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Universidade Federal do Rio de Janeiro WALTER BENJAMIN: UMA PERSPECTIVA LITERÁRIO-FILOSÓFICA A PARTIR DE RUA DE MÃO ÚNICA E INFÂNCIA BERLINENSE POR VOLTA DE 1900 Jander de Melo Marques Araújo 2010

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

WALTER BENJAMIN: UMA PERSPECTIVA LITERÁRIO-FILOSÓFICA A PARTIR

DE RUA DE MÃO ÚNICA E INFÂNCIA BERLINENSE POR VOLTA DE 1900

Jander de Melo Marques Araújo

2010

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WALTER BENJAMIN: UMA PERSPECTIVA LITERÁRIO-FILOSÓFICA A PARTIR

DE RUA DE MÃO ÚNICA E INFÂNCIA BERLINENSE POR VOLTA DE 1900

Jander de Melo Marques Araújo

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa

de Pós-graduação em Ciência da Literatura, da

Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte

dos requisitos necessários à obtenção do título de

Mestre em Ciência da Literatura (Teoria Literária).

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Martha Alkimin de Araújo Vieira.

Rio de Janeiro

Dezembro de 2010

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Walter Benjamin: uma perspectiva literário-filosófica a partir de Rua de mão única e

Infância berlinense por volta de 1900

Jander de Melo Marques Araújo

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Martha Alkimin de Araújo Vieira

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Ciência da Literatura (Teoria Literária).

Examinada e aprovada por:

_____________________________________________

Presidente, Prof.ª Dr.ª Martha Alkimin de Araújo Vieira

___________________________________

Prof. Dr. Alberto Pucheu Neto

___________________________________

Prof.ª Dr.ª Maria Martha D'Angelo Pinto

___________________________________

Prof.ª Dr.ª Vera Lúcia de Oliveira Lins

___________________________________

Prof. Dr. Marcelo Jacques de Moraes

Rio de Janeiro Dezembro de 2010

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Araújo, Jander de Melo Marques. Walter Benjamin: uma perspectiva literário-filosófica a partir de Rua de mão única e Infância berlinense por volta de 1900/ Jander de Melo Marques Araújo. - Rio de Janeiro: UFRJ/ FL, 2010. xi, 105 f.: il.; 30 cm. Orientadora: Martha Alkimin de Araújo Vieira. Dissertação (mestrado) - UFRJ/ FL/ Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, 2010. Referências Bibliográficas: f. 98-105. 1. Walter Benjamin. 2. Rua de mão única. 3. Infância berlinense por volta de 1900. 4. Literatura. 5. Filosofia. I. Vieira, Martha Alkimin de Araújo. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-graduação em Ciência de Literatura. III. Título.

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RESUMO

WALTER BENJAMIN: UMA PERSPECTIVA LITERÁRIO-FILOSÓFICA A PARTIR

DE RUA DE MÃO ÚNICA E INFÂNCIA BERLINENSE POR VOLTA DE 1900

Jander de Melo Marques Araújo

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Martha Alkimin de Araújo Vieira

Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Ciência da Literatura (Teoria Literária).

A proposta da dissertação é, num primeiro momento, a defesa do viés literário no escritor alemão Walter Benjamin; busca-se enfatizar seus aspectos literários, mas não se esquecendo, a seguir, do teor filosófico do autor. Partindo desses pressupostos, a dissertação segue com a formulação de uma hipótese a que denominei filosofia em ato. Tal conceito é discutido a partir das obras mais literárias de Walter Benjamin, a saber, Rua de mão única e Infância berlinense por volta de 1900. Fazem parte também do conteúdo do trabalho considerações sobre linguagem, relacionadas especificamente à Infância berlinense, bem como a abertura de uma poética para o autor analisado.

Palavras-chave: Walter Benjamin; literatura; filosofia; Rua de mão única; Infância berlinense por volta de 1900; linguagem; Poética.

Rio de Janeiro Dezembro de 2010

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ABSTRACT

WALTER BENJAMIN: A LITERARY-PHILOSOPHICAL PERSPECTIVE ON ONE-

WAY STREET AND BERLIN CHILDHOOD AROUND 1900

Jander de Melo Marques Araújo

Primary Supervisor: Dr. Martha Alkimin de Araújo Vieira, Professor, Ph.D.

Master's dissertation abstract submitted to Postgraduate Studies in Study of Literature (Literary Theory), Arts Faculty, at Federal University of Rio de Janeiro - UFRJ, as requirement for a Master's degree diploma in Study of Literature (Literary Theory).

This dissertation focuses on the literary's side of the German writer Walter Benjamin. It stresses his literary aspects, but considering within his philosophical ones. From these aspects, the dissertation proposes a hypothethical idea named philosophy in act. Such concept is discussed based on two of the most literary works of Walter Benjamin, that is, One-Way Street and Berlin Childhood around 1900. It concludes with reflexions on Walter Benjamin's language theory, especially linked to Berlin Childhood, as well as the hypothesis about a poetic dimension on the focused author.

Key words: Walter Benjamin; literature; philosophy, One-Way Street, Berlin Childhood around 1900; language; Poetic.

Rio de Janeiro December 2010

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Só se reconhece o que é digno de estima, no mundo, quando se encontra ocasião de

concentrar esses sentimentos num único objeto.

(Johann Wolfgang von Goethe, As Afinidades Eletivas)

E quem buscava entre os escombros da vida o seu significado esvoaçante [...]?

(Hermann Hesse, O lobo da estepe)

Mas por que todas estas palavras ao redor do carvalho e do rochedo?

(Hesíodo, Teogonia)

10. Objetos

Vivem ao nosso lado,

os ignoramos, nos ignoram.

Vez por outra conversam conosco.

(Octavio Paz, "Lição de coisas", Pedras soltas)

As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

(Carlos Drummond de Andrade, "A flor e a náusea", A rosa do povo)

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Sumário

Introdução ...................................................................................................................... 9

Indícios do literário em Walter Benjamin ........................................................................ 16

Uma filosofia na contramão ............................................................................................ 21

Filosofia em ato .............................................................................................................. 27

Rua de mão única: primeiro momento literário ............................................................... 34

Infância berlinense por volta de 1900: segundo momento literário .................................. 68

Um espaço: Loggias ..................................................................................................... 78

Um objeto: o Telefone .................................................................................................. 80

Um animal: borboletas .................................................................................................. 82

Uma abstração concretizada: cores ................................................................................ 87

O ato da linguagem, a linguagem do ato ........................................................................ 89

Conclusões: esboço para uma poética .............................................................................. 95

Bibliografia ..................................................................................................................... 98

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Introdução

"Estudar é coisa que qualquer um pode fazer;

aprender, só aqueles que estão dispostos a persistir." (BENJAMIN, 2006: 204)

No segundo semestre de 2004, tive a oportunidade de cursar uma disciplina eletiva

sobre Walter Benjamin, no Instituto de Educação da Universidade Federal Fluminense

(UFF), com a Prof.ª Dr.ª Martha D'Angelo, que, alguns meses depois, viria a me orientar na

monografia de conclusão do bacharelado em Produção Cultural na mesma Universidade.

Até então, só tinha lido um ensaio de Benjamin, o conhecido "A obra de arte na era de sua

reprodutibilidade técnica". A meu ver, até aquele momento, Benjamin era apenas um dos

teóricos da Escola de Frankfurt, que tinha realizado um interessante ensaio sobre o advento

de uma nova arte, o cinema, e suas conseqüências para o campo da arte.

Eis que, no curso, descobri o quanto tinha diante de mim um autor que criou um

microcosmo de pensamento, com desdobramentos que não imaginava. Trabalhamos,

naquela disciplina, vários eixos temáticos como cultura e barbárie; tradição e modernidade;

arte e experiência; aura e mercantilização; racionalismo e romantismo; conhecimento e

linguagem.

O mais interessante de tudo é que descobri em Benjamin um filósofo com um

riquíssimo veio crítico, sobretudo na área literária. O reflexo disso são críticas bastante

refinadas e bem escritas. Vide, como o ápice disso, o seu ensaio sobre o romance As

Afinidades Eletivas, de Goethe, em que reflexão filosófica e acuidade crítica unem-se para

formar um instigante exemplo de crítica filosófica, focada especificamente em um material

literário.

Na leitura de algumas resenhas de Walter Benjamin, inclusive aquelas que foram

publicadas em revistas ou jornais da época, bem como estudando sobre o seu processo para

criticar as obras literárias, observei que, no confronto com os nossos dias, a qualidade das

críticas de arte e o próprio papel do crítico definharam consideravelmente. Benjamin não só

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estudava profundamente os objetos de suas críticas, como também alimentava, a partir de

sua experiência, uma interessante autocrítica, ou seja, o cuidado que o crítico deve ter ao

abordar as obras de arte.

A partir da elaboração das ideias acima, apresentei à Graduação em Produção

Cultural, em fevereiro de 2006, no Instituto de Arte e Comunicação Social (IACS-UFF), a

monografia Crítica & Produção a partir de Walter Benjamin. Neste trabalho, busquei focar

as reflexões na crítica e no crítico. Comecei com uma aproximação do crítico de arte com o

produtor cultural. Segui com a abordagem de dois modelos de crítica de arte: a dos

românticos e a do próprio Benjamin. E terminei com a relação entre o crítico-intelectual e a

sua prática (produção), exemplificando isto com um texto de intervenção de Benjamin ("O

Autor como Produtor") e com a própria experiência deste mesmo autor no rádio.

A dissertação a seguir, portanto, é um aprofundamento com outro foco da

experiência de leitura e discussão que pude ter tanto com a obra de Walter Benjamin,

quanto com os textos de seus comentadores. Ela busca defender o lado literário do ensaísta,

crítico, filósofo, tradutor, em suma, do escritor alemão Walter Benjamin (1892-1940). É um

trabalho que se move com a hipótese de que Benjamin não se resume a um dos melhores

críticos literários da primeira metade do século XX - o que já foi bastante discutido pelos

seus comentadores. Ele é também um escritor, ficcionista, prosador, narrador, poeta - eis os

termos que defendo para o autor - com densidade literária até mesmo em seus ensaios e

resenhas, ou seja, nos seus escritos mais teóricos.

Para chegar a esse meu objetivo, realizei um movimento argumentativo ao longo

dos capítulos. São cinco, excetuando a introdução e a conclusão. Esta última, porém, de

certa maneira, também é parte de meu objetivo inicial, porque na conclusão acabo por

atravessar a fronteira que delimitei desde a introdução do trabalho. Enfim, o movimento da

dissertação é o seguinte. Primeiramente, há um indiciamento da presença do literário em

Walter Benjamin. Logo, percebo que devo esclarecer a distinção da filosofia de Benjamin,

a fim de que retome a minha defesa principal. A seguir, movido do teor filosófico do autor

alemão, proponho a hipótese de um conceito a que denominei filosofia em ato. Este é de

fato o enraizamento de minha dissertação, pois une o literário e o filosófico do autor; no

entanto, observemos, o foco fundamental acaba por permanecer na busca da densidade

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ficcional de Walter Benjamin. Por sua vez, os dois capítulos seguintes são exemplos da

atuação dele como escritor. Analiso, assim, dois livros de Benjamin, um publicado em vida

e outro póstumo, a saber, Rua de mão única e Infância berlinense por volta de 1900. Será

interessante observar - foi o que percebi ao longo da escrita - que não é à toa que analiso

Rua de mão única primeiro, para depois me deparar com Infância berlinense. A meu ver, o

passo de um livro para o outro é também a compreensão mais nítida que não só Benjamin

foi um escritor ficcional de qualidade, mas também que o ser-filósofo foi para ele uma

possibilidade mais densa de se convencer como escritor em ato - como filósofo em ato -, ou

seja, como escritor de literatura.

Por que defender o aspecto literário de um autor como Benjamin? De que autor

tratamos? Primeiro, posso afirmar a sua relevância para o Brasil. Walter Benjamin possui

uma das maiores recepções de seus textos, após o seu país de origem, no Brasil. A

contribuição de seus escritos passa pela maioria das ciências humanas como, por exemplo,

a filosofia, a teologia, a história, a sociologia, a pedagogia, a teoria das artes, a crítica

literária e cultural, e, especialmente importante para esse trabalho, a teoria literária. Desde

dos anos 60, o autor vem sendo objeto de leituras bastante importantes para a literatura

científica, como bem expõe Pressler em sua tese de doutorado Benjamin, Brasil: a

recepção de Walter Benjamin, de 1960 a 2005: um estudo sobre a formação da

intelectualidade brasileira. Seus textos vêm sendo traduzidos de forma contínua e eficiente.

Uma das primeiras traduções para o Brasil, nos anos 60, foi o seu conhecido ensaio "A obra

de arte na era de sua reprodutibilidade técnica". O ápice foi a tradução para o português de

seu trabalho inacabado Trabalho das Passagens, em 2006.

No entanto, no Brasil, ainda temos estudado os mesmos textos, deixando de lado,

salvo aqueles que nos trazem fragmentos traduzidos do original - e, felizmente, temos

muitos pesquisadores que vêm fazendo isso de forma generosa -, importantes escritos do

autor. Cito, a exemplo, ensaios como "Karl Kraus", "Eduard Fuchs, o colecionador e o

historiador" e "Dois poemas de Friedrich Hölderlin". Independentemente de conhecermos

ou não os autores que Benjamin estudou, esses ensaios são fundamentais para compreender

o seu pensamento e a sua escrita. Isso quer dizer, portanto, que mais do que um pensador,

tratamos de um escritor que a cada texto constituía a sua estética, a sua poética.

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Walter Benjamin possui uma obra extensa e diversa, em que o autor utiliza pelo

menos uma dezena de gêneros. Seus Escritos Reunidos foram publicados pela editora

Suhrkamp da Alemanha. São sete tomos (14 volumes), três volumes suplementares com

suas traduções de outros escritores, e as Cartas Reunidas, em 6 volumes, com um material

epistolar que cobre o período de 1910 a 1940. Sobre a importância dessas cartas para a

problematização e a compreensão dos textos de Walter Benjamin, Rainer Rochlitz, no final

de seu livro "O desencantamento da arte", conclui o seguinte:

No essencial, a unidade de pensamento filosófico de Benjamin só é assegurada por reflexões que ele lhe consagra [na correspondência], sob a pressão de questões levantadas por amigos desorientados, admitindo, às vezes, que ele não consegue conciliar os extremos que constituem seus polos. Sem essas cartas, não seria possível orientar-se por sua obra multiforme; daí o lugar considerável que legitimamente elas ocupam na edição alemã das obras. O fato de ser a [correspondência] o traço de união de um pensamento, por sinal estilhaçado, indica que a coerência é menos conceitual do que biográfica, no mínimo ligada ao esforço hermenêutico para constituir uma biografia intelectual, literária e política que apresente um mínimo de continuidade. (ROCHLITZ, 2003: 347).

Penso que é importante ainda apontar alguns textos que já foram traduzidos para o

Brasil, a fim de confirmar a sua importância como objeto de estudo.

Benjamin teve uma atuação grande como tradutor, sobretudo da língua francesa para

a alemã. Traduziu Charles Baudelaire, Marcel Proust, Marcel Jouhandeau, St. -J. Perse,

Tristan Tzara, Louis Aragon, Honoré de Balzac, Gabriele d'Annunzio, Leon Bloy e

Adrienne Monnier. Ele contribuiu para teoria da tradução, inclusive com ecos profundos na

renovação da atividade no Brasil, com o ensaio seminal "A tarefa/renúncia do tradutor"

(1923), que integrou originalmente, como prefácio, a sua tradução para o alemão de

Quadros parisienses, de Charles Baudelaire.

Como nos diz o próprio Walter Benjamin, num dos seus Curriculum Vitae, "o

interesse pela filosofia da linguagem e também pela teoria da arte teve para mim um lugar

preponderante." (BENJAMIN, 1992: 232). Compreendemos, a partir destas palavras, a

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quantidade de textos existente sobre os interesses referidos como, além do ensaio citado

sobre a tradução, os seguintes: "Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do

homem" (1916), "Teoria das semelhanças" e "Sobre a capacidade mimética" (1933) e

"Problemas da Sociologia da Linguagem" (1935). Em relação à teoria da arte, destacaria os

ensaios "O narrador" (1936), no domínio da teoria literária, e "A obra de arte na era de sua

reprodutibilidade técnica" (1935/ 1936/ 1939), que, nas palavras de Benjamin, "procura

compreender certas formas de arte, em especial o cinema, a partir da mudança de função à

qual a arte, no seu conjunto, está submetida no decurso da evolução social." (BENJAMIN,

1992a: 234-235).

Outros ensaios significativos, pelo grau de lucidez e pela complexidade que

atingem, são os sobre Baudelaire ("A Paris do Segundo Império em Baudelaire" e "Sobre

alguns temas em Baudelaire", 1938 e 1939), a análise sobre Marcel Proust ("Sobre a

imagem de Proust", 1929), o ensaio fundamental para compreender o conceito de crítica em

Benjamin, a saber, "As Afinidades Eletivas, de Goethe" (1922), e "Crítica da Violência,

Crítica do Poder" (1921), que tem como foco as grandes instituições do Estado. Benjamin

escreveu textos sobre o poeta e dramaturgo Bertolt Brecht (por exemplo, "O que é o teatro

épico?" - 1931 e 1939), dedicou resenhas e artigos à literatura francesa, caso de "Sobre a

atual posição social do escritor francês" (1934), no qual estão "condensados" os seus

estudos sobre a literatura francesa outrora recente, e, não podemos esquecer, analisou os

surrealistas em "O surrealismo: o último instantâneo da inteligência europeia" (1929).

Walter Benjamin publicou alguns livros em vida. Além das traduções de Baudelaire

e Proust, se inserem neste contexto a sua tese de doutorado O conceito de crítica de arte no

romantismo alemão (1920), Rua de mão única (1928), Homens alemães (1936), coletânea

de 27 cartas de intelectuais e artistas, datadas de 1783 a 1883, com um prefácio e

comentários de Benjamin para cada uma delas, e Origem do Drama Barroco alemão

(1928), que se propôs a "fornecer uma nova visão do drama alemão do século XVII", bem

como se atribuiu "a tarefa de distinguir a sua forma, como Trauerspiel, da tragédia e

empenhou-se em mostrar o parentesco que existe entre a forma literária do Trauerpiel e a

forma de arte que é a alegoria." (BENJAMIN, 1992a: 233).

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Ainda destacaria a sua atuação no rádio (1927 a 1933). Neste meio de comunicação,

ainda uma novidade para a época, Benjamin desenvolveu o gênero de peças radiofônicas

para jovens e adultos. Ademais, também nos chegou, póstumo, o seu Diário de Moscou

(1926-27), que foi escrito durante a sua viagem à Rússia e cujas partes foram retomadas em

alguns artigos sobre a nova literatura russa e o ambiente literário e cultural daquele país

então convulsionado pela Revolução de 1917. Conhecemos no Diário um escritor

apaixonado, politizado e com um olhar agudo sobre o espaço urbano. Lembraria também,

para que possamos perceber a diversidade de temas do autor, os protocolos e pequenos

contos resultantes de suas experiências com o haxixe (1928-34), assim como os seus

variados textos sobre livros infantis, brinquedos, juventude, pedagogia e educação.

A meu ver, duas obras são fundamentais para compreender a filosofia de Walter

Benjamin, os deslimites de seu pensamento e os principais temas que ele abordou.

Primeiro, o texto "Sobre o conceito de história/ Teses sobre a Filosofia da História" (1940),

espécie de testamento intelectual no qual há a exposição, à sua maneira e estilo, de seu

conceito filosófico de História, bem como um protesto diante das ruínas do Tempo. O

significado deste texto fica bem sintetizado nas palavras de Michael Löwy: "As teses de

1940 constituem uma espécie de manifesto filosófico - em forma de alegorias e de imagens

dialéticas mais do que de silogismos abstratos - para a abertura da história. Ou seja, para

uma concepção do processo histórico que dá acesso a um vertiginoso campo dos possíveis,

uma vasta arborescência de alternativas sem, no entanto, cair na ilusão de uma liberdade

absoluta [...]". (LÖWY, 2005: 147). A segunda obra fundamental são os escritos

inacabados, que, juntamente com milhares de citações, reúnem-se sob o título de

Projeto/trabalho/obra das Passagens (1927-1940). Aqui, Benjamin sugere o seu método

filosófico-artístico de citação e montagem, em busca dos temas perdidos no século XIX, e

que iluminam como proto-história os descaminhos da primeira metade do século XX.

Analisando esse histórico de seus escritos, que revela um autor mais envolvido com

a crítica literária, ainda se pode questionar por que a pesquisa aqui desenvolvida insiste no

aspecto literário do escritor alemão. Dá-se que, apesar de ter desenvolvido mais sua escrita

crítica - que possui aspectos literários e cujo teor filosófico também está na fronteira da

literatura - Walter Benjamin também tem um projeto literário que resultou em vários

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escritos e revela um pensador com um lado ficcional. Willi Bolle confirma isto,

considerando um conjunto de obras que é referência para compreender o projeto literário de

Benjamin. Ele diz que tal projeto começa em meados dos anos vinte com o livro Rua de

mão única, passa por seu Diário de Moscou - que, como falei, não foi publicado em vida

mas poderia ter sido -, segue pela reunião de textos dispersos publicada em jornal e

chamado de Crônica berlinense, chega a um ponto alto com Infância berlinense por volta

de 1900, e encontra ecos em seu grande trabalho inacabado Trabalho das Passagens. Na

realidade, Walter Benjamin também possui outros textos esparsos que confirmariam mais

ainda o seu lado caráter como escritor. Posso citar o caso dos textos resultantes de sua

experiência com o haxixe ("Myslowitz-Braunschweig-Marselha", de 1930 e "Haxixe em

Marselha", 1932), o conto "A Viagem do 'Mascot'" (1932) - assim como outros contos

existentes mas ainda não traduzidos para o Brasil, embora já reunidos em uma edição

portuguesa - e o seu ciclo de 73 sonetos escritos entre 1915 e 1925. Resolvi focar o meu

trabalho em dois desses momentos, a saber, Rua de mão única (1928) e Infância berlinense

por volta de 1900 (1932-1938). É a partir destes dois livros - o último, publicado após a

morte de Benjamin - que irei analisar o que chamo de 'o literário em Walter Benjamin'.

Após o estudo das obras em questão, a argumentação, baseada de início na leitura desses

dois livros, me levou à formulação de uma hipótese como ponto de referência, a que

denominei provisoriamente de filosofia em ato.

Para a composição da dissertação, pesquisei principalmente os textos de Benjamin e

os comentadores de sua obra, a maioria destes brasileiros, porém, alguns ensaios, artigos e

livros de autores estrangeiros também contribuíram bastante para a pesquisa, como pode ser

constatado na bibliografia. Para a leitura de Rua de mão única e Infância berlinense, utilizei

as traduções brasileira e portuguesa, cotejando com o original em alemão. Não foi o meu

objetivo realizar uma análise filológica do autor; no entanto, achei imprescindível ao menos

ter contato com o original, a fim de observar, mesmo para fins de estudo, a maneira como

os textos foram transpostos para o português.

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Indícios do literário em Walter Benjamin

"Nenhum pensamento original deste homem

inesgotável se assemelha a algo sem mistura." (ADORNO, 1992: 9)

Ao longo de minha pesquisa, pude perceber que Walter Benjamin possui aspectos

que geralmente só encontramos em textos literários. Hannah Arendt parece ter detectado

isto quando questiona o seguinte em um de seus ensaios: "O que é tão difícil de entender

em Benjamin é que, sem ser poeta, ele pensava poeticamente [...]." (ARENDT, 2008: 179).

Portanto, "tratamos aqui de algo que pode não ser único, mas com certeza é extremamente

raro: o dom de pensar poeticamente." (ARENDT, 2008: 222). Penso que Benjamin, ao

contrário da autora, também pode ser considerado um poeta e que, mesmo nos textos

teóricos, sua prosa é poético-filosófica. Ainda que questionando a identidade poética de

Benjamin - é possível que ela não tenha tido contato com as dezenas de sonetos do autor -,

Arendt levanta uma questão fundamental para esse trabalho: a poesia, a dimensão literária

presente em Walter Benjamin. Comecei então a buscar textos nos quais claramente havia

um projeto estético no escritor alemão e que, desta forma, os aspectos literários ficariam

mais explícitos e poderiam comprovar a minha hipótese seminal relacionada à visibilidade

literária de Benjamin. É o caso dos livros que selecionei para analisar na dissertação.

Porém, antes de me ater às obras, que darão sustentação à minha hipótese fundamental,

julgo necessário levantar os indícios literários do autor.

Nos diversos ensaios e críticas de Walter Benjamin, pode ser notada a presença

constante de imagens. As imagens são utilizadas pelo autor, por exemplo, nas suas críticas

e nos seus ensaios mais teóricos, a fim de saturar os conceitos criados para analisar as

obras dos autores e as suas respectivas épocas. No entanto, seu pensamento é mais

articulado por imagens do que por conceitos, mesmo em seus ensaios. Ou, de forma

específica, "[...] Benjamin associa a verdade do conhecimento à forma da imagem fugaz, e

não à do conceito". (ROCHLITZ, 2003: 324). E avançando ainda mais:

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O privilégio da imagem prende-se a sua capacidade de entrar em correspondência com outras imagens. Além disso, a imagem - segundo um velho tema do Romantismo e do idealismo alemão - possui a força de "falar" a todos os homens, enquanto o conceito só se dirige às classes cultas. O conhecimento por imagens é mais acessível, mais universal, mas ele é também mais ambíguo. Mais do que um conceito, uma imagem pode ser interpretada de diferentes maneiras. (ROCHLITZ, 2003: 324).

Para não dar a entender uma falta conceitual no autor - afinal de contas, sabemos

que ele também foi um teórico da literatura e da filosofia -, mas, ao mesmo tempo, não

deixando de acentuar a sua especificidade 'literária', afirmo que Benjamin é um

materializador de conceitos, devido a uma presença física de conceitos por meio de

imagens. Em Benjamin, o conceito também é uma imagem, mas uma imagem dotada de

sentido conceitual com expressividade. Há, portanto, um acervo de imagens conceituais,

em que as imagens em seus escritos disparam todo um conjunto de imagens conceituais.

Falamos então de um "espaço imagético total e exclusivo da sua escrita" ou, no caso de

uma consideração de seus conceitos, que são muitos e potencialmente manejáveis, de uma

"conceitualidade imagética e sensível". (BARRENTO in BENJAMIN, 2004: 334 e 340).

Essas imagens realizam-se nos textos por meio de metáforas. Chamo de metáfora a

capacidade de constituir imagens utilizando os mecanismos linguísticos, ou seja, as

metáforas tornam as suas imagens “escrituralmente” possíveis. Esclareço isso, porque é

preciso desviar de nossa ideia convencional de metáfora, a fim de compreender a

especificidade imagética de Benjamin. A metáfora nele não tem simplesmente um objetivo

conceitual ou perifrástico, mas, como já disse, surge como contribuição a um espaço

imagético, como aquele dos surrealistas que o próprio Benjamin expõe no ensaio dedicado

a este movimento. Daí que, portanto - com um desvio para os fins desse estudo -, Benjamin

diz, no Prólogo Epistemológico-crítico do livro "Origem do drama trágico alemão", que

"cada poeta [procura] dominar de modo pessoal a força mais íntima da imagem a partir da

qual nasce a capacidade metafórica, precisa e delicada, da linguagem." (BENJAMIN, 2004:

43).

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Nesse sentido, essas mesmas metáforas em alguns escritos acabam por tornarem-se

alegorias, porque não são totalmente esclarecidas pelo autor, como geralmente esperamos

de textos mais científicos. Como se sabe, a alegoria possui a característica de não se abrir,

de propósito, a um significado único, sendo, em termos de linguagem, mais complexa que a

metáfora, embora esta seja menos abstrata do que aquela. Isso ao mesmo tempo mostra um

pouco porque a opção por uma metáfora-imagem é maior em Benjamin, posto que ela

transmite mais concretamente e com menos desvios o seu pensamento já muito aterrado ao

mundo. Ainda que mais metafóricos os seus registros imagéticos, as alegorias de Benjamin

possuem a qualidade cognitiva de chegar a um nível paradoxal e enigmático, possibilitando

uma leitura aberta e não acabada. Vide, por exemplo, as figuras do anjo da história e do

anão corcunda com o autômato apresentadas nas teses "Sobre o conceito de história" ou as

imagens* que passo a passo conduzem o ensaio "A tarefa/renúncia do tradutor". Seus

escritos, mais do que lidos, precisam ser relidos numa outra chave, a poética, num jogo

lúdico à altura de obras não instrumentais, ou seja, as literárias e artísticas. O autor, desta

maneira, leva o leitor, num primeiro momento, a interpretar os seus textos e, logo em

seguida, dificulta a sua interpretação, pois provoca, com o uso constante de imagens,

silêncios de sentido.

Ora, tal movimento de pensamento não é característico de críticas literárias que

buscam, na maior parte das vezes, pensar as obras de arte por meio de conceitos, com uma

linguagem sistemática e didática, não utilizando, na maioria das vezes, imagens metafóricas

e alegóricas, ou seja, imagens desviantes de um sentido único que permitem elevar a

própria crítica a um novo patamar expressivo. Considero esse tipo de escrita mais presente

na literatura e no movimento dos narradores. Esse aspecto fica mais claro quando passamos

a ler os textos nos quais Walter Benjamin desenvolve mais visivelmente a sua escrita

* São as imagens seguintes: fruto/casca e manto real/pregas (p. 90); floresta da língua (p. 91); cacos de um vaso (p. 93); muro/arcada (p. 94); tangente/circunferência (p. 96); harpa eólica/vento (p. 97). Interessante notar que essas imagens não aparecem sozinhas, mas estão geralmente acompanhadas de forma dialógica, dialética, fraternal, em busca da expansão expressiva dos sentidos do ensaio. Nota-se ainda que uma imagem mais estritamente conceitual, nomeada "língua pura" [reine Sprache] (p. 88), permeia aquelas imagens ao longo de todo o ensaio "A tarefa do tradutor". Confronte a tradução deste ensaio por João Barrento em BRANCO, 2008, pp. 82-98.

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literário-filosófica. É o caso das obras Rua de mão única e Infância berlinense por volta de

1900, cujas partes irei analisar mais adiante.

Outro indício importante da força (usina) literária em Walter Benjamin são as

diversas formas de escrita por meio das quais ele desenvolveu o seu pensamento. Em outras

palavras, a invenção formal que ele promoveu na sua escrita, abalando os limites dos

gêneros literários, considerando-os internamente ao texto - ou seja, é o texto (a escrita) que

acolhe o gênero e não este que submete aquele -, assim como desenvolvendo-os e

enovelando-os a temas até então não discutidos amplamente. Se fizermos um levantamento

dos gêneros utilizados pelo autor, veremos nesta simples coleta que Benjamin não pode ser

tratado apenas como um crítico ou teórico, mas também como um genuíno escritor

preocupado com as maneiras formal e expressiva - e não apenas instrumental e

comunicacional - pelas quais a sua escrita seria tecida e apresentada. Encontrei os seguintes

gêneros nos seus diversos textos: tratado monográfico, ensaio, artigo, resenha, comentário,

aforismo, fragmento, crítica, montagem, peça, narrativa e palestra radiofônicas, relato de

sonhos e de efeitos de drogas, o conto e a novela, relato de viagem e a descrição de cidades

(imagens de cidades), tableaux/quadros urbanos, imagem de pensamento, sonetos, diálogo,

entrevista, relatório, crônica, anotação autobiográfica, tradução, carta, diário, conferência

etc. Willi Bolle escreve que "para fins da crítica militante, da discussão científica e da

atuação sobre o grande público, Benjamin criou uma gama de gêneros próprios." (BOLLE,

2000: 295-296). Numa nota, Bolle ainda enumera uma série de gêneros, dividindo-os por

categorias de público. "Para a crítica militante: programas e palavras de ordem, a polêmica,

a crítica da cultura, ensaios, conferências, depoimentos, montagens de documentos; para a

discussão científica: o tratado acadêmico, a crítica hermenêutica, a resenha; para a atuação

junto ao grande público: os trabalhos radiofônicos e os textos de folhetim." (BOLLE, 2000:

296). Creio, portanto, que esse desenvolvimento estético-expressivo dos gêneros é mais um

índice da presença do literário em Walter Benjamin.

As características acima, que envolvem a defesa literária de Walter Benjamin por

meio de níveis estéticos, cognitivos e linguísticos, ou seja, a presença imagética

representada pelas metáforas e pelas alegorias, bem como a importância formal e

expressiva da escrita do autor nos conduzem a uma conclusão fundamental: os escritos de

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Benjamin "requerem um tipo de reação que nós estamos acostumados a conceder às obras

de arte". (KIRSCH, 2006). Entendo, portanto, que o tipo de leitura voltado para os seus

textos precisa ultrapassar a decodificação apenas instrumental, comumente realizada nas

obras com um teor crítico. Considero a reação artística a Benjamin, por parte do leitor, um

dos princípios fundamentais para realizar uma interpretação mais profunda de sua obra. Foi

desta forma que parti para uma proposição literária do escritor alemão.

Apesar da densidade literária constante em Benjamin, com a contribuição das

características acima, o meu argumento ficou em suspensão após a leitura de um ensaio de

Theodor Adorno chamado "Caracterização de Walter Benjamin", escrito nos anos de 1950

como prefácio à primeira reunião de textos de Benjamin após a sua morte em 1940. Nele,

Adorno diz que Benjamin violou "as fronteiras que separam o literário do filosófico"

(ADORNO, 1992: 13). Concluí desta reflexão que algo não poderia faltar à discussão da

presença do literário no pensador alemão, a saber, o aspecto filosófico. Não se pode,

portanto, discutir quaisquer aspectos de Benjamin sem considerar a importância da filosofia

para o seu pensamento, porque o seu filosofar é um 'realizar' na contramão da própria

filosofia instituída.

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Uma filosofia na contramão

"[...] ao violar as fronteiras que separam o literário

do filosófico, Benjamin fez virtude inteligível da sua empírica necessidade." (ADORNO, 1992: 10)

A filosofia de Walter Benjamin vai de encontro à tradição filosófica. Como diz

Adorno, "Benjamin nada possuía de filósofo no sentido tradicional e de acordo com os

critérios tradicionais." (ADORNO, 1992: 10). A filosofia de Benjamin renuncia "ao ideal

filosófico de sistema, isto é, à pretensão de totalidade e de totalização do pensamento". Ele

se afasta da teoria tradicional dos grandes sistemas filosóficos, cujo pensamento é analítico,

abstrato, ordenador, sistemático, dedutivo, total e pretensioso em relação à busca de uma

verdade absoluta, bem como à divisão sujeito-objeto.

Não se pode dizer que Benjamin pertence a nenhuma escola filosófica nem que

tenha seguido alguma. Ele até tentou esboçar sistematicamente uma nova forma de filosofar

no ensaio "Sobre o programa da filosofia vindoura" (1918), mas logo abandonou tal

tentativa. O máximo que se encontra nele são influências, como é o caso de Kant no

referido texto, e a presença de conceitos de filósofos como Platão, Kant, Marx, Nietzsche,

por um lado, e, especialmente, a concepção filosófica, munida de literatura, dos românticos

alemães (Friedrich Schlegel e Novalis). Em Benjamin, encontra-se muito mais o trabalho

de conceitos isolados do que a submissão destes a grandes sistemas filosóficos. O autor

possui uma extrema desconfiança da filosofia institucional, questionando-a, caso do

prefácio à Origem do Drama Barroco alemão, que claramente propõe uma nova teoria do

conhecimento, na qual o método não é uma questão de linearidade, mas de desvio, e as

ideias são espacializadas como constelações, não possuindo um caráter hierárquico.

Também posso citar sua concepção de filosofia de linguagem e de história. A história e a

linguagem embebidas de um teor teológico e messiânico, como se observa numa leitura

atenta das teses "Sobre o conceito de história" e do ensaio "Sobre a linguagem em geral e

sobre a linguagem do homem" - além de seu prefácio sobre a tradução - claramente

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apontam um desvio da concepção tradicional de linguagem e tempo histórico, ou seja,

aquelas concepções ligadas, respectivamente, a uma lógica instrumental da linguagem e a

um tempo linear e vazio do progresso da história.

A especificidade do desenrolar de seu pensamento faz com que a abordagem de

Walter Benjamin não possa ser "direta e global", como comumente se realiza para as

grandes escolas filosóficas. A filosofia de Benjamin é a própria configuração de nosso

tempo, mas com mais densidade e profundidade. O seu pensamento filosófico "significa a

interrupção da ânsia totalizante do pensamento sistemático, incapaz de dar conta" da

pretensão de organicidade em uma realidade cuja vida sempre esteve presa, embora a nossa

resistência, do "fragmentário e da temporalidade avassaladora." (DAMIÃO in SOCHA,

2009: 30). Aqui está, portanto, a dificuldade que muitos possuem de lê-lo, até mesmo para

quem está pesquisando-o, visto que só é possível possuir uma compreensão de sua trajetória

- que não considero incoerente e desvinculada de um projeto filosófico - se tivermos a

oportunidade de reunir e comparar as suas diversas formas de escrita. Walter Benjamin é

um pensador, cuja obra necessita de um caminhar do leitor por diversos artigos, ensaios e

resenhas, ou seja, um caminhar interno pelos seus múltiplos gêneros de textos, a fim de

podermos chegar aos seus conceitos e às suas propostas.

É preciso dizer que a filosofia de Benjamin é iconoclasta e, ousando um pouco, uma

filosofia surrealista. O que seria uma filosofia surrealista? É o surrealismo aplicado à

filosofia; no entanto, ciente do despertar da verdade - aqui entendida em termos filosóficos

- e da importância do conceito*. Quero dizer que Benjamin está, por um lado, próximo da

filosofia, pois sua questão também é a 'apresentação da verdade', mesmo que esta esteja

mais voltada à literatura. No entanto, seu pensamento filosófico é claramente estetizado, ou

seja, seus textos possuem "formas artísticas de teor filosófico". É interessante que Benjamin

também buscava em outras obras o que ele mesmo realizava em seus textos, a saber, o "teor * Em relação ao work in progress Passagens (1927-1940), que acabou 'inconcluso', Benjamin diz o seguinte em carta a Scholem de 9 de agosto de 1935: "O trabalho representa tanto uma aplicação filosófica do surrealismo - inclusive sua superação - bem como a tentativa de fixar a imagem da história nos aspectos mais insignificantes da existência, isto é, nos seus dejetos." (BENJAMIN; SCHOLEM, 1993: 226). Ainda em relação ao mesmo trabalho, Adorno afirmou em 1955: "A intenção de Benjamin [no projeto das Passagens] era renunciar a toda a interpretação manifesta, fazendo com que as significações se impusessem apenas através da contrastada montage do material. A filosofia tinha que acolher o surrealismo até se tornar ela própria surrealista." (ADORNO, 1992a: 23, grifo meu).

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filosófico da escrita poética e das formas artísticas". (BENJAMIN apud GAGNEBIN in

SELIGMANN-SILVA, 2007: 86). Em um ensaio chamado "Da escrita filosófica em Walter

Benjamin", Jeanne Marie Gagnebin chega ao ponto, que também defendo, revelador da

escrita do autor, de seus caminhos antifilosóficos (caso não pudermos redefinir o

significado da filosofia) e - deveras importante para a aproximação do literário - do método,

nem sempre explicitado, a partir do qual os seus textos literários e poéticos também atuam.

Diz a autora:

Contra a ideia de uma totalidade sistemática de um pensamento que se desenrola a partir de si mesmo e chega, por uma série contínua de deduções, à sua realização e completude, Benjamin insiste nos momentos de descontinuidade, de salto, de interrupção, nas lacunas e nos rasgos do real e do pensar, momentos que, na linguagem poética, a cesura configura. A metáfora da escrita filosófica como um retomar fôlego perpétuo e do método como desvio [presente no livro sobre o drama barroco], isto é, como um caminho cujo alvo não está dado de antemão, essa metáfora assinala uma impossibilidade produtiva: a impossibilidade de apresentar a verdade de maneira sistemática, continuada e acabada, pois trata-se - quando ainda se ousa falar em verdade! -, trata-se de desenhar justamente o que não se deixa totalmente apreender ou prender pelo pensamento e pela linguagem, aquilo que os fundamenta e, simultaneamente, lhos escapa. Essa apresentação hesitante, tateante, cheia de respeito e/ou de ironia se opõe ao ideal do conhecimento certo, isto é, a uma démarche intelectual que visa a assegurar a posse do seu objeto. (GAGNEBIN in SELIGMANN-SILVA, 2007: 90).

Ainda destacaria o seguinte trecho, de outro autor, que complementa um método

filosófico no qual há "a crença de que o confronto teórico com os fenômenos concretos de

sua época torna-se imprescindível para o desvelamento do núcleo histórico da verdade."

Diz a sequência do fragmento:

Aqui, o filósofo abdica da pretensão de totalizar a descrição do real por sistemas transcendentais e inoperantes. Pois sua aposta reside na identificação da estrutura implícita e

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singular do detalhe, nas determinações sociais que subjazem a toda manifestação cultural e aos gestos mais banais da experiência cotidiana, o que permitiria encontrar a autenticidade discursiva do mundo. Assim, o efêmero, o que é marginalizado da cultura, os próprios rituais da cultura de massa, recebem [...] o mesmo estatuto teórico concedido às questões metafísicas ou aos tratados sociológicos formais [...]. (SOCHA, 2009: 35).

Daqui se entende que os temas do filósofo Walter Benjamin não se prendem

somente aos conceitos principais retomados pela tradição filosófica, ou seja, a razão, a

verdade, a lógica, o conhecimento, a metafísica, a ciência, a estética, entre outros. Seus

escritos estão embebidos desses conceitos; no entanto, seu olhar se volta para objetos

desprezados pela filosofia, para questões que não foram fertilizadas por ela, e que, não

sendo parte da tradição, não possuem lugar oficialmente no pensamento filosófico. É

possível que isto se dê, porque Benjamin está mais preocupado com o fator concreto e com

a experiência que dá origem à escrita e ao pensamento. Ele quer que o mundo fale, e não

que seja esquecida a densidade possível deste mesmo mundo. Ele não quer transmiti-lo por

meio de um pensamento puramente formal, como a matemática e sua lógica, e do alto de

uma torre de marfim. Diria que Benjamin se movimenta conceitualmente como filósofo,

isto é, nele há rigor de pensamento conceitual, mas o resultado deste movimento não é o

esperado quando colocado ao lado da filosofia institucionalizada. Tenho em vista, nesse

sentido, o fato de a tese de livre-docência de Benjamin (Origem do Drama Barroco

alemão) ter sido negada pela Universidade de Frankfurt em 1925, embora tal trabalho tenha

argumentos e referências filosóficas. Naturalmente que o que motivou a sua negação não

fora o fato de conter elementos filosóficos, mas, contendo-os, o que estes mesmos

elementos questionavam em termos de construção de conceitos, estilo de apresentação e

referências conflitantes com a filosofia instituída na época. Estranhamente tal tese, que foi

publicada em 1928, motivou o estudo, alguns anos depois, de pelo menos dois semestres

nos seminários de Adorno, que conseguira entrar como docente na mesma Universidade a

qual foi negado o acesso a Benjamin.

Sabemos que Walter Benjamin geralmente é entendido apenas como crítico literário

e não como filósofo. Isto é bastante revelador, porque se pensarmos desta maneira,

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filósofos bastante poéticos e literários como Henri Bergson (que chegou a ganhar o Nobel

de literatura em 1927), Giorgio Agamben, que muito sofreu influência de Benjamin, Jean-

Paul Sartre e Albert Camus também não deveriam ser tomados como filósofos estritamente.

No caso de Camus de fato não o é, caso tivermos em mente um conceito de filosofia mais

conservador; no entanto, não teria O Mito de Sísifo, por exemplo, uma proposta filosófica?

E os seus próprios romances O Estrangeiro, A Peste e A Queda não são uma extensão dessa

filosofia? Pensemos também em Sartre, que, além de ter atuado filosoficamente em O Ser

e o Nada, também nos legou A Náusea e a peça de teatro Entre Quatro Paredes. E não

deixemos de ao menos citar o clássico exemplo dos iluministas franceses, com obras

também na fronteira entre literatura e filosofia, tais como O sobrinho de Rameau, de

Diderot, Emílio, de Rousseau, e Os Ensaios, assim como Cândido, de Voltaire. Não me

furto a pensar que essas relações tensionadas também estão presentes em Walter Benjamin,

porém, de forma mais radical e dispersa ou fragmentada.

Em relação a Agamben, por que ele beberia em Benjamin se neste não houvesse

algo de filosófico? Creio que justamente se busca um autor, porque o desejamos

intelectualmente para nós mesmos. E justamente Agamben absorveu a filosofia em desvio

presente em Benjamin - vide a profundidade benjaminiana presente num livro como

Infância e História: destruição da experiência e origem da história (1978). Mas creio que

falamos de um desvio que está também em Bergson e até em Platão (quem duvidaria que a

alegoria da caverna é uma das primeiras 'peças' literário-filosófica do ocidente?).

Desta forma, algumas questões filosóficas tomaram um rumo novo em Benjamin,

pois ele soube enxergar que a filosofia não avançaria muito se se fechasse em si mesma, se

não se abrisse à natureza presente na poesia, na literatura, na arte. Nesta, Benjamin encontra

questões filosóficas não abertas. Na força da experiência, na natureza empírica das coisas,

na sua concretude, ele enxerga uma concepção filosófica. Em si mesmo, encontra um poeta,

porque a poesia lhe dá frescor ao próprio pensamento, além da abertura necessária para o

entendimento, sempre inacabado, das coisas. Finalmente, ele parece saber claramente que a

filosofia não é uma questão só da filosofia. A filosofia está além da filosofia, pois, como

sabemos, na origem da filosofia está a orgânica necessidade humana de pensar. Não há

'questões' para a filosofia. Existem filósofos. Walter Benjamin é um deles, porque, acima de

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tudo, tem consciência da busca do 'teor de verdade' das coisas, bem como da importância

conceitual para o pensamento. Ademais, Benjamin possui uma característica que julgo

fundamental: ele escolheu os seus temas e não os temas oficiais o escolheram. Tal natureza

do pensador independente, que sua vida também explicitou, bem como o teor filosófico de

seus textos e as formas de escrita nas quais mergulhou os seus objetos de estudo e reflexão,

são fatores que não podem ser desprezados pela história da filosofia. Por outro lado,

pensemos também que, se considerássemos Walter Benjamin como um autor estritamente

filosófico, ele seria um instigante convite à filosofia. Pois o seu pensamento se move na

contramão dela, no tocante ao método, e além da filosofia, por trazer à tona o que os

procedimentos tradicionais filosóficos não conseguem alcançar devido aos seus muros

conceituais.

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Filosofia em ato

"[...] Benjamin apoderava-se da essência das coisas precisamente nos pontos em que o muro da simples factualidade esconde e defende raivosamente tudo o

que é essencial." (ADORNO, 1992: 10)

Ao observarmos o índice dos Escritos Reunidos de Walter Benjamin, constatamos

que uma miríade de temas, advinda de diversas ciências e áreas de estudo, foi objeto de

suas reflexões. Benjamin escreveu sobre filosofia da linguagem, crítica do conhecimento,

moral, ética, antropologia, psicologia, sociologia, história e filosofia da história, política,

estética, crítica literária, bem como sobre áreas fronteiriças como grafologia, astrologia,

telepatia etc. Isso pode parecer estranho para os dias de hoje, nos quais vivemos sob uma

especialização muitas vezes sufocante na Universidade - e até mesmo fora dela.

Mas a explicação para o caso de Benjamin é outra. Naquele tempo - primeira

metade do século XX - ainda não havia se completado uma especialização científica rígida

como hoje. Ademais, a visão do escritor outrora era de um intelectual ou humanista global -

mesmo nas ciências chamadas 'duras' - que se informava e solidificava o seu conhecimento

em diversas áreas, a fim de que pudesse visar a uma análise mais verdadeira e multifacetada

de seus objetos de estudo.

Com o olhar de hoje, a multiplicidade de temas discutidos por um mesmo autor

como Walter Benjamin nos é muito útil. Seus escritos, quando tomados globalmente,

acabam nos mobilizando para questionar a separação e a especialização das diversas áreas

de conhecimento. Assim, compreendemos que o que não era tão separado naquele tempo, é

bem delimitado hoje em dia, embora alguns autores - como Roland Barthes, Gilles Deleuze

e Giorgio Agamben - buscaram e buscam resistir e pensar na contracorrente, contra tal

separação bastante infértil para uma concepção de pensamento de vanguarda, sobretudo nas

ciências humanas.

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Para os objetivos dessa dissertação, os escritos de Walter Benjamin são

fundamentais para questionar especificamente uma fronteira rígida, minada, entre filosofia

e literatura. Isto porque já sabemos que, por uma questão histórica, mas também pelo

próprio mérito do autor estudado, Benjamin rompe, para os olhos atentos de hoje, a

fronteira entre filosofia e literatura, entre pensamento filosófico e prosa poética.

De forma geral, entendo que o objetivo principal da filosofia é a construção de

conceitos ou a renovação de conceitos originais. Já a literatura é mais fenomênica. Os seus

objetos são o movimento da vida e a potência ativa dos seres humanos, seja para o bem,

seja para o mal, ou até mesmo para a neutralidade. Não que a filosofia não lide com os

fenômenos a que denomino mais factuais. Apenas a filosofia enovela-os a conceitos que, a

princípio, não é o papel da literatura. A literatura arrisca apreender os fenômenos mais pela

narração do que pela abstração conceitual.

Considerando que Benjamin possui um caráter tanto filosófico quanto literário,

proponho que ambos se entrelacem na hipótese a que denomino filosofia em ato. Com tal

denominação, mantenho o termo filosofia, que marca a presença original dessa área

conceitual no pensamento de Benjamin. Porém, deixo claro que o termo filosofia envolve

especificamente as características filosóficas que abordei no capítulo anterior. Por sua vez,

a literatura marca a sua presença naquela expressão por meio do termo 'em ato', o qual

aponta para os dados mais fenomênicos visados pela literatura. Ao mesmo tempo, o 'em ato'

também é uma referência à maneira pela qual Benjamin escolhe e percebe os focos de suas

reflexões, dando valor a objetos, coisas e espaços em vez de pessoas e, além disso,

valorizando materiais de estudo desprezados pela sociedade. Também arriscaria que o 'em

ato' alude à valorização do ato da escrita por Benjamin. Sua presença física nos textos, sua

escrita microscópica, suas centenas de cartas escritas nos fazem refletir sobre o afeto e o

tempo inestimável que esse autor dedicava à escritura de seu tempo.

É preciso, por fim, sintetizar o sentido da hipótese da filosofia em ato, fechando-a

provisoriamente para, a seguir, caracterizá-la na sua especificidade. Partindo então do

pressuposto que a filosofia em ato traz um entrelaçamento primordial, um amalgamento

entre literatura e filosofia, podemos dizer que este mesmo entrelaçamento resulta num

procedimento em que uma perspectiva filosófica conceitual, com uma matriz conceitual,

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enovelada a procedimentos literários com sentidos específicos - imagens, metáforas,

alegorias - oferece escritos com poeticidade, com vitalidade poética, com vitalidade

experimental, com uma percepção estética voltada sobretudo para espaços e objetos. Eis a

filosofia em ato em sua extensão significativa.

Esclareço que, com a apresentação da hipótese da filosofia em ato, não quero

submeter o pensamento de Walter Benjamin a um divisor comum. Com essa formulação,

gostaria, na verdade, de realizar três movimentos, subentendidos nas análises dos livros que

farei após esse capítulo. Primeiro, abrir a leitura e a discussão de seus textos literários, a

fim de sugerir a presença de uma poética mais ampla no autor. Segundo, levantar alguns de

seus temas e de seus focos de reflexão. Terceiro, tornar mais visível o seu caráter estético,

para que possamos compreender os motivos pelos quais a sua escrita, estritamente literária

ou não, se apresenta de forma tão original. Cabe ressaltar que alguns desses motivos -

caracterização literária e filosófica - já foram referidos nos capítulos anteriores.

Walter Benjamin possui uma maneira peculiar de perceber a materialidade do

mundo. Há em seus escritos um primado das coisas. O modo como o autor contempla,

apreende e enfatiza quando escreve sobre as coisas é muito particular. As coisas, por

definição, são, por exemplo, a reflexão e a narração por Walter Benjamin sobre os objetos e

as construções - casas, apartamentos, monumentos etc. -, os lugares ou espaços (ruas,

avenidas, bairros, jardins, interiores, escadas, corredores, sacadas, entre outros), bem como

sobre alguns animais (por exemplo, tipos de borboletas e uma enigmática lontra). Portanto,

existe um tipo de concreção característica de seu pensamento, como se ele quisesse

oferecer a uma época e a uma lembrança a "concretude de um edifício ou dos jogos

infantis".

Vejamos com quais ideias alguns pensadores, que já se voltaram para a vida e a

obra de Walter Benjamin, poderiam nos ajudar. Segundo Adorno, o "pensamento [de

Benjamin] lança-se sobre a coisa, como se quisesse converter-se em ato, odor, sabor."

(ADORNO, 1992: 24). Willi Bolle fala num poder de evocação por meio do objeto

material. Hannah Arendt, de outro modo, diz em termos filosóficos sobre a fascinação de

Benjamin não pela ideia, mas pelo fenômeno. "[...] o que desde o início fascinou Benjamin

nunca foi uma ideia, foi sempre um fenômeno." (ARENDT, 2008: 177). Ela também afirma

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no mesmo lugar que as "percepções essenciais" do autor "são absolutamente aterradas ao

mundo." (ARENDT, 2008: 213-214). Susan Sontag num ensaio insiste em que as ideias de

Benjamin são "espacializadas", aproximando-se de Bolle que discute a sua "memória

topográfica" (topo-grafia) em que "lugares e objetos enquanto sinais topográficos tornam-se

vasos recipientes de uma história da percepção, da sensibilidade, da formação das

emoções." (BOLLE, 2000: 336). Por sinal, Carla Milani Damião - que não deixa de se

remeter a Bolle - também fala num "caminho topográfico". Ela igualmente comenta que "ao

privilegiar a narrativa topográfica e acentuar os lugares de passagem, Benjamin cria um

'estar-fora-de-si-mesmo' ou um 'si-mesmo-objetivado-exteriormente'." (DAMIÃO, 2006:

178). De fato, como veremos em Infância berlinense, Benjamin privilegia bastante lugares

intermediários e de passagem. Como complemento, ainda acrescentaria um outro trecho do

livro de Damião, que fala numa "tênue fronteira entre sujeito e objeto", em que "o sujeito

passa a ser revelado pelo mundo das coisas (Dingewelt)". (DAMIÃO, 2006: 179).

Os escritos de Benjamin, com ênfase naqueles mais literários, alcançam a densidade

da experiência, no entanto, não renuncia ao rigor do pensamento. A sua desmedida entrega

ao objeto acaba por permitir a iluminação de um novo contorno das coisas, dos objetos, dos

espaços, ambientes e lugares. O autor se aproxima tanto das coisas que estas se tornam

estranhas, revelando desvios cujas linhas um olhar distraído não contempla. O olhar

microscópico dele amplia a visão de objetos minúsculos, aparentemente inúteis e sem

profundidade, mas que, sob a lente espacial de Benjamin, tornam-se um mundo inteligível

e apreensível em sua singularidade. Sua análise micrológica das coisas não poupa aquelas

esquecidas e prosaicamente sem sentido para a maioria, como se vê em Infância berlinense.

Quanto mais jaz o esquecido nas coisas, o inatuante, mais Benjamin as contempla, porque

"quanto mais inertes são as coisas mais poderoso e engenhoso pode ser o espírito que as

contempla." (SONTAG, 1992: 18).

No que chamo de filosofia em ato, a própria noção de sujeito se altera. Com o

primado das coisas, é preciso que o sujeito se revele 'morto', ou ao menos mais dissolvido

nelas, a fim de que as coisas possam significar, pois a demasiada sujeição destas ao sujeito

resultaria numa significação convencional. Há, portanto, uma "fidelidade aos objetos" nos

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escritos de Benjamin; uma fidelidade à realidade mundana, cuja apresentação por escrito

revela um indício da força literária do autor.

O olhar concreto sobre as coisas, que as contempla até o limite a fim de significá-

las, não se transfere para a escrita de forma realista, ou seja, sem dizer nada de novo além

da mera descrição linguística do contemplado. A realidade conduzida pela linguagem é

uma instância instável, porque esta, de início, é insuficiente para apreender aquela. Hoje,

após os escritos dos modernos, partimos para escrever com este dado melancólico da

insuficiência da linguagem. Tempos foram outros em que - como os realistas do século

XIX - se acreditava dizer na sua exatidão o que a realidade foi, é e poderia ser.

Por outro lado, mas ainda no tocante à linguagem, dependendo de por quais recursos

linguísticos nos expressamos, a realidade continua nos dizendo pouco diante da sua

imensidão escondida. É nesse sentido que se coloca a exigência de um caminho ficcional,

poético, literário, imagético, alegórico. Porque se já de início aprendemos, sobretudo com

os modernistas, que não se pode apreender a realidade de forma direta, ao menos por um

caminho enviesado poderíamos tocar a nossa linha imagética no gume do real.

Entendo que a metáfora, no específico sentido já discutido, é o meio pelo qual

Benjamin mantém a potência da materialidade do mundo, mas forçando os objetos a

mostrarem o que não está exposto a olho nu, a libertarem minimamente os seus segredos.

Tal movimento é o próprio movimento da arte, que não aceita a mera visibilidade orgânica

das coisas, que deseja a amplificação do mundo como apreensão desejante de um ser

multiplicado por vários seres, que, à sua maneira, deseja romper a estabilidade visual da

vida por meio de uma linguagem estética que se instale sobre o real.

A questão a se resolver é a relação da metáfora com uma aparente imediaticidade

das coisas (podemos também dizer o literal ou realismo das coisas). Imediaticidade que, se

existisse, seria como se as coisas se movessem por si só e não possuíssem a mediação de

um sujeito a fim de torná-las visíveis. Não à toa, Benjamin "estava fadado a considerar a

metáfora como o maior dom da linguagem" (ARENDT, 2008). Os objetos de fato precisam

da mediação da linguagem. Quais seriam as possibilidades de sua presença linguística? Por

certo uma delas, no caso de Benjamin, é a metáfora, pois ela "nos permite dar forma ao

invisível" (ARENDT, 2008: 179-180).

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O pensamento filosófico de Benjamin, em conjunto com o seu caráter poético,

chega aos objetos de forma única e transfere-os para o pensamento por meio da metáfora. A

metáfora, apesar de sua abstração, muito menor, na realidade, se comparada à alegoria,

possui a qualidade de transferir os objetos ao pensamento mantendo o primado das coisas,

fazendo-as significar, por escrito, sem torná-las meras abstrações. Eis porque a metáfora

possui relação com a hipótese da filosofia em ato. Ela permite a Walter Benjamin tornar os

objetos, as coisas, os espaços, imageticamente visíveis e, embora de forma insuficiente,

linguisticamente possíveis, mantendo a sua materialidade essencial. Materialidade esta que

distingue os textos literários de Benjamin.

Retomemos o que as observações acima procuraram defender. Eis os pontos

demarcáveis: 1. A filosofia em ato é a configuração do literário de Walter Benjamin; 2. A

filosofia em ato é definida como a primazia das coisas; 3. As coisas não podem significar

em toda a sua potência sem uma mínima mediação - com a consciência de que, mesmo com

esta mediação, elas não podem significar completamente; pois a significação é sempre

potência latente; por isso a visibilidade de uma poética que possa contornar tal

insuficiência. 4. Aquela mediação, no caso de Benjamin, acaba por manter ainda mais a

primazia das coisas, tornando-as mais visíveis e recuperáveis em termos imagéticos,

alegóricos, metafóricos. 5. As coisas não podem ser por si mesmas, porque, se assim o

fosse, invalidariam a possibilidade do pensamento e de seu relampejo na linguagem.

Portanto, elas precisam se mover de forma a tornar o pensamento possível. Eis o papel da

mediação metafórica (imagética); 6. A mediação é realizada por meio das metáforas

(mundo imagético). São elas que trazem à tona, de forma não usual, os temas de Walter

Benjamin. Assim, a sua rica regência metafórica nos faz refletir e argumentar sobre o que

Benjamin tenta manter na máxima referência material; 7. A referência material está mais

presente em seus textos literários.

Passemos à análise dos livros selecionados. Gostaria de esclarecer antes que os

comentários acerca das obras não vão se prender explicitamente ao que já foi dito. As

questões já discutidas se farão presentes, mas implicitamente e em perspectiva, a fim de que

as observações possam fluir melhor e em liberdade. Tentarei me fazer claro em vista do

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discutido, porém, sem sobrecarregar conceitualmente as análises. Creio que, desta maneira,

conseguirei me aproximar com mais intensidade do viés literário do autor.

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Rua de mão única: primeiro momento literário

"A cada dia é preciso tomar partido, em nossa vida

de escritor, em nossos artigos, em nossos livros. [...] a literatura é por essência tomada de posição."

(SARTRE, 1989: 204)

O livro Rua de mão única* - também traduzido por Rua de sentido único ou, como

propõe Willi Bolle, Contramão - foi publicado pela primeira vez em 1928, na Alemanha,

pela editora Rowohlt. Podemos considerá-lo a obra literária de estreia do autor. Segundo os

seus Escritos Reunidos, os 60 'aforismos' ou 'apontamentos', como denomina o próprio

Benjamin, foram escritos entre 1923 e 1926. No entanto, Bolle nos informa que a escrita da

obra abrange os anos de 1925 a 1928. Na realidade, a meu ver, esta última data está

relacionada ao período em que a maioria dos trechos do livro foi publicada em jornais e

revistas da época. Assim, no que tange à época, Rua de mão única foi desenvolvido, escrito

e publicado nos anos 20.

A capa do original de 1928 é uma fotomontagem do fotógrafo de origem russa

Sascha Stone. Susan Sontag diz que a obra foi publicada "em forma de folheto [brochura]

com uma impressão tipográfica que procurava evocar os efeitos de choque da publicidade:

a capa era uma montagem fotográfica de frases agressivas em letras maiúsculas, retiradas

de anúncios de jornais e letreiros oficiais e estranhos." (SONTAG, 1992: 21-22). Ela

também nos informa que livros desse gênero eram comuns nos anos vinte. Não sem sentido

um dos primeiros títulos que Benjamin cogitou para o livro foi Plaquette para amigos

(assim mesmo, com o primeiro termo em francês). E plaquette é justamente o nome que se

dá na França a uma brochura de poucas páginas, com poemas ou coisas semelhantes, em

suma, um termo técnico dos livreiros que o autor se valeu num primeiro momento. Outro

título pensado logo depois foi Rua cortada ao trânsito!. Isto quer dizer que o livro estava

* Três traduções completas para a língua portuguesa, uma no Brasil (Rua de mão única; 1. ed. 1987) e duas em Portugal (Rua de Sentido Único; 1992; Rua de Sentido Único; 2004).

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próximo ou quiçá incluído às vanguardas da época, sobretudo do surrealismo; no entanto,

também podemos pensar no cubismo, com sua fragmentação e perspectivação múltipla.

Uma simples olhadela no índice ou uma folheada é o suficiente para se perceber que se

trata de um livro de vanguarda. O conjunto dos fragmentos é apresentado em forma de

montagem, de visível feição surrealista, com textos em geral breves - às vezes com uma

frase só - e que poderiam se apresentar separadamente, como de fato o foram (como disse,

algumas partes foram publicadas em jornais), se não fosse o gesto radical e iconoclasta do

autor de enfeixá-los numa única obra.

Seus temas são descontínuos, provocadores, com vários relatos de sonhos

(lembremos que as obras de Freud, à época, haviam sido publicadas a menos de trinta

anos). No entanto, não estamos diante de uma escrita automática, como a realizada pelos

surrealistas. Dadas as claras posições defendidas pelo autor no livro, com consciente

argumentação sobre a realidade, o livro tem mais a ver com o despertar da consciência de

um intelectual engajado do que com uma entrega ao sonho e ao devaneio dos surrealistas.

Mesmo se sabemos que os surrealistas também possuíam uma ação claramente estética e

política que fazia muito sentido no contexto das vanguardas e do começo do século vinte.

No caso de Benjamin em Rua de mão única, as suas partes são uma clara tomada de

posição, e ele a toma de todas as formas possíveis e de diversos ângulos, sendo, portanto, o

'despertar' o sentido mais claro para definir a obra, muito mais do que as deambulações do

sonho. Sonhos existem no livro, desde que em vista da celebração do despertar, assim como

explica o seguinte fragmento: "O sonho inclui o sono, mas também o despertar. Ele remete

ao mito, mas remete também à utopia: o sempre-igual do mito se impregna do novo, e

inclui a perspectiva do despertar, onde esse novo se transforma em força histórica."

(ROUANET, 2008: 95).

Lendo-o hoje, considero Rua de mão única um livro que se manteve na vanguarda.

A liberdade e a coragem com as quais o autor propõe os temas, bem como a própria ação de

movê-los para construção de um livro, é de fato uma iconoclastia estética e editorial que

não vemos muito atualmente impressa, excetuando, por outro lado, a revolução editorial

proposta pelos meios eletrônicos. Os temas do livro são autoirônicos e bastante críticos.

Seu gênero é misto, entre a prosa literária e a teoria social e histórica. Aliás, esse gênero é

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denominado de 'imagem de pensamento', termo que tradicionalmente denomina um

conjunto de textos escritos paralelamente - mas também posteriormente - à obra aqui

discutida, mas que também pode ser aproximado de Rua de mão única, já que autor compôs

aquele conjunto pensando numa possível continuação para este livro.

A denominação 'imagem de pensamento' é do próprio Benjamin. Há um grupo de

escritos que ele denominou 'imagens de pensamento' (BENJAMIN, 1995: 267-272). Porém,

como título geral de uma série de outros textos, tal qual aparece em seus Escritos Reunidos,

foi uma opção dos próprios organizadores desta edição. De qualquer forma, dentre todos

esses apontamentos enfeixados sob aquele título geral, há um chamado "San Gimignano", o

qual possui um trecho que evidencia ou abre conceitualmente o termo 'imagem de

pensamento'. É o fragmento seguinte: "Encontrar palavras para aquilo que temos diante dos

olhos é qualquer coisa que pode ser muito difícil. Mas quando chegam, batem com

pequenos martelos contra o real até arrancarem dele a imagem, como de uma chapa de

cobre." (BENJAMIN, 2004: 184). Sendo mais específico, Adorno nos explica que o termo

'imagem de pensamento' remonta ao poeta Stefan George, que o usou no livro de poesia O

Sétimo Anel (1907) fazendo referência a outro escritor, Mallarmé, que "sangrou pela sua

imagem de pensamento". Adorno ainda explica, segundo os comentários da edição crítica

das obras de Benjamin, que "na noção de imagem de pensamento intervém uma concepção

de Platão oposta à dos neokantianos, segundo a qual a ideia não é uma mera representação,

mas um ente em si que, ainda que releve puramente do espírito, possui uma realidade

sensível". Portanto, o sentido do título caracteriza muito a "forma de pensar o real nas suas

dimensões empíricas, oníricas e de memória por Walter Benjamin" (BENJAMIN, 2004:

289).

Rua de mão única revela um Benjamin movido pela escrita, pelo livro, e pela

concepção de um novo tempo em vista de uma visão moderna de literatura, dos gêneros

surgidos e da tradição literária revista. Apesar de os textos serem bem escritos e com um

olhar filosófico e poético sobre as coisas, o que mais marca na obra são as provocações, que

acabam por ser mais importantes que o sentido restrito - muitas vezes, por exemplo, não

identificamos as suas referências -, porque a provocação, aliada à ironia e ao humor, abrem

a sentidos inesperados, desestabilizando o leitor. Vemos aqui, mais do que um escritor, um

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intelectual que quer se envolver com os temas de seu tempo, provocá-los dentro de si, a fim

de aparecerem na sua verdade significativa para o futuro e revisora para o passado.

Para quem já leu os ensaios de Benjamin, rigorosos, eruditos, e, ao mesmo tempo,

singulares e criativos, é surpreendente deparar com o livro, com o seu frescor que parece

exalar ainda os anos vinte. Década de vinte que trouxe as vanguardas - o primeiro e o

segundo manifesto surrealista apareceram em 1923 e 1929 -, e a experiência 'democrática'

da República de Weimar na Alemanha (1919-1933), mas também grandes crises

econômicas, como a de 1929 e a hiperinflação alemã de 1923*. Rua de mão única não deixa

de configurar essa década. Porém, o livro também contém a força de um tempo em que

muitos queriam pensar e escrever, e as brochuras com as suas 'imagens de pensamento'

percorriam de mão em mão as ruas das cidades, como os jornais e as revistas carregados

pelos vendedores volantes. Pois esse livro possui o ritmo urbano, no entanto, com uma

capacidade de brevidade, síntese e precisão, aliada à lucidez poético-filosófica encontradas

em Walter Benjamin. Ao observarmos o índice dos textos, encontramos títulos, em caixa-

alta, que se remetem a diversas placas, letreiros, folhetos, cartazes, sinais, avisos e

orientações encontrados nas ruas e nos labirintos surgidos entre as construções das

metrópoles (por exemplo, POSTO DE GASOLINA; CANTEIRO DE OBRAS; ATENÇÃO:

DEGRAUS!; PROIBIDO COLAR CARTAZES!; ALARME DE INCÊNDIO; ESTAS ÁREAS

SÃO PARA ALUGAR; MENDIGOS E AMBULANTES PROIBIDOS!).

A forma fragmentada escolhida pelo autor, sem uma linearidade, com uma

impressão de inacabamento, pode ser perturbadora para um leitor que busca a organicidade

temática do livro convencional. A aparente banalidade dos textos, que se desfaz numa

segunda leitura, revela, na verdade, mais uma vez a proposta de pensamento de Walter

Benjamin que é, a saber, sempre que possível se voltar para o esquecido, o não discutível

oficialmente e para as formas de associação negligenciadas. Talvez aqui encontramos o

fator iconoclasta do livro, porque ele sem dúvida quer desconstruir o estabelecido.

Rua de mão única não foi muito resenhado no momento de sua publicação. Um dos

poucos a falar sobre o livro foi Hermann Hesse, que, numa publicação, escreveu que "a

* Nessa época, um dólar valia 4,2 trilhões de marcos [!]. Quase dez anos depois, em 1932, a Alemanha ainda viria a atingir um número de desempregados que chegava a seis milhões.

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forma do livro é a de uma rua, uma sequência de casas e lojas cujas janelas são cheias de

ideias brilhantes." (HELENA, 2003: 21). De fato, o livro é cheio de ideias, como se a

cidade pudesse falar; é à moda desse livro que ela transfiguraria a sua energia transitória.

Por outro lado, também houve críticas negativas. Uma curiosa resenha de Werner Milch -

citada e criticada de forma veemente por Scholem em seu livro dedicado a Benjamin -

visivelmente desconhecendo a natureza de vanguarda da obra diz que Rua de mão única

"na sua mistura de aridez acadêmica, elegância jornalística, filigrana filosófica e

cambalhotas romantizantes, são recomendados a todos os amantes de estranhezas

engenhosas." (MILCH apud SCHOLEM, 2008: 155).

O livro, ao se inspirar nas cidades para a composição dos títulos e dos temas,

visivelmente oferece uma importância para os espaços e ambientes. Grafando os ambientes,

realizando uma topografia, mas sem qualquer tentativa de sistematizar ou controlá-los

como as administrações das cidades tentam fazer, Benjamin nos conduz a uma expressiva

percepção dos lugares, como se, falando deles, quisesse nos conduzir a uma espacialidade

sem tempo. Benjamin converte o tempo em espaço. O autor nos conduz a uma riqueza dos

espaços e dos objetos que compõem os ambientes. Susan Sontag resume essa espacialidade

proposta por Rua de mão única nas seguintes palavras:

No tempo, é-se apenas aquilo que se é: o que sempre se foi. No espaço, pode-se ser outra pessoa. [...] O tempo não nos dá muito tempo: empurra-nos por trás, sopra sobre nós pelo estreito funil que vai do presente até o futuro. Mas o espaço é largo, repleto de possibilidades, posições, intersecções, passagens, curvas, voltas em "U", becos sem saída e ruas de sentido único. (SONTAG, 1992: 14-15).

Sem dúvida, o livro quer nos oferecer novos sentidos para a cidade e para a própria

escrita. O sentido único é o beco em "U" que nos obriga a pensar - a refletir, a retornar para

si mesmo - diante das novas referências urbanas e das possibilidades iconoclastas da escrita

nos labirintos das cidades.

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Em vista das observações acima, creio que devemos nos aproximar mais

atentamente dos aforismos e apontamentos de Rua de mão única, a fim de que tenhamos

uma experiência mais física com a obra.

Rua de mão única é dedicado a Asja Lacis (1891-1979). Benjamin a conheceu em

1924, em Capri, e, pelo que acompanhamos pelos seus escritos (por exemplo, Diário de

Moscou), se apaixonara por ela. Os comentadores consideram-na uma das primeiras

pessoas a apresentar o marxismo para Benjamin. E, de fato, quando da redação de sua tese

de livre-docência Origem do Drama Barroco alemão, o autor já fazia referência, por cartas,

aos escritos marxistas. De certa maneira, tal material, novo intelectualmente para o autor,

perturbava-o diante da finalização de um trabalho tão denso como o livro sobre o Drama

Barroco. Diante disso, podemos entender a dedicatória e, por extenso, o próprio livro, como

uma das principais configurações políticas de Walter Benjamin. Em outras palavras, o

papel de Asja Lacis como musa poética e política desse livro, sabendo que ela participava

da renovação do teatro socialista russo e moderno (era ligada ao poeta e dramaturgo Bertolt

Brecht), aponta para a orientação aberta e não dogmática de Benjamin numa direção

sociológico-política.

Na referida dedicatória, temos a configuração apaixonada daquela que não só como

paixão, mas também como impulso político, rasgou dentro dele na qualidade de engenheiro

uma rua com o próprio nome da musa. Chamo também atenção para o fato de Benjamin ter

utilizado a metáfora do engenheiro (engenheira!), que, comparado ao arquiteto, é muito

mais ligado à prática da cidade do que este. É o engenheiro que, em geral, está ao lado do

mestre de obras na construção, ponderando as possibilidades em campo da construção,

enquanto o arquiteto, de forma geral, possui um trabalho mais com a prancheta e o desenho.

Em suma, um trabalho mais interior e privado (vide hoje, por exemplo, o arquiteto como

designer de interiores). Portanto, Benjamin, como as figuras do pintor Paul Klee*, inspira-se

nos engenheiros, pois estes contêm em si a metáfora da união entre pensamento e prática.

União que conduz os apontamentos e aforismos de Rua de mão única.

A presença de Asja Lacis é constante ao longo do livro. Sabemos, pelas referências

em seus diversos textos, que Benjamin viajava muito. No caso de sua visita à ex-URSS, * Cf. 4º parágrafo do ensaio Experiência e Pobreza.

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que resultou no póstumo Diário de Moscou, havia dois motivos. Oficialmente, ele viajava

em busca de material para a composição posterior de diversos artigos em jornais e revistas

da época. De fato, pelo menos quatro de suas publicações derivam dessa viagem. Um outro

motivo, extraoficial, foi o encontro quase platônico com Asja Lacis. O apontamento

"Armas e Munições" é um pouco a representação disso.

Como já experimentamos, as coisas em torno de nós mudam bastante quando

estamos apaixonados. Uma das coisas que mais parece se alterar em Benjamin era a sua

percepção das cidades, que, em si mesma, já é muito particular. Sendo ele um grande

viajante* e ótimo fisionomista (vide o Diário de Moscou e seus textos sobre cidades),

podemos imaginar o efeito da paixão nele, sobretudo diante de uma paixão não consumada.

Em "Armas e Munições", Benjamin visita Rija, na Letônia, país de origem de Asja Lacis.

Como acompanhamos no texto, tudo lhe era desconhecido, casa, cidade e língua. É

interessante porque ele vai visitar uma amiga mas, ao mesmo tempo, nenhum ser humano o

esperava. Ninguém o conhecia. A solidão tomava-o. "Andei duas horas, solitário, pelas

ruas". Não sabemos se de fato ele a encontrou - e isso pouco importa; não obstante, algo o

convulsionou, porque a sua visão da cidade torna-se flamejante. "De cada portal de casa

lançava-se um jato de chamas, cada pedra de esquina espalhava centelhas e cada bonde

vinha chegando como o corpo de bombeiros." E, no contexto mais íntimo, que se reveste

verbalmente como hipótese, a metáfora, agora explosiva, se mantém. Entendemos então a

causa do portal, da esquina e do bonde chameados. "Ela podia, sim, sair pelo portal, dobrar

a esquina e estar sentada no bonde [...]. Pois se ela tivesse posto sobre mim a mecha de seu

olhar - eu teria tido de voar pelos ares como um depósito de munições." (BENJAMIN,

1995: 34). * A palavra 'viagem' e 'viajante' são potencialmente polissêmicas na biografia e nos escritos de Walter Benjamin. Foi um autor verdadeiramente viajante. Visitou Berna, Paris, Berlim, Copenhague, Moscou, Capri, San Remo, Ibiza, entre muitas outras cidades europeias. Partiu sem chegar, caso de sua viagem-fuga aos Estados Unidos. Viajou voluntariamente, mas não pôde voltar, motivo de sua emigração para Paris. Viajou obrigado, caso de sua internação num "campo de trabalhadores voluntários" em Nevers (França). Foi um viajante psicodélico - sobretudo com o haxixe - que resultou, por exemplo, numa escrita deambulatória ao longo de Marselha ("Haxixe em Marselha"). Viajador urbano (flânerie), com a viagem eletiva em torno de Baudelaire. Viagem pelos livros, com suas citações, seus comentários e suas passagens. Viagem pela Biblioteca de Paris, com sua cúpula sonhadora. Viagem à origem da linguagem. A viagem abismal da tradução. Viagem à 'origem' de um certo barroco alemão esquecido. Por fim, confronte a viagem de um comentador a partir de Benjamin em ROUANET, 1993, sobretudo a Introdução ("Viajar é preciso", pp. 7-17) e a Parte I ("Viajando com Walter Benjamin", pp. 19-84).

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Ainda no contexto da dedicatória, temos o texto "Posto de Gasolina". Devo

reafirmar antes a importância dos títulos dos apontamentos e aforismos do livro. Além da

referência a placas e letreiros de cidades - o que nos ambienta para os temas dos textos e

para a própria forma do livro - os títulos se configuram também como jogo metafórico para

o leitor. Apesar de a obra conter sessenta textos, muitos deles são pequenos, com até uma

frase, e não possuem relação direta e linear entre si. Porém, o que poderia enfraquecê-lo é a

sua maior qualidade. Primeiro, porque precisamos nos concentrar no pouco que temos

redigido diante de nós - tendo como premissa que vale a pena tal concentração. Segundo, os

títulos nesse caso são fundamentais. Eles nos convidam a pensar sobre o que virá e o que

sobreveio dos textos. Ao contrário das placas citadinas, os títulos de Rua de mão única nos

convidam a refletir sobre o que foi escrito. Se numa rua olhamos a placa e imediatamente

decodificamos o seu significado, nas legendas do livro temos que parar para contemplá-las.

Se a forma explosiva do livro é uma constatação do ambiente urbano e a saturação da

escrita e do pensamento, seu conteúdo, pregueado pelos títulos, é um convite à esperança,

mesmo se a partir do mais ínfimo das coisas. Diria, com Benjamin, por meio de sua

infinidade redentora.

O primeiro texto do livro é como um pequeno prefácio político relacionado à

atividade e à atuação literária. Na verdade, as ideias sintetizadas nesse apontamento contêm

palavras programáticas para a própria obra e para a figura do intelectual que esta anuncia.

Benjamin nos coloca a importância de estar atento ao poder dos fatos, mais do que das

convicções. Ademais, ele nos propõe um modo de ação de forma a influir em

"comunidades ativas". O que está em jogo para Benjamin é a rigorosa alternância entre o

agir e o escrever perante os fatos. Portanto, o que se mostra atuante à altura do momento é

uma linguagem de prontidão. No entanto, em termos de suporte para essa linguagem, as

molduras literárias e o pretensioso gesto universal do livro já são bastante inférteis. Há de

cultivar as formas modestas, representadas, por exemplo, pelas folhas volantes, brochuras,

artigos de jornal e cartazes. Provavelmente, Benjamin absorveu, à sua maneira, as ideias

provindas do marxismo. Haja vista que já visitara a União Soviética, tinha em mente

também as condições literárias e artísticas reposicionadas pelas vanguardas russas, as quais

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eram representadas por artistas como Vladímir Maiakóvski, Kazimir Malevich, Sergei

Eisenstein, Igor Stravinski, Constantin Stanilavski, entre outros.

Mas, na verdade, o próprio Benjamin, com exceção da intensa presença de seus

artigos em jornais e revistas, não atuou como no referido texto "Posto de gasolina". Sua

produção pouco tem de panfletária, pelo contrário, seus textos atingem um nível literário e

não instrumental, por vezes enigmático, mesmo aqueles voltados para a publicação na

imprensa.

As ideias de Benjamin, apesar do esforço de às vezes velar muitas delas, considerou

bastante as suas convicções, que, como constatamos em seus ensaios, eram bastante

radicais. Por outro lado, se considerarmos os gêneros 'testados' por Benjamin, o

apontamento muito tem a ver com suas ideias, pois ele também nos convida à

experimentação de novas formas e de novos suportes para a escrita. A metáfora final

resume o tipo de intelectual ativo que Benjamin espera daquele que alterna o agir e o

escrever. "As opiniões, para o aparelho gigante da vida social, são o que é o óleo para as

máquinas; ninguém se posta diante de uma turbina e a irriga com o óleo de máquina.

Borrifa-se um pouco em rebites e juntas ocultos, que é preciso conhecer." (BENJAMIN,

1995: 11). Nada mais moderno que a máquina. Nada mais moderno que saber lidar com ela

sem se deixar mover automaticamente; sem se perder dentro da máquina como o

personagem de Charles Chaplin em Tempos Modernos (1936).

O segundo texto de Rua de mão única nos remete a um tema bastante presente no

livro. Trata-se do relato de sonhos. Pelo menos sete apontamentos* se referem diretamente

a este tema. Lembro que alguns textos da obra foram publicados em coletâneas. Uma delas

chamava-se O Livro dos Sonhos (Berlim, 1928). Isto mostra o interesse de Benjamin pelos

sonhos tanto como reflexão particular - colecionava sonhos, diz um de seus amigos (Jean

Selz), que também o fazia - quanto como relato ou narrativa que merecem ser observados

como modalidade de escrita. Por extensão, entendo esses relatos como questionamento do

próprio conceito de 'forma'. Isto fica visível nos versos da epígrafe de um texto do livro

intitulado "N. 113": "As horas que contêm a forma,/ na casa do sonho transcorreram."

* Cf. "Sala de desjejum", "Nº 113", "Embaixada mexicana", "Trabalhos de subsolo", "Relógios e ourivesaria", "Parada para não mais de três carruagens", "Fechado para reforma!".

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Segundo os comentadores - já que não há referência direta nessa epígrafe - os versos são do

poeta alemão Friedrich Heinle, amigo de juventude de Benjamin, e que se suicidou com a

namorada no começo da Primeira Guerra Mundial. A propósito, Walter Benjamin dedicou,

num conjunto elegíaco, dezenas de sonetos a seu amigo após esse acontecimento trágico.

Justamente os poemas de Heinle, como escrita poética original contra a 'forma' em vigor,

teriam atraído Benjamin. Diante disso, quando o autor cita como epígrafe a ideia de que as

horas que contêm a forma são passadas na casa do sonho, penso que aqui existe uma crítica

contundente aos fatores formais da criação poética, levantando a necessidade de novas

elaborações artísticas.

Nos sonhos relatados, há constantemente o súbito despertar. Com Benjamin,

entendo que o sonho não é ativado em toda a sua potência se não vier acompanhado do

despertar. Essa é uma das diferenças, em relação ao papel do sonho, entre os surrealistas e o

autor. Benjamin vê no despertar o momento crítico do sonho. Aquele que sonha, portanto,

não pode se entregar totalmente ao sonho, mas experimentar acordado a constituição deste

na realidade. Não é à toa que Benjamin, em suas experiências com o haxixe e outras drogas

(de certa forma próximas aos sonhos), procurou preservar a lucidez, a fim de que as

imagens que experimentasse não caíssem no completo domínio do sono e do esquecimento,

mas pudessem ser registradas por escrito e, de preferência, por ele mesmo, como de fato o

foram.

Há diversas perspectivas do sonho no livro. Em "Sala de desjejum", por exemplo,

temos as condições internas - não sem ironia - que o sonhador precisa ter para relatar os

seus sonhos. O sonho, diz a tradição popular, não pode ser relatado em jejum, porque "o

homem acordado, nesse estado, permanece ainda, de fato, no círculo do sortilégio do

sonho" e acaba falando "do sonho como se falasse de dentro do sono." (BENJAMIN, 1995:

12). Por outro lado, o sonhador emancipa-se da "proteção da ingenuidade sonhadora"

somente por meio de uma recordação distanciada. E assim diz o trecho final, com uma

mescla de humor, ironia e seriedade estilística: "Pois somente da outra margem, do dia

claro, pode o sonho ser interpelado por recordação sobranceira. Esse além do sonho só é

alcançável num asseio que é análogo à ablução, contudo inteiramente diferente dela. Passa

pelo estômago." (BENJAMIN, 1995: 12).

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Em "Embaixada mexicana" e "Trabalhos de subsolo", a ocorrência do sonho

transporta o autor a tempos longínquos e a lugares ctônicos. Em ambos os textos há o tema

mexicano. É interessante lembrar que Benjamin assistiu a um curso sobre a escrita

hieroglífica mexicana na Universidade de Munique, em 1915/16. Neste curso também

esteve presente o poeta Rainer M. Rilke. Em "Trabalhos de subsolo", as referências são

mais indiretas. No entanto, acabam tomando uma importância, porque a igreja escavada na

praça do mercado de Weimar (vista em sonho como uma região erma) é relacionada

livremente no sonho a "um santuário mexicano do tempo do pré-animismo. A relação

desencadeia uma extrema alegria. E justamente o próprio narrador é o primeiro a raspar um

pouquinho a areia, para logo em seguida deparar com o cimo da torre da igreja. O texto

acaba desembocando na linguagem, isto é, na nomeação do santuário, chamado

arcaicamente de "o Anaquivitzli". O autor acorda rindo, com a constatação de que as partes

que compõem a sua nomeação têm origem na conjunção dos léxicos grego, francês e

alemão. Entre eles está o termo witz, bastante rico de sentidos, significando, por exemplo,

chiste, espirituosidade, perspicácia, capacidade combinatória, síntese 'química' (em

oposição à cadeia de analogias mecânicas do entendimento), profecia, genialidade etc.*

Nada resume melhor "Trabalhos de subsolo" do que esse conjunto de sentidos. Sem dúvida,

o caráter contido no termo referido acompanhará Benjamin ao longo do livro.

É importante como também os sonhos levam Benjamin a lembranças intelectuais.

Caso dos dois sonhos sobre Goethe ("Vestíbulo" e "Sala de refeições"). Sua importância

fica mais evidente quando temos a informação de que foi um ensaio sobre um romance de

Goethe, chamado As Afinidades Eletivas, que abriu as portas publicamente para o autor,

posto que foi muito apreciado pelo poeta alemão Hofmannsthal, editor de uma revista que,

por sua vez, resolveu publicá-lo na época. Além do mais, numa perspectiva mais frustrante,

Benjamin também redigiu um grande verbete sobre vida e obra de Goethe para a Grande

Enciclopédia Soviética, que, no entanto, acabou publicando o texto com muitos cortes.

Assim, tal envolvimento com a obra desse grande clássico alemão talvez justifique

emocionalmente o final do apontamento "Sala de refeições". "À extremidade direita, tomei

lugar ao lado de Goethe. Quando a refeição tinha terminado, ele se levantou penosamente e * Cf. SELIGMANN-SILVA in BENJAMIN, 2002: 133, nota 29.

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com um gesto pedi permissão para ampará-lo. Quando toquei seu cotovelo, comecei a

chorar de emoção." (BENJAMIN, 1995: 13). Vemos, portanto, que o grande poeta de

Weimar tinha um lugar cativo na casa dos sonhos de Walter Benjamin, inclusive como

tema para a elaboração de sua escrita.

Em "Fechado para reforma!", Benjamin parece realizar em sonho um "autorretrato

irônico" (BOLLE, 2000: 311). Ele se sonha numa situação metafísica. Para além do espelho

ou da fotografia, consegue realizar o que nenhum homem consegue, a saber, encarar a si

mesmo, o mundo (no caso, o próprio cadáver) fora do próprio corpo. "Em sonho eu me

tirava a vida com uma arma de fogo. Quando o tiro saiu, eu não acordei, mas me vi por

algum tempo deitado como cadáver. Só então acordei." (BENJAMIN, 1995: 56).

Observemos a perspicácia do autor nesse relato. Quando atirou em si mesmo, ele não

acordou com o estampido, mas só após conseguir se ver como cadáver. Ficam as seguintes

questões. Como iria acordar com um tiro, se estava sonhando? Como acordou se era um

cadáver em sonho? Tal plasticidade narrativa e tensão temporal e espacial configuram o

estilo de Benjamin que, em apenas três linhas, consegue apresentar um complexo estado

mental, ao mesmo tempo do sonhador e do vigilante em vista do sonho.

No conjunto desses sonhos, acredito que Benjamin atualiza temas caros a si mesmo.

Latências de suas memórias intelectuais e de seus conflitos existenciais. São trechos com

grande espontaneidade, aliás, marca de Rua de mão única. Por outro lado, há uma

preocupação com o detalhamento dos sonhos, mostrando que os seus meandros

interessavam muito a Benjamin. Os sonhos, portanto, possuem para o autor a dignidade de

apreensão pela escrita. Pois sabemos que uma coisa é sonhar, outra é encontrar as palavras,

as frases e suas cadências, em suma, a forma digna para descrever e narrar os fluxos dos

próprios sonhos. E ainda tem a luta contra o esquecimento, que faz os sonhos serem

lembrados apenas no tempo de um raio. Basta uma brecha de tempo entre o sonhar e o

acordar para ficarmos apenas com os ecos de uma lembrança que, mesmo se despontar, já

nascerá lacunosa.

"Comércio de selos", por sua vez, é um apontamento importante não só para o livro,

mas para compreender um método fundamental para o pensamento de Walter Benjamin.

Trata-se de um autor que valoriza o aparentemente desprezível. Aquilo que não

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acostumamos dar importância para compreendermos a sociedade. Benjamin, no entanto, vai

longe nessa valorização. Ele trabalha com um método de miniaturização do mundo, em que

pequenos objetos ou lugares podem conter as marcas de uma geração, de um tempo e de

um lugar. É o que se observa numa leitura atenta daquele texto sobre os selos, ou, para

tomar emprestado o termo utilizado na tradução portuguesa, sobre a "Filatelia".

O primeiro fragmento em "Comércio de selos" possui uma observação que

corrobora o que contextualizei acima. Benjamin diz que "um selo, que há muito tempo está

fora de curso, sobre um envelope frágil, diz mais que dúzias de páginas relidas."

(BENJAMIN, 1995: 57). Aqui devo destacar duas coisas, as quais também valem para o

conjunto da obra de Benjamin. Primeiro, a importância dada ao selo a partir do momento

que sai de circulação e não possui mais valor de uso. O selo, segundo depreendemos do

texto, será mais importante para compreender a sociedade e as suas marcas quando perder o

seu valor instrumental. Em outras palavras, quando puder ser 'lido' muito mais do que

'consumido'. É partir de então que a "linguagem dos selos" terá a sua floração e poderá

ocupar o seu lugar verdadeiro e não desprezível no mundo. É nesse sentido que podemos

dar lugar à figura do colecionador, presente no texto, e que, muitas vezes, "só se ocupam

com selos carimbados". Ora, o que é um selo carimbado? É aquele selo que já seguiu o seu

rumo sobre a carta e, desprezado no uso, ganha a sua sobrevivência no olhar microscópico

do colecionador.

Na segunda parte a que fiz referência, Benjamin fala que o selo diz mais que "dúzias

de páginas relidas". Neste momento, vejo o questionamento da estrutura do conhecimento

oficial, bem como das escolhas de seus objetos. Quero dizer que nem sempre é preciso se

conduzir por dúzias de páginas para chegar ao conhecimento de algo. Além do mais, não é

um objeto de estudo já consagrado que irá necessariamente nos levar a uma verdade das

coisas; verdade que sabemos já precária desde o início. Como mostra Benjamin nesse texto,

simples selos, com a multiplicidade de modelos que o autor nos faz discernir, podem conter

alguma parte oculta da História oficial. Entretanto, para que aconteça isso, há de se mudar a

natureza do olhar. Olhar que precisa possuir as habilidades de um detetive, arqueólogo ou

cabalista, como diz o autor. Segundo Benjamin, quem está, por exemplo, "no encalço dos

carimbos" marcados nos selos "tem de possuir como detetive os sinais particulares das mal-

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afamadas agências postais, como arqueólogo a arte de determinar o torso dos mais

estranhos nomes de lugares, como cabalista o inventário das datas para um século inteiro."

(BENJAMIN, 1995: 58). Além do mais, Benjamin nos diz indiretamente que, além de nos

voltar para os selos em sua materialidade, precisamos alcançá-los em sua interioridade.

Vejo isto quando ele diz que os selos "estão eriçados de cifrazinhas, letras diminutas,

folhinhas e olhinhos", ou seja, são "tecidos celulares gráficos." (BENJAMIN, 1995: 58).

Eles possuem uma organicidade (uma bio-grafia) que "fervilha entremeado e, como os

animais inferiores, mesmo despedaçado continua a viver." Os selos podem até ser espíritos

inalteráveis, como os de sobretaxa. Mas aí "a mudança dos monarcas e formas de governo

passam por eles como por espíritos, sem deixar rastro." (BENJAMIN, 1995: 59).

Nada revela melhor sobre o seu conceito de miniaturização como quando Benjamin

fala sobre a relação das crianças com a filatelia. São as crianças que vivenciam com mais

intensidade a riqueza dos selos. Parecem ser um modelo - as crianças em vista dos selos -

para uma nova visão do conhecimento e da linguagem das coisas. Elas se aventuram nos

selos, cujas imagens levam-nas a lugares distantes na história. Porque "os selos são cartões

de visitas que os grandes Estados deixam no quarto das crianças." (BENJAMIN, 1995: 59).

Este trecho, porém, também poderia ser interpretado como as marcas que o Poder pode

deixar nas futuras gerações, mas que a criança ajuda a apagar com sua visão peculiar sobre

as coisas.

Benjamin compara as crianças a Gulliver visitando o pequeno povo de Liliputi. Ele

diz que "como Gulliver a criança visita país e povo de seus selos." Isto acontece durante o

sono, ou seja, as pequenas imagens dos lugares impressos nos selos encontram a sua

reelaboração e são instiladas no sono das crianças. Com isso, elas oferecem uma dignidade

narrativa e de sentidos para os selos. Dignidade que possui uma floração que ao século XX,

profetiza Benjamin, não sobreviverá. Mas, antes, são as crianças - com uma visão especial

sobre o mundo, porém, desprezada por muito tempo - que experimentam o último

instantâneo daquela floração.

O foco em torno da experiência da criança, e o que possui de verdadeiro nela, é a

motivação de outro texto de Rua de mão única. De fato, a criança é o princípio que leva o

autor a questionar coisas que não necessariamente possuem relação direta com o mundo

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infantil. Em outras palavras, o percebido como natural para a criança, ao ser remetido para

o mundo do adulto, assume uma atitude crítica e questionadora das percepções

estabelecidas.

"Canteiro de obra" assume esse questionamento. Benjamin começa criticando a

utilidade de se tentar fabricar objetos apropriados para crianças - na verdade, apropriado

para os próprios adultos - sem olhar mais de perto para o mundo da criança. Constatamos

que os pedagogos e os pais não mudam a visão de seus olhares, porque assimilar a visão

infantil sobre mundo é possuir uma espontaneidade e liberdade que aqueles já perderam.

Para o autor, fabricar objetos é encurtar o tempo de crescimento da criança a fim de que ela

perca o seu mundo questionador. Mundo que deixa perplexos e em desordem os adultos,

cujas tentativas de respostas às crianças desestabilizam suas próprias consciências (vide a

fase dos porquês da criança, que tanto deixa os seus pais desestruturados com as certezas já

construídas). A indiferença a que tudo isso conduz impede os pedagogos, muitas vezes

avatares dos pais, e cegados pela psicologia mais vulgar, de "reconhecer que a Terra [terra]

está repleta dos mais incomparáveis objetos de atenção e exercícios infantis." (BENJAMIN,

1995: 18). Assim, "as crianças são inclinadas de modo especial a procurar todo e qualquer

lugar de trabalho onde visivelmente transcorre a atividade sobre as coisas." (BENJAMIN,

1995: 18).

Benjamin ainda fala da atração que as crianças sentem irresistivelmente pelo

residual, surgida, por exemplo, "na construção, no trabalho de jardinagem ou doméstico, na

costura ou na marcenaria." (BENJAMIN, 1995: 19). Isto quer dizer que elas gostam de um

contato direto com o mundo, de preferência com o mundo 'real' da fabricação das coisas e

não com o artificial e mecânico. Nesse contato, mais prazeroso se for com o residual, isto é,

com o que foi desprezado, as crianças "reconhecem o rosto que o mundo das coisas volta

exatamente para elas, e para elas unicamente." (BENJAMIN, 1995: 19). Porque os

pequenos gostam da exclusividade, do misterioso mundo da descoberta. Além do mais,

novas relações são estabelecidas com os objetos e as coisas. O que está em jogo aqui não é

o produto, artefato final produzido pelo adulto, mas as novas configurações que permitem

que as crianças formem "para si seu mundo de coisas, um pequeno no grande, elas

mesmas." (BENJAMIN, 1995: 19). Com isso, Benjamin adverte no fim desse texto sobre a

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necessidade de se ter em foco as normas desse pequeno mundo das coisas, além de sua

linguagem gestual, para que se possa criar para crianças. Por outro lado, para muitos, isto

não é preciso, porque basta continuar com a sua atividade profissional própria, geralmente

manual (construtor, jardineiro, costureira, marceneiro), para que esta mesma atividade

encontre residualmente "por si só o caminho que conduz" às crianças. Penso que o final do

texto é uma crítica indireta aos nossos tempos modernos, que tanto inventaram e

sobrepuseram suas invenções sobre o mundo, acabando por se esquecer da natureza simples

de nossos ofícios, que, por sua vez, para a percepção infantil, é o que basta para conduzi-la

ao caminho de seu crescimento concreto e imaginário.

"Canteiro de obra" ainda possui - agora para os adultos - uma crítica à concepção do

conhecimento. Ou melhor, ele nos traz a possibilidade de uma nova expressão do

conhecimento, que não evita o mundo, não o encara como fabricação, mas parte de sua

concretude, de sua natureza coisal. Um conhecer interessado no residual e não apenas na

realização dos objetos pedantemente completos e apropriados. Quando os olhos de seu

tempo miravam em direção ao edifício completo (do conhecimento, da ciência), Benjamin

se interessava pelo ainda resistente canteiro de obras, pelo que restou do acabado, ou seja,

pelo inacabado. O canteiro de obras é a possibilidade da construção. A possibilidade ainda

de criação mesmo a partir do aparentemente acabado, cuja lembrança é o edificado

aparente. É na desconstrução desta aparência que Benjamin enxerga a força do mundo

infantil. Mundo a olho nu sem significado, ao sabor do vento, mas que revela

fundamentalmente o desejo do desconhecido. Pois, quando achamos que conhecemos tudo,

a criança muitas vezes nos conduz ao desconhecido.

A criança é um filósofo original. Benjamin - pelos inúmeros textos dedicados a ela,

além de suas coleções de brinquedos e livros infantis - certamente viu nesse momento da

vida uma metáfora para a renovação do conhecimento e para o seu trabalho como escritor.

O maior texto de Rua de mão única é "Panorama Imperial". Seu subtítulo, 'viagem

pela inflação alemã', esclarece o tema e a atmosfera dos fragmentos enfeixados sob aquele

título. São, na verdade, quatorze apontamentos numerados em romanos. No entanto, o

nome geral escolhido para o texto é mais rico metaforicamente.

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'Panorama' tem um significado especial na obra de Benjamin. O título se refere a

uma espécie de primórdio do cinema. Os panoramas foram muito famosos no século XIX.

Eram espaços constituídos por uma tela circular em que se projetavam imagens de

paisagens, naturais ou históricas, em grande formato, com quase 360 graus. Desta forma, o

espectador, que ficava sentado no centro do círculo, tinha a ilusão de ver de cima, por meio

de um sistema de estereoscópios individuais (instrumentos de óptica, através dos quais as

imagens planas aparecem em relevo). As imagens giravam diante do espectador, que tinha

a impressão de imersão na paisagem exibida. A importância desses panoramas para

Benjamin era, primeiro, por ter convivido quando pequeno com esse modo de

entretenimento. Segundo, ele pesquisou os panoramas - posto que o desenvolvimento e a

decadência deles foram no século XIX - para a sua projetada obra sobre as Passagens

parisienses, cujo foco é justamente a Paris desse mesmo século. Não podemos esquecer que

Paris, à época, abrigava muitos panoramas, e foi nesta cidade que surgiu o cinema*. Em

vista disto, Benjamin tinha interesse também na compreensão da fotografia, por traz das

imagens dos panoramas, e o que isto contribuiu para o advento do cinema. Aliás, foi no

mesmo ano em que um diorama, cujas imagens eram pintadas em tecidos transparentes e

exibidas com efeitos de luz, incendiou-se (1839) - como nos informa Benjamin num dos

fragmentos das Passagens - que seu dono, Louis Jacques Daguerre, teria inventado o

daguerreótipo, que marca o início da fotografia.

Fica ainda a dúvida sobre o significado das palavras acima para o texto "Panorama

Imperial". A resposta está no duplo sentido do título. Ele não apenas nos remete a um nome

de um panorama em Berlim, mas também nos coloca historicamente na situação econômica

da Alemanha, e naturalmente de Walter Benjamin, com o fim da Primeira Guerra Mundial,

a queda do Império alemão e o consequente início da República de Weimar em 1918/19.

Com o início dos anos 20, a Alemanha - bem como o resto do mundo em 1929 - viveria

uma inflação que atingiria a estrutura econômica e, como se sabe, ideológica do país. É

nesse panorama que Benjamin concentra a sua análise. É impressionante a qualidade crítica

do texto, quando se constata que o autor (e o escritor) também estava vivendo toda aquela

* O cinema 'surgiu' em 1895, quando foram projetadas as primeiras imagens em movimento. Elas foram registradas um ano antes (1894) pelos irmãos Lumière.

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situação. No entanto, ele consegue manter uma alta concentração crítica sobre o delicado

tema, além de um distanciamento que geralmente só se consegue com o passar do tempo e

da situação histórica, sobretudo no caso de uma crise. Portanto, é como se Benjamin

conseguisse se manter no centro do panorama, enquanto a paisagem econômica catastrófica

circulava diante de seus olhos, que, por sua vez, não temiam abarcá-la com o seu

pensamento crítico. Mas, como veremos, se essa circulação não atinge a sua lucidez como

escritor, não é o que acontece com a sua situação material, que acaba por igualá-lo a todos

os alemães.

Creio que a epígrafe para "Panorama Imperial" está localizada em outro texto

igualmente importante de Benjamin. Trata-se de quando, em "Experiência e Pobreza", o

autor disse que "jamais houve experiências tão desmoralizadoras como as estratégias pela

guerra de trincheiras, as econômicas pela inflação, as físicas pela fome, as morais pelos

donos do poder." (BENJAMIN, 1986: 195). Pois são justamente essas desmoralizações que

permitem ao autor uma 'viagem através da inflação alemã'. A tradução holandesa de

"Panorama Imperial", de 1927, possui uma nota de Benjamin que apresenta a intenção

desse texto. Ela também se aproxima do que até aqui venho problematizando.

Com o fim da guerra de quatro anos começou na Alemanha a inflação, que já grassa há oito anos. Atinge umas vezes este, outras aquele país, e mantém-se durante meses ou semanas. Mas para a classe dominante na Europa, estes meses e semanas já chegam para constantemente anunciarem o restabelecimento da 'situação de estabilidade anterior à guerra'. Mas não entendem que foi precisamente a guerra (que querem esquecer) que constituiu a estabilização dessa situação - consequente até à loucura -, e que o seu fim coincide precisamente com fim dessa situação. Aquilo que os irrita, como o mau tempo que não quer acabar, é de fato e realmente a decadência do seu mundo. O barômetro em baixa da situação econômica, que na Alemanha dura há anos, possibilita pela primeira vez uma reflexão a partir desses sinais de um novo dilúvio. (BENJAMIN, 2004: 266).

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Uma vez que as primeiras versões do texto remontam a um período anterior a 1923,

e considerando a sua publicação em livro em 1928, podemos dizer que "Panorama

Imperial" configura-se como um balanço, e prognóstico, do primeiro pós-guerra,

absorvendo temas relevantes para compreender a Alemanha e as suas margens europeias

durante quase toda a década de vinte. Mas observo que tal texto não se volta apenas para a

reflexão estritamente econômica. Reafirmando a ciência econômica como ciência humana,

ele também nos remete de forma mais marcante às mudanças que as relações humanas e

sociais podem sofrer numa situação limite, quando a própria sobrevivência do indivíduo e

de uma coletividade estão em jogo. Para ser mais preciso, em decadência.

Oficialmente, o texto não se organiza em forma de teses. No entanto, a presença de

outras teses ao longo do livro, bem como a disposição em partes numeradas em romanos de

"Panorama Imperial" fazem com que também entendamos o texto como uma série de teses

sobre uma situação historicamente concreta da Alemanha. Voltarei ao tema teses; todavia,

já posso adiantar que tal formato, aliado ao estilo concentrado de Benjamin, provoca um

grande impacto no leitor. Primeiro, porque o autor utiliza palavras muito fortes (por

exemplo, "natureza alemã em decomposição") para criticar uma conjuntura que geralmente

pode cair no perigo de uma descrição/discrição superficial e apaziguante. Segundo, pois os

pequenos trechos enfeixados sob um mesmo tema não se fecham em si mesmos, mas

servem como provocações reflexivas muito úteis ao desenvolvimento e à conexão com

outras conjunturas e temas.

Assim, quando Benjamin se fixa no "tema das condições de vida" que fazem com

que as relações humanas se fixem na sobrevivência e no dinheiro e percam "o olhar para o

contorno da pessoa humana", percebe-se pela sua 'crítica' que ele não fala apenas da

Alemanha. Quando no fragmento número V discute a pobreza, percebe-se que a penúria

criticada não é apenas uma questão de dada nação contê-la ou não, mas uma condição que

desonra qualquer indivíduo, não devendo ser aceita passivamente por ninguém. Benjamin

fala do consolo dos provérbios, da linguagem, que outrora poderiam consolar o pobre, mas

"cuja data de vencimento já chegou há muito tempo." (BENJAMIN, 1995: 22). Uma coisa

é sofrer as contingências do tempo, como no passado, quando o camponês carregava o

fardo da má colheita; outra é a desonra provocada por uma miséria na qual nascem

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enredados centenas de milhares. Ou seja, sofrer uma fatalidade, cujo destino é a perda

material da sobrevivência, é muito diferente de nascer servo de potências obscuras. Penso

que é nesse caminho que Benjamin segue com a sua reflexão quando diz de forma marcante

- principalmente para leitores brasileiros - que "nunca é lícito a alguém firmar sua paz com

a pobreza quando ela cai como uma sombra gigante sobre seu povo e sua casa." O mais

belo dessa parte V, além da lúcida constatação anterior, é a perspectiva ativa que Benjamin

promove diante da condição da pobreza. Ele afirma que o indivíduo deve "manter seus

sentidos vigilantes para cada humilhação que lhes é infligida e mantê-los disciplinados até

que seu sofrimento tenha trilhado, não mais a ladeirenta rua da amargura, mas o caminho

ascensional da revolta." (BENJAMIN, 1995: 22)*. Entretanto, tal reação, ou esperança,

apenas desponta se "cada destino, o mais terrível, o mais obscuro, discutido todos os dias, e

mesmo todas as horas pela imprensa, exposto em todas as suas causas aparentes e

consequências aparentes" promover ao "conhecimento das obscuras potências das quais sua

vida se tornou serva". (BENJAMIN, 1995: 22). Benjamin desloca a questão da pobreza

como expiação cristã e, portanto, fatalidade aceitável, para a resistência do indivíduo diante

dessa desonra, visto que a pobreza é uma situação confrontável e alterável historicamente.

Sujeira e miséria, diz o autor, "crescem como muros, obra de mãos invisíveis." Cabe

ao indivíduo perceber que as mãos podem ser invisíveis, porém, os muros possuem seus

blocos com sua argamassa bem visíveis e vergonhosamente concretos e altos. Isto sim é o

que permite a invisibilidade da pobreza. A pobreza nunca "não é desonra", mas sempre

aniquilamento social e anímico, sobretudo se a "fome força os miseráveis a viver das notas

com as quais os passantes procuram cobrir uma nudez que os fere." Mas será que ainda

fere? Ainda é caminho ascensional para a revolta?

Impressiona, nesse "Panorama Imperial", a confrontação de Benjamin de si mesmo

com o seu tempo, aliada, no entanto, a um sentido de alteridade presente em geral no texto.

Este o coloca como 'porta-voz' de uma coletividade sofrendo com a sua pobreza (material e

intelectual), e, ao mesmo tempo, centrada no dinheiro como "interesse vital". Benjamin,

portanto, apreende os instantes fundamentais nos quais as relações humanas fracassam.

* Sabemos hoje que as sendas abertas pela indignação e pela justiça são mais eficientes que aquelas rasgadas pelo ódio, pela revolta e pela vingança.

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Essa disposição social configurada no texto é o seu grande mérito como escritor que, mais

do que o presente, parece dispor os meios condicionais do futuro. É nessa atmosfera que

termina a última parte do texto (n. XIV), em que Benjamin, após nos falar sobre uma

"antiquíssima experiência ética" no respeito à alteridade das coisas, nos remete a uma

metáfora natural que resume a degeneração moral de seu tempo.

Uma vez degenerada a sociedade, sob desgraça e avidez, a tal ponto que ela só pode ainda receber os dons da natureza pela rapina, que ela arranca os frutos imaturos para poder trazê-los vantajosamente ao mercado e que ela tem de esvaziar toda bandeja somente para ficar saciada, sua terra empobrecerá e o campo trará más colheitas. (BENJAMIN, 1995: 26).

Eis uma das muitas experimentações proféticas do autor que, arriscando uma escrita

no calor da hora, acaba por sobrepor um futuro no presente ainda não consciente de seus

desdobramentos.

Walter Benjamin foi um grande renovador dos gêneros literários. Aliás, é

justamente este um dos motivos pelos quais ele pode ser considerado um escritor de

qualidade, posto que sua escrita não foi meramente instrumental, mas se preocupava

também com a 'forma' de seus textos, possuindo, portanto, um estilo. Estilo que precisa ser

entendido como ousadia nas ideias, desenvolvimento original dos argumentos e

estabelecimento de imagens metafóricas que se aproximam de uma poética própria. Desta

forma, a tese, um dos gêneros sobre o qual quase não se falava na época (ou não era

exercitado pelos escritores), foi exercitada por Benjamin, inclusive nomeando-a nos

próprios títulos de seus textos.

De acordo com Pierre Missac (1998), a tese surgiu primeiro como um gênero do

campo teológico, para logo depois enveredar como forma de escrita do campo político. Em

ambos os casos, suas temáticas eram marcadas por um caráter teórico e polêmico. Ademais,

a tese reúne outros gêneros, a saber, o tratado e o aforismo. Assim, tensionada entre um

discurso extenso e desenvolvido, como o tratado, e a concisão do aforismo, a tese é um

gênero perfeito para tratar as ideias de forma séria - mas não sem humor ou ironia - com um

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mínimo desenvolvimento de argumentos, mas que, ao mesmo tempo, elas possam ser

impactantes, polêmicas e democráticas na apresentação.

Benjamin parece ter percebido isto, e não à toa o conjunto de teses, as estritamente

denominadas teses, de Rua de mão única, é chamado de "Proibido colar cartazes". E o que

são cartazes? São exatamente um dos suportes urbanos de escrita mais democráticos, a

partir do qual a leitura não é realizada individualmente mas coletivamente, às vezes em voz

alta, de forma que os pontos de vista possam ser discutidos por uma maioria. Convém

lembrar, ainda com Missac, que, além das teses contidas no livro, Benjamin desenvolveu o

gênero sob o fio de outros temas. Temos as "Teses provisórias", com oito diretrizes para o

futuro ensaio "A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica". As "Novas teses",

sobre algumas diretrizes que seriam expostas posteriormente no ensaio sobre Baudelaire

(capítulo "O Flâneur"). Um texto expositivo enviado à Universidade de Frankfurt que

propõe, no formato de teses, um resumo de seu livro sobre o drama barroco alemão. Até em

carta Benjamin sugere ideias em forma de teses, como a enviada a Ernst Schoen, em que

expõe nesse formato questões políticas relacionadas ao rádio (BENJAMIN, 2006: 516). Por

último, não podemos esquecer de um dos mais importantes textos de Benjamin, a saber, as

belas e instigantes teses "Sobre o conceito de história". Como se vê, as teses serviram como

formato final e ainda como forma de preparação para trabalhos posteriores.

Acompanhamos, portanto, com as teses, o desenvolvimento das reflexões de Benjamin, as

quais não devem ser buscadas somente nos textos acabados, mas frequentemente também

nos seus fragmentos tão bem munidos de força expressiva. Muitos fragmentos do autor

contêm em si mesmos algumas concepções já com desdobramentos importantes. Vide,

apenas como referência, a importância de um simples fragmento denominado "Capitalismo

como religião" (1921).

De certa maneira, as teses, no caso daqueles textos preparativos, são uma tentativa

de dar forma instantânea às suas várias especulações fragmentadas que borbulham sem

cessar em cartas ou simples conversações com amigos. Como diz o próprio autor, num

texto de Rua de mão única chamado "Relógio normal": "para os grandes, as obras acabadas

têm peso mais leve que aqueles fragmentos nos quais o trabalho se estira através de sua

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vida. Pois somente o mais fraco, o mais disperso encontra sua incomparável alegria no

concluir e sente com isso devolvido à sua vida." (BENJAMIN, 1995: 14).

No que se refere, porém, a Rua de mão única, há teses que foram editadas em livro.

Portanto, elas precisam ser confiadas a um outro tipo de argumentação, a saber, aquela que

considere esse gênero como formato final de um pensamento. Não sem ironia, os temas de

que Benjamin se vale para exercitar a tese são o escritor, a escrita, a leitura, a crítica, os

livros e a obra de arte. É o caso de "A técnica do escritor em treze teses", "Treze teses

contra esnobes" e "A técnica do crítico em treze teses". Benjamin parece seguir à risca, mas

com espontaneidade e sem uma atitude prescritiva, aquilo que disse em "O autor como

produtor": "Um autor que não ensina nada aos escritores não ensina nada a ninguém."

(BENJAMIN, 2006: 288). Naturalmente esse ensinar, dada a chave irônica dos textos de

Rua de mão única, está relacionado à necessidade de se colocar o escritor e seu ofício em

primeiro plano, conduzindo-o à luta de ideias na sociedade.

Há que se dizer ainda sobre a dignidade oferecida ao escritor e à escrita no livro.

Com "A técnica do escritor em treze teses", observo que em suas partes, criadas em cada

uma delas de forma aforística, o autor nos oferece a tese geral de que o escritor possui um

ritual de escrita, e que sua realização vai além do resultado final do texto. Para Benjamin, a

obra escrita é o final de um ritual. Antes, no entanto, ainda há o pensamento e o estilo. Com

isso, todo um processo físico e mental é tão importante para o 'ser escritor' quanto o

resultado final. O ritual da concepção contribui para o que podemos chamar de felicidade

escritural, ou, de acordo com um outro ponto de vista, de angústia da escrita.

Escrever, para Benjamin, não é um simples ato mecânico e instrumental. A escrita

abraça também as condições materiais e emocionais do escritor. Ela tem a ver com pré-

requisitos como o bem-estar, o silêncio sobre o que se está escrevendo, a alternância entre a

tranquilidade e o ruído durante a escrita, a necessidade do apego aos objetos do trabalho

(papéis e canetas específicos), a importância do caderno de notas, a entrega ao trabalho na

virada da noite pelo menos uma vez, o alerta para a escrita, dentre outros recomendados -

veja que a recomendação num certo ponto de vista também é um gênero - não só nesse

texto como em outros ao longo do livro.

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Chamo atenção para o fato de que essas dicas, para ficar com um termo mais

moderno, aproximam o escritor de seus semelhantes, provocando uma identificação de

ofício. Além do mais, em relação ao leitor, retira deste a ideia da escrita e do escritor como

um ser etéreo e metafísico (mítico), como se essa profissão não oferecesse um trabalho

árduo e elaborado - às vezes 'técnico' - assim como outras atividades. É como se Benjamin,

ao invés de fazer proselitismo e mistificação da escrita, quisesse aproximar de todos a

possibilidade de escrever, desde que possuíssem as condições materiais e emocionais (em

suma, vontade) relacionadas ao exercício da escrita.

Compreendo que, para Benjamin, a escrita também é possível caso se respeite a

paciência, a dedicação, a insistência, o zelo e a disciplina envolvidos intensamente na

realização do escritor na escrita. Para o autor - concluo a partir de todo o material do livro -

a escrita, a crítica e os livros são um foco na vida e não um acidente ou oportunismo do

destino. Portanto, de certa forma, a escrita envolve uma escolha e uma formação ética. Em

Benjamin, a escrita é uma arte. Sua obra, sabemos pelo autor, é o contrário do documento*,

que, por sua vez, é uma realização apenas primitiva da potência de escrita do homem. O

documento nega o escritor em vez de afirmá-lo por meio da possibilidade de uma obra de

arte. Tal campo do possível é o que, ao contrário do documento, Benjamin potencializa,

trazendo à tona as fases ritualísticas possíveis de uma concepção escritural verdadeira.

Alguns textos de Rua de mão única possuem um compromisso crítico com o futuro.

Na verdade, as reflexões contidas nesses textos referem-se ao presente; no entanto, são tão

atentas ao atual que acabam por revelar configurações futuras. Creio, dessa forma, que

essas reflexões contêm a mão de um escritor que faz suas 'combinações' em um mundo que

veio depois dele. "Pois os grandes escritores, sem exceção, fazem suas combinações em um

mundo que vem depois dele." (BENJAMIN, 1995: 15).

Estilisticamente, podemos dizer que Benjamin possui uma espécie de

experimentação profética, nascida do fato de que ele foi tão lúcido e profundo na análise de

seu presente e do relampejo do passado no presente, que a sua escrita transborda e acaba

por tocar o futuro. Naturalmente que frente a seu tempo histórico (guerras, nazismo, perda * Cf. "Treze teses contra esnobes". Ter em mente, porém, que a concepção e a importância dos documentos para Benjamin alteram-se, principalmente a partir do ensaio sobre o Surrealismo, e, de forma fundamental, nos escritos para as Passagens.

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de referências éticas e morais) não seria tão difícil 'prever' o futuro, já que naquele instante

ele só poderia ser o pior. Mas a diferença em Benjamin é que seu olhar virava-se para a

previsão futura das pequenas coisas ou da contextualização do futuro no presente. Não

quero com isso retirar a importância maior que o conceito de passado possui em seus

escritos, mas chamar a atenção para um escritor que possuía uma argumentação com uma

tendência a despertar o pensamento para o novo. E o novo, como venho dizendo, é a

principal motivação de Rua de mão única. Algumas observações nos textos deste livro

reforçam as ideias de Benjamin voltadas para o porvir.

Em "Guarda-livros juramentado", mais uma vez Benjamin retoma o tema da escrita.

Porém, dialoga também com o passado e arrisca uma análise positiva dos novos suportes da

escrita, que, como sabemos, provocaram uma mudança na percepção e na leitura dos textos.

Num fragmento relativamente curto para a complexidade do assunto, Benjamin consegue

discutir pontos fundamentais sobre transformação radical pela qual a escrita passou,

sobretudo no começo do século vinte.

No início de "Guarda-livros juramentado", talvez tendo uma impressão aguda da

mudança da escrita na modernidade, Benjamin afirma o seguinte: "Agora tudo indica que o

livro, nessa forma tradicional, vai ao encontro de seu fim." (BENJAMIN, 1995: 27). O

tradicional a que o autor faz referência tem como modelo o livro tal como foi 'inventado'

pela arte da imprensa, e tornado popular, no caso da Alemanha, pela tradução da Bíblia por

Lutero. Mas, como constatamos hoje, talvez a escrita e o leitor tradicional é que tenham

mudado, mais do que o livro como suporte principal. Alguns livros na atualidade chegaram

a um nível técnico de impressão só comparável, tomando as devidas proporções, às

iluminuras medievais. Como exemplo, vide o novo projeto da edição crítica dos escritos de

Walter Benjamin, pela Editora Suhrkamp, em 21 volumes. Tal edição 'definitiva', com

extenso aparato crítico, inclusive com as variantes dos textos de Benjamin, bem como com

os fac-símiles e as transcrições dos originais, será publicada entre 2008 e 2015. Não digo

que fazemos sempre livros com essa qualidade técnica, mas que sem dúvida, possuímos

meios técnicos o suficiente para tanto.

A análise de Benjamin é muito visionária se levarmos em consideração o seu

contexto. As suas conclusões são referentes a um tempo em que um poeta como Mallarmé

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empregou "as tensões gráficas do reclame na configuração da escrita", enquanto os

dadaístas reagiam radicalmente "em termos de experimentos de escrita". Benjamin tão

somente reconhece "a atualidade daquilo que, monadicamente, em seu gabinete mais

recluso, Mallarmé descobriu, em harmonia preestabelecida com todo o acontecer decisivo

desses dias, na economia, na técnica, na vida pública." E segue dizendo: "A escrita, que no

livro impresso havia encontrado um asilo onde levava sua existência autônoma, é

inexoravelmente arrastada para as ruas pelos reclames e submetida às brutais heteronomias

do caos econômico." (BENJAMIN, 1995: 27-28).

Desta forma, vemos que Benjamin nos chama atenção para o fato de que a escrita se

afasta do livro como suporte principal, indo ao encontro das tensões da modernidade, cuja

"escola de sua nova forma" é a experiência urbana caótica. Esta experiência - experimento -

oferece uma plurifuncionalidade à escrita. Diminui-se então "as chances de sua penetração

na arcaica quietude do livro", visto que, "antes que um contemporâneo chegue a abrir um

livro, caiu sobre os seus olhos um denso turbilhão de letras cambiantes, coloridas,

conflitantes." Entendemos um pouco o processo dessa mudança perceptiva quando

Benjamin nos fala sobre o caminho percorrido pela escrita até a sua verticalidade, tendo

como modelo o jornal, que, por sua vez, como sabemos, contribuiu não só com essa

verticalidade, mas também alterou o modo pelo qual apreendemos a realidade. Diz

Benjamin:

Se há séculos ela [a escrita] havia gradualmente começado a deitar-se, da inscrição ereta tornou-se manuscrito repousando oblíquo sobre escrivaninhas, para afinal acamar-se na impressão, ela começa agora, com a mesma lentidão, a erguer-se novamente do chão. Já o jornal é lido mais a prumo que na horizontal, filme e reclames forçam a escrita a submeter-se de todo à ditatorial verticalidade. (BENJAMIN, 1995: 28).

Bastante interessante é o trecho que aparece em seguida no texto. Como tenho dito,

ele analisa com otimismo a transformação da escrita; no entanto, não deixa ao mesmo

tempo de ser bastante crítico quando afirma em tom profético e messiânico: "Nuvens de

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gafanhotos de escritura, que hoje já obscurecem o céu do pretenso espírito para os

habitantes das grandes cidades, se tornarão mais densas a cada ano seguinte." (BENJAMIN,

1995: 28). Observo que essa imagem é bastante questionadora, porque as nuvens não

parecem se aproximar para contribuir para a experimentação da escrita. Visto que foi

utilizado como metáfora um inseto alado constantemente relacionado a pragas e a

destruições de plantações, penso que - tentando atualizar a metáfora - essas nuvens chegam

a seu termo mais sufocando, embotando e sabotando a apreensão da realidade do que

estimulando positivamente algo. Fica, portanto, a atenção a essa imagem misteriosa e

enigmática que, aliás, faz parte de um conjunto imagético específico também presente em

outros textos do autor.

Benjamin segue na parte final de "Guarda-livros juramentado" com intuições

bastante ousadas. Ele argumenta que as renovadas "exigências da vida dos negócios" levam

a escrita mais além. Estão representadas pelos catálogos de fichas, que teriam conquistado

uma "escrita tridimensional". Ora, o que Benjamin quis dizer com esta

tridimensionalidade? Teria alguma relação com o desenvolvimento dos arquivos

catalográficos que, por sua vez, dispensariam o domínio do livro como organizador linear

das ideias? Sabemos que o próprio Benjamin exercitou esse modo de conhecimento durante

as suas pesquisas para o projetado livro sobre as Passagens parisienses. Compilou milhares

de fragmentos, a maioria retirada da coleção da Biblioteca Nacional de Paris, intercalando

muitas vezes comentários sobre o vasto material que ia recolhendo. A meu ver, essa

experiência, que começaria profundamente a partir de 1927 com o projetado livro sobre as

Passagens, fica latente quando ele diz o seguinte no texto em análise:

E hoje já é o livro, como ensina o atual modo de produção científico, uma antiquada mediação entre dois diferentes sistemas de cartoteca. Pois todo o essencial encontra-se na caixa de fichas do pesquisador que o escreveu e o cientista que nele estuda assimila-o à sua própria cartoteca. (BENJAMIN, 1995: 28).

Assim, penso que, por um lado, aquela tridimensionalidade tem a ver com o

movimento da escrita, que se fragmentou e, se verticalizando, adquiriu uma impressão de

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movimento e volume que a bidimensionalidade do livro ainda não conhecia. Por outro,

podemos dizer também que a tridimensão está ligada à figuração da escrita. Benjamin fala

de uma mudança em que a quantidade vira qualidade e "a escritura, que avança sempre

mais profundamente dentro do domínio gráfico de sua nova, excêntrica figuralidade,

tomará posse, de uma só vez, de seu teor adequado." (BENJAMIN, 1995: 28).

Mas essa escrita-imagem (escrita da imagem) não permanece atada "aos decretos de

um caótico labor em ciência e economia." Não é, portanto, uma escrita científica e

instrumental, mas está ligada à arte e aos poetas. Consideremos também que a filosofia da

linguagem de Benjamin está fundamentalmente baseada numa radical não instrumentação

da linguagem e da escrita. Se pensarmos com o olhar do presente, só mesmo no domínio da

poesia que essa escrita encontrou a rigor uma figuralidade. Pensemos em nossas poesias

concreta e neoconcreta. Ela justamente carrega intrinsecamente a colaboração que

Benjamin destinava aos poetas quando diz: "Nessa escrita-imagem os poetas, que então,

como nos tempos primitivos, serão primeiramente e antes de tudo calígrafos, só poderão

colaborar se explorarem os domínios nos quais [...] sua construção se efetua: os do

diagrama estatístico e técnico." (BENJAMIN, 1995: 28). Não à toa Haroldo de Campos já

traduziu trechos de Rua de mão única, inclusive esse aqui comentado.

Podemos pensar também, por exemplo, na escrita (caligrafia) chinesa, japonesa e

árabe, cujos modos de escrita e expressão já possuem uma figuralidade essencial. Os novos

suportes, hoje constatamos ao vislumbrar uma cidade como Tóquio, só vieram destacar a

tridimensionalidade daquelas línguas, a ponto de já estarem adaptadas às redes

computacionais de comunicação (vide a possibilidade de já se poder escrever a maioria dos

caracteres chineses no computador). Pensemos também nos designers contemporâneos, os

quais pensam a escrita como imagem comunicativa instrumental e não absolutamente como

expressão tal como Benjamin pensa a imagem no domínio poético. Por outro lado, há a

expressão artística, por exemplo, dos quadrinhos; entretanto, a imagem aqui toma uma

posição maior que a escrita. Por último, pensando nas atuais possibilidades da literatura

digital, pode-se citar a emergência de um gênero provisoriamente chamado de interficções*,

* O termo interfictions foi usado por Roberto Simanowski no livro Interfictions. Vom Schreiben im Netz [Interficções. Da escrita na rede], publicado em alemão, em 2002, pela Editora Suhrkamp. Esse conceito

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em que interatividade, intermedialidade e encenação reúnem-se a fim de oferecer novos

caminhos para o campo da literatura.

Busco esses exemplos mais atuais devido ao que o autor fala de forma profética

sobre a "fundação de uma escrita conversível internacional", a partir da qual os poetas

"renovarão sua autoridade na vida dos povos" e encontrarão uma função de encontro ao

passado. O que tem de importante nesse final messiânico, que, como sabemos, não se

realizou, é a fundação de uma nova escrita. Naturalmente ela nos lembra bastante as

escritas eletrônicas, que expandiu a sua capacidade técnica de comunicação internacional;

todavia, sem oferecer um lugar de destaque aos poetas. Foi apenas no domínio da arte e da

poesia, e por pouco tempo, que a escrita conseguiu se renovar após a passagem das nuvens

de gafanhotos da escrita, que, convertida internacionalmente, só veio a nos silenciar diante

de uma escrita transformada apenas numa algaravia de imagens (vide o domínio das

legendas).

Por último, em relação ao papel que Benjamin conferiu aos poetas na "fundação de

uma escrita conversível internacional", penso que ele não os teria citado se constatasse na

atualidade a ausência da poesia no desenvolvimento daquela excêntrica figuralidade, que de

maneira lúcida um dia apontou com esperança. Ao lado disso, se já tivesse elaborado os

seus ensaios sobre Baudelaire, talvez chegasse a uma conclusão diferente em relação ao

papel do poeta nas novas configurações da escrita.

"Guarda-livros juramentado" é uma das respostas críticas que Walter Benjamin

elaborou diante das exigências de um mundo escritural que mudava freneticamente,

tornando a escrita cada vez mais 'juramentada' e instrumentalizada, incapacitando-a de

oferecer respostas ou esperanças às exigências mais complexas da vida na modernidade.

Benjamin não fugiu dessas questões como escritor atuante, visto que, com esse pequeno

texto, mostrou a sua criatividade na constatação de seu tempo, bem como uma perspicácia

na reflexão do porvir.

"pretende destacar, neste tipo de literatura, não apenas a sua produção e recepção interativa [...], mas dar relevo à condição intermediática da fusão da escrita, da imagem e do som, exclusivamente possível na forma digital." (OLINTO, 2005: 42). Ver ainda uma outra referência nessa discussão, Christiane Heibach, que defendeu a sua tese de doutorado em 2000, na Alemanha, sobre literatura digital (Literatur im Internet). Cf. "Fogos de Artifícios Verbais" in OLINTO, 2005, pp. 41-52.

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O último apontamento de Rua de mão única intitula-se "A caminho do Planetário"

(ou "Para o Planetário"). Os planetários, cada vez mais raros nas cidades, distinguem-se por

ser um espaço onde a experiência é alcançada por meio do aparelho. Ou seja, a partir das

novas descobertas técnicas, cuja representação maior no planetário é o telescópio, o homem

se permitiu estender os seus sentidos e alcançar lugares que a sua limitação física não

consegue. Ao mesmo tempo, observando o Espaço, o planetário se constituiu como

miniaturização do universo, permitindo a seus visitantes vislumbrar uma aparência de

totalidade e uma ilusão de domínio do cosmos. Por outro lado, se compreendida a limitação

da apreensão do Universo pelos aparelhos, temos o planetário como reflexão importante da

limitação do homem diante da natureza.

O planetário é a experiência urbana cósmica. O que os nossos antepassados

possuíam como força de sua própria existência, os modernos só experimentam pelo

domínio da natureza por meio da técnica e da criação de aparelhos que buscam uma

transparência de um Universo, o qual nunca quis se mostrar como proximidade mas como

distância. Distância que os antigos ritualizaram como forma de aproximação com o cosmos.

Distância que os modernos tomam como limitação técnica. Para os antigos, bastava a

"embriaguez" que lhes assegurava a experiência "do mais próximo e do mais diante, e

nunca de um sem o outro". (BENJAMIN, 1995: 68). Para os modernos, a ambição pela

aproximação egoica trouxe-lhes o desenvolvimento de técnicas levadas ao último limite,

pois considerou apenas o indivíduo e não a comunidade humana.

São com esses desdobramentos que pude compreender a crítica à técnica presente

em "Para o Planetário". Crítica que nos lembra a presença física do homem na Terra,

limitada por uma natureza circundante que não admite excesso, e que cobra o seu preço,

qual seja, a desesperança de uma vida harmoniosa no planeta onde habitamos. Benjamin

nos diz que "a técnica traiu a humanidade e transformou o leito de núpcias em um mar de

sangue". Ele tinha em perspectiva a Primeira Guerra Mundial. A técnica, na ambição de

religação com as potências cósmicas, de extensão técnica de sua própria primitiva

embriaguez, acabou por conseguir dominar a natureza não só controlando-a mas

destruindo-a, incluindo o homem criador daquela técnica. O ápice da técnica como

decadência é a guerra, que envolve o homem na destruição de seu semelhante e o conduz,

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mesmo que ele inocentemente não acredite, à destruição de si mesmo. Autodestruição não

só física mas também existencial, cujo exemplo máximo em Benjamin é um trecho do

ensaio "Experiência e pobreza", no qual o autor constata o silêncio dos soldados - sem

experiência narrável - ao voltarem da Guerra. Com a técnica nauseada, como tão bem

sintetiza Benjamin,

massas humanas, gases, forças elétricas foram lançadas ao campo aberto, correntes de alta frequência atravessaram a paisagem, novos astros ergueram-se no céu, espaço aéreo e profundezas marítimas ferveram de propulsores, e por toda parte cavaram-se poços sacrificiais na Mãe Terra. (BENJAMIN, 1995: 68-69).

Lembremos com isso que a Primeira Guerra foi a das trincheiras, nas quais os

homens pressentiam física e espacialmente o seu sacrifício. Lembremos dos aviões, que,

criados pelo sonho alado de um homem, serviu à velocidade da destruição de outros

homens.

Apesar disso, Benjamin não renega totalmente a técnica. Apenas constata os seus

excessos, propondo uma nova ética para os seus usos e a sua transmissão, pois, segundo o

autor, "a técnica não é dominação da Natureza: é dominação da relação entre Natureza e

humanidade." Para esta nova humanidade, organizar-se-ia "na técnica uma physis na qual

seu contato com o cosmos se forma de modo novo e diferente do que em povos e famílias."

E talvez aqui ele estivesse diferenciando a experiência cósmica, dos antepassados, do

domínio técnico irreversível com o qual a humanidade se depara. Em suma, em termos

éticos, Benjamin busca no texto, diante da experiência da última guerra que testemunhara

(Primeira Guerra), "restituir a integridade das forças humanas diante da ação histórica" que

se vê sobrepujada pelo espírito da técnica. Para isso, "embriaguez criadora e presença de

espírito total [...] poderiam assegurar à humanidade a matriz de sua história e o controle de

uma técnica que, na falta dessa restituição, corre o risco de voltar-se contra ela e, ao longo

da fascinação estética da guerra, destruí-la." (ROCHLITZ, 2003: 14). Certamente não será

no planetário, apesar de sua beleza, que o homem conseguirá constituir essa nova

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integridade perante a sua catastrófica história, mas nele reside ao menos uma ponte para a

reflexão sobre os nossos limites diante do Universo.

Todos os textos de Rua de mão única merecem atenção*. De certa maneira, pude

contemplar a maioria. Sempre que escrevia sobre algum deles pensava no contexto da

maioria dentro do livro, porque essa obra se abre a um jogo de correspondências. Em

minhas leituras, não necessariamente lineares, as afinidades entre os temas, alcançadas por

meio de saltos entre os apontamentos, bem como pela posterior montagem interpretativa

proposta por cada um deles, nos conduzem a uma nova forma de pensar mais plural e

espontânea. Como se observa, essa forma de pensamento não dispensa o rigor da reflexão

benjaminiana. Prova disto é que muitas das ideias do livro já fazem parte, ou farão parte, do

repertório do autor - da poética de Walter Benjamin. Em outros termos, os apontamentos e

os aforismos de Rua de mão única são o resultado de experiências de reflexão já iniciadas

ou em gestação. No livro, a intensidade dessas experiências alcança um nível estético e

técnico, visto que a aparência de espontaneidade e liberdade - como se tivesse sido escrito

de um dia para o outro - esconde um trabalho com a linguagem e com um estilo só

observável numa leitura atenta e transversal, ou seja, aquela que considere na sua

interpretação, comentário ou crítica o conjunto fragmentado da obra de Benjamin.

Enfim, os textos do livro iluminam uns aos outros; porém, o espaço constelacional

da 'obra' do autor ilumina mais ainda. Rua de mão única é uma constelação de temas, dicas,

desdobramentos de várias ideias que se espraiam - mesmo depois de sua publicação, pois

ele continuou a escrever textos à maneira de Rua de mão única - por todos os escritos de

Benjamin, pois a constelação é a apreensão das estrelas no seu todo visível mas

considerando as conexões entre as irmanadas estrelas.

Mas não considero o livro uma miscelânea de temas ou sobras. Se esses

apontamentos e aforismos forem considerados uma reunião de 'sobras', tal termo não

* Não gostaria de deixar de citar um texto chamado "Brinquedos" (BENJAMIN, 1995: 49-54). Eis aqui a capacidade e a força literárias do autor vindo à tona mais uma vez no colorido descritivo desse texto dividido em quatro partes, e que representa muito a atmosfera de Rua de mão única. Nele são descritos, quase como uma narrativa em quatro atos, brinquedos automáticos (autômatos), cujas personagens, com as situações nas quais estão envolvidas, transcendem a singeleza e a ingenuidade dos brinquedos infantis habituais. São, na verdade, mais do que brinquedos para crianças. São habitantes lúdicos à moda dos burburinhos e dos movimentos incessantes das cidades modernas.

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poderia desta forma ser colocado em níveis vulgares mas numa apreensão epistemológica.

O que se tem, na verdade, é a profanação da sobra e a sua rigorosa ritualização textual. As

melhores representações disso estão nos fragmentos das Passagens intitulados "Teoria do

Conhecimento, Teoria do Progresso". É onde Benjamin reflete sobre os procedimentos em

jogo no seu projetado livro, mas que também, a meu ver, se referem a maior parte de seus

escritos, inclusive a Rua de mão única. Como exemplo, seguem três dos comentários do

próprio autor, em meio a uma miríade de citações colecionadas por ele no referido arquivo

temático:

Este trabalho deve desenvolver ao máximo a arte de citar sem usar aspas. Sua teoria está intimamente ligada à montagem. (BENJAMIN, 2007: 500).

Para que um fragmento do passado seja tocado pela atualidade não pode haver qualquer continuidade entre eles. (BENJAMIN, 2007: 512)

E, por fim, o seguinte comentário, com o qual Rua de mão única possui uma

afinidade eletiva, em torno do qual gira como os anéis planetários de Saturno:

Método deste trabalho: montagem literária. Não tenho nada a dizer. Somente a mostrar. Não surrupiarei coisas valiosas, nem me apropriarei de formulações espirituosas. Porém, os farrapos, os resíduos: não quero inventariá-los, e sim fazer-lhes justiça da única maneira possível: utilizando-os. (BENJAMIN, 2007: 502).

Fazer pensar. Abrir novos caminhos na contramão do dito. Ventilar as janelas pelas

quais os pensamentos atravessam alados. Compor imagens - imagens de pensamento: "Era

como se em sua janela um projetor estivesse instalado e decompusesse a região com feixes

de luz." (BENJAMIN, 1995: 35). Exercitar argumentos livres como um leque:

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[...] é o dom de interpolar no infinitamente pequeno, descobrir para cada intensidade, como extensiva, sua nova plenitude comprimida, em suma tomar cada imagem como se fosse a do leque fechado, que só no desdobramento toma fôlego e, com a nova amplitude, apresenta os traços da pessoa amada em seu interior. (BENJAMIN, 1995: 41).

Estimular a criatividade escritural sob as mutáveis configurações urbanas. Interpolar

as coisas a fim de ensaiar o futuro do presente e o pretérito no presente.

Não se espera outra coisa de um livro que começa sob o signo da paixão por uma

mulher, Asja Lacis; por uma nova esperança, o comunismo e o socialismo. Sob o caos da

cidade, a escrita especulada permanece: "O que afinal, torna os reclames tão superiores à

crítica? Não aquilo que diz a vermelha escrita cursiva elétrica - mas a poça de luz que a

espelha sobre o asfalto." (BENJAMIN, 1995: 55). Em Rua de mão única, persiste o homem

com os seus pensamentos. Ele não se demove deles - do pensamento, de si mesmo. Ele

percorre labirintos. Ele rasga o fio que o prende e o impede de se perder e de ser outro.

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Infância berlinense por volta de 1900: segundo momento literário

"Nunca podemos recuperar totalmente o que foi

esquecido. E talvez seja bom assim. O choque do resgate do passado seria tão destrutivo que, no exato momento, forçosamente deixaríamos de

compreender nossa saudade. Mas é por isso que a compreendemos, e tanto melhor, quanto mais

profundamente jaz em nós o esquecido." (BENJAMIN, 1995: 104-105).

Os textos que compõem Infância berlinense por volta de 1900* estão entre os mais

belos e complexos do escritor Walter Benjamin. Nessas recordações de seu tempo de

criança, encontramos um autor com uma prosa poética e memorialística desestabilizadora

bastante coerente com seu próprio pensamento. Benjamin escreve ao seu estilo, em

fragmentos breves e desconexos e com deslocamentos sem tempos precisos a não ser o foco

principal na infância.

Infância berlinense é um livro póstumo. Na realidade, ele tem origem em pequenos

textos autobiográficos que Walter Benjamin fora convidado a escrever, entre 1931 e 1932,

para uma revista. Os textos nesta publicação estavam sob o título de Crônica berlinense.

Logo depois, entre 1932 e 1934, o autor escreveu um conjunto de 41 textos - traduzidos

para o português -, já intitulado Infância berlinense por volta de 1900, e que se subdividem

em pelo menos duas variantes. Em 1938, Benjamin 'finalizou' a que nos foi legada como a

última versão, cuja tradução de João Barrento pode ser encontrada em Portugal. Nesta

derradeira versão, ele selecionou 30 daqueles primeiros 41 textos, além de ter incluído uma

breve introdução e deslocado dois deles para um apêndice ("O carrossel" e "O despertar do

sexo"). Os manuscritos com essa última revisão foram encontrados na Biblioteca Nacional

de Paris pelo filósofo, e tradutor dos escritos de Benjamin para o italiano, Giorgio

* Três traduções completas para a língua portuguesa, uma no Brasil (Infância em Berlim por volta de 1900; 1. ed. 1987) e duas em Portugal (Infância em Berlim por volta de 1900; 1992; Infância Berlinense: 1900; 2004). Mas apenas a edição de 2004, traduzida por João Barrento, é a tradução da última versão de 1938).

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Agamben. O período de escrita do livro é de seis anos, sem contar o passo iniciado com a

Crônica berlinense (os primeiros excertos sob este título começaram a ser publicados já em

1926 num jornal alemão). Diante do tempo longo de escrita e reescrita, reuniram-se até hoje

pelo menos cinco versões. No decorrer dessas variantes, além de ter diminuído o número de

textos, Benjamin alterou títulos de alguns e cortou trechos de outros. A redação dos

fragmentos, num percurso pelas diversas versões, de acordo com Willi Bolle e com os

trechos que este traduziu (BOLLE, 2000), foi ficando mais concisa; as crônicas levemente

autobiográficas sobre a cidade de Berlim deram lugar às memórias da própria infância -

mas com um viés coletivo - do autor nessa cidade; e a terceira pessoa, embora também com

uma "forma solta e subjetiva", encontra a primeira pessoa reflexiva e poética da posterior

Infância berlinense. Em relação às mudanças na redação, um dos motivos era que

Benjamin não conseguia um editor para publicar o livro - desde o começo considerado

bastante complexo - o que o fez utilizar a força da concisão para torná-lo mais aceitável;

sem retirar, no entanto, a sua profundidade. Em suma, "a forma final dos textos incluídos na

versão de última mão, resultado de um longo processo de revisão, alterações e cortes, trai

claramente o desejo de publicação em livro por parte de Benjamin, depois da recusa de três

editores, que terão achado a estrutura e a natureza do livro 'demasiado complicadas'."

(BENJAMIN, 2004: 276-277). Sintetizando as principais modificações, que podem ser

observadas por meio da comparação entre as traduções brasileira (1987) e portuguesa

(2004), temos o seguinte:

As intervenções vão [...] muitas vezes no sentido da simplificação e mesmo de um certo laconismo narrativo, visível em peças como "Notícia de uma morte", cuja primeira parte, de natureza mais geral, desaparece, para deixar o texto concentrar-se no assunto específico, narrado de forma mais sóbria. O mesmo acontece com os cortes rigorosamente feitos no meio de um texto, para evitar desvios em relação à trama narrativa: por exemplo em "A Mummerehlen", em que foram cortados o autorretrato fotográfico e a lenda chinesa, em "A caixa de costura", que elimina a passagem sobre a figura fantástica, e kafkiana, de Odradek, ou ainda "O anãozinho corcunda" ["O corcundinha"], de que se retirou a passagem sobre os precursores da cinematografia. Outras vezes, as

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intervenções podem ir ao ponto de modificar o sentido original, como acontece com o final de "Um fantasma". No plano estilístico, as modificações afetam sobretudo a macrossintaxe (com a alteração dos parágrafos) e a expressão propriamente dita, com substituições e acrescentos que visam formulações mais rigorosas. (BENJAMIN, 2004: 277).

Mas a realidade é que quanto mais concisos, mais os textos de Benjamin ficam

complexos, adquirindo um caráter enigmático. O que de fato é muito bom para os leitores;

porém, muito complexo para o papel de divulgação e crítica do livro pelos comentadores.

O livro possui características bastante inovadoras ainda hoje. Um dos motivos desta

atualidade é o fato de Benjamin não rejeitar formalmente, isto é, na forma da escrita

(gênero), a fragmentação e as lacunas deixadas pelo tempo e pelo esforço da memória

quando se propôs a escrever um trabalho de recordações.

Com esta lucidez, Walter Benjamin, na forma proposta pelo livro, questiona o

gênero autobiográfico, cuja noção clássica cristaliza a vida e fixa retrospectivamente o

destino. O próprio autor aponta essa nova perspectiva já no prefácio ao livro quando diz

que "os traços biográficos, que se revelam mais na continuidade do que na profundidade da

experiência, recuam completamente para um plano de fundo nestas tentativas."

(BENJAMIN, 2004: 73). Ele propõe com as suas memórias uma nova modalidade de

autoescrita mais do que uma autobiografia, por causa da forma fragmentada e descontínua

por meio da qual realiza o seu trabalho de rememoração.

Não há linearidade na composição do seu livro. Observa-se já numa primeira leitura

que o objetivo dele não foi oferecer uma organicidade para o seu passado. O tempo, como

data, não tem relevância nessa obra. Benjamin não fala em datas em seus textos. Ela só

aparece no título e mesmo assim é 'por volta' de 1900, que precisa ser subentendido pelo

conceito mais amplo de época ou geração - no caso deste livro, sobretudo o século XIX.

Mesmo assim, a fim de tensionar ainda mais o que é narrado, pode-se informar que ele

tinha oito anos na época referida. Fato que ele mesmo apresenta para a referência temporal

ao menos do texto "Um fantasma": "Aconteceu um fim de tarde, tinha eu sete ou oito anos,

em frente da nossa casa de verão em Babelsberg." (BENJAMIN, 2004: 108).

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As memórias de Benjamin não surgem numa vertical ou de maneira hierárquica. As

recordações vão surgindo como o 'fluxo contínuo da vida'. O autor, com lucidez e lealdade

à sua própria condição humana, sabe que a memória não surge perfeita, não é 'como o que

foi' mas o que poderia ter sido a partir do lembrado no presente, dos cacos do presente. Isso

não significa que houve falta de rigor na composição dos textos, como se fosse uma escrita

automática sem um acabamento linguístico e estilístico posterior, e como se os temas

escolhidos pudessem ser quaisquer outros. As várias versões do livro mostram o quanto

Benjamin burilou os textos. Foi, de fato, um dos projetos mais importantes de sua vida.

Mesmo Benjamin não tendo dado uma forma final em livro para os textos, hoje vemos que,

mesmo em manuscrito, Infância berlinense tem uma posição marcante no conjunto de

escritos do autor. Ele próprio já dizia por carta, ao seu amigo Gershom Scholem, que esses

escritos sobreviveriam a essa condição de manuscrito. Pela importância desta obra para ele,

é difícil dizer se a versão de 1938 seria de fato a última, caso ele não tivesse morrido dois

anos depois. Mas compreendo que, se Benjamin guardou essa última versão na Biblioteca

Nacional de Paris, assim como o material do Projeto das Passagens, de alguma maneira ela

era importante para a continuação ou o acabamento da obra.

O que temos no livro é a configuração do significado instável da memória e da

história de vida de cada um. Esquecemos o que não queremos lembrar. Lembramos

justamente o que queríamos esquecer. É nesta instabilidade que Walter Benjamin trabalha.

Como poucos ousam se aventurar na face verdadeira da memória, essa pequena obra de

Benjamin acaba por ainda guardar aspectos bastante relevantes para a autoescrita, isto é,

para a recomposição do que jaz no esquecido.

Walter Benjamin acaba por questionar a concepção usual de infância ideal do

próprio leitor. Nos seus escritos, não se apresenta a dissimulação contínua da vida como um

nascimento-infância-adolescência-maturidade-velhice-morte. Mas do que à procura de uma

infância, que dará sequência a um novo momento, o autor busca uma infância perdida, que

passo a passo desvela para ele não apenas os pequenos prazeres, as felicidades e as

liberdades infantis, mas também as frustrações e os sentimentos dolorosos, os deslizes, as

experiências inacabadas que ainda ressoam no autor. Benjamin empenha-se na busca do

que ainda está presente em si mesmo. Exemplo disto são os momentos do livro em que a

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recordação do passado infantil acaba por ser um encontro com a sua própria condição

presente. Um desses momentos está representado no último parágrafo do texto "Duas

imagens enigmáticas":

Naquela altura, a margem da idade adulta parecia-me estar tão separada da minha pelo rio de muitos anos como aquela margem do canal da qual o canteiro me lançava o seu olhar e que eu, nos passeios pela mão da criada, nunca pude pisar. Mais tarde, quando o caminho já não me era ditado por ninguém e eu também já entendia a "Canção dos cavaleiros", passava por vezes junto ao canteiro do Landwehrkanal. Mas agora ele parecia florir mais raramente. E do nome que outrora ambos tínhamos fixado, ele nada sabia; e também o verso da canção dos cavaleiros, agora que eu já o entendia, nada retinha do sentido que o professor Knoche para ele augurara na aula de canto coral. O túmulo vazio e o ânimo posto à prova - duas imagens enigmáticas cuja solução a vida me continuará a dever. (BENJAMIN, 2004: 90-91).

Temos a impressão - devido à sutileza dos momentos nos quais a sua condição

presente aparece - que o autor tenta compreender a sua condição madura, e

existencialmente em crise, por meio de fatos, objetos e ambientes da infância.

Inicialmente, Benjamin insere a realidade presente em vista de sua infância devido a

um dado externo. Ele não escreveu essas recordações num momento interior harmônico e

socialmente equilibrado. Devo lembrar que as escreveu no exílio (a partir de 1933), pois o

nazismo já cavava fundo as suas raízes na Alemanha, ou seja, o livro foi escrito diante de

uma crise histórica. Não podemos nos esquecer de que o autor era judeu e, como se sabe,

não havia lugar para os judeus na Alemanha. Mesmo depois, já na França - posto que

emigrou para lá - teve que fugir deste país por causa de sua iminente ocupação pelas tropas

nazistas. Além do mais, a dificuldade financeira pela qual passava consumiu-o bastante

socialmente - tendo até pensado na própria morte. Essa situação obrigou-o a viajar

constantemente em busca de um local mais barato para viver. Ao mesmo tempo, teve que

requisitar bolsas de estudos e colaborações livres em jornais e revistas. Como o seu

principal meio de sustento, nos anos trinta, vinha de uma bolsa do Instituto de Pesquisa

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Social, algumas vezes teve de ceder às pressões dessa instituição, que decidia sobre o que

ele deveria escrever, e que ao menos duas vezes se negou a publicar os seus ensaios no

modo inicial em que os havia escrito.

Walter Benjamin tinha consciência, como escritor, da forma que havia escolhido

para o livro de rememorações de sua infância. Em outras palavras, a fragmentação do livro

não foi a simples consequência de uma crise pessoal e histórica, tendo em vista que ele

trabalhou desta forma em boa parte de seus escritos. Um bom exemplo desse procedimento

é a carta que escreveu a Siegfried Kracauer, em 23 de fevereiro de 1927, após o retorno de

sua viagem à União Soviética. Planejando escrever "algo 'abrangente' sobre a cidade de

Moscou", Benjamin explica a Kracauer a maneira como iria expor as suas reflexões no

referido trabalho:

[...] estou planejando escrever algo "abrangente" sobre Moscou. Mas, como é do meu feitio, também esse trabalho vai se fragmentar em notas particularmente breves e desconexas, e, no mais das vezes, o leitor ficará entregue a seus próprios recursos." (BENJAMIN, 1989: 146).

Observemos que o autor contrapõe uma frase adversativa ao termo 'abrangente' -

entre aspas mesmo. Ele entende, portanto, que nada pode ser completamente abrangente.

Nada pode ser apreendido numa completude; nada sequer tem espaço para uma totalidade.

Nesse sentido, entendo que Benjamin aponta no fragmento da carta para a consciência de

sua fragmentação, de sua maneira específica de produzir. Ao lado disso, deve-se observar

que ele também remete à recepção, ao leitor que deveria se esforçar para reconstituir a sua

viagem, para remontar as suas notas esparsas sobre a cidade que tinha experimentado de

forma deambulatória.

Diante das crises histórica e espiritual em torno das quais ele repassava as suas

lembranças, Infância berlinense toma um sentido coletivo e individual, mais do que apenas

individual e autocomplacente, como um tema dessa espécie daria a pensar. Há uma

consideração profunda no livro pelo coletivo, como se Benjamin tivesse falando não só de

si mesmo, mas de todos aqueles que não poderiam retornar a Berlim para tentar reviver

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espacialmente aquilo que viveram num tempo agora perdido. Assim, "o pressuposto de

Benjamin de expor, antes de tudo, um sujeito histórico [coletivo] e não a história de um

indivíduo demonstra que sua estratégia era ter como meta Berlim e o século XIX, e não

constituir a identidade de um outro como a criança Walter Benjamin." (DAMIÃO, 2006:

179). O autor, portanto, segue, a meu ver, em Infância berlinense, o seguinte princípio:

Conhecer a si mesmo significa [...] conhecer o seu século e as condições históricas, sociais e econômicas que fizeram do si o que ele é. Com esse conhecimento, o (auto)biógrafo torna-se historiador e em sua exposição seus contemporâneos podem se conhecer. Daí a expressão "criança do mundo" ou "criança de seu tempo" (Kind seiner Zeit). Nesse sentido, a experiência individual só é interessante ao unir-se ao social e ao histórico. Sem a revelação de si pelas condições do mundo ao redor, há incerteza e desconfiança de que o conhecimento de si mesmo seja possível. (DAMIÃO, 2006: 76).

Nesse sentido, realizando um desvio antiautobiográfico e abrindo as suas memórias

para uma configuração antissubjetivista - isto é, um 'eu' dá lugar a 'nós' ou a vários 'eus' -, o

livro - os livros - também são as imagens da infância de um homem exilado, de um cidadão

alemão que perdeu a sua cidadania, como muitos naquele momento, com tudo o que, nos

âmbitos afetivo, político e social, tal condição pode desencadear no indivíduo e reverberar

num significado coletivo. Por que, de fato, quem daqueles contemporâneos de Benjamin

teve a oportunidade de lembrar de sua infância e escrever sobre ela? Quem possuía a

riqueza de experiência retratada em Infância berlinense? De certa maneira, o fato de

Benjamin não ter publicado o livro em vida, mostra também a sua aproximação de muitos à

época que não conseguiram viver plenamente suas subjetividades, não tendo a oportunidade

de desenvolvê-las por escrito. Se bem que tal oportunidade não vale só para aquele tempo.

Não é à toa que ainda hoje valorizamos, por pouco que seja, os testemunhos daqueles que

em boa parte da vida não tiveram a chance de constituir as suas próprias memórias.*

* Alguns dos textos e livros recentes de Márcio Seligmann-Silva discutem de forma profunda a literatura de testemunho, sobretudo de autores do século XX. Cf.: História, memória, literatura. O testemunho na era das catástrofes (Organização Márcio Seligmann-Silva, Campinas: Editora da Unicamp, 2003).

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As rememorações de Benjamin, apesar de conter o frescor da descoberta infantil e a

fidelidade a alguns temas do primeiro momento da existência, não deixam de aproveitar o

tempo passado para falar da consciência presente. Benjamin, nesses textos, não esquece de

sua contemporânea consciência de classe e da percepção da desigualdade social que apenas

um homem mais maduro conseguiria refletir, mas que a lembrança de uma criança não

conseguiria dizer. Digo isso, porque Walter Benjamin, como se lê em diversas passagens do

livro, foi de classe média alta e burguesa, com todas as facilidades e as liberdades que uma

vivência nessa condição pode trazer. No entanto, a família de Benjamin foi empobrecendo

e ele, extremamente dependente dela e incapaz de dar um rumo à própria vida, acabou por

também chegar a situações extremas, agravadas pelo contexto descrito acima no qual o

autor redigia o livro. Consciente de sua situação presente e relembrando o que o seu

passado burguês não permitira enxergar, Benjamin não se abstém de oferecer também ao

retrato de sua infância a decadência de uma época, de uma família burguesa que

compartilhava da desigualdade como força normal do mundo.

Não podemos esquecer de que temas como a violência, a rua, a miséria, o crime, os

mendigos e as prostitutas também percorrem Infância berlinense. Por isso encontramos

também no livro um caráter classista, ou seja, uma interessante sabotagem mental da

própria classe, e um 'processo de formação de consciência social'. Por exemplo, diz

Benjamin quando pretendia escapar de sua mãe na infância: "[...] naquela época eu não

podia conceber outra forma de revolta que não fosse a sabotagem, e esta obviamente por

experiência própria." (BENJAMIN, 1995: 126). Willi Bolle resume bem o que é mudar de

classe ou simplesmente crescer com consciência social, com uma experiência de vida

perturbada pelas desigualdades gritantes mas mantidas com todo esforço em silêncio,

quando constata que "para o protagonista da Infância berlinense, uma criança de família

abastada, frequentando uma das escolas de elite, a palavra 'classe' se referia à sala de aula e

aos colegas; só bem mais tarde se revestiu do sentido de diferenciação social." (BOLLE,

2000: 337-338). Depreendemos que de fato Benjamin "não procura recuperar o seu

passado, mas compreendê-lo: condensá-lo nas suas formas espaciais, nas suas estruturas

premonitórias." (SONTAG, 1992: 13-14).

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As experiências da infância foram vividas, não sendo possível reviver as suas

sensações tal como foram. Esta constatação, por parte de Benjamin, é mostrada claramente

num texto não incluído na última versão, chamado "O jogo das letras", quando ele

descobre: "Assim, posso sonhar como no passado aprendi a andar. Mas isso de nada

adianta. Hoje sei andar; porém, nunca mais poderei tornar a aprendê-lo." (BENJAMIN,

1995: 105). A única possibilidade, neste caso, é a compreensão do que aconteceu em forma

de sonho, que se relaciona muito à capacidade de lembrar: "A mão pode ainda sonhar com

essa manipulação [das letras no filete, onde se ordenavam como uma palavra], mas nunca

mais poderá despertar para realizá-la de fato." (BENJAMIN, 1995: 105). Benjamin,

portanto, se afasta de qualquer idealização, empatia e ilusão em referência ao passado.

Qualquer tentativa de tornar orgânica as suas recordações não terá sucesso. As lembranças

de Benjamin, tal como configuradas no livro, não possuem rigorosamente uma densidade

retrospectiva, isto é, não possuem a pretensão ilusória de relatá-las como foram. Ele, na

verdade, também está falando sobre o futuro, e o passado carrega rastros que levam a um

profético futuro que entrevê atravessado em suas recordações. Não é à toa que constata, no

seu pequeno prefácio à Infância berlinense, o seguinte: "[...] as imagens da minha infância

na grande cidade talvez estejam predestinadas, no seu núcleo mais íntimo, a antecipar

experiências históricas posteriores." (BENJAMIN, 2004: 74). Notemos ainda nesse

fragmento a maneira como Benjamin consegue enovelar as suas memórias num todo

histórico.

É preciso reiterar que o profético não é estranho a Benjamin. Em diversos textos,

parece entrever a sua condição futura, sem dúvida 'inspirado' pela crise histórica e pessoal

que vivenciava. Nesta espécie de jogo entre futuro, passado e presente, apenas o

inacabamento consegue alcançar a experiência, porque justamente é o inacabado, e o que se

faz dele, que acaba por questionar aquele jogo temporal, cujo fundo é linear e superficial

para abarcar a experiência humana em toda a sua profundidade. Conscientes disso, é

preciso depreender minimamente, no fim de uma primeira leitura de Infância berlinense,

que esse inacabamento, cuja caótica composição poderia nos levar a uma interpretação sem

critério (sem crise), não é o fruto estrito de uma crise de pensamento - pessoal do autor ou

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histórica da Europa e da Alemanha - mas sim consequência da condição inconstante e em

saltos de nossas próprias histórias recordadas.

Passo a seguir a uma análise de alguns textos de Infância berlinense. Espero que as

ideias já estabelecidas acima venham à tona durante esse processo, e que os textos

selecionados possam relampejar naqueles que ficarem de fora. Utilizarei principalmente -

mas não somente - a última versão que nos chegou em língua portuguesa pelo tradutor João

Barrento. Caso me aproprie de um dos nove textos não incluídos na última versão por

Walter Benjamin, irei utilizar a tradução brasileira, preterindo aqueles traduzidos por

Barrento no aparato crítico da edição portuguesa.

Antes de analisar propriamente alguns dos textos do livro, cabe notar uma ausência

na última versão de Infância berlinense. Trata-se da exclusão da dedicatória do livro a

Stefan, único filho de Walter Benjamin ("Ao meu querido Stefan"). No meu entender, tal

retirada aponta para uma mudança essencial na concepção do livro. Lembro que a

dedicatória aparece nas primeiras versões, após a qual temos uma epígrafe. Esta, todavia,

manteve-se na última versão que conhecemos, explicando a minha hipótese inicial de

mudança de perspectiva ou autoconsciência do autor sobre o que realmente tratava o livro

em profundidade. Isso porque, por um lado, se a dedicatória apontava para a transmissão

positiva e nostálgica da infância geracional de Benjamin para o seu filho, a epígrafe, ao

contrário, traz à baila uma experiência adulta do autor, afirmando de forma enviesada que

Infância berlinense é também um acerto de contas dele com seu espírito presente, no

entanto, em vistas do que aconteceu na sua rica experiência infantil.

Talvez ainda não esteja claro o motivo por que enfatizo a epígrafe. Mas chegamos a

um ponto importante quando ficamos sabendo que os versos que a compõem, a saber, "ó

coluna da vitória/ tostada pelo açúcar hibernal/ dos dias da infância" têm como autoria o

próprio Benjamin. Tais versos são um dos resultados escriturais das experiências dele com

o haxixe. Assim nos esclarece Gershom Scholem, um amigo de longa data do autor: "Como

descobri mais tarde, ele o anotara numa espécie de poema surrealista, ao sair de um êxtase

provocado por haxixe." (SCHOLEM, 2008: 188).

O fato é que Benjamin preteriu a dedicatória a seu filho mas manteve a sua epígrafe

de próprio punho. Compreendo que esse deslocamento acaba reforçando uma das óticas

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principais do livro, ou seja, a antecipação da experiência presente do autor, com tudo o que

ela carrega de riqueza e malogro. Não ao acaso, como já apontei, em variados momentos de

Infância berlinense, Benjamin acaba puxando o fio narrativo para o seu presente, como se

aquela dada situação de sua infância desencadeasse a compreensão da complexidade de sua

experiência contemporânea ou de sua personalidade já desenvolvida.

Um espaço: Loggias

O texto que abre Infância berlinense - sempre de acordo com a versão de 1938 -

chama-se no original alemão Loggien. Estas são varandas, características da arquitetura

italiana, suportadas por colunas e situadas "sobre os pátios nos bairros da zona ocidental de

Berlim" (BENJAMIN, 2004: 74). Pela descrição e ambientação desse local no texto

referido, as Loggias são um marco arquitetural da vida burguesa do autor, em torno das

quais vicejou um dia a dia movimentado e tensionado pelos os olhos de uma criança

bastante observadora.

Mas por que esse texto abre o livro? Benjamin nos responde quando, em carta a dois

de seus amigos, assinala a importância de "Loggias". Numa missiva a Scholem, de julho de

1933, ele diz que essa rememoração é o "retrato mais exato que alguma vez" fez de si

próprio. (BENJAMIN, 2004: 274). A Gretel Adorno (esposa de Adorno) reafirma que vê

em "Varandas" uma "espécie de autorretrato". Identifico aqui, mais uma vez, o movimento

temporal de Benjamin de, por meio de narrativas que remetem a sua infância, desdobrar

suas questões contemporâneas, a fim de desestabilizar quaisquer tentativas de edulcorar as

rememorações de suas primeiras imagens complexas do mundo. É o que mostra essa

passagem do mesmo texto referido: "Creio que havia ainda um prolongamento desse ar

[desses pátios] nos vinhedos de Capri onde um dia abracei a amada" - ou seja, a letã Asja

Lacis. (BENJAMIN, 2004: 74).

Pode-se pensar se, apesar da poeticidade que percorre os textos de Infância

berlinense, Benjamin não teria dado um tom mais negativo às memórias. Isso supostamente

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aconteceria devido a sua situação de exilado que, após uma infância aconchegante,

"prescindiu mais tarde do aconchego e da proteção que foram apanágio da sua infância",

como diz o final de seu prefácio ao livro. Mas a realidade é que Benjamin, como podemos

observar pela sua concepção de tempo e história bastante radical e performática - ou seja,

com objetivos expressivos -, não foi um autor ingênuo. Ele sabia da impossibilidade de

reviver a infância pela linguagem quando o que foi já não é, e quando o que foi apenas

poderá ser revivido por uma atualização a partir do que se é no agora. E a verdade, ou a

falta dela, para Benjamin naquele momento era a sua situação de exilado e quase apátrida.

Nesse sentido, lembrar daquelas varandas da infância é envolvê-las não exatamente a partir

de um pathos do presente, isto é, uma empatia sem a distância necessária, mas comovê-las

com a brisa melancólica do adulto que, contemporaneamente, como ele diz no final de

"Varandas", "já não consegue viver em lugar nenhum". (BENJAMIN, 2004: 76).

"As varandas mudaram menos desde a minha infância do que as outras divisões",

constata Benjamin no final do texto após descrever de forma exuberante o entorno das

Loggias, com seus pátios espaçosos e cheios de burburinhos. Lá lhe interessa a

"inabitabilidade" das Loggias, o seu congelamento vivido pelo tempo, que por isso mesmo

lhe permite reviver transitoriamente esses espaços.

O tempo envelhecia nestes aposentos que davam para os pátios. Era por isso que a manhã, quando eu a encontrava na nossa varanda, parecia ser manhã há mais tempo e era mais igual a si mesma do que em qualquer outro lugar. Aqui, eu nunca conseguia esperar por ela, era sempre ela a esperar por mim. Estava sempre já lá, como que fora de moda, quando eu finalmente dava por ela aí. (BENJAMIN, 2004: 75).

Walter Benjamin, como já disse, gostava de viajar muito, bem como de escrever

após as deambulações pelas cidades que conhecia ou reconhecia. Todavia, ele poderia

voltar quando quisesse para os locais donde partia - excetuando os momentos nos quais ele

precisou permanecer em certos locais por causa de suas crises financeiras, aliás constantes,

caso, por exemplo, da permanência em Ibiza em 1933. No momento em que já não podia

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mais voltar, movimentar-se, a permanência e a concretude desses lugares, como Berlim,

passam a lhe interessar mais. Tais como essas loggias que, transformadas em mausoléus,

acabam por se destinar a habitar a memória daquele cuja única morada é agora a escrita -

como gesto político e como condição psicológica. Assim podemos resgatar uma frase de

Adorno, que também pode ser remetida a Benjamin, mostrando semelhante experiência

com a escrita, embora menos trágica, pois, como sabemos, Adorno conseguiu fugir a

tempo, nos conturbados anos 30, para os Estados Unidos: "Para quem não tem mais pátria,

é bem possível que o escrever se torne sua morada." (ADORNO apud SELIGMANN-

SILVA, 2009: 85). Esta frase resume bem as condições precárias, em termos morais, da

escrita de Infância berlinense. Ao mesmo tempo, entendemos um pouco o cuidado e o

esmero, com várias revisões, que Benjamin se propôs nesse trabalho que foi a sua morada

por tanto tempo.

Um objeto: o Telefone

Em "O telefone", um objeto é digno de suscitar as lembranças de Walter Benjamin.

Deslocando a sua atenção para esse aparelho, que na sua infância era uma novidade

tecnológica, o autor contribui para construir uma forma de memorabilia, em que coisas

cotidianas são tidas em alta conta no estopim de suas memórias afetivas.

Mas não nos enganemos. O telefone, quando de supetão adentra o seio familiar

burguês, é um estrangeiro para o menino Benjamin. Sua relação com esse objeto de

comunicação ao longo do texto não é de empatia mas de desconfiança, embora curiosa.

Seus ruídos preenchiam de tempos em tempos a casa - espaçosa e labiríntica - não só

devido ao toque do aparelho, mas também por causa das conversas, às vezes raivosas, que

sobretudo o seu pai se entregava ao telefone. Desta forma, o telefone passou a ocupar um

espaço e uma função moderna em meio a objetos antigos e esquecidos. A partir dessa

ocupação, os habitantes da casa, como usuários do novo aparelho, adquirem também um

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novo hábito; eles eram encontrados constantemente ameaçando e fazendo imprecações

contra os serviços de reclamações.

O telefone provocou um redemoinho nos costumes da família. Diz Benjamin:

"Muitos poucos dos que usam o aparelho conhecem a devastação que o seu aparecimento

causou no seio das famílias." Pela primeira vez, com facilidade, mas nem tanto, as grandes

casas, privadas dos impactos do exterior, poderiam receber ou fazer contato mediado por

um aparelho, cuja disposição espacial é privada, porém, seus sinais são públicos. E muitas

vezes não se podia evitar a interrupção externa, como vemos no seguinte fragmento: "O

toque que soava entre as duas e as quatro, sempre que um colega meu desejava falar

comigo, era um sinal de alarme que punha em perigo, não apenas a sesta dos meus pais,

mas também a época em pleno centro da qual eles se lhe entregavam." (BENJAMIN, 2004:

79).

Identifico dois momentos nesse texto. No primeiro, Benjamin conduz a narração a

fim de oferecer ao leitor a percepção de estranhamento com a nova ocupação que o telefone

trazia para a sua casa. Nesse instante, há uma das mais belas imagens de Infância

berlinense. É quando Benjamin, ao contemplar seu pai ao telefone, vislumbra a mudança de

comportamento deste de forma afetuosa mas ao mesmo tempo tensa, porque, no final do

trecho, seu pai parece se envolver mais do que o permitido com a voz emitida do aparelho

moderno. Conta-nos o autor no final do penúltimo parágrafo de "O telefone":

Mas as suas verdadeiras orgias vinham-lhe da manivela, à qual se entregava durante minutos, até se esquecer de si. A sua mão transformava-se então num dervixe dominado pelo transe. O meu coração palpitava, tinha a certeza de que nesses casos a funcionária corria sérios riscos de apanhar uma bofetada pelo seu desleixo. (BENJAMIN, 2004: 80).

No segundo momento, já no final, Benjamin se volta para a sua própria relação com

o telefone. Mas o aparelho já passa a fazer parte da casa. Parece até meio jogado num

canto, como se, já compreendido como utilidade fundamental para novos tempos, não se

devesse lhe dar muita atenção. É o que se pode observar pelo tom do início do último

parágrafo:

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Nesse tempo, o telefone lá estava, desfigurado e enjeitado, entre o cesto da roupa suja e o gasômetro, num canto do corredor das traseiras, a partir do qual o seu toque ampliava os sobressaltos da casa de Berlim. (BENJAMIN, 2004: 80).

Porém, de fato para a criança, que até então apenas observava ao redor, o telefone

era uma trincheira por ainda se conquistar. O aparelho, ainda pesado e "desconfortável"

outrora, exigia um espaço físico mas também mental do garoto. É apontando para isso que

o texto fecha, mostrando uma criança tímida a contornar os desafios de um novo tempo.

Tempo em que o despertador da memória é o telefone:

E quando eu, a muito custo senhor dos meus sentidos, lá chegava depois de muito tatear ao longo daquele tubo escuro para pôr fim à rebelião, arrancando os dois auscultadores, pesados como halteres, e metendo a cabeça entre eles, ficava sem apelo nem agravo entregue à voz que falava do outro lado. Nada podia atenuar o poder com que ela atuava sobre mim. Impotente, deixava que ela me anulasse a noção do tempo, dos meus propósitos e deveres. E tal como o medium obedece à voz que, do lado de lá, o domina, eu rendia-me à primeira proposta que me chegava através do telefone. (BENJAMIN, 2004: 80).

Um animal: borboletas

A rememoração "Caça às borboletas" marca a aproximação de um novo tipo de

'objeto': os animais. É a primeira vez no livro que Walter Benjamin elege como reflexão um

animal (a outra vez será em "A lontra").

Aqui o autor está diante de uma memória desafiadora. Como 'coisas' orgânicas, as

borboletas, por não utilizarem a linguagem falada, exigem um novo tipo de aproximação e

de contemplação atuantes. Atuante porque, como veremos, Benjamin não se contenta em

apenas observá-las.

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No começo do texto, ele nos diz que suas "caçadas ardentes" eram recordadas por

meio de uma caixa, com uma coleção de borboletas, pendurada no quarto de sua casa de

veraneio. Portanto, apesar de mais adiante lembrar das experiências de caçada, as

borboletas foram primeiro apreendidas como naturezas-mortas penduradas na parede. Por

outro lado, é essa mesma caixa que, à maneira de Marcel Proust, provoca o estopim de sua

convivência com as borboletas como caçador.

Ainda no final do primeiro parágrafo, Benjamin acentua o espírito de aventura das

caçadas que o levavam

para longe dos caminhos bem arranjados do jardim, para brenhas onde, impotente, enfrentava as conjurações do vento e dos cheiros, da folhagem e do sol, que provavelmente orientavam o voo das borboletas. (BENJAMIN, 2004: 80).

Observemos que nessa passagem Benjamin não oferece uma visão edulcorada das

borboletas, mas as descreve como seres que possibilitam a aventura e o encontro com o

desconhecido.

No seu esvoaçar, as borboletas, não se entregando facilmente às mãos e ao domínio,

desencadeiam no narrador percepções e reações estranhas ao espírito predador da caça. Se

facilmente o caçador "poderia apanhar" as borboletas, mas não o fazia, era porque a sua

relação com esses seres transcendia o simples domínio para compor uma coleção. Era então

a linguagem das borboletas que fascinava o autor. O silêncio gestual desses insetos

desencadeava-lhe um verdadeiro devir-borboleta. Devir no sentido de se tornar semelhante

a ou se mimetizar em algo. Nessa situação, em que a fala como expressão é uma queda, o

narrador carece de se "dissolver em luz e ar" a fim de poder se "aproximar e dominar a

presa". (BENJAMIN, 2004: 81).

Mas como dominar uma presa tão próximo dela? Benjamin nos conta a seguir que

realmente não era possível se aproximar tanto se o objetivo fosse apenas capturar a

borboleta. Ou era a borboleta como presa, ou era a perda da condição humana, dissolvida

em seu devir-borboleta:

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[...] quanto mais eu me confundia com o animal em todas as minhas fibras, quanto mais eu me tornava borboleta no meu íntimo, tanto mais aquela borboleta se tornava humana em tudo o que fazia, até que, finalmente, era como se a sua captura fosse o único preço que me permitia recuperar a minha condição humana. (BENJAMIN, 2004: 81).

Da caçada gestual ao acampamento, Benjamin de forma melancólica constata o

estado do terreno onde, percorrido ao longo da caçada, o caçador deixara ervas e flores

partidas e pisadas. Empenhando o seu próprio corpo, sugado até a alma, o caçador retorna

em meio a "destruição, insensibilidade e violência". E ainda "era assaltado pelo espírito

daquele que está destinado a morrer", ou seja, pela borboleta que "assustada lá continuava,

a tremer e apesar disso graciosa, numa dobra da rede."

No final, Benjamin, mesmo querendo se afastar de Proust - e, de fato, se afasta em

muitos pontos específicos -, mais uma vez parece ter um movimento de memória

topográfica - mas não de temporalidade, já que Benjamin também busca no passado a

antecipação do futuro - semelhante ao do autor francês. Como a emblemática Combray de

Proust, o autor lembra que o lugar da casa de verão, em torno da qual aconteciam as

caçadas, chamava-se Brauhausberg (monte de fábrica de cerveja), e que ficava próximo à

cidade de Potsdam (no leste da Alemanha e próxima à Berlim). O seguinte trecho parece

comprovar essa suave afinidade eletiva:

O ar em que aquela borboleta voltejava está hoje totalmente impregnado de uma palavra que desde há decênios não me passa pelos ouvidos nem pelos lábios. Conservou aquele lado insondável com que os nomes da infância se apresentam aos adultos. O longo tempo de silenciamento transfigurou-as. É assim que vibra, no ar cheio de borboletas, a palavra "Brauhausberg". A nossa casa de verão ficava no Brauhausberg, perto de Potsdam. Mas o nome perdeu toda a pesadez, já nada contém que se relacione com uma fábrica de cerveja, é quando muito um monte envolvido no azul, e que no verão se erguia para nos receber, a mim e aos meus pais. (BENJAMIN, 2004: 81).

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Sabendo o quanto Walter Benjamin era íntimo da obra de Proust - foi seu crítico

contemporâneo e tradutor de alguns volumes de Em busca do tempo perdido - podemos

dizer que uma afinidade eletiva é possível entre os dois autores, embora eles naturalmente

não tivessem os mesmos objetivos. Daí a voltagem do trecho que citei, que parece apontar

para um movimento de toda a Infância berlinense, no que se refere à construção da

memória.

A referência ao nome do lugar onde se localizava a casa de verão abre a última parte

do texto "Caça às borboletas". Nesse momento ocorrem ênfases mais espaciais. O último

período é singular, porque o narrador, ao novamente reafirmar o azul do céu de Potsdam,

espacializa esta região junto com as esvoaçantes borboletas - que ele faz questão de nomear

pelas espécies - em "brilhantes esmaltes de Limoges". E por fim ainda vem à tona, como

pano de fundo desta paisagem, recortadas sobre "fundo azul escuro, as ameias e as

muralhas de Jerusalém." Desta forma, Benjamin, após o desencadeamento da lembrança

das caçadas, ainda tem tempo de no final do texto compor um quadro com os motivos

principais revolvidos em passagens anteriores. E é preciso não esquecer, em relação ao

final, da simbologia de Jerusalém, última palavra do texto, para um autor judeu que

constantemente foi incentivado por cartas pelo seu amigo Scholem a aprender hebraico e

por fim emigrar para aquela cidade.

Diria, com os pontos ressaltados acima, que "Caça às borboletas" possui quatro

momentos ou quadros narrativos, com suas respectivas simbologias. De início, temos a

caixa do herborista, cujo interior organiza uma coleção de borboletas. A disposição desses

seres como naturezas-mortas e sem corporeidade configuram a memória das borboletas

como caçada. Elas são dispostas na caixa após um tratamento no qual éter, algodão,

alfinetes de cabeças coloridas e pinças têm lugar cativo nas mãos do caçador. Com esse

tratamento, os objetos de vitória da caça podem se perpetuar agora como inscrição

bidimensional na parede do quarto. Esse começo do texto é o fim da borboleta como

tridimensionalidade, liberdade e natureza, embora seja justamente o estopim para a

memória do jovem caçador.

No segundo parágrafo, sendo de fato o início das primeiras imagens da caça, as

borboletas se apresentam em toda a sua potência de movimento. Liberdade e astúcia fazem

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parte desse quadro onde Benjamin se fascina com o batimento e a oscilação das asas dos

insetos. É o momento em que o autor parece se desligar e se envolver com a linguagem das

borboletas e das flores, posto que estas estão irmanadas no quadro. O ápice disso é o final

do segundo parágrafo quando, como num rito de iniciação, já iniciado na verdade no

começo da mesma parte, o autor diz que "quanto à língua estranha em que aquela borboleta

e as flores se tinham entendido diante dos seus olhos, agora também ele tinha aprendido

algumas das suas leis." (BENJAMIN, 2004: 81).

Desvios, hesitações e estremecimentos preparam a cena seguinte. Nesta se dá o

clímax do texto. É o devir-borboleta em que o autor confunde-se com o animal em todas as

suas fibras, provocando uma interessante tensão interior, bem como um questionamento da

relação animal-humano estabelecida até então.

O último parágrafo introduz o quarto quadro. A memória de Benjamin reconstitui

como 'nome' o espaço dos acontecimentos. Como estranhamento, a palavra "Brauhausberg"

surge impregnada do mesmo ar em que as borboletas voltejavam palpáveis e

tridimensionais. Depois de tanto tempo de silêncio, o nome do lugar onde ficava a casa de

verão torna-se especial, para não dizer espacial. Na distância do tempo, as imagens

ressurgem sem o peso de outrora. Eis que a Potsdam próxima àquele lugar das caçadas se

destaca num movimento imagístico pictural e bidimensional. Potsdam é referenciada de

novo mas inserida como pintura em brilhantes porcelanas de Limoges. O lugar de sua

infância atinge um novo patamar de espacialidade. Ele forma com as borboletas e as ameias

e muralhas de Jerusalém uma composição. Esta se divide entre um primeiro plano de ar

azul pontilhado por borboletas e uma perspectiva em que se recorta a concretude das

ameias e muralhas de Jerusalém. Paisagem que seria idílica se não se seguisse à descoberta

da 'psique' das aparentemente simples e delicadas borboletas.

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Uma abstração concretizada: cores

O texto "As cores" possui um movimento semelhante a "Caça às borboletas". No

entanto, naquele texto o objeto de transformação envolvem as cores.

As cores são uma habilidade abstrata e virtual do homem. Num texto de 1926

chamado "Visão do livro infantil", afirma o próprio autor: "[...] o corpo humano não é

capaz de produzir a cor. Ele não corresponde a ela em sentido criativo, mas sim perceptivo:

através do olho que reverbera em cores." (BENJAMIN, 2002: 78). Como sabemos, só há

uma luz branca, que, refratada, compõe as diversas tonalidades. Em "As cores",

observamos Benjamin lidar com essa abstração de forma muito lúdica mas ao mesmo

tempo transformadora da subjetividade do autor.

Ele começa chamando atenção para um pavilhão no jardim de sua casa que, apesar

de abandonado e carcomido, guardava uma experiência com as cores, cujos diferentes tons

eram percebidos através dos vidros das janelas. Percorrendo o pavilhão pela sequência

destas, Benjamin experimentava de forma táctil - uma vez que no percurso tocava de vidro

em vidro - a paisagem ganhando cores distintas pelo enquadramento dos vidros. Ora eram

tons flamejantes, ora empoeirados, ora mortiços, ora luxuriantes.

Como habitualmente realiza em seus escritos, Benjamin sobrepõe imagens sem dar

tempo ao leitor de despertar para respirar. Ou justamente ele interpõe uma imagem para

passar à seguinte. É nesse sentido que a experiência com as janelas coloridas faz lembrá-lo

de quando pintava uma aquarela, com as coisas abrindo-lhe assim que as acometia com a

conhecida "nuvem úmida" desse tipo de técnica de pintura. Diz o autor: "Acontecia o

mesmo com minhas aquarelas, onde as coisas me abriam seu regaço tão logo as tocava com

uma nuvem úmida." (BENJAMIN, 1995: 101).

A experiência seguinte com as cores se refere às bolhas de sabão. Da mesma forma

que a luz branca atravessa por refração um cristal triangular, que acaba por exteriorizar as

diversas cores do espectro, Benjamin atualiza como suporte dessa experiência as cúpulas

das bolhas de sabão. Temos aqui o ápice do texto. É o movimento do devir-cor de Walter

Benjamin. Ele nos narra o seguinte: "Eu viajava dentro delas pela sala e juntava-me ao jogo

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de cores das cúpulas até elas se desfazerem." (BENJAMIN, 2004: 113). E partir daqui o

autor faz uma ponte para a sua relação com as cores em outros suportes: "Olhando para o

céu, para uma joia ou para um livro, perdia-me nas cores. As crianças são suas presas fáceis

por todos os caminhos." (BENJAMIN, 2004: 113).

Na parte final do texto, Benjamin une as cores de pacotes de chocolate de bolso -

aliás, formato novo para aquele tempo - ao seu sabor, tensionando a sua subjetividade. Ele

nos descreve os detalhes dos pacotinhos que guardavam os chocolates e eram "dispostos em

cruz e com cada tablette embrulhada num papel de prata de cor diferente". E ainda diz que

"a pequena obra, segura por um fio grosso dourado, reluzia em tons de verde e ouro, azul e

laranja, vermelho e prata, e nunca havia duas cores iguais lado a lado". (BENJAMIN, 2004:

113).

A partir daqui temos a experiência derradeira do texto. Observo no fragmento a

seguir uma tensão olho-mundo, tanto o olho da alma, quanto o olho mecânico e físico:

"Vencendo esse cintilante obstáculo, aquelas cores irromperam um dia sobre mim, e ainda

sinto a doçura com que meu olhar então se saciou." (BENJAMIN, 1995: 101). Neste

instante, o olhar encontra a boca. Dois sentidos dialogam, saciam-se, misturam-se como

num experimento infantil. Mas a experiência vai além. Ela acaba envolvendo um

arrebatamento do narrador. Doces, cores, coração, língua e olhos se unem a fim de que um

"senso superior" prevaleça a golpes nessa experiência de percepção do sabor cativando o

saber da memória. Assim compreendo a passagem seguinte, que sintetiza a pujança quase

física das cores para Benjamin: "Era a doçura do chocolate com que as cores iam se

desfazer mais em meu coração que em minha língua." (BENJAMIN, 1995: 101).

Por fim, cabe lembrar que, embora Benjamin parta de uma abstração (cores), ele

procura plasmá-las em algo fenomenal ou físico. Faz as cores atuarem nos objetos e nas

coisas do mundo. Nesse sentido, a cor nesse texto pode ser interpretada como potência,

porém, apenas plenamente realizada se atravessada por suportes 'materiais' - janelas,

bolhas, céu, joia, livro, papel de estanho - captados pela testemunha ocular, passional e

livre representada pela criança.

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O ato da linguagem, a linguagem do ato

Antes de avançar para a análise de um último texto de Infância berlinense,

intitulado "A Mummerehlen", gostaria de realizar um desvio a fim de chamar a atenção

para uma carta de Walter Benjamin. Ela foi escrita para o seu amigo Gershom Scholem em

28 de fevereiro de 1933. Nela, Benjamin nos informa algo muito importante para essa

dissertação, a saber, a origem de uma das faces de sua teoria da linguagem estaria em

Infância berlinense. Ele diz na carta que "apesar das condições adversas" - lembremos de

sua condição de emigrado, bem como das condições políticas e econômicas na época -

conseguira "elaborar uma nova teoria da linguagem - abrangendo quatro pequenas páginas

manuscritas". E logo adiante, ainda na mesma carta, observa que "elas foram escritas

durante os estudos para o primeiro texto da Infância berlinense". (BENJAMIN;

SCHOLEM, 1993: 45). Não sabemos qual foi o primeiro texto escrito. Scholem (1993: 47,

nota 7) faz referência aos apontamentos "Tiergarten" e "Um anjo de Natal" - este, de fato, o

primeiro texto publicado. Porém, não fica clara a relação, nem mesmo para Scholem, dos

textos aludidos com a teoria da linguagem de Benjamin.

Mas precisamos avançar primeiro na referência que Benjamin faz na carta a uma

nova teoria da linguagem. O próprio Scholem nos esclarece, em nota, que o texto sobre esta

teoria seria provavelmente "Teoria das semelhanças" ou "Sobre a capacidade mimética".

Na verdade, os dois textos são quase iguais, mas o segundo é uma reescrita do primeiro -

atitude não estranha ao autor, que reescreveu vários de seus escritos. Importante ressaltar

que esses textos são um dos pilares da defesa da teoria da linguagem do autor. O fato de

eles estarem ligados ao livro aqui analisado interessa bastante, mesmo se não sabemos qual

dos textos da Infância berlinense especificamente Benjamin se referia.

Registrei que falo de 'um' dos textos sobre a teoria da linguagem do autor. É porque

ele possui outros também muito importantes para compreender essa área de estudo em seu

pensamento. Caso de "Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homen", "Dois

poemas de Friedrich Hölderlin" e "A tarefa/renúncia do tradutor". Um último texto, que

passa em revista as teorias da linguagem daquele tempo, isto é, anteriores a 1935, é

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"Problemas da Sociologia da Linguagem". Basicamente são textos que se fundam -

segundo as ideias de uma importante apresentação de seus escritos reunidos na França

(ROCHLITZ, 2000: 23) -, sobre uma dicotomia fundamental, que opõe as funções de

comunicação, concebidas como utilitárias e redutoras, e uma função que seria central para a

linguagem, a saber, aquela que a coloca como a reveladora da essência do homem pelo

verbo. Segundo essa teoria, o destino dessa linguagem não seria um outro homem, mas

Deus. Ao lado disso, o verbo do poeta e a prosa do escritor, que nomeiam as coisas em sua

verdade, seriam uma forma autêntica de linguagem após o ato adâmico de nomeação.

Aquele verbo, aliás, renovaria, segundo o autor, este ato original. Daí a importância capital

da literatura na obra de Benjamin, bem como o valor que ele oferece à leitura, à escrita e à

interpretação.

Mas o que importa mesmo especificamente para esse trabalho, considerando de

forma global as ideias acima, é a relação entre os textos referidos na carta, o livro analisado

e o conceito de filosofia em ato. Isso porque creio que a teoria da linguagem mais tardia de

Benjamin, ou seja, a relacionada a "Teoria das semelhanças" e "Sobre a capacidade

mimética" de fato está presente como uma central de forças em Infância berlinense. Isso

contribui para que o livro esteja no centro da hipótese da filosofia em ato concebida pela

dissertação.

Se compararmos os textos "As cores", "Caçando borboletas" e "A Mummerehlen",

fica claro que neles há a presença da tese dos textos sobre a linguagem referidos na carta.

Desde já esclareço que esses novos escritos tardios acrescentam alguns dados à teoria da

linguagem de Benjamin. Se os primeiros possuíam um tom mais metafísico e teológico,

para não dizer idealista, os últimos trazem uma concepção mais materialista da linguagem.

A ideia geral contida nesses textos de que o homem teria uma necessidade mimética de se

tornar semelhante ao seu entorno desde os tempos primitivos - vide a importância para o

autor da onomatopeia, por um lado, e da leitura dos astros e das mãos, por outro -, bem

como a importância não instrumental atribuída a essas ações são muito importantes para a

defesa da noção de filosofia em ato.

Não é à toa que Walter Benjamin se inspira para essa teoria nos textos realizados

para Infância berlinense. Sabemos que esse momento da existência do homem é onde ele

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mais cultua a sua faculdade de mimetizar o ambiente, os homens, os objetos e os animais. E

ele o faz de forma muito constante e repetitiva, pois o lúdico é o desencadeador principal

do gesto de se tornar semelhante a algo ou a alguém. Nesse sentido, com os textos "As

cores" e "Caçando borboletas" Benjamin leva ao limite a capacidade de se tornar

semelhante. Daí que as experiências do devir-borboleta e do devir-cor podem ser

interpretadas como importantes iniciações nessas relações miméticas com o mundo.

Na verdade, é preciso enfatizar que Infância berlinense em si possui uma relação

íntima com a linguagem que já contribui num primeiro momento para a leitura acima. Tem-

se nesse livro um afeto mágico com a linguagem. É a descoberta da criança, já com o olhar

cuidadoso do adulto, como escritor, dos meandros e das sutilezas da linguagem.

Hesitações com os sentidos das palavras-títulos marcam os textos do livro. Entre

estes temos: "Rua de Steglitz, esquina com a rua de Genthin", "Mercado", "Blumeshof 12",

"A Mummerehlen", "A caixa de costura" e "Macacada" ("Affentheater"). No entanto,

aquelas confusões são na verdade motivos para explorar de forma lúdica, mas também

enigmática, esse novo mundo da linguagem, não sendo um motivo de censura para a

criança. Por exemplo, o último texto citado, "Macacada", tem em seu começo uma

passagem que comprova uma recepção positiva dessas palavras enigmáticas e cheias de

significados futuros. Como se sabe, pelas notas dos tradutores, "Affentheater", ao pé da

letra, significa "teatro de macacos", porém, no seu real significado remete aos sentidos de

"situação ridícula", "farsa", "grotesco". Benjamin, lidando com essa memória linguística

infantil, formula a seguinte reflexão no começo do texto: "Affentheater - essa palavra

significa para os adultos algo grotesco. Essa característica lhe faltava quando a ouvi pela

primeira vez. Era ainda pequeno. O fato de macacos no palco ser uma raridade fazia parte

dessa ideia insólita: macacos no palco é coisa que não faz sentido. A palavra teatro me

atravessava o coração com um toque de clarim. A fantasia chegava." (BENJAMIN, 1995:

106). Como se observa, na falta de maiores esclarecimentos, a paragem da criança é a

magia e a fantasia desencadeadas pela linguagem.

Especificamente "A Mummerehlen", além de conter o jogo de linguagem acima

referido, avança ainda mais. Penso que nesse texto é onde mais está explícita a tese

defendida nos últimos ensaios de Benjamin que tratam da teoria da linguagem. Por outro

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lado, o que mais me move a remeter àquele específico texto de Infância berlinense é que

ele possui uma passagem que podemos também desviar para a hipótese de uma filosofia em

ato apresentada nesta dissertação.

"A Mummerehlen" conta uma experiência fantasmática do autor quando criança.

Em contato pela primeira vez com uma canção infantil na qual aparece o nome Muhme

Rehlen, mas não sabendo o que exatamente significava a palavra (Tia Rehlen) e a que

figura remetia, Benjamin transforma essa criatura em um fantasma. Ele nos explica que, de

fato, "todo o mundo desfigurado da infância [...] nela se encontrava", pois não sabia o que

lhe contaram dela, ou o que lhe quiseram contar. E ainda: "Ela própria nunca me confiou

nada. Talvez quase nem tivesse voz." (BENJAMIN, 2004: 107).

É uma rememoração enigmática e de difícil interpretação. Todavia, temos no

segundo parágrafo reflexões muito importantes, que, a meu ver, se referem também a toda a

composição muito esmerada de Infância berlinense, assim como à teoria da linguagem já

referida, que teria surgido durante a composição deste livro. Diante de encontros tão

importantes em "A Mummerehlen", não me furtarei de também aproximar o conceito de

filosofia em ato dessa discussão sobre a linguagem.

Aproximando-se muito do sentido dos ensaios sobre a linguagem, Benjamin reflete

no referido segundo parágrafo do texto "A Mummerehlen" - talvez movido pela enigmática

criatura descrita - o seguinte: "Em boa hora aprendi a me disfarçar nas palavras [...]. O dom

de reconhecer semelhanças não é mais do que uma fraca reminiscência da primitiva

necessidade de nos tornarmos semelhantes e nos comportarmos de modo correspondente."

(BENJAMIN, 2004: 106). O mais interessante é que a seguir Benjamin faz uma ponte das

palavras com o exterior. É um momento que pode ser aproximado da hipótese que venho

desenvolvendo nesse trabalho. Diz ele: "As palavras exerciam sobre mim esse poder. Não

aquelas que me tornavam igual às crianças exemplares, mas as que me aproximavam de

casas, móveis, peças de roupa. Eu desfigurava-me pela semelhança com tudo o que existia

à minha volta." (BENJAMIN, 2004: 106, grifo meu).

São permeadas por essas reflexões que as imagens a seguir se remetem ao mundo

do entorno do autor. Mundo que é descrito ou vem à memória de forma condensada, por

meio do sentido da audição. Ao levar ao ouvido uma concha, o narrador percorre um

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passado, o século XIX, em que toda um caixa sonora urbana vem à tona, fazendo com que

as coisas emitam os seus sons numa sincronia convulsionada pela rememoração. A concha,

portanto, não contém um som interior mas apenas é uma mediação para as sonoridades

exteriores. A concha é uma passagem para o passado. Daí a sequência de sons revolvidos

que até por negação de alguma forma merecem ser lembrados. Sons mais do que música,

ruídos com a concretude necessária para serem rememorados. Ruídos de objetos em ato.

Eis a passagem, que justamente finaliza com a reminiscência de uma canção infantil - como

muitas vezes ocorre ao longo do livro - de uma tal desfigurada Mummerehlen.

Não ouço o fragor de artilharia nem a música de baile de Offenbach, nem sequer os cascos dos cavalos na calçada ou as fanfarras da guarda na parada. Não, o que eu ouço é o ruído breve da antracite quando cai do recipiente de folha no fogão de ferro fundido, é o estalo seco que acompanha o acender da chama na camisa do candeeiro a gás, é o tinir da chaminé no aro de latão da lanterna, quando um carro passa na rua. E há outros ruídos, como o chocalhar das chaves no cesto, as campainhas das portas da frente e das traseiras; e também uma canção infantil. (BENJAMIN, 2004: 107).

Com a análise de alguns dos textos que compõem Rua de mão única e Infância

berlinense por volta de 1900, pensava num primeiro momento que por si só poderia

levantar a hipótese da filosofia em ato no escritor Walter Benjamin. De fato, houve um

deslocamento argumentativo nesse sentido a partir da análise ensaística dos textos de Rua

de mão única. Cheguei a tentar iniciar o mesmo deslocamento em direção à Infância

berlinense. No entanto, ao passar para este último livro, percebi que me aproximava de um

material mais maleável para a minha discussão. Bastava, assim, seguir com o levantamento

interpretativo das ênfases objetuais e espaciais dos textos que semeavam aquela última

obra. Mas agora, relendo e cruzando alguns dos textos de Infância berlinense, o que me fez

contemplar em panorâmica o livro, vejo que não é mais necessário seguir com mais uma

análise exaustiva.

Com "Caça às borboletas", "As cores" e, sobretudo, com a perspectiva aberta por "A

Mummerehlen" chegamos enfim, mas inesperadamente, ao centro da defesa da filosofia em

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ato. A partir, portanto, desse último texto, como já pude expor, é a própria filosofia da

linguagem de Walter Benjamin, arquitetada em Infância berlinense, que vem ao nosso

encontro. É um fim fundamental - para não dizer emblemático - quando reafirmo a hipótese

defendida que uma das faces da teoria da linguagem do autor, com um viés 'materialista',

teria nascido através da composição de um dos textos de Infância berlinense. Não sabemos

qual é exatamente este texto, mas, por um lado, remetemos à ideia contida na carta a seu

amigo Scholem a todo o livro sobre a infância, e, por outro, sugerimos que a sua teoria

poderia estar plasmada numa tríade de textos de Infância berlinense, especialmente o

último analisado.

A palavra 'in-fância' (in-fans) significa sem-linguagem (sem-fala). No entanto, é

justamente na 'infância' que Walter Benjamin colheu parte de sua filosofia da linguagem. O

que também prova que para ele a infância foi um espaço filosófico, tanto de reflexão livre,

quanto de construção conceitual. Além do mais, o seu livro foi um momento no qual pôde

desenvolver o seu lado literário, descobrindo, atravessado por rememorações do começo de

sua existência, a sua própria experiência como adulto.

É diante dessa imbricação infância-linguagem-filosofia-literatura que o trabalho por

fim justifica a hipótese de uma filosofia em ato como mecanismo literário de Walter

Benjamin. Entendo que, por meio de seu conceito de linguagem, Benjamin parece se

esforçar para superar o abismo entre coisa e signo.

Também nessa dissertação, nos capítulos sobre o literário e sobre a filosofia em ato,

busquei superar aquele abismo ao enfatizar a importância das imagens que se constituem a

partir da contemplação insistente nos escritos de Benjamin de objetos e espaços. Afirmo,

portanto, que, diante dos textos analisados, com ênfase no último referido, a constituição

imagética de Walter Benjamin, tendo como fonte a ênfase em objetos e espaços, a fim de

compor textos sobretudo literários (definição da filosofia em ato), possui, por sua vez, uma

base escritural advinda de uma concepção específica de linguagem (teoria mimética e das

semelhanças da linguagem). É então com o despertar da filosofia da linguagem

benjaminiana na filosofia em ato que finalizo esse trabalho - antes da conclusão de fato, que

abre ainda mais os escritos de Walter Benjamin para considerações futuras.

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Conclusões: esboço para uma poética

"[...] a linguagem poética surge das ruínas da

prosa." (SARTRE, 1989: 31)

A dissertação foi o resultado do trabalho de pesquisa e leitura dos escritos de Walter

Benjamin e de seus comentadores. Ela procurou elaborar uma hipótese de que o crítico

alemão também é um escritor de literatura e queria ser lido como escritor e artista; em

suma, que Walter Benjamin tinha a intenção e escreveu boa literatura em prosa e em prosa

poética. Os argumentos do trabalho foram elaborados aos poucos, capítulo por capítulo,

acrescentando elementos que comprovassem aquela hipótese inicial. Primeiro, passo a

passo, o trabalho começou com a defesa do literário em Walter Benjamin. Logo, houve

uma exposição do imprescindível teor filosófico do autor. Seguiu-se uma tentativa de

criação de um conceito a fim de compreender mais profundamente o seu aspecto literário.

Por fim, sugeriu-se tal conceito como estímulo para a leitura e análise de dois livros que

fazem parte do projeto literário de Benjamin, a saber, Rua de mão única e Infância

berlinense por volta de 1900.

Cheguei a algumas conclusões provisórias. Primeiro, que há uma especificidade e

riqueza nos textos de Walter Benjamin, incluindo aqui a escrita sinuosa e aberta a

interpretações, a forma de apresentá-la sob vários formatos e com uma concepção

imagética e os diversos temas selecionados que envolvem várias ciências e artes. Segundo,

os escritos mais ricos para entender aquela especificidade são os que fazem parte da prosa

literária do autor. Por outro lado, as análises realizadas dos livros selecionados, e um

posterior retorno, embebido dos seus aspectos literários, aos escritos mais teóricos e

ensaísticos de Benjamin, me levaram a uma nova hipótese para um trabalho vindouro.

Quero dizer que o material pesquisado para a dissertação pode nos levar a uma

macroperspectiva do pensamento de Walter Benjamin. Neste sentido, defendo, neste último

momento, que a hipótese referencial contida na ideia de uma filosofia em ato nos conduz ao

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esboço de uma poética benjaminiana. Sugiro que os elementos expostos nesse trabalho,

mais relacionados ao projeto literário de Benjamin, podem ser estendidos aos ensaios,

críticas, resenhas e demais escritos teóricos dele. Pude captar isto durante a leitura dos

escritos inacabados, que, junto com milhares de citações e comentários fragmentados, são

enfeixados sob o título de Trabalho das Passagens. Tal trabalho possibilita a panorâmica

de uma poética no autor, porque ele possui uma configuração que formalmente reúne arte,

filosofia, assim como teoria e método, realizando, mesmo desta maneira transversal,

também uma filosofia em ato. Um comentário de Theodor Adorno me iluminou tal

perspectiva, quando ele diz num ensaio dedicado a Benjamin que "o estudo [relacionado ao

trabalho sobre as passagens parisienses] tinha explicitamente o projeto de tratar de Fourier

e Daguerre, de Grandville e Luís Felipe, de Baudelaire e de Haussmann, mas na realidade

tratava de temas como mode e nouveauté, exposições e construções em ferro, o

colecionador, o flâneur e a prostituição." (ADORNO, 1992: 22). Ora, o que pode ser

entrevisto neste trecho é um deslocamento original de olhar de Walter Benjamin, como se

as coisas dissessem mais que os homens e, por outro lado, como se o desprezado, como

ponto de vista, fosse o que importasse para buscar a 'verdade' destas mesmas coisas em

vista daqueles homens.

Mas são os livros analisados que mais trazem à tona os elementos específicos para

uma poética. Se considerarmos 'poética' como um enfeixe poético de um escritor, bem

como a caracterização de uma época, um país e uma geração, pode-se encontrar tal

elemento panorâmico em Rua de mão única, que não só revela o balanço de uma época,

como projeta esta para o futuro, revelando as novas formas de escrita no meio urbano,

assim como a politização possível do escritor na cidade. Se poética ao mesmo tempo é o

fazer, o criar, o produzir, o próprio para fabricar, o inventivo e o engenhoso, que

dificuldades teríamos de encontrar esses elementos da mesma maneira no 'livro-oficina'

Rua de mão única? Por sua vez, se o poético é o relativo a ou o próprio da poesia, o que

tem poesia, qualidades, atmosfera, encanto ou característica da poesia - como nos informa o

dicionário Houaiss - então é uma poética genuína que emerge da prosa poética de Infância

berlinense por volta de 1900.

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Sugiro, portanto, uma poética vindoura de Walter Benjamin. No entanto, levantar

uma poética em Benjamin não quer dizer afirmar uma sistematização para os seus escritos.

A sistematização não tem lugar nos escritos desse autor. É o inacabamento do literário, com

o auxílio da densidade conceitual da filosofia, que atua positivamente na composição por

vir de uma poética benjaminiana. O caminho desta poética tem seu começo numa leitura

literário-filosófica de Walter Benjamin. Eis o resquício que gostaria de deixar desse

trabalho de leitura e análise de uma das partes constelacionais do escritor alemão.

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<www.hup.harvard.edu> (Harvard University Press, editora que publica, em inglês, os

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<www.einaudi.it> (Giulio Einaudi Editore, editora que publica, em italiano, as Obras

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