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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO LINHA CULTURA E HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO

Mãe-esposa e professora: educadoras no final do

século XIX

Rossana Kess Brito de Souza Pinheiro Orientadora: Profª Drª Maria Arisnete Câmara de Morais

NATAL/RN

2009

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Catalogação da Publicação na Fonte. UFRN / Biblioteca Setorial do CCSA

Divisão de Serviços Técnicos

Pinheiro, Rossana Kess Brito de Souza.

Mãe-esposa e professora: educadoras no final do século XIX/ Rossana Kess Brito de Souza Pinheiro. – Natal, 2009.

219 f. Il. Orientadora: Prof ª. Dr.ª Maria Arisnete Câmara de Morais Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Sociais

Aplicadas. Programa de Pós-Graduação em Educação. 1.República - Tese. 2. Século XIX – Tese. 3. Professora - Tese. 4. Educação feminina - Tese. 5. Mãe-esposa – Tese. I. Morais, Maria Arisnete Câmara de. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título RN/BS/CCSA CDU 37: 396(813.2) (043.2)

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Rossana Kess Brito de Souza Pinheiro

Mãe-esposa e professora: educadoras no final do

século XIX

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como exigência parcial para obtenção do título de Doutora em Educação sob a orientação da Profª Drª Maria Arisnete Câmara de Morais.

NATAL/RN

2009

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Mãe-esposa e professora: educadoras no final do século XIX

Tese apresentada e aprovada em 29 de Maio de 2009, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte/Programa de Pós-Graduação em Educação.

BANCA EXAMINADORA:

______________________________________________________________________

Profª. Drª Maria Arisnete Câmara de Morais (UFRN - Orientadora)

______________________________________________________________________

Prof.ª Dr.ª Jane Soares de Almeida (UNESP- Titular externo)

______________________________________________________________________

Prof.ª Dr.ª Ilane Ferreira Cavalcanti (IFET- Titular externo)

______________________________________________________________________

Prof.ª Dr.ª Marlúcia Menezes de Paiva (UFRN- Titular interno)

______________________________________________________________________

Prof.ª Dr.ª: Maria Inês Sucupira Stamatto (UFRN- Titular interno)

______________________________________________________________________

Prof. Dr. João Maria Valença de Andrade (UFRN- Suplente interno)

______________________________________________________________________

Prof.ª Dr.ª Ligia Pereira dos Santos (UEPB- Suplente externo)

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Dedico este trabalho aos meus dois

amores: Artur, amor desde a

eternidade e Walter, amor para

além da vida.

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AGRADECIMENTOS Este trabalho é consagrado a Grande Deusa, princípio feminino de vida e criação divina na antiga Arte pagã dos meus ancestrais. Muitas pessoas colaboraram para a execução deste projeto investigativo. A estes ilustres anônimos os meus sinceros agradecimentos. No entanto, gostaria de destacar algumas pessoas cujo coração e intelecto tencionou a dor com amor e me proporcionaram fazer este trabalho com alegria e firmeza de propósito: Minha mãe, Salete, por me fazer entender o amor incondicional e o cuidado materno que se estende pelas gerações. Sem o seu cuidado para com Artur não teria a paz necessária para fazer o que precisava ser feito. Minha doce Prófi, Arisnete, minha mãe acadêmica, por ser o facho iluminador sempre presente indicando-me o caminho das pedras e ensinando-me a conviver com elas como parte da existência, sem atirá-las ou retirá-las. O seu cuidado para com suas orientandas inspira-me cotidianamente. Meu marido, Walter, de quem amo ser esposa, companheiro na jornada da vida que foi meu interlocutor, meu faz-tudo, meu descanso, meu aconchego e minha alegria. “Beijo de boca no fim do dia” transformou-se no bálsamo diário que me manteve firme no propósito de dar existência às marcas femininas no século XIX. Meu filho Artur, de quem adoro ser mãe, com quem aprendi a Ser mais com ele e com os outros. Seu sorriso e suas tiradas inteligentes fazem tudo valer a pena no fim do dia. Minha comadre, Jalmira, por agüentar meus delírios intelectuais e partilhar sonhos e ideais de uma educação melhor para nosso país nestes 13 anos de convivência. Meus irmãos e sobrinhos, que me fornecem dia a dia o sentido supremo de família no carinho e nas preces. Meu pai, Expedito, por me fazer entender muito cedo que disciplina e meta existencial são quase tudo na nossa jornada terrena. A perda desse princípio é a perda de si mesmo. Conce, irmanada no mesmo compromisso social de trazer a nossa história aos olhos do mundo e das nossas alunas no curso de Pedagogia da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Profª Marlúcia Paiva, que me iniciou na pesquisa historiográfica acadêmica estabelecendo um divisor de águas em minha formação como docente estimulando a autonomia intelectual, a preocupação político-social e a diversidade de saberes para a nossa profissão. Profª Marta Araújo, minha professora de História da Educação, através de quem pude vislumbrar um universo teórico-metodológico que pudesse responder as minhas constantes inquietações existenciais.

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Profª. Rosanália Sá Leitão Pinheiro, por seus comentários, seu carinho e suas contribuições em minha formação e, particularmente, por colocar seu conhecimento a nossa disposição trabalhando conosco nesta produção. Profª. Inês Stamatto pelas valiosas contribuições por ocasião do meu Seminário I ajudando de maneira definitiva a organizar categorias, conceitos e recorte temporal, elementos estruturais básicos para a continuação efetiva deste trabalho. Profª Ilane Cavalcante por sua leitura valorosa no nosso Seminário II contribuindo de forma definitiva para a melhoria do texto ora apresentado. Antonieta, Lúcia e “seu” Manoel, do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, pela solicitude e carinho com que fui tratada nas minhas incursões de pesquisa. Naide e Sarynha, duas moças lindas, de almas nobres que com abraços energéticos e uma infindável vontade de compartilhar, partilharam a existência dessa tese contribuindo, mais do que quaisquer outras, com documentação importante em momento decisivo desta investigação. Sem elas algumas elaborações não teriam sido possíveis. Colegas da Base de Pesquisa Gênero e Práticas Culturais: abordagens, educativas e literárias, particularizados em minhas coleguinhas de turma Mariza Pinheiro, Edna Rangel e Isabel Carvalho. Colegas do Departamento de Educação do Campus de Assú da UERN por entenderem minhas ausências e facilitarem meu trabalho na Instituição no processo de finalização do trabalho. CAPES, pelo apoio financeiro a mim estendido através do Programa de Bolsas de Pesquisa.

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RESUMO Este texto se orienta através das discussões empreendidas no universo da História da Educação Norte-rio-grandense, circunscrita à História das Mulheres nas primeiras décadas do Brasil republicano e à análise do que se esperava dessa educação no âmbito da educação feminina. Evidenciamos as representações femininas em Natal, entre os anos de 1889 e 1914, com o objetivo de configurar as relações de gênero com ênfase nos aspectos morais, intelectuais e pedagógicos exigidos dessas mulheres. Utilizamos como fontes documentais a Legislação educacional, civil e penal, tanto no âmbito nacional, como estadual e municipal. Circunscrevemos a nossa busca no jornal A República, no qual evidenciamos a literatura que circulava em Natal sob a forma de Folhetim, Contos e Poesias, bem como nos demais textos dos autores presentes que fizeram parte do corpus da análise para este estudo, localizados em arquivos públicos e privados do Rio Grande do Norte, como o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (IHGRN) e o Arquivo Público Estadual do Rio Grande do Norte (APE-RN). O uso do método indiciário e as proposições da História Cultural foi o suporte teórico-metodológico apropriado à realização de um trabalho dessa natureza. Essa perspectiva operacional permitiu elaborar nuanças sobre este tempo de transição, entre o século XIX e XX, e trazer a lume a mulher deste período. A base de argumentação que relacionava a mulher à maternidade e à domesticidade, e estas ao ideário de abnegação e sacerdócio, aliou-se a uma demanda vinda do aumento no quantitativo de escolas femininas e alocou a mulher como a mais apropriada para o melhor desempenho educacional no país, a partir de suas bases: a educação primaria. Para além do universo escolar, outra face de mulher se apresentava neste universo político republicano. A mãe-esposa e a institucionalização da educação doméstica associavam o gênero feminino também com a educadora no lar. Seja no público, como professora, seja no privado, como mãe-esposa, o cuidado feminino é percebido nessa configuração como a base educacional que a República e o entre-séculos legaram ao século XX brasileiro. Palavras-chaves: República, século XIX, professora, educação feminina, mãe-esposa.

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ABSTRACT

This text is organized through discussions undertaken in the area of the History of Education in Rio Grande do Norte, circumscribed to the History of Women from the first decades of the Brazilian Republic, and to the analysis of what was expected of this education. We examined representations of women in Natal, between 1889 and 1914, with the goal of configuring relations between the sexes with the emphasis on moral, intellectual and pedagogical aspects required of these women. As documental sources we utilized the educational, civil and criminal Legislation, on a National scope, as well as on a State and Municipal scope. We circumscribed our search to the newspaper A República, in which we found literature that circulated in Natal in the form of pamphlets, short stories and poetry, as well as other texts by authors that were part of the corpus of analysis of this study, located in public and private archives in Rio Grande do Norte, such as the Historical and Geographic Institute of Rio Grande do Norte (IHGRN) and the State Public Archive of Rio Grande do Norte (APE-RN). The use of the indexing method and the propositions of Cultural History were the appropriate theoretical-methodological framework to complete studies of this nature. This operational perspective permitted us to elaborate nuances about this time of transition from the 19th to the 20th Century, and to spotlight the fire of the women from this period. The basis of the argument that related women to maternity and domesticity, and within the ideals of abnegation and religious leadership, aligned to a demand coming from the increase in the quantity of schools for women, allocated women as the most appropriate for superior in educational performance in the country, based on its foundations: primary education. Beyond the universe of formal education, the other side of women appeared in republican politics. The mother-spouse and the institutionalization of domestic education associated the female gender with the role of educator at home as well. Be it in the public sphere, as a teacher, or in private, as mother-spouse, female care is perceived in this configuration, as an educational base that the Republic, and in transition, bequeathed to the Brazilian 20th Century. Key-words: Republic, 19th Century, teacher, female education, mother-spouse.

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RÉSUMÉ Ce texte s’ oriente sur des discussions établies dans l’univers de l’histoire de l’éducation du Rio Grande do Norte, circonscrite à l’histoire des femmes pendant les dix premières années du Brésil républicain et sur l’analyse de se que l’on attend de cette éducation dans le champ d’action de l’éducation féminine. Nous avons mis en évidence les représentations féminines à Natal, entre 1889 et 1914, ayant comme objectif celui de configurer les relations de genre, en priorisant les aspects moraux, intellectuels et pédagogiques exigés de ces femmes. Nous avons utilisé comme sources documentales la législation éducationnelle, civile et pénale, aussi bien du point de vue national, que du point de vue de l’état et du municipe. Nous avons circonscrit notre recherche dans le journal A Republica, dans lequel nous avons mis en évidence la littérature qui circulait à Natal sous forme de feuillets, contes et poésies, aussi bien que dans les autres textes des auteurs présents qui ont fait partie du corpus de l’analyse de cette étude, localisés dans les archives publiques et privées du Rio Grande do Norte, comme l’institut historique et géographique du Rio Grande do Norte(IHGRN) et les archives publiques de l’état du Rio Grande do Norte(APE-RN). L’utilisation de la méthode indiquée ainsi que les propositions de l’histoire culturelle ont été le support théorique et méthodologique approprié pour la réalisation d’un travail de cette nature. Cette perspective opérationnelle a permis d’élaborer des nuances sur ce temps de transition, entre le XIXème et le XXème siècle, et de faire ainsi connaître la femme de cette période. La base d’argumentation qui mettait en relation la femme avec la maternité et les travaux domestiques, avec une idée d’abnégation et de sacerdoce, s’est alliée à une demande dûe à l’augmentation de la quantité d’écoles féminines et a fait apparaître la femme comme étant la plus appropriée pour le meilleur développement éducationnel dans le pays, à partir de ses bases: l’éducation primaire. Au delà de l’univers scolaire, une autre facette de la femme se présentait dans cet univers politique républicain. La mère-épouse et l’institutionalisation de l’éducation domestique associaient également le genre féminin à l’éducatrice du foyer. Que ce soit dans le publique, en tant que professeure, ou dans le privé, en tant que mère-épouse, le soin féminin est perçu dans cette configuration comme étant la base éducationnelle que la république et l’entre-deux siècle ont léguée au XXème siècle brésilien. Mots-clés: République, XIXème siècle, professeure, éducation féminine, mère-épouse

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ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES

CAPA

§ Página do Segundo Livro de Leitura de Felisberto de Carvalho (1934, p.12), “Júlia, a

boa mãe”.

CAPÍTULO II

§ Jornal A República: jan. a jun. de 1897 ......................................................................40

CAPÍTULO III

§ Guiomar de Vasconcelos entre as irmãs Calafange ....................................................57

§ Dolores Cavalcanti entre amigas ................................................................................58

§ Dolores Cavalcanti ......................................................................................................61

§ Júlia Medeiros .............................................................................................................62

§ Festa de Sant´ana em Caicó, RN – 1926 ....................................................................63

CAPÍTULO IV

§ Praça Augusto Severo .................................................................................................94

§ Melhoramentos na capital: A casa de detenção ..........................................................98

§ Melhoramentos da capital: Asilo de Mendicidade .....................................................99

§ Anúncio: Livraria Cosmopolita ................................................................................103

§ Programação Polytheama .........................................................................................106

§ Coreto da Praça Augusto Severo ..............................................................................107

§ Anúncios: Emulsão Scott e afinação de pianos ........................................................109

§ Anúncio: Segredo de beleza .....................................................................................110

CAPÍTULO V

§ Escola Doméstica de Natal .......................................................................................131

§ Prospecto com programa da Escola Doméstica de Natal .........................................138

§ Programa de ensino para a Escola Normal de Natal .................................................141

CAPÍTULO VI

§ Jornal A República (29 ago. 1908) ............................................................................150

CAPÍTULO VII

§ Lição 32 do Segundo Livro de Leitura de Felisberto de Carvalho (1934, p.157).... 179

PALAVRAS FINAIS

§ La liberté guidant le peuple ......................................................................................200

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SUMÁRIO Primeiras palavras ................................................................................. 14 Capítulo I De quando a idéia era apenas uma idéia ................................................... 17 Capítulo II Notas do caminho .................................................................................... 31 Capítulo III Perfis de educadoras no Rio Grande do Norte .......................................... 52 Capítulo IV República, Modernidade e Civilização em Natal ...................................... 82 Capítulo V Educação e educação feminina: fim de século, início de res-publica ..... 112 Capítulo VI Marcas de um tempo, imagens de mulheres em Natal ............................144 Capítulo VII Outras marcas, outras imagens: mãe-esposa e professora .......................174 Palavras finais ....................................................................................... 198 Referências .............................................................................................205

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Primeiras Palavras Não foi, portanto, a priori que estabeleci os limites de minha investigação. Foram as características da documentação, tais como as encontrava nos documentos cluniacenses, que me propuseram esses limites (DUBY, 1994, p. 25).

Este texto de Duby nos ajuda a refletir sobre as idas e vindas de um pesquisador

na construção de um objeto de estudo, de uma investigação histotiográfica. Ajuda-nos a

perceber a importância de permitir falarem as fontes e deixar-se conduzir pelas marcas

históricas daqueles e daquelas que nos antecederam.

O presente trabalho é vinculado à Base de Pesquisa Gênero e Práticas culturais:

abordagens históricas, educativas e literárias e ao projeto integrado Gênero, Educação

e Práticas de Leitura/CNPq, através do qual o projeto inicial ganhou contornos de uma

tese no mosaico construído pelo conjunto de pesquisadores que constituem essa Base de

Pesquisa. Enquadra-se na linha de pesquisa Cultura e História da Educação do

Programa de Pós-graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, que

reúne pesquisas sobre gênero e relações sociais, práticas institucionais e culturais.

O estudo em questão tem como objetivo identificar as representações femininas

em Natal, particularmente a mãe-esposa e a professora, buscando analisar as

características femininas exigidas às demandas sociais natalenses nas primeiras décadas

da República no Brasil. Busca configurar, ainda, as relações de gênero no âmbito da

educação feminina e as discussões entre educação escolar e doméstica na realidade

dada. Esta educação doméstica é também aqui pensada como a educação do espírito

social, que traz como mediador principal a própria formação social em que o individuo

se insere e, ao mesmo tempo em que espelha é por ela espelhada. Os discursos de

parlamentares, clérigos, literatos, jornalistas aparecem nas fontes analisadas como textos

educativo-instrucionais que colaboram com os processos formais de educação na forja

de modelos sociais, também de gênero.

O texto da tese está apresentado o feixe de sete capítulos que servem a este

trabalho como um condutor estrutural à tese que pretendemos demonstrar. Essa

disposição surgiu para nós como um fio condutor à pesquisa que, combinado com as

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considerações da orientadora do trabalho, bem como as solicitações do próprio objeto

de estudo, constituiu peças de um mosaico sobre o entre-séculos e a mulher natalense do

período.

De quando a idéia era apenas uma idéia, é o primeiro capítulo. Dissertamos sobre

a construção do objeto de análise, apresentamos os objetivos, a questão-tese motivadora

da tese, e a tese em si. O segundo capítulo, Notas do caminho, é uma discussão sobre os

procedimentos e a abordagem teórico-metodológica utilizada. Escrevemos notas sobre

os caminhos percorridos, na relação com suporte teórico-metodológico e procedimentos

de análise e uma revisão bibliográfica que colaborou para dimensionarmos melhor o

objeto em estudo. As fontes utilizadas, o campo de investigação, categorias e conceitos

são como notas que compõem a música metodológica que tentamos executar.

No terceiro capitulo, Perfis de educadoras no Rio Grande do Norte, fazemos uma

leitura das representações do feminino, evidenciando pesquisas realizadas sobre o

período e a relação com os dados construídos e com a questão-tese proposta. No

capítulo quatro, República, modernidade e civilização em Natal, configuramos a

sociedade natalense entre 1889 e 1914, trazendo, principalmente, as instituições sociais

presentes e o modo de ser das mulheres nessa configuração. Em Educação e educação

feminina: fim de século, início de res-pública, está presente a ideia de educação do

período, as maneiras como os processos educacionais se faziam sentir na sociedade

natalense, a educação como um modo civilizador em seu processo nas várias

instituições sociais, configurada em uma cidade e em um país que, sob o título de

República Federativa, ainda se republicava e contava com a educação para este

propósito.

Marcas de um tempo, imagens de mulheres. Neste capítulo, identificamos e

analisamos modos de ser e de fazer das mulheres em Natal. Trazemos um panorama das

marcas históricas femininas, na tentativa de fornecer aos leitores e leitoras uma

cartografia do gênero feminino em seus papéis sociais.

Nosso último esforço escrito, Mãe-esposa e professora: representações femininas

no final do século XIX, mostra as categorias centrais desta tese que ganham vida através

das práticas e representações dispostas nos discursos e silêncios dos obituários,

felicitações, anúncios e teorias que configuram o ser mulher na transição do século XIX

para o XX.

Finalmente, uma tentativa de conclusão desta escrita nos remete às impressões

que este trabalho nos trouxe. Os movimentos intelectuais aqui empreendidos nos

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permitiram pensar a continuidade de pesquisas na área de história da educação, gênero e

formação de professores que se desdobram a partir desta investigação e das ideias sobre

educação escolar, educação doméstica e cuidado materno, na perspectiva histórica das

relações de gênero.

Os capítulos ora apresentados descortinam uma história da educação feminina

para além da instituição escolar, no momento em que a expansão da instrução pública

no Brasil, o acesso feminino a essa instrução e a inserção gradativa cada vez maior

desse segmento da população a essa modalidade de trabalho se apresentava em franco

processo de expansão. Vinde e vede.

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Capítulo I De quando a ideia era apenas uma ideia

As relações entre História, História da Educação e a formação do educador são estreitas, íntimas, porque se o papel da educação é a formação humana e se o homem se define por sua historicidade, então o educador só pode desempenhar adequadamente sua função na medida em que se enraizar historicamente (SAVIANI, 2003, p. 21).

O desejo por aprofundar estudos acerca das representações femininas emerge da

minha trajetória pessoal caracterizada por ser mãe, esposa e professora. Cada um desses

papéis sociais, e com perfis específicos, está relacionado com o meu meio social e com

as relações interpessoais estabelecidas nessa configuração. Essa trajetória estabelece

uma íntima e estreita relação com as duas categorias centrais no desenvolvimento do

estudo que ora proponho, ou seja, gênero e educação.

Foi, portanto, na tentativa desse enraizamento histórico de que fala Saviani, que o

objeto deste estudo se apresenta como sendo as representações femininas em Natal entre

os anos de 1889 e 1914. Ele emergiu de minha pesquisa anterior, em nível de mestrado,

realizada entre os anos de 2000 e 2003, sob o título História da educação das mulheres

em Natal (1889-1899) (PINHEIRO, 2003). Investigamos, nesse trabalho, a educação

das mulheres em Natal, na primeira década do governo republicano no Rio Grande do

Norte. No seu decurso, vislumbramos um indício de investigação que buscasse a mulher

por trás das professoras encontradas, ou ainda as representações femininas na transição

do século XIX para o XX na realidade dada. A relação entre a história das mulheres e

nossa trajetória formativa docente se perde nas brumas de um tempo em que, menina,

ainda buscava as primeiras letras.

A imagem de uma constante e benéfica solidão é a marca da minha trajetória

pessoal nos limites desta existência. Essa existência solitária e introspectiva conduziu-

me a um universo literário específico desde o aprendizado das primeiras letras. Os

romances, as histórias de fadas, castelos, magias, guerras religiosas, cavaleiros e brumas

distantes. Os romances históricos faziam eco com os clássicos da literatura universal e o

século XIX, na escrita de Machado de Assis, José de Alencar, Álvares de Azevedo, Eça

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de Queirós, Honoré de Balzac, Gustave Flaubert, Conan Doyle ou Oscar Wilde.

Escritores ingleses, portugueses, franceses e brasileiros que traziam para mim os anos

oitocentos nas venturas e aventuras de seus personagens. Ao mesmo tempo, constituíam

um portal de formação existencial que definia na menina características que a

acompanhariam em sua constituição identitária de ser mulher. Noções de

comportamento moral, emocional e intelectual que se tornaram paráfrases de uma vida.

No processo de construção do objeto de estudo do doutorado, esse universo

mítico-literário se encontrou com jornais, legislação e pesquisas sobre a sociedade

brasileira do século XIX. Entre a ficção e a realidade, uma percepção: o século XIX

tinha muito a dizer sobre as bases que formam o pensamento educacional brasileiro,

sobre as bases que fundam o ser professora e professor no Brasil. Como se organizava,

então, o projeto educacional para mulheres, no universo de um projeto social brasileiro

na cidade de Natal/RN, no final do século XIX? Em torno de quais demandas morais,

intelectuais e sociais este projeto educacional se ordenava? Quais eram as

representações femininas que essas demandas provocavam em Natal entre 1889 e 1914?

Na direção desta última questão, construímos a tese ora defendida.

O ano de 1889, para o Rio Grande do Norte como para o Brasil, configura-se

como um momento político motivador de uma série de transformações sociais, culturais

e educacionais a partir da Proclamação da República. Este é um aspecto da nossa

história que convida-nos a uma investigação acerca de como se organizavam as relações

de gênero e, ainda, como se movimentavam as mulheres, particularmente as

professoras, no interior desse projeto de sociedade que nascia.

Nesse período, o discurso da ação transformadora da educação para a

consolidação de um modelo político e econômico visava o desenvolvimento da nação

brasileira. Revelava o sentido que a instrução assumia em Natal, e as demandas exigidas

para homens e mulheres no período em foco. Esta instrução deveria suprir a ignorância

popular, elemento incompatível com o sistema representativo, que se desejava construir.

Mais do que isso: deveria superar um modelo social tradicional e levar o país ao

progresso pelas asas da modernidade e da civilização. Em uma sociedade que se queria

civilizada pela educação, a mulher passa a ser a referência na função de moralizar essa

sociedade, a partir de uma certa conduta e de uma certa condução no espaço

educacional. Moralidade é seu discurso. Virtude, a sua meta. E nas primeiras décadas do

Brasil Republicano, o imaginário social natalense estava carregado desses conceitos.

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Diferentemente dos demais segmentos da população, o encorajamento à participação da mulher apelava para seu humanitarismo sentimental e para os impulsos do coração. A contribuição esperada da mulher pelos ideais republicanos sugeria que o seu trabalho se caracterizasse como filantrópico e que seu nível de atuação fosse o de afetuosa colaboradora na consecução dos ideais nacionais (CHAMON, 2005, p. 88).

Sugestionados por esta configuração histórica, ruminamos em silêncio sobre os

obituários, felicitações de aniversário e nascimento, propagandas de artigos femininos,

discursos de Diretores de Instrução Pública, artigos sobre educação, política e aspectos

cotidianos de Natal, bem como os romances apresentados na forma de folhetins, poesias

e contos registrados nos jornais do século XIX que circulavam na cidade. Os jornais,

principalmente, se tornaram ponto de apoio e de partida para um outro olhar sobre o

magistério feminino, a partir da Proclamação da República no Brasil em 1889 até o

início da Primeira Guerra Mundial em 1914. Aos poucos fomos percebendo que, apesar

das formas distintas como se apresentavam esses dados – seja uma nota de falecimento

ou uma felicitação de aniversário –, existia um discurso articulado que dizia e apontava

para uma representação do ser feminino em Natal.

Nosso encontro com Maria Luiza de França, uma professora que cometeu suicídio

em 1897, nos fez pensar sobre um modelo de professora que tentava encontrar

mecanismos táticos entre as estratégias organizadas por um mundo intelectualmente

masculino. Sua história se apresentava como um processo que se mostrava complexo

para as mulheres que educavam mulheres no final do século XIX e que exigia, muitas

vezes, sacrifícios, como foi possível identificar na trajetória de vida desta professora.

Após três anos residindo e lecionando na escola situada no bairro da Ribeira, a

professora Maria Luiza de França publicou um anúncio no jornal A República,

oferecendo seus serviços de professora em outra escola, também de sua propriedade,

mas agora situada no bairro da Cidade Alta (ESCOLA MISTA DE INSTRUÇÃO

PRIMÁRIA, 1897, p. 2). A mudança de domicílio da professora e suas conseqüências

são matérias de destaque naquele jornal no mês de abril. Alguns dias depois do anúncio

citado acima, em 26 de abril de 1897, ela cometeu suicídio.

Através de cartas que ela mesma escreve serem apenas desabafos para serem destruídos,

explicou os motivos que a levaram a realizar o intento. A miséria que a envolvia, a falta

de perspectiva social e afetiva, os empréstimos constantes para pagar dívidas que só se

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avolumavam, a solidão, apesar das alunas com quem ela vivia, a fizeram realizar o que

o jornal classificava como um “lamentável ato de desespero” (SUICÍDIO,1897, p.3).

Uma mulher, uma professora que se julgava digna, com um comportamento moral que

não justificava a punição da indiferença pelos seus vizinhos. A mudança de domicílio

estava relacionada à forma como estava sendo tratada por estes vizinhos em

conseqüência talvez de um amor por ela alimentado e que não era consoante com aquilo

que se esperava de uma professora. O momento histórico vivido por ela em Natal, no

fim do século XIX, não concebia um comportamento feminino que não se enquadrasse

na categoria mãe-esposa.

Maria Luiza era parte de um segmento social - as professoras - responsável por

um processo de educação feminina em Natal, sintonizado com um discurso corrente,

como o expresso na obra Educação Nacional de Veríssimo (1890 p. 47-52). Este autor

percebe a formação do caráter como um dos aspectos mais importantes para se

organizar a educação em todo o país. Advogava para a mulher uma educação que a

capacitasse para ser mãe de família e reguladora da economia doméstica, pois a mãe

brasileira com o seu “amor maternal, sem energia, deixa ver quão deficiente, senão

dissolvente, era a educação doméstica como educação do caráter”. Portanto, a educação

escolar deveria superar esta deficiência.

Esta professora ensinava particular, trabalhava todas as matérias exigidas pelos

Regulamentos de Instrução Pública Primária a meninos de ambos os sexos, mas isso

não bastava; era preciso que a mulher professora possuísse uma conduta social que

reforçasse o projeto social moralizador que se desejava construir nas primeiras décadas

do Brasil Republicano. A morte de Maria Luiza de França reforça a força do discurso da

virtude e da moralidade destinado à mulher dentro e fora do lar. A sua história retrata a

dificuldade de ser mulher e professora, nessa configuração. Reforça, para nós, a ideia de

um perfil construído em cima de valores morais, de um “fabrico” do “ser professora”,

do “ser mulher” e de instituições organizadas com base em um perfil de professora que

formaram as bases da profissão docente no Brasil.

Esta foi Maria Luiza ou o que me foi possível saber sobre ela. Existiram outras

que figuravam no jornal oferecendo seus serviços de educadoras, transitando entre a

escola privada e a pública, recebendo homenagens públicas pelo seu zelo, sendo

exortada a comparecerem com as notas das estudantes. As várias representações de

professora se relacionam com os vários perfis de mulher encontrados e sugerem um

mergulho nas nuanças de cada um desses perfis, nos rumos de uma representação

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histórico-cultural do ser docente na configuração escolhida, na relação com esta mulher

existindo por trás da professora.

Ao nos debruçarmos sobre o tema que envolve esta pesquisa – relações de gênero

na educação feminina republicana –, recordamos as discussões, ainda como estudante

de Magistério entre os anos de 1989 e 1991. Em sala de aula, na disciplina de Didática,

ou na sala da diretora da Escola Estadual Berilo Wanderley, as discussões que

envolviam as maneiras de vestir enquanto professora, tomavam o rumo de uma

performance didática na qual o vestuário deveria funcionar como indicativo de boa

professora. Shorts, sandálias e camisetas decotadas surgiam como um elemento de

descrédito às qualidades intelectuais de uma docente. A roupa de uma educadora não

devia chamar mais atenção que o conteúdo no quadro a giz.

Apesar de escaparem à nossa compreensão os motivos que justificavam um

discurso e uma prática que estabeleciam fronteiras entre o modo de ser da professora e

dos estudantes, assumi o que me ensinavam ser o correto, sob a alegação de ser sensato.

Carrego em mim as marcas dessa formação que não é minha e nem da professora de

didática, mas de uma construção histórico-cultural.

As fronteiras estabelecidas nas aulas de Didática entre o modo de ser da

professora e dos estudantes ressoam, de certo modo, na minha prática educativa. Ao

ministrar nossas aulas, percebo que elas se estruturam, também, a partir de um modelo

que evoca processos formativos históricos e que inclui uma representação apropriada

para o gênero feminino nessa profissão: modos ponderados, roupas compostas, em

consonância com uma relação de sala de aula que pretende não dispersar a atenção dos

estudantes para qualquer outra coisa que não seja o conteúdo programado.

Mas quando foi que os modos individuais do Ser, como sua maneira de falar ou

vestir, se confundiram com o conjunto de atributos que caracterizam sua profissão ou

seu exercício profissional? Até que ponto o indivíduo, em sua vida pessoal, se confunde

com o profissional que ele é? E em que medida isto interfere no seu fazer docente? No

universo da nossa formação para a docência, as linhas que separaram o individual do

profissional sempre foram muito tênues. Muitas vezes modos de Ser foram confundidos

com modos de fazer. Certos modos de falar ou de sentar pareciam demonstrar

incompetência ao serviço docente e eram aspectos da nossa personalidade que nos

descaracterizavam como docentes aptas a uma sala de aula1. Ao mesmo tempo, os

1 Acreditamos que tal dimensão talvez ocorra em todas as profissões. Limitamos-nos a falar da profissão docente por ser aquela que nos caracteriza com também a este trabalho.

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questionamentos que fizemos e as nossas percepções, nos convidaram a uma reflexão

sobre as representações culturais de mulheres professoras.

Na continuidade da minha formação como docente, as pesquisas da área

educacional, particularmente as leituras e discussões empreendidas durante as reuniões

de estudo na Base de Pesquisa Gênero e Práticas Culturais: abordagens históricas,

educativas e literárias, indicaram um caminho a trilhar nas respostas às minhas

inquietações.

Uma dessas leituras, o texto Mulheres na sala de aula, de Louro (1997), nos

trouxe aspectos peculiares sobre a formação das professoras. A autora analisa, entre

outros aspectos, como a maneira de vestir de uma professora possuía estreita relação

com a manutenção de sua reputação e que estas deveriam expressar um caráter

assexuado e distante, tido como apropriado para essas mulheres. Esses elementos

caracterizaram o ser professora a partir da segunda metade do século XIX.

Essa postura austera está representada na tese Sinhazinha Wanderley: o cotidiano

do Assu em prosa e verso (1876-1954) (PINHEIRO,1997), através das práticas

pedagógicas da professora Maria Carolina Wanderley Caldas. Dona Sinhazinha

Wanderley, como era conhecida, ministrava aulas no Município de Assu (RN) na

primeira metade do século XX. A autora traz relatos de ex-alunos e contemporâneos

dessa professora acerca do seu comportamento e modo de trajar-se. Suas vestimentas

sóbrias, sempre nas tonalidades azul, cinza e bege, obedeciam a um único estilo: saias

longas e casaco com pregas. Desta forma, destituía-se dos babados, rendas e laçarotes

usados por suas contemporâneas. Ao mesmo tempo em que deixava de lado tais

adereços nas roupas, deixava também a representação de mulher, como símbolo de

feminilidade e maternidade, e assumia a de professora, literata e partícipe do universo

cultural público, portanto, masculino na primeira metade do século XX. Parece-nos que

assumir uma imagem reservada através das roupas proporcionava, nesta configuração,

os indicadores de credibilidade e respeitabilidade necessários a essa inserção. Indiciava,

ainda, o modelo de seriedade que a profissão docente, nos permitindo chamá-la assim,

carregava.

A imagem séria das professoras era indicador de inteligência como também de

severidade: as roupas escuras, o cabelo em coque, quase sempre de óculos. A varinha de

ensinar e o olhar repreendedor completavam a indumentária que ela precisaria

representar para ter o controle de sala de aula, dos alunos, do conteúdo e do trabalho

docente. No jogo das representações do ser mulher professora, os discursos de

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parlamentares, médicos, clérigos, legisladores não apenas espelharam essas mulheres,

mas as produziram.

A professora assume um papel importante nesse processo educacional: era preciso

que a mulher professora possuísse um perfil que reforçasse o discurso da virtude e da

moralidade, dentro e fora do lar. No espaço público e privado, era de sua

responsabilidade exercer uma influência benéfica que contribuiria para a moralização da

sociedade.

Esse modo de ver ou de colocar as regras sociais reorganizou também o discurso

pedagógico, a prática educativa e a instrução feminina específica àquela ordem social.

Este aspecto possibilitou à mulher uma inserção gradativa na vida pública, tanto como

aluna quanto como professora nas escolas femininas das primeiras décadas do Brasil

Republicano.

No final do século XIX, o pensamento liberal brasileiro intensificou seus

propósitos com vistas a colocar o Brasil no nível das nações mais avançadas. Os

projetos de reforma de ensino estavam sintonizados com uma tendência em se construir

um novo modo social no século que se avizinhava. Um projeto pedagógico aliado a um

projeto social promoveria o almejado desenvolvimento da nação (BOTO, 2004, p. 1).

Em 1892, ressoava em Natal o discurso dos intelectuais e teóricos da educação

brasileira. Através do jornal A República, esse discurso é relacionado com os anseios e

expectativas do recente governo republicano.

A transformação desse ramo do serviço público deve ser o primeiro cuidado de um governo patriótico e nacional porque, como bem disse José Veríssimo, o único meio de criar um caráter brasileiro, uno e reto, e a força capaz de manter a coesão nacional no meio da diversidade de clima, de costumes, de interesses, e mesmo de raças, alterado o tipo brasileiro pela imigração no sul e pelo elemento indígena no norte, seria uma instrução sólida e nacional, onde se procurasse incutir no espírito das crianças, de par com os princípios sãos da ciência, o amor pátrio por meio do exemplo e estudo das nossas coisas sabiamente explicadas e desenvolvidas (BIBLIOTECA PÚBLICA, 1892, p.1)2.

Esse discurso revela o sentido que a instrução assumia no século XIX, na cidade

de Natal. As ideias republicanas da década de 1870 até as primeiras décadas do século

2 Optamos nesse trabalho pela atualização da ortografia dos documentos e fontes encontrados.

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XX referendam a instrução pública como indispensável ao progresso do país. Esta

instrução deveria suprir a ignorância popular, elemento incompatível com o sistema

representativo que se desejava construir. A instrução tornara-se imprescindível ao

progresso e desenvolvimento de qualquer nação que se quisesse moderna e democrática.

E naquele momento todas queriam (HOBSBAWN, 1999, p. 46-56).

No entanto, o regime republicano, que nasce em 1889 sob a acepção jurídica do

estado de direito, não traduz esse ideal democrático em seus processos eleitorais.

Fraude, voto de cabresto, favores políticos e exclusão contrariavam os princípios

políticos do novo regime (FERREIRA, 2001). A res-publica, no seu sentido

etimológico, como “coisa pública” ainda não era tão pública assim. A expressão

implícita “para todos” ainda era traduzida na prática “para alguns”. E nessa necessidade

de re-publicar, ou ainda torná-lo pelo povo e para o povo, era uma realidade. Que

melhor instituição de controle social que a escola elementar de primeiras letras para isto

se fazer acontecer? Mas essa foi uma realidade que, nesse período, se configurava

apenas como uma ideia de alguns segmentos da sociedade, notadamente os intelectuais

como Euclides da Cunha, Silvio Romero ou Henrique Castriciano.

Ao mesmo tempo em que se mutilava de fato a democracia, a lei também

exteriorizava uma contradição afirmando por meio do Artigo 72, parágrafo 2º, da

Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891 na qual todos são

iguais perante a lei (CONSTITUIÇÃO, 2007), enquanto no Artigo 70, excluía do

direito de voto mendigos, analfabetos, religiosos e soldados. Além dessas categorias

claramente excluídas, a primeira Constituição Federal do Brasil Republicano

deliberadamente não emitiu qualquer especificidade sobre as mulheres no que concerne

ao mérito das eleições. Esta omissão é perceptível a partir da fala do Deputado Pedro

Américo, congressista por ocasião da citada constituição.

Deixo a outros a gloria de arrastarem para o turbilhão das paixões políticas a parte serena e angélica do gênero humano. A observação dos fenômenos afetivos, fisiológicos, psicológicos, sociais e morais não me permite erigir em regra o que a historia consigna como simples, ainda que insignes, exceções. Pelo contrario, essa observação me persuade que a missão da mulher é mais doméstica do que pública, mais moral do que política. Demais, a mulher, não direi ideal e perfeita, mas simplesmente normal e típica, não é a que vai ao foro ou à praça pública, nem às assembléias políticas defender os direitos da coletividade, mas a que fica no lar doméstico, exercendo as virtudes feminis, base da tranqüilidade da família, e por conseguinte da felicidade social (CAVALCANTI, 2002, p.291).

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Ao deixar a glória do sufrágio feminino a outros congressistas, talvez em outra

constituição e mesmo em outro tempo histórico, excluiu qualquer menção, ainda que

excludente, a esta matéria na Constituição de 1891. A representação que o feminino

assume neste pensamento é de uma relação em que às mulheres é conferido o espaço

privado e a profissionalização das funções domésticas e femininas. Mas como esta tese

tende a demonstrar o trabalho feminino se organiza, neste período, entre o público e o

privado, ao mesmo tempo em que transforma esta agente social, em vetor de cuidado

(no sentido educacional) dentro e fora do lar.

Também nos documentos norte-rio-grandenses, como a Constituição Política do

Rio Grande do Norte de 1898 e a legislação educacional vigente entre 1889 e 1914, são

perceptíveis aspectos que dizem do papel social atribuído às mulheres, bem como as

relações de gênero em fins do século XIX e início do século XX. Essas relações

estavam expressas também nos jornais do período, como A República.

Em dezembro de 1891, o governador Miguel Joaquim de Almeida Castro é

deposto (DEPOSIÇÃO, 1891, p.1). Sua deposição está diretamente ligada à deposição

de Deodoro da Fonseca da Presidência do Brasil e à posse de Floriano Peixoto. Para o

Governo do Rio Grande do Norte é instaurada uma Junta Governativa, composta por

Francisco Lima e Silva, Manoel do Nascimento Castro e Silva e Joaquim Ferreira

Chaves (ARAÚJO, 1982, p.102). Esta Junta Governativa se manteve no exercício

governamental até a eleição do Governador Pedro Velho de Albuquerque Maranhão, em

22 de fevereiro de 1892.

Assinando como Senhoras Norte-rio-grandenses, as mulheres manifestam sua

crença na Junta Governativa, adjetivando-a de patriótica e defensora da verdade. Essas

senhoras se caracterizavam como virginais irmãs do povo e expressavam, de maneira

literária, uma representação feminina desse período. Contemplavam o ideal republicano

através das emoções sinceras de sua alma feminil, cultuavam a liberdade e seguiam os

deveres preconizados pela nova ordem social.

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Nós que sentimos n’alma as emoções sinceras As efusões leais das consciências sãs Nós que somos do povo as virginais irmãs Nós que temos na fronte o íris da esperança Esses eflúvios bons de um novo alvorecer Que sabemos prestar um culto à liberdade Que sabemos seguir a trilha do dever Nós que colhemos sempre os louros da vitória Quando se faz mister amordaçar a dor Que só temos no lábio essa palavra – Honra Que só temos na mente esse ideal – Amor Agora que o porvir sorrindo nos acena Que a cerração passou, que é tudo rosicler Viemos vos trazer as bênçãos da família Viemos vos saudar em nome da mulher. (À PATRIÓTICA JUNTA GOVERNATIVA DO ESTADO, PELAS SENHORAS NORTE-RIO-GRANDENSES, 1891, p.3)

Honra, amor, virtude, razão, família e verdade são palavras que carregam em si

uma trajetória histórica e que se materializam nessa configuração, sugerindo o modo de

ser e de viver das mulheres do fim do século XIX. Seu discurso condensa uma relação

político-social do período, como também uma relação entre os gêneros e a

representação da mulher republicana.

As mulheres foram transformadas em heroínas domésticas, responsáveis pelo restabelecimento da harmonia do lar e da paz da família. Com seus sofrimentos, sacrifícios e virtudes, deveriam afastar todo mal que porventura circundasse seu nicho de amor (CHAMON, 2005, p. 67).

A poesia publicada no periódico norte-rio-grandense e o discurso que dela se

depreende encontram relação com a fala do deputado Pedro Américo, anteriormente

citado, à Assembléia Constituinte sobre o voto feminino. Referendava o discurso

vigente e valorizava a mulher como uma missionária na República, com um

compromisso mais moral do que político.

Por outro lado, a vida pública para a mulher era considerada diante de um sentido

de urbanidade nascente. Uma urbanidade que colocava a mulher como anfitriã e

responsável pela harmonia do lar. A escola e sua educação estética, ou seja, aquela

destinada às funções de sociabilidade, educação religiosa e moral, cumpria parte dessa

função ao proporcionar conteúdos como os do Colégio Particular Natalense.

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Sexo Feminino, Diretora D. Luiza Lima, R. da Conceição, n. 26. Ensina primeiras letras, todos os trabalhos de agulha, noções de música com exercícios de piano. Aceita alunas internas e externas. Mensalidades para as primeiras 40$000 reis; para as segundas 3$000 reis. O pagamento será adiantado (COLÉGIO PARTICULAR NATALENSE, 1892, p. 2).

Apesar desta educação ocorrer, como pudemos perceber pela leitura das fontes,

prioritariamente com base nos espaços escolares, concordamos com Lopes e Galvão

(2001, p.24) que a educação nunca se restringiu apenas à escola. Outras práticas

educativas aconteceram “ao longo do tempo, fora dessa instituição e, às vezes, com

maior força do que se considera”. Em redor dessas práticas é que também focalizamos

nossa pesquisa. Para além da educação escolar, outros processos formativos interferiam

na organização do pensamento e da ação dos indivíduos em uma configuração dada.

Os contos e poesias registrados no período alimentavam o ideal de mulher

virtuosa e abnegada no exercício de sua missão de mulher junto aos filhos e ao marido.

Um desses contos, A partilha, publicado por Coelho Neto no jornal A República, de 10

de janeiro de 1897, retrata a história de uma viúva com dois filhos pequenos, tentando

superar a fome e a doença para cuidar deles. Seu sofrimento é identificado como parte

do dever de mãe que, enquanto embala o filho pequeno e tenta saciar a fome do outro,

esquece de sua precária saúde e segue na missão materna cantarolando passivamente.

Cantava e as lágrimas rolavam-lhe em dois fios ao longo da face magra e pálida. Sofria, mas como era preciso que o pequeno adormecesse, cantava, indo e vindo, devagar, embalando nos braços a criança. O mais velho, três anos, olhava-a sorridente e, de quando em quando, cantarolava ‘Estou com fome, mamãe, estou com fome...’ - Não chores! Olha que vai acordar o maninho. Espera. E, desabotoando, o corpinho tirou o peito farto, pojado de leite e espremeu-o, trincando os lábios descorados por onde as lágrimas corriam fio a fio e, entregando a tigelinha ao filho: - Toma! E não faças bulha (COELHO NETO, 1897, 2).

Acreditamos que as práticas dessas leituras colaboravam como meio educacional

na modelagem de um novo perfil de sociedade que o regime republicano solicitava. A

base de argumentação que relacionava maternidade, domesticidade, abnegação e

sacerdócio aliou-se à uma demanda advinda do aumento no quantitativo de escolas

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femininas e alocou a mulher como a mais apropriada para o melhor desempenho

educacional no país a partir de suas bases: a educação primária.

Em uma sociedade que se queria civilizada pela educação, esse gênero passa a ser

a referência na função de moralizá-la a partir de certa conduta e de certa condução

também no espaço educacional. Moralidade é seu discurso. Virtude, a sua meta.

Ao buscar a história da educação das mulheres, é possível olhar para dentro das

escolas femininas. Através das disciplinas, propostas nos Regulamentos Estaduais e nos

anúncios das escolas privadas, pudemos vislumbrar uma sintonia entre um discurso

sobre o sentido de ser cidadão e uma instrução que pretendia um perfil de mulher, de

família e de sociedade.

O que caracterizava o ensino nessas instituições era um currículo que priorizava a

educação da mulher para além do aspecto instrucional (COLÉGIO N. S. DA

APRESENTAÇÃO, 1894, 2). Educação esta que se destinava a suprir um modelo de

mulher idealizado pelo discurso republicano, que era o de educadora dos filhos e

formadora dos futuros cidadãos, além de se pretender um traquejo social e a boa

representatividade da mulher junto ao esposo.

Esta configuração posta trazia consigo a necessidade de definição de um perfil de

mulheres capazes de educar outras mulheres para este fim. As mulheres reivindicavam a

instrução, ou seja, ler e escrever “como forma de socialização” e sua inserção no mundo

letrado através de espaços de comunicabilidade como jornais femininos, tanto lendo

como escrevendo nestes ou para estes jornais (MORAIS, 2002, p. 69-76). A sociedade

reivindicava uma civilização que se traduziria em progresso. Ambas as reivindicações

encontravam na educação este transmissor cultural por excelência.

Tais anseios sociais faziam com que as escolas destinassem às moças, além dos

conteúdos instrucionais, a música, as línguas estrangeiras e as habilidades domésticas,

formando-as para serem anfitriãs perfeitas, esposas dedicadas e mães ideais. Toda a

configuração traz em seu bojo um modo de ser mulher. Perguntei-me, então: o que

caracterizava esse modo de ser professora nesse momento especifico, no qual se

organizava (e legitimava) no Brasil e em Natal um novo sistema de governo?

Para as professoras as habilidades intelectuais sintonizavam-se com características

morais especificas. Nos impressos do período há uma recorrência acerca desse modo de

ser e de se conduzir enquanto professora. Os indícios apontam a existência de uma

representação moral, intelectual e pedagógica para se exercer a função de professora nas

primeiras décadas do período republicano em Natal. O discurso da moralidade e da

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virtude não estava descrito explicitamente nos conteúdos a serem oferecidos às

mulheres. Mas estavam nos textos dos jornais, nos eventos cotidianos, nas ações das

professoras, no modo como estas mulheres se movimentavam na sociedade natalense.

O período de análise, com início em 1889, estende-se até 1914 e se orienta em

duas direções: o desejo por buscar a professora e a educação que transita entre o século

XIX e o XX e também por considerar um marco de finalização do século XIX, a

Primeira Guerra Mundial. Esta guerra, que se iniciou com o assassinato do arquiduque

austro-húngaro Francisco Ferdinando, marcou o fim do século XIX em seus valores

sócio-culturais, seus modos de ser e de viver, suas maneiras de pensar, suas práticas

culturais.

Tratava-se de uma civilização capitalista na economia; liberal na estrutura legal e constitucional; burguesa na imagem de sua classe hegemônica característica; exultante com o avanço da ciência, do conhecimento e da educação e também com o progresso material e moral; e profundamente convencida da centralidade da Europa, berço das revoluções da ciência, das artes, da política e da indústria e cuja economia prevalecera na maior parte do mundo, que seus soldados haviam conquistado e subjugado; uma Europa cujas populações, incluindo-se o vasto e crescente fluxo de emigrantes europeus e seus descendentes haviam crescido até somar um terço da raça humana; e cujos maiores Estados constituíam o sistema da política mundial (HOBSBAWM, 1999, p. 16).

Em Natal, foi o marco inicial da institucionalização da educação doméstica, com a

inauguração da Escola Doméstica de Natal, voltada a uma educação para as mulheres e

o espaço privado. Um movimento que se organizava dentro processo de expansão da

educação escolar com a consolidação da Escola Normal de Natal e a criação dos Grupos

Escolares, a partir de 1908.

Foi ainda o período de expansão da cidade no sentido leste, engolindo as dunas e

se descobrindo para o mundo. Foi o período da iluminação pública e das instituições de

controle salutares; da implementação de um sistema de transporte coletivo e das casas

de diversão, como o Cine Polytheama, inaugurado em 1911.

O período que se estende entre 1889 e 1914 são anos relevantes para o

entendimento do moderno, do civilizador e do desenvolvimento das sociedades do

século XX. Natal, como capital do Estado, era uma delas. Muitas características de

nossa época têm sua origem nas últimas décadas do século XIX. Algumas bem claras,

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como a legislação moderna relativa ao bem-estar social. Outras, nem tanto, como a

presença maciça das mulheres no magistério voltado às séries iniciais da educação

escolar.

Foi nesse momento histórico específico que, mesmo sendo educadas para o lar, as

mulheres eram professoras, escritoras e dividiam o espaço público com os homens na

pequena Natal do período ora em análise. O longo século XIX (HOBSBAWM, 2006)

termina no Brasil com a expansão do ensino pela interiorização da educação, a criação

de grupos escolares e a implementação das escolas normais em todo o país. Essa

demanda educacional se organizava em torno de uma figura cuja inserção é

gradativamente percebida em todas as dimensões sociais: a mulher (professora)

republicana.

O trabalho docente feminino se consolida num processo reconhecido como

“feminização do magistério”. Aqui associamos este processo também ao cuidado

materno como um vetor educacional que se coadunava a um projeto educacional,

político e econômico envolto em um ideário de civilidade e de modernidade. Voltava-se

a um país que tentava se organizar como Estado-Nação sob o lema da ordem e do

progresso. O enquadramento a esta nova ordem social somente seria possível pela

educação instrucional e moral da sociedade. E esta educação deveria ser executada pela

parte serena e angélica do gênero humano, ou seja, pela mulher. Mas não apenas na

educação escolar, pública. Também este cuidado educacional deveria estar nas casas, no

privado. Esta educação deveria estar nas mãos de uma mulher específica, ou melhor, de

certas facetas singulares de mulheres: a professora, na escola e a mãe-esposa, na casa.

Sempre cuidando dos futuros cidadãos da República.

Na tentativa de demonstrar isto, rumamos em duas direções: uma que busca a

configuração norte-rio-grandense e natalense no fim do século XIX e a outra, a

participação da mulher no espaço público e privado no universo das representações

femininas em Natal, entre os anos de 1889 e 1914.

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Capítulo II Notas do Caminho

Embora não planeado e não imediatamente controlável, o processo global de desenvolvimento de uma sociedade não é de modo algum incompreensível. Por detrás dele não há quaisquer forças sociais ‘misteriosas’ (ELIAS, 1970, p.161).

Na tentativa de compreender o processo global de desenvolvimento da sociedade

natalense de fim de século, nos apoiamos em uma abordagem teórico-metodológica que

nos permitisse perceber além das aparentes forças misteriosas que o movem; para além

dos seus discursos e representações. Esta tese se apresenta, desde o início, com um

enfoque duplo e interativo: a busca de fontes documentais e de um referencial teórico-

metodológico, de maneira a tentar iluminar o primeiro com o segundo.

Tivemos a vantagem de contar com a orientação da professora Maria Arisnete

Câmara de Morais, cujas preocupações teóricas (1998, 2000, 2001, 2002, 2003a, 2003b,

2006) permitiram uma interface entre história, literatura e educação, tripé favorável à

construção desta tese. Morais nos guiou particularmente até a leitura de Elias (1970,

1993, 1994, 1995, 2000, 2001), Chartier (1990, 1999a, 1999b) e Certeau (1982, 2002) e

a conceitos como configuração, representação, táticas e estratégias. Outros conceitos

como civilização, cultura e modernidade são considerados a partir da interlocução com

Castriciano (1892, 1911), Dantas (2000), Bonfim (2005) e Veríssimo (1890).

Pelo fato de pertencer à profissão cuja linguagem nos propomos a estudar,

assumimos o viés de sujeito-objeto. Como professora, enfrentávamos um desafio

semelhante àquele identificado por Bourdieu na sociologia da religião praticada por

sociólogos padres ou ex-padres:

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O interesse ligado ao fato de pertencer a um campo está associado a uma forma de conhecimento prático, interessada, que aquele que não faz parte do campo não possui. Para se proteger contra os efeitos da ciência (ou, quando se trata dos sociólogos, contra a concorrência científica), aqueles que a ele pertencem tendem a fazer dessa pertença condição necessária e suficiente para o conhecimento adequado. Esse argumento é usado correntemente, e em contextos sociais muito diferentes, para desacreditar qualquer conhecimento externo, não autóctone (“ você não pode entender", "é preciso ter vivido isso" ou "não é assim que isso acontece", etc.) e contém uma parcela de verdade" (BOURDIEU, 1990, p.110).

Em função dessa parcela de verdade, o ponto de partida para o material empírico

foi uma pergunta sobre nossa própria formação e sobre aquelas que formaram aquelas

nos formaram, ou seja, sobre as professoras de nossas professoras, em seu aspecto

histórico e cultural. Ou, ainda, sobre os discursos que as forjaram no curso do século

XX e que chegam como permanências históricas até nós.

Os documentos que estudamos durante o mestrado me levaram a perguntar sobre

o modo de ser professora no século XIX. A construção do objeto de estudo para o

doutorado nos levou a pensar sobre o projeto educacional republicano e em que a

representação de mulher e de professora entre 1889 e 1914 se relacionava com este

projeto. Para investigá-lo, seria preciso identificar, compreender e analisar também

aspectos morais, intelectuais, comportamentais produzidos e compartilhados por um

grupo cultural específico, numa realidade dada e temporalmente distante. Como fazê-lo?

A resposta veio através de uma abordagem teórica e metodológica que partisse de

questões específicas, conceitos e categorias de análise que permitissem explicar a

educação feminina, na relação com a cultura, a política e a sociedade do período em

foco.

Desta forma, problematizamos o discurso que se articulava por meio dos

impressos, organizando-o em questões que pudessem orientar o estudo. Como eram

representadas as mulheres nos impressos? Como se estabeleciam as relações sociais e de

gênero nesses escritos? Estes questionamentos são os fios condutores para as análises

das fontes.

Trabalhamos na construção de dados basicamente com duas linguagens: o texto

impresso do jornal encontrado nos arquivos e sua imagem fotografada de forma digital,

além das fotografias de imagens do período. Estas fontes documentais permitem

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vislumbrar os indícios de uma dada configuração histórica e possibilitam as análises

necessárias ao desenvolvimento desta tese.

Através desses fios (ou indícios), chegamos à institucionalização dessa formação

e às instituições que a ela se agregam. A escola, sendo a mais óbvia delas, mas também

as práticas de leitura e a materialidade desta, expressa em jornais, romances, contos,

poesias, legislação, estatísticas. Iniciamos, então, pela apropriação desses materiais: os

jornais que circulavam no período, os romances, contos e poesias que eram

mencionados de alguma forma no jornal, seja a autoria, o título, ou mesmo o material

literário em si, assim como os decretos e leis estaduais e nacionais e os censos

populacionais, estatísticas escolares, com relação à distribuição de professores, escolas e

estudantes.

O uso do método indiciário como suporte metodológico para um trabalho desta

natureza e as referências a Ginzburg (1989, 1991, 2000) permeiam os procedimentos de

construção e análise de dados. Diz o autor sobre o método indiciário:

Se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas – sinais, indícios – que permitem decifrá-la. Essa ideia, que constitui o ponto essencial do paradigma indiciário ou semiótico, penetrou nos mais variados âmbitos cognoscitivos, modelando profundamente as ciências humanas. Minúsculas particularidades paleográficas foram empregadas como pistas que permitiam reconstruir trocas e transformações culturais – cm uma explícita invocação a Morelli, que saldava a dívida que Mancini contraíra junto a Alacci, quase três séculos antes (GINZBURG, 1989, p. 178).

A flexibilidade do método utilizado em trabalhos, desde as ciências humanas até

as ciências biológicas, referendava-o como instrumento de pesquisa válido à

compreensão dos aspectos relativos ao fenômeno humano. Ginzburg pensa o método

indiciário a partir da técnica de um médico, Giovanni Morelli, para analisar a

originalidade e autenticidade da autoria de pinturas. Para distinguir originais de cópias

em obras de arte, o médico italiano do século XIX, Morelli, observava não as

“características mais vistosas, portanto as mais facilmente imitáveis” (GINZBURG,

1989, p. 144), mas os detalhes pouco notados e menos influenciados pela escola a que o

pintor pertencia, como os lóbulos das orelhas ou a forma dos pés. Para ele, importavam

os pormenores mais do que o conjunto da obra.

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Da relação deste com outros dois médicos - Freud e Doyle -, o autor analisa a

natureza indiciária da medicina. A medicina, por sua natureza experimental, foi se

desenvolvendo a partir do “olho clínico” do médico sobre seu paciente ou pela relação

humana com o doente. Os diagnósticos, antes do advento tecnológico dos exames

médicos, contavam com os indícios recolhidos pelo médico na observação dos sintomas

apresentados pelo enfermo.

Três médicos. Três estudiosos da natureza que utilizam seus conceitos biológicos

para compreender e interpretar os indícios da alma humana: Sigmund Freud se utiliza da

premissa de Delfos – “Conhece-te a ti mesmo” – para que os indivíduos busquem

indícios dentro de sua trajetória de vida e se expliquem a si mesmos; Arthur Conan

Doyle, literato inglês, nos apresenta um personagem – Sherlock Holmes – atento aos

detalhes, ao menos óbvio, para demonstrar a força dos indícios na base de uma

investigação criminal; e o crítico de arte italiano Morelli com sua técnica para

diagnosticar obras de arte originais.

As perspectivas metodológicas desses pensadores são os fios que motivam o

tapete indiciário de Ginzburg. E é a partir da metáfora do tapete que o autor apresenta o

método.

O tapete é o paradigma que chamamos a cada vez, conforme os contextos, de venatório, divinatório, indiciário ou semiótico. Trata-se, como é claro, de adjetivos não sinônimos que, no entanto remetem a um modelo epistemológico comum, articulado em disciplinas diferentes, muitas vezes ligadas entre si pelo empréstimo de métodos ou termos-chave (GINZBURG, 1989, p.170).

Este tapete metafórico é o caminho teórico-metodológico; o pesquisador, seu

tecelão. Um tapete que vai se constituindo diante dos olhos deste a partir dos indícios,

sinais, pistas fornecidas pelo campo de investigação a este último. E, nesse sentido, os

jornais de Natal do século XIX forneceram vários indícios de como se era, de como se

institucionalizava aquela sociedade específica no universo de um ideário de

modernidade e civilização. A educação primeira, a educação ministrada pela mulher,

tornava-se o carro-chefe desse movimento modernizador ou processo civilizatório.

Nesta análise importam estes detalhes. Fios que organizam e tecem a constituição

do ser mulher, do ser esposa, do ser professora. Como, por exemplo, o modo de vestir,

de posar para uma fotografia, de olhar, de sorrir e de não sorrir. Também os modos

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como são exaltadas ou execradas em discursos de várias tipologias textuais, a partir de

olhares masculinos e femininos, de políticos, escritores e intelectuais. São pormenores

que organizam um modo de ser e de viver da mulher de fim de século na relação com a

outra parte do gênero humano, como também consigo mesma e com as outras mulheres.

A História Cultural e sua aplicabilidade nas análises das representações oferecem

um suporte teórico adequado a esta investigação. As representações das mulheres se

encontram dispersas em documentos escritos nos diversos suportes textuais

encontrados. A abordagem da História Cultural pressupõe um reencontro do historiador

com as particularidades de cada configuração, na sua complexidade, nas suas tensões e

nas suas permanências. Isto permite, em tese, a apreensão da realidade educacional

natalense dada a ler através destes documentos.

O real assume assim um novo sentido: aquilo que é real, efetivamente, não é (ou não é apenas) a realidade visada pelo texto, mas a própria maneira como ele a cria, na historicidade de sua produção e na intencionalidade da sua escrita (CHARTIER, 1990, p. 63).

Chartier demonstra que este real é também uma narrativa construída a partir da

interpretação de um autor. A realidade (ou o real) é um tecido social construído onde

grupos diferenciados se interrelacionam, num equilibro de tensões permanentes do qual

nascem representações que esses grupos organizam sobre si e os outros. A

representação, portanto, é um conceito que permite compreender o funcionamento da

sociedade a partir da apreensão do real pelos indivíduos no Rio Grande do Norte do

final do século XIX, os autores desta configuração por excelência.

Dada a condição de não-presentidade da realidade em estudo, o conceito de

representação norteia toda a discussão desenvolvida neste trabalho. A representação é

uma construção que os grupos elaboram deles próprios e dos outros e se modelam a

partir das estratégias que se determinam pelo modo como um texto ou uma imagem é

apropriado, tanto em relação ao indivíduo como na relação com um grupo cultural

específico.

As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem os utiliza (CHARTIER, 1990, p.17).

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Buscar as representações nas práticas e as práticas nas representações configura

uma relação dialética percebendo o movimento histórico e cultural sujeito às

interdependências das relações de gênero na configuração dada.

Ao investigar a sociedade de corte de Luís XIV, Elias (2001, p. 29) parte das

estruturas sociais de uma época determinada. Mas, ao tematizar essa estrutura social

particular, ele inclui o estudo da evolução de modelos que permitem a comparação

entres as diversas estruturas sociais de mesmo tipo. “A investigação de uma certa

sociedade de corte do passado também oferece uma contribuição para o esclarecimento

de extensos problemas sociológicos acerca da dinâmica social”. O conceito de

configuração proposto pelo autor demonstra a existência de redes de interdependência

entre sujeitos que convivem num determinado jogo social.

Ela se caracterizaria por uma formação social de dimensões variáveis, desde uma

corte do século XIV e uma sala de aula do século XIX, até uma cidade ou um Estado,

onde cada homem e cada mulher estão ligados ao outro por uma relação de

interdependência; ao mesmo tempo em que se moldam a si e aos outros, moldam a

própria estrutura social.

Em toda parte, o que vemos são os agentes individuais e seus atos, e o que se descreve são suas fraquezas e talentos pessoais. Não há dúvida de que é frutífero e mesmo indispensável estudar a história dessa maneira, como um mosaico de ações individuais de pessoas isoladas. (ELIAS, 1993, p. 16).

Entendemos melhor o contexto social de nossa própria vida quando nos

aprofundamos no de pessoas pertencentes à outra sociedade (ELIAS, 1993, p.93).

Acreditamos que uma investigação sobre as mulheres das primeiras décadas da

República revela o ser mulher com mais clareza para a atualidade. E esta revelação

proporciona uma percepção mais acurada sobre o ser professora, o ser esposa, o ser

profissional feminino em sua constituição histórica. Uma constituição que é, ao mesmo,

tempo individual e coletiva.

Admitindo a sociedade da forma como Elias coloca (um mosaico de ações

individuais de pessoas isoladas), destacamos categorias que permitem, a priori, guiar

nossa atenção para alguns aspectos relevantes da sociedade norte-rio-grandense do

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período em destaque. O caminho escolhido sugere que as categorias de análise se

organizem classificando e delimitando o objeto em estudo.

As mulheres aparecem como filhas e esposas, mães e professoras, escritoras e

irmãs de caridade. Elas surgem dos jornais, dos romances, da legislação do período.

Estas representações são mais bem escrutinadas a partir de categorias de análise que

ajudam a circunscrever melhor a pesquisa.

Ao estudar a sociedade, a mulher e a educação brasileira através dos romances de

Graciliano Ramos, Nunes (2005) nos convida a pensar categorias em história da

educação e gênero. Utilizando três romances do escritor - São Bernardo, de 1934,

Angústia, de 1936, e Vidas Secas, de 1938 - como fontes para investigar a educação da

mulher na década de 1930, a autora sentiu-se impelida pela natureza da pesquisa e do

objeto a ampliar seu universo de categorias.

A autora organizou um corpus partindo da concepção de que, “na obra

graciliânica, a mulher aparece sempre como personagem inicialmente secundária, mas

tem um papel fundamental no desenrolar da história, sendo decisivo o seu

comportamento para o destino da personagem masculina” (NUNES, 2005, p.14).

Buscou então categorias que a guiassem para compreender a representação da mulher e

os papéis sociais a ela atribuídos a partir da ótica da sociedade na qual esta mulher

estava inserida. Estado civil, domínio da linguagem, sexualidade, casamento, família e

mulher ideal figuram como categorias históricas definidas na sua tese, a partir das

sucessivas leituras dos romances escolhidos. Ao lado destas, gênero e educação

conduzem a um olhar ou a uma leitura, “com a pretensão de não ter perdido de vista a

relação entre história e literatura nem esquecido as especificidades de cada uma”

(NUNES, 2005, p.05).

O primeiro caminho tomado foi uma revisão da literatura crítica da obra do

escritor alagoano. Nesse movimento, ela percebe, além dos destaques dados pelos

pesquisadores consultados, como a linguagem clara e concisa do escritor, sua simpatia

por personagens simples e com um humanismo político-ideológico, categorias como

história, memória, educação e escola entre as categorias de análise utilizadas para a

compreensão da obra citada. O enfoque, prioritariamente literário dado às pesquisas,

sugere a Lúcia um caminho metodológico sob outra perspectiva: olhar essa obra pelo

viés da educação e utilizar a literatura como fonte histórica para desenvolver seu

projeto.

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Escolhemos também este caminho ao partirmos de uma revisão de pesquisas

sobre educação e gênero e a leitura de fontes como jornais, livros escolares, almanaques

disponíveis. Estas leituras nos ajudaram a pensar as nossas próprias categorias de

análise.

Primeiramente analisamos as monografias (NOGUEIRA, 1999; BARBOSA,

1999) do curso de Pedagogia e as teses e dissertações (GOMES, 1999; AQUINO, 2002;

MELO, 2002; DIAS, 2003; CARVALHO, 2004; CHAGAS, 2004; MORAIS, 2004;

SILVA, 2004; ROCHA NETO, 2005; RODRIGUES, 2007; SOUSA, 2006; NUNES,

2006) do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Rio

Grande do Norte. Identidade feminina, constituição docente e história da educação

delimitaram as temáticas estudadas.

A revisão desta literatura nos ajudou a pensar gênero e educação, como categorias

de análise; das fontes documentais e literárias emergiram mãe-esposa3 e professora.

Essas quatro categorias permitiram organizar uma categoria central que perpassa todo o

trabalho aonde a análise vai ao encontro das questões postas no curso da pesquisa:

representações culturais femininas.

A discussão metodológica empreendida ajuda a compreender como as duas

perspectivas trazidas por Lopes (1994, p.20) categoria histórica e categorias da história

permitem ampliar o universo de apreensão e análise de um objeto de estudo, ao mesmo

tempo em que ancora e sustenta conceitos válidos para a elucidação de uma questão-

tese ou um problema de pesquisa. Esta autora aponta um primeiro problema: diante das

fontes, às vezes centenas de documentos, é preciso compor um “corpus, quero tudo...

não terei nada”. Se a abordagem funciona como lentes através das quais observamos o

objeto investigado, as categorias são como lupas sobre as lentes que focam o olhar e não

dispersam o pesquisador.

As fontes da pesquisa – sejam impressos ou fotografias, digitalizados ou

transcritos – criam vida e aparecem como um rio corrente de imagens e existências. A

função das categorias neste trabalho é não nos perdermos nesta correnteza dos indícios

oferecidos pelos documentos. É nosso leme nesta navegação incerta e nos ajudam a

3 Durante a pesquisa e escrita de nossa dissertação de Mestrado (PINHEIRO, 2003) esta categoria aparecia dividida em duas organizando-se no que convencionamos chamar “binômio feminino para os oitocentos”. A pesquisa de doutorado reafirmou a presença dessas representações de mulher, mas não mais como um binômio e sim como uma unidade representacional válida para a configuração pesquisada. As duas tornaram-se uma na medida em que as fontes analisadas não concebiam uma esposa que não se tornasse mãe ou uma mãe que não tivesse sido uma esposa.

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focalizar nossa busca em encontrar a mulher professora em Natal, entre os anos de 1889

e 1914.

Estas categorias mantêm a direção da pesquisa. Quando analisamos textos como

Educação da mulher (CASTRICIANO, 1911) ou Costumes Locais (SOUZA, 1999) ou

ainda A partilha (COELHO NETO, 1897), buscamos palavras, contextos que envolvam

as categorias que emergiram das fontes escolhidas e dos documentos coletados no

projeto em curso, como mãe-esposa ou professora. Estas se apresentam nos documentos

envoltas em um ideário de virtude e moralidade, dentro de relações sociais específicas,

em um recorte temporal estabelecido.

Palavras, expressões, imagens recorrentes – como virtude e moralidade

relacionadas às figuras da esposa e da professora –, nos periódicos encontrados,

permitem vislumbrar um universo de categorias que, impostas pelas fontes, foram

determinadas pela relevância e até mesmo pela insistência com que aparecem nos

jornais da época.

Um exemplo é o jornal A República, que traz uma diversidade textual relevante,

apresenta tanto textos ficcionais como não-ficcionais e que circulou durante todo o

período pretendido. Circunscrevemos a nossa busca a este jornal, O sonho e a revista

Via-láctea, através da edição fac similar de Duarte e Macedo (2003), relativos ao

período das décadas de 1890 e 1900. A maior parte desses jornais se encontra em

péssimo estado de conservação, dificultando o acesso, a manipulação e,

consequentemente, coleta de informação4.

4 Particularmente, estamos aqui falando dos exemplares do jornal A República que se encontram no Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte e no Arquivo Público do Estado. A manipulação de muitos dos exemplares foi proibida por esses estabelecimentos a fim de preservá-los para uma posterior restauração. Aguardamos este retorno dos exemplares ao acesso público para pesquisas posteriores, impedidas no momento por esta política institucional de preservação.

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Condições do jornal pesquisado Fonte: Jornal A República: Jan a Jun 1897

Acervo do IHGRN Os dados construídos para a análise do objeto de estudo partem, prioritariamente,

da memória impressa5 presente (ou representada) nos jornais. Quando estes materiais

não nos forneciam todos os dados, eles terminavam por ser o ponto de partida, como

aconteceu com o romance Coração, publicado sob a forma de folhetim no jornal A

República, a partir de 16 de agosto de 1890. Este se texto encontra descontínuo nos

exemplares pesquisados e por isso, buscamos um exemplar do livro que possibilitasse a

apreensão da história por completo. Foi utilizada para esta leitura uma edição de 1949,

encontrada na Biblioteca Municipal de Goiânia/GO. As referências e análises no texto

foram feitas prioritariamente a partir da tradução de Manuel Dantas, encontrada no

jornal A República. Recorremos à edição de 1949 como uma fonte complementar às

demandas do objeto de estudo.

Os materiais que serviram para a construção de dados e consequente elaboração

da tese foram coletados em arquivos do Rio Grande do Norte. Particularmente foi

consultado o acervo do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte

5 Memória será tratada na perspectiva de Jacques Le Goff (1996), ou ainda como a conservação de informações que, em última instância, são representações de um passado lembrado/selecionado e registrado por grupos sociais específicos. Apesar de a memória impressa ter sido o ponto de partida para esta pesquisa, esta não se restringe a informações conservadas apenas na forma verbal escrita. Na medida do possível, utilizamos imagens para auxiliar na análise e compreensão dos objetivos e questões postas, sejam fotografias de pessoas, objetos ou logradouros, ou mesmo de anúncios de jornal.

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(IHGRN), do Arquivo Público Estadual do Rio Grande do Norte (APE) e do arquivo do

jornal Diário de Natal. A sessão de Obras Raras da Biblioteca Central Zila Mamede

também foi espaço constante de consulta.

Os modos discursivos se apresentam como particularidades do pensamento e da

organização social de uma época. Entretanto, levando em consideração os alertas de

Certeau (2002, p. 06) sobre o ofício do historiador, percebemos que a pesquisa

historiográfica tem relação com um lugar, com procedimentos de análise e com a

construção de um texto.

Os problemas de definição, de fontes, de explicação e de síntese, postos por

gerações de historiadores no curso do século XX, convidam a uma fragmentação desse

modo de escrever história (BURKE, 1992). E é a partir desta multiplicidade de

percepções históricas que abordamos um objeto de estudo de forma multidimensional

com um rigor flexível – permitindo o oximoro6. Este modo de ver o fato histórico é o

que torna a realidade opaca da Natal oitocentista mais clara aos meus olhos de

historiadora da educação. Permite, em tese, compreender a educação feminina em uma

pequena cidade do nordeste brasileiro e a uma aproximação das bases que fundam a

formação docente no Brasil.

Esta forma de pensar mundo se encontra em muitos trabalhos de pesquisa da

atualidade. Trabalhos que discutem o fazer docente numa perspectiva histórica e

agregam uma diversidade de fontes que vão de fotografias a textos literários. A

reconstituição de diversos períodos da história é um exercício de reflexão e aprendizado

importante à prática educacional de educadoras e educadores do século XXI. E é nesse

sentido que o esforço de um universo cada vez mais amplo de pesquisadores deixa suas

contribuições a essa temática.

Conforme Catani e Faria Filho (2002), o crescente interesse pelas pesquisas sobre

o universo feminino, tal como ele se revela no registro histórico e/ou literário do

passado, tem sido um dos fenômenos mais evidentes nestes últimos vinte anos, no

âmbito dos estudos acadêmicos. As pesquisas no Rio Grande do Norte fazem parte

também desse crescente interesse sobre a educação da mulher, a constituição do ser

professora e a professora do início do século XX. Esta bibliografia especializada nos

ajudou a pensar esse universo educacional.

6 Figura de linguagem que expressa dois conceitos opostos criando um terceiro paradoxal como “conseguir o impossível” ou “o nada é quase tudo”.

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Em Isabel Gondim, uma nobre figura de mulher, Morais (2003b, p.23) configura

a participação dessa intelectual “na construção da sociedade letrada norte-rio-grandense,

em fins do século XIX e início do século XX.” Suas contribuições estão em áreas da

Educação, História, Dramaturgia e Literatura.

As contribuições da professora Isabel Gondim não se limitam ao aspecto prático

da educação, ou seja, ministrar aulas. O seu livro Reflexões às minhas alunas é um

exemplo da dedicação ao magistério e ao propósito de orientar a mocidade. O livro se

caracteriza por ser um manual de orientação ao sexo feminino, abordando temas que

tratam das fases da mulher, da menina escolar à mulher mãe. A relação de Isabel

Gondim com a educação é um elemento forte e constante em sua existência. “Dir-se-ia

que suas alunas são o seu próprio laboratório de análise e conclusão do que deve ou não

fazer em se tratando de educação, moral e civilidade, ingredientes básicos no convívio

social” (MORAIS, 2003b, p.67).

Ao trazer D. Sinhazinha Wanderley em Sinhazinha Wanderley: o cotidiano do

Assu em prosa e verso (1876-1954), Pinheiro (1997) mostra o cotidiano escolar da

cidade de Assu no início do século XX. A autora reconstitui as práticas da professora

Maria Carolina Wanderley Caldas que, em sua atividade docente de mais de quarenta

anos, contribuiu com o processo de transformação da sociedade assuense, formando

várias gerações de estudantes. Essa professora foi responsável pela introdução de novas

atividades no cotidiano das aulas, como jogos, música e poesia, em contraposição à

prática austera que imperava no período em que iniciou suas atividades docentes no

interior do Rio Grande Norte.

D. Sinhazinha tinha um modo de vida que se diferenciava das outras mulheres de

sua categoria social. Não se limitava ao espaço doméstico e à criação de numerosa

prole. Usando do aparato cultural que possuía, “a mestra saiu do anonimato doméstico e

se impôs enquanto profissional, conseguindo o respeito e reconhecimento da sociedade

assuense” (PINHEIRO, 1997, p. 19).

O texto de Silva (2002), Educação primária em Ponta Negra: professora Leonor

Barbosa de França (1923-1932), ao evidenciar a história e as práticas pedagógicas de

uma professora norte-rio-grandense, revela divergências entre o discurso oficial, contido

na legislação estadual e federal, e as práticas pedagógicas realizadas em comunidades

afastadas do centro urbano de Natal, como Ponta Negra. Essas práticas estavam na

contramão das políticas educacionais vigentes, mas em concordância com as

possibilidades e necessidades daquela povoação naquele momento. A mulher no espaço

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público aparece nesses trabalhos como partícipe ativa na (re)organização do fazer

educativo no Estado do Rio Grande do Norte.

A expansão do ensino no RN (1910-1920): presença de professoras

(HOLLANDA, 2001) destaca a atuação de normalistas no interior do Rio Grande do

Norte. Uma atuação relacionada ao processo de expansão do ensino primário e a

feminização do magistério. Esta expansão foi expressa pea forte presença feminina nas

escolas das primeiras décadas do século XX: 67% de mulheres atuando como

professoras no interior do Rio Grande do Norte, ao lado de 33% de homens na década

de 1920. Em sua maioria, eram jovens recém-formadas pela Escola Normal de Natal,

como a professora Guiomar de Vasconcelos, que foi para Canguaretama/RN lecionar

em 1914, onde permaneceu até sua aposentadoria em 1943.

Ribeiro (2003) traz à tona a discussão da profissão de professora e do celibato

pedagógico no Rio Grande do Norte, através dos intelectuais que publicavam na revista

Pedagogium. A autora reconstitui práticas educativas a partir de um periódico

organizado e direcionado por e para professores, através da Associação dos Professores

do Rio Grande do Norte – APRN.

A pesquisa atribui a lógica econômica das primeiras décadas no Brasil à difusão

das ideias sobre o celibato pedagógico feminino. O realce era dado em torno da

incompatibilidade entre o trabalho na escola e o trabalho em casa: um dos dois seria

comprometido. Na primeira edição da Pedagogium, Nestor dos Santos Lima, diretor da

revista e da Escola Normal de Natal, lembra que “os eugenistas afirmam que as

mulheres que trabalham mentalmente são pouco aptas para a profissão maternal”

(RIBEIRO, 2003, p. 110).

Rocha Neto (2002, p.13), no texto Jornal das Moças (1926-1932): educadoras em

manchete, investiga o Jornal das Moças e enfatiza a presença das professoras Georgina

Pires, Dolores Diniz e Júlia Augusta de Medeiros na região do Seridó norte-rio-

grandense. Esse jornal foi produzido por essas mulheres na cidade de Caicó, numa

publicação semanal, escrevendo “sobre literatura, humorismo e críticas com relação à

condição da mulher na sociedade”.

Seus escritos destinavam-se às mulheres caicoenses, mas alcançaram leitores para

além das fronteiras de sua cidade. Vários municípios do Rio Grande do Norte, como

Ceará-Mirim e Lages, e mesmo no Estado vizinho, como Patos na Paraíba, registravam

o sucesso do semanário feminino (ROCHA NETO, 2002). Ao veicular as ideias e

opiniões das moças caicoenses, essas professoras estavam, ainda no alvorecer do século,

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cientes de sua responsabilidade educativa. Empreendiam práticas jornalísticas que

pretendiam estimular o desenvolvimento intelectual das caicoenses em um período em

que à mulher era reservado apenas o espaço privado.

As práticas e representações dessas mulheres colocam no centro das discussões

não apenas o homem e a mulher biológicos, mas questões mais amplas das relações de

gênero. Ao interrogar a sociedade de maneira relacional, esses estudos colocam em foco

a classificação sócio-cultural entre o que seja masculino e o que seja feminino. O estudo

da categoria “abre perspectivas para análise sobre as mulheres e os homens, sem que

sejam percebidos enquanto sujeitos universais” (MORAIS, 2000, p.6), estejam eles no

universo local, regional, nacional ou internacional.

Em alguns desses trabalhos são apresentadas situações em que as práticas das

mulheres aparecem como parte ou mesmo extensão de atividades essencialmente

masculinas. Perrot (1992) privilegia a análise da mulher popular rebelde na Paris do

Século XIX. Caracterizando essas mulheres como excluídas da história, a autora

reencontra as mulheres em ação, criando elas mesmas o movimento da história nas

mulheres do povo. Diferente da burguesa, a dona-de-casa é responsável pela gestão da

vida cotidiana. Dedica-se inteiramente aos trabalhos domésticos e estes assumem, neste

contexto, uma diversidade maior. A divisão das tarefas e a segregação sexual no século

XIX designaram a mulher para assumir as funções relativas a essa empresa doméstica

que é a família e a sua sobrevivência.

Seu trabalho não remunerado a obrigava a depender do salário do marido.

Administrá-lo foi uma conquista. “Administrar a miséria era, para essas mulheres antes

de tudo, sacrificar-se. Apesar disso, era também a base do poder das donas-de-casa, o

fundamento de suas intervenções, muitas vezes, estrepitosas na cidade” (PERROT,

1992, p. 192).

As lutas pelo pão e pela moradia as faziam enfrentar a dominação masculina, no

momento em que saíam às ruas para protestar contra o pagamento dos aluguéis e o

aumento da farinha. Suas maneiras livres e explosivas eram temidas pelas autoridades;

enquanto os homens eram alfabetizados e aprendiam códigos de civilização burguesa, a

fala das mulheres era carregada de liberdade e subversão. Portanto, era preciso educar

as mulheres, civilizá-las. Para os operários sindicalistas,

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A greve não podia ser uma festa. Um ideal conjugado de virilidade e respeitabilidade faz recuar a rusticidade camponesa, as truculências populares e as formas de expressão femininas que freqüentemente lhe dão continuidade (PERROT, 1992, p. 212).

As práticas cotidianas das mulheres e suas relações com o sexo oposto são temas

de diversas pesquisas históricas. No entanto, a escassez de vestígios acerca do passado

das mulheres, produzidos por elas próprias, constitui-se num dos problemas enfrentados

pelos historiadores. Em contrapartida, encontram-se mais facilmente representações que

tenham por base discursos masculinos determinando quem são as mulheres e o que

devem fazer. Nos arquivos públicos, sua presença é reduzida. Destinadas à esfera

privada, as mulheres estiveram durante muito tempo fora das atividades dignas de

registro (SOIHET, 1997, p. 295).

Nessa perspectiva, Falci (1997) analisa as Mulheres do sertão nordestino e utiliza

livros de cordel, inventários, livros de memória, buscando os vestígios dessas mulheres.

Ao buscar representações do mundo feminino, a autora traça um perfil das mulheres em

um período e lugar determinados. As mulheres são apresentadas em suas diversas

nuanças, atividades e aparência: a filha de fazendeiro, as apanhadeiras de água, as

quebradeiras de coco, as parteiras, as escravas e as ex-escravas. Suas diferenças ganham

visibilidade e expressam uma sociedade estratificada, fundamentada no patriarcalismo

com uma hierarquia rígida e papéis sociais definidos, no que concerne às relações de

gênero.

Mulheres ricas, mulheres pobres; cultas ou analfabetas; mulheres livres ou escravas do sertão. Não importa a categoria social; o feminino ultrapassa a barreira das classes. Ao nascerem, são chamadas ‘mininu fêmea’. A elas certos comportamentos, posturas, atitudes e até pensamentos foram impostos, mas também viveram o seu tempo e o carregaram dentro delas (FALCI, 1997, p.241).

A autora demonstra na sua análise que, apesar das especificidades das três faces

de mulher apresentadas, as interdependências sociais desenharam e marcaram as

personalidades e a vida cotidiana dessas mulheres com alguns pontos em comum, como

a maneira submissa e sem perspectiva com que levavam sua existência. Ricas ou

pobres, livres ou escravas, a sobrevivência desse modelo de sociedade era o elo que as

amparava e as oprimia.

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Nas cidades, esse modelo de submissão e interiorização da mulher também estava

presente. Em Mulher e família burguesa, D’Incao (1997) afirma que o século XIX foi o

século da família burguesa e do ideal burguês de mulher. Uma mulher desobrigada de

qualquer trabalho produtivo, dedicada ao marido e aos filhos numa instituição social

marcada pela valorização da intimidade e da maternidade.

Esses elementos coincidem com o processo de urbanização do Brasil em que o

processo de privatização da família influenciou até mesmo a arquitetura das casas e

marcou também a ascensão de um espaço intermediário entre o lar e a rua: o salão de

visitas. Esse era o reino das mulheres da elite. No entanto, ao submeter-se aos olhares de

seus convidados, a mulher teve que aprender a se comportar de maneira adequada. E

isto significava um certo tipo de educação que incluía aprender a comportar-se em

público e conviver com os outros de maneira educada. Educação esta que exigia da

mulher um mínimo de formação literária.

O controle das emoções e a instauração de uma sensibilidade burguesa, em que o

cuidar se torna a mais importante tarefa feminina, limitou ainda mais a mulher para o

privado, para a repressão dos desejos e necessidades, para o enclausuramento do corpo e

da alma. Suas vestes e seus gestos, o que eram e o que representavam, expressam nas

cidades o que se verificou com relação ao campo: as formas de dominação masculina.

As leituras solitárias e os saraus geraram um público leitor eminentemente feminino.

Este aspecto incentivou a disseminação de novelas e de um ideal de amor romântico.

Essa atmosfera é apreendida por Morais (2002), ao desvelar as leitoras do século

XIX em Leituras de mulheres no século XIX. A leitura assumiu um papel importante a

partir da segunda metade do século XIX e os romances analisados pela autora dão conta

da construção dessa sociedade letrada ao enfocar a mulher na condição de leitora e

frequentadora de saraus e reuniões de leitura.

Analisando as maneiras como as mulheres viviam e pensavam sua relação com os

impressos, a autora focaliza a leitura dessas mulheres e as configurações criadas por

suas representações modeladas pelos escritores nos livros e nos jornais. A leitura desses

textos revela maneiras de convivência da sociedade do Rio de Janeiro e modelos de vida

nessa configuração.

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Às leitoras do século XIX, conforme observo em Machado de Assis, por exemplo, recomendava-se a prática de leituras amenas e delicadas, cujas temáticas girassem em torno de amores românticos e bem-sucedidos. São os códigos da moral da época, com o intuito de preservar a pureza das incautas jovens do século XIX (MORAIS, 2002, p.51).

O texto era, nas mãos das incautas jovens, um instrumento perigoso. O auxílio em

favor dessas leitoras vinha através de profissionais socialmente autorizados, como

editores e mestres, que orientavam a melhor leitura para essas mulheres. Com o jogo de

poder instaurado, a leitura corre o risco de tornar-se “uma prática passiva, na qual o

escrito é o estabelecido”. E “o estabelecido” era velar pela ordem familiar de maneira

casta e discreta.

A pesquisa de Morais (2002), no entanto, revela que as mulheres do século XIX

reivindicavam mais que o reinado doméstico. Os jornais destinados ao público feminino

conclamavam as leitoras a não se limitarem ao papel de mães de família, enquanto as

incentivavam a enviarem seus textos para publicação. E essas publicações revelam,

taticamente, a maneira dessas mulheres verem e desejarem uma sociedade.

Heller (2002) analisou perfis femininos em textos escolares de 1800 a 1930.

Utiliza os textos As doutoras, de França Junior e A mulher, de Coelho Neto, cujas

tramas envolvem as alterações que a intelectualização da mulher pode provocar na

família. As personagens representadas nos textos passam a repudiar o conhecimento de

atividades fora do lar, por estas afetarem as relações familiares, especialmente o

casamento.

Luísa, personagem de As doutoras, após o nascimento do seu primeiro filho,

abandona o exercício da medicina ao perceber que a profissão não era mais importante

que o cuidado com o filho. Da mesma maneira, Leonor, personagem do livro A mulher,

deixa de lado os livros e os estudos para dedicar-se a atividades mais femininas que não

a condenassem a um celibato forçado, como cuidar da aparência física.

As atitudes das personagens analisadas pela autora revelam qual espaço é

destinado à mulher nesta sociedade.

A solução de ambas para garantir a manutenção da ordem familiar e social é largar os estudos e rejeitar o que haviam aprendido. Luísa esquece seus conhecimentos médicos e recorre à superstição popular para tratar das doenças do próprio filho. Leonor substitui livros e práticas desportivas por cuidados exagerados no vestuário, a fim de realçar a delicadeza física da mulher (HELLER, 2002, p. 5).

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Os textos analisados revelam o olhar masculino sobre mulheres leitoras e autoras,

ao mesmo tempo em que deixam perceber um modelo social de mulher através das

personagens ali representadas por autores homens. As mulheres eram consideradas

leitoras desqualificadas e necessitadas da tutoria masculina para a leitura das obras.

Além dessa tutoria, a vigilância dos homens sobre as leituras, principalmente sobre suas

interpretações, era atividade corrente.

Estes escritos – tanto o de França Junior (2008) como o de Coelho Neto -

traduzem os receios de uma ordem social diferente da pretendida e que altere o ideal de

família. Esta não era uma preocupação apenas no Brasil, mas em muitos países

ocidentais.

Mulheres sós, título do ensaio de Dauphin (1991), designa um termo que

caracteriza, na Inglaterra do século XIX, as mulheres que não possuem marido. Essas

mulheres solteiras se contrapõem ao modelo de mãe-esposa valorizado neste período e

despertam uma preocupação da Igreja e do Estado com a desestabilidade da família.

Este é um indicativo de uma sociedade que se modificava. Segundo a autora, as

convulsões da época possibilitaram o seu nascimento; as guerras do final do século

XVIII e o êxodo rural possibilitaram o seu surgimento em maior escala. A missão da

mulher é, no século XIX, cuidar da casa, do marido e dos filhos. Diante disso, o que

fazer com essas mulheres solteiras?

O código napoleônico garantia às moças solteiras a gestão de si e de seus bens.

Por não serem assistidas pelo Estado, como as viúvas por exemplo, estas acabavam por

deixar a família e irem à busca de suprir suas próprias necessidades. A educação

vitoriana e a moral católica dirigiam as jovens para atividades que exigiam tato,

delicadeza e instinto maternal, como as profissões de professora, governanta e assistente

social. As profissões do setor social atraíam as mulheres solteiras; tornavam-se

enfermeiras, professoras ou operárias, e deveriam elevar o nível moral das instituições

em que trabalhavam. A moral e a virtude doméstica as acompanhariam em suas

atividades públicas.

No entanto, a recuperação religiosa dos problemas demográficos não basta para preservar o casamento. Parece que tanto a educação vitoriana como a moral católica, que ensinam a resignação e a castidade, continham a semente da contestação (DAUPHIN, 1991, p.489).

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Ser solteira podia ser também a marca desta contestação. Os escritos femininos

analisados pela autora revelam o celibato como uma opção pela liberdade. As mulheres

faziam desta escrita um “grito de revolta contra a clausura doméstica”. (p. 490)

O celibato feminino se tornou, no final do século XIX, uma bandeira política; a

figura da “solteirona” cedeu lugar à celibatária citadina. A emergência histórica das

‘mulheres sós’ pelo acaso e a necessidade no decurso do século XIX é um indício da

decadência desse modelo vitoriano e dessa moral religiosa que encerrava as mulheres na

casa e as limitava ao cuidado do marido e dos filhos, como também da conquista do

espaço público por elas.

No entanto, Lagrave (1991) chama a atenção para uma “emancipação sob tutela”

nas relações entre o espaço público e o privado, destinado às mulheres no início do

século XX. Uma emancipação sob tutela. Educação e trabalho das mulheres no século

XX destaca que, no início e até meados do século XX, as mulheres estavam

condicionadas ao trabalho ou ao matrimônio. Ela aponta o declínio da natalidade, o

crescimento no quantitativo de mulheres no trabalho e, após 1918, o regresso dos

homens aos campos e às fábricas como fator de causalidade no discurso que aloca as

mulheres no lar junto às atividades domésticas. A história das mulheres e sua

participação nas sociedades tem sido foco da atuação de historiadores educacionais que,

atuando em seus espaços de produção, contribuem para compor o mosaico

historiográfico brasileiro.

O trabalho de Villela (2000, p.119) traz, em O mestre-escola e a professora, o

processo de feminização do magistério na relação com a expansão da instrução pública

a partir da segunda metade do século XIX no Brasil. Nas décadas de 1870, as discussões

sobre a necessidade de formação do professor ganham maior destaque e a difusão das

Escolas Normais pelo país torna-se uma realidade crescente. Entre a criação da primeira

em 1835 até a consolidação dessa instituição formativa no fim do século XIX, “uma

profissão quase que exclusivamente masculina tornar-se-ia prioritariamente feminina”.

A autora registra que, mesmo sendo considerada como a mais apropriada aos

cuidados das crianças, o acesso das mulheres a um trabalho remunerado foi palco de

lutas, de conquistas e de concessões. O celibato pedagógico, os hábitos de reclusão das

mulheres dos espaços públicos e outros mecanismos ideológicos tornavam essas lutas

nem sempre bem sucedidas. A inserção gradativa e frequente das mulheres na docência

foi um espaço de conquista feminina em uma sociedade que percebia a mulher pública

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numa linha limítrofe entre a mulher normal (mãe, esposa) da mulher marginal, ou seja,

“a louca, a prostituta e a preceptora.” (VILELLA, 2000, p. 119).

As práticas educacionais de Ina Von Binzer, uma preceptora alemã que veio

trabalhar no Brasil entre 1881 e 1883, são o foco de Canen e Xavier (2000, p.71). Essa

professora atuou nas regiões de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, e suas cartas

descrevem um quadro sócio-educacional do Brasil de fins do século XIX. As cartas

analisadas revelam o desejo dos pais, de extratos sociais mais elevados, de oferecerem

às suas filhas uma educação voltada para as línguas estrangeiras (alemão e inglês). Por

outro lado mostra a dificuldade das moças em assimilar e assumir posturas e culturas

tão diferentes das suas próprias. “As cartas da educadora assinalam o caráter privado e

ornamental da educação destinada aos filhos das elites brasileiras do período imperial,

demonstrando que nem sempre a educação formal se fazia nas escolas”. (CANEN;

XAVIER, 2000, p.71).

O nosso trabalho de investigação histórica se une, portanto, ao esforço dos

intelectuais aqui destacados, na tentativa de ser mais um estudo que contribua para a

historiografia da educação e sobre a mulher brasileira e, particularmente, a norte-rio-

grandense.

Certeau (2002) lembra que o estabelecimento das fontes, a eleição de categorias, a

organização de conceitos, o recorte temporal e espacial, a problematização e,

acrescento, as pesquisas da História da Educação são procedimentos de pesquisa que

fazem parte de uma operação técnica que também participa deste projeto de

investigação.

Tornando-se um texto, a história obedece a uma segunda imposição. A prioridade que a prática dá a uma tática de desvio, com relação à base fornecida pelos modelos, parece contradita pelo fechamento do livro ou do artigo. Enquanto a pesquisa é interminável, o texto deve ter um fim, e esta estrutura de parada chega até a introdução, já organizada pelo dever de terminar (CERTEAU, 2002, p.94).

As práticas se enunciam em termos de poder e dominação, posto que, ao se impor

um discurso sobre o outro, este último é invalidado por quem detem os instrumentos de

dominação, fazendo com que outros discursos que possam ter figurado naquele

momento histórico passem a não-existência. Perceber o não-dito no dito, o silenciado no

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falado pressupõe um fazer história que perceba o lugar social em um movimento de

reorganização também a partir do trabalho do historiador. E esta é nossa pretensão aqui.

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Capítulo III Perfis de Educadoras7 no Rio Grande do Norte

Há em mim marcas de vidas antepassadas; meus sonhos passeiam por alamedas e casarias distantes. Nesses passeios busco perder-me e, no profundo da alma, encontrar-me: mãe e esposa, mulher e professora (PINHEIRO, 2003, p. 120).

Era março de 2008 e sentimos a necessidade de garimpar as concepções de mundo

das mulheres que contribuíram para a educação norte-rio-grandense nas pesquisas que

envolvem gênero e práticas culturais. Na esteira de uma sociedade que se constituía

republicana, moderna e civilizada, uma representação de mulher e o seu papel social

também eram forjados. Um modelo profissional feminino era construído no calor das

transformações políticas que mudaram a face administrativa deste país. Fomos buscá-las

na revisão de uma literatura específica do Rio Grande do Norte. Este corpus

bibliográfico nos solicitou um guia, e as perguntas de Silva (2004, p. 27) tornaram-se

este guia por sobre a própria bibliografia pesquisada: “O que sabemos sobre a educação

nas primeiras décadas do século XX? Que práticas adotaram? Como era a organização

escolar?”. Em uma proposição anterior, Morais (1998, p.71) se perguntava: “o que se

sabe acerca das leituras femininas no Brasil da segunda metade do século XIX?”. Em

dez anos – 1998-2008 – foi possível identificar o quanto esta pergunta pôde

desmembrar-se em várias outras, na tentativa de capturar as dimensões existenciais da

mulher em sua constituição histórica.

Estas perguntas deslizaram por nossa alma como ecos de uma história sobre

mulher, educação e profissão feminina. A partir deste movimento intelectual, outras

perguntas se organizaram para buscar o perfil ou os perfis de educadoras que estas

pesquisas apontavam: O que já se sabe sobre essas mulheres professoras, esposas, mães,

escritoras? Podemos descortinar seus desejos, suas necessidades, seus anseios,

utilizando estas pesquisas como fonte histórica? Acreditamos que se pode vislumbrá-los

7 Assumimos esta nomenclatura por não encontramos, à época em estudo, um termo único para o conjunto de práticas educativas desenvolvidas pelas mulheres. Educação era instrução. E esta só era ministrada em escolas e por professoras. Consideramos, no entanto, que existiam outros espaços para além da escola, que educavam como livros, revistas e artigos de jornal e, nestes, as mulheres atuavam como educadoras, sendo professoras ou não. E mesmo nas Igrejas, através das associações beneficentes de que faziam parte, elas estavam educando outras mulheres e a si mesmas.

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através dos discursos sobre o feminino produzidos por homens e mulheres em várias

configurações. E por meio dos trabalhos de pesquisa que trazem professoras, relações de

gênero e educação feminina, tentamos estabelecer um perfil das educadoras no Rio

Grande do Norte no final do século XIX.

Assim, chegamos ao nosso recorte. O ponto de partida foram as dissertações e

teses apresentadas ao Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade

Federal do Rio Grande do Norte, pela linha Cultura e História da Educação.

Escolhemos os trabalhos que traziam perfis de mulheres que nasceram ou viveram entre

a última década do século XIX até segunda do século XX. Considerando o período de

análise deste trabalho – 1889 – 1914 –, estas mulheres estariam imersas no mesmo jogo

de representação cultural e territorial. Nesse sentido, nosso segundo passo foi buscar as

monografias de Graduação que, nessa mesma linha, pudessem ampliar o escopo que

buscávamos, entre os anos de 1999 e 2008.

Ao final, optamos por oito trabalhos acadêmicos entre Monografias, Dissertações

e tese, que se caracterizaram pela focalização na história de mulheres que estiveram

presentes na organização e consolidação do projeto educacional republicano no Rio

Grande do Norte. Os perfis foram construídos a partir desses trabalhos que destacam

práticas de professoras, de escritoras e de jornalistas neste Estado e que se unem ao

nosso próprio trabalho em suas vertentes teóricas, metodológicas e temáticas, ligados à

base de pesquisa Gênero e Práticas Culturais: abordagens históricas, educativas e

literárias.

A pujança do trabalho desta base de pesquisa encontra nos congressos de História

da Educação sua consolidação como um grupo atuante e socialmente relevante nesta

área de pesquisa e ensino. Quando nos debruçamos na produção dos três primeiros

Congressos Brasileiros de História da Educação, realizados no Rio de Janeiro em 2000,

Natal em 2002 e Curitiba em 2004, a categoria gênero – foco principal das pesquisas

deste grupo - apareceu enfeixando um dos eixos temáticos.

O aumento significativo na inserção de trabalhos de gênero no Rio Grande do

Norte chama a atenção sobre a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e

a base coordenada pela professora Maria Arisnete Câmara de Morais. A Base de

Pesquisa Gênero e Práticas culturais: abordagens históricas, educativas e literárias foi

responsável por um terço das comunicações publicadas no II Congresso Brasileiro de

História da Educação (CBHE).

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No entanto, é flagrante a presença da UFRN em todos os certames nacionais, carreando 37,6% das inserções na temática. Maria Arisnete Câmara de Morais e Rosanália de Sá Leite Pinheiro8 emergem como as principais orientadoras da pesquisa sobre gênero na instituição. Cabe ao nordeste, aliás, o destaque na produção apresentada no eixo gênero nos vários Congressos (VIDAL, 2006, p.16).

Percebemos, pela leitura dos anais dos congressos citados, que a discussão sobre

gênero alargou as fronteiras do eixo em que vinha se limitando e marca presença em

outras temáticas, como profissão docente. Este fato configura um reconhecimento de

que a área de educação não apenas é densamente frequentada por mulheres, mas que

esta realidade acontece numa relação estrita com a outra parte do gênero humano. Sendo

gênero uma categoria relacional por excelência, compreendemos que entender a cultura

escolar passa pela percepção deste movimento relacional também a partir das

professoras e da feminização do magistério, desde meados do século XIX até hoje

Seguramente isto decorre do fato de que os estudos de educação vêm percebendo

que a supremacia feminina na profissão docente é algo que deva ser considerado como

relevante para as pesquisas sobre educação, particularmente educação escolar. Estuda-se

a mulher porque é de mulheres que tem sido feita nas últimas décadas a educação.

Acreditamos que um entendimento mais amplo sobre a cultura escolar está intimamente

ligado à compreensão da constituição desta profissional que impregna a instituição

educacional. Só se entenderá a mentalidade escolar quando entendermos a mentalidade

de quem nela atua: mulheres e homens e a relação entre ambos.

Não deixa de ser intrigante observar que as mulheres estejam mais bem sucedidas

que os homens no espaço escolar, seja apresentando permanência maior e progressão

mais regular nos bancos escolares, seja assumindo majoritariamente os postos no

magistério e na arena educacional. Isto convida a indagar sobre as especificidades dessa

cultura escolar, seu funcionamento, as relações de poder estabelecidas e os significados

de gênero aí constituídos. Sem esquecer que este espaço, hoje tão feminizado, é o lugar

de socialização de grande parcela da infância brasileira. Hoje, e desde fins do século

XIX, as mulheres estão à frente da educação dos futuros cidadãos. Há que se perguntar

sob qual modelo de profissional se organiza este pensamento educacional e o quanto

este intervém na prática docente atual.

8 A grafia correta do nome da professora referida é Rosanália de Sá Leitão Pinheiro.

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Este trabalho ruma na direção de uma história das mulheres-professoras adultas e

de sua educação, atenta às tensões, ambiguidades, relações de poder e de gênero e a

constituição das identidades docentes para além dos quadros da educação formal nos

limites que unem mulher e docência. Em certa medida, pesquisamos, escrevemos,

falamos de nós. Por isso a ideia de Morais (2003c, p.17) nos parece tão cara: pesquisa e

história de vida caminham juntas. Talvez estejamos procurando o unicórnio dourado

quando a realidade é mais simples: as pesquisas privilegiam as mulheres porque são

feitas por mulheres. Se cruzarmos as informações referentes a temas de pesquisas e

gênero de pesquisadores, isto vai ficar muito claro.

Nietzsche (2000) nos lembra que somos nosso rebanho. Nossa verdade é a do

nosso grupo. Bem ou mal, verdade ou mentira é apenas uma forma de inclusão ou

exclusão dos indivíduos em cada formação social. Por isso, buscamos os discursos no

interior deste universo social, ou seja, nas relações sociais e de gênero no Rio Grande do

Norte do final do século XIX e nas pesquisas (nosso “rebanho”, afinal) que oferecem

perfis de educadoras deste Estado.

O que temos nestas pesquisas é a representação dos modos de existência das

mulheres natalenses do fim do século XIX. Estas representações foram percebidas nos

diversos estudos e ajudam a entender esta constituição do ser professora, do ser esposa,

do ser mulher, a partir também dos perfis traçados pelas pesquisas em história da

educação norte-rio-grandense.

Começamos por destacar a presença da professora Guiomar de Vasconcelos no

cenário educativo norte-rio-grandense a partir do trabalho de Silva (2004). Ao enfocar

as práticas educativas de professoras do início do século XX, a autora sugere um

modelo de mulher discreta, destituída de vaidades e dedicada ao trabalho docente e à

religião católica. Guiomar de Vasconcelos é lembrada por ex-alunos seus.

Era uma moça solteira, de vida reservada e dedicada ao ensino, à família e à igreja. Encontrava-se sempre em companhia da irmã Georgina, e principalmente das amigas Iná e Agá Calafange. De aparência severa, vestida de cores e modelos discretos, essa imagem ainda é lembrada por pessoas que a conheceram. Maria Alves Pessoa, ex-aluna e afilhada, fala a respeito da mestra: “Guiomar era uma moça fina e educada, de modos sérios e discretos. Respeito e admiração ela tinha bastante. Muito discreta com os vestidos e penteados, ela era menos vaidosa que as Calafanges” (SILVA, 2004, p.34).

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Essas características da professora são tão lembradas por esses ex-alunos quanto

as informações acerca dos seus métodos de ensino e os materiais utilizados em sala de

aula. Isso demonstra que as práticas sociais (e morais) estavam interligadas com as

práticas pedagógicas. A representação de boa professora era condicionada tanto ao

conteúdo programático e à didática de sala de aula, como a um modo de vestir e de

portar-se.

Guiomar de Vasconcelos nasceu em Recife, em 1888, e fez o ensino primário no

Colégio Americano9, em Natal/RN. Permaneceu nesta escola durante quatro anos e teve

acesso a um modelo de educação alicerçado em princípios como cientificidade,

pragmatismo e moral cristã protestante. Privilegiava os processos intuitivos de ensino, a

co-educação dos sexos e disciplinas que elevavam a educação escolar para além do

aspecto instrucional.

A formação da mulher estava embasada em um modelo idealizado de filha, mãe,

esposa, moralmente digna, com condições intelectuais para contribuir de modo efetivo

na ordenação social, a partir do cuidado em princípios de liberdade, individualismo,

ordem e superação. Além das disciplinas notadamente escolares, os preceitos morais e

cristãos, as prendas domésticas, as línguas valorizavam o papel do sexo feminino na

família e na sociedade.

O pensamento progressista do Colégio Americano apontava para um modelo de

participação feminina, alicerçado em uma idéia cristã de companheira do marido,

auxiliando-o nas atividades da vida prática, para além do universo privado. A exemplo

da própria Katherine Porter, que ajudava na missão do marido de propagar a fé

evangélica através de ações educativas institucionais.

Para Costa (1995), a opinião dos americanos causava desconfiança na sociedade

local. Mas reconheciam que a concepção dos americanos sobre o papel das mulheres na

sociedade vinha contribuindo para melhorar a vida das moças e mudar a mentalidade

dos pais que ali matriculavam as filhas. O caráter modelador da educação se fazia

presente no modo de conceber o mundo de suas ex-alunas. Depois de concluir seus

estudos neste Colégio, Guiomar tornou-se normalista, de onde saiu professora em 1913.

9 Esta primeira escola evangélica do nordeste localizava-se no bairro da Cidade Alta e foi fundada por Katherine Porter, esposa do Rev. Willian Calvin Porter, em 1895 (MATOS, 2008). Segundo Costa (1995), coube naquele período à professora Rebecca Morrisette assumir a condução do Colégio, auxiliada pela brasileira Sidrônia Carvalho, membro da Igreja Presbiteriana de Natal.

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No ano seguinte assumiu a vaga de professora primária no Grupo Escolar Pedro Velho

em Canguaretama/RN.

Silva (2004, p.94) destaca que, ao ler e reler as entrevistas de seus informantes, as

imagens mais vívidas sobre esta professora eram o traje desprovido de excessos de

vaidade, o porte reservado e a moral destacável. Um exemplo de mulher e de

professora. “Vestida de vestido tubinho, bem acinturado e de mangas longas, ela lia alto

com toda a turma, diz Maria Alves Pessoa, ex-aluna de Guiomar”. O gosto pelas roupas

escuras, como o azul, o preto e o marrom, era um sinal de luto pela morte dos parentes e

de seu noivo. Na fotografia em que aparece entre duas amigas – as irmãs Calafange de

Canguaretma-RN –, não conseguimos perceber os tons escuros que ficaram impressos

na memória de suas ex-alunas.

Guiomar de Vasconcelos entre as irmãs Calafange10

(SILVA, 2004, p.35)

10 Silva (2004) não traz em seu texto a data desta da foto. Mas se considerarmos que Guiomar de Vasconcelos sempre residiu no solar Calafange no tempo em que residiu e lecionou em Canguaretama/RN, estimamos a data entre 1914, data de sua chegada no município, e 1943, ano de sua volta para Natal. Numa busca de imagens através da web, tomando como base as roupas e os penteados das moças, podemos auferir esta data constituindo a década de 1920.

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O penteado e a postura sérios, bem como as roupas fechadas, caracterizavam o

estilo da época para as moças em geral. Mas as vestes da professora Guiomar

acompanhavam o tom claro das suas parceiras de domicílio. Isto sugere que na

fotografia acima Guiomar, destacada entres as irmãs Calafanges, ainda não parecia ter

aderido à imagem da senhora Maria Alves Pessoa. Este modo de vestir que em Guiomar

é atribuído ao luto e à tradição que este estado acarreta, podemos verificar em outras

professoras do final do século XIX e início do século XX. Uma predisposição a este

tipo de vestuário.

Dolores Cavalcanti11, entre amigas (MELO, 2002, p.36)

11 A data da fotografia não é precisada pela pesquisadora. Os modelos de roupas inserem possivelmente Dolores e suas amigas no final do século XIX, na década de 1900.

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Um pouco anterior a Guiomar, Dolores Cavalcanti aparece na fotografia, também

entre duas amigas. Esta professora tem a fisionomia séria, nenhum sorriso ou sinais

esfuziantes lhe enfeitam o rosto. Os cabelos estão presos singelamente num coque sobre

a nuca e um vestido escuro de mangas compridas complementa o visual. No trabalho

que discute a atuação desta mulher na sociedade ceará-mirinense, Melo (2002) provoca

uma discussão entre os fazeres profissionais de uma mulher da elite ceará-mirinense.

Suas práticas deixam perceber uma mulher intelectualizada, que acredita no trabalho e

na religião católica como a força motriz para a felicidade terrena.

Como escritora, utiliza o jornal como meio educacional para defender a instrução

como mecanismo de independência e valorização feminina; como religiosa, acredita no

trabalho paroquial e no serviço a exemplo de Maria, mãe de Jesus, e no seu exemplo de

virtude; como professora, condensa na execução das práticas docentes preceitos de

mulher cristã-católica e cidadã norte-rio-grandense.

Dolores Cavalcanti nunca casou. Perante a condição de celibato assumiu uma vida

de dedicação à Igreja Católica e ao trabalho de educadora. Na Igreja Matriz de sua

cidade, fazia parte de um grupo de senhoras denominadas Filhas de Maria, devotas de

Nossa Senhora da Conceição, padroeira da cidade. Entre seus manuscritos, ela deixou

um caderno intitulado Mês de Nossa Senhora das Dores. Nele escreveu a história de

Nossa Senhora junto a seu filho Jesus e passagens da Bíblia. Este caderno possui uma

seqüência a ser seguida e é composto de ladainhas e de exemplos de boa conduta. Seus

escritos refletem sua aliança com Maria Nossa Senhora, tomada pelas senhoras da

sociedade como exemplo a ser seguido em todas as virtudes.

Eis o modelo para imitarmos. Eis a Mãe de Deus, pura nos costumes, paciente nas dores, nos dizendo sereis salvos se fordes meus devotos; a vossa devoção vos salvará, se com a inocência no viver e a paciência no sofrer, preparardes vossa imortal coroa (MELO, 2002, p. 44).

Dolores Cavalcanti nasceu em 1885 e entrou para o Colégio Interno Nossa

Senhora das Neves, em João Pessoa/PB, em 1892. No ano de 1896 foi para o Colégio

São Vicente de Paula, em Recife/PE. Em 1902 assumiu como professora a Escola

Pedro de Oliveira Correia e, depois, o Grupo Escolar Felipe Camarão. Lecionou

também no Colégio Santa Águeda, uma escola de orientação católica dirigida pelas

freiras da Congregação Irmãs Franciscanas de Nossa Senhora do Bom Conselho.

Todas em Ceará-Mirim/RN. Iniciou-se como docente em 1902 em Ceará-Mirim, onde

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ministrou aulas até 1951, e se aposentou em Natal em 1960. Como outras professoras

no início do século, Dolores estava preocupada em formar as crianças para serem os

homens do amanhã. “Procurava garantir, através da transmissão de bens culturais e de

um conjunto de normas e valores, a prática de todas as virtudes, a obediência às leis, a

sujeição e a honra aos poderes constituídos, à dedicação ao país” (MELO, 2002, p.75).

Segundo Lima (1937, p. 346) além desse grupo, existiam vários outros semelhantes na

igreja de Ceará-Mirim. Este fato ocorria em muitas paróquias espalhadas pelo Rio

Grande do Norte, como é possível percebermos, tanto nos jornais do final do século

XIX como nos relatos de professoras do início do século XX.

Esses valores faziam parte de um universo simbólico que formava almas, no dizer

de Carvalho (2001). A versão positivista da República encontrou no Brasil um solo

fértil. A lei de três estados, evidenciada pelo sistema filosófico comteano, previa a

superação da Monarquia, enquanto um sistema político relacionado à fase teológico-

militar, pela República, melhor encarnação da fase positiva de um projeto

governamental. O progresso e o desenvolvimento da Nação são atrelados ao sentido da

República como a verdadeira democracia. E esta só seria possível através de um esforço

coletivo de uma educação balizada em um conjunto de normas e valores legítimos. Este

conjunto de valores encontrava nas professoras e na educação ofertada por elas este

mecanismo de difusão. Mas uma difusão que, longe de ser laica como pretendia a

educação constitucional, associava normas pátrias a valores religiosos.

Dolores, tal qual Guiomar, é lembrada por seus ex-alunos a partir de uma

formação que unia a instrução e a religiosidade: uma professora séria12 e exemplar.

Inácio Sena, entrevistado por Melo (2002, p.36), acrescenta a este perfil a amabilidade,

a docilidade, a simplicidade e a elegância no vestir.

12 Pelo que pudemos depreender dos trechos a que tivemos ter acesso através do trabalho lido, esta seriedade era sinônimo de sisudez.

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Dolores Cavalcanti13 (MELO, 2002, p. 96)

Seu sobrinho e filho adotivo, entrevistado por Melo (2002, p. 34), afirma que esta

elegância registrada na fotografia acima era buscada na França e chegava pelo porto de

Recife/PE. Uma elegância a serviço de um modo particular de ser e de viver. A

elegância atribuída a Dolores, por meio das memórias do seu filho/sobrinho, nós

podemos apreender na análise desta imagem. O mesmo cuidado com o vestir pode ser

percebida na fotografia abaixo, que traz a professora caicoense Júlia Medeiros. Ambas

trazem a moda de seu tempo, as preferências de seus modelos e a relação destas com o

meio social a que estavam expostas.

13 Utilizando os mesmos padrões de referência e busca das fotos anteriores vamos inserir Dolores a partir desta foto no contexto da década de 1910.

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Júlia Medeiros, 1926 (ROCHA NETO, 2005, p. 112)

Duas décadas as separavam, assim como uma grande distância territorial e

formativa. Dolores não cursou Escola Normal como Júlia Medeiros, mas ambas

estavam unidas por serem mulheres professoras, jornalistas, religiosas e celibatárias. Do

litoral ao sertão, do final dos oitocentos até muito além da década de 1920, encontramos

permanências nos modos de fazer e ser docente no Rio Grande do Norte.

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Na fotografia, a seguir, é importante destacar algumas peculiaridades. Todas as

moças se encontram bem vestidas. Acompanhando a moda, as roupas assumem um

comprimento menor nesta década de 1920. Assumem a mesma postura séria na

fotografia que Dolores e o corpo reto e perfilado deixa transparecer a austeridade

feminina. No entanto, Júlia Medeiros, assinalada na foto, assume uma postura mais

leve, com as pernas um pouco afastadas e o corpo mais relaxado. Também é a única

entre elas que está sorrindo. À exceção de uma fotografia aos 74 anos de idade, esta é

uma constante em todas as fotografias dispostas no trabalho de Rocha Neto (2003),

como podemos verificar nesta imagem:

Festa de Sant’Ana em Caicó/RN, 1927 (ROCHA NETO, 2005, p. 111)

Júlia Lopes Medeiros nasceu em Caicó, sertão do Rio Grande do Norte, em 1896.

Numa região conhecida como Seridó e vinda de uma família abastada, foi lhe permitida

uma educação mais completa, que incluía línguas, piano, canto, dança. Típica instrução

oitocentista para as meninas da elite brasileira.

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Veio para Natal14 na intenção de ampliar seus estudos. Manteve-se

financeiramente amparada pela herança material da mãe. Este pecúlio lhe fora destinado

por ser a única dentre as cinco irmãs que não tinha pretendentes ao casamento. Às irmãs

estava garantida a sobrevivência pelo matrimônio.

Estudou inicialmente no Colégio da Imaculada da Conceição, fundado em 1902,

pela Congregação de Santa Dorotéia de Paula Frassineti. Este colégio foi a primeira

escola religiosa particular de Natal.

As irmãs Dorotéias, já estabelecidas em Recife, Belém do Pará e São Luís do Maranhão, iniciam sua missão na cidade do Natal. A vinda das Dorotéias para a capital do Rio Grande do Norte, a pedido do Bispo Diocesano D. Adauto de Miranda Henriques, teve o objetivo de abrir uma Casa de Educação - a primeira Escola Católica e Particular da cidade. A missão de educar as meninas e as jovens da sociedade do Natal foi confiada a Rvda. Madre Luiza Lucentti – Provincial da Congregação de Santa Dorotéia no Brasil e Superiora do Colégio de São José, em Recife (FRANCERLE, 2008, p.1).

Paula Frassinetti, fundadora da Congregação, entregou sua vida a Maria, após a

morte dos pais, e se dedicou a cuidar do processo educativo de meninas, em Lisboa e no

Brasil. O catolicismo ultramontano do século XIX se insere no contexto de

recristianiação católica por meio de instituições educativas-religiosas, das quais

participavam muitas ordens e congregações ligadas ao culto mariano, como os Irmãos

Maristas e as Filhas de Maria Auxiliadora, depois conhecidas como Irmãs Salesianas.

Rocha Neto (2005) deixa entrever que a educação primária de Júlia Medeiros foi

completada neste colégio religioso de orientação católica. No ano de 1921, com 25 anos

de idade, ingressou na Escola Normal de Natal, onde se formou docente em 1925,

voltando em seguida para Caicó/RN.

Os ex-alunos de Júlia se referem a ela como inteligente, mas desligada.

Maneirosa, mas com personalidade forte e firme. Vaidosa e preocupada com a

aparência, estava sempre atenta aos catálogos das modistas e atendia aos ditames da

14 Rocha Neto (2003) não especifica a data desta vinda. Vamos considerar alguns dados para tentar aproximar a uma data deste evento na vida de Júlia Medeiros. Ela veio estudar em uma escola religiosa e paga. Mesmo não sendo estatal, as escolas privadas sempre tenderam a seguir os Regulamentos da Instrução Pública, entre outros motivos, para referendar e dar credibilidade às suas instituições. O regulamento em voga trazia o primário composto de seis (06) anos, consistindo de quatro (04) anos do primário e mais dois (02) de complementar. Terminado o primário fazia-se o Exame de Admissão para cursar a Escola Normal de Natal. Rocha Neto aponta o ano de 1921 como a data de entrada de Júlia nesta Escola. Sendo assim, estimamos a vinda de Júlia entre 1915, se considerarmos os seis anos de primário e 1919, se considerarmos os dois anos complementares para o Exame de Admissão.

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moda, particularmente durante os dias da Festa de Santana15. Sua reconhecida

intelectualidade a chamava a ser representante dos colegas nas festividades do Grupo

Escolar Senador Guerra, onde lecionou durante muitos anos (FÉLIX, 1997).

Estes atributos a levaram a assumir diversos cargos na cidade, incluindo dois

mandatos como vereadora. No processo de expansão e feminização do magistério,

normalistas como Guiomar, Júlia e Myrtilla Lobo contribuíram na interiorização maciça

da educação primária no Estado. A contribuição destas normalistas foi inegável.

Myrtilla Moura Lima Lobo foi estudante de escolas públicas elementares até

entrar na Escola Normal de Natal. Sua história como mulher e docente na região do

Seridó, das primeiras décadas do século XX, é contada em uma narrativa auto-

biográfica e dada a conhecer por Morais (2004). Este trabalho apresenta depoimentos

transcritos de entrevistas coletadas, entre os anos de 2001 e 2003, e reflete sobre o

ensino e a atuação de professoras primárias no século XX, na Região do Seridó/RN.

Através das narrativas de professoras que figuraram como alunas ou docentes nessa

região do Estado, estes depoimentos reconstituem o modelo educacional utilizado na

região em diversos momentos da nossa historia educacional. A autora trabalha com três

gerações de mulheres, alocando-as como alunas ou docentes em três períodos históricos,

compondo o mosaico de todo o século XX.

A valorização da escolaridade, os castigos corporais, os rituais cívicos no interior

das escolas, são aspectos ressaltados pela autora em relação à primeira metade do século

XX. As memórias das professoras descortinam o cotidiano de uma escola baseada nos

princípios da escola tradicional, preocupada em disciplinar e ordenar uma população de

alunos que se destinavam a ocupar funções sociais compatíveis com o ideal republicano

de ordem e progresso.

Myrtilla Lobo nasceu em Natal, em 1914. Fez o primário no Grupo Escolar

Augusto Severo entre, 1922 e 1927. Em 1928, aos 14 anos, ingressou na Escola Normal.

Quando eu terminei o primário, fui fazer Escola Normal. Eu queria ser professora. Também havia poucas possibilidades. Tinha a Escola do Comércio, tinha a Escola Doméstica e a Escola Normal. A Escola Doméstica era só pra gente rica, aquele povo do interior. (MORAIS, 2004, p. 126).

15 Esta festa é a mais importante da região sendo objeto de devoção particular de duas cidades: Caicó e Currais Novos. Sobre a tradição e a relação de pertencimento dos seridoenses a esta festa, ver ARAÚJO; MEDEIROS (2003)

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Ela lembra que sua turma no Normal iniciou com 34 alunos e terminou com 05.

Sobre essa evasão, Aquino (2007) deixa pistas: os anos na Escola Normal requeriam

disponibilidade e persistência. Os exames escolares tornavam difícil a ascensão das

alunas e dos alunos. Segundo o relato de Myrtilla Lobo, “os professores tinham energia

e moral, dirigiam bem a classe, os alunos obedeciam” (MORAIS, 2004, p.125).

Acreditamos que esta forma de tratamento pedagógico, ao mesmo tempo em que

cuidavam dos aspectos próprios de suas salas de aula, estabeleciam um padrão para as

práticas pedagógicas das futuras e dos futuros professores: trabalhariam com energia e

moral para que seus alunos os obedecessem e, dessa forma, adquirissem o saber escolar.

Depois de diplomada ela, foi trabalhar em São João do Sabugi. Era uma cidade

pequena e, apenas uma vez por mês um padre, vinha celebrar missa. Segundo a

professora, o padre era muito intransigente; para ele, fora do catolicismo, só existia

pecado e maldição. Myrtilla Lobo era protestante.

Fiquei na casa de um casal muito católico. A senhora era muito carola, conversou com o padre e depois comigo. Disse que estava cometendo pecado mortal dando hospedagem a uma protestante. – Se a senhora fosse ensinar catecismo, eu podia ficar com a senhora aqui. Mas eu disse que não sabia dar catecismo. Ela disse: então pode procurar outro lugar [...] Só tinha 18 anos (MORAIS, 2004, p. 126).

Com uma formação toda em escolas estatais, esta professora não teve “ensino

religioso nem no primário” (Ibid, p.126). Sua formação religiosa advinha da casa

materna. Ela atribui o preconceito ao fato dela ser da capital. Mas se bem nos

lembramos, no início da nossa travessia rumo aos perfis das educadoras, vimos que a

professora Guiomar de Vasconcellos tinha uma boa relação com os moradores da

também pequena Canguaretama. As pessoas talvez tivessem medo era de quem não

seguisse a religião tradicional do Brasil, a doutrina católica. Myrtilla se configura em

uma exceção do ponto de vista doutrinário religioso em nossas educadoras aqui

caracterizadas.

Uma tradição de duzentos e dez anos de jesuíta impregnou os fazeres educativos

dos preceitos e da moral cristã tomasina (AQUINO, Tomás, 2004). Estes preceitos

atravessam a Reforma Pombalina (SILVA, 2006), os projetos laicos republicanos e

encontram terreno fértil nos recônditos do sertão norte-rio-grandense. Mesmo depois da

expulsão dos jesuítas, mais um século foi vivenciado na escola brasileira sob a doutrina

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do catolicismo conservador de inspiração jesuítica. O traço religioso católico exerceu

forte influência na educação e no sistema organizacional escolar brasileiro.

Com uma demanda crescente de salas de aula no final do século XIX, as Escolas

Isoladas e as Escolas Reunidas foram a solução para minimizar os efeitos da falta de

escolas, particularmente nas cidades menores e sítios isolados da zona rural do Estado.

Mal aprendiam a ler e escrever, as meninas já se tornavam professoras de seus irmãos e

irmãs. Iam se formando no exercício da profissão e se configurando como professora

leiga, ou seja, aquelas que aprendiam no próprio fazer docente, sem nunca frequentar

uma instituição de formação para esta prática profissional.

Foi o caso de Nathercia Cunha de Morais, que iniciou a dar aulas no final século

XIX em Jardim do Seridó. Ao ler os depoimentos das professoras transcritos pela

pesquisadora, tem-se de imediato a noção de como se compreendia a educação e o papel

das professoras nas comunidades configuradas. Estas narrativas trazem em si o contexto

social, os modos de ser e de viver das mulheres no fim do século XIX.

Nathercia Morais atribui a si a invenção da palmatória na cidade e conta como

“expulsava” os alunos que não queriam estudar fora da sala de aula. “Botei ele pra fora

e disse: você vá embora e não volte mais. Eu sou a dona da escola, sou quem mando”.

(MORAIS, 2004, p.86). A professora Nathercia iniciou suas atividades docentes em

1912 e se aposentou em 1967; casou-se em 1917 e teve dezoito filhos. Como a

remuneração de professora particular não era suficiente, ela ainda costurava pra fora

para ajudar ao marido.

Uma geração de professoras que fizeram a educação das primeiras décadas do

século XX traz, no conjunto das histórias contadas, perfis de professoras e uma

representação da docência norte-rio-grandense. Além de Myrtilla Lobo e Nathercia

Morais, temos Floripes Medeiros e Maria Calixto como parte deste conjunto de que

falávamos acima.

A professora Floripes Medeiros nasceu em 1919 e Maria Calixto em 1920, ambas

na região do Seridó norte-rio-grandense. Enquanto Floripes Medeiros carrega o mérito

da professora valente, mas que ensinava de verdade, Maria Calixto tem da população o

atributo de santa, por ser católica fervorosa e lidar pacientemente com os problemas da

vida. “A pessoa tem que sofrer pra ser feliz” (MORAIS, 2004, p. 109).

Ambas não saíram do ensino elementar, estudando apenas até o quarto ano

primário. Floripes casou-se e constituiu família. Maria Calixto mora com um irmão

deficiente mental que ela chama “o penitente”. Ambas ensinavam o catecismo como

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parte do conteúdo oficial de suas aulas. Estes aspectos religiosos não eram apenas parte

de sua vida social ou uma re-ligação com o divino, como sugere o termo. Comportam

aspectos da relação social, de gênero e de poder estabelecida nos contextos pesquisados.

Floripes diz que

Chico Quinino era primo legítimo de papai. Fundou a cidade e era proprietário. Quando indicou meu nome pra ser professora, determinou logo que eu tinha que também tirar o terço [...] eu ensinava catecismo, a rezar e a dar a lição.Eu aprendia logo. Mas o importante não era apenas saber, era ter autoridade. Minha felicidade era Chico Quinino. Ele tinha moral. Mas aluno tinha medo do professor, respeitava (MORAIS, 2004, p.97).

Se as normalistas de Natal aprendiam em seus cursos de formação o rigor e o

controle de sala de aula como recurso didático às suas praticas, estas professoras

aprendiam com suas antecessoras (talvez leigas como elas) que o saber e a dor

caminhavam juntos na trilha do conhecimento. Uma característica dessas professoras do

sertão, privilegiadas por Morais (2004), era este rigor por meio de punições físicas

caracterizadas, entre outras coisas, pelo uso da palmatória, mas também pelo castigo e

mesmo pela supressão da liberdade de ir e vir.

Galvão (1998) aborda estes aspectos acontecendo na escola primária paraibana

indicando ser uma característica da escola da transição do século XIX para o XX a

convivência com práticas educativas já abolidas pelos compêndios e legislações

educacionais. “Professor bom era o que tinha moral. Os pais achavam bom” (MORAIS,

2004, p.99).

Floripes Medeiros tinha o prestígio e o reconhecimento da comunidade paroquial.

E ela assume que este lhe é devido por ter dedicado toda a sua vida à Igreja. Também o

devotamento que dirigiu para a escola mereceu o reconhecimento da população que a

elegeu a Educadora do Século em sua cidade, Ipueira/RN. Curiosamente, apesar de ser

casada e ter filhos, a família não é evocada como espaço de dedicação, nem de

reconhecimento. Este espaço é privilegiado por Maria Calixto.

Não morei em colégio de freira porque não quis ir [...] Apareceu casamento, convite pra ir pra colégio de freira, passou um missionário que queria me levar, mas eu não fui não. Eu tinha minha família pra cuidar (MORAIS, 2004, p.106).

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Ela começou seu trabalho em escolas como merendeira da Escola Dom Delgado.

Sua memória não alcança o ano em que isto aconteceu e para nós esta data ficou perdida

nas brumas do relato lacunar de uma memória octogenária. Considerando o período em

que nasceu, vamos pensar nesta atuação ocorrendo no início da década de 1940. Longe

dos oitocentos, mas ainda muito perto de alguns dos seus conceitos.

Ela conta que, certa vez em que o lanche a ser servido era rapadura, haviam se

formado duas filas: uma para meninos e outra para meninas. Uma menina tirou uma

bandinha da rapadura e ela a repreendeu duramente porque a regra era dar primeiro aos

meninos. A menina retrucou que estava com fome e por isso havia pegado o doce. Ela

ficou com pena da menina e não brigou mais. Mas era algo que não saía da lembrança o

fato dela ter repreendido a menina. No relato não é possível perceber por que o evento

marcara sua memória. Indica, no entanto, uma tendência feminina a priorizar o cuidado

com o masculino neste período. As razões para isto talvez estivessem em um discurso

maternal ou simplesmente uma categorização que supunha ser o sexo forte o primeiro

em qualquer ambiente e por qualquer coisa, ainda que fosse um pedaço de rapadura. A

segurança traduzida em confiança e depositada nos homens atravessa o século e

encontra Floripes Medeiros votando em um candidato homem porque ela não confia nas

mulheres para cargos políticos. Se tivermos como referência suas próprias existências,

elas são confiáveis apenas em assuntos de família, de igreja e de escola.

A conduta social era tão ou mais importante que o saber do conteúdo programado.

“O que contava no perfil da professora, além do conjunto de saberes que ela devia

dominar (matemática, leitura, escrita), era a decência, a moral, a fidelidade aos

costumes e à boa educação, as normas, regras e rituais da sociedade e da Igreja

Católica” (MORAIS, 2004, p.134).

As condutas no interior do Estado se repetiam na capital, como na atuação da

professora Leonor Barbosa de França. Esta mulher associou ao seu ofício de professora

o de mãe-esposa. Mais do que isto: o casamento lhe proporcionou a entrada no

magistério e este lhe deu o suporte financeiro para o sustento da família.

Leonor Barbosa de França nasceu em Natal em 1900, casou com o primeiro

marido, em 1919; tornou-se professora na Escola Isolada, em Ponta Negra, assumindo a

cadeira do marido quando este estava debilitado e não conseguia ministrar as aulas.

Com essa formação, conquistou a vaga de professora leiga na Escola Municipal

Rudimentar, depois na Escola Rudimentar Estadual. Em 1923 assumiu a Cadeira de

Ensino Misto da Escola Municipal Rudimentar e em 1932 assumiu como professora da

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Escola Rudimentar Estadual (Escola Isolada Jerônimo de Albuquerque). Casou com o

segundo marido em1933 – três anos após a morte do primeiro marido -, aposentou-se

em 1946 e faleceu cercada de filhos e netos, em 1975.

A identidade nominal da professora vai se transmutando também pela relação

doméstica e o nome paterno substituído pelo conjugal. Sua vida, como seu nome,

transmuta-se na relação com o gênero oposto. Nasceu Leonor Alves. Como era órfã, foi

adotada por irmãs de caridade. Com as Irmãs Dorotéias, no Colégio Imaculada

Conceição, aprendeu a ler e a escrever, as prendas domésticas, bordados, costuras,

atividades da catequese e dedicação à liturgia. Estes traços religiosos vão compor esta

educadora por toda sua vida.

Agregou Barbosa ao nome através do casamento com o primeiro marido. Com o

segundo casamento, tornou-se a professora Leonor Barbosa de França, como ficou

conhecida entre seus contemporâneos. De Leonor Alves a Leonor Barbosa de França, a

trajetória dessa mulher se fez na confluência que moldara seu ser mãe-esposa e

professora.

Estava sempre lendo. Suas ex-alunas lembram que, quando chegavam para a aula

particular, ela estava lendo um livro ou o jornal da missa. Entre os títulos do seu acervo,

estavam a Seleta de Autores Modernos, o Livro de Leitura de Felisberto de Carvalho e

romances como Direito de Nascer, do cubano Félix Caignet, o preferido segundo as

netas (SILVA, 2004, p.41).

As leituras dessas mulheres diziam muito das suas formas de apreensão. Se

considerarmos essas práticas de leitura como práticas educativas por excelência e essa

educação literária como um meio difusor de valores, compreendemos o modo como

essas mulheres concebiam o seu entorno e, por serem educadoras, o reproduziam a

outros de sua espécie. O texto literário, particularmente, assumia neste contexto um

caráter prescritivo e muitas obras literárias funcionavam como livros de leitura ou

literatura didática, na fala de Barreto16 (1915). Objetivavam a formação do caráter, tais

como Coração de Amicis (1949) ou Através do Brasil, de Bilac e Bonfim (2000). Os

livros de leitura de Carvalho (1934a) ou a coletânea de Barreto (1915) traziam uma

seleção de textos literários que acabavam por ter dupla função; ao mesmo tempo em que

16 Arnaldo de Oliveira Barreto nasceu em Campinas em 1869 e morreu em São Paulo em 1925. Foi redator da Revista de Ensino em 1902 e autor de obras pedagógicas como Cartilha Analytica, publicada em 1909. Foi professor em São Paulo, entre os anos de 1892 e 1914 e diretor da Escola Normal da Praça da República entre 1924 e 1925. De 1915 a 1925 organizou a Coleção Biblioteca Infantil, da Companhia Melhoramentos de São Paulo (BERNARDES, 2008).

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treinavam a mente para a decodificação do texto escrito, pululavam de ensinamentos

sobre civilização, hábitos modernos e valores pátrios.

A professora Isabel Urbana de Albuquerque Gondim percebia como essas práticas

de leitura influenciavam os modos de vida das mulheres. Talvez por ter sido uma leitora

proficiente ou talvez por ter sido uma professora atenta. As leituras femininas eram por

isso objeto de preocupação desta professora. Professora e literata ela era ciente da força

educacional desse meio. No seu entendimento, a leitura de bons livros era essencial e

os romances realistas figuravam como um deturpador de caráter para futuras mães de

família. Esta educadora nasceu em 1839, na Vila Imperial de Papari. Hoje este vilarejo

transformou-se no município de Nísia Floresta e fica a 33 quilômetros da capital do

Estado. Permaneceu solteira cuidando da família, ensinando e escrevendo. Iniciou sua

carreira docente em 1866, ao assumir a cadeira de ensino primário feminino no bairro

da Ribeira (MORAIS, 2003b). Aposentou-se após 33 anos nesta mesma cadeira, em

1890.

Tomando a si o encargo de ajudar a família, a professora Isabel Gondim

costurava peças exclusivamente para a Capitania dos Portos, para ampliar os recursos de

suporte financeiro necessário. A situação financeira pessoal se tornou mais confortável

quando, a partir de sua aposentadoria, pôde se dedicar a corrigir e publicar seus livros,

ampliando seu pecúlio. Declarava pertencer à Igreja Católica Apostólica Romana. Mas

Morais (2003b, p. 37) percebe, a partir das fontes analisadas, uma compreensão de

mundo para além dos princípios meramente religiosos; uma formação calcada na ética e

no culto da justiça; uma mulher preocupada com a família, os valores pátrios e o

conhecimento.

Em 18 de março de 1898 escreve ao redator do Jornal A República para corrigir a

omissão da fonte utilizada por Zepherino Arruda para descrever a derrocada da Bastilha,

na Revolução Francesa. O autor agradece em nota “a esmola do quinau”, prometendo

“com a mais sincera das contrições, não mais cair em semelhante pecado de lesa-

história francesa”. Já aposentada, suas preocupações educativas se manifestam através

dos tipos da folha de jornal.

O perfil da professora trazida por Morais (2003b, p.45) a caracteriza como uma

mulher que “escreveu até morrer, impassível, superior, fidalga, desdenhosa dos gabos,

dos afagos e dos amavios” (MORAISb, 2003, p.45). Não casou e não teve filhos seus.

Mas era reconhecidamente mãe no sentido que lhe atribui a sociedade, no cuidado, no

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aconselhamento, no suporte financeiro e intelectual aos irmãos menores, sobrinhos e

sobrinhos-netos.

As teorias oitocentistas, particularmente o evolucionismo e o positivismo,

apontam para a fragilidade feminina e a predestinação da mulher para a maternidade.

Isabel Gondim, uma mulher do seu tempo, escreve o poema A mulher, sua desdita e

referenda este papel. Alguns versos:

Contra o nosso infortúnio nada intento, Curvado lhe serei o frágil peito, Embora do martírio o duro efeito Da própria vida faça meu tormento. Muito pouco se pede à divindade Mas para ele em graças tudo dera Essa infeliz porção de humanidade (GONDIM apud MORAIS, 2003b, p.56).

Os padrões morais por ela eleitos reserva à mulher o papel de coadjuvante, cuja

participação deve priorizar uma conduta social recatada. Dentro dessa linha de recato e

rigor, aconselha as mulheres através de sua obra a um comportamento moderado e

modesto, conforme ela conduz sua própria vida. Este modo de ser mulher está presente

no manual de conduta Reflexões às minhas alunas (1910). Publicado em 1874 este livro

foi destinado à instrução feminina na Província do Rio Grande do Norte. Teve mais

duas edições – 1879 e 1910 – e, com a segunda edição, teve uma tiragem de cinco mil

exemplares (MORAIS, 2003b, p.75). Se a conduta social era tão importante nesta

configuração, este manual conduzia as mulheres por essas sendas desde a infância até a

vida adulta.

Ciente do efeito educacional que tinham os meios impressos, parece ser também o

caso de Palmyra Wanderley. Sem formação pedagógica e mesmo quase nenhuma

experiência na docência de crianças ou jovens, seus textos apresentam aspectos

prescritivos, próprios da intenção educacional. Como jornalista, Palmyra Wanderley

também ofereceu a esta cidade contribuições à educação feminina. Talvez por ter tido

acesso à educação e talvez por perceber desde cedo o quanto pudesse se informar,

alimentar um ideal, legitimar formas, modelar pensamentos e, mesmo, assumir e

provocar novas posturas em um século que se iniciava. Sua família, reconhecidamente

de intelectuais atuantes no Estado com figuras como Sandoval Wanderley ou

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Sinhazinha Wanderley, eram nomes presentes na literatura, teatro e educação escolar

potiguar. As experiências de professoras como Dolores Cavalcanti e Adelle de Oliveira

(BARBOSA, 1999) e seus respectivos jornais manuscritos A Esperança e O Sonho

permitiram a jovem Palmyra advogar para si a constituição da primeira revista feminina

natalense. A Via-láctea iniciou em 1914, tendo o seu primeiro número em outubro deste

ano. A edição fac similar de Duarte e Macedo (2003) nos dá a conhecer os oito números

da revista que circulou até junho de 1915.

Palmyra Wanderley era uma dessas mulheres que, mesmo não exercendo a

docência, contribuiu através de seus escritos jornalísticos como educadora em Natal. “A

imprensa constitui um canal facilitador de comunicação e é através dela que os

moradores de Natal têm acesso às expectativas de transformações que a chegada do

novo século vinha provocando” (CARVALHO, 2004, p.20).

O caráter educativo dos seus textos pode ser percebido na revista Via Láctea. Sob

o pseudônimo de Ângela Marialva, Palmyra revela às suas leitoras, de modo singular e

crítico, a leitura que fez de um autor português sobre a educação da mulher. No intento

de resolver os problemas da educação voltada às moças casadoiras, prescreve, em março

de 1915:

Para a educação moral, uma escola verdadeira: o cristianismo. Para a educação doméstica, as escolas de donas de casa, as escolas de noivas – no dizer poético. Estas escolas influem de tal modo sobre a sociedade que um inspetor belga dizia à Sra. Condessa de Diesbach “pretendemos resolver o problema social por meio da mulher feita verdadeira mãe de família”, confiando nas 300 escolas que lá havia (DUARTE; MACÊDO, 2003).

O texto prescritivo e o tom de ensinamento do artigo sugerem um modo de fazer

educativo através da imprensa jornalística. Ao mesmo tempo sugerem uma

representação feminina – a verdadeira mãe de família – e um modelo de educação para

elas – a mulher feita nas escolas de dona de casa - através da qual iriam resolver o

problema social. O problema social belga não nos cabe aqui analisar. Mas o problema

social brasileiro, no momento histórico a que nos dedicamos neste trabalho, para estas

pessoas aqui configuradas era a organização de uma nação ordenada, moderna e

civilizada. Elementos que serviriam ao progresso e desenvolvimento nacional.

O sobrinho de Palmyra faz uma descrição de sua tia. A memória de Jayme

Carmelo é atraída para uma figura baixinha, gorda, “loira, cabelos encaracolados, olhos

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muito azuis, pele muito branca e de face corada.” Era reservada, muito sofisticada e

nunca falava dela mesma ou demonstrava sentimentos. Fatos que ele atribui a um hábito

de família. Ressalta ainda que, embora devota a Deus, não era carola. Ela mesma o diz

numa das edições da Via Láctea que não fazia parte de nenhuma dessas organizações

pias, mas que contribuía sempre e com o que podia para a obra dos desvalidos

(CARVALHO, 2004).

Estas organizações eram muito comuns. Segundo Lima (1937), uma característica

entre as mulheres de sociedade era cuidar dessas instituições e as atividades que elas

desenvolviam. Os indícios dessas associações estão noticiados no jornal A República,

desde chás beneficentes às comissões para ajuda aos necessitados, organização de festas

de padroeira, beneficentes e novenários a santos de devoção.

Deste mesmo quadro de beneficiárias para a Igreja Católica participava

Magdalena Antunes. Talvez sua percepção quanto ao caráter educativo de seus escritos

não fosse tão intencionais como os de Isabel Gondim ou Palmyra Wanderley, mas ainda

assim é possível perceber como os escritos ressoavam nelas próprias e em suas

contemporâneas.

Sobre Magdalena, sua neta, Lucia Helena Pereira, diz como esta se configurou em

presença marcante na família.

Era meiga e educada, um tanto conventual em suas atitudes – sempre preservando o culto religioso com as missas domingueiras e a fervorosa fé em sua protetora, N. Sra. Da Conceição. Manteve-se lúcida e forte até o fim, conservando peculiar serenidade. Era inteligente e leitora assídua de autores diversos, chamando a atenção de todos como a figura estóica, comovente e resignada a uma cadeira de rodas, decorrente da amputação de sua perna esquerda, acometida de trombose (ANTUNES, 2003, p. 16).

No espaço público era vista por figuras como Câmara Cascudo, no final da década

de 1950, como mãe e avó, cuja existência evocava a vida doce e tranquila da sinhá moça

do início do século XX. “Criada em engenho de açúcar, com mãe preta, educada em

colégios do Recife, plantando sua casa nos ritos da aristocracia rural do Ceará - Mirim”.

Uma senhora afeita aos trabalhos domésticos, carregando em si a formação básica das

sinhás moças de outrora, quituteiras inigualáveis, fazedoras de bolo, de renda de

almofada de crivo. O romance memorialista desta escritora é tratado pelo seu sobrinho,

Nilo Pereira como uma

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obra erguida pelo coração e pela inteligência” em carta dirigida a tia em 1947 classificando-a como cronista da civilização rural do Ceará - Mirim. Da Embaixada Brasileira no Uruguai, Iolanda Gama classifica Oiteiro como “uma obra educacional e profundamente humana (ANTUNES, 2003, p.19-26).

Estas representações da escritora no final de sua vida, já senhora idosa e longe do

engenho e da cidade que a formou, nos remete a buscar esta sinhá moça de que fala

Cascudo e, por meio dessas memórias, encontrarmos este modelo feminino no final do

século XIX em Ceará-Mirim.

Menina de engenho, Maria Magdalena Antunes Pereira pertencia a uma família de

prestígio. Era filha do coronel José Antunes de Oliveira e Joana Soares Antunes de

Oliveira. Dizia-se estouvada e pouco afeita ao estudo durante a meninice. Com

dificuldade avançou pelos Livros de leitura escolares. Sua primeira escola foi a casa

paterna. O pai era o professor, o tutor, o preceptor moral. Sobre ela, seu pai dizia ser

“ardilosa” no trato com as obrigações escolares e que estava sempre a criar estratagemas

para não fazer os exercícios escolares e não estudar.

Foi condenada, em suas próprias palavras, em 1891, a entrar para um colégio. O

martírio inicial foi sendo substituído pelo sabor das descobertas, como a biblioteca da

escola. Três anos de reclusão e o pai a mandara buscar, junto com os irmãos menores,

todos internos de escolas do Recife, para passar as férias em casa. Numa conversa com

o pai sobre os sacrifícios por ele e sua mãe engendrados para oferecer aos filhos uma

educação esmerada, chega à compreensão de que “a instrução é precioso combustível

que penosamente angariamos para trazer sempre crepitante a fogueira do espírito”

(ANTUNES, 2003, p.188). O pai é a figura central na narrativa de Magdalena Antunes

e, em seu regresso à escola, toma a atitude de uma aluna compenetrada com suas

obrigações escolares.

Seu livro de memórias Oiteiro (ANTUNES, 2003) descreve seu período como

escolar. Sendo um livro memorialista, as lembranças de Magdalena nos levam à

educação do final do século e traduz o universo da educação feminina naquele período.

Foi educada em colégio religioso, o Colégio São José em Recife. Esta escola se

destinava à educação moral, física e intelectual de crianças do sexo feminino

(NOGUEIRA, 1999). Era da mesma congregação que o Colégio Imaculada Conceição

em Natal, fundado em 1902, que abrigou outra de nossas perfiladas, a professora Júlia

Medeiros.

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O Colégio São José foi fundado em 1866, pela Congregação de Santa Dorotéia,

destinado a educação de mulheres no Brasil. Foi fundado pela Irmã Paula Frassineti,

uma missionária italiana, hoje Santa da Igreja Católica. Funcionava em um prédio do

bairro da Soledade, em Recife/PE, e estava relacionado ao esforço missionário de várias

congregações e ordens religiosas de difundir o ideal mariano pela América (HISTÓRIA,

2008).

A educação feminina, de marcada influência católica, processava-se principalmente nos colégios e internatos religiosos reservados as filhas das camadas privilegiadas. O pensamento conservador da Igreja Católica conseguia opor obstáculos à educação e profissionalização das mulheres, sob o argumento da necessidade de preservá-las moralmente e mantê-las ao abrigo dos desvios de condutas que o excesso de instrução poderia possibilitar (ALMEIDA, 1999, p.120).

Permaneceu estudante neste colégio até 1896, “levando a alma impregnada

daquela fé que me tem feito forte diante da adversidade, que só se consegue pelos

princípios da moral cristã e católica” (ANTUNES, 2003, p. 244). O livro de memórias

de Magdalena Antunes nos permitiu conhecer o cotidiano e a educação de uma mulher

do final do século.

Magdalena não foi professora. Teve a existência de uma sinhazinha educada para

tanto. Pouco saiu da categoria mãe-esposa. Oiteiro revela uma mulher feliz com suas

não-escolhas, afinal, dedicada às atividades da Igreja e participando da vida pública no

possível que lhe era acessível fazer.

Termina seu relato relembrando os artigos escritos nos jornais femininos de

Adelle de Oliveira, O sonho, e de Dolores Cavalcanti e Isaura Carrilho, A Esperança.

Imputa este traço da sua biografia a irmã Etelvina, sendo “ela a Vitória-Régia e eu, a

flor do vale sem perfume” (ANTUNES, 2003, p.328). Sua relação com a Igreja, seus

cultos e figuras sagradas são percebidas ainda menina, no final do século XIX, em 1887.

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Eu fazia 7 anos de idade. Logo pela manhã as camponesas mimosearam-me com flores que eu pus no altar de Nossa Senhora, improvisado no alpendre de nossa velha casa de campo, de biqueiras e janelões envidraçados. Mãos piedosas adornavam de leques de palmeira e ramos verdes de estefanotes brancos, as paredes da capelinha rústica, em honra do santo mês mariano. As crianças, à hora do terço, levavam arcos de boninas enfiados em palitos de coqueiro. As camponesas sorriam para Nossa Senhora, ela sorria para as camponesas (ANTUNES, 2003, p. 30).

Esta relação continua pela vida toda e no seu relato ela deixa perceber que tinha o

desejo de se tornar religiosa católica. Aos dezesseis anos, ainda no Colégio São José,

entrou para a Congregação Mariana Filhas de Maria. Sobre essa entrada recebeu uma

carta de uma antiga mestra, Madre Portugal:

Ser Filha de Maria não é só uma divisa, é também uma predestinação. Quantas jovens hei visto, no meu longo tirocínio de educadora, bem comportadas, espírito religioso e que tentaram em vão merecer tamanha graça? Apareciam diversos obstáculos, contanto que não realizassem aquilo que você tão suavemente talvez tenha conquistado (ANTUNES, 2003, p.241).

Uma de suas amigas de colégio, a quem ela se refere sempre com afeição, tornou-

se religiosa na Congregação de Santa Dorotéia. As escolas religiosas cumpriam seu

papel: formavam meninos e meninas para o sacerdócio, dentro e fora de suas ordens

religiosas.

As histórias dessas mulheres, os perfis que seus pesquisadores trazem, a

configuração em que viveram provocaram reflexões sobre seus modos de ser e de fazer

como educadoras no Rio Grande do Norte. Mesmo aquelas que não tiveram uma

instrução religiosa católica formal, como as que estudaram em escolas católicas ou

evangélicas, tinham sua orientação religiosa vinda de outra instituição: a Igreja. A “uma

escola verdadeira: o cristianismo” para a educação moral, retomando aqui a fala de

Ângela Marialva ou Palmyra Wanderley.

E esta Igreja cristã era, em sua maioria, de orientação Católica Apóstolica

Romana. Fomentadora de normas, hábitos e valores, ditava, particularmente nas cidades

pequenas, o teor instrutivo (e prescritivo) das escolas. E quem não se adequasse não

encontraria nela lugar, como no caso da professora Myrtila Lobo, vítima da

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animosidade da cidade de São João do Sabugi, por ser protestante. De acordo com o

padre local, como ela não ministrava aulas de catecismo, qualquer um que a recebesse

estaria vivendo em pecado. No entanto, ela não o sabia, porque nunca havia estudado

em escola religiosa e nem seguia a doutrina católica. Ensinar o catecismo era premissa

para todas as professoras poderem lecionar, mesmo sendo o Estado laico e republicano.

Não bastava ser cristã, tinha que ser católica para corresponder ao perfil estabelecido

para uma educadora naquele momento histórico.

Dolores, Guiomar, Nathercia, Floripes e tantas outras difundiam os valores

republicanos e católicos apostólicos romanos em instituições educacionais, como as

escolas femininas, a imprensa ou a Igreja. Nos jornais e revistas femininos, manuscritos

ou não, as poesias e os artigos de jornal educavam outras mulheres no sentido de

ampliar seu universo intelectual e suas funções nesta sociedade.

Fazendo uma leitura dos perfis das educadoras, encontramos a tradição católica

como uma marca constante à vida pessoal das mulheres privilegiadas neste capitulo. À

exceção de Myrtilla Lobo, que era protestante, e de Guiomar, que estudou em uma

escola evangélica, todas tiveram uma formação doutrinária católica. Ainda assim, todas

assumiam o ideal de mulher cristã, católica ou não.

A submissão à doutrina religiosa, representada principalmente pela Igreja

Católica, e a figura da Virgem Maria, ressaltada e tomada como exemplo, instalou o

mito da mãe que redimia e perdoava. A mulher redentora, possuidora de pureza e

espírito de sacrifício, isenta de qualquer pecado (ALMEIDA, 1998, p.118). Maria, mãe

de Jesus, é exemplo de uma grande mulher. Ela se dispôs a dar de si mesma para servir

humildemente a Deus. De acordo com o Evangelho de Mateus, Maria recebeu a visita

de um anjo portador de uma mensagem divina. Esta mensagem enviada pelo Deus de

Abraão anunciava que ela seria a mãe do filho deste Deus.

Maria perguntou ao anjo: “Como se fará isso, pois não conheço homem?” Respondeu-lhe o anjo: “O Espírito Santo descerá sobre ti e a força do Altíssimo te envolverá com a sua sombra. Por isso o ente santo que nascer de ti será chamado Filho de Deus. Também Isabel, tua parenta, até ela concebeu um filho na sua velhice; e já está no sexto mês aquela que é tida estéril: porque a Deus nenhuma coisa é impossível .” Então disse Maria: “Eis aqui a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra.” E o anjo afastou-se dela (BÍBLIA, 1999, p.1.344).

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O caráter servil de Maria é respaldado por outros atributos na relação com as

outras imagens femininas, se não mais fortes que a mãe de Jesus Cristo, tão eloqüentes

na sua forma de representação como nas atitudes sobre elas narradas. A funcionalidade

feminina no texto católico17 também incluía o cuidado do marido e do lar, na figura dos

filhos ou da descendência do marido.

Os exemplos femininos católicos – como Sarah ou Esther18 – ganham força a

partir do século XIV, com os cultos a Maria. A necessidade de se vincular o elemento

feminino à Trindade Cristã católica eleva Maria à condição de mãe do Deus católico e

mediadora entre o pai e o filho. Mais uma virtude e uma função feminina foram

agregadas às atividades feminis.

O culto mariano demandou, no curso do século XIX, uma série de ordens

religiosas com esta base mítico-feminina, em instituições educativas que cumpriam a

dupla função de instruir e difundir este ideal religioso. O modelo mariano ganhou força

no Brasil, a partir dessa educação marista na confluência de uma renovação da fé

católica e das sucessivas visões de Nossa Senhora por diversos devotos no curso do

século XIX.

Nesta perspectiva é que os Irmãos Maristas, as Irmãs Dorotéias e as Irmãs

Salesianas criam Institutos de Educação voltados à educação de meninas e meninos pelo

mundo. No Brasil, essas instituições educacionais chegam como o Colégio São José em

Recife/PE, ligado às Irmãs Dorotéias, em 1866, e como o Instituto Marista, ligado aos

Irmãos Maristas, em 1897 na cidade de Congonhas do Campo/MG.

As Irmãs Dorotéias, por meio do Colégio Imaculada Conceição de Natal, fundado

em 1902, dedicavam-se a cuidar da educação das meninas norte-riograndenses na

cidade de Natal, enquanto os Maristas, voltando-se à educação de meninos, iniciam suas

atividades na cidade em Natal, apenas em 1930, ao assumir o comando do Colégio

Santo Antônio, depois de estar presente em praticamente todas as cidades do nordeste

brasileiro (NUNES, 2006, p. 121).

A Congregação das Filhas de Maria Auxiliadora ou Salesianas de Dom Bosco

chegaram ao Brasil em 1892. Vieram da Itália para São Paulo, com o objetivo de iniciar

uma obra educativo-religiosa no país. Além do Ensino Elementar e Secundário, também

ofereciam o Ensino Normal. Natal passa a fazer parte do quadro da Congregação

17 As relações religiosas serão feitas sempre a partir do texto sagrado da Igreja Católica Apostólica Romana por entender que as educadoras aqui elencadas seguiam estes preceitos, freqüentavam as missas dominicais católicas e ensinavam o catecismo a partir desta doutrina. 18 Sobre as histórias dessas mulheres conferir Aviner (2004).

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somente a partir de 1951, com a inauguração do Instituto Maria Auxiliadora destinado à

educação das meninas (SANTOS, 2006).

A orientação dessa educação cumpria a expectativa para mulheres no fim do

século XIX: formação de mulheres para o lar e a vida cristã. Se o projeto educativo

partia do lema “Formação de bons cristãos e de honestos cidadãos”, inspirados no

projeto dos irmãos maristas. O fundamento desse modelo educacional também se

organizava a partir do símbolo mariano. Por isso, as meninas eram estimuladas a ser

como a mãe de Jesus, exemplo de simplicidade, discrição e pureza.

Esses atributos, associados unicamente às mulheres, tornaram-se expressão de

possibilidade civilizatória e educativa, tanto a partir da família como da escola. Fraisse e

Perrot (1998, p.12) percebem esse processo como sendo forjado na transmutação da

mãe preceptora para a preceptora mãe. Se concordarmos com essa hipótese, estaremos

invalidando uma na criação da outra, quando o que este trabalho procura demonstrar é

que estes dois modelos, tendo o cuidado maternal como base, combinam no público e

no privado a educação ofertada a meninos e meninas no final do século XIX. Portanto, o

que as pesquisas referenciadas nos dão a conhecer é um perfil feminino que se orientava

por duas representações: uma que era a mãe-educadora e a outra que era a educadora-

mãe. Por vezes, essas facetas se entrelaçavam com professoras que também assumiam

este ser mãe-esposa e por vezes estavam atuando apenas em uma das frentes de

trabalho. De um modo ou de outro, estavam cuidando maternalmente dos futuros

republicanos.

Os preceitos cristãos tornavam claro o papel da mulher na família e na sociedade.

E estavam presentes em todos os meios de educação deste período: na igreja, na escola,

nos jornais, no lar. No modelo inglês, a expectativa de uma sociedade justa estar inscrita

nos textos sagrados e no modelo americano assume uma relação entre o público e o

religioso (NUNES, 2006). E este último parece ser o modelo assumido pelas

instituições educativas no Rio Grande do Norte.

Segundo esse principio filosófico, as mulheres assumem para si atributos como

ternura, docilidade, sacrifício e abnegação como próprios (e apropriados) à conduta

social da mulher (NUNES, 2006, p. 64). A confluência entre a constituição do ser

mulher educadora de futuros cidadãos encontra uma relação direta com um perfil

feminino que correspondia a este modelo mítico-religioso presente no cotidiano das

mulheres norte-rio-grandenses. No caso da educação e da docência, esse modelo ligava-

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se à construção deste trabalho como sagrado, feminino, mediante um ideal mariano

defendido pela Igreja Católica.

As leituras que fizemos foram orientadas por uma pergunta: o que já se sabe sobre

essas mulheres professoras, esposas, mães, escritoras? Buscávamos perfis de educadoras

no Rio Grande do Norte. E identificamos mulheres que passaram uma vida dedicada à

Igreja e à educação, como Guiomar de Vasconcelos, Maria Calixto e Floripes Medeiros;

Júlia Medeiros e Dolores Cavalcanti associaram a isto as atividades jornalísticas, como

Palmyra Wanderley. Magdalena Antunes associou atividades jornalísticas e religiosas à

maternidade. Deixou ainda a sua vida em legado para que pudéssemos conhecer as

instituições que a forjaram. Outras como Myrtilla Lobo, Leonor de França e Nathercia

Morais associaram seu trabalho de educadoras na escola ao de educadoras do lar,

tornando-se, além de professoras, mães-esposas. Isabel Gondim dedicou-se à educação

na escola, na vida doméstica e na literatura. Deixou para a posteridade um manual de

conduta que nos permite perceber quais atributos femininos eram próprios e apropriados

às mulheres do final do século XIX.

O que estas pesquisas evidenciam é uma diversidade considerável de perfis para

as mulheres que educavam na transição do século XIX para o XX. Mas em todas elas,

há o traço religioso cristão, o culto à figura de Maria, o modelo mariano de virtude, a

moral católica e uma tendência a implantar estes princípios no seio das suas práticas

educativas. A relação entre a vida pessoal e o trabalho que desenvolviam é forte no

campo religioso, mas esse traço religioso, essa devoção a Maria ainda confluía para um

rumo: o cuidado materno com aquelas e aqueles que usufruíam de sua educação.

Este cuidado materno irá permear toda representação em torno do ensino escolar

como extensão do trabalho da mulher celibatária, ou não, fora do ambiente doméstico.

As virtudes feminis, a função divina da maternidade, os zelos da dona-de-casa seriam

institucionalizados em uma profissão que gradativamente se tornara feminina: a

profissão docente.

Estes perfis de educadoras – professoras, mães-esposas, jornalistas, escritoras –

indiciam mais do que ideais republicanos, de modernidade ou civilização. O fim do

século XIX, grávido de um modelo de virtude e moralidade trazia no seu cerne a

castidade de corpo e de alma, tal e qual Maria, mãe de Jesus. Como esses ideais

participavam da construção do projeto educacional republicano para a mulher do século

XX? Para responder a esta questão, enveredamos por sendas que permitam dizer que

projeto social era este na configuração que ora se apresenta.

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Capítulo IV República, Modernidade e Civilização em Natal

Você sabe melhor do que ninguém, sábio Kublai, que jamais se deve confundir uma cidade com o discurso que a descreve. Contudo, existe uma ligação entre eles. A mentira não está no discurso, mas nas coisas (CALVINO, 1998, p. 61-62).

Ao entrar em Tamara, o viajante de Calvino percebe uma cidade carregada de

símbolos. “Os olhos não veem coisas, mas figuras de coisas que significam outras

coisas” (1998, p.17). Ou, ainda, a representação das maneiras pelas quais homens e

mulheres produzem e existenciam a vida cotidiana. Ao entrarmos na Natal do século

XIX, através de suas narrativas, dos seus discursos, percebemos o mesmo que o

personagem acima: nossos olhos não viam coisas, mas figurações e representações que

significavam outras coisas; coisas que queríamos conhecer, saber. E nos

perguntávamos: o que significavam, por exemplo, república, civilização e modernidade

para as mulheres e homens natalenses de fim de século?

Partimos da premissa de que um cadinho de ideias filosóficas organizava, no Rio

Grande do Norte e no Brasil, um projeto republicano para toda a sociedade brasileira.

Um projeto social que englobava as particularidades econômicas, culturais e de gênero

para as unidades federadas deste país, que se queria nação civilizada e moderna pela

educação. Como este projeto se organizava na cidade de Natal?

Entramos em Natal pelos olhos e discursos de intelectuais como Henrique

Castriciano ou Januário Cicco, que veem a cidade através de suas percepções de mundo.

Cicco (1920, p. 7), por exemplo, caracteriza Natal como “a cidade mais saudável do

Norte do Brasil”.

À margem do Oceano e cercada por montanhas de areia ou dunas, cobertas de exuberante vegetação, é batida pelo vento éste-sueste constante e moderado, trazendo à cidade as riquezas de um ar marinho, leve, puro e tonificador. De clima temperado, a sua temperatura não excede de 32° à sombra (CICCO, 1920, p.7).

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A descrição feita por Cicco dimensiona a cidade no início do século XX, com os

bairros da Cidade Alta e da Ribeira como ponto de partida à expansão urbana da cidade.

A Ribeira era a cidade comercial. Separada dela por uma faixa alagadiça de terra de 400

metros, estava o bairro dos operários e pescadores. A Cidade Alta se estendia pela

Cidade Nova, que se desdobrava nos bairros de Tirol, Petrópolis e Alecrim. O bairro do

Alecrim se desdobrava em Boa Vista, Baixa da Beleza e Refoles. Este conjunto urbano

foi organizado com a Resolução n. 55, de 30 de dezembro de 1901, que criou o terceiro

bairro de Natal: Cidade Nova.

A ideia deste novo bairro, Cidade Nova, posta em execução no Governo Alberto

Maranhão (1900-1904), tinha sido idealizada ainda no Governo Pedro Velho (1892-

1896), mas não passou de um projeto (CASCUDO, 1999). Nossas análises nos

conduzem a pensar sobre os idealizadores deste bairro, suas características urbanísticas

ou o nome dado a ele. Dizem de gestores que deixavam a cidade antiga e toda a

representação que a palavra “antiga” trazia, como ultrapassado ou monárquico, para

apostar num futuro moderno e arrojado como as linhas que projetaram o novo bairro da

cidade.

Cidade Nova se expandia na direção leste da cidade, indo encontrar as dunas e o

Atlântico em ruas largas e projetadas. Era uma marca de modernidade na expansão

urbana de Natal. Partia da Rua Nova (hoje Av. Rio Branco) e ia até os arredores da

Praia do Meio. As medidas e todo o plano urbanístico apresentado na Resolução faziam

cumprir várias funções: um modelo de salubridade na estética urbana, um desenho

moderno e regular, o que sugeria ordenamento e civilidade, como também os anseios de

uma elite dominante que desejava exilar-se da parte antiga e insalubre da cidade.

O custo social das transformações da cidade é apresentado em reportagem do

Diário de Natal em 1904, em trecho transcrito por Ferreira (2008, p.65), sob o sugestivo

título “Cidade das Lágrimas”, parodiando o nome do novo bairro e caracterizando-o

como excludente e segregador nesse primeiro ciclo de reformas urbanas:

Estamos na pior fase desta maldita cidade das lágrimas, os últimos pobres estão saindo a pulso, arrasando-lhes as suas casas, quintais, fruteiras nos concerne a salubridade e a higiene, quanto aos aspectos da estética urbana. As que as têm. Choram os míseros para morrer e com seu pranto regam este bairro amaldiçoado que constituem as delícias do grão senhor da terra (CIDADE..., apud FERREIRA, 2008, p. 65)

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De um lado e de outro os discursos favoreciam ou desfavoreciam as mudanças. A

República traz considerações sobre o novo bairro, atribuindo-lhe características como

salubridade e aspecto físico agradável.

Vê-se dessa resolução que o Governo Municipal compreendeu as vantagens e o futuro grandioso da Cidade Nova, como o bairro desta capital destinado a ser o núcleo da grande cidade que, neste século, será Natal, talvez uma das maiores do Brasil, uma das cidades mais importantes do mundo. Com efeito, a lei municipal tomou as providências básicas da edificação urbana, providenciando sobre a orientação das ruas, grande largura das avenidas e ruas transversais, separação das casas, concessões de atoramentos, grande extensão das praças (CIDADE NOVA, 1902).

O papel dos impressos, ou dos intelectuais através dessa imprensa nesse período,

foi relevante para a difusão dos novos modelos culturais do mundo: o intelectual era o

cosmopolita, circulando entre os lugares e as ideias novas, funcionando como um filtro

que capta as sensações e as retransmitem em seus escritos, formando (ou tentando

formar) uma opinião coletiva (TOURAINE, 1995).

Henrique Castriciano também colaborou para que nossos olhos pudessem ver os

natalenses nesta Natal figurada que se apresentava pelo discurso de Januario Cicco ou

dos jornais do período. O papel de Castriciano nessa configuração é este indicado por

Touraine: difusor do ideal moderno de sociedade do mundo para Natal. Sua crítica dos

costumes da cidade traça uma radiografia do modelo cultural de Natal no fim do século

XIX, destacando as características culturais dos natalenses.

Sob o pseudônimo de José Braz, Castriciano descreve Natal a partir do olhar de

um viajante imaginário. Na metáfora em que ele elabora, um viajante, ao chegar à barra

do rio Potengi, ver uma paisagem com dunas à distância, branqueando o horizonte com

o mangue emoldurando as laterais do rio. A partir do perfil dos edifícios distanciados de

si, ele constrói a visão de uma aldeia pitoresca, cheia de graça e movimento.

Mas, ao aportar na cidade, a imagem apreendida por este viajante imaginário se

desfaz. Andando pelas ruas encontrara armazéns antigos de aspecto sinistro e insalubre;

habitantes sonolentos, mal trajados, de aspecto doentio de quem “não tem dinheiro para

comprar tônicos”; senhoras recolhidas às casas sem poder emprestar à cidade a beleza

dos vestidos claros e de coloridos para-sóis seguros por delicadas mãos femininas. Esse

passeio pelas ruas da cidade apresentava ao viajante um

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Povo sem comércio, sem arte, sem literatura e, por conseguinte, sem intuição clara da vida moderna, a nossa existência parece a de um corpo sem cabeça, sem capacidades volitivas, sem órgãos de sentimento, sem vontade (BRAZ, 1903).

O texto deixa perceber que a crítica é sobre a ausência de um espírito moderno na

cidade. A falta desse espírito fazia existir algo semelhante a um corpo sem cabeça, pois

para José Braz ou Henrique Castriciano, uma existência sem arte, sem flores, sem

música, “estiola a alma e endurece o coração, amolecendo a vontade”. A vontade era a

de ser capital federada de uma nação em desenvolvimento, a exemplo de outras capitais,

como Porto Alegre no outro Rio Grande, o do sul.

Este modelo de cidade sã e bela, com suas instituições preocupadas com o aspecto

sanitário, o lazer, o acesso cultural, carregava em si a confluência simbólica dos

conceitos essenciais neste período: ordem, progresso, civilização e modernidade. E

mulheres cultas e educadas eram parte desse processo. Por isso critica, através de José

Braz, os modos de viver das mulheres natalenses.

As mulheres ficam em casa, algumas espreitando a vizinhança, muitas nos pesados trabalhos do lar, todas entediadas, amolecidas pelo calor e pela nevrose19, ansiosas pelo domingo, único dia em que têm liberdade de sair e isto mesmo durante o tempo necessário para ouvir missa, por que marido gosta de almoçar cedo e “papai briga se eu não voltar logo” (BRAZ, s/ data).

Para este intelectual, a falta do gênero feminino no ambiente público, seus leques,

risos maliciosos e perfumes, candura alada e delicadeza inconsciente resulta na falta de

estética no meio natalense e na aversão às artes e normas de socialização. E sentencia:

“tais são os nossos costumes de povo que se presume civilizado”. O tom irônico dado

ao texto segreda em si a crença de que na mudança de mentalidade sobre a inserção

social da mulher estaria o elemento civilizador mais importante para a modernidade que

se almejava. Ao mesmo tempo em que busca esta modernidade, envida esforços no

sentido de fazer espelho aos seus leitores sobre como devem ser tais costumes

modernos.

O período entre a metade do século XIX até o início do século XX caracterizou-se

por mudanças econômicas, culturais e políticas engendradas pelo discurso da civilização

19 Nevrose significava

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e da modernidade. Estas mudanças ocorreram em meio a ferramentas ideológicas que

concebiam o progresso como o vetor da história. Um vetor que apontava na direção de

novos sistemas de governo, novas formas de relações sociais e novos ambientes

culturais, a exemplo da imprensa e da escola. Estas novidades chegavam da França e de

Portugal e se manifestavam através da combinação de elementos importados nas ações

dos políticos imperiais.

Todas essas importações serviam à preocupação central que era a organização do Estado em seus aspectos políticos, administrativo e judicial. Tratava-se, antes de tudo, de garantir a sobrevivência da unidade política do país, de organizar um governo que mantivesse a união das províncias e a ordem social (CARVALHO, 2001, p.23).

Esta ordenação social passava também pela construção de uma identidade

nacional, vinculada à solução de problemas sociais específicos com a colonização, a

escravidão índia, a escravidão negra, a imigração. Situações correlatas que envolviam a

criação do Estado-Nação e desse ser brasileiro na confluência de uma mistura de raças,

culturas e modos de vida.

Em 1857 o romance O Guarani de Alencar (1980) trazia a relação entre uma

jovem branca e um chefe indígena, sugerindo uma identidade nacional através da

miscigenação a partir do colono português e do humano nativo, quando da descoberta

do Brasil pelos portugueses, em 1500. Este romance enfocava a miscigenação étnica e

cultural como um elemento para se buscar a identidade nacional. Estas misturas são

ampliadas no curso dos séculos posteriores com a inserção do escravo negro vindo da

África a partir de 1533 e dos imigrantes não-portugueses a partir de 1818.

Ainda que a escravidão tenha sido abolida um ano antes da Proclamação da

República, as demandas que motivaram a assinatura da Lei Áurea, em 1888, foram mais

de ordem pública – evitava-se a debandada em massa dos escravos das lavouras de café

– e econômica – atraía-se mão-de-obra livre e consumidora – do que social, ou seja,

mais preocupada com as relações de produção do que com a incorporação dessas etnias

ao Estado-Nação brasileiro. Esta reordenação ficou mesmo a cargo dos republicanos,

depois de 1889.

Substituir um governo e construir uma nação, esta era a tarefa que os republicanos tinham de enfrentar. Eles a enfrentaram de maneira diversificada, de acordo com a visão que cada grupo republicano tinha da solução desejada (CARVALHO, 2001, p.24).

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Três grupos se apresentavam: os proprietários rurais, os militares e um grupo que

reunia profissionais liberais, estudantes, jornalistas e pequenos proprietários. O modelo

positivista serviu aos interesses dos grupos no vértice de discussões sobre liberdade,

evolução social, ordem e progresso.

A República, em sua versão positivista, encontrou no Brasil um solo fértil. No

entanto, ser positivista no Brasil de fim de século era muito mais do que conhecer ou

aplicar a Lei dos Três Estados. Era ser um cientificista, era acreditar, como Comte20, que

as leis da ciência é que regiam o mundo e que as explicações espiritualistas eram parte

da infância da humanidade. A busca pela maturidade mental provocava a busca pela

maturidade política, econômica e tecnológica.

A lei de Três Estados evidenciada pelo sistema filosófico comteano previa a

superação da Monarquia, enquanto um sistema político relacionado à fase teológico-

militar, pela República, melhor encarnação da fase positiva de um projeto

governamental (CARVALHO, 2001). O progresso e o desenvolvimento da Nação são

atrelados ao sentido de república como a verdadeira democracia associada à idéia de

novo, moderno e civilizado.

O Império era visto, portanto, como algo carcomido e a ser ultrapassado. A visita

do Conde D’Eu a Natal, em agosto de 1889, é tratada de maneira jocosa pelos redatores

do jornal A República.

O Brasil está farto de governos paternais; está muito crescido para andar de calças curtas de cortesão; já não brinca com bonecas: não acha mais nenhuma graça, nem se deslumbra com os papos de tucano (A REPÚBLICA, 1889).

A recepção ao conde D’Eu, segundo esse periódico, envidou muitos esforços do

Governo Provincial diante da indiferença da população, “afinal Sua Alteza não tem

culpa do detestável físico com que o castigou a natureza. O que repelimos é a sua

pretensão de ser o Imperador do Brasil” (A REPÚBLICA, 1889). Esse tipo de discurso

traduz a atmosfera do período. A poucos meses da Proclamação da República, a

movimentação e insatisfação nas hordas políticas republicanas prenunciavam as

modificações político-sociais que estavam por vir.

20 Seu sistema filosófico é publicado em 1822 na esteira de seu primeiro opúsculo Prospectos dos trabalhos científicos necessários para reorganizar a sociedade. Aproximava-se, portanto, dos anseios daqueles que estavam pretendendo reorganizar a sociedade brasileira no final do século XIX.

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E as notícias que chegaram à Província do Rio Grande do Norte trouxeram a nova

configuração política aos natalenses pelas páginas dos jornais. A Proclamação da

República, pelas tropas de Deodoro da Fonseca em 15 de novembro de 1889,

possibilitou que as discussões e teorias sobre desenvolvimento, ordem e progresso

fossem traduzidas em uma nova legislação, tanto no âmbito nacional como local.

No Rio Grande do Norte, Pedro Velho assumiu o cargo de Presidente Aclamado,

nomeando de imediato uma Comissão Executiva pronta a pôr em funcionamento a nova

modalidade política e econômica. No entanto, a República Federativa do Brasil chega

em Natal, oficialmente, sob a administração do Dr. Adolpho Affonso da Silva Gordo,

Governador Provisório indicado pelo Governo Federal, vindo de São Paulo. Através do

Decreto n. 1, de 7 de dezembro de 1889, a Província adere à República Federativa

Brasileira “nos termos em que foi proclamada provisoriamente pelo Governo, no

Decreto n. 1 de 15 de novembro último” (1889-1895), tornando-se Unidade Federada

ou, ainda, Estado da Federação Brasileira.

Segundo Basbaum (1986, p.15), os primeiros cinco anos do novo regime são

extremamente intrincados e difíceis para o país. É um período de agitação permanente

em uma República que se fez pela imposição de um exército que nem republicano era.

Deposição de Presidentes aconteceram tão logo chegada a notícia por meio dos

telégrafos e autoempossamento daqueles que haviam liderado. Em suas províncias, o

movimento Republicano provocou uma alta rotatividade no executivo de todos os novos

municípios do país. “O Rio Grande do Sul bate todos os ‘records’ com dezenove

presidentes em três anos”. No Rio Grande do Norte foram sete governadores provisórios

e uma junta governativa, antes que Pedro Velho de Albuquerque Maranhão assumisse o

Governo do Estado, em 1892.

Nesse momento de efervescência política e consolidação de um modelo nascente

de sociedade, o jornal se caracterizava como fonte e veículo educativo que propagava

idéias e ideais, a partir de discursos que divulgavam o pensamento dos republicanos

baseando-se no tripé modernidade, ordem e progresso.

O jornal A República funcionava, nesta configuração, como um catalisador e

divulgador do Governo Republicano no Rio Grande do Norte. Com títulos fortes e

atuais como A força da civilização, esse periódico veiculava opiniões em torno do povo

brasileiro, revelando o espírito da época.

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O espírito republicano, que é também o espírito da civilização, já invadiu todos os diques da opinião pública, já se abrigou na maioria generosa dos corações brasileiros, já avassalou todas as resistências condenadas e inúteis e já assinalou uma era de civilização que vai avante, levando enobrecidos seus adeptos e deixando esmagados no mundo dos desenganos os mochos piadores e os cegos de espírito que não podem fitar a luz que os afugenta (A FORÇA DA CIVILIZAÇÃO, 1890).

Este espírito da civilização necessitava ser iluminado por leis específicas. E estas

leis precisavam estar ao alcance de todos para que a luz atingisse tanto aqueles que por

ela esperavam – abrindo caminhos – como os que dela fugiam – expulsando aqueles que

fossem contrários à nova ordem, como o Arraial de Canudos21.

Por este motivo, a Constituição do Governo Provisório é veiculada em

exemplares do jornal natalense A República a partir do dia primeiro de junho de 1890

até o dia doze de agosto do mesmo ano. Desta mesma forma são apresentados à

população o Projeto de Constituição do Rio Grande do Norte (A CONSTITUIÇÃO,

1890) e a Constituição Política do Estado do Rio Grande do Norte (1892), entre outros

documentos legais que orientam o Estado de Direito. O jornal se responsabilizava por se

constituir em um ambiente político e educativo que orientava o Estado.

Essa dimensão política e educativa do jornal encontra eco em proposições de

além-mar. O texto de Victor Hugo é publicado no jornal A República, na coluna Artes e

Letras, e indicia o sentido que a imprensa assumia para os seus colaboradores.

A imprensa é a voz do mundo. Onde há luz, está a providência. Quem reprime o pensamento, atenta contra o homem. Falar, escrever, imprimir e publicar são círculos sucessivos à inteligência ativa são essas as ondas sonoras do pensamento. De todos esses círculos, de todos esses esplendores do espírito humano, o mais largo é a imprensa. O seu diâmetro é o próprio diâmetro da civilização. A imprensa é a santa e imensa locomotiva do progresso que leva a humanidade para a terra de Canaã, a terra futura onde não teremos em torno de nós, senão irmãos e, por cima, o céu (HUGO, 1897).

Mais uma vez, a luz do conhecimento surge como este farol que orienta o

navegante para a segurança de um futuro promissor. Este texto evidencia elementos

21 Este foi o primeiro grande conflito armado dos soldados republicanos. Com duração de cerca de um ano, entre 1896 e 1897, levou mais de cinco mil soldados ao interior da Bahia. Tratado como “um antro de fanatismo e de obsessão moral”, a matéria do jornal A República classificava o sucesso da empreitada bélica como uma “vitória da República” (VITÓRIA DA REPÚBLICA, 1897).

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fundamentais da modernidade: luz, escrita, imprensa, locomotiva. Assim, a imprensa é

apresentada como o veículo material que assimila e anuncia o novo mundo. O mundo

moderno e civilizado. É a saída da caverna platônica em direção à luz do conhecimento;

sendo a própria medida da civilização, leva o espírito humano a esta terra de Canaã

evocando a terra da prosperidade da mítica cristã. Nossa Canaã teria mais que

fertilidade e abundância de alimentos para o corpo; teria antes, porém, o alimento da

alma e da inteligência ativa, a abundância de conhecimento. E conhecimento aplicado,

ou seja, tecnologia e desenvolvimento.

Os anos de 1890 foram carregados de novidades para a sociedade natalense.

Novidades organizadas pelo novo regime que implicava em mudanças profundas de

mentalidade, como as que encontramos nos decretos n. 510, de 22 de junho e n. 914, de

23 de outubro, de 1890. Eles determinavam que o casamento civil precedesse às

cerimônias religiosas em qualquer culto (CAVALCANTI, 2002).

Esses Decretos são incorporados à Constituição Federal, promulgada em vinte e

quatro de fevereiro de 1891, em seu artigo 72, parágrafo 4º. Na República Brasileira o

casamento somente teria valor legal se fosse reconhecido por um Juiz de Direito.

Mas, como os lírios não nascem das leis, era preciso um ambiente educativo que

materializasse as leis do mundo moderno e civilizado nos cidadãos e cidadãs a que se

destinavam. Essas necessidades encontram no jornal um dos ambientes que

redesenhavam o comportamento dos natalenses. O primeiro casamento civil do Rio

Grande do Norte ganha destaque no jornal A República. Um casamento que aconteceu

na presença de várias autoridades, incluindo Pedro Velho Albuquerque Maranhão,

enquanto Governador em exercício do Estado.

Na presença de distintos cavalheiros, entre outros o dr. Governador do Estado, o dr. Pedro Velho, foi celebrado o primeiro casamento civil do Estado. Os contraentes foram o cidadão Felippe Pereira do Lago e D. Maximina Symphorosa de Castro Barroca. [...] seguindo-se um delicado copo d’água que os contraentes ofereceram aos convidados. (CASAMENTO CIVIL, 1890).

O acontecimento destacado com presenças de autoridades políticas se explicava

pela controvérsia causada pelo matrimônio civil, em detrimento do religioso. Meses

antes, em 11 de março, a explicação desta obrigatoriedade indiciava as reformas do

novo regime político “n’uma organização social, civil e política, que quer ser complexa

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e completa” (A REPÚBLICA 1890). A matéria argumentava ainda que, dada a

separação da Igreja do Estado, o casamento civil se tornara uma consequência

necessária. Também dava a conhecer aos leitores que ele era mais válido que o

religioso; afinal, casando-se no religioso o cidadão se tornava casado de fato em uma

sociedade que já era de direito.

Os acontecimentos políticos e sociais ocorridos em todo o país tomavam fôlego e

se propagavam principalmente através dos jornais, um instrumento de divulgação de

ideias escritas que faziam emergir a necessidade de um público apto na habilidade da

leitura. “O grande veículo do espírito moderno era o próprio jornal, esse ‘novo animal’

que se fortalecia no século XIX, contribuindo fartamente para a consolidação da

sociedade letrada” (MORAIS, 2002, p.45). O jornal exaltava e estimulava a habilidade

da leitura. Assim a imprensa, por sua própria forma escrita, incitava a se criar a

necessidade da instrução escolar, do aprender a ler e escrever, que era também da ordem

política e social republicana.

O discurso republicano exalava, pois, o cheiro da modernidade. Essas duas

concepções relacionadas organizavam um ideal de cidade. O meio para este ideal de

urbanidade nascente? Educação. Instrucional ou escolar, mas também cultural e social.

Esse ideário se propagava nos instrumentos de mídia do período, na forma de discursos

e símbolos que garantiam as benesses do sistema político para o desenvolvimento e o

progresso do país.

No espaço público e privado era responsabilidade da mulher exercer uma

influência benéfica que contribuiria para a moralização da sociedade. Ela não seria

apenas a educadora das crianças, mas um exemplo de conduta para toda a sociedade.

A educação é o que constitui a formação moral do homem; lhe aperfeiçoa as faculdades, impele as suas ações para o bem, e molda-lhe o procedimento durante a vida, formando-lhe o caráter; a vós compete dirigir a de vossos filhos em sua primeira fase, e assim traçar-lhes a carreira na sociedade, em cujo meio serão tanto mais considerados, quanto melhor lhe tenha sido a educação (GONDIM, 1910, p.66).

Isabel Urbana de Albuquerque Gondim escreveu este livro, intitulado Reflexões às

minhas alunas, em 1874, destinando-o à educação nas escolas primárias do sexo

feminino. Professora da instrução pública em Natal,

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A preocupação da mais antiga escritora residente no Estado consistia em orientar a educação da mocidade. Notando a falta de um livro em Língua Portuguesa, destinado à educação da mulher, resolveu aproveitar-se dos conceitos do Sr. Padre Roquette e Visconde d’Almeida Garrett, ‘esses dois grandes vultos da literatura moderna, distintos amigos da humanidade’ e escreve ‘Reflexões às minhas alunas’ (MORAIS, 2001, p.20).

Entre os conselhos dessa escritora está como deve ser o comportamento da

menina para com os seus mestres, como também o papel da mãe na educação de suas

filhas, para que estas respeitassem os mais velhos e os mestres. Respeito e dignidade

são valores que devem ser adquiridos em tenra infância e passados de mãe para filha,

em um processo de educação doméstica. Essas eram características que estavam

presentes tanto na educação escolar como na educação desenvolvida para além desse

espaço específico.

Outros mecanismos civilizatórios eram exaltados como essenciais para o salto

qualitativo da cidade, como o aformoseamento e higienização da cidade. O projeto

higienista no século XIX aparece como uma necessidade premente à expansão urbana e

aos inchaços das cidades.

Com uma população de 6.454 (Cascudo, 1999) na década de 1850, Natal atingiu,

em 1899, mais de 13.000 habitantes. O aumento populacional, pelo que pudemos

apreender das fontes analisadas, não tinha um correspondente na melhoria estrutural da

cidade. Hospitais, aterros sanitários e mesmo residências ainda se organizavam em

torno da população existente cinquenta anos antes.

Em 1896 a varíola, procedendo de Pernambuco, espalhou-se pela capital,

contaminando alguns pontos no interior do Estado. Numa atitude preventiva, a

Inspetoria de Higiene mandou fazer a desinfecção em várias casas da cidade. Mas a

própria Inspetoria admite que sem um serviço de limpeza organizado, incluindo a

higiene dos esgotos, bem como o abastecimento de água regular e abundante, não era

possível a manutenção da salubridade no município (RIO GRANDE DO NORTE,

1896).

O problema sanitário da cidade, segundo o jornal A República, foi agravado a

partir de 1904, quando quase 4.000 imigrantes, vindos do interior do Estado,

provocaram um inchaço nos principais bairros da cidade, Cidade Alta e Ribeira. Para

além destes, Rocas, Alecrim e Passo da Pátria, que aparece como “um bairro de

operários, de pequeno comércio”, cujas condições de vida, Cicco afirma, se oporem “a

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qualquer prosperidade”, são os bairros em que podemos encontrar a população de baixa

renda de Natal, margeando a cidade

De habitações úmidas e baixas, sob cujos tetos vivem promiscuamente e em excesso os seus moradores, o Passo da Pátria é também uma zona de plantações de capim e criação de porcos. O Bairro do Alecrim se subdivide, como disse, em Baixa da Beleza e Boa Vista [...] que é seu prolongamento, construída pelos mais humildes e pobres da cidade. Os terrenos de toda essa parte de Natal são arenosos e grandemente permeáveis ao ar e à água (CICCO, 1920, p. 11)

Esses terrenos foram ocupados por imigrantes e foram se constituindo em

conglomerados populacionais que se tornaram bairros no curso das primeiras décadas

do século XX. Esta configuração populacional inédita provocou, entre outras medidas,

a criação de instrumentos legítimos de fiscalização, elaboração e organização da

estrutura básica da cidade, como a Repartição Sanitária criada pela Lei n. 14, de 11 de

junho de 1892; a contratação de subsidiárias privadas como a Empresa Melhoramentos

de Natal em 1908 e, posteriormente a Diretoria de Terras, Viação e Obras Públicas em

1910. Um decreto de 1914, no universo do Regulamento Geral de Saúde Pública, criou

“na sede de cada inspetoria um serviço de defesa sanitária, com hospitais, isolamentos e

gabinetes anexos” (CICCO, 1920, p.3).

No governo Tavares de Lyra (1904-1906) a migração foi o aspecto que mais

impulsionou as obras sanitaristas. Foram mais de quinze mil pessoas, imigrantes

fugindo da seca no interior do Estado (Cascudo, 1999), dobrando o efetivo populacional

da cidade fazendo-a parecer ainda menor, com uma estrutura que não havia

acompanhado o desenvolvimento populacional. Mas o ano de 1904, por exemplo,

também viu o alagado da Ribeira, cenário de odores pútridos e insalubres, ser

transformado em um jardim e em uma praça, a Praça Augusto Severo. Os retirantes

fizeram valer sua chegada infortuna, transformando-se em mão-de-obra para a cidade

que se estruturava (RIO GRANDE NORTE, 1904).

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Praça Augusto Severo, sem data Fonte: IPHAN

No plano alto da fotografia é possível ver o canal que tentou resolver um

problema centenário. Encontramos relatos da década de 1850 sobre a percepção de tal

problema pelas autoridades sanitárias (RIO GRANDE DO NORTE, 1851). Em

novembro de 1889, o alagado da Ribeira foi aterrado pelo Governo Provincial do Rio

Grande do Norte. As críticas do jornal atribuíam ao Império e suas “meias obras” o

atraso no desenvolvimento do país. Ainda que as obras fossem realizadas, não se

obtinha o efeito desejado.

Meias obras. Serviços incompletos. São trabalhos perdidos e dinheiro gasto à toa. Com o dispendioso aterro feito no alagado fronteiro à estação da estrada de ferro. A elevação do nível do terreno foi insuficiente, as marés entram e alagam a vasta campina que se pretendeu dissecar (A REPÚBLICA, 1889).

O canal construído em 1904, ao mesmo tempo em que tentou minimizar os efeitos

das águas marinas, reordenou e embelezou o espaço daquela parte da cidade, tornando-

se mesmo um ponto de passeio domingueiro para as pessoas do lugar. As águas do mar

que se misturavam com o rio não mais se misturavam com as pessoas. Havia-se

construído um caminho para as águas e outro para as pessoas e ambas participavam da

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constituição física e moral de uma nova configuração urbanística. Tentava-se reordenar

a cidade de acordo com os projetos urbanísticos que condensavam beleza e salubridade.

Defesa sanitária era um problema de ordem nacional e que já era herdeiro da

colônia portuguesa. Não apenas as imigrações do interior à capital ou do meio rural para

o centro urbano agravou isto em todo o país, como a imigração estrangeira transformou

um problema antigo num caos de resolução imediata. No entanto, estas disposições

legislativas não se faziam ver no cotidiano das cidades. Particularmente sobre Natal,

Cicco destaca o pouco interesse do Governo Federal em ampliar verbas para resolver os

problemas sanitários do “pequeno Estado do Norte” (1920, p.6), estabelecendo um

contra-ponto nas ações do Governo local.

Nas escolas, nos desportos, nos campos, os nossos educadores aperfeiçoam a geração de amanhã, preparando as suas resistências para a luta do mais forte e contra as moléstias, ao mesmo tempo em que o Governo do Estado mantém, sem outro auxílio, diversas casas de assistência pública, os assistidos recebem o mais seguro tratamento das diversas moléstias (CICCO, 1920, p.6).

A associação da cura de moléstias físicas através de ações sanitárias e o

aperfeiçoamento da inteligência através dos educadores relacionam o projeto sanitário

do final do século dentro do projeto social republicano de civilização, ordem e ciência.

Este era o caminho para a modernidade e o progresso rumo às nações referências nesta

matéria: Estados Unidos da América do Norte, França, Inglaterra e Itália.

A crença na ciência associava este movimento higienista ao projeto positivista.

Seu aspecto cientificista se dava principalmente pelos sucessos da bacteriologia na

Europa e provocaram um movimento campanhista centrado na fiscalização de hábitos

de higiene, na limpeza das cidades e nas imunizações (SEVCENKO, 1989). Essa

campanha atribuía a difusão de doenças por microorganismos oriundos de material

putrefato decorrente da estagnação de resíduos em lixos domiciliares, hospitalares e

urbanos.

Na coluna Casos e coisas, uma matéria ocupava três colunas do jornal A

República do dia 23 de janeiro de 1902 dando destaque a uma política de

aproveitamento e destino do lixo produzido nas cidades.

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Por lixo não entendemos apenas as varreduras domésticas ou urbanas, senão também os detritos, rebutalhos e desperdícios de toda ordem de que nas indústrias se não tira nenhum partido e que, se acreditarmos no professor Peter T. Austen, que ao assunto se consagra um curioso artigo no Forum, tem um importante valor mercantil, desde o momento em que se saiba utilizá-los. Tudo serve, nada é inaproveitável (CASOS E COISAS, 1902).

A matéria continua destacando os produtos recicláveis que indústrias e pessoas

em diversas partes do mundo, como Antuerpia, Mulhouse, Estados Unidos e Canadá

,realizavam. Espaços e pessoas reaproveitavam as águas de sabão, por exemplo, e as

transformavam com a precipitação de cal em ladrilhos compactos em iluminação para

fábricas; pele de ratos para fazer luvas de senhoritas, mais finas de que a de um cabrito,

o que era muito mais econômico em termos de criação; ossos que se transformavam em

botões e uma gama de dicas do citado professor que nos remete à preocupação constante

de diversas cidades educarem seus cidadãos sobre a forma de lidar com seus detritos, já

no final do século XIX. No dia 24 de janeiro lá está o jornal denunciando “montões de

lixo” (A REPÚBLICA, 1902) na rua do Meio e instigando o governo municipal a

limpar.

Em abril de 1902, na primeira página do jornal, A República noticia dois óbitos

em Recife causados pela peste bubônica. Associava a esta notícia um texto instrucional

sobre a relação da doença com a falta de higiene nas casas. O conhecimento no final do

século XIX sobre o que causava a epidemia e os meios de combatê-la é que faziam o

jornal declarar a doença como benigna.

Com os recursos de que a ciência hoje dispõe, e em virtude das providências tomadas pelos governos federal e local, é de crer que a peste fique circunscrita à cidade de Recife. A peste bubônica é a epidemia por que se faz proficuamente com a limpeza e com a higiene. Na iminência da sua invasão, deve-se conservar a maior calma, a inalterabilidade absoluta de hábitos; porém cada qual deve ir tratando de premunir-se por meio da higiene na sua habitação, higiene no corpo e higiene na alimentação (PESTE BUBÔNICA, 1902).

A repetição na última frase da palavra higiene não é à toa. O projeto higienista do

século XIX chegava a seu auge. Todo esse movimento fazia parte de um processo

civilizador que buscava nos modos de fazer cotidiano outro modo de ser através de

práticas culturais desenvolvidas pelas instituições educacionais, como o jornal. As

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autoridades faziam pessoalmente inspeções sanitárias a fim de coibir os excessos de

sujeira na cidade e promover a limpeza necessária para a conservação da saúde de seus

cidadãos.

Os nossos amigos coronel Joaquim Manoel, presidente da Intendência, e major Joaquim Soares, delegado de polícia da Cidade Alta, percorreram hoje, pela manhã diversas ruas da capital, matadouro, baldo e fontes públicas em observação, e tomaram em seguida serias providências para se proceder rigorosa limpeza em todas as ruas da capital (LIMPEZA DAS RUAS, 1908).

O lixo era todo transportado para o local designado pelo Departamento de

Higiene, junto ao matadouro, onde ocorria a sua incineração. Mas eram comuns as

denúncias de incineração individualizada em terrenos devolutos (A REPÚBLICA,

1908b). Ainda que o intendente e o delegado percorressem as ruas para observar o nível

de higiene da cidade, este jornal denunciava:

A nossa capital está imunda. É o qualificativo que cabe, em vista dos montões de lixo que se acumulam, até nas ruas de maior circulação. Na iminência de uma peste, o primeiro cuidado deve ser o asseio completo e meticuloso das casas e das ruas. Esperar pelo serviço de limpeza pública para a remoção do lixo é uma utopia. Além disso, remover o lixo de lugares onde está espalhado para amontoá-lo em um lugar só, parece-nos, será formar um perigoso foco de infecção. Sugerimos uma idéia: mandar-se já incinerar os lixos nos próprios lugares em que estão acumulados. Adicionando-se um pouco de alcatrão, será até um excelente meio de desinfecção geral da cidade (A REPÚBLICA, 1908c).

Os leitores do jornal A República eram incitados a observar as regras da higiene

independente dos hábitos de outros possíveis grupos sociais. O asseio de cada um era

posto como “a couraça impenetrável” (A REPÚBLICA, 1908c) que evitaria a chegada e

proliferação da epidemia.

A ressonância das teorias científicas, as experiências e os resultados positivos,

bem como as epidemias de febre amarela, cólera, varíola e a alta mortalidade que essas

doenças trouxeram, provocaram a preocupação da população e sua consequente

cobrança de providências ao poder público. No Brasil, os engenheiros foram os

profissionais que ofereceram soluções técnicas para os problemas de insalubridade. A

Escola Politécnica do Rio de Janeiro, em 1874, configurou-se como um centro difusor

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para o Brasil do positivismo e da ideologia cientificista, a partir dos quais a técnica

servia para atingir o progresso material do país e educar a população para a vida

moderna e constituir-se em uma nação moderna (FERREIRA, 2008). A salubridade,

portanto, tornou-se marca da civilização moderna no Brasil Republicano.

A República no Brasil trouxe a herança de um processo civilizatório europeu. As

mudanças ocorridas no Rio Grande do Norte reverberaram uma situação mais ampla

que ocorria no país. As cidades, enquanto lócus de uma nova civilidade forjada à

européia, foram se estruturando em torno de um processo de modernização que

conjugava regeneração, reforma e saneamento moral e físico da sociedade brasileira.

Para se inscrever como nação deveria civilizar-se, isto é, assumir o viés europeu de

civilidade. A cidade buscava melhoramentos e ampliava sua estrutura com edifícios

públicos como escolas, penitenciárias, casas de saúde, a exemplo do asilo de

mendicidade que veio a substituir o antigo Hospital da Caridade da Rua da Salgadeira e

a Casa de Detenção, onde atualmente funciona o Centro de Turismo de Natal, na

Cidade Alta. As imagens abaixo são encimadas com o sugestivo título de

“Melhoramentos na Capital”. Um indício de que essa estrutura predial era também parte

do esforço de tornar a capital do Rio Grande do Norte com maiores recursos e atividade

urbana dentro da concepção de modernidade do período.

Casa de Detenção, 15 de Nov. de 1911.

Fonte: A República

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Asilo de Mendicidade Padre João Maria, 15 de Nov. de 1911. Fonte: A República

A construção da cidade moderna se materializava em um discurso que previa

alguns aspectos estruturais para a cidade.

Bonde e poços tubulares terão como conseqüência o povoamento dos subúrbios. Mas é necessário pensar desde logo em duas coisas: arborizar as avenidas e praças e limitar as concessões de aforamento a pequenas áreas. A primeira quer dizer salubridade, fixação de areias e embelezamento. Com a segunda providencia, evitaremos que poucos proprietários monopolizem grandes faixas de terras, convertidas em sítios de coqueiros com edifícios limitados [...] Não temos dúvida do progresso de Natal, sob a influência dos derradeiros melhoramentos (NOTAS E REPAROS, 1908).

Os bondes chegam a Natal sem eletricidade ou gasolina, a exemplo de outras

cidades, como Porto Alegre. Ainda assim, o meio de transporte coletivo à tração animal

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chega como um elemento do progresso. A expansão da capital pela Cidade Nova

provoca a necessidade de “carros economizando os passos e encurtando as distâncias”,

como declara a matéria Notas sobre transporte, na coluna Notas e reparos, de 1908.

Em 1911, a Empreza Melhoramentos de Natal realizou suas primeiras

experiências com bondes elétricos. O transporte das pessoas se realizou em dois

horários e pontos diferentes da cidade; às sete da manhã, da Cidade Alta à Santa Cruz

da Bica e, ao meio dia, da Cidade Alta à Ribeira. A utilização dos serviços dessa

empresa garantiu aos seus usuários o beneficiamento dos cupons usados em prol dos

necessitados, como faz ver a nota neste mesmo exemplar: “A senhorita Guiomar de

Vasconcellos enviou-nos 700 cupons da Empreza Melhoramentos para os pobres

beneficiados pela Sociedade São Vicente de Paula” (A REPÚBLICA, 1911). As fontes

analisadas não deixaram muito claro como exatamente se chegava a esses cupons. Mas

a prática desenvolvida, particularmente pelas mullheres em Natal, deixou entrever que

se tratava de troca pelos tickets de uso nos bondes da empresa. Havia, inclusive, certa

concorrência entre a Empreza Melhoramentos de Natal e a Férrea Carril, detentoras

dos meios de transporte da cidade; ora evidenciavam os cupons de uma, ora de outra,

mas sempre pelas mãos de mulheres.

O envio de cupons foi uma prática cultural muito presente entre as mulheres que

apareciam no jornal. Senhoras, senhoritas e meninas eram sempre mencionadas

prestando esse serviço e atendendo às mais diversas instituições de cuidado aos

desprovidos de bens materiais da cidade. As mulheres natalenses figuravam nesta

configuração como cuidadoras dos desvalidos. Elas eram convidadas aos cuidados do

corpo e da alma através de suas específicas “virtudes feminis”, lembrando as palavras

do deputado Pedro Américo22. Estas virtudes se configuravam em torno de

transformações econômicas e sociais que reverberavam pelo mundo ocidental, com o

desenvolvimento do modo capitalista de produção.

Na Europa, essas mudanças refletiam sobre o controle de natalidade, expansão da

educação escolar, desenvolvimento da indústria e aumento da população urbana

(HOBSBAWN, 2006). O trabalho agrícola exigia da mulher tanto quanto do homem.

Numa pequena economia agrícola familiar, por exemplo, ficava difícil definir de onde

os ganhos vinham. Ainda que a figura dominante do homem fosse uma realidade, o

trabalho era da família e para a família, sem distinção de gênero. Somente com a

22 Fizemos referência à fala desse deputado no primeiro capítulo desta tese.

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industrialização, as comunidades urbanas crescentes do século XIX instituíram o

trabalho assalariado como aquele que assegurava as condições materiais da família.

Usualmente eram os homens que vendiam sua força de trabalho no mercado oficial; às

mulheres destinava-se o mercado informal de faxineira, lavadeira, costureira, que não

raro se confundia com o seu próprio fazer de dona-de-casa. “A masculinizacao dos

negócios, no dizer de Hobsbawn (1999, p. 281), não permitiu que as mulheres

aparecessem nas estatísticas europeias na categoria de “ocupadas”, ou seja, suas

atividades para fora do lar se confundiam com seus modos de fazer dentro do lar e tanto

uma como outra não se apresentavam como remuneração válida aos olhos da Europa

industrial moderna. Mas esta “masculinização”, em sua narrativa mais forte, aparecia

em uma prática cada vez mais feminina que se organizava.

Esta nova mulher, forjada no interior oitocentista, configurava-se como uma dona-

de-casa, mãe e esposa que, nos intervalos de sua função principal – cuidar dos filhos –

fornecia um suporte financeiro com pequenas atividades de natureza doméstica, mas

que não se constituíam como fonte principal de renda. “De longe, sua melhor chance de

conseguir bons rendimentos era a de ligar-se a um homem capaz de os ganhar”

(HOBSBAWN, 1999, p.280). As personagens de Austen (1995, p.07) evidenciavam

exatamente esta problemática, como a Sra. Bennet no cuidado com as cinco filhas em

Orgulho e Preconceito. O casamento delas, como elemento de subsistência futura, era

sua única preocupação. “Quando uma mulher tem cinco filhas crescidas, deve deixar de

pensar em sua própria beleza” para pensar em como realçar a das filhas e assim

conseguir-lhes um casamento vantajoso. Um pensamento também valorizado pelas

demais personagens femininas, a exemplo de Miss Lucas que considerava o casamento

seu objetivo último na vida.

Era, a seus olhos, a única precaução respeitável suscetível de ser tomada pelas jovens educadas e de pequena fortuna, e embora, nem sempre garantisse a felicidade, não deixaria de ser o refúgio mais agradável perante a iminência de uma vida necessitada (AUSTEN, 1995, p. 111).

Em toda a Europa o incremento da imprensa fez circular ideias e ideais que

forjavam um modelo de família e de sociedade que correspondesse a esta nova ordem

urbana. No Brasil, as primeiras décadas republicanas coincidiram com o final do século

XIX e foram marcadas pelo incremento da imprensa em todo país. Um número

considerável de jornais e revistas, em geral de curta duração, foi criado; um dado

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peculiar se considerarmos o número altíssimo de analfabetos e uma oferta escolar ainda

bastante precária.

O ano de 1898 trouxe à público a Revista do Rio Grande do Norte, órgão literário

do Grêmio Polimático e dirigida por Antônio de Melo e Souza, Diretor da Instrução

Pública do Estado. Deste ano também são os jornais O Estudo,de Moisés Soares, A

Catita, de José Ramos e o jornal protestante A Mensagem, dirigido por Samuel Ramos.

Circulavam ainda o jornal católico Oito de Setembro, O Diário de Natal e revistas como

Oásis, A Revista e O século, uma revista protestante (FERNANDES, 2007). A profusão

de jornais provocava comentários até mesmo de quem estava lançando também seu

órgão da imprensa, como a redatora da Via-Láctea, Maria Carolina Wanderley, sob o

pseudônimo de Fanette.

Em Natal assola a febre dos jornais da mesma forma que a guerra assola a velha Europa – e a quebradeira – o Brasil inteiro. Raro é o domingo que a voz dos garotos não nos anuncia um novo jornal. Foi participando dessa influência da época que uma noite convidei Myriam, para fundarmos um jornal: seria manuscrito e apenas sairia um número aos domingos que nós mesmas leríamos. A proposta foi aceita (DUARTE; MACEDO, 2003, p.40).

A República circulava já há quinze anos e, em 1914, oferecia a seus leitores os

rocamboles de Poison de Terrel em formato especial para encadernação posterior, como

Os dramas de Paris. A tradição dos folhetins neste jornal traz uma versão de Manuel

Dantas para Coração de Edmundo Amicis, em 1890. Este último texto depois irá figurar

na lista de livros da Instrução Pública do ano de 1896 como subsidio para a disciplina

de Moral e Cívica nas Escolas Elementares do Estado, quando Manoel Dantas foi

Diretor da Instrução Pública do Rio Grande do Norte (RIO GRANDE DO NORTE,

1899). O caminho da literatura folhetinesca para as salas de aula norte-rio-grandenses

era encurtado pela adoção de livros de monta internacional pelos educadores do Estado.

A literatura, portanto, chegava também através dos jornais; os de casa com suas

traduções de romances europeus ou poesias e contos de intelectuais locais e nacionais, a

exemplo de Júlia Lopes de Almeida ou Arthur Azevedo, mas também os de outros

estados. Impressos que “chegavam atrasados”, segundo Fernandes, como O Estado de

1902 (FERNANDES, 2007, p.21) “publicando excertos de um livro inédito, depois

reunidos com o título ‘Os Sertões’, de Euclides da Cunha”. Mas também se compravam

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livros na Livraria Cosmopolita que, conforme o anúncio abaixo, prometia leituras

quentes para pessoas frias.

Anúncio da Livraria Cosmopolita, 12 de set. de 1911.

Fonte: A República

Para as tertúlias se valiam as moças e senhoras dos acessórios vendidos na Casa

Londres e os tecidos vendidos pela Alfaiataria Paris, cujos nomes já indicavam de onde

saíam os padrões de elegância a serem copiados. Os anúncios ofereciam a quem pudesse

pagar os elementos para tecer de realidade a indumentária elegante das revistas

parisienses. Sonhos tecidos, talvez, pelas mãos da senhorita Domitilla no Ateliê de

Costuras da Praça André de Albuquerque, Cidade Alta (ATELIER DE COSTURAS,

1914) ou da modista Hermina Mendonça, da Rua 13 de Maio, Ribeira (atual Frei

Miguelinho), que anunciava no A República seus préstimos.

MODISTA Hermínia Mendonça oferece seus servcos de modista para filhas e mães podendo ser procurada na R. 13 de maio n. 30 (MODISTA, 1914, p.4).

Então, podemos visualizar um cenário hipotético; um quadro que as fontes

permitem pintar e que as categorias permitiram erigir como campo de possibilidades à

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construção dessa cidade de fim de século. Aos domingos, as senhoras da mais fina

sociedade natalense, de corpinho e mantilhas com vestidos de caxemira azul seguiam

para o cinema. Em 1898 Nicolau Parente realizou a primeira exibição cinematográfica

do Estado, no interior de um depósito de açúcar à Rua do Comércio (atual Rua Chile),

na Ribeira.

Foram exibidas cenas do ‘Jubileu da Rainha Vitória’, onde viam-se todos os movimentos do grande cortejo, os ‘Os Banhos da Alvorada’, ‘A Catedral de Milão’, ‘O Casamento do Príncipe de Nápoles’, ‘O Panorama de Veneza, ‘A Chegada em Gôndola’, ‘A comida dos pombos na praça de São Marcos’ e ‘A chegada do trem’ (PALCOS E SALÕES, 1898).

O jornal destaca a naturalidade com que são representadas as cenas permitindo

uma ilusão de realidade. Este foi o aspecto, segundo o colunista Verascopo, mais

surpreendente para a plateia assistente. Eles descobriam no final do século a magia da

sétima arte e seus efeitos sobre a alma humana através de cenas documentadas no outro

lado do Oceano Atlântico. Lulu Capeta, pseudônimo de José Mariano Pinto, gerente do

A República e Diretor do Natal Club, publicou uma quadrinha sobre a nova tecnologia

em forma de diversão para a cidade.

Dessa bela novidade Fui à primeira função E saí pensando mesmo Ser aquilo arte do cão (CAPETA, 1898).

A temporada durou quinze dias. De tempos em tempos – entre novembro e

dezembro de 1898 e em anos subsequentes – voltava o cinematógrafo a dourar os fins

de semana de alguns dos natalenses. Apenas em 1906 os espetáculos cinematográficos

ganharam regularidade, com a exibição de filmes no Teatro Carlos Gomes. Foi exibido

no mês de abril de 1906, entre outros, o filme O que vejo no meu andar, que valeu um

comentário de Verascopo no jornal A República. Descrevendo o filme, ele conta um

pouco da reação da plateia com as cenas representadas.

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Uma mulherzinha apetitosa recolhe-se do seu aposento de volta da rua ou do teatro, acende a lamparina, abre a janela e – previa ela que o Verascopo andava por aquelas alturas, quase perto do céu? – começa a livrar-se desses acessórios importunos, que comprimem as carnes, no desafogo suave dos membros com liberdade. Chapéus, botinas, casacos, saias, vai tudo para o chão. Quando ela se agarra aos atilhos do espartilho, muitos olhares vão se esbraseando e muitos cavalheiros do meu conhecimento, já num pé e noutro, vão sendo convenientemente beliscados pelas execelentissimas senhoras deles; coisas daquela tentação (INSTANTÂNEOS, de 1906).

Os ingressos custavam 1.000R$000 (hum mil réis). Os camarotes para um

espetáculo no Carlos Gomes saíam a 30$000 (trinta contos de réis) e as cadeiras por

5$000 (cinco) contos de réis. Os dados analisados indicam como era dispendiosa a nova

diversão da cidade para a maioria da população natalense.

Numa dimensão salarial dos docentes temos o salário de um professor ou

professora de um grupo escolar de segunda classe era 1.800$000 (hum mil e oitocentos

réis). No grupo escolar modelo – o Augusto Severo – este valor subia para 24.000$000

(vinte e quatro mil réis). Se fosse do Atheneu Norte Rio Grandense recebia 2.700$000

(dois mil e setecentos mil réis), mas se fosse da Escola Normal recebia 900$000

(novecentos contos de réis)23. Divertir-se era bem caro para a população em geral,

inclusive para os professores.

De qualquer modo, o divertimento se ampliou e se consolidou cada vez mais na

cidade. A flor da calçada e O Conde de Monte Cristo inauguraram o cinema de enredo e

em 1911 é posto em funcionamento o Polytheama. Este cinema se configurava mais

como uma casa de diversão exibindo, além dos filmes, espetáculos circenses e peças

teatrais.

23 Estes dados foram construídos a partir de alguns exemplares do jornal A República do ano de 1906 e do ano de 1908 a que tivemos acesso e que dispunham das informações de que precisávamos. Alguns dados, como o valor do ingresso, utilizamos o livro de Fernandes (2007). Utilizamos ainda a tabela de vencimentos da Diretoria de Instrução Pública do ano de 1909 para criar um parâmetro para o leitor atual na relação do custo de vida, com o lazer disponível à população e à categoria de professores, objeto de nossas preocupações neste trabalho.

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Programação do Polytheama de 11 de novembro de 1911 Fonte: A República

Música, cinema, teatro faziam parte do programa de diversões do estabelecimento.

Contava ainda com uma sala para jogos, serviço de bar e sorveteria. Os rapazes e moças

enchiam as salas da Casa.

Algumas delas como Chiquita Barros e Joanita Gurgel compareciam, não só para assistirem aos filmes, mas também para tocarem o piano do cinema nas sessões (FERNANDES, 2007, p.83).

O aprendizado da música era parte da educação das meninas da elite das cidades

durante o século XIX. O fato delas estarem se apresentando em público difere da

concepção de uma educação estética voltada unicamente para o papel de anfitriã no lar

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doméstico. Por outro lado, demonstrar seus dotes em locais públicos, como soirées ou

jantares, era uma maneira de a menina conseguir amealhar um bom casamento, pela

exposição de seus talentos. Não sabemos aqui qual o caso, mas decerto temos um

indício de que não só para o lar – seu ou de outros – servia a educação musical dessas

duas meninas.

Conviviam com o teatro Carlos Gomes, a casa de diversão Polytheama e o Royal

Cinema. Este último, inaugurado em 1913, foi o primeiro cinema da parte alta da

cidade, funcionando onde hoje se localiza a intersecção da rua Vigário Bartolomeu e da

Ulisses Caldas, no bairro Centro. Nem mesmo o espaço original existe mais desse

cinema que inspirou a valsa homônima do compositor seridoense Tonheca Dantas.

O perfil de espectadores e os preços dos ingressos sugerem que esta tecnologia em

forma de diversão era para poucos natalenses. As classes populares se divertiam

andando pelo corredor da Junqueira Ayres em direção a Rua do Comércio, baldeando

suas passadas pela Praça Augusto Severo, de onde emanava música do coreto da praça.

Coreto da Praça Augusto Severo, sem data

Fonte: IPHAN

As atividades domingueiras neste coreto se voltavam para as famílias de todas as

classes. As misturas de extratos diferenciados da economia ainda era novidade.

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Misturavam-se também modos de ser e de viver, de vestir e de falar, gostos e portes.

Um artigo da Via-Láctea nos dava uma visão dos acontecimentos nesse espaço, através

da escrita de Zanze, pseudônimo de Carolina Wanderley.

Lá cheguei, exatamente quando a banda de Segurança executava a primeira parte do programa – um desses tangos que são agora a música predileta dos natalenses. Havia naquela tarde muita concorrência... Mas, a maior parte dela, valha a verdade, compunha-se de amas de crianças e rapazolas mal educados que a cada instante nos tolhiam a passagem e nos deixavam atônitas pelo barulho ensurdecedor (DUARTE; MACEDO, 2003, p. 42)

A escritora da revista feminina não gostou do seu passeio através da nova

diversão da cidade. A música do coreto não lhe era agradável aos ouvidos, o público

presente não lhe parecia suficientemente educado e o bulício do “povaréu” lhe deixara

atônita. Mas, ao que parece, a diversão era apreciada por muitos considerando, como dá

a conhecer o artigo. As diversões noturnas ficavam por conta das serenatas de

Heronides França a sonorizar as ruas enluaradas da cidade com a mística poética de

Auta de Souza, cujos versos ele musicava (FERNANDES, 2007).

Na cidadela do início do século figuravam outras personagens que nos permitiram

absorver o cotidiano dessa cidade. As máquinas agrícolas e industriais ocupavam a

quarta página do jornal A República ao lado de anúncios de professoras que buscavam

novos alunos para as primeiras letras, para uma segunda língua ou para aulas de música.

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Anúncios: Emulsão Scott e afinação de piano, 18 de Nov. de 1911. Fonte: A República

Dividindo o espaço comercial com instrumentistas que ofereciam afinação de

piano conviviam nas páginas de anúncios do jornal, médicos, dentistas, advogados. As

farmácias e os boticários vendiam seus produtos utilizando representações válidas no

período – “Toda criança tem lombriga. Use Ascaridil” (A REPÚBLICA, 1908e) –

focando homens, mulheres e crianças na sua publicidade de fim de século.

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Anúncio: Segredo da beleza, 11 de Jan de 1902. Fonte: A República

No final do século XIX, as cidades buscavam uma pedagogia que se caracterizava

por um processo educativo multiforme e “que se volta para envolver indivíduos, grupos

e classes, que exaltava a função dos intelectuais e os colocava a serviço da política e da

opinião pública” (CAMBI, 1999, p. 372). Através de uma pedagogia cultural em

espaços educativos alternativos como o teatro, as festas, os romances e o cinema,

atuavam “paralelamente à escola como instâncias educativas e formativas, geradoras de

sociabildiade e regulação social” (OTHON, 2006, p.143) realizavam esta educação

menos formal para além dos muros escolares.

Várias associações foram criadas no final do século XIX em torno desses

intelectuais, com objetivos literários, beneficentes, religiosos ou educacionais. Dentre

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elas podemos destacar O Grêmio Lítero Natalense, do qual fazia parte Auta de Souza; a

associação Damas da Caridade, presidida por Amélia Barreto; o grupo religioso

católico As Filhas de Maria e a Liga para o Ensino do Rio Grande do Norte (LERN),

organizada por Henrique Castriciano de Souza.

A cidade de Natal tinha uma população de aproximadamente 20.000 habitantes,

em 1914. Viviam entre os bairros de Cidade Alta, Ribeira, Rocas, Passo da Pátria,

Alecrim, Tirol e Petrópolis. Enterravam-se no Cemitério do Alecrim e compravam na

rua do Comércio. Subiam e desciam as ladeiras do Baldo e da Junqueira Ayres.

Economizavam passadas indo do Centro ao Alecrim, Tirol e Petrópolis nos bondes à

tração animal da Empreza Melhoramentos de Natal e da Ferro Carril. Compravam

tecidos na Alfaiataria Brasil ou na Casa Londres. Para crescerem fortes, as mães davam

Ascaridil ou Emulsão Scott às crianças. Para se sentirem melhor, estas mulheres

tomavam Gotas Salvadoras; mas quem salvava mesmo era o médico Januário Cicco,

que cuidava das parturientes no fim do século XIX natalense e anunciava seus préstimos

nas páginas do jornal natalense, A República.

Natal foi se apresentando nesta pesquisa através de recortes temporais e

documentais. Como disse o viajante de Calvino, assim como Olívia ou Tamara, as

cidades não são os seus discursos, mas existe uma clara relação entre o discurso que a

descreve e a representação que temos dela em si. O projeto republicano de sociedade se

espelhava nos modos de fazer cotidianos dessa cidade. Se aqui pudemos vislumbrar as

ações sociais desse projeto republicano, uma dessas ações nos pareceu mais peculiar e

nos convidou a outra reflexão ao término deste capítulo: qual o projeto educacional

escolar da República que reverberava nas ruas da cidade de Natal no fim do século

XIX?

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Capítulo V Educação e educação feminina: fim de século, início de res-publica

Oferecei sem escrúpulos uma educação de mulher às mulheres, fazei com que gostem dos trabalhos de seu sexo, com que tenham modéstia, saibam zelar por seu lar e cuidar da casa (ROUSSEAU, 1995, p.515).

Em 1889 o Brasil ainda era um Império e a Província tentava afastar as ideias

republicanas das suas principais instituições, ou pelo menos dos que nela ocupavam

cargos estratégicos, como o de Diretor-Geral de Instrução Pública. Numa leva de

demissões de adeptos do Partido Liberal que ocupavam estes cargos, o então Diretor-

Geral de Instrução Pública, Manuel Nascimento de Castro e Silva, foi exonerado em

represália aos liberais que, como ele, não eram “bastante cordatos ou ajeitáveis, não ao

seu partido, mas a um grupo que quer ser senhor absoluto” (A REPÚBLICA, 1889, p.1).

A matéria informa ainda que “as adesões em todos os números do A República e a

rotatividade de pessoas em cargos de confiança eram demonstrativo da força do ideal

republicano nas rodas políticas da Província”. O pêndulo sócio-politico do Brasil se

voltava para outro lado e os jornais a que tivemos acesso demonstram predileção por

assuntos ligados à política partidária republicana. O progresso e o desenvolvimento da

nação são atrelados a um regime republicano, cuja representação aparece como o

regime da verdadeira democracia.

Era de se esperar que, conquistado o intento, os governantes colocassem em

andamento os projetos sociais que viabilizassem a consolidação da nova configuração

política. Era necessário tornar a perspectiva político-filosófica de res-publica em uma

realidade sócio-política de República.

Foram realizadas ações estruturais e administrativas que tentavam deixar para trás

as marcas de um sistema que atravessou todo o século XIX. Uma dessas ações foi a

tentativa de implantar a Escola Normal de Natal.

Por decreto de oito de fevereiro foi criada nesta Capital uma escola normal organizada de conformidade com o respectivo regulamento baseado na mesma dita (NOTICIAS DIVERSAS, 1890).

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O ano era 1890 e o Diretor-Geral de Instrução era outra vez Manuel do

Nascimento Castro e Silva. A notícia saiu em 16 de fevereiro. Trinta dias depois, a

Diretoria ficou a cargo do Prof. Antônio de Amorim Garcia. Mas a escola voltada à

formação de professores não passou de uma tentativa administrativa; nunca saiu do

papel. A rotatividade nos cargos – que atingia até mesmo os cargos mais altos do

Estado, como o de Governador em todo o Brasil – e as ações sociais que só figuram

como decretos configuram um período de turbulência e ajuste não apenas político, mas

também econômico e cultural.

Foram três tentativas para além desta, em 1874, 1892 e 1896. A primeira, ainda

sob um regime imperial, também não saiu do papel. A segunda tentativa, já sob regime

republicano, foi instalada, mas quatro anos depois, em 1896. Caracterizava-se como

exclusivamente masculina e encerrou suas atividades em 1901. A institucionalização do

ensino normal no Rio Grande do Norte somente ocorreu a partir de 1908, como uma das

ações da Reforma Pinto de Abreu.

O Rio Grande do Norte reorganizou o ensino a partir de decretos que adequassem

o ensino às necessidades e possibilidades do momento. As incertezas políticas nos dois

primeiros anos da República fizeram escoar os anos de 1890 e 1891 sem grandes

alterações relativas ao ensino.

Com efeito, ao se organizar o Estado, as prioridades eram outras. As leis orçamentárias, que nos últimos anos imperiais dotavam a instrução com um terço de sua receita, somente mantiveram esse percentual em 1890, quando de 416050$000 lhe destinaram 133422$000, para logo no ano seguinte, de 711520$000 destinaram à educação somente 120000$000, ou seja, um pouco mais de um quinto (ARAÚJO, 1982, p.109).

Com poucos recursos para viabilizar o ensino, a solução encontrada foi suprimir

cadeiras de Instrução Primárias e a transformação de algumas em cadeiras mistas. Em

termos econômicos a solução foi eficaz: menos cadeiras, menos recursos. O Decreto n.

15, de 03 de março de 1890, assim estava descrito:

Art. Único: Nos lugares onde houver mais de uma cadeira de 3ª entrância diurna e mais de uma , noturna, desde que vagar uma delas, ficará suprimida (RIO GRANDE DO NORTE, 1889-1895).

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A política de disseminação da instrução na República se materializou no Estado

do Rio Grande do Norte também através das aulas particulares. Em 1888 eram 152

escolas públicas e 09 particulares em todo o Estado (Fala do Presidente da Província,

1889).

Cerca de uma década depois, no ano de 1899, são 126 escolas públicas, entre

estaduais, municipais subvencionadas e municipais não subvencionadas (LIMA, 1927,

p.138) e 22 escolas particulares (Relatório da Instrução Pública, 1899). Um aumento

real de mais de 100% em dez anos. A estatística escolar informa ainda que das 22

escolas particulares, 10 se encontravam na capital do Estado. Acreditamos, pelo que

pudemos observar nos anúncios dos jornais pesquisados que este número era bem

maior; se considerarmos as aulas particulares de primeiras letras, por exemplo.

Este aumento significativo de escolas particulares permite observar que Natal

presenciava a ampliação da rede escolar através de uma esfera que, naquele momento

histórico, não estava completamente condicionada pelas reformas e pela legislação do

Estado. Esse aspecto oferecia a essas instituições a possibilidade de reorganizar e

ampliar o universo da clientela atendida pela rede escolar em Natal.

No governo Pedro Velho de Albuquerque Maranhão, entre os anos de 1892 e

1896, a instrução teve sua primeira reforma do governo republicano. Através do Decreto

n. 18, de 30 de setembro de 1892, a reforma previa legislação para o ensino público e

privado. O Governo Estadual reorganizou o magistério norte-rio-grandense em 1893 e

muitos dos professores do quadro docente do Estado não foram aproveitados. De acordo

com o Decreto n. 19, de 23 de janeiro de 1893, em seu artigo 3º:

Art. 3 Os professores primários não aproveitados na nova organização e que se acharem nas condições do N.4 do Art. 6 das disposições transitórias da constituição Estadual, são considerados aposentados desde a data deste decreto, e o tesouro do Estado liquidara as suas aposentadorias, de acordo com a citada disposição constitucional (A REPÚBLICA, 1893).

Segundo o Ato Oficial, de 23 de janeiro de 1893, das 152 escolas existentes

ficaram sob a responsabilidade do Estado apenas 76; dessas, 04 eram em Natal, 02 na

Ribeira e 02 na Cidade Alta.

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O Governador do Estado de acordo com o n.4 do Art. 6 das disposições transitórias da Constituição Estadual e Lei n. 6 de 30 de maio de 1892, resolve nomear para as cadeiras de ensino primário do Estado, os seguintes professores: Natal: Cidade Alta – José Ildefonso Emerenciano e Dona Balbina Carolina Soares da Câmara; Ribeira – Joaquim Lourival Soares e Dona Joanna Carolina Soares da Câmara (A REPÚBLICA, 1893).

Entre exonerados, jubilados e colocados à disposição foram 39 professoras e 33

professores. Em Natal foram duas professoras e dois professores. O último corpo

docente da Monarquia constituía-se de 05 professoras. Depois da reorganização do

ensino e dos professores a partir de 1892, duas professoras saíram dos quadros da

Instrução Pública: Antônia Rosa de Carvalho e Joanna Nazareth Barbosa, ambas

professoras da cadeira de Instrução Pública feminina na Cidade Alta. Sobre a professora

da escola primária da Ribeira constante do último professorado do Império, Isabel

Gondim, Cascudo (1999, p. 196) ressalta que esta se aposentou em 1891.

A Reforma de 1892 trazia em seu Artigo 1º a composição dos graus de ensino do

Estado: Primário, Secundário e Normal. Tornava obrigatória uma cadeira do sexo

feminino em cada cidade e assegurava liberdade ao ensino particular, desde que

atendesse a alguns critérios:

Art. 6º O ensino particular é completamente livre e independente. Qualquer pessoa, nacional ou estrangeira, poderá abrir estabelecimento de ensino, sujeito apenas às seguintes condições: 1ª Comunicação prévia ao Diretor Geral da Instrução Pública declarando o nome do proprietário e Diretor, sua denominação e o local em que funcionará; 2ª Apresentar no prazo improrrogável de oito dias, sempre que lhe for pedido por aquele funcionário, mapas circunstanciados da matrícula e freqüência, indicados os nomes, idades, naturalidades e classes dos alunos; 3ª Remeter anualmente ao Diretor Geral, de 10 a 20 de dezembro, o mapa do movimento anual do estabelecimento com as condições acima; 4ª Exibir certificado das boas condições higiênicas do edifício, passado por autoridade competente. Parágrafo único: a falta de qualquer destas exigências acarretará multa de cem mil réis pela primeira vez, de duzentos pela 2ª, e o fechamento do estabelecimento pela 3ª (RIO GRANDE DO NORTE, 1895).

O programa do ensino primário das escolas públicas se organizava de acordo

com o Artigo 36 para ser ministrado em duas classes:

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I – Leitura e Escrita; II – Aritmética Elementar; III – Geometria Elementar e Desenho Linear; IV – Lições de Coisas; V – Noções de Geografia e História, especialmente do Brasil; VI – Gramática Nacional; VII – Educação Moral e Cívica; VIII – Elementos da Música; IX – Ginástica; X – Trabalhos Manuais, compreendendo os trabalhos de agulha para o sexo feminino (RIO GRANDE DO NORTE, 1895).

Nas escolas particulares os programas de ensino não atendiam a uma

padronização rígida. As diferenças aconteciam em razão da liberdade concedida pelo

Artigo 6º, do citado decreto. Este artigo assegurava a abertura no que diz respeito a

disciplinas, conteúdos e métodos aplicados no interior dessas escolas. Tanto é possível

ver diferenças entre as escolas estatais e particulares, como no próprio universo das

escolas privadas. Isto demonstra que nem sempre os Regulamentos e Decretos escolares

se materializavam nas práticas cotidianas das escolas.

Ao comparar os currículos do Colégio Particular Natalense (1892) com o do Colégio

Natal (1894), fica evidente uma diferenciação nas disciplinas oferecidas: enquanto o Colégio

Particular Natalense desenvolve as Primeiras Letras, Trabalhos de Agulha e Noções de Música,

o Colégio Natal amplia a formação das meninas com outras disciplinas como Religião, História

e Aritmética. Mesmo assim, as professoras procuravam conquistar uma credibilidade social para

suas cadeiras em Natal, apresentando-se como egressas da Instrução Pública ou ministrando

seus cursos de acordo com o regulamento da Instrução Pública Primária.

Arcina Anizia de Figueiredo Câmara declara aos pais de família, d’esta Capital, que ensina particularmente a meninas, não só as primeiras letras, como também qualquer ponto de agulha e também a meninos de 5 a 8 anos, por módico preço. Propõe-se ensinar particularmente todas as matérias exigidas pelos Regulamentos de Instrução Pública Primária; tratar a rua 13 de Maio, n. 3 (ENSINO PARTICULAR, 1892, p.2). De volta a esta cidade propõe-se ensinar particularmente todas as matérias exigidas pelos Regulamentos de Instrução Pública Primária a meninos de ambos os sexos, para cujo fim tem estabelecido sua escola no Bairro da Ribeira, desta cidade, r. Formosa n. 22, garantindo aos pais de família zelo e dedicação pelo adiantamento dos filhos que dignarem-se confiar sua educação. Maria Luiza de França (A REPÚBLICA, 1894).

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São recorrentes nos jornais pesquisados anúncios que indicam o movimento de

professoras entre o ensino público e o privado neste período. Um exemplo é o da

professora Antônia Marques do Vale Carneiro que, jubilada24 do ensino público,

oferece-se para ensinar primeiras letras em sua residência (A REPÚBLICA, 1891).

Outro exemplo é o da professora Lúcia de Nazareth Barbosa. Jubilada de sua cadeira de

Instrução Primária, na cidade de Poço Limpo/RN25, anunciou no jornal A República o

ensino particular de primeiras letras na sua residência, na Cidade Alta em Natal.

Lúcia de Nazareth Barbosa, achando-se fora de sua cadeira, declara ensinar particular as primeiras letras em casa de sua residência, rua Visconde do Rio Branco, nº 71 (A REPÚBLICA, 09/07/1892).

Em 1897, ao lado de Cândida Cabral, através de concurso municipal, esta mesma

professora volta ao magistério público de primeiras letras, nomeada para a cadeira de Instrução

Primária na Cidade Alta.

No concurso a que se procedeu na Intendência para preenchimento das cadeiras municipais da Cidade Alta e da Povoação de Ponta Negra, foram plenamente aprovadas as duas únicas candidatas que concorreram. As Exms. D. Cândida Cabral e Lúcia Nazareth Barbosa (A REPÚBLICA, 1897).

A possibilidade de transitar entre o ensino privado e o público garantia às

professoras uma participação no espaço público, dada a ampliação desse universo de

trabalho. Além disso, a liberdade e independência das escolas particulares, garantidas

pelo Decreto n. 18, permitia às diretoras de escolas femininas organizar programas de

conteúdos que ampliavam a formação intelectual de outras mulheres em Natal, como

por exemplo, o Programa do Colégio de Nossa Senhora da Apresentação. Os conteúdos

eram Português, Francês, Alemão, História, Geografia, Aritmética, Princípios da

Geometria, Desenho, Música, Piano e Trabalhos Manuais. Esse instituto particular de

instrução primária e secundária do sexo feminino referendava-se pela prática de ensino

da Diretora, Adelina da Silva Leitão, em diversas escolas de Niterói. Ao lado de Mena

de Andrade Melo “objetivavam promover o adiantamento das moças nos diferentes 24 Segundo ARAÚJO (1982, p. 55), a jubilação havia sido estabelecida através da Resolução de 1836 para regular o tempo de serviço dos professores públicos. De acordo com o Regulamento de 1887, o tempo de serviço variava entre 25 e 35 anos, sendo necessários somente 10 anos de magistério para ter direito “a aposentadoria por incapacidade física”, ou seja, ser jubilada. 25 Essa povoação fazia parte, na década de 1890, da jurisdição de São Gonçalo. Atualmente é o município de Ielmo Marinho (CASCUDO, 1968, p.189 e 235), distante 45 quilômetros de Natal.

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ramos do ensino, baseados nos verdadeiros princípios da moral e da religião”. A

educação física também seria observada oferecendo “boa alimentação, recreios

compatíveis e observando no seu estabelecimento quanto possível os preceitos da

higiene.” (ANÚNCIO, 1894, p.2).

Neste sentido, as mulheres que educavam mulheres contribuíam e participavam

do projeto social republicano, através do que Almeida (1999) classificou como o que era

possível ã mulher naquele momento histórico, em termos de trabalho remunerado: a

docência para meninas.

Na última mensagem do Governo Estadual, em 14 de julho de 1895, as

expectativas em torno do que a reforma poderia ter trazido em benefício da Instrução

Pública são expressamente frustradas.

Quisera anunciar-vos lisonjeiros avanços e progressos na instrução pública do Estado. A triste realidade, porém, é que esse elemento primeiro e mais fecundo da civilização dos povos acha-se entre nós num estado deploravelmente rudimentar e imperfeito. E, ao meu ver, a causa mais poderosa deste atraso é o pouco e nenhum zelo da maior parte dos mestres: os antigos professores eram em regra, incuriosos e inábeis; os novos, também não são muito melhores que os primeiros (MENSAGEM DIRIGIDA AO CONGRESSO LEGISLATIVO DO RIO GRANDE DO NORTE PELO DR. PEDRO VELHO DE A. MARANHÃO GOVERNADOR DO ESTADO, 1895, p.1).

Foi possível identificar alguns esforços da sociedade civil para tornar a

democracia republicana ao alcance de todos, através de ações educacionais. Em 1890

um grupo de voluntários – Lourenço Correia, João de Lyra Tavares e Leonillo Tavares

de Miranda – anunciaram uma classe de primeiras letras gratuita destinada a

trabalhadores analfabetos.

Convidam, pois seus cidadãos, que não souberem ler, nem escrever e que, pelas suas ocupações diárias não possam cursar as aulas diurnas, a comparecerem diariamente das 7 às 9 horas no edifício 8 à R. senador João Alfredo, em Macayba (A REPÚBLICA, 1890, p.2).

Estas ações pontuadas caracterizaram o período de expansão da educação escolar

norte-rio-grandense. O obstáculo maior para a emergência do Brasil como nação era,

neste período e por muito tempo depois como até hoje, a ausência de uma política de

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educação escolar para todos. Na expansão do ensino estaria assegurado o progressivo

desenvolvimento do país.

A transformação desse ramo do serviço público deve ser o primeiro cuidado de um governo patriótico e nacional porque, como bem disse José Veríssimo, o único meio de criar um caráter brasileiro, uno e reto e a força capaz de manter a coesão nacional no meio da diversidade de clima, de costumes, de interesses, e mesmo de raças, alterado o tipo brasileiro pela imigração no sul e pelo elemento indígena no norte, seriam uma instrução sólida e nacional, onde se procurasse incutir no espírito das crianças de par com os princípios sãos da ciência, o amor pátrio por meio do exemplo e estudo das nossas coisas sabiamente explicadas e desenvolvidas (A REPÚBLICA, 1892).

Veríssimo (1890, p.47-52), citado pelo autor do artigo do A República, percebia a

formação do caráter como um dos aspectos mais importantes a se considerar quando da

organização da educação em todo o país. Associava a educação instrucional ofertada

pelas escolas com a educação doméstica trabalhada no interior do lar paterno. Sua

crítica em torno deste tipo de educação o fazia enfatizar o cuidado com a formação de

quem estaria à frente dessa educação dos pequenos no final do século XIX. Colocava

ênfase na educação doméstica como sendo naturalmente função da mulher e advogava

para esta uma educação que a capacitasse para ser mãe de família e reguladora da

economia doméstica, pois a mãe brasileira com o seu “amor maternal, sem energia

deixa ver quão deficiente, senão dissolvente, era a educação doméstica como educação

do caráter” (VERÍSSIMO, 1890, p.52). Esta crítica elaborada no crepúsculo do período

imperial do Brasil ao mesmo tempo em que revelava práticas educacionais no interior

das casas brasileiras, também vislumbrava um universo de reformas para a educação

republicana que ia para além do sistema que o Governador Pedro Velho chamava a

atenção em 1896, no fim do seu mandato, em Mensagem dirigida ao Congresso

Legislativo do Estado do Rio Grande do Norte ou, ainda, para um sistema educacional

baseado na escola e em sua expansão.

Quatro anos de regulação do ensino público, com um conteúdo que trazia

inovações como Lições de Coisas, Ginástica e Educação Moral e Cívica não

melhoraram as condições de educação no Estado. A Reforma de 1896, no Governo de

Joaquim Ferreira Chaves parecia tentar sanar o problema. Com uma maior regulação

sobre os professores e as casas de ensino pretendia uma intervenção mais sólida do

Estado nessa educação escolar.

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O ensino que se ministra nas escolas públicas primárias e em nosso instituto oficial de humanidade está longe ainda de corresponder à exigência social que fez consistir na instrução popular a melhor e a mais segura base dos programas democráticos. Mantenho inalterado o que, a propósito, expôs, perante vós, o ano passado, em sua lúcida mensagem, o meu honrado antecessor. Folgo de consignar aqui – que os exames realizados no Atheneu, quer os de preparatórios, quer os de investidura no magistério primário, vão sendo uma realidade, tendo desaparecido o sistema de aprovações em massa, tão indevidas quão escandalosas. Acha-se instalada, em proveitoso funcionamento, a escola-modelo anexa àquele instituto, e em via de execução várias e importantes reformas decretastes, tendentes todas a elevar o nível do professorado, nomeadamente o preparo dos mestres (MENSAGEM DIRIGIDA PELO GOVERNADOR JOAQUIM FERREIRA CHAVES FILHO AO CONGRESSO LEGISLATIVO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE, AO ABRIR-SE A 2ª LEGISLATURA, 1896).

De acordo com o Regulamento de 1896, o Conselho Literário decidiria quais

livros didáticos seriam utilizados nas escolas subsidiadas pelo poder público. Entre estes

destacamos o Livro de Leitura de Felisberto de Carvalho e de Hilário Ribeiro,

referendados para exercícios simultâneos de Leitura e Escrita; os exercícios de

numeração de Francisco Pinto de Abreu, para estudo de Aritmética e Coração de

Edmundo de Amicis que, ao lado da Constituição do Estado do Rio Grande do Norte,

se constituíam como os livros didáticos para instrução moral e cívica na escola

elementar.

Livros didáticos aprovados e adotados pelo Conselho Literário para uso das escolas primárias: Para Leitura e Escrita (exercícios simultâneos) – Livros de Leitura de Felisberto de Carvalho e os de Hilário Ribeiro; Para Estudo de Aritmética – Exercícios de numeração de F. Pinto de Abreu e Aritmética Primária de Trajano; Para Geografia (ensino concreto) – Mapas murais de Olavo Freire e Geografia Atlas de Couturier – tradução de Moreira Pinto; Para Instrução Moral e Cívica – Coração de E. de Amicis e Constituição do Estado do Rio Grande do Norte; Para História do Brasil – Compêndio de Lacerda; Para Desenho Linear – Compêndio de Abílio; Para Língua Nacional – Gramática Elementar de João Ribeiro; Para Música – Cânticos escolares de Menezes Vieira; Para Ginástica – A ginástica escolar de Borges (INSTRUÇÃO PÚBLICA, 1896).

Na reorganização do ensino primário, através do Decreto n. 60, de 14 de fevereiro

de 1896, ministrado nas escolas públicas do Estado, duas disciplinas deixaram o

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currículo: Elementos da Música e Ginástica, ficando em seu lugar Gramática e Música

(hinos e cânticos escolares). Essas alterações sugerem talvez uma preocupação maior

dos dirigentes com a instrução formal do aluno, deixando de lado a formação geral

indicada por corpo, mente e espírito, constante no primeiro regulamento organizado

pelo governo republicano.

De acordo com o Artigo 37, no Regulamento baixado com o citado Decreto, o

Diretor Geral expediria programas circunstanciados e observações pedagógicas sobre

cada uma das matérias do ensino e sobre a distribuição dos trabalhos e tempo. Não é

lícito aos professores alterar os programas, podendo, entretanto, “representar sobre eles,

expondo as considerações que o estudo e a experiência lhes aconselharem” (RIO

GRANDE DO NORTE, 1896).

Dessa forma, o governo julgava garantir uma instrução baseada nos princípios

organizacionais do Estado. Os delegados escolares eram responsáveis pela observância

desses preceitos nos municípios, visitando escolas municipais e particulares. Além dos

conteúdos escolares, aspectos como higiene e moralidade eram observados na inspeção.

De acordo com o Regulamento da Instrução de 1896, as cadeiras primárias, vagas

ou criadas, só poderiam ser providas efetivamente por alunos-mestres, diplomados pelo

curso profissional anexo ao Atheneu. No entanto, o curso profissional nesse período

admitia apenas homens. Enquanto as mulheres não tinham acesso a esse tipo de

formação, o provimento das cadeiras do sexo feminino se dava por meio de concurso.

De acordo com esse Regulamento, a mulher poderia assumir a sala de aula a partir dos

dezoito anos, desde que comprovada moralidade e bom procedimento, independente de

ser solteira ou casada.

Ainda previa o Regulamento a obrigação dos professores de trabalharem a partir

dos livros indicados pelo Conselho Literário, sob pena de multa em caso contrário. A

julgar pela circular publicada pelo Diretor da Instrução Pública, Manoel Dantas, alguns

aspectos desse regulamento não eram respeitados pelo professores.

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Cumpre igualmente que, sob pena da multa estabelecida no Art. 66 do Reg. Citado, remetais a esta diretoria, a 1º de Maio, 1º de Agosto e no dia do encerramento das aulas, um mapa nominal dos alunos matriculados nessa escola, com declaração da classe, filiação, data da matrícula, média de aproveitamento, número de faltas e comportamento de cada aluno e que tenhais sempre em dia a escrituração de livros de matrícula, sendo proibido lecionar por outros livros que não os aprovados pelo Conselho (INSTRUÇÃO PÚBLICA, 1897).

Uma circular de 21 de janeiro exortou os professores a realizar os exames

primários públicos. Observamos nos jornais pesquisados que essa prática não era

comum entre o professorado da época, apesar de esta ser uma determinação

regulamentar do Governo. Manoel Dantas, em 1899, ainda reclama a falta de

moralidade dos exames públicos sugerindo mesmo pôr um fim neles. Atendendo à

solicitação deste Diretor três anos antes, em 1896, a professora pública primária Joanna

Carolina Carvalho de Oliveira, da cadeira feminina da Ribeira, realizou seus exames

avaliando seus alunos como aprovados com distinção, plenamente e simplesmente.

No dia 16 do corrente mês, perante o Doutor Alberto Maranhão, Delegado Escolar do bairro da Ribeira, realizaram-se os exames finais, na escola do sexo feminino de Instrução Primária, regida pela professora D. Joanna Carolina Carvalho de Oliveira, dando o seguinte resultado: Formozina da Costa Queiroz, aprovada com distinção; Maria Anunciada Gomes e Carolina Amélia de Vasconcellos, plenamente; Joamara da Costa Queiroz, Josina Maria de Lima e Adélia Pereira da Silva, simplesmente (INSTRUÇÃO PÚBLICA, 1896, p.2).

Os colégios ou aulas mistas ainda eram uma novidade. No levantamento que

fizemos nas fontes pesquisadas, esse tipo de aula era uma realidade apenas no ensino

privado. Apesar da co-educação, que durante toda a Primeira República era objeto de

discussão, tendo em vista os riscos de aproximação entre os sexos, esta medida acabou

sendo adotada mais por questões econômicas do que de gênero. Primeiramente, em

escolas localizadas em municípios distantes da capital e dos centros urbanos mais

importantes, depois ampliada para todas as cidades. Mas esta foi uma medida que, além

de ampliar o acesso das meninas à educação pública, permitiu às professoras maior

espaço para o exercício do magistério (FREITAS, 2002). Consideramos que esta ação –

ampliação da rede de ensino sob a responsabilidade do poder público – provocou um

efeito colateral e favoreceu a inserção feminina no espaço público pela educação.

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No Rio Grande do Norte, a supressão e transformação de algumas cadeiras

masculinas ou femininas da Instrução Primária em cadeiras mistas, pelo Decreto n. 15

de 03 de março de 1890, anteriormente citado, iniciou o processo de co-educação no

Estado.

Os esforços intelectuais em torno de reformas, no entanto, parecem manter o mesmo

quadro. No relatório de 1899, Antonio de Melo e Souza, Diretor de Instrução Pública do

Governo Ferreira Chaves nos permite conhecer a instrução regulada pelo Decreto acima

mencionado.

Dando-vos como me cumpre, conta do desenvolvimento geral do Ensino Público oficial, devo declarar-vos que é menos lisongeiro que nos anos anteriores. A seca que assolou o interior do Estado determinou o abandono de muitas escolas por parte dos respectivos professores, e a benevolência criminosa nos exames preparatórios trouxe, mais uma vez, a completa desmoralização do ensino secundário (MENSAGEM AO CONGRESSO LEGISLATIVO DO RN - 2ª SESSÃO – ACOMPANHADO DOS RELATÓRIOS DOS CHEFES DE GOVERNO, 1899).

Os Relatórios que constituem esta mensagem também trazem notas sobre

policiamento, sanitarismo e estrutura da cidade. Estes também não aparecem como

animadores aos relatores, principalmente, para uma cidade que buscava se afirmar como

capital de uma unidade federativa. Esta busca do que deveria caracterizar uma cidade

moderna partia de um modelo instaurado. E como expressa Hobsbawn (1999), este

modelo era apreendido em viagens de formação ou lazer pela intelectualidade brasileira

que, em última instância, se responsabilizava pela difusão de ideias pedagógicas no

Brasil.

Perceber a sociedade e a cultura a partir de um ideário europeu sempre fez parte

do universo intelectual brasileiro. Uma formação intelectual complementada por

viagens de formação e mesmo de lazer e cuidados com a saúde que se tornava de

formação ou de informação para as cidades de origem.

No Rio Grande do Norte eram comuns viagens nacionais e internacionais

custeadas pelo poder público. Essas viagens eram oferecidas como prêmios aos

professores e mesmo intelectuais objetivando conhecer outras realidades culturais e

pedagógicas. Este contexto legal especificado pelo Decreto n° 239 de 1910, que tratava

da organização do ensino público no Estado, favorecia, através do Artigo 43,

professores da rede pública de ensino que se destacassem em suas atividades docentes.

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Art.43 – Ao que se distinguir pela sua competência e dedicação a juízo do Conselho de Instrução, além das preferências legais em concurso de títulos poderá o Governo conceder as seguintes recompensas, a) Viagem para fora do Estado para observar e relatar os progressos de ensino; b) Prêmio Pestalozzi, consistente em medalha de ouro como effigie do célebre reformador; c) Prêmio Froebel, consistente em medalha de prata com a efígie do notável pedagogo (RIO GRANDE DO NORTE, 1910, p.125)

Este Artigo traz duas importantes considerações. A primeira era o cuidado que o

legislativo educacional tinha em observar (e talvez absorver) modelos pedagógicos de

outros espaços sociais. Um aspecto relevante para uma sociedade que se queria

civilizada pela educação e que esta educação fosse ministrada em instituições

específicas, como a escola. O professor premiado não iria apenas observar progressos de

ensino em outras paragens, mas relataria – conforme decretado – estes progressos

quando de seu retorno de tais viagens. Era mais que um prêmio: era um instrumento

formativo para o professor (ou professora) e para o movimento educacional da cidade.

Um movimento de renovação educacional que se organizava em torno das

expectativas do governo republicano e de intelectuais como Pestalozzi e Fröbel. E esta é

nossa segunda observação: o referido Decreto erguia estes pensadores da educação

escolar como símbolo de professores “notáveis e célebres”, para usar as palavras do

texto do Artigo 43. Percebe-se, por este aspecto, que o modelo educacional proposto

pelos pensadores se estabelecia nessa configuração como um paradigma válido para a

educação moderna que se queria para o Rio Grande do Norte. Ao lado de Maria

Montessori, Herbart e Dewey formava um quadro teórico que os brasileiros e os norte-

rio-grandenses adotaram nos seus modos de fazer educação escolar, atribuindo a esta o

signo de civilidade e modernidade. Palavras como liberdade, experiência, amor e

pragmatismo forjaram modelos teóricos que atravessaram todo o século XIX e serviram

de base para o pensamento educacional nos primeiros anos do século XX no mundo e

no Brasil.

No cruzamento entre a educação da humanidade e o governo iluminado do

pensamento setecentista e a visão orgânica de sociedade, bem como o papel do

sentimento e da espiritualidade na formação do homem do romantismo alemão, as

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idéias de Pestalozzi indiciam uma instrução que valorizasse o curso da natureza, que

integrasse coração, mente e mão e trabalhalhasse a partir de experiências concretas. A

pedagogia oitocentista de Pestalozzi se ancorava nesses princípios para organizar um

modelo pedagógico que priorizasse as necessidades do povo e os objetivos de uma

Nação. Harmonizando autoridade e liberdade, o ensino mútuo e o método intuitivo,

Pestalozzi configurava a escola e a família como os dois maiores agentes educacionais

da sociedade, capaz de formar, ao mesmo tempo, o homem e o cidadão.

Dessa forma, Pestalozzi resolve o dilema posto por Rousseau sobre qual deveria

ser a preocupação do educador: ao mesmo tempo em que opta, no Contrato Social

(ROUSSEAU, 1997) por formar o cidadão, este filósofo se dedica a fazer do seu

discípulo-personagem um homem em Emílio ou da educação (ROUSSEAU, 1995).

Pestalozzi, ao que parece, compartilha esta formação em duas instituições educativas

que deveriam ter diante de si o mesmo projeto social. A família e a escola seriam as

responsáveis por formar, então, este homem-cidadão. A relevância dada a educação

doméstica será enfatizada em sua obra Como Gertrude instrui seus filhos (CAMBI,

1999). Nesta obra, não apenas enfoca a importância da educação doméstica, na relação

com a educação escolar, como ressalta o cuidado materno e a atividade feminina nesse

mérito.

A escola seria, portanto, este prolongamento do lar materno e as crianças

pequenas seriam cuidadas objetivando seu desenvolvimento natural. Fröbel traduziu isto

em uma escola específica – os jardins de infância – que antecederiam a escola de

primeiras letras. Dentro desse modelo teórico, as crianças aparecem como plantinhas a

serem cuidadas por suas professoras para florescerem belas e sadias de corpo e de

espírito. Esta perspectiva pode ser percebida já na Didática Magna na qual Coménio

(1985) traz a figura do professor como o sol que ilumina a planta (o aluno) para que ela

cresça frondosa, de raízes profundas e com um tronco seguro e forte.

A partir das idéias de Rousseau e Pestalozzi, Fröbel traduz a pedagogia romântica

em uma didática específica para crianças. A organização dos jardins-de-infância e a

concepção da necessidade de uma formação pedagógica para professores e pais são os

marcos dessa teoria. A atividade lúdico-estética é central onde a brincadeira e o jogo

constituirão o foco principal no trabalho com as crianças. Pela primeira vez o brincar

infantil será percebido como elemento de formação no universo escolar.

É perceptível que, no curso do século XIX, as teorias pedagógicas assumem um

caráter mais científico acompanhando as teorias sociológicas e as novas ciências como

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medicina e psicologia. “À luz das indicações da psicologia e da ética” (CAMBI, 1999,

p.433) Herbart traduz a ética moral kantiana para a moralidade da natureza infantil, ou o

“governo da criança”. O objetivo é determinar esse “governo” numa relação de

autoridade e amor, implicando pais e educadores para formar o homem em totalidade,

ou seja, para si e para a sociedade.

A cientificidade pedagógica herbatiana é filtrada pela pedagogia ativa

sistematizada por Adolphe Férrière em fins do século XIX. A Escola Nova Ativa, que

associamos neste trabalho a Maria Montessori26, se inspirava nas leis da natureza e do

desenvolvimento infantil. Baseada na organização pedagógica elaborada por Fröbel

eram desenvolvidas atividades de ensino que trabalhavam desenho, leitura, escrita e

aritmética, a partir de materiais concretos. Algumas aquisições pedagógicas que

encontramos em sua obra podem ser percebidas em elaborações anteriores, como a

educação sensorial de Pestalozzi, como também a auto-atividade e a valorização do jogo

para o desenvolvimento de hábitos a partir dos instintos e dos impulsos naturais nas

crianças.

As crianças são corpos que crescem e almas que se desenvolvem, e não crescem graças à alimentação, ao simples fato da respiração ou a algumas condições térmicas ou borométricas favoráveis, porque a vida potencial se desenvolve nelas e se torna ativa. O príncipio básico do sistema é a liberdade, ao que devemos acrescentar o axioma da atividade e da individualidade (PUJOL-BUSQUETS; VALLET, 2003, p. 26).

O método intuitivo de Pestalozzi provocou muitas reelaborações pedagógicas. Na

América o movimento pedagógico ativo teve em Allison Norman Calkings um

sistematizador importante. Sua obra sintetiza o método intuitivo em um guia de lições

que facilitavam a compreensão e execução de um fazer pedagógico calcado nessas

ideias. O Lições de Coisas, como ficou conhecido o guia, era aplicado a todas as

disciplinas da escola primária.

No Brasil esta perspectiva foi trazida por Rui Barbosa numa adaptação que

objetivava revolucionar não apenas as aulas, mas todo o sistema escolar.

26 Ao lado de Montessori, um destaque para Decroly, que foi um dos educadores que traduziu com mais efetividade o ideário de Férrière (CAMBI, 1999).

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O que até hoje se distribui em nossas escolas de primeiras letras, mal merece o nome de ensino. Tudo nelas é mecânico e estéril; a criança, em vez de ser o mais ativo colaborador na sua própria instrução, como exigem os cânones racionais e científicos do ensino elementar, representa o papel de um recipiente passivo de fórmulas, definições e sentenças, embutidas na infância a poder de meios mais ou menos compreensivos (BARBOSA, 1950, p.8).

A crítica que compõe o Preâmbulo do autor no livro Primeiras Lições de Coisas,

manual de ensino elementar para uso de pais e professores, faz ainda uma apologia aos

méritos do ensino intuitivo enquanto uma perspectiva que reúne o cultivo dos sentidos,

da razão e da palavra a partir da observação das coisas vivas.

Circunscreve a parte catequética, didática, expositiva da missão do professor. Restitui aos fatos, diretamente consultados pelo aluno, a parte preponderante, que lhe cabe, na educação do homem. Não permite que o professor veja, ouça, compare, classifique, conclua pelo discípulo. Cinge-se, quanto se possa, a facilitar ao estudantinho primário as condições da observação e da experiência em comunicação viva com o mundo exterior (BARBOSA, 1950, p.13).

O ensino intuitivo estava inserido na Reforma Leôncio de Carvalho, ainda sob o Governo

de D. Pedro II, em 1879, como Noções de Coisas. Esta Reforma ensejou os Pareceres de Rui

Barbosa em 1882, particularmente o Parecer do ensino primário que já antecipa a crítica

explicitada no Lições de coisas sobre o ensino primário constituir-se de uma educação baseada

na leitura e repetição formal do livro sem que o aluno pudesse sentir “mais vivo apetite da

realidade” (BARBOSA, 1950, p.10).

As Reformas Republicanas mantiveram as marcas desse ideário. No Rio Grande do

Norte a Reforma de 1892 não deixava clara a orientação pedagógica a ser seguida; deveria estar

em conformidade com os princípios da Diretoria da Instrução Pública. Esta disposição é

mantida na Reforma de 1896, deixando-nos com uma lacuna na percepção das marcas teóricas

que a legislação propunha. A Reforma de 1892 tinha como Diretor de Instrução Pública,

Antonio José de Melo e Souza27; a de 1896 tinha como Diretor Manoel Dantas28. Talvez um

27 Antônio José de Melo e Souza nasceu em 1867, na Vila Imperial de Papari, atual município de Nísia Floresta-RN. Foi Diretor-Geral de Instrução Pública (1892), Deputado Estadual (1892-1894), Procurador da República (1895), Secretário de Governo (1900), Procurador Geral do Estado (1901) e foi eleito Governador duas vezes, entre 1907 e 1908 e entre 1920 e 1924. Colaborava no jornal A República utilizando também pseudônimos (Lulu Capeta, Francisco Macambira) e escreveu dois romances sob o pseudônimo de Polycarpo Feitosa: Flor do Sertão, em 1928 e Gizinha, em 1930 (DIAS, 2003). 28 Manoel Gomes de Medeiros Dantas viveu entre 1867 e 1924. Foi Diretor-Geral de Instrução Pública do Rio Grande do Norte duas vezes (1897-1905 e 1911-1924), além de Deputado Estadual (1907-1909) e Procurador Geral do Estado (1908- 1910). Era colaborador em vários jornais do Estado, entre eles a

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estudo ulterior sobre a vida desses indivíduos pudesse trazer à História da Educação do Rio

Grande do Norte informações que permitissem erigir o ideário pedagógico real do período.

Mas se a legislação não deixa claro, os jornais fornecem alguns indícios. Estes

colaboravam para a difusão e, talvez, a formação dos professores do Estado das novas

perspectivas educacionais. Uma coluna, no jornal A República, intitulada Pedagogia trazia os

princípios do ensino intuitivo em guias de orientação para a educação dos pequenos.

Iniciamos esta secção, dedicada aos professores públicos, com o fim de propagar a doutrina pedagógica por meio de exercícios de obras escolhidas. Teremos em consideração o Programa das Escolas Públicas (INSTRUÇÃO PÚBLICA, 1895, p.2).

A primeira delas foi sobre Lições de Coisas, que aparecia como parte do programa

das escolas primárias. Trazia seu objetivo neste segmento de ensino, os tipos de

atividades a serem desenvolvidas, os materiais que poderiam ser utilizados e também os

desdobramentos do ensino, como “o ensino moral que deve ser como o fruto necessário

das lições de coisas”.

LIÇÕES DE COISAS A expressão lições de coisas é genérica e vaga, mas conforme o uso a tem recebido, designa uma das partes mais importantes do programa das escolas primárias: lições orais feitas pelo professor ou professora sobre objetos no meio dos quais vivem os meninos, sobre objetos de que eles se servem e sobre fatos habituais da vida cotidiana. Por isso que nos meninos a atenção do espírito tem a necessidade de ser esclarecida e sustentada pela dos olhos, o mestre deve procurar fazer-lhe ver, quer pela apresentação real quer por imagem ou figuras, os objetos de que lhes fala, ou pelo menos os materiais que entram na composição desses objetos. As lições de coisas têm por fim formar os sentidos do menino fortificá-los, desenvolvê-los fisicamente, regulá-los, e, pelo dizer assim, fazer-lhe a educação por exercícios metódicos (INSTRUÇÃO PÚBLICA, 1895, p.2).

Esta coluna é revitalizada em 1911 por Nestor Lima, Diretor da Escola Normal

ainda com o mesmo objetivo de dez anos passados de orientar os professores do Estado

com modelos teóricos atualizados. E mais uma vez o ensino intuitivo, ao lado da Escola

República, no qual também utilizava o pseudônimo Braz Contente (CARDOSO, 2000). Encontramos nos jornais pesquisados várias traduções suas de romances da literatura universal que traziam a sua assinatura e se apresentavam sob a forma de folhetim, tais como Quo Vadis, Coração e Timom.

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Ativa, foca as orientações deste intelectual norte-rio-grandense. A matéria sobre lições

de coisas vinha sob o título Lições de coisas, sua importância, princípio e método.

As lições de coisas são rudimentos de Ciências (Física e Química) e História Natural sob forma concreta na escola primária. Este ensino traz-lhe uma certa soma de conhecimentos elementares, tirados do meio local; retifica, completa as noções adquiridas, instrui sobre as partes dos objetos e dos seres (LIMA, 1911, p.1).

A Reforma de 1908, conhecida como Reforma Pinto de Abreu, manteve a

disposição de deixar a cargo da Diretoria de Instrução Pública a orientação pedagógica

às escolas. Esta Reforma criou os Grupos Escolares no Rio Grande do Norte e o

Regimento dos Grupos trazia em seu escopo geral os princípios das teorias que vimos

falando nas últimas páginas.

Art. 4° A instrução será proporcional ao desenvolvimento das faculdades do educando. Estimule-se criteriosamente este desenvolvimento, a fim de que o aluno se apodere da verdade por meio de suas próprias investigações, livre de coação de qualquer natureza; Art. 6° Serão rigorosamente adotados os processos intuitivos, os quais consistem em apresentar materialmente ou pelo aspecto os objetos das lições; Art. 7° Os sentidos são os caminhos naturais por onde se conduzem as explicações dos mestres ao espírito dos alunos. Dentre os meios empregados para atingir esse fim, são as lições de coisas os que melhor resultados produzem, desenvolvendo na criança a faculdade de observação, preparando-a para repetir e ajuizar (REGIMENTO INTERNO DOS GRUPOS ESCOLARES DO RIO GRANDE DO NORTE, 1909, p.6).

O sentido pragmático que esses modelos teóricos traziam era voltado a uma

educação escolar mais apropriada ao caráter moderno de individuo e sociedade. Os

relatos de Castriciano, Secretário Administrativo (1900-1910) e Procurador Geral do

Estado (1908-1914), deixam perceber o sentido sócio-cultural que o modelo

educacional atraía.

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A felicidade tão lembrada do povo suíço está na educação das mulheres. Esse pequeno povo e menos de quatro milhões de indivíduos habitando um território de um mil quilômetros quadrados, dos quais um quarto é improdutivos, em minérios, sem colônias, falando três línguas, com duas religiões que em toda parte do globo se combatem, tornou-se profundamente unido de graves dissensões, um dos primeiros do que fez do sexo feminino em sério elemento de progresso (CASTRICIANO, 1911, p.10).

Neste relato de viagem, o então Procurador do Estado, critica a ojeriza brasileira

ao trabalho manual “sob tantos aspectos ainda colonial, não obstante o verniz de

civilização”. Sobre todos os temas abordados – estrutura ferroviária, política e economia

– a educação das suíças, assim como o fato delas serem parte atuante na força de

trabalho nacional – “contendo uma população feminina de um milhão e oitocentas

pessoas, desta mais de um milhão e meio trabalham em profissões diversas” – fazendo

da mulher um “ser útil, romântico, equilibrado, aceitando a vida como ela é”.

De acordo com Castriciano (1911, p.10-11), da educação feminina resultaria a

aptidão para o trabalho, uma ampla e clara noção de dever, ausência de preconceitos

ridículos e dessa aptidão individual sairia a energia coletiva, o civismo por norma, a

honestidade na vida social, o respeito a si próprio e aos outros. Não raro a mulher

trabalhava, ainda segundo Castriciano, na usina, sem que esse fato concorra para o

afrouxamento dos laços de família.

Este relato não somente faz uma apologia à educação feminina como elemento

propulsor do desenvolvimento econômico de uma nação civilizada, como convoca as

mulheres brasileiras – particularmente as natalenses – a “esta nova e augusta

maternidade: a formação social do Brasil do amanhã.”

A crença na educação como elemento catalizador de progresso e desenvolvimento

não era privilégio de Natal, mesmo do Brasil ou do período em foco. A peculiaridade

que trazemos para reflexão é que os esforços desses legisladores vão culminar em uma

orientação educacional em torno de uma escola feminina, no final do século XIX e sob

uma orientação laica, científica e voltada ao âmbito privado da sociedade natalense: a

Escola Doméstica de Natal.

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Escola Doméstica de Natal, atual Posto do INSS – Ribeira Fonte: Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Urbanismo/SEMURB

Seu idealizador, Henrique Castriciano de Souza, a pensou a partir de uma

experiência cultural suíça. Em suas viagens observou, na contraposição com as

mulheres europeias, como as mulheres brasileiras não eram muito práticas e pouco

contribuíam com a formação da nação. O debate educacional promovia discussões em

torno do que deveria ser esta cidadã. A elegância, os bons costumes, o patriotismo e a

civilidade eram valores que se buscava através da educação para dar visibilidade à

modernidade e atrelá-la à idéia de república (VEIGA, 2000, p.397-422). Um ideário a

mais, percebido em todo o século XIX.

Este século é para o Rio Grande do Norte, assim como para o Brasil, marcante na

história educacional. A Lei-Geral de Ensino de 1827 regulou e favoreceu a profissão

docente, “dando-lhe garantias e vantagens que se podem, com justiça, atribuir à

importância da profissão” (LIMA, 1927, p.5). Garantia, por exemplo, vitaliciedade

salarial aos profissionais da educação sob a responsabilidade do poder público. Em seu

Artigo 1º, esta Lei manda criar escolas de primeiras letras em todos os lugares mais

populosos do país para meninos e meninas, sendo de ensino mútuo as escolas sediadas

nas capitais das províncias. Mas no Artigo 11, a Lei deixava a cargo destes presidentes a

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criação de escolas de meninas nas cidades e vilas mais populosas que julgassem

necessário este estabelecimento (LIMA, 1927, p. 7-9).

Estabeleceu os critérios trabalhistas para professores e mestras29,

profissionalizando, em certa medida, o fazer docente. Até então este fazer pedagógico

estava submetido a uma ordem religiosa – a Companhia de Jesus, entre 1549 e 1759 –

ou sujeito a volubilidade de ações políticas e econômicas, já que Mestres Régios eram

pagos através de um subsídio cuja cobrança não era eficaz em todos os lugares (2000).

Institucionalizou os conteúdos para meninos e meninas estatizando a educação

ofertada e criando um locus de trabalho feminino antes inexistente

Art. 6 – Os professores ensinarão a ler, escrever, as quatro operações de aritmética, prática de quebrados, decimais e proporções, as noções mais gerais de geometria prática, gramática de língua nacional, e os princípios de moral cristã e de doutrina da religião católica apostólica romana, proporcionados à compreensão dos meninos; preferindo para as leituras a Constituição do Império e a História do Brasil. Art. 12 – As mestras, além do declarado no Artigo 6º, com exclusão das noções de geometria e limitando a instrução da aritmética só as quatro operações, ensinarão também as prendas que servem à economia doméstica (LIMA, 1927, p.10).

Há que se observar que o Artigo 13 – “As mestras vencerão os ordenados e

gratificações concedidos aos mestres” (LIMA, 1927, p. 8-10) – indica uma paridade que

não fazia parte do universo feminino oitocentista. Portanto, além de abrir um espaço de

trabalho – teriam de ser criadas escolas para as meninas e estas só poderiam ser

ensinadas por mulheres – e de instrução, esta legislação ainda percebe uma equidade

salarial que é ponto de muitas discussões feministas até hoje, a exemplo das discussões

em torno do empoderamento da mulher capitaneadas pela ONG inglesa OXFAM

(Comitê de Oxford de Combate à Fome).

Outras resoluções desta Lei de educação escolar estabeleciam o ensino mútuo e o

Método Lancaster - sistema de monitoramento pelo qual os alunos mais capazes

ensinavam, pela repetição, aos alunos mais atrasados - como procedimentos

metodológicos para os professores e mestras da Instrução Pública. Os cargos eram

vitalícios e ocupados através de concurso público.

29 A Lei-Geral trazia a diferença de gênero expressa nas categorias professores, para se referir aos docentes masculinos e mestras, para se referir às mulheres professoras.

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Art. 8 – Só serão admitidos à oposição e examinados os cidadãos brasileiros que estiverem no gozo dos seus direitos civis e políticos, sem nota na regularidade de sua conduta. Art. 12 – [...] e serão nomeadas pelos Presidentes em Conselho, aquelas mulheres, que, sendo brasileiras e de reconhecida honestidade se mostrarem com mais conhecimentos nos exames feitos na forma do art. 7º. Art. 14 – Os provimentos dos Professores e Mestras serão vitalícios; mas, os Presidentes em Conselho, a quem pertence a fiscalização das escolas, os poderão suspender, e só por sentenças serão demitidos, provendo interinamente que substitua (LIMA, 1927, p.8-10).

No ano de 1892 encontramos ainda traços dessa Lei basilar da educação

oitocentista quando vemos no Regulamento da Instrução Primária – Decreto n° 18 de 30

de setembro de 1892 – a vitaliciedade do cargo, os conteúdos propostos, a exemplo dos

Trabalhos Manuais para as meninas, a perda do cargo por atos imorais, incompatíveis

com o Magistério. Estas marcas acompanham todos os regulamentos e reformas

empreendidas no período focado por esta pesquisa. Podemos depreender, portanto, a

importância dessa Lei para a formulação de todas as reformas educacionais

empreendidas no século XIX.

A primeira cadeira feminina foi criada no inicio do século, em 1829, e funcionava

na Ribeira sob a tutela da Profª Josefa Botelho. O início da institucionalização do ensino

veio com a Lei-Geral de Ensino de 1827, pois até então

Só havia escolas nas cidades e vilas importantes [...] em 1784 com o Vice-Rei Luiz de Vasconcellos, só havia no Rio de Janeiro, nove (9) aulas de primeiras letras, e sob o Conde Rezende (1798) apenas 2; si recordarmos que, só depois de 1808, é que essas aulas foram instituídas em Recife 3, em Vila Rica, São Paulo e Bahia algumas poucas, e que estas se reduziam todas as aulas elementares do Brasil, antes da independência (LIMA, 1927, p.43-44).

Não podemos afirmar quantas destas aulas elementares eram dedicadas à

instrução feminina ou mesmo se algumas destas eram a este segmento destinadas. Os

dados de que dispomos surgem a partir de 1829, depois da implementação da Lei-Geral

de Ensino de 1827. No entanto, quando comparamos o universo de aulas destinadas ao

sexo feminino até 1850 e a partir deste até 1889, percebemos um aumento significativo

de 1.766,7%. Até o início do século XX, foram mais de duas mil escolas criadas,

apresentando-se sob outra forma (mistas) e outra administração (municipal). Ao final do

século XIX Natal possuía duas cadeiras do sexo feminino e o Estado do Rio Grande do

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Norte dez femininas e oito mistas. Conviviam estas com trinta escolas masculinas de

primeiras letras em quatorze cidades do Estado (ARAÚJO, 1982). Este aumento na

educação escolar se ancorava em paradigmas conceituais que atribuíam à escolarização

o desenvolvimento pleno dos cidadãos e, consequentemente, das cidades.

A discussão sobre melhoria da educação, expansão das escolas e melhoria das

condições intelectuais dos professores encontrava respaldo nas discussões sociológicas

sobre nossa etnia ou a origem desta. Em que medida esta origem afetava os modos de

ser e de fazer do povo brasileiro foi analisada por muitos intelectuais brasileiros, como

Manoel Bomfim (2005) ou Silvio Romero (2001). Ao lado deles Euclides da Cunha

(2003), depois de analisar os principais elementos raciais do povo brasileiro, conclui

que,

Não temos unidade de raça. Não a teremos, talvez, nunca. Predestinamo-nos à formação de uma raça histórica em um futuro remoto, se o permitir o dilatado tempo da vida nacional autônoma. Invertemos, sob este aspecto, a ordem natural dos fatos. Estamos condenados a civilização. Ou progredimos ou desaparecemos (CUNHA, 2003, p.102-103).

Civilizar-se era para esse escritor condição essencial de sobrevivência para os

brasileiros. Éramos produto não de três raças – o negro banto, o indo-guarani e o branco

– mas de vários tipos étnicos. O brasileiro seria esta junção de raças que se sucediam em

combinações binárias e que ainda encontravam na diversidade do meio físico muitas

derivações biológicas e culturais. Uma harmonia ou mesmo uma homogeneização

através de uma instrução mais diretiva talvez corrigisse estas “derivações biológicas”.

Neste período histórico as idéias evolucionistas eram parte do repertório

intelectual brasileiro. Foram teorias organizadas a partir do darwinismo e do

positivismo e consideravam a necessidade de evolução biológica e social como

condição de sobrevivência humana. As explicações dos subdesenvolvimentos de alguns

países conectavam-se com este pensamento e colocavam a responsabilidade por este ou

aquele grau de desenvolvimento social sobre as raças30 que o organizavam. Portanto,

subdesenvolvimento se relacionava com subraça. E parecia ser este o nosso caso.

30 Assumimos aqui o termo raça por ser este aquele que comumente encontramos nos escritos dos intelectuais da época, Ainda que tenhamos clareza de que este não consegue abarcar a dimensão que etnia encontra nas discussões posteriores.

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Veríssimo (1889, p.35) atribuía essa responsabilidade a etnia negra – “uma raça

inferior”, segundo ele – mas acreditava que esta característica biológica poderia ser

suplantada pela educação, meio indispensável à civilização necessária ao progresso

deste povo. Antes e depois dele, muitos fizeram coro a essa crença. Imputaram a uma ou

outra etnia a responsabilidade pelo atraso e acreditando na promoção da educação

escolar e doméstica como uma possibilidade de reverter o plano natural a que estávamos

sujeitos. Veríssimo também era parte destes intelectuais.

Para reformar e restaurar um povo, um só meio se conhece, quando não infalível, certo e seguro, é a educação, no mais largo sentido, na mais alevantada acepção desta palavra. Nenhum momento mais propício que este para tentar este meio, que não querem adiado os interesses da pátria. Afirma um perspícuo e original historiador de pedagogia, que do estudo da história e evoluimento da educação pública resulta, entre outras, esta conclusão: “ uma reforma profunda na educação pública e nacional presume uma reforma igualmente radical no governo” Nós tivemos já a reforma radical no governo, cumpre-nos completar a obra da revolução pela reforma profunda da nossa educação nacional (VERÍSSIMO, 1889, p. x).

Não apenas a educação pública, escolar, mas a educação doméstica, a formação

do caráter. A crítica deste escritor recai sobre uma educação que não prevê a vida

prática, que “menospreza o trabalho e alimenta a indolência”. Concluía que a

escravidão, degradando o trabalho, foi um convite à letargia de comunidades, “já

enfraquecidas pelo clima e viciadas pela hereditariedade” (VERÍSSIMO, 1889, p. 35-

36). Além disso, crianças submetidas a uma educação doméstica confiada a criadas

mulatas e negras que forjavam sinhozinhos e sinhazinhas voluntariosos e despreparados

que à primeira dificuldade degeneravam. Estes eram os homens e as mulheres a quem

estava confiado o futuro da nação.

José Veríssimo apostava na educação como propulsora dessa mudança de hábitos

que se organizava na inter-relação entre o biológico e o social. Como Cunha, ele

também pensava num modelo civilizatório que pudesse suplantar os aspectos naturais

deste povo. A formação do caráter pela educação doméstica era o caminho; o gênero

feminino, na figura social da mãe, era o meio. Castriciano (1911) trazia esta mãe

vinculada ao projeto republicano de sociedade e aos conceitos de esposa e dona-de-casa.

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Na Suíça ninguém tem vergonha de trabalhar, porque todo mundo sabe ler. Testemunha da ordem, da simplicidade, da alegria nada ruidosa dessa república inimitável, o que no momento me chamava a atenção e me despertava irrequieta curiosidade não era a calma atividade do povo em geral, mas a robustez e a tranqüila segurança das mulheres, todas evidentemente preocupadas com uma tarefa séria (CASTRICIANO, 1911, p.13).

Este escritor encontrava-se em uma barca, atravessando o Lago Leman, de

Genebra para Lausana no ano de 1909 quando fez estas observações. Observar o

comportamento das mulheres suíças convidou o escritor natalense a refletir sobre o

próprio comportamento de suas patrícias. Ao seu lado sentara um casal de brasileiros

que não lhe dera muita atenção. Ele os descreve como ricos, refinados e arrogantes. A

moça tinha a tez branca das reclusas e uma magreza que conferia a ela uma “beleza

mórbida das mulheres fatais”.

A certa altura da viagem entrou de forma ruidosa um grupo de educandas

acompanhadas de suas professoras “em respeitosa camaradagem”. As moças se vestiam

com simplicidade e uma delas, sacando da bolsa um caderno de notas pusera-se a

escrever com a perna direita sobre a esquerda a lhe servir de apoio. Sentara-se ao lado

da moça brasileira que, sentindo-se incomodada com sua vizinha, dá ao marido o braço

e dali aparta-se.

Talvez por que lhe fizesse mal aos nervos o ruído do lápis anotador, talvez por que lhe magoasse a vista o grosso vestuário da jovem, o certo é que a senhora brasileira ergueu-se arrimada ao braço do marido, de quem consertou o laço da gravata, e murmurou fazendo beicinho. Que gente! Ele muito superior, aquiesceu em concordar que aquele povo era realmente atrasado, com mulheres que andavam mal vestidas, pesadamente, como se fossem pessoas de comércio – acrescentou sibilante (CASTRICIANO, 1911, p.8).

A comparação serve de mote para uma discussão sobre a educação feminina para

o Rio Grande do Norte capitaneada pela Liga para o Ensino do Rio Grande do Norte

(LERN). O objetivo desta Liga, fundada em 1911, era prover as cidades do Estado de

escolas domésticas, nos moldes suíços, para as camadas populares da população

(RODRIGUES, 2007). O projeto percebia ainda as nuanças do país e do Estado a que se

destinava e as mulheres que buscava atender.

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Certo, não se deverá exigir da mulher excessivo esforço mental. Se pudermos fundar a Escola a que nos referimos no prospecto conhecido esta não será nos moldes do Simons College de Boston, um grande estabelecimento em que as moças americanas podem se dedicar aos mais elevados estudos. É cedo ainda para tanto; e nem o meio social do Brasil tem necessidade de sábias e doutoras (CASTRICIANO, 1911).

O objetivo da LERN era propor/organizar instituições educativas voltadas a

conteúdos mais práticos do que teóricos. Castriciano, homem do seu tempo e assumindo

uma representação de mulher republicana do final do século XX, acreditava que o

esforço mental de tais empresas intelectuais extrapolaria certos limites e poria em risco

a saúde mental, já fragilizada por natureza, das mulheres e dos filhos destas sob seus

cuidados, “sendo enorme a quantidade de energia que despende com as crises e os

trabalhos de maternidade” (CASTRICIANO, 1911).

A LERN era parte de um esforço nacional de desenvolvimento da Nação,

erradicação do analfabetismo e defesa da soberania nacional, a exemplo da Liga de

Defesa Nacional (1916) e da Liga Nacionalista (1917). Eram entidades que reforçavam

o sentimento de ser republicano e a esperança no desenvolvimento e progresso da nação

brasileira (NAGLE, 2001).

A Liga de Ensino do RN antecedeu à formação de diversas Ligas no Brasil; ela apresentou peculiaridade em relação as demais existentes no Brasil; era na sua singularidade o que poderíamos conceituar de um projeto republicano ambicioso, audaz e inovador para o campo educacional, porque previa reformas no ensino a partir das bases, do maternal ao ensino secundário (RODRIGUES, 2007, p. 55).

Os esforços intelectuais e financeiros desta Liga, no entanto, convergiram para

uma única escola: privada e de formação feminina. A Escola Doméstica de Natal foi

fundada em 01 de setembro de 1914. O prospecto da Escola, exposto no jornal A

República deixa-nos perceber por onde se encaminham seus projetos pedagógicos e

sociais.

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Prospecto com programa da Escola Doméstica de Natal Fonte: A REPÚBLICA, 10 de set. de 1914.

O projeto iniciado três anos antes com a fundação da Liga vinha na esteira de

outros projetos educacionais de reformas e mudanças estruturais da educação natalense.

Uma necessidade do próprio Regime Republicano.

Nada na hora presente deve envergonhar tanto a um povo e amesquinhar uma nação como figurar nas estatísticas com a porcentagem de analfabetos que nos rebaixou ao nível do Paraguai e de outras nações atrasadas da América do Sul. Custa realmente crer que tenhamos a coragem de aparecer à face do mundo como uma República de regime representativo, baseado no sufrágio universal, quando temos oitenta e cinco por cento de analfabetos, sobre uma população de vinte e dois milhões de habitantes (A MENSAGEM E O ENSINO, 1914, p.1)

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A primeira Constituição Federal Brasileira é de 1891. Esta Constituição tinha

como princípio uma mistura do democratismo francês, do liberalismo inglês e do

federalismo americano.

Art. 1º A nação brasileira adota como forma de governo, sob o regime representativo, a República Federativa proclamada a 15 de Novembro de 1889, e constitui-se, por união perpétua e indissolúvel das suas antigas províncias, em Estados Unidos do Brazil (CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL DE 1891, 2008, p. 1).

O sistema de representatividade pressupõe a soberania que reside no povo de

determinar o modo como quer ser governado. Nomeando seus delegados o povo não

confere a estes cessão ou doação de direitos, mas apenas lhes oferece meios para

desempenhar funções em favor da causa pública (res-publica). Por isso esta delegação

deve ser renovada periodicamente e a curtos prazos. O instrumento através do qual se

opera esta mudança é o voto que deve ser universal. O artigo 70 da constituição assim o

estabeleceu.

Art. 70 São eleitores os cidadãos maiores de 21 anos, que se alistarem na forma da Lei: §1º Não podem alistar-se eleitores para as eleições federais, ou para a dos Estados: 1º Os mendigos; 2º Os analfabetos; 3º As praças de pré, excetuados os alunos das escolas militares de ensino superior; 4º Os religiosos de ordens monásticas, companhias, congregações, ou comunidades de qualquer dominação, sujeitas a voto de obediência, regra ou estatuto, que importe a renuncia da liberdade individual. § 2º São inelegíveis os cidadãos não alistáveis (CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL DE 1891, 2008, p. 1)

Desse artigo, um destaque para o inciso 2, do 1º parágrafo, que trata dos

analfabetos. No recenseamento realizado em 1897, a cidade de Natal contava com 6.053

analfabetos numa população de 10.392 habitantes. O recenseamento geral publicado no

jornal A República de 13 de março de 1899 revela que, dos 268.273 habitantes do Rio

Grande do Norte, 227.025 eram analfabetos. Esse percentual indica que uma sociedade

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letrada ainda em processo de construção, não poderia garantir a participação popular

efetiva na eleição de suas representações, tanto em nível local quanto nacional.

Uma minoria letrada definia, portanto, o futuro de uma maioria “condenada a não

saber ler e escrever” (A MENSAGEM E O ENSINO, 1914, p.1). Este dado não

condizia com uma República e este elemento era motivador de uma série de medidas na

intenção de mudar este aspecto cultural brasileiro a partir do final do século XIX.

Em 1908 a Reforma Pinto de Abreu cria a Diretoria Geral de Instrução Pública, os

Grupos Escolares e a Escola Normal de Natal. Esta Diretoria havia sido criada ainda na

primeira reforma de ensino republicana de 1892 e sido extinta em 1900. Na Reforma de

1908 ela retoma as atividades ao ser recriada. A Escola Normal era uma tentativa de

consolidação depois de três projetos frustrados de organização desta instituição nos anos

de 1873, 1883 e 1890. Esta instituição funcionou por vinte e sete anos no Bairro da

Ribeira, na Praça Augusto Severo, tendo como primeiro diretor Francisco Pinto de

Abreu entre os anos de 1908 e 1910 (AQUINO, 2002). Neste bairro, a Escola Normal

de Natal teve como diretores Nestor dos Santos Lima (1910-1924), Teoduto Soares

Raposo da Câmara (1924-1930), Antonio Gomes da Rocha Fagundes (1930-1938) e

Clementino Hermógenes da Silva Câmara (1938-1944).

O Ato Adicional de 1834 descentralizou legalmente o ensino. A regulação e o

provimento do ensino público passaram a ser responsabilidade das províncias. Se por

um lado,este projeto constituía um projeto maior de D. Pedro II, de criar uma monarquia

constitucional com uma maior autonomia, nos moldes federalistas americanos

(CARVALHO, 2007), por outro desorganizou o já precário sistema de ensino do país.

A falta de recursos impediu muitas províncias de organizarem seus sistemas de

ensino. Configurou também o ‘cria e extingue’ (ARAÚJO, 1982) que caracterizou este

período. Muitas vezes a criação ou a extinção de escolas ou classes não acontecia pela

necessidade da vila ou cidade em foco, mas por questões de interesse político

individual. Esta característica associada à falta de recursos e de preparo dos professores

é uma marca da educação neste período histórico e por muitas décadas subsequentes.

No Rio Grande do Norte o preparo dos professores em uma escola específica vai

esperar todo o século XIX. Na segunda década da República é que o Ensino Normal vai

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funcionar de forma efetiva e sem interrupções até tornar-se Magistério por força de Lei

em 197131.

Programa de Ensino para a Escola Normal de Natal

Fonte: Leis e Decretos do Governo -1909-1913

Na primeira turma, em 1910, 20 mulheres professoras foram diplomadas pela

Escola Normal de Natal ao lado de 07 professores homens. Antes destas, a formação da 31 A Lei 5.692/71 modifica a nomenclatura Normal para Magistério; ao mesmo tempo em que extingue com a nomenclatura, extingue também as representações e os sentidos que carregavam as normalistas e coloca em seu lugar as professorandas, criando novos sentidos e novas representações.

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professora acontecia de modo diverso. Algumas traziam esta formação de escolas de

Recife ou Niterói, outras tinham a instrução elementar e, seguindo os Regulamentos da

Instrução Pública, ministravam suas aulas.

A tese defendida por Aquino em 2007 é um convite à reflexão. Suas conclusões

talvez sejam resposta a pesquisadores que elucidam questões sobre estas instituições

formativas de professores. Suas considerações nos dão a dimensão do universo que se

descortinava para a mulher do século XX. Sua questão em torno dos motivos que

fizeram uma escola de formação de professores, a despeito do esforço brasileiro para

melhoria da educação, “migrar” pela cidade sem um prédio próprio a leva a uma

configuração que investe recursos públicos em uma escola voltada às funções

domésticas femininas – a Escola Doméstica – e deixa em segundo plano a estruturação

da educação intelectual das professoras norte-rio-grandenses em Natal.

A leitura deste trabalho nos levou a tecer algumas considerações sobre a formação

para mulheres em Natal no fim do século XIX ou início do século XX. A escola de

Natal era voltada àquelas que queriam realmente exercer (e ela demonstra que

exerceram!) a profissão docente. Para aquelas a quem interessava o lar e o casamento, a

escola da LERN era um destino mais provável. Em Natal, pode-se dizer que a educação

para o público e a educação para o privado tinham destinos, e instituições, diferentes.

A Escola Normal de Natal floresce sob a afluência, principalmente, de duas

instituições formativas: o Atheneu Norte-rio-grandense e a Escola Doméstica de Natal.

É possível que juntas essas três instituições organizasse a intelectualidade jovem e de

relevante representatividade não apenas de Natal, mas do Rio Grande do Norte. A

relação com a Escola Doméstica se organizava em torno de elementos específicos de

formação feminina.

A Escola Normal primava, como substrato em sua existência, pela formação de mulheres professoras do ensino primário, de elevado nível intelectual, mas conformadas aos padrões de comportamento e de atribuições familiares que lhes eram exigidas (AQUINO, 2007, p. 223).

Assumiam – Escola Doméstica e Escola Normal – o compromisso de modelar as

duas principais categorias educacionais no período. Mas as semelhanças acabavam

neste ponto. Dentre as diferenças apontadas pela pesquisadora, a mais destacada é o

destino da educação de uma e de outra, da mãe-esposa e da professora: enquanto uma se

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voltaria aos cuidados domésticos, à vida privada, a outra se destinava ao exercício do

público, mas ambas cuidavam da educação das crianças, o futuro de Natal.

Podemos inferir que o esforço de Pinto de Abreu, com a Reforma de 1908 e

Direção da Escola Normal, de Henrique Castriciano na condução da LERN e na

fundação da Escola Doméstica, buscava esta reordenação social através de uma

instituição já consolidada historicamente como propulsora de mudança de mentalidade:

a escola.

Portanto, neste momento tão singular para esta pequena capital do nordeste a

formação da mulher se encontrava imersa numa representação feminina republicana

envolta num ideário de civilidade e modernidade. Esta formação expressava-se em duas

instituições escolares – a Escola Doméstica e a Escola Normal – institucionalizando

duas profissões femininas – esposa-mãe e professora – duas representações de mulher,

ambas importantes e necessárias à consolidação deste modelo social – a de fórum

público e a de fórum privado – duas vias para um mesmo fim: educar os futuros

cidadãos da República Federativa do Brasil.

Se considerarmos que os conteúdos propostos por um sistema escolar se

relacionam com o tipo de sociedade em que se pretende que estes formandos atuem

podemos dizer que a sociedade natalense, como a brasileira, buscava para a mulher uma

formação que permitisse um cuidar desses futuros cidadãos; um cuidado extremamente

vinculado à figura materna ou, como gostaríamos de enfatizar aqui, relacionado ao

cuidado materno.

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Capítulo VI Marcas de um tempo, imagens de mulheres em Natal

Realidade escondida sob papéis. Mulher de papel, consciência de papel. Papel crepom, papel celofane, papel de seda. Uma embalagem aparentemente frágil, mas de uma força imensa faz esta mulher de papel (BUITONI, 1981, p.144).

Na perspectiva de uma sociedade que percebia o trabalho feminino acontecendo

no universo público e privado analisamos os modos de ser das mulheres na relação com

os modos de viver, conforme elas aparecem no material impresso pesquisado. O sentido

que atribuímos a estes modos de ser se relacionam com a perspectiva de Barbosa Jr.

(2002) e de Elias (2000).

Para Barbosa Jr. (2002), os modos de viver se relacionam com os modos do ser.

Esta relação estabelece um ethos, ou seja, “o modo de ser e de viver do Ser no sendo32”

(p. 21). A relação estabelecida por este autor busca estabelecer uma proposição a partir

de dois filósofos contemporâneos: Rocha (1994) e Heidegger (1999). “Para definirmos

a nossa concepção de ethos, tomamos como pressuposto a existência entre o Ser-aí

(humano) e o estar-aí (lugar), sem perdermos a singularidade do Ser” (BARBOSA Jr.,

2002, p.21).

Se considerarmos um recorte particular na obra de Elias (1993, 1995, 2000, 2001)

verificamos que ele formula sua teoria da civilização tomando como base documental a

história da transformação dos costumes e das mudanças nas ações interdependentes de

indivíduos em configurações específicas. Podemos dizer que ele busca, nas maneiras

pelas quais os indivíduos pensam e agem, os elementos estruturais para a organização e

reorganização de formações sociais. Ao estudar os costumes das sociedades européias

em oito séculos de existência, buscava compreender como ocorriam estas

transformações no interior das forças que as impulsionavam, orientando tanto a

formação das estruturas individuais como sociais. O estudo (ELIAS, 2000) realizado

numa comunidade inglesa, no final da década de 1950, demonstra de que maneira o

32 O Ser no sendo é este humano (ou o Ser-aí heideggeriano) configurado em um lugar (ou o estar-aí) no seu fazer cotidiano. Uma realidade movente e nunca totalizada.

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lugar e os modos de ser instaurados na representação coletiva organizam os modos de

fazer dos indivíduos e estruturam uma configuração social.

Nosso objetivo é buscar as singularidades de gênero na relação com o lugar, ou

ainda, cartografar as maneiras pelas quais as mulheres circulavam no espaço público-

privado da sociedade natalense e suas representações expressas nos impressos

analisados. Para tanto buscamos não apenas os modos de ser e de viver dessas mulheres

ou os seus modos de ser e de fazer na relação com a outra parte gênero humano em

Natal/RN.

É a partir dessas linhas teóricas que olhamos para as mulheres de Natal na

transição do século XIX para o XX. Acompanhamos o farfalhar das saias subindo e

descendo a Junqueira Ayres, em direção à Praça Augusto Severo ou à Matriz de Nossa

Senhora da Apresentação. A linha discursiva se orienta por indagações surgidas do

encontro com as fontes pesquisadas. Como estão representadas as mulheres natalenses

de fim de século? Como se anunciam ou são anunciadas nos documentos impressos

analisados? Elas surgem envoltas em várias representações: mães, esposas, viúvas,

professoras, filhas, historiadoras, poetisas, indigentes, costureiras, engomadeiras,

rendeiras, modistas, criadas, lavadeiras, noivas, atrizes, suicidas e cozinheiras. São

violentadas, seduzidas, beneméritas, virgens etéreas, proprietárias de bens imóveis,

loucas, presidentes de associações. Emergem como mulheres na relação com os homens

constituindo a configuração natalense entre 1889 e 1914.

E elas nos aparecem através dos impressos que circulavam como A República,

Via-láctea ou Almanak para o Rio Grande do Norte. No dia 02 de fevereiro de 1897,

depois de um recenseamento por rua, publicado durante todo o mês de janeiro, elas se

apresentam como 3.393 mulheres residindo na Cidade Alta ao lado de 2.491 homens,

constituindo maioria quantitativa do gênero feminino neste espaço populacional. No

total são 5.884 pessoas habitando aquele bairro residencial que abrigava 2.576

analfabetos ao lado de 3.308 leitores declarados (RECENSEAMENTO, 1897, p.1).

De acordo com este recenseamento, a Rua Voluntários da Pátria tinha 177

habitantes; metade destes não apresentou profissão. A metade ativa desta população

inclui 33 mulheres, das 112 recenseadas, distribuídas como criadas (15), costureiras

(14), engomadeiras (03) e rendeira (01). Ao lado delas, dos 65 homens, 31 deles surgem

como empregados públicos (12), militares (06), agricultores (03), catraieiros (03),

operários (02), barbeiros (01), carpinas (01), marinheiro (01), médico (01) e padeiro

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(01). Estes dados nos deram alguns elementos para refletir e dimensionar esta

investigação.

Além da diversidade de profissões masculinas em relação com as femininas, é

relevante notar os índices mais altos em um e outro gênero. Para os homens, o

empregado público e o militar são os mais mencionados; para as mulheres, são a

costureira e a criada. Tanto os primeiros diziam de um trabalho público, como os

segundos de um trabalho privado. Nesses dados podemos ver as mulheres nas relações

com o outro gênero exatamente onde a configuração as colocava: no ambiente

doméstico. Mesmo quando trabalhava “fora”, como criada, ou “para fora”, como

costureira, seu trabalho ainda era de fórum privado.

Em um recenseamento parcial, de seis ruas da Ribeira publicadas no jornal A

República nos dias quinze e vinte de janeiro e nove de fevereiro de 1897, podemos vê-

las pela cidade, ainda, como costureiras (346), rendeiras (98), lavadeiras (97),

engomadeiras (82), cozinheiras (29), tecedeiras (04), bordadeiras (02), modistas (02),

parteiras (02); na Cidade Alta, como costureiras (24), engomadeiras (19), cozinheiras

(08), modistas (02), professora (01), rendeira (01) e lavadeira (01).

Um dado que nos chamou a atenção foi a profissão de professora. Sabemos pelos

anúncios dos jornais, pelos resultados de exames ou pelas listas de professores públicos

que existia um contingente maior de mulheres professoras. No entanto, o recenseamento

traz uma única menção a esta profissão escrita no gênero feminino, na rua Senador José

Bonifácio, atual rua Câmara Cascudo. As outras ruas recenseadas tampouco trazem

maiores informações sobre esse quantitativo nos deixando à deriva desse conhecimento

no recorte analisado. Segundo Lima (1927), entre 1900 eram em número de três as

professoras públicas da cidade. O mesmo quadro é trazido por ele relativo a 1907.

Somente a partir da década de 1920 o quantitativo de escolas públicas e de professoras

aumentaria significativamente: em 1927 são 14 professoras ministrando aulas em

Grupos Escolares, Escolas Isolada, Rudimentar e Noturna para Adultos.

As mulheres circulavam em vários espaços públicos deixando suas imagens

impregnadas das marcas de um tempo. Em 08 de maio de 1890 o jornal A República

descreveu um Concerto realizado na Intendência Municipal de Natal. O auditório era o

mais seleto: “elegantes senhoras, o cidadão Governador e os altos funcionários de

administração, homens de Letras e homens de fortuna”. Durante uma “boa meia hora”

as damas comunicavam às outras mulheres o que haviam achado da apresentação,

enquanto os cavalheiros faziam o mesmo entre si (CONCERTO, 1898, p.1). Homens e

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mulheres no espaço público e cada um na sua categoria de conversas, nos seus

interesses de gênero.

Estávamos a poucos dias da República. A união dos Estados sob uma federação

ainda era uma novidade e muitas outras viriam. Vimos como Castriciano, sob o

pseudônimo de José Braz, malfadava o costume natalense de deixar as senhoras em

casa. Aqui, pois, temos uma exceção: as senhoras emprestavam seus modos elegantes,

na descrição do autor, ao espaço público.

A busca dessa elegância convida as moças e senhoras a olhar para fora da

cidadela. Recife, Rio de Janeiro, Paris ditavam moda e esta se espraiava pelos artigos de

jornal e pelas primeiras revistas e jornais femininos do Brasil e do mundo

Hoje que o ideal feminino consiste na beleza e elegância da toillete não podemos deixar de recomendar as nossas estimáveis assinantes e simpáticas leitoras a aquisição da Moda Elegante, excelente jornal de modas, elegância e bom tom, publicado em Paris (O REINADO DA ELEGÂNCIA, 1898, p.3).

Em outra matéria conclamava às senhoras norte-rio-grandenses a “exigir de seus

maridos, pais, uma assinatura da Moda Elegante” (MODAS FEMININAS, 1898, p.3).

Talvez, além de intencionar a divulgação da revista, a matéria julgasse aquele periódico

como portador de um padrão de elegância para as leitoras natalenses. Podemos pensar

que um universo estético, urbano, moderno, forjava-se. E nesse universo a elegância

feminina tinha seu lugar de destaque. Um universo peculiar trazido de cenário para os

romances daqui e de lá; de Natal, Rio de Janeiro ou Paris.

A imagem de Paris impunha-se como sentido de civilização e refinamento. Essa cidade, plena de processos socialmente inovadores, era por excelência vitrine da civilização e das transformações que se instalavam no Brasil (MORAIS, 1996, p. 24).

Este cenário é captado por Júlia Lopes de Almeida33 em seus romances, como A falência

(ALMEIDA, 2003) ou A Silveirinha (ALMEIDA, 1997). A Silveirinha, protagonista do

romance homônimo de Almeida, era do tipo esguia, de quadris chatos, possuía um semblante

misterioso que convidava a indagar sobre uma personalidade, que trazia, ao mesmo tempo, a

33 Júlia Lopes de Almeida nasceu no Rio de Janeiro em 1862. Publicou sua primeira crônica no Gazeta de Campinas aos 21 anos. Foi colaboradora em diversos jornais do país, incluindo O País. Sua obra inclui contos, crônicas, romances e textos teatrais. Faleceu em 1934, aos setenta e dois anos, cinqüenta e três deles dedicado à escritura (ALMEIDA, 2007).

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obstinação envolta em uma aparente fragilidade feminina. E sabia vestir-se, segundo a

personagem Xaviera.

O seu traje de seda crua com bordaduras a torçal, seguro no peito por um pequeno dragão de esmeraldas e diamantes, recendia a Paris; assim como o chapéu, de um modelo novo e ousado de que irrompia, em desesperado alvoroço, um feixe riquíssimo de penas cor de cobre novo (ALMEIDA, 1997, p.75).

Paris surge desta admiração descritiva de Xaviera, como a expressão de elegância

atribuída à senhora em destaque. Silveirinha, assim como outras personagens femininas

de Almeida e de outros romancistas, integram uma galeria de mulheres ficcionais que

refletem e expressam a representação feminina do período em destaque neste trabalho.

Os modos de ser e de fazer dessas personagens surgem como ponto de reflexão

sobre as próprias mulheres natalenses do final do século XIX representadas nos

impressos. Nesta perspectiva “a relação de representação é entendida como o

relacionamento de uma imagem presente a um objeto ausente” (MORAIS, 2002, p. 25).

A relação entre o texto ficcional e a mulher nele representada com as mulheres que se

apresentam nos jornais organiza-se em torno de uma análise histórica (e cultural) sobre

imagens femininas produzidas por “práticas articuladas (políticas, sociais e discursivas),

que constroem as suas figuras” em uma historiografia entendida, também, como “o

estudo dos processos com os quais se constrói um sentido” (CHARTIER, 1990, p. 27).

A construção de sentidos também estava presente nos romances oitocentistas do fim do

século XIX, como os de Júlia Lopes de Almeida citados.

Segundo Telles (1999, p.428), a partir da década de 1880 até 1914, as redefinições

sociais que este período carrega vão refletir nas personagens femininas dos romances. A

heroína romântica representada por Carolina de A moreninha (MACEDO, 1995) dá

lugar a personagens sensuais como Ambrosina de A condessa Vésper (AZEVEDO,

1973). Um meio termo é trazido por Júlia Almeida: a mãe de família, com traquejo

social, bela, elegante e prendada, mas cuja noção de sacrifício pelo bem-estar da família

não escapa ao reforço esposa, dona-de-casa e mãe, como Ernestina de A viúva Simões.

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Era a mulher destinada, pela sua formosura emocionadora, ao luxo, à grandeza e ao amor! Não que o seu rosto fosse de linhas puras, nem que as suas palavras denunciassem a volúpia; aquele ardor, aquele domínio, vinha da sua pele, do seu olhar e do seu sorriso. Decorreram anos depois de tudo isso; agora ele sabia-a boa e honesta; a sua vida de casada fora doce, invejável, simples, reta! Inda assim, era sempre a mesma impressão esquisita, meramente sensual, que essa mulher produzia nele! (ALMEIDA, 2003, p. 180).

Neste livro os valores sociais da escritora ganham voz e corpo através de seus

personagens. A exemplo de outros intelectuais do período, como Olavo Bilac ou

Manoel Bonfim, Júlia Lopes de Almeida também estava engajada na consolidação dos

ideais republicanos e via a desarmonia familiar resultante da pouca educação ofertada às

mulheres e ao seu limitado mundo social, restrito ao ambiente doméstico e religioso.

Neste sentido, esta obra adquiria um caráter formativo na medida em que difundia

valores caros ao sistema que utilizou, como nenhum outro, o simbolismo e o conteúdo

ideológico para se afirmar.

Os positivistas foram os mais beligerantes e se envolveram em uma batalha

simbólica na tentativa de tornar o regime político aceito e amado por toda a população.

Suas armas foram os símbolos cívicos e a escrita (CARVALHO, 2001). Como símbolos

tinham a bandeira com sua faixa comandando ordem e progresso; a alegoria feminina

mariana em contraponto à imagem masculina do monarca, a instauração dos heróis

republicanos como Tiradentes e André de Albuquerque; o poderio armado no episódio

contra o arraial de Canudos. E todos esses símbolos assumiam a forma de discursos

patrióticos nas páginas escritas dos jornais pelo Brasil. Mas também se organizavam em

torno de palestras entre amigos, admoestações de professoras ou conselhos de mães nas

páginas ficcionais dos romances e peças teatrais do período, a exemplo de A Capital

Federal (2001) de Arthur Azevedo34.

Nossas análises se encaminharam a partir de um “objeto representado, nos textos

disponíveis” evocando “imagens de coisas que indicam metáforas de vida com a força

que o próprio texto possui” (MORAIS, 1996, p. 09). Tínhamos, ao mesmo tempo, o

homem e a mulher republicanos ao lado de seus personagens masculinos e femininos do

final do século XIX.

34 Arthur Azevedo nasceu em São Luís, mas passou a maior parte da sua vida no Rio de Janeiro para onde se mudou em 1873. Jornalista, contista, teatrólogo, tinha seus trabalhos publicados em diversos jornais do país, incluindo o natalense A República. A Capital Federal, título de uma de suas peças teatrais, era o cenário preferido do escritor. Sua obra registra o cotidiano e evolução da capital do país.

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Como para referendar estes rasgos de verdade encontramos a ficcionista Júlia

Lopes de Almeida nas páginas do jornal A República como escritora e colaboradora de

periódicos no Brasil. Figurava como contista, nas seções literárias (ALMEIDA, 1908,

p.3) deste jornal.

Jornal A República (29 ago. 1908)

A escritora carioca aparecia não apenas através de sua arte ficcional, mas como

uma mulher escritora, colaboradora de reconhecimento nacional em jornais como O

Paiz, ou em revistas femininas, como A Mensageira.

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Recebemos o número 8 da ‘Mensageira’, a excelente revista literária dedicada à mulher brasileira, sob a direção de D. Presciliana Duarte de Almeida. Colaboram nesse número, além de outras a conhecida escritora Júlia Lopes de Almeida e a talentosa poetisa Áurea Pires35 (A REPÚBLICA, 1898).

Os jornais femininos constituíam o esforço de um público que se fazia leitor e

escritor desde meados do século XIX. Buitoni, no início da década de 1980, associa o

surgimento dessa literatura escrita e dirigida às mulheres à ampliação dos papéis

femininos, inicialmente na Europa e depois se espraiando pelo ocidente, e à evolução do

modo de vida burguês que implicava em novas necessidades. Aí incluída a educação

feminina.

De qualquer modo, entre a literatura e as chamadas artes domésticas, o jornalismo feminino já nasceu complementar, revestido de um caráter secundário, tendo como função o entretenimento e, no máximo, um utilitarismo prático ou didático (BUITONI, 1981, p.09).

Mas, salienta Morais (1996, p. 22), esses trabalhos eram realizados em torno de

uma coletividade feminina, “leitoras que, provavelmente se reuniam, discutiam, elegiam

suas representantes, tomavam posições”. E esta tomada de posição ao mesmo tempo em

que anunciava suas vozes ao debate público, espelhava e era espelhada por outras

mulheres. Estes nichos literários refletiam uma sociedade “em busca de letramento; se

percebe que a modernização dessa cidade passava também pela valorização da escrita”

(p.33). Tanto na cidade do Rio de Janeiro configurada por Morais, como nesta Natal que

ora apresentamos, e em todas as capitais brasileiras do fim do século XIX.

Este esforço intelectual, literário, ideológico, educativo traduzia-se em uma

diversidade de jornais e revistas femininos, alguns deles manuscritos, como A

esperança (GOMES, 1999) ou O Sonho (1908). Este último circulou na cidade de

Ceará-Mirim, a 30 km de Natal, no final do século XIX36. Fundado e organizado pela

professora Adelle Sobral de Oliveira anunciava-se como “periódico literário e

noticioso” (O SONHO, 1908, p.1). Os textos dispostos nos exemplares analisados entre

1908 e 1909 se organizavam em torno de poesias, notícias da cidade, cartas de leitoras e

respostas de suas redatoras, prosas poéticas e contos. Traduziam o esforço de uma

35 Áurea Pires nasceu em 1876 no Rio de Janeiro e também figurava como colaboradora de outros periódicos femininos 36 Estamos considerando aqui o final do século XIX como sendo até o ano de 1914, conforme explicitado no primeiro capítulo deste trabalho.

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população feminina que se impunha no mundo das letras com seus limites e

possibilidades.

Embora sejam relativas as possibilidades oferecidas pelas circunstâncias, as

táticas obedecem à lei do lugar, ou ainda à ordem imposta pelas estratégias

institucionais. Certeau (2002) define estratégia como a manipulação “das relações de

forças que se torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder”

pode ser isolado. As táticas “são “maneiras de fazer”, estilos de ação que intervêm num

campo que os regula e cria um segundo nível embricado no primeiro. Não tem por lugar

senão o do outro. “Uma ação calculada”, a tática é “a arte do fraco” que se desenvolve

no terreno que lhe é imposto. “Aproveita as ‘ocasiões’ e delas depende. O que ela ganha

não se conserva. Este não-lugar lhe permite mobilidade e também a capacidade de

assimilar e se adaptar rapidamente às mudanças ocorridas no terreno cultural. Os jornais

femininos manuscritos se inseriam no veio de um sistema que permitia sem estruturar,

que não proibia, mas não estimulava. Encontrar mecanismos táticos entre um universo

masculino já historicamente consolidado consistia em um processo complexo em que as

conquistas femininas vão ampliando seus espaços de ação e de voz. Como a primeira

revista feminina impressa de Natal.

A revista Via-láctea figura em Carvalho (2004) como o primeiro periódico

dirigido às moças natalenses. Diferenciava-se de seus antecessores manuscritos como O

Sonho e Esperança (GOMES, 1999) por ser impresso, como se faz notar ao rodapé das

capas na edição fac-similar publicada por Duarte e Macedo (2003).

Este periódico cumpria em Natal o que outros faziam em outras cidades e capitais

brasileiras: ampliava a oferta de leitura contribuindo para a constituição da leitora e da

escritora no fim do século XIX. Diz Fanette, um dos pseudônimos de Maria Carolina37

Wanderley, em artigo intitulado A primeira noite da Via-lactea, publicado

originalmente em novembro de 1914.

37 Maria Carolina Wanderley foi a primeira mulher a ocupar uma cadeira na Academia Norte-rio-grandense de Letras. Nasceu em Assu-RN em 1891 e faleceu em Natal em 1975. Concluiu a Escola Normal em 1911 e foi professora no Grupo Escolar Frei Miguelinho de 1913 até sua aposentadoria. Colaborou nos jornais A República e A cigarra. Em 1919 lançou o livro.

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O tresloucado Kaiser da Alemanha, no dizer de Dr. Ponciano Barbosa, se por um fatalíssimo acaso chegasse a sair vitoriosos na atual conflagração européia, não sentiria, estou certa, maior regozijo ao conquistar o império universal, que sentimos nós, na memorável noite que recebemos nossa revista. [...] Era ela, a nossa revista desejada – a concretização do nosso ideal, a realização do nosso sonho, que recebíamos sob o pallio aberto de onde se originara seu nome. Tratamos logo de mandar distribuí-la aos assinantes (DUARTE; MACEDO, 2003, p.47).

Os pseudônimos eram artifícios muito utilizados por homens e mulheres no século

XIX. Na relação com as mulheres, afirmam Duarte e Macêdo (2003, p. 22), se expor em

um jornal “era uma atitude decididamente audaciosa para qualquer mulher daquela

época” e o pseudônimo surgia como um modo de “proteger e preservar a si mesmas e

aos familiares da exposição pública e da crítica dos conterrâneos”. Por este motivo,

talvez, Fanette – e não Carolina – aparece para nos mostrar como nasceu a Via-Láctea.

Junto com mais nove colaboradoras, Palmyra Wanderley, Stella Gonçalves, Maria

da Penha, Joannita Gurgel, Anilda Vieira, Dulce Avelino, Stellita Melo, a partir do

número cinco, Sinhazinha Wanderley e, a partir do número sete, Cordelia Sylvia, fez

circular entre, 1914 e 1915, a Via-láctea. Os exemplares mesclavam poesias, prosas

poéticas, ensaios literários, cartas e crônicas sobre a educação da mulher, o ser

feminino, religião e reflexões sobre o cotidiano da cidade, a exemplo de Através do

Jardim, publicada no primeiro número do jornal, em outubro de 1914, a que fizemos

menção numa análise anterior38 sobre a configuração em foco.

Na citada crônica, Zanze – pseudônimo de Carolina Wanderley – nos convida a

refletir sobre o papel da imprensa no período – ainda que não seja sua intenção escritora

– ao relativizar a descrição dos passeios domingueiros por logradouros de Natal e o seu

próprio passeio pela cidade. “E a imaginação rica e sonhadora das distintas cronistas

reveste de atrativos essas tardes de retretas. Não as conhecia”.

A graça, a elegância, a beleza da terra, lá estavam brilhantemente representadas em diversas senhoritas, mas a esses astros, eclipsava a massa do pováreo desencadeado. Procurei, debalde, encontrar o encanto que as cronistas davam às retretas (DUARTE; MACEDO, 2003, p.42).

38 Ver página 112.

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Conclui a cronista do Via-láctea que a reunião de pessoas de todas as classes

sociais, com uma música que se assimilava a um “tango apalhaçado”, em redor de amas

de crianças e rapazolas mal educados deixaram-na triste, pois “naquela tarde (foi como)

se tivesse desvanecido a última ilusão a que me apegara”. Talvez acalentasse a ilusão de

um passeio público nos moldes elegantes de Paris ou do Rio de Janeiro. Talvez buscasse

uma tarde domingueira em concordância com o ideal de civilidade dos intelectuais do

Estado, no qual ela se incluía. De qualquer modo, a cronista nos remete aos gostos dos

natalenses do período – “um desses tangos, que são agora a música predileta dos

natalenses” – que não são os seus explícitos quando, ao abandonar o jardim “sem

saudades”, volta à sua vida “retraída e longe do bulício da cidade”.

Esta interação social de classes era parte do cosmopolitismo da urbanidade

civilizada. Se os pobres não podiam consumir ou ostentar vestuários elegantes, não

eram impedidos de participar da vida pública e do hábito moderno do footing39, a

exemplo do Rio de Janeiro, modelo de civilização para o Brasil.

Na segunda década do século, freqüentar a Avenida Central era estar mais up-to-date40 do que flanar pela Rua do Ouvidor, apesar de esta continuar movimentada por pessoas que falavam umas com as outras, trocavam boatos e faziam negócios (ARAÚJO, 1995, p.327).

Reflexões, indagações a parte, o Via-láctea trazia as mulheres de Natal como

escritoras, leitoras, mas também sob uma nova categoria: jornalistas. A reclamação

sobre as limitações intelectuais das mulheres não se resumiam à educação, mas também

às formas de expressar suas idéias ou sua intelectualidade adquirida com tal educação.

Os periódicos femininos tornaram-se para essas mulheres este espaço de expressão do

gênero, como vemos em Aparecimento, publicado no primeiro número da revista, em

outubro de 1914.

Em geral, na estreiteza do meio ambiente, quando não tenha de cumprir a nobre missão de esposa e mãe, existe como se fosse planta de estufa. Uma relativa cultura tem-na disposto para diversos misteres honrosos. Se o exercer com proficiência a melindrosa função de educadora é um fato, ainda assim vêmo-la circunscrita na esfera onde age e nenhum outro constata a energia intelectual que não raro é dotada, de sorte que pouco lhe valerá possuir aptidões (DUARTE; MACEDO, 2003, p.17).

39 Passeio ou caminhada 40 Expressão idiomática que significa “mais informado” ou “acrescido de dados ou informações”

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Esta constatação da redatora da revista sobre a pouca valia do conhecimento

adquirido nos remete a uma digressão reflexiva sobre a educação dessas mulheres.

Desde o início do século XIX a educação das meninas vinha se ampliando. De forma

tímida, mas sempre crescente, essa educação contava com educadoras e escritoras do

quilate de Nísia Floresta para apregoar sobre essa necessidade. Mesmo homens

públicos como o Conselheiro José Paulino apontavam essa urgência na formação da

outra parte do gênero humano. Urgência compartilhada pelas redatoras, aqui

representadas, por Ângela Marialva, pseudônimo de Palmyra Wanderley, da Via-

láctea numa perspectiva moderna da instrução prática para o exercício da mulher no

lar doméstico.

O estudo da religião engrandece a alma [...] o estudo da literatura dá-lhe a graça, sutileza, poesia [...] Educai o espírito da mulher nesta escola de princípios belos e sábios; consegui que ela conserve sempre, como guardas da sua casa a virtude e a sabedoria. E eu apresentarei a criatura perfeita, a mulher cristã, o adorno de sua casa (DUARTE; MACEDO, 2003, p.79).

A revista trazia além das crônicas, poesias como o soneto de abertura do número

três deste jornal feminino, de dezembro de 1914: o poema Natal, de autoria de Auta de

Souza41. Esta poetisa, falecida no ano de 1901, foi colaboradora diária da coluna Artes e

Letras do jornal A República.

Passa amanhã uma data lutuosa para as letras norte-rio-grandenses. Foi a sete de fevereiro que apagou-se para a Terra, afim de renascer para a imortalidade, o grande espírito de Auta de Souza, a poetisa insigne e inspirada que soube cantar em versos imorredoiros as grandes dores da alma humana e também o supremo conforto que os corações angélicos sabem encontrar na crença sublime da religião do Cristo (AUTA DE SOUZA, 1902, p.1).

Auta de Sousa tinha 25 anos quando de seu falecimento e na sua curta existência

teve seu trabalho publicado em vários periódicos, como A Mensageira, de São Paulo

(TELLES, 1999), Oásis, Revista do Rio Grande Norte e A Tribuna do Rio Grande do

41 Auta Henriqueta de Souza nasceu em Macaíba-RN em 1876. Colaborou na revista Oásis em 1894 e a partir de 1897 passou a colaborar com a revista carioca A República e com A Tribuna, Órgão do Congresso Literário. Em 1897 Auta reuniu os versos feitos desde 1893 até aquela data numa coletânea que intitulou Dhálias, mas não publicou. O único livro publicado em vida, Horto, em 1901, foi prefaciado por Olavo Bilac.

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Norte (CARDOSO, 1999). Seu prestígio nacional era evidenciado nas páginas do A

República, tanto noticiando o lugar que ela ocupava nos jornais do Brasil como

transcrevendo notícias sobre ela fora do Estado, a exemplo do o artigo sobre ela no A

Província do Pará ou o poema dela publicado no Paiz, do Rio de Janeiro.

Agora o Rio Grande do Norte também vai configurando pouco a pouco um lugar distinto, um lugar de honra no convívio das letras brasileiras. Auta de Souza é, portanto digna da galeria ilustre de Júlia Cortines, Francisca Júlia da Silva, Elvira Gama, Ibrantina Cardona, Anna Batista e Revocata de Mello (RODRIGUES, 1898, p. 3).

O ‘Paiz’ em sua edição de sábado passado publicou em sua primeira página o esplêndido soneto ‘A minha avó’, da nossa inteligente colaboradora e inspiradora poetisa Auta de Souza, que assim vai sendo consagrada pelo grande público da capital da União. (AUTA DE SOUZA, p. 3)

O soneto A minha Avó foi publicado originalmente no Almanak para o Rio

Grande do Norte para 1897. Um almanaque deveria conter o que Queirós (2008)

chamou de verdades iniciais que a humanidade necessita rememorar para que sua

existência se regularize e se perpetue. Ou como o organizador – Renaud e Cia. Empreza

Graphica – do Almanak para o Rio Grande do Norte para 1897 prefacia:

O plano que adotamos neste Almanaque e as matérias de que ele se ocupa só têm por fim servir de utilidade e agradar os nossos leitores. Da aceitação que tiver o Almanak depende o seu aperfeiçoamento, havendo da nossa parte a melhor vontade de colocá-lo a par de outras publicações do gênero, tendo sempre em mira formar o Almanak uma fonte de informações (ALMANAK, 1896, p. 07).

Era uma publicação anual, com uma diversidade de textos, como receitas,

crônicas e poesias. Neste almanaque encontramos o poema de Auta de Souza, A minha

avó

Minh’alma vai cantar, alma sagrada! Raio de sol dos meus primeiros dias... Gota de Luz nas regiões sombrias De minha vida triste e amargurada. Minh’alma vai cantar, velhinha amada! Rio onde correm minhas alegrias Anjo bem dito que me refugias Nas tristes asas, contra a sina irada! (SOUZA, 1896, p. 461)

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A maior parte de suas poesias publicadas trazia a indicação de que eram

produzidas para A República com exclusividade. E havia indícios de que fossem

transcritas em jornais como o Jornal do Commercio e O Paiz, ambos da Capital

Federal. Sua relação com os irmãos Eloy de Souza e Henrique Castriciano é evidenciada

nos oferecimentos que antecedem algumas dessas poesias, como Cantando.

Tão mimosa estrela, No céu ontem vi. Que minh’alma, ao vê-la, Pensou logo em ti. Pensou em ti, santo! Vendo-a assim a brilhar... Parecia o encanto Do teu doce olhar (SOUZA, 1897, p.2).

Era comum vê-la, através dos seus poemas, presenteando mulheres em linhas

afetuosas com suas criações artísticas, a exemplo de Antônia Araújo (1896), Carlota

Valença (1897) e Inah (1898). Sem o saber ou sem ter esta intenção colocava no mapa

histórico não apenas a si, mas essas outras coadjuvantes da história que com ela

compartilharam tempos e espaços. Ao mesmo tempo em que este indício sugere um

grupo bem significativo de afetos, demonstra também um conjunto de poetas e poetisas

com os quais Auta de Sousa se relacionava. Intitulado Cantai, um poema é ofertado ao

“mavioso rouxinol”, “gentil e inspirada poetisa” a pernambucana Edwiges de Sá Pereira

O vós que guardas no seio Com tanto amor e carinho Com o mesmo doce receio De um, a ave que guarda o ninho As ilusões mais douradas Que uma alma de moça encerra Cantai as crenças nevadas que divinizam a terra (SOUZA, 1897).

Em agradecimento, a poetisa Edwiges de Sá Pereira publicou um poema intitulado

Retribuição (1897) que foi publicado no mesmo exemplar desse diário. Esta poetisa

nasceu em Pernambuco, em 1884, e foi durante sua vida ativa colaboradora em jornais e

revistas sempre defendendo “a elevação intelectual da mulher” (SCHUMAHER, 2000,

p.189). A partir de 1898 passou a compor a coluna Sciencias e Letras do A República.

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MAIS UMA POETISA DO NORTE Esta folha que se ufana de contar entre os seus colaboradores a inspirada poetisa Auta de Sousa, franqueia com prazer as suas colunas a colaboração efetiva de Edwiges de Sá Pereira, cujo estro mavioso revela-se como verão aos leitores (MAIS UMA POETISA DO NORTE, 1898, p.3).

Não foi possível saber, pelo acesso lacunar aos exemplares dos jornais, quando

finalizou esta colaboração. Mas encontramos poesias suas em jornais, como Esther em

1901 e Chorando em 1902.

Outras mulheres colaboravam numa aparição meteórica deixando um rastro tênue

apenas a nos indicar a presença de mulheres escritoras naquele instante de tempo. Maria

Amália (1898), Elva Serrão (1911), Maria Mendes, Leonete Oliveira, Carlinda

Fagundes (1911), Lucília Reis (1914) figuram como algumas dessas aparições.

As atividades dessas mulheres fornecem indícios de quais foram seus papéis no

período. Convidam-nos a uma reflexão mais profunda ao ler suas ações, como seus

textos na busca dessas representações. A beneficência é parte da vida de muitas delas

seja em ações isoladas como a de Guiomar de Vasconcellos (A REPÚBLICA, 1911)

arrecadando cupons da Empreza Melhoramentos de Natal, para subsidiar o Hospital da

Caridade, ao lado de meninas como Isaura, Marieta (A REPÚBLICA, 1911) ou Maria

Orione (A REPÚBLICA, 1911); e a de Júlia, quem sabe, estabelecendo o viés da

concorrência ao buscar os cupons da Ferro Carril.

Por vezes esta mulher beneficente aparecia em atividades coletivas como a

Associação das Damas de Caridade Chá das Damas, em 17 de agosto de 1908.

Realizou-se no sábado último a assembléia geral anual da Associação “Damas de Caridade”, na Capela de São José, da fábrica de tecidos. Depois de procedido um peditório secreto, entre os presentes, para os pobres da associação, o qual produziu a quantia de 240 $, foi encerrada a sessão pelo vigário Moysés Ferreira que dirigiu às associadas uma brilhante alocução que foi bastante aplaudida (DAMAS DA CARIDADE, 1908, p.2).

Sob o cognome de anônimas “Damas da Caridade” essas senhoras ilustres

marcam sua passagem por esse continum histórico. A notícia ocupava duas colunas do

jornal e descrevia toda a reunião: do relatório à palestra e da coleta de dinheiro aos

nomes dos presentes. Mas entre esses nomes não figurava o de nenhuma dama. Estas

ficaram entre os nomes que “escaparam” ao jornalista que, além dos citados –

governador Alberto Maranhão, senador Ferreira Chaves, H. Castriciano, Manoel

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Dantas, Segundo Wanderley, Ezequiel Wanderley, entre outros –, somavam vinte e

cinco nomes entre desembargadores, majores, coronéis, políticos e intelectuais, homens

norte-rio-grandenses.

E outros, cujos nomes nos escaparam, além de senhoras e senhoritas de nossa melhor sociedade que deram muita distinção à Assembléia. A República enviando às Damas de Caridade respeitosas saudações agradece o convite com que foi distinguida (DAMAS DA CARIDADE, 1908, p.2).

Talvez essas senhoras e senhoritas fossem filhas, irmãs e esposas dos nomes

citados pelo jornalista. Observamos na análise do texto como a presença feminina

permeia toda escrita, do título – Damas da Caridade – à conclusão do artigo, mas

apenas se anunciando como uma sombra, uma sutil presença em algo que,

aparentemente, é seu espaço de excelência. O relatório é apresentado pelo padre Moysés

Ferreira e a palestra pelo professor Raphael Garcia, em nome da Sociedade de S.

Vicente de Paula, beneficiária do esforço daquelas damas. Esta forma de representação

da mulher no espaço público estava relacionada com o ideal feminino de filha e esposa

posto em Natal e em todo o Brasil.

Podemos destacar o discurso sobre os modos de apresentação da mulher no

espaço público a partir de um artigo do Revista Illustrada. Em um texto de 1886 sobre a

ampliação dos espaços públicos profissionais femininos a revista retrata a ideologia da

época. Sob o título O eterno feminino e ao lado de palavras e expressões como “sexo

gentil”, “melhor metade do gênero humano” passa a representação do que não é

apropriado à mulher brasileira “que a esfera de ação do sexo gentil deve ser ampliada,

mas também nos parece que o círculo não pode ter um grande raio” (BUITONI, 1981,

p.16).

Encontramos notícias da associação nos anos subsequentes nos exemplares a que

tivemos acesso do jornal pesquisado. Em 18 de agosto de 1911 A República noticia o

quinto aniversário desta associação sob “os auspícios da Exma. Sra. Ignez Barreto, sua

digníssima presidente”. Em 22 de agosto o jornal noticiava a reunião com a celebração

do bispo diocesano D. Joaquim de Almeida. Em 10 de novembro daquele mesmo ano “a

ilustre senhora” aparece novamente neste jornal encimando a notícia de sua morte. Mas

as benesses dessa associação continuam e em 1914 elas estão lá promovendo uma festa

beneficente apelidada de Chá Five O’clock. O evento aconteceu no terrasse do monte

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Petrópolis e as mesas foram servidas por “gentis senhoritas” (SENHORAS NO FIVE

O’CLOCK, 1914, p.1).

Esta associação se organizava em torno de atividades beneficentes. Mas essas

benesses advindas do gênero feminino não se limitavam às associações. Atividades

ligadas diretamente à Igreja Matriz Nossa Senhora da Apresentação também contavam

com o trabalho voluntário das mulheres natalenses. E este era outro modo do fazer

feminino que se organizava em torno de um modo de ser mulher também no final do

século XIX em Natal, sejam senhoras de associações como Damas de Caridade, sejam

meninas do Colégio Imaculada Conceição.

O espírito do cuidado feminino envolve as atividades das meninas num artigo que

descreve uma quermesse organizada no Colégio Imaculada Conceição, na qual as

meninas da escola figuraram numa missa com cânticos e poesias sabendo “proporcionar

aos seus convidados alguns momentos deliciosamente duradouros”.

Anteontem as moças natalenses exerceram o sortilégio de sua graça para vestir os altares das capelinhas humildes e qualquer que seja a religião que professemos só temos louvores para esse belo movimento de caridade. Se, entretanto, alguma coisa pudéssemos pedir às promotoras inspiradas da quermesse de domingo, seria a repetição de uma festa igual em favor das crianças pobres que não tem calçado nem roupa para freqüentarem as nossas escolas primárias (A KERMESSE DE DOMINGO, 1908, p. 2).

Algumas dessas atividades envolvendo caridade e religião evidenciam ainda como

se relacionavam com o gênero oposto, como por exemplo a organização da festa da

padroeira para o ano de 1915 anunciado no A República,

Juízas Protetoras Exmas. esposas do desembargador Joaquim Ferreira Chaves, dos coronéis João Tinôco, Aureliano Medeiros e Feliciano Lyra; Juízas por Sorte Exmas. esposas dos coronéis Avelino Freire, Francisco Casendo, Jorge Barreto, Felinto Manso, Francisco de Paula Moreira, João Elísio Freire e Antônio Gurgel (SOLICITADAS, p.2).

E a lista continua indicando os Escrivães por Sorte – ainda que todas sejam mulheres ou

pelo menos esposas destes homens, o jornal não publica a palavra no gênero feminino, escrivãs

–, os Noiteiros do bairro do Alecrim, dos militares e dos encarregados do comércio. Temos uma

referência nominal feminina na noite designada aos solteiros – Carmem Wanderley, Stella

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Wanderley e Esther Pinto – e nos Escrivães por Devoção – Celina Fagundes, Rachel Pessoa de

Mello e Maria Orione.

As mulheres ocupam a função de organizadoras, mas os homens aparecem nominalmente.

Este aspecto cultural diz para nós das relações entre homens e mulheres nesse período. Com a

ampliação do feminino em suas bases conceituais e estruturais a relação público e privado fica

mais estreita, ainda que continuem esposas, filhas, irmãs são esposas, filhas, irmãs exercendo

seus papéis no espaço público.

As mulheres se movimentavam na sociedade natalense em outros papéis feminnos; alguns

bem diferentes das dimensões adotadas pela elite da cidade. Em outros espaços de Natal – o

teatro, o mercado, o baldo, o Passo da Pátria – podemos vê-las representadas a partir de outros

modos de ser e de fazer.

O Ginásio Dramático tem ensaiado para sua 2ª recita que terá lugar no sábado próximo no Teatro Carlos Gomes, a peça em 3 atos intitulada “O Sacrifício”, produção do escritor mineiro dr. Carlos Goés. Tomará parte nesse espetáculo a aplaudida atriz Honória Reis (VIDA SOCIAL, 1914a).

Honória Reis, nome artístico de Honória Santos, tinha 60 anos quando dessa

apresentação. Ela é descrita por Cascudo (1999) como uma “espécie matuta de Capitu, com

olhos de ressaca”. Era da Companhia de Teatro de Joaquim Fagundes atuando em sua

companhia como única figura feminina entre 1874 e 1877. Continuou atuando em diversas

companhias teatrais de Natal e foi vendo as palhoças se transformarem em pedra e cal, como o

Teatro Santa Cruz na última década do século XIX. Junto com a Sociedade Dramática, a

Companhia de Teatro de Segundo Wanderley encenou várias peças no Teatro Recreio Familiar.

O teatro aparecia ao lado do cinema e do jornal como aspecto educativo na perspectiva

da cidade educativa aristotélica retomada pela modernidade no que Cambi (1999, p.489)

denominou de “pedagogização da sociedade”. A imprensa divulgava a programação na forma

de anúncios ou editoriais ou mesmo notícias informativas de um observador crítico. Segundo

Othon (2006) a história do Rio Grande do Norte sob os primeiros anos do regime republicano

tornou-se a história do aperfeiçoamento cultural e educativo da população natalense. Em

particular pela ação política e intelectual dos governantes, da sociedade organizada em partidos,

órgãos de imprensa, ligas, associações, mas também de sociedades teatrais e, de modo geral,

pelo empenho de homens e mulheres, entre os quais se colocam atores, atrizes e autores

dramatúrgicos, como Luíz Carlos Lins Wanderley, Stella Wanderley, Isabel Gondim e Henrique

Castriciano.

A partir desse trabalho pedagógico-cultural da imprensa mostrando as atrizes ao lado da

sociedade ou companhia teatral a que estavam ligadas, tanto pudemos saber os modos de fazer

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dessas mulheres no final do século XIX como tomar conhecimento das companhias teatrais,

circenses e musicais que por aqui passavam ou existiam, assim como dos dramaturgos e textos

conhecidos por esse público.

A imprensa servia como um canal de divulgação, mas também de instigação a um modelo

cultural de civilização que pressupunha nas artes um propulsor para ampliação da inteligência e

do progresso. Destacamos Lucília Silva, da Companhia de Operetas apresentando A Casa do

Diabo, no Teatro Carlos Gomes (VIDA SOCIAL, 03 de abr. de 1914b).

Outros gêneros também contavam com a participação de mulheres por vezes

protagonizando todo o espetáculo como Antoinette Villard, no Polytheama, apresentando

cançonetas como Ave Maria, de Gounot (POLYTHEAMA, 23 de dez. de 1911) ou ao lado de

um coletivo voltado ao entretenimento como Eliza Azevedo da Companhia Eqüestre, cuja

despedida de temporada na cidade lhe valeu cortejo e um embarque festejado.

Em carro triunfal, conduzido por seus partidários e precedido de um grupo de senhoritas, percorreu a noite, acompanhada por todos os membros do partido encarnado, por grande número de curiosos, as ruas da Ribeira, a distinta artista eqüestre – Eliza Azevedo (ELIZA AZEVEDO, 02 de mai. de 1897).

Sobre Eliza Azevedo, não foi possível saber mais do que nos deu a conhecer o

jornal pesquisado. Estreou seu espetáculo junto com outros integrantes da companhia no

Circo Estrella (CIRCO, 18 de abr. de 1897) e encerrou sua temporada sob o entusiasmo

de torcidas organizadas em partidos: azul e encarnado. Seu sucesso, a despeito dos

outros artistas, pode ser mensurado pela descrição que faz o jornal da festa de despedida

feita em sua homenagem e das homenagens feitas pelo público por ocasião do seu

embarque no navio Yatch, de onde seguiu para a cidade de Macau (ELIZA AZEVEDO,

02 de mai. 1897).

Eliza seguiu para Macau e voltamos nossos olhares por sobre os jornais buscando

encontrar outras mulheres – e seus modos de ser – em outros espaços da cidade. Ao

fazermos isto nos deparamos com Maria Joaquina, sua mãe indigente e Lúcia Rosa.

Encontramo-las no Forte dos Reis Magos, na casa do Alferes Eurico Guilherme e pelas

ruas de Natal alienadas, a compor o mosaico feminino, numa nuança mais escura que o

usual cor-de-rosa atribuído ao belo sexo.

Lúcia Rosa se apresentou a esta pesquisadora como uma demente que vagava

pelas ruas de Natal no ano de 1899 “a quem o infortúnio conjugal sepultara em vida nas

trevas da morte moral” (E. de S., 1899, p.2). Em fevereiro daquele ano foi encontrada

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morta no sitio Mangabeira, em Macaíba; os urubus anunciaram sua morte e indicaram o

caminho às autoridades policiais (ENCONTRADA MORTA, 1899). Tentamos saber a

causa mortis escrutinando os obituários dos dias posteriores, mas as autoridades

policiais e sanitárias não conseguiram identificar. Um jornalista do A República, sob

pseudônimo E. de S., dedicou sua coluna Impressões à história de Lúcia Rosa, na

forma de poesia, sendo sua voz e seu lamento.

Amor, Santo de Minh’alma Dize por que me deixastes! Quando levaste-me a calma Por que não me apunhalastes? Que ‘do filhinho adorado Que me arrancaste dos braços Pois não temeste, malvado Quebrar tão laços sagrados (E. DE S., 1899, p.2).

Abandonada pelo marido e tendo o filho arrancado de sua convivência vagava

pela cidade e “aos vinte e nove anos tinha os olhos amortecidos como se a noite escura

as buscasse para Deus” (E. de S., 1899, p.2). Despojada de seus misteres de esposa-mãe

e de sua casa no sertão do Estado, enlouquecera, e só a morte lhe tinha dado o benefício

da cura. Benefício buscado por outras mulheres para outros males como a vergonha

social, a exemplo de Maria Joaquina.

Ela trabalhava como criada em uma casa em Natal. Dizia-se órfã de pai e de mãe.

Mas não o era. Sua mãe era uma mulher que vivia a mendigar esmolas pelas ruas onde

ela, em pequena, também vivia. Fugiu da mãe e achou trabalho na casa do alferes

Eurico Guilherme. Quando a mãe a descobriu foi até a casa em que ela trabalhava em

busca de auxílio, mas a filha a expulsou. Em seguida encharcou o próprio corpo com

querosene e ateou fogo, morrendo em consequência das graves queimaduras provocadas

pelo intento. Tinha vinte e um anos. Pela análise de E. de S., ela se envergonhava da

mãe e percebeu que com sua descoberta não teria mais paz. Parece-nos que esta paz foi

buscada pela interrupção de qualquer forma de contato materno.

Parecendo sair de uma poesia de Coelho Neto, Maria Angélica, moradora do Paço

da Pátria teve sua criança roubada do mercado público,

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Anteontem, as 7 horas da noite, a indigente de nome Maria Angélica, deixando por momentos no mercado público um filho menor por nome Theophilo, e procurando por todo aquele estabelecimento, não encontrando-o, pelo que supôs ter sido o pequeno vitima de um astucioso roubo (CRIANÇA ROUBADA, 1899).

O jornal destaca o desespero materno ante a perda criança. Na edição seguinte o

jornal anunciava que a criança havia sido encontrada e devolvida à mãe. Esta

representação de mãe associada ao desespero por ajuda policial surgia nas páginas dos

jornais nas mais diversas formas. A história da senhora que teve suas duas filhas

violentadas talvez nos diga algo mais.

Um indivíduo apanhou, fora de casa duas meninas, uma de oito e outra de nove anos, e processou cevar com ambas os seus apetites brutais de sensualidade. Conseguindo uma das vítimas escapar-se, saciou-se na outra, não conseguindo deflorá-la por impossibilidade absoluta, mas deixando-a num estado lastimoso. A mãe das vítimas, uma pobre viúva procurou a justiça de Goianinha e não encontrou uma só autoridade que quisesse sindicar e punir um crime tão odioso. Desesperada, a infeliz mãe veio com a filha para esta capital, onde consta que o delegado de polícia mandou fazer exame médico e tomar outras providências (MONSTRO, 1891, p.1).

Não foi possível perceber que providencias foram tomadas ou mesmo quais queriam esta

mãe. Mas a expressão da justiça ou pelo menos da busca desse Estado de Direito estava

representada na busca pública de mulheres e homens, mães e pais pelas páginas dos jornais

analisados.

Um outro perfil feminino que se destaca, desta vez, pela voz paterna é o caso de uma

garota deflorada. O pai chama a atenção das autoridades de Natal para o crime contra uma

menor de idade na intenção de que algo possa ser feito na capital. A história se passou na

povoação da Telha, em Macaíba.

Têm sido baldados todos os esforços que tenho empregado no sentido de salvar a honra de minha filha e minha dignidade de pai de família. Tudo tem baqueado diante da proteção imoral e escandalosa dispensada a Domingos Garcia pelo Comandante da Policia e por um alto funcionário da Fazenda, que por motivos inconfessáveis estão assim calcando aos pés as leis da moral, a justiça e o direito que me assistem (A REPÚBLICA, 1891).

Realizado o intento, ao pai ou a mãe restava buscar a justiça pública, por

considerarem que, ao tirar a moça de casa, ainda que de forma consentida, o mínimo era

a reparação social pelo casamento. E esta parece ser a providência que se pretende que o

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individuo Domingos Garcia tome para si com relação à moça da Telha, na cidade de

Macaíba.

O defloramento constava como crime no Código Penal dos Estados Unidos do

Brazil de 1890, em seu Art. 267, do Capítulo 1 Da Violência Carnal (BRASIL, 2008),

desde que a cópula fosse com uma mulher virgem, mediante consentimento obtido por

sedução, engano ou fraude. Caso não houvesse cópula, o delito seria considerado

atentado ao pudor, de acordo com o Art. 282, e se fosse sem o consentimento – Art. 269

– seria enquadrado como estupro. O crime de rapto, também neste Título VII era

previsto como crime contra a segurança da honra e honestidade das famílias e do ultraje

público ao pudor. Previsto no Art. 270 o crime de rapto consistiria em retirar do lar

doméstico a mulher honesta, através da violência ou sedução.

A regulamentação do convívio social e disciplina do comportamento dos cidadãos

buscavam neste amparo legal a legitimação desta nova mentalidade. O Decreto n. 201,

de 1913 criou os Gabinetes Médico-legal e de Assistência Policial e o de Identificação

talvez para facilitar as resoluções dos crimes que atentavam contra a honra das famílias

brasileiras, como são os casos acima descritos.

Ambas as meninas e suas famílias parecem ser de comunidades pobres e

dominadas por um policiamento que ainda não parecia se dar conta de que o Código

Penal existia e precisava ser validado. A sua validação viria com o tempo, como vimos,

com a criação de gabinetes e departamentos específicos.

Ademais, as mulheres pobres sempre precisavam provar que seu comportamento

era de uma mulher honesta – até para se enquadrarem na Lei que poderia lhes assistir. A

vítima era primeiramente julgada socialmente, antes de se admitir o abuso do indiciado.

A honestidade masculina estava ligada ao trabalho, mas a da mulher se ligava

essencialmente ao comportamento moral associado à sua sexualidade (CAULFIELD,

2000).

Na tentativa de se fazer Estado de Direito – dentro da construção do ideário de

Estado-nação associado à modernidade (HOBSBAWN, 2006) e à consolidação da

República (CARVALHO, 2001) os cidadãos entravam na mira das autoridades legais.

De certo modo, estes eram aspectos culturais que passaram a ser incorporados por estes

mesmo cidadãos, a ponto de pedir providências públicas42 e em público, colocando as

42 É bom lembrar que antes da instauração desse Estado de Direito os crimes de honra eram “lavados com sangue” e quando (ou se) fossem a juízo a honra era usada como atenuante e o indiciado absolvido mesmo de crime de homicídio. “Esta noção podia ser subvertida pela ideia de que o criminoso estava

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autoridades legais na mira desses mesmos indivíduos, numa relação de interdependência

social em que um se fazia no outro enquanto construíam uma nova configuração social.

Moreno (2008) analisa os inquéritos policiais de São Luis/MA entre os anos de

1901 e 1914 na busca por crimes de defloramento e rapto de mulheres, na virada do

século XIX. A maioria dos casos analisados indicia que os crimes eram consensuais, ou

seja, as moças consentiam na sedução, na relação sexual e nos raptos mediante a

promessa de casamento do ofensor. Os crimes de defloramento ocorriam em suas

moradias como também era de suas casas que as moças eram subtraídas. Isto indica que

elas eram cuidadas de perto, mas não tão de perto que não se permitissem táticas para

burlar a vigilância e provocar os crimes relacionados.

As mulheres nem sempre aparecem na condição de vítimas. Há situações bem

inusitadas. Casos de polícia, por vezes até divertidos, também povoavam o cotidiano da

cidade.

Josepha Mucuhy, solteira, ainda moça e bem robusta, vivendo em companhia de seu amante Antônio Mucuhy soube que Maria Francisca de Andrade, mulata moça e decidida e que ali vive em disponibilidade, havia pedido a seu amante um nikel de tostão e, sem proceder ao devido interrogatório, Josepha, fula de ciúmes, investiu sobre Francisca dando-lhes três dentadas na face e na mão. Francisca que também possui ótima dentadura dera outras tantas em sua contendora (NO PASSO DA PÁTRIA, 1908).

As brigas entre amantes, ou entre mulheres por causa de amantes, faziam

concorrência com as brigas de marido e mulher nas páginas dos jornais. A história de

Sebastião Gomes da Silva e Josepha Olympia da Silva é um exemplo disso. Na coluna

destinada aos relatórios policiais, Chefatura de Polícia, do dia 14 de novembro de 1914

Josepha faz uma denúncia contra o marido alegando que este lhe cortou os cabelos com

uma faca, depois de aplicar-lhe “penas mais leves”, aplicou-lhe uma formidável ‘sóva’”.

Constatada a veracidade da denúncia a partir de exame corporal, o marido foi preso e

instaurado o inquérito. Dias depois, em 18 de novembro daquele mesmo ano, o marido,

na seção Solicitadas, escreve uma carta A quem me conhece. Na carta explica que a

denúncia é infundada e que a mulher – sua quarta esposa – é que é culpada: além de

mentir sobre os maltratos – lembrando que exames corporais foram feitos para a

privado da razão”, pois a traição ou a mancha social eram motivos para privar o indivíduo de sentidos e inteligência levando-o a lavar com sangue a honra da família (BORELLI, 2008, p.07).

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identificação da verdade – ainda havia lhe roubado o dinheiro que tinha em casa

enquanto este estava preso. Como se não bastasse,

quando segui há meses, para Pernambuco, em negócio do meu particular interesse, ficaram os meus filhos em poder dessa desventurada que, sem piedade, os maltratava horrivelmente. Quando cheguei julgando encontrar todos com risos os lábios, vi-os chorosos a me contar todo o horrível desprezo que ela lhes dava. Tudo isso passou e eu sempre calmo e sereno (SILVA, 1914a, p.2).

Em 16 de dezembro deste mesmo ano Sebastião da Silva, mais conhecido como

Cangalha, anuncia a todos, através da coluna Solicitadas, que depois da intervenção do

delegado de polícia e da garantia da mulher de tratar bem a ele e seus filhos, ele voltara

a viver com Josepha Olympia (SILVA, 1914b).

Casos de violência masculina contra mulheres eram muito comuns nesta parte do

jornal. Outro caso nos chama a atenção pelo motivo que leva o marido a bater na

esposa. Manoel Garcia Dantas seqüestra uma menor, Maria Francisca da Conceição, de

15 anos, e com ela tem relações sexuais “despindo-a das suas flores de laranjeiras”. A

esposa saiu em defesa da menina chamando a atenção do marido. Resultado, nas

palavras do jornalista: “uma tremenda sova do braço possante do fauno”.

Apanhou em defesa de outra mulher. Há que se pensar nas táticas de

sobrevivência e de exercícios solidários em cada um dos casos exemplificados. Sobre o

primeiro caso podemos pensar se o sentimento que provocou a briga, as mordidas de

Josepha Mucuhy ao ver seu amante entregar dinheiro a outra foi ciúmes do amante ou

ver dividido o curto patrimônio que talvez lhe garantisse sustento. E qual o motivo que

levou Josepha Olympia a voltar para o marido, sob a intervenção de uma autoridade?

Saudades do companheiro de jornada ou saudades de ser a dona de sua casa, pois que o

marido foi buscá-la em uma casa de uma tia no sítio de Macahyba? Que motivos

levaram a mulher do Manuel Garcia a sair em defesa da menor deflorada pelo seu

marido? Só podemos nos perguntar e refletir sobre o que os modos de fazer dessas

mulheres, publicando suas guerras privadas no jornal, reorganizam a formação social

em que viviam de forma homeopática e não consciente.

Essas mulheres – dos bairros das Rocas, do Passo da Pátria, do Alecrim – diferiam

em seus modos de ser e de fazer das senhoras e senhoritas que se apresentavam em

outros espaços textuais dos jornais. Nos óbitos e felicitações por nascimento e

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aniversário publicados pelo jornal A República, é possível perceber a que se destinavam

e como eram caracterizadas as mulheres na sociedade natalense.

Ontem a Exma. e virtuosa esposa de nosso ilustre chefe Dr. Pedro Velho, deu à luz como felicidade uma interessante menina. Felicitamos o extremoso pai um futuro cor-de-rosa à inocente nascida que veio aumentar os encantos do lar (SALVE! 1890).

O futuro “cor-de-rosa” reservado à menina recém-nascida era semelhante ao tom

utilizado em uma mensagem de felicitações de aniversário de quinze anos considerada

pela autora do texto “uma idade poética” para a menina que acabava de “colher mais

uma primavera no jardim florido e risonho da vida” (CECÍLIA, 1894). O desenho de

uma moldura ornada de beija-flores completava o anúncio feito por Cecília a Ceci.

Os aniversários das meninas também eram celebrados com poesias como a

ofertada por Carolina Domingues a Áurea Fernandes Barros, no dia do seu quarto

aniversário.

Tu és Aurinha Engraçada, mimosa flor bafejada Pelas brisas matinais Cheia de graça e ternura És o encanto, a ventura Dos teus carinhosos pais (DOMINGUES, 1895, p.3).

Um “anjo de candura” e a mais “bela estrela do firmamento”, a menina Áurea

aparece a nós pelas mãos escritoras de mais duas mulheres: Maria de Nazareth e

Lourença Miranda. Curiosamente, não encontramos nos jornais pesquisados qualquer

poesia ou verso, ou mesmo um anúncio mais floreado, que fizesse referencia ao

natalício de um homem. A exceção fica para Auta de Souza, nos poemas que dedica aos

irmãos, e não eram poesias de natalícios

Mas era comum encontrarmos estas relações mais afetivas nas poesias dedicadas,

tanto de mulheres como de homens, às mulheres, como a que Celestino Wanderley

dedica às filhas.

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São três cândidas crianças, Três formosas ideais, Três infantes esperanças, Três mimos angelicais. Essas prendas divinas, Essas graças peregrinas, Celestiais maravilhas. São de minh’alma as venturas As crenças gentis e puras. Adoro-as ... são minhas filhas! (WANDERLEY, 1894, p.3).

Os óbitos dessas mulheres também eram carregados desta áurea gentil e angelical.

Traziam constantemente o lamento pela perda da virtuosa mãe de família, da pranteada

esposa ou da nobilíssima professora ao lado de discursos que evidenciavam o papel

desempenhado pela mulher na cidade, como por exemplo a notícia da morte de Maria

Amélia, esposa do representante do Rio Grande do Norte no Congresso Federal,

Augusto Severo.

A pranteada esposa do nosso infortunado amigo finou-se na idade de 35 anos e após o fato auspicioso do nascimento de mais um fruto do seu amor, com que vinha aumentar os tesouros inefáveis da doce e límpida felicidade conjugal. E aquela adorável mãe e esposa, meiga e exemplaríssima, que possuía os predicamentos das almas femininas, finou-se na missão sublime do seu sexo. É a exemplificação mais tocante da virtude – a que se exercita no ambiente puro e plácido do lar, por entre os risos e beijos dos filhinhos e as expansões felizes do esposo, ela soube dar, até os últimos momentos de sua preciosa vida. Deixa cinco crianças, a mais velha de 7 anos (D. MARIA AMÉLIA, 25/10/1896).

O fato de ter falecido no parto – missão sublime do seu sexo – ampliava ainda

mais esta caracterização divina ou este aspecto mitificado que colocou a mulher como

santa mãezinha desde a colônia.

A maternidade se fazia no nicho onde as diferentes vozes dialogavam sobre a obra da vida: as condições de acolhimento ou recusa do recém-nascido, as relações do corpo com o cosmo e o tempo, o imaginário sobre o nascimento ou a concepção. O processo de adestramento pelo qual passaram as mulheres coloniais foi acionado por meio de dois musculosos instrumentos de ação. O primeiro, um discurso sobre padrões ideais de comportamento, importado da Metrópole, teve nos moralistas, pregadores e confessores os seus mais eloqüentes porta-vozes. [...] O outro instrumento utilizado para a domesticação da mulher foi o discurso normativo médico, ou ‘phísico’, sobre o funcionamento do corpo feminino. Esse discurso dava caução ao religioso na medida em que asseverava cientificamente que a função natural da mulher era a procriação (DEL PRIORE, 1993, p.25-27).

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Tal discurso foi pulverizado em toda atividade religiosa da colônia desde os

sermões dominicais até os contos populares passando pelas palavras dos padres. Todo

esse ideário objetivava “o longo processo de domesticação da mulher no sentido de

torná-la responsável pela casa, a família, o casamento e a procriação, na figura da

“santa-mãezinha”.

O século XIX foi buscar na naturalização da atividade materna o respaldo

científico para esta mulher assumir seu lugar no lar e na sociedade a partir da idéia de

cuidado materno. Um discurso também pulverizado, mas desta vez contando com a

imprensa, a escola e a literatura.

Respaldados em teorias evolucionistas os intelectuais do século XIX colocavam a

mulher como a parte frágil do gênero humano; era preferível que a ela fossem

destinadas atividades que não a desgastassem física ou emocionalmente. A política seria

uma dessas atividades desgastantes. Portanto, sua instrução política não faria sentido

pela própria premissa social dada ao gênero feminino, ou seja, a de que ela estava

destinada aos assuntos domésticos e a determinados papéis sociais: mãe-esposa e dona-

de-casa.

Do nascimento à morte, as mulheres eram citadas no jornal A Republica sempre

sob a égide da virtude, da beleza e da fragilidade. Os contos e poesias registrados no

período alimentam o ideal de mulher virtuosa e abnegada no exercício de sua missão de

mulher junto aos filhos (ou alunos) e ao marido. As narrativas captam o clima social

brasileiro a partir da capital da Republica. Mas pequenas cidades serviam de cenário,

como no conto O Galã, de Arthur Azevedo (1995). O conto destaca o cotidiano das

pequenas cidades brasileiras e deixa perceber as relações entre os gêneros no fim do

século XIX.

A história se passa numa cidade pequena cuja vida social pacata se transforma

com a chegada de uma companhia de teatro. A personagem feminina, Sinhazinha Brites,

apaixona-se platonicamente pelo galã da companhia ao vê-lo atuar. O marido percebe e

arma um ardil: convida o ator para jantar em sua casa e dessa forma faz a esposa encarar

a razão de seu enlevo.

Quando às seis horas da tarde, chegou o galã ela não quis acreditar que fosse ele: olhou para a porta como se esperasse outra visita; mas o marido, que lhe percebeu a surpresa, insistiu na apresentação e Sinhazinha dobrou-se a evidencia. Tinha diante de si um homem feio, marcado de bexigas, os dentes postiços, o cabelo cortado a escovinha e a cara inteiramente raspada...de véspera (AZEVEDO, 1995, p.93).

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O marido, apresentado como mais velho, positivo, escrupuloso, surge na narrativa

como o tutor que deve lembrar e instruir a mulher acerca do seu papel no casamento e

na sociedade: esposa e mãe encarando a vida como ela é. “Alguns meses depois havia

naquela casa o que até então faltava: um filho que reprimisse na senhora todas as

fantasias da senhorita” (AZEVEDO, 1995, p. 94). Em sua missão de mulher junto aos

filhos e ao marido ela deveria ser virtuosa e abnegada, com todas as atenções e os

cuidados voltados para estes. E fantasias românticas não tinham lugar para os deveres

de uma senhora.

Se Arthur Azevedo traz a perspectiva da esposa e dona-de-casa, A falência,

romance de Júlia Lopes de Almeida, traz a perspectiva da mãe de família. A narrativa

conta a história da família de Francisco Teodoro, comerciante português que busca na

moça pobre e educada a continuação dos seus triunfos financeiros. Até que a trama nos

leva ao personagem Inocêncio Braga. É ele o responsável pela mudança na vida do

núcleo central da narrativa em torno do palacete, de Camila e do dr. Gervásio.

Depois de um investimento mal sucedido este comerciante entra em processo de

falência. Não aguentando ver desvanecer o sonho de perpetuação da Casa Teodoro

“feita pela sua ambição, perpetuada pela descendência” (ALMEIDA, 2003, p.265) opta

pelo suicídio deixando para trás uma esposa despreparada para tomar os rumos de sua

história e de outros que dela dependem. O lamento de Teodoro é em relação a não ter

instrução, o de suas filhas pequenas ainda não a terem (e talvez não tivessem), e a

própria Camila com sua educação de ornamento. Nina, a sobrinha agregada, é a

personagem que assume as rédeas da casa tomando para si todo o serviço doméstico.

“Cumpria sua missão de mulher adoçando sofrimentos, serenando tempestades e

conservando-se na meia sombra de um papel secundário” (p.332).

De novo a trama nos leva a um novo evento: a falta de dinheiro e a necessidade de

todos trabalharem. Neste ponto da narrativa, Camila se descobre mulher para além de

esposa para ser mãe, sua principal função social. Depois de perder as honras da

sociedade, com a morte do marido e a ilusão do amor, com a descoberta que Gervásio

era casado, restava-lhe trabalhar para distrair-se.

Com voz pausada e clara, Camila pediu que lhe dessem trabalho. Olharam-na com espanto. – Mamãe quer mesmo fazer alguma coisa?! – Sim, minha filha...Tudo acabou, devo começar vida nova! – Então mande chamar as meninas e ensine-as a ler! Exclamou Ruth (ALMEIDA, 2003, p.354).

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Aqui a personagem feminina tem filhos, mas não tem mais o marido, como a

personagem de O Galã. O papel a ela atribuído aparece ao leitor a partir de suas

próprias ações no curso da narrativa. O sofrimento, a necessidade e a pobreza não

devem ser impedimentos para que ela dê a seus filhos a educação moral necessária e até

mesmo a educação instrucional que o dinheiro não pode pagar. O despreparo dessas

personagens mulheres ainda trazia uma discussão que permeia toda a obra de Júlia

Almeida: a importância da educação e do trabalho para as mulheres, mães de família.

Não se podia saber quando a existência de seus filhos iria depender exclusivamente

dessa mãe.

Uma situação invertida é evidenciada por Coelho Neto (1908) no conto O Rato

publicado na coluna Para Crianças, do jornal A República. A narrativa gira em torno de

um garoto de nove anos, cuja atitude desenvolvida para as tarefas de casa e da rua lhe

renderam o apelido de Rato, e sua mãe paralítica. Por considerar que o filho ainda é

muito pequeno para trabalhar, a mãe pede ao médico que lhe traga um atestado de sua

enfermidade para que o filho possa pedir auxílio às portas da igreja. Ao chegar em casa

à noite entrega a mãe as poucas moedas que conseguiu e desata num choro, que a mãe

vem a saber depois, causado pelos impropérios que escutou tomando-o como um vadio

e mentiroso. Mas no dia seguinte o garoto consegue trabalho como vendedor de jornal e

conclui que melhor que pedir é trabalhar: ganhara mais e não tinha sido mal tratado.

A atitude do garoto para com a mãe é de desvelo e de um cuidado protetor que

poderíamos qualificar de materno. O fato de antes de sair limpar o aposento em que

moravam, mudar a água das bilhas, deixar ao alcance da mãe a cafeteira e o pão dirigia

o leitor a um garoto exemplar e cuidadoso com aquela que lhe dera a vida.

Esta relação é percebida em vários contos, folhetins, poesias dos impressos

pesquisados. E essa relação mãe-filho é diretamente associada ao seu papel como

educadora moral dos filhos no lar, a exemplo do conto-folhetim Os cavaleiros do luar,

de Ponson du Terrail (28 de ago. 1911, p.4), especificamente o capítulo XL Aviso

materno; no conto O homem, de Olavo Bilac (25 de jul. de 1908, p.3), no romance-

folhetim Coração, de Edmundo Amicis (1911, p.4), ou A escola, de Júlia Almeida

(1908, p.3). Nestes dois últimos, além da relação materno-filial, a educação na forma de

instrução escolar também aparece como possibilidade de melhoria humana e material.

As marcas deixadas por essas mulheres e as imagens recuperadas através de

discursos em jornais antigos nos conduziram a pensar sobre essa representação de

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educadora, sobre essa representação de mulher cuidadora dos futuros republicanos.

Conduziram-nos à mãe-esposa e à professora em Natal, no final do século XIX.

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Capítulo VII Outras marcas, outras imagens: mãe-esposa e professora

O trabalho, cujo hábito tereis adquirido e que em outro tempo vos era conveniente, logo vos será sobre modo necessário, não obstante quaisquer bons auspícios de riqueza que existam no casal. Sem a vossa zelosa e ativa superintendência em todos os arranjos domésticos, jamais terão eles a ordem e boa direção que traz à família prosperidade (GONDIM, 1910, p.47).

A relação entre o cuidado materno, educação e trabalho no final do século XIX

faz com que o gênero feminino passe a ser a referência na função de educar a sociedade

dentro e fora do lar. O trabalho escolar da professora é motor de prosperidade na

sociedade; o trabalho doméstico feminino é motor de prosperidade na família.

Moralidade é seu discurso. Virtude a sua meta. No jogo das representações do ser

mulher, os discursos de parlamentares, médicos, clérigos, legisladores não apenas

espelharam as mulheres, mas as produziram: mãe-esposa e professora.

Na perspectiva de uma configuração que percebia o trabalho feminino como

pertinente ao seu projeto de sociedade, os modos de fazer das mulheres natalenses se

apresentavam, seja em fórum público ou privado, sempre na relação com o cuidado

materno. Este trabalho evidencia, dentre as representações aqui analisadas, a mãe-

esposa e a professora como as funções sociais femininas sob as quais este cuidado

materno mais se vinculou.

O projeto social republicano brasileiro teve forte influência do positivismo.

Concentrava seus esforços em torno da família e da mãe de família responsável pelo

cuidado moral dos filhos, os futuros cidadãos da República. Na base da estruturação da

proposta estava a família e a cidade civilizada, moralizada estava como um

prolongamento desta. “A República pôs em prática um projeto político disposto a

redefinir a ordem social com base nas idéias-chave de progresso e disciplina”

(ARAÚJO, 1995, p. 30). A família neste projeto foi vista como sustentáculo do projeto

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normatizador que envolvia família e sociedade. Neste micro-cosmo social – a família –

se ergue a figura da mãe-esposa, rainha do lar e educadora por excelência.

Esta pesquisa ensejou uma viagem tipográfica em vários tipos de fontes. Desde

manuais como Reflexões às minhas alunas, de Gondim (1910) ou Livro das Mães de

Figueira (1926), até romances indicados como livros de leitura como Coração, de

Amicis (1949) ou Através do Brasil, de Bomfim e Bilac (2000), passando por livros de

memória como Oiteiro, de Antunes (2003) e livros escolares como Livro de leitura, de

Carvalho (1934) e Corações de Criança de Barreto (1915). Mas foram os jornais e

revistas natalenses, marcadamente A República e Via-láctea, que mais nos aproximaram

das representações que buscávamos. Todos esses impressos, de um modo ou de outro,

com os objetivos próprios de cada suporte textual serviram para delinear a configuração

que fez emergir a mulher cuidadora da nação republicana. Deixamos falar as fontes na

voz de Henriqueta, colaboradora da Via-láctea, em novembro de 1914.

Cumpramos nossa missão. Deus reservou também para a mulher alguma coisa mais do que sua condição de esposa, mãe e mártir. Deu-nos também um cérebro para pensar, um coração para sentir e um feixe de nervos para vibrar na emoção dulcíssima de um sonho alado; e acima de tudo, concedeu-nos razão suficiente, raciocínio e lógica para, por meio do pensamento, que é a palavra estereotipada, manifestarmos um pouco do que se passa no mundo dos fenômenos intelectuais e adaptá-lo às modalidades do ambiente, a pari-passu com a evolução do espírito humano (DUARTE; MACEDO, 2003, p. 53).

Importante destacar o “também” da autora, pois neste vocábulo subsistia a

possibilidade de que essas virtudes feminis pudessem, afinal, servir a toda a sociedade e

não apenas a um núcleo familiar. Com um pouco de educação, como dizia Rousseau

(1995, p.515), instrução geral e diretiva, a mulher oitocentista poderia se transformar na

educadora social do século XX.

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Nos tempos atuais e entre nós mesmos se poderia mais de uma que recebeu a educação prática mais ou menos metódica. E eu explico: as exigências da vida familiar trazem às vezes com a necessidade de encontrar solução a um problema econômico úteis experiências. [...] Estou certa de todas as senhoras brasileiras pensarem comigo sobre a necessidade da instrução prática e quando algumas ainda jovens precisam ser admitidas numa escola superior como esta que a nossa capital possui, outras tem para seu especial um guia em cada emergência, dessas que todos os dias ocorrem na vida familiar e não se esquivariam proclamar a utilidade do dito ensino e fazer-lhe a propaganda, caso a isto fossem convidadas (DUARTE; MACEDO, 2003, p.82).

O “dito ensino” a que Dinah da Costa, pseudônimo de Noêmia Viveiros, se refere

é o ensino doméstico promovido pela Escola Doméstica de Natal. Compartilha com ela

Ângela Marialva ou Palmyra Wanderley que, escrevendo sobre a Educação da mulher,

no sexto número da Via-láctea finaliza dizendo que

ao Governo compete propagar no Brasil a criação de escolas domésticas que tanto resultado tem dado no estrangeiro [...] Oxalá que outros Estados do Brasil imitem o gesto louvável do nosso Governador, fundando escolas como esta que temos em Natal, a primeira e única no nosso país, de quem espero em breve ver os melhores frutos se o ensino profissional for correspondente ao seu vasto e útil programa (DUARTE;MACEDO,2003,p. 88)

A jornalista ainda traz uma definição de como ela percebia este ser mãe e este ser

dona de casa salientando que para ser “dona” não bastariam as escolas de “ensino

caseiro”; o fato dessas escolas formarem “verdadeiras donas”não significava dizer que

estas se tornariam por si sós “verdadeiras mães”. Logo a escola de Castriciano

necessitaria de um complemento de uma escola verdadeira, da moral ou do cristianismo.

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Para ser mãe é preciso muito mais: estudar a ciência materna que compreende a pedagogia, o estudo da índole humana, para saber aplicar os calmantes e os cautérios de conformidade com a a organização moral, isto é, aplicar a dose do carinho e da energia convenientemente, para que depois, a médica do espírito, que deve ser a mãe não vá inutilizá-lo. Ela é a buriladora do caráter, deve portanto sabe incutir o bem fazendo evitar o mal. [...] Ser mãe “é renunciar a todos os prazeres mundanos, os requintes do luxo e da elegância, é deixar de aparecer no baile em que o espírito se cansa no gosto das valsas; é passar as noites no cuidado incessante em sonos curtos e leves com o pesamento sempre preso à criaturinha” que Deus lhe confiou. [...] E assim dizendo, provo que o Cristianismo é a única escola que ensina a mulher a renunciar os prazeres pelo dever, a se sacrificar pelo amor tornando-a abnegada, virtuosa, sublime, perfeita esposa e mãe como deve ser (DUARTE; MACEDO, 2003, p. 87).

Esta definição de mãe trazida por Palmyra Wanderley acompanha as imagens que

encontramos de mãe abnegada, como no conto A Partilha (1897), ou na poesia Mãe

(2008), ambos de Coelho Neto:

Ser mãe é desdobrar fibra por fibra! Ser mãe é ter no alheio lábio que suga, o pedestal do seio, onde a vida, onde o amor, cantando vibra [..] Ser mãe é andar chorando no sorriso! Ser mãe é ter um mundo e não ter nada Ser mãe é padecer no paraíso! (NETO, 2009)

Os livros escolares também contribuíam com esta imagem maternal, abnegada e

sofrida no seu trabalho de mãe-esposa educadora. Corações de Criança (BARRETO,

1915) é uma coletânea de textos destinada ao ensino moral e cívico. É ainda um livro

auxiliar no ensino da leitura para crianças iniciantes nesta habilidade. O teor do livro

traduz a atmosfera do período trazendo pequenos contos, autorais e traduzidos, e poesias

que trazem valores pátrios, civilizadores e morais do final do século XIX, como a

República sendo a melhor forma de governo (Ibden, p.93) ou a indiscrição e a mentira

feminina como algo reprovável em uma sociedade civilizada (Ibden, p. 77-81). Também

a mãe ou, ainda, o ser mãe-esposa era traduzido aos pequenos em pequenos contos

como Tua mãe.

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Nos livros, nos teatros, nos jornais, vemos todos os dias exemplos de abnegação e de amor de mãe: aqui é uma que se lança sob um automóvel para salvar o filho em perigo; ali é outra que se lança ao rio, por imaginar que a sua vida possa tornar-se um óbice à felicidade do filho; acolá é uma terceira que, numa região deserta, onde não havia o que comer, é encontrada morta por ter aberto ela própria uma veia, para ser sugada pelo filho pequenino que chorava de fome (BARRETO, 1915, p.121).

Estes aspectos se apresentavam também em outros livros destinados a escola

primária, como o Livro de Leitura de Carvalho (1934). A mãe aparece como a dona de

casa também se ocupando com as lições de casa do filho (p.13), orientando a filha a

conduzir-se com prudência (p.152), ou ainda ensinando-a sobre seus deveres com a

escola ao mesmo tempo em que a auxilia na feitura da atividade não realizada da

menina escolar (p.157).

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Lição 32 Fonte: Segundo Livro de Leitura de Felisberto de Carvalho (1934)

Mas a ternura materna não era apenas privilégio das mulheres nos textos

ficcionais que tivemos a oportunidade de analisar. O pai dos protagonistas de Através

do Brasil de Bomfim e Bilac (2000) trazia essa marca; a marca da maternidade bondosa

e abnegada.

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Sempre fora muito carinhoso e meigo; principalmente depois de enviuvar, tornara-se de uma bondade excessiva, como querendo compensar com um redobramento de ternura a falta dos cuidados maternos de que via os filhos privados. Era simples e afetuoso, preferindo ser atendido e amado a ser obedecido e temido (BOMFIM; BILAC, 2000, p.53)

Esta característica se espalha por quase todos os personagens do romance –

homens e mulheres do interior do Brasil – francos e “hospitaleiros, como, em geral,

todos os habitantes do sertão” (BOMFIM; BILAC, 2000, p.176). A ideia um tanto

romantizada desse Brasil de dentro é mote para se conhecer (e reconhecer) um território

que se queria nacional.

O nacionalismo dos autores brasileiros no ano de 1910, ano de publicação da

primeira edição desse romance, como também o fato dele servir de livro de leitura às

escolas elementares, já era um estilo reconhecido no século XIX, através de Edmundo

Amicis. Considera-se Coração como

uma leitura de formação, pois procura educar e moldar seus leitores na perspectiva de ensinabilidade da moral ou das virtudes, como apresenta uma dimensão biográfica, na forma narrativa confessional, em que são relatadas as vivencias e os sofrimentos, as circunstancias da vida e as experiências-chave da vida do autor narrador, isto é, a representação de mundo dada pelo autor. É um livro de leitura com função moralizadora e intenção educativa, cívica, patriótica e social (BASTOS, 2009, p.3).

A literatura, enquanto expressão do artista do período, deixa entrever o modelo de

mulher doméstica na figura da esposa e da mãe, como nos contos de Arthur Azevedo e

Coelho Neto, e também a representação da professora ou da normalista como modelos

de mulheres públicas. Estas são personagens recorrentes em vários romances, como A

normalista de Adolpho Caminha ou Coração, diário de um aluno, de Edmundo de

Amicis.

Este último, publicado sob a forma de folhetim no jornal A República a partir de

16 de agosto de 1890, descreve a jornada escolar de um rapazinho italiano no seu

primeiro ano na classe adiantada. As relações com o Mestre, com os colegas, com a

família e com a antiga Mestra da escola primária conduzem o leitor por conteúdos

moralmente formadores destacando ideais de virtude, boa conduta e amor à pátria. A

professora é mostrada em retrospectiva a partir das lembranças do menino durante uma

visita da Mestra. Esta aparece sob características bem especificas.

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É sempre a mesma, baixinha, com o seu véu verde enrolado ao chapéu, vestida sem luxo, apenas penteada, pois não tem sequer tempo de enfeitar-se; [...] Pobre Mestra! Tão emagrecida! Mas sempre viva. Entusiasma-se sempre que fala da sua escola [...] recordar-me-ei do tempo que passei na tua aula, onde aprendi tantas coisas, onde te vi doente e fatigada, mas sempre solícita e generosa, sempre boa – inquieta quando nos via sem saber pegar na pena; trêmula, quando os inspetores nos interrogavam; feliz, quando nos via fazermos boa figura; e sempre amorosa, sempre qual uma mãe (AMICIS, 1949, p.20-22).

Nesta obra a amorosidade docente também é atribuída ao professor. A

paternidade masculina aqui tem a mesma áurea cuidadosa percebida na feminina. Os

estudantes são, para o professor, como sua família, seus filhos, sua companhia.

E o professor, devagar, devagar, devagar, com sua voz grossa, falou: - Atendam. Nós temos que passar um ano. Estudem. Sejam bons. Sejam a minha família que eu já não tenho. Tinha mãe, e morreu. Fiquei só. Os meus discípulos são os meus filhos. Quero-os amigos; não quero castigar nenhum. [...] E cheio de ternura, paternalmente, o mestre beijou-o na testa, dizendo: - Vá, vá, meu filho! (AMICIS, 1949, p.12).

Mesmo a escola é para o autor, através da fala da mãe do protagonista Henrique,

uma mãe. Este cuidado envolto numa perspectiva maternal está presente no contexto de

todas as personagens da narrativa.

A escola é uma mãe, meu Henrique. Ela levou de meus braços uma criança que balbuciava apenas e agora a restitui forte, robusta, boa e estudiosa. Abençoada seja a escola, e tua não a esquecerás mais. [...] Far-te-ás homem, viajarás o mundo, verás cidades imensas e monumentos maravilhosos, e de muitos destes te esquecerás; mas aquele modesto edifício branco, com aquelas persianas cerradas e aquele pequeno jardim onde desabrochou a primeira flor de tua inteligência, vê-lo-ás até o último dia da tua vida (AMICIS, 1949, p.314).

Neste trecho a instituição escolar assume as características daqueles que nela

trabalham e tendem a promover os mesmos sentimentos de saudade e doce melancolia

provocados quando ele se refere a seus professores em outras passagens do livro.

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- Os que dentre vós foram seus alunos, sabem quanto lhes queria bem: era uma mãe para eles. [...] Ela deixou seus poucos livros aos seus discípulos: a um, um tinteiro, a outro, um quadrinho, tudo aqui que possuía; e dois dias antes de morrer disse ao diretor que não deixasse ir os pequenos ao seu enterro, por que não queria que chorassem. Fez tanto bem, sofreu tanto, e morreu (AMICIS, 1949, p.302)

O modelo de professora descrito por Amicis, o modelo de mãe apresentado por

Coelho Neto43 e o de esposa por Arthur Azevedo trazem representações de mulher.

Estas representações ajudam a perceber o sentido atribuído à educação escolar para

mulheres na transição do século XIX para o XX. A obra A normalista, evidencia através

do personagem João da Mata, a ideia corrente das expectativas em torno dessa

educação.

Queria a educação como nos colégios da Europa, segundo vira em certo pedagogista, onde as meninas desenvolvem-se física e moralmente como a rapaziada de calças, com uma rapidez admirável tornando-se por fim excelentes mães de família, perfeitas donas de casa, sem a intervenção inquisitorial da Irmã de Caridade. [...] Maria devia educar-se no Rio de Janeiro ou num colégio particular [...] onde ela pudesse aprender o “traquejo social” (CAMINHA, 1998, p. 22).

O desejo do personagem João da Mata de que sua afilhada Maria do Carmo

estudasse em uma escola da capital federal, talvez expressasse a existência de uma

diferenciação na educação feminina entre os Estados da Federação. Assumindo como

referência a cidade do Rio de Janeiro ou um colégio particular, o personagem apresenta

esses lugares como os espaços ideais para a educação da mulher no período em estudo.

A formação escolar em outros Estados ou em escolas de currículo mais livre talvez

contribuísse para a assimilação de costumes e idéias que ampliavam o universo

conceitual das mulheres para sua inserção na vida social pública. Mas que tipo vida

pública?

A existência pública dessa mulher era considerada diante de um sentido de

urbanidade nascente. Uma urbanidade que colocava a mulher como anfitriã e

responsável pela harmonia do lar. A escola e sua educação estética cumpriam parte

dessa função ao proporcionar conteúdos como os do Colégio Particular Natalense.

43 Conferir página 14 do capítulo De quando a ideia era apenas uma ideia

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Colégio Particular Natalense Sexo Feminino, Diretora D. Luiza Lima, R. da Conceição, n. 26. Ensina primeiras letras, todos os trabalhos de agulha, noções de música com exercícios de piano. Aceita alunas internas e externas. Mensalidades para as primeiras 40$000 reis; para as segundas 3$000 reis. O pagamento será adiantado (COLÉGIO PARTICULAR NATALENSE, 1892).

O que caracterizava o ensino nessas instituições era um currículo que priorizava a

educação da mulher para além do aspecto instrucional. Uma educação que se destinava

a suprir um perfil de mulher idealizado pelo discurso republicano, que era o de

educadora dos filhos e formadora dos futuros cidadãos, além de se pretender um

traquejo social e a boa representatividade da mulher junto ao esposo.

Os trabalhos de agulha, as flores, os bordados eram conteúdos imprescindíveis à

boa formação de meninas. A disciplina Trabalhos Manuais cumpria, neste contexto,

uma educação estética que envolvia as habilidades manuais, os cantos e a dança,

presentes no cotidiano das salas de aula. A educação estética figurava como parte

fundamental de uma formação integral para a mulher, útil à família e ao lar. Associada a

esta a educação moral vinha de uma formação religiosa que o Colégio Imaculada

Conceição apresentava em disciplinas como Catecismo e História Sagrada (ENSINO,

24 nov. 1911). Outras disciplinas como Português, Francês, História do Brasil,

Aritmética, Geografia, Corografia, Música e Trabalhos de Agulha completavam a

educação moral, intelectual e estética das moças norte-rio-grandenses.

No universo de uma política que se organizava em torno de valores como

moralidade, sacrifício, progresso e desenvolvimento, as mulheres, seja educando, seja

sendo educadas, contribuíam e participavam na construção da sociedade letrada. E as

professoras surgiam como uma instituição republicana, mas uma instituição simbólica,

no plano do discurso, capaz de relacionar e legitimar esses valores gerais com os

indivíduos em seus lares.

A figura educacional da mulher vincula-se à da mãe-esposa e à da professora

normatizando desde tenra infância os indivíduos desta sociedade dentro e fora da esfera

doméstica. O papel destinado à mulher, portanto, vinculava-se essencialmente à da

educadora e este se associava a um cuidado que se organizava em torno do conceito de

maternidade. E qual era a representação feminina que a sociedade republicana do século

XIX assumiu para viabilizar seu projeto político-cultural de sociedade?

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O século XIX é apontado por Lyons (1999) como o século das mulheres e das

crianças na relação com a alfabetização e a leitura nas cidades da Europa. O incremento

na alfabetização feminina também é verificado nas Escolas Normais francesas. De

acordo com os dados trazidos pela autora, na França, as primeiras escolas normais de

professoras só foram fundadas em 1842, mas por volta de 1880 mais de dois milhões de

meninas francesas frequentavam a escola. A expansão das oportunidades de emprego

para as mulheres (por exemplo, como professoras, vendedoras nas lojas e assistentes

nos correios) e a modificação gradual das expectativas das mulheres foram fatores

adicionais no incremento da alfabetização feminina (LYONS, 1999, p.168)

Semelhante ao Brasil, cujas escolas normais começaram a aparecer na década de

1830, a profissão docente se torna a possibilidade de independência e vida pública para

muitas mulheres. A primeira escola é fundada em Niterói em 1835 e onde só eram

aceitas, inicialmente, inscrições masculinas (FREITAS, 2003). Aparentemente

contraditório um projeto de lei da Província de Sergipe, de 1830, indicava o gênero

feminino como o mais adequado a profissão. Se por um lado indicavam preferência às

mulheres para cuidar da educação nas escolas primárias, por outro não admitiam

mulheres nas instituições que deveriam formar estes professores. Talvez a educação

primária não necessitasse de habilidades intelectuais mais do que das morais. Os valores

aprendidos entre a igreja católica e a relação familiar seriam as bases sobre as quais ler,

escrever e contar se assentariam. Suas habilidades, supostamente inatas para o cuidado

infantil, ao lado de características pessoais como honestidade, boa conduta e respeito

aos padrões da época eram suficientes para habilitá-la ao serviço docente. “O ‘retrato’

da professora era socialmente construído em torno da mulher honesta, casada, boa mãe,

laboriosa, fiel e dessexualizada” (FREITAS, 2003, p.29).

As mulheres somente vão ocupar massivamente as Escolas Normais no final do

século XIX depois de instaurada a República. Em Sergipe, uma escola normal feminina

foi criada em 1877. O Curso Normal existia desde 1870 dentro do Atheneu Sergipano,

único estabelecimento público secundário. Em 1874 uma Escola Normal masculina é

criada independente do Atheneu, mas é indiretamente extinta pela Resolução n 1.326 de

1888 que determinava suspensas as aulas que não tivessem frequência mínima de 10

alunos. De acordo com os dados apresentado pela autora, mesmo depois de a Escola

Normal torna-se mista em 1901 não havia matrícula masculina e efetivamente, em suas

análises, ela conclui que somente na década de 1970 ela torna-se mista de fato com os

homens aparecendo para fazer o curso normal noturno. Em Sergipe, normalista era

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assunto feminino. As marcas do feminino na educação de crianças atravessaram o

século XIX vinculadas à idéia de cuidado materno. E esta mãe-educadora ligava-se a

modelos pedagógicos, reais e fictícios, como Maria, Sofia e a rainha Vitória.

A Revolução tinha demonstrado os resultados possíveis - “masculinização das

mulheres desde roupas até estilos de vida, diminuindo até o número de peças de roupa,

tornando-as mais leves e soltas” Maria Antonieta, a tigresa austríaca era apresentada

como a antítese de tudo o que as mulheres deviam representar: uma besta selvagem ao

invés de uma força civilizadora, uma prostituta ao invés de uma mulher, um monstro

gerando criaturas disformes ao invés de uma mãe. Ela era a expressão última e mais

baixa daquilo que – no temor dos revolucionários – ocorreria às mulheres caso

ingressassem no universo público – já não seriam mulheres, e sim perversões do sexo

feminino.

Os eventos que colaborassem para educar essa mulher, portanto, não eram

restritos às escolas públicas e aulas particulares. Além desses espaços, existiam outros

processos que corroboravam para estruturar uma mentalidade feminina que

correspondesse aos ideais de ordem e progresso preconizados pela República. As

práticas de leitura, enquanto conteúdos culturais e ideológicos assumiam esse papel

também. Os artigos, contos e folhetins publicados nos jornais da cidade figuram nesse

estudo como o material de leitura mais acessível a esta população.

Encontramos as características maternais ficcionais também na descrição de

pessoas existentes como mães, pais e professoras; em textos memorialistas, que vamos

considerar aqui como expressão de uma realidade vivida e, portanto, não-ficcional. Esta

relação entre discursos ficcionais e não-ficcionais sugere uma sintonia entre a arte e a

existência real. Antunes (2003) ao relembrar os esforços dos seus pais para ofertar-lhe a

melhor educação escolar possível – “abandonamos festas e passeios, vivemos os dois no

Oiteiro, só trabalhando e pensando no futuro de vocês” (p.187) – ou da primeira mestra,

na cidade de Angicos, no Rio Grande do Norte traz as representações que evidenciamos

de mestras, professores, pais e mães ficcionais para personagens de sua vida real.

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A escola de Dona Maria Alves era na residência do padre Félix. [...] – A minha mestra só bate nas crianças mal comportadas. Por lição errada, não, ela tem paciência e ensina. [...] Quanto gostei da escola da minha mestra, com lhe chamavam as meninas. [...] A dona Maria Alves era boníssima! Tratava-as todas por igual. Vejo-a ainda, matrona, densos cabelos, lisos, enrolados sobre a nuca branca. Rosto oval, nariz retilíneo, fronte larga, olhos claros, tão suaves como uma réstia de luz ao pôr-do-sol. A palmatória, que os pequenos batizaram de “Dona Marocas”, repousava imóvel, embora em lugar de destaque sobre a mesa (ANTUNES, 2003, p.291)

É bom lembrar que se esse modelo é encontrado em verso e prosa nos escritos do

final do século XIX, ou que se referiam a este período, ele se antagonizava diretamente

com um modelo anterior, de cem anos passados, como atesta Badinter (1985). Esta

autora discute o instinto materno como um mito construído a partir de discursos

médicos, filosóficos, econômicos, no final do século XVIII. Ao percorrer a história das

atitudes maternas, este traço biológico vai surgindo como um aspecto cultural

importante à própria preservação e melhoria da espécie.

Foram necessários nada menos de três discursos diferentes para que as mulheres voltassem a conhecer as doçuras do amor materno e para que seus filhos tivessem maiores possibilidades de sobrevivência: um alarmante discurso econômico, dirigido apenas aos homens esclarecidos, um discurso filosófico comum aos dois sexos e, por fim, um terceiro discurso, dirigido exclusivamente às mulheres (BADINTER, 1985, p. 149).

Este discurso se relaciona diretamente com a orientação naturalista de Rousseau.

Elas se tornam as interlocutoras privilegiadas dos homens, as responsáveis pela saúde

moral e física da nação. Delas depende a primeira educação dos homens; os costumes

da mulheres. Tornam-se objeto de uma súplica e de acusação. São responsáveis pelo

sucesso ou fracasso da nação em seu projeto civilizador. “Essas palavras deviam ter o

mérito da novidade, pois foram repetidas com frequência até o século XX” (Ibden,

p.181). Como pudemos perceber nas fontes analisadas, estas observações da estudiosa

na (e sobre a) Europa também podem ser percebidas aqui no Brasil, particularmente no

Rio Grande do Norte.

Estes fatos referendam a dimensão que temos trabalhado da existência de modelo

educativo, maternal, que se organizava a partir de discursos datados e localizados na

intenção de forjar uma nova educadora para o século XX. Uma nova mãe-esposa, uma

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nova professora em defesa da criança com um discurso moralizador herdado de

Rousseau em uma perspectiva social civilizadora.

A pergunta que fazíamos, no entanto, era sobre a que mãe-esposa e a que

professora estávamos exatamente nos referindo. Decerto não era a expressão do que

éramos, mas uma mesma função trabalhada, pensada, executada de outro modo. Um

modo a que, afinal, nos sentíamos conectadas. Decidimos fazer o mesmo percurso do

capítulo anterior; fomos procurá-las pela cidade de fim de século natalense. Desta vez

não queríamos todas as mulheres, mas apenas aquelas que traziam a insígnia da

educação. Voltamos as fontes consultadas, revemos as análises realizadas e buscamos

olhar mais de pertinho as representações das educadoras que encontramos em nossa

jornada.

Uma das primeiras buscas que fizemos foi em torno das teorias que poderiam

inspirar aquelas representações femininas. E foi em um jornal oitocentista, em um

anúncio de óbito, que ela apareceu. Reunindo os elementos de mãe-esposa e educadora

o óbito indicia um modelo feminino que, pelas adjetivações de seu redator, parece ser o

adequado naquele momento histórico.

D. Thereza Christina A inditosa senhora, cujas exemplares virtudes domésticas constituíram o melhor e mais sólido amparo da numerosa família, cuja educação e bem estar sempre cuidou com dedicação e zelo inexcedíveis (A REPÚBLICA, 1899).

O cuidado com a família não se apresentava como algo que se pudesse fazer de

qualquer modo. Os discursos provocavam a busca por uma formação da mulher de fim

de século como administradora dos aspectos privados no interior do lar natalense. Os

textos jornalísticos indicavam o que se esperava delas e como deveriam buscar a

excelência neste campo.

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A Marquesa de Villete, dotada e casada por Voltaire, contou que um momento antes de ir à igreja, este grande homem mandou levar-lhe um magnífico adereço de diamantes com os quais quis ele mesmo ornar sua cabeça, suas orelhas, seu pescoço e seus braços. “Isto que acabo de dar-te é uma bagatela. A verdadeira riqueza, eis aqui.” Era um grande livro de marroquim vermelho com as bordas douradas. Sobre um lado estava escrito: Receita das rendas do Senhor Marquês de Villete; sobre o outro lado: Despesas da casa do senhor Marquês de Villete. “Os livros de contabilidade. O verdadeiro ornamento de uma esposa e de uma mãe e uma das causas da prosperidade de uma casa” (O VERDADEIRO ORNAMENTO DE UMA DONA DE CASA, 1899).

Mais do que as jóias, a prudência e o zelo pelas coisas do marido e da casa

ornamentavam e embelezavam a mulher de fim de século, seja em Natal, seja em Paris.

A França foi a forja das propostas mais avançadas, mesmo que no sentido apenas

teórico, em termos de educação e sociedade do final dos setecentos. Segundo Cambi

(1999, p.344), Rousseau, filósofo francês do século XVIII, operou uma “revolução

copernicana” quando colocou no centro das suas teorias educacionais a criança com

uma educação específica, distribuída em fases e atenta às suas necessidades. Mesmo a

educação feminina se voltava principalmente para o cuidado doméstico e, em

conseqüência, das crianças.

Política e educação estão estreitamente ligadas em Rousseau: uma é o pressuposto

e o complemento da outra e, juntas, tornam possível a reforma integral do homem e da

sociedade para a recuperação da condição natural, única que pode conceder a liberdade.

Este viés filosófico foi assumido pelo ideal iluminista pouco depois e pelas formações

políticas republicanas que se seguiram, como a Proclamação da República Brasileira.

Mas voltando-nos um pouco para o pensamento educacional de Rousseau, este

pode ser articulado segundo os modelos do Emílio (1995) e do Contrato Social (1997)

ou através de uma educação indireta centralizando o papel do educador e a educação

socializada e regulada pelo Estado, além de uma reforma na família como modelado em

A Nova Heloísa (2006). Em síntese, o que ele propõe em sua obra é a reforma da

sociedade pela educação, pelo Estado e pela família.

Do contrato social é a busca da sociedade perfeita já buscada por Platão (1993) ou

Morus (1980). O contrato social, estabelecido por Rousseau, é uma metáfora que

pretende explicar o surgimento do Estado e encontrar um fundamento de legitimidade

para os mesmos. Parte da ideia de um estado de natureza, pré-social, no qual os

indivíduos são livres e iguais. Este estado será superado no momento em que for

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firmado um pacto social voluntário, por meio de um contrato, provocando o surgimento

da sociedade política. O contrato é uma teoria consensual de legitimação política que

desemboca na democracia como princípio de legitimação.

Em Júlia ou a nova Heloísa, a paixão entre Júlia e seu jovem amante serve de

mote para discussões em torno do ser mulher, futura mãe e esposa. Uma paixão que

termina por ser domesticada e a personagem acaba casando com Wolmar, um senhor de

quase cinquenta anos, que é tudo o que o seu correspondente não é: regrado, tranqüilo,

nem alegre e nem triste. O sentimento amoroso é colocado como empecilho as

obrigações conjugais pela própria Júlia, na carta de despedida ao seu amante.

As pessoas não se casam para pensarem unicamente uma na outra, mas para preencherem juntos os deveres da vida civil, para dirigir prudentemente a casa, para criar bem os filhos (ROUSSEAU, 2006. p.327).

A perspectiva familiar como instituição matricial de reforma é combinada com

uma educação apropriada aos dois sexos em Emílio ou da educação. No modelo de

educação natural e libertária do Emílio a educação do cidadão é deixada em segundo

plano uma vez que é “preciso optar entre fazer um homem ou um cidadão, pois não se

pode fazer os dois ao mesmo tempo” (ROUSSEAU, 1995, p. 10). A via para Emílio é a

educação do homem, doméstica, individualizada e através de um preceptor. O Livro V

dessa obra é dedicado à educação feminina. Um modelo para ser mãe-esposa é

delineado a partir da personagem Sofia.

Diferente de Emílio, Sofia nasce na obra já um ser social; para ela recomenda-se a

educação dos conventos. Para Rousseau as diferenças de gênero é uma distribuição

sábia da natureza para a boa convivência; complementam-se na força e na doçura, na

atividade e na passividade. A menina Sofia aprende o que convém a essa relação futura

e não lhe convém ser letrada: “uma moça intelectual é o flagelo do seu marido”. O

destino das moças excessivamente instruídas será permanecerem solteiras a vida inteira.

Sofia será mãe. E uma mãe pensada para a sociedade republicana do Contrato.

Diferente da mãe aristocrata – “mães depravadas que se negam a amamentar seus

filhos” – a mãe republicana será semelhante a mãe espartana que ele traz no início do

livro que aprendeu a controlar os sentimentos em favor da ordem civil. Ela será robusta

e forte, capaz de gerar filhos saudáveis e fortes. Dócil, amorosa e forte ela se torna o

meio para a criação da nova sociedade.

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As três obras em foco – Emílio ou da educação, A nova Heloisa e Do contrato

social – merecem um estudo apurado e relacional posteriormente, pois assumem ao

mesmo tempo uma perspectiva integradora e contraditória. Integradora na perspectiva

de que todas querem revolucionar a mentalidade vigente a partir de uma instituição

matricial; contraditória por que, apesar de serem do mesmo filósofo, trazem

notadamente perspectivas ideológicas diferentes: ora traz o foco no coletivo, ora na

família, ora no indivíduo, chegando mesmo a afirmar no Emílio não ser possível educar,

ao mesmo tempo, o indivíduo e o ente social. De qualquer modo, elas prenunciam um

modelo de educação que percebe a mulher como parte importante e que, por isso,

deveria ter um modelo especifico a ser adotado.

Sofia foi preparada para ser educadora de seus filhos, mas foi se tornando também um modelo de professora. Baseado em Rousseau Napoleão Bonaparte criou escolas femininas onde se enfatizava o papel materno. Em 1842, é aprovada na Franca uma lei que cria cinco escolas normais para moças inspiradas em Pestalozzi. Este substitui o preceptor de Rousseau por Gertrudes, uma mãe virtuosa, no papel de educadora (STRECK, p.55).

A professora em Pestalozzi aparece relacionada com valores maternais. E a mãe

pestalozziana é a mãe republicana responsável pela educação primeira das crianças ou

dos futuros republicanos. Uma educação baseada em princípios burgueses e em uma

família nuclear em que todos são responsáveis pelo futuro da nação em construção.

Estas representações traduzem um esforço intelectual no sentido de um projeto que

pretendia redimensionar a sociedade a partir da educação na família e na Escola com a

intervenção do Estado. Organizava-se, portanto, um modelo educacional que

dimensionasse o público e o privado a partir da mulher. Mas uma mulher mitificada.

O mito da feminilidade tenta imobilizar no tempo um ser que é histórico. A

procura por qualidades abstratas – maternidade, abnegação, sacerdócio, beleza,

suavidade – quase nos faz perceber essas mulheres como extratos de papel de uma

sociedade distante temporalmente. A transformação da mulher em mito, pela imprensa

em geral ou pela imprensa feminina, surge para reforçar um modelo dominante

tradicional ou por se querer reformar esses conceitos para uma nova configuração

social. Este parece ser o caso aqui.

Quando as mudanças causadas pela efervescência intelectual, cultural e política no

final do século XIX a imprensa, mesmo a imprensa feminina, busca referendar um perfil

tradicional para a mulher de fim de século. A Revista Illustrada, um periódico feminino

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de 1878, discute sobre as reivindicações da mulher e sua esfera de ampliação

profissional.

Nota-se em toda imprensa, tanto da corte como das províncias, um princípio de propaganda sobre as reivindicações do sexo gentil. Cremos que a esfera de ação do sexo gentil deve ser ampliada; mas também nos parece que o circulo não pode ter um grande raio (BUITONI, 1981, p.16).

Isto significava não tomar partido em lutas eleitorais, pedindo votos, formando

comitês ou mesmo patrocinando candidatos. A preocupação com o êxito de tais

empreendimentos a levaria “a encarar fatos passageiros, como acontecimentos

momentosos, aos quais seria um dever sacrificar o bom tempero do marido, e até os

vagidos desesperados do seu filhinho mais moço”.

O artigo A mulher, publicado no jornal A República de 26 de fevereiro de 1897,

escrito sob o pseudônimo H.S, demonstra esse conteúdo. Seu autor concebe a família

como um santuário reservado à mulher pela natureza.

Sobre tão alto pedestal deixa ela de ser o ente fisicamente fraco para revelar toda a grandeza de seu espírito e de seu coração no variado papel que representa e na importância da missão civilizadora para que foi fadada. [...] A mulher, quer a consideremos na família, quer na sociedade, exerce uma influência tão real e maravilhosa, que não cabe num rápido esboço fazer-lhe a apologia. Mas o seu verdadeiro santuário é a família, em que ela diretamente atua, abrindo o seu escrínio de virtudes. Fora desse doce ambiente do lar, a sua missão muitas vezes se deturpa e desvirtua (H.S., 1897).

A concepção de H.S. elege o espaço privado como o lugar da mulher. Elas e

somente elas poderiam realizar a tarefa de cuidar dos futuros líderes do país. Para tanto,

estaria reservada às mulheres uma vida tranquila.

Na hora presente, fala-se muito em emancipação da mulher e pedem para ela, entre outras conquistas, o direito de voto. Grave erro. A mulher influi mais sensivelmente nos destinos do seu país sabendo ser mãe e preparando o caráter dos filhos do que maculando a pureza de sua alma no atrito corrosivo das lutas partidárias. [...] Transviem-na de sua missão de educadora da bela metade do gênero humano foi tendo o devido cultivo, a evolução do organismo social atingirá o maior grau de perfeição (H.S. 1897).

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Para H.S., a sociedade natalense deveria figurar como um espelho fiel ao espírito

feminino por ele preconizado. Ele convertia a família em um espaço de educação moral

e esta como uma influência civilizadora. O processo de naturalização da cultura

expresso no artigo citado através de frases como o “altar em que a natureza a colocou”,

era complementada por um discurso que enaltecia as qualidades espirituais da mulher.

Estas qualidades maternais se revelavam em atitudes que, de outro modo,

poderiam ser condenadas, mas que eram típicas do amor materno. Este aspecto se

associa as solicitações de uma mãe que, mesmo consciente de que seu filho não é vítima

do mal que lhe aflige, busca auxílio para seu filho. A matéria é assinada por Nemo,

pseudônimo de Pedro Velho.

Uma pobre mulher, que aturou-me em criança, as rabugices e as concomitantes irreverências hidráulicas, veio há dias falar-me, afim de que eu fosse pedir a um dos influentes da política o seu alto patrocínio junto ao Governador, para o perdão de um filho que se achava encarcerado por haver morto um homem numa rixa encachaçada de taverna (NEMO, 04 fev. de 1897).

O rapaz era culpado; pagava por seu crime e sua mãe o sabia, mas não

questionava o fato. O que ela pedia era a sua soltura, sem nenhuma justificativa senão a

de que era “uma pobre velha e minha salvação neste mundo é vê-lo livre”. Sabia que

seu filho teria fim semelhante; assume mesmo que desde criança revelava instintos

turbulentos.

A análise do autor se volta para “a imaculada e portentosa ternura maternal, epílogo sublime de todo o drama sentimental humano”. Este conceito fundamenta todo seu discurso. Muito valem a inocência carinhosa das filhas, o amor tranqüilo e casto das esposas, o desvelo solícito das irmãs, a graça comovida das nubentes, mas que há de comparável à grandeza moral das pobres mães em cujo regaço a cabeça do filho encontra sempre o bálsamo sagrado do perdão, traga ele, embora, as mãos ensangüentadas do assassino ou a consciência desonrada do falsário (NEMO, 1897).

Refere-se este trecho à análise de uma lenda árabe, A lenda do coração materno44,

na qual um homem mata a mãe por um capricho da namorada. Esta o incita a trazer o

coração da sua mãe, ainda morno, como prova de seu amor por ela. Ele realiza o desejo

44 O título da história não é dado pelo escritor. Nós a encontramos no livro Contos e lendas orientais de Malba Tahan (2005)

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da mulher amada e ao voltar correndo para seus braços leva um tombo e se machuca. É

nesse momento da narrativa que o personagem ouve uma voz doce e preocupada.

- Estás ferido, meu filho? O veneno da erva maldita naquele instante, deixou de atuar sobre o seu cérebro. Halim caiu na triste realidade e percebeu a extensão infinita do crime ignominioso que cometera. [...] E ia o jovem cometer o suicídio, e cravar no peito a lâmina do punhal, quando ouviu, de novo, a mesma voz, presa de infinita angústia, a voz do coração: - Meu filho! Meu filho! Não me apunhales outra vez! (TAHAN, 2005, p.49)

As exclamações ao final da narrativa, evidenciando que a morte do filho

equivaleria à sua própria morte, ratificam o pensamento de Nemo no sentido de atribuir

ao cuidado materno o ápice maior dessa energia transcendental que convencionamos

chamar amor. Tanto o conto como a análise deste pelo escritor do jornal tenta

demonstrar a que extremos pode atingir o amor materno, pois mesmo diante da

ingratidão do filho esta não apenas o perdoa, como se preocupa com o mesmo desvelo

natural de mãe.

Este modo de ser mulher oitocentista encontrou em profissões que se orientavam

pelo cuidado e por virtudes feminis um respaldo social para a inserção pública digna e

socialmente aceitável. Algumas dessas mulheres encontraram nas escolas de primeiras

letras o campo para atuar como educadoras dos futuros cidadãos. O magistério estava

associado à imagem da mulher pouco graciosa, da solteirona retraída. A estas estaria a

maternidade negada e, portanto, justificada sua vocação para docência de crianças que

seriam sua razão de ser ou, ainda, a única forma de dar à luz.

Ademais, para muitas jovens o trabalho remunerado se colocava como uma exigência para sua sobrevivência, e o magistério digno e adequado. No entanto, na medida em que a maioria dos discursos da época apontava uma incompatibilidade entre trabalho e casamento, essa exigência de sobrevivência iria cobrar um preço: a renúncia ao casamento (LOURO, 1997, p. 465).

A base de argumentação que relacionava maternidade e educação aliou-se à

demanda advinda do aumento quantitativo de escolas femininas e alocou a mulher como

a mais apropriada para um melhor desempenho educacional no país. Em 1897, o

Delegado Escolar, Francisco de Albuquerque Mello, encarregado pela Diretoria Geral

de realizar visitas periódicas aos estabelecimentos de ensino no Rio Grande do Norte,

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relatou sua visita a uma escola feminina de primeiras letras. Mantida pela Intendência

de Macaíba, a escola era gerenciada pela professora Maria Emília Botelho Lins.

A casa onde funcionavam as aulas estava em ordem, atendendo aos padrões de

higiene com uma boa circulação de ar e limpeza. Ministrando aulas para vinte e nove

alunos de ambos os sexos a sala pareceu, ao Delegado Escolar, pequena e inadequada,

no entanto com aulas que atendiam aos regulamentos do ensino, comprovando a

dedicação e competência da citada professora.

Em ordem, guardadas as necessárias distinções os alunos mantinham o mais severo silêncio, em atitude de respeito exemplar: os meninos liam em voz baixa, estudando; as meninas, entregues aos trabalhos de agulhas, bordando delicadas ramagens. Não querendo, porém me deixar levar pelas aparências, aliás as mais animadoras, procedi a um ligeiro exame em alguns alunos, observando então o aproveitamento resultante da solicitude e dedicação da professora, que quanto pode, me pareceu desempenhar os seus misteres de educadora (A REPÚBLICA, 25/03/1897).

No ano anterior, em 1896, essa mesma professora já havia recebido elogios

explícitos do diretor da instrução pública Pinto de Abreu. Destacava naquele momento a

ordem e a limpeza do estabelecimento de ensino, bem como a organização dos livros de

matrícula (A REPÚBLICA, 05/08/1896).

Nesse mesmo exemplar do jornal citado está publicada a admoestação e multa a

ser paga pelo professor da escola masculina na mesma cidade, João Joaquim de Salles e

Silva, em reprimenda pela desordem e sujeira encontradas pelo Diretor de Instrução,

Pinto de Abreu.

O Doutor Diretor Geral da Instrução Pública, tendo ultimamente visitado a escola primária do sexo masculino da Cidade de Macaíba, onde encontrou falta absoluta de asseio e ordem resolve, de conformidade com o preceito do Art. 63 do Regulamento que baixou com o decreto n. 60 de 14 de fevereiro último, admoestar o respectivo professor, cidadão João Joaquim de Salles e Silva. Remeta-se cópia do presente ato do professor e publique-se pela folha oficial Diretoria 1º de agosto de 1896 (A REPÚBLICA, 04/08/1896).

Esses acontecimentos ratificavam o discurso da vocação natural da mulher para o

cuidado com as crianças. Um discurso que apontava a mulher como dotada de mais

coração e ternura a fim de contribuir para o desenvolvimento moral e intelectual dos

futuros dirigentes da nação. É perceptível uma mudança provocada pela configuração

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em que permitia às mulheres uma atuação mais efetiva no desenvolvimento deste

esforço de se fazer Nação.

Entendemos que as mudanças na educação sempre estiveram atreladas às

mudanças sociais. E se não percebemos no período em estudo uma modificação no

plano ideológico, pois a organização republicana ainda alocava a mulher no âmbito

privado, são perceptíveis as táticas por ela utilizadas na ampliação curricular oferecida

nas escolas privadas onde se incluía o ensino de língua estrangeira e, portanto, a

ampliação de suas práticas de leitura. O aumento significativo de salas de aula para

mulheres no setor privado, expresso nos anúncios encontrados, revela a contribuição

desse setor social à educação feminina natalense.

No espaço público e privado, era responsabilidade da mulher exercer uma

influência benéfica que contribuiria para a moralização da sociedade. Ela não seria

apenas a educadora das crianças, mas deveria ser um exemplo de conduta para toda a

sociedade.

A educação é o que constitui a formação moral do homem; lhe aperfeiçoa as faculdades, impele as suas ações para o bem, e molda-lhe o procedimento durante a vida, formando-lhe o caráter; a vós compete dirigir a de vossos filhos em sua primeira fase, e assim traçar-lhes a carreira na sociedade, em cujo meio serão tanto mais considerados, quanto melhor lhe tenha sido a educação (GONDIM, 1910, p.66).

Isabel Urbana de Albuquerque Gondim escreveu este livro, intitulado Reflexões às

minhas alunas, em 1874, destinando-o à educação nas escolas primárias do sexo

feminino. Entre os conselhos dessa escritora está como deve ser o comportamento da

menina para com os seus mestres, como também o papel da mãe na educação de suas

filhas, para que estas respeitassem os mais velhos e os mestres. Respeito e dignidade

são valores que devem ser adquiridos na tenra infância e passados de mãe para filha.

Estas eram características que estavam presentes tanto na educação escolar como na

educação desenvolvida para além desse espaço específico.

Para além da educação escolar ou da educação doméstica, outros processos

formativos, como as práticas de leitura, corroboraram para a organização do

pensamento e da ação dos indivíduos na configuração dada. O conteúdo cultural

disponível na sociedade natalense, na transição entre os séculos XIX-XX em Natal/RN,

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trazia em si conteúdos educacionais impregnados com o perfume da modernidade, da

república e de uma representação de mulher do seu entorno.

E esse ideal de mulher mãe-esposa e de mulher professora se fazia sentir em todas

as manifestações culturais do século XIX brasileiro, ao mesmo tempo em que

disseminavam um ideário social fundamentado numa representação do ser mulher, seja

no universo público, seja no universo privado.

Esta análise de um modelo educacional, a partir de uma representação de mulher e

de sociedade, distante um século de nossas próprias atividades como educadora foi o

resultado de uma reflexão que iniciamos há oito anos, quando das nossas primeiras

inquietações sobre gênero e história da educação na nossa dissertação de mestrado

(PINHEIRO, 2003): Quem fabricou o ser professora? Quais discursos forjaram esta

educadora que despontava para o século XX, capitaneando a profissão docente no

Brasil?

Ao término daquele trabalho de dissertação refleti sobre o universo feminino.

Este universo era tão entranhado em mim que percebi, nesse instante de reflexão,

marcas de vidas antepassadas que habitavam meu comportamento. Esses devaneios nos

conduziram por alamedas e casarias distantes. E, nesses passeios, buscamos nos perder

e, no profundo da alma, nos encontrar: mãe e esposa, mulher e professora.

Estas inquietações nos encaminharam para mais uma etapa dessa construção de

sentidos. E sobre essas inquietações pairavam algumas questões envolvendo educação,

história e práticas culturais. Buscamos aquietar-nos através da construção desta tese, da

busca pela mulher por trás da professora, dos discursos que forjaram esta mulher

professora, das representações femininas no momento de expansão de ensino e

feminização do magistério no Rio Grande do Norte.

E ao buscar nos documentos estas marcas, estas imagens ou esta mulher

professora encontramos uma representação do feminino que, naquela configuração, se

organizava em torno do cuidado materno.

A profissão docente feminina aparece agregada a estes valores maternais. É justo

afirmar que estas representações – mãe-esposa e professora – são as duas metades de

um mesmo projeto; é o redimensionamento que o século XIX e os modelos

republicanos de sociedade fazem do modelo tripartido de Rousseau – família, Estado e

sociedade – se organizando de um modelo educacional que dimensione o público e o

privado a partir de uma única figura: a mulher.

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Esta configuração se torna importante na medida em que consideramos a mãe-

esposa, enquanto expressão do modelo de mulher voltada para o fórum privado, e

a professora, voltada para fórum público, como as duas faces de uma sociedade

que se queria civilizada pela educação em todas as dimensões culturais na

transição do século XIX para o século XX.

Encontramos, em tese, a mãe-educadora e a professora-mãe. Buscamos a mulher,

mas encontramos, como em um caleidoscópio, outra faceta dela: a mãe. Quantas facetas

ainda poderemos encontrar? Surgem, outra vez, novas inquietações nesta busca

incessante para compreender este ser educadora, este ser mulher.

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Palavras finais

É, portanto, em favor de todas as mulheres brasileiras que escrevemos; é a sua geral prosperidade o alvo de nossos anelos, quando os elementos dessa prosperidade se acham ainda tão confusamente marulhados no labirinto de inveterados costumes e arriscadas inovações (FLORESTA, 1989, p.130).

Estas palavras finais não se propõem a serem conclusões de pesquisa. Estas,

acreditamos, já fizemos feito em capítulo anterior. Propõem-se muito mais a aturem

como um epílogo de uma história de pesquisa em que objeto de estudo e pesquisadora

se relacionam na própria existência de Ser. São as conclusões de uma história de

pesquisa que começa muito antes de termos consciência de a fazermos.

O desejo de compreender as trajetórias de outros sujeitos surge da relação íntima estreita do historiador com seu objeto de estudo. Uma intimidade construída na própria trajetória pessoal do pesquisador. A imagem de uma constante e benéfica solidão é a marca da minha trajetória pessoal nos limites desta existência. Essa existência solitária e introspectiva conduziu-me ao universo literário desde o aprendizado das primeiras letras. As histórias contadas foram um estímulo para decodificar o universo letrado que a mim se apresentava. Depois de dominado esse universo, os heróis e heroínas que povoavam os romances, meu gênero preferido, passaram a me indicar maneiras de falar, vestir, portar-me em diversas situações. Ao término da leitura passava a rememorá-lo mentalmente reescrevendo falas, reelaborando cenários, em uma brincadeira ociosa de “o-que-eu-faria-se-fosse-eu”. Em situações cotidianas reproduzia algumas ações dos personagens como se esse portal literário fosse meu preceptor, meu formador de hábitos, de atitudes, meu educador. (PINHEIRO, 2003, p.12).

A escritora Nísia Floresta, que abre estas palavras finais, nos faz pensar a quem se

destinam essas histórias, ou ainda, a História da Educação das mulheres quando, no

livro Opúsculo Humanitário, justifica a sua escrita. Quando resolvemos perscrutar as

ruas, as escolas, os discursos dos jornais em busca da professora, não tínhamos muita

certeza do que iríamos encontrar. Buscávamos, para além da professora, a mulher

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natalense que existia nesta professora. Como demonstramos no capítulo Marcas de um

tempo, imagens de mulheres em Natal, elas se movimentavam pela cidade sob vários

modos de fazer, diversos modos de ser e uma diversidade de representações. Mas talvez,

o fato de estarmos sintonizadas com algumas dessas representações de mulheres pelos

nossos próprios modos de fazer e ser na qualidade de mãe, esposa e professora, nos

permitiu uma relação com o objeto “que aquele que não faz parte do campo não possui”

(BOURDIEU, 1990, p.110).

Foi precisamente por isso que dentre todas as representações percebidas no curso

da investigação duas figuras prevaleciam – e não apenas quando apareciam em suas

práticas cotidianas – mas nos discursos, nas instituições, na cidade. A mãe-esposa e a

professora surgiram como as representações femininas mais brilhantes nessa alameda

povoada de mulheres.

Ordem e progresso. Civilização e modernidade. Educação doméstica e educação

escolar. Mãe-esposa e professora. Valores que se relacionam numa educação moral e

cívica em torno do cristianismo católico e do republicanismo brasileiro. Com “o Brasil

farto de governos paternais”, a figura masculina cedia lugar à figura feminina da virgem

idealizada e mítica da República de Delacroix.

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La liberte guidant le peuple 45 Fonte: Site do Musée Du Louvre

Para além desta imagem, que mitifica o feminino no século XIX, a representação

de professora se confundia com a de mãe-esposa na medida em que ambas participavam

como educadoras dos futuros cidadãos da República nascente. O simbolismo feminino

da República sugeriu talvez uma nuança para o trabalho educativo a partir do final do

século XIX. Uma reestruturação enfocando o cuidado materno com elemento basilar

para um trabalho que se profissionalizava em Natal, na perspectiva do público associado

à Escola Normal e à profissionalização da professora e na perspectiva do privado,

relacionado à Escola Doméstica e à institucionalização da dona-de-casa. Para além de

um processo de feminização do magistério podemos pensar sobre o trabalho feminino e

a feminização da própria sociedade como um prenúncio de um novo século que se

anuncia. Se o magistério passa por um processo de feminização, a ampliação e expansão

45 A liberdade guiando o povo - Sítio do Museu do Louvre.

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do sistema educacional já nasce com essas virtudes feminis, nas palavras de Pedro

Américo em 1891.

Ultrapassando a dimensão educacional, a própria sociedade se tendia feminina

através da reorganização de suas principais instituições educacionais – família e escola

– no fim do século XIX brasileiro. Ao mesmo tempo em que se construía República e

deixava para trás os modelos sociais que estabeleceram a mentalidade brasileira dos 400

anos até aqui. Vê-se, então, o fim de uma era: a era dos ignorantes e analfabetos. Os

próximos 100 anos sugerem uma transição: reorganizações metodológicas para modelos

educacionais explorados desde a Paidéia. A transição para outros tempos ainda se

existencia neste ano de 2009. A busca por uma nova mentalidade educacional distante

de tudo que conhecemos ou vivemos nos permite erigir como possibilidade um real

encontro das diferenças de gênero e classe social num futuro próximo.

Encontramos no material impresso pesquisado duas tendências que coexistiam.

Uma que alimentava a tradição da mãe-esposa, voltada aos cuidados domésticos

assumindo naturalmente suas funções de mulher, e a outra, mais progressista, voltada à

educação e à instrução dessa mesma mulher para o mundo moderno onde ela, inclusive,

tiraria seu sustento de um trabalho digno e remunerado, como o de professora. Em

quaisquer das duas pontas encontramos um elemento fundante para este novo século e

que as une: o cuidado como essência dessa educação. Por isso aqui, chamamos este

“cuidado” de cuidado materno, porque está ligado à ideia de mãe e se organizava tanto

em torno da mãe biológica e como da mãe social ou intelectual.

A mãe-esposa que encontramos era a mãe republicana de Rousseau, vestida com o

manto de Maria, respaldada num modelo que a indicava como a educadora dos futuros

republicanos; a professora tende a ser a versão pública dela. No florescimento da

República em Natal, da expansão do ensino no Rio Grande do Norte e das mudanças

sociais no mundo ocidental depois da Conflagração Européia em 1914, pudemos

finalmente vislumbrá-la: mater, educadora, republicana. Esta é a mulher por trás da

professora que buscávamos. Esta foi à representação feminina em Natal que

encontramos na transição do século XIX para o XX.

O que nós buscávamos? Às vezes eu acho que buscava a mim mesma; o que nos

fazia ser assim e não de outro modo. Somos as mulheres que nos antecederam e as

mulheres que antecederam as mulheres que nos antecederam. Uma afirmação óbvia,

mas, pelo que percebemos pouco percebida quando acionamos o nosso existenciar

cotidiano.

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Esse caminho da História é, no mínimo, intrigante... Quando se começa a

desenrolar o novelo, ele é bem maior do que lhe pareceu a princípio. O que nós

queríamos era provar uma tese: uma representação de professora, baseada em uma

representação feminina e que se ancorava em um modelo civilizatório europeu. E mais:

esta representação como fundamento da própria profissão docente, ribombando em

nossos tímpanos históricos através das brumas do tempo. Uma representação feminina

que, por ser configurada, não fazia nenhum sentido ainda ser escutada, mesmo que fosse

pela audição da sensatez.

Essa maneira de portar-se, de ensinar, de falar, de se vestir, de se conduzir

socialmente sempre nos pareceu ter sido modelado, organizado e pensado em meados

do século XIX. Depois disso, o que se tinha promovido eram reformas, em cima de uma

base, em função das demandas sociais criadas para a mulher. Buscávamos essa base.

Queríamos conhecer essa base, saber seus fundamentos ou apenas descobrir que ela não

existia. Nós a queríamos, de um modo ou de outro. Simples assim. Mas as verdades não

são tão simples assim. Como diz Elias (2000), “nada é tão certo quando se fala de

figurações” E então fomos repensar. E ao repensarmos nos demos conta de que

falávamos de uma cidade que não vimos, de um país que não conhecíamos, de pessoas

que se apresentavam como sombras de uma história que se foi. E, também, nos demos

conta de que só teríamos um rasgo de verdade e com esse rasgo teríamos que viver. De

um modo ou de outro, este é o nosso rasgo de verdade.

Mas, afinal, não encontramos uma representação feminina, mas várias.

Encontramos mulheres tentando dar sentido a existência, como nós, enquanto

vivenciavam novas experiências sociais. Mas encontramos, principalmente, mulheres

que educavam outras mulheres através dos mais diversos meios; mulheres que eram

educadas por jornais, igrejas, escolas, romances que traduziam um modelo de ser e de

viver e que respondiam as questões culturais do período. Essas mulheres povoaram

meus dias e minhas noites nos últimos três anos. E na minha busca por nosso ser

educadora, nos vimos novamente, como há seis anos, com “marcas de vidas

antepassadas” procurando na História da Educação norte-rio-grandense as marcas que

nos digam quem é essa personagem feminina tão presente na educação de ontem e de

hoje e que convencionamos chamar professora.

As idas e vindas com o texto, as virtualidades que movimentam nossos dedos

agilmente e nos fazem pagar com a dor o preço da comodidade. Digitando uma hora e

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descansando outra com o computador pousado na mesa da cozinha, na cama ou na

cadeira próxima a televisão, companheira de descanso dos dedos, da mente e da alma.

Este foi um trabalho escrito em muitos lugares e com diversos sons e tons nos

lembrando quem somos e o que fazemos, com aquela vaga sensação de “será que é isso

mesmo?”. Então Artur chega e diz: “hora do lanche”. E nem é hora do descanso, nem

hora de texto, mas hora de Artur. Lembro-me de Woolf (1985) “Ah! Um teto todo

meu!”. Mas ele sorri e tudo se desvanece. Colocá-lo-ei de volta e o teto passará a ser

nosso outra vez. E isso me chama a atenção para o texto que ora escrevo, recorda o

tempo que o tempo não esquece e me leva de volta às mulheres de fim de século. O que

somos, o que fomos, os caminhos que seguimos, as escolhas que fazemos, tudo reflete

na pesquisa historiográfica que ora fazemos. É o lugar sócio-econômico, político, plural,

ocupado pelo historiador que determina sua investigação (CERTEAU, 2002 p.67).

Venho buscado um caminho há muito tempo, hoje sei. Sei também que já

acreditei, como agora acredito, que o caminho trilhado era o certo. Hoje creio que todos

os caminhos trilhados e o conhecimento agregado me prepararam para este momento.

As coisas têm se apresentado de forma estranha... E quero entender este meu ser-estar

no mundo. Não acredito na infalibilidade humana. E sei, por experiência própria, que

tudo é efêmero. Por isso quero existenciar este momento. Por nove anos esta literatura

historiográfica da educação ocupou minha existência.

Nesse meio tempo mergulhei nas profundezas de mim e fui buscar-me mulher

professora nos confins dos oitocentos; fui descobrir-me mãe, esposa e religiosa no

extremo oriente do mundo. Percebi-me com elas e parte delas em um mundo masculino

que não me olhava de frente. Nunca o Estado de Direito me foi tão caro como quando

minhas aptidões intelectuais de nada valiam ante a tradição de um poder político e

econômico masculino: os homens simplesmente não me atendiam. Fosse num

restaurante, num posto da alfândega, numa praça de táxi. Mesmo que eu falasse os olhos

deles se voltavam ao homem ao meu lado, ao meu marido.

Vi mulheres de lipa no Timor-Leste; com mordaças douradas na Tailândia; com

sarongues coloridos em ruidosos grupos exclusivamente femininos; com altivas

sapatilhas em Bali, envoltas em véu finíssimo que ornavam as tardes orientais. E foi em

Bali, através de um Templo e da visão de um pôr-do-sol, que vislumbrei meu futuro em

minha pequena aldeia global: Natal. O mundo ficou pequeno e as causas humanitárias

não me pareceram tão humanas assim. A ONU não é tão unida, afinal. Mas ninguém

precisa aprender a ser só. Então, dei existência aos meus demônios internos e com isso

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ativei o desconhecido de mim mesma. Busquei meus pares, minhas existências, meu

coletivo profissional.

A professora que buscávamos éramos nós mesmas; a mãe-esposa que

encontramos era apenas a versão doméstica desta. Essas representações eram parte de

um aprendizado, hoje sabemos, para algo que se organizava. Como acreditamos nos

dizeres de Saviani (2003, p.23), só poderíamos nos tornar uma educadora melhor na

medida em que nos enraizássemos na nossa própria história de formação docente; não

apenas individual, mas coletiva e histórica. E foi este enraizamento que buscamos aqui

consolidar.

“Finish”. E um sorriso brinca em meu rosto enquanto penso nessa palavra. Fim,

em bom português. Conheci uma freira australiana, Madre Michelle, há quatro anos

quando estava morando no Timor Leste. Viajamos juntas por mais de doze horas

montanha acima com meu marido e meu filho que, na época, tinha exatos três anos.

Meu inglês de mercado, o inexistente de Walter, meu marido, e a vontade de Artur, meu

filho, não foram suficientes para estabelecer uma comunicação mais ampla. Mas

acabamos ficando amigos. Ela inventou milhares de brincadeiras e jogos sonoros com

Artur: ela falava, ele repetia. Estávamos indo a um distrito chamado Suai a

aproximadamente 110 km de Dili, onde morávamos. Passamos por muitos distritos e

subdistritos. E cada um vencido, ela citava o nome e gritava animada “Bobonaro,

finish”. Em pouco tempo ela e Artur ficaram nesse jogo: ela gritava o nome da cidade e

Artur gritava “finish”. Durante muitos meses ele guardou aquele vocábulo que servia

para tudo que tinha terminado definitivamente, como o prato do almoço ou a arrumação

da caixa de brinquedo.

Curioso pensar nisso agora. Não penso que seja “finish” para qualquer daquelas

cidades. Vou voltar lá. E todos os dias o prato de Artur está cheio e a caixa de

brinquedos desarrumada. Então, pedindo licença a Madre Michelle, devo acrescentar ao

“finish” dela o meu “ for the moment” E até o próximo desdobramento desta pesquisa,

deixo assim: terminado... para o momento.

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