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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE LETRAS CENTRO DE ESTUDOS GERAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS GILVAN PROCÓPIO RIBEIRO LINGUAGENS E DIVERSIDADES (uma leitura de Jorge Amado e Boaventura Cardoso) Tese submetida à banca de Doutorado, na área de concentração de Estudos de Literatura Comparada, linha de pesquisa Literatura e vida cultural. Orientadora: Profª. Drª. LAURA CAVALCANTE PADILHA Niterói 2007

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE LETRAS

CENTRO DE ESTUDOS GERAIS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

GILVAN PROCÓPIO RIBEIRO

LINGUAGENS E DIVERSIDADES

(uma leitura de Jorge Amado e Boaventura Cardoso)

Tese submetida à banca de Doutorado, na

área de concentração de Estudos de

Literatura Comparada, linha de pesquisa

Literatura e vida cultural.

Orientadora: Profª. Drª. LAURA CAVALCANTE PADILHA

Niterói

2007

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Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá

R484 Ribeiro, Gilvan Procópio. Linguagens e diversidades (uma leitura de Jorge Amado e Boaventura Cardoso) / Gilvan Procópio Ribeiro. – 2007.

157 f. Orientador: Laura Cavalcante Padilha.

Tese (Doutorado) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de Letras, 2007.

Bibliografia: f. 152-157. 1. Literatura comparada - Brasileira e angolana. 2. Amado, Jorge, 1912-2001 - Crítica e interpretação. 3. Cardoso, Boaventura, 1944- Crítica e interpretação. 4. Ideologia. 5. Religiosidade. I. Padilha, Laura Cavalcante. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Letras. III. Título.

CDD 800

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GILVAN PROCÓPIO RIBEIRO

LINGUAGENS E DIVERSIDADES

(uma leitura de Jorge Amado e Boaventura Cardoso)

Tese submetida à banca de Doutorado, na área de concentração de Literatura Comparada na

linha de pesquisa Literatura e vida cultural.

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________________________

Profª. Drª. Laura Cavalcante Padilha – Orientadora Universidade Federal Fluminense – UFF

______________________________________________________________

Prof. Dr. Eduardo Coutinho Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ

______________________________________________________________

Profª. Drª. Rita de Cássia Natal Chaves Universidade de São Paulo - USP

______________________________________________________________

Profª. Drª. Terezinha Maria Scher Pereira Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF

______________________________________________________________

Prof. Dr. Sílvio Renato Jorge Universidade Federal Fluminense - UFF

Suplentes:

_______________________________________________________________ Profª. Drª Carmen Lúcia Tindó Ribeiro Secco Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ

______________________________________________________________

Profª. Drª. Matildes Demétrio dos Santos Universidade Federal Fluminense - UFF

Data da defesa: 24 de março de 2008

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Agradecimentos

À Professora Laura Cavalcante Padilha por sua paciência e sapiência, na orientação;

por sua amizade e carinho, em todos os momentos. Aos membros da banca por terem aceito o convite para participar da avaliação,

deixando-me honrado com esta aceitação. A meus colegas do Departamento de Letras da UFJF, pelo apoio e interesse

permanentes. À Professora Neiva, Chefe de Departamento e amiga, pela revisão e pela sugestão da

epígrafe. À Professora Denise, amiga de todas as horas, sem a ajuda de quem eu não teria

conseguido formatar a tese. À Juliana, presença amiga constante e solidária, parceira indispensável na formatação da tese.

A meus alunos da graduação e da especialização, por terem suportado bravamente meus solilóquios e minhas divagações.

E, finalmente, mas não de menos importância, ao Leandro, meu filho, bravo ouvinte palpiteiro que, de muitas formas, me impeliu a continuar.

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RESUMO

Este trabalho pretende desenvolver uma leitura comparativa entre o escritor

brasileiro Jorge Amado e o escritor angolano Boaventura Cardoso, levando em

conta o legado colonial e sua apropriação. Para tanto, parte de uma análise das

variações de linguagem presentes em dois aspectos da obra dos dois autores: a

ideologia e a religiosidade. Pretende ainda mostrar de que modo essas variações

são capazes de estabelecer molduras identitárias, no sentido da criação de um

discurso de fundação.

PALAVRAS-CHAVE:

Pós-colonialismo; identidade; ideologia; linguagem; religiosidade.

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ABSTRACT

This work intends to develop a comparative reading between the Brazilian

writer Jorge Amado and the Angolan writer Boaventura Cardoso, by considering the

colonial legacy and its apropriation. For that its departing point is an anlysis of

language variations that appears in two remarkable aspects in the novels of both

writers: ideology and religiosity, and in what ways yhese variations are able to

establish identity patterns in as attempt to criate a foundational discourse. .

KEY WORDS:

Post-colonialism; Identity; Ideology; Language; Religiosity.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO..................................................................................................................................................................... 09

1. IDENTIDADE: IDEOLOGIA, LINGUAGEM, RELIGIOSID ADE ................................................................ 15

1.1. Colonialismo e pós-colonialismo....................................................................................................................... 15 1.2. Ideologia................................................................................................................................................................. 21 1.3. Linguagem.............................................................................................................................................................. 25 1.4. Religiosidade......................................................................................................................................................... 29

2. JORGE AMADO: O POVO COMO LEITMOTIV .............................................................................................. 35

2.1. JUBIABÁ: a força da ancestralidade................................................................................................................ 39 2.2. SEARA VERMELHA: OS FILHOS DO LATIFÚNDIO ................................................................................. 56 2.3. TENDA DOS MILAGRES: ARCANJOS E IABAS NAS LADEIRAS DA BAHIA. ...................................... 74

3. BOAVENTURA CARDOSO: A VOZ E A FALA DOS ELEMENTOS .......................................................... 93

3.1. O SIGNO DO FOGO: As pulsões do fogo.....................................................................................................105 3.2. MAIO, MÊS DE MARIA: A cabra, os cães, as crenças. ..............................................................................118 3.3. MÃE, MATERNO MAR: As amnióticas águas seminais .............................................................................132

4. JORGE AMADO E BOAVENTURA CARDOSO: AUTORES DE TEXTOS DE FUNDAÇÃO? .........202

CONCLUSÃO......................................................................................................................................................................210

BIBLIOGRAFIA.................................................................................................................................................................213

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Iam vero principum filios liberalibus artibus

erudire, et ingenia Britannorum studiis Gallorum

anteferre, ut qui modo linguam Romanam

abnuebant, eloquentiam concupiscerent. Inde

etiam habitus nostri honor et frequens toga;

paulatimque discessum ad delenimenta vitiorum,

porticus et balinea et conviviorum elegantiam.

Idque apud imperitos humanitas vocabatur, cum

pars servitutis esset.

Tácito, Agricola, 21

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Introdução

As questões relativas à identidade têm, desde os anos 60 do século XX,

ocupado um espaço muito grande dentro dos eixos teóricos de discussão

predominantes. Os deslocamentos de foco, que permitiram o descentramento de

múltiplas perspectivas hegemônicas, propiciaram a emergência de vozes e miradas

até então relegadas a um (desprezível?) segundo plano. Discursos de minorias de

todos os tipos ressoam nas mesas de debates. Gêneros, etnias, crenças, grupos

culturais, tribos, guetos, assumem um lugar à luz dos refletores.1

Estas discussões estão estreitamente associadas a movimentos políticos2

acentuados, na segunda metade do século XX. Quer se trate de lutas anti-coloniais,

de movimentos de migração (diásporas, no sentido de Hall), de lutas por afirmação

de direitos civis ou humanos, os movimentos afirmam certos traços identitários

indispensáveis, quase sempre, para marcar o sentimento de pertencimento a algum

lugar, a alguma crença, a algum grupo. Evidentemente, este sentimento de

pertencimento que estabelece as linhas de força e os limites de cada grupo, de cada

um, vem sempre atravessado pela percepção do outro. Ou seja, a marca identitária

1Interessante a observação de Stuart Hall sobre a entrada abrupta do feminismo nos estudos culturais. Diz ele: “Sabe-se que aconteceu, mas não se sabe quando nem onde se deu o primeiro arrombamento do feminismo. Uso a metáfora deliberadamente; chegou como um ladrão à noite, invadiu; interrompeu, fez um barulho inconveniente, aproveitou o momento, cagou na mesa dos estudos culturais.” HALL, 2003, p. 209 2Considerando aqui principalmente o humano como político, embora seja mais do que isso.

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tem sempre, também, um viés negativo. Não se trata apenas do que eu sou, mas

também – muitas vezes principalmente – do que eu não sou.

Estes problemas estão desenvolvidos, de forma mais pormenorizada, no

capítulo Identidade: ideologia, linguagem e religiosidade. Por ora, interessa

estabelecer estas linhas gerais para podermos esboçar os objetivos e os limites

desse estudo.

No capítulo mencionado, a identidade será trabalhada através de três

grandes linhas de força: ideologia, linguagem e religiosidade. Em um certo sentido,

se tomarmos ideologia na acepção em que a trabalha Bakhtin (Voloshinov)3, trata-

se, basicamente, de um problema de linguagem. Constata que

[...] a palavra não é somente o signo mais puro, mais indicativo; é também um signo neutro. Cada um dos demais sistemas de signos é específico a algum campo particular da criação ideológica. Cada domínio possui seu próprio material ideológico e formula signos e símbolos que lhe são específicos e que não são aplicáveis em outros domínios. O signo, então, é criado por uma função ideológica precisa e permanece inseparável dela. A palavra, ao contrário, é neutra em relação a qualquer função ideológica específica. Pode preencher qualquer espécie de função ideológica: estática, científica, moral, religiosa.

Assim também a religião, se entendida como narração performática da

relação do homem com o desconhecido/reconhecido. Veja-se o seguinte trecho do

livro de Benedict Anderson.

A extraordinária sobrevivência, por milhares de anos, do Budismo, da Cristandade ou do Islam, em dúzias de diferentes formações sociais, atesta a sua resposta imaginativa à sufocante angústia do sofrimento humano – doença, mutilação, dor, idade e morte. Por que eu nasci cego? Por que o meu melhor amigo está paralítico? Por que minha filha é retardada? As religiões tentam explicar. A grande fraqueza de todos os estilos de pensamento evolucionistas/progressistas, não excluindo o marxismo, é que tais questões são respondidas com um silêncio impaciente. Ao mesmo tempo, de diferentes maneiras, o pensamento religioso também responde a obscuras

3 BAKHTIN; Mikhail, 1979, p.22-23

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intimações de imortalidade, geralmente pela transformação da fatalidade em continuidade ( karma, pecado original, etc.) Desta forma, conecta-se com as ligações entre o morto e o ainda não nascido, o mistério da re-generação. Quem experimenta a concepção e nascimento de seus filhos sem apreender difusamente conexão, fortuidade e fatalidade combinadas, em uma linguagem de “continuidade”.4

Desta forma, os três eixos podem convergir para um só, o que, longe de

simplificar o problema, como veremos, apenas o torna mais complexo. A linguagem

que os articula é, ao mesmo tempo, única e diversificada. Pode não ser possível

captar toda esta diversidade, o que pode ser motivo para outro(s) trabalho(s).

Não trataremos destas questões de forma predominantemente teórica. Antes

procuraremos adequar a teoria ao exame concreto e específico de obras de Jorge

Amado e Boaventura Cardoso, aproximando-as ou afastando-as em função do modo

como os eixos mencionados se apresentam nos textos, isto é, mostrando como, em

contextos diferenciados, ideologia e religiosidade se manifestam como linguagem –

linguagens – para modelar uma identidade na diversidade de Brasil e de Angola.

Procuramos, na enorme produção de Jorge Amado, textos que de alguma

forma pudessem ser associados ao universo literário de Boaventura Cardoso,

considerando que, até o momento, sua produção romanesca é ainda muito pequena,

se comparado com Jorge Amado.

Por que associar comparativamente Jorge Amado e Boaventura Cardoso?

Cada um deles está ligado a uma realidade específica e não parece haver muito em

comum entre os dois autores. No entanto, há em ambos um poderoso intento de

captar a ebulição de uma possibilidade revolucionária, de mostrar a efervescência

de pensamento e ações de pessoas que vêem esperança na potencialidade da

4The extraordinary survival over thousands of years of Buddhism, Christianity or Islam in dozens of different social formations attests to their imaginative response to the overwhelming burden of human sufferng – disease, mutilation, grief, age, and death. Why was I born blind? Why is my best friend paralysed? Why is my daughter retarded? The religions attempt to explain. The gerat weakness of all evolutionary/ progressive styles of thought, not excluding Marxism, is that such questions are answered with impatient silence. At the same time, in different ways, religious thought also responds to obscure intimations of immortality, generally by transforming fatality into continuity ( karma, original sin, etc.) In this way, it concerns itself with the links between the dead and the yet unborn, the mistery of re-generation. Who experiences their child's conception and birth without dimly apprehending a combined connectedness, fortuity, and fatality in a language of 'continuity'? ANDERSON, Benedict, 2003., p. 10-11

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mudança radical de um mundo injusto e perverso. Se as marcas da revolução e da

guerra estão figuradas na obra de Boaventura Cardoso como percepção da

realidade imediata, tensa e sofrida, sua presença na obra de Jorge Amado não é

menos real, como figuração, se não de acontecimentos factuais – e há muito deles

também --, pelo menos como desejo concreto de muitos corações e mentes.

De Jorge Amado, tomaremos como corpus, Jubiabá(1935), Seara vermelha

(1946) e Tenda dos milagres(1969); de Boaventura Cardoso, os três romances que

publicou até agora: O signo do fogo( 1992 ), Maio, mês de Maria (1997) e Mãe,

materno mar (2001). Ficarão claros, ao longo do trabalho, os critérios que levaram

à escolha desses três títulos de Jorge Amado. O elemento mais significativamente

comum em ambos é a marca de uma religiosidade híbrida, mostrada através de

linguagens e rituais vivos na prática cotidiana das populações figuradas nos

romances.

Tentaremos mostrar que, tanto em Jorge Amado quanto em Boaventura

Cardoso, existe um movimento interno das obras – fortemente articulado com uma

dada percepção do mundo – que permite afirmá-las como discursos de fundação.

Trata-se de um movimento extremamente complexo – contraditório e complementar;

dialético, se quiserem – que, através da afirmação de traços identitários leva à idéia

de constituição de um coletivo que, sem dissolver a diferença, narra a semelhança.

É evidente que se coloca aqui, também, um outro dado muito complexo que

teremos de desenvolver, na medida em que se fala de afirmar a igualdade na

diferença: trata-se da questão da universalidade. Se já é verdadeiro truísmo dizer

que a universalidade concreta só é possível através do tratamento de

particularidades também concretas, estamos apenas no limiar do problema. Trata-se

de mostrar como a fundação narrativa de um povo, de uma coletividade5, com

marcas de identidade próprias, pode se revestir, ao mesmo tempo, de um caráter

não excludente. Ou seja, se é possível afirmar uma identidade (que inclua

diferenças) em relação a uma outra identidade (também prenhe de diferenças), é

também possível afirmar uma identidade universal que consiga conter todas as

diferenças entre identidades particulares e as diferenças que cada uma delas já

5Vamos evitar trabalhar a distinção entre país e nação, que é uma questão a ser abordada em texto com finalidade diferente.

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contém em si?6

Não se pretende, em momento algum desse trabalho, dar alguma resposta

definitiva a esta questão. Apenas arranharemos alguns aspectos específicos nas – e

a partir de – obras estudadas.

Esta busca de definição identitária por um indivíduo ou por uma comunidade

pode caracterizar duas funções da literatura como mostra Zilá Bernd em diálogo com

o poeta e crítico antilhano, Edouard Glissant, estudando a formação das literaturas

nacionais:

Há a função de dessacralização, função de desmontagem das engrenagens de um sistema dado, de pôr a nu os mecanismos escondidos, de desmistificar. Há também uma função de sacralização, de união da comunidade em torno de seus mitos, de suas crenças, de seu imaginário ou de sua ideologia. Uma literatura que se atribui a missão de articular o projeto nacional, de fazer emergir os mitos fundadores de uma comunidade e de recuperar sua memória coletiva, passa a exercer somente a função sacralizante, unificadora, tendendo ao MESMO, ao monologismo, ou seja, à construção de uma identidade do tipo etnocêntrico, que circunscreve a realidade a um único quadro de referências.7

Ora, como iremos observar, há um movimento oscilante entre as duas

posições, tanto na obra de Jorge Amado quanto na de Boaventura Cardoso,

embora, neste último autor, o romance Mãe materno mar contenha uma carga de

ironia bem humorada, explicitada no tratamento dado a diversos grupos religiosos e

às relações entre eles, que tende à primeira posição. Cada um dos grupos se

pretende, a seu modo, dono de uma única verdade que é, no entanto, minada por

crenças animistas tradicionais Mas talvez se possa dizer o mesmo, em outra

direção, de Tenda dos milagres, de Jorge Amado, tendo em vista que Archanjo,

visto pelos valores dominantes ( de professores, da polícia ) como um indivíduo

semi-marginal, meio desclassificado e negro, é capaz de deter poderes que os

6É claro que ao se tratar da universalidade, lida-se diretamente com o problema de valores hierarquicamente estabelecidos. Seria todavia, alongar demais o assunto, numa direção que não nos interessa agora, mesmo porque tem sido objeto de muitas e infindáveis discussões ao longo das últimas décadas. 7BERND, Zilá 1992, p. 17 e 18.

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poderosos sequer suspeitam. A ironia passa aqui muito pela revalorização de

Archanjo a partir de um scholar norte-americano.

Como se vê, o que se pretende é buscar nos dois autores – insistimos,

pesando sempre a diferença – algum elemento comum que passe pela apropriação

de um sistema lingüístico, o português, e sua adequação à expressão de uma dada

necessidade identitária. Usamos necessidade de propósito, na medida em que

tentaremos mostrar como – em situações bastante diferenciadas e, no entanto,

semelhantes – os dois autores articulam uma idéia de identidade que permite

explicitar – ou construir – opções políticas. De certa forma – talvez a mais importante

-- o próprio relato, a própria construção narrativa, já constitua esta opção necessária.

Por fim, é importante considerar que não julgamos, ingenuamente que o

comparatismo seja uma chave mágica que abriria facilmente todas as portas.

Mesmo fora dos limites desse trabalho, é fundamental afirmar que a literatura

comparada tem muitos percalços e pedras no caminho, e os problemas estão longe

de ser superados. De qualquer modo é possível iluminar algumas sendas dos

inumeráveis caminhos dessa linha de estudos.8

8 Ver, por exemplo, sobre os problemas da literatura comparada, BRUNEL, P., PICHOIS, CL. e ROUSSEAU, A. M., 1990 e NITRINI, Sandra, 1997.

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1. IDENTIDADE: Ideologia, linguagem, religiosidade

1.1. Colonialismo e pós-colonialismo

As últimas décadas têm assistido a um debate crescente envolvendo a

questão das representações identitárias. Os estudos culturais, a partir do final da

década de 1950, têm centrado grande parte de suas preocupações e reflexões

sobre este problema, tendo em vista as questões que emergem dos/nos países pós-

colonizados. O eurocentrismo, que oferecera durante longo tempo a base para

pensar o mundo, vê-se deslocado, relativizado, colocado em contraponto a múltiplas

outras visões e outras vozes que exigem se tornarem visíveis e ouvidas. Os

trabalhos de Jacques Derrida contribuíram, com certeza, para dar alguma

sustentação teórica a estas discussões, na medida em que a desconstrução permite

uma atenção maior ao que era até então tido como periférico, menos importante.

Desta forma é possível centrar o foco de leitura em questões menos centrais, do

ponto de vista tradicional.

Por outro lado, sendo a Europa o núcleo de onde se irradiou o ímpeto

colonizador, os países colonizados se vêem diante de uma duplicidade muito

grande: seus valores culturais tradicionais, e até sua língua, são colocados num

segundo plano, vistos como bárbaros, marcas do atraso e da ausência de

“civilização”. Edward Said comenta assim este contato

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Todo esse processo didático não é difícil nem de entender nem de explicar. Temos de lembrar novamente que todas as culturas impõem correções à realidade crua, transformando-a, de objetos flutuantes, em unidades de conhecimento. Que essa correção aconteça não é o problema. É perfeitamente natural, para a mente humana, resistir ao assalto da estranheza que não tenha sido tratada; portanto, as culturas sempre estiveram inclinadas a impor transformações completas a outras culturas, recebendo-as não como são, mas, para benefício do que recebe, como deveriam ser.9

Desta forma, o esforço colonizador da Europa vê as culturas dos povos

colonizados não apenas como diferente, como outra, em relação à sua, mas as vê

marcadas com uma diferença negativa, como algo que deve ser colocado num plano

secundário e, se possível, suprimido. Assim, gradativamente, os valores europeus

se exibem com um traço de universalidade que pretende fazer deles os valores,

únicos aceitáveis e dignos de nota.

Como conseqüência, o colonizado tende a assumir uma posição de

subalternidade, colocando os valores nativos como inferiores e buscando na

identidade com o opressor o que parece ser sua única opção. Do ponto de vista

lingüístico, isso traz uma série de problemas, uma vez que, ao adotar a língua do

colonizador como sua língua, o colonizado tende a trabalhar toda a cultura nos

moldes dessa língua. A consciência gradativa de que existem formas de resistência,

inclusive lingüística, leva a uma posição que Ricardo Piglia chama de mirada

estrábica10, a possibilidade que o colonizado tem de ver o europeu como o mesmo e

o outro, na medida em que tem em si, como elementos não raro conflitantes, o

europeu e ele mesmo. O europeu, é, simultaneamente, paradigma e negação. E não

está situado à distância, posto que o colonizado o contém em si mesmo. Isso gera

algumas situações interessantes. Observe-se, por exemplo, um José de Alencar, no

momento em que se buscam elementos para marcar um ideal de brasilidade. No

prefácio, com o título de “Bênção paterna”, que escreve para o romance Sonhos

d’ouro, Alencar pergunta se “o povo que chupa o caju, a manga,o cambucá e a

9 SAID, 1990, p. 77. 10 Apud SOUZA, 1999, p.52

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jabuticaba, pode falar uma língua com igual pronúncia e o mesmo espírito do povo

que sorve o figo, a pêra, o damasco e a nêspera?” 11

Há um movimento interessante na reflexão de Alencar: utilizando a língua do

colonizador ele introduz nela um giro que a desloca da posição original. A oposição

entre os verbos “chupar” e “sorver” define um espaço lingüístico que, ao mesmo

tempo, é e não é europeu. É português, mas português com uma marca distintiva,

que o torna diferente.

Há todo um jogo muito complexo de afirmações e negações entre oprimidos e

opressores. Ernesto Laclau, em um ensaio12, faz algumas observações sobre essas

relações

Este é o ponto, contudo, em que a realidade social recusou-se a abandonar sua resistência ao racionalismo universalista. Pois um problema não resolvido permanecia ainda. O universal encontrou seu próprio corpo, mas ainda era o corpo de uma certa particularidade – a cultura européia do século XIX. Desta forma, a cultura européia era particular e, ao mesmo tempo, a expressão – e não mais a encarnação – da essência humana universal (como a URSS seria considerada a “terra mãe” do socialismo). A questão crucial aqui é de que não havia recursos intelectuais para distinguir entre o particularismo europeu e as funções universais que se supunha que ele devesse encarnar, posto que o universalismo europeu tinha construído sua identidade exatamente através do cancelamento da lógica da encarnação e, como resultado, através da universalização de seu próprio particularismo.

11 ALENCAR, 1953, p. 38 12 This was the point, however, at which social reality refused to abandon its resitance to unversalistic rationalism. For an unsolved problema still remained. The universal had found its own body, but this was still the body of a certain particularity – European culture of the nineteenth century. So European culture was a paricular one, and at the same time the expression – no longer the incarnation – of universal human essence ( as the USSR was going to be considered the “motherland” of socialism). The crucial issue here is that there was no intellectual means of distinguishing between European particularism and the universal functions that itwas supposed to incarnate, given that European particularism had constructed its identity precisely through the cancellation of the logic of incarnation and, as a result, through the universalization of its own particularism. So, European imperialist expansion had to be presented in terms of a universal civilizing function, modernization and so forth. The resistances of other cultures were, as a result, presented not as struggles between particular identities and cultures, but as part of an all-embracing and epochal struggles between universality and particularisms – the notion os peoples without history expressing pecisely their incapacity to represent the universal. LACLAU, Ernesto. “Universalism, Particularism and the Question of Identity.” IN: LACLAU, 1996, p. 20-35

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Assim, a expansão imperialista européia tinha de ser apresentada em termos de uma função civilizadora, de uma função modernizadora e assim por diante. As resistências das outras culturas eram, como resultado, apresentadas não como lutas entre identidades e culturas particulares mas como parte de um luta abrangente e de época entre universalidade e particularismo – a noção de povos sem história expressando exatamente sua incapacidade de representar o universal. (Tradução minha. GPR)

Como se vê, a construção de uma identidade para os colonizados depende

de uma luta ferrenha para afirmar sua existência e sua história fora da esfera da

universalidade européia. Aqui, importa levar em conta uma outra ordem de

considerações: toda construção identitária se dá sempre no plano da enunciação

discursiva. Há necessidade de que o colonizado se construa, discursivamente, em

relação ao Outro, também discursivamente concebido. Cornejo Polar observa

Naturalmente, a identificação de si mesmo em função da imagem do outro não poderia ser mais que o resultado da lógica predominantemente binária do pensamento ocidental (e até um jogo pouco comprometedor: “te invento para inventar-me” ), se não fosse porque todo o processo está inscrito numa relação assimétrica de poder e dela forma parte. Na base dessa relação está a força do sujeito social que enuncia a imagem do outro e sua correlativa capacidade de convicção – que não é outra coisa senão o poder da imagem sobre o imaginado. 13

Bhabha, por outro lado, observa que

A diversidade cultural é um objeto epistemológico – a cultura como objeto do conhecimento empírico – enquanto a diferença cultural é o processo da enunciação da cultura como “conhecível”, legítimo, adequado à construção de sistemas de identificação cultural. Se a diversidade é uma categoria da ética, estética ou etnologia comparativas, a diferença cultural é um processo de significação através do qual afirmações da cultura ou sobre a cultura diferenciam, discriminam e autorizam a produção de campos de força, referência, aplicabilidade e capacidade. A diversidade cultural é o reconhecimento de conteúdos e costumes culturais pré-dados; mantida em um enquadramento temporal relativista, ela dá

13 CORNEJO POLAR, 2000, p. 56

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origem a noções liberais de multiculturalismo, de intercâmbio cultural ou da cultura da humanidade. A diversidade cultural é também a representação de uma retórica radical da separação de culturas totalizadas que existem intocadas pela intertextualidade de seus locais históricos, protegidas na utopia de uma memória mítica de uma identidade coletiva única. 14

Nota-se que Bhabha fala de um processo que é, ao mesmo tempo, um estudo

sobre a cultura e a construção da diversidade cultural na medida em que afirma a

existência de campos culturais diversificados que, no entanto, podem se cruzar de

uma ou outra forma. Não há mais lugar para a construção de qualquer enunciado

que afirme a superioridade de uma cultura sobre a outra. Em uma outra passagem

deste mesmo livro, Bhabha retoma, com extrema fecundidade, o conceito derridiano

de différance, para utilizá-lo como instrumento básico para a leitura de culturas

diferentes. Diz ele: “A razão pela qual o texto ou sistema de significados culturais

não pode ser auto-suficiente é que o ato de enunciação cultural – o lugar do

enunciado – é atravessado pela différance da escrita”. (BHABHA, 1998, p. 65) Toda

enunciação de significados culturais é assim relativizada, rompendo-se os limites da

orgulhosa “universalidade” européia, excludente e “superior”. Ao mesmo tempo,

voltando a Cornejo Polar, na base de toda enunciação há uma relação de poder que

não pode ser esquecida. Qualquer discurso identitário é sempre uma poderosa

afirmação do ato de inscrever o enunciador em um local privilegiado, de fundar-lhe

uma identidade e uma tradição.

Tomemos ainda duas citações. A primeira é de Said. Diz ele

A forma básica do debate traduz-se de modo mais imediato por um conjunto de alternativas que se podem derivar da escolha Caliban-Ariel, cuja história na América latina é especial e incomum, mas útil também para outras áreas. A discussão latino-americana (da qual Retamar é um conhecido colaborador recente: outros foram José Enrique Rodó e José Martí ) é na verdade uma resposta à pergunta: Como uma cultura que busca tornar-se independente do imperialismo imagina o próprio passado? Uma possibilidade é fazer como Ariel, ou seja, como um solícito seguidor de Próspero; Ariel faz obsequiosamente o que lhe mandam e, quando ganha a liberdade, regressa a seu elemento nativo, uma espécie de

14 BHABHA, 1998, p. 63

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burguês nativo que não se incomoda por sua colaboração com Próspero. Uma segunda escolha é fazer como Caliban, consciente de seu passado mestiço e aceitando-o, mas não incapacitado para um desenvolvimento futuro. Uma terceira alternativa é ser um Caliban que se livra de sua servidão atual e de sua desfiguração física no processo de descobrir seu eu essencial, pré-colonial. Este Caliban está por trás dos nacionalismos nativistas e radicais que produziram os conceitos de négritude, fundamentalismo islâmico, arabismo e outros do mesmo tipo.15

A reflexão de Said sobre as opções possíveis com o par Ariel-Caliban vem a

calhar nesse processo de pensar as identidades nas sociedades que foram

colonizadas. A colonização não consegue, em qualquer caso, destruir as raízes

anteriores ao colonizador ou que se gestaram ao longo da história de cada uma das

colônias. Malgrado o esforço dos colonizadores, nunca foi possível eliminar as

marcas da diferença. Ela permanece e persiste e incomoda e provoca. Ainda que o

colonizador a estigmatize como bárbara, selvagem, inculta, suja e degradada, ela

está lá, com suas marcas e cicatrizes. As opções de Caliban no trecho de Said

significam alguma forma de exibição orgulhosa destas marcas e cicatrizes como

sinal daquilo que tornam o ex-colonizado saudável e produtivo em sua diferença. O

estigma que caía sobre ele pode agora, muitas vezes, voltar-se contra o Outro,

aquele que ele descobre como seu espelho e também sua máscara, como já o

mostrou Fanon.

Uma outra citação, desta vez de Stuart Hall.

As nações, sugere Benedict Anderson, não são apenas entidades políticas soberanas, mas “comunidades imaginadas”. Trinta anos após a independência, como são imaginadas as nações caribenhas? Esta questão é central, não apenas para seus povos, mas para as artes e culturas que produzem, onde um certo “sujeito imaginado” está sempre em jogo. Onde começam e onde terminam suas fronteiras, quando regionalmente cada uma é cultural e historicamente tão próxima de seus vizinhos e tantos vivem a milhares de quilômetros de “casa”? Como imaginar sua relação com a terra de origem, a natureza de seu “pertencimento”? E de que forma devemos pensar sobre a identidade nacional e o

15 SAID, 1995, p.271

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“pertencimento” no Caribe à luz dessa experiência de diáspora? 16

Esta citação nos abre uma série de perspectivas estimulantes. De um lado,

podemos considerar a questão da diáspora. Talvez, em qualquer povo colonizado a

experiência da diáspora sempre se dê, mesmo que apenas no plano imaginário,

visto que a terra de referência é sempre um “al di lá” distante de onde o colonizado

está. A minha língua é de “lá”, minhas roupas e hábitos também, em larga medida.

Assim, a consciência de não pertencer ao “lá”, mas ao “aqui”, torna necessária a

construção de um “nós” e de um “aqui”, com marcas identitárias muito fortes. A

seqüência de perguntas de Hall remete exatamente a isso.

Embora tratando do Caribe, suas perguntas têm sentido em qualquer área

que tenha sido colonizada. Que tipo de projeto discursivo e mental é necessário

elaborar para que o colonizado se reconheça e tenha certeza de “pertencimento” a

esse reconhecimento? De alguma forma, esperamos que, se este trabalho não

conseguir avançar respostas, possa pelo menos construir algumas perguntas.

1.2. Ideologia

Raymond Williams, em seu estudo já clássico, Marxism and Literature, discute

três maneiras possíveis de conceituar ideologia, de um ponto de vista marxista, que

privilegiaremos para nossa abordagem. Diz ele

O conceito de “ideologia” não se originou do marxismo e não está, de modo algum, confinado a ele. Entretanto, é, evidentemente, um conceito importante em quase todo o pensamento marxista sobre cultura e, especialmente, sobre a literatura e as idéias. A dificuldade então é que temos de distinguir três versões comuns do conceito, todas comuns nos escritos marxistas. São, de modo geral: (i) um sistema de crenças característico de um grupo ou classe particular; (ii) um sistema de crenças ilusórias – falsas idéias ou falsa consciência – que podem ser contrastadas com o conhecimento verdadeiro ou científico; (iii) o processo geral de produção de significados e idéias.17 (Tradução minha GPR)

16 HALL; 2003, p.26

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Interessam-nos, fundamentalmente, as três possibilidades, para se falar de

identidade. A primeira acepção permite-nos afirmar que a construção de uma dada

identidade se alicerça em um sistema de idéias que afirma a especificidade de um

dado grupo. A forma de articular o pensamento, de organizar a maneira como as

idéias se articulam em um todo coeso é, evidentemente, indispensável, se se quer

afirmar a diferença que separa um grupo de um outro, cujo sistema, cuja

organização e articulação de idéias seja diferente. Podemos retomar aqui a questão

dos discursos pós-coloniais que têm necessidade de afirmar a “sua” diferença como

tão ou mais significativa que a igualdade hegemônica do colonizador.

Concebida desta forma, a ideologia pode ser uma poderosa arma de combate

contra a dominação mental e cultural. Ela cria, narrativamente, uma tradição que,

quer seja complementarmente negativa, quer seja absolutamente negativa, em

relação ao parâmetro dominante, organiza as ações e as perspectivas de um dado

grupo, uma dada coletividade para afirmar uma nova ou única identidade.

Como dissemos anteriormente, esta identidade não pode eliminar as

diferenças que existem no seio de um grupo ou coletividade.

Por outro lado, é bom lembrar com Bhabha 18, na esteira de Benedict

Anderson19, que toda tradição se constrói não só como valores afirmativos, mas

também com a negação do que deve ou precisa ser esquecido. “Esquecer para

lembrar”, diz Bhabha. Anderson, ao comentar o famoso texto de Renan “O que é

uma nação?”, mostra a contradição aparente do autor francês ao lembrar o que

devia ser esquecido.

17 The concept of 'ideology' did not originate in Marxism and is still in no way confined to it. Yet it is evidently an important concept in almost all Marxist thinking about culture, and specially about literature and ideas. The difficulty then is that we have to distinguish three common versions of the concept, which are all common in Marxist writing, These are, broadly:

(i) a system of beliefs characteristic of a paticular class or group; (ii) a system of illusory beliefs – false ideas or false consciousness – which can be contrasted with true or scientific knowledge; (iii) the general process of the production of meanings and ideas. WILLIAMS, Raymond, 1977, p. 55

18 BHABHA, Homi. K., 2004 19 ANDERSON, Benedict, 2003

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Como se vê, a narrativa ideológica que cria a identidade de um grupo ou uma

coletividade está inçada de problemas que devem ser constatados nos textos, o que

pretendemos fazer com Jorge Amado e Boaventura Cardoso.

A segunda acepção mencionada por Williams provoca uma série de outras

considerações. A falsa consciência é geralmente forjada – consciente ou

inconscientemente – para justificar determinados mecanismos de dominação. Assim,

a afirmação colonialista de que os “nativos”, os “indígenas”, são inferiores -- ou

“semelhantes”, se mimetizam o modo de ser do dominador -- se coloca nesta

perspectiva. Benedict Anderson mostra também como os textos coloniais estão

perpassados pela convicção da diferença inferior dos povos locais.

Obviamente, esta ideologia não existe apenas na cabeça dos dominadores.

Ela se introjeta profundamente nos colonizados, de forma a acreditarem que o

sistema de ilusões difundido de cima para baixo corresponde a uma verdade

definitiva. Daí a enorme dificuldade de superar a falsa consciência.

É interessante lembrar aqui o choque de Fanon, narrado em seu livro Peau

noire, masques blancs, quando, na França, descobre que sua crença de que era

um francês se vê derrubada pela observação que lhe mostra, de supetão, que é um

negro, não um francês. A diferença se lhe revela brutalmente, através de uma única

frase de uma criança, na rua.20

A construção identitária dos povos colonizados passa assim, também, pela

desmistificação das falsas verdades ou, se possível, pela sua completa eliminação.

Este processo se dá, como veremos, de forma talvez mais contundente em Jorge

Amado, embora seja perceptível também na obra de Boaventura Cardoso.

A terceira acepção vai nos conduzir diretamente à questão da linguagem

enquanto base fundamental que articula -- e em que se articulam -- as significações

e as idéias.

Bakhtin (Voloshinov )21 observa

A palavra é o fenômeno ideológico por excelência. A realidade toda da palavra é absorvida por sua função de signo. A palavra não comporta nada que não esteja ligada a essa função, nada que não tenha sido gerado por ela. A palavra é o modo mais sensível de relação social.

20 FANON, 1995, p. 88 a 114 21 BAKHTIN, Mikhail ( Voloshinov ), 1979, p. 22

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E, mais adiante, acrescenta

As características da palavra enquanto signo ideológico, tais como foram ressaltadas no primeiro capítulo, fazem dela um dos mais adequados materiais para orientar o problema sobre o plano dos princípios. Não é tanto a pureza semiótica da palavra que nos interessa na relação em questão, mas sua onipresença social. Tanto é verdade que a palavra penetra literalmente em todas as relações entre indivíduos, nas relações de colaboração, nas de base ideológica, nos encontros fortuitos da vida cotidiana, nas relações de caráter político, etc. As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios. É portanto claro que a palavra será sempre o indicador mais sensível de todas as transformações sociais, mesmo daquelas que apenas despontam, que ainda não tomaram forma, que ainda não abriram caminho para sistemas ideológicos estruturados e bem formados. A palavra constitui o meio no qual se produzem lentas acumulações quantitativas de mudanças que ainda não tiveram tempo de adquirir uma nova qualidade ideológica, que ainda não tiveram tempo de engendrar uma forma ideológica nova e acabada. A palavra é capaz de registrar as fases transitórias mais ínfimas, mais efêmeras das mudanças sociais.22

É importante observar que Bakhtin emprega, na maioria das vezes, ideologia

na primeira acepção apontada por Williams. No entanto, como se observa no

segundo parágrafo citado, a palavra pode transitar por outras acepções, mais

fluidas, que podem ser associadas a (ii) ou (iii).

De qualquer forma, o que nos interessa aqui é examinar a constatação de que

as palavras só se enchem de sentido em contextos sociais específicos. Se elas são

neutras, quando “em estado de dicionário”, como disse Drummond, elas se tornam

prenhes de significações nas diversas articulações discursivas que é possível fazer.

Utilizando um exemplo do próprio Bakhtin em outra parte do livro, uma expressão

como “Que horas são?”, aparentemente possuidora de um sentido unívoco, pode

estar carregada de intenções diversas, em função do contexto. Mesmo que as

intenções sejam apenas emocionais – isto é, individuais –a própria individualidade é

socialmente motivada.

22 Idem, ibidem, p. 27

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Assim, qualquer elaboração discursiva nunca se dá no vazio, mas em

situações socialmente determinadas. Os discursos, de alguma forma, são sempre

uma resposta e uma afirmação diante de um quadro complexo em que há sempre

um ou mais interlocutores que cumprem um papel específico no quadro social em

que se movem e que os motiva.

Esta afirmação da linguagem como ideologia é extremamente importante para

nós, na leitura dos textos de Jorge Amado e Boaventura Cardoso. Em diferentes

contextos que, como dissemos antes, têm marcas de semelhança, suas narrativas

estruturam um universo coeso em que as falas, de narradores e personagens, são

sempre carregadas de intenções político-sociais. O contexto narrativo remete a uma

contextualização histórico-social mais ampla, fora dos limites dos romances e. de

alguma forma, mais do que explicá-la, os textos pretendem, em larga medida, dar-

lhe um sentido e uma direção.

É evidente que, levando em conta a moldura histórica e social dos dois

ficcionistas, a questão apresenta um grau de complexidade ainda maior. Não se

trata de utilizar as possibilidades que a estrutura de uma dada língua permite, mas

trata-se também de subvertê-la, para afirmar ou construir outros valores ideológicos

para além do código instituído que afirma uma ideologia de exclusão e de

subordinação. A “civilização” passa pelo domínio adequado do código lingüístico

outorgado. O resto é fala de bugres, de bárbaros, de selvagens, de ignorantes. A

barreira que separa o dominador do dominado é, muitas vezes, afirmada de forma

violenta e marginalizadora pela manipulação ideológica da linguagem.

Podemos, agora, entrar no próximo tópico desse trabalho.

1.3. Linguagem

Guimarães Rosa, nos diálogos que mantém com Günter Lorenz, tem algumas

afirmações interessantes. Diz ele

Temos de partir do fato de que nosso português brasileiro é uma língua mais rica, inclusive metafisicamente, que o português falado na Europa. E além de tudo, tem a vantagem

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de que seu desenvolvimento ainda não se deteve; ainda não está saturado.23

Mais adiante, nos mesmos diálogos, Rosa afirma o enriquecimento do

português brasileiro através de inúmeras contribuições de outras línguas, de outros

povos.

Ora, fica evidente que, embora esse não fosse, de maneira algum, o escopo

do escritor brasileiro, a afirmação permite pensar a questão da identidade através,

da linguagem, especificamente a língua portuguesa.

Benedict Anderson, em seu livro Imagined Communities, mostra,

principalmente no Capítulo 3, “Origins of National Consciousness”, de que maneira a

relação imaginada entre homens que falam a mesma língua se constitui num

poderoso instrumento de identificação. Algumas citações são oportunas.

Em cada instância, a “escolha” da língua aparece como um desenvolvimento gradual, inconsciente (unselfconscious), pragmático, para não dizer aleatório. Como tal, foi profundamente diferente das políticas de língua autoconscientes buscada pelas dinastias do século XIX confrontadas com a emergência de nacionalismos lingüísticos populares e hostis. Um claro sinal de diferença está no fato de que as velhas línguas administrativas eram apenas isso: línguas usadas para e por posturas oficiais para sua própria conveniência interna. Não havia idéia de impor sistematicamente uma língua às várias populações submetidas às dinastias. Contudo, a elevação destas línguas vernáculas ao status de línguas-de-poder onde, em certo sentido, elas eram competidoras do latim (Francês em Paris, o primitivo inglês em Londres), deram sua própria contribuição para o declínio da comunidade imaginada da cristandade.24. (Tradução minha. GPR )

23 ROSA, Guimarães, 1994, p. 45 24 In every instance, the ‘choice’ of language appears as a gradual, unselfconscious, pragmatic, not to say haphazard development. As such , it was utterly different from the selfconscious language polic ies pursued by nineteenth-century dynasts confronted with the rise of hostile popular linguistic-nationalisms. One clear sign of the difference is that the old administrative languages were just that: languages used by and for officialdoms for their own inner convenience. There was no idea of systematically imposing the language on the dynasts’ various subject populations. Nonetheless, the elevation of these vernaculars to the status of languages-of-power, where, in one sense, they were competitors with Latin ( French in Paris,[Early] English in London ), made its own contribution to the decline of the imagined community of Chridtendom. ANDERSON, Benedict, 2003, p. 42

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Uma outra citação contribui para o quadro que queremos traçar.

Embora seja essencial ter em mente uma idéia de fatalidade, no sentido de uma condição geral de irremediável diversidade lingüística, seria um erro igualar essa fatalidade com o elemento comum em ideologias nacionalistas que enfatizam a fatalidade primordial de línguas particulares e sua associação com unidades territoriais particulares25 (Tradução minha. GPR ).

Articulando um pouco as duas citações, podemos perceber algumas coisas

muito instigantes. De um lado, que o processo de escolha lingüística se dá de forma

muito pouco consciente, do ponto de vista individual. Na verdade trata-se, muita vez,

de uma imposição ditada pela sobrevivência imediata. Tal ou qual língua me facilita

o acesso a certos bens e facilidades, quase impossíveis, através de uma outra

escolha. Neste sentido, a epígrafe, tirada de Tácito, adquire um sentido todo

especial.

Ao mesmo tempo, é necessário estar alerta para não confundir, ingênua ou

mistificadoramente, uma língua com um espaço territorial.

É evidente que, em certos casos, há políticas deliberadas de imposição de

uma dada língua como garantia até de unidade territorial. É o que acontece no

Brasil, no século XVIII, com o uso obrigatório do português em São Paulo, devido à

proporção que ia adquirindo o uso da língua geral, o que poderia interferir, de algum

modo, na colonização lusitana. Mas, em geral, a escolha de uma língua se dá pelo

pragmatismo das relações cotidianas.

Os nacionalismos, que pretendem fazer da língua uma representação

atemporal de um Volksgeist perdido nas neblinas ancestrais, são uma manipulação

ideológica que deve ser rechaçada.

É importante considerar ainda que a opção por uma língua, no terreno da

elaboração artística e intelectual, pode se dar conscientemente, tendo em vista o

grau maior ou menor de aceitabilidade que pode propiciar É claro que tal escolha

pré-determina, de alguma forma, os padrões e estrutura de composição que se vai 25 While it is essential to keep in mind the idea of fatality, in the sense of a generalcondition of irremediable linguistic diversity, it would be a mistake to equate this fatality with the common element in nationalist ideologies, which stresses the primordial fatality of particular rlanguages and their association with particular territorial units. Idem, ibidem, p. 43

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adotar. A adoção da língua escrita do colonizador vai conduzir necessariamente a

alguns padrões de figuração articulados com aquela língua.

Esta relação está longe de ser simples. Envolve um elevado grau de

complexidade, na medida em que a afirmação de minha diferença, ou de minhas

marcas identitárias, passa pela subversão da língua e dos modelos que estrutura.

Quando Guimarães Rosa afirma a maior riqueza do português do Brasil,

inclusive em termos metafísicos, em comparação com o português de Portugal, está,

implicitamente, afirmando que nossas possibilidades criativas são maiores. Os

velhos modelos e as velhas formas de Portugal são insuficientes para expressar a

pujança contida numa língua em formação. Como corolário, seria possível dizer: de

um povo ainda em formação?

Richard Morse, em seu instigante ensaio “A linguagem na América”26 tece

algumas considerações muito interessantes sobre a linguagem. Diz ele:

A linguagem, quando examinada dentro de uma perspectiva ampla, que leve em conta cadência e timbre, léxico e sintaxe, idiomatismos e imagística, oferece ao historiador algumas das pistas mais ricas que há para o estudo da experiência social. Pois a linguagem registra a gama completa da atividade e visão de um povo; consagra tradições e abre lugar para questões do momento; é usada e moldada por todos, plebeus e patrícios, analfabetos e eruditos; transcreve a sociedade num panorama difuso e numa visão detalhada. Em qualquer momento histórico, a linguagem é heteroglota de alto a baixo. Ela representa a coexistência de contradições sócio-ideológicas entre presente e passado, entre diferentes épocas passadas, entre os diversos grupos ideológicos de hoje, entre tendências, escolas e círculos, e representa tudo isso de forma tangível. Sartre observou que as instruções que funcionam como padrão de vida comum não são autônomas. Elas necessariamente atuam sobre projeções espontâneas que visam objetivos pessoais. A linguagem é o caso por excelência em que a intenção pessoal viva transcende a regra, porém o faz apenas com base no uso. A família, a classe e a cultura comum moldam as expectativas do indivíduo ao mesmo tempo em que promovem a transcendência. A partir de tais contextos, a afirmação individual dá forma à espécie humana. Conseqüentemente, a linguagem é estruturada não por leis, mas pelo uso.27

26 MORSE, 1990, p. 23-86 27 Idem, ibidem, p. 24-25

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Por outro lado, Kwame Anthony Appiah observa, referindo-se especificamente

as relações entre colonizadores e colonizados, que

...o problema não é apenas, ou não tanto, a língua inglesa ou a francesa ou a portuguesa como a imposição cultural que cada uma representa. A educação colonial, em resumo, produziu uma geração imersa na literatura dos colonizadores, uma literatura que freqüentemente refletiu e transmitiu a visão imperialista.28 (Tradução minha. GPR)

Quer dizer: temos que observar a linguagem como fenômeno social

submetido a certas condições especificas, não escolhidas pelos usuários, mas

historicamente dadas. No caso das relações entre colonizadores e colonizados, o

processo é bastante complicado e, se já parece bastante resolvido no Brasil, ainda

está em processo nos países da África, inclusive Angola. Voltaremos a tratar das

observações de Appiah na parte especificamente reservada à literatura angolana e a

Boaventura Cardoso.

É nessa direção que pretendemos fazer a leitura da linguagem nos textos de

Jorge Amado e Boaventura Cardoso, abrindo espaço para explicitar as linhas de

continuidade e ruptura que se processam em ambos os autores, bem como as

variações que operam na língua portuguesa a partir do uso cotidiano da linguagem.

Desta forma, poderemos observar, nos dois autores, de que modo recursos de

oralidade irrompem em seus textos, rompendo com um padrão de linguagem

dominante e fazendo da linguagem oral e popular um poderoso instrumento de

resistência.

1.4. Religiosidade

A religiosidade não será trabalhada aqui no sentido das religiões

institucionais, embora eventualmente elas possam ser referidas. Trata-se antes de

abordar o que chamamos de relação performática com o desconhecido/reconhecido.

Talvez seja necessário lembrar o sentido etimológico de religião: o restabelecimento

28 APPIAH, 1992, p. 55

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de nexos ou conexões com um elemento ou uma entidade primordial ou constituída

através de práticas ancestrais, transmitidas por uma dada tradição. É neste sentido,

principalmente, que pensaremos a religiosidade.

Todo o universo colonizado, a partir dos séculos XV e XVI, por diversas

nações européias, se vê submetido a um violento processo de aculturação religiosa,

bem sucedida, em alguns casos e, em outros, nem tanto. No caso das nações

colonizadas por Portugal, o catolicismo ibérico, já a partir do final do século XVI,

moldado segundo a matriz jesuítica, fortemente conservadora, o choque entre duas

ou mais concepções religiosas de mundo é intenso.29 De alguma forma, ao longo de

séculos de contato, o “purismo” original acaba se contaminando de crenças locais,

produzindo um amálgama extremamente rico e fecundo.30

Resulta, assim, um catolicismo extremamente diferenciado, original,

atravessado de outras físicas e metafísicas, freqüentemente ancorado em crenças

de tribos e outros grupos.

Por outro lado, existe um dado significativo na cultura religiosa ibérica

quinhentista que talvez explique muito da facilidade com que o catolicismo se impôs

a outras crenças e se mesclou com elas.

O universo religioso aparecia aos ibéricos como um conjunto de relações pessoais e familiares dos homens com os santos e com um Deus pai generoso e plácido em relação aos seus filhos fiéis e ao mesmo tempo turbulentos. Esta concepção simples dispensava grandes elucubrações racionalizadoras, e a estabilização da vida estará sempre remetida a estas relações privilegiadas com Deus, facilitadas pelos santos.31

Sérgio Buarque de Holanda comenta, na mesma direção

A popularidade, entre nós, de uma Santa Teresa de Lisieux – Santa Teresinha – resulta muito do caráter intimista que pode adquirir seu culto, culto amável e quase fraterno, que se

29 Como demonstração de desprezo que o eurocentrismo religioso votava às populações locais no Brasil, vale lembrara a afirmação, tida como verdade incontestável, de que elas não tinham “nem lei, nem rei, nem fé” Evidentemente, este exemplo é apenas ilustrativo. Processos semelhantes se deram, com certeza, em outras regiões colonizadas. 30 Ver em BARBOZA FILHO, Rubem, 2000, um estudo extremamente denso sobre a disseminação das idéias ibéricas na América. 31 BARBOZA FILHO, Rubem, 2000, p. 226

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acomoda mal às cerimônias e suprime as distâncias. É o que também ocorreu com o nosso menino Jesus, companheiro de brinquedo das crianças e que faz pensar menos no Jesus dos evangelhos canônicos do que no de certos apócrifos, principalmente as diversas redações do Evangelho da Infância.(...) Cada casa quer ter sua capela própria, onde os moradores se ajoelham ante o padroeiro e protetor. Cristo, Nossa Senhora e os santos já não aparecem como entes privilegiados e eximidos de qualquer sentimento humano. Todos, fidalgos e plebeus, querem estar em intimidade com as sagradas criaturas e o próprio Deus é um amigo familiar, doméstico e próximo – o oposto do Deus “palaciano”, a quem, o cavalheiro, de joelhos, vai prestar sua homenagem, como a um senhor feudal.32

Esta cotidianização da experiência religiosa, vivida como relação quase

familiar, sem alguma transcendência metafísica maior, pode ser facilmente

assimilável por outras formas de experiência. De fato, há uma absoluta concretude

na intercessão dos santos, tendo em vista que eles são representados, fisicamente,

por imagens. A invisibilidade e o distanciamento de Deus se tornam proximidade

imediata. Os santos pertencem, de alguma forma, aos dois mundos: o visível e o

invisível.

É preciso considerar também o peso da linguagem na articulação de um dado

sistema de crenças. De imediato percebemos, de fato, que nenhuma expressão de

religiosidade prescinde da palavra. É preciso dizer Deus, para que ele seja.

Orações, jaculatórias, invocações, mantras, sermões, benzeções, canções, devem

desenvolver articuladamente uma enunciação discursiva que afirme o princípio, a

divindade, o ancestral, o orixá, a manifestação do sobrenatural, de qualquer forma

que seja. Quando falamos em enunciação discursiva, não pensamos apenas no

discurso verbal, mas nas diversas manifestações sígnicas, gestos, roupas, imagens,

emblemas, estandartes, alimentos ou outras oferendas, que estruturam um discurso

cheio de significados simbólicos, muitas vezes reconhecidos apenas pelos iniciados.

Talvez seja o caso, aqui, de recuperar, ainda uma vez o texto de Benjamin,

especificamente sobre a linguagem verbal33, em que fala da linguagem humana

como uma tentativa de recuperar o caráter fundamental da linguagem divina. O

contingenciamento do humano, muito além do verbo, coloca-o sempre numa 32 HOLANDA, Sérgio Buarque de, 1978, p. 110 33 BENJAMIN; Walter, 1970, p. 139-154

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situação canhestra de buscar a expressão para algo que intui, pressente, adivinha

ou inventa, mas que está muito aquém de sua capacidade de organização

expressiva. O postulado, difundido em múltiplos textos de épocas diferentes, de

inania verba, pode ser estendido, diante da incomensurabilidade do infinito, para

todos os campos da expressão humana. Talvez só nos reste atermo-nos, como

Riobaldo, à afirmação de nossa própria grandeza: “Existe é homem humano”.

Acrescente-se a isso o sinal de infinito.

As narrativas ficcionais, em que o autor, como grande demiurgo, cria – re-cria

– um mundo à sua imagem e semelhança, constrói sentidos para além da

imediaticidade da percepção sensorial. A rica simbologia dos textos literários, de

alguma forma, re-liga, sendo capaz de estabelecer nexos entre o visível e o invisível.

Não esquecemos, aqui, é claro, que as condições de criação estão pré-

estabelecidas: O autor não é uma ilha que paire sobre o caos informe, é um sujeito

historicamente inserido e, de uma forma ou de outra, vai deixar transparecer em

seus textos os sistemas de crenças – e suas performances discursivas -

disseminados na prática social cotidiana.

Vamos tentar verificar como este processo se dá em Jorge Amado e em

Boaventura Cardoso. As obras dos dois escritores estão atravessadas de diversas

manifestações religiosas, que vão do messianismo apocalíptico de Seara vermelha

à relação extraordinária de João Segunda com sua cabra Tulumba em Maio, mês

de Maria. De que forma esses processos se dão? De que maneira eles se articulam

com alguma tradição religiosa do colonizador? Até que ponto representam alguma

forma de resistência à dominação? Representam, efetivamente, uma forma de

ruptura ou de continuidade?

Como se vê, ao considerarmos a religiosidade também como um problema de

linguagem, estamos centrando nossa leitura nos processos de sistematização verbo-

simbólicos que moldam e estruturam a narrativa. Ideologia e religiosidade

convergem para o eixo comum da linguagem. É fundamentalmente na forma,

através da qual ela é capaz de construir, articulada e significativamente, um sistema

de relações de sentidos – para além dos próprios limites dos livros, que vai

mergulhar nossa análise.

Não é nossa intenção, em momento algum, praticar algum tipo de formalismo,

pois concebemos a forma como processo social de extrair ou gerar sentidos do/no

universo circunscrito em que ela se produz. Da mesma forma que vimos que a

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linguagem é algo que só tem sentido em um contexto social determinado, em

situações sociais estabelecidas, assim também a forma, como organização da

linguagem para criar ou representar significações, só é compreensível no quadro

social em que se gesta. Não existe forma como modelo atemporal e ahistórico,

pairando no espaço à espera de que alguém a capte. A forma é uma exigência do

texto e depende tanto do universo social em que é produzida – o que envolve a

própria inserção do autor nesse universo -- quanto dos compromissos que se possa

assumir, no texto, ou fora dele.

Não existe autor socialmente descompromissado. Qualquer enunciado textual

é um compromisso com o humano, com suas fragilidades, sua grandeza e sua

profunda perversidade. E o humano não existe alheio ou fora da sociedade.

Retomando o truísmo aristotélico, o homem é um animal político. Fora da pólis

significa tanto quanto uma formiga ou um ornitorrinco. Et pour cause.

É claro que não pretendemos que toda obra seja engajada em um sentido

político-partidário. Esta atitude, o mais das vezes é despicienda, e costuma redundar

na reiterada apologia de algumas “convicções” impregnadas da ideologia no

segundo sentido em que Williams a define.34

É sempre interessante remeter às considerações feitas por Antonio Candido

em seu já clássico Literatura e sociedade 35.

Fica assim explícito que não pretendemos trabalhar o texto como um universo

fechado em si mesmo. Ainda que possamos ter dificuldade de chegar a alguma

conclusão definitiva – e talvez isso não seja possível – pretendemos relacionar os

textos, enquanto produtos de cultura, com outros produtos de cultura – política,

religião, trocas simbólicas variadas -- em universos sociais cujas linhas de força

importa estabelecer. Nosso estudo de linguagem pretende ser, deste modo, um

estudo das grandes forças sociais, figuradas nos textos, que fazem com que a

linguagem ganhe sentido, para além das tautologias, alegorias e aporias de uma

ordenação lingüística autoritária e excludente.

34 A posição que assumimos aqui não é novidade. Foi objeto de discussões ao longo de todo o século XX. De Sartre a Lukács, Goldmann e Gramsci, são inumeráveis os textos que discutem o assunto. Raymond Williams, no texto já citado, faz uma boa síntese. De alguma forma, os estudos culturais têm recuperado esses problemas, mesmo que seu objetivo – e isto é ótimo – não seja o texto circunscrito a ele mesmo. 35 CANDIDO, Antonio, 2000.

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As manifestações de religiosidade não nos interessam, portanto, como

expressões de fé, de afirmação do absoluto, ou de soluções metafísicas para as

crises agônicas do homem. Interessam-nos, isso sim, como expressão de uma certa

consciência social – mesmo que individualmente manifesta ou figurada – que,

através de diversas performances narrativas, cria sentidos ou alternativas para o

status quo.

Interessa-nos saber como Jorge Amado e Boaventura Cardoso articulam essa

questão no universo histórico-social específico em que seus personagens se

movem.

As questões identitárias serão tratadas a partir desse quadro teórico que

esboçamos. Teremos que acrescentar, o que faremos nos capítulos dedicados a

cada um dos autores, os elementos de diferenciação decorrentes da formação

histórica do Brasil e de Angola, e das circunstâncias específicas de cada um dos

dois locais no momento de produção das obras e os horizontes narrativos que estão

ligados a essas circunstâncias.

É, com toda certeza, relevante o fato de o Brasil ter obtido sua independência

política em 1822, enquanto que Angola só o faz na década de 70 do século XX. São

mais de cento e cinqüenta anos decorridos e essa distância temporal faz muita

diferença, tanto em um sentido especificamente literário quanto do ponto de vista

das transformações sociais que se operam.

Além disso, o Brasil já gozava, mesmo enquanto colônia, de algumas

prerrogativas que não existiram em Angola. Acrescente -se a isso o fato de, durante

vários séculos, Angola ter sido muito mais um entreposto de escravos que uma

colônia, propriamente, como veremos.

Essas diferenças apontam para mais do que nuanças na relação tanto de

portugueses quanto dos nativos de Angola na relação com a terra e a gente que

nela habitava. Importa apontar, ainda que sumariamente, a relativa lentidão com

que se processam mudanças no olhar, no modo de ver, de perceber e de expressar.

Começaremos, portanto, o exame de cada autor, com um registro, ainda que

sumário e incompleto, dos elementos constitutivos de cada um dos dois espaços

que nos parecem mais significativos.

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2. JORGE AMADO: o povo como leitmotiv

Os intelectuais da elite brasileira, os de esquerda e os de direita, irmãos gêmeos na pretensão e na tolice, uns quantos imitam os europeus, a maioria é fotocópia dos ianques, de brasileiros não têm quase nada; mesmo livresco e limitado, o saber os coloca acima da cidadania, sentem-se superiores, repudiam a criação popular, viram a cara, tapam o nariz à rua, à praça, ao folclore, o povo fede e eles são uns senhoritos.

(Jorge Amado. Navegação de cabotagem, p. 465)

Uma leitura analítica de textos de Jorge Amado deve passar, aqui, até para

efeitos da comparação que pretendemos fazer, por um escorço do quadro histórico

que precedeu à criação dos romances, bem como das condições em que foram

produzidos.36

A independência política do Brasil, em 1822, destoa profundamente dos

demais movimentos de independência da América do Sul. Benedict Anderson37

comenta esta diferença, na medida em que, aqui, não há propriamente ruptura com

a antiga metrópole, mas uma continuidade patente até mesmo pelo fato de a

36 É importante remeter ao instigante estudo de CANDIDO, 2006. A construção do que chama de “consciência do subdesenvolvimento”, pelos escritores brasileiros da década de 1930, é bastante significativa. Ver, na obra citada, o texto “Literatura e subdesenvolvimento”, p.169-196 37 ANDERSON, 2003

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independência ter sido proclamada por um Bragança, a mesma casa real de

Portugal. Além disso, enquanto nas outras regiões da América do Sul proclamavam-

se repúblicas, no Brasil, fundou-se um império.

Alfredo Bosi sintetiza bem nossa situação.

O Brasil, egresso do puro colonialismo, mantém as colunas do poder agrário: o latifúndio, o escravismo, a economia de exportação. E segue a rota da monarquia conservadora após um breve surto de erupções republicanas, amiudadas durante a regência.38

Neste quadro, em que a herança colonial, do ponto de vista da estrutura

social, permanece praticamente intocada, começam a surgir as primeiras

manifestações de algo que pode ser chamado de literatura nacional.39 O esforço que

se tem de fazer é imenso, mesmo tomando como referência as diversas modulações

do romantismo europeu.40 Em larga medida, o esforço passa pela criação literária de

um português brasileiro, diferente da língua usada em Portugal. Trata -se de afirmar,

lingüisticamente, uma nação, nova e soberana.41 As intervenções de José de

Alencar são, nesse sentido, muito enriquecedoras. Citemos apenas uma delas, por

seu caráter paradigmático em relação àquilo de que falamos. Em uma carta de

1874, diz Alencar:

Nós os brasileiros temos descurado inteiramente o máximo assunto da nacionalidade de nossa literatura; e por uma timidez censurável nos deixamos governar pela férula do pedagogismo português que pretende o monopólio da ciência e polimentos da nossa língua (...) Somos nós, é o Brasil quem deve fazer a lei sobre a sua língua, o seu gosto, a sua arte e a sua literatura. Essa autonomia, que não exclui a lição dos

38 BOSI, 1970, p. 100 39 Ver CANDIDO, 2000 40 Ver a respeito, SCHWARZ, 1977 41 Embora não seja nosso objetivo trabalhar a fundo esta questão, os problemas que envolvem a construção das nações, tanto como espaço geográfico, quanto como “comunidades imaginadas” são extremamente complexos. A delimitação do território brasileiro, desde a época colonial ( ver, por exemplo, a questão do Tratado de Tordesilhas, a guerra envolvendo os Sete povos das Missões) até o século XX ( a questão do Acre, por exemplo), é um processo lento e tumultuado. Por outro lado, a questão lingüística só começa a ser discutida seriamente, a partir do século XIX.

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mestres, antigos e modernos, é não só um direito, mas sim um dever.42

Percebe-se aí, com clareza, a afirmação da necessidade de buscar

fundamentos que criem uma língua nacional, distante -–diferente – daquela do ex-

colonizador. A afirmação dessa diferença é fundamental para estabelecer uma

identidade lingüística que é a base da literatura nacional.43

Esse esforço de diferenciação, que atravessa o século XIX e penetra no

século XX (veja-se o relativo menosprezo por Lima Barreto, em seu tempo, por

causa de sua manifesta indiferença pelos cânones da casticidade parnasiana), vai

atingir seu ápice com o movimento modernista, a partir da década de 1910.

A primeira afirmação do modernismo brasileiro gira em torno da linguagem.

Em Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Oswald de Andrade, para só citar três

participantes da Semana de 22, afirma-se uma linguagem que incorpore “todos os

barbarismos” da fala vulgar, até então mantidos, em geral, fora da limpidez do texto

literário.

Ronald de Carvalho44 vai além, ao dizer:

Nós somos os filhos da serrania e das florestas, e, se quisermos criar uma civilização, arranquemos desde já, as máscaras postiças que encobrem as nossas verdadeiras fisionomias... Deixemos de pensar em europeu. Pensemos em americano.

Obras como Macunaíma(1928) revigoram a narrativa literária brasileira,

tornando legítima, de uma vez e para sempre, a fala “impura” de nossa gente e, com

a fala, legitima também um modo de ser e de pensar.

Por outro lado, o modernismo brasileiro surge em um momento de intensa

agitação social e política: greves, o tenentismo, turbulência urbana em que se

mesclam uma classe média em ascensão, um grande número de imigrantes – com

toda a tradição de lutas que traziam da terra de origem – e um lumpenproletariado

muito grande, constituído na maioria por ex-escravos lançados ao inferno da

42 Apud BECHARA, 2004, p. 61 43 Ver, a propósito, a leitura que Richard Morse faz das intervenções de José de Alencar e Mário de Andrade a este respeito. MORSE, Richard, 1990. 44 Apud LIMA, 1999, p. 35

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liberdade, sem condições de sobrevivência, sem profissão definida.45 E, na década

de 30, com o que Antonio Candido chama de “consciência do

subdesenvolvimento”46, uma parte significativa dos escritores brasileiros passa a

tecer suas obras em torno de problemas crônicos do Brasil: a miséria, a exploração

dos mais pobres, o latifúndio, a desigualdade social, os preconceitos de raça e de

classe.47

É neste quadro que Jorge Amado começa a produzir a sua extensa obra.

Seus primeiros romances, até a década de 1950, são marcados, muitas vezes, por

um certo sectarismo, muito ligado de alguma forma à matriz que se chamou de

“realismo socialista”,48 embora matizado pela profunda identificação do autor com a

terra e seu povo

O romance de Jorge Amado já tem sido, ao longo do tempo, objeto de

inúmeras e variadas análises e leituras. Nas indicações bibliográficas citaremos

alguns dos muitos títulos de autores que se debruçaram sobre o escritor brasileiro.

Parece haver uma certa unanimidade da crítica ao dividir a obra do escritor

em pelo menos duas fases distintas: uma primeira fase, partidariamente engajada,

em que o autor tenderia a adotar moldes do chamado “realismo socialista”, ou seja,

uma representação do “real”, entendido como a condensação em alguns indivíduos,

concretamente figurados, de forças sociais em luta. Essas tensões sociais apontam,

necessariamente, para a perspectiva de uma revolução socialista.

A segunda fase seria a de um tratamento amaneirado de costumes baianos,

através de narrativas envolventes e fortemente sensuais.

Ora, como pretendemos demonstrar nesse trabalho, a divisão em fases tem

um efeito muito mais didático que outra coisa. Como trabalharemos com dois

romances da dita primeira fase e um da segunda, procuraremos mostrar que o Jorge

Amado maduro está inteiramente contido no jovem Jorge Amado.

45 Um bom retrato da efervescência do período é traçado por BRITO, 1964. 46 CANDIDO, 2006,cit. 47 Ver, a respeito, o alongado comentário de GOLDSTEIN, 2003, p. 30 a 52. 48 O chamado realismo socialista tem em si dois aspectos distintos: o primeiro remete ao grande realismo burguês do século XIX ( Balzac, Tolstoi, etc.) e o segundo, à necessidade de introduzir na figuração realista a idéia de revolução proletária e de construção do novo homem gerado por esta revolução.

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2.1. JUBIABÁ: A FORÇA DA ANCESTRALIDADE

Jubiabá, publicado em 1935, é o quinto romance do escritor. Ilana Seltzer

Goldstein, em seu estudo sobre Jorge Amado, chama a atenção para o fato de que

o primeiro romance de Amado, Lenita, publicado em 1929, foi repudiado pelo autor

como uma “miserável novela”.49Assim, se considerarmos O país do carnaval,

publicado em 1931, como o primeiro livro reconhecido pelo autor, Jubiabá é o seu

quarto livro.

Apesar do título, o personagem central da história não é Jubiabá e, sim,

Antônio Balduíno, cuja história de vida a narrativa desenvolve. Em um certo sentido

a estrutura do livro o aproxima do Bildungsroman, do romance de formação ou de

educação.50 Este conceito, utilizado a partir da obra Wilhelm Meister, de Goethe, se

aplica à narração das diversas peripécias, físicas, intelectuais e éticas, por que

passa um personagem para se constituir como um ser plenamente desenvolvido.

Ora, o personagem Antônio Balduíno, ou apenas Baldo51, é mostrado em sua

trajetória desde a infância, no Morro do Capa-Negro até sua posição final como

estivador nos cais de Salvador. São vários períodos de sua vida que preenchem a

narrativa: menino de morro, órfão adotado por uma família rica, menino e

adolescente de rua, boxeador, empregado em um saveiro, trabalhador em roças de

fumo, empregado em um circo e, ao final, estivador. Suas informações sobre o

mundo e sua formação vão-se tornando mais intensas e mais densas, ao longo dos

anos e das diversas profissões que exerce. Ao fim da narrativa, após a morte de

Lindinalva (filha da família rica que o adotara na infância e marca permanente na

49 GOLDSTEIN, 2003, p.123. 50 Eduardo de Assis Duarte desenvolve esta tese de forma bastante extensa, apontando, inclusive, outras matrizes para o Bildungsroman, a partir de Bakhtin. Ver DUARTE, 1996, p.93 e ss. 51 É interessante citar aqui as observações de Goldstein (2003, p. 143) sobre o nome do personagem: “O ‘menino-Baldo’ começa a história perdido, ansioso por ‘causos’ e aventuras que ‘preencham’ sua alma e sua vida. São iluminadores os significados encontrados para o termo ‘baldo’, no dicionário: tem, como sinônimos, falho, baldio, ocioso, inculto; já ‘balda’, da mesma raiz, significa falta, defeito, senão; ‘baldado’ é inútil, vão, malogrado; ‘baldão’ quer dizer injúria, impropério, afronta; e, por fim, ‘baldoso’ é manhoso. Baldo é um apelido adequado ao (anti- )herói pobre, marginalizado, que não estudou, vive de biscates, de samba e esmolas, ao mesmo tempo mulherengo provocador e briguento. (...) Talvez seja uma ironia do autor atribuir a seu protagonista um nome que significa defeito, inutilidade, ócio; talvez seja para aparentá-lo com Exu, invocado em diversos momentos da narrativa. Como no caso de Exu, a marca de Baldo é uma gargalhada sonora que faz os outros tremerem“.

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vida de Antônio Balduíno, desde o momento em que foge da casa da família por

causa de uma acusação falsa de que olhava a menina nua) em sua ocupação de

estivador participa de uma greve que consolida sua visão ético-política da vida e dos

homens.

Apesar de todas as mudanças, existe, na maior parte da narrativa, um traço

permanente em Baldo. Na página 25852, dois trechos marcam bem a atitude do

personagem: “De que valia trabalhar, viver debaixo dos fardos carregando os

navios?”. E “Antônio Balduíno não gosta de pensar nestas coisas. Ele gosta é de rir,

de tocar violão...”. O que se percebe em Baldo, desde o início é uma imensa

disponibilidade para viver intensamente a vida. Ele é descendente direto de uma

linhagem literária profundamente enraizada no Brasil: a do malandro.53 Como

observa Antonio Candido no estudo citado, o universo da malandragem se opõe ao

universo da ordem. Se aqui as normas são rigidamente estabelecidas, no universo

da desordem existe uma mobilidade à margem de todas as normas.54 É importante

levar em conta as observações de Tania Macêdo em seu estudo “Malandros de

várias terras”55, em que chama a atenção para o fato de que não se deve tratar a

figura do malandro ingenuamente, mas é preciso examinar com precisão a(s)

sociedade(s) que produz(em)/permite(m) o aparecimento de figuras como esta que,

muitas vezes, tendem a mascarar a violência de uma ordem social injusta e

excludente. Na sociedade brasileira essa violência é parte de nossa própria

formação histórica. Os universos diferentes, que se cruzam mas não se misturam,

opõem, de um lado, os privilegiados e, de outro, os miseráveis. Em estudo recente,

observa Paulo César Carbonari:

A violência converte-se em instrumento estruturante da (não-) relação social. Ou seja, a desigualdade é violenta e gera processos violentos, alimentando um círculo vicioso que traduz concretamente em mais exclusão e mais concentração. A violência se alimenta da e alimenta a desigualdade. A desigualdade se alimenta da e alimenta a violência. Este

52 Todas as citações de Jubiabá são retiradas de AMADO, 1983. 53 Ver, a respeito, o maravilhoso estudo em CANDIDO,1993. 54 Ver, também, a respeito DaMatta, 1979 e 2000 55 MACÊDO, 2002, p. 53-65

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processo gera uma crise permanente da capacidade de produção e reprodução da vida e da sociabilidade.56

Assim, não perderemos de vista esta noção de que a violência é um dado

estrutural de nossa sociedade, desde o período colonial. (E, com certeza, pode-se

dizer o mesmo de Angola.). A própria existência de dois espaços excludentes é bem

característica, por si só. Quer dizer: em sociedades divididas em classes sociais,

onde há, nos extremos, os que possuem e os que não possuem, há uma barreira

que delimita muito bem os limites de cada classe: elas não se misturam. No Brasil

colonial, a estrutura econômica calcada no escravismo, a situação é ainda mais

drástica, pois o escravo não possui quaisquer direitos. E como os escravos são

negros, oriundos da África, firma-se uma espécie de cruel silogismo ideológico que

conclui que (todos) os negros são escravos. Esta idéia marca até hoje muitas

relações entre brancos e negros, aqui entre nós. O negro ainda é mais penalizado

que outros excluídos. À guisa de fecho destes comentários sobre o Brasil, vale citar

Gilberto Gil & Caetano Veloso na letra de sua canção “Haiti”:

Quando você for convidado pra subir No adro da Fundação Casa de Jorge Amado Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos Dando porrada na nuca de malandros pretos De ladrões mulatos E outros quase brancos Tratados como pretos Só pra mostrar aos outros quase pretos (E são quase todos pretos) E aos quase brancos pobres como pretos Como é que pretos, pobres e mulatos E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados

A Angola colonizada passa por problemas semelhantes, agravados por um

outro dado: independente apenas na década de 1970, – muito recentemente – a

população angolana nativa, principalmente os negros, era inferiorizada pelos

portugueses.

Jorge Amado tem como um de seus traços mais característicos, a

valorização de um modus vivendi que se opõe ao mundo dos poderes estabelecidos.

Uma grande parte de seus personagens se move num limbo à margem da lei e das 56 CARBONARI, 2005, p. 8

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regras dominantes. São, nesse sentido, half-outsiders: sem serem criminosos,

absolutamente marginalizados, são indivíduos que traçam suas próprias leis. O

próprio Amado, em seu livro Navegação de cabotagem (Apontamentos para um livro

de memórias que jamais escreverei)57 diz desabusadamente:

Romancista de putas e de vagabundos, classifica-me com menosprezo um graúdo da crítica literária. A classificação me agrada, passo a repeti-la para classificar minha criação romanesca. Gosto da palavra puta, simples e límpida, tenho horror aos termos prostituta, marafona, pejorativos e discriminatórios. Em três palácios de governo relembrei que sou apenas um romancista de putas e de vagabundos, colocando o acento na palavra puta, com júbilo.

Baldo, cachaceiro, mulherengo, capoeirista, valentão, é uma espécie de

paradigma de vários “heróis” posteriores de Amado, de Quincas Berro d’Água a

Vadinho. A grande diferença, nesse romance de 35, é que Baldo renuncia à posição

de “rei” da marginalidade a partir da aquisição de uma nova consciência, desde o

momento em que Lindinalva, moribunda, entrega o filho a sua custódia. Pela

intrincada relação que mantém, ao longo da narrativa, com Lindinalva – a quem ama

a ponto de projetar em suas múltiplas amantes o rosto dela, como se fizesse sexo,

todo o tempo, apenas com ela 58– passa a considerar a criança como seu próprio

filho e arranja um emprego estável, como estivador. A narrativa, nesses momentos

finais, perde muito de sua força, na medida em que se desvia da narração da

acidentada vida de Baldo para tratar da fabulação coletiva – e um tanto mítica - dos

trabalhadores em greve. Baldo quase desaparece em meio à antecipação fantasiosa

– bem própria dos cânones do “realismo socialista” - de um coletivismo que suplanta

– ou suprime? – os ímpetos de individualidades exacerbadas. Alguns trechos são

significativos.

Severino explicou: - Rapaz, greve é como esses colares que a gente vê nas vitrinas. É preso por uma linha. Se cortar a linha caem todas as contas. É preciso não furar a greve. (p. 295)

57 Amado, 1992, p.174 58 Na página 329: “ A areia alva do cais onde o negro Antônio Balduíno amou tantas mulatas que eram todas Lindinalva, a sardenta”.

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A metáfora que associa pessoas a contas de um colar é significativa:

sozinhas não valem nada, mas como partes de um todo, maior e mais significativo

do que cada uma delas, são tudo.

Na página 312, a mesma idéia é reiterada, de outra forma:

Antônio Balduíno cala. Aos poucos ele vai aprendendo que na greve não é um homem que manda. Na greve eles fazem todos um corpo só. A greve é como um colar...Mas não sente tristeza de não ser o chefe da greve. Todos são chefes. Obedecem ao que está certo.

Há, com certeza, um eco da máxima hegeliana, adotada mais tarde por

Engels, e citada pelo próprio Amado como epígrafe a Seara vermelha: “A liberdade é

o conhecimento da necessidade”. Pareceria estranho que Baldo assumisse essa

nova postura de supetão. Mas o fato é que, em sua vida pregressa, ele é roído por

meditações constantes sobre a vida e o sentido dela, que se parece resumir na

satisfação momentânea de uma boa mulher, uma boa cachaça, uma boa briga. A

consciência de Baldo é preparada durante toda a narrativa, embora só aflore de vez

na greve. “Todos juntos somos fortes”, como diz a versão de Chico Buarque para Os

saltimbancos. Esta é a nova consciência de Antônio Balduíno.

Esta última parte da narrativa, introduzida pela lenta degradação de

Lindinalva, até a morte, é marcada por um tom sentimentalista que busca envolver o

leitor, convencendo-o da verdade que apregoa.59 Veja-se, como exemplo disso, na

página 319 e nas seguintes, a cena entre Helena, a lavadeira, e Helena, esposa do

proprietário das panificações reunidas:

Dona Helena pergunta: - O que é que você tem? Aconteceu alguma coisa com os meninos? Ou com seu marido? - Acontecer não aconteceu, dona Helena... É a greve... - Ah! A greve... Ruiz também anda aborrecido com esta greve... - Mas é só ele querer...

59 Observe-se que, em nenhum momento, há qualquer emissão de juízo de valor sobre as teses que Amado defende. Acredito, pessoalmente, em muitas delas. O que se comenta é a maneira com que o autor as expõe, na narrativa.

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Dona Helena não sabe de nada. A lavadeira conta a vida do beco, os homens ganhando uma miséria na padaria, sustentando as famílias com este salário de fome, os filhos doentes. Com a greve, greve justa para pedir uns tostões a mais, as famílias estavam sem ter o que comer. Os seus filhos só tinham comido naquele dia porque uma vizinha se compadecera. Mas tinha meninos passando fome...

Dona Helena se agita num assombro. Sua voz é dolorosa: - Meninos passando fome? Não é possível, meu Deus.. Passando fome, sim. E uma pretinha morrera num tiroteio esta tarde. Ainda fora feliz. As outras em casa pediam comida e choravam: - Se isto demorar a gente tem que pedir esmola... E os homens querem tão pouco!

Dona Helena se levanta emocionada. Com certeza Ruiz não sabe disso. Se ele soubesse desta situação já teria aumentado os salários dos seus operários. Ele é tão bom...

Como se vê a questão política da greve se dilui na linearidade de uma

narração marcada pela emoção fácil. A seqüência da cena mostra o diálogo entre

Dona Helena e o marido, quando a emoção lacrimosa dela esbarra na intransigência

estereotipada do capitalista.60

O emocionalismo já está presente na forma como trata a prostituição de

Lindinalva, em contraponto à vida airosa de várias outras prostitutas que aparecem

no livro. Lindinalva é a moça de família seduzida e abandonada à própria sorte

grávida, tendo que se prostituir para sobreviver. Sua decadência transparece nos

nomes que passa a adotar à medida que se degrada mais: de Lindinalva passa a

Linda e, finalmente, a Sardenta. É interessante observar que, de maneira geral,

enquanto os que nascem e crescem no universo da desordem conseguem extrair

dele um prazer quase animal de viver, os que são forçados a saltar do universo da

ordem para o outro não se adaptam, se brutalizam e decaem. Esta distinção sinaliza

o tratamento que, em romances posteriores, Jorge Amado dará à questão

A narração tem na figura de Jubiabá uma espécie de consciência viva, que

comenta e estrutura o universo em que os personagens se movem. Curandeiro,

curiosa mistura de xamã. e confessor, Jubiabá goza de um respeito completo na

comunidade em que vive. Cura doenças, faz mandingas, é venerado nas rodas de

60 Ver em DUARTE, 1996, o tratamento dado à questão da linearidade narrativa. P. 85 e ss.

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candomblé. Constantemente sua voz explica a vida, aceitando, no entanto, certas

coisas como imutáveis. Algumas amostras: logo no início da narrativa, comentam-se

as malvadezas de um tal Balbino e Jubiabá fecha o assunto:

Ninguém tinha reparado a chegada de Jubiabá. O macumbeiro falou: - Mas ele morreu de morte feia... Os homens baixaram a cabeça, bem sabiam que eles não podiam com Jubiabá que era pai-de-santo. - Morreu de morte feia. Nele o olho da piedade vazou. Ficou só o da ruindade. Quando ele morreu o olho da piedade abriu de novo. Repetiu: - O olho da piedade vazou. Ficou só o olho da ruindade... Então um negro troncudo chegou para perto de Jubiabá: - Como é, pai Jubiabá? - Ninguém deve fechar o olho da piedade. É ruim fechar o olho da piedade...Não traz coisa boa. Disse em nagô então e quando Jubiabá falava nagô os negros ficavam trêmulos: - Ôjú ànun fó ti iká, li ôkú. ( p. 33-4 )

Percebe-se que Jubiabá enuncia uma verdade absoluta, universal e

atemporal, que é, ao mesmo tempo uma lição e um comentário sobre o

comportamento humano. Esta enunciação desempenha um grande papel nas

reflexões e no amadurecimento de Baldo. Há uma constante preocupação em não

fechar o olho da piedade.61 O impacto das palavras do curandeiro em Baldo é

comentado pelo próprio narrador, logo a seguir: “Antônio Balduíno ouvia e aprendia.

Aquela era a sua aula proveitosa” (p. 35). A sabedoria de Jubiabá, sabedoria popular

fortemente ancorada na tradição oral dos ancestrais ( a repetição da fala em nagô o

comprova ) é uma das principais fontes de conhecimento de Baldo, parte das aulas

que ouvia e a que assistia nas ruas. Fonte de informação permanente, é Jubiabá

quem liga Antônio Balduíno a uma tradição, seja ao contar-lhe a origem do nome

Morro do Capa-Negro, seja ao narrar-lhe a história de resistência de Zumbi

61 Vale observar que as referências ao olho da piedade e ao olho da ruindade aparecem em outros textos de Jorge Amado. Parece que o autor se apropriou aqui de um recurso da tradição oral popular, usando-a como um elemento que, de alguma forma, explica vários comportamentos.

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No entanto, ao final da narrativa, descobre, com a greve, a insuficiência do

saber de Jubiabá; “Ele não compreende por que Jubiabá ainda não lhe ensinara a

greve, Jubiabá que sabia tudo”. (p. 298). E o aprendizado da greve o leva a entrar

em uma festa do candomblé e, como ogã, fazer um discurso em que diz:

Meu povo, vocês não sabe nada...Eu tou pensando na minha cabeça que vocês não sabe nada...Vocês precisam ver a greve, ir para a greve: Negro faz greve, não é mais escravo. Que adianta negro rezar, negro vir cantar para Oxóssi? Os ricos manda fechar a festa de Oxóssi. Uma vez os polícias fecharam a festa de Oxalá quando ele era Oxolufã, o velho. E pai Jubiabá foi com eles, foi para a cadeia. Vocês se lembram, sim. O que é que negro pode fazer? Negro não pode fazer nada, nem dançar para santo. Pois vocês não sabem de nada. Negro faz greve, pára tudo, pára guindastes, pára bonde, cadê luz? Só tem as estrelas. Negro é a luz, é os bondes. Negro e branco pobre, tudo é escravo, mas tem tudo na mão. É só não querer, não é mais escravo. Meu povo, vamos pra greve que a greve é como um colar. Tudo junto é mesmo bonito. Cai uma conta, as outras caem também. Gente, vamos pra lá. ( p. 299 )

A reação de Jubiabá ao discurso mostra uma certa cumplicidade entre eles,

considerando-se o papel de Exu: : “Exu pegou ele...”.(p. 299) Clóvis Moura chama

Exu de “signo libertário”.62

Muito da fala de Antônio Balduíno vem das lições do velho feiticeiro. Por

exemplo, em um determinado momento da narrativa, um homem na rua faz uma

peroração sobre os tempos antigos, em que os carros de bois ainda não haviam sido

substituídos pelos automóveis, e em que as pessoas viviam melhor e muito mais,

legitimando sua argumentação com a longevidade de alguns personagens bíblicos.

Termina seu discurso dizendo que, segundo a Bíblia, “no tempo do carro de boi

mulher dava à luz com cem anos”:

Mas não havia jeito de Antônio Balduíno acreditar. “Mulher parir com cem anos?” Não, ele não ia nisso. Aquele homem estava fazendo eles de besta, bobeando todo mundo com aquelas histórias. E ele vai abrir a boca para dizer isto mesmo, quando Jubiabá fala:

62 MOURA, 1977, p.178.

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- No tempo de carro de boi tinha negro com fome: Hoje também tem. Pra negro é a mesma coisa. O mulato velho apóia: - Ah! Isso é mesmo - e alarga o conceito - para pobre...(p. 250)

Em outros momentos Jubiabá reitera a condição do negro, oprimido e tratado

como escravo. No final da narrativa a questão é mais generalizada na voz de

Jubiabá: “Mas todo pobre agora já virou negro, é o que lhe explica Jubiabá”. (p. 291)

Como se vê, a sabedoria de Jubiabá contém muito de consciência social que

é, no entanto, marcada por um certo caráter de inevitabilidade. Daí a diferença que

acaba havendo entre ele e Antônio Balduíno, na medida em que este descobre que

as coisas não têm que ser como são, que podem ser mudadas. É significativa – e

mesmo paradigmática – essa diferença pois aponta para a superação – no sentido

dialético – da ainda ingênua consciência popular por uma consciência política mais

madura. Talvez a grande mudança que se vai operar posteriormente na ficção de

Jorge Amado esteja aqui: a consciência de uma prática política coletiva tende a

desaparecer. Passa a predominar um certo voluntarismo individual, quase sempre

associado à quebra de padrões da ordem. Ressalte-se, no entanto que, em qualquer

dos personagens posteriores que se colocam nessa perspectiva, o olho da piedade

não vazou em nenhum deles.

Jubiabá, de qualquer modo, é uma figura onipresente na narrativa, presente

mesmo quando ausente, porque sua voz e sua figura se impõem como detentoras

de verdades que pairam sobre o universo dos homens comuns e penetram

profundamente seus corações – mesmo quando endurecidos pela vida – e sua

imaginação. Como o mundo de Jubiabá é estruturado de forma coesa e organizada,

mundo em que nada está fora do lugar e tudo tem sentido, chega a se projetar, no

imaginário dos personagens, como uma espécie de desejo, indizível, o mais das

vezes, de algum sentido, de uma nova ordem para o universo em que se movem

cotidianamente. Pode ser até que esta nova ordem se constituísse a partir da

desordem em que, de algum modo, há profundo senso de justiça e solidariedade.

Este caráter de Jubiabá explica por que ele se apropria do título do livro. Ele é a voz

da tradição, dos ancestrais e a base de uma nova tradição que, negando a anterior,

a incorpora, modificada.

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A questão de constituir, de alguma forma, uma identidade, já começa a se

mostrar aqui: reafirma-se uma tradição, ao lembrá-la, mas a lembrança contém em

si elementos fundamentais de esquecimento, do que já falamos anteriormente.

É importante mencionar aqui o papel do personagem chamado de Gordo, que

recheia a imaginação de Antônio Balduíno com suas histórias, principalmente as

histórias de Pedro Malazartes. Ora, Antonio Candido chama a atenção para a

linhagem que liga Pedro Malazartes ao malandro brasileiro.63

Um outro aspecto importante a considerar, na leitura de Jubiabá, é a questão

da linguagem. Focaremos aqui alguns aspectos específicos. Em primeiro lugar, a

articulação e estruturação da linguagem narrativa, a macro-linguagem narrativa. Em

seguida, o modo pelo qual se articula a linguagem dos personagens e sua relação

com a linguagem do narrador.

A narração, em terceira pessoa, é construída de tal forma que o leitor se vê

enredado numa relação de cumplicidade com os personagens mais importantes, ao

mesmo tempo em que desenvolve uma profunda aversão a alguns outros, sempre

em função de uma determinada posição social que ocupam e não por suas

personalidades, mesmo que seja difícil separar as duas coisas, dada a estereotipia

com que estes últimos personagens são definidos.

O narrador se mantém sempre num diapasão extremamente lírico, misturando

percepções sensuais, cheiros, cores, ondulações, de modo a situar o leitor dentro da

cena, tornando-o cúmplice dos personagens, com quem estabelece uma relação de

empatia, mesmo que as ações que estejam cometendo não sejam muito “corretas”.

Esta, aliás, é uma postura narrativa bastante comum nos romances de Jorge Amado

em geral. Fala-se mesmo, de vários romances seus, de “poemas em prosa”.64 Pode-

se entender disso que há, no plano narrativo, uma tripla relação de identidade que

se estabelece a partir do elevado grau de subjetivização com que se narra, mesmo

em terceira pessoa: identidade do narrador com os personagens e destes com o

leitor.. Esta operação projeta o texto, de alguma forma, em um plano ideológico

porque o que se pretende é, simultaneamente, mostrar como se forja uma dada

consciência de mundo (em uma classe ou em um grupo ) e uma visão de mundo

que pré-existe ao narrado, articulando a linguagem narrativa e as idéias que ela

63 CANDIDO, 1993. 64 Cfr. ALMEIDA, 1979, p. 139 e seguintes.

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expressa. Ou seja, os elementos que parecem brotar da articulação narrativa são na

verdade decorrentes de uma tese que existe antes dela.

Depois do capítulo inicial, em que se mostra a força viril de Antônio Balduíno

em um ringue de boxe, o segundo capítulo começa a aliciar o leitor:

Antônio Balduíno ficava em cima do morro vendo a fila de luzes que era a cidade embaixo. Sons de violão se arrastavam pelo morro mal a lua aparecia. Cantigas dolentes eram cantadas. (p. 19)

Observa-se que a articulação da linguagem insere o personagem em um

mundo de sons e cores, tornando-o parte desse mundo, quase como apenas uma

outra cor, um outro som.. Ele é, desde logo, apenas visão e audição, sensações com

que o leitor pode se identificar, de imediato.65 Estes elementos são reiterados

durante toda a narrativa. No mesmo capítulo, no terceiro parágrafo retoma:

Apesar dos seus oito anos, Antônio Balduíno já chefiava as quadrilhas de molecotes que vagabundavam pelo Morro do Capa-Negro e morros adjacentes. Porém de noite não havia brinquedo que o arrancasse da contemplação das luzes que se acendiam na cidade tão próxima e tão longínqua. Se sentava naquele mesmo barranco à hora do crepúsculo e esperava com ansiedade de amante que as luzes se acendessem. Tinha uma volúpia aquela espera, parecia um homem esperando a fêmea. Antônio Balduíno ficava com os olhos espichados em direção à cidade, esperando. Seu coração batia com mais força enquanto a escuridão da noite invadia o casario, cobria as ruas, a ladeira, e fazia subir da cidade um rumor estranho de gente que se recolhe ao lar, de homens que comentam os negócios do dia e o crime da véspera. (p. 19-20)

Tudo se mistura em total indistinção, tingido pela magia envolvente da

linguagem que nos faz misturar as batidas de nosso coração às do coração de

Antônio Balduíno. A comparação entre a ansiedade do personagem e um homem à

espera da realização sexual é impressionante pela força que consegue imprimir ao

ardor da contemplação do menino. De qualquer forma, o detalhe negativo, ou seja,

que Balduíno já era, precocemente, chefe de quadrilhas de molecotes, se esmaece,

65 Não queremos aqui entrar nos problemas da estética da recepção, que é uma outra questão.

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quase se apaga. O próprio peso da expressão “quadrilha de molecotes” se ameniza

diante das sugestões líricas.

Podíamos rechear esta leitura com uma infinidade de citações semelhantes,

abundantes em toda a obra. Interessa, particularmente, realçar que, nas relações

dos personagens com o mar, essa impulsão lírica se acentua muito. Ora, é possível

observar aqui que o mar sempre representou muito para o imaginário e a fabulação

humana. Podemos voltar a Homero, Vergílio, Camões, entre os mais antigos. Mais

próximos de nós, em termos temporais, podemos citar a utilização do mar como

elemento primordial em que se desenrola uma luta formidável entre o bem e o mal,

o romance Moby Dick, de Melville ou a longa tradição iniciada por Baudelaire, em

seu poema “Le voyage”, em que vê o mar como espaço de infinitude, em que

podemos nos lançar “au fond de l’Inconnu pour trouver du nouveau” 66. O mar figura

ora como ameaça aterrorizante, ora como espaço de possibilidades

deslumbrantemente infinitas, mas sempre como mistério. Jorge Amado vai fazer uso

das duas possibilidades, não apenas em Jubiabá, mas de forma mais intensa em

Mar morto, sem falar da presença do mar em Quincas Berro d’Água, onde

Quincas, aparentemente ressurrecto, se mantém eterno em simbiose com ele.

Observe-se o trecho do capítulo chamado Cais:

Antônio Balduíno sabe a história de todos estes saveiros e de todas estas canoas. Desde menino gosta de vir deitar aqui no areal do cais, a carapinha no travesseiro de areia, os pés metidos dentro dágua. A água é morna e gostosa, a estas horas da noite. Balduíno, às vezes, fica pescando, silencioso , o rosto se abrindo em sorrisos quando fisga um peixe. Porém, em geral olha somente o mar, os navios, a cidade morta lá atrás. Antônio Balduíno tem vontade de sair, de viajar, de correr terras desconhecidas, de amar em areias desconhecidas mulheres desconhecidas. ( p. 132 )

Enquanto, neste trecho, o mar é desejo de romper amarras em direção ao

desconhecido, no final do livro ele aparece como possibilidade de romper o cordão

umbilical que liga o personagem à vida, possibilidade que só não se concretiza, pela

convicção política que adquire:

66 BAUDELAIRE, 1985, p. 452.

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Um velho no cais deserto toca realejo. A música vem em surdina e se espalha pelos saveiros, pelas canoas, pelos transatlânticos, pelo grande mar misterioso de Antônio Balduíno. Se não fosse a greve o mar engoliria o seu corpo numa noite em que a lua não brilhasse. Se não fosse a greve ele teria desistido de ser cantado num ABC, de ver Zumbi dos Palmares brilhando como Vênus. Um vulto passa ao longe. Será Robert, o equilibrista, que desapareceu misteriosamente do circo? Mas pouco importa. A música do realejo é plangente. A voz de Maria Clara se sumiu no mar. Mestre Manuel irá ao leme. Ele sabe todos os segredos do mar. E amará Maria Clara à luz da lua. As ondas do mar molharão os corpos e assim o amor será ainda melhor. A areia alva do cais prateada com a lua. A areia alva do cais onde o negro Antônio Balduíno amou tantas mulatas que eram todas Lindinalva, a sardenta. Se não fosse a greve o seu corpo de afogado seria depositado na areia e os siris chacoalhariam como chacoalharam no corpo de Viriato, o Anão. Brilha a luz de um saveiro. O vento levará até ele a melodia do realejo que o velho italiano toca? Um dia – pensa Antônio Balduíno – hei de viajar, hei de sair para outras terras. ( p. 328-29 )

Observe-se aqui o processo que chamei de subjetivização. As vozes do

narrador e do personagem se misturam, se tornam uníssonas. A 3ª pessoa apenas

mascara a voz em 1ª pessoa. É como se, esquizofrenicamente, Antônio Balduíno

falasse dele mesmo como um outro. Na citação anterior, o processo fica muito

evidente pela presença de um “aqui”, na segunda frase. “Aqui” se refere ao lugar em

que está Antônio Balduíno; em que está o narrador; ou ambos?

Esta mescla de vozes acentua ainda mais a liricização do texto e a empatia

possível do leitor com o personagem. Neste segundo trecho transcrito, a mistura de

coisas boas e coisas desagradáveis é esfumaçada pela envolvente magia das

palavras. A única palavra que fura o bloqueio do esfumaçamento é “greve”. Não só

pela repetição, mas pela positividade que ela irradia, eliminando o mal.

Jorge Amado usa, na construção do romance, o estilo direto e o estilo indireto

livre. Na utilização do estilo direto há uma preocupação permanente de captar a fala

dos personagens com todas as incorreções que possam apresentar, do ponto de

vista da norma padrão. Assim é que aparecem formas como “tou”, “quedê”, e

concordâncias típicas da língua falada, com o sujeito no plural e o verbo no singular:

“vocês não sabe nada”. Esta preocupação, como já dissemos, é uma forte marca do

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modernismo brasileiro que busca assim diminuir a distância entre a língua escrita e a

falada, tendo em vista que esta, tradicionalmente, é extremamente conservadora,

moldando-se, muitas vezes, a partir de um paradigma excessivamente lusitano. Esta

é, com certeza, uma seqüela da colonização. Os modernistas levam a cabo a tarefa

de romper de vez com esse padrão. Trata-se agora, como quer Oswald de Andrade,

em seus manifestos, de criar uma literatura de exportação, para substituir a antiga

literatura de importação.

Mário de Andrade, no capítulo “Carta pras Icamiabas”, de Macunaíma, ironiza

satiricamente a separação entre língua falada e língua escrita, principalmente

quando diz que, em São Paulo, as pessoas usam uma língua para falar e outra para

escrever, o que parece a ele surpreendente. Não obstante, o próprio personagem se

impregna da necessidade de escrever empolado e, por conta de sua inadaptação a

esse tipo de linguagem, acaba por cometer deslizes adoráveis, como, por exemplo,

a referência aos “testículos” da Bíblia.

De qualquer forma, quando Jorge Amado começa a escrever seus romances

na década de 1930, a ruptura com o passado já estava estabelecida e como diz

Mário de Andrade, mais tarde, já se afirmara o “direito permanente à pesquisa

estética” 67, o que permitia, então a utilização de uma extensa gama de variações

lingüísticas que servem, inclusive, como marcas de caracterização de personagens,

de sua posição social, e. mesmo de seus estados mentais Em geral, os

personagens de Jubiabá pertencem a uma mesma esfera social. Trata -se,

sobretudo, da “arraia miúda”, para utilizar a expressão de Antonio Candido, em

referência às Memórias de um sargento de milícias.68 São personagens que estão

situados entre os economicamente menos favorecidos, o povo.69 São trabalhadores

braçais, vagabundos, prostitutas, artistas de circo, pescadores, todos unidos na

árdua tarefa da sobrevivência diária.

A eles se opõem, no romance, algumas poucas figuras: o comendador e a

esposa; o advogado Gustavo Barreira; os proprietários em geral, entre os quais vale

destacar Ruiz, o marido de Dona Helena.

67 ANDRADE, 200 68 CANDIDO, 2000. 69 Emprego a palavra “povo” com uma certa cautela, tendo em vista a variedade de sentidos com que se pode preenchê- la. Trata-se, aqui, daqueles que não pertencem à elite econômica, dos que se movem na esfera da desordem.

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Observe-se, como contraponto, a diferença entre o discurso de Antônio

Balduíno na festa de Oxóssi, já citado, e o discurso do doutor Gustavo Barreira aos

operários:

- Senhores, como vosso advogado, trabalhei toda a tarde junto aos diretores da Companhia Circular. Testemunha melhor do meu trabalho e do meu esforço honesto é a grata nova que vos trago. Senhores, serei conciso. O caso foi solucionado completamente. (p. 306)

O tom é outro, o ritmo e a elaboração das frases estão muito distantes da fala

direta e coloquial de Balduíno. Na fala do doutor Gustavo a sintaxe e o vocabulário

são preciosamente escolhidos, de modo a marcar bem claramente sua posição de

homem superior.

É, aliás, característica de nossa sociedade a separação entre os que “sabem”

falar e os que “não sabem”. Discrimina-se e ridiculariza-se as pessoas que “não

sabem nem falar”. Depois dos estudos de Foucault, sabemos, mais do que nunca,

que as linguagens, ou as variações de linguagem são, também, artimanhas de

poder.70

Quanto ao discurso indireto livre, já falamos nele, nos momentos que

mostramos que narrador e personagem tendem à identificação.

Resta mencionar ainda um aspecto, relativo à valorização da linguagem das

tradições populares. O livro contém transcrições de trechos de textos de cordel, que

não é necessário reproduzir71. Há, ainda a transcrição de um bilhete da sorte tirado

por Rosenda Rosedá, que diz, entre outras coisas:

Não confies em pessoas que te adulam porque tudo é falso: És ainda ingênua por julgares a todos por ti. Tendes um bom coração e não julgas ninguém máu. Mas tudo isso não inspira muito cuidado porque nascestes n’uma boa estrella. A sua mocidade será uma correnteza de amores e terás no amor muitas desavenças. Casarás por fim com um rapaz a quem menos importância darás no princípio e por fim tomará posse no teu coração, que será o único que amará a vida inteira com verdadeiro affecto. (p. 246-7)

70 FOUCAULT, 1979. 71 Ver p. 23, 30 e seguintes.

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A transcrição direta no livro seria desnecessária, a não ser pela valorização

da linguagem popular. Observa-se que, ao usar a escrita, o tom se modifica, tenta

assumir uma solenidade que resulta, para um leitor mais letrado, em um efeito

deliciosamente engraçado. Ao mesmo tempo, permite reduzir a distância. É um

texto, com uma gramática meio capenga, que penetra, com força e vigor, em uma

obra literária. Assume um novo status, dada a estratégia do autor. A transcrição

direta permite uma relação dialógica com a voz narrativa. Bakhtin define assim as

relações dialógicas..

As relações dialógicas são possíveis não apenas entre enunciações integrais (relativamente), mas o enfoque dialógico é possível a qualquer parte significante do enunciado, inclusive a uma palavra isolada caso esta não seja interpretada como palavra impessoal da língua, mas como signo da posição interpretativa de um outro, como representante do enunciado de um outro, ou seja, se ouvimos nela a voz do outro. Por isto, as relações dialógicas podem penetrar no âmago do enunciado, inclusive no íntimo de uma palavra isolada se nela se chocam dialogicamente duas vozes ( o microdiálogo de que já tivemos oportunidade de falar). Por outro lado, as relações dialógicas são possíveis também entre os estilos de linguagem, os dialetos sociais, etc., desde que eles sejam entendidos como certas posições interpretativas, como uma espécie de cosmovisão da linguagem, isto é, numa abordagem não mais lingüística. Por último, as relações dialógicas são com a sua própria enunciação como um todo, com partes isoladas deste e com uma palavra isolada nele se de algum modo nós nos separamos dessas relações, falamos com ressalva interna, mantemos distância face a elas, como que limitamos ou desdobramos a nossa autoridade. Lembremos para concluir que, numa abordagem ampla das relações dialógicas, esta são possíveis também entre outros fenômenos conscientizados desde que estes estejam expressos numa matéria sígnica. Por exemplo, as relações dialógicas são possíveis entre imagens de outras artes, mas essas relações ultrapassam os limites da metalingüística.72

72 BAKHTIN, 1981, p.159-160

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É o próprio povo quem fala e não o narrador. Há, assim, algum aspecto da

polifonia bakhtiniana 73 aqui, bem como nos contrapontos entre vozes distintas, como

já mostramos.

Trataremos enfim da questão da religiosidade em Jubiabá. Se a figura do

velho Jubiabá já traz em si, quase como presença física, as marcas de uma

religiosidade ancestral, e se há, no próprio clima que a narrativa cria, uma certa

religiosidade meio difusa nos comportamentos e nas crenças, a forma mais explícita

de religião aparece nas diversas referências aos cultos de origem africana. Há,

mesmo, todo um capítulo, chamado “Macumba” ( p. 102 e seguintes ), em que se faz

a transcrição das letras das várias canções ritualísticas entoadas em nagô pelos

ofertantes.

Não há, no espaço narrativo deste romance, qualquer menção a outro ritual

religioso, isto é, toda a religiosidade ritual se dá no universo ligado à desordem, haja

vista as diversas menções que se faz à perseguição policial aos cultos africanos. Por

exclusão, embora isso não seja dito no romance, a religião “oficial”, trazida pelos

antigos colonizadores, não tem espaço neste universo, a não ser através das

apropriações que os cultos possam fazer do catolicismo.Ver, por exemplo, a

presença do catolicismo na macumba:

No altar católico, que estava num canto da sala, Oxóssi era São Jorge; Xangô, São Jerônimo; Omolu, São Roque e Oxalá, o Senhor do Bonfim, que é o mais milagroso dos santos da cidade negra da Bahia de Todos os Santos e do pai-de-santo Jubiabá. É o que tem a festa mais bonita, pois a sua festa é toda como se fosse candomblé ou macumba. (p 107)

Esta referência aparece apenas marginalmente, separada da narração da

festa em si. Mostra bem de que modo a religião oficial do antigo colonizador e

proprietário de escravos, se vê devorada e colocada a serviço de algo diferente dela.

Vê-se, assim, que há em Jubiabá, uma opção nítida e coerente por um

segmento populacional: o dos excluídos, dos miseráveis, dos que, como o Gordo,

caminham pelas ruas a perguntar, sem ter resposta, “Onde é que está Deus? Quedê

Deus...”.(p. 316) Os personagens da elite aparecem o mais das vezes,

caracterizados como estrangeiros, na menção ao comendador português, que adota

73 O romance polifônico se caracteriza por ser dialógico e não monológico

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Baldo na infância, aos americanos proprietários ou ao próprio Ruiz, cujo nome traz

marcas de outras plagas. Parece haver uma certa afirmação identitária nessa opção.

Os “verdadeiros” baianos e, por extensão, os “verdadeiros” brasileiros seriam esse

povo que, inclusive, traz em si, de acordo com as convicções próprias do “realismo

socialista”, a semente do futuro.

Mais uma vez, vale citar o próprio Jorge Amado: “Sei também, de ciência

certa, existir nas páginas que escrevi, nas criaturas que criei, algo imperecível: o

sopro de vida do povo brasileiro. Não carrego vaidade, presunção, e sim, orgulho”.74

.

2.2. SEARA VERMELHA: OS FILHOS DO LATIFÚNDIO

Seara vermelha, de 1946 75, é, sem dúvida, um dos romances mais violentos

de Jorge Amado A própria temática já contém em si os elementos dessa violência:

misturam-se aqui a questão do latifúndio e da exploração dos trabalhadores do

campo; a migração forçada, através da caatinga calcinada pela seca, e nas

condições sub-humanas dos barcos do rio São Francisco; os problemas do beatismo

messiânico e apocalíptico e do cangaço, e o levante militar de 1935 em cidades do

Nordeste brasileiro (a tão falada Intentona Comunista).

Elementos assim tão dispersos vão ser ligados através da família de Jerônimo

e Jucundina, incluindo os três irmãos, filhos deles, todos distantes e constituindo

cada um deles, José, João e Juvêncio, um núcleo narrativo próprio.

A narrativa se divide em três grandes blocos: Um Prólogo, chamado “Seara”;

um Livro primeiro, chamado “Os caminhos da fome” e um Livro segundo, chamado

“As estradas da esperança”, cada um deles dividido em vários capítulos.

O Prólogo prepara a narrativa posterior. Desenvolve-se na fazenda – situada

em um espaço geograficamente indeterminado, que pode ser qualquer um – em que

moram Jerônimo, Jucundina, a família e vários outros colonos. Vivem num regime

de semi-escravidão, na medida em que, não possuindo a terra, trabalham para um

patrão que raramente vêem, são forçados a vender a produção para a fazenda e só

podem comprar no armazém da própria fazenda, ficando sempre endividados.

74 AMADO, 1992, p. 396. 75 Todas as referências serão de AMADO, 1999.

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Apesar desse quadro desolador, a primeira parte tem um tom preponderantemente

alegre, sobretudo por causa da festa de casamento que se prepara e se celebra.

Mas há também alegrias miúdas, como a relação de Noca com a gata; a implicância

jovial e afetiva de Tonho; os sonhos e esperanças de Jucundina e Gregório. Uma

sonha com a volta dos filhos e a família toda reunida e o outro sonha com a terra

que ainda vai comprar.

Tudo isso acaba de supetão. Artur, o capataz que quer aproveitar o

casamento para se mostrar humano, recebe uma carta do proprietário da fazenda

dizendo que ela tinha sido vendida e que todos os colonos deviam ser mandados

embora, antes que o novo proprietário tomasse posse. Gregório tenta matar Artur e

foge. Os demais se dispersam.

Começa a segunda parte, centrada na migração da família de Jerônimo e

Jucundina. A família se estilhaça durante a viagem: Noca morre de infecção

generalizada; Marta se prostitui; Ernesto morre de diarréia; Zefa escapa para se

juntar ao beato Estêvão, Agostinho e Gertrudes ficam como trabalhadores numa

fazenda e Dinah também morre. Sobram apenas Jerônimo, Jucundina, João Pedro e

Tonho, que chegam a São Paulo.

A terceira parte está centrada nas figuras dos irmãos: José, cangaceiro

conhecido como Zé Trevoada, João, polícia militar e Juvêncio, chamado de Nenen

pela família, que faz carreira no exército a princípio e depois se torna profissional do

Partido Comunista. Vale observar aqui que o carinhoso apelido de Nenen remete a

uma figura real, Giocondo Dias, de quem Amado foi amigo íntimo. Nas páginas de

Navegação de cabotagem76 em que fala da morte do militante comunista, Amado

diz:

Morreu Giocondo Dias, agora sou metade apenas. Penso em Anna Seghers: a escritora e o militante, a alemã e o brasileiro, cravejaram a certeza no peito, jamais renegariam mesmo se a evidência os deixasse – e os deixou – sozinhos em meio à multidão de camaradas. Soldado, com os galões de cabo, comandou o levante militar de 1935 em Natal, deram-no por morto com não sei quantas facadas, não o levaram preso, não se prende defunto, Giocondo segurou o fio da vida, costurou as feridas, marchou em frente, sustentado por Lurdes prenha de meses.

76 AMADO, 1992, p 189-191

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Mais adiante, completa o comentário: “Sou metade de mim mesmo, tomo dos

braços de Gilberto, coloco sobre os ombros a morte de Neném. Sua mãe, la mamma

italiana, sua mulher Lurdes e eu próprio, os três e mais ninguém, o tratávamos por

Neném”.( p.189-191)

O personagem do livro participa do levante de 1935, tem o apelido de Nenen

e sua esposa chama-se Lurdes. Não é mera coincidência. O escritor recheia seus

livros com referências a pessoas de sua convivência, sem sequer, muitas vezes,

alterar-lhes os nomes.

O grande problema da narrativa está na última parte, que trata de Juvêncio.

Aqui, a tese se sobrepõe à narração e esta se torna quase exclusivamente, uma

exemplificação daquela. O livro provoca uma grande polêmica quando de seu

lançamento. Almeida77 cita Sérgio Milliet:

“Qual a tese do romance? O banditismo nasce do latifúndio. Acabando com o latifúndio desaparecem as causas do banditismo. O Partido Comunista é contra o latifúndio, logo a salvação está na adesão ao comunismo. Nada mais absurdo.”78

Na verdade, a tese do livro é mais do que isso: o latifúndio é a causa de todos

os males existentes no campo: banditismo, messianismo, migrações penosas e

assassinas. E como disse acima, a apresentação de Juvêncio como militante do

partido tende a mostrar o comunismo como solução.

Contudo, a polêmica que se dá no momento da publicação parece mais

preocupada com a tese do que com o fato de o livro ser ou não um romance de tese

Parece oportuno, aqui, chamar a atenção para o comentário de Maurício

Gomes de Almeida79:

Apontando as contradições já por nós assinaladas, enfatizando o relativo fracasso da proposta político-social do romancista, destacando o esquematismo simplista, maniqueísta, de muitas de suas estruturas ideológicas, certa

77 ALMEIDA, 1979, p. 205 a 212. 78 Idem, ibidem, p. 211. 79 ALMEIDA, 1999, p. 256

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crítica pretende negar inteiramente qualidade ao escritor. Tal posicionamento parte de um vício de perspectiva: ao invés de abordar a obra do autor de Terras do sem fim a partir de conceitos apriorísticos de como ela deveria ser, seria bem mais produtivo para a crítica analisá-la como ela de fato é, procurando penetrar em sua natureza íntima para trazê-la à luz. Nem sempre as intenções mais explícitas e conscientes de um escritor são as que conferem valor e permanência à obra.

Parece que, na verdade, temos dois livros dentro de um só. As teses

comunistas só aparecem ao final. Como coloca com precisão Eduardo de Assis

Duarte, “Entre o alargamento de horizontes e a partidarização, Seara vermelha

espelha a duplicidade construtiva. O primeiro movimento é de abertura e leva o texto

para os caminhos do romance histórico; o segundo, de nítido fechamento, submete

a perspectiva à clausura do discurso partidário e impele ao romance de tese"80

Na maior parte da narrativa, que é um livro por si só, Amado retoma veios já

trabalhados antes por outros escritores brasileiros, de Franklin Távora a Rachel de

Queirós, passando por Euclides da Cunha, Lima Barreto e José Américo de

Almeida. O próprio José Lins do Rego tratará do banditismo em Cangaceiros (1953)

e do messianismo em Pedra Bonita (1938). Sem falar em poemas como Morte e

vida Severina (1956), de João Cabral de Melo Neto.

O chamado “banditismo social”81 representou no nordeste brasileiro uma

forma de reação possível contra a violenta opressão a que os poderosos – coronéis

– submetiam a população mais humilde. O messianismo é endêmico na região

desde a época colonial, trazido talvez pelos próprios colonizadores, ansiosos pela

volta de D. Sebastião, depois da derrota de Alcácer-Quibir. De qualquer forma,

Euclides da Cunha já mostrara a gênese social deste fenômeno de massas.

Quanto ao latifúndio, talvez não haja algo mais virulento na literatura brasileira

que o sarcasmo de Lima Barreto na segunda parte de Triste fim de Policarpo

Quaresma (1916). Aliás, vale mencionar que Lima Barreto é o primeiro escritor no

Brasil a declarar-se um “literato militante”. O tom apaixonado de seus livros e as

80 DUARTE, 1996, p.168. 81 “O resultado final dessa evolução talvez seja o clássico “bandido social”, que parte para o crime por causa de alguma contenda com o Estado ou com a classe dirigente – v,g., uma querela com alguma autoridade feudal – e que é, simplesmente, uma forma mais ou menos primitiva de rebelde camponês”. ( HOBSBAWN, 1970, p. 15)

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denúncias que contêm antecipam muitos dos temas de Amado: latifúndio,

preconceito, descaso dos poderosos para com os oprimidos, etc.

Assim, se o texto de Amado representa alguma peroração pró-comunista, ele

não faz só isso. Há outros elementos na narrativa que importa considerar. Talvez a

indignação com o livro se deva à aliciação do leitor promovida pela linguagem

narrativa, como já vimos em Jubiabá e como veremos neste romance.

O grande personagem desta narrativa não é o comunista Juvêncio e, sim,

Jucundina, dotada de uma força telúrica que a aproxima das grandes heroínas

trágicas da Grécia, como Medéia, por exemplo. Ela intui e acredita, ainda que

difusamente, em uma vida melhor: A família é o grande núcleo de suas

preocupações. É por eles que ela se move, cai, e levanta-se novamente.

Diferente da Sinhá Vitória de Vidas secas (1938), cujo sonho era ter uma

cama de verdade, o sonho de Jucundina se projeta em outra esfera, em que se

mesclam lembranças do passado e um futuro mentalmente construído. Para ela, os

filhos, de alguma forma, não mudaram; permanecem tal qual eram no momento em

que os viu pela última vez. O único filho que ela vai rever é Juvêncio, o comunista.

João morre pelas mãos de Zé Trevoada, numa luta entre a polícia e os cangaceiros.

Zé Trevoada continua na vida do cangaço. O reencontro com Juvêncio na Ilha

Grande, onde estava preso, junta seu sonho ao do filho. Na verdade, o que se

percebe é a dissolução da tensão narrativa numa distensão sentimental, como se a

antevisão de uma sociedade igualitária, por si só, tornasse as pessoas diferentes.

Como seria saudável se ressoassem aqui os versos de Brecht: “Nós, que

pretendíamos criar o mundo da amizade/ nem bons amigos nós mesmos

conseguimos ser”.82

Vejamos como aparece Jucundina pela primeira vez na narrativa, no capítulo

2 do Prólogo:

A velha Jucundina, sem largar o menino, voltou toda sua atenção para os movimentos de Zefa. Aquilo durava há muitos anos, mas a velha não se acostumara ainda de todo, esperava sempre uma surpresa, qualquer coisa como um estranho milagre, um fato assombroso. Nascera naquelas bandas, ali crescera, casara, tivera filhos e netos, conhecia

82 BRECHT, Bertold.: “ Aos que virão”. A citação é feita de memória e não lembro onde li.

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cada palmo de terra, tinha as mãos calosas do plantio e da colheita, vira as secas e os jagunços, o assassinato na casa grande que provocara tanto rebuliço, mas nada se comparava com aquilo. (...) Quando chegava a hora das rezas, marcada pelo grito saudoso de Jerônimo, tangendo a criação, a velha Jucundina ficava sempre na expectativa, pois poderia acontecer de repente. O que, ela mesma não sabia. (p. 6)

Embora o trecho transcrito se refira especificamente às alucinações de Zefa,

o traço permanente de Jucundina é esta expectativa, esse desejo latente de algo

que ela mesma não sabe.

Mais adiante, a atitude de Jucundina é reiterada, dessa vez com relação aos

filhos:

Era um momento importante no dia trabalhoso da velha Jucundina porque sempre sucedia que juntavam-se na sua memória, ao grito do velho Jerônimo, os fatos referentes a Zefa, a expectativa dos acontecimentos milagrosos que poderiam suceder, e a recordação dos três meninos que haviam partido. Eram já rapazes quando se foram, cada um por seu caminho, cada um para uma vida diversa. Menos Nenen, cujo nome era Juvêncio, quase uma criança ainda quando fora assentar praça. Os outros dois já eram homens feitos, mas para Jucundina continuavam sendo os meninos e neles pensava todos os dias naquela mesma hora do fim da tarde. (...) Os anos tinham passado e nenhum dos três rapazes voltara. Essa era outra esperança secreta da velha Jucundina. Vê-los regressar para que ajudassem Jerônimo no trabalho da terra. E, apesar de que haviam partido em datas diversas, cada um por sua vez, cada um por um caminho, cada um para um destino, imaginava – eram poucos e pequenos quadros, formados no correr do tempo, que se sucediam inalteráveis na sua imaginação – que regressariam juntos, juntos atravessariam a cancela e juntos lhe pediriam a bênção. (p. 7)

Como se percebe, Jucundina aguarda o seu momento de epifania, uma

reviravolta que introjetasse sentido nas coisas que para ela parecem não ter razão

de ser. O desejo se concentra sempre na família. Aqui, principalmente em Zefa e

nos meninos, Mas, no decorrer da narrativa será mostrada sua preocupação com os

demais, notadamente quando, durante o êxodo, sua família vai se estiolando aos

poucos.

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Profundamente entranhada na terra, vendo a locomoção para São Paulo

apenas como a conquista de outra terra, melhor, Jucundina vê as coisas como se

controladas por fios invisíveis, movidos pelas mãos de um destino incompreensível.

Enquanto esperava começou a alisar de manso a cabeça de Noca a quem o tratamento aliviara. Também ela sofria, coitadinha, que mal fizera nesse mundo? Jucundina sente um estranho desânimo, de repente não compreende por que está naquele caminho estreito da caatinga, com os pés cortados de espinhos, as mãos cansadas, o corpo moído como se houvesse levado uma surra. Por que saíram da sua terra, por que deixaram sua casa, o curral, a vaca mansa, os pés de mandioca e milho? Por que botaram eles para fora? (p. 63)

As perguntas permanecem sem resposta, posto que Jucundina tem sua visão

limitada pela própria vida que leva, vida que não escolheu e que a tolhe e mutila,

ainda que ela não tenha a consciência de ser tolhida e mutilada. Percebe-se já aqui

uma diferença fundamental entre esta personagem e Antônio Balduíno, de Jubiabá,

de quem já falamos. Este último tem um espaço de aprendizagem, nos diversos

lugares que freqüenta e nas pessoas com quem convive, que lhe aguça a

curiosidade e o faz buscar respostas sobre sua própria condição social. As

perguntas de Jucundina não têm sequer um sentido retórico. Elas são um apelo

angustiado dirigido a ninguém. Seria muito forçado se, de alguma forma, ela

pudesse ver, no esforço coletivo, uma resposta para sua angústia e a realização de

seus desejos.

Aliás, é muito interessante observar que as mulheres de Jorge Amado, em

geral, se possuem uma força que as coloca como pilares em torno das quais os

homens gravitam, por outro lado, sua consciência não ultrapassa a barreira de uma

percepção limitada da vida. Em Seara vermelha, a própria mulher de Juvêncio é um

apêndice: acredita no que o marido diz ser verdade, apenas porque ele é seu

marido, porque o ama. No entanto, grande parte do ímpeto e da força de Juvêncio

provém dela, de seu afeto e de seu calor.

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Em romances posteriores aparecerão mulheres diferentes, como em Teresa

Batista cansada de guerra(1972) , para citar um exemplo. Mas, em geral, elas são

sólidas, alicerce e consolo para os homens. 83

E pouco mais que isso.

Observe-se em Seara vermelha a figura de Marta, amparo constante de toda

a família nos momentos difíceis e que, para conseguir que Jerônimo, doente,

embarque no trem para São Paulo, entrega-se, conscientemente, ao médico,

sabendo que isso lhe custaria um possível casamento e que a levaria à prostituição.

Isso conduziria, fatalmente, a sua rejeição por Jerônimo, mesmo que conte com a

compreensão de Jucundina que, no entanto, não tem coragem de opor-se

frontalmente ao marido. Ainda que venha a ser excluída da família, a consciência de

Marta não ultrapassa o âmbito da necessidade familiar.

Com relação à prostituição, como esse romance está centrado na narração de

vida dos miseravelmente excluídos, ela é mostrada como uma degradação imensa,

sem vestígios de uma certa glamurização que pode ser vista em outros romances de

Amado. Pense-se, por exemplo, em Teresa Batista cansada de guerra (1972).

O que se observa aqui, diferentemente de outros romances do autor baiano, é

que os excluídos da ordem, os marginalizados, embora tratados com a mesma

simpatia – quase cumplicidade –, são observados através de uma lente muito mais

pesada, que acentua neles os traços de degradação e de sofrimento. Talvez isso se

deva ao próprio espaço geográfico em que transcorre a maior parte da narrativa,

longe do relativo conforto da vida urbana. Como em Vidas secas, de Graciliano

Ramos, a secura da vida e da região fixa-se indelevelmente nos indivíduos.

Alguns outros personagens passam a ser, agora, objeto de nossa

consideração. Tomaremos, em contraponto, as figuras do Dr. Aureliano, dono da

fazenda de onde saiu a família de Jerônimo e médico formado no Rio de Janeiro e

do Dr. Epaminondas Leite, médico de São Paulo que vem trabalhar em Pirapora. A

trajetória dos dois é inversa: Aureliano cresce na fazenda e parte para estudar.

Aclimata-se no Rio de Janeiro e raramente vem à fazenda, pela qual tem pouco

interesse. Bem sucedido nos negócios, no Rio, logo vende a fazenda e desaparece

83 É interessante notar que, de alguma forma, esse tipo de visão impregna muitos textos da literatura moderna, no Brasil. Veja-se, por exemplo, o Cântico dos cânticos para flauta e violão(1945), de Oswald de Andrade. Todavia, isso é motivo para outro trabalho.

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da narrativa. Em uma de suas estadias na fazenda insinua-se para Marta, ainda

novinha, deixando-lhe impressões sensuais muito fortes.

Epaminondas conclui os estudos em medicina graças ao esforço do pai,

alfaiate, que se desdobra para que o filho possa ter o melhor. Bom estudante,

Epaminondas se gradua com distinção e fica tentando arranjar alguma função até

que suas relações com a família de um colega, rica e influente, lhe conseguem o

emprego de médico do posto de saúde em Pirapora. Cheio de entusiasmo e boas

intenções chega à localidade e começa gradativamente a perder o interesse e os

objetivos de fazer um bom trabalho. Sua primeira desilusão se dá no encontro com o

médico a quem viera substituir. O velho médico transformara-se em um bêbado

cínico e decadente e ironiza as boas intenções de Epaminondas. Este se vai

impregnando do clima estéril e sem perspectiva da cidade. Sua função aí é examinar

os retirantes e selecionar os mais saudáveis para embarcar para São Paulo.

Quando a família de Jerônimo chega para os exames, ele, já bastante

mudado desde que ali chegara, vê em Marta a possibilidade de algo diferente das

prostitutas que freqüentava. Leva-a para trabalhar em sua casa e tenta seduzi-la.

Marta termina por se entregar a ele, para que autorizasse a viagem de Jerônimo,

tuberculoso.

As duas histórias são exemplares. O filho do fazendeiro rico, bem colocado na

ordem social, vive muito bem no Rio de Janeiro, sem exercer a profissão, enquanto

que o rapaz pobre, que se forma com esforço, vai trabalhar em péssimas condições,

numa cidade do interior. Ambos, no entanto, se igualam na tentativa de se aproveitar

da moça pobre mas muito bonita. De alguma forma, ambos se degradam, embora

em espaços sociais diferentes. Aureliano, pela sensação de posse que seu poder e

sua fortuna lhe dão; Epaminondas, pela indiferença moral que aos poucos lhe vai

destruindo as convicções. Esta indiferença moral decorre do poder corrosivo da

mesma região que maltrata os migrantes.

A função de ambos na narrativa é, entretanto, diferente. Aureliano é o

poderoso filho de latifundiário, indiferente à sorte dos mais humildes; Epaminondas é

o rapaz talentoso, de origem humilde, abandonado pelas instâncias oficiais à sua

própria sorte, num fim de mundo que lhe rói as convicções. A origem social das

mazelas humanas é, com toda certeza, um traço muito forte de grande parte das

narrativas e poemas modernistas.

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Observemos agora o papel reservado na narrativa aos dois irmãos, José e

João. Vamos deixar Juvêncio um pouco de lado, na medida em que é um

personagem inteiriço, praticamente sem dúvidas, e que, por isso mesmo, acaba

funcionando como um mero porta-voz das convicções políticas do autor, mesmo que

este tente, ao máximo, fazer com que a figura do militante tenha um contorno

marcadamente humano, notadamente nas relações com a esposa, com alguns

companheiros e com sua família.

José é o segundo a sair de casa, acompanhando o bando de jagunços de

Lucas Arvoredo, quando passara pela fazenda. A vida aventurosa da jagunçagem

parecia-lhe muito mais fascinante que a monotonia da fazenda, repetindo as

mesmas coisas, em estado de verdadeira servidão, sem liberdade sequer para uma

vida amorosa mais intensa que os contatos fugazes com prostitutas. Some na

caatinga e, logo, seu nome se vê envolvido em histórias de múltiplas façanhas.

Desaparece o menino, filho de Jucundina, e aparece o famigerado Zé Trevoada,

matador destemido, temor dos povoados, cruel estuprador de mulheres. A cena em

que os homens de Lucas Arvoredo, após um combate contra os soldados, a quem

vencem, invadem a cidade de onde tinham vindo os homens da lei, mostra a

extrema crueldade, sem limites, do bando, sendo a narrativa centrada em Lucas e

em Zé Trevoada.

Zé Trevoada entrava no cinema arrastando a viúva do tenente. Puxava-a pelos braços, já lhe dera umas bofetadas pelo caminho. Ela viera como estava em casa, de chinelas, espenteada, aos soluços. Ele a atirou como um fardo em cima de uma cadeira:

–-Fica aí, mula... (p. 203)

E mais adiante:

Finalmente as luzes acenderam-se. A viúva do tenente estava desacordada, Zé Trevoada jogou-a nos ombros, saiu com ela. (p. 206)

Observa-se a absoluta indiferença dos jagunços pelas pessoas, aqui

sintetizadas na viúva do tenente, tratada como um traste sem valor. No entanto,

apesar dessa caracterização extremamente crua, beirando os métodos de

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representação naturalista, o narrador não se exime de mostrar sua simpatia para

com os bandidos, primeiro, através de sua própria voz narrativa; depois, através de

Lucas Arvoredo.

Saiu andando de novo. Os cangaceiros iam atrás, cutucavam-se com o cotovelo, chamando a atenção para os passos do pato, o bico que abria e fechava, o grito rouco. Vestidos de couro, armados até os dentes, revólveres, fuzis e punhais, os rostos ferozes, as barbas crescidas, um odor fétido, mas inocentes e puros, rindo admirados, felizes como crianças ante o esperado brinquedo... (p. 194)

Observe-se que a selvageria tem um aspecto complementar, não pouco

relevante, na “inocência e a pureza” que reveste os cangaceiros. É como se, de

alguma forma, fossem transformados em um tipo de anjos vingadores, cuja pureza

poderia justificar-lhes a bestialidade. Esta idéia, com certeza, não parece vir apenas

das convicções políticas e ideológicas que atravessam o livro. Está presente na

tradição judaico-cristã, profundamente enraizada em uma memória84 cultural coletiva

popular, desde a criação de um imaginário cruel e punitivo, calcado no Velho

Testamento e no Apocalipse de São João, e disseminado entre nós por séculos de

jesuitismo. Afinal, a própria mensagem de Cristo, no sermão das bem-aventuranças,

pode ser deslocada do contexto: “Bem-aventurados vós, que agora tendes fome,

porque sereis saciados./ Bem-aventurados vós, que agora chorais, porque haveis de

rir”.85 O banditismo social pode aparecer, assim, mesclado a muitas outras coisas e

há, nesse romance, uma confluência muito significativa entre o cangaço e o

messianismo. Uma leitura apressada de Jorge Amado poderia sugerir apenas uma

motivação ideológica imediata para a relação empática do narrador com os

bandidos. No entanto, parece ser mais que isso. Talvez uma intuição profunda, por

parte do escritor, a partir de sua identificação com os extratos da desordem, de que

haja coisas mais fundas na consciência popular do que pode conceber qualquer vã

filosofia.86

84 Lembrando sempre a imensa seletividade da memória. 85 A Bíblia de Jerusalém, 1995, p. 1940. 86 Parece relevante lembrar aqui o estudo de Marilena Chauí sobre a religião como resistência. Ver CHAUÍ 1980, p. 71-83

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Um outro momento, se não de identificação, pelo menos de uma explicação

plausível do caráter de cobrança e vingança da ação dos cangaceiros, aparece na

fala de Lucas Arvoredo.

Já estava na sala quando Lucas respondeu: - Pra que, seu moço?... Tou nessa vida de bandido porque tomaro as terras de meu pai. E não se contentaro, ainda mataro o pobre véio que nunca tinha feito mal a ninguém. E era uma porquera de terra, num chegava a dois arqueire...Lá quero terra pra me tomarem de novo...Sou bandido já vai pra mais de onze anos, vou morrer nessa vida. De morte matada porque nenhum macaco vai me pegar com vida, se Deus me ajudar... (p. 196)

A motivação de Lucas é um certo senso de justiça – ou de injustiça, o que, no

caso, dá no mesmo – e de busca de uma alternativa em que, em vez de sofrer, faça

sofrer. A punição se aplica a quem quer que esteja do “outro lado”, o lado dos não

excluídos, o lado da ordem, estabelecida e implacável. Observe-se, ainda, que não

há em Lucas qualquer noção de que vá pagar de alguma forma pelos seus crimes:

Deus vai ajudá-lo a morrer para escapar da cadeia e da punição. Alguma idéia de

castigo pós-morte parece afastada das preocupações e do discurso do bandido. Por

isso, como veremos, o messianismo parece alvissareiro, na medida em que anuncia

o fim do mundo, talvez o fim de um mundo87.

É nesse espaço que Zé Trevoada se encaixa, sem temer coisa alguma,

embora lhe doam as lembranças de casa e da mãe, principalmente. Fica

extremamente irritado quando lhe contam que a família foi expulsa da fazenda, pois

a julgava estável no mesmo lugar. A notícia apenas lhe atiça mais a sede de

vingança. Ingenuamente, Zé Trevoada, sintetizando os jagunços, vê na vida que

leva uma alternativa mais saudável: não recebe ordens, vive como quer, sem

respeitar leis ou patrões. E o que precisa, toma, como um rei auto-coroado da

caatinga e do sertão. As angústias metafísicas do letrado Riobaldo têm, nesse

universo, um correlato apequenado, em que a consciência apenas espreita pelas

gretas da intuição sofrida e dilacerada.

87 A canção de Sérgio Ricardo para o filme Deus e o Diabo na terra do sol, de Glauber Rocha, condensa essas reflexões nos versos: “O sertão vai virar mar/ e o mar vai virar sertão”.

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A última referência a Zé Trevoada é feita logo depois do massacre dos

seguidores do beato Estêvão e da morte de Lucas Arvoredo:

O sertão se esqueceu do nome do beato Estêvão, se esqueceu do nome de Lucas Arvoredo. Mas o nome de Zé Trevoada ficou cada vez mais famoso, sua malvadez e seus crimes deixaram muito longe os de todos os cangaceiros que o antecederam no domínio da caatinga. Dele diziam que não tinha mesmo coração, que homem assim tão ruim nunca surgira, nem mesmo Virgulino Ferreira Lampião. Nunca perdoou um soldado, nunca abateu um tostão nos tributos que lançava nas cidades assaltadas. As modas diziam dele: Trevoada já chegou, muito sangue vai correr... (p. 262)

Zé Trevoada, como personagem, penetra em uma dimensão mítica,

transformando-se numa espécie de paradigma da crueldade vingadora. Os vestígios

de humanidade que pudesse ter se esmaecem na falta de contornos de um nome

sem rosto: substitui, às avessas, a prepotência de um Estado que oprime os

excluídos da ordem: faz suas próprias leis e as aplica, cobra impostos a seu modo e

os distribui como bem lhe aprouver.

João, chamado de Jão, é um tênue contraponto a Zé Trevoada. Em vez do

cangaço, opta pela polícia, assentando praça. Duas faces da mesma moeda, polícia

e cangaceiros se esmeram na competição para conquistar a coroa de mais cruel,

mais bárbaro mais insano.

Abandonando a fazenda pela cidade, João, depois de assentar praça, se

acostuma com aquela vida e com o relativo poder que ela lhe dá.

Assim passaram os anos, pensava em fazer concurso para cabo, mas ia adiando, não gostava de estudar, a vida de soldado era boa. Tinha regalias, bonde não pagava, impunha respeito com a farda. De quando em vez brigavam com os soldados do exército, havia tiroteios nas ruas de rameiras, algum saía ferido ou morto. O caso era comentado, eles se reuniam, arquitetavam planos, a cidade vivia momentos de pânico. Mas os superiores tomavam providências, suspendiam as licenças, todo mundo do quartel na hora de recolher. O incidente era esquecido, voltavam às boas com os milicos do exército. (p. 238)

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Esses privilégios e uma certa irresponsabilidade que os acompanha passam a

ser parte do modo de ser de João, mas apenas epidermicamente, como veremos

adiante. Parece importante ressaltar aqui que esse parágrafo mostra uma

semelhança muito grande entre o comportamento de João e o de Antônio Balduíno,

como já vimos, e o do personagem central de Tenda dos milagres(1969), Pedro

Archanjo, como veremos.

Não há, como dissemos, muita diferença entre o jagunço e o soldado:

Revia então as cenas da fazenda, os velhos pais na labuta, a tia Zefa dizendo suas coisas atrapalhadas, Marta correndo no terreiro, sua irmã casada partindo com o marido. E tinha saudades, naquelas noites bebia mais cachaça, dava uns tabefes na rapariga, entrava com outros soldados em casa de mulheres, expulsando os paisanos a tiro. (p. 238)

O contraste possível deve-se apenas à oposição entre ordem e desordem: os

soldados têm o respaldo das instituições do Estado e da sociedade; os cangaceiros

têm apenas o respeito, o medo e a admiração dos que estão à margem do Estado e

da sociedade.

A tropa de João, encarregada de acabar com o beato Estêvão e seus

seguidores, acaba em confronto com os cangaceiros, que defendiam o beato. No

caminho para o sertão, João se transfigura. O sertanejo brota vigorosamente de

dentro da farda, semente revigorada pelas agruras e pela secura da caatinga. A

crença no messianismo viceja fertilmente no corpo de João, em seu sangue e sua

mente. Parece-lhe errado atacar o beato.

Um trecho é muito significativo para mostrar não apenas o velho Jão saindo

de dentro do soldado, mas também a sua identificação tanto com o beato quanto

com os cangaceiros. É um trecho em estilo indireto livre em que a narração se passa

na cabeça de João, como se o narrador pensasse com ele e para ele.

Jão não criticava, nos seus pensamentos melancólicos, o seu capitão. Se ele estivesse em seu lugar agiria de idêntica maneira, mas ele não era capitão comissionado em coronel, era um simples soldado, menos ainda: ali se sentia apenas um camponês, crédulo e ingênuo, solidário no fundo do coração com o beato Estêvão, crente nas suas palavras ameaçadoras. Tinha medo de Lucas, é bem verdade, mas não lhe tinha ódio, era um deles, saíra da mesma dor e da mesma desgraça que os

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demais sertanejos. E se matava e roubava, se violava e assaltava, é que haviam matado seu pai para tomar a sua terra e ele fora muito homem para se vingar e cair no cangaço. Talvez ele tivesse feito o mesmo se estivesse em casa quando puseram o velho Jerônimo para fora de suas terras... (p. 241)

Quando Zé Trevoada o mata, João, de alguma forma, tem seu momento de

epifania:

Deitaram-se, o cano dos fuzis passando entre os troncos delgados dos arbustos. A noite era escura, sem lua, mas os olhos de Zé Trevoada sabiam enxergar no negrume da noite. Via as pernas do soldado marchando. Não sabia que era seu irmão, Jão, o que tinha partido antes de todos. Pelo seu passo calculava o momento em que deviam pular e atirar, soltando seus gritos que amedrontavam, seus gritos de guerra de cangaceiros. É agora. Um sinal que passa de homem em homem. E os gritos cortando a caatinga, gritos de animais em fúria, terríveis de parar o coração. Zé Trevoada levanta o fuzil, no clarão do tiro Jão viu seu rosto. Era seu irmão José e ele murmurou o seu nome mas Zé Trevoada partia pra frente, os cangaceiros atiravam. Jão viu os soldados correndo, ouvia a voz do tenente gritando ordens mas ouvia tudo baixinho e enxergava através de uma nuvem que cobria seus olhos. A única coisa que via perfeitamente vista era a face de seu irmão José disparando o fuzil, a boca aberta num grito, os olhos apertados de raiva. E no momento mesmo de morrer Jão compreendeu que era o falado Zé Trevoada, lugar-tenente de Lucas Arvoredo. E ainda pôde desejar que ele escapasse com vida e o beato também, ah!, o beato também... Os tiros continuavam e na parte fronteiriça ao acampamento ressoavam os passos dos soldados no ataque decisivo. Zé Trevoada gritava seus gritos de guerra, Jão morrera sorrindo. (p. 260-1)

O reconhecimento do irmão implica, no momento da morte, numa certa

identificação entre ele e o beato, desejando a salvação de ambos. Se se quer tomar

alguma simbologia religiosa aqui, ela é possível: de forma alvissareira, Jão se

sacrifica para que o irmão e o beato vivam, na medida mesmo em que não esboça

qualquer reação e sorri para a morte e para a possível redenção através da

sobrevivência dos outros dois.

O que queremos notar, aqui, é que, diferentemente de Jubiabá, a questão da

religiosidade aparece embutida na própria consciência popular, de uma forma

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intuitivamente sensorial. É como uma cega lei física de ação e reação. Cega porque

não há qualquer tipo de raciocínio mais abrangente que ligasse as coisas e desse

um sentido a ela além da percepção imediata.

As vozes mais conseqüentes, tendo em vista alguma forma de projeção

teleológica, aparecem em Zefa e, principalmente, no beato Estêvão. Zefa, em sua

loucura, intui o desconcerto do mundo. É interessante notar que, em muitas culturas,

a loucura é considerada um estado semi-divino: os loucos sabem o que não

sabemos, pois podem se comunicar com os deuses. O respeito que Lucas Arvoredo

demonstra por ela pode ser um indício de que as palavras insanas, por anunciarem

uma mudança drástica, encontram eco no espírito do cangaceiro, no fundo ansioso

por uma nova ordem. Zefa anuncia o fim dos tempos, marcados pelo pecado e pela

degradação:

Durante certo tempo Zefa ficou ainda mais atrapalhada, como se houvesse sido roubada, e levou dias a voltar à regularidade de sua vida, a atender às variantes do crepúsculo, a iniciar sua revelação ao grito de boiadeiro de Jerônimo. Os homens já pecou demais, gritou ela, o mundo vai se acabar. Estende as mãos e avisa: - O castigo de Deus tá perto, ninguém vai se salvar... E repete as palavras como um refrão: - Desgraçados...Desgraçados... (p. 32)

Em seu delírio, Zefa constrói algum sentido para a hostilidade do mundo,

ainda que este sentido esteja na própria destruição do mundo. Sua referência ao

pecado, embora seja fruto do catecismo cristão, adquire um novo sentido em vista

de suas vidas agrestes.

Zefa acaba por abandonar a família para se juntar ao beato Estêvão. Este

tem, em seu delírio, uma consciência mais aguçada que a de Zefa. Entende que os

problemas que enfrentam são gerados por uma estrutura social opressiva e

excludente e não vê outra solução que não a intervenção divina. Há uma longa

exposição que faz e que mostra com clareza o alcance e o limite de sua consciência.

O beato repetia todas as noites, envolto na luz da fogueira, parecendo pairar sobre a terra: - Num vai ficar pé de pau, nem capim rasteiro, nem limo molhado. Num vai ficar nem passarinho, nem bicho do chão, nem bicho das água, nem peixe nem sapo, num vai ficar

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vivente nenhum...Vai morrer tudo na mesma hora. Primeiro é eles, depois é o homem, os bons e os ruim, os rico e os pobre, os são e os doente. Foi Deus que mandou dizer... [.......................................] - Tudo vai prestar conta, tintim por tintim, num pode esconder mesmo que queira, num pode mentir, quem pode mentir pra Deus que vê tudo? [.......................................] - Deus se cansou, seus olho se fechou, aguniado de ver gente tão ruim fazendo ruindade pros filho dele...Os olho de Deus espiavam o sertão, só via desgraça. Menino morrendo sem ter de comer, os homens morrendo sem ter tratamento. Os homens sem terra suando na terra dos outro...Gente cum tudo, gente cum nada...Deus achou ruim, num tava direito... [.......................................] - Deus me chamou, mandou que viesse. Estêvão, diz a eles que o mundo vai acabar. Quem fizer penitença vai se salvar, quem não fizer num tem salvação...Quem não fizer não tem salvação, Deus foi quem disse.... [..........................................] - Chama só os pobre, os rico tá tudo perdido, fizero coisa de espantar, num quero ver eles. Os rico tá condenado, não salva nenhum... [........................................] - Já gozaro na terra, os pobres sofrero...Manda eles fazer penitença que vou acabar cum mundo de vez, com os bicho, os pés de pau, as borboleta e cum os homem... Assim falou Deus e estava cum raiva, cum raiva dos rico, cum raiva dos homem... (p. 251-2)

O discurso se estende ainda, mas, para efeito do que queremos dizer, a

transcrição é suficiente. As partes suprimidas referem-se a intervenções de Zefa,

repetindo as palavras do beato.

Observe-se que o beato só garante a salvação dos pobres. Os ricos que,

segundo a sentença bíblica, têm mais dificuldade em entrar no reino dos céus do

que um camelo em passar pelo buraco de uma agulha, estão excluídos. Não lhes

vale sequer a penitência. É evidente que Estêvão não que destruir o mundo mas

quer, com certeza, destruir um mundo de exclusão e exploração Há uma

consciência, ainda que incipiente, de que as coisas podem ser diferentes do que

são. Na impossibilidade de conceber alguma ação política, de convencimento e

entendimentos entre os seres humanos, a saída messiânica aparece como solução.

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Note-se que esta mudança abrupta da ordem é prenunciada na própria Bíblia, como

já dissemos, pelo Apocalipse de São João.

É possível que haja, na ideologia socialista que Amado adota, uma certa

contaminação desse imaginário popular, impregnado por múltiplas fontes de

influência e modelagem. A revolução substitui a parusia e instaura no mundo uma

nova era de paz, harmonia, solidariedade e fraternidade.

O que parece emergir dessa narrativa é, mais uma vez, uma decidida

identificação do narrador com os extratos mais humildes e oprimidos da população.

Os membros da elite aparecem vagamente, como o Dr. Aureliano, de quem já

falamos, ou como o senador que acoita cangaceiros, por interesses politiqueiros de

poder local.

Assim, pode-se afirmar que aparece uma visão muito clara sobre quem é o

brasileiro: trata-se do “povo”, aquela imensa massa de deserdados que trabalha e

luta tenazmente para que os poderosos usufruam de seu suor. A opção decidida por

uma recusa definitiva dessa ordem de coisas é um desdobramento conseqüente

dessa posição. Há uma “nação” que se gesta no sertão e nas ruas, e de que estão

definitivamente afastados os que pretendem tutelar o Brasil de cima para baixo.

Não escapam a essa postura ideológica, uma mistura dos sentidos (i) e (iii) de

que fala Williams, nem a religião nem a linguagem. A primeira se vê apropriada e

transformada em instrumento de resistência ferrenha. Muitas vezes usada como

parte do arsenal de manipulação e dominação, a religião se volta contra os

manipuladores e dominadores, condenando-os, ainda que no plano retórico, à

eterna danação.

Quanto à linguagem, ela se torna também um instrumento poderoso de

transgressão, na sintaxe estropiada – de acordo com os padrões cultos –e em um

vocabulário rearranjado, carregado de intenções e significações. Se observarmos

com atenção o trecho que transcreve o sermão do beato Estêvão, o narrador às

vezes parece oscilar entre a forma “errada” do discurso popular e a sua aderência,

como narrador culto, à norma. Ora é “os homens”, ora é “os homem”; ora é “não”,

ora é “num”. Como já se disse, a intenção do autor pode esbarrar nos limites, não só

de sua consciência, mas de sua própria inserção social em um sistema de produção

literária que lhe exige um mínimo de disciplina e coerência.

Assim é que, nesse romance há uma certa vacilação quanto ao uso da

linguagem. Se ela pode ser “errada” quando fala o povo politicamente

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desorganizado, ela adquire uma feição mais “correta” se usada pelo narrador e pelos

revolucionários.

Finalmente, resta mencionar que o pano de fundo da principal ação de

Juvêncio é a insurreição de 1935, conduzida pela Aliança Nacional Libertadora. Os

fatos históricos relativos à derrota do levante são muito conhecidos. Importa

comentar aqui que o romance apresenta uma versão de baixo para cima, diferente

das versões oficiais. Isto pode servir como uma forma diferente, apesar de todo o

comprometimento de Jorge Amado, de rever a história.

Interessante é que uma das reflexões de Juvêncio em sua militância é que

“Teria sido cangaceiro se encontrasse Lucas na sua ansiosa busca pela caatinga”

(p.286). Esta frase fecha nosso raciocínio, que vem sido desenvolvido desde o

início: cangaço, messianismo e socialismo caminham na mesma direção: a recusa

ou destruição de um mundo baseado na injustiça e na espoliação.

2.3. – TENDA DOS MILAGRES: ARCANJOS E IABAS NAS LADEIRAS DA BAHIA.

Tenda dos milagres (1969)88 é, dos romances de Jorge Amado que

escolhemos para trabalhar, o que apresenta uma elaboração mais sofisticada, tanto

por sua inspiração em pessoas e fatos reais89, quanto pela estruturação da narrativa.

Se em Jubiabá e Seara vermelha temos um narrador em terceira pessoa que,

apesar da empatia com os personagens e seu discurso, não faz parte da narrativa,

em Tenda dos milagres temos dois narradores: um, em terceira pessoa, que se

intromete a todo momento; outro em primeira pessoa que pesquisa e narra a vida de

Pedro Archanjo e outras peripécias. Esse narrador em primeira pessoa se apresenta

já no segundo capítulo. A apresentação é, por si só, muito interessante: no título,

quem apresenta o narrador em primeira pessoa é o narrador em terceira pessoa:

“De como o poeta Fausto Pena, bacharel em Ciências Sociais, foi encarregado de

uma pesquisa e a levou a cabo”. O título, bem próximo dos títulos de antigos

88 Todas as referências serão feitas a AMADO, 2001. 89 Ver, a respeito, a elaborada leitura das diversas motivações do livro em GOLDSTEIN, 2003.

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folhetins ou das narrativas de cordel, é logo seguido, no primeiro parágrafo do

capítulo, pela voz em primeira pessoa. “Encontrarão os leitores, nas páginas que se

seguem, o resultado de minha pesquisa em torno da vida e da obra de Pedro

Archanjo” (p. 6). Esta mescla de vozes se repete em outras partes do livro,

contribuindo muito para o ritmo da narrativa, acelerado, confundindo o leitor com

opiniões e comentários variados. Acrescente-se a isso o fato de Fausto Pena narrar,

de modo praticamente simultâneo, acontecimentos de sua própria vida, mesclando-

os à narração que faz da vida de Pedro Archanjo, já falecido e, no entanto, o mais

vivo de todos os personagens.

A narrativa tem, muitas vezes, um tom satírico bastante sarcástico,

principalmente quando trata de personagens bem situados na hierarquia social da

ordem. Logo no início, ao tratar da vinda ao Brasil de James D. Levenson, renomado

professor norte-americano, agraciado com o prêmio Nobel, a narrativa parece

reproduzir o desprezo revelado por Jorge Amado no texto que utilizamos como

epígrafe na abertura, Levenson vem buscar mais informações sobre Pedro Archanjo,

cujos livros lera nos Estados Unidos e, em contraponto às informações que detém, é

mostrada a ignorância da intelectualidade local. Quem possui alguma informação

sobre Archanjo está situado, quase exclusivamente, no espaço da desordem, onde

Fausto Pena irá colher dados para sua pesquisa.

O pano de fundo maior da narrativa é a questão da miscigenação racial,

apontada como vantajosa e caracterizadora do que seria o paradigma do brasileiro.

Trata-se, aqui,de um libelo violento e bem-humorado contra as doutrinas que

preconizam a superioridade da pureza racial. Se a questão racial já aparecia, de

alguma forma, em Jubiabá, ela se torna, nesse último romance, o foco central das

atenções. Duas figuras maiores se opõem, no debate de idéias: de um lado, Pedro

Archanjo, tenaz defensor da mistura de raças e, de outro, o catedrático de medicina

Nilo Argolo, persistente e feroz partidário da pureza racial.

Um trecho do livro pode sintetizar bem a oposição entre as duas correntes de

pensamento, presente em toda a narrati va:

Ao chegar ao chafariz, no centro da praça, foi cercado pelo grupo e um dos estudantes, quartanista pachola, dado a festa e a trotes, apreciador dos talentos de Archanjo ao violão e ao cavaquinho – ele próprio dedilhava com agrado as cordas da viola -, exibiu-lhe um folheto. Que acha disto, mestre Pedro?

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Os outros riam, na evidente intenção de gozar o mulato janota e boa-praça. Archanjo passou a vista pelas páginas, seus olhos se fizeram pequenos e vermelhos. Para o doutor Nilo Argolo a desgraça do Brasil era aquela negralhada, a infame mestiçagem. - O professor descasca você, não deixa vasa – comentou, a divertir-se, o quartanista. – De ladrão e assassino para baixo, não faz por menos. Você está na fronteira entre o irracional e o racional. E os mulatos são piores que os negros, veja lá. O Monstro acaba com você e sua raça, mestre Pedro. Pedro Archanjo veio vindo de muito longe, recompunha-se: - Só comigo, meu bom? Fitou o cabelo do rapaz, a boca, os lábios, o nariz.- Acaba com todos nós, com todos os mestiços, meu bom. Comigo, com você... – e passando o olhar pelos demais - ... Nesse grupo ninguém escapa, nem um para remédio. Risos breves, desenxabidos, dois ou três às gargalhadas. O quartanista confessou com bom humor: - Com você ninguém leva vantagem: já reduziu a nada as árvores genealógicas da gente. Do grupo destacou-se um rapazola, o ar distante e impertinente: - A minha, não – o estulto cavalgava quatro sobrenomes e duas partículas de nobreza. - Na minha família o sangue é puro, não se sujou com negros, graças a Deus. Archanjo dissolvera o ódio e agora se diverte; sente-se forte de um conhecimento absoluto, e sabe que a tese do doutor Nilo – um babaquara, um porrão de merda – é só erro e calúnia, presunção e arrogância. Olhou o rapazinho: - Tem certeza, meu bom? Quando você nasceu sua bisa já era morta. Sabe como ela se chamava? Maria Iabaci, seu nome de nação. Seu bisavô, homem direito, casou com ela. - Negro insolente, vou lhe partir a cara. (p.95-6)

Observe-se que essa discussão, bem como a tese central do livro, a favor da

miscigenação, toca em uma questão crucial para sociedades, como a brasileira, em

que a mão de obra fundamental para o funcionamento da economia foi, durante

séculos, de negros escravizados. A divisão entre trabalho intelectual e trabalho

manual típica de muitas sociedades, ainda hoje, privilegia a atividade “do espírito”

em detrimento da outra atividade, própria de indivíduos sem qualificação,

socialmente inferiores. No nosso caso, a desqualificação é ainda maior, pois muitas

vezes ao escravo se tira a própria humanidade: são bestas de carga, alimárias do

universo, como chamou Castro Alves aos filhos de África. O problema também

existiu em Angola, como veremos adiante.

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É interessante lembrar aqui uma referência feita por Christopher Burden em

artigo para a revista Nossa história: em 1827, durante a guerra entre Brasil e as

Províncias Unidas do Rio da Prata o ministro da Guerra solicita ao ministro de

Assuntos Estrangeiros o recrutamento de 3 mil irlandeses para “ apartar das fileiras

do Exército os homens de cor”.90

Nesse quadro, desenvolve-se uma forma de violência muitas vezes velada: a

violência racial, o racismo. Ordep Serra coloca bem a questão:

O racismo no Brasil, conforme sucede em todo o mundo, se apóia em mecanismos e aparelhos ideológicos que operam no campo da socialização; infiltra-se nas redes de comunicação, em poderosos veículos de formação de opinião, e assim se propaga. Por esses meios, também, vem a exercer-se uma violência simbólica que minimiza os negros, chegando a inviabilizá-los em muitos contextos, o que facilita sua exclusão, e não raro atua também perversamente sobre suas vítimas, impondo-lhes uma auto-imagem negativa; pode assim levar os negros, por exemplo, a colocar-se em conflito consigo mesmos, a rejeitar sua identidade deteriorada, a aceitar juízos negativos sobre sua origem e buscar “superá-la”. A estratégia do branqueamento, que reflete um ideal racista por longo tempo dominante, chegou a ser assimilada por parte de suas vítimas.91

Dessa forma, o branqueamento aparece como uma exigência política e social.

É já verdadeiro truísmo no Brasil falar-se de um negro que se destaca em alguma

atividade que ele tem a “alma branca”. Ressalte-se que esta ascensão através de

alguma recusa da origem étnica – e social – aparece no livro através de Tadeu

Canhoto, o filho de Archanjo, formado em engenharia, que, mesmo sem renegar as

origens, distancia-se gradativamente delas.

É bom lembrar aqui que o Brasil já teve uma política oficial de

branqueamento:

Desde o final do Império e os primeiros anos da República cogitou-se, e veio mesmo a se implementar no Brasil uma estratégia deliberada de favorecimento à migração européia, com vistas à mudança do perfil racial da população, isto é,

90 BURDEN, 2005, p. 62. 91 SERRA, 2005, p. 26.

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com o objetivo explícito de seu embranquecimento. Entre 1884 e 1913, cerca de 2,7 milhões de europeus foram acolhidos no Brasil, num processo que incluiu o provimento de subsídios para a instalação de colônias agrícolas; ao mesmo tempo, o mercado formal de trabalho tornou-se cada vez mais fechado aos negros, pelo menos no Sul e no Sudeste. Estimou-se que em 1915 cerca de 85% da força de trabalho empregada nas indústrias de São Paulo era formada de estrangeiros. Isso levou alguns políticos e intelectuais a se congratularem com uma perspectiva que saudavam como alvissareira: no Congresso Brasileiro de Eugenia, realizado em 1930, Roquete Pinto estimou que em 2012 a composição racial no Brasil seria de 80% brancos, 17% indígenas, 3% mestiços e 0% negros. Essa previsão parece condenada...Mas a política em apreço produziu efetivamente alguma mudança no perfil racial do Brasil, visto como os pretos e pardos, que em 1890 formavam 65% da população do país, já em 1940 representavam apenas 34% dela.92

De qualquer modo, há nas obras de Jorge Amado uma valorização muito

grande do negro e do mestiço, o que as opõe a obras anteriores da literatura

brasileira, como, por exemplo, O cortiço(1890), de Aluísio Azevedo, em que o autor

maranhense faz a mulata Rita Baiana procurar no português Jerônimo“ o macho de

raça superior”. Se esta valorização já aparece no negro Antônio Balduíno, de

Jubiabá, torna-se aqui, em Tenda dos milagres, mais do que leit motiv, uma

defesa acentuada da tese que aponta as vantagens da miscigenação e aponta para

a caracterização do brasileiro como essencialmente mestiço.

Pedro Archanjo é uma espécie de síntese das qualidades do negro ou do

mestiço. A narrativa, que não obedece a nenhuma estrutura cronológica rígida

acompanha sua vida e as mudanças que se operam nela. Embora Archanjo não se

modifique substancialmente em suas convicções, passa por etapas de

amadurecimento que o levam, inclusive, a debruçar-se sobre os livros, para

fundamentar muitas de suas certezas e contrapor-se, assim, às muitas teorias

racistas em voga.

A apresentação do personagem, depois dos elogios de Levenson, que

anunciam sua existência para o mundo, se dá, de chofre, através de sua morte, de

um ataque cardíaco fulminante, no meio da rua. A cena alterna a narração externa,

que mostra o velho caminhando tropegamente pelas ladeiras e a narração dos 92 SERRA, 2005, p. 20.

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pensamentos dele, em discurso indireto livre. Mesclam-se em sua cabeça

lembranças variadas de sua vida, mas ocupa um papel nuclear a memória das

notícias que fora ouvir aquela noite no aparelho adquirido por Maluf, amigo de

Archanjo. As notícias eram sobre as sucessivas derrotas dos nazistas na 2ª Guerra

Mundial e as discussões subseqüentes enfocam o arianismo, a pureza racial e os

ouvintes têm opiniões contrárias à defesa do purismo racial. Diante do comentário

de que, se Hitler ganhasse a guerra poderia matar todos os que não fossem brancos

puros, de uma só vez, Maluf retruca:

-- Nem Deus, que fez o povo, pode matar tudo de uma vez, vai matando de um a um e quanto mais ele mata mais nasce e cresce gente e há de nascer, de crescer e de se misturar, filho-da-puta nenhum vai impedir! – a mão ao bater sobre o balcão emborcou o copo e lá se foi o resto da cachaça. (p.23)

A frase de Maluf ressoa na cabeça de Archanjo, misturada às outras

lembranças, no momento em que morre. Com a descoberta do corpo por amigos

começa-se a estabelecer uma aura mítica que será marca do personagem em toda

a narrativa restante. O personagem chamado de Major lembra Archanjo:

Que maneira, que léria, que poder possuía ele para abrir a boca, o coração dos demais? Nem as mães-de-santo mais ciosas e estritas, tia Maci, dona Menininha, mãe Senhora, do Opô Afonjá, as respeitáveis matronas, nem elas guardavam segredos para o velho, tudo lhe revelando de mão beijada – aliás os orixás assim tinham ordenado, para Ojuobá não há porta fechada. Ojuobá, os olhos de Xangô, agora ali estirado morto junto ao passeio. (p.25-6)

O carisma de Archanjo é estabelecido por forças além do homem. È uma

marca que o distingue, pois traduz a vontade dos orixás. Ojuobá é mais que um

título, é o reconhecimento da presença da ordem invisível em Pedro Archanjo,

mesmo para as mães-de-santo. Ele é os olhos de Xangô, o que tudo pode.

Observe-se, no entanto, que o fato de ser Ojuobá não impede que Archanjo

leve uma vida rica de aventuras nem sempre muito lícitas, principalmente se

pensamos no espaço da organização social da elite. Talvez o fato de ser os olhos de

Xangô contribua para o comportamento dele. Archanjo é assim definido em um

relatório policial: “Pardo, paisano e pobre – tirado a sabichão e a porreta”.(p.IX)

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Archanjo, apesar do nome, não é muito angelical e a melhor definição genérica para

ele aparece na última página do romance:

Pedro Archanjo Ojuobá vem dançando, não é um só, é vário, numeroso, múltiplo, velho, quarentão, moço, rapazola, andarilho, dançador, boa-prosa, bom no trago, rebelde, sedicioso, grevista, arruaceiro, tocador de violão e cavaquinho, namorado, terno amante, pai-d’égua, escritor, sábio, um feiticeiro. (p.323)

Uno e múltiplo, o personagem contém em si vários traços contrastantes, ao

longo da vida e em cada momento. Embora sendo, muitas vezes, sua própria

antítese, permanece fielmente ele mesmo. Neste amálgama, a narração funde

elementos diversos que podem servir como paradigma das possibilidades oriundas

da mestiçagem. Se observarmos com atenção, em todas as qualificações de

Archanjo perpassa o prazer de viver, talvez sintetizado na palavra final: feiticeiro.

Supõe-se que um feiticeiro possa tirar de qualquer coisa, por pior que ela seja, um

novo estímulo, um novo prazer.

De qualquer forma, a caracterização não aponta para um personagem que se

adequasse aos parâmetros da ordem oficial. O espaço de Archanjo é,

essencialmente, a rua. Mesmo enquanto bedel da Faculdade de Medicina,

permanece fiel às suas raízes, à sua origem. A mudança substancial em sua vida se

dá quando resolve estudar a fundo a questão étnica, publicando a duras penas o

resultado de seus estudos. Estes, no entanto, não o afastam do ambiente das ruas,

apenas o tornam mais compreensivo, intelectualmente, das coisas que apenas intuía

antes, ou que aprendera no próprio mundo em que vivia. Como Antônio Balduíno, a

primeira escola de Archanjo é a rua, as conversas e as histórias que lhe moldam o

caráter e a visão de mundo.

Em seu enterro, acompanhado por uma multidão de pessoas, as lembranças

que as pessoas têm de Archanjo estão marcadas, de forma muito aguda e

contraditória, pela saudade. Contraditória porque, se a memória que se preserva do

velho tem muitos bons momentos, eles se mesclam a atributos de Archanjo que, fora

do espaço em que vivera e crescera, seriam muito pouco recomendáveis. Alguns

trechos são esclarecedores. Por exemplo, na página 32:

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Dedé, encarquilhada proxeneta, conhecera Archanjo a vida inteira, e sempre desprendido e louco. Ainda menina-e-moça, pastorinha de terno-de-reis, fora seu par predileto nas festas de fim de ano, em novenas e trezenas, nos ensaios de blocos, na folia do carnaval. Archanjo era um trem de risco, quem podia com sua vida? Muito cabaço comera; só de pastoras de reisado, uma porção. Dedé chorava e ria, recordando. Eu, moderna e linda; ele um valdevinos.

É muito interessante observar nesse trecho que se misturam comemorações

religiosas com festas profanas. Nesse espaço, que temos chamado, nas trilhas de

Antonio Candido, de universo da desordem, em que se movem personagens semi-

marginalizados, parece não haver muita distinção entre as duas coisas. Em ambas

as celebrações, o diapasão é a alegria meio irresponsável, como se depreende da

memória de Dedé. Por outro lado, constata-se o que vínhamos falando: Pedro

Archanjo é lembrado como desprendido, louco, trem de risco, valdevinos. Nada que

seja muito elogioso fora daquele universo.

É bom lembrar, aqui, também, a abordagem que Bakhtin faz da festa e de seu

significado social. Voltaremos a tocar nesse assunto, mais adiante, dada a

importância que merece no universo característico da ficção de Jorge Amado.93

Mais adiante, na página 36, o Major recorda Archanjo:

Rapaz de trinta anos, vinha cada manhã ao Mercado do Ouro, à barraca da comadre Terência, mãe do moleque Damião, tomar café com cuscuz de puba e beiju de tapioca. De graça, quem ia cobrar? De cedo se acostumara a não pagar certas despesas, ou melhor, a pagá-las com a moeda de seu riso, de sua prosa, diversão e ensinamento. Não por avarícia – mão aberta, esbanjador – e, sim, porque não lhe cobravam ou porque o mais das vezes não tinha com que satisfazer; dinheiro não esquentava em seus bolsos e para que serve dinheiro senão para gastar, meu bom?

Aqui, entre as “qualidades” atribuídas a Archanjo está a capacidade de

enfeitiçar pela conversa e pelo riso, o que lhe pode garantir comida e outras coisas,

sem ter que pagar por elas. Voltaremos a falar dessas habilidade de Archanjo.

93 Ver BAKHTIN, 1999.

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Para encerrar os comentários sobre a personalidade e o caráter de Archanjo,

marcados por traços que seriam, em outra esfera, considerados negativos, vamos a

mais um trecho, na página 39:

O carro fúnebre e os ônibus superlotados partem em direção ao Cemitério das Quintas onde, em terras de sua confraria católica, Ojuobá, os olhos de Xangô, tem direito a jazigo perpétuo. Um automóvel a gasogênio acompanha o cortejo, levando o professor Azevedo e o poeta Simões, os dois únicos que ali vieram porque o finado escrevera quatro livros, debatera teorias, polemizara com os sábios da época, negara a pseudociência oficial, contra ela levantado para destruí-la. Os demais tinham vindo para despedir um velho tio de muita sabedoria e esperteza, de bom conselho e experiência, conversador de fama, bebedor de marca, mulherengo até o fim, pródigo fazedor de filhos, preferido dos orixás, confidente dos segredos, um velho tio do maior respeito, quase um feiticeiro, Ojuobá.

Aqui se mesclam dois tipos de consideração sobre o personagem: de um

lado, o professor e o poeta, designados pela profissão anteposta ao nome, distintos

da multidão por estarem em um “automóvel a gasogênio” e homenageando Archanjo

por suas qualidades intelectuais; de outro, a multidão, que vê em Archanjo a síntese

do comportamento e da sabedoria das ruas. É possível ver Pedro Archanjo aqui

como uma ponte bem sucedida entre os dois espaços, o da ordem e o da desordem.

Isso traz conseqüências significativas para a narrativa, como veremos.

Há, ainda, a considerar uma alusão muito importante ao comportamento do

personagem: “sua sabedoria e esperteza”. A tradição que, como já dissemos,

associa sabedoria e esperteza à linhagem de Pedro Malazartes94, em que a astúcia

é responsável pelo fato de os personagens se saírem bem das piores situações. A

figura do malandro aparece, assim, fortemente ligada a Archanjo.

Uma outra referência, que completa e confirma a citação anterior, é a que

aponta Archanjo como um “conversador de fama”. A articulação discursiva de Pedro

Archanjo o distingue da maioria dos outros personagens. Sendo não só letrado mas

também um bom leitor, consegue combinar a fala e a escrita em discurso oral que

94 Mais uma vez remetemos ao estudo de Antonio Candido, “Dialética da malandragem”.

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enleia e seduz. Muita vez, o próprio texto literário se transforma, na voz de Pedro

Archanjo, em linguagem oral, encantada e encantadora. Veja-se o trecho seguinte:

O moleque Damião apenas percebia o som do riso claro, abandonava tudo, a briga mais emocionante, para vir sentar-se no chão à espera das histórias. Dos orixás, Archanjo sabia a completa intimidade; de outros heróis também: Hércules e Perseu, Aquiles e Ulisses. Demônio travesso, terror dos vizinhos, debochado e perdido, chefe de malta sem lei, Damião não aprenderia a ler não fosse Archanjo lhe ensinar. Nenhuma escola o reteve, nenhuma palmatória o convenceu, três vezes fugiu do patronato. Mas os livros de Archanjo – Mitologia Grega, O Velho Testamento, Os Três Mosqueteiros, As Viagens de Guliver, Dom Quixote de La Mancha - , a risada tão comunicativa, a voz quente e fraterna: sente aqui, meu camaradinho, venha ler comigo uma história batuta, ganharam o vadio para a leitura e as contas. Archanjo sabia de cor uma quantidade de versos, e sabia dizê-los, um ator. Poemas de Castro Alves:...Era um sonho dantesco...O tombadilho que das luzernas avermelha o brilho, em sangue a se banhar; de Gonçalves Dias: Não chores, meu filho; não chores que a vida é luta renhida: viver é lutar – a molecada a ouvir de boca aberta, num assombro de interesse. (p.37)

Como se observa Archanjo é construído como um personagem que, embora

afirme (p.27) que “ não há melhor lugar para um filósofo morar do que casa de

rapariga”, pelo que ali pode aprender, junta esse conhecimento ao que haure dos

livros e os junta em um único fluxo sonoro, assumindo, assim, em larga medida, a

função tradicional do transmissor oral de informação. Archanjo não é apenas

Ojuobá, os olhos de Xangô; é também voz, enunciadora poderosa de lições e

conselhos.

A condição especial de Archanjo é que lhe permite cruzar todos os territórios

e se dar bem em qualquer deles. Sua capacidade de articular o mundo da escrita e o

da fala, sua habilidade de justapor duas ordens diferentes e transitar em ambas, lhe

garantem a fisionomia moral que, apesar de todos os aspectos pouco idôneos que

possa apresentar, é marcada por uma profunda coerência. De qualquer forma é

evidente que, em Pedro Archanjo, o olho da piedade não vazou. É isso que lhe

garante a coerência. Vale a pena transcrever aqui o comentário de Ilana Seltzer

Goldstein:

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Duas explicações são evocadas pela personagem para a sua própria ambigüidade. Primeiramente, o fato de ser mestiço, de ter “dois dentro de si”. “Trago tudo isso no sangue, professor. O homem antigo ainda vive em mim, além de minha vontade, pois eu o fui por muito tempo”. (p. 285 – grifo da autora) O mulato, dentro deste raciocínio – que esbarra no argumento evolucionista -, é uma síntese entre, de um lado, o conhecimento letrado e a razão ( atributos do branco e da civilização ), de outro, a intimidade com o povo e o sobrenatural ( atributo dos povos “primitivos”). Em outro momento do mesmo diálogo, Archanjo fornece uma segunda explicação, mais política e baseada na solidariedade, para sua dupla identidade.(...) Archanjo quer preservar as tradições negras, quer resistir à repressão do candomblé por razões humanitárias. “Eu penso que os orixás são um bem do povo. A luta da capoeira, o samba-de-roda, os afoxés, os atabaques, os berimbaus são bens do povo”. (p. 285) Está aqui declarada a profissão de fé de Jorge Amado: casar e fazer comunicar o popular e o erudito, o “lido” e o “vivido”.95

Importa dizer en passant que, embora concordemos, no geral, com a

afirmação transcrita acima, é meio tosco opor daquela forma branco e civilizado a

povos “primitivos”. A ancestralidade não é necessariamente “primitiva”, como parece

reconhecer a própria autora ao alinhavar os argumentos finais. Por outro lado,

importa considerar que a narrativa de ficção tem suas próprias normas e não precisa

respeitar o “argumento evolucionista”. Basta que seja verossímil, como já o queria

Aristóteles.

Um outro aspecto a ser considerado é que Archanjo transita também por

outra duas esferas: a do mundo visível e a do invisível. Há duas amostras mais

evidentes no livro, embora como já dissemos, Archanjo, como Ojuobá, apresente

características especiais em toda a narrativa. A primeira passagem se dá no seu

encontro com a iaba ( uma diaba sem rabo, diz a epígrafe do livro ). A iaba resolve

punir Archanjo por sua capacidade de seduzir todas as mulheres, trazê-las a seus

pés:

Tal situação parecendo intolerável à iaba, por humilhante para o femeaço inteiro, decidiu ela castigar severamente

95 GOLDSTEIN, 2003, p.188-9.

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mestre Archanjo, dando-lhe lição amarga e dura que lhe ensinasse o mal do amor na súplica e na espera, no pedido e na recusa, no desprezo e no abandono, na traição e na vergonha, na dor de amar e não ser correspondido. Dor de amar assim jamais sofrera o femeeiro, sedutor espalhado em leito sem limites, colchão fofo de lã de barriguda ou catre de madeira, o areal ou o mato, na barra da manhã ou no cair da noite. Pois agora ia sofrer, aprender na própria carne – jurou a iaba ante o escândalo, a nonchalança do beltrano: serás exposto ao mundo e à Bahia, de estrovenga murcha, de coração em chagas e a testa florescida em chifres, exposto ao debique e à troça, na lona, no alvéu e na brochura. (p. 120-121)

Para conseguir seu intento, a iaba se transforma na “negra mais formosa até

hoje vista em terras da África, de Cuba e do Brasil” (p. 121), usa “perfume de rosas

desabrochadas para não se sentir o cheiro de enxofre; sandálias fechadas para

esconder os pés de cabra”. (p. 121)

Para dar-se pálida idéia da beleza da negra basta dizer que no percurso entre as profundas e a Tenda dos milagres, ao seu passar, enlouqueceram seis mulatos, dois negros, doze brancos e uma procissão se dissolveu quando ela a atravessou. Viu-se o padre arrancar a batina e renegar a fé; e santo Onofre, em seu andor voltou-se para ela e lhe sorriu. (p. 121 )

É importante salientar aqui que a caracterização da iaba, que vive nas

profundas (no inferno), fede a enxofre e tem pés de cabra, remete ao imaginário

cristão medieval. A importância desse fato se verá mais adiante, na medida em que

Pedro Archanjo consegue subjugá-la com o apoio de Exu e Xangô. O que se

percebe, como já notamos em Jubiabá, é que a religião do antigo colonizador é

dominada por outra crença, produzida pelos que foram, não só colonizados, mas

submetidos a toda a sorte de opressão. Para enfatizar bem o caráter impositivo do

cristianismo (leia-se catolicismo) na América, vale transcrever um pequeno trecho de

um texto de um artigo de Antônio Flávio Pierucci publicado no suplemento “Mais!” do

jornal Folha de São Paulo.

[...[a propagação da nova religião avançava, não gradual e molecularmente como hoje, mas a passos largos ou mesmo de chofre, à medida que territórios inteiros eram nominalmente

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convertidos. “Coge intrare”, dizia a consigna celebrizada por Agostinho: “Força a entrar!”. O impulso missionário aliado à conquista colonial anexava povos, antes que indivíduos. Foi assim com o catolicismo ibérico quando aqui chegou. Batizava a todos que encontrava independentemente de escolha ou preferência pessoal, que sequer entrava em linha de consideração. Foi assim que todo brasileiro era católico junto com o Brasil: por colonização política e econômica mas também por colonização cultural, e isso não exigia mais que a submissão a uma ritualidade sacramental puramente exterior. Bastava a fachada.96

A forma coercitiva através da qual se impunha uma “verdade” revelada, sem

que viesse acompanhada de alguma convicção mais profunda explica muito da

resistência que se manifestava em cultos e crendices, quase sempre tidos como

heréticos, se não francamente diabólicos97.

Ora, Archanjo recebe de Exu e Xangô instruções precisas de como dominar a

iaba, de origem cristã. Exu o avisa das intenções da iaba e lhe dá uma receita para

que não possa ser sexualmente dominado. Xangô lhe ensina como sujeitar a Cuja,

prendendo-lhe o pescoço com um kelê e o tornozelo com um xaôrô e fazer um

despacho segundo a prescrição que lhe dá. Archanjo demonstra enorme

familiaridade com as entidades, passando do espaço do visível para o do invisível

sem qualquer dúvida ou vacilação. Desta forma, consegue sujeitar a iaba, que se

transforma na negra Dorotéia, doida de paixão por Archanjo. Como nas narrativas

clássicas, a ordem do invisível se imiscui no universo visível para solucionar

problemas. Para fazer uma relação mais específica, à frente, com o romance O

signo do fogo, de Boaventura Cardoso, principalmente, importa notar a correlação

que é possível fazer entre Pedro Archanjo e os heróis das epopéias clássicas

tradicionais. E não apenas isso: a heroicização do “pardo, paisano e pobre” Archanjo

expressa nitidamente uma opção ideológica a que nos temos referido ao longo

desse trabalho.

Importa notar, também, que Jorge Amado demonstra um grande

conhecimento dos cultos afro-brasileiros, em que o trânsito entre visível e invisível

96 PIERUCCI, 2005, p. 3. 97 Ver o notável trabalho de leitura das crenças e repressões no universo colonial brasileiro em Souza, 1993.

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se dá cotidianamente. Notaremos que, nas narrativas de Boaventura Cardoso é

também possível observar esse trânsito, ainda que de uma forma diferente.

Um outro momento importante em que Archanjo exibe a relação familiar que

mantém com as entidades se dá quando a polícia, sob o comando do famigerado

delegado Pedrito, invade o terreiro onde se celebra Oxóssi, sob a direção do pai-de-

santo Procópio. Acompanhemos a narração:

Adiantou-se o negro maior do que um sobrado, Ojuobá percebeu com os olhos de Xangô um átimo de vacilação no passo do facínora ao penetrar no recinto sagrado do terreiro. Samuel Cobra Coral e Zacarias da Goméia tomaram posição, prontos para impedir qualquer protesto. Procópio prosseguiu na dança, era Oxóssi, o caçador senhor da selva, rei de Keto. Contam que, nessa hora exata, Exu, de volta do horizonte, penetrou na sala. Ojuobá disse: Laroiê, Exu! Foi tudo muito rápido. Quando Zé Alma Grande deu mais um passo em direção a Oxóssi, encontrou pela frente a Pedro Archanjo. Pedro Archanjo, Ojuobá ou o próprio Exu, conforme opinião de muitos. A voz se abriu imperativa no anátema terrível, na objurgatória fatal! - Ogun kapê dan meji, dan pelú oniban! Do tamanho de um sobrado, os olhos de assassino, o braço de guindaste, as mãos de morte, estarrecido, o negro Zé Alma Grande parou ao ouvir o sortilégio. Zé de Ogun deu um salto e um berro, atirou longe os sapatos, rodopiou na sala, virou orixá, no santo sua força duplicava. Ogunyê!, gritou, e todos os presentes responderam: Ogunyê, meu pai Ogun! - Ogun kapê dan meji, dan pelú oniban! – repetiu Archanjo. Ogun chamou as duas cobras e elas se ergueram para os soldados! ( p. 263-4 )

Por ser Ojuobá, Archanjo vê com os olhos de Xangô e se acumplicia com

Exu, cuja risada compartilha. As forças invisíveis juntam-se a Archanjo, se

confundem com ele, para vencer os invasores. Ele não é um medium, através de

quem as forças se manifestariam, ele e elas são uma coisa só.

Não há nenhum traço de intervenção sobrenatural nas duas passagens: todas

as forças participam do cotidiano, estão sempre presentes e se manifestam para

quem quer que seja em quaisquer circunstâncias Esse é um aspecto muito

desenvolvido nessa narrativa. Mais interessante é que Archanjo se declara

materialista, um materialista que, no entanto extrai sua força das tradições que o

povo pobre, com quem convive, cultiva. Como se vê, a especificidade de Archanjo

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passa também por esse amálgama profundo e denso com algo que talvez possa ser

chamado de síntese da alma popular. Nesse sentido, é possível que Archanjo

funcione bastante como um alter ego do romancista, permitindo-lhe expressar,

através dele, muitas de suas próprias convicções. Ilana Seltzer Goldstein chama a

atenção para a similitude entre as declarações de Jorge Amado em uma entrevista e

afirmações feitas por Pedro Archanjo, no romance.98 Ambos se declaram

materialistas, mas afirmam que seu materialismo não os limita.

Na figura de Pedro Archanjo, como podemos perceber, se concentram vários

elementos que podem parecer contraditórios, mas que são, na verdade,

complementares e ampliam muito a dimensão do personagem: ele é,

simultaneamente, materialista e os olhos de Xangô; conversador e contador de

histórias orais, em que preserva ou “inventa” uma tradição (semelhante, neste último

aspecto, ao velho Jubiabá); leitor de livros variados e escritor; farrista e pensador. É

um personagem que faz o trânsito entre o visível e o invisível, mas também entre o

popular e o erudito, entre o povo e a elite (com quem nunca se confunde, e em

quem não respeita qualquer marca de superioridade).

Não se quer dizer com isso que seja um personagem camaleônico, mudando

de cor para se esconder. Ele é tudo isso, ao mesmo tempo, sem perder nunca os

traços de uma identidade bem marcada, que remete à questão de ser negro (ou

mestiço) no Brasil. É importante frisar que a postura de Archanjo é muito a postura

do brasileiro, em relação a saberes que se ligam à arrogância do colonizador

europeu e de seus descendentes, que se julgam, eles sim, superiores.

No contraste/confronto entre o “povo” e as elites há um deslocamento dos

valores eurocêntricos e sua superação/incorporação99 por outros valores que aqui se

levantam.

Este deslocamento coloca todo o universo do livro numa perspectiva

carnavalizada. Bakhtin coloca assim a questão do carnaval

Para entender corretamente o problema da carnavalização, deve-se deixar de lado a interpretação simplista do carnaval segundo o espírito da mascarada dos tempos modernos e ainda mais a concepção boêmia banal do fenômeno. O carnaval é uma grandiosa cosmovisão

98 GOLDSTEIN, cit, p.186-7 99 Tentativa aproximada de traduzir o termo alemão Aufhebung.

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universalmente popular dos milênios passados. Essa cosmovisão, que liberta do medo, aproxima ao máximo o mundo do homem e o homem do homem (tudo é trazido para a zona do contato familiar livre), com o seu contentamento das mudanças e sua alegre relatividade, opõe-se somente à seriedade oficial unilateral e sombria, gerada pelo medo, dogmática, hostil aos processos de formação e à mudança, tendente a absolutizar um dado estado da existência e do sistema social. Era precisamente dessa seriedade que a cosmovisão carnavalesca libertava.100

A caracterização do carnaval como um processo social importantíssimo,

através do qual uma cosmovisão universalmente popular do passado dessacraliza

os valores dominantes, usando, muitas vezes, o riso, mas com certeza, mantendo

sempre a alegria, é o que se percebe no romance. A subversão que Archanjo opera

é marcada pela irreverência alegre de quem não respeita ordens nem senhores.

Pedro Archanjo, “filho predileto de Exu, senhor dos caminhos e encruzilhadas” (p.

124), nada teme. O medo é vencido com a poderosa ajuda de Exu, senhor do riso e

da irreverência. A própria Iaba, temida por todos, é amaciada e domesticada por

Archanjo, com a ajuda de Exu e Xangô.

O contorno popular desses elementos é evidente. É daí que Archanjo extrai

sua força, o que permite a ele combater, de modo vigoroso, mas ainda alegre, as

doutrinas racistas originárias da Europa, e apresentar a miscigenação racial como

proposta para uma possível redenção de todos os homens. Como se pode ver, a

idéia de uma revolução, de uma inversão radical numa ordem social excludente e

autoritária, ainda está presente em Jorge Amado. A construção de um outro Brasil

passa, necessariamente, por uma afirmação identitária que respeite a valorize a

diferença, em todos os sentidos.

Considerado como um todo, o comportamento de Archanjo contesta o

sistema vigente. Sua vida e suas aventuras se abrem para a celebração permanente

da festa. Observem-se os comentários de Bakhtin a seguir.

No realismo grotesco, a degradação do sublime não tem um caráter formal ou relativo. O “alto” e o “baixo” possuem aí um sentido absoluta e rigorosamente topográfico. O “alto” é o céu; o “baixo” é a terra; a terra é o princípio de

100 BAKHTIN, 1981, p.138

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absorção ( o túmulo, o ventre ) e, ao mesmo tempo, do nascimento e ressurreição ( o seio materno ). Este é o valor topográfico do alto e do baixo no seu aspecto cósmico. No seu aspecto corporal, que não está nunca separado com rigor do seu aspecto cósmico, o alto é representado pelo rosto ( a cabeça ), e o baixo pelos órgãos genitais, o ventre e o traseiro. O realismo grotesco e a paródia medieval baseiam-se nessas significações absolutas. Rebaixar consiste em aproximar da terra, entrar em comunhão com a terra concebida como um princípio simultaneamente, mata-se e dá-se a vida em seguida, mais e melhor. Degradar significa entrar em comunhão com a vida da parte inferior do corpo, a do ventre e dos órgãos genitais, e portanto com atos como o coito, a concepção, a gravidez, o parto, a absorção de alimentos e a satisfação das necessidades naturais. A degradação cava o túmulo corporal para dar lugar a um novo nascimento. E por isso não tem somente um valor destrutivo, negativo, mas também um positivo, regenerador: é ambivalente, ao mesmo tempo negação e afirmação de absorção e, ao mesmo tempo, de nascimento: quando se degrada, amortalha-se e semeia-se.101

A partir dessa elucidação, podemos voltar ao romance. Embora seja possível

considerar que há algum traço de realismo grotesco em Jorge Amado, não é o que

nos interessa aqui. O autor baiano é essencialmente telúrico. Seus personagens

tiram muito de sua energia a partir de uma proximidade muito grande com a terra.

No ciclo em que tudo se move, secando e renascendo sempre, percebe-se a marca

do popular, na atividade cotidiana das pessoas. A ênfase dada às partes baixas do

corpo enfatiza ainda mais esse aspecto. Esse é um elemento permanente da ficção

de Amado: seus personagens celebram a vida permanente do baixo, da renovação,

associada a morte e parto. Identificam-se, dessa forma com um modo de celebrar a

vida, fortemente vinculado aos extratos populares. Archanjo é uma síntese desses

personagens, é uma afirmação de sua vitalidade e seu vigor.

Observe-se que tudo conflui para emoldurar a figura de Archanjo como uma

figura que se afasta das elites e se opõe a elas. A própria idéia, figurada na

representação da pirâmide social, coloca as elites no alto, e as camadas populares

em baixo, tornando ainda mais pertinentes as escolhas de Archanjo pelos de baixo,

pelas partes baixas. A identificação de Archanjo com a festa, o irreverente, o baixo,

101 BAKHTIN, 1999, p. 18-19

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a terra, o renascimento permanente aponta ainda uma vez para um universo

carnavalizado e popular.

[...] a cultura popular não oficial dispunha na Idade Média e ainda durante o Renascimento de um território próprio: a praça pública, e de uma data própria: os dias de festa e de feira. Essa praça entregue à festa, já o dissemos várias vezes, constituía um segundo mundo especial no interior do mundo oficial da Idade Média. Um tipo especial de comunicação humana dominava então: o comércio livre e familiar. Nos palácios, nos templos, nas instituições, nas casas particulares reinava um princípio de comunicação hierárquica, uma etiqueta, regras de polidez. Discursos especiais ressoavam na praça pública: a linguagem familiar, que formava quase uma língua especial, inutilizável em outro lugar, nitidamente diferenciada da usada pela Igreja, pela corte, tribunais, instituições públicas, pela literatura oficial, da língua falada das classes dominantes aristocracia, nobreza, alto e médio clero, aristocracia burguesa), embora o vocabulário da praça pública aí irrompesse de vez em quando, sob certas condições.102

Ainda que Bakhtin fale de um contexto diferente, sua leitura se adequa

perfeitamente ao universo amadiano. Em seus romances, de maneira geral, o que

irrompe, com toda força, é a voz da rua, muita vez sendo produto e produtor da

festa. Em Tenda dos milagres, a narrativa se passa quase toda nas ruas, e a

presença do Ojuobá Pedro Archanjo já traz consigo o embrião de uma festa. Como

já observamos na leitura dos dois outros livros de Amado, essa voz que emerge do

chão formula verdades diferentes daquelas que provêem das autoridades, da ordem

dominante. Elas articulam outras possibilidades de compreensão do mundo e, na

interação entre os universos do visível e do invisível, permitem que se vislumbre o

contorno de uma cultura, de uma identidade.

102 BAKHTIN, 1999, p. 133

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3. BOAVENTURA CARDOSO: a voz e a fala dos elementos

Depois da obra escrita é que me revejo envolvido nessa teia de problemas da actualidade. Por outras palavras, os tais problemas são de tal modo envolventes e absolutos que acabam por constituir-se numa segunda natureza. E concluo, afinal, que sou parte do problema. Se a minha modesta obra contribui de certo modo para um questionamento da sociedade angolana, sinto-me feliz. Se o escritor consegue levar o leitor a questionar a realidade em que vive, significa dizer que a sua mensagem produziu algum efeito. De qualquer modo, devo dizer que sinto-me um escritor engajado. Pertenço à geração dos escritores da frente anti-colonial e de após 25 de Abril ou da independência nacional. Como escritor, sempre fiz minha a luta das populações mais carenciadas e vivendo dramas sociais. 103

A leitura dos textos de Boaventura Cardoso deve passar também por um

breve comentário que permita contextualizar sua obra dentro das circunstâncias

específicas da história angolana.

Para tanto devemos fazer algumas observações sobre os processos que

delinearam o mapa político da África contemporânea. A partilha do continente feita

na Conferência de Berlim – destinada, fundamentalmente, a regular a exploração

103 CARDOSO, 2005, p. 4-5.

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comercial da bacia do Congo - traça as linhas que delimitam os países africanos de

forma quase definitiva. Houve pouquíssimas alterações desde então.

Leila Leite Hernandez comenta:

Tratar da partilha européia e da conquista da África significa repor o protagonismo europeu no momento em que são traçadas as modernas fronteiras do continente na Conferência de Berlim (1884-85), desencadeando-se um processo cujas conseqüências se fazem sentir até os dias atuais. Nesse sentido, a conferência é o grande marco do processo de "roedura" do continente iniciado por volta de 1430 com a entrada portuguesa na África.104

Até a conferência, havia áreas dominadas por alguns países europeus com

fronteiras bastante fluidas e a dominação não se estendia muito além de uma faixa

litorânea. A conferência distribui o continente entre Portugal, Inglaterra, França,

Alemanha, Itália, Espanha e Bélgica. Apenas a Libéria e a Etiópia são estados

independentes. Todo o restante do continente é repartido entre os países

mencionados. Seguiram-se à conferência vários tratados que regulam pendências

entre os países europeus.

A partilha levou a uma necessidade de os países beneficiados estenderem

sua dominação para além do litoral. A penetração no interior se dá com muita

violência, forçando os diversos grupos a se submeterem.

Apesar dos tratados,

algumas faixas limítrofes permaneceram mal conhecidas durante todo o período colonial, uma vez que as potências européias não tinham interesse em fomentar ou mesmo alimentar conflitos fronteiriços. Ainda hoje, há fronteiras que não foram demarcadas, em especial as marítimas, onde quase tudo está para ser resolvido. Mas essa observação não impede reconhecer que uma das conseqüências políticas do processo de partilha estabelecido na Conferência de Berlim e da formulação de tratados que a complementaram foi criar condições necessárias para que a conquista do continente africano tivesse uma base legal para se efetivar. Como bem se sabe, em nome da lei e da ordem, utilizando-se de

104 HERNANDEZ, 2005, p.45.

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mecanismos e instrumentos administrativo-jurídicos, as potências européias mantiveram fronteiras impostas.105

Estas "fronteiras impostas" não levam em conta a existência de diversidades

étnicas, lingüísticas e culturais. A separação dos grupos é feita à margem de

qualquer consideração pelos valores que cada um deles pudesse cultivar,

desconhecendo suas tradições e seus códigos particulares.

Aliás, de modo geral, houve sempre uma tendência dominante, entre os

europeus, de tratar os povos de África como se fossem uma massa amorfa e

indefinida. Junta-se a isto o fato de, em geral, considerarem os africanos como

inferiores, selvagens, incapazes de se gerir e de agirem civilizadamente. Esta atitude

levou os europeus a proclamarem reiteradamente a sua missão civilizadora, o seu

dever de arrancar aqueles seres brutos e ignorantes das trevas em que viviam.

Essas proclamações ocultavam muitas vezes o racismo mais feroz, justificado até

mesmo através de diversas religiões cristãs que afirmavam a superioridade natural,

outorgada por Deus, do homem europeu:

Pretendiam (os africânderes) conservar sua língua, seus valores e costumes, sua vida familiar, suas práticas religiosas e outras dimensões plurais de seu cotidiano. Entre o resguardo dessas esferas de importância destacava-se a que se referia em particular às suas relações com os povos africanos. Com relação a estes, os africânderes, segundo a Igreja Reformada Holandesa, se auto-reconheciam como um povo com a missão de preservar as diferenças "naturais" de raça, apoiados na fé que lhes fazia acreditar que igualar negros e brancos contrariava a lei de Deus. Em síntese, essa igualdade tanto na Igreja quanto no Estado significava uma intolerável humilhação para qualquer cristão.106

Embora a referência acima seja com relação à África do Sul, ela vale para

muitos outros locais, mesmo que de forma menos acentuada. O processo de levar

as religiões cristãs aos nativos e revelar-lhes a verdade e trazê-los à luz se insere

na mesma intenção civilizadora de que se falou acima:

105 HERNANDEZ, 2005, p. 67. 106 Idem, ibidem, p. 246.

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É importante destacar que a evangelização cristã, fosse católica ou protestante, tinha três pontos comuns. O primeiro era empreender a conversão dos africanos não apenas ao cristianismo, mas ao conjunto de valores próprios da cultura ocidental européia. O segundo, por sua vez, era ensinar a divisão das esferas espiritual e secular, crença absolutamente oposta à base do variado repertório cultural africano fundado na unidade entre vida e religião. Já a terceira (sic!) referia-se à pregação contrária a uma série de ritos sagrados locais, o que minava a influência dos chefes tradicionais africanos.107

Como se percebe, o traço constante é o menosprezo pelos valores culturais

africanos e a afirmação absoluta e impositiva dos valores europeus. A África, vista

pela Europa como terra de ninguém, possuía populações que também eram

ninguém, sendo necessário que os europeus lhes mostrassem sua verdadeira

identidade.

A pretensa missão civilizatória dos europeus não se realiza com facilidade. Há

muita resistência, por motivos diversos, principalmente étnicos e religiosos. Muitas

vezes essa resistência foi quebrada com violência e ferocidade. Todos nós fomos de

alguma forma acostumados, sobretudo através do cinema, a ver cenas de

massacres brutais de africanos em nome da "civilização". Os heróis dessas

narrativas eram sempre europeus brancos, superiores em tudo aos bárbaros e

selvagens africanos negros. Basta pensar em Tarzan e na violenta carga de

preconceito ideológico que suas aventuras incutem. Além disso, essas narrativas

trazem uma outra implicação, derivada do eurocentrismo: a idéia de que a África

fosse um continente habitado por povos homogêneos, com práticas e rituais

idênticos, igualados também pela selvageria.

Ora, é preciso redimensionar a perspectiva, levando em conta a necessidade

de responder a pergunta crucial formulada por Appiah: "Mas o quê, dada toda a

diversidade das histórias pré-coloniais dos povos de África e toda a complexidade

das experiências coloniais, significa dizer que alguém é Africano?"108 (Tradução

minha. GPR). Na mesma direção, comenta Mia Couto, em instigante prefácio ao

livro de Leila Hernandez: "..quando se fala em África, de que África estamos

falando? Terá o continente africano uma essência facilmente capturável? Haverá

uma substância exótica que os caçadores de identidades possam reconhecer como 107 HERNANDEZ, cit., p. 54. 108 APPIAH, 1992, p. 25.

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sendo a alma africana?"109 E, mais adiante: " África vive uma tripla condição

restritiva: prisioneira de um passado inventado por outros, amarrada a um presente

imposto pelo exterior e, ainda, refém de metas que lhe foram construídas por

instituições internacionais que comandam a economia".110

O maior agravante para a visão negativa que se tem de África é provocada

pela escravização de milhões de africanos por países europeus e americanos, a

partir do século XV. A escravização, além de tudo, provoca uma desaceleração, se

não um retrocesso, na história africana. Como diz Joseph Ki-Zerbo

Os escravos eram comprados às toneladas. Amputava-se e esquartejava-se como carne bruta os rebeldes ditos “negros castanhos”. Durante esse tempo, na Europa, os teólogos debatiam doutamente a questão de saber se os negros tinham alma. Foi uma pergunta que não se fez a propósito de outros grupos humanos. Tudo isso é conhecido, ninguém pode negá-lo. Mas como se pode conseguir não reconhecer que toda a espécie humana foi inferiorizada, humilhada, crucificada por esse tratamento? O tráfico dos negros foi o ponto de partida de uma desaceleração, um arrastamento, uma paragem da história africana. Não falo da história na África, mas de uma inversão, uma reviravolta da história africana.111

As idéias simplistas e preconceituosas sobre a África e os africanos começam

a mudar de forma muito lenta a partir do século XIX, através da ação de africanos de

origens diversas, como, por exemplo, o liberiano Edward Blyden (1832-1912),

"considerado por alguns o ' pai do nacionalismo da África ocidental”.112 No entanto,

ainda faltaria muito para que os povos do continente conseguissem recuperar -- em

algumas regiões mais do que em outras -- seu orgulho, sua dignidade e estabelecer,

finalmente sua própria identidade; de dentro para fora e, não mais, de fora para

dentro.

Só após a conferência de Berlim, Angola (que é nosso foco principal) se torna

de fato colônia. Até então, fora principalmente um entreposto comercial, onde se

traficavam homens, metais e produtos agrícolas.

109 HERNANDEZ, 2005, p. 11. 110 Idem, ibidem. 111 KI-ZERBO, Joseph, 2006, p. 24-25 112 Idem, ibidem, p. 136.

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Como observa J. J. Carvalhão Santos:

Em Portugal (...) restava, no essencial, um projeto colonial que apostava na exploração de territórios africanos cuja real ocupação e sujeição à administração européia tinha, na viragem do século, um alcance ainda bastante limitado. O modelo era claramente o da colónia, com uma enorme distância entre indígenas e europeus civilizados, quando faltava alargar um efectivo domínio, aumentar a presença de colonos oriundos da metrópole, criar infra-estruturas básicas ou desenvolver uma dinâmica económica.113

Se juntarmos a essas considerações alguns fatos, que mencionaremos a

seguir, vamos observar que a criação de uma literatura em Angola é um trabalho

árduo e penoso e que só se dá de fato no século XX, apesar de ter seu surgimento

no século XIX, como afirmam muitos críticos.

Inocência Matta, comentando o fato de considerar Espontaneidades da

minha alma, às senhoras africanas!, de José da Silva Maia Ferreira, de 1849,

como a primeira obra de literatura angolana, afirma

Para recuar essas manifestações precursoras e não digo antecessoras ao Séc. XVI ou XVII, como vem vindo a ser defendido, é sem grandes análises, admitir que nesse tempo já existia um espaço ideológica e simbolicamente territorializado chamado Angola, o que me parece, no mínimo, discutível.114

Entre os fatos de que falamos acima, importa ressaltar:

1- as sociedades africanas eram, em sua quase totalidade, ágrafas115. No

caso de Angola, mesmo dominada por uma sociedade que possuía uma tradição de

escrita bem sedimentada, não se nota maior preocupação dos portugueses em

montar um sistema escolar que permitisse a alfabetização dos indígenas. As escolas

que existiam eram bastante incipientes e quase sempre estavam ligadas a grupos

113 SANTOS, J. J. Carvalhão. Antecedentes de uma solução "pós-colonial": J.R. Seeley e a consolidação do "Império". In: Estudos do século XX , 2003, p. 67. 114 MATTA, Inocência, 2001, p. 42. 115 É evidente que o conceito de ágrafo é de procedência européia, visto que os europeus desconsideram outros sinais que não remetam aos alfabetos conhecidos na Europa.

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religiosos. A preocupação principal era antes catequizar que alfabetizar. Como

observa Maria Aparecida Santilli:

A história da colonização portuguesa revela que do século XVI ao século XIX uma fração insignificante da população negra chegara a ler e a escrever. E as estatísticas de Angola, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe mostravam 95% de analfabetos entre a população nacional ao tempo da guerra de libertação que há poucos anos lhes deu autonomia política.116

Sob este aspecto, não há muita dificuldade em entender o aparecimento

tardio de uma literatura angolana.

2- Durante séculos, grande parte dos portugueses que iam parar em Angola

era composta por indivíduos condenados por algum crime. Estes degredados não

eram, majoritariamente, letrados e, mesmo os que o eram, não viam, com certeza,

qualquer sentido em escrever no "coração das trevas"117, verdadeira sucursal do

inferno. Como informa Santilli, “a produção literária restringiu-se, então, à literatura

de viagens. Eram os próprios portugueses que (...) davam seu testemunho sobre a

África” "bárbara", exótica, a que os levara a expansão ultramarina”.·”.

É evidente que os viajantes estavam apenas de passagem e escreviam para

um público europeu, se não especificamente português e, portanto, viam as

sociedades e as culturas africanas de um ponto de vista estritamente eurocêntrico.

Neste quadro, um outro aspecto é extremamente relevante para pensarmos a

constituição de uma identidade cultural angolana: Rosa Cabecinhas e Luís Cunha

em seu esclarecedor ensaio sobre "Colonialismo, identidade nacional e

representações do 'negro'", publicado na revista Estudos do Século XX, mostram

como os colonizadores sempre representavam os africanos colonizados de forma

muito estereotipada e simplista nas exposições coloniais, em fotografias e outras

imagens. Dizem eles:

No número especial que a revista Civilização dedica à exposição (1934, no Porto -GPR ), os indígenas são desprovidos da palavra, mas constituem o essencial da ilustração da revista, onde se acentua a "sensualidade de

116 SANTILLI, 1985, p. 9. 117 O título do livro de Conrad parece perfeito aqui

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corpos seminus" ou o "exotismo de roupas e adornos". Assim, "é pela imagem que o discurso do colonizado se constrói, num processo onde o olhar de quem domina estabelece as regras decisivas do processo de comunicação". Neste sentido, fica elucidado de forma clara que "possuindo uma imagem, o indígena não parece possuir ainda uma alma e essa ausência remete-o inevitavelmente ao silêncio".118

Dado o predomínio deste tipo de visão, parece claro que a construção de uma

voz e de uma literatura implica necessariamente construir uma outra imagem, que

represente, como já disse em outra parte desse texto, uma mirada de dentro para

fora, estilhaçando a outra.

Importa considerar, agora, como elemento de extrema importância para a

constituição de uma literatura angolana, o fato de que as diversas etnias e culturas

de Angola, como todos os grupos ágrafos, possuem um riquíssimo repositório de

tradições orais.

Esta riqueza de tradição oral vai ser extremamente preciosa na construção da

narrativa escrita em Angola, como observaremos, de forma específica, na obra de

Boaventura Cardoso.

Por outro lado, um aspecto que merece atenção especial é a constituição de

uma linguagem literária: O português tornou-se, desde que os lusos chegaram à

África, a partir do século XV, uma língua de que os naturais tinham que ter algum

conhecimento, ainda que bastante limitado. No contato com as línguas locais,

constitui-se uma "língua franca" para fins puramente comerciais. A base dessa

língua ou pidgin é o português, mesclado, entretanto, aos falares locais. Esse pidgin

pode tornar-se um crioulo, desde que se torne mais complexo do ponto de vista

léxico e gramatical, devido a sua utilização em contextos sociais mais amplos. Ao

longo dos séculos, " o português falado por muitos habitantes das antigas colônias

portuguesas" sofreu muitas alterações. "Em outras palavras, ao longo dos séculos o

português falado nas ex-colônias esteve sujeito a uma crioulização."119

Variantes de crioulo faladas por africanos semiassimilados vieram a ser conhecidas como pequeno português ou, de modo

118 CABECINHAS, Rosa e CUNHA, Luís. Colonialismo, identidade nacional e representações do 'negro'. Estudos do Século XX. Universidade de Coimbra. Nº 3- 2003, p. 119 HAMILTON, Russel. " Introdução". In: SEPÚLVEDA, Maria do Carmo e SALGADO, Maria Teresa, 2000, p. 11-12.

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mais pejorativo, como pretoguês. Sobretudo, em todos os países lusófonos da África, à exceção das ilhas de Cabo Verde, existiu a política colonialista da assimilação, semelhante a assimilation da África Francesa; a aprendizagem da língua metropolitana, tanto escrita como falada, constituiu o principal requisito para a aceitação no quadro da sociedade geral. (...) Ao mesmo tempo, e a um nível sempre maior desde a última parte do século XIX, as três principais línguas angolanas, o Umbundu, o Kimbundu e o Kikongo, desempenharam um importante papel no âmbito do regionalismo e do nacionalismo (...).120

Vale transcrever aqui, também uma observação de Appiah sobre a utilização

das línguas européias pelos africanos:

Os povos-sujeitos descolonizados escrevem a si próprios, agora, como o sujeito de uma literatura deles mesmos. O simples gesto de escrever para e sobre alguém (...) tem um profundo significado político. Escrever para e a respeito de nós mesmos, então, ajuda a constituir a moderna comunidade da nação, mas o fazemos na maior parte em línguas impostas pelo ' poder das legiões '. Agora, quando os objetos do imperialismo europeu tornaram-se afinal os sujeitos de um discurso dirigido tanto um ao outro como ao Ocidente, as línguas e as disciplinas européias foram ' desviadas ', como agentes duplos, dos projetos da metrópole para o trabalho intelectual da vida cultural pós-colonial.121 ( Tradução minha. GPR )

Notaremos, na leitura dos romances de Boaventura Cardoso, como essas

observações são pertinentes e importantes para sua efetiva compreensão. Nas

sociedades descolonizadas, o português é apropriado pelos antigos colonizados e

modificado para os fins propostos por esses novos sujeitos emergentes. De alguma

forma, um processo semelhante ao que se deu no Brasil, como já apontamos

anteriormente.

Um outro aspecto que importa salientar é que não apenas a língua do

colonizador é apropriada e adequada a outros fins;também estruturas narrativas, já

sedimentadas, durante séculos, na Europa, inclusive Portugal , são tomadas como

120 HAMILTON, 1980, p 154. 121 APPIAH, cit. p. 55-6.

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ponto de partida. Em entrevista a Michel Laban, num encontro realizado em 7 de

abril de 1977, Luandino Vieira comenta:

...o que sucede é que a gente parte, ou pelo menos eu parti, da situação de que todos partiram: recebemos, herdámos estruturas não só lingüísticas como também romanescas; então o que fazíamos, ou o que eu comecei por fazer, continuarei a fazer em alguns casos com certeza, porque serve, é vazar nessas estruturas os temas, as experiências, os assuntos, os conteúdos que é necessário vazar.122

Quer dizer: a adequação de uma determinada estrutura romanesca à

expressão de uma matéria que, de alguma forma, a subverte, transforma-a em algo

novo, ricamente emprenhada de novas dimensões e significações. Observe-se que,

como já falamos anteriormente, a forma é sempre socialmente carregada de

intenções e significações, ou seja, ela nasce de um contexto social específico e este

lhe fornece direções e limites.

Como dissemos anteriormente, a linguagem e as estruturas narrativas que se

gestam vão estar profundamente marcadas pelo substrato das diversas tradições

orais que preservam valores éticos, espirituais e práticos ao longo do tempo. Esta

fusão de linhas de tradição diferentes -- européias e angolanas -- é que vai dar aos

textos produzidos em Angola sua profunda especificidade e, ao mesmo tempo, vai

conquistar-lhes a universalidade. Luandino Vieira, em entrevista de 6 de abril de

1977, diz: "...se cada vez mais estou sendo mais angolano, porque é a única

maneira de atingir o universal".123 Ora, ser angolano atualmente é, com certeza, dar-

se conta dessa diversidade cultural resultante de um percurso histórico específico e

forjar, a partir dela, um amálgama poderoso carregado de sentidos.

Um outro dado que parece significativo, com relação à feitura de uma

literatura angolana é o intenso diálogo de muitos escritores, com modernistas

brasileiros. Esta informação permite inferir que algumas conquistas dos autores

brasileiros, tanto no plano da linguagem quanto no plano das estruturas narrativas,

tenham sido também apropriadas para a criação da literatura, de modo geral, e da

ficção narrativa angolana, em particular.

122 Luandino: José Luandino Vieira e a sua obra, p. 31-2. 123 Idem, ibidem, p. 22.

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De qualquer modo, a criação dessa ficção é um dado contemporâneo e

bastante recente. No século XIX começam a aparecer algumas evidências de

criação literária. Como diz Maria Aparecida Santilli: "Embora no século passado

(séc. XIX) começassem a surgir condições para a criação das modernas literaturas

nacionais, os resultados pouco ultrapassaram o aparecimento de publicações

esparsas em jornais e revista.124

Todavia, importa notar que há algumas publicações significativas no século

XIX. A primeira delas, de 1849, é o livro de poemas de José da Silva Maia Ferreira,

chamado Espontaneidades da minha alma. Às senhoras africanas. Sobre esse

autor, diz Gerald Moser, na introdução à segunda edição do livro:

Foi ele o primeiro a atrever-se a introduzir o seu “toirrão” africano na poesia de língua portuguesa, em versos singelos que foram o vagido e um novo regionalismo. Por isso, pode-se afirmar que Espontaneidades da Minha Alma abriu a picada que levaria à literatura da Angola independente.125

Vale mencionar, ainda, a coletânea de poemas escritos nas décadas de 1870

e 1880 por Joaquim Dias Cordeiro da Matta e publicada com o título de Delírios. E

Bonavena, em prefácio a uma edição atual deste livro, diz que Cordeiro da Matta

“durante anos a fio foi considerado o paradigma do escritor angolano do século

XIX”.126

Resta citar, também, Alfredo Troni, que publica, em folhetim da imprensa

lisboeta, a novela Nga Nuturi, no ano de 1882. Segundo Rita Chaves, este texto é

“considerado precursor da escrita angolana em língua portuguesa”127

Em 1934 é publicado o livro de António de Assis Jr. Chamado O segredo da

morta (romance de costumes angolenses ) Esta obra é fundamental para a

construção da narrativa angolana, como apontam, entre outros, Laura Cavalcante

Padilha128 e Rita Chaves129

124 SANTILLI, cit., p. 12. 125 MOSER, Gerald. In: FERREIRA, 1980, p. 30 126 BONAVENA, E. In: Matta, 2001 127 CHAVES, 1999, p.36 128 PADILHA, 1995. 129 CHAVES, 1999.

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Não é objetivo desse trabalho fazer uma leitura da obra desses autores e de

suas significações. Julgamos importante, no entanto, mencioná-los, tendo em vista

que constituem já uma base sobre a qual uma literatura posterior poderia se erguer.

Um trabalho interessante, pela quantidade de informações que contém, muito mais

do que pelo rigor analítico é o de Mário António Fernandes de Oliveira. Trata-se de

A formação da literatura angolana (1851-1950130), dissertação de doutoramento

apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de

Lisboa, em 1985. Pode ser uma obra basilar para a elaboração de uma História da

literatura angolana, mesmo que o autor dê mais ênfase à poesia do que à ficção

narrativa.

Após a Segunda Guerra Mundial começam a crescer, nos países africanos

colonizados, sentimentos e idéias de independência e autonomia. É evidente que

estas novas tendências se inserem em um quadro mundial de intensa polarização,

marcado pela Guerra Fria. Esta polarização aparece em muitos escritores, na

medida em que suas obras apresentam denúncias contra a ordem vigente e a

subentendida ou explícita exigência de uma nova ordem sócio-político-econômica

mais justa.

As primeiras publicações se dão em revistas, que aglutinam escritores

diversos. É o caso de Mensagem (1951 -1952) e Cultura (II) (1957-1961), sem falar

do boletim Mensagem, da Casa dos Estudantes do Império ( 1948-1964).

Voltando a Santilli

A partir dos anos 60 vêm os tempos de mais aguda repressão, e [...] ligam-se a essa geração: Ernesto Lara Filho, Henrique Guerra (Andiki), Arthur Maurício Pestana dos Santos (Pepetela), Jofre Rocha, Jorge Macedo, Arnaldo Santos, Manuel dos Santos Lima, Agostinho Mendes de Carvalho (Uanhenga Xitu), Manuel Pacavira, Carlos Gouveia, Bobela Motta, Manuel Rui.131

A perspectiva da obra destes autores é muito marcada pelo acirramento da

política repressiva da metrópole e pela luta pela independência. De qualquer forma,

representa um esforço consciente de construir uma identidade angolana através da

literatura. É um esforço gigantesco, pois trata-se também de (re)construir a auto- 130 OLIVEIRA, 1997 131 Sntilli, cit. p.16.

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estima de um povo colonizado. Fanon chama a atenção para a atuação do

colonizador no sentido de alienar o colonizado de sua própria história.

Talvez não tenhamos mostrado suficientemente que o colonialismo não se contenta em impor sua lei ao presente e ao futuro do país dominado. O colonialismo não se satisfaz em prender o povo em suas malhas, de esvaziar o cérebro colonizado de qualquer forma e de qualquer conteúdo. Por uma espécie de perversão da lógica, ele se orienta para o passado do povo oprimido, destorce-o, desfigura-o, anula-o. Este empreendimento de desvalorização da história anterior à colonização adquire agora sua significação dialética.132( Trad. Minha-GPR )

A tarefa exige o trabalho de muitos e várias gerações se sucedem, durante e

após as lutas anti-coloniais. Quando Boaventura Cardoso publica seu primeiro livro,

Dizanga dia Muenhu, em 1977, já há um bom caminho trilhado, já há a conquista

de uma língua literária própria e original. E aqui vale a pena, mais uma vez, lembrar

os vínculos dialógicos dos jovens intelectuais angolanos com os autores

modernistas brasileiros. A luta para poder utilizar uma língua “natural e neológica” e

a “contribuição milionária de todos os erros” (Oswald de Andrade – 1924) de nossos

modernistas serve de exemplo e estímulo para os escritores angolanos.

3.1. O SIGNO DO FOGO: As pulsões do fogo

Boaventura Cardoso (nascido em 1944), pertence à geração de escritores

que se criou no período das lutas anticoloniais e pró-independência. São escritores

que têm, entre outras tarefas, aquela - gigantesca - de inventar um país chamado

Angola. Seu primeiro romance , O signo do fogo, publicado em 1992, segue-se à

publicação das coletâneas Dizanga dia Muenhu (1977), O fogo da fala(1980) e A

morte do velho Kipacaça(1987). É uma obra cuja narrativa se situa em uma Angola

anterior à independência, em que pairam no ar as tensões, as angústias e os

terrores da opressão colonial e da resistência contra ela. Nela convivem diversas

132 FANON, Frantz., 1991, p. 255-256

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perspectivas de mundo, ora ancoradas nas tradições, ora marcadas por uma cultura

mundializada133; ora minadas por preconceitos, ora animadas pela esperança.

Toda a narrativa se passa em Luanda e tem seu ritmo marcado pela figura do

ferreiro - meio mito, meio energia vital - malhando vigorosamente o ferro na bigorna.

O fogo da forja do ferreiro modula tanto as relações amorosas - aí incluso o ciúme -

quanto as tensões sociais e políticas. Não, por acaso, a associação revolucionária a

que pertencem alguns dos principais personagens da narrativa, tem, como mote e

slogan, "o fogo vai fecundar a terra". (È possível, aqui, estabelecer uma certa

homologia com a seara vermelha dos versos de Castro Alves usados por Jorge

Amado como epígrafe para o romance homônimo.) O fogo é fecundação e vida. É

purificação. Astrojildo Pereira, em prefácio a uma edição d'O Ateneu, publicada pela

coleção Biblioteca Universal Popular, da editora Civilização Brasileira, fala do

incêndio, ao final do romance de Raul Pompéia, como um "símbolo revolucionário".

Em O signo do fogo, as labaredas têm a mesma conotação: trata-se de uma

fecundação revolucionária da sociedade angolana. Uma única citação pode

sintetizar e corroborar essa afirmação. São os últimos parágrafos do livro.

Veio o comando na hora aprazada. E o fogo foi assim, concentrado, purificando a distância que separa a Ilha do Mussulo da parte continental. O fogo foi assim debaixo da água purificando tudo o que se movia no fundo do mar, assim, os peixes e as algas e as baleias e os tubarões, chegou na terra, concentrado, penetrou nela e a terra se abriu com volúpia na sua passagem e gostosamente se deixou inflamar e assim. E a terra estuava de tanta fricção e resfolegava se sentindo penetrar pelo fogo seminal. Contrariamente ao que se esperava, ela não oferecera nenhuma resistência assim, se predispusera logo para a posse mal sentira o fogo voluptuoso a se aproximar assim. Horas depois o FOGO e a TERRA caíram exaustos, mas fecundos. O ferreiro sorri sorridentemente. A população regressou nos musseques e noutras zonas de fogo. A festa estava nos olhares e nos abraços e nos sorrisos. No ar tinha muitos sons e muitas vozes. E então Tutuxa e Clímene vieram na praça. E viemos também nós, eu e nós, Alfa e Ómega, vem HEFESTOS e, festivos, saltamos a fogueira.134

133 Prefiro usar o termo mundializado para tratar de questões culturais. Às vezes é uma decorrência da globalização; às vezes, não. 134 CARDOSO, 1992, p. 349.

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A grande festa de celebração da fecundidade, de onde nascerá o futuro,

consagra o fogo como força de transformação e como mito. Aqui, conclusivamente,

o ferreiro é identificado com Hefestos, o que é, sem dúvida, muito interessante: o

ferreiro da mitologia européia - universal, como querem alguns, crucificados ao

eurocentrismo - colocado a serviço da causa anticolonial. E esta é apenas uma das

apropriações da cultura do colonizador que se faz, para transformá-la em arma

contra ele. Voltaremos a falar disso e de outras conotações do fogo no processo

narrativo.

À guisa de fechamento destes comentários iniciais, vale citar Laura

Cavalcante Padilha.

[...]o fogo fecunda o ventre da terra e dele sai, seminal, pronto para proceder à grande transformação da história. Ele se inscreve igualmente na própria linguagem romanesca em que prosa e poesia, inseminando-se, acabam por propor uma outra revolução. Tudo, em O signo do fogo, é esperança, certeza e sêmen de futuro.135

A narrativa tem alguns núcleos aglutinantes: Guima, seus camaradas da

associação e as famílias deles. Tutuxa e sua mãe; Bety e a família; o poder

repressivo do império colonial, sintetizado na figura do Inspector Renato e o povo de

Luanda. De alguma forma, aliás, o povo é o núcleo temático maior: cada uma das

figuras individuais concentra em si aspectos da diversidade cultural de Angola.136

Guima é uma figura muito interessante e complexa. Mora com a tia e é

estudioso e trabalhador. Isso não impede que tenha uma vida sentimental bastante

atabalhoada. Tem alguma semelhança com os femeeiros de Jorge Amado. Seu

amor por Tutuxa se volatiza com facilidade, tão logo conhece Bety. No entanto,

Guima é extremamente metódico e assume com naturalidade a liderança dos

companheiros na associação. Espécie de pólo organizador da narrativa, convergem

para ele, de alguma forma, os personagens e as situações.

135 PADILHA. "Pelo ventre sagrado da terra". In: CHAVES, MACEDO e MATA, cit., p. 210. 136 Observe-se que tomo povo aqui em sentido muito amplo. Mesmo o Inspector Renato se sentia representante de um povo, ainda que fosse o povo do Império. De qualquer forma, todos têm a sua verdade, estremecida, muitas vezes pela mescla cultural.

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Mantém um romance de vários anos com Tutuxa, mas desfaz o namoro, sem

dar satisfações, ao conhecer Bety numa farra e se apaixonar por ela. Decorre daí

um dos fios narrativos centrais. Tutuxa, sentindo-se desprezada, recupera as

tradições e, ouvindo as vozes ancestrais, se transforma e começa a queimar de um

fogo interno, que transparece nas roupas vermelhas que passa a usar e que,

jorrando dela, pela força ancestral, queima tanto Guima quanto Bety, literalmente. O

fogo é, aqui, instrumento de punição e vingança e, simultaneamente, força que

resgata Tutuxa da depressão e da melancolia.

Como podemos observar, "fogo" é significante extremamente polissêmico, mudando de sentido em cada passagem da narrativa. Como nota Jorge Macedo

"O romance O signo do fogo é, dentre os macrotextos

‘boaventurianos’, aquele que mais evidencia a sua inconfundível arte de criar e manejar símbolos. Neste caso, ao ‘fogo’ são conferidos múltiplos sentidos contextuais, tornando a conseguida ficção quase um compêndio artístico de manipulação ágil, sábia e criativa da linguagem simbólica".137

A situação criada pela transformação de Tutuxa e as freqüentes crises de

convulsão e calor de Guima levam a tia de Guima, a mãe de Tutuxa e a mãe de

Bety, mediadas pela figura de velho Matias, amigo e conselheiro de Guima, a

procurar um kimbanda, figura tradicional, associada a curas e vaticínios. Embora as

três senhoras sejam cristãs, acabam concordando em buscar a interferência do

kimbanda, posto que sua crença europeizada parecia incapaz de dar conta do que

acontecia. É um ponto muito significativo da narrativa, pois mostra a resistência de

formas tradicionais de relação com o invisível, mesmo em grupos sociais

razoavelmente bem estabelecidos, como já observamos também em Jorge Amado.

A religião trazida pelos colonizadores perde sua força diante do que não consegue

explicar: a força dos ancestrais e de uma tradição que permanece latente até que se

necessite dela.

É interessante lembrar aqui a recriação textual que Appiah faz dos funerais de

seu pai, quando menciona a utilização simultânea das tradições de culto aos

ancestrais e de rituais religiosos de duas variações do cristianismo: a metodista e a

137 MACEDO, 2005, p. 57.

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católica. A força dos ritos e crenças trazidos da Europa não obscurece a

necessidade de preservar e valorizar a tradição local.138

A narração mescla várias vozes narrativas, numa construção polifônica, em

que diferentes atores podem falar por si próprios, estabelecendo uma relação

dialógica com os demais.139 Mesmo que predomine na narração uma terceira

pessoa, ela, com freqüência, abdica da condução da história e a transfere para

outro. Este outro é, várias vezes, Guima, mas não só ele. Podem ser outros

personagens, às vezes sem uma identificação muito precisa, a não ser pelas marcas

lingüísticas que os caracterizam. Vejamos dois trechos significativos.

Bety era a filha querida. Não tanto por ser a mais nova das filhas, mas por ser muito bem comportada, assim. Para ela o pai vinha idealizando desde tem bastante tempo um casamento com o filho de um grande industrial. E esse acalentado desejo para além de lhe vir garantir uma equilibrada estabilidade económica significaria também uma escalada vertiginosa na sociedade. E além disso, os descendentes dos meus descendentes serão daqui há algumas décadas indivíduos puros sem a mínima gota de sangue cafreco. Esta é a única forma de acabar na minha família com a cafuzada e cabritada e a fula-fula da fulatada - assim considerava o pai de Bety. A vizinhança que comentava o caso não se atrevia a denunciar a ligação amorosa que Bety vinha mantendo comigo. ( ...) Era voz corrente que se o pai dela soubesse do caso Bety apanharia um atesto de pancadaria além de eu poder ser forçado a comer então o pão que o diabo amassou.140

Observe-se que, no primeiro parágrafo, o narrador em terceira pessoa se

dissolve na voz do pai de Bety, dissolução marcada pela presença do possessivo

meus. Apenas na última frase o narrador em terceira pessoa reaparece para afirmar

que as considerações feitas eram do pai de Bety. O segundo parágrafo introduz,

sem qualquer transição, a voz de Guima, que passa, durante algumas frases, a

comandar a narração.

Esse processo é reiteradamente usado na narrativa, de tal modo que muitos,

se não todos, os personagens façam ouvir a sua voz.

138 Ver APPIAH, cit., p. 181-192. 139 Os conceitos são de BAKTHIN, 1981. 140 CARDOSO, 1992, p. 153.

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O segundo trecho é também bastante instigante.

Ar estava abafado, não tinha a menor corrente de frescura, assim. E as pessoas corriam então de um lado para o outro, os autocarros estavam cheios, nas paragens as bichas não tinham fim, os carros formavam longas bichas junto aos sinaleiros e semáforos e, nervosos, os condutores buzinavam freneticamente e descarregavam ainda toda cólera em quem lhes contrariasse, uma manobra julgada extemporânea ou um simples encosto no carro causado por uma travagem imprevista era o suficiente para azedar os ânimos e então saltavam dos assentos e vinham cá para fora gesticular e aos berros, assim, saia daí meu sacana! E agora? venha cá para fora que eu já lhe digo como é que se conduz! , e daí a pouco tinha cenas de pancadaria e então aparecia a polícia a dar cacetadas e confusão então aumentava, oh! oh senhor guarda vê lá como é que fala com a gente, tenha lá maneiras, bê lá com estais a falar, oh senhor guarda largue-me, por favor, largue-me se não parto-te a cara! ai é? ora então parta-me lá a cara, a ver se eu não lhe faço em fanicos! ora bamos lá a ber, ora então, ora então começa lá, assim, os nervos estalavam de fogo no fogo da discussão e do calor, nos bares da Baixa a cerveja jorrava então, sai uma dúzia de finos bem gelados, e aquecia ainda os ânimos ao ponto de aumentar a desordem.141

Como se percebe, a deliciosa cena da confusão na rua é intensificada pelo

tumulto de vozes que se cruzam, alteadas. Cada um dos transeuntes se destaca por

uma fala própria e o ruído provocado por esse emaranhado de vozes se sobrepõe à

descrição que abre o parágrafo. O mais interessante é que o próprio narrador em

terceira pessoa pode ser visto como mais um transeunte no momento em que diz

"...saltavam dos assentos e vinham cá para fora...". O cá identifica, nesse caso, o

espaço em que o narrador se coloca. Assim, como uma voz a mais, o narrador é

uma das muitas pessoas que derretem no calor da rua.

Observe-se que a aparente desorganização do parágrafo, em que a

pontuação não interrompe o fluxo verbal, antes o acentua, se adequa perfeitamente

ao burburinho e à confusão que se estabelecem na rua encalorada. As vozes e os

gestos se interpenetram de tal modo que se tem a impressão forte de um organismo

vivo, de muitas cabeças e muitas falas. Constata-se aqui a multiplicidade cultural de

Angola, de que já falamos. Múltipla e una, a população se expressa em muitas

141 CARDOSO; cit., p. 43-4.

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vozes, que parecem convergir para uma só. Podemos perceber já, com certeza,

alguma pista que nos conduza à questão da identidade.

Jorge Macedo fala do uso da "hipotipose ou figura estilística que consiste em

narrar com vivacidade quadros agitados, comportamentais ou paisagísticos"142 na

obra de Cardoso, envolvendo quase sempre a sua língua literária. É evidente que

este recurso se enriquece muito, como mostramos, pela polifonia de vozes, no

trecho que comentamos e, certamente, em O signo do fogo de maneira geral.

Podemos fazer uso aqui, também, das palavras de Marcelo José Caetano,

para fechar nosso raciocínio sobra a polifonia em O signo do fogo:

A matéria de sua literatura, mediatizada por sua experiência criadora - poiesis - participa do processo de redescoberta do EU angolano. Em sua literatura vislumbra-se a edificação do projeto existencial (e político) angolano. Ele dá o tom do que define o existir na colônia e fala da impossibilidade do silêncio, do medo na tarefa que se impõe ao colonizado: construir-se a si mesmo. A perspectiva de seu texto é, além de olhar para si mesmo e para seus compatriotas, ver o outro em si mesmo e definir os lugares do eu e do outro, isto é, o escritor pensa a identidade e a alteridade angolana.143

Associado a esta polifonia, há também um elaborado processo de estabelecer

algum tipo de vínculo com as oralidades angolanas. Observe-se que nos trechos já

citados a repetição expressiva do "assim", marca ritmicamente uma forma de falar. É

um recurso expressivo para dar aos narradores a possibilidade de exibir a sua fala,

em um texto que se sabe escrito.

Em seu famoso texto, Mil platôs, Gilles Deleuze e Félix Guatarri 144 tecem,

algumas considerações que nos vão servir de mote para essa leitura. Dizem eles:

Não se criticarão tais modelos lingüísticos por serem demasiado abstratos, mas, ao contrário, por não sê-lo bastante, por não atingir a máquina abstrata que opera a conexão de uma língua com os conteúdos semânticos e pragmáticos de enunciados, com agenciamentos coletivos de enunciação, com toda uma micropolítica do campo social. Um rizoma não cessaria de conectar cadeias semióticas, organizações de

142 MACEDO, 2005, p. 55. 143 CAETANO, Marcelo José. In: SEPÚLVEDA e SALGADO, cit., p. 106. 144 DELEUZE e GUATTARI, , 1995.

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poder, ocorrências que remetem às artes, às ciências, às lutas sociais. Uma cadeia semiótica é como um tubérculo que aglomera atos muito diversos, lingüísticos, mas também perceptivos, mímicos, gestuais, cogitativos: não existe língua em si, nem universalidade da linguagem, mas um concurso de dialetos, de patoás, de gírias, de línguas especiais. (...) Não existe uma língua-mãe, mas tomada de poder por uma língua dominante dentro de uma multiplicidade política.145

Ora, observando-se a diversidade e a complexidade culturais de Angola,

inclusive no plano das línguas que ali se falam, é fundamental para um autor que

pretenda introduzir no seu texto marcas de angolanidade, trabalhar com esta

diversidade e complexidade de forma abrangente e nunca excludente. Assim, a

citação acima parece encaixar-se à perfeição na sociedade angolana. Ali, há uma

língua dominante que é a do colonizador. Não se pensa aqui, ao falar em língua

dominante, que ela seja, no período colonial, a língua utilizada pela maioria da

população. Mas é, com certeza, a língua do prestígio social, das instâncias do poder,

etc. Para um angolano atingir a condição, desejada por muitos, de assimilado, teria

necessariamente que aceitar a língua do colonizador e utilizá-la dentro dos padrões

e das normas estabelecidas por ele. A árdua tarefa que se impõe aos escritores é

então fazer da língua dominante a sua língua, introduzindo-lhe, no entanto,

elementos dos dialetos, dos patoás e das gírias que marcam o cotidiano angolano.

É o que faz Boaventura Cardoso neste romance.

Às vezes, a ruptura se dá pela intromissão, no modelo e na linguagem

narrativa do colonizador, já canonizados por um tradição, pelo uso de vocabulário

adequado, de palavras que não caberiam em um texto português: " kimbanda,

musseque, kianda, funge de peixe, mufetes, machimbombos" e tantas outras,

inclusive algumas que marcam a oralidade, como "aiué" ou "ué".

Às vezes, o confronto se dá num emprego muito peculiar da sintaxe, violando

a sintaxe lusitana: " subir nos céus", "as miúdas lhe gostavam", "ia muitas vezes no

bar", "Beto da Vila ao solicitar a ajuda dela lhe fez sem grande esperança". Luandino

Vieira, em conversa com Michel Laban, faz alguma observações interessantes sobre

essas mudanças. Diz ele:

145 DELEUZE e GUATTARI, cit., p. 15-16.

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Por exemplo "em", a preposição "em", com sentido de movimento, já pertenceu à língua portuguesa: "Fui no Huambo". Claro, isso é corrente aqui. Também a confusão entre o directo, o complemento directo e complemento indirecto. O quimbundo só tem "mu" como complemento directo e indirecto, as duas variantes, não tem distinção, isso faz com que "lhe bateram na mãe dele"…146

A consciência manifesta de Luandino é, com certeza, também a de

Boaventura Cardoso.

Às vezes, as marcas de oralidade podem fazer com que as palavras tenham

sua ortografia propositalmente modificada, como na repetição que se observa em "e

a chuva foi chuvendo, chuvendo". Essas repetições são muito características da

oralidade e é um dos elementos marcantes que Mário de Andrade usa em

Macunaíma: "brincabrincando", "correcorrendo". Em Boaventura Cardoso, o recurso

é muito utilizado. Carmen Lucia Tindó Secco, já chamou atenção para o processo

em outro livro do escritor angolano, Maio Mês de Maria.147

A esta vibrante polifonia de vozes, de timbres e sotaques diferentes, de

múltiplas variações vocabulares, semânticas e sintáticas, se adita um outro aspecto

de relevo extremamente importante. Partamos de uma afirmação de Edouard

Glissant para acentuarmos devidamente este aspecto. Diz Glissant.

Quando vejo na televisão um tremor de terra em algum país, de maneira fulminante não apenas tomo consciência daquele tremor de terra, mas sou quase que impregnado pela língua daqueles que foram atingidos, pela sua maneira de viver, por tudo aquilo que foi perdido, etc. (...) Sou impregnado por tudo isso e é por isso que digo freqüentemente que o escritor contemporâneo, o escritor moderno, não é monoglota, mesmo se conhece apenas uma língua, porque escreve em presença de todas as línguas do mundo.148

Em Boaventura Cardoso, a presença de "todas as línguas do mundo", se

mescla às outras falas já mencionadas. Vejamos alguns exemplos.

146 LUANDINO, cit., p. 28. 147 SECCO, 2003, p. 102. 148 GLISSANT, 2005, p. 32-3.

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Frequentador assíduo de boîtes, do "Chá das Seis", do "Chá Canasta" do Movimento Nacional Feminino, assistia no "Restauração", "Estúdio", "Aviz", "Miramar" e "Império" nas estréias de gala de grandiosos filmes como "O Padrinho", "Easy Rider", "Bonnie and Clyde", "West Side Story", "My Fair Lady", "Cabaret", "O Último Tango em Paris", "O Cowboy da Meia Noite", não perdia as fitas de Penn e Coppola e Joseph Losey e Truffaut e Bertolucci, mesmo sem entender patavina via Godard, Fellini e Buñuel, pagava caro para ver Jane Fonda, Nicholson, Liz Taylor e o inseparável Burton, o patrício Sidney Poitier, Paul Newman e Dustin Hoffman, não faltava nos grandes espectáculos com artistas vindos de fora, onde era quase sempre o único preto.149

E mais adiante:

E quase todos os anos ia no estrangeiro assistir as grandes provas automobilísticas de Montecarlo, Indianópolis e as "24 horas de Le Mans". Politicamente era um esquerdista romântico. Vibrava com as acções da LUAR em Portugal, dos TUPAMAROS no Uruguai, da ETA na Espanha, das Brigadas Vermelhas na Itália, com os desvios de aviões e seqüestros. Repudiava a intervenção norte-americana no Vietnam, mas gostava dos filmes em que se exibia o poderio militar do Pentágono naquele país asiático e noutras paragens do mundo.150

Essas referências são feitas a um dos personagens pertencentes à

organização, Daskilas. Percebe-se claramente que as línguas do mundo estão

presentes naquele universo. Filmes e outras informações em outras línguas e

situações penetram, de alguma forma, o cotidiano angolano. Com relação a outro

personagem, Quintas, o texto descreve seu quarto, repleto de cartazes de artistas

como Elton John, Joe Cocker, Bob Dylan, Jimmi Hendrix e James Brown, de atores

como Bruce Lee, Peter Fonda e Richard Burton, de políticos como Che Guevara,

Mao, Angela Davis e Luther King.151 Mais uma vez, múltiplas línguas se cruzam no

espaço angolano.

Beto da Vila, outro personagem, dialoga também com muitas outras línguas.

149 CARDOSO, cit., p. 63. 150 Idem, ibidem, p. 24. 151 Idem, ibidem, p. 73.

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E Beto da Vila admirava Frantz Fanon; tinha lido com muita paixão "A Cabana do Pai Tomás" e "Chora Terra Bem Amada", de Alan Paton; admirava a luta dos negros norte-americanos; reconhecia em Du Bois o pai do Panafricanismo e considerava Marcus Garvey, Henry Sylvester Williams, George Padmore, Nkrumah, Aimé Césaire e Leon Damas como os fundadores da consciência negra. Para Da Vila o slogan "Black Power" era o símbolo renovado da consciência negra nos nossos dias.152

Embora essas referências sirvam como elemento caracterizador dos

personagens, elas são mais do que isso. Expressam, com certeza, a consciência do

escritor Boaventura Cardoso de que as múltiplas vozes angolanas estão

impregnadas de vozes de todo o mundo. E esta é uma das questões que vamos ter

de trabalhar ao enfrentarmos o problema da identidade, pois demonstra com clareza

que há um diálogo que transcende as fronteiras e impregna a língua e a

subjetividade de Angola.

Podemos observar que mesmo em grupos sociais marginalizados, situados à

margem da ordem, este multilingüismo aparece. Observe-se: "Aí vêm também os

donos das baçulas e das kapangas, o Big Boy, o Zorro, o Mister Tibbs, o Viratripa, o

Faca Longa e o Tirabox, com toda a sua arrogância, assim, os olhos vermelhos de

tanto palhar" 153. Nos apelidos transparece a mundialização da linguagem de que

estamos falando.

Como já vimos, há um processo similar em Jorge Amado, principalmente em

Tenda dos milagres, sobretudo na figura de Pedro Archanjo, mas não só dele.

Um outro aspecto importante a considerar na narrativa é a diversidade étnica,

resultante social da formação histórica de Angola, e que aparece como fonte, não

raro, de confronto. Uma perspectiva ideológica secular, marca as posições e as falas

que as determinam. Mesclam-se nessa perspectiva ideológica os três sentidos

apontados por Williams, conforme mostramos anteriormente.

Há, tradicionalmente, como estigma decorrente da colonização, um processo

geral de discriminação do negro, tratado - e já o mostramos - como ser inferior. Esta

posição é perfeitamente perceptível na atitude do pai de Bety, que não a queria

misturada com negros e almejava para ela um casamento branco, mesmo sendo ela

mulata. Há uma cena muito violenta, nas páginas 154 e 155, em que o pai investe

152 Idem, ibidem, p. 95. 153 Idem, ibidem, P. 122.

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contra ela: "Então agora deu-te a namorar com negros!" E mais adiante: "Oh filha de

uma grandessíssima cabra! E ainda por cima mentes quando todo o mundo já sabe

que andas enroscada com preto!" E como clímax da cena, bate com violência em

Bety e na mãe dela. A cor da pele é suficiente para estigmatizar um indivíduo.154

A violência contra os negros aparece em vários momentos do livro, como por

exemplo o momento em que Guima vai preso por ter impresso alguns folhetos

"subversivos". Vale a pena transcrever um trecho

Você é o autor desta brincadeira! O que é que isto significa?! O fogo há-de fecundar esta terra. O que é que isto quer dizer? As vossas mães e irmãs é que precisam de ser fecundadas a ferro e fogo. Ora gaita! Anda um tipo a aturar-vos, a civilizar-vos e depois é esta a recompensa. Vocês os negros são todos uma cambada de selvagens. Isso é que são! - O patrão se levantou e se dirigiu em direção a Guima, numa atitude muito agressiva, assim.155

Toda a perspectiva do colonialismo "superior" e "civilizador" aparece aqui,

com nitidez. A motivação política de Guima é dissolvida, pelo patrão, através de uma

redução da atitude do rapaz a características inerentes a todos os africanos.

Um outro, exemplo, ainda mais violento, se dá quando um branco é

assassinado por um negro e os brancos resolvem vingar-se, invadindo os

musseques, matando e destruindo.

E veio então a calamidade pressentida. Os comerciantes vieram pela calada da noite e abriram fogo sobre os musseques. Tinham que vingar a morte do tão estimado comerciante, o senhor Manuel, que no dia anterior tinha sido morto por um preto, depois de uma acesa discussão. Não importava encontrar o verdadeiro autor do crime. Criminosos eram todos os negros indistintamente. ( Itálico meu-GPR )156

A punição pelo crime de um se estende a todos os que forem identificados

pela cor.

Por outro lado, na associação convivem, entre outros, Beto da Vila, que é

mulato, Daskilas, que é negro e Quintas, que é branco. Beto da Vila desconfia dos 154 Vale lembrar aqui, ainda uma vez, FANON, 1995, p. 88-114 155 CARDOSO,cit., p. 40-41. 156 Idem, ibidem, p. 105-106.

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outros dois: De Daskilas por ser um negro assimilado e freqüentar rodas de brancos.

De Quintas, por ser branco. Beto da Vila é extremamente radical: quer que o

movimento seja conduzido só por negros, inspirando-se no movimento negro norte-

americano, bastante segregacionista. Guima, que é negro, não entende o

radicalismo do mulato, que, além de tudo, descendia, na sua parte branca, de

alemães.

Observe-se que o racismo tem muitas faces. Kabenguele Munanga, em

palestra no I Colóquio de Literatura e história africanas, na Universidade Federal de

Juiz de Fora (dia 21 de outubro de 2005), observa que, embora não haja raça, como

demonstra a moderna genética, há racismo, quando uma pessoa tende a olhar o

diferente com desconfiança e até com desprezo. Na mesma direção, vale reler as

instigantes análises de Appiah.157

Ora, embora sejam compreensíveis as posições de Beto da Vila, que vê no

branco a figura do opressor, sua atitude desemboca também em racismo. Guima é

mais lúcido e percebe que a exclusão do outro, do diferente, não contribui para a

causa. De qualquer forma, como se vê, as vozes polifônicas de que falamos podem

conter, muitas vezes, dissonâncias preconceituosas e racistas, o que a narrativa

deixa explícito.

Como se observa, há muitas similaridades entre o Brasil de Jorge Amado e a

Angola de Boaventura Cardoso, embora os nossos negros tenham passado por um

processo diaspórico muito mais violento que as diásporas internas da África. Como

observa Glissant, "os negros chegam despojados de tudo, de toda e qualquer

possibilidade, e mesmo despojados de sua língua. Porque o ventre do navio

negreiro é o lugar e o momento em que as línguas africanas desaparecem”158. Esta

diferença traz com certeza traços significativos ao tratamento que Jorge Amado e

Boaventura Cardoso darão à questão. De qualquer modo, é um problema

contundente nos dois e terá que ser tratado com relação à questão da constituição

da identidade.

Assim, vimos que do ponto de vista da religiosidade, da linguagem e da

ideologia, a Angola de Boaventura Cardoso, em O signo do fogo, é uma Babel de

vozes, não entendendo Babel como dispersão, mas antes como a convivência de

muitas diferenças. Ao final, o livro aponta para uma esperançosa fecundação da 157 APPIAH, cit., principalmente da página 3 a página 46. 158 GLISSANT, cit., p. 19

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terra pelo fogo, de onde pode nascer algo novo e poderoso. Como veremos adiante,

os romances posteriores de Boaventura Cardoso vão arriscar-se por outras trilhas,

embora algumas questões sejam permanentes, como a coexistência da tradição

religiosa e do cristianismo e a mescla polifônica de vozes.

3.2. MAIO, MÊS DE MARIA: A cabra, os cães, as crenças.

O segundo romance de Boaventura Cardoso é publicado em 1997. É bastante

diferente do primeiro, sob vários aspectos. A narrativa está centrada na figura de

João Segunda e sua família, cuja trajetória se mescla a aspectos da história

angolana. Em texto introdutório ao livro, ironicamente intitulado “Nota de censura

póstuma”, Luandino Vieira observa: “romance quase intolerável este, da morte de

uma camada social germinada contra natura pelo sistema colonial e incapaz, agora,

de se afirmar na Independência”. 159

Há, assim, uma certa exemplaridade na historia de Segunda, mesmo levando

em conta a forte alegorização com que a vida angolana é tratada. O tratamento

alegórico no livro já foi observado por, entre outros, Jurema José de Oliveira.160 Se

tomamos a alegoria no sentido em que Walter Benjamin a utiliza em A origem do

drama barroco alemão(1990) vamos verificar que o conceito é extremamente útil

como ferramenta operacional para a compreensão de alguns aspectos fundamentais

deste romance. Tomemos algumas referências: para Benjamin, a alegoria é utilizada

como expressão de um mundo em ruínas, mundo em que se perdeu qualquer

sentido de totalidade e em que cada fragmento parece conter em si toda a

significação possível e não parece conectar-se a qualquer outro.161

Ora, partindo da observação de Luandino Vieira citada, observamos no

romance que João Segunda perde gradativamente as noções de inteireza, de todo

significante a partir do momento em que abandona Dala Kaxibo, no interior, e migra

para Luanda com sua família e seus pertences. A morte da esposa, durante a

viagem, é uma perda muito importante, do ponto de vista das significações da vida

para Segunda, pois ela é uma referência fundamental para ele. Importa mencionar

159 VIEIRA, in CARDOSO,1977,p.10 160 OLIVEIRA,In: África & Brasil: letras em laços, p.71-83 161 BENJAMIN 1990, p. 151-183

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aqui, dada a importância deste elemento, que João Segunda é um negro assimilado,

orgulhoso de falar bem o português e de vestir-se e portar-se “adequadamente”, o

que lhe garantia uma posição respeitável no sistema colonial. Veja-se, por exemplo,

a transcrição a seguir.

Na faladura falada, Segunda que também tinha habilidade dele. Quando estava na prosa com gente da sanzala se comunicava bem em kimbundo e umbundo, com provérbios e anedotas chalaçantes, ou então linguajava em pretoguês, que se fazia entender. No meio dos brancos João Segunda que afinava os putu dele, fia da mãe!, donos da língua se conseguiam de lhe imitar? Sabia falar como os brancos de primeira e de segunda, bordava requebros nas falas do Minho, da Beira Alta, do Baixo Alentejo, do Algarve, ele que só conhecia a Metrópole no mapa. Então os brancos que lhe falavam assim você só é preto na pele, no coração você é branco como nós, e então ele se ria ridente vaidoso.162

A ida para Luanda significa também a penetração em um outro mundo, pós-

Independência, onde seus modos e sua fala não lhe garantem mais coisa alguma.163

Apesar disso, consegue conquistar alguns cargos honoríficos em Luanda, tal

como o de Presidente do Conselho de Moradores do Prédio do Balão. Quando

parece ter estabelecido alguma organização significante nova, a aparição dos cães

transtorna tudo, pois, entre outras pessoas, o próprio Segunda é carregado por eles

e, quando retorna, seu filho Hermínio desapareceu, junto com outros jovens. A partir

daí, uma grande parte da narrativa está centrada nos esforços e nas peregrinações

dele à cata do filho desaparecido.

Como se observa, as ruínas de mundo(s) desmoronado(s) cercam João

Segunda por todos os lados e o tratamento alegórico parece ser a forma possível

para apreender e dar sentido a essas ruínas.

Pires Laranjeira resume assim

O percurso da sua terra à capital, perdendo o estatuto de pessoa respeitada e reconhecida no povoado, passando pelo choque brutal com a cidade, onde é enganado e cai no

162 CARDOSO, 1997, p.43 163 Ver a sugestiva leitura feita desse e de outros aspectos do livro no ensaio de Carmen Lucia Tindó Secco, publicado em| Magia das letras africanas(2003), com o título de “Boaventura Cardoso: os alegóricos “maios” e “desmaios”. P.100-111

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anonimato, até um novo reconhecimento social, com aura de liderança, sofre um rude golpe quando se dão acontecimentos que perturbam a nova categoria de ordem social em que Segunda já se enquadrava com habilidade.164

Por outro lado, a trajetória de João Segunda e suas sucessivas perdas (Dala

Kaxibo, a esposa Zefa, a posição social, o filho Hermínio) pode ser vista como uma

diáspora pessoal, tendo em mira que o personagem perde gradativamente os

parâmetros de uma ordem e de uma personalidade agora transformadas em cacos

de lembranças. Em certo sentido, Segunda é um exilado em sua própria terra, tendo

de acostumar-se com hábitos e convenções estranhos. Os elementos que lhe dão

algum alento vêm do passado, da origem: a cabra Tulumba, a família, o criado

Samuel Lusala e a presença fantasmática da falecida esposa. Este último caso bem

como o caso da cabra Tulumba remetem a um passado e uma origem fortemente

ancorados em crenças ancestrais. Com a cabra, Segunda tem uma relação que é

intrigante para as outras pessoas, posto que há uma forte empatia entre ambos e,

não por coincidência, a morte dos dois é simultânea. A cabra parece perceber o que

se passa e, de alguma forma, Segunda se comunica com ela e ela parece entendê-

lo. Esta crença nos poderes de animais e na relação especial que alguns humanos

conseguem estabelecer com eles é muito forte em várias culturas e tem uma raiz

popular. Observe-se neste romance que, além da cabra Tulumba, aparecem corujas,

aves aziagas, que prenunciam desgraças, e os cães, capazes de seqüestrar e

manter presos seres humanos. Dos cães, voltaremos a falar mais adiante, dada a

carga significativa que eles têm na narrativa.

Quanto à presença fantasmática da esposa, existe a crença, disseminada

entre várias culturas de África, de que os espíritos dos mortos não se afastam para

algum outro plano, mas permanecem junto dos familiares. Já vimos algo desta

crença em O signo do fogo. Eu dizia que esta crença está disseminada entre várias

culturas de África, mas podemos nos lembrar de que na antiga Roma, cultuavam-se

os manes, isto é, os espíritos dos ancestrais.

Grande parte da percepção do relacionamento especial entre João Segunda e

a cabra Tulumba e da presença da esposa morta se dá através do criado Samuel

Lusala que, em larga medida, representa no livro a consciência popular, ingênua e

164 LARANJEIRA. “ A intentona fracassada de 27 de maio de 1977”. In :CHAVES, MACÊDO E MATA, 2005, p.168

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temerosa. É uma espécie de contraponto à autoconfiança inicial de Segunda,

sempre pronto a tomar alguma atitude, por mais temerária que ela pareça. Observa-

se, desta forma, que elementos da cultura popular são avaliados, muitas vezes, no

romance, por um personagem fortemente vinculado a esta variante cultural. É

preciso notar aqui que o narrador não se manifesta, mas apenas narra os fatos, sem

emitir sobre eles qualquer juízo de valor. As apreciações valorativas, ou não, são

feitas pelos próprios personagens e pelo leitor.

Importa ainda mencionar, do ponto de vista desta mescla de crenças que

vincam fortemente a cultura popular, que, como vimos em O signo do fogo, quando

parece falhar o recurso à crença do colonizador, aparentemente dominante, busca-

se novamente o recurso à crença ancestral. Observe-se a transcrição a seguir:

Que as pessoas tinham notado, nas igrejas tinha gente que não estava lá com sentimento, estavam com pescoços de girafas, ouvidos muito atentos nas orações, lengalengas, ladainhas que não respeitavam apelos dos padres à tolerância e à resignação, Virgem Maria só quero que se faça justiça!, que os cães sejam mortos à paulada e depois queimados ainda vivos nas barrocas do Miramar!, Nossa Senhora que os cães sejam ainda atirados vivos no alto mar!, Santa Bárbara, manda só uma forte descarga elétrica que fulmine todos esses cães. Que os crentes estavam desconfiar. Tinha crentes que debandavam em busca de reforços para solucionarem os casos. E kimbandas faziam da desgraça das pessoas a bendita graça deles, não tinham mãos a medir, se enchiam de dinheiro. Que um certo dia, no quintal de um grande kimbandeiro, tinha muita gente cada um à espera da vez dele, e alguém que desconfiou tinha lá alguém que estava parecia muito curioso atento nas conversas que se falavam, depois começaram estavam lhe olhar, assim, dessas, e o meu então se sentiu incomodado e se foi embora.165

Voltaremos a falar depois, ainda, do final apoteótico da narrativa, com a

ascensão da imagem da Virgem Maria.

Um outro aspecto importante a considerar, neste romance, como já fizemos

em O signo do fogo, é a extrema diversidade de vozes que atravessa a narrativa. O

narrador não se coloca em uma posição hegemônica, abafando todos os falares.

165 CARDOSO, 1997, p. 121

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Utilizo falares para caracterizar bem o domínio da oralidade durante toda a narração.

A própria voz do narrador tem marcas de oralidade.

Como dizíamos, o narrador não assume uma hegemonia sobre os diversos

falares. Observe-se, à guisa de exemplo, a cena deliciosa que se desenvolve já no

quarto parágrafo do romance:

Que se falava assim de um coxo estava sentado desequilibradamente na quietação dele sossegada, as tranqüilas águas, orando, zolhos na imagem santa, tinha mais gente ao lado dele, de repente ele que começou estava sentir perna dele mancante embora estava quente, formigante sensação, eh! eh! eh!, a se mexer sozinha parecia dono da perna não era o coxo, mas quê isso?, que ele se perguntou, e então ele ouviu dentro dele o Senhor estava lhe falar “LEVANTA-TE E CAMINHA” e ele fez assim, se levantou e começou então estava caminhar, ehé! ehé! ehé!, pessoas que estavam ao lado dele se assustaram e desordenadamente começaram estavam debandar outras bandas, mas o quê que foi?, não sei também, vamos só fugir! Se tropeçando-se entre elas, sô Padre que estava embora na escuta de uma confissão, mandou lixar o pecador e voou por cima da multidão afunilada na porta principal da igreja, batina dele esvoaçando num rasgo de Super-Homem, eh! sô Padre, afinal é assim? na hora do Juízo Final estás fugir sozinho não espera o rebanho? na precipitação da fuga uma vela tinha caído no altar e pegou fogo, duas Filhas de Maria já quase na saída teimavam em recuar para se imolarem no fogo demoníaco, nos deixam só passar vamos só salvar o altar!, nos deixam só passar!, mas quem que podia lhes prestar as atenções?!, águas do dique irrompendo, arrastando a turba que fugia do coxo reabilitado que estava caminhar passo firme, sorriso dele celestial distante, é o diabo!, é o diabo!, é o diabo!, ai minha mãe!, amam’ééé!, pessoas a gritarem, lhe fugindo. 166

As vozes se cruzam, tão atropeladamente quanto a multidão em debandada.

Elas acentuam de forma significativa a movimentação da cena, aumentando-lhe a

densidade. Como vimos já em O signo do fogo, a própria voz do narrador se

mescla às demais, como se ele também estivesse no meio do tumulto.

Um outro contraponto de linguagens que parece muito carregado de

significação dentro da narrativa se dá entre o negro assimilado João Segunda e o

166 CARDOSO, 1997, p. 11-12

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Camarada Comandante e a família deste. O efeito que se obtém desse contraponto,

embora muito engraçado, remete a uma ordem de preconceitos lingüísticos e

portanto, sociais, na medida em que Segunda e vários outros desprezam a fala do

Comandante e sua família, pois estes não dominam o português e se expressam

numa mistura desta língua com falares nativos de Angola. Vejamos alguns

exemplos.

O primeiro contato entre João Segunda e o Comandante já acentua o tom

contrastante entre a fala deste e a dos demais.

Comandante era homem tinha parece ter trinta e tal anos, cabeça meia careca, barriguinha dele saliente, barba descuidada, falha sibilante nos dentes de cima, gestos sem mesuradamente, ataviava alto num português misturado com uma língua que Segunda não pôde lhe identificar. (Itálico meu).167

Mais adiante, a fala do Comandante é colocada em estilo direto livre. Ao

saber que a filha Hortênsia está grávida do Comandante, Segunda lhe cobra o

casamento. A resposta do Comandante, a reação dos filhos de Segunda e a dele

próprio demonstram nitidamente o preconceito de que falamos acima.

Senhor João Segunda, compreendes. Não tenho ainda casa, precisas mais algum tempo para preparares tudo os coisa, ir nas terra buscar os família. Horácio queria rir todos dentes, Hermínio lhe olhou censuradamente, mas ele que não se agüentou, pediu para sair. Foi e se riu na casa de banho. Hortênsia, que sabia motivo do riso, fingiu concentração na conversa. No pensamento dele João Segunda estava pensar assim, estou lixado, olha a besta que Hortênsia foi arranjar, um gajo que nem português sabe falar, que há-de ser de Hortênsia quando as pessoas ouvirem este gajo falar?, estou lixado.168

A reação é ainda mais intensa quando, no casamento do Comandante com

Hortênsia, o tio mais velho resolve fazer um discurso, que vale a pena transcrever,

bem como a reação dos jovens.

167 Idem, ibidem, p. 49 168 Idem, ibidem, p. 49

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-- Meus senhores e minhas senhoras. Eu aqui presente, Chitalu Sipangule, tio do camarada Comandante, quer falar umas cueza na noiva e no noivo meu sobrinho camarada Comandante, calem a boca, porra!, estou falar os speech, porra!, silêncio! – mas quem foi que mandou este sacana falar, João Segunda estava pensar no íntimo dele – eu aqui presento Chitalu Sipangule quero desejar os noivo ficam bem, ficam felizes, quando tiver discussão lá em casa é só chamar de mim ou o compadre nome dele João Segunda para resolver os problema, vocês devem ter muitos fílios, os fílios é a riqueza dos pobre e os fílios deve ter educação na palavra de Deus Nosso Senhor e os fílios e os pais ficam todos bem, shut up! Calam-se as boca, porra!, marsunducados!, estou falar os discurso, porra!, este é o nosso desejo do coração e por isso vamos todos agritar aviva os noivos!, aviva o camarada Comandante e mulher dele Horta Tensa, aviva os convidado todos – Horácio e mais uns jovens galhofaram Aviva! – com sou eu aqui presente, Chitalu Sipangule, a ruta continua, a vitória és certa, muito obrigado Aproveitando a euforia do momento, barulho das palmas, Horácio riso dele todo, lagrimou todo riso que tinha guardado tem tempo. Mas que Horácio não era único que estava se rir, colegas da noiva também despregaram bandeiras de risos, quem não sabia podia pensar estão rir é a festa que está boa.169

Interessante é que, para acentuar ainda mais a profusão de vozes, há uma

atitude distinta do narrador quanto a esta apropriação da língua do colonizador pelo

colonizado. Como o Comandante é um personagem que ocupa um cargo de relativa

importância no governo, sua fala e a de seu tio tendem ao ridículo.170 Por outro lado,

há uma empatia acentuada que ressalta no tratamento dado ao personagem

Catorze, ex-criado de Segunda, em conversa com Lusala.

Eh! mano Lusala, já sei que os problema continua, enquanto que o mocho não caba de chorar tem sempre os problema, mano, o sacana continua vir me chorar todas noite, isso é muito mau, que eu continua pensar tem os problema do Bairro todo que só Nossa Senhora de Fátima que pode resolver, estou ver assim no meu pensamento é melhor o bairro fazer uma grande procissão na Nossa Senhora, falam no Sô Padre, mas mais primeiro antes da procissão é preciso

169 Idem, ibidem, p. 53 170 Veja-se a leitura, de resto muito instigante, que Benjamin Abdala Júnior faz da figura do Comandante em seu ensaio “ Códigos e hábitos culturais: a dinâmica do diverso”, que faz parte de CHAVES, MACÊDO E MATTA, 2005, p. 219-228

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resolver um outro problema que ainda não foi resolvido, é problema do sô Cunha dos caixões, precisa ser panhado urgente, muito urgente, mano Lusala, fala no sô Padre, ele deve saber qualquera coisa, pode falar mesmo no Sô Padre quem falou sueu Catorza (...)171

Não há em Catorze, qualquer traço da empáfia que caracteriza o Comandante

e seu tio. É mais uma vez a consciência popular, a que já me referi, se expressando

em uma linguagem espontânea, “natural”, incorporando milionariamente todos os

erros, como queria Oswald de Andrade no Brasil. A diversidade lingüística, como a

de crenças, talvez seja o eixo central desta narrativa, além de questões políticas.

Numa das viagens que Segunda faz, o narrador comenta que “Ele se misturou com

gente estranha e que falava línguas e dialectos que ele às vezes ficava na dúvida de

saber o sentido todo das conversas...”172

Quanto à questão da oralidade, como já dissemos, as culturas angolanas

autóctones não tinham registros escritos, embora usassem alguns sinais e

desenhos, e todas as tradições se preservassem através da transmissão oral,

utilizando diversas formas narrativas. Ora, um dos problemas que se coloca para os

escritores que começam a escrever uma narrativa caracteristicamente angolana é a

de, a partir de padrões narrativos europeus, construir uma literatura própria.

Problema imenso que se colocou também para os escritores brasileiros em dois

momentos cruciais: o pós-independência, no século XIX e o modernismo, no século

XX. E é importante lembrar a observação de Machado de Assis, de que o que se

deve exigir do autor é que ele manifeste um “instinto de nacionalidade”, mesmo

quando trate de temas distantes no tempo e no espaço.

Assim, as narrativas angolanas vão ancorar-se em marcas de oralidade que

remetem à língua portuguesa “corrompida” utilizada no cotidiano angolano. É claro

que a oralidade literária é sempre uma construção discursiva, que utiliza recursos

múltiplos para simular que o texto escrito é oral.

Desta forma, temos em Boaventura Cardoso a utilização de neologismos

(fatimando, pazcalmoso), aliterações (faladura falada, ri ridente), expressões

interjetivas (Ehé! Ehé! Ehé!, xiçá mé!), algumas exclamações que atraem o leitor

171 CaRDOSO, cit., p. 203, 204 172 Idem, ibidem,p.148

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para “ouvir” (por exemplo, os inúmeros Eh! Eh! Eh! dentro da narrativa) e uma

sintaxe muito especial, marcada por uma pontuação também especial, que vai

transformar o discurso narrativo em um grande fluxo verbal, em que as pausas

apenas acentuam o processo oralizante delicioso, como aparece em alguns

exemplos que já utilizamos.

Este processo de construção parece mais maduro em Maio, mês de Maria do

que em O signo do fogo.

Para encerrar estes comentários, vale mencionar o excelente estudo de

Benilde Justo Caniato, publicado em Boaventura Cardoso, a escrita em

processo173, e intitulado “A fala como autodeterminação do povo angolano em

Boaventura Cardoso”. Embora trate mais especificamente do livro de contos O fogo

da fala, faz algumas menções a Maio, mês de Maria e a Mãe, materno mar. É um

texto que analisa, com densidade, os processos lingüísticos através dos quais

Boaventura Cardoso recria os falares de Angola. Escapa aos limites deste trabalho

uma análise tão pormenorizada, mas é importante, acredito, citar colocações que faz

ao final do texto.

“Selecionando e hierarquizando elementos do sistema lingüístico, Boaventura Cardoso acaba por reduzir seus textos ao essencial da fala, conforme emissor e receptor se coloquem num contexto situacional idêntico”. “[...]podemos dizer que os recursos expressivos[...] podem ser vistos como uma chamada à autodeterminação do povo angolano”174

Retomaremos esse ponto, quando interrelacionarmos os textos de

Boaventura Cardoso com os de Jorge Amado para discutirmos a questão de serem

ou não textos de fundação.

Dois outros aspectos de construção me parecem significativos do ponto de

vista da leitura que fazemos. Trata-se da utilização da água ou de elementos ligados

a ela como marcadores do ritmo e das tensões da narrativa. Como bem aponta

Inocência Mata

Tanto no seu estado “puro” quanto através de seus duplos (chuvas, dilúvios, aguaças, oceanos, mares, rios, riachos,

173 CHAVES, MACÊDO E MATA, 2005, P.65-78 174 Idem, ibidem, p. 76

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fundos, gotas e até choros e lágrimas), a(s) água(s) acompanha(m) a lógica diegética – embora muitas vezes o surgimento de uma forma desse elemento contrarie essa lógica textual: por exemplo, quando o contexto requer “águas” pouco profundas, isto é, quando as “águas” deveriam ser mansas ou claras, surgem agitadas ou turvas, resultando um efeito de estranhamento, que é acentuado pela adjectivação: as águas são novas, fecundantes, diluvianas, brilhantes, nascentes, estranhas, turvas, fluentes, chovidas, benditas, alcovais, frescas, doces, salgadas, constantes, irrompentes, transbordantes, fundas, oceânicas, mansas, passadas, travessas, encrespadas, tumultuosas e, por um processo de reinvenção morfológica, até vascas...Ao todo, contam-se cerca de três centenas o número de ocorrências desse elemento e suas metáforas....175

Se em O signo do fogo, o elemento que marcava os movimentos da

narrativa era o fogo, aqui é a água. Em Mãe, materno mar(2001), veremos como

estes elementos aparecem.

Para encerrar esta leitura de Maio, mês de Maria, é necessário atentar para

os aspectos histórico-político-religiosos que a narrativa contém. A narrativa se passa

na Angola pós-independência marcada por múltiplos conflitos, dos quais o de maior

dimensão é a guerra civil. Pires Laranjeira, em seu texto, já citado, 176 sugere que a

tentativa de golpe de estado chamada de “fraccionismo” e a conseqüente repressão

seriam apresentadas sob a forma alegórica do aparecimento dos cães e do

desaparecimento dos jovens. Entre esses jovens estava Hermínio, filho de Segunda,

e, de acordo com a narrativa, eles liam livros ruins e tinham idéias más,

pretendendo, entre outras coisas, a independência do Bairro do Balão.

Se levarmos em conta, de fato, a alegorização de toda a narrativa, os jovens

do Balão representariam um desvio em relação à leitura oficial que se fazia do país.

Benjamin Abdala Júnior avalia: “Ao princípio de libertação da nova ordem

estabelecida, associa-se estreitamente o seu pólo negativo, com suas formas

coercitivas”177

175 MATA, Inocência. “Maio, mês de Maria: as águas da memória em redenção”. In: CHAVES, MACEDO e MATA, 2005, p. 156 176 In CHAVES, MACÊDO e MATA, 2005, p.167 a 171. 177 Cit., in CHAVES, MACÊDO e MATA, 2005, p. 220

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Estes elementos se completam com as buscas de Segunda pelos jovens, indo

parar, primeiramente, em um campo de concentração vigiado pelos cães, e depois,

sai à procura de Finisterra, símbolo mítico de que Benjamin Abdala Júnior diz

Na tradição européia, Finisterra é o fim de um caminho, o ocaso metafórico de uma viagem. Essa carga simbólica teve origem mitológica, no caminho de Santiago, na região galega. E também uma base histórica: foi o último ponto da costa européia atingido pelo conquistador romano Décio Juno Bruto. Lá está o cabo Finisterrae e o concelho de Fisterra, grafado em galego. Depois do cabo, só havia o mar aberto. Ao referente histórico, agregaram-se outras significações. É o último ponto da Costa da Morte – uma região úmida de muitos ventos e naufrágios. E, de acordo com a mitologia medieval geocêntrica, após o misterioso mar aberto, cheio de monstros, viria o fim do mundo.178

Finisterra, o fim da terra, o vazio, ponto além do qual não há mais coisa

alguma, o limite do nada. A visão alegorizada é aqui cruel, se não trágica: os sonhos

de liberdade e de uma sociedade mais justa e mais fraterna mergulham no caos da

repressão e da ausência de sentido.

Observe-se que as discussões políticas perpassam muitas falas de

personagens, tanto do ponto de vista da história passada quanto da atualidade em

que eles (os personagens) se inserem.

Veja-se, por exemplo, a seguinte passagem:

À medida que os filhos iam crescendo lhes ia aguçando curiosidade por coisas do mundo, um pouco de política, de geografia, de religião e de história. Foi, assim, os filhos ficaram no conhecimento das guerras do Libolo, onde, em apenas três anos, de 1895 a 1898 tinha tido oito revoltas, que lá para os finais do século passado, anos noventa talvez, tinha tido em Calulo uma grande insurreição comandada por um soba nome dele Golungo, que tenente Albano Augusto Pais Brandão tinha mandado construir um forte, que a esse oficial se devia a criação em Agosto de 1903 do posto de Dala Kaxibo, que Libolo fora sempre lugar de muitas sublevações, de grandes revoltas no antigamente antes de sessenta e um.179

178 Idem, ibidem, p.221-222 179 CARDOSO, 1997, p. 44.

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Esta recuperação do passado de resistência em Angola contrasta

violentamente com a visão oficial do colonizador sobre os povos que habitavam

aquele lugar. Para caracterizar bem esse contraste, vamos transcrever um pequeno

trecho que revela a posição do colonizador.

Se o angolano aculturado, integrado na Civilização, com todas as possibilidades e oportunidades da vida citadina, não alimenta pruridos ou veleidades autodeterministas porque ele não sente nenhuma necessidade de melhorar – melhorar como? – já que dispõe de todos os bens materiais e espirituais que o homem almeja, a começar pela liberdade, muito menos o nativo em sua vida tribal, que é o seu mundo, a sua nação, a sua Pátria, o seu tudo.180

A posição que se explicita neste texto é ideologicamente muito marcada, pois

importa a ela caracterizar o angolano – aculturado (assimilado) ou não – como

acomodado, incapaz de quaisquer perspectivas de mudança. O romance de

Boaventura Cardoso resgata uma outra imagem: a de um povo que se recusa à

acomodação. Esta posição adquire um sentido especial na Angola pós-

independência pois permite valorizar – se não instituir – a auto-estima do angolano,

afirmando-lhe um passado, e um passado de luta e insubordinação. Vale lembrar a

leitura de Benjamin, em suas “Teses sobre a história”, de que a mirada do passado

atende a uma necessidade do presente.181

Por outro lado, discute-se também a questão política da Angola pós-

independência, quer através dos discursos, algo abstratos, de Hermínio sobre o

socialismo, e sua defesa da política governamental, quer através das críticas do

desterrado Segunda. Apenas para exemplificar, transcrevemos a seguir um pequeno

trecho de fala deste personagem.

_ O que é que o actual regime me deu? Nada. Eu que no tempo do tuga já era um grande senhor, o que sou agora? Estou aqui a perder tempo e dinheiro. Se eu soubesse no que isso ia dar, tinha ido para a Metrópole. Antes da independência éramos todos irmãos, todos portugueses apesar de sermos brancos, pretos e mulatos, hoje já estamos divididos. Alguns indivíduos considerados nacionalistas

180 PINHEIRO, Alves, 1962, p. 94 181 BENJAMIN, 1985.

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ontem, são hoje excomungados da sociedade só por serem religiosos ou por terem idéias diferentes. Ser religioso hoje significa ser reaccionário. Mas que raio de independência é esta que só estabelece a divisão no povo?...Bem que os tuga nos avisaram, vocês depois da independência hão-de se comer uns aos outros. É o que na prática está a acontecer. Uma independência que só trouxe privilégios para uma meia dúzia de pessoas.182

As críticas de Segunda, se, por um lado, expressam a perda de uma condição

de relativo privilégio, da respeitabilidade de que gozava enquanto assimilado, por

outro lado refletem um pouco do senso comum, alheio a qualquer consideração

político-ideológica do sistema pós-colonial.

Uma posição também crítica sobre o governo, ou pelos menos, parte dele,

transparece nas reflexões de Hermínio sobre seu cunhado, o camarada

Comandante.

Tudo o que o pai lhe dissera sobre o camarada Comandante, só reforçara a idéia que ele já tinha do cunhado e das verdadeiras razões do casamento. Sobre falar com ele de política, Hermínio já se tinha tem muito precavido, por ser ele um ignorante, e não por lhe julgar um informador. Nisso nunca tinha pensado. Quando, ele, bêbedo, queria dissertar sobre marxismo-leninismo, Hermínio se mantinha nem peixe nem carne, e gozava interiormente com o ar presunçoso sabichão do cunhado. Se acautelava, não fosse se entusiasmar e lhe dizer na cara que o tipo não passava de um analfabeto político. Tão depressa falava mal do regime, como lhe pintava grandes elogios em espaços infinitos, ele que parecia então ele era a própria emanação da revolução, um só Povo uma só Nação, o Poder Popular, ele o Povo quem que mais mandava, o caminho celestial da vitória certa, o homem novo.183

Como já observamos antes, sobre a fala do Comandante, há uma intensa

ironia no tratamento dado à personagem. Sua empáfia, por estar ligado ao poder, é

mostrada também quando se aponta sua inconsistência política e sua arrogância em

vangloriar-se de ser o Povo. Talvez Pires Laranjeira, em texto já citado, tenha o seu

tanto de razão ao afirmar que há um excesso de pudor e de alusividade alegórica no

tratamento dos acontecimentos de 1977. Esse excesso se deve, segundo ele, 182 Idem, ibidem, p.44-45 183 CARDOSO, cit., p. 112

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também ao fato de Boaventura Cardoso ser “ partícipe das teias do poder político”. 184

Mas, por outro lado, exatamente por participar das malhas do poder, há que

considerar-se a extrema coragem e lucidez do romancista ao afastar-se de qualquer

postura maniqueísta ou ufanista. Se as vozes narrativas são contrastantes, o

contraste se mantém nas diversas posições que essas vozes assumem. Parece

subjazer a isso a idéia de uma Angola plural, cultural e politicamente. E também

religiosamente.

Como já foi dito, a narrativa termina com uma imensa apoteose epifânica, em

que Nossa Senhora de Fátima ascende aos céus a partir do andor. Se no título do

romance já se sugere a veneração à Virgem, na narrativa como um todo essa

veneração é reiterada diversas vezes. Como já vimos, tal veneração não exclui a

presença de outras crenças, muitas vezes mescladas.

Benjamin Abdala Júnior chama a atenção, em seu texto já citado, para a

diferença do marianismo em Portugal e o modo como é tratado no romance. Diz ele

que “Em Portugal, o mito mariano estava associado à decantada tristeza

portuguesa, colocada em prosa e verso”.185 E, comentando o final da narrativa,

afirma: “ Nesse momento a narrativa se abre para o fantástico. E com esse

procedimento, a efabulação descola-se do mito mariano português, que se conforma

à modelização ritual da dor”.186 E, logo a seguir: “ Nesse final apoteótico, desvanece-

se a atmosfera que marcou todo o desenvolvimento da intriga”. 187 Talvez minha

discordância esteja apenas na referência ao fantástico que se instauraria nesse

momento. Toda a atmosfera do livro é marcada todo o tempo pela plausibilidade de

qualquer coisa. A própria aparição dos cães, parecendo sair dos infernos ( Há um

eco de Cérbero, guardião do Hades, nesses cães espectrais e, no entanto, reais. ),

não causa espanto, embora seja tão “fantástica” quanto o final da narrativa. Parece-

me que a mistura de crenças fornece a base para isso. Se, no imaginário cristão,

não se questiona a existência de milagres ( aparições como a de Fátima, em

Portugal, imagens que choram, etc ), no imaginário das culturas angolanas o visível

e o invisível estão permanentemente presentes e imbricados no cotidiano.

184 LARANJEIRA, cit., p.170 185 ABDALA JÚNIOR. “Códigos e habitus culturais: a dinâmica do diverso. In CHAVES, MACÊDO e MATA, 2005, p.224 186 Idem, ibidem, p.225 187 Idem,ibidem, p. 225

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E mais: o tratamento alegórico da narrativa, apontado por muitos leitores

críticos desse romance, sustenta uma efabulação em que o trivial e o extraordinário

podem estar, simultaneamente, no mesmo espaço, ao mesmo tempo.

A alegoria final parece antes servir como (re)conciliação de elementos

antitéticos da sociedade angolana. Quase como uma tese: a religião unifica as

contradições e as diferenças. Se a língua do antigo colonizador pode servir como

fator de unificação, a religião dele talvez possa exercer o mesmo papel. O aspecto

cíclico da narrativa, começando com um milagre e terminando com outro, pode estar

ligado também a esse fato, como no verso de Eliot: “In my beginning is my end”.

Mãe, materno mar (2001), no entanto, caminha em uma direção diversa.

3.3. MÃE, MATERNO MAR: As amnióticas águas seminais

Nesse romance, provavelmente o mais complexo já escrito por Boaventura

Cardoso, o autor se mostra um artesão do verbo que domina com precisão a técnica

da composição. Há um artifício estruturante, usado nesse livro, que permite uma

concentração muito intensa e elevada de aspectos e personagens relacionados a

uma dada visão da vida social. É um recurso que já foi usado, entre outros, por

Bocaccio em Decameron (1349-1351), por Raul Pompéia, em O Ateneu(1888).

Trata-se de juntar em um único espaço, durante algum tempo, variável, personagens

diferentes, não raro antagônicos, que representem grupos, estamentos ou classes

sociais diversos. Mesmo que a origem social dos personagens possa ser

semelhante, como em Decameron, a visão que expressam está em rota de colisão

com o senso comum dominante na sociedade de que provêm.

Boaventura Cardoso reúne personagens de origens e tendências muito

diversificadas em um comboio que parte de Malanje, no interior de Angola, para a

litorânea Luanda, capital do país. A viagem se estende durante longos quinze anos,

devido a paradas provocadas por avarias na locomotiva ou na estrada ou por

fenômenos climáticos. Esta concentração vai permitir à narrativa o desenvolvimento

de uma visão crítica de Angola através de personagens que remetem a diversas

posições sociais, religiosas e étnicas da sociedade angolana. É uma síntese

impressionante e impactante. Poderia ser tratada como tragédia, tendo em vista que

remete à trajetória trágica de seres humanos em sociedade. No entanto, o autor

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constrói a narrativa articulando habilidosamente uma série de qüiproquós, marcados

por um humor cáustico e por uma ironia sutil e poderosa. Esta “comédia humana” ou

“comédia de erros”, mesmo tratando de figuras tipicamente angolanas, em um

espaço e um tempo angolanos, ou talvez por isso mesmo, se projeta além de

Angola, mostrando seres humanos, demasiado humanos, em suas dimensões mais

rasteiras e mais sonhadoras.

Carmen Lucia Tindó Secco, no belo e preciso “Prefácio” que escreve para a

primeira edição do livro, chama a atenção para a organização polifônica da narrativa.

Polifonia de vozes, de tendências, de tensões.188 Esta polifonia aparece

explicitamente , e de forma muito intensificada no comboio, em que se cruzam vozes

de classes sociais, de grupos religiosos, de relações profanas, de tradições

múltiplas. Aqui, o visível e o invisível se mesclam a todo momento, diariamente.

Observe-se o exemplo abaixo.

Pela classe da carruagem que seguia se podia aferir mais ou menos do estrato social a que cada passageiro pertencia. Nas duas carruagens da primeira classe, para além da noiva cuja família ficara em Ndalatando, viajavam o Profeta e os pastores, altos funcionários públicos e muita gente de negócios; nas quatro carruagens da segunda seguiam Manecas, a mulher e o filho, o homem do fato preto e família, muitos modestos trabalhadores da função pública, responsáveis do Partido e suas organizações, gente dos muitos e complicados negócios, os crentes das igrejas dos pastores e do Profeta, um grupo de estudantes, uma equipa de futebol que ia jogar em Luanda, um grupo de pessoas que pelas suas expressões se percebia que vinham de um óbito, talvez um parente recentemente falecido em Ndalatando, e algumas pessoas sem ocupação definida; a terceira classe tinha oito carruagens em que viajava gente humilde, operários e camponeses, trabalhadores do CFL, crentes de outras sincréticas religiões, kimbandas e visionários, outra equipa dos Serviços de Saúde que andava pelas sanzalas em campanha de vacinação contra a febre amarela, as treze raparigas dos óculos escuros, muitas quitandeiras de Luanda, vendedores ambulantes e muitos desempregados.(...) Enquanto que na primeira e na segunda classes as carruagens eram divididas em compartimentos, na terceira em cada carruagem tinha espaço único, com bancos, e a confusão e a

188 SECCO, Carmen Lúcia Tindó. ”Entre mar e terra: uma polifônica viagem pelo universo “mágico-religioso” de Angola”. In: CARDOSO, 2001, p.11-31

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desordem era permanente. Cada um se sentava onde quisesse, nos bancos, nos corredores e outros espaços livres, com trouxas à mistura, pássaros engaiolados, galinhas, cabritos, até cães tinha, Haka!...189

O tamanho da transcrição se justifica, dada a importância do trecho. No

microcosmo do comboio vê-se concentrada toda a sociedade angolana, não

excluindo sequer as prostitutas (as divas kamasutras, de óculos escuros). O mais

instigante é observar que a pirâmide social de Angola aparece numericamente

representada: duas carruagens na primeira classe; quatro na segunda e oito na

terceira. Podemos observar ainda a informalidade anárquica da terceira classe, bem

como a mais absoluta ausência de privacidade. Como dissemos no início, o recurso

estruturante usado por Boaventura Cardoso lhe permite uma mirada crítica sobre

toda a sociedade angolana com um máximo de economia narrativa.

Os conflitos que marcam o desenvolvimento da narrativa são de várias

ordens: conflitos provocados por desentendimentos entre as classes das

carruagens; conflitos provocados por concepções religiosas diversificadas ( e estes

constituem um dos pontos nodais do livro ); conflitos provocados pelo pai da noiva,

arrotando dinheiro e empáfia; conflitos provocados pelas divas kamasutras. Há ainda

um outro conflito, mais tensão (latente ou explícita) que conflito, entre a tradição e a

modernidade. O moderno usa várias máscaras: o desejo de Manecas de fazer-se

engenheiro; a racionalidade “científica” dos homens do Partido; a aparelhagem e a

música do “discojoquei”; alguma religiosidade que se quer moderna como a do

pastor que estudou no Brasil e nos Estados Unidos. A tradição se confunde com o

que parece mais africano: são lendas, apresentadas como reais; são máximas

proverbiais; são crenças animistas, não raro mescladas a versões do cristianismo.

Nesse sentido, há uma passagem muito significativa, que transcrevemos a seguir:

para enfrentar uma onda de rumores inquietantes que circulam pelo comboio, os

líderes religiosos decidem reunir-se. Trava-se então o seguinte diálogo:

Que nada, nem uma coisa nem outra, dizia o pastor da Igreja de Jesus Cristo Negro que, com todo o respeito pela doutrina cristã, e tendo em conta as muitas rezas e cultos que já tinham sido feitos para abençoar aquela viagem, que era chegado o momento de se recorrer a outros meios mais eficazes, quer

189 CARDOSO, 2001, p. 116-117

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dizer, tentou explicitar, coisas da terra, que não era necessário adiantar mais nada sobre o assunto pois todos estavam a entender o que é que ele queria dizer com aquilo, as águas do mesmo rio, porque em África, meus senhores, as águas de baixo se unem às águas de cima, e mais não digo. - Para a minha igreja a salvação está em Deus e em mais ninguém. Não conheço outros meios mais eficazes – falou, mal humorado, o pastor da Igreja do Bom Pastor. - Vamos deixar de truques! Somos todos africanos e sabemos que muitas vezes fazemos às escondidas aquilo que publicamente não pode ser feito, nem sequer dito – ripostou o pastor da Igreja de Jesus Cristo Negro, para depois rematar com um cínico sorriso:- Aliás, Cristo, por ser negro, conhece-nos bem a todos. Nada de truques, pois! - Eu acho que o irmão tem razão. Entre nós africanos o profano e o sagrado andam de mãos dadas, são as mesmas águas. Afinal tudo se resume na captação de forças visíveis ou invisíveis e da sua integração na vida cotidiana – interveio o pastor da Igreja de Jesus Cristo Salvador de Angola, com o ar de quem sabe de tudo. Sabia?190

Essa citação é muito importante, pois vai ao encontro da leitura que venho

fazendo dos romances de Jorge Amado e Boaventura Cardoso. É claro que há uma

intenção crítica muito forte nesse romance, mas a convicção dos personagens, ao

tratarem esse sincretismo como traço característico dos africanos, é o que importa.

Note-se que a afirmação central, compartilhada pelos pastores, é de que em África o

sagrado e o profano, o visível e o invisível estão juntos, “andam de mãos dadas”. Em

toda a narrativa esta constatação parece fazer parte do senso comum, na medida

em que vários incidentes narrados seriam, em uma ótica ocidental, profundamente

fantásticos, embora para os personagens, conquanto possam ser assustadores, são

plausíveis e normais. Assim é com o ronco da terra, quando do sepultamento dos

mortos no comboio; com a cabeça (tricéfala) decepada da mulher do homem do fato

preto; com a perda e recuperação do bastão do Profeta; com os gêmeos enterrados,

cujas covas regadas fazem chover; com os milagres do Profeta; com a entrega do

bastão ao profeta por Nossa Senhora das Águas e os mais acontecimentos que se

dão na narrativa. Tudo é plausível, tudo é crível. A atitude de dúvida e/ou de

condenação vem do Partido ou da Igreja Católica.

190 Idem, ibidem, p. 223-224

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Um outro aspecto a considerar é uma certa lógica ritualística que existe tanto

nas celebrações formais das igrejas quanto nas crenças e crendices disseminadas

entre várias populações do mundo. Vamos, nesse sentido, tentar esboçar uma

leitura da maneira que os analfabetos da Igreja de Jesus Cristo Salvador de Angola

cantam Oh Happy Day ( Oh é pi dei! Oh é pi dei!, etc.).191

Muniz Sodré, em um texto provocador sobre cultura brasileira, cita um

episódio relacionado à visita do Papa João Paulo II ao México, em 1979. A multidão,

entusiasmada, queria que o Papa fizesse um discurso. O Papa alega não saber falar

espanhol e a multidão grita que ele pode falar em polonês mesmo. Muniz Sodré

conclui que o sentido finalístico, doutrinário, da visita do Papa se perde. Interessa é

o espetáculo.

Logo a seguir, acrescenta

Hipótese nada exemplar: teria sido sempre assim, com as massas? São muitos os elementos que reforçam a conjetura. No Brasil do século XVII, por exemplo, os escravos demonstravam explicitamente prescindir da prova de adesão ao cristianismo: um fragmento de oração como “ressurrexit sicut dixit” convertia-se, sem prejuízos, em “Reco-Reco Chico disse”. Ou seja, eles viviam as aparências da religião, da mesma forma como as massas populares sempre foram seduzidas pelos ritos eclesiásticos, pela forma dos espetáculos ( bem o sabem os jesuítas ), e não por qualquer verdade universal da Igreja ou qualquer finalidade atribuída por um sentido universalista.192

Ora, o que constatamos é que no trecho da narração em que se insere a

canção, cuja letra, tal qual era cantada pelos fiéis, era absolutamente destituída de

sentido, o narrador conta:

O pastor quando que começava a pregar tinha gente que chorava, imprecava a Deus aos gritos, transeava e desmaiava de tanta exaltação e histerismo. Nosso Bom Deus, salvai-nos! Deus Todo Poderoso tenha piedade de nós! Santa Maria, rogai por nós! Mãe de Cristo, Tubingile! Deus seja louvado! Glória! Aleluia! Tinha até gente do Partido que, curiosa, ia só para lhe

191 Idem, ibidem, p.95 192 SODRÉ, Muniz, 1983, p.186

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escutar e acabava por cair em transe como os demais. Auá! Ele pregava fazendo muitos gestos expressivos quando quisesse sublinhar um pensamento, as bíblicas proféticas citações, gritava eufórico heymen!! , e os fiéis respondiam amém!, e misturava a pregação com cânticos ao ritmo sincopado do gospel, o que tornava os cultos da igreja muito animados.193

Quer dizer: o que importa é o elemento ritualístico que envolve e subjuga os

fiéis, independente de entenderem ou não a finalidade do ritual enquanto tal. Vê-se

que o narrador é muito irônico e sarcástico ao colocar os homens do Partido, que

deviam ser imunes à contaminação, se deixando envolver pela celebração.

Da mesma forma, as aparições, fenômenos, obedecem a certos padrões

ritualísticos que apenas kimbandas ou outros iniciados conhecem intimamente. Veja-

se, no romance, por exemplo, a cena exemplar em que se realiza um ritual para que

o Profeta recupere seu bastão. O Profeta, com todo o poder que manifesta, em

várias passagens do livro, não consegue, por si mesmo, recuperar o bastão perdido.

Estes rituais, e o impacto deles sobre as multidões, podem explicar, em larga

medida, a proliferação de igrejas “originais” na Angola histó rica – como no Brasil.

Este romance de Boaventura Cardoso dá conta, de forma muito precisa, dessa

proliferação e de seu significado. O que importa notar aqui, sobretudo, é a forma

como isso é feito. A perspectiva é crítica e a crítica se explicita através do humor –

ácido e corrosivo – e da ironia.

Nas três partes em que se divide o livro – que têm como título três dos

elementos fundamentais : A Terra, A Água e O Fogo194-- o andamento é marcado

pelo tratamento bem humorado que vai da posição do narrador, debochando,

disfarçada ou explicitamente, de personagens e situações, até o comportamento

ridículo de vários personagens. Como exemplo do segundo caso, podemos

mencionar a queda do pai da noiva em uma cova aberta, onde perde muito de sua

pose emproada, além de um caríssimo cachimbo savinelli .

Exemplificando o primeiro caso, citamos:

Que os cavalheiros e as damas vinham todos pinocas, pipis, as bangas todas, ih! só o estilo! , os brilhantes ouros, hum! As

193 Idem, ibidem, p. 94 194 Carmen Lúcia Tindó Secco, no Prefácio já citado, mostra como O Ar também está presente na narrativa, embora não tenha capítulo com seu nome.

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pulseiras e os fios, hum! Os dourados dentinhos nalgumas importantes bocas, hela! As capelinas, as muitas damas nos seus vestidos brocados em tecidos marrocain, taftás, chifons, piquets, tas a brincar ó quê!, as seis damas de honor nem que queriam se sentar só para não amarrotarem os rodados e rendados vestidos em cetim duchesse cor-de-rosa, ora essa! Os smokings, os anjinhos, um casal de caudatários, as criancinhas arrumadinhas, aprumadinhas, bem vestidinhas, só os trajes, meu!, ih!, um importante casamento!, a família da noiva em peso e alguns convidados, a noiva, ela própria, bem penteadinha, bem besuntadinha com os finos franceses cremes, as unhas envernizadas, a boquinha dela toda já emoldurada com baton, sublinhados e lápis castanho-claro os contornos, que a madrinha dela que vinha ao lado lhe tinha recomendado que não se risse para não estragar a maquilhagem, ah! ah! ah!...195

Como se vê, o narrador ironiza toda a “pompa e circunstância” da noiva e seu

séqüito, quando não se ri escancaradamente. As marcas da ironia estão tanto nas

interjeições ou locuções interjetivas quanto em algumas palavras meticulosamente

escolhidas, bem como pelo efeito pejorativo de alguns diminutivos: “dourados

dentinhos”, “importantes bocas”, “ih!”, “hum”, “besuntadinha”, etc.

O que parece mais importante é que tal ironia se volta principalmente contra

dois grupos: os bem situados na vida, inclusive autoridades, membros do Partido, e

lideranças religiosas. Os mais humildes, parte dos extratos mais populares, são

vistos com uma dose de simpatia que exclui o tratamento ridicularizante.

Podemos remeter aqui, como já fizemos em Tenda dos milagres, de Jorge

Amado, citando Bakhtin196, a um processo que ele chama de realismo grotesco,

onde se dá uma inversão, uma troca do alto pelo baixo, do céu pela terra. Ora, é

possível observar em Mãe, materno mar, este mesmo processo, em toda a

narrativa. O próprio tratamento dado a elementos populares, geralmente excluídos

dos aspectos ridículos que podem marcar a abordagem dos “de cima”. Além disso, a

terra é um elemento de extrema importância, representando a morte, mas também a

ressurreição. Neste sentido, a primeira parte do romance, que se chama, não por

casualidade, “A terra”, pode ser considerada, nos termos de Bakhtin, como

característica do realismo grotesco: a ordem se rompe, tudo é virado de cabeça para

195 Idem, ibidem, p. 41 196 Ver este trabalho, a partir da p. 88

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baixo, o próprio tempo e a realidade “real” são postos em suspensão. Sem esta

parte inicial, que dá o tom do livro, a construção da narrativa perderia muito de sua

força. A ironia e o humor muito peculiares desse romance decorre, em larga medida,

da utilização do processo descrito por Bakhtin, conscientemente ou não.

Observe-se, também, que a narrativa é,sob um certo aspecto a “morte” de

algum tempo e algum espaço lineares e a possibilidade de nascimento de algo

novo,não-sabido.

Ainda considerando “morte” e “ressurreição”, podemos considerar, inclusive

sob a ótica da formação de Manecas, que ele “morre” e “renasce”. Em grande parte,

a narrativa está centrada neste processo de transformação de Manecas que

concentra em si alguma Angola, a que se descobre na mudança.

Para fechar estas reflexões sobre o realismo grotesco em Mãe, materno mar

citemos Bakhtin outra vez.

Na realidade, a função do grotesco é liberar o homem das formas de necessidade inumana em que se baseiam as idéias dominantes sobre o mundo. O grotesco derruba essa necessidade e descobre seu caráter relativo e limitado. A necessidade apresenta-se num determinado momento como algo sério, incondicional e peremptório. Mas historicamente as idéias de necessidade são sempre relativas e versáteis. O riso e a visão carnavalesca do mundo, que estão na base do grotesco, destroem a seriedade unilateral e as pretensões de significação incondicional e intemporal e liberam a consciência, o pensamento e a imaginação humana, que ficam assim disponíveis para o desenvolvimento de novas possibilidades. Daí que uma certa “carnavalização” da consciência precede e prepara sempre as grandes transformações, mesmo no domínio científico.197

Já dissemos, no início, da complexidade desse romance de Boaventura

Cardoso. Isso se comprova, cada vez mais, a cada passo da leitura que levamos e

efeito. De alguma forma, a transformação histórica de Angola, a própria diversidade

de Angola e a riqueza dessa diversidade se concentram nesse romance.

Como nos romances anteriores, a voz do narrador nunca se coloca

arrogantemente autoritária. Pululam múltiplas vozes e enfoques e, tendo em vista o

197 BAKHTIN,1999, p. 43

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pano de fundo histórico em que se movem os personagens, há mesmo, em discurso

direto, a fala de um personagem diaspórico, retornado do Congo, onde se exilara,

fugindo da guerra civil:

Um outro mais-velho se levantou,veio para o centro da roda e falou assim esta histoire que vou ainda vos contar aprendi lá na quando eu vivia no Congo Bélgique. Numa certa sanzala vivia um homem chamado camarade Kaimba. Uma noite ele o camarade Kaimba sonhou com Deus, sonhou Deus lhe disse vai pelo chemin onde que costumas passar, corta alguns ramos de uma árvore grande e guarda soigneusement esses ramos na teu casa. Ele o camarade Kaimba assim que fez. Quando os ramos secaram, uma noite Deus lhe aparece outra vez e lhe ensina então como fazer o feu por fricção. Quando uma certa noite na sanzala em que ele vivia ninguém tinha feu, pardon, fogo, ele o camarade Kaimba começou então a vender o fogo a um prix muito grande nos seus vizinhos. Donc, e os vizinhos todos estavam então très fachés com ele. Todos os homens da sanzala quiseram descobrir o segredo do camarade Kaimba, mas que desconseguiram. O segredo não podia sair na dentro dele. Ele não queria ensinar a personne como que fazer o fogo Ora, na sanzala tinha uma rapariga très belle que disse na dentro dela mesmo: “eu vou conseguir descobrir o segredo do camarade Kaimba.” E então essa rapariga très belle começou a s’ appro..., s’appro...s’aproximar, obrigado, é o francês que às vezes está s’atrapalhar com o português, bom, como estava falar, a rapariga começou então s’aproximar, s’aproximar do camarade Kaimba e o camarade Kaimba então ficou contente e começou a gostar da rapariga.(...)198

Além das marcas evidentes de oralidade, que parece despiciendo assinalar,

tendo em vista a leitura feita nos outros romances, aparece aqui um elemento a mais

na polifonia lingüística de Angola. Além da mistura, que se observa em outros

trechos do português com o kimbundo, principalmente, aqui aparece um outro

elemento: o francês do ex-exilado no Congo Belga. Apesar do sabor da fala, ela

reflete um intenso sofrimento, de um ser marcado por um dos caminhos da

diáspora.

Ainda importa considerar que, sob certo aspecto, Mãe, materno mar é um

Bildungsroman, um romance de formação ou de educação. Manecas, que é um

198 CARDOSO, 2001, p. 193-194

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personagem catalisador das diversas narrativas que permeiam o livro, no sentido até

de que o próprio título remete a sua trajetória199, parte, da província para a capital,

completamente alienado de Angola, de suas tradições populares. Mimado pela mãe,

que supunha que ele fosse “um menino das águas, um menino-feminino”200,

Manecas se deixa embalar pelas histórias da mãe e seu sonho mais permanente é

conhecer o mar, reintegrando-se nas águas maternas. Durante a viagem – e a

duração da mesma não é casual, como observa Laura Cavalcante Padilha: “Como

se sabe, os ritos de puberdade de meninos e meninas, nas comunidades antigas e

até hoje nas não-urbanas, dão-se por volta dos catorze e quinze anos. Por isso

mesmo, não me parece que seja gratuito o tempo da viagem na efabulação.” 201

Manecas aprende Angola, amadurece, de algum modo se insere no mundo real. A

aprendizagem é dolorosa e muitas vezes se dá através de pancadas e pontapés. No

entanto, ao chegar a Luanda, quinze anos depois de sair de Malanje, já com mulher

e um filho, Manecas é um homem podendo purificar-se nas águas do materno mar

real, nova mãe, nova vida. A primeira namorada, Xana, cuja imagem se misturava

para ele com a imagem da mãe, é apenas uma lembrança distante, tão distante

quanto sua juventude. Está completa, em parte, a formação de Manecas.

Resta mencionar ainda, como elemento muito importante na linha de leitura

que adotamos, a figura de Ti Lucas, o cego cantador, que vê mais do que todos os

não-cegos. É uma espécie de voz do bom senso comum, atento às coisas do mundo

visível e do invisível. Sua primeira intervenção na narrativa, quando sugere o modo

adequado de enterrar os mortos no conflito que se dá no comboio, em Cacuso, e o

discurso que profere, durante o enterro ( “E no princípio era a Terra. Da Terra

viemos e um dia a ela voltaremos. É esta a lei da vida de todos os seres vivos. O

corpo de um pássaro morto apodrece não no ar mas na Terra. Assim, até os

animais, depois de mortos, regressam ao ponto de partida...”)202, expressam à

perfeição o senso comum, pois unem a visão cristã, perceptível na citação acima, a

uma visão mais tradicional: “ Mas este regresso à Terra, embora nos pareça

199 Prefiro não falar em personagem principal, ou protagonista, principalmente por considerar que o grande personagem do livro é coletivo, constituído de diversos modos de ser angolano. 200 Idem. ibidem, p. 216. 201 PADILHA, Laura Cavalcante. “Pelo sagrado ventre da terra”. In: CHAVES, MACÊDO e MATA, cit., p.213. 202 CARDOSO, 2001, p.58.

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definitivo e irreversível, é um regresso fecundante, activo, pois os corpos desses

nossos quatro irmãos quando forem depositados lá em baixo, hão-de fecundar esta

Terra que pisamos”.203

Ao longo da narrativa, as canções de Ti Lucas comentam e marcam vários

momentos de desenvolvimento dela. Além disso, ele é uma espécie de oráculo, o

que faz lembrar o mais citado oráculo da antiguidade, Tirésias, o cego que tudo via.

O paradigma do cego vidente, ademais, é corriqueiro em várias vertentes culturais.

É sugestivo que à medida que os poderes do Profeta desabrocham, Ti Lucas

pare de vaticinar e apenas cante seu canto, comentário e juízo de valor.

Como observamos, neste livro, ao contrário do que se observa em Maio, mês

de Maria, a(s) religião(ões) é(são) antes um elemento de divisão e conflito que um

elemento de união e coesão. Elas semeiam a dissensão e até mesmo o ódio,

provocando lutas físicas, em que a agressão pode levar à morte. Talvez a diferença

entre os dois livros se deva à época que evocam: em Maio, mês de Maria , a

apoteose da esperança se fazia necessária; em Mãe, materno mar, exige-se uma

consciência crítica que dê conta de uma Angola plural e marcada por mazelas

provenientes tanto dos interesses – nem sempre limpos e transparentes – das

religiões e das seqüelas provocadas pela experiência marxista pós-independência.

Afinal, pensar os traumas pode ser uma forma eficaz de encontrar-lhes solução.

203 Idem, ibidem, p.59.

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4. JORGE AMADO E BOAVENTURA CARDOSO: autores de textos de fundação?

Partamos de uma afirmação do Prefácio de Eni Puccinelli Orlandi ao livro

Discurso fundador:

Assim, refletir sobre as forças também desorganizadoras que são parte do processo de instituição dos sentidos é um modo de tornar visível a relatividade dos seus “lugares”. Desmontar sua certeza e sua territorialização, que são sempre função de uma relação de forças, no entanto silenciadas, é esse o trabalho que procuramos trazer para a reflexão sobre o discurso fundador. Sem defini-lo categoricamente, procuramos pensá-lo como a fala que transfigura o sem-sentido em sentido.204

Desde o citadíssimo texto de Renan, “O que é uma nação?”205, do século XIX,

que se conhecem os pressupostos através dos quais se afirma uma identidade

nacional. Para ressaltar alguns pontos importantes: Renan afirma que a idéia de

nação tem que ser confirmada através do que ele chama de plebiscito diário, com o

qual se reiteram na lembrança os traços fundamentais que caracterizam uma dada

nacionalidade; afirma também que a afirmação positiva de uma nação supõe o

204 ORLANDI, 1993, p. 8 205 BHABHA, 2004, p.8-22

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esquecimento daquilo que, mesmo servindo de base para a construção dessa

nação, tem uma conotação negativa. “Esquecer para lembrar”, coloca Bhabha.206

Relacionando com o texto de Orlandi, citado, podemos concluir que toda

afirmação identitária, nacional ou não, passa pela criação de sentidos – sentidos

afirmativos, eu diria. Como já foi dito na introdução, trata -se de um problema de

linguagem. E, tanto no caso de Jorge Amado, no Brasil, como no de Boaventura

Cardoso, em Angola, a questão é muito complexa, pois trata-se de afirmar uma

identidade nacional a partir de uma moldura lingüística outorgada.

Antonio Candido, abordando especificamente o Brasil, diz

[...] comecemos por dizer que em sua formação as nossas literaturas são essencialmente européias, na medida em que continuam a pesquisa da alma e da sociedade definida na tradição das metrópoles. [...] Mas, de outro lado, este tipo de literatura veio atuar em regiões desconhecidas, habitadas por povos de cor e tradição diferentes (no caso do Brasil, primitivos), aos quais se juntaram logo outros povos trazidos da África, aumentando a complexidade do panorama. Em conseqüência, a literatura foi obrigada a imprimir na expressão herdada certas inflexões que a tornaram capaz de exprimir também a nova realidade natural e humana. Deste modo, deu-se no seio da cultura européia uma espécie de experimentação, cujo resultado foram as literaturas nacionais da América Latina no que têm de prolongamento e novidade, cópia e invenção, automatismo e espontaneidade. E elas foram se tornando variantes de tal modo diferenciadas que, já nos últimos cem anos, chegaram nalguns casos a influir nelas.207

É evidente que o processo de formação da literatura brasileira começa ainda

na época colonial208, como acontece também em Angola, embora mais recente.

Ademais, os primeiros autores angolanos têm, no século XX, um intenso diálogo

com o modernismo brasileiro. São constantes as referências a Jorge Amado,

206 BHABHA, 1998. 207 CANDIDO, Antonio. “Literatura de dois gumes”. In: A educação pela noite, p. 198-199 208 Não interessa aqui interferir na polêmica de Haroldo de Campos com Antonio Candido sobre o possível “seqüestro do Barroco” na obra deste último.

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Graciliano Ramos, e outros. Tânia Macêdo chama a atenção, também, para a

colaboração de escritores angolanos na revista “Sul”.209

Vale transcrever, como ilustração, trecho de uma das entrevistas de Luandino

Vieira a Michel Laban.

Um amigo mandou-me de Lisboa, em 1969, Grande Sertão: Veredas e nós lemos na cadeia o Grande Sertão: Veredas porque o director começou a ler e não percebeu nada, e achou que ninguém percebia e disse:”Bom, isso pode entrar”. Recordo-me que isso foi uma experiência muito interessante, que alguns angolanos com muito pouca formação literária leram, não só gostaram como compreenderam a quase totalidade da própria linguagem, ao ponto de alguns repetirem frases que tinham decorado, como “Soletrei ano e meio meante cartilha e palmatória” quando o narrador descreve a sua educação em criança. Havia alguns camaradas lá que diziam frases inteiras do livro, e depois, mais tarde, fizemos algumas pequenas discussões sobre partes de Grande Sertão: Veredas, e a compreensão era grande, até o nível lingüístico. E isto angolanos com o segundo ciclo dos liceus. Depois, portanto li Grande Sertão: Veredas, e mais se confirmou aquela idéia, aquele ensinamento que me tinha dado quando li Sagarana: a liberdade para a construção do próprio instrumento lingüístico que a realidade esteja a exigir, que seja necessário. E sobretudo a idéia de que este instrumento lingüístico não pode ser o registo naturalista de qualquer coisa que exista, mas que tem que ser no plano da criação.210

Luandino explicita com clareza sua relação com Guimarães Rosa, uma

relação em que chega a se estabelecer um aprendizado do fazer literário do ponto

de vista da elaboração da linguagem.

Quer dizer: os autores brasileiros podem assim funcionar como uma espécie

de mediação entre a tradição européia, já modificada no Brasil, e os escritores que

inauguram a literatura contemporânea de Angola. Desta forma, os escritores

angolanos podem usufruir de duas perspectivas não excludentes de leitura do

português: o original lusitano e a sua vertente brasileira.

209 MACÊDO, 2002. 210 Luandino. José Luandino Vieira e a sua obra ( Estudos, testemunhos, entrevistas), p. 35

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Obviamente, não se resolve assim tão facilmente a questão de uma língua

literária em Angola, posto que, neste país, há uma enorme permanência das línguas

nacionais, principalmente o umbundo e quimbundo, línguas maternas para um

enorme contingente de pessoas. Esta permanência impregna os textos, não apenas

no nível do vocabulário, mas também no nível da sintaxe e da semântica. Cria-se,

desta maneira, um registro lingüístico muito forte e muito original. No sentido em que

a referência de Guimarães Rosa à maior vitalidade do português do Brasil em

relação ao de Portugal, cabe aqui também: trata-se daquela “língua impura” em que

o narrador do Macunaíma celebra os feitos do herói.

E, dada a empatia, perceptível tanto em Jorge Amado quanto em Boaventura

Cardoso, com as camadas menos favorecidas da população, a linguagem – que é

evidentemente um constructo literário – se faz tão viva quanto o movimentado

cotidiano destas camadas, nos dois escritores. Observe-se que a diversidade de

vozes lingüísticas, bem como de vozes sociais e religiosas, aparece nos dois

escritores.

Cabe aqui fazer menção a um aspecto que parece da maior importância.

Paul Gilroy explica assim o significado e a abrangência de seu livro O Atlântico

negro:

Este livro aborda uma pequena área dentro da conseqüência maior desta conjunção histórica: as formas culturais estereofônicas, bilíngües ou bifocais originadas pelos – mas não mais propriedade exclusiva dos – negros dispersos nas estruturas de sentimento, produção, comunicação e memória, a que tenho chamado heuristicamente atlântico negro.211

Gilroy considera que, ao longo do Atlântico, na América e na África, a partir da

diáspora da escravidão foi tomando forma uma cultura que adquire feições cada vez

mais próprias e que interfere, de modo poderoso, na própria cultura de procedência

européia. Esta operacionalização conceitual é extremamente rica para abordar

inúmeras manifestações nos dois lados do Atlântico e, no nosso caso específico,

permite aflorar aspectos similares na obra de Jorge Amado e na obra de Boaventura

Cardoso, apesar da época diferente em que uma e outra foram produzidas. Talvez

o aspecto que mais sobressaia, à primeira vista, tanto em Jubiabá quanto em

211 GILROY, 2001, p. 35.

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Tenda dos milagres, de Jorge Amado, e nos três romances de Boaventura

Cardoso, sejam as “formas culturais originadas pelos negros”. Fruto de grupos

étnicos e culturais diferentes (ioruba, em Amado, e banto, em Cardoso), a base

sócio-religiosa a partir das quais os personagens são construídos tem elementos

comuns. Como vimos há uma permeabilidade permanente entre o mundo visível e o

invisível. Ademais há um sincretismo imenso entre a doutrina cató lica e crenças

tradicionais. Santos católicos e orixás, no caso de Amado, padres, pastores e

kimbandas, ancestrais e santos católicos, na vertente de Boaventura Cardoso, se

misturam no mesmo espaço. Na afirmação dos pastores de Mãe, materno mar,

trata-se de ser africano, no Atlântico negro, aqui e lá. De uma perspectiva

estritamente eurocêntrica esta mescla é, de um lado, profundamente ilógica, e, de

outro, pode caber nas categorias do “maravilhoso” e do “mágico”. Do ponto de vista

de quem se situa dentro do espaço do Atlântico negro é apenas um aspecto do

cotidiano.

Vale lembra aqui algo que tem o seu quê de exemplar. No romance de

Umberto Eco, O pêndulo de Foulcaut(2001), há um personagem, um marxista

italiano, que conhece na Europa uma baiana, também marxista, com quem mantém

um romance. Vem com ela ao Brasil e, na Bahia, durante uma visita a um terreiro de

Candomblé, ela incorpora um santo. O fato deixa o europeu absolutamente atônito,

sem entender nada. O que se constata é que, para o europeu, a adesão à grande

narrativa marxista exclui todas as outras possibilidades. Do ponto de vista do

Atlântico negro, essa adesão não exclui várias outras possibilidades.

Assim também, as autoridades policiais, em Tenda dos milagres, se deixam

envolver pelos rituais, bem como os membros do Partido, em Mãe, materno mar.

Quer dizer: a religiosidade, tal como a delimitamos no início deste trabalho,

impregna cada momento do cotidiano, cada movimento e cada fala.

Parece importante mencionar ainda um outro aspecto, muitas vezes

profundamente associado ao primeiro: o gosto da festa, da dança e da música. O

ritmo que marca essas celebrações, essencialmente populares, transparece na

melodia frasal que os dois escritores modulam. Há um lirismo melódico que molda

várias passagens, como, por exemplo, as visões que Antônio Balduíno tem da

cidade e do mar, em Jubiabá, e as impressões visuais e oníricas de natureza,

olhada e mentada por Manecas, em Mãe, materno mar.

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Isso nos leva a outras considerações: a opção pela oralidade na construção

do discurso narrativo de ambos os romancistas. Eles assumem a feição de griots, de

cantadores de rua, marcando a narração com uma intromissão subjetiva que

sublinha e comenta muitas passagens. Em certa medida eles são o que Patrick

Chamoiseau, o escritor da Martinica, chama de “marqueur de parole”212, o que

resgata a força da voz popular ao transformá-la numa narrativa que dá ou resgata

sentidos para uma visão de mundo profundamente arraigada numa consciência e

numa tradição da rua, da periferia, dos musseques e favelas, das sanzalas e da

terra.

Esta opção é mais do que uma opção por um tipo de linguagem narrativa: é a

opção pelos usuários – mesmo que ficcionais - desta linguagem. È claro que esta

linguagem e estes usuários são construções. Não há processo mimético que

consiga – e os diversos matizes de naturalismo o comprovam -- reproduzir o mundo

e suas linguagens. Vale a pena lembrar aqui a afirmação de José Américo de

Almeida no Prefácio a A bagaceira(1928): “Ver bem não é ver tudo; é ver o que os

outros não vêem.” O “olho armado” de Murilo Mendes é simultaneamente seletivo e

criativo – no sentido da criação demiúrgica.

Nesta direção, o processo seletivo e criativo através do qual a linguagem cria,

se não a realidade, pelo menos uma realidade, é um processo ideológico, no sentido

em que Bakhtin ( Voloshinov ) coloca213, como vimos no início deste trabalho.

Aqui, voltamos à citação inicial de Orlandi: esse processo ideológico é um

processo de criação de sentido(s) através dos quais se busca uma definição

identitária. Se amarramos essa posição à posição expressa por Bernd, na citação

que fizemos no início do trabalho 214, constatamos que ambos os escritores buscam

fazer “emergir os mitos fundadores de uma comunidade e de recuperar sua memória

coletiva”.

É evidente que, se há semelhanças entre os dois escritores, há também

profundas diferenças. Em Boaventura Cardoso, os mitos emergem de uma tradição

muito viva, dado o passado recente do país em que ( sobre que ) ele escreve. Ao

mesmo tempo há uma constante notação sobre a pluralidade cultural de Angola,

sobre a imensa polifonia de vozes e de valores que permeiam a sociedade

212 CHAMOISEAU, Patrick. Texaco. Paris: Gallimard, 1992 213 Bakhtin, 1979. 214 Bernd, 1992, p.17 e 18

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angolana. A identidade se define sobretudo pela diversidade, pela heterogeneidade.

Dessa diferença, dessa Babel de sons e de sentidos, brota talvez a afirmação

central de uma identidade angolana.

Jorge Amado caminha em uma direção diferente, por causa mesmo das

peculiaridades da sociedade brasileira, que, no momento em que escreve seus

livros, ainda guarda muito fortemente a cicatriz/memória do recente escravismo215. O

estigma e o preconceito ainda marcam de forma muito dolorosa os descendentes

dos filhos de África traficados para cá, como “alimárias do universo”, para usar a

expressão indignada de Castro Alves, no poema “Vozes d’África”. A emergência de

mitos fundadores e a recuperação da memória coletiva de uma comunidade

predominantemente de negros ou de mestiços adquire, assim, um sentido

especial.216A identidade brasileira passaria, necessariamente, pela negritude e/ou

pela mestiçagem.217

Dos romances de Amado selecionados, apenas Seara vermelha destoa

dessa afirmação, por trabalhar com outras variáveis da sociedade brasileira: o

latifúndio e sua conseqüências ( migração forçada, messianismo, cangaço ).218 Mas,

de qualquer forma, existe, nesse romance, a mesma empatia com uma camada

excluída da população e aqui, uma proposta de inclusão, partidariamente ideológica,

que passaria pela revolução socialista. Entre os livros de Amado selecionados é o

romance mais próximo dos ditames do realismo socialista. É um livro importante,

também, na linha de leitura proposta, pois é capaz de fazer ouvir outras vozes fora

dos limites do espaço urbano.

Podemos observar que existe, nos dois escritores, uma idéia de povo e de

nação, que importa delinear e construir. Tarefa muito difícil nos dois casos, talvez

mais difícil para Boaventura Cardoso que para Jorge Amado. Se podemos

considerá-los autores de textos de fundação, temos que pensa-los em suas

especificidades e diferenças. Cardoso escreve em uma sociedade que emerge de

uma situação colonial através de muita luta e muito sofrimento. Trata -se,

seguramente, de fundar um país, na concretude do cotidiano. Os romances de

215 Esta cicatriz/memória ainda existe. 216 Seria interessante, e não sei se alguém já o fez, uma leitura paralela de Jorge Amado e Gilberto Freyre. 217 O termo “negritude” é empregado aqui sem qualquer precisão conceitual. 218 Poderíamos fazer uma ilação sobre os personagens desse romance dizendo, como na canção “Haiti”, de Caetano Veloso, que são “quase todos negros de tão pobres”.

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Cardoso mos passam muitas das dificuldades enfrentadas, apontando para uma

perspectiva de fundar a unidade na diversidade. Nesse sentido são, muito

consistentemente, textos que poderíamos chamar de fundação. Jorge Amado,bem

diferentemente, escreve num país já “fundado” praticamente desde o século

XVIII.Trata-se, para Amado, muito mais de entender a convivência de contrários, no

Brasil, e de resgatar camadas da população e formas de pensamento, expressão e

comportamento tidos como “vulgares” ou pouco dignos de consideração. São muito

mais romances de resgate e valorização que propriamente de fundação. De

qualquer modo, em ambos a estruturação passa por uma religiosidade ancorada,

simultaneamente, na tradição e na novidade, e na obra deles convivem, de forma

nem sempre pacífica, mundos visíveis e invisíveis no cotidiano dos personagens.

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CONCLUSÃO

Apropriando-me, de forma parafrástica, de um título de Haroldo de Campos,

posso dizer que esta é uma conclusão “no horizonte do precário”. E talvez todas as

conclusões o sejam. Walter Benjamin já afirmou que “a obra é a máscara mortuária

da concepção”219. E a conclusão o será ainda mais.

Acredito que este trabalho tenha cumprido pelo menos uma função e não das

menos importantes: fazer com que pudesse repensar Jorge Amado projetando-o

para além do Atlântico, num diálogo com Angola, com Boaventura Cardoso, e fazer,

além disso, que pudesse entender um pouco da cultura de Língua Portuguesa em

África, pelo menos em uma parte dela. Nesse sentido, estou muito longe de dar-me

por satisfeito. Há muito mais e espero chegar a dar conta disso. Em todo caso, já me

dei conta disso.

Talvez a maior riqueza dessa leitura cruzada seja a constatação de que

temos mais em comum com a África do que pensamos, mesmo levando em conta

que África e Brasil são construções que elaboramos discursivamente. Patricia de

Santana Pinho tem um livro muito provocativo em que examina essas questões.220 .

Embora centrado numa leitura de manifestações culturais especificamente baianas,

permite algumas relações e conclusões para além da mera “baianidade”.

A leitura que se procurou fazer está bastante ancorada na teoria dos

chamados estudos culturais. Não por acaso, Hall e Williams embasam algumas

posições do texto.

Não poderia haver, neste trabalho, qualquer pretensão de esgotar as

possibilidades de leitura comparativa dos dois autores. Acredito, aliás, que trabalho

algum pode pretender tal coisa, em tão pouco espaço de tempo. Isso é tarefa para

uma vida.

219 BENJAMIN, 1995, p.31 220 PINHO, 2004

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As três linhas de força escolhidas para trabalhar os dois autores (linguagem,

ideologia, religiosidade) podem, como tentamos mostrar, convergir para uma só: a

linguagem.

De alguma forma, o texto procurou deixar claro que os dois autores

constroem uma literatura fortemente inserida nas grandes questões de cada país.

São abordagens que, se não dão respostas, quase sempre, conseguem fazer, de

forma muito incisiva, as perguntas pertinentes.

Assim, só resta esperar que este trabalho possa contribuir para as discussões

que ora se travam sobre as culturas que emergiram nas sociedades egressas do

colonialismo.

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