é surpreendente, pois o mesmo descreve seu total desconhecimento da capoeira,

além de sua origem absolutamente distante das práticas afro-brasileiras. Acaso e

coação, oportunidade e necessidade, o fortuito e o inevitável. Atentos ao que não

procuravam esses Mestres recebem ou acolhem os mistérios de um mundo que

estranhamente se avizinha. Seus encontros absolutamente fortuitos marcam de tal

maneira a vida dos citados impondo-os uma necessidade de decifrar esse mundo

estranho e atrativo que se apresenta.

No caso dos Mestres acima esses encontros ocorrem em domínios próprios,

não podendo ser estendidos para outros como modos gerais. Não são exemplos a

serem seguidos, mas a serem inspirados. Não se trata de uma situação que pode ser

generalizada, mas de algo que nos empenha e amarra em um modo de expressão,

como que predestinados a um certo domínio. Isto é importante porque os encontros

21 Entrevista realizada em 31 de julho de 2007 na casa do Mestre Nestor Capoeira no Leblon, Rio de Janeiro, por mim e por Maurício Barros de Castro. Transcrição realizada por Axel Mello.

118

são sempre singulares e trazem com eles a força da ocasião, não podendo abstrair-se

em generalidades sob risco de perder sua força.

Nesse sentido o aprendiz é forçado por experiências concretas a explorar o

mundo da capoeira, construindo cada qual o seu caminho, sempre tateando a seu

tempo um cultivo de novos hábitos. Mas é certo que não basta apenas a receptividade

estranha de um “chamamento”, é necessário transformar o que ainda é misterioso e

estranho, portanto receptivo, em algo familiar e próprio, ou seja, espontâneo. Assim

os Mestres citados foram cada um a seu tempo, dentro das suas condições e contextos

diversos transformando o estranho e receptivo mundo da capoeira num espontâneo e

familiar mundo, em que hoje são Mestres.

De novo o caráter circular e paradoxal deve ser aqui pensado, pois o repetível

comporta em sua experiência os aspectos da diferença, da transformação e da criação.

A hábito não comporta apenas o aspecto de manter a rotina enquanto repetição do

mesmo, mas traz consigo a diferenciação como fonte da própria experiência. Calcada

apenas em nossos atos, de suas descrições objetivas e exteriores, a experiência de

repetir pode parecer cansativa e enfadonha. Em geral nas descrições feitas de fora,

por observadores, são desconsideradas as dimensões de novidade e de transformação

que as experiências de repetição nos fazem sentir. Como é fantástico depois de vários

exercícios em repetição experimentarmos mudanças qualitativas tanto ao nível motor

das condutas quanto em termos sensoriais. Como é gostoso experimentarmos as

dificuldades iniciais, nas quais nosso corpo se esforça sobremaneira a desempenhar

movimentos tão confusos e estranhos. Quem não se lembra da experiência dos

primeiros movimentos, aqueles em que nossa atenção e sensibilidade se colocam de

modo altamente receptível aos movimentos e exemplos do Mestre ou do professor.

119

Aos poucos, e sem nos darmos conta, esses movimentos vão ganhando autonomia,

tornando-se espontâneos, portanto cada vez mais habituais.

Devemos diferenciar espontaneidade de automatização e receptividade de

imitação. Como vimos no capítulo anterior a aprendizagem de uma habilidade como

uma conquista da automatização não se liberta do modelo que inicialmente imita.

Pelo contrário ela apenas consegue realizá-lo de modo próprio, já que ele se tornou

seu. Não há mudança ou diferenciação na passagem da imitação do modelo para sua

automatização. As rotinas de treinamento não consideram estas diferenciações, a não

ser as mudanças ou desenvolvimentos em direção a automatização do modelo.

Na noção de hábito o que ocorre é diferente. Dizer que no início do hábito há

uma posição receptiva, não é o mesmo que afirmar uma passividade imitativa. A

receptividade indica uma atenção desfocada e concentrada nos encontros e seus

mistérios. O que faz do hábito algo totalmente singular e concreto. Enquanto que na

imitação a atenção é focada no exemplo e a repetição constitui a reprodução deste, a

receptividade inaugura no mundo dos hábitos caminhos da singularidade, das marcas

de acontecimentos que se repetem para diferir. Em ambos há repetição, todavia na

receptividade do hábito essa repetição produz e instaura diferenças. Ela não é

enfadonha e mesmo havendo dificuldades estas serão encaradas como desafios e não

como obstáculos.

Espontaneidade significa aumento da liberdade dos recursos às situações de

nossa rotina. A automatização traria vantagens em relação à imitação graças a sua

independência e abrangência generalista. Se for possível um desempenho rápido e

adequado às diversas situações é porque o modelo automatizado possui uma

abrangência e generalidades suficientes para subsumir os casos particulares. Já na

espontaneidade o caminho é outro, pois o hábito cria uma familiaridade que permite

120

uma ampliação tanto de nossa sensibilidade quanto de nossos atos. O que Ravaisson

diz quando aponta para as mudanças qualitativas que a experiência do hábito traz,

afirmando que se encaminham de uma receptividade para uma espontaneidade cada

vez maior, deve ser aqui comentado. Diz ele:

Essa ampliação e complexificação das ações espontâneas, em detrimento das ações passivas, se intensifica com o hábito e sua lei geral. A disposição que configura o hábito se caracteriza por essa ação ‘independente’, cada vez mais regular e precisa, sem nenhuma determinação externa aparente (RAVAISSON, 1997, p. 50).

Que o hábito libera o aprendiz das dependências externas do modelo, parece

ser um certo consenso até aqui, o que Ravaisson traz de novidade é que essa

libertação não pode ser entendida como um caminho da automatização e

generalização, mas como a construção da singularidade e da autonomia. Faz-se

melhor com os hábitos porque se constrói através das repetições uma mudança em

direção à espontaneidade. Entretanto, ainda devemos ir além de Ravaisson. Temos

visto ao longo do nosso trabalho que a capoeira traz para a psicologia da

aprendizagem situações bastante incomuns. Ravaisson por mais que tenha colocado o

hábito num processo de diferenciação e criação ainda o trata como um

desenvolvimento. Neste caminho da formação dos hábitos comportamentos passivos

e dependentes do mundo exterior vão se transformando e ganhando liberdade e

autonomia, perdendo os constrangimentos. A liberdade é vista como uma

autonomização no que tange ao mundo exterior, que vai desembocar, ao final do

livro, em um espírito pouco encarnado e por isso muito livre. Estamos tentando ver

que no mundo da capoeira Angola a liberdade e a autonomia não são conquistadas

como uma libertação espiritual do mundo no qual habitamos, como um abandono do

convívio, principalmente, com as perturbações que a vida nos traz. É certo que um

aprendiz de capoeira é muito mais afoito e preso aos estímulos, portanto muito mais

passivo e previsível. E que o seu aprendizado lhe permite se libertar um pouco do

121

jugo do sensório-motor. Mas constatar isto não quer dizer que o caminho do hábito é

um desenvolvimento no qual o processo de receptividade e espontaneidade sejam

inversamente considerados, no qual o aumento de um leve a diminuição do outro.

E aqui parece haver uma diferença entre o modo de tratar o hábito em

Ravaisson e o que procuramos pensar no que diz respeito ao aprendizado da capoeira

Angola. Nos parece que o lugar do aprendizado, seja do principiante ou do Mestre,

sempre é o concreto. Como nos diz Varela: “O concreto não é um degrau para algo de

diverso: é como chegamos e onde estamos” (VARELA, 1992, p.17). Portanto as

mudanças qualitativas que um aprendiz conquista não o aproximam ou afastam da

posição em que sempre estivemos e que sempre estaremos: o mundo concreto da

experiência. Outra importante diferença diz respeito a este tratamento dado por

Ravaisson ao domínio receptivo do hábito.

Tentamos mostrar acima que a receptividade enquanto uma abertura para

encontros inesperados é vital para o aprendizado. Mas dizer isso não é o mesmo de

dizer que há uma passividade ou uma total dependência do mundo exterior. Há uma

atividade nessa receptividade, um esforço da atenção, que turva o foco abrindo-se

àquilo que ainda não possui contornos definidos. Veremos adiante, no tópico do

aprendizado da vadiação, a importância da atenção da espreita. Tal abertura não é um

entrega total aos estímulos, mas uma atitude de disponibilidade, de atenção às

oportunidades. Ravaisson ainda trata a receptividade como um comportamento

natural, como se fosse natural cedermos inicialmente aos estímulos. Já a posição da

receptividade como estamos tratando aqui neste trabalho não é nada natural, visto que

comporta uma mudança de atitude frente à vida ordinária.

Outra diferença diz respeito a esta “ficção” de um ato espontâneo e liberto da

receptividade. Se entendemos a receptividade de maneira diferente, o cultivo do

122

hábito não pode operar sua diminuição. Pelo contrário, os atos livres e singulares

estarão totalmente vinculados a essa capacidade de abertura de uma atenção à

espreita. Nesse sentido a atenção enquanto uma abertura para o mundo não é nem

passiva nem uma atitude natural. O aprendizado da capoeira Angola passa assim por

um aprendizado dessa atenção, na qual o hábito não é compreendido como perda da

receptividade ou abertura à experiência concreta em nome de um livre arbítrio. Este é

visto como um cultivo da receptividade atenta, na qual a liberdade se apoiará para

formar avaliações concretas e localizadas do que e como fazer. Há sem dúvida um

aumento da espontaneidade no hábito, mas este não diminui a capacidade de se

surpreender com e estranhar o mundo. Pelo contrário, a espontaneidade aumenta em

proporção ao aumento da abertura e da disponibilidade às circunstâncias.

Num livro em que Loïc Wacquant relata o seu aprendizado de boxe

encontramos a seguinte passagem: “É só a partir do momento que o habitus do

aprendiz de boxe sabe ‘reconhecer’ os estímulos e os apelos do gym que a

aprendizagem torna-se plena. (...) Há um ‘olho de boxeador’ que não se pode adquirir

sem um mínimo de prática efetiva do esporte, e que, por sua vez, a torna significante

e compreensiva” (WACQUANT, 2002, p. 138) Este “olho” do boxeador que se

cultiva nos treinamento é que estamos chamando de um aprendizado da atenção. Do

mesmo modo o capoeirista deve cultivar no seu aprendizado um “olho de

capoeirista”, uma atenção da espreita que mais à frente enfocaremos melhor.

Antes de qualquer coisa, inventamos na formação de nossos hábitos, novas

experiências, entendidas como diferenças de qualidade, de gosto, de sensações e de

movimentos. O que está em jogo, portanto, no aprendizado da capoeira Angola, não é

simplesmente a adequação de nossos corpos aos movimentos, cantos e toques, mas,

antes de tudo, uma disposição do aprendiz a penetrar de modo singular e encarnado

123

no mundo da capoeira. Há um convite, que se reapresenta ao longo das práticas do

aprendizado, e que aos poucos, sem se sentir, transforma nosso corpo permitindo

mudanças qualitativas, tornando-o sensível a elementos totalmente estranhos, que de

antemão não tinham o menor sentido. Sobre este aspecto escreve Wacquant:

É claro que seria totalmente fútil tentar distinguir o que, no saber adquirido pelo aprendiz de boxe, vem das intervenções deliberadas de Dee Dee (treinador) do que vem da influência dos pares ou de esforços e ‘talentos’ pessoais. Porque a energia motriz dessa máquina pedagógica auto-regulada que constitui o gym não reside nem na imitação mecânica de um gesto, nem na soma de exercícios incansavelmente repetidos por todos, e menos ainda na ‘saber-poder’ de algum agente (no caso, o treinador) situado no ponto nevrálgico do edifício, mas, antes no sistema indiviso das relações materiais e simbólicas que se estabelecem entre os diferentes participantes, e principalmente na disposição de seus corpos no espaço físico da academia e em seu tempo específico. Em uma palavra, é o ‘pequeno ambiente’do gym como um todo, como ‘feixe de forças físicas e morais’, que se fabrica o boxeador. (WACQUANT, 2002, p. 147).

Interessante citação que marca o aprendizado em uma experimentação a qual

integra toda uma paisagem da luta de boxe sem indicar um determinismo ou do

ambiente, da imitação ou dos conhecimentos do treinador. Tudo isto se integra nesta

paisagem. Não há sujeitos e objetos, figuras e fundo, ambiente e comportamentos

pois o cenário inclui todos esses elementos sem separá-los ou imporem um caminho

único de determinação. O convívio nessa paisagem que é ‘o pequeno gym’ como um

todo é que responde pelo aprendizado do boxe.

Outro aspecto importante na noção de hábito é a constituição involuntária e

inconsciente desta dobra de si e do mundo. Estranha e qualitativa mudança que não

ocorre segundo nossas escolhas conscientes nem muitos menos por meio de

mecanismos de condicionamento a situações exteriores. “Trata-se de entender o

hábito como vetor de produção de subjetividade, portanto, antes que se torne uma

realidade psicológica” ( DO EIRADO, 1998, p. 05). Continua André do Eirado:

A sensação aglutina justamente o peso do passado e essa inclinação para o futuro, ela é ao mesmo tempo consciência e movimento nascente. Tanto a consciência quanto a ação têm sua origem no hábito. Todos os elementos

124

germinais do sujeito já estão aí: ele é como uma expectativa, quer dizer, uma espera e uma ação nascente. Mas, como ele começa por ser uma pura espera, ele não faz nada por ele mesmo, mas espera que algo se faça nele (ibidem, p. 05).

Parece que a circularidade criativa inerente à prática da capoeira Angola nos

tenciona na direção do cultivo de um outro e de um distinto modo de atenção e

sensibilidade, conforme Do Eirado numa pura “espera que algo se faça” em nós. Não

é o mundo que nos condiciona, muito menos nossas intenções ou motivos, mas uma

qualitativa mudança em nossa atenção. É interessante, por exemplo, quando

descobrimos na capoeira Angola que uma boa rasteira não é aquela produzida por

uma imposição das condições objetivas do jogo (o adversário se mostra aberto

indicando a possibiidade da rasteira) ou por uma imposição subjetiva (querer por

qualquer jeito realizá-la). Nesses dois exemplos a rasteira se pautará pela força

(imposição do sujeito) ou pela fraqueza (submissão às circunstâncias). Mas o

aprendiz da capoeira Angola vai descobrindo que a boa rasteira é aquela que

surpreende tanto as circunstâncias quanto o próprio autor dela. Imprevisibilidade

objetiva e subjetiva. Adiante, quando formos falar do aspecto ritualístico e sagrado da

capoeira, veremos que talvez seja por essas ocorrências tão cultivadas pela capoeira

Angola que a força do mistério e do mítico apareça. Não é nem o mundo objetivo

nem o mundo subjetivo que governa o jogo da capoeira, e o aprendiz de algum modo

deve cultivar sua sensibilidade para essa misteriosa e mágica situação.

Virgínia Kastrup (2004), num texto em que discute o aprendizado da atenção

inventiva, considera a necessidade de pensar o fenômeno atencional para além da

dicotomia atento e desatento, comum às abordagens contemporâneas da psicologia

cognitiva. Para ela existem muitos mal-entendidos quando se confunde a atenção

como um único estado no qual a consciência estaria presente. Já a desatenção seria

um estado de ausência de consciência. Porém, o que percebemos na espreita é um

125

outro tipo de atenção que reúne distração e concentração. Kastrup tenta mostrar como

a psicologia acaba por restringir o estudo da atenção a um processo que é condição

para a realização de tarefas. Na capoeira nem sempre estamos realizando uma tarefa

pré-definida. Na maioria das situações de jogo o capoeira não sabe muito bem o que

esperar e, portanto, o que privilegiar como foco. Desliza sua atenção aos eventos,

fazendo-a flutuar sem muito foco. A atenção sem foco não pode ser confundida com

uma distração (perda da concentração) e, sim, deve ser vista como uma concentração

sem foco (espreita). Embora desfocada e fluida, podemos chamá-la de uma atenção à

oportunidade. Tal atenção torna o capoeira mais sensível às oportunidades

inesperadas que se apresentam. Uma espécie de presença plena (VARELA, 1991) em

relação aos acontecimentos da vida e especificamente da roda da capoeira. César

Barbieri descreve assim essa atenção da espreita:

(...) estar constantemente presente na roda, ou seja, perceber, utilizando-se de sua visão periférica, todos os movimentos realizados pelo seu adversário-companheiro, mesmo que não esteja fitando-o diretamente; perceber todos os movimentos realizados pelo Mestre que dirige a roda; perceber todos os movimentos que são feitos pelos outros capoeiras que compõem a roda; perceber a movimentação das pessoas que assistem ao jogo; além de poder perceber o ritmo ditado pelo berimbau, letras das músicas que são cantadas (...) esse ver o momento, essa realidade concreta que se apresenta nessa ocasião (...) (BARBIERI, 1993, p.62).

Ao entrar na roda o aprendiz iniciante reduz sua atenção aos focos do seu

movimento e quando pode aos movimentos do oponente. Rígido e muitas vezes

nervoso, ele deve aos poucos ir desenvolvendo um relaxamento, uma distração, sem

que para isso perca a concentração a suas ações. Aprende-se a tornar sensível aos

elementos da capoeira, sem precisar se focar neles. “Está envolvida aí uma

aprendizagem da sensibilidade, o que significa a aprendizagem de uma atenção

especial que encontra a música, deixando-se afetar por ela e acolhendo seus efeitos

sobre si” (KASTRUP, 2004, p.11). Neste momento do seu texto kastrup tenta

126

exemplificar sua idéia de aprendizado de uma atenção concentrada e desfocada no

aprendizado da música. Mais a frente continua Kastrup:

Para a invenção, a questão é antes de concentração que de focalização. A subjetividade contemporânea não sofre de falta de foco, mas antes de excesso de focalização. Mas a focalização, por si só, é estéril para a invenção. Por isto a dispersão é um problema. Uma pessoa dispersa e ávida de novidade responde automaticamente às informações externas que se proliferam e que convocam uma atenção sempre focada e ao mesmo tempo fugaz (Ibidem, p.15)

É interessante a partir desta citação procurar diferenciar distração de

dispersão. Kastrup tenta em seu trabalho nos mostrar a compatibilidade da

concentração com a distração e desfocalização. Com isso busca discutir as

dicotomias correntes da concentração/focalização versus dispersão/desfocalização

encontrando outras combinações, como, por exemplo, de uma atenção focada e

dispersa. Mostra que esse tipo de atenção é produzida o tempo todo em nosso mundo

contemporâneo. Nela somos convidados a manter uma focalização dispersa, “ávida de

novidade”. O que nos parece essencial na idéia defendida por Kastrup é não confundir

foco com concentração, já que podemos perfeitamente experimentar uma atenção

focada, porém dispersa e desconcentrada e também (o que para nosso trabalho é

fundamental) pensar uma atenção distraída e desfocada, porém concentrada e

aplicada.

Nesse sentido o aprendiz de capoeira Angola vai precisar de um tempo para

cultivar entre outras coisas a atenção da espreita. Mantendo a concentração, só que se

abrindo a um desfocamento, a uma sensibilização às oportunidades. Tal mudança na

atenção do capoeira é fundamental para que ele deixe de jogar de modo esperado e

automático e consiga desenvolver um jogo atento e aberto às diversas oportunidades.

Mas para isso precisamos dedicar um tempo. Ninguém aprende sem perder tempo.

127

3.2 - O tempo no aprender: a importância da vadiação "Capoeira de Angola só pode ser ensinada sem forçar a naturalidade da pessoa, o negócio é aproveitar os gestos livres e próprios de cada qual. Ninguém luta do meu jeito, mas no deles há toda a sabedoria que aprendi: cada um é cada um” (PASTINHA, 1967, p. 07).

Deleuze (2003) num belíssimo livro, sobre a obra literária Em busca do

Tempo Perdido de Marcel Proust, apresenta idéias que podem nos ajudar a entender a

importância do tempo no aprendizado da capoeira Angola. Define o “Em Busca” do

título como o caminho de um aprendizado, como uma busca da verdade, de um tempo

perdido. Mas logo no inicio de seu livro Deleuze se preocupa em definir o que Proust

entende como tempo perdido. Não se trata, como o “senso comum” poderia supor da

busca de um passado já vivido, de uma redescoberta do passado. Mas, sobretudo, de

um aprendizado que busca descobrir verdades a respeito do tempo, de um “tempo que

se perde”.

Segundo Deleuze o narrador constrói sua história de modo que determinados

fatos são expostos no tempo de sua descoberta. Coloca-nos em contato com uma

história, que ao contrário de revelar as dimensões de um passado vivido, convida o

leitor a perder um tempo diante das verdades aparentes, suplantando-as.

Podemos também situar nesse plano a obra prima da literatura brasileira

Grande Sertão Veredas de Guimarães Rosa. Nessa obra o personagem principal, o

jagunço Riobaldo, narra, para nós leitores, sua história. Mais do que relembrar o

passado atualizando-o pela narrativa, Riobaldo vai construindo os elos que vão dando

sentido a sua narrativa. Assim, o que importa não é a seqüência linear dos

acontecimentos, mas o tempo de sua (e do leitor interlocutor) descoberta das

verdades. O tempo de um aprendizado. Os acontecimentos são narrados trazendo com

eles a força das reviravoltas do destino, seus encontros, as paisagens, suas decepções,

128

seus amores. Diante deles os caminhos e decisões que lhe permitiram viver no Sertão,

ser jagunço, líder, amar. Cada linha desse livro traz os caminhos de um aprendizado

nas trilhas de um jagunço no interior do sertão. Com ele, numa conversa com um

interlocutor que somos nós leitores, Riobaldo percorre sua história, cuja descrição nos

permite redescobrir juntos os sentidos do tempo que perdemos em nossas buscas de

sentido. Mas o que nessas narrativas constitui a matéria prima do aprendizado? O

sertão, o amor, a arte? Continua Deleuze:

Aprender diz respeito essencialmente aos signos. Os signos são objeto de um aprendizado temporal, não de um saber abstrato. Aprender é, de início, considerar uma matéria, um objeto, um ser, como se emitissem signos a serem decifrados, interpretados. Não existe aprendiz que não seja ‘egiptólogo’de alguma coisa. Alguém só se torna marceneiro tornando-se sensível aos signos da madeira, e médico tornando-se sensível aos signos da doença. (DELEUZE, 2001, p.04).

A matéria prima são os signos. Mas como enfatiza o autor, os signos por mais

que precisem ser decifrados não podem decolar ou se afastar dos acontecimentos que

lhes dão corpo. Não se trata de uma busca dos sentidos abstratos dos signos, enquanto

entidades imateriais e puras, porém da descoberta dos sentidos de experiências

encarnadas, de sentidos que estão amarrados aos acontecimentos. Do mesmo modo

não se pode confundir os signos com as matérias que lhes dão suporte. Por isso,

devido à dificuldade de decifrar os signos sem cair nas abstrações ou no realismo

materialista, Deleuze fala de um aprendizado. Há na aprendizagem um aprendizado

dos signos.

Mais do que reagir aos eventos e situações, conforme as expectativas sociais e

pessoais, o aprendiz é levado a se preocupar com os enigmas e mistérios que os

signos emitem. Ser sensível aos signos, considerar o mundo uma coisa a ser decifrada

é uma dádiva, que permaneceria oculta se os nossos encontros não nos marcassem

com necessidades. Alguns encontros, ao contrário de nos manter em nossas rotinas,

129

nos forçam a sair delas, e, por vezes, as circunstâncias não são frutos de escolhas ou

de decisões, mas de necessidades, conforme vimos no item anterior na citação do

encontro de Mestre João Grande com a capoeira. O Mestre diante do mistério do

“corta-capim” é impelido de uma necessidade, que o acompanha por cerca de 10 anos

até o encontro com os capoeiras e de novo com o “corta-capim”. Não houve escolha,

mas a incrível força de um encontro, cujos signos o lançam numa busca de sentido.

Busca essa que, talvez dure até os dias de hoje, quando em Nova York, já um Mestre,

continua decifrando e encontrando-se com os signos da capoeira.

Mas esses encontros seriam totalmente sem efeito se não vencêssemos as

barreiras de nossas crenças. Essa é para Deleuze a trajetória do aprendizado,

encontros fortuitos que nos marcam com uma necessidade de penetrar nesses mundos

e decifrar seus signos, aprendendo, ao seu tempo, a vencer as ilusões que as crenças

em relação aos signos apontam. Mas se não há aprendizado sem encontros com os

signos, não basta que esses aconteçam para que o caminho se faça. Para tanto o

aprendiz deve, perder tempo, para vencer o que Deleuze chama de falsas crenças

suscitadas por esses encontros com os signos.

A primeira crença é atribuir aos objetos os signos que eles portam. Segundo

Deleuze tudo no encontro nos leva a crer nisso. Há uma tendência ao objetivismo.

Como os signos só existem no suporte material de um objeto, é comum confundir este

com aquele. O amante diante da força do encontro com os signos do amor acaba por

acreditar que é a amado, portanto o objeto, que é o signo do amor. Essa crença

objetivante nos impede de ver que os signos estão a um só tempo nas matérias dos

objetos, mas não são materiais. Se é verdade dizer que não há encontro com signos

sem um objeto que lhe dê materialidade, também é verdade que esse não pode ser

confundido com o objeto que lhe porta. Confundimos o significado do signo com o

130

ser do objeto que ele encarna. O impacto inicial e prazeroso dos encontros com os

signos acaba se perdendo numa ilusão fácil do objetivismo, tornando algo que é

próprio e singular em um objeto geral: a mulher, a capoeira ou a música. Ilusão, pois

os mesmos objetos podem e é o que acaba acontecendo, trazer novos e diferentes

encontros, e com eles, novos e diferentes signos. Diante dessa ilusão o aprendiz acaba

por se fixar na percepção e na memória do objeto e não na experiência do encontro.

Numa direção prática e utilitária que o lança na consumação das coisas, numa ilusão

objetivante. Tal atitude aprisiona a percepção, que passa a ansiar pelo objeto,

esquecendo-se da raridade do encontro proporcionado pelos signos. Mais importante

do que o encontrado é aquilo, que nos encontros, nos mobiliza ou nos força a

aprender. Mas tal posição objetivante, que se fixa no objeto, tende sempre a nos

decepcionar, pois as experiências continuam a nos mostrar o quanto um mesmo

objeto pode trazer signos distintos.

Diante desta decepção com a objetivação do mundo, Deleuze aponta para uma

nova e perigosa crença, que se dirige para outra direção, oposta ao objetivismo. Nesta

o aprendiz acaba por produzir, a título de contrapartida: uma compensação subjetiva.

Buscamos com ela justificar nossas decepções, preenchendo os acontecimentos com

signos menos profundos, porém apropriados às expectativas da inteligência, que tudo

reduz para encaixar suas definições. As interpretações subjetivas das definições

inteligentes também acabam isolando o aprendiz em fórmulas gerais e abstratas.

“Cada linha do aprendizado passa por esses dois momentos: a decepção provocada

por uma tentativa de interpretação objetiva e a tentativa de remediar essa decepção

por uma interpretação subjetiva, em que reconstruímos conjuntos associativos”

(DELEUZE, 2001, p.34). Vencer as barreiras das ilusões realistas e idealistas requer

um tempo a se perder.

131

Nossas experiências são repletas de signos diferentes e singulares, cujo

encontro nos força a decifrá-los. Tal caminho é atravessado de ilusões objetivantes e

subjetivantes, que a seu modo prendem o sentido dos signos em objetos, e idéias fixas

e gerais. Numa roda de capoeira aprendemos, também, aos poucos a decifrar os

diversos signos que possam aparecer. Signos éticos, estratégicos, estéticos, políticos e

também sagrados. Atravessamos também por esse jogo de decifração pelos perigos

das ilusões subjetivas e objetivas.

O aprendizado segundo Deleuze nos leva a encarnar nossas interpretações,

mantendo-nos ligados à experiência, sem confundi-la com os objetos encontrados, e

aos seus sentidos, sem confundi-los com idéias ou crenças subjetivas de nossas

expectativas de sujeitos. Esse é um aprendizado cujos sentidos e significados estão

encarnados nas experiências, o que inviabiliza a construção de significações

simbólicas ou ideológicas que, fora da experiência, as explica e prevê. Desse modo,

os signos e suas interpretações só dizem respeito aos mundos próprios e singulares.

Cada experiência traz consigo as marcas e sentidos próprios, lançando-nos em

histórias de aprendizados que não podem ser repetidas ou reapresentadas. Sendo

assim não podem ser objetos de sistematizações e interpretações abstratas e

intelectuais, pois estas perdem o sentido temporal daqueles, reduzindo-os a formas ou

tipos abstratos.

Entretanto muito cuidado deve ser tomado, pois nos mostra Deleuze que a

descoberta da verdade não ocorre por afinidade, pois as significações explícitas e

convencionais nunca são profundas e verdadeiras. Daí a necessidade de perder tempo

para construir os sentidos profundos da experiência. Os sentidos explícitos, como, por

exemplo, os sentidos da moda, geralmente não tem a força e a necessidade dos

sentidos profundos que nos levam a despender tempo e trabalho. De que tempo

132

estamos falando? O tempo cronológico? Ou uma outra noção de temporalidade que

de algum modo passa ao largo do tempo quantitativo e homogêneo do relógio?

Tais experiências acabam por indicar a necessidade de pensar o aprendizado

da capoeira Angola dentro de uma outra concepção de tempo, que escapa das

apropriações do tempo abstrato e cronológico que muitas vezes tem regulado nossas

práticas diárias e os modos de aprender e ensinar. Parece fundamental pensar em uma

outra forma de tempo, um tempo do aprender encarnado na experiência. Para tanto

nos aproximaremos da concepção empírica que as nações africanas de tradição Bantu

possuem da percepção do tempo. Utilizaremos como referencia principal um texto

escrito pelo professor da universidade de Rwanda Alexis Kagame (1975), cujo título

é Apercepção empírica do tempo e a concepção da história no pensamento Bantu.

A definição “Bantu” se referia originariamente – classificação proposta por

W. H. J. Bleek em 1851 em sua tese de doutorado – a um conjunto de etnias africanas

que falavam uma língua comum. Mais tarde este nome passou a representar não

somente a língua desses povos como também suas culturas e tradições. A área das

culturas de tradição Bantu abarca quase todo o sul e centro-sul da África. Grande

parte dos contingentes de escravos trazidos para o Brasil veio desta região, o que nos

parece bastante interessante, já que a capoeira Angola encontra nestas culturas, e em

suas práticas e rituais, o seu berço.

Como os Bantu tinham e ainda têm uma cultura sem escrita, a concepção

descrita por Kagame (1975) é puramente empírica. Ou seja, não há nessas culturas

uma teoria ou um conjunto de preceitos ou documentos escritos que indiquem a

noção de tempo. No entanto, encontram-se nos seus usos, principalmente nos

lingüísticos, uma concepção empírica do tempo. Kagame inicia seu texto

apresentando as quatro categorias de seres existentes. O ser-inteligente (homem), o

133

ser-sem-inteligência (a coisa), o ser-localizador (lugar-tempo) e o ser-modal

(acidentalidade ou modificação do ser). Apenas o ser-modal não existe por ele

mesmo, precisando dos outros seres para existir, aderindo-se a eles. O que vai

interessar ao autor é a terceira categoria de seres, a saber: os seres-localizadores, o

tempo e o espaço. A sua questão principal é compreender por que os Bantu realizam a

unificação do lugar e do tempo para marcar uma existência. O ser puro ou universal

não pode ser localizado, portanto não existe. Para que algo exista precisa ser

localizado no tempo e no lugar, portanto podendo deixar de existir. O ser universal

não pode existir, pois se existisse teria que um dia deixar de existir, o que é

incompatível com alguma coisa que é universal. Nesse sentido os Bantu realizam a

unificação tempo-lugar justamente para localizar não os seres universais, mas os seres

existentes. Mas para localizar os existentes não bastaria a noção de espaço ou lugar?

Parece que não, vejamos porque. Em primeiro lugar, diz Kagame, nas culturas Bantu

qualquer existente que surja pressupõe um antes e um depois, um tempo. “Daí resulta

que o existente – animado ou não, dotado ou não de movimento imanente, imóvel, em

repouso ou fixo – é febricitante do movimento existencial, em sua trajetória para a

consumação conatural” (KAGAME, 1975, p.106). Esse movimento existencial não

pode ser confundido com um movimento físico, como um deslocamento no espaço,

sendo entendido como um movimento meta-físico, portanto inacessível a qualquer

observação direta. Como por exemplo, o movimento do envelhecimento. Só podemos

observar os seus efeitos. Tal fenômeno os Bantu chamam de movimento existencial.

Nesse sentido, cada existente deve ser compreendido dentro do tempo, diferenciando-

se do antes e do depois. É importante frisar que esses movimentos existenciais não

são propriedades apenas dos seres-inteligentes (homens), mas de todo e qualquer

existente. Existir é necessariamente realizar um movimento existencial. Mas haveria

134

ainda um problema; essas “entidades-movimento” não podem ser pensadas como

gerais e incluídas na quarta categoria dos seres-modais. Precisam se individualizar, ou

seja, se localizar num evento, sob o risco de serem tomadas como entidades abstratas

e, portanto, fora dos existentes. Como vimos acima os seres-modais não existem por

si mesmos. Como então eles se individualizam? Num ponto do espaço? Kagame

responde que não, pois o espaço enquanto um lugar qualquer pode receber uma

infinitude de movimentos e ao receber e se fixar num deles, ficaria preso eternamente

neste mesmo ponto, deixando de ser um movimento. “É, portanto, impossível que

qualquer movimento seja individualizado pelo ponto do espaço em que será

executado” (idem, p.108).

Por outro lado poderíamos dizer que o movimento se individualizaria se

distinguindo dos anteriores e dos seguintes, ocupando, portanto um instante ou ponto

do tempo? De novo a resposta é negativa, “(...) pois um mesmo instante é receptáculo

de uma infinidade de movimentos que todos os Existentes desenvolvem ao mesmo

tempo” (idem, p.108). Como então chegamos à individualização dos movimentos

existenciais de cada Existente? Somente combinando o ponto do espaço com o ponto

do tempo, “em-tal-ponto-em-tal-instante”(idem p.108). Deste modo o movimento se

torna uma entidade única e impossível de já ter se realizado no passado ou de vir a

realizar-se no futuro. Ele se prende ao evento que realiza.

O mesmo Existente nunca repetirá um movimento análogo no mesmo ponto do Espaço; ser sempre um outro, pois o instante do precedente nunca se reproduz, como também nunca se repetiu anteriormente. (Idem, p.108).

À unificação do lugar com o tempo Kagame chamou de “coordenada

individualizante” dos movimentos dos Existentes. Portanto, nas culturas Bantu não

podemos falar de uma Existência ou de um ser sem darmos a sua localização espacial

e temporal. Não existe uma pedra, mas esta pedra aqui e agora. Nesse sentido essa

cultura privilegia e compreende os existentes sempre no tempo e no espaço. Mas onde

135

se encontraria esta dimensão do tempo/espaço? O passado enquanto um movimento

existencial já realizado é uma idéia imprecisa, por não se situar num localizador

presente. Já o futuro enquanto movimento que virá, também é impreciso, cabendo

apenas como uma projeção do espírito. A essência do tempo é o presente. Mas onde

está o presente? Não em um instante qualquer, geral, fixo e imóvel, mas coincide com

o próprio movimento existencial, desde o seu inicio até o seu fim. O presente,

portanto, está marcado pelo evento que realiza, e persiste enquanto este dure. Uma

colheita enquanto dure é presente, um reinado que por ventura dure cinqüenta anos

também é considerado como presente. Nesse sentido a concepção de tempo para a

cultura Bantu estaria incompleta se a considerássemos abstraída do onde e do quando.

O tempo estaria, pois “selado” pelo evento, agarrado aos existentes, impedido de ser

pensado aquém ou além desses. O tempo não seria uma entidade abstrata e

homogênea que caminharia paralela aos acontecimentos os medindo ou marcando.

“Entre os Bantu, entretanto, não existe substantivo teórico para indicar o TEMPO

como nas línguas da cultura europeu-americana. Entre os Bantu, o que importa é o

tempo disso ou daquilo, o tempo propício para isso ou aquilo” (KAGAME, 1975, p.

115). O eventos não poderiam ser medidos por um tempo em geral, conforme as

horas. Duas horas de leitura não possui a mesma temporalidade comparada a duas

horas de praia, pois são dois eventos distintos. Até mesmo a dedicação de leituras

diárias por duas horas, de um mesmo texto obedecem a tempos diferentes, pois

podem ser eventos distintos.

Mas aqui devemos ter um certo cuidado, pois um evento dura o tempo de seu

movimento, e assim as próprias concepções de dia, mês, ano, décadas estão

amarradas a certos eventos e, portanto não podem ser pensadas como formas gerais

do tempo. O interessante é que, amarrado aos eventos, o tempo, enquanto movimento

136

existencial, no aqui e no agora, portanto no presente, é sempre singular. O tempo

presente é o único real, pois está sempre marcado pelos Existentes, numa expansão

em sua trajetória existencial.

Eles também não confundem o evento com o autor do evento, podendo um

mesmo autor realizar eventos distintos. Isso permite que o Existente que permaneça

em sua marcha existencial possa trazer consigo uma marca de vários eventos que já se

realizaram, encarados como eventos passados ou atividades que marcaram o tempo.

Tal posição diante do passado será importante quando mais à frente destacarmos o

papel da ancestralidade no aprendizado da capoeira. Já que o passado, enquanto um

conjunto de eventos que marcaram um tempo que já passou, continua de algum modo

existindo no presente, influenciando e marcando os eventos presentes. Só que ao se

encarnarem num evento atual, passam a realizar sua existência de modo diferente e

singular. Portanto, mesmo acreditando que os eventos passados já realizados possam

influenciar os eventos atuais, estes, como atuais, acabam por constituírem a sua

própria temporalidade.

Podemos nos perguntar se a cultura Bantu serializa o tempo. E como ela o

faz? De saída devemos ter em mente que qualquer forma de serializar o tempo deve

ser marcada pelo evento, não permitindo marcações gerais e homogêneas do tempo e

do espaço. Nesse sentido uma primeira diferença desta concepção empírica do tempo

é a idéia de futuro.

O ‘futuro’, sem as possibilidades de ser marcado por eventos reais, não responde à noção de tempo conhecível. O homem que nele projeta suas previsões não tem certeza de se encontrar lá no dia seguinte, segundo um provérbio ruandês: ‘as coisas de amanhã entram na conversação das pessoas de amanhã’ ou por outra: ‘se eu chegar até amanhã, tratarei disso (KAGAME, 1975, p.118).

Não significa que na prática os Bantu não façam planos. Mas sabem que o

futuro deve se tornar um evento e como tal existir para ser, o que os coloca numa

137

experiência temporal em que o futuro é sempre tratado como algo próximo. Portanto,

os planejamentos não são sobre algo que se realizará, mas sobre algo que está se

realizando. Eles podem perfeitamente pensar os dias seguintes da plantação, mas

estes dias estão impregnados de um movimento existencial atual e portanto dizem

respeito ao tempo presente, o que faz com que o passado e o futuro sejam avaliados

pelos eventos que se realizam nesse presente. Dentro da seriação dos Bantu, veremos

que o ano é o máximo de futuro que um indivíduo Bantu planeja ou ao qual ele se

refere. Não significa que suas práticas não visem a duração no tempo, mas sim que

seus planejamentos são a garantia dessa duração, mantendo-as encarnadas nos

eventos, no tempo presente.

Essas características fazem com que suas serializações do tempo obedeçam

aos eventos que eles encarnam. O evento dia é caracterizado pelos Bantu através da

sua ligação com o evento sol. Inicia-se com o nascer do sol e encerra-se com o

crepúsculo. O dia é vivenciado como uma jornada, como um evento em movimento

existencial. O que faz do dia um evento distinto da noite. Durante o dia ou à noite,

vários outros eventos marcam o que podemos chamar de “horas”, mas estas não são

relacionadas ao movimento regular de um relógio, e sim são medidas pelas atividades

desempenhadas. Se durante o dia os indivíduos vão caçar, as horas passam e duram

de modo diferente das que passam se eles forem plantar ou se dedicar aos festejos.

Assim, também o instante, ou o tempo mínimo é determinado como ocasião, tempo

favorável, momento de realizar isto ou aquilo. Em vez de perguntar que horas são,

pergunta-se: “é ocasião de quê?”. É hora de plantar, hora de comer etc. Não é

portanto, um hoje qualquer, um presente em geral, mas o dia é o hoje específico, que

varia de acordo com os eventos realizados nessa jornada.

138

Verifica-se que existem duas atitudes distintas entre os povos de cultura Bantu

para a referência aos dois dias anteriores e posteriores ao hoje. Muitas etnias

empregam o mesmo termo para designar o ontem e o amanhã, assim como o

anteontem e depois de amanhã. Ao passo que outras etnias dispõem de termos

distintos para se referir a esses eventos. Não podemos esquecer que o evento que

marca o dia é o sol, mas dependendo das tarefas ou práticas, o tempo presente pode se

estender ao de um dia, já que o princípio é o da marcação do tempo pelo evento.

A semana, enquanto marcação de tempo, parece inexistir para a maioria das

populações Bantu, já que em suas práticas não existem eventos que marquem este

tempo. Já o mês é marcado pelo evento lua, ou seja, os tipos de lua marcariam o

tempo que nós chamamos de mês. Mas de novo essa marcação das fases de lua se

experimenta por eventos próprios e destacados. Lua nova é propícia, uma boa ocasião

para cerimônias. A lua cheia indica o fim das noites claras e inicio das escuras. Em

geral os meses são indicados por nomes próprios, mas são marcados por eventos,

como época de chuvas femininas (fracas), chuvas masculinas (fortes), chuvas

longínquas, terra ressequida etc.

O ano é determinado pelo evento das estações, do movimento da terra em

volta do sol. São nomeadas as estações enquanto formas de marcar eventos próprios

como o frio o calor entre outros. “(...) o ano, ao que tudo indica, é a unidade de tempo

mais longa, correspondendo, em princípio, ao lapso de 12 meses, mas com a

possibilidade de ser projetado para além” (KAGAME, 1975, p.125). Além dessa

unidade de tempo, os Bantu jamais conceberam outras como séculos, e muito menos

milênios. É importante destacar que mesmo o ano, quando é considerado, o é como

tempo presente, sempre marcado por eventos que realizam seus movimentos

existenciais.

139

Quanto aos modos como os Bantu se referem ao passado – não ao anteontem,

nem a estação anterior, já que essas, marcadas por eventos, são constituídas e tratadas

como presente – os fazem com expressões como o tempo dos antigos, o “tempo de”,

“no tempo de”, “na idade de”, como os tempos de outrora, porém essas são utilizadas

sempre em sintonia com os fazeres do tempo presente. Desse modo, as noções de

sempre ou de eternidade são ininteligíveis para os Bantu, já que uma inteligência

finita e situada num evento não pode captar algo infinito e, portanto não Existente.

Kagame conclui o seu texto apontando para uma questão que, segundo ele,

não é explicitamente considerada pelos Bantu, que é a da direção do tempo.

Há uma reflexão atribuída a uma mulher que viveu sob o reinado de Mibambwe III Sentabyo, monarca que reinou por volta de 1741-1746. Essa mulher teria exclamado: ‘Uma vez que é dia, depois noite, qual será o fim deles? (KAGAME, 1975, p. 127).

Depois da noite é outro dia e depois outra noite ... Há, portanto uma concepção

cíclica, o que é reforçado pelas cerimônias cíclicas de iniciação, da reutilização de

nomes dinásticos. Tal circularidade do tempo convive com a idéia de irreversibilidade

dos eventos, que não podem de modo algum ocorrer de novo ou já ter ocorrido.

Desse modo a irreversibilidade do tempo serve de certa maneira de eixo central em volta do qual giram os ciclos, à semelhança de uma espiral, que dá a impressão de um ciclo aberto. Cada estação, cada geração a iniciar, cada quarto nome dinástico volta à mesma vertical, mas num nível superior. Em outros termos, eles não voltam nem ao mesmo ponto do espaço nem ao mesmo instante, o que corresponde logicamente à nossa individuação da entidade ‘movimento’ (idem, p. 127).

Uma primeira e importante ligação deste modo de experimentação do tempo

nas culturas Bantu com a capoeira Angola é a de que o seu aprendizado parece se

vincular muito mais aos tempos dos eventos, do que os tempos e seus marcadores em

geral. Não importa quantos dias por semana se treina, ou quantas horas se treina por

dia. Tal regulador não preenche os critérios do movimento existencial do aprendiz de

capoeira, não sendo, portanto, o que está em jogo neste aprendizado. Não se trata de

uma percepção subjetiva do tempo, como uma sensação psicológica, mas de um

140

tempo real, tempo dos acontecimentos, ou seja, que só pode ser acessado

experimentando os eventos que lhe dão corpo. Esta consideração é importante, pois é

muito comum atribuirmos a essa variação temporal, nuances subjetivas, ou modos

ilusórios de perceber um tempo que, na realidade, seria homogêneo e serial. Diante de

uma aula de duas horas constatamos, surpresos, impressões muitas vezes distintas

desta duração. O que para nós é uma percepção subjetiva de um tempo homogêneo e

objetiva é para os Bantu a dimensão real e verdadeira do tempo. Sendo assim, os

eventos, e não as diversas impressões deles, é o que varia no tempo. Tal colocação é

importante, pois amplia essa variação aos eventos de qualquer existente. Por exemplo,

o evento de curtir-se um pedaço de couro tem um tempo próprio que deve ser

respeitado e compreendido, assim como o de cortar e preparar uma biriba22 para que

esta se torne um berimbau. Não são as apreensões subjetivas e humanas que permitem

uma variação qualitativa do tempo, mas elas são as próprias marcas do tempo como

evento. O interessante é que, visto deste modo, até mesmo os eventos que parecem se

repetir trazem características próprias e únicas, portanto irrepetíveis. Cada um desses

eventos deve ser considerado ao mesmo tempo único e irrepetível, porém pertencente

a uma circularidade, ou seja, dentro de um retorno, todavia, de uma outra forma e em

um outro evento. A situação é paradoxal, como aquela de uma circularidade em

espiral, que coloca o aprendiz dentro de uma experiência, que como qualquer evento,

é própria e singular. A experiência de algum modo está marcada por uma

temporalidade circular, pois onde existem os fins podem-se marcar sempre novos

recomeços, podemos dizer que por mais que esse evento seja irrepetível, ele nunca

começa do zero. Este evento é único e singular e é ao mesmo tempo contínuo,

diferenciando-se de toda uma tradição de eventos que já se realizaram no passado.

22 Biriba é o nome da árvore da onde se extrai a madeira para se construir o berimbau, que é um dos principais instrumentos para a prática da capoeira.

141

Essa compreensão do tempo faz com que as marcações de ciclos ou etapas de

desenvolvimento gerais e formais, que busquem uma homogeneização, não sirvam

para indicar os caminhos do aprendizado. Isso não é o mesmo que afirmar o

relativismo ou o individualismo desse aprendizado, pois como vimos até aqui os

eventos enquanto existentes, que duram num presente do aqui e agora, não são

qualidades ou propriedades subjetivas, relativas às variações de cada um. Os sujeitos,

tais como qualquer existente, devem ser localizados e como tal desempenhar

movimentos existenciais. Assim, o aprendizado encarnado nos eventos deve

considerar não apenas os eventos do ser-inteligente, mas integrá-los aos outros

eventos, respeitando e compreendendo suas temporalidades.

Mas de algum modo esse processo singular e único, que é o tempo dos

eventos que habitam o evento capoeira Angola, vem ao longo de sua tradição

recomeçando, o que permite aos indivíduos desta tradição, principalmente aos mais

velhos, terem uma sabedoria acerca dos seus segredos. Digo sabedoria porque, ao

contrário da noção ocidental de conhecimento, a sabedoria não se julga conhecedora

dos rumos que os eventos vão tomar, mas de algum modo continua, junto aos eventos

do passado, a exercer o cultivo de práticas.

Cultivar é diferente de dominar e controlar. O conhecimento tem buscado

através do seu desenvolvimento, controlar e dominar cada vez mais os eventos

presentes e futuros, segundo modelos gerais que contam com uma repetição no futuro

de regras gerais e quantitativas. Já a sabedoria aprende com os eventos e reconhece

neles a necessidade de e o respeito por suas singularidades. Compreendem de modo

encarnado que não há evento em geral, mas este ou aquele evento. Ao invés de

controlá-los os Bantu inserem-se neles, incluindo-se em sua paisagem,

acompanhando os seus ritmos. Nesse sentido, os sábios do tempo dos eventos estão

142

muito mais interessados em agir de acordo com esses diversos eventos, atentos às

suas diferenças, do que em amarrá-los aos seus desejos e ambições pessoais. E é essa

sabedoria que se dedica a uma atenção e um acompanhamento dos eventos,

integrando-se neles, realizando-os em conjunto.

Há de novo uma estranha circularidade que atravessa o aprendizado da

capoeira Angola, segundo esta tradição da temporalidade Bantu, em que o aprendiz é

convidado com os demais companheiros a penetrar nos segredos dos eventos da

capoeira Angola, tendo o cuidado e sua atenção cultivados para esse tempo dos

eventos.

Desse modo, aprender capoeira é realizar em grupo e de modo singular uma

penetração nos tempos e ritmos, tateando-os e experimentando essas ocasiões,

ajudados, ou melhor, acompanhados por um cuidado dos Mestres e da tradição que

possuem, não um conhecimento, mas a sabedoria de dispor dos eventos passados para

recriar no presente seus ritos e práticas. Imerso nessa circularidade criativa, o

aprendizado da capoeira Angola se constrói com força e presença num cultivo na/da

tradição, mais do que meramente submetido ao treinamento de habilidades gerais.

Sabemos o quanto o tempo abstrato das horas, dias e anos, é hegemônico e até

mesmo comum em nossos dias. Diariamente somos governados pelo tempo das horas,

coagidos a encaixar e submeter nossa rotina a este senhor exterior e homogêneo.

Nesse sentido, cada prática que realizamos acaba sendo avaliada segundo os critérios

abstratos de um tempo de ninguém. Como este tempo é homogêneo e comum à

qualquer evento, a sensação que acabamos experimentando é a de que nunca temos

tempo para fazer nada. Já que poderíamos estar, nesse mesmo tempo, em outros e

possíveis eventos. Assim os instantes são avaliados de fora dos eventos. Os

momentos são vivenciados de modo cada vez mais perene e fugidio, diante das

143

inúmeras possibilidades que o tempo homogêneo nos oferece. Os eventos são tratados

como instantes esquadrinhados pelas marcações impecáveis de um tempo por vir.

Parece que temos que prestar contas com um futuro que nunca chega, ansiosos por

não perder tempo. Marcados, então, pelo futuro que não chega, os eventos presentes

só são experimentados como meios de atingir objetivos futuros.

Nas práticas de aprendizado tal situação tem levado a se buscar cada vez

menos tempo para se aprender. Técnicas e métodos são elaborados visando diminuir

o tempo do aprendizado. Tal como os animais que comemos que são submetidos a

técnicas das mais perversas para que atinjam o mais rápido possível o tamanho e o

peso do abate, ou como nossas hortaliças que são levadas também a diminuir o seu

tempo de amadurecimento, nossas práticas de aprendizado tem cada vez mais se

submetido ao encurtamento e homogeneização dos saberes. As escolas e os pais

maravilham-se diante a velocidade com que seus filhos aprendem a escrever e a ler.

Somos massacrados pelos tempos gerais e técnicos, que não cansam de nos informar

o quanto ainda precisamos fazer. Até mesmo os momentos de tempo livre são

governados por fazeres e tempo gerais e desencarnados. Isto é tão recorrente nos dias

atuais que quando por algum descuido experimentamos momentos próprios e únicos

nos assustamos e muitas vezes “metemos os pés pelas mãos”, já que não há tempo

(geral das horas) para perder tempo (dos eventos) com momentos sem utilidade, sem

perspectiva de futuro.

A prática da capoeira Angola tem um modo muito particular de definir o

tempo do seu cultivo. Desde os tempos mais antigos os angoleiros encaram,

principalmente, as rodas e festividades como tempo de vadiação. Mesmo atravessados

pelos tempos do trabalho, que como poucos submete o nosso corpo ao controle do

tempo geral e cronológico, os capoeiras aproveitavam as horas vagas para vadiar, ou

144

melhor, para parar o tempo do relógio e contemplar os tempos dos eventos. Frede

Abreu num lindo livro a respeito da capoeira na Bahia do século XIX (2005) destaca

esta atmosfera dos capoeiras, ao se referir a uma posição característica do jogo da

capoeira que é a “cocorinha”. Esta é o modo de ficar agachado, como que sentado nos

calcanhares sustentando o corpo sob os pés. Além de ser uma posição de defesa e

esquiva, a cocorinha é a posição em que os angoleiros iniciam, ao pé do berimbau

(diante da orquestra) e ao lado do oponente, o seu jogo. Frede Abreu relata assim essa

posição nos capoeiras do século XIX na Bahia:

A cocorinha. Eis aí outro cruzamento do mundo do trabalho do negro com a capoeira: a posição de cócoras em que os ganhadores ficavam (em repouso), às vezes horas a fio, como se não quisessem nada, desbastando o tempo, esperando a hora passar, adivinhando, intuindo, espreitando uma nova chance de trabalho. Torcendo para surgir um novo biscate, pois o trabalho do carregador (principalmente ligado ao cais) também dependia do acaso, das flutuações da maré, do tempo, das chegadas e saídas dos navios, da força da economia, da quantidade de carga disponível etc. Na beira do cais, enquanto a hora da labuta não chegava, podiam ficar esperando o relaxamento da vigilância policial para armarem rodas de jogos proibidos, cultuar vícios e iniciar as vadiações. (...) O hábito da cocorinha se repetido automaticamente pelos carregadores, todos os dias podia funcionar como um rito. Um rito de repouso e espera (faces da preguiça) – estado de vigília – no qual pessoas que dispunham de tempo indeterminado para assim ficar, terminavam por marcar um lugar, estabelecer um ponto fixo – seu canto. (ABREU, 2005, p. 103-104)

É impressionante a beleza dessa cena. Nela encontramos todos os elementos

da vadiação e de sua estreita relação com o tempo dos eventos. Primeiro elemento

presente é o repouso, ou melhor, o desligamento dos planos da movimentação

automática e claudicante do dia-a-dia. Ficar horas a fio numa mesma posição. Mas

esse repouso “como se não quisessem nada” não se confunde com uma dispersão da

atenção, um desligamento dos acontecimentos, mas a concentração de uma estranha

atenção desfocada, uma espreita atenta a diversos eventos inesperados. Repouso dos

movimentos automáticos e espreita aos movimentos existenciais dos eventos, “do

acaso, das flutuações da maré, do tempo, do relaxamento da vigilância policial ...”

Espera atenta mas não ansiosa, ciente e respeitosa do tempo dos eventos e da

145

necessidade de não atropelá-los, estando o sujeito disposto a aproveitá-los. Tal beleza

de cena e os seus elementos é que a capoeira Angola busca repetir nos ritos de

vadiação. “(...) um rito de repouso e espera”. “Vamos vadiar na roda de fulano!...” É

com esse espírito que os angoleiros se dirigem para a festas e suas rodas, relaxados e

dispondo de um tempo a perder. Despreocupados com as horas ou pelo menos não

deixando que elas lhe indiquem o rumo do dia. É dia de brincadeira, de atenção aos

tempos dos eventos, dos jogos, das conversas, dos encontros, das disputas. Sem presa

para realizar o que pretende, melhor ainda sem muitas pretensões. Na espreita,

portanto, em espera dos acontecimentos, rindo quando conseguem o tempo de uma

rasteira e rindo quando lhe passam as pernas. Afinal o riso na vadiação não surge

apenas quando o tempo lhe é oportuno, mas também quando não lhe é. De qualquer

modo é um evento e como tal devemos lhe render as homenagens devidas. A

vadiação é conseqüentemente um excelente professor de capoeira, permitindo ao

aprendiz cultivar uma disponibilidade, uma disposição ao tempo dos eventos, atentos

as dobras dos acontecimentos e a sua espreita sem ansiedade e pré-julgamentos.

Nesse sentido, nos parece ser a vadiação um dos elementos mais importantes

para o aprendizado da capoeira Angola, visto que, como vimos, esta situação não

pode ser antecipada ou controlada, o que impede de ser treinada ou até mesmo

conhecida como algo geral e antecipável. Por isso, não há como explicar a vadiação,

nem muito menos treiná-la, a não ser na convivência com situações propícias a ela.

Seu aprendizado, como tudo que diz respeito aos eventos singulares e irrepetíveis,

necessita de um fazer com, realizando com os aprendizes situações abertas e

propícias para o tempo da vadiação, sensibilizando-os, abrindo em suas experiências

sua atenção desfocada. Mostrando, na experiência, com situações vivas e não

estereotipadas, o quanto a ansiedade e a atenção focada podem ser incompatíveis

146

com a posição da espreita. A vadiação leva (levada de uma dança) os aprendizes a

disporem de uma atenção ao tempo dos eventos, a perderem tempo, para que os

signos possam ser contemplados e decifrados na atualidade dos encontros, sem pressa

ou ansiedade dos seus planos com o futuro. Um cultivo de uma disposição a perder

tempo. Essas práticas, cada vez mais raras em nossas vidas, e podemos perfeitamente

dizer, cada vez mais raras em nossas rodas de capoeira, que acabam se fechando aos

tempos alheios à viração da vadiação, são ritos que a capoeira Angola ainda tenta

manter.

3.3 – A musicalidade e o ritmo do aprendizado

Não se pode esquecer do berimbau. Berimbau é o primitivo Mestre. Ensina pelo som, dá vibração e ginga no corpo da gente. O conjunto de percussão com berimbau não é um arranjo moderno, não, é coisa dos princípios. Bom capoeira, além de saber jogar, deve saber tocar berimbau e cantar (PASTINHA, 1967, p.08).

Como estamos vendo até agora, o aprendizado da capoeira Angola atravessa o

tempo dos eventos, em que os aprendizes “de oitiva”, evitando os lugares comuns das

técnicas gerais e prontas para serem replicáveis, vão cultivando hábitos que

perpassam toda uma tradição. Dentro desta tradição que a capoeira tem construído ao

longo dos tempos podemos destacar os aspectos estéticos, éticos, políticos e sagrados

que atravessam essa cultura.

Nesse sentido o aprendizado da capoeira Angola também tem que de algum

modo considerar esses pontos. Veremos nos próximos tópicos uma descrição destes

elementos e dos modos de sensibilização e contágio que atravessam o seu

aprendizado.

A tendência, cada vez maior, de esportização da capoeira, que apontamos ao

longo do trabalho, tem deixado de lado os elementos estéticos envolvidos no seu

147

jogo. A musicalidade, os toques, os cantos e a compreensão dos movimentos como

formas de expressão estética têm sido esquecidos ou pouco trabalhados em seu

aprendizado. Além de luta, a capoeira também é uma dança, um bailar que se

expressa em ritmos, músicas, sons e cantos. Isto indica a necessidade do aprendiz de

cultivar essa prática como uma arte por meio da expressão de movimentos plásticos e

belos. Para isso, veremos ser importante também para esse aprendizado o saber tocar

os diversos ritmos e músicas do jogo de Angola.

Cada angoleiro é desafiado a encontrar-se com as levadas e os ritmos. Muitas

vezes este aspecto da capoeira é taxado de exibicionismo, como se os floreios fossem

desnecessários à objetividade do jogo. Veremos que estes aspectos estéticos não só

elevam nosso espírito como fazem parte da ritualística e de seu aprendizado, inclusive

servindo como um importante elemento para ludibriar e surpreender o oponente num

jogo.

Na seção sobre o aprendizado da ginga vimos a importância de um

movimento que encarne um equilíbrio precário, evitando as automatizações

previsíveis. Estes movimentos gingados e criativos são melhor compreendidos e

cultivados pelo aprendiz quando o aspecto estético da capoeira atua como professor.

O ritmo da Angola ajuda a ditar o ritmo dos movimentos, integrando-se numa

paisagem única. Veremos que ritmo e movimento estão diretamente ligados. Não

basta movimentar-se, é preciso gingar dançando, expressando um movimento

ritmado. Ao som da orquestra de berimbaus, pandeiros, atabaque, agogô e reco-reco,

e dos diversos cantos dos angoleiros, o aprendiz vai se deparando e pulsando com o

aspecto rítmico dos seus movimentos.

148

Muniz Sodré (1998) mostra que o ritmo da capoeira, assim como o do samba e

também do Jazz americano, expressam-se através da “síncope”, definida por ele como

uma batida que falta.

(...) é a ausência no compasso da marcação de um tempo (fraco) que, no entanto, repercute noutro mais forte. De fato, tanto no Jazz quanto no samba, atua de modo especial a síncopa, incitando o ouvinte a preencher o vazio com a marcação corporal – palmas, meneios, balanços, dança. É o corpo que também falta – no apelo da sincopa. Sua força magnética, compulsiva mesmo, vem do impulso (provocado pelo vazio rítmico) de se completar a ausência do tempo com a dinâmica do movimento no espaço (SODRÉ, 1998, p. 11).

O ritmo da capoeira dita, de algum modo, o ritmo do aprendizado dos

movimentos, numa espécie de complementação. Corpo e ritmo se integram numa

contínua e inesgotável imbricação. Diante das batidas e levadas da capoeira somos

levados a movimentar nosso corpo, e movimentando-o somos levados a tocar os

instrumentos. Isso faz com que o aprendizado dos movimentos da capoeira fique

bastante empobrecido quando destituído dos sons e ritmos. Assim como o

aprendizado dos sons e dos ritmos também se empobrece na ausência dos

movimentos. Muitas vezes nossas ‘academias’ de capoeira, por questões técnicas ou

até mesmo por dificuldades práticas (falta dos instrumentos, ausência de tocadores ou

baixo numero de praticantes), acaba separando o aprendizado do ritmo e aquele dos

movimentos. Inserido num modo técnico e pedagógico que procura separar e

especificar os elementos da prática da capoeira, observamos em muitas escolas de

capoeira esta cisão. A utilização de ritmos gravados no aprendizado dos movimentos

(prática usual hoje em dia) acaba por prejudicar esta sintonia ritmo-corpo, pois essa

simbiose deve ser exercida ao vivo, expressando suas influências recíprocas e

circulares.

Nas escolas tradicionais de capoeira Angola observamos um cuidado em criar

espaços de cultivo e treinamento em que os praticantes executam em grupo e ao vivo

os movimentos, os toques e cantos, aprendendo todos esses elementos em conjunto.

149

Como num ensaio de uma banda, a capoeira Angola, em seus treinos, deve reproduzir

o máximo possível a atmosfera das rodas. Quem já treinou num ambiente deste sabe

perfeitamente o quanto o seu aprendizado dessa maneira “rende mais” do que quando

aprendemos esses tópicos separadamente. Tocar e cantar integram-se na paisagem do

jogo, modificando completamente os movimentos que cultivamos na roda da Angola.

Mas esta relação entre os elementos rítmicos e corporais deve ser cultivada e

incentivada, para que o aprendiz consiga aperfeiçoar esta sintonia rítmico-corporal.

Os instrumentos musicais e os seus diversos toques, as músicas e suas letras, os

cantos e seus lamentos, os coros e suas intensidades vão servindo como guia, como

verdadeiros Mestres, abrindo as condições desse cultivo. Essa característica integrada

é muitas vezes criticada pois de algum modo dificulta aos aprendizes iniciantes a se

integrarem a paisagem. Buscando talvez “facilitar” o aprendiz, as escolas ou

academias separam esses elementos nos treinos.

É comum observamos nesses espaços seqüências separadas. Por exemplo,

observamos treinos em que no início são realizados exercícios de alongamento e

aquecimento, depois seqüências de movimentos, golpes e contra-golpes, nos quais o

aprendiz sozinho imita ou acompanha o Mestre ou o professor. Note-se que os treinos

de movimento ocorrem fora do contexto ou da paisagem da capoeira. Na roda sempre

jogamos com alguém, mas nesses treinos os exercícios são individuais para que

possamos realizar os movimentos prestando a atenção apenas neles. É possível

perdermos horas realizando esses exercícios. No final são propostos exercícios em

duplas para que realizem os movimentos que se treinou sozinho. Logo após a

“malhação física”, às vezes são propostos treinos de toques de instrumentos e cantos

das músicas da capoeira. Sentados os praticantes são estimulados a repetir os toques e

as canções, indicando a necessidade de prestar atenção ao que o Mestre faz e nas

150

respostas do aprendiz, seja você ou outro companheiro. Quando dá tempo, realiza-se

uma pequena rodinha, onde aí sim os elementos se reúnem. Podemos reparar a

fragmentação do processo de aprendizado.

Talvez isso seja feito para facilitar o aprendiz iniciante, porém notamos nessa

simplificação um aprisionamento e até mesmo uma “infantilização” do aprendiz,

como se ele não pudesse entrar nos ritmos e movimentos sem que os professores

“mastigassem” os ritos pedagogicamente. Esta é uma importante diferença entre os

modos de aprendizado “de oitiva” e na rua para as técnicas de aprendizado das

escolas. Nesse sentido, entendemos e apostamos que as escolas de capoeira Angola de

influência de Mestre Pastinha têm tentado preservar seus fundamentos para que

mesmo em outros contextos, no tempo presente, consigam realizar um aprendizado

mais encarnado nos rituais da tradição.

Entretanto, o aprendiz não consegue essa integração apenas escutando ou

assimilando os sons da capoeira, sendo preciso praticá-la. Tal aspecto é considerado

um ponto essencial no aprendizado da capoeira Angola. Desde o início o aprendiz é

apresentado e incentivado pelos Mestres a aprender a tocar os instrumentos e cantar

as músicas. Nesse processo são incluídas também a escolha dos materiais e a

construção dos instrumentos, bem como a criação e improvisação dos cantos. Hoje

observamos o quanto as academias deixam de lado a transmissão dos modos de

construção, afinação e execução dos principais instrumentos da capoeira.

A escola de Mestre Pastinha nos ensinou que a aula de capoeira deve ter,

necessariamente, espaço para as oficinas dos instrumentos. Recordo-me que em

minha primeira aula de capoeira Angola, tendo no grupo apenas três pessoas, fomos

iniciados na construção dos caxixis23. E durante os meses seguintes construímos

23 Um chocalho feito de fios de palha, pedaço de cabaça e sementes de lágrimas de nossa senhora., importante para o toque do berimbau.

151

nossos berimbaus, desde a biriba crua (madeira que dá o nome ao instrumento),

passando pelo processo de descascá-la, alisá-la encontrando a grossura ideal do arco,

“descarcar” os pneus velhos para obter os arames propícios, limpá-los, preparar o

couro, a corda, cortar e limpar as cabaças até o encontro das afinações e do

acabamento com pinturas e desenhos. Mas não se trata apenas de um aprendizado

técnico ou industrial dos instrumentos, pois essas oficinas serviam também integrar o

grupo. Nelas, perdendo um tempo, ou até mesmo parando o uso ordinário do tempo,

íamos nos conhecendo, ouvindo as histórias da capoeira, aprendendo com o grupo a

não somente construir os instrumentos como a mantê-los e principalmente formar a

“paisagem” ou o contexto do nosso grupo. Como os horários de treino acabavam

sendo pequenos para tantos afazeres, acabávamos marcando encontro nos finais de

semana para continuar os trabalhos. Nestes dias preparávamos comidas, realizávamos

treinos mais longos e podíamos, sem pressa, ir cultivando e integrando nosso grupo

nos diversos elementos que a paisagem da capoeira traz e mobiliza.

Uma vez, na ocasião de uma roda festiva em que nosso grupo realizaria num

domingo, e diante da dificuldade de continuarmos utilizando um atabaque

emprestado, decidimos encontrar um cabrito e matá-lo para construirmos um.. Como

haveria roda e a ocasião era festiva, saímos à procura do cabrito no sábado,

resolvemos que sua carne poderia ser oferecida num churrasco de confraternização

após a roda. Pois bem, sábado pela manhã bem cedo, fomos Mestre Carlão, um

colega chamado Axel e eu em meu carro tentar encontrar um cabrito. Nos dirigimos

para Itaboraí, município rural próximo de Niterói, e começamos a parar,

principalmente nos bares, tentando obter informação a respeito de alguém que

quisesse vender um cabrito. Depois de uma longa e agradável manhã de procura,

encontramos um senhor que o tinha. Negociação realizada, nos dirigimos para a casa

152

de um amigo veterinário do Axel, onde sacrificamos o animal, separamos o couro e a

carne e, no caminho de volta, passamos na casa onde a mãe de santo do Mestre

Carlão realiza seus cultos, deixando o couro para ela preparar e secar. Por último, já

bem de noite, voltamos para o casarão do bairro de São Domingos, então, sede de

nosso grupo e passamos a noite toda limpando e temperando o cabrito.

No dia seguinte, após a roda de capoeira realizamos um samba de roda

acompanhado de cerveja e de cabrito. Até hoje e lá se vão uns 8 anos, o couro desse

cabrito continua cantando no atabaque de nosso Mestre, em seu grupo Kabula

sediado em Londres, Inglaterra. Podemos notar que esta experiência realizada fora do

horário dos treinos, serviu bastante para o nosso aprendizado. São nesses momentos

que podemos não apenas manter os ritos da capoeira, mas, sobretudo construí-los no

presente. Rica experiência na qual, encarnados na tradição da capoeira, vivenciamos

sua construção em consonância com os fazeres de nossos ancestrais. Passado e

presente não entraram em contradição, mas se misturaram em uma imbricada

circularidade paradoxal, que conciliava tradição e modernidade, passado e presente.

O berimbau é formado por uma madeira, normalmente da árvore da biriba. Ele

deve ser descascado e alisado até encontrar a resistência de um arco, podendo ser

envergado de modo a permitir uma tensão apropriada para esticar um arame entre as

duas extremidades. O arame utilizado na confecção do berimbau é tirado dos pneus

usados, cujo tamanho e resistência é muito propício para o berimbau. Assim

construído, traz um elemento de modernidade, já que nossos antepassados utilizavam

tripas de animais. Depois de limpo, o arame deve ser medido e suas extremidades

envergadas formando um anel. Um desses anéis será preso a uma das extremidades da

“verga” 24 e o outro será amarrado num barbante de algodão. Esta extremidade servirá

24 Nome da biriba depois de pronta.

153

para amarrar na verga no momento em que esta for envergada. Para prender o arame

na verga afiamos uma de suas pontas para que o anel de arame entre e se fixe,

enquanto que na outra extremidade é fixado um pedaço de couro, que servirá de apoio

para se obter a envergadura do arco. Ao arco de biriba já envergado juntamos uma

cabaça furada e oca, que desempenhará o papel de caixa de ressonância do som do

berimbau. A cabaça é uma fruta, da família da abóbora, quase sempre de forma oval,

que possui uma casca bastante dura. No seu interior encontramos algumas sementes

que são retiradas, permitindo um espaço vazio e oco. A cabaça é utilizada,

principalmente no nordeste do Brasil, na confecção de muitos utensílios domésticos,

tais como a cuia, e também na confecção de bonecas, mamulengos etc.

Na orquestra da capoeira Angola são utilizados três tipos de berimbau, cuja

variação diz respeito ao tamanho da cabaça. O de cabaça grande é conhecido como

“gunga” e emite um som mais grave; o de cabaça média é conhecido como “médio” e

emite um som intermediário, nem muito grave nem muito agudo; e o de cabaça

pequena que emite um som agudo é chamado de “violinha”. Gunga, médio e viola

alternam-se nos ritmos da capoeira Angola. Para estabelecer o contato com o fio de

arame e com isso tirar um som do berimbau utilizamos um extenso pedaço de pau

(normalmente feito da própria biriba) denominado de “baqueta”. Junto a esta baqueta

utilizamos um chocalho, o caxixi, que deve ser colocado entre os dedos na palma da

mão, para que fique chacoalhando no ritmo de nossas batidas com a baqueta. O caxixi

é feito de palha trançada, cuja base deve ter um pedaço de cabaça no formado de um

círculo, desde que sua superfície mais dura e lisa esteja disposta no interior do caxixi.

Dentro dele colocamos umas sementes pequenas e duras denominadas de “lágrimas

de nossa senhora”. Com o movimento, essas sementes tocam a superfície lisa e dura

da cabaça, emitindo um singular som de chocalho.

154

O berimbau deve ser erguido por umas das mãos, segurado e equilibrado com

os três dedos mais fracos da mão, sendo que um desses, o dedo mindinho acaba sendo

sobrecarregado do peso. O dedão (polegar) e o indicador ficam livres para segurar

uma moeda grande e grossa, mais ou menos do tamanho de uma moeda de um real,

chamada de “dobrão”. Conforme vamos batendo a baqueta no arame esticado

podemos extrair três tons distintos, conforme o encosto do dobrão nesse arame.

Conseguimos um tom mais grave e aberto quando realizamos um batida em que o

dobrão não esta encostado no arame, um tom mais agudo quando o dobrão toca o

arame de modo firme, e um som intermediário quando o dobrão toca o arame

frouxamente. O tocador também deve movimentar afastando e encostando a cabaça

no peito o que permitirá uma variação de sons mais abafados (encostado no peito) e

“aberto” quando desencostado do peito. Assim conseguimos muitas e infinitas

variações de sons do gunga, do médio e do viola. O tocador deverá aprender a

segurar e equilibrar esse instrumento e conseguir com a baqueta, o caxixi e o dobrão

executar as variados ritmos da capoeira Angola.

Segundo o dicionário de Câmara Cascudo o berimbau é um “instrumento

musical dos escravos africanos por eles popularizados no Brasil” (CASCUDO, 1988,

p. 120-121). “O berimbau não existiu somente em função da capoeira, era usado pelos

afro-brasileiros em suas festas e sobretudo no samba de roda” (REGO, 1968, p.71).

Segundo a maioria dos historiadores da capoeira, ele se popularizou nessa prática a

partir do final do século XIX e início do XX, principalmente com os capoeiras da

Bahia.

O atabaque e o pandeiro são instrumentos de percussão e exercem no rito da

capoeira a função de marcação dos compassos. O atabaque é um tambor, feito com

peles de animais estendidas sobre um tronco de árvore oca. Seu fundo redondo,

155

mantido aberto, é por onde ecoa o som. “A origem do atabaque é dada como

africana” (CASCUDO, 1988, p. 83). Já o pandeiro “é um aro de madeira, em cuja

altura há vãos, e neles uns arames em que estão enfiadas várias lâminas de latão, ou

soalhas, que, batendo uma nas outras, quando se brande, tange, ou vibra o pandeiro,

fazem um som agudo” (BARROS, apud CASCUDO, 1988, p. 574). Existem dois

tipos, uns com pele de animal esticado no aro de madeira e um sem pele. O utilizado

pela capoeira Angola é o com pele esticada. Foi trazido ao Brasil pelos portugueses,

que o conheceram através dos romanos e árabes. O atabaque e o pandeiro funcionam

como instrumentos de marcação, e suas batidas no ritual da capoeira não permitem

muitas variações. Mas esta marcação simples é fundamental, pois indicam o tempo

todo a cadência da orquestra e dos jogadores.

O agogô e o reco-reco completam os instrumentos de percussão da orquestra

de capoeira Angola. O agogô é um “instrumento idiofone, constituído por uma dupla

campânula de ferro, que se percute com um pedaço de metal, produzindo dois sons,

um de cada campânula” (CASCUDO, 1988, p. 19). Já o reco-reco é um instrumento

de percussão que:

traduzem um som de rapa, causado pelo atrito de duas partes separadas. No seu feitio talvez mais conhecido, o reco-reco consiste num gomo de bambu com talhos transversais, friccionados com um pauzinho, (...) que na Bahia dão o nome de ganzá (Idem, p. 665)

Nesse sentido os instrumentos de percussão, atabaque, pandeiro, reco-reco e

agogô, desempenham o papel de marcadores dos compassos dos ritmos e músicas da

capoeira Angola. Os berimbaus é que vão entoar os ritmos e suas variações, portanto,

são eles que ditam os ritmos que são marcados pelos instrumentos de percussão. Vão

assim formando a orquestra numa sincronia que mantém o ritmo afinado e propício

para a prática da capoeira. Quem toca o gunga é que comanda o tipo de toque que a

156

orquestra deve seguir. O médio acompanha o gunga, só que invertendo o seu toque, e

o violinha também acompanha o ritmo, podendo variar livremente os toques.

Existem vários toques na capoeira, sendo cada um representativo do tipo de

jogo que deve ser jogado. Entre as escolas e diversos Mestres de capoeira Angola

existem particularidades quanto a esses toques, seus tipos e suas variações. O que nos

impede de afirmar neste trabalho uma dessas formas como a mais usual. Mesmo na

escola dos descendentes de Mestre Pastinha observamos alterações e ordens de toque

diversos. São os toques que, de algum modo, ditam os ritmos do jogo, sua velocidade

e cadência, assim como o tipo de jogo, mais aberto, fechado, entrecruzado (jogo de

dentro), alto ou baixo. O que faz com que o aprendiz não apenas saiba reconhecê-los

e tocá-los, mas jogue no ritmo indicado por eles.

O aprendizado da capoeira Angola deve inserir o aprendiz ao seu tempo, tanto

nos modos de confeccionar, manter e afinar os diversos instrumentos envolvidos na

arte da capoeira, quanto permitir que eles possam saber tocar todos eles. Abrir

espaços de cultivo da parte musical da capoeira é vital no seu aprendizado. Tais

espaços têm sido negligenciados em nome dos movimentos. Graças às novas

tecnologias, é possível treinar capoeira com sons gravados, levando muitos capoeiras

a desenvolverem seu jogo desconhecendo completamente a arte de tocar e ouvir as

diversas variações da orquestra.

Num depoimento a Maurício Barros de Castro e a mim, Mestre Nestor

Capoeira, que mesmo sendo de uma origem distinta da capoeira Angola, mas tendo

uma larga experiência no jogo, fala um pouco da perda do sentido do ritmo pelos

atuais capoeiras.

O que eu vejo, tanto na Angola quanto na Regional, é que ninguém ginga no ritmo. Em 1980 estava uma loucura, tinha capoeira em todo lugar. E nas academias de status as rodas não tinham som ao vivo, era eletrônico. Nas academias de São Paulo os caras sabiam tocar, mas achavam brega tocar

157

berimbau durante a roda ou dentro da aula. Eles tocavam somente em casa ou quando faziam batizado.(CAPOEIRA, 2007, p. 20)

O Mestre aponta para uma perda cada vez maior da questão rítmica da

capoeira. Poucos são os capoeiras que já construíram um instrumento. A maioria

absoluta, se tem um berimbau em casa, comprou de alguém. Assim como são poucos

os que se dedicam aos toques e prestam um tempo ouvindo, cantando e tocando as

músicas da capoeira.

As academias ou escolas de capoeira Angola, diante dos fundamentos

deixados por Mestre Pastinha, buscam criar espaços para que os aprendizes de

capoeira possam experimentar toda a rítmica envolvida nesta tradição. Tal cuidado

que o movimento da capoeira Angola dá a questão rítmica é reconhecido até por

aqueles que não participam diretamente da Angola. Mestre Nestor Capoeira neste

mesmo depoimento diz:

Mas apesar das críticas que eu tenho da Angola, acho que uma das coisas que ela mais trouxe foi a música. A Angola que trouxe o lance do berimbau de volta, porque os caras estavam na eletrola. Os grupos Abada, Muzenza, Capoeira Geraes usam três berimbaus porque viram que o negócio é forte. Se bem que eles não tem aquele cuidado, nem organização, nem sensibilidade no toque. (CAPOEIRA, 2007, p. 21)

Existem algumas maneiras de ensinar os toques e os ritmos da capoeira. Mas

a mais comum na capoeira Angola é aquela da tradição oral. Ou seja, aqueles que

sabem vão mostrando os toques, nomeando-os e realizando suas variações e os

aprendizes vão, do seu jeito, imitando. Esta tradição não vê com “bons olhos” as

separações ou especializações desse aprendizado. Nesse sentido, ensinam ou buscam

ensinar do modo antigo, sem infantilizar o aprendiz e seu ouvido. Este convive desde

o início com os instrumentos e seus toques no seu conjunto, aprendendo, no “calor”

da orquestra, a sensibilizar sua percepção e seus movimentos “de oitiva”, sem método

ou técnicas pré-definidas. Conforme cada aprendiz vai tocando, os Mestres vão

pontuando o que eles acham que deve ser melhorado. Esses exercícios são praticados

158

quase sempre em grupo e às vezes individualmente para que o aprendiz possa escutar

o que esta tocando. Na tradição da capoeira Angola são reservados as horas iniciais

dos treinos para o exercício dos ritmos, toques e cantos. Se o grupo for grande, a

orquestra fica ativa o tempo todo, alternando os seus tocadores para que todos possam

tocar e exercitar os movimentos numa paisagem mais completa de sons, toques,

cantos e movimentos. Todos são estimulados e até mesmo constrangidos a tocar os

instrumentos, buscando suas variações e também os cantos. Os aprendizes também

são estimulados a realizarem fora dos treinos a prática do ritmo. Construindo o seu

próprio berimbau, os aprendizes aproveitam as oportunidades para treinar, seja em

casa ou nos lugares que acharem melhor. Mas o que a tradição de aprendizado da

capoeira Angola ensina é que nas rodas ou nos treinos é que se aprende, o que estende

o aprendizado do ritmo para além de um domínio técnico de uma habilidade musical.

Os cantos e louvações também são importantes nos ritmos da capoeira

Angola. Existem três tipos de cantos. A ladainha é constituída por textos longos onde

os capoeiras discorrem sobre temas e assuntos próprios da tradição. Para Maurício

Barros de Castro:

Canções que abrem a roda de capoeira Angola, as ladainhas costumam recorrer ao lamento do negro marcado por uma experiência capturada na África e remodelada numa situação escravista. Um lamento que permaneceu nas trajetórias futuras, pois a experiência da afro-descendência no Brasil não se resume ao episódio da escravidão. O que permanece é um costume antigo que se realiza no jogo, no qual os capoeiristas, agachados ao pé do berimbau, a espera do momento para jogar, envoltos em um silêncio religioso que apenas se rompe com o canto sofrido, louvam a memória de uma arte que se expressa sobre o signo da alegria, da vadiagem, da brincadeira e da luta. Ao narrar a trajetória do negro, a ladainha evoca deus e santos católicos, orixás, figuras lendárias, antigos Mestres, ou ainda os casos de repressão que se impuseram aos capoeiristas (CASTRO, 2007, p. 103)

Nesse canto apenas um dos componentes canta sem que os demais respondam

ou imitem. No ritmo da orquestra um dos jogadores, normalmente aquele que está

tocando o gunga, puxa a ladainha. Durante a ladainha não há jogo. Todos devem estar

159

atentos para ao que é cantado, louvando e reverenciando a mensagem das ladainhas.

Uma delas criadas por Mestre Pastinha25 diz assim:

Bahia minha Bahia

Capital do salvador

Quem não conhece a capoeira

Não lhe dá o seu valor

Todos podem aprender

General e também que é doutor

Quem deseja aprender

Venha a Salvador

Procure o Pastinha

Ele é professor

camaradinha

Ou ainda uma outra ladainha de Mestre Canjiquinha:

O calado é vencedor

Mas pra quem juízo tem

Quem espera ser fisgado, o meu bem

Não roga praga pra ninguém

A mulher é como a cobra

Tem sangue de Peçonha

Deixa o rico na miséria, o meu bem

Deixa o pobre sem vergonha

Vou dizer pra meu amigo

Que hoje a parada é dura

Quem ama mulhé dos outros, o meu bem

Não tem vida segura

Camará

As ladainhas são, portanto cantos que devem ser escutados, sem respostas ou

jogos. Imediatamente após as ladainhas entramos nas “chulas”. Estas são marcadas por

frases simples que são repetidas em coro pelos praticantes. Durante a chula também não

25 Faixa 1 do CD Pastinha uma vida pela capoeira.

160

há jogo e devemos escutá-la repetindo em coro suas frases. Mestre João Pequeno (2000,

p. 26) dá um exemplo de chula:

Que vai fazer?

Coro: Que vai fazer camarada?

Oi, oi, ô, com capoeira?

Coro: E, ê, com capoeira camará?

Oi, oi, ô sabe jogá!

Coro: Iê, sabe jogá, camará!

Oi, oi, ô joga-te pra lá

Coro: Iê, joga-te pra lá, camará!

Oi, oi, ô joga-te pra cá

Coro: Iê, joga-te pra cá, camará!

Volta que o mundo deu

Coro: Iê que o mundo deu camará

Volta que o mundo dá

Coro: Iê que o mundo dá camará

Imediatamente após a chula iniciam-se os “corridos” e os jogadores podem

começar o jogo.

O lamento (das ladainhas), no entanto não é o único cântico da roda. A maior parte do ritual se desenrola através do canto dos corridos, cuja expressão musical se dá, na sua execução, de forma bem semelhante às canções de samba de roda baiano e das variações do partido-alto carioca (CASTRO, 2007, p. 105).

Os corridos são cantados por um solista e respondidos pelo coro. O cantador,

respeitando o enredo do corrido pode improvisar, inserindo situações presentes ou

versar segundo as tradições. Os corridos seguem a alternância do coro e do cantador.

Durante os jogos o cantador pode mudar de corrido, de preferência aproveitando as

situações do jogo, da data, da localidade e de muitos outros elementos para louvar e

comunicar suas mensagens. Entre muitos escolhemos um bastante cantado nas rodas de

Angola citado por Waldeloir Rego (1968, p. 96):

Sô eu Maitá

Sô eu Maitá

161

Sou eu

Coro: Sô eu Maitá

Sô eu Maitá

Sou eu

Puxa, puxa

Leva, leva

Joga pra cima de mim

Coro: Sô eu Maitá

Sô eu Maitá

Sou eu

Quem tive mulé bonita

É a chave da prisão

Maitá

Coro: Sô eu Maitá

Sô eu Maitá

Sou eu

Vô dizê pra meu amigo

Qui hoje a parada é dura

Coro: Sô eu Maitá

Sô eu Maitá

Sou eu

Quem ama mulê dusôtro

Não tem a vida segura

Coro: Sô eu Maitá

Sô eu Maitá

Sou eu

Ou então (Idem, p. 96-97):

Até você

Coro: minha comadre

Falo de mim

162

Coro: minha comadre

Eu não falei

Coro: minha comadre

Falo que eu vi

Coro: minha comadre

Falô de mim

Coro: minha comadre

Os corridos respeitam o formato de diálogos ou conversas que são marcadas e

respondidas pelo coro. Dentro destes cantos destacamos a importância do coro, que

deve ser de todos e buscando da melhor maneira a sintonia da roda. Os toques e os

cantos dão a dinâmica rítmica de uma boa roda de Angola. O aprendiz deve, portanto,

auxiliado pelos Mestres e pelos alunos mais antigos, aprender a tocar e cantar, seja no

coro ou puxando os cânticos da capoeira.

Podemos aprender estes toques, ritmos e cantos da capoeira ouvindo em casa ou

escutando fitas e discos, mas a tradição da capoeira Angola indica que a melhor maneira

de aprender é nos treinos e nas rodas, onde o coletivo e com ele o astral do grupo ajuda

a sintonizar o ritmo, aprendendo as diversas variações e suas relações com a dinâmica

do jogo. Portanto, nos treinos e nas rodas é que o aprendiz deve se exercitar, procurando

sempre que possível pegar os instrumentos, variá-los, cantando sem parar. O

aprendizado da capoeira Angola como veremos mais à frente é marcado pela tradição e

principalmente pelo coletivo. É um trabalho do grupo, pelo grupo e em grupo.

O elemento rítmico ou estético da capoeira Angola não pode ser encarado como

mero complemento, pois há nessa tradição um ritmo que ensina. Se bem realizado,

aprendemos melhor os movimentos, entendendo na prática que jogar também é dançar.

Um bom jogo deve, portanto envolver através do ritmo os movimentos floreados e

expressos com arte e sensibilidade. Sobre isto diz Muniz Sodré:

163

Na cultura tradicional africana, ao contrário, a música não é considerada uma função autônoma, mas uma forma ao lado de outras – danças, mitos,, lendas, objetos – (...) O ritmo da dança acrescenta o espaço ao tempo, buscando em conseqüência simetrias às quais não se sente obrigada a forma musical no Ocidente. Na cultura negra, entretanto, a interdependência da música com a dança afeta as estruturas formais de uma e outra, de tal maneira que a forma musical pode ser elaborada em função de determinados movimentos de dança, assim como a dança pode ser concebida como uma dimensão visual da forma musical” (SODRÉ, 1998, p. 21-22).

Assim, vemos que na capoeira o elemento rítmico não se reduz à música ou aos

toques dos instrumentos, mas se integra com os movimentos ou danças, formando uma

circularidade criativa. Os dançarinos vão se sensibilizando aos toques e ritmos e esses

vão indicando os passos, numa dinâmica auto-regulada. Quando Mestre Pastinha diz

que o berimbau ensina, não o faz de modo metafórico, mas no sentido real de um bom

guia, que indica os caminhos dos movimentos. Podemos perfeitamente dizer que a

dança e seus movimentos também ensinam, indicando os caminhos dos ritmos, toques e

canções. A sensibilização que envolve esses ritmos também envolve os movimentos, e

vice-versa. Preenchendo as lacunas da síncope das batidas e dos cantos surgem os

movimentos das danças, que realizados em sintonia com o ritmo com estilo e beleza,

indicam e contagiam os cantadores e tocadores na busca de inspirações. Talvez seja essa

integração ritmo-corporal um dos muitos sentidos do que nós capoeiristas chamamos de

“axé”, quando vadiamos nas rodas de Angola. Uma roda encarna o “axé” quando

tocadores, cantadores e jogadores dançam juntos numa dinâmica alegre e criativa.

Como afirma Sodré “cantar/dançar, entrar no ritmo, é como ouvir os batimentos do

próprio coração” (SODRÉ, 1998, p. 23). Diríamos é como ouvir o coração da roda.

3.4 – A magia e a ética da mandinga: um aprendizado da malícia

Coro: Oi sim sim sim Oi não não não

164

Mas hoje tem amanhã não

Hoje tem amanha não

Coro: Oi sim sim sim Oi não não não

Eu falei sim sim não não sim

Eu falei não sim sim não não

Coro: Oi sim sim sim Oi não não não

Que o negro já é livre

Ai meu bem já tem a libertação

Coro: Oi sim sim sim Oi não não não

Se você dizer que sim

Eu vou a dizer que não

Coro: Oi sim sim sim Oi não não não

Até o momento, vimos que o aprendizado da capoeira Angola deve ter o seu

entendimento ampliado para além da mera aquisição de habilidades. Nessa tentativa de

ampliação, destacamos o cultivo de hábitos e um aprendizado da atenção que desloca o

aprendiz de um lugar de total passividade, de um adequado condicionamento, de uma

atenção focada, para um cultivo de uma atenção concentrada e aberta, próxima da

posição da espreita. Vimos também que o cultivo desse hábito requer um tempo. Não do

tempo geral e abstrato do relógio, mas de uma temporalidade do evento, que varia e

dura conforme a experiência vai exigindo.

Mostramos também a importância do perder tempo, da disponibilidade do

aprendiz ao tempo da vadiação. Vimos também a importância do elemento estético no

aprendizado da capoeira Angola. Destacamos um ritmo do aprendizado no qual o corpo,

a música e os toques dos instrumentos se enlaçam numa estranha complementaridade

que não se fecha, mantendo sempre o movimento. A síncope da batida no ritmo da

Angola força o corpo a uma dança que por sua vez força o ritmo, numa circularidade

criativa. Todos esses elementos do aprendizado acabam por remeter a situações

circulares, cujo retorno não encontra o caminho inicial. Veremos agora um pouco mais

165

de perto a importância da dimensão ritualística e dos elementos mágicos e éticos na

formação do aprendizado da capoeira Angola.

A dimensão mágica e misteriosa tem um nome especifico na tradição da

capoeira Angola: mandinga. Segundo Waldeloir Rego o termo é devido a uma “região

da África Ocidental, habitada pelos povos banhados pelos rios Níger, Senegal e

Gâmbia, onde havia excelentes feiticeiros” (REGO, 1968, p. 13). Segundo o dicionário

de folclore de Camara Cascudo mandinga é um “feitiço, despacho, mau olhado, ebó. Os

negros mandingas eram tidos como feiticeiros incorrigíveis” (CASCUDO, 1988, p.

161). Esses feitiços ou mandingas eram manifestados por objetos que se transformavam

em patuás ou amuletos carregados pelos negros. Estes patuás ganhavam, através de

feitiços, poderes mágicos, representando no mundo “profano” os domínios “sagrados”

do sobrenatural (antepassados mortos e os deuses).

Mircea Eliade em seu livro O sagrado e o Profano aponta para algumas

características que a experiência do sagrado forja nos povos arcaicos e “primitivos”26.

Mostra como essas populações vivem buscando um contacto com o sagrado, através de

suas manifestações nos eventos mundanos e profanos. O mundo sagrado precisa se

manifestar nos eventos do tempo presente através dos ritos e dos seus mitos. Sem estas

manifestações, os homens primitivos não conseguiriam se guiar no mundo natural,

transcendendo-o. Nesse sentido, quando o sagrado se manifesta, por exemplo, num

objeto, este perde suas vinculações terrenas passando a expressar os poderes atemporais

e eternos dos mundos sobrenaturais.

O sagrado precisa de eventos do mundo natural para expressar os poderes

sobrenaturais, manifestando uma transmutação. Eliade chamou tal manifestação de

26 Respeitaremos em nosso trabalho o uso do termo “primitivo”, já que é assim que Mircea Eliade se refere a esses povos antigos. Sabemos que ao longo da história da antropologia este termo foi muitas vezes usado num sentido “pejorativo”, dando o significado de “povos atrasados”. Principalmente depois de Levi-Strauss o termo primitivo caiu e acabou entrando em desuso. No entanto, o sentido dado por Mircea Eliade não parece se confundir com este ligado a uma antropologia evolucionista.

166

hierofania cujo sentido é que “algo de sagrado se nos revela” (ELIADE, 2001, p. 17).

Tal manifestação pode se dar nos planos mais comuns dos objetos, pedras ou amuletos,

indo até as mais supremas formas, como a encarnação de Deus no homem Jesus Cristo.

Mas esses corpos terrenos que manifestam a dimensão do sagrado não são venerados e

adorados por eles mesmos, mas por aquilo que eles expressam. Nesse sentido, o poder

de um amuleto não é proveniente dele, mas daquilo que ele porta. Sobre isto nos diz

Eliade:

Nunca será demais insistir no paradoxo que constitui toda hierofania, até a mais elementar. Manifestando o sagrado, um objeto qualquer torna-se outra coisa e, contudo, continua a ser ele mesmo, porque continua a participar do meio cósmico envolvente. Uma pedra sagrada nem por isso é menos uma pedra; aparentemente (para sermos mais exatos, de um ponto de vista profano) nada a distingue de todas as demais pedras. Para aqueles a cujos olhos uma pedra se revela sagrada, sua realidade imediata transmuta-se numa realidade sobrenatural. Em outras palavras, para aqueles que têm uma experiência religiosa, toda a natureza é suscetível de revelar-se como sacralidade cósmica. O cosmos, na sua totalidade, pode tornar-se uma hierofania” (ELIADE, 1992, p. 18)

Era muito comum a utilização de amuletos ou patuás pelos angoleiros de

antigamente. Como nos mostra um corrido cantado até hoje nas rodas:

Quem não pode com mandinga

Não carrega patuá, Iaiá

Desse modo, a mandinga pode ser entendida como uma manifestação

sobrenatural ou mágica que encarna (hierofania) em objetos, templos, cidades, ou

mesmo pessoas. Estes elementos sagrados do mundo sobrenatural dispunham aos

objetos encarnados poderes mágicos. Se, por exemplo, um capoeira conseguisse sair de

uma cilada, resistir a combates violentos ou até mesmo conquistar uma mulher, esses

feitos eram logo atribuídos pelo povo aos poderes sobrenaturais das rezas ou feitiços. O

homem comum logo se torna herói e lenda nas histórias e cantos da capoeira. Mestre

Cobrinha Verde, que aprendeu capoeira com seu primo Besouro Mangangá descreve

assim os poderes da mandinga: “não era só com capoeira que eu me livrava dos meus

167

inimigos. O bom capoeirista é mágico. Ele tem poder de aprender boas orações e usar

um bom breve (patuá), porque a capoeira não livra a gente de bala” (SANTOS, 1991,

p.17). E continua:

Na mandinga está o segredo da dinâmica que fazia com que o Zé Ninguém, Manuel Henrique virasse Besouro; Rafael Alves França virasse Cobrinha Verde; e um capoeirista mandingueiro se transformasse num pedaço de pau, quando estivesse apertado num ‘beco sem saída’ (idem, p. 40).

Estas místicas encarnadas nos objetos ou nas pessoas os transformam em seres

misteriosos, dotados de poderes que permitem façanhas inexplicáveis. Tais façanhas são

contadas pela cultura oral da capoeira, criando assim o universo mágico que a cerca.

Como contou Mestre João Grande num depoimento a Maurício Barros de Castro sobre

o episódio da morte de Besouro mangangá:

Besouro Mangangá, é porque prenderam ele, que se transformou num besouro e saiu a voar, fugiu da cadeia. O carcereiro não viu ele sair, só ouviu o zum, zum, zum... Aí que ficou o nome de Besouro. Ele tinha muita oração forte. Mangangá é um besouro muito perigoso. Fica num toco de madeira e se descarrega em qualquer pessoa. Quando eu cheguei a Salvador e entrei na capoeira já tinham matado ele.

Mataram em Maracangalha, morreu no hospital. Assim Cobrinha Verde falou. Besouro bateu no filho do prefeito de Santo Amaro. Depois o prefeito mandou abrir sete covas para ele, ia cavando e benzendo as covas, depois pagou uma mulher para ficar com ele. A mulher pegou o patuá dele. Quando ele passou debaixo de uma cerca o arame cortou ele. Estava derrotado.

Tinha uma venda que ele bebia cachaça todo dia. Quatro homens foram mandados por este prefeito para pegar ele. Quatro homens bons de facão. Dois de um lado e dois do outro lado do balcão. Besouro botou uma cachaça e bebeu. O outro disse: ‘Você bebe e não oferece para a ninguém que ta aqui?’ ‘eu não, se quiser você bebe. Compra e bebe’. Eles discutiram e jogaram cachaça no pé dele. Antigamente se jogasse cachaça no pé da pessoa era briga. Derrubou a cachaça nos pés dele aí, pronto. Foram pra fora, os quatro pra cima dele, facão pra cá, pra lá, mas por detrás veio um e cortou a barriga dele com uma faca de ticum. Faca de ticum quebra qualquer mandinga. Foi que Cabrinha Verde falou.

Ele tinha corpo fechado. Bala batia nele e caía no chão. Depois quebrou a força. A mulher abriu o corpo dele. A faca de ticum cortou porque a mulher abriu o corpo dele. Pegou o patuá dele... quebrou a força. Quem tem proteção assim mulher não pode pegar. Quem tem essas mandingas não pode passar debaixo de cerca de arame, não come mingau de tapioca, não pode passar debaixo de vestido de mulher estendido em varal. Tem os dias certos de dormir com mulher. Diziam que era muita mulher que ele tinha. Aí pronto morreu (CASTRO, 2007, p. 151).

Tal como o personagem de Aquiles em a Ilíada, Besouro era um escolhido dos

deuses, mas tinha o seu ponto fraco que, atingido, o levaria à morte. Essas histórias que

168

vão passando pela boca do povo abrem espaço para que o nosso mundo ordinário e

natural possa ser atravessado por forças sobrenaturais e misteriosas, que transcendem a

experiência comum. Tais manifestações permitem um contato entre dois mundos

distintos e opostos, num limiar, numa fronteira, num lugar paradoxal onde eles se

comunicam, efetuando a passagem do profano para o sagrado. Tirando-nos de certa

forma do tempo histórico, lançando-nos num mundo imemorial das façanhas

miraculosas.

Mircea Eliade aponta esta como sendo uma das principais funções dos mitos e

dos diversos ritos: lembrar aos homens de agora as façanhas e memórias dos homens de

outrora. Só que esses homens de outrora também só conseguiram realizar aquelas

façanhas porque, de algum modo, foram lembrados pelas façanhas de seus antepassados

e assim acabaram chegando nos mitos fundadores que remetem não aos homens, mas

aos seres atemporais, aos deuses. Dessa forma, os rituais servem não somente para nos

lembrar dos homens de outrora, como também para marcar a impotência da história ou

dos fatos ordinários e humanos diante do sagrado dos deuses; recordar os tempos

imemoriais, os tempos e façanhas dos deuses que inspiraram e deram a potência das

realizações mundanas.

Nesse sentido, continua Eliade, o tempo deve ser pensado como tempo cíclico,

como um eterno retorno aos tempos imemoriais através dos ritos de iniciação e

recomeço. Mas não se trata de um retorno histórico do tempo, de uma volta aos tempos

ou existências do passado, mas da volta a um passado que de algum modo nunca

passou. Portanto, não é o registro dos fatos que importa - se realmente a morte de

Besouro foi tal qual a narrativa de Mestre João Grande - mas o vínculo, a liga que

permite unir os feitos imemoriais aos homens do agora. Por isso os ritos e histórias

míticas marcam os mistérios e magias da vida, servindo para lembrar que o homem

169

sozinho não pode nada. A história, enquanto uma realização dos homens e para os

homens, é de algum modo desprezada nessas culturas primitivas.

Há um tempo complexo e paradoxal, no qual o sagrado, o imemorial, se

expressa nos acontecimentos existentes, portanto, no presente. Nesse sentido, os homens

do presente, principalmente os mais velhos e sábios, devem criar as condições, na forma

das ritualizações, para que os mais jovens possam experimentar as dimensões do

sagrado. Esses sábios não possuem um conhecimento que deve ser passado, mas,

cientes de que são os poderes místicos que ensinam e atuam no mundo natural,

reproduzem os rituais sagrados para que os mais novos possam se encontrar também

com essas forças. Não se trata apenas de um conhecimento abstrato, de histórias que já

passaram e se tornaram gerais, mas de ritos e experiências que possam revelar a força

do sagrado. Os deuses e os antepassados não são apenas lembrados, contudo, de alguma

formam, retornam nos ritos para marcar o tempo, conjurando assim sua determinação

histórica. Tal condição indica uma responsabilidade dos existentes, dos homens de

agora, com a salvaguarda das tradições, sem as quais os mais novos podem esquecer de

lembrar do passado imemorial, entregando-se ao tempo histórico.

Todavia devemos atentar para a situação paradoxal dessa responsabilidade dos

homens do presente para com os ritos, já que “nessas condições, nenhum acontecimento

é considerado como puramente profano, nem fortuito, nem como dependente

unicamente das atuações do homem, por mais hábil que seja. Sempre há na base uma

intervenção suposta do sobrenatural” (KAGAME, 1975, p. 33). Estranha e paradoxal

situação na qual os existentes são responsáveis, e ao mesmo tempo impotentes, para

sozinhos, ou melhor, por eles mesmos, garantir a memória e a revelação das verdades

sobrenaturais. Por mais que o tempo do aprender esteja no presente dos eventos e com

isso marcado pela singularidade e situações próprias desse tempo, os eventos não seriam

170

absolutamente nada se deixados ao sabor das casualidades e dos destinos humanos. Daí

o paradoxo: estar atento ao tempo dos eventos e as suas singularidades, sem, contudo

achar que por isso temos o seu controle.

Apenas sob a luz do tempo ordinário, linear e profano27 seria uma estupidez ou

mesmo uma contradição pensar o tempo cíclico do retorno. Restrito à história factual,

seria o mesmo que negar a mudança ou a própria característica do tempo, que é passar.

Segundo Eliade, os modernos fazem isto quando tentam dessacralizar o mundo.

Experimentam o tempo como uma reta irreversível, como algo que passa e nunca mais

volta.

Reconhece-se como único sujeito e agente da história e rejeita todo apelo a transcendência. Em outras palavras, não aceita nenhum modelo de humanidade fora da condição humana, tal como ela se revela nas diversas situações históricas. O homem faz-se a si próprio, e só consegue fazer-se completamente na medida em que se dessacraliza e dessacraliza o mundo. (ELIADE, 1992, p. 165).

Mas a posição dessas culturas “primitivas”, que ainda preservam o cultivo do

sagrado, não é negarem a história, e, portanto as transformações, e sim não se

submeterem totalmente a ela. Assim, história e mito se entrelaçam num tempo circular

que retorna, num retorno ao que nunca foi história, a um início mítico. Esse

atravessamento da dimensão sobrenatural reduz as possibilidades nessas sociedades de

uma organização fundada nos eventos históricos, nos poderes dos homens de

escolherem e gerirem a vida. São sociedades que lutam contra a história.

Será que podemos entender nas manifestações mágicas dos eventos dos

capoeiras de antigamente o mesmo sentido que dá Eliade à hierofania dos povos

primitivos? A capoeira Angola estaria assim, na realização dos seus ritos, marcando em

nosso tempo o contacto com o sagrado do passado de nossos antepassados? Seriam

essas histórias e lendas de mistérios e feitos heróicos da capoeira uma tentativa de

27 Mircea Eliade chama de profano tudo aquilo que envolve o tempo da natureza, no qual o homem está inserido. Tempo das ocorrências históricas.

171

manter uma tradição mágica e religiosa, através de rituais, que nos aproximam de

nossos ancestrais míticos, tornando-nos seus contemporâneos?

Sim e não. Sim porque a capoeira Angola tenta preservar liturgias e ritos dos

antigos, numa espécie de retorno ao sagrado. Tais repetições Mircea Eliade chama de

“mito do eterno retorno”. O tempo se constitui como um tempo cíclico, no qual há

sempre a volta ou o recomeço da história, tal como os seres divinos viveram no começo

dos tempos.

O mito em si mesmo, não é uma garantia de ‘bondade’nem de moral. Sua função consiste em revelar os modelos e fornecer assim uma significação ao mundo e à existência humana. Daí seu imenso papel na constituição do homem. Graças ao mito, como já dissemos, despontam lentamente as idéias de realidade, de valor, de transcendência. Graças ao mito, o mundo pode ser discernido como Cosmo perfeitamente articulado, inteligível e significativo (ELIADE, 1972, p. 128).

Não, já que essa repetição pura e simples dos rituais e das histórias sagradas só é

compatível em um mundo “fechado” como o dos chamados povos primitivos. Como

ficariam esses ritos e mitos numa sociedade como a nossa, em que o tempo histórico e

suas transformações atingem quase todas as práticas culturais? Mais do que uma luta

tradicional e mítica contra a história profana do tempo linear e humano, a capoeira

Angola parece realizar através de outros meios seu combate; imersa em seus “jogos de

negociação e de mandinga” em que são incorporados elementos modernizantes.

Veremos agora um pouco dessa outra estratégia de resistência, inserida por dentro da

cultura moderna. E aqui nos distanciamos um pouco da experiência do sagrado que

Mircea Eliade atribui aos povos primitivos e arcaicos.

Temos tentado até agora mostrar os caminhos de transformações e manutenções

das práticas de aprendizado que a tradição da capoeira vem cultivando até os nossos

dias. Vimos como a escolarização e sua inserção nos ambientes acadêmicos marcou o

nascimento das duas principais vertentes da capoeira contemporânea. As academias de

Mestre Bimba e de Mestre Pastinha inseriram a tradição da capoeira em novos

172

caminhos e com isso desenvolveram novos modos de aprendizado. Essas mudanças

apontam para práticas que, ao contrário de repetirem os ritos e costumes da tradição

procuram inseri-los, com algumas modificações, no tempo histórico e profano, no

tempo dos homens.

Entretanto, essas inserções não ocorreram sem resistência ou sem o ilusionismo

próprios da capoeira, pois como temos tentado mostrar - no movimento da capoeira

Angola28, inspirada na tradição da escola de Mestre Pastinha – é que junto às mudanças

modernizantes, ocorrem certos “retornos” que buscam a manutenção do contato com os

segredos dos antepassados míticos. E aí está a maior dificuldade desse caminho de

modernização, assim como o seu maior valor: atestar como a capoeira pode mudar

mantendo-se a mesma, ou pelo menos resistindo a se igualar a uma prática desportiva de

habilidades sociais múltiplas.

Não se trata de mero jogo de palavras, mas de uma luta. Luta que incorre em

inúmeros riscos, já que os caminhos dos opostos e das dicotomias (capoeira mãe versus

capoeira contemporânea ou capoeira primitiva versus esporte brasileiro entre outras

dicotomias) são mais simples e coerentes com definições fixas e apressadas. Afirmar

que os modos de aprendizado da capoeira Angola atualmente são iguais aos modos

antigos “de oitiva” seria fechar os olhos para as transformações nas formas de

transmissão da capoeira ao longo dos anos. Desde os espaços de cultivo e treinamento

até os contextos históricos, geográficos, políticos, etc.

Se encararmos essas mudanças como os únicos dados dessa história

incorreremos no perigo de esquecer o que se fez, ou melhor, esquecer de lembrar os

28 Como já tivemos a oportunidade de dizer, na introdução e durante todo o nosso trabalho, a ênfase dada a capoeira Angola se faz por ser ela o objeto principal de minha tese. Nesse sentido, me restrinjo a destacar os seus modos de inserção e resistência à modernização da capoeira. Não estou de modo algum –já que não tenho um trabalho mais apurado em relação aos outros movimentos e escolas da capoeira contemporânea – afirmando ser este um movimento exclusivo da capoeira Angola. E até mesmo não tenho nem certeza, nem muito menos a ambição de fechar a discussão mesmo no interior da escola de mestre Pastinha. Meu objetivo é suscitar um debate e me posicionar frente algumas destas questões.

173

antepassados e a importância dos seus ritos para a compreensão do que hoje somos e

fazemos na capoeira. Talvez compreensão não seja a palavra mais adequada, visto que

pode parecer uma representação, uma encenação desses ritos, o que seria absolutamente

equivocado e destituído de força ritualística; sem falar no risco de cairmos nos

saudosismos, das lembranças tristes e queixosas de tempos que não voltam mais. Daí a

força e a resistência dos ritos na capoeira.

Olhando para os capoeiras de hoje, podemos perfeitamente dizer que a mandinga

dos mistérios e poderes dos patuás, ou dos capoeiristas que de corpo fechado paravam

as balas dos policiais e matadores, desapareceu. Essa perspectiva da perda ou

distanciamento de um passado fundador pode nos levar para duas posições políticas e

eticamente perigosas. A primeira é aquela em que os novos tempos modernizantes são

saudados como modos de evolução e adequação da capoeira às questões atuais. Essa

posição é de algum modo hegemônica nas capoeiras contemporâneas. Ou então

podemos cair numa posição saudosista e até mesmo conservadora de que o trabalho da

verdadeira capoeira é retornar a um passado perdido, reencontrar suas raízes, com sua

“mãe mítica e fundadora”. Essa posição muitas vezes assumida pela capoeira Angola, e

comum a certos movimentos afro-brasileiros, podem levar a um saudosismo que parece

não combinar com a capoeira. Este saudosismo de um passado arcaico e puro que deve

ser recuperado, muitas vezes tem levado a capoeira Angola a se colocar numa posição

defensiva e purista que nos parece ser pouco mandingueira.

Nesse sentido nos parece mais interessante buscar um outro entendimento da

mandinga na capoeira que se afasta um pouco da posição religiosa e sagrada dos mitos

arcaicos para uma afirmação de uma ética da mandinga que nos leva para um novo

entendimento político da luta e da resistência dos capoeiras no Brasil. Frede Abreu em

174

seu livro a respeito da capoeira na Bahia do séc. XIX afirma que o sentido da mandinga

na capoeira nunca esteve tão atrelado à noção religiosa da\cultura africana. Diz ele:

Mandingueiro era o refinado, o rei das simulações, dos logros e truques. O cismado. O manhoso capaz de falsear a falsidade. O que era apreciado por jogar dominando os segredos e mistérios que o imaginário atribui ao jogo da capoeira. O que advinha situações e para elas se preparava (com rezas e patuás). O que preferia fazer tudo isto em segredo, como um feiticeiro, para não dar na pinta. Nestas acepções, o feitiço da mandinga era mais valorizado por ensinar o capoeira a lidar com estas coisas do que mesmo pelo seu poder essencialmente, exclusivamente religioso (ABREU, 2000, P. 121)

Frede Abreu não entende que a mandinga referente às histórias de Besouro ou de

Cobrinha Verde aponte para um cenário religioso e sagrado. De algum modo a

mandinga seria um modo de ser que o capoeira tem buscado cultivar para enfrentar o

dia-a-dia, profano e ordinário, de seus problemas no trabalho, na vida pessoal, nas festas

etc., portanto, uma ética. Diferente de fazer feitiços ou rezas para fechar seu corpo ou

amaldiçoar o adversário, não havendo inviabilidade para que o capoeira,

malandramente, se aproveite das crenças do povo para assumir posições de misticismo

como Besouro e seu primo Cobrinha Verde. Frede Abreu parece indicar é que a

mandinga na capoeira do século XIX é um pouco distinta da mandinga religiosa e,

portanto, mais próxima do modo como hoje nós a compreendemos.

Muniz Sodré em seu livro A verdade seduzida aponta para o caráter duplo e

ambíguo do jogo, que as culturas negras expressam no contato com a cultura branca e

colonizadora. Ocorre uma espécie de coexistência, sem a predominância explícita de

nenhuma destas culturas.

No entanto, é preciso deixar claro que não se tratou jamais de uma cultura negra fundadora ou originária que aqui se tenha instalado para, funcionalmente, servir de campo de resistência. Para cá vieram dispositivos culturais correspondentes às várias noções e etnias dos escravos arrebatados da África entre os séculos XVI e XIX. Tais culturas já conheciam mudanças no próprio continente africano (...) No Brasil, as mudanças são evidentemente mais radicais (SODRÉ, 2005, p. 92).

175

Nos espaços inicialmente proibidos e posteriormente nos espaços oficiais, o que

se vê é uma é estratégia ética e política de jogar com as ambigüidades do sistema

hegemônico, agindo nos interstícios da coerência oficial. Nestes interstícios são

desenvolvidas práticas mistas, que até hoje não se encaixam perfeitamente em esquemas

gerais e abstratos de classificação.

Seja nos terreiros de candomblé ou nos espaços de capoeira são mantidas as

forças das tradições afro-brasileiras encobertas e transformadas por novas formas.

Quando procuramos uma escola de capoeira acreditamos que vamos encontrar os

procedimentos técnicos e práticos de qualquer outra escola. E inicialmente é isto mesmo

que acabamos vendo. Mas aos poucos, dependendo do modo de inserção do aprendiz,

vamos encontrando diferenças importantes. A prática ou treinamento se apresentam

como formas modernas, mas nessas ainda encontramos as forças dos antigos rituais de

iniciação, “processo complexo de entrada do indivíduo no ciclo das trocas simbólicas”

(idem, p. 96). O interessante dessa força é o seu modo de persistir e encantar, pois este

contato iniciático não se dá pelo entendimento conceitual e abstrato dos significados dos

ritos. Pelo contrário há de modo implícito e velado (mandinga) uma espécie de quebra

das tentativas de redução do jogo da capoeira em formas rígidas e bem definidas. Estes

ritos e jogos de mandinga questionam:

(...) implicitamente a ordem abstrata dos valores e dos conceitos. Os conhecimentos iniciáticos passam pelos músculos do corpo, dependem – ritualização que são – do contato concreto dos indivíduos, por intermédio do qual o axé se transmite. Axé é força vital, sem a qual, segundo a cosmogonia nagô, os seres não poderiam ter existência nem transformação. (idem, p. 96).

O axé enquanto um domínio de forças não pode ser reduzido às práticas

materiais da capoeira nem muito menos a um conhecimento simbólico que os

capoeiristas e Mestres possuam. Ou seja, o axé não é compreendido nesta tradição como

um domínio pessoal, seja uma conduta material, um conhecimento abstrato ou uma

moral, que possa ser de algum modo transmitido ou comunicado. Desse modo, ele só

176

pode ser experimentado através das práticas ritualísticas dotadas de força e presença,

nas quais o aprendiz não observa de longe, mas participa de corpo pleno. O axé não é

um saber, mas uma força viva que encarna nos objetos e seres nos rituais. Isso não

significa que os rituais não possuam uma forma específica. Desde a organização do

espaço, dos seus elementos (instrumentos, toques e cantos), até a organização e

disposição dos capoeiristas na roda, e as diversas regras de conduta que devem ser

conhecidas e respeitadas. Chamamos esses procedimentos de liturgia. Mas estes por si

só não garantem o axé.

Quantos de nós capoeiristas já participamos de rodas, nas quais, mesmo

realizando uma liturgia impecável, está não acontece. Saímos dizendo que a roda não

estava com axé. Aprendemos com essas experiências que o trabalho humano, que pode

ser controlado e planejado é importante e deve ser feito, mas não garante por si só a

dinâmica e a força da capoeira. Não adianta só treinar e dominar os segredos e as

habilidades da capoeira, o domínio individual de suas habilidades é muito pouco para

que o axé seja expressado. Ele ao contrário não é um poder pessoal ou sócio-histórico.

Se encarna nas pessoas e nos acontecimentos sócio-históricos, mas não se reduz a eles.

Muitas vezes a sua função é justamente a de derrubar essas falsas ambições humanas de

tudo controlar e gerir. Vimos quanto a ginga, a atenção da espreita, o tempo da vadiação

e agora a ética da mandinga “driblam” as formas fixas das habilidades sociais.

Desse modo Muniz Sodré afirma que não são os ritos, ou melhor, suas liturgias

que se destacam nas tradições afro-brasileiras, o que permite e explica as contínuas

mudanças das liturgias ao longo do tempo nas escolas de capoeira. Cada grupo, mesmo

os que se vinculam à tradição da capoeira Angola de Mestre Pastinha, constroem, de

modo particular e próprio, algumas mudanças nessas liturgias. Mas o cultivo do axé

permanece importante e inegociável. E aí está, para Sodré a originalidade da cultura

177

negra que “consiste em ter vivido uma estrutura dupla, em ter jogado com as

ambigüidades do poder e, assim, podido implantar instituições paralelas” (SODRÉ,

2005, p. 99).

Nesse sentido a história que a diáspora negra desenvolve aqui no Brasil segue

uma “forma dissimétrica” em relação à manutenção pura da história tradicional africana,

assim como não se encaixa totalmente numa história de modernização. É isso que,

segundo nos parece, dificulta as tentativas de enquadrar a tradição viva da capoeira ou

nos modos tradicionais da cultura africana ou nos modos atuais e contemporâneos das

escolas. Tal dificuldade de adesão plena às formas puras e padronizadas, tem marcado

este modo singular e diferente de difusão, escapando ou se esquivando das definições

plenas de cultura africana ou brasileira, ancestralidade ou modernidade, criando uma

posição que é denominada por Sodré de “heterogeneidade atuante”. Heterogeneidade

porque busca fugir dos processos de homogeneização, purificação e abstração das

formas gerais e atuantes porque não se sustenta numa questão de definição ou de

conhecimento, mas numa prática ativa de resistência e atuação ética e política.

As bases dessa estratégia de combate e resistência são as dissimulações de um

“jogo das aparências”, de mandinga, nas quais as avaliações e estratégias de lutas são

definidas segundo as potencialidades da situação. Ligados a um tempo presente, das

circunstâncias, as decisões e juízos são produzidos durante o calor das disputas,

obedecem suas potencialidades, o que exige uma posição ética ligada às trocas e

negociações, num jogo de diferenças, deslizamentos, modulações, mandinga.

Nesse combate ético e político o capoeira consegue jogar segundo uma

sabedoria da ocasião e não através de um conhecimento das regras gerais de uma moral.

François Jullien em seu livro Tratado da eficácia discute os modos como o oriente,

dando destaque ao mundo chinês, pensa a noção das estratégias de guerra, de

178

diplomacia e de política. Para tanto ele constrói segundo os tratados chineses de

orientação e deliberação da guerra e da diplomacia o que ele chama de tratado da

eficácia. Entre muitas discussões ele destaca uma ética da circunstância que se aproxima

um pouco do que estamos discutindo aqui neste momento. Diz Jullien:

(...) em vez de traçar um modelo que sirva de norma a sua ação, o sábio chinês é levado a concentrar a atenção no curso das coisas, tal como está envolvido nele, para descobrir-lhe a coerência e tirar o proveito de sua evolução. (...) em vez de fixar um objetivo para sua ação, deixar-se levar pela propensão; em suma, em vez de impor um plano ao mundo, apoiar-se no potencial da situação” (JULLIEN, 1998, p. 30).

Tal posicionamento nos interstícios impede, ou dificulta as classificações que as

formas tradicionais e abstratas de avaliação moral procuraram e ainda hoje procuram

realizar a respeito da capoeira. No passado procurou-se enquadrar os capoeira em

imagens pejorativas e definitivas dos tipos “malandros”, “improdutivos”,

“descansados”, “preguiçosos”, “incapazes” entre outros. Mas no “jogo das aparências”

os capoeiras atravessaram estes rótulos, aderindo ou negando de acordo com estratégias

bem pontuais e circunstanciais, quase sempre se divertindo e aproveitando as vantagens

e desvantagens desse lugar incomum.

Hoje estes rótulos já não “colam” com tanta facilidade, porém o “jogo das

aparências” continua. O perigo pode vir de outros lugares, um pouco mais diferentes do

que o convívio com a ilegalidade, com a polícia e a marginalidade. Vemos se

destacando uma tentativa de enquadrar a atividade da capoeira como um esporte e suas

diversas conseqüências como, por exemplo, a lei aprovada no final do governo do

presidente Fernando Henrique Cardoso, que pretende restringir o ensino da capoeira aos

profissionais de educação física. A este exemplo se somam muitos outros como os que

têm sido objeto principal desta tese que é a redução do aprendizado da capoeira a uma

questão de aquisição de habilidades sociais, centrada na forma de um sujeito que

179

aprende essa prática, acabando por desconsiderar os aspectos políticos, éticos, estéticos

e ritualísticos envoltos na tradição da capoeira.

Nesse sentido, acreditamos profundamente que o aprendizado da capoeira como

um cultivo da/na tradição resiste e combate de modo envolvente e circunstancial essas

tentativas de reduções psicológicas. É interessante destacar o modo hábil com que os

capoeiras negociam com esses modos de simplificação. Ao invés de se fecharem para a

universidade, mas precisamente a de educação física, os capoeiras penetram nelas para

mostrar o quanto são legítimos os saberes de um Mestre, mesmo que este não saiba ler

uma linha. Quantos Mestres antigos acabaram recebendo títulos de doutor honoris

causa, como os próprios Mestre João Grande e Mestre Bimba (pos mortem), entre

outros. Exemplos de uma ética das circunstâncias que não fecha o movimento, nem

muito menos adere aos restos e marcas que estes vão deixando no caminho.

Pois como se explica posteriormente, ao mesmo tempo em que não se deve cessar, durante as operações, de enganar o adversário, convém adaptar-se constantemente a ele; se ele é tentado pelo proveito, eu o ‘seduzo’; se está em desordem, ‘apodero-me’ dele; ou se está cheio de ardor, ‘lanço a confusão nele’; se adota prudentemente uma atitude modesta, eu o envaideço’; ou se está em plena forma, eu o canso etc. Posto que, em presença do inimigo, não cesso de evoluir, não posso declarar de antemão como vencê-lo. Em outras palavras (Li Quan): ‘a estratégia carece de determinação prévia’e é somente ‘em função do potencial da situação que ela adquire forma’ (JULLIEN, 1998, p. 37).

Jogos de negociação em que por mais que se tenha perfeita noção do que se

quer, consegue-se lançar e dançar com as circunstancias prestando atenção não em seus

planos mas nas oportunidades para agir em sua conformidade. Tendo paciência para ver

seus efeitos, mudando suas estratégias. Lançar-se numa disputa na qual o adversário é

avaliado constantemente numa aproximação e adaptação às suas circunstancias. Não se

ganha pela força, porém levando o inimigo, de preferência dentro de e em seu

domínio, com suas regras, a agir conforme seus anseios. Conseguindo o êxito com o

mínimo de esforço e um máximo de efeito.

180

Todavia, para que a ética desses jogos de aparências possa continuar o seu

movimento, Sodré aponta para dois importantes elementos: o segredo e a luta.

O termo (segredo) vem do latim secretum, passando do verbo secernere, que significa separar, colocar à parte. Realmente, é de separação o ato inaugural do segredo, um ato de hierarquia daquele que sabe ‘alguma coisa’- que o outro não sabe (SODRÉ, 2005, p. 103).

O capoeira é um fingidor. Esse entendimento aponta para o surpreendente,

aquilo que trazemos escondido, em segredo. Entretanto, esse segredo não pode ser

plenamente escondido, já que seu principal objetivo não é o êxito do esconderijo, mas a

disputa que se instala no momento que alguém tenta desvelá-lo, fato que leva o jogador

a entrar no jogo. Nesse jogo vão se instaurando regras e tipos de procedimentos que

passam a circular entre os componentes, permitindo sua extensão e duração. Isso nos

lembra que o jogo da capoeira tem que ser considerado sempre em uma relação dual, na

qual o companheiro joga tentando subtrair o segredo do outro, que por sua vez joga

tentando guardá-lo. Nesse sentido o segredo impõe sempre uma relação de desafio ao

outro. Esta relação, de desafio, mantém o jogo sempre numa tensão.

Não podemos esquecer que se trata de um jogo de aparências e de ilusionismos.

Diferente de uma acepção comum e cotidiana de segredo – em que seu objetivo é

decifrar o enigma chegando a verdade que se encontra por trás do segredo – essa não

visa a sua revelação, mas a manutenção desse jogo. Trata-se de um jogo de aparências,

pois não há nenhuma verdade ou razão por trás dos segredos. O segredo não esconde

uma verdade oculta, mas instaura uma brincadeira de jogo de ilusão. É o jogo que se

quer gerar com o segredo e não a vontade de verdade que possamos encontrar por detrás

dele.

Conhecer a regra, entretanto, não implica acabar com o segredo. A idéia corrente nas sociedades modernas é a de que, em todo segredo, o fundamental é o que se esconde. A modernidade, assentada na onipotência racionalista, põe diante de si mesma a meta de uma sociedade sem segredos, sem obstáculos à manifestação da verdade. (...) O grande imperativo da ideologia moderna é a transparência absoluta: tudo deve ser tido, tudo deve ser revelado (SODRÉ, 2005, p.106).

181

No jogo de esconde-esconde não há nada a ser revelado para além das

aparências, o que poderia acabar com o mistério. Daí a sua força. Manter o jogo em

movimento tal como uma criança que estando com outras não cansa de continuar

brincando, impedindo que haja um vencedor ou perdedor definitivo. Isso não que dizer

que se jogue para perder, mas que vencer ou perder não faz do jogo um bom jogo. O

adversário na capoeira é fundamental, pois sendo ele bom mandingueiro certamente o

jogo será mais rico e atravessado de maiores surpresas.

Entretanto, o segredo que aciona uma disputa é encarado também como uma

luta. Não no sentido reduzido de força e violência. A luta ainda preserva o sentido de

uma disputa, na qual a astúcia, a coragem e o humor são mais importantes do que a

força, a habilidade e a verdade. Lutar não é vencer pela força, mas duelar com ela,

provocando-a, desafiando-a, extraindo dela o máximo de efeito com o mínimo de

esforço. Sem luta a existência seria imóvel, já que os seres, segundo esta tradição, estão

sempre respondendo aos desafios e às provocações. É preciso muito cuidado para não

ceder completamente às provocações, entregando “de bandeja” seus segredos. Deve-se

fazer uma luta de desafios e provocações, na qual o segredo, a “carta na manga” deve se

mostrar se escondendo, sem se deixar revelar ou se esconder plenamente, mantendo a

superficialidade de um jogo de aparências sempre em movimento. É assim que se

destaca a força ou do axé de um capoeira mandingueiro tanto na roda de Angola quanto

na roda do mundo.

Como vimos um pouco mais acima o axé enquanto força vital não se confunde

com as liturgias ou formas dos elementos contidos na roda da capoeira Angola. Não está

no golpe, no movimento ou no que quer que seja analisado em sua dimensão formal e

abstrata. Nem muito menos, se revela como um atributo pessoal ou social pertencente a

alguém ou a uma sociedade. Também não é uma atitude voluntária ou involuntária. Não

182

nasce de dentro do jogador nem é um aspecto ambiental ou social que nos condiciona

por fora. Não escolhemos ao decidirmos sermos mandingueiros, nem muito menos,

somos condicionados a sê-lo. Tal análise privilegia as formas de ação, seja do sujeito ou

do mundo social.

Para François Jullien o pensamento ocidental acaba por restringir as estratégias

militares a um culto da ação. Citando Aristóteles como um exemplo desta tradição,

Jullien afirma que para este filósofo grego só há duas modalidades de ações que se

opõem; aquelas que são realizadas segundo nossas vontades e contra as nossas

vontades. Caberia então ao sujeito analisar e decidir quais ações pretende tomar,

antecipando-se ao ato, ou se render às paixões, se submetendo às condições exteriores,

reagindo às circunstâncias. Sempre ações, ativas ou passivas. Jullien continua nos

dizendo que a tradição chinesa não opõe categoricamente ação e paixão, ativo e passivo.

Na maioria das vezes os chineses deixam essa diferença indecisa. Diz Jullien:

A clivagem ativo/passivo, tal como é estabelecida em nossas gramáticas, é demasiado estreita para apreendê-la. Porquanto o que me ‘porta’ desse modo não é devido a mim nem tampouco é sofrido por mim, isso não é nem eu nem não-eu, mas antes passa através de ‘mim’(1998, p. 69).

Nesse sentido entendemos que a mandinga também não é um atributo pessoal

nem não-pessoal, mas ela nos atravessa. Daí a importância dos referenciais da tradição

para impedir as reduções desse jogo de aparências a habilidades subjetivas e sociais. A

mandinga, logo, não se define por uma ação eficaz. Por mais eficiente que possa ser um

golpe, ele não garante ao seu executor um caráter mandingueiro.

Numa roda de capoeira Angola chamamos de mandingueiro aquele capoeirista

que encarna e expressa um jogo encoberto de certo ilusionismo. Um fingidor que arma

as mais diversas ciladas ao oponente, aproveitando-as para os seus golpes e

movimentos. Tal destreza não se confunde com uma habilidade atlética ou social, com

movimentos regulares e encaixados, mas com uma espécie de “pedagogia do segredo”

183

(ABREU, 2000, p.121). Atento aos movimentos o mandingueiro aproveita as situações

sem que o adversário se dê conta e realiza golpes surpreendentes, mantendo-se fechado,

guardando sempre na manga uma cartada surpreendente.

Uma estratégia muito mais política e ética do que religiosa, o mandingueiro se

recusa a responder às situações como dele se espera. Longe de ser um conformado ou

um revoltoso, o mandingueiro negocia, participa dos jogos sem com isso se mostrar

completamente. Se conforma quando necessário, porém como tudo está sempre em

movimento, esse conformismo é apenas aparente, já que dele pode advir

inesperadamente uma atitude de revolta, apesar da revolta também ser sempre aparente.

Não se trata de uma posição ou qualidade pessoal, mas de estratégias decididas no calor

das disputas, atentos às oportunidades das ocasiões. Mais do que responder às

provocações o mandingueiro sabe “preparar o momento de aplicá-la, aguardar a

surpresa, esperar o adversário facilitar” (idem, p. 122). Tem atenção ao acontecimento,

calma para esperar essas oportunidades e inteligência para aproveitá-las a seu favor.

Sem falar no humor e falta de vaidade para rir também dos momentos impróprios e

pouco oportunos. A capoeira Angola dá uma importância vital ao cultivo dessas

disposições no aprendiz capoeirista.

Chamado de “negaça, engano ou floreio”, Jair Moura afirma que a base da

mandinga “(...) visava desnortear o oponente, enganando-o com trejeitos de corpo, de

mãos, de pés, tronco, cabeça, ou de tudo isso conjugado formando o que chamava ‘jogo

de corpo’, para atingi-lo imprevistamente, ou seja, de ‘corpo aberto’, num determinado

golpe de ataque” (MOURA apud CAPOEIRA, 1992, p. 117). No entanto, tal malícia

não depende de força, agilidade ou condição física, e sim de uma certa astúcia, uma

disposição, uma ética da circunstância.

184

Na roda da capoeira, tal como na roda da vida aquele que muito se prepara ou

fica de “bobeira” pode acabar tomando uma rasteira, perdendo o tempo do

acontecimento. Apesar da naturalidade e da espontaneidade com que um mandingueiro

desfere movimentos ilusionistas, que vão fluindo sem esforço aparente é possível pensar

o seu aprendizado ou o seu cultivo. Como então cultivar a mandinga? A pista que

seguiremos indica a impossibilidade de tratá-la como um aprendizado atlético ou físico,

bem como um conhecimento moral. Nenhum mandingueiro é reconhecido por seus

movimentos e discurso bonitos, mas por seus posicionamentos diante das

circunstâncias, muito mais ligadas a um senso de oportunidade do que a uma conduta

bem realizada. Não se trata da habilidade da rasteira ou da cabeçada, mas do como e

quando realizá-la. Estamos diante de uma ética do bem fazer, que vai além da simples

questão utilitária, do simples fazer. Essa dimensão nos traz uma outra discussão sobre o

aprendizado da capoeira Angola, pois mais do que aprendizado de uma conduta ou

habilidade trata-se de um aprendizado do sentido da conduta: de uma ética.

O domínio do sentido da conduta nos faz penetrar no mundo dos valores, das

questões que remetem ao certo ou errado, ao bem e ao mal. Normalmente este tema

recai sobre um entendimento moral, que busca compreender os princípios gerais e

comuns dos valores de uma cultura ou tradição. O moralista, de algum modo,

compreende ser necessário saber de antemão as regras ou os códigos de conduta

apropriados aos acontecimentos, para aí sim decidir o que fazer e de que modo. Desse

modo, um aprendiz iniciante vai se interessando e experimentando esses princípios ou

sentidos do jogo da capoeira. Depara-se com questões ou perguntas a respeito de valores

que possam nortear estas práticas: quando devemos cantar uma ladainha? É correto

pegar o berimbau com o jogo andando? Quando devemos atacar e como avaliar essas

condições? Como e de que modo devemos entrar na roda? Entre outros

185

questionamentos. Surge diante de si um mundo novo e estranho, no qual não apenas são

propostos exercícios e práticas corporais inéditos, como também brota outra atmosfera

de valores e sentidos que ele precisa entender ou compreender para poder avaliar e

decidir sua prática e ações.

Uma posição comum ensinada por uma tradição moralista é a de que, quando

desconhecemos os valores e regras de princípios de certa prática, devemos buscar

compreendê-los para aí sim agirmos. Essa tendência nos indica a necessidade de separar

a teoria da prática, os meios dos seus fins, como se pudéssemos compreender de fora,

com certa neutralidade, os fins e motivos principais da capoeira. Essa compreensão deve

obedecer a um certo afastamento da prática, numa espécie de reflexão e entendimento

anterior ao fazer. É por isso que muitos aprendizes de capoeira sentem-se impedidos de

jogar e praticar a capoeira sem a compreensão prévia de suas regras. Esses aprendizes

buscam se informar a respeito desses princípios gerais, procurando conhecer um código

de condutas. Assim muitas vezes se esquecem de se entregar às situações investigando

de modo isento e afastado, compreendê-las. Tal posição pode levá-los a um

entendimento geral e abstrato do mundo em que habitam, numa espécie de momento

reflexivo no qual se tenta compreender as diversas possibilidades antes de fazê-las. O

moralista precisa entender de fora tudo muito bem entendido para poder entrar nos

eventos e com isso se conduzir adequadamente. Diferente das crianças que brincam na

rua constituindo no brincar as regras do jogo, ou aprendendo brincando a relatividade

dessas, os moralistas acreditam que só pode haver jogo se todos compreenderem de

modo claro e geral os princípios que os norteiam. Ou seja, o moralista evita ao máximo

ter que decidir ou valorar no calor dos acontecimentos.

Tal posicionamento, comum em muitas práticas do nosso mundo, encontra um

pouco de resistência no aprendizado da capoeira Angola e principalmente no

186

aprendizado da malícia. O aprendiz nunca será mandingueiro se procurar racionalizar ou

imitar a malícia. Resistente a qualquer apreensão sistemática ou racional ela não pode

ser definida como uma postura geral ou universal às situações. Munis Sodré comenta

em um livro do Mestre Nestor Capoeira a respeito da malícia, quando este diz “que a

malícia desconhece a ética” (CAPOEIRA, 1992, p. 132):

Talvez fosse mais correto dizer que a capoeira desconhece a ‘moral’, pois – ao contrário – a ‘malícia’é muito ética no sentido de que ela tende à regra fundamental para o grupo, que é navegar nos interstícios. A ética é a ordem da grupalidade, a moral é a ordem do indivíduo (do ego), e a capoeira é justamente aquilo que ilude o ego: você pensa que o camarada vai te chutar em cima e ele te arrasta para baixo; você pensa que ele vai te enfrentar e ele sai correndo (SODRÉ apud CAPOEIRA, 1992, p. 132)

E aqui se evidencia um dos objetivos principais da tese aqui apresentada, a

saber: evitar os caminhos das definições em geral do aprendizado da capoeira Angola. E

parece ser esse mesmo o espírito da malícia e do seu aprendizado. Fugir das

possibilidades de definições gerais e a priori, criando situações em que o aprendiz possa

ir cultivando uma sensibilização, um senso de oportunidade e uma calma para não cair

nas armadilhas das condutas marcadas de intenção ou regras pré-definidas. O aprendiz é

forçado pelas circunstâncias do jogo de Angola a relativizar um pouco seus estreitos e

fixos códigos morais. Percebe aos poucos que as avaliações na capoeira Angola, assim

como na vida, são marcadas pelo senso da oportunidade, do segredo e da luta. Isso não

quer dizer que não haja regras ou fundamentos na capoeira Angola e na vida, mas que

essas regras e esses princípios servem apenas para colocar o grupo em sintonia para as

improvisações e truques. Não são essas regras que garantem o jogo, mas é este que

garante que as regras se sustentem.

As regras ou fundamentos da capoeira garantem apenas a liturgia ou as formas

do jogo, colocando-o em movimento, mas é no movimento do jogo que se revela a

mandinga. O aprendiz vai descobrindo que de nada adianta um conhecimento

desencarnado das regras. Não repetimos essas regras por uma questão de obediência,

187

mas por servir de instauração litúrgica para a manifestação ritualística das forças que

são as verdadeiras professoras. Francisco Varela num belo livro em que discute o que

ele chama de “competência ética” também busca uma distinção desta em relação a uma

competência moral.

No centro deste ponto de vista (Ético) reside a convicção de que as unidades apropriadas de conhecimento são, antes de mais nada, concretas, corporificadas, vividas. O conhecimento é contextualizado, e a sua unicidade, a sua historicidade e contexto, não são ‘ruídos’que impedem a compreensão do fenômeno cognitivo na sua verdadeira essência, a de uma configuração abstrata. O concreto não é um degrau para algo de diverso: é como chegamos e onde estamos (VARELA, 1992, p. 17).

O aprendiz inicialmente inseguro por não conhecer as regras do jogo vai

descobrindo aos poucos que elas não existem de modo rígido e universal, como não

garantem nada. Vão sendo provocados pela malícia dos angoleiros a saírem das formas

rígidas da moral e experimentarem na vadiação a avaliar e tomar decisões encarnadas na

experiência concreta. Vão desenvolvendo uma mudança em sua atenção focada e

reduzida para uma atenção desfocada aos espaços e tempo dos movimentos. Os

movimentos da capoeira, como vimos no segundo capítulo, expressam-se em formas

circulares, que nos colocam muitas vezes de costas para o companheiro de jogo. Por

isso desde o inicio de nossos treinos somos instruídos a manter sempre o olhar no

oponente, mesmo quando estivermos de costas. Mas de modo bastante interessante o

olhar focado não consegue ser exercido, o que nos força a desenvolver um olhar

periférico.

Os aprendizes vão percebendo que não há outro caminho para o aprendizado

senão aquele que se encontra encarnado nas situações. Mais do que um aprendizado de

regras, o aprendizado da malícia implica numa ambientação aos espaços da capoeira,

nos quais podemos realmente treinar nossa paciência e atenção ao acontecimento. Tais

sensibilizações, quando vêm, pressupõem experiência e tempo, sendo cultivadas nos

jogos e nas disputas que a roda da capoeira e do mundo nos oferece diariamente,

188

esvaziando o aprendiz das armadilhas da moral e de todas as amarras que o ego ou o

sujeito e suas verdades pré-definidas tendem a buscar.

Esta parece ser uma das principais características do mandingueiro. Ao contrário

de um jogador vaidoso que acredita, graças as suas habilidades e conhecimentos, poder

resolver qualquer situação, o mandingueiro sabe que o “vento que sopra lá, sopra cá”, e

mesmo que seus movimentos se realizem com êxito, esses não se devem

exclusivamente a seus poderes pessoais. Mesmo quando o jogo flui e as oportunidades

são aproveitadas devemos ainda manter a posição da espreita, atentos e disponíveis para

qualquer reviravolta.

É interessante observarmos os mandingueiros que riem e se divertem mesmo

com seus erros e quedas. Fazem isso, talvez, por saberem de modo implícito e

encarnado que o jogo de capoeira é maior do que suas pequenas vontades e desejos

individuais, visto que os êxitos e fracassos não são nunca pessoais. Eles servem,

portanto, como um aprendizado para si e para o grupo, daí sua tranqüilidade de rir

mesmo de “seus” fracassos.

Esse aspecto impessoal da mandinga aponta um pouco para aquilo que Mircea

Eliade afirma em seu livro O sagrado e o Profano. Ele mostra como as sociedades

modernas perdem o contato com o sagrado. Elas vão encarando e reduzindo os

caminhos da sociedade a esforços e conquistas unicamente pessoais e humanos. Isso

impõe uma severa e rígida responsabilização do homem com relação as suas condutas e

de seus semelhantes. Para o bem ou para o mau essa responsabilidade acaba por inflar

demais os nossos “egos”, numa vaidade e num orgulho desmedidos. O que nos acontece

de bom ou ruim acaba sendo sempre avaliado segundo nossa culpa ou por culpa de

alguém. Tanto a humildade quanto a soberba acabam recaindo sobre o mesmo ponto, já

que implicam uma forma pessoal e humana de nos responsabilizarmos.

189

Entretanto, Eliade indica que, mesmo em nossa sociedade, imersa no tempo

histórico e humano, as manifestações do sagrado não deixam de nos marcar. Embora

muitas vezes possamos não só temê-las, mas também classificá-las como momentos de

perda de controle; por exemplo, como quando nos perdemos em horas de conversa, ou

assistindo a um filme cujas horas não passam, ou durante uma dança em que deslizamos

sem pensar ou refletir nossas ações. Tais experiências são vistas como mágicas e

perigosas já que durante elas supostamente perdemos o controle da situação.

A grande maioria dos ‘sem-religião’ não está propriamente falando, livre dos comportamentos religiosos, das teologias e mitologias. Estão às vezes entulhados por todo um amontoado mágico-religioso, mas degradado até a caricatura e, por esta razão, dificilmente reconhecível. O processo de dessacralização da existência humana atingiu muitas vezes formas híbridas de baixa magia e de religiosidade simiesca” (ELIADE, 1992, p. 167).

A capoeira Angola talvez, mesmo aceitando algumas mudanças da modernidade,

ainda tenha mantido em seus treinos os aspectos dos ritos. Dentre estes destacamos os

ritos da mandinga, que permitem aos jogadores não apenas experimentar esses tempos

do sagrado, como também relaxar e curti-los quando presenteados por eles. Ao

contrário de muitos outros espaços sociais, na roda de Angola é fundamental se entregar

aos ritos; desfazer-se das amarras e dos preconceitos subjetivos e objetivos que cercam

o mundo histórico. Na mandinga não somos nós que exercemos diretamente o papel

principal, mas nos colocamos a serviço do jogo, abrindo-nos à oportunidade e rindo

tranquilamente dessa mágica relação. O aprendiz vai sendo levado a cultivar uma nova

postura que lhe permite atravessar com mais serenidade e sabedoria os êxitos e os

fracassos, dando e recebendo rasteiras, compreendendo que não importa ser vencedor

ou o vencido, mas a manutenção do jogo.

A importância da ritualística para o cultivo da mandinga nos parece ser capital.

Sem reduzir é claro a ritualística à liturgia. Não se trata de repetir os jeitos e trejeitos

que os angoleiros fazem, porque isso rebaixaria a prática da capoeira Angola a uma

190

encenação formalizada pouco atenta e cultivadora das forças do sagrado. É claro que

essas formas são importantes, mas não devemos restringir os ritos a elas, não obstante a

capoeira Angola ainda se mantenha como um importante espaço de resistência e cultivo

de seus ritos. O espaço de resistência, talvez, aponte um elo disso que nós inicialmente

chamamos de “mudar para permanecer o mesmo”. Até uma sociedade mais dura e

esquecida da magia e dos mistérios do mundo pode se abrir e se render a esses encantos,

quando diante de uma roda de capoeira experimenta as forças do axé expressadas nas

danças de um capoeira mandingueiro.

Nesse sentido, a maior vítima da malícia não é o principiante atabalhoado, mas o

jogador orgulhoso e senhor de si, pois é este que precisa aprender os segredos da

mandinga. Nesse ponto, a malícia ou mandinga desempenha na capoeira Angola um

papel importante em seu aprendizado. Podemos perfeitamente dizer que a malícia é um

grande professor. Aquele que consegue se encantar por ela, procurando compreender

em sua experiência e no seu tempo seus segredos, conseguirá conviver no mundo onde a

moral mais atrapalha que ajuda, podendo sem dúvida estender a nova visão adquirida

para outras situações da roda da vida.

Antes de concluirmos esse ponto do aprendizado da malícia, usaremos uma

última palavra sobre um outro aspecto também muito importante na composição dessa

descrição da malícia. Trata-se do riso, do bom humor ou da ironia. Sobre isto afirma

Muniz Sodré:

(...) a ironia, sim... a compreensão do limite, que é a risada. Tem uma frase de um dos personagens do quarteto de Alexandria: ‘... até os 18 anos eu me achava um gênio, até que um dia eu descobri o sorriso’. Descobrir o sorriso é descobrir o limite. Vejo o sorriso como o esvaziamento destas identidades que parecem sólidas... (SODRÉ apud CAPOEIRA, 1992, p. 134)

Reconhecer o mundo na forma da alegria, não levá-lo muito a sério, numa

aprovação inconteste de nossa pequenez diante das coisas e da vida, parece estar por

traz do aprendizado da mandinga. Nossa sociedade muitas vezes vê nesses

191

comportamentos o sinal do caos, da falta de ordenamentos, da imoralidade, da preguiça

e da irresponsabilidade desses malandros que riem e se divertem nas rodas da vida.

Apontam para eles acusando-os de improdutivos, pois não passam o seu tempo tentando

amarrá-lo em atitudes funcionais e utilitárias. Vadios e malandros que perdem o seu

tempo com práticas improdutivas e preguiçosas.

Entretanto, na roda da capoeira quem quiser ser produtivo pode esbarrar nos

risos e golpes dos mandingueiros. Tal postura pode parecer ao homem “educado” e

moralista um acinte ou uma falta de educação. Porém, ao contrário do que possa

parecer, a mandinga realiza um combate ou uma resistência às apropriações utilitaristas

que formam o ethos de certa moralidade. Mais do que uma postura inconseqüente a

mandinga é uma ética, um modo de ser, por isso cabe ao aprendiz se posicionar com

humor e tranqüilidade e, talvez quem sabe, penetrar nessa paisagem, e aos poucos

encarnar esta ética entregando-se à sadável vadiação da roda de Angola.

Na Bahia os descendentes de escravos, Mestres de terreiro, ainda hoje comentam: ‘o branco faz letra, o negro faz treta’. ‘treta’significa estratagema, astúcia ou habilidade na luta. Significa, para o negro brasileiro, atuar nos interstícios das relações sociais de um modo próprio (ritualista) e oposto não à técnica da escrita, mas à ordem humana por ela representada até agora. A ‘treta’ (outro nome para ‘jeito’, que na sociedade brasileira é uma esquiva à rigidez das leis e dos regulamentos) faz parte da ordem das aparências, é um jogo dos menos fortes. Mas não é um jogo infeliz, que incite à depressão ou à passividade (por exemplo, essa passividade pós-moderna que consiste em ‘assumir’ as coisas). É algo que surge da atividade e da alegria, de jogar com o singular, com o instante (SODRÉ apud CAPOEIRA, 1992, p. 134).

Essa ética da ocasião encarada como uma política de resistência tem sido

até aqui descrita com o cuidado de não reduzi-la a um poder pessoal. Cuidado esse que

pode levar a um entendimento perigoso, por esse aprendizado se sustentar em um

domínio social. Se salientarmos uma discussão desse teor, ela pode nos levar a uma

oposição entre comportamentos individuais e pessoais, versus comportamentos sociais.

Como temos de algum modo recusado a ênfase individualista no processo de

192

aprendizado da capoeira, poderia ser entendido que nosso ponto de ancoragem é um tipo

de psicologia social da aprendizagem. Segundo Liliana de Escóssia:

(...) psicologia social se propõe a estudar a interação social, colocando a ênfase na análise de fatores históricos, culturais e políticos que condicionam os processos psicossociais. A atenção aqui é dirigida ao pólo social, o que acaba por levar alguns autores a afirmar uma supremacia do social sobre o individual” (ESCÓSSIA, 2004, p. 01).

E esse modo de entendimento nos faria esbarrar em uma dicotomia indivíduo

versus sociedade que temos aqui tentado evitar. Tratar o aprendizado da capoeira como

uma adequação social ou individual é para o presente trabalho um perigo que deve ser

evitado e combatido. No lugar da idéia de social entendemos que o aprendizado da

capoeira é um aprendizado coletivo. E aqui devemos estabelecer algumas distinções

entre o coletivo e o social.

Uma primeira e importante diferença é a totalização porta a noção de social e de

sociedade. Tratar a capoeira como uma prática social acaba por pressupor que exista

uma entidade global abrangente – O social - que “paira” sobre os indivíduos,

determinando suas práticas. Já a noção de coletivo pode ser compreendida como um

processo no qual as classificações totalizantes não conseguem atuar com clareza e força.

As maltas dos capoeiras29 do século XIX, no Rio de Janeiro, não se encaixam em um

movimento social totalizante e rígido, mas deve ser visto como um domínio coletivo.

Assim o coletivo se define por um processo aberto cujas relações são estabelecidas e

negociadas. Outra importante diferença que a noção de coletivo traz é a superação dos

registros individuais e sociais como determinantes, abrindo o espaço dos

acontecimentos para um domínio de forças e não de formas. Voltaremos adiante a este

assunto quando formas falar da roda da capoeira.

29 Sobre estas formas de organização dos capoeiras do século XIX no Rio de Janeiro cf: DIAS, 2001; HOLLOWAY, 1989 entre outros.

193

3.5 - O papel do Mestre e a roda como espaço privilegiado do aprendizado da e na tradição

“Porque o Mestre é aquele aluno que quer aprender” (CANJIQUINHA, 1989, p. 27).

“era eu ...

era meu mesti ... era meu mesti maiz eu ...

nois troquemu’z idea ... i num sei maiz ...

queinh é meu mesti ... neinh quim é eu!30”

(canto de capoeira. In DECANIO, 1997-A, p. 25)

Temos visto até agora os diversos sentidos implicados na prática e no

aprendizado da capoeira Angola. Compreendendo a dificuldade de reduzir este

aprendizado a uma aquisição de habilidades vimos à importância da idéia de cultivo.

Cultivar como uma prática atenta às oportunidades que de algum modo vai nos

permitir uma maior sensibilização e receptividade a elementos importantes na

capoeira Angola. Vimos o quanto à noção de hábito é perigosa, visto ser atravessada

por forças reificantes e automatizantes. O hábito como uma tendência adquirida

naturalizada vai contra a abertura atenta e aberta da espreita. Por isso, tentamos

ampliar essa noção apontando para uma idéia de hábito como um processo sem fim,

de diferenciação e transformação, no qual receptividade e espontaneidade são

reciprocamente trabalhadas. Cultivar um hábito na capoeira leva o aprendiz a entrar

numa outra temporalidade, o tempo do evento, tempo de vadiação. Vimos também a

importância do cultivo de hábitos estéticos e da mandinga. Mostramos a relevância da

dimensão ritualística, na qual se expressam as forças mágicas e sagradas da capoeira

Angola. Vimos a sua dimensão política e ética de resistência, de um “jogo das

aparências”. Veremos agora outra dimensão importante e vital para a experiência do

aprendizado da capoeira Angola que é figura do Mestre. E por último traremos uma

30 “Era eu ... era meu mestre ... era meu mestre mais eu ... nós trocamos as idéias ... e não sei mais ... quem é meu mestre ... nem quem sou eu!.

194

descrição da paisagem da roda, mostrando sua importância no cultivo da capoeira.

Mostraremos como a roda reúne de modo encarnado e vivo todos estes aspectos que

até agora discutimos.

No dicionário o termo Mestre é definido como “professor; aquele que ensina;

aquele que é versado numa arte ou ciência” (FERNANDES, 1993, p. 477). Na tradição

da capoeira o uso deste termo tem uma história recente. Ângelo Decânio Filho, um dos

primeiros alunos de Mestre Bimba ainda vivo escreveu sobre o assunto. Diz ele:

Na minha infância não se usava a palavra Mestre para o dirigente de um grupo de praticantes de capoeira, referiam-se ao que chamamos hoje ‘roda de capoeira’ apenas como ‘roda de fulano’ (...).

Os acadêmicos, afeitos às láureas universitárias, logo o (Bimba) equipararam aos Mestres das escolas superiores, passando a usar o honorável título de ‘Mestre’, reconhecendo-o como catedrático da capoeira da Bahia (DECÂNIO, s/d, p. 11 e 12)

Bimba começou a ser chamado de Mestre. Desde então, principalmente no interior

das academias de capoeira, esse modo de se referir ao capoeira “professor” se

incorporou à tradição caracterizando uma posição de hierarquia e de capacidade de

transmissão desta prática. Assim, podemos destacar o sentido acima descrito pelo

dicionário para inicialmente definir Mestre. É Mestre de capoeira aquele que por ser

versado nesta arte está autorizado a ensinar. Essa história marca um pouco o sentido da

mestria relacionado à sua prática de transmissão.

Contudo, se por um lado o ser Mestre na capoeira se aproxima daquilo que as

escolas chamam de professor, há também outros sentidos para este termo nas culturas

populares afro-brasileiras. Dentre eles destacamos as referências aos Mestres de ofício.

“Título dado aos peritos trabalhadores manuais. Mestre carapina, Mestre pedreiro,

Mestre sapateiro” (CASCUDO, 1988, p.492). E aqui o sentido é o de dominar

determinados modos ou práticas de ofícios. Aquele que preserva e encarna um saber

fazer. Por isso, eram chamados pela população, em tom respeitoso, de Mestres. O

aspecto referente ao ensino e transmissão de saberes não estava diretamente ligado a

195

este sentido de ser Mestre. Estas práticas eram estendidas também aos artistas populares

que como os Mestres de ofício detinham os saberes e práticas de sua arte. Mestre de

bonecos, Mestre de viola, Mestre de reisado. Estes Mestres populares eram os

mantenedores de saberes e práticas artesanais. Eram respeitados e reconhecidos como

Mestres por dominarem com maestria todas as etapas e processos de sua arte. No caso,

por exemplo, dos Mestres de mamulengos do nordeste brasileiro, seu trabalho se

estende desde a escolha e preparação dos materiais, passando pela construção dos

bonecos, dos cenários e das histórias, indo até sua encenação.

Não há separação entre aquele que sabe e aquele que faz. Tal separação é mais

comum à tradição moderna de produção e transmissão de conhecimento, na qual os que

sabem devem se dedicar apenas ao saber (abstração) e os que fazem devem se dedicar

apenas ao fazer (automatização dos fazeres). Tal cisão comum às escolas tradicionais

tem na prática e transmissão da capoeira, assim como em outras tradições populares,

uma forma de resistência. Aproximando-se disto é que temos destacado em nosso

trabalho um cultivo e transmissão dos saberes/fazeres “de oitiva”, sem método e fins

definidos. “Mandinga de escravo em ânsia de liberdade, seu princípio não tem método e

seu fim é inconcebível ao mais sábio capoeirista.” é frase de Mestre Pastinha escrita por

ele na entrada de sua academia no pelourinho em Salvador.

O Mestre de capoeira traz consigo essas duas acepções, pois desde o surgimento

das escolas de capoeira no início do século XX os Mestres também se apresentam como

professores, propondo técnicas de ensino e criando espaços próprios para essa

transmissão. Temos visto aqui que, por mais que estas escolas se aproximem dos

espaços escolares tradicionais, o cultivo da capoeira Angola ainda tenta manter nessas

escolas uma prática de cultivo e transmissão ligada ao sentido da mestria das tradições

populares afro-brasileiras, evitando separar o fazer dos saberes, a prática da teoria. Tal

196

característica é encontrada desde a escolha, preparação e construção, execução dos

instrumentos, cantos e toques da capoeira, até o cultivo das paisagens estéticas, éticas,

políticas e ritualísticas que envolvem esta tradição, como o cultivo dos tempos da

vadiação, dos rituais e da ética da mandinga, assim como de uma política da malícia e

da esquiva.

Dessa forma, o papel do Mestre como professor não se separa de sua posição de

capoeirista e de cuidador desta tradição. Não é possível ensinar algo que ele não viva e

cultive, conhecer e ensinar algo de modo teórico, assim como, também, não é possível

aprender de modo teórico. Ensinar e cultivar os ritos e práticas da capoeira são coisas

que não podem estar separadas. Tal afirmação requer uma mudança no papel do Mestre

enquanto cultivador/professor daquele que, nas escolas tradicionais é apenas professor.

Uma primeira e importante diferença entre esses dois tipos de aprendizado é

referente ao engajamento do professor e do aluno em relação àquilo que se ensina e se

aprende. Observamos cada vez mais em nossas escolas - não apenas de capoeira, mas do

ensino de tipo tradicional - uma atmosfera de desengajamento tanto dos professores

quanto dos alunos. Preocupados com questões formais, de preparação e criação de

técnicas de ensino que possam garantir e facilitar os resultados do aprendizado, vem-se

gerando nas escolas o que chamo de “pedagogia da infantilização”. Nesse processo, o

conhecimento é tratado como algo dado, que deve ser separado e “mastigado” para que

sua absorção pelos alunos seja facilitada. Tenho visto isto em minha prática de ensino

universitário31. A atenção dos acadêmicos vai sendo atraída por criação de meios e

técnicas de avaliação e transmissão do conhecimento. Vão sendo criadas apostilas,

textos didáticos e outras fórmulas de simplificação do tema. Professores e alunos vão se

31 Tenho trabalhado como professor universitário no curso de psicologia desde 1997. Passando desde então por três universidades, duas privadas e uma pública. FAMATH - Faculdades Maria Thereza, UNESA – Universidade Estácio de Sá e UERJ – Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Atualmente estou trabalhando apenas na UNESA.

197

acostumando com essa prática de simplificação do ensino. É usual receber pedidos de

meus alunos de psicologia para criar materiais simplificados, nos quais eles poderiam se

guiar em seus estudos. Assim a escala industrial de separação, aceleração e

desemplicação daquilo que se vivencia na escola tem sido levada a extremos.

O aluno e o professor, nesses espaços tradicionais, vão ocupando cada vez mais o

papel de retransmissor de informações gerais e simplificadas. Tal característica, me

parece, tem facilitado um certo desengajamento do aprendiz e do professor com o seu

processo de aprendizado. Viabilizando suas passagens por esse cenário escolar como se

estivessem passeando num shopping center. Num funcionamento de uma atenção

dispersa e desencarnada, prontos para a qualquer sinal dos estímulos responder

consumindo produtos prontos e vazios. É claro que nesta paisagem gélida e formal

ainda encontramos contra-exemplos, mas que de modo algum, são vivenciados como

rotineiros e comuns.

Estariam os Mestres de capoeira reproduzindo esse papel simplificador destas

pedagogias de infantilização? De saída indico que os espaços artesanais e de cultivo

dos ofícios próprios ao cultivo das culturas populares pode nos indicar pistas para

responder a essa pergunta. Nesses espaços o saber ou o conhecimento não são

considerados como algo que esteja separado da vida e das experiências cotidianas.

Não há uma tendência de separação entre o saber e o fazer, prática e teoria. Quem

quiser aprender um ofício já inicia nos fazeres. Como na tradição Bantu não há

espaço para formações discursivas descoladas do tempo dos eventos. Portanto, é na

prática, nos eventos que os Mestres cultivam suas transmissões. Uma prática

encarnada “fala” mais do que mil discursos vazios. Para tanto eles não criam espaços

ou técnicas específicas para os principiantes. Não entendem que esse ainda não possa

freqüentar os espaços tal como eles são. Não há infantilização do principiante.

198

Entendem que uma separação poderia impedir ou dificultar a sensibilização e

engajamento do aprendiz pela paisagem da tradição. Portanto, avalia-se não ser esse

o melhor meio de inserir o aprendiz nesta paisagem. Este é que deve se aproximar e

ao seu modo se engajar nos trabalhos do Mestre, acompanhando suas rotinas,

dirimindo suas dúvidas e questões durante estas práticas.

O que o aprendiz encontra do Mestre não é um cuidado especial e infantilizador,

mas um acolhimento paciente. O aprendiz não é visto como um ignorante, como

desprovido de algo, como alguém que não sabe. Tal mudança de atitude coloca o

aprendiz numa posição de ajudante e não de aluno. De saída lhe são propostos fazeres e

responsabilidades, assim como lhe é passado todo o processo. Aquele que se aproxima

dos Mestres de capoeira que ainda cultivam esta como uma prática encarnada, são

recebidos como companheiros desse cultivo. Há hierarquia, mas não há formalidades,

pois a prática tem que ser engajadora e “quente”, afastando-se dos ambientes frios e

formais. O Mestre tenta colocar o aprendiz numa posição em que se aprende com e não

como32. Indicando de saída que o trabalho é muito mais ligado a uma disposição de

composição do que de domínio técnico. Não se visa a uma submissão ou domínio da

técnica, mas a um fazer com, compondo com os elementos envolvidos. Desde o trabalho

como os materiais até a realização dos ritos da roda, o Mestre vai indicando ao aprendiz

um certo cuidado de composição. Quando escolhemos uma cabaça para se compor uma

verga e gerar um berimbau, o que descobrimos é que o nosso trabalho ou cuidado não é

submeter o material a uma idéia ou forma pré-estabelecida, mas construí-lo com a

composição dessas matérias. Abrir-se para o que essas forças naturais podem nos

ensinar. Do mesmo modo podemos dizer a respeito do jogo, do canto, do tocar e de

qualquer coisa envolvida na capoeira. Como não há nestas tradições populares de

32 Sobre este tema Cf. DE BARROS, L. P. 2006.

199

aprendizado uma separação do cultivo de uma tradição e de sua transmissão, entre o

aprendizado e a produção dos saberes, o aprendiz se sente desde sempre convidado a

pertencer a uma cultura viva e atuante. Nas escolas, muitas vezes, os alunos não se

sentem construtores de algo, mas apenas reprodutores.

Esse aprender com acaba por cultivar no aprendiz a necessidade e a disposição do

engajamento nesta tradição. Mas existe uma outra importante questão envolvida nesse

aprendizado com. Aquela que aponta para o sentido da idéia de coletivo. Habitualmente

oposta à idéia de individual, o conceito de coletivo acaba sendo entendido como uma

reunião de individualidades. Neste sentido, o conceito de coletivo parece identificar-se

ao de social. Todavia, Liliana da Escóssia aponta a diferença entre eles em sua tese de

doutorado.

Partimos da constatação de que há, no âmbito das ciências sociais, em especial, na psicologia e na sociologia, uma certa confusão entre a noção de coletivo e a de social. Empregados freqüentemente como sinônimos designam uma dimensão do real que pode ser apreendida através de grandes representações como Estado, Família, Igreja, Comunidades, Povo, Nação, Massa ou Classe, ou através do jogo de interações individuais ou grupais (ESCÓSSIA, 2004, p. 01).

O que enfatizamos no que diz respeito ao aprendizado da capoeira como

eminentemente um trabalho coletivo não é, portanto, na direção desta oposição

dicotômica entre indivíduo e sociedade. Não nos interessa distinguir se o que fazemos é

ditado por interesses individuais ou sociais. Acredito profundamente que um bom

Mestre de capoeira não compreende essa discussão do individual e do social, do

domínio de um sobre o outro. Dizer que na paisagem de uma tradição os elementos que

lhe constituem estão imersos numa coletividade, não é o mesmo que dizer que suas

individualidades estão submetidas ao interesse do grupo ou do social. Mas é

compreender que na paisagem os elementos são comuns, estão em comunhão. A

dimensão dessa comunhão não atesta apenas uma integração física de objetos e seres,

mas uma combinação de forças. O que abre nossa atenção para além do plano das

200

formas individuais, sejam elas corpos, sujeitos ou sociedades. Aprender num coletivo é

abrir-se a uma combinação de forças pré-individuais, que estão aquém e além dessas

formas33, é compor na paisagem com forças estéticas, éticas, políticas e sagradas. A

noção de paisagem é interessante porque foge da idéia de palco, da representação, onde

há o lugar em que se desenvolve a peça e um lugar para os expectadores na platéia.

Havendo uma nítida separação entre as formas do sujeito que observa e objeto

observado. Já na noção de paisagem não há elementos, formas ou forças que estejam

fora. Assim tanto o Mestre como os aprendizes compõem a paisagem da capoeira,

cultivando coletivamente com as forças naturais e sobrenaturais.

Cultivar uma experiência coletiva e encarnada na e da tradição é uma das funções

do Mestre de capoeira. Desde sempre o aprendiz é convidado a participar desse fazer,

convidado e estimulado a se engajar no processo de construção não apenas do seu

aprendizado, mas de toda a paisagem que o engloba. Tal experiência encarnada força o

cultivo de uma comunhão e pertencimento a algo. Mas pertencer não pode ser

confundido com ser proprietário ou propriedade de algo ou alguém. Pertencer se afasta

de todo e qualquer pretensão de apropriação, seja de um saber ou de qualquer outra

coisa. Essa construção ou cultivo não visa a produtos para serem apropriados e

consumidos, seja algo material como um instrumento, ou algo imaterial como um saber

ou prática. Daí o sentido de coletivo como um cultivo em comunhão engajada.

Pertencimento a algo que não lhe é próprio indica uma perda das formas subjetivas

do eu ou do sujeito. Esse sentimento de pertencimento à uma tradição Simone Weil

chama de “enraizamento” (2001). Esta importante pensadora e ativista da Europa do

inicio do séc. XIX, que buscou como ninguém, a construção de uma prática política de

enraizamento de um povo, que segundo ela estava cada vez mais desenraizado. Simone

33 A respeito dessa discussão cf. ESCÓSSIA, 2004.

201

Weil nos mostrou ao longo de sua curta vida exemplos de como as práticas de

desenvolvimento do capitalismo vão produzindo o pior de todos os flagelos que um

povo pode padecer: o desenraizamento. Dentre os fenômenos que ela analisa como

práticas de desenraizamento Weil destaca o modo como o ensino e a instrução estavam

sendo desenvolvidos na Europa moderna.

O renascimento provocou em toda a parte um corte entre as pessoas cultas e a massa; (...) disso resultou uma cultura que se desenvolveu num meio muito restrito, separado do mundo, numa atmosfera confinada, uma cultura consideravelmente orientada para a técnica e influenciada por ela, muito tingida de pragmatismo, extremamente fragmentada pela especialização, completamente desprovida ao mesmo tempo de contato com este universo e de abertura para o outro mundo (espiritual) (WEIL, 2001, p. 45).

Simone Weil oriunda de uma família abastada, cedo se revolta com essas práticas

que provocam o desenraizamento do povo. Numa bela passagem deste mesmo livro

Weil diz de que adianta um camponês, aluno de escola primária, saber mais do que

Pitágoras - na medida em que repete que a terra é que gira em torno do sol - se ele já

não se encanta mais pelo céu e pela observação das estrelas. “Esse sol de que lhe falam

na aula não tem para ele nenhuma relação com aquele que ele vê” (idem, p.45).

Continua afirmando chamar-se de instrução do povo nada mais do que uma

vulgarização de uma cultura desenraizada, depositada na memória dos jovens, na qual

“o desejo de aprender a aprender, o desejo de verdade tornou-se raríssimo. O prestígio

da cultura tornou-se quase exclusivamente social (...)” (idem, p. 46).

Mas na prática de cultivo com, que certos ambientes populares ainda preservam, o

que encontramos são modos de enraizamento. A capoeira Angola também pode e de

algum modo tem atuado como uma importante prática de enraizamento. O coletivo é

então uma comunidade composta de forças e matérias engajadas em saberes que não se

separam das dos fazeres, e nem se submetem a apropriações são fortes estratégias de

enraizamento. Buscando resistir ao modo de aprender como um consumo de uma

202

técnica de luta pessoal a fim de prestígio social, nos dedicamos ao cultivo de

paisagens, nas quais a prática da capoeira é exercida em sua integridade, imersa em

todos os seus elementos de tradição e ritualística; construindo um ambiente onde os

participantes sintam-se pertencentes a algo maior do que suas vaidades e pretensões

pessoais; vencendo a solidão e a preguiça de uma atenção dispersa, engajando-se numa

construção coletiva e solidária.

Todavia, esse trabalho não é tão simples e sua realização exige estratégias de

combate bastante sofisticadas. Descritos ao longo da tese vimos descrições e análises

dos modos como a capoeira tem evitado em suas diversas manifestações os lugares

comuns da dicotomia e da contradição, afastando-se dos purismos das definições

dicotômicas tão fáceis para o entendimento da razão e tão ineficientes nos combates das

práticas de desenraizamento. Vimos como o movimento do gingar não se reduz a uma

seqüência constante de movimentos, mas a uma composição paradoxal de movimentos e

paradas, num equilíbrio precário. Vimos como a noção de hábito pode comportar

permanência e mudança, receptividade e abertura com espontaneidade. Vimos como a

atenção não se restringe a busca de um foco, mas pode ser tratada como uma atenção

aberta e desfocada. Vimos como a experiência temporal engloba uma atenção aos

eventos e suas singularidades e também uma propensão a recomeçar e renascer. Vimos

como o ritmo e o movimento se compõem numa circularidade criativa. Vimos a

importância da ritualística e da dimensão do sagrado se encontrando com e nos espaços

profanos. Vimos a importância de uma ética e de uma política da mandinga, que atua

nos interstícios das formas prontas e dicotômicas.

Mas a resposta à questão principal proposta por este trabalho, que de algum modo,

foi sendo construída e até mesmo respondida de forma implícita e indireta, pode nesta

altura da tese, ser mais bem analisada e respondida. Como se consegue aprender

203

capoeira considerando estes elementos que compõem uma paisagem paradoxal e fluida?

Já que vimos acima que este não se reduz a uma função professoral de transmitir

conhecimentos formais, reproduzindo liturgias vazias e desenraizadoras, qual seria o

papel do Mestre de capoeira nesse cultivo da paisagem capoeirista?

Deleuze (1992) apresenta o conceito de intercessor para mostrar como a criação

(aprendizado) não é espontânea, mas se faz a partir da interferência ou transversalização

entre forças. Para tanto esse autor propõe o conceito de intercessor ou uma força

transversal que desempenha uma função falseadora. O intercessor é um falseador, não

necessariamente algo ou alguém, mas a própria experiência do encontro, o que, portanto

não pode ser antecipado nem muito menos aprisionado em formas prontas. Essa

potência do falso, que é o intercessor, segundo Deleuze, intervém lá onde a atitude

natural ou o senso comum tende a dicotomizar, caindo na representação (certo ou

errado, saber ou não saber, justo ou injusto, movimento ou parada, equilíbrio ou

desequilíbrio, receptividade ou atividade, atual ou virtual etc.). O intercessor falseando

instaura a hesitação de um paradoxo que prolonga a experiência e a bifurca.

Num livro, escrito por Herrigel, em que este descreve sua experiência de

aprendizado da arte oriental do tiro com arco, há uma passagem em que indaga a seu

Mestre “como o disparo pode ocorrer se não for eu que o fizer?”, “como acertar sem

mirar?”, ao que seu Mestre responde: “você crê que o que você não fizer não se fará”,

“algo atira e algo acerta”; “E eu o conseguirei?” – pergunta Herrigel, ao que o Mestre

novamente responde: “Espere pacientemente o que vier e como vier!”. Notemos que as

perguntas do aprendiz induzem a uma resposta dicotômica, que de algum modo pode

fechar o entendimento em uma ou outra direção. Mas o Mestre Zen se esquiva de modo

sutil a cair nas ciladas dicotômicas que a pergunta do aprendiz induz. Não se trata de

não responder ou relativizar, como talvez ..., é possível .... ou cada um é de um jeito.

204

Mas de dar respostas afirmativas e ao mesmo tempo abertas e paradoxais. Fazer sair da

armadilha da oposição, dessa expectativa ilusória que muitas vezes nossa experiência

acaba recaindo. O Mestre Zen se esquiva das formas abstratas.

Para se ter uma noção desta “esquiva” dos capoeiras, principalmente dos

grandes Mestres, trarei a descrição de algumas situações vivenciadas por mim em

meu aprendizado na capoeira Angola, que ilustram de modo claro essas

“esquivas”. Meu grupo era formado – devido a proximidade de sua sede com o

campus da Universidade Federal Fluminense (UFF) – hegemonicamente por

estudantes e ex-estudantes universitários. Recordo-me que sempre ao final de nossos

treinos realizávamos conversas nas quais cada um de nós, junto ao nosso Mestre,

podia comentar ou pedir explicações sobre o treino e a capoeira. Dentre os debates

era muito comum, devido a um costume universitário, perguntas que exigiam uma

definição geral e abrangente dos diversos elementos que compõem o universo da

capoeira. Tais como “é melhor jogar fechado ou aberto?” Ou “a capoeira é uma dança

ou uma luta?” Ou “Quanto tempo é necessário para se tornar um bom capoeirista?”

Ou “A capoeira é africana ou brasileira?” Na maioria das vezes o Mestre e os alunos

mais antigos tentavam se esquivar de respostas definitivas que pudessem simplificar

em fórmulas claras. Mas também ficaria chato não responder ou deixar a impressão

de que tudo pode. Portanto, as respostas atravessavam o tema sem esgotá-lo.

Respostas oblíquas que forçavam os aprendizes a saírem das posições cômodas e

inseguras das fórmulas gerais, incitando-os a pensarem e refletirem nas situações

concretas, como se estivessem nos dizendo que não havia a possibilidade de antemão

de conhecer e se preparar para os eventos da capoeira. Escutávamos respostas do tipo

“Sim a capoeira é uma luta, nos ensina e defender e atacar, mas nem sempre ela é

205

isso, podendo ser uma dança, um lamento, um canto, um abraço...” ou “quem não

treinar e se esforçar não será bom capoeirista, mas não basta só treinar e se esforçar”.

Para estudantes universitários acostumados a perguntas em geral e respostas

também em geral, envoltas em definições claras e extensas, confesso que muitas

vezes achei que estava sendo confundido ou enganado. Notei também, aos poucos,

que perguntas feitas por pessoas diferentes ou pelas mesmas pessoas em situações

diferentes, tinham respostas também diversas. Só aos poucos – principalmente por

meio do convívio com os meninos e meninas do bairro, moradores dos cortiços, que

também faziam parte do nosso grupo – pude perceber que a compreensão teórica e

conceitual dos elementos da capoeira mais atrapalhava que ajudava meu aprendizado.

Esses meninos, que poucas vezes tinham dúvidas profundas sobre a capoeira,

realizavam de modo encarnado os seus fundamentos, entravam e saiam das rodas,

brincavam e cantavam. Aprendiam sem muitas questões jogando e vadiando nas

rodas e treinos. Fui percebendo que havia duas maneiras de saber e aprender capoeira:

uma ligada a reflexão e abstração de fórmulas gerais, que de algum modo não

facilitava o aprendizado da capoeira Angola – e mais que isso, não era estimulada em

nosso grupo – e uma outra mais silenciosa e bastante exercida, uma espécie de

saber-fazer, que para ocorrer deveria exercitar um impedimento constante e difuso

das apropriações apressadas de nossas definições globais. Esse saber-fazer encontrava

nesse domínio uma legitimidade que eu só havia encontrado nas práticas de infância

dos jogos de rua.

O Mestre de capoeira assim como o Mestre Zen budista intercede sobre as formas

pessoais e sociais que podem dispersar atenção do aprendiz sobre o acontecimento no

qual ele se encontra. O Mestre quebra na própria experiência a submissão do aprendiz

às formas fixas, forçando para que o aprendiz desperte ou concentre sua atenção e

206

paciência ao tempo do evento. O interessante nesse exemplo é que o que se tira não é

uma espécie de “moral da história”, mas uma impossibilidade de fechá-la, o que nos

lança de volta para a experiência. Por isso as tarefas, corporais ou intelectuais propostas

pelos Mestres são apenas os meios, os modos para ludibriar as formas rígidas do

aprendiz. A tarefa, sua execução e seus resultados não são muito importantes. Daí o

desprezo do Mestre com os resultados práticos ou utilitários dessas tarefas. Já o

aprendiz entra querendo dominar e controlar seus eventos constituindo uma habilidade e

melhorando seus resultados. Por isso deve ser falseado. O objetivo dos Mestres não é

diretamente o êxito ou os resultados das tarefas, porém “o como” os aprendizes

aprendem. Mas se as tarefas não são encaradas como o objetivo principal desse modo de

aprendizado não há como ensinar o aprender fora delas. Não se trata de um

entendimento intelectual e abstrato do paradoxo, mas de sua experimentação.

A tarefa não ensina mas é uma boa ocasião para se aprender a aprender. Tal como

vimos acima nas práticas da capoeira, as liturgias não garantem o axé, mas este só se

expressa nesses eventos. Ciente de que não são as tarefas nem muito menos o seu

conhecimento que atuam como professor, os Mestres ao mesmo tempo em que as

propõem as falseiam. O Mestre não ensina, as tarefas não ensinam e muito menos um

suposto conhecimento abstrato também não. O que ensina é a força do acontecimento

ou o que chamamos de axé. De novo o paradoxo, pois o aprendizado pelo axé não pode

ser intelectual e conceitual, nem muito menos se restringe aos eventos que às vezes o

portam. De novo as crianças nos ensinam, como verdadeiros Mestres. Quando estão

jogando ou brincando elas se esmeram em suas pequenas liturgias, pequenas regras são

criadas. Mas essas regras não garantem a magia da brincadeira, elas apenas podem

iniciar ou preparar a mesma. Mas se ao longo dessa tentativa de ritualização a

brincadeira não acontecer com o acontecimento, a criança não se prende às regras

207

criadas, não se apaixona pela simples formalização da brincadeira, mudando-as se

necessário em nome da magia do brincar.

Acontecer com o acontecimento é o que devemos cultivar, aprendendo a aprender.

Por isso, como a criança, o Mestre é um falseador, já que ilude com suas proposições de

regras e tarefas, desprezando-as e até mesmo transformando-as. Como se estivessem

desligados de suas formas e ligados naquilo que elas podem ou não vir a portar. Essa

atitude intercessora marca o Mestre não pelo lugar tradicional de Mestre, mas pela

maestria, a qual não se confunde com ensinar, mas reger uma composição, como o

maestro que rege a composição dos diferentes ritmos e sonoridades a partir do qual a

música acontece e ele acontece com a música.

Nesta paisagem o Mestre não é aquele que detém um saber que por sua vez pode

ser transmitido. Ele compreende que a capoeira não pode ser aprendida ou ensinada

segundo modelos a serem imitados, visto que o que ensina é algo que atravessa esses

modelos. Assim, o Mestre cultiva fundamentalmente duas posições. A primeira diz

respeito ao cuidado com os elementos ou fundamentos da liturgia da prática da capoeira,

ciente de que são essas práticas, realizadas com cuidado e atenção, que podem vir a

encarnar o axé, os planos invisíveis das forças. Mas não basta esse cuidado, pois a

liturgia não garante nada. Ele deve atuar como intercessor ou como falseador,

quebrando as amarras que podem estar impedindo aos capoeiras o aproveitamento da

oportunidade na qual essas forças invisíveis tocam o acontecimento; cultivar por

provocações e segredos uma abertura ao regime das forças, atuando na intersecção da

experiência. Como o aprendizado não pode ser garantido pelo Mestre ele cria as

situações e intercede nelas para que o aprendiz consiga se engajar no tempo dos

acontecimentos e aprender com este. Não há como aprender se colocando de fora, nem

sendo colocado para dentro.

208

Estranha e encantadora prática de aprendizado. Encantamento e sedução de um

lado e falseamento e ilusão de outro. Acolhimento e abertura, cuidado e desapego. O

Mestre é assim responsável e impotente para o aprendizado. Responsável, porque tem o

cuidado de criar as melhores condições para as sementes florescerem, mas impotente

porque é só o acontecimento e a experiência que vai poder gerar as flores. Circularidade

da vida, pois como nos diz Simone Weil somente aqueles que estão enraizados podem

enraizar. O Mestre, então, cultivando esses eventos permite que seus aprendizes possam

também com ele ajudá-lo nessa tarefa. O que o Mestre de capoeira na verdade quer não

são discípulos obedientes, mas companheiros e colegas para continuarem a jogar e rir

nessa jornada de magia e segredo que é a vida.

Neste mundo não há moral da história ou verdade absoluta. Nesse sentido mais do

que domínio técnico e pedagógico o Mestre tem que ter a sensibilidade da circunstância

e o cuidado para com o aprendiz. Cuidado não é proteger ou impedir este de ganhar

autonomia, mas um cuidado com os ritos da capoeira, já que são eles que ensinam. É

impressionante quando em sala de aula damos uma boa aula, alguns alunos se

aproximam e relatam o quanto foi legal e contagiante aquele evento. A sensação muitas

vezes é a de que fomos encantados por forças misteriosas que se apoderam de nossa

paisagem. Não significa com isso ficar desleixado e se esquecer de cuidar da liturgia do

curso, mas de algum modo compreender que esta não garante a boa aula. Não se trata de

um poder pessoal ou uma habilidade social, porém de acontecer com o acontecimento.

O Mestre atua como um intercessor um falseador. Reconhece que a potência do

aprendizado está nas forças impessoais e mágicas expressas nos ritos. O espaço da

escola ou da academia tem que ser transformado numa paisagem propícia aos poderes

ritualísticos. Não se trata de uma igreja, já que vimos antes que o sagrado ou ritualístico

da capoeira Angola se expressa em ambientes profanos e informais. Mas esta

209

informalidade dos espaços profanos não impede de se ter um cuidado com esses

espaços. É profano por que atravessado de eventos cotidianos, de circulação de pessoas,

histórias, portanto de um mundo natural. Entretanto é sagrado porque reúne

diversidades em práticas e rituais que a integram. Desde um nome do grupo, seu

uniforme, suas cores etc. Todo esse cuidado com a liturgia recai sobre o Mestre e seu

grupo.

A verdade realizada ou enunciada, não importa, pois de qualquer modo se

colocam aquém e além da experiência, como formas a priori que servem de condição

para a aprendizagem. Ao contrário, o aprendizado da capoeira Angola, segundo os

velhos Mestres, aproveitam as ocasiões (na rua) ou tentam criar situações (na academia)

para oferecer ao aprendiz oportunidades para encontrar-se com as forças, compondo

com ela sua formação. Desse modo é muito comum notarmos nos ambientes da capoeira

Angola e principalmente em nossos Mestres sinais de resistência às definições

intelectuais, preferindo, de algum modo, os caminhos “rudimentares” dos signos que

precisam ser decifrados. Mesmo com o advento das academias e das escolas de

capoeira, e a incorporação de técnicas e teorias a respeito desta, ainda encontramos

Mestres e grupos que resistem a essa apropriação intelectual, que busca encaixar a

capoeira em modalidades e tipos de atividades distintas. Como um sabonete, a capoeira

escorrega das definições que a fecham numa única modalidade.

Mas se o Mestre atua como intercessor é a roda que consegue reunir todos esses

elementos atuando como principal espaço de cultivo de um aprendizado na e da

tradição. Os capoeiristas reúnem-se numa roda onde alguns assumem (sempre

provisoriamente) certos papéis, com exceção do papel de Mestre. Portanto, numa

roda há Mestres e aprendizes (única hierarquia) Mestre é Mestre e aprendiz é

aprendiz. Não há níveis de hierarquia entre os Mestres e entres os aprendizes, logo

210

um aluno novato é “igual” a um veterano. Não há nenhuma marca nos uniformes

(cordéis etc) que possam diferenciar isto. Esse detalhe é importante, pois, qualquer

praticante da capoeira está apto, desde sempre, a freqüentar uma roda de capoeira.

Alguns capoeiristas assumem os instrumentos da orquestra: três berimbaus com

tamanho de cabaças diferentes (sons grave [gunga], médio [médio] e agudo [viola]),

dois pandeiros, um atabaque, um reco-reco e um agogô. A orquestra se inicia e um dos

capoeiristas, geralmente pertencente à orquestra, inicia os cânticos. Neste momento, aos

pés dos berimbaus, dentro da roda, se reúnem e se cumprimentam dois capoeiristas que

irão jogar entre si. O cântico inicial é conhecido como ladainha, no qual o cantador

solitário realiza uma canção sem a participação de ninguém, todos sem exceção escutam

a ladainha, inclusive os dois jogadores agachados nos pés dos berimbaus. Ao seu fim, o

mesmo cantador inicia uma chula, cuja principal característica é a repetição em coro dos

versos cantados pelo cantador. Finda a chula iniciam os corridos, canções de letras

variadas, cujos refrões são repetidos pelo coro dos demais. Nesse momento os dois

capoeiristas iniciam o jogo. Quem está tocando o berimbau maior (gunga) comanda a

roda. É ele quem indica quando o jogo começa e quando ele termina, assim como pode

efetivar outras intervenções. Também o Mestre, esteja ele onde estiver, pode intervir.

Um observador diante da roda, impactado com a sincronia dos movimentos do

jogo, pode imaginar o trabalho e o esforço para que os jogadores atinjam tal destreza.

Para o observador, também parece que esta destreza é a aquisição de uma habilidade

sensório-motora, uma espécie de reação motora a estímulos do jogo. Nesse sentido, os

movimentos seriam um esforço para atingir determinados objetivos, tais como, dar uma

rasteira, ou proteger-se de uma cabeçada. Segundo essa perspectiva, o jogador estaria

presente numa atenção focada no resultado ou na habilidade, o tempo todo tendo que

avaliar a situação e reagir a ela, o que implica um grau enorme de esforço. O iniciante

211

tal como um observador entra no jogo dessa maneira. Seu esforço é manter-se focado

nas variáveis e procedimentos (regras), o que subsume a roda a uma prática guiada por

funções gerais: como devo cantar, tocar, ou jogar. O aprendiz age, circunscrevendo o

seu campo de ação, sempre buscando um foco específico, e deste modo, ao fim do jogo

ou da roda ele experimenta um cansaço, tanto físico, quanto mental. Assim, podemos

dizer que o aprendiz atua um pouco como quem quer entrar e participar, procurando

sempre se adequar a uma suposta situação de movimentos e sons, mas sua participação

ainda é como a de um observador desencarnado, que se esforça para aprender

movimentos e sons em geral.

A roda, encarnada de toda a tradição34 da capoeira, sinaliza e apresenta situações

que nos forçam a sair da posição em geral e penetrarmos na experiência rica e “quente”

da capoeira. Elementos de mistério, risos, malandragem, mandinga, vão “exigindo” do

aprendiz um refinamento de sua prática. À atividade física e suas habilidades

específicas vão se incorporando outros elementos, e com eles novas formas de

engajamento e de emoção. O capoeirista é levado35 a deslocar sua atenção, do como se

comportar para o estar atento ao espírito do jogo, liberando-se do sensório-motor e

expandindo-o, abrindo-se ao plano dos sentidos numa experiência encarnada e com a

atenção desfocada, a qual enseja o enraízamento e a surpresa – acontecer com o

acontecimento.

Numa roda em Niterói, anos atrás, por exemplo, espantava a alguns principiantes

como o Mestre Moraes36 podia ao mesmo tempo jogar e ouvir detalhes dos instrumentos

34 Nos referimos a tradição num sentido ampliado. Não se trata de um passado que pode constranger e discriminar, mas da presença de um “espírito”, que os capoeiristas denominam de “axé”. Uma roda é considerada boa quando esse “espírito” está presente, quando tem “axé”. Portanto a tradição não é o retorno a um passado, mas é a própria continuação encarnada de um “espírito” que se faz presente, na forma da própria experiência da capoeira Angola se fazendo. 35 Utilizamos aqui o verbo levar no sentido da levada de uma dança, de um jogo ou de um som, e não no sentido do encaminhamento a um lugar pré-determinado. 36 Discípulo indireto de Mestre Pastinha. Atualmente é o líder do grupo GCAP (Grupo Capoeira Angola Pelourinho) na Bahia.

212

da orquestra, numa atitude totalmente encarnada e plena. Para isso, é preciso treinar a

sensibilidade, deixando-se afetar por aquilo que se faz e acolher seus efeitos sobre si. Há

uma força afetiva na capoeira, assim como no tiro com arco, e essa é sua dimensão não

recognitiva ou impessoal, imediaticidade da experiência concreta e afetiva. Essa força

afetiva produz, do ponto de vista do aprendiz, uma sensibilização que engaja (dá

“onda”): pratica-se pela experiência afetiva de praticar. É pelo engajamento que o

aprendizado ocorre.

No exemplo do arqueiro Zen, a respiração o liberta das forças do ego e dos

interesses adaptativos da ação (querer acertar o alvo). Na capoeira podemos destacar a

importância de todo o ritual da roda, principalmente os sons dos instrumentos e os

cânticos que vão embalando em uma misteriosa intervenção o jogo. Sendo assim, o

“espírito da roda”, e não apenas a figura do Mestre, atua como intercessor na

experiência, rachando as representações e expectativas que o iniciante/observador

julgava serem necessárias para aprender. O tempo todo a roda falseia introduzindo o

paradoxo, como dar uma rasteira sem nenhuma intenção, ou como a capacidade do

Mestre Moraes de jogar e escutar a orquestra ao mesmo tempo.

Portanto, o salto do aprendizado é quando o aprendiz entende/fazendo que não há

como saber sem sujar as mãos, estando atento à experiência da roda na qual o paradoxal

não assusta, mas persiste e insiste. O paradoxo só assusta ao expectador curioso, ao

intelectual que o trata como uma questão lógica. "Amigos o corpo é um grande systema

de razão, por detraz de nossos pensamentos acha-se um Snr. poderoso, um sabio

desconhecido”(PASTINHA apud DECANIO, 1997, p. 9). É notória nesta arte a

distinção que os capoeiristas fazem entre um golpe forçado, cuja força e violência atuam

em primeiro plano e um golpe “natural e espontâneo”. Neste último, considerado um

golpe de Mestre, os capoeiristas dizem que “o oponente já ia cair”, e a rasteira só ajudou

213

o movimento da queda. Para realizar tais golpes “espontâneos e naturais” só estando

numa atenção plena e desfocada. Não adianta saber tocar berimbau, cantar, realizar

golpes espetaculares se não se está entregue às situações do jogo. A roda de Angola

cultiva37 desde o início esse espírito de experimentação de uma presença plena e

encarnada.

Presente em todos os momentos nesse aprendizado o Mestre atua, mas, nem

sempre sua atuação ou presença é percebida. Ciente de que o “espírito da capoeira”,

enquanto uma experiência viva é o lugar onde se aprende, o Mestre muitas vezes atua

garantindo as condições mínimas para que o “axé” possa acontecer. Tal como na vida,

na capoeira qualquer vantagem é impossibilitada àquele que entra na roda com a

expectativa de enfrentar uma situação pré-estabelecida. Tudo é capoeira, e por isso não

podemos nos preparar antecipadamente. O Mestre vai ambientando os aprendizes nestas

situações estranhas e paradoxais no se fazendo da própria capoeira, falseando suas

expectativas e representações. A quebra de tais mediações coloca o aprendiz na relação

imediata de uma prática efetiva e essa relação imediata é a própria experiência na qual

não há distinção entre sujeito e objeto, ou, entre quem aprende e o que é aprendido:

“Sua habilidade se revela no momento em que a mão, dominadora incondicional da

técnica, executa e torna visível a idéia que naquele exato momento está sendo criada

pelo espírito, sem que haja qualquer distanciamento entre a concepção e a realização”

(HERRIGEL, 1977, p. 96).

Nem sempre quem treina buscando estar de antemão preparado para o jogo é um

bom capoeirista. Sem garantias de que esse “espírito” se presentifique, intervém como

uma espécie de maestro da orquestra. Atua como um provocador, instigando quando a

“axé” ainda não aconteceu. É importante distinguirmos o provocador daquele que se

37 Ressaltamos a diferença entre cultivo e exercício. O exercício é marcado pela atenção aos resultados, ao comportamento. Já o cultivo é marcado pela atenção à experiência encarnada.

214

julga responsável, como aquele que sabe. O espírito da capoeira não pertence a

ninguém, nem mesmo a um Mestre. O que podemos fazer é iniciar o ritual e permanecer

atentos, abertos à experiência. Tal como um surfista ou um piloto de asa delta, que

aproveita as ondas e os ventos, o capoeirista também é levado pelas ondas da roda.

Esses casos de aprendizado da capoeira Angola e do tiro com arco no zen budismo

são intercessores para pensarmos o que é aprender. Dessa forma, dão expressão para

questões que estão em ressonância direta com a posição deleuziana discutida acima. O

ponto principal que buscamos desenvolver aqui foi o da experiência como eixo para o

aprendizado e a virada na colocação do problema que ele implica, o qual deve ser

colocado do ponto de vista do aprendiz e não do ponto de vista de quem ensina ou de

um observador intelectual. Do ponto de vista do aprendiz a ênfase deve ser posta no

aprender e não na aprendizagem submetida ao aprendido e aos resultados. O aprender

não é pessoal e nem circunstancial, não está amarrado a práticas “frias” (métodos e

técnicas), mas está ligado à experiência de uma tradição impessoal, ao “espírito” da

capoeira.

215

Conclusão

Durante esse percurso colocamos alguns temas e problemas referentes ao

aprendizado da capoeira Angola. O que nos permitiu desenvolvê-los e agora extrair

algumas conclusões. É claro que como todo final de roda, esta conclusão não fechará de

modo definitivo nenhum dos assuntos propostos. Assim, uma primeira e importante

observação a respeito deste trabalho é a necessidade cada vez mais premente de nos

voltarmos para as experiências concretas e encarnadas de nosso povo. Conforme contei

na introdução, meu interesse pela capoeira se iniciou através de um grupo de capoeira

Angola em Niterói. Narrei sua relevância assim como algumas de suas singularidades.

Depois de alguns anos de afastamento dos treinos e da capoeira, resolvo voltar como

pesquisador a tratar do tema. Do projeto, que foi apresentado em outubro de 2003 até a

presente conclusão se passaram 4 anos de idas e vindas. Inicialmente ligado a uma

tradição de capoeira Angola, minha visão era restrita a esse lugar, me levando muitas

vezes a desconsiderar as outras diversas formas de capoeira. Ao longo da tese, através

dos textos, da pesquisa de campo e principalmente através da participação do Inventário

como Salvaguarda da Capoeira como Patrimônio do Brasil, me foi permitido ampliar

conhecimentos e ver por meio da prática a riqueza e variedade do universo da capoeira.

Deste modo, um desfecho que me parece pertinente é a circunscrição deste

trabalho numa visão singular e própria a respeito do aprendizado da capoeira Angola. Se

permanecesse mais dois meses rodando este país, certamente a resultado seria outro. Tal

constatação ao contrário de restringir o universo deste trabalho me parece indicar sua

riqueza e diversidade. Por isso, ao contrário de obter uma compreensão cada vez mais

geral do aprendizado da capoeira, o que tal experiência de engajamento me propiciou

216

foi uma abertura e um encontro com modos singulares e locais, que vistos com cuidado

e calma indicam estratégias próprias no que tange ao aprendizado. Mergulhar e ampliar

nossas pesquisas a respeito de algo não nos colocou no caminho do geral e abstrato.

Então, como primeira conclusão esta tese permitiu compreender que o mundo da

capoeira é amplo e diversificado, e mesmo dentro da perspectiva da capoeira Angola o

que encontramos nas diversas localidades e grupos não nos autoriza falar em capoeira

Angola como uma unidade geral.

Se em relação à capoeira Angola esse perigo de generalização e formalismo

corre o risco de acontecer, o que dizer da área especifica da psicologia da aprendizagem,

de onde falo como professor e como pesquisador? Marcada por uma prática hegemônica

de pesquisa experimental de método quantitativo, a maioria dos trabalhos de

aprendizagem visam a encontrar, a partir de experimentos, formas e leis gerais. Visam,

com isso, o controle e a previsão dos meios para atingir os fins desejados. Desse modo,

outra conclusão importante deste trabalho é referente a necessidade de suscitar nos

pesquisadores em psicologia da aprendizagem a vontade de construir novas formas de

metodologia de pesquisa, que de algum modo tragam a inspiração, a beleza e a

implicação com o objeto de estudo como formas de engajamento e expressão. Permitir

ao pesquisador sair dos lugares rígidos que sua posição de saber às vezes o coloca, indo

na direção do seu campo problemático, se transformando com ele, descobrindo-se com

ele, abrindo-se à rica e encantadora experiência da pesquisa encarnada.

Vimos como na tradição da capoeira Angola os modos de aprender, desde os

tempos antigos, estão vinculados a um cultivo de uma experiência ampla e

contextualizada, e não um treinamento de habilidades. No cultivo de uma tradição

existem tarefas, mas essas não são vistas como o que mais importa no aprendizado. As

tarefas e os seus resultados não surgem como figuras num fundo descontextualizado,

217

mas como modos de integração do aprendiz nos espaços e tempo do cultivo de suas

tradições. Não aprende capoeira Angola quem desempenha bem certas tarefas, porém

aquele que se mistura e se engaja com os cuidados desta prática. Nesses espaços os

produtos ou fins cedem o seu acento ao caminho ou processo. Tanto o ponto de partida

quanto o de chegada são esquecidos e desconsiderados. O aprender como é substituído

pelo aprender com. Não há outro fim senão a manutenção dessa circularidade que

retorna sempre de modo diferente. O tempo do aprendizado na tradição é o tempo dos

eventos e do retorno dos ritos de iniciação, que voltam justamente para impedir o seu

fechamento, reiniciando assim, de novo o processo circular. Aprender capoeira Angola

como cultivo da e na tradição força a desconstrução do tempo técnico dos resultados,

abrindo ao aprendiz uma experiência com o tempo circular e criativo dos recomeços.

Outra conclusão importante é o modo ou a forma com que a tradição da capoeira

Angola tem mantido essas práticas num mundo hostil e refratário a esses rituais.

Descobrimos ao longo deste trabalho aquilo que Sodré chamou de “forma dissimétrica

de uma heterogeneidade atuante” cujas tradições afro-brasileiras conseguem resistir às

formas hegemônicas, sem com isso cair nos saudosismos tradicionalistas. A mandinga

como prática política de “negociação” transversal e intersticial, permite a realização de

um jogo de aparências, no qual a capoeira vai incorporando alguns formados novos e

modernizantes, tornando-se aceita e próxima de práticas escolares tradicionais. Mas tal

aproximação pode apressadamente ser considerada como uma adesão plena a esses

modos de aprender e ensinar.

Vimos aos poucos, durante a tese, que a capoeira ainda mantém, de modos

diferentes, o modo antigo de aprender “de oitiva”, cultivando a atenção de espreita, de

um tempo dos eventos, de seus rituais e de toda uma tradição. Esse modo de resistência

é, segundo nos parece, uma das grandes contribuições que a capoeira pode dar para

218

pensarmos uma política de resistência que não recai nos maniqueístas dos juízos morais

de certos movimentos sociais, como se só houvesse duas posições possíveis: ou a

adesão à modernidade ou a manutenção dos rituais em sua pureza. Tais perspectivas têm

colocado o pensamento político num conflito entre os puros e os pragmáticos. De um

lado, aqueles que tudo criticam por ver nos novos eventos a perda de um passado

glorioso e puro, nos quais o futuro nada mais pode ser do que o resgate do passado

perdido, o que muitas vezes tem colocado os movimentos sociais numa posição

defensiva e sectária. Por outro lado, existem aqueles que diante dos acontecimentos e de

suas mudanças não veriam necessidade de uma resistência política, já que tudo se

resumiria em modos de adequação e adesão às formas atuais. Nesse pragmatismo

haveria uma espécie de fim da história, perda da perspectiva de mudança e

transformação. Diante dessas duas posições, absolutas e puras, a capoeira tem realizado

uma política de resistência que ludibria essas definições simples, escorregando e criando

caminhos próprios e engajados.

Nessas novas práticas de resistência a política desloca-se para as avaliações e

considerações dos espaços minoritários ou das chamadas lutas locais, em que os

critérios ficam mais próximos do nosso cotidiano. A tradição da oralidade típica da

capoeira facilita tal modo de realizar essas lutas, pois acabam por desconsiderar a

história como o domínio dos fatos, relativizando suas determinações. Pertencer a um

contexto histórico acaba por nos restringir, através dos rótulos sociais, a ver o

verdadeiro domínio da política, ou seja, o plano das forças. A história acaba por reduzir

a política ao plano das formas e de suas significações rígidas, fazendo-a recair a termos

moralizantes e sectários. Para de algum modo fugir desses moldes duros da história a

capoeira Angola tem cultivado uma ética da malícia. O ser mandingueiro não é outra

219

forma, portanto uma moral, mas um jeito de realizar avaliações engajadas e locais,

possibilitando uma maior mobilidade e resistência.

Como vimos na roda da capoeira, os praticantes procuram penetrar numa

disputa paradoxal, num jogo de aparências no qual as posições dicotômicas e

formalizadas são evitadas. Atentos a essa dinâmica das forças, o capoeira meio que

suplanta as formas dicotômicas, atravessando situações paradoxais, como a de um

equilíbrio precário, de uma continuidade descontínua, de uma espontaneidade receptiva,

de um golpe de defesa que é também de ataque, de uma repetição da diferença, do

mostrar se escondendo, do cair levantando etc. Tal forma de resistência política

pressupõe o cultivo de uma ética da malícia.

Vimos também a dimensão do sagrado ou da ritualística na tradição da capoeira

Angola. Onde os ritos devem ser encarados como modos de atingir ou manifestar as

forças sagradas ou aquilo que está aquém ou além do plano histórico e determinista. Da

mesma maneira que no candomblé, no qual os participantes atuam como “cavalos” dos

orixás, os rituais da capoeira também portam um domínio de mistério e magia,

representado pelas figuras dos antepassados. Porém, tais dimensões não são expressas

em domínios fechados dos espaços religiosos. A capoeira não é uma religião, o que

possibilita sua transição por espaços profanos, como as escolas, academias, praças,

festas e universidades. Assim, essa tradição traz consigo um estranho modo de

manutenção das forças do sagrado numa troca com os espaços profanos, reservando a

magia do sagrado às manifestações mais simples e cotidianas, como, por exemplo, tocar

um instrumento, cantar uma ladainha ou realizar um movimento. Entretanto, se essa

estranha maneira de ritualização abre as manifestações do sagrado para os espaços

profanos da história do dia-a-dia, a capoeira corre o risco de acabar por reproduzir esses

ritos apenas nas suas formas, mantendo apenas suas liturgias. É muito comum vermos

220

angoleiros ao pé do berimbau, realizando os comprimentos, sinais de cruz, louvando o

berimbau, os Mestres e os antepassados apenas de modo formal, repetindo uma liturgia

ou apenas sua exterioridade. Tal redução acaba por criar as apropriações folclóricas que

ao contrário de manifestar as forças sagradas acabam por reduzi-las a modos antigos e

fora de contexto. Essa folclorização encaminha os ritos para formas exóticas e sem

sentido, pois representam aquilo que não somos. Esses perigos é que vão exigir do

Mestre uma posição destacada e vital nesse cultivo da capoeira.

O Mestre como aquele que segundo a tradição da capoeira reúne todas as

condições de preservação e cultiva essa, não reúne os atributos de um professor

tradicional. Desse modo uma das mais importantes conclusões do presente trabalho é

justamente o deslocamento, a partir do exemplo da capoeira, do sentido de ser Mestre.

Vimos como a capoeira tem se aproximando das formas tradicionais de ensino e

aprendizado dos espaços escolares, o que muitas vezes acaba por circunscrever a figura

do Mestre à de um professor, como aquele que sabe e, portanto pode ensinar. Nessa

paisagem própria das tradições escolares o professor assume o lugar e o papel de saber.

Cabe a ele, diante de suas virtudes e conhecimentos pessoais, ensinar. O professor é o

que ensina. Na capoeira, segundo vimos, a noção de Mestre se aproxima bem mais dos

chamados Mestres de ofício ou dos Mestres das artes, que a cultura popular brasileira

tão bem nos presenteou e presenteia de exemplos. Uma diferença importante dessas

duas maneiras de ser Mestre é o modo como são encarados os aprendizes. Como é a

escola e os professores que sabem, o aprendiz acaba sendo considerado alguém

destituído de saber. O que o aprendiz traz, suas origens e história devem ser

desconsideradas, pois muitas vezes podem dificultar sua prática de aprendizado. Há

uma espécie de “infantilização” do aprendiz, que deveria se deixar levar por práticas

específicas e destituídas de sentido, como se só no final viessem a entender que

221

realmente está aprendendo. Os mestres de ofício, ao contrário, recebem o aprendiz e sua

história, aproveitando essas singularidades em sua inserção na prática. Assim, parece

que para estes Mestres não são eles que ensinam mais a própria prática é que vai

ensinar.

Mas de que tipo de prática estamos falando? Ao contrário da prática como um

aplicação da teoria, ou de uma execução de um planejamento teórico, a prática é vista

pelos Mestres da capoeira como o único e real lugar. Assim os Mestres não enchem os

aprendizes de aulas teóricas ou preparatórias da prática da capoeira, mas recebem desde

o início o aprendiz dentro de suas rotinas próprias. Não havendo necessidade de separar

teoria e prática, espaços de aprendizagem e espaços de atividade. Aprendiz e Mestres

devem conviver sem nenhuma redução da rotina destes fazeres. O aprendiz é convidado

a aprender com e não como.

Nesse convívio rico e localizado o aprendiz vai aos poucos sendo apresentado e

convidado a experimentar os fazeres, os materiais e elementos desta prática. Junto a

esses aspectos são contadas histórias, realizadas discussões, nas quais o que vai sendo

privilegiado não é um saber ou instrução teórica, mas um saber fazer, uma sabedoria. O

aprendiz vai aprendendo a cultivar, preparar e realizar todos os elementos das liturgias

da capoeira. Desde a escolha e manipulação dos materiais, instrumentos, cantos, roupas,

espaços, comidas etc. até suas ritualizações. Como uma espécie de guardião destas

liturgias o Mestre vai criando nestes aprendizes o interesse e a necessidade de cuidar

desses fazeres. Assim o aprendiz vai se sentindo cada vez mais atraído, engajando-se,

tornando-se pertencente aos domínios antes estranhos e desconhecidos.

Todavia, ainda há outra função bastante importante do Mestre no aprendizado

da capoeira. Vimos neste trabalho os perigos da folclorização, da redução desses fazeres

a habilidades pessoais, afastando-se dos domínios mágicos e sagrados da capoeira.

222

Assim, como cabe ao mestre zelar pelas liturgias, propiciando aos aprendizes a

experiência rica desta tradição, também lhe é dada a tarefa de impedir as apropriações

equivocadas em que muitas vezes a capoeira acaba recaindo. Estas são de novo, os

perigos das formas prontas e dicotômicas. Capoeira é esporte? É uma habilidade social

que cada um de nós tem que desenvolver numa competição e disputas pessoais? Contra

as apropriações reducionistas das formas rígidas e excludentes o Mestre usa o artifício

do falseamento. O Mestre, conforme define Deleuze, é um intercessor, falseando as

formas prontas e dicotômicas do estar certo ou errado, da capoeira ser luta ou dança,

lenta ou rápida. Quando diante das oportunidades os aprendizes caem nestas

simplificações cabe ao Mestre interceder, falseando. É interessante que essa intercessão

tem que ser muito bem realizada, o que coloca o Mestre em uma abertura e

disponibilidade para com as oportunidades. Todas as intervenções que mexem com

valores também podem acabar caindo nas formas dicotômicas da moral da história; por

isso os Mestres não se aproveitam dessas situações para ensinar uma moral da história,

mas realizando-as junto aos acontecimentos, aproveitam essas oportunidades para

acontecer com o acontecimento. Agem como um falseador, impedindo as conclusões

definitivas, o que acaba por impulsionar o aprendiz a resolver problemas e

responsabilizar-se com as ocasiões.

Desse modo me parece que a principal função do presente trabalho é combater

as formas rígidas da aprendizagem das habilidades que têm sido bastante hegemônicas

numa certa psicologia do esporte. Para elas o aprendizado reincide em uma apropriação

pessoal e individual, de certas habilidades. Reduzidas a uma aquisição pessoal o

universo da capoeira, e por que não de outras práticas, esquece completamente das

questões políticas, éticas, estéticas e ritualísticas, como se a capoeira fosse

simplesmente certos modos descontextualizados de habilidades, nos quais se

223

centralizasse a questão do seu aprendizado a problemas individuais e pessoais, da

maneira como no futebol os louros e os fracassos são pessoais. Dessa forma, perde-se a

dimensão coletiva e impessoal em nome de certo individualismo. Foi por isso que

escolhi, por exemplo, a noção de hábito para opor a de habilidade. Ciente de que tanto

uma como a outra podem ser tratadas de vários aspectos, escolhi a noção de hábito

porque vejo neste um pouco mais de impessoalidade e contextualidade do que na noção

de habilidade. É muito mais recorrente falarmos em habilidades como sendo uma

propriedade pessoal, parecendo haver no hábito uma dificuldade maior de atribuir à

pessoa sua apropriação.

Portanto, o que podemos tirar desse percurso pelo aprendizado da capoeira

Angola como um cultivo na e da tradição, é justamente esse caráter político e ético de

deslocamento do tema da aprendizagem. Das perspectivas individualizantes e ligadas a

apropriações pessoais para um aprendizado coletivo e impessoal, no qual aprendemos

na pequena roda da capoeira aquilo que acontece na grande roda da vida, a cultivar e

cuidarmos em coletivo de nossas tradições. Mais do que as apropriações históricas e

pessoais, das escolas ou tipos de capoeira o que vimos é que a capoeira é uma paisagem

em movimento, e o seu aprendizado também deve ser construído em movimento.

224

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