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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO DIVINDADES MLK E CULTO A MOLEK NOS QUADROS DA CRISE RELIGIOSA NO FINAL DA MONARQUIA DE JUDÁ (2 Reis 16,3; 17,17.31; 21,6; 23,10; KTU 1.100; 1.118; 1.161) por SAMUEL RODRIGUES BARBOSA Prof. Dr. Milton Schwantes Dissertação de Mestrado apresentado em cumprimento parcial às exigências do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião para a obtenção do grau de Mestre. São Bernardo do Campo 2004

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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

DIVINDADES MLK E CULTO A MOLEK

NOS QUADROS DA CRISE RELIGIOSA

NO FINAL DA MONARQUIA DE JUDÁ

(2 Reis 16,3; 17,17.31; 21,6; 23,10; KTU 1.100; 1.118; 1.161)

por

SAMUEL RODRIGUES BARBOSA

Prof. Dr. Milton Schwantes

Dissertação de Mestrado apresentado em

cumprimento parcial às exigências do Programa de

Pós-Graduação em Ciências da Religião para a

obtenção do grau de Mestre.

São Bernardo do Campo

2004

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Banca Examinadora

_____________________________________

_____________________________________

_____________________________________

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BARBOSA, Samuel Rodrigues. Divindades MLK e Culto a Molek nos Quadros da Crise Religiosa no Final da

Monarquia de Judá (2 Reis 16,3; 17,17.31; 21,6; 23,10; KTU 1.100; 1.118; 1.161). Dissertação de Mestrado.

Universidade Metodista (Ciências da Religião). São Bernardo do Campo, 2004.

Resumo

A dissertação é dirigida a um especial e não resolvido problema na descrição do

desenvolvimento religioso de Israel. Em textos do Antigo Testamento acerca do

sacrifício de humanos, há uma unidades literárias autônomas relacionadas ao culto a

µΟλεκ. Porém, alguns pesquisadores sustentam que o culto a µΟλεκ não tem esta

característica. A dissertação aspira a investigar este argumento, concentrando-se em

fontes históricas (2Reis 16,3; 17,17.31; 21,6; 23,10). Discutindo fontes ugaríticas – duas

listas de divindades e um texto funerário – nós perguntares acerca das características

das divindades µΛλΚ nas culturas cananéias. Em síntese, µΟλεκ é uma divindade

ctônica mas não é destinatária de sacrifícios humanos.

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BARBOSA, Samuel Rodrigues. Divindades MLK e Culto a Molek nos Quadros da Crise Religiosa no Final da

Monarquia de Judá (2 Reis 16,3; 17,17.31; 21,6; 23,10; KTU 1.100; 1.118; 1.161). Dissertação de Mestrado.

Universidade Metodista (Ciências da Religião). São Bernardo do Campo, 2004.

Abstract

The dissertation is addressed to a special and unsolved problem in the description of

Israel´s religious development. In Old Testament texts about the human sacrifices,

there are autonomous literary units regarding the µΟλεκ cult. However, some scholars

claim that the µΟλεκ cult has not such character. The dissertation aspires to scrutinize

this argument, focusing on historical sources (2Kings 16,3; 17,17.31; 21,6; 23,10).

Discussing ugaritic sources – two deities list and one funerary text –, we will inquiry

about the characteristics of µλΚ deities at cannanite cultures. Briefly, the µΟλεκ is a

ctonic deity but it is not a recipient of human sacrifices.

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Para Milene

— Entendeu?

— Entendeu.

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Os deuses são deuses

Porque não se pensam.

Ricardo Reis

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Agradecimentos

Esta dissertação é o ponto de partida dos meus estudos de história da religião, é

o rito de passagem para o campo de saber ao qual ambiciono dedicar as minhas

energias. Para quem não cursou Teologia, o Programa de Pós-Graduação em Ciências

da Religião da Universidade Metodista de São Paulo não poderia ter sido um ambiente

mais acolhedor. Meus agradecimentos vão para professores, colegas alunos e

funcionários que são esta instituição.

Em primeiro lugar, ao Professor Doutor Milton Schwantes, que recebeu e

orientou um aluno neófito – como, aliás, são os discípulos durante o tempo em que

vivem com o mestre. Agradecimentos a quem foi meu primeiro professor de exegese –

cujo comentário inicial de Isaías é para mim um modelo a ser imitado. A quem foi meu

primeiro professor de ugarítico – cujos exercícios entrego, um pouco atrasado, no

último capítulo.

Aos professores Archibald Woodruff, Paulo Nogueira, Tércio Machado Siqueira

e Antônio Carlos Magalhães, a cujos cursos assisti com um misto de entusiasmo e

deslumbramento.

Aos todos colegas que me receberam em seu convívio, e que me ensinaram

muito mais do que suspeitam.

Aos professores James Reaves e Geoval Jacinto da Silva que zelaram para o

cumprimento de minhas obrigações junto à Comissão de Bolsas.

Ao Prof. Lauri Emílio Wirt e à Sra. Léia Alves de Souza que me guiaram no

emaranhado da burocracia e dos prazos.

À Capes, que me contemplou com uma bolsa de pesquisa flexibilizada.

Por fim, e, em especial, a Aldo e Carminha; Priscila e Benjamim, cujo convívio,

tão rico em conseqüências, me fizeram um homo religiosus.

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SUMÁRIO

ABREVIAÇÕES .................................................................................................... 10

INTRODUÇÃO...................................................................................................... 12

1 PROLEGÔMENOS ..................................................................................... 13

1.1 PROBLEMATIZAÇÃO.................................................................................... 13

1.2 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA ............................................................................ 14

1.2.1 Culto a Molek e ritos sacrificiais ...................................................... 14

1.3 HIPÓTESE DA PESQUISA .............................................................................. 17

1.4 DELIMITAÇÃO DA PESQUISA ....................................................................... 19

1.5 LOCALIZAÇÃO DISCIPLINAR........................................................................ 19

1.6 OBSERVAÇÕES METODOLÓGICAS............................................................... 20

2 ESTADO DAS FONTES ............................................................................. 21

2.1 FONTES ARQUEOLÓGICAS........................................................................... 21

2.2 FONTES TEXTUAIS ...................................................................................... 23

2.2.1 Philo de Byblos ................................................................................. 23

2.2.2 Ugarit ................................................................................................ 25

2.2.3 Bíblia Hebraica Stuttgartensia ......................................................... 25

2.2.3.1 Corpus Textual................................................................................ 25

2.2.3.1.1 Sintagmas................................................................................. 27

2.2.3.1.2 Comentários ............................................................................. 29

3 CULTO A MOLEK E SACRIFÍCIO DE CRIANÇAS: VERBO

RITUAL, DIVINDADE RECIPIENTE, LOCALIZAÇÃO E OBJETO

PESSOAL ............................................................................................................... 30

3.1 RITUAL ϖΒρ Β∋Η ..................................................................................... 30

3.1.1 O rito em Israel................................................................................. 30

3.1.2 O rito em Judá: Acaz e Manassés ..................................................... 31

3.1.2.1 Tradução ......................................................................................... 31

a) 2Rs 16,1-4 .......................................................................................... 31

b) 2Rs 21,1-7 .......................................................................................... 32

3.1.2.2 Comentários .................................................................................... 35

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Excurso: ??? ................................................................................................. 38

3.1.3 Reforma de Josias ............................................................................. 40

a) Delimitação ............................................................................................. 40

b) Tradução 2Rs 23,4-14.24a..................................................................... 40

c) Notas sobre o Vocabulário...................................................................... 45

d) Comentários ............................................................................................ 50

3.2 RITUAL ΩρΠ Β∋Η..................................................................................... 52

3.3 BALANÇO DO ESTUDO DO RITUAL............................................................... 54

3.4 EM BUSCA DO NOME: µΟλεκ..................................................................... 55

3.5 TOPHET ....................................................................................................... 57

3.6 OBJETO PESSOAL DO RITO ........................................................................... 60

EXCURSO: SACRIFÍCIO DE CRIANÇAS EM SITUAÇÃO DE CRISE: O CASO MOABITA .. 61

4 CULTO A MOLEK E DIVINDADES DE UGARIT: UMA

PERSPECTIVA COMPARATISTA ................................................................... 64

4.1 DIVINDADES CANANÉIAS............................................................................ 64

4.1.1 Introdução......................................................................................... 64

4.1.2 Listas divinas .................................................................................... 66

4.1.2.1 Tradução KTU 1.118 ...................................................................... 66

4.1.2.2 Tradução KTU 1.100 ...................................................................... 68

4.1.2.3 Comentários .................................................................................... 75

4.2 RITOS FUNERÁRIOS E ANTEPASSADOS REAIS: KTU 1.161 ........................... 82

EXCURSO: A JERUSALÉM JEBUSITA NO FINAL DA MONARQUIA ............................ 93

CONCLUSÃO ........................................................................................................ 99

BIBLIOGRAFIA.................................................................................................. 104

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Abreviações

\t tradução

\v vocalização

1cs 1ª pessoa comum singular

1QGenAp Caverna 1Qumran, Gênesis Apócrifo

2mpl 2ª pessoa masculino plural

3cpl 3ª pessoa comum plural

3mpl 3ª pessoa masculino plural

3ms 3ª pessoa masculino singular

AD Anno Domini

BCE antes da Era Comum

BHS Bíblia Hebraica Stuttgartensia, conforme K. Ellinger, e W.

Rudolph, eds. Biblia Hebraica Stuttgartensia. 5a ed. Stuttgart:

Deutsche Bibelgesellschaft, 1997.

ca. circa

cf. conferir

D Intensivo Ativo, Piel

DN Nome Divino

Dp Intensivo Passivo, Pual

EA Cartas de Amarna, conforme William L. Moran, ed. The Amarna

Letters. Baltimore; London: The John Hopkins University Press,

1992.

ed. editor, edição

eds. editores

G Simples Ativo, Qal

GN Nome Geográfico

Gp Simples Passivo, Qal passivo

H Causativo Ativo, Hiphil

Heb. hebraico

Hp Causativo Passivo, Hophal

HtD Intensivo Reflexivo, Hithpael

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inf.contr. infinitivo construto

KTU Textos ugaríticos alfabéticos, conforme Manfred Dietrich,

Oswald Loretz, e Joaquín Sanmartín, eds. The Cuneiform Alphabetic

Texts from Ugarit, Ras Ibn Hani and Other Places. 2a enlarged ed.

Münster: Ugarit-Verlag, 1995.

LXX Septuaginta, conforme Alfred Rahlfs. Septuaginta: id est Vetus

Testamentum graece iuxta LXX interpretes. Duo volumina in uno.

Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1979.

N Simples Reflexivo, Niphal

p. página

part. particípio

PE Preparatio Evangelica, conforme Harold W. Attridge, e Robert A.

Oden Jr., eds. Philo of Byblos, the Phoenician History: Introduction,

Critical Text, Translation, Notes, (The Catholic Biblical Quartely

Monograph Series 9). Washington: The Catholic Biblical

Association of America, 1981.

PN Nome Pessoal

pp. páginas

RS Ras-Shamra, número de excavação

v.g. verbi gratia

vol. volume

vols. volumes

*** Os nomes dos livros da Bíblia e a modo de citação seguiram a Bíblia de Jerusalém,

nova edição, revista e ampliada, São Paulo, Paulus, 2002.

*** Foi adotada a nomenclatura corrente da filologia semítica para os trocos verbais,

conforme está indicado na lista acima. A expressão “conjugação preformativa” indica o

imperfeito e “conjugação aformativa”, o perfeito.

*** As datas se referem ao período antes da Era Comum, salvo menção em contrário.

*** As citações, no corpo do texto, foram traduzidas livremente para o português.

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Introdução

Qualquer estudo ambicioso sobre o sacrifício de humanos no corredor siro-

palestinense esbarraria em algumas sérias dificuldades. As fontes textuais da BHS, para

falar apenas neste conjunto literário, suscitam várias hipóteses conflitantes, distribuídas

em diversos gêneros.

A pesquisa vetero-testamentária, porém, reconhece um conjunto autônomo de

ocorrências textuais relacionadas expressamente ou implicitamente ao culto a µΟλεκ.

Trata-se de rituais com fogo envolvendo crianças (meninos e meninas, sem relação

aparente com a primogenitura). Estes ritos foram condenados pelo profetismo

(Jeremias e Ezequiel) como exemplos de sacrifícios de humanos – conhecidos por

arqueólogos na cultura púnica e relatados por fontes clássicas (Philo de Byblos,

preservado por Eusébio). O lugar cultual comumente apontado era Tophet, ou vale do

filho de Hinnom, nos subúrbios ao sul de Jerusalém.

A dissertação ambiciona investigar este culto, a partir das ocorrências no livro

de 2 Reis, segundo um método filológico. O primeiro capítulo formula uma

problematização e hipótese para guiar a pesquisa, além de revisar as principais teses da

literatura secundária. O segundo capítulo avalia as fontes disponíveis: arqueológicas,

textual clássica e BHS, e encerra identificando um conjunto de sintagmas as serem

estudados. O terceiro capítulo investiga cada sintagma para as fontes históricas de

2Reis. O último capítulo leva adiante o inquérito a partir de uma pesquisa comparativa,

com o estudo de três textos ugaríticos.

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1 Prolegômenos

1.1 Problematização

Textos da historiografia deuteronomista fazem referência a práticas rituais com

o uso do fogo que foram identificadas com sacrifícios de humanos por uma parte

majoritária da pesquisa vetero-testamentária. Uma característica saliente nestes textos é

a diferenciação na terminologia. Vejamos, em uma primeira aproximação, duas

passagens:

2Rs 17,311 vaeêB' ‘~h,ynEB.-ta, ~ypiÛr>fo ~ywI©r>p;s.h;w>

qT'_r>T;-ta,w> zx;Þb.nI Wfï[' ~yWI±[;h'w> `Î~yIw")r>p;s.Ð ¿~yrIp;s.À Îyheîla/Ð

¿H;la/À%l,M,Þn:[]w:) %l,M,îr;d>a;l.

2 Rs 23,102 . yTiªl.bil. Î~NO=hi-!b, ygEåB.Ð ¿~NO=hi-ynEb.

ygEåB.À rv<ßa] tp,Toêh;-ta, aMeäjiw> `%l,Mo)l; vaeÞB' AT±Bi-ta,w AnõB.-ta, vyaiø

rybi’[]h;l O primeiro texto é um relato sobre a queda do Reino do Norte e o segundo,

sobre a reforma de Josias. A primeira diferenciação que chama a atenção é entre o uso

de ??' e o de ???, ambos verbos rituais com o fogo ('??). O primeiro verbo liga-

se às divindades ?????? e ?????, enquanto o segundo se refere a ???; mas a

despeito de nomes diferentes, é comum a raiz µλΚ.

Estamos autorizados a perguntar: a diferença de verbos expressa alguma

diferença de ritos ou deve ser explicada pela diferenciação geográfica, enquanto o

1 “E os Aveus fizeram Nibhaz e a Tartaq e os Sefarvim queimaram seus filhos no fogo para

Adrammelek e Anammelek, deuses dos Sefarvim”. 2 “E profanou a Tophet que [está] no vale do filho de Hinnom para não fazer-passar alguém o

filho-seu e a filha-sua no fogo para Molek”.

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primeiro texto se refere a Israel, o segundo, a Judá? A ligação dos verbos aos nomes

divinos é contingente, isto é, seria possível encontrar o nome de ??? ligado ao rito

com ??'? O santuário ?????'?"?"????? é exclusivo dos ritos a ????

A raiz comum µΛλΚ permite concluir algum tipo de identidade entre as três

divindades apontadas? Por fim, estamos diante de relatos “reais” de sacrifícios de

humanos?

1.2 Revisão bibliográfica

1.2.1 Culto a Molek e ritos sacrificiais

Para a interpretação tradicional e majoritária, µΟλεκ é o nome de uma

divindade a quem eram queimadas crianças como sacrifícios. Este culto, praticado por

cananeus, fora incorporado pelos israelitas que o realizavam em ΤΟπετ, no vale do

filho de Hinnom em Jerusalém.3

Em 1935, O. Eissfeldt ofereceu outra interpretação. O termo µλΚ, existente em

fenício, não é um nome divino, mas um termo técnico para sacrifício, significando o

sacrifício ou sua vítima, mas não o destinatário (divindade recipiente) do sacrifício.

Eissfeldt baseou-se em estelas de colônias púnicas no Norte da África (como Cartago)

e em ilhas mediterrâneas do noroeste. Nelas há inscrições com os nomes das

divindades destinatária do sacrifício, como Baal-Hammon (o latino Saturno) ou Tanit,

ao mesmo tempo aparece µλΚ + em várias posições sintáticas.4

A terceira tese foi proposta por Weinfeld.5 O deus dos ritos seria Baal-Hadad,

chamado de rei. Mas o rito não envolve sacrifício realmente, nem queimação de

3 Philip C. Schmitz, "Topheth", in The Anchor Bible Dictionary, ed. David Noel Freedman, New

York: Doubleday, 1992. Comos representantes tradicionais vide Roland De Vaux, Instituições de

Israel no Antigo Testamento, São Paulo: Editora Teológica, 2003, pp.482ss, René Dussaud, Les

origines cananeénnes du sacrifice israélite, Paris: Éditions Ernest Leroux, 1921, pp.163ss. 4 Schmitz, "Topheth", p.896. 5 Infelizmente não tivemos acesso ao importante artigo de Moshe Weinfeld, "The Moloch

Cult in Israel and its background", in Proccedings of the Fifth World Congress of Jewish Studies,

Jerusalem1969, cuja tese conhecemos a partir das várias recensões; Rainer Albertz, A History of

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crianças, mas a dedicação de crianças à divindade envolvendo fogo. O argumento de

Weinfeld é que os verbos usuais nas fontes legais e históricas não tem significado

sacrificial, por exemplo, νΤν “to give”, ηϖΒψρ “to cause to pass over”. Os verbos

com sentido sacrificial apenas apareceriam no escritos proféticos, ΩρΠ “to burn”,

ζΒΧΧξ “to sacrifice”, ΗξΤ “to slaughter”.6

Estas são as três teorias centrais, às quais se filiam os vários pesquisadores

interessados na matéria.

Albertz, assume a tese de Weinfeld,

“então o ‘culto a molek’ não involve sacrifício de crianças, ainda que a

polêmica profética e deuteronomista em parte podem indicar isto. Sacrifício

de crianças não são atestados, de qualquer modo, na Mesopotâmia, nem com

alguma certeza na Síria e Palestina. A única exceção é fornecida por alguns

assentamentos púnicos no norte da África, Sardenha e Sicília, mas aqui nós

temos um desenvolvimento especial que coloca questões embaraçosas. A frase

não polêmica ‘dar de sua semente para Molek’ (Lv 20,2,3,4; cf. 18,21) sugere a

entrega de crianças para uma divindade (cf. Ex 22,28b), e a inusual expressão

‘fazer filhos e filhas passar no fogo’ é mais apropriada para denotar um rito de

purificação no qual crianças eram dedicadas para a divindade. Assim, não há

sacrifício de crianças, mas uma dedicação religiosa de crianças”.7

Para Albertz, seguindo Weinfeld, a divindade por traz do nome µΟλεκ tem

natureza astral e se insere no quadro das divindades astrais que ingressaram em

Jerusalém sobre influência do império neo-assírio.

Israelite Religion in the Old Testament Period. From the Beginnings to the End of the Monarchy, vol. 1,

(The Old Testament Library), Louisville, Kentucky: Westminster/John Knox Press, 1994,

p.192. 6 Schmitz, "Topheth", p.896 7 Albertz, A History of Israelite Religion in the Old Testament Period. From the Beginnings to the End of

the Monarchy, p.193 Reservarmos para a dissertação a apresentação completa da argumentação

de Albertz.

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Cogan desenvolveu sua pesquisa independentemente de Weinfeld e chegou ao

mesmo tempo em resultados em parte semelhantes. A tese de Cogan foi aludida acima

na apresentação da hipótese de trabalho: os rituais a µΟλεκ (que utilizam os verbos

rituais ?"? e ???) não envolvem sacrifícios de crianças, já os rituais com fogo,

expresso nas fontes com o verbo ??', são de origem cananéia e neles se praticavam

sacrifícios reais de crianças (de ambos os sexos). Esta diferenciação existe em fontes

legais (Levítico) e históricas (2Reis).8 Cogan observa, porém, que os rituais sacrificiais

também ocorriam em ΤΟπετ e a divindade recipiente possuía no nome a raiz µλΚ.9

Day não aceita a tese de Weinfeld. Divergindo do ponto central, Day aponta a

sinonímia ???=???, atestado em Ex 13,12.13. Day não coloca em dúvida o

testemunho das fontes proféticas (Jeremias e Ezequiel). Sustenta ainda que

“nós temos evidências independentes que sacrifício de crianças eram

praticados entre os cananeus (mundo cartaginês e fenício) a partir de muitas

fontes clássicas, inscrições púnicas e evidências arqueológicas, tal como em

relatos egípcios do ritual ocorrendo na Síria-Palestina e de uma inscrição

fenícia da Turquia recentemente descoberta”.10

A tese de Eissfeldt foi sustentada por Koehler e Baumgartner: ????? é um

termo técnico para uma espécie de sacrifício, tal como ???????, ??????.11

8 Para Weinfeld e Albertz a “confusão” entre os ritos já ocorre nas fontes históricas. 9 Morton Cogan, Imperialism and Religion: Assyria, Judah and Israel in the Eighth and Seventh

Centuries BCE, (Monograph Series 19), Montana: Society of Biblical Literature and Scholars

Press, 1974, pp.77ss. 10 John Day, Yahweh and the Gods and Goddesses of Canaan, Sheffield: Sheffield Academic Press,

2001, p.212. Igualmente, John Gray, "Molech, Moloch", in The Interpreter´s Dictionary of the Bible,

ed. George Arthur. Buttrick, New York; Nashville: Abingdon Press, 1962. 11 Ludwig Koehler e Walter Baumgartner, The Hebrew and Aramaic Lexicon of the Old Testament,

1a ed., Leiden, Boston, Köln: Brill, 2001, p.592. Outro que concorda com esta visão é H.-P.

Müller, "Malik", in Dictionary of Deities and Demons in the Bible, ed. Karel van der Toorn, Bob

Becking, e Pieter W. van der Horst, Leiden; Boston; Köln: Brill, 1999.

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1.3 Hipótese da Pesquisa

O nome de ?????? aparece sempre com o verbo ritual ??? ou ?"?. É

marcante que estes verbos não apareçam ligados a outras divindades. Ocorre que há o ritual com fogo dirigido a outras divindades que utilizam

outros verbos rituais. Em Dt 12,31b (????"????"?????????????"?????????????????????????????'??)12, ritos com fogos e crianças a deuses cananeus foram

descritos com o verbo ??'. Vale lembrar a passagem de 2Rs 17,31, em que este verbo

aparece com outras divindades. Por fim, em Jr 19,5a (??????"?????"??????????????"??????????????????"??????'?? )13, para o verbo ritual ??' ligado ao

nome de ???. Esta última citação possui um interesse suplementar, porque somente em textos

do profetismo, são utilizados termos sacrificiais inequívocos: ??? (Jr 19,5), ??? (Ez

16,20).

Com base nestas ocorrências, o que pode ser afirmado? Talvez seja possível

afiançar que o rito a µΟλεκ, cujo rito era descrito necessariamente com ???, não

implicava o sacrifício de humanos (crianças). Esta tese foi sustentada por Weinfeld,

Albertz e Cogan.

Se concedemos que haja esta possibilidade de caracterizar o rito a µΟλεκ, não

aceitamos, todavia, quaisquer intenções apologéticas implícitas, uma vez que não se

pode negar que tenha existido outros rituais sacrificiais com crianças, como

testemunham os ritos com ??'. A hipótese, pois, a ser aprofundada é a da

possível existência de rituais distintos ou de sua identidade.

Outra hipótese a ser explorada diz respeito ao radical µλΚ. Encontramos

algumas divindades que repetem este radical: os já citados ?????? e ?????, além

de ???? (1Rs 11,5). É significativo que a existência das divindades µλΚ, com várias

vocalizações, sejam atestadas desde o 2º milênio (em Mari como

µιλΚυ, µιλΚι, µιλϑΚυ), encontrada em listas em acadiano do período babilônico,

12 “Atenção! Também seus filhos e suas filhas queimaram no fogo aos deuses-seus”. 13 “E contruíram altos de Baal para queimarem seus filhos no fogo do sacrifício a Baal”.

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18

em Ugarit e na Fenícia.14 Aqui a hipótese é que estas divindades estejam

relacionadas com o mundo inferior, isto é, que sejam divindades ctônicas. O

culto ligado a essas divindades estariam associadas a práticas divinatórias.15

Ademais, o radical µΛλΚ expressa um vínculo com a monarquia e com o rei a ser

explicitado.

Resta ainda, a necessidade de se remeter a uma hipótese mais ampla, a fim de

situar o culto a µΟλεκ nos quadros do final da monarquia. Importa investigar a

hipótese de Herbert Donner.

Este importante historiador o período inaugurado com Acaz – o primeiro rei a

quem se atribui a prática do culto a µΟλεκ --, de “a crise assíria da religião israelita”.16

No que consiste esta crise?

“a afluência de divindades e cultos assírios estimulou o ‘cananeísmo’ e, por

conseguinte, também o processo de amálgama da religião de Javé com

elementos cananeus, que nunca havia cessado totalmente. Portanto, são

principalmente dois fatos que caracterizam a crise assíria da religião israelita: o

ataque efetivo contra a forma e a substância da religião de Javé e o estímulo da

crise latente do cananeísmo”.17

É preciso lançar mão desta hipótese mais ampla pelo menos por duas razões:

(1) cronologicamente, a referência ao culto a µΟλεκ se dá, nas fontes históricas, junto

com o período inaugurado com esta crise religiosa, e (2) porque a pergunta sobre a

identidade de µΟλεκ oscila entre a proposta que o identifica às divindades astrais ou às

divindades ctônicas, sendo necessário remeter a discussão para o sincretismo religioso

oficial que surgiu no final da monarquia durante a supremacia neo-assíria.

14 Schmitz, "Topheth", p.583. 15 Que isso se aplica ao culto a Molek é um dos poucos consensos na pesquisa. Vide, Schmitz,

"Topheth", e Cogan, Imperialism and Religion: Assyria, Judah and Israel in the Eighth and Seventh

Centuries BCE, p.77ss. 16 Herbert Donner, História de Israel e dos povos vizinhos. Da Época da Divisão do Reino até Alexandre

Magno, 2a ed., vol. 2, São Leopoldo/Rio de Janeiro: Sinodal/Vozes, 2000, capítulo 4. 17 Donner, História de Israel e dos povos vizinhos, p.386.

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19

1.4 Delimitação da Pesquisa

O estudo exaustivo do culto a µΟλεκ exigiria a discussão de fontes legais

(Levítico, Êxodo), históricas (2 Reis), proféticas (Jeremias, Ezequiel, Isaías). Esta

simples enumeração denota uma complexidade, que não pode ser cumprida sem

temeridade segundo as exigências de uma dissertação de mestrado. Além disso, o

estudo dos vários relatos de sacrifício de humanos na BHS é uma empresa de

envergadura ainda maior.

Nossa proposta de delimitação é restringir-se apenas às fontes históricas. Estes

limites têm uma autonomia própria: permite colocar o problema da identidade ou

separação para dois ritos importantes (com o verbo ϖΒρ e com o verbo ΩρΠ), além

de perguntar pela comparação de µΟλεκ com outras divindades das culturas do

Levante.

1.5 Localização disciplinar

A dissertação localiza-se disciplinarmente no domínio da história da religião de

Israel. Isto não significa o abandono das críticas literária, da forma, do gênero e da

redação18. Porém estes instrumentos deixam de representar passos exegéticos

necessários e duvidosamente justapostos19 para se tornarem recursos à disposição do

historiador para a compreensão da cultura. Como pesquisa histórica, a dissertação não

discutirá as importantes implicações das conclusões para uma teologia do Antigo

Testamento.20

18 Vide Herbert Donner, História de Israel e dos povos vizinhos. Dos Primórdios até a Formação do

Estado, 2a ed., vol. 1, São Leopoldo/Rio de Janeiro: Sinodal/Vozes, 2000, p.22. 19 Vide desenvolvimento desta crítica em Rolf P. Knierim, "Criticism of Literary Features,

Form, Tradition and Redaction", in The Hebrew Bible and Its Modern Interpreters, ed. Douglas A.

Knight e Gene M. Tucker, Philadelphia: Fortress Press, 1985. 20 Rainer Albertz apresenta como competidores a pesquisa histórica e a pesquisa teológica.

Vide Albertz, A History of Israelite Religion in the Old Testament Period. From the Beginnings to the End

of the Monarchy, pp.16-17.

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20

1.6 Observações Metodológicas

Um dos caminhos de investigação de história da religião que tem se revelado, há

tempo, muito frutífero é o estudo dos nomes próprios (nomes divinos, pessoais,

geográficos, epítetos etc.).21 Este estudo parece, em especial, apropriado em face de

fontes lacunosas mas que trazem algum nome e, por conseguinte, informações

preciosas encapsuladas. Além disso, é possível se apoiar nas reconstruções da filologia

para se tecer comparações entre as afinidades das divindades de culturas diferentes, em

épocas diversas. A filologia realiza, no nível da língua, as mediações necessárias para

estas comparações, cumprindo exigências epistemológicas.22

Assim, metodologicamente a pesquisa situou-se no nível filológico: o estudo

aprofundado, o quanto possível, dos nomes divinos, bem como de referências

ocasionais à onomástica e toponímia. Em razão desta opção, foi necessário dedicar um

grande espaço para as reconstruções, para a discussão das mudanças consonantais e

vocálicas a fim de justificar o eventual parentesco e a afinidade entre as divindades.

21 Vide os comentários em Jeffrey H. Tigay, You shall have no other gods: Israelite Religion in the

Light of Hebrew Inscriptions, (Harvard Semitic Studies 31), Atlanta, Georgia: Scholars Press, 1986,

capítulo 1; Frank L. Benz, Personal Names in the Phoenician and Punic Inscriptions: a catalog,

grammatical study and glossary of elements, (Studia Pohl 8: Dissertationes Scientificae de Rebus

Orientis Antiqui), Rome: Biblical Institute Press, 1972, capítulo1; J. J. M. Roberts, The Earliest

Semitic Pantheon: A Study of the Semitic Deities Attested in Mesopotamia before Ur III, Baltimore;

London: The John Hopkins University Press, 1972. 22 Sobre a importância do estudo dos nomes próprios e o futuro deste tipo de pesquisa, vide

também Patrick D. Miller, "Israelite Religion", in The Hebrew Bible and Its Modern Interpreters, ed.

Douglas A. Knight e Gene M. Tucker, Philadelphia: Fortress Press, 1985.

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21

2 Estado das Fontes

2.1 Fontes Arqueológicas

A arqueologia do sacrifício de humanos relativa às culturas do Levante se

restringe quase exclusivamente às evidências púnicas. O caso mais citado é o tophet da

principal colônia fenícia, Cartago (fundada ca. 814-813 BCE). Não tivemos acesso,

porém, a nenhum relato direto sobre a escavação desta cidade. Vejamos um resumo

que se encontra em obras de referência:

“O ‘precinct’ de Cartago era uma área em ar-aberto cercada por um muro. O

tamanho era, de acordo com o escavador, L. E. Stager, no mínimo 5.000-

6.000 metros quadrados durante o quarto e terceiro séculos. O número de

urnas estimadas para o quarto e terceiro séculos foi previsto em cerca de

20.000. Ambos o tamanho do sítio e o número de urnas indicam que o uso do

sítio não foi esporádico. Stager demonstra com base em urnas escavadas que a

porcentagem de enterros de crianças não diminuíu com o tempo, antes, eles

aumentaram”. 23

Sobre este sítio, foi concluído que “o sítio Tanit de Cartago provou, quando

repetidamente escavado a partir do tempo de sua descoberta em 1922 e especialmente

em 1975-1978, que o rito persistia lá desde o século oitavo até o assalto final da cidade

pelos romanos em 146 BCE”.24

Vejamos alguns relatos de “primeira mão” que tivemos acesso.

(1) O relatório do achado arqueológico de urnas funerárias fenícias em Tiro no

ano de 1990.25 Trata-se de um artigo minucioso que descreve as urnas cinerárias, estelas

com inscrições e motivos fenícios, vasos votivos e os ossos humanos preservados no

interior das urnas. Uma passagem que merece ser destacada:

23 Mark S. Smith, The Early History of God: Yahweh and the Other Deities in Ancient Israel , 2a ed.,

Grand Rapids, Michigan/Cambridge, UK: William B. Eerdmans Publishing Company, 2002,

p.174. 24 Edward Lipinski, "The Phoenicians", in Civilization of the Ancient Near East, ed. Jack M.

Sasson, New York: Charles Scribner´s Sons, 1995, p.1328. 25 Helga Seeden, "A Tophet in Tyre?" Berytus XXXIX (1991).

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22

“muitos pequenos exemplos de ossos cremados foram submetidos ao

Museum of London Archaeology Service para possível identificação, na

certeza que todos os fragmentos presentes eram de animais. Uma colega

especialista em ossos animais e eu mesma, especializada em ossos humanos,

os examinamos e consideramos que havia provavelmente ossos humanos

presentes e que somente um único fragmento podeira ser identificado como

possível animal”.26

Porém, a arqueóloga pondera que as conclusões são ainda provisórias.

(2) Primeiro relatório da descoberta da estela Incirli em 199327. A estela é uma

pedra de basalto, datada no 8º século BCE. Trata-se de uma pedra comemorativa da luta

por fronteiras territoriais entre os reis, erigida para demarcar território. “De particular

importância para a história cultural do Oriente Próximo Antigo foi a detalhada

discussão do uso de mulk-sacrifício de ovelhas, cavalos e – se nós lemos corretamente

– primogênitos humanos no processo de guerra, e a reação de deuses para aqueles

sacrifícios.”28 O relatório nota que, embora haja achados arqueológicos no universo

púnico sobre os sacrifícios de humanos, esta estela seria o primeiro documento

epigráfico na fenícia e não de suas colônias. Não é possível avançar em conclusões até

a publicação da transcrição da estela.

Com efeito, as evidências arqueológicas são muito escassas. Não se encontra na

Mesopotâmia, Israel, Judá, Transjordânia. As evidências fenícias são as únicas.

26 Seeden, "A Tophet in Tyre?" p.24. 27 Bruce Zuckerman, "The Incirli Stela: Its Digital and Photographic Recording",

http://www.humnet.ucla.edu/humnet/nelc/stelesite/zuck.html: acessado em 20 de

dezembro, 2003. 28 Zuckerman, "The Incirli Stela: Its Digital and Photographic Recording", summary of

results.

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23

2.2 Fontes Textuais

2.2.1 Philo de Byblos

No primeiro livro do De Praeparatio evangelica [PE] de Eusébio de Cesaréia (circa

260-340 AD), foram preservados fragmentos do livro História dos Fenícios de Philo de

Byblos.29 Philo foi um dos vários eruditos do oriente próximo ativos no império

romano. Ele nasceu ca. 70 AD e morreu em 160.30

Philo afirma utilizar como fontes Taautos (outro nome para o egípcio Thoth) e

Sanchiniathon. 31 Taautos é equiparado ao deus Hermes, e é apresentado como o

29 A melhor edição crítica do livro de Eusébio é Karl Mras, ed., Die Praeparatio Evangelica, vol.

8, part I, (Eusebius Werke), Berlin: Akademie, 1954. Esta edição serviu de base para a de

Harold W. Attridge e Robert A. Oden Jr., eds., Philo of Byblos, the Phoenician History: Introduction,

Critical Text, Translation, Notes, (The Catholic Biblical Quartely Monograph Series 9),

Washington: The Catholic Biblical Association of America, 1981, que utilizaremos nesta

dissertação. Vale observar que Eusébio não menciona o título História dos Fenícios – atribuído

pela pesquisa acadêmica. 30 Albert I. Baumgarten, "Philo of Byblos", in The Anchor Bible Dictionary, ed. David Noel

Freedman, New York: Doubleday, 1992, p.342. Consultar esse artigo para a discussão da

intentio auctoris de Eusébio em citar Philo de Byblos. 31 Na PE 1.9.24, Eusébio cita Philo “Sanchuniathon, truly a man of great learning and

curiosity, who desired to learn from everyone about what happened from the first, when the

universe came into being, quite carefully searched out the works of Taautos. He did this since

he realized that Taautos was the first person under the sun who thought of the invention of

writing and who began to compose records, thereby laying the foundation, as it were, of

learning. The Egyptians call him Thouth and the Alexandrians Thoth and the Greeks

translated his name as Hermes”, in Attridge e Oden Jr., eds., Philo of Byblos, the Phoenician

History: Introduction, Critical Text, Translation, Notes, p.29. Vide também o testemunho

preservado em Porfírio (de abstinentia 2.56), “The Phoenincian history ... which Sanchuniathon

wrote in the Phoenician language and Philo of Byblos translated into Greek in eight books”,

in Attridge e Oden Jr., eds., Philo of Byblos, the Phoenician History: Introduction, Critical Text,

Translation, Notes, p.17.

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24

inventor da escrita – as primeiras fontes para o historiador. Sanchiniathon teria vivido

antes da Guerra de Tróia.32

Eusébio preservou seis fragmentos do primeiro dos oito ou nove volumes da

História dos Fenícios. Os temas dos fragmentos cuidam: a) de cosmologia; b) das

invenções culturais; c) da história de Kronos; d) dos últimos governantes; e) do

sacrifício de humanos; f) serpentes.

Interessa diretamente à dissertação o fragmento da PE 1.10.44.

“Imediatamente após ele disse, ‘Entre os povos antigos em situações críticas

de perigo era costume para os regentes da cidade ou nação, mais do que

perder alguém, fornecer o mais adorado de seus filhos como sacrifício

propiciatório para as divindades iradas. A criança então oferecida era morta

segundo um ritual secreto. Assim Cronos, a quem os Fenícios chamam El,

que foi posteriormente divinizada após sua morte como a estrela de Cronos

tinha um único filho com uma noiva local chamada Anobret, e portanto eles o

chamabam Ieoud. Então quando graves perigos assolaram a terra, Cronos

vestiu seu filho com veste real, preparou um altar e o sacrificou’”.33

Esta breve passagem nos informa que o sacrifício de crianças era praticado em

situações de crise para apaziguar a raiva de divindades. O sacrifício não era público e

era responsabilidade da autoridade maior da cidade ou nação. O exemplo trazido é

mitológico: Kronos/El sacrifica seu filho (não nomeado) em uma situação de crise. A

vítima recebeu uma vestimenta real e foi morta sobre um altar.

32 PE 1.9.21 fine in Attridge e Oden Jr., eds., Philo of Byblos, the Phoenician History: Introduction,

Critical Text, Translation, Notes, p.21. 33 Attridge e Oden Jr., eds., Philo of Byblos, the Phoenician History: Introduction, Critical Text,

Translation, Notes, p.63.

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25

2.2.2 Ugarit

O quadro da pesquisa das divindades cananéias apoiava-se substancialmente na

tradição preservada pela Patrística, a exemplo de Philo de Byblos. Mas este quadro se

alterou com a descoberta em 1929 dos textos da antiga υΓρΤ (∋υΓαρΙΤ).34

Não há no corpus ugarítico nenhuma referência ao culto a µΟλεκ. Mas será

necessário traduzir e comentar alguns textos alfabéticos, pois fazem referência a

divindades ctônicas e astrais que podem lançar iluminar várias questões levantadas pela

leitura das passagens do culto a µΟλεκ preservadas na BHS. A tradução de textos

ugaríticos, inéditos em português, é, a despeito das imperfeições inevitáveis, uma

contribuição da dissertação.

2.2.3 Bíblia Hebraica Stuttgartensia

2.2.3.1 Corpus Textual

As ocorrências textuais acerca do culto a µΟλεκ se reduzem a poucas frases.

Em primeiro lugar, buscamos as frases com a ocorrência do nome µΟλεκ, em seguida

organizamos estas frases em sintagmas e buscamos outras ocorrências com estes

sintagmas na BHS, ainda que não apresentassem o nome µΟλεκ.

Sem dúvida que ainda outros sintagmas poderiam ser propostos para abranger

casos de sacrifícios de humanos que não foram identificados por este procedimento.

Mas a pesquisa aumentaria demasiadamente em complexidade, desrespeitando os

limites factíveis de uma dissertação de mestrado. Assim, não entraram em discussão,

por exemplo, Gn 22,1-14; Jz 11,29-40; Sl 106,37.38; Ez 16,21.

34 Para as etapas da pesquisa sobre Ugarit, vide a reconstrução de Mark S. Smith, Untold Stories:

the Bible and Ugaritic Studies in the Twentieth Century, Peabody: Hendrickson Publishers, 2001.

Para uma discussão sobre o comparativismo, vide Wayne T. Pitard, "Voices from the Dust:

The Tablets from Ugarit and the Bible", in Mesopotamia and the Bible: comparative explorations, ed.

Mark W. Chavalas e K. Lawson Younger Jr., Grand Rapids, Mich.: Baker Academic, 2002 e

Mark W. Chavalas, "Assyriology and Biblical Studies: a Century of Tension", in Mesopotamia

and the Bible: comparative explorations, ed. Mark W. Chavalas e K. Lawson Younger Jr., Grand

Rapids, Mich.: Baker Academic, 2002.

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26

As ocorrências do corpus textual são estereotipadas, como pode ser observado

nos sintagmas abaixo. O verbo ritual expressa a ação principal, uma metonímia do rito,

que ocorre em um local, conduzido por um sujeito, que destina o objeto pessoal a uma

divindade recipiente. Evitamos falar em “vítima”, pois seria um termo mais apropriado

caso os ritos fossem inequivocamente de natureza sacrificial, o que não é o caso e está

em discussão.

A organização dos sintagmas tem implícita um conceito de ritual e sacrifício.

Ainda é de grande validade para a pesquisa o artigo célebre de Hubert e Mauss, no qual

o sacrifício é definido como o “ato religioso que, pela consagração de uma vítima,

modifica o estado moral da pessoa que o realiza ou de certos objetos pelos quais ela se

interessa”.35 A definição elaborada na conclusão é “[sacrifício é um processo que]

consiste em estabelecer uma comunicação entre o mundo sagrado e o mundo profano

por intermédio de uma vítima, isto é, de uma coisa destruída no decurso da

cerimônia”.36 A unidade das múltiplas formas de sacrifícios (que possuem objetivos

específicos), não sua derivação de sacrifícios primitivos comuns, mas a mesma função.

Metodologicamente, as definições e a descrição do sacrifício de Mauss e Hubert não

são históricas no sentido de se referirem apenas a um conjunto específico de fontes,

mas também não são abstrações, uma vez que é uma generalização a partir de ritos

hindus e israelitas (Levítico). A importância do artigo, ao nosso ver, consiste em

explicar o sacrifício como um sistema com ritos de entrada e saída: sujeitos, objetos

ingressam, realizam a morte ritual da vítima (por ritos próprios) e se retiram do

sistema. Assim, uma série de dados dispersos nas fontes (lugar, tempo, grau

participação dos sujeitos, manipulação dos objetos) pode ganhar inteligibilidade em

razão de sua posição no sistema. O ritual é definido como conjunto de ações que criam

um hiato temporal à parte do tempo cotidiano.37

35 Henri Hubert e Marcel Mauss, "Ensaio sobre a natureza e a função do Sacrifício (1899)", in

Ensaios de Sociologia, ed. Marcel Mauss, São Paulo: Perspectiva, 1999, p.151 36 Hubert e Mauss, "Ensaio sobre a natureza e a função do Sacrifício (1899)", p.223 37 P. Smith, "Rite", in Dictionnaire de L´Ethnologie et de L´Anthropologie, ed. Pierre Bonte e Michel

Izard, (Quadrige/PUF), Paris: Presses Universitaires de France, 2000. Victor W. Turner, O

Processo Ritual: Estrutura e Antiestrutura, Petrópolis: Vozes, 1974, pp.13ss.

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2.2.3.1.1 Sintagmas

Ocorrência Verbo Ritual

(H)

Divindade

Recipiente

Objeto pessoal do rito Local Sujeito do

rito

Nm 31,23 ??? + '??

??? + ????

lacuna ?????'??????

'??

'?????????'???

lacuna 2mpl

Dt 18,10 ??? (H.part) + '?? lacuna ?"?????? lacuna 2ms

2Rs 16,3 ??? + '?? lacuna ????"? lacuna 3ms

(Acaz)

2Rs 17,17 ??? + '?? lacuna ??????"

???"???"??

lacuna 3mpl

2Rs 21,6 ??? + '?? lacuna ????"? lacuna 3ms

(Manassés)

2Rs 23,10 ??? + '?? ???? ?"??"??????"? "?"??"?

???????????'?

'??

Jr 32,35 ??? ???? ??????"

???"???"??

????"????"?

????'?

??????

3mpl

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28

Ocorrência Verbo Ritual

(G)

Divindade

Recipiente

Objeto pessoal do

rito

Local Sujeito do rito

Dt 12,31 ??' + '?? ??????? ??????"?

???"???"??

lacuna 3mpl

2Rs 17,31 ??' (G part.) + '?? ???????

??????

??????"? lacuna ???????

Jr 7,31 ??'? (G inf.constr.) + '?? lacuna ??????"?

???"???"??

"?"?"???

????'?

??????

3mpl

Jr 19,5 ??'? (G inf.constr) + '?? ???? ??????"? ????"????"? 3cpl

Ocorrência Verbo Ritual

G

Divindade

Recipiente

Objeto pessoal do rito Local Sujeito do rito

Lv 20,2 ?" ???? ??? lacuna ???'?????'??'??

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2.2.3.1.2 Comentários

A primeira tabela é organizada pelo verbo ritual (H) '????? . A segunda,

pelo verbo ritual '????' , e a terceira, pelo verbo ritual ?"? . A partir destes

verbos, organizamos os demais sintagmas que possuem um padrão recorrente.

O primeiro verbo ritual é predominante quer no conjunto, quer nas perícopes

do livro de Reis (4 ocorrências). Aqui, a ocorrência de 2Rs 23,10 é a mais completa. No

livro de Reis, a única ocorrência com o segundo verbo ritual é 2Rs 17,31. Vale observar

que em Jeremias há ocorrências com os dois verbos rituais.

A citação do nome da divindade ???? é quase exclusividade das ocorrências

em Levítico (sempre com o verbo ?"? ), sendo citado ainda apenas em 2Rs 23,10 e Jr

32,35.

Consoante a delimitação proposta para a dissertação, nos concentraremos

apenas nas ocorrências do livro de Reis. O alvo da dissertação é situar o culto a µΟλεκ

e os sacrifícios de humanos nos quadros da crise religiosa do final da Monarquia. As

ocorrências em Levítico nos conduziriam a outro universo religioso, posterior a este

marco cronológico. Já as ocorrências em Jeremias, mereceriam uma discussão mais

detalhada. Ocorre que, ao fazê-lo, seria necessário discutir o espinhoso problema da

redação deuteronomista de Jeremias38, o que nos levaria a discussões redacionais que

aumentariam enormemente a complexidade da dissertação, desviando-nos de uma

pesquisa com ênfase histórica, razão pela qual também foram excluídas da dissertação,

exceto para ilustrar algum sintagma que ocorra nestas passagens de 2 Reis.

38 Rainer Albertz, A History of Israelite Religion in the Old Testament Period. From Exile to the

Maccabees, vol. 2, (The Old Testament Library), Louisville, Kentucky: Westminster/John Knox

Press, 1994, pp.382ss.

30

3 Culto a Molek e Sacrifício de Crianças: verbo ritual, divindade recipiente, localização e objeto pessoal

Estudaremos na seqüência os dois verbos rituais com ocorrência no livro de

Reis e suas perícopes. Em seguida, investigaremos os demais sintagmas: o nome divino

µΟλεκ, o local geográfico do culto e o objeto pessoal do ritos. Discussões de crítica

textual desenvolvemos no corpo da dissertação.

3.1 Ritual ϖΒρ Β∋Η

3.1.1 O rito em Israel

A única ocorrência do ritual ϖΒρ Β∋Η no Reino do Norte está em 2Rs 17,17.

Mas, está estabelecido na pesquisa, que se trata de uma passagem secundária.39 Faz

parte do juízo sobre a queda do Reino do Norte, após o evento. O texto de 2Rs 17 tem

uma redação complexa. O ritual em estudo faz parte da perícope de 2Rs 17,7-21.

Oportunamente discutiremos a ocorrência do outro ritual na perícope de 2Rs 17,24-41.

O vocabulário emula inteiramente textos do Reino do Sul, como veremos

quando cuidarmos deles. Vale frisar que o argumento redacional, por si só, não retiraria

a importância da passagem para a pesquisa. Ainda que fosse um texto tardio, poderia

refletir uma tradição ou, pelo menos, a prática contemporânea do rito. Mas a

informação redacional tem relevância histórica pois indica que a passagem não vem do

Norte. Há também um argumento histórico independente para recusar uma

proveniência do Norte: em nenhuma outra passagem, se menciona qualquer rei de

Israel que tenha praticado o rito.40

Assim, uma conclusão importante para a nossa investigação é que não há

nenhuma evidência do rito ϖΒρ Β∋φφΗ no reino de Israel.

39 Erik Eynikel, The Reform of King Josiah and the Composition of the Deuteronomistic History,

(Oudtestamentische Studiën XXXIII), Leiden; New York; Köln: Brill, 1996, p.91. 40 Mordechai Cogan e Hayim Tadmor, II Kings: a new translation with introduction and commentary,

1a ed., New York: Doubleday, 1988, p.205-206.

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31

3.1.2 O rito em Judá: Acaz e Manassés

3.1.2.1 Tradução

a) 2Rs 16,1-4

%l:±m' Why"+l.m;r>-!B, xq;p,Þl. hn"ëv' hreäf.[,-[b;(v. ‘tn:v.Bi 1

`hd'(Why> %l,m,î ~t'ÞAy-!B, zx'îa'

1 No décimo sétimo ano de Peca, filho de Remalias/ se-tornou-rei Acaz, filho de Jotão, rei de Judá.

%l:ßm' hn"ëv' hreäf.[,-vvew> Akêl.m'B. zx'äa' ‘hn"v' ~yrIÜf.[,-!B, 2

dwIïd'K. wyh'Þla/ hw"ïhy> ynE±y[eB. rv'ªY"h; hf'ä['-alw> ~÷Il'_v'WryBi

`wybi(a' 2 De idade41 20 anos, Acaz, quando se tornou rei ele42, e dezesseis anos reinou em Jerusalém/ E não fez o reto aos olhos de Javé, seu Deus, como David seu pai.

vaeêB' rybiä[/h, ‘AnB.-ta, ~g:Üw> lae_r'f.yI ykeäl.m; %r,d,ÞB. %l,YE¨w: 3

ynEïB. ynEßP.mi ~t'êao ‘hw"hy> vyrIÜAh rv,’a] ~yIëAGh; ‘tAb[]to)K.

41 O nome ?? também introduz idade, vide Koehler e Baumgartner, The Hebrew and Aramaic

Lexicon of the Old Testament, p.138. 42 O termo ????? é um infinitivo construto com ?? que sintaticamente traduz-se por uma

oração temporal; o sufixo pronominal da 3ª pessoa masculino singular funciona como sujeito

da oração.

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`lae(r'f.yI 3 E andou no caminho dos reis de Israel/ E também ao filho-seu passou no fogo, como abominações das nações, que desapossou43 Javé a elas de diante dos filhos de Israel.

#[eî-lK' tx;t;Þw> tA[+b'G>h;-l[;w> tAmßB'B; rJE±q;y>w: x;Beóz:y>w: 4

`!n")[]r; 4 E sacrificou e queimou-incenso nos altos e nos outeiros/ e debaixo de toda árvore cheia-de-folhas44.

b) 2Rs 21,1-7

‘vmex'w> ~yViÛmix]w: Akêl.m'b. hV,än:m. ‘hn"v' hreÛf.[, ~yTe’v.-!B, 1

`Hb'(-ycip.x, AMßai ~veîw> ~÷Il'_v'WryBi %l:ßm' hn"ëv'

1. De idade doze anos, Manassés, quando se tornou rei ele, e reinou cinqüenta e cinco anos reinou em Jerusalém/ E o nome de sua mãe, Hefzibá.

vyrIåAh ‘rv,a] ~yIëAGh; ‘tbo[]At)K. hw"+hy> ynEåy[eB. [r;Þh' f[;Y:ïw: 2

43 Raiz ????? no H conjugação aformativa. Tem o sentido de desapossar, vide Koehler e

Baumgartner, The Hebrew and Aramaic Lexicon of the Old Testament, p.441. 44 Koehler e Baumgartner, The Hebrew and Aramaic Lexicon of the Old Testament, p.1269 aponta o

sentido de “cheia-de-folhas”. Em português há a expressão correlata “frondosa”, adotada

correntemente nas traduções nacionais.

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`lae(r'f.yI ynEïB. ynEßP.mi hw"ëhy> 2. E fez o mal aos olhos de Javé/ como as abominações das nações, que desapossou Javé a elas de diante dos filhos de Israel.

~q,Y"“w: wybi_a' WhY"åqiz>xi dB;Þai rv<ïa] tAmêB'h;-ta, ‘!b,YI’w: bv'Y"©w: 3

%l,m,ä ‘ba'x.a; hf'ª[' rv<åa]K; ‘hr'vea] f[;Y:Üw: l[;B;ªl; txoøB.z>mi

`~t'(ao dboß[]Y:w:) ~yIm;êV'h; ab'äc.-lk'l. ‘WxT;’v.YIw: laeêr'f.yI

3. E tornou e construiu os altos que fez-destruir Ezequias, seu pai/ E levantou altares para Baal, e fez Ashera tal como fizera Acabe, rei de Israel, e curvou-se a todo Exército dos Céus, e serviu a ele.

~÷Il;Þv'WryBi hw"ëhy> rm:åa' ‘rv,a] hw"+hy> tybeäB. txoßB.z>mi hn"ïb'W 4

`ymi(v.-ta, ~yfiîa' 4 E construiu altares na casa de Javé/ da qual Javé disse: em Jerusalém, porei meu nome.

tArïc.x; yTeÞv.Bi ~yIm"+V'h; ab'äc.-lk'l. tAxßB.z>mi !b,YIïw: 5

`hw")hy>-tyBe 5. E construiu altares a todo Exército dos Céus/ nas duas salas da casa de Javé

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~ynI+[oD>yIw> bAaß hf'['îw> vxeênIw> !nEåA[w> vaeêB' ‘AnB.-ta, rybiÛ[/h,w> 6

`sy[i(k.h;l. hw"ßhy> ynEïy[eB. [r;²h' tAfï[]l; hB'ªr>hi

6. E fez-passar o filho -seu no fogo e interpretou-sinais-das-núvens45 e deu-predições-com-cobras46 e fez espírito-de-morto e necromancia47/ E deu-crescimento no fazer maldade aos olhos de Javé, para provocar-ira.

rm:Üa' rv,’a] tyIB;ªB; hf'_[' rv<åa] hr'Þvea]h' ls,P,î-ta, ~f,Y"¨w: 7

~÷Il;ªv'WrybiW hZ<÷h; tyIB;’B; Anëb. hmoålv.-la,w> ‘dwID'-la, ‘hw"hy>

ymiÞv.-ta, ~yfiîa' laeêr'f.yI yjeäb.vi ‘lKomi ‘yTir>x;’B' rv<Üa]

`~l'(A[l.

7. E pôs a imagem de Asherá que fizera/ na casa que disse Javé a David e a Salomão, seu filho: nesta casa e em Jerusálém, que escolhi de todas as tribos de Israel colocarei o meu nome para eternidade.

45 O verbo ??? está em um tronco raro, o poel. Trata-se de um verbo denominativo a partir

do nome ??? (“nuvem”). Uma tradução proposta para o verbo, neste tronco, é

“interpretation of signs”, Koehler e Baumgartner, The Hebrew and Aramaic Lexicon of the Old

Testament, pp.857-858. Nossa tradução pretendeu preservar a origem denominativa do verbo. 46 O verbo '?? está no tronco D e tem como tradução proposta “to give omens”, Koehler e

Baumgartner, The Hebrew and Aramaic Lexicon of the Old Testament, p.690. Aqui, também há uma

proximidade com o nome '?? (“cobra”), que era utilizada em práticas divinatórias, como

mostra o texto ugarítico que traduziremos mais abaixo. Nossa tradução pretendeu preservar

esta informação. 47 Estas duas palavras formam um sintagma e merecem uma discussão à parte.

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3.1.2.2 Comentários

A persquisa das formas identificou o chamado Regnal Resumé (Abriss einer

königlichen Regierungeszeit) que introduz os reis de Judá e Israel. Esta forma é dividida em

duas partes: a) introdução e b) conclusão. A introdução (1) o nome do rei e o

sincronismo com a outra casa monárquica (até 722), (2) a idade de ascensão do rei

(apenas para os reis de Judá), (3) a duração do reinado, (4) o nome da rainha mãe

(apenas para os reis de Judá), (5) uma avaliação teológica estilizada. A conclusão que

indica (1) uma fórmula de citação, apontando para as fontes de informação, (2) notícia

da morte e enterro do rei, (3) notícia de sucessão.48

As duas perícopes acima traduzidas são exemplos das fórmulas de abertura. 2Rs

16,1 apresenta a nota sincrônica que define a data de ascensão ao trono (“No décimo

sétimo ano de Peca, filho de Remalias, se-tornou-rei Acaz, filho de Jotão”). O verbo

??????, G conjugação aformativa, é comumente traduzido por “reinar”, mas também

tem o sentido de “tornar-se rei”, mais apropriado aqui, pois indica a data da ascensão.49

A nota sincrônica não existe para Ezequias (725/728? – 697/700?), como não poderia

ser diferente com o fim do reino de Israel (722).

2Rs 16,2a indica a idade de ascensão, o tempo de duração do reinado em

Jerusalém. Mas não indica o nome da mãe de Acaz, como seria de se esperar para os

reis de Judá (inter alia 2Rs 8,26; 2Rs 14,2; 2Rs 15,2; 2Rs 15,33). 2Rs 21,1 é completo

para Manassés: a idade de ascensão, o tempo de duração do reinado em Jerusalém e o

nome de sua mãe.

Os versos seguintes apresentam o juízo teológico sobre o reinado e se trata do

canteiro de obras da pesquisa redacional. Não acompanharemos a discussão redacional

48 Vide lista das formas Burke O. Long, 2 Kings, (The Forms of the Old Testament literature

10), Grand Rapids, Mich.: Eerdmans, 1991, p.259. Vide ainda com algumas matizações

Eynikel, The Reform of King Josiah and the Composition of the Deuteronomistic History, pp.33, 102

passim. Vide também, o importante estudo, Martin Noth, The Deuteronomistic History, Sheffield:

Journal of Studies of Old Testament Press, 1981, passim. 49 Koehler e Baumgartner, The Hebrew and Aramaic Lexicon of the Old Testament, p.590.

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em sua minúcia, mas apenas anotaremos alguns resultados que interessam diretamente

à dissertação.

2Rs 16

2bα : ????????????????????'???????? (“E não fez o reto aos olhos de

Javé, seu Deus, como David, seu pai”). Esta fórmula é singular! A fórmula negativa

tem a forma ???????????????????????? (“E fez o mal aos olhos de Javé”) e é

utilizada para os reis de Israel. Apenas em três ocasiões é utilizada para os reis de Judá:

2Rs 8,18 (Jeorão), 2Rs 8,27 (Acazias) e 2Rs 21,2 (Manassés). Já fórmula positiva tem a

forma ?????????????????????????? (“E fez o reto aos olhos de Javé”), aplicável

comumente aos reis de Judá (inter alia 1Rs 15,11; 2Rs 14,3).

A fórmula negativa aplicada a Acaz é única. Uma explicação sugerida é de

assinalar a ruptura com os reis de Judá de maneira especial, com a negação da fórmula

positiva típica.50 Uma observação feita pelos estudiosos é que os ritos com ϖΒρ Β∋Η

apenas são citados a partir de Acaz. Esta observação deverá ser analisada também em

sede histórica, mas redacionalmente, está sugerida a singularidade de Acaz dentre os

reis de Judá.

3a: ???'????????????? (“E andou no caminho dos reis de

Israel”). Ocorreu em 2Rs 8,18 (Jeorão). Esta fórmula é similar à "?????????????, 2Rs 8,27 (Acazias).

O verso com o ritual que estamos estudando ocorre em 3b. Porém, é

fundamental destacar que é introduzido por ???, um dos indicadores mais usuais de

inserção redacional na história deuteronomista.51 A principal característica é que se trata

da formulação mais resumida, considerando os sintagmas. Compare-se com 2Rs 17,17;

2Rs 21,6; 2Rs 23,10.

Anotamos ainda a referência, na seqüência de outras práticas religiosas que

parecerão na Reforma de Josias (4).

A principal conclusão redacional de Eynikel é que os fragmentos 3b e 4aβ, 4b

são de estratos diferentes e posteriores do restante da perícope, sendo que a acusação

50 Eynikel, The Reform of King Josiah and the Composition of the Deuteronomistic History, p.105 nota

246. 51 Eynikel, The Reform of King Josiah and the Composition of the Deuteronomistic History, pp.272-273.

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da prática do rito com crianças e do culto debaixo das árvores têm a finalidade de

agravar o juízo que recai sobre Acaz.52

2Rs 21

2b: ????"???"? (“como as abominações das nações, que

desapossou Javé a elas de diante dos filhos de Israel”). Esta é uma expressão atribuída

ao redator deuteronomista pré-exílico. Ocorre também em 1Rs 14,24; 1Rs 21,26; 2Rs

17,8 dentre outras passagens. Trata-se de um termo abrangente para designar práticas

cultuais cananéias ligadas ao culto dos altos (???), que não eram anti-javistas em

textos pré-deuteronomistas (vide, v.g., 1Rs 3,2).

3, 5 e 7a: estão em relação intertextual clara com a Reforma de Josias, como

veremos oportunamente.

O verso com o ritual em estudo é 6aα: '?????"??????? (“E fez

passar o seu filho no fogo”). Observamos que, diferentemente de 2Rs 16,3b, não há

neste verso alguma termo que sugira quebra redacional, como o ???. Outra

característica importante é a informação contextual (“e interpretou-sinais-das-núvens e

deu-predições-com-cobras e fez espírito-de-morto e necromancia”), que aparece mutatis

mutandis em Dt 18,10; 2Rs 17,17 e 2Rs 23,24a(?). Vale anotar que este verso 6, Eynikel

propõe a datação no exílio.53

52 Eynikel, The Reform of King Josiah and the Composition of the Deuteronomistic History, p.106. 53 Eynikel, The Reform of King Josiah and the Composition of the Deuteronomistic History, p.114.

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