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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
DIVINDADES MLK E CULTO A MOLEK
NOS QUADROS DA CRISE RELIGIOSA
NO FINAL DA MONARQUIA DE JUDÁ
(2 Reis 16,3; 17,17.31; 21,6; 23,10; KTU 1.100; 1.118; 1.161)
por
SAMUEL RODRIGUES BARBOSA
Prof. Dr. Milton Schwantes
Dissertação de Mestrado apresentado em
cumprimento parcial às exigências do Programa de
Pós-Graduação em Ciências da Religião para a
obtenção do grau de Mestre.
São Bernardo do Campo
2004
2
Banca Examinadora
_____________________________________
_____________________________________
_____________________________________
3
BARBOSA, Samuel Rodrigues. Divindades MLK e Culto a Molek nos Quadros da Crise Religiosa no Final da
Monarquia de Judá (2 Reis 16,3; 17,17.31; 21,6; 23,10; KTU 1.100; 1.118; 1.161). Dissertação de Mestrado.
Universidade Metodista (Ciências da Religião). São Bernardo do Campo, 2004.
Resumo
A dissertação é dirigida a um especial e não resolvido problema na descrição do
desenvolvimento religioso de Israel. Em textos do Antigo Testamento acerca do
sacrifício de humanos, há uma unidades literárias autônomas relacionadas ao culto a
µΟλεκ. Porém, alguns pesquisadores sustentam que o culto a µΟλεκ não tem esta
característica. A dissertação aspira a investigar este argumento, concentrando-se em
fontes históricas (2Reis 16,3; 17,17.31; 21,6; 23,10). Discutindo fontes ugaríticas – duas
listas de divindades e um texto funerário – nós perguntares acerca das características
das divindades µΛλΚ nas culturas cananéias. Em síntese, µΟλεκ é uma divindade
ctônica mas não é destinatária de sacrifícios humanos.
4
BARBOSA, Samuel Rodrigues. Divindades MLK e Culto a Molek nos Quadros da Crise Religiosa no Final da
Monarquia de Judá (2 Reis 16,3; 17,17.31; 21,6; 23,10; KTU 1.100; 1.118; 1.161). Dissertação de Mestrado.
Universidade Metodista (Ciências da Religião). São Bernardo do Campo, 2004.
Abstract
The dissertation is addressed to a special and unsolved problem in the description of
Israel´s religious development. In Old Testament texts about the human sacrifices,
there are autonomous literary units regarding the µΟλεκ cult. However, some scholars
claim that the µΟλεκ cult has not such character. The dissertation aspires to scrutinize
this argument, focusing on historical sources (2Kings 16,3; 17,17.31; 21,6; 23,10).
Discussing ugaritic sources – two deities list and one funerary text –, we will inquiry
about the characteristics of µλΚ deities at cannanite cultures. Briefly, the µΟλεκ is a
ctonic deity but it is not a recipient of human sacrifices.
5
Para Milene
— Entendeu?
— Entendeu.
6
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.
Ricardo Reis
7
Agradecimentos
Esta dissertação é o ponto de partida dos meus estudos de história da religião, é
o rito de passagem para o campo de saber ao qual ambiciono dedicar as minhas
energias. Para quem não cursou Teologia, o Programa de Pós-Graduação em Ciências
da Religião da Universidade Metodista de São Paulo não poderia ter sido um ambiente
mais acolhedor. Meus agradecimentos vão para professores, colegas alunos e
funcionários que são esta instituição.
Em primeiro lugar, ao Professor Doutor Milton Schwantes, que recebeu e
orientou um aluno neófito – como, aliás, são os discípulos durante o tempo em que
vivem com o mestre. Agradecimentos a quem foi meu primeiro professor de exegese –
cujo comentário inicial de Isaías é para mim um modelo a ser imitado. A quem foi meu
primeiro professor de ugarítico – cujos exercícios entrego, um pouco atrasado, no
último capítulo.
Aos professores Archibald Woodruff, Paulo Nogueira, Tércio Machado Siqueira
e Antônio Carlos Magalhães, a cujos cursos assisti com um misto de entusiasmo e
deslumbramento.
Aos todos colegas que me receberam em seu convívio, e que me ensinaram
muito mais do que suspeitam.
Aos professores James Reaves e Geoval Jacinto da Silva que zelaram para o
cumprimento de minhas obrigações junto à Comissão de Bolsas.
Ao Prof. Lauri Emílio Wirt e à Sra. Léia Alves de Souza que me guiaram no
emaranhado da burocracia e dos prazos.
À Capes, que me contemplou com uma bolsa de pesquisa flexibilizada.
Por fim, e, em especial, a Aldo e Carminha; Priscila e Benjamim, cujo convívio,
tão rico em conseqüências, me fizeram um homo religiosus.
8
SUMÁRIO
ABREVIAÇÕES .................................................................................................... 10
INTRODUÇÃO...................................................................................................... 12
1 PROLEGÔMENOS ..................................................................................... 13
1.1 PROBLEMATIZAÇÃO.................................................................................... 13
1.2 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA ............................................................................ 14
1.2.1 Culto a Molek e ritos sacrificiais ...................................................... 14
1.3 HIPÓTESE DA PESQUISA .............................................................................. 17
1.4 DELIMITAÇÃO DA PESQUISA ....................................................................... 19
1.5 LOCALIZAÇÃO DISCIPLINAR........................................................................ 19
1.6 OBSERVAÇÕES METODOLÓGICAS............................................................... 20
2 ESTADO DAS FONTES ............................................................................. 21
2.1 FONTES ARQUEOLÓGICAS........................................................................... 21
2.2 FONTES TEXTUAIS ...................................................................................... 23
2.2.1 Philo de Byblos ................................................................................. 23
2.2.2 Ugarit ................................................................................................ 25
2.2.3 Bíblia Hebraica Stuttgartensia ......................................................... 25
2.2.3.1 Corpus Textual................................................................................ 25
2.2.3.1.1 Sintagmas................................................................................. 27
2.2.3.1.2 Comentários ............................................................................. 29
3 CULTO A MOLEK E SACRIFÍCIO DE CRIANÇAS: VERBO
RITUAL, DIVINDADE RECIPIENTE, LOCALIZAÇÃO E OBJETO
PESSOAL ............................................................................................................... 30
3.1 RITUAL ϖΒρ Β∋Η ..................................................................................... 30
3.1.1 O rito em Israel................................................................................. 30
3.1.2 O rito em Judá: Acaz e Manassés ..................................................... 31
3.1.2.1 Tradução ......................................................................................... 31
a) 2Rs 16,1-4 .......................................................................................... 31
b) 2Rs 21,1-7 .......................................................................................... 32
3.1.2.2 Comentários .................................................................................... 35
9
Excurso: ??? ................................................................................................. 38
3.1.3 Reforma de Josias ............................................................................. 40
a) Delimitação ............................................................................................. 40
b) Tradução 2Rs 23,4-14.24a..................................................................... 40
c) Notas sobre o Vocabulário...................................................................... 45
d) Comentários ............................................................................................ 50
3.2 RITUAL ΩρΠ Β∋Η..................................................................................... 52
3.3 BALANÇO DO ESTUDO DO RITUAL............................................................... 54
3.4 EM BUSCA DO NOME: µΟλεκ..................................................................... 55
3.5 TOPHET ....................................................................................................... 57
3.6 OBJETO PESSOAL DO RITO ........................................................................... 60
EXCURSO: SACRIFÍCIO DE CRIANÇAS EM SITUAÇÃO DE CRISE: O CASO MOABITA .. 61
4 CULTO A MOLEK E DIVINDADES DE UGARIT: UMA
PERSPECTIVA COMPARATISTA ................................................................... 64
4.1 DIVINDADES CANANÉIAS............................................................................ 64
4.1.1 Introdução......................................................................................... 64
4.1.2 Listas divinas .................................................................................... 66
4.1.2.1 Tradução KTU 1.118 ...................................................................... 66
4.1.2.2 Tradução KTU 1.100 ...................................................................... 68
4.1.2.3 Comentários .................................................................................... 75
4.2 RITOS FUNERÁRIOS E ANTEPASSADOS REAIS: KTU 1.161 ........................... 82
EXCURSO: A JERUSALÉM JEBUSITA NO FINAL DA MONARQUIA ............................ 93
CONCLUSÃO ........................................................................................................ 99
BIBLIOGRAFIA.................................................................................................. 104
10
Abreviações
\t tradução
\v vocalização
1cs 1ª pessoa comum singular
1QGenAp Caverna 1Qumran, Gênesis Apócrifo
2mpl 2ª pessoa masculino plural
3cpl 3ª pessoa comum plural
3mpl 3ª pessoa masculino plural
3ms 3ª pessoa masculino singular
AD Anno Domini
BCE antes da Era Comum
BHS Bíblia Hebraica Stuttgartensia, conforme K. Ellinger, e W.
Rudolph, eds. Biblia Hebraica Stuttgartensia. 5a ed. Stuttgart:
Deutsche Bibelgesellschaft, 1997.
ca. circa
cf. conferir
D Intensivo Ativo, Piel
DN Nome Divino
Dp Intensivo Passivo, Pual
EA Cartas de Amarna, conforme William L. Moran, ed. The Amarna
Letters. Baltimore; London: The John Hopkins University Press,
1992.
ed. editor, edição
eds. editores
G Simples Ativo, Qal
GN Nome Geográfico
Gp Simples Passivo, Qal passivo
H Causativo Ativo, Hiphil
Heb. hebraico
Hp Causativo Passivo, Hophal
HtD Intensivo Reflexivo, Hithpael
11
inf.contr. infinitivo construto
KTU Textos ugaríticos alfabéticos, conforme Manfred Dietrich,
Oswald Loretz, e Joaquín Sanmartín, eds. The Cuneiform Alphabetic
Texts from Ugarit, Ras Ibn Hani and Other Places. 2a enlarged ed.
Münster: Ugarit-Verlag, 1995.
LXX Septuaginta, conforme Alfred Rahlfs. Septuaginta: id est Vetus
Testamentum graece iuxta LXX interpretes. Duo volumina in uno.
Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1979.
N Simples Reflexivo, Niphal
p. página
part. particípio
PE Preparatio Evangelica, conforme Harold W. Attridge, e Robert A.
Oden Jr., eds. Philo of Byblos, the Phoenician History: Introduction,
Critical Text, Translation, Notes, (The Catholic Biblical Quartely
Monograph Series 9). Washington: The Catholic Biblical
Association of America, 1981.
PN Nome Pessoal
pp. páginas
RS Ras-Shamra, número de excavação
v.g. verbi gratia
vol. volume
vols. volumes
*** Os nomes dos livros da Bíblia e a modo de citação seguiram a Bíblia de Jerusalém,
nova edição, revista e ampliada, São Paulo, Paulus, 2002.
*** Foi adotada a nomenclatura corrente da filologia semítica para os trocos verbais,
conforme está indicado na lista acima. A expressão “conjugação preformativa” indica o
imperfeito e “conjugação aformativa”, o perfeito.
*** As datas se referem ao período antes da Era Comum, salvo menção em contrário.
*** As citações, no corpo do texto, foram traduzidas livremente para o português.
12
Introdução
Qualquer estudo ambicioso sobre o sacrifício de humanos no corredor siro-
palestinense esbarraria em algumas sérias dificuldades. As fontes textuais da BHS, para
falar apenas neste conjunto literário, suscitam várias hipóteses conflitantes, distribuídas
em diversos gêneros.
A pesquisa vetero-testamentária, porém, reconhece um conjunto autônomo de
ocorrências textuais relacionadas expressamente ou implicitamente ao culto a µΟλεκ.
Trata-se de rituais com fogo envolvendo crianças (meninos e meninas, sem relação
aparente com a primogenitura). Estes ritos foram condenados pelo profetismo
(Jeremias e Ezequiel) como exemplos de sacrifícios de humanos – conhecidos por
arqueólogos na cultura púnica e relatados por fontes clássicas (Philo de Byblos,
preservado por Eusébio). O lugar cultual comumente apontado era Tophet, ou vale do
filho de Hinnom, nos subúrbios ao sul de Jerusalém.
A dissertação ambiciona investigar este culto, a partir das ocorrências no livro
de 2 Reis, segundo um método filológico. O primeiro capítulo formula uma
problematização e hipótese para guiar a pesquisa, além de revisar as principais teses da
literatura secundária. O segundo capítulo avalia as fontes disponíveis: arqueológicas,
textual clássica e BHS, e encerra identificando um conjunto de sintagmas as serem
estudados. O terceiro capítulo investiga cada sintagma para as fontes históricas de
2Reis. O último capítulo leva adiante o inquérito a partir de uma pesquisa comparativa,
com o estudo de três textos ugaríticos.
13
1 Prolegômenos
1.1 Problematização
Textos da historiografia deuteronomista fazem referência a práticas rituais com
o uso do fogo que foram identificadas com sacrifícios de humanos por uma parte
majoritária da pesquisa vetero-testamentária. Uma característica saliente nestes textos é
a diferenciação na terminologia. Vejamos, em uma primeira aproximação, duas
passagens:
2Rs 17,311 vaeêB' ‘~h,ynEB.-ta, ~ypiÛr>fo ~ywI©r>p;s.h;w>
qT'_r>T;-ta,w> zx;Þb.nI Wfï[' ~yWI±[;h'w> `Î~yIw")r>p;s.Ð ¿~yrIp;s.À Îyheîla/Ð
¿H;la/À%l,M,Þn:[]w:) %l,M,îr;d>a;l.
2 Rs 23,102 . yTiªl.bil. Î~NO=hi-!b, ygEåB.Ð ¿~NO=hi-ynEb.
ygEåB.À rv<ßa] tp,Toêh;-ta, aMeäjiw> `%l,Mo)l; vaeÞB' AT±Bi-ta,w AnõB.-ta, vyaiø
rybi’[]h;l O primeiro texto é um relato sobre a queda do Reino do Norte e o segundo,
sobre a reforma de Josias. A primeira diferenciação que chama a atenção é entre o uso
de ??' e o de ???, ambos verbos rituais com o fogo ('??). O primeiro verbo liga-
se às divindades ?????? e ?????, enquanto o segundo se refere a ???; mas a
despeito de nomes diferentes, é comum a raiz µλΚ.
Estamos autorizados a perguntar: a diferença de verbos expressa alguma
diferença de ritos ou deve ser explicada pela diferenciação geográfica, enquanto o
1 “E os Aveus fizeram Nibhaz e a Tartaq e os Sefarvim queimaram seus filhos no fogo para
Adrammelek e Anammelek, deuses dos Sefarvim”. 2 “E profanou a Tophet que [está] no vale do filho de Hinnom para não fazer-passar alguém o
filho-seu e a filha-sua no fogo para Molek”.
14
primeiro texto se refere a Israel, o segundo, a Judá? A ligação dos verbos aos nomes
divinos é contingente, isto é, seria possível encontrar o nome de ??? ligado ao rito
com ??'? O santuário ?????'?"?"????? é exclusivo dos ritos a ????
A raiz comum µΛλΚ permite concluir algum tipo de identidade entre as três
divindades apontadas? Por fim, estamos diante de relatos “reais” de sacrifícios de
humanos?
1.2 Revisão bibliográfica
1.2.1 Culto a Molek e ritos sacrificiais
Para a interpretação tradicional e majoritária, µΟλεκ é o nome de uma
divindade a quem eram queimadas crianças como sacrifícios. Este culto, praticado por
cananeus, fora incorporado pelos israelitas que o realizavam em ΤΟπετ, no vale do
filho de Hinnom em Jerusalém.3
Em 1935, O. Eissfeldt ofereceu outra interpretação. O termo µλΚ, existente em
fenício, não é um nome divino, mas um termo técnico para sacrifício, significando o
sacrifício ou sua vítima, mas não o destinatário (divindade recipiente) do sacrifício.
Eissfeldt baseou-se em estelas de colônias púnicas no Norte da África (como Cartago)
e em ilhas mediterrâneas do noroeste. Nelas há inscrições com os nomes das
divindades destinatária do sacrifício, como Baal-Hammon (o latino Saturno) ou Tanit,
ao mesmo tempo aparece µλΚ + em várias posições sintáticas.4
A terceira tese foi proposta por Weinfeld.5 O deus dos ritos seria Baal-Hadad,
chamado de rei. Mas o rito não envolve sacrifício realmente, nem queimação de
3 Philip C. Schmitz, "Topheth", in The Anchor Bible Dictionary, ed. David Noel Freedman, New
York: Doubleday, 1992. Comos representantes tradicionais vide Roland De Vaux, Instituições de
Israel no Antigo Testamento, São Paulo: Editora Teológica, 2003, pp.482ss, René Dussaud, Les
origines cananeénnes du sacrifice israélite, Paris: Éditions Ernest Leroux, 1921, pp.163ss. 4 Schmitz, "Topheth", p.896. 5 Infelizmente não tivemos acesso ao importante artigo de Moshe Weinfeld, "The Moloch
Cult in Israel and its background", in Proccedings of the Fifth World Congress of Jewish Studies,
Jerusalem1969, cuja tese conhecemos a partir das várias recensões; Rainer Albertz, A History of
15
crianças, mas a dedicação de crianças à divindade envolvendo fogo. O argumento de
Weinfeld é que os verbos usuais nas fontes legais e históricas não tem significado
sacrificial, por exemplo, νΤν “to give”, ηϖΒψρ “to cause to pass over”. Os verbos
com sentido sacrificial apenas apareceriam no escritos proféticos, ΩρΠ “to burn”,
ζΒΧΧξ “to sacrifice”, ΗξΤ “to slaughter”.6
Estas são as três teorias centrais, às quais se filiam os vários pesquisadores
interessados na matéria.
Albertz, assume a tese de Weinfeld,
“então o ‘culto a molek’ não involve sacrifício de crianças, ainda que a
polêmica profética e deuteronomista em parte podem indicar isto. Sacrifício
de crianças não são atestados, de qualquer modo, na Mesopotâmia, nem com
alguma certeza na Síria e Palestina. A única exceção é fornecida por alguns
assentamentos púnicos no norte da África, Sardenha e Sicília, mas aqui nós
temos um desenvolvimento especial que coloca questões embaraçosas. A frase
não polêmica ‘dar de sua semente para Molek’ (Lv 20,2,3,4; cf. 18,21) sugere a
entrega de crianças para uma divindade (cf. Ex 22,28b), e a inusual expressão
‘fazer filhos e filhas passar no fogo’ é mais apropriada para denotar um rito de
purificação no qual crianças eram dedicadas para a divindade. Assim, não há
sacrifício de crianças, mas uma dedicação religiosa de crianças”.7
Para Albertz, seguindo Weinfeld, a divindade por traz do nome µΟλεκ tem
natureza astral e se insere no quadro das divindades astrais que ingressaram em
Jerusalém sobre influência do império neo-assírio.
Israelite Religion in the Old Testament Period. From the Beginnings to the End of the Monarchy, vol. 1,
(The Old Testament Library), Louisville, Kentucky: Westminster/John Knox Press, 1994,
p.192. 6 Schmitz, "Topheth", p.896 7 Albertz, A History of Israelite Religion in the Old Testament Period. From the Beginnings to the End of
the Monarchy, p.193 Reservarmos para a dissertação a apresentação completa da argumentação
de Albertz.
16
Cogan desenvolveu sua pesquisa independentemente de Weinfeld e chegou ao
mesmo tempo em resultados em parte semelhantes. A tese de Cogan foi aludida acima
na apresentação da hipótese de trabalho: os rituais a µΟλεκ (que utilizam os verbos
rituais ?"? e ???) não envolvem sacrifícios de crianças, já os rituais com fogo,
expresso nas fontes com o verbo ??', são de origem cananéia e neles se praticavam
sacrifícios reais de crianças (de ambos os sexos). Esta diferenciação existe em fontes
legais (Levítico) e históricas (2Reis).8 Cogan observa, porém, que os rituais sacrificiais
também ocorriam em ΤΟπετ e a divindade recipiente possuía no nome a raiz µλΚ.9
Day não aceita a tese de Weinfeld. Divergindo do ponto central, Day aponta a
sinonímia ???=???, atestado em Ex 13,12.13. Day não coloca em dúvida o
testemunho das fontes proféticas (Jeremias e Ezequiel). Sustenta ainda que
“nós temos evidências independentes que sacrifício de crianças eram
praticados entre os cananeus (mundo cartaginês e fenício) a partir de muitas
fontes clássicas, inscrições púnicas e evidências arqueológicas, tal como em
relatos egípcios do ritual ocorrendo na Síria-Palestina e de uma inscrição
fenícia da Turquia recentemente descoberta”.10
A tese de Eissfeldt foi sustentada por Koehler e Baumgartner: ????? é um
termo técnico para uma espécie de sacrifício, tal como ???????, ??????.11
8 Para Weinfeld e Albertz a “confusão” entre os ritos já ocorre nas fontes históricas. 9 Morton Cogan, Imperialism and Religion: Assyria, Judah and Israel in the Eighth and Seventh
Centuries BCE, (Monograph Series 19), Montana: Society of Biblical Literature and Scholars
Press, 1974, pp.77ss. 10 John Day, Yahweh and the Gods and Goddesses of Canaan, Sheffield: Sheffield Academic Press,
2001, p.212. Igualmente, John Gray, "Molech, Moloch", in The Interpreter´s Dictionary of the Bible,
ed. George Arthur. Buttrick, New York; Nashville: Abingdon Press, 1962. 11 Ludwig Koehler e Walter Baumgartner, The Hebrew and Aramaic Lexicon of the Old Testament,
1a ed., Leiden, Boston, Köln: Brill, 2001, p.592. Outro que concorda com esta visão é H.-P.
Müller, "Malik", in Dictionary of Deities and Demons in the Bible, ed. Karel van der Toorn, Bob
Becking, e Pieter W. van der Horst, Leiden; Boston; Köln: Brill, 1999.
17
1.3 Hipótese da Pesquisa
O nome de ?????? aparece sempre com o verbo ritual ??? ou ?"?. É
marcante que estes verbos não apareçam ligados a outras divindades. Ocorre que há o ritual com fogo dirigido a outras divindades que utilizam
outros verbos rituais. Em Dt 12,31b (????"????"?????????????"?????????????????????????????'??)12, ritos com fogos e crianças a deuses cananeus foram
descritos com o verbo ??'. Vale lembrar a passagem de 2Rs 17,31, em que este verbo
aparece com outras divindades. Por fim, em Jr 19,5a (??????"?????"??????????????"??????????????????"??????'?? )13, para o verbo ritual ??' ligado ao
nome de ???. Esta última citação possui um interesse suplementar, porque somente em textos
do profetismo, são utilizados termos sacrificiais inequívocos: ??? (Jr 19,5), ??? (Ez
16,20).
Com base nestas ocorrências, o que pode ser afirmado? Talvez seja possível
afiançar que o rito a µΟλεκ, cujo rito era descrito necessariamente com ???, não
implicava o sacrifício de humanos (crianças). Esta tese foi sustentada por Weinfeld,
Albertz e Cogan.
Se concedemos que haja esta possibilidade de caracterizar o rito a µΟλεκ, não
aceitamos, todavia, quaisquer intenções apologéticas implícitas, uma vez que não se
pode negar que tenha existido outros rituais sacrificiais com crianças, como
testemunham os ritos com ??'. A hipótese, pois, a ser aprofundada é a da
possível existência de rituais distintos ou de sua identidade.
Outra hipótese a ser explorada diz respeito ao radical µλΚ. Encontramos
algumas divindades que repetem este radical: os já citados ?????? e ?????, além
de ???? (1Rs 11,5). É significativo que a existência das divindades µλΚ, com várias
vocalizações, sejam atestadas desde o 2º milênio (em Mari como
µιλΚυ, µιλΚι, µιλϑΚυ), encontrada em listas em acadiano do período babilônico,
12 “Atenção! Também seus filhos e suas filhas queimaram no fogo aos deuses-seus”. 13 “E contruíram altos de Baal para queimarem seus filhos no fogo do sacrifício a Baal”.
18
em Ugarit e na Fenícia.14 Aqui a hipótese é que estas divindades estejam
relacionadas com o mundo inferior, isto é, que sejam divindades ctônicas. O
culto ligado a essas divindades estariam associadas a práticas divinatórias.15
Ademais, o radical µΛλΚ expressa um vínculo com a monarquia e com o rei a ser
explicitado.
Resta ainda, a necessidade de se remeter a uma hipótese mais ampla, a fim de
situar o culto a µΟλεκ nos quadros do final da monarquia. Importa investigar a
hipótese de Herbert Donner.
Este importante historiador o período inaugurado com Acaz – o primeiro rei a
quem se atribui a prática do culto a µΟλεκ --, de “a crise assíria da religião israelita”.16
No que consiste esta crise?
“a afluência de divindades e cultos assírios estimulou o ‘cananeísmo’ e, por
conseguinte, também o processo de amálgama da religião de Javé com
elementos cananeus, que nunca havia cessado totalmente. Portanto, são
principalmente dois fatos que caracterizam a crise assíria da religião israelita: o
ataque efetivo contra a forma e a substância da religião de Javé e o estímulo da
crise latente do cananeísmo”.17
É preciso lançar mão desta hipótese mais ampla pelo menos por duas razões:
(1) cronologicamente, a referência ao culto a µΟλεκ se dá, nas fontes históricas, junto
com o período inaugurado com esta crise religiosa, e (2) porque a pergunta sobre a
identidade de µΟλεκ oscila entre a proposta que o identifica às divindades astrais ou às
divindades ctônicas, sendo necessário remeter a discussão para o sincretismo religioso
oficial que surgiu no final da monarquia durante a supremacia neo-assíria.
14 Schmitz, "Topheth", p.583. 15 Que isso se aplica ao culto a Molek é um dos poucos consensos na pesquisa. Vide, Schmitz,
"Topheth", e Cogan, Imperialism and Religion: Assyria, Judah and Israel in the Eighth and Seventh
Centuries BCE, p.77ss. 16 Herbert Donner, História de Israel e dos povos vizinhos. Da Época da Divisão do Reino até Alexandre
Magno, 2a ed., vol. 2, São Leopoldo/Rio de Janeiro: Sinodal/Vozes, 2000, capítulo 4. 17 Donner, História de Israel e dos povos vizinhos, p.386.
19
1.4 Delimitação da Pesquisa
O estudo exaustivo do culto a µΟλεκ exigiria a discussão de fontes legais
(Levítico, Êxodo), históricas (2 Reis), proféticas (Jeremias, Ezequiel, Isaías). Esta
simples enumeração denota uma complexidade, que não pode ser cumprida sem
temeridade segundo as exigências de uma dissertação de mestrado. Além disso, o
estudo dos vários relatos de sacrifício de humanos na BHS é uma empresa de
envergadura ainda maior.
Nossa proposta de delimitação é restringir-se apenas às fontes históricas. Estes
limites têm uma autonomia própria: permite colocar o problema da identidade ou
separação para dois ritos importantes (com o verbo ϖΒρ e com o verbo ΩρΠ), além
de perguntar pela comparação de µΟλεκ com outras divindades das culturas do
Levante.
1.5 Localização disciplinar
A dissertação localiza-se disciplinarmente no domínio da história da religião de
Israel. Isto não significa o abandono das críticas literária, da forma, do gênero e da
redação18. Porém estes instrumentos deixam de representar passos exegéticos
necessários e duvidosamente justapostos19 para se tornarem recursos à disposição do
historiador para a compreensão da cultura. Como pesquisa histórica, a dissertação não
discutirá as importantes implicações das conclusões para uma teologia do Antigo
Testamento.20
18 Vide Herbert Donner, História de Israel e dos povos vizinhos. Dos Primórdios até a Formação do
Estado, 2a ed., vol. 1, São Leopoldo/Rio de Janeiro: Sinodal/Vozes, 2000, p.22. 19 Vide desenvolvimento desta crítica em Rolf P. Knierim, "Criticism of Literary Features,
Form, Tradition and Redaction", in The Hebrew Bible and Its Modern Interpreters, ed. Douglas A.
Knight e Gene M. Tucker, Philadelphia: Fortress Press, 1985. 20 Rainer Albertz apresenta como competidores a pesquisa histórica e a pesquisa teológica.
Vide Albertz, A History of Israelite Religion in the Old Testament Period. From the Beginnings to the End
of the Monarchy, pp.16-17.
20
1.6 Observações Metodológicas
Um dos caminhos de investigação de história da religião que tem se revelado, há
tempo, muito frutífero é o estudo dos nomes próprios (nomes divinos, pessoais,
geográficos, epítetos etc.).21 Este estudo parece, em especial, apropriado em face de
fontes lacunosas mas que trazem algum nome e, por conseguinte, informações
preciosas encapsuladas. Além disso, é possível se apoiar nas reconstruções da filologia
para se tecer comparações entre as afinidades das divindades de culturas diferentes, em
épocas diversas. A filologia realiza, no nível da língua, as mediações necessárias para
estas comparações, cumprindo exigências epistemológicas.22
Assim, metodologicamente a pesquisa situou-se no nível filológico: o estudo
aprofundado, o quanto possível, dos nomes divinos, bem como de referências
ocasionais à onomástica e toponímia. Em razão desta opção, foi necessário dedicar um
grande espaço para as reconstruções, para a discussão das mudanças consonantais e
vocálicas a fim de justificar o eventual parentesco e a afinidade entre as divindades.
21 Vide os comentários em Jeffrey H. Tigay, You shall have no other gods: Israelite Religion in the
Light of Hebrew Inscriptions, (Harvard Semitic Studies 31), Atlanta, Georgia: Scholars Press, 1986,
capítulo 1; Frank L. Benz, Personal Names in the Phoenician and Punic Inscriptions: a catalog,
grammatical study and glossary of elements, (Studia Pohl 8: Dissertationes Scientificae de Rebus
Orientis Antiqui), Rome: Biblical Institute Press, 1972, capítulo1; J. J. M. Roberts, The Earliest
Semitic Pantheon: A Study of the Semitic Deities Attested in Mesopotamia before Ur III, Baltimore;
London: The John Hopkins University Press, 1972. 22 Sobre a importância do estudo dos nomes próprios e o futuro deste tipo de pesquisa, vide
também Patrick D. Miller, "Israelite Religion", in The Hebrew Bible and Its Modern Interpreters, ed.
Douglas A. Knight e Gene M. Tucker, Philadelphia: Fortress Press, 1985.
21
2 Estado das Fontes
2.1 Fontes Arqueológicas
A arqueologia do sacrifício de humanos relativa às culturas do Levante se
restringe quase exclusivamente às evidências púnicas. O caso mais citado é o tophet da
principal colônia fenícia, Cartago (fundada ca. 814-813 BCE). Não tivemos acesso,
porém, a nenhum relato direto sobre a escavação desta cidade. Vejamos um resumo
que se encontra em obras de referência:
“O ‘precinct’ de Cartago era uma área em ar-aberto cercada por um muro. O
tamanho era, de acordo com o escavador, L. E. Stager, no mínimo 5.000-
6.000 metros quadrados durante o quarto e terceiro séculos. O número de
urnas estimadas para o quarto e terceiro séculos foi previsto em cerca de
20.000. Ambos o tamanho do sítio e o número de urnas indicam que o uso do
sítio não foi esporádico. Stager demonstra com base em urnas escavadas que a
porcentagem de enterros de crianças não diminuíu com o tempo, antes, eles
aumentaram”. 23
Sobre este sítio, foi concluído que “o sítio Tanit de Cartago provou, quando
repetidamente escavado a partir do tempo de sua descoberta em 1922 e especialmente
em 1975-1978, que o rito persistia lá desde o século oitavo até o assalto final da cidade
pelos romanos em 146 BCE”.24
Vejamos alguns relatos de “primeira mão” que tivemos acesso.
(1) O relatório do achado arqueológico de urnas funerárias fenícias em Tiro no
ano de 1990.25 Trata-se de um artigo minucioso que descreve as urnas cinerárias, estelas
com inscrições e motivos fenícios, vasos votivos e os ossos humanos preservados no
interior das urnas. Uma passagem que merece ser destacada:
23 Mark S. Smith, The Early History of God: Yahweh and the Other Deities in Ancient Israel , 2a ed.,
Grand Rapids, Michigan/Cambridge, UK: William B. Eerdmans Publishing Company, 2002,
p.174. 24 Edward Lipinski, "The Phoenicians", in Civilization of the Ancient Near East, ed. Jack M.
Sasson, New York: Charles Scribner´s Sons, 1995, p.1328. 25 Helga Seeden, "A Tophet in Tyre?" Berytus XXXIX (1991).
22
“muitos pequenos exemplos de ossos cremados foram submetidos ao
Museum of London Archaeology Service para possível identificação, na
certeza que todos os fragmentos presentes eram de animais. Uma colega
especialista em ossos animais e eu mesma, especializada em ossos humanos,
os examinamos e consideramos que havia provavelmente ossos humanos
presentes e que somente um único fragmento podeira ser identificado como
possível animal”.26
Porém, a arqueóloga pondera que as conclusões são ainda provisórias.
(2) Primeiro relatório da descoberta da estela Incirli em 199327. A estela é uma
pedra de basalto, datada no 8º século BCE. Trata-se de uma pedra comemorativa da luta
por fronteiras territoriais entre os reis, erigida para demarcar território. “De particular
importância para a história cultural do Oriente Próximo Antigo foi a detalhada
discussão do uso de mulk-sacrifício de ovelhas, cavalos e – se nós lemos corretamente
– primogênitos humanos no processo de guerra, e a reação de deuses para aqueles
sacrifícios.”28 O relatório nota que, embora haja achados arqueológicos no universo
púnico sobre os sacrifícios de humanos, esta estela seria o primeiro documento
epigráfico na fenícia e não de suas colônias. Não é possível avançar em conclusões até
a publicação da transcrição da estela.
Com efeito, as evidências arqueológicas são muito escassas. Não se encontra na
Mesopotâmia, Israel, Judá, Transjordânia. As evidências fenícias são as únicas.
26 Seeden, "A Tophet in Tyre?" p.24. 27 Bruce Zuckerman, "The Incirli Stela: Its Digital and Photographic Recording",
http://www.humnet.ucla.edu/humnet/nelc/stelesite/zuck.html: acessado em 20 de
dezembro, 2003. 28 Zuckerman, "The Incirli Stela: Its Digital and Photographic Recording", summary of
results.
23
2.2 Fontes Textuais
2.2.1 Philo de Byblos
No primeiro livro do De Praeparatio evangelica [PE] de Eusébio de Cesaréia (circa
260-340 AD), foram preservados fragmentos do livro História dos Fenícios de Philo de
Byblos.29 Philo foi um dos vários eruditos do oriente próximo ativos no império
romano. Ele nasceu ca. 70 AD e morreu em 160.30
Philo afirma utilizar como fontes Taautos (outro nome para o egípcio Thoth) e
Sanchiniathon. 31 Taautos é equiparado ao deus Hermes, e é apresentado como o
29 A melhor edição crítica do livro de Eusébio é Karl Mras, ed., Die Praeparatio Evangelica, vol.
8, part I, (Eusebius Werke), Berlin: Akademie, 1954. Esta edição serviu de base para a de
Harold W. Attridge e Robert A. Oden Jr., eds., Philo of Byblos, the Phoenician History: Introduction,
Critical Text, Translation, Notes, (The Catholic Biblical Quartely Monograph Series 9),
Washington: The Catholic Biblical Association of America, 1981, que utilizaremos nesta
dissertação. Vale observar que Eusébio não menciona o título História dos Fenícios – atribuído
pela pesquisa acadêmica. 30 Albert I. Baumgarten, "Philo of Byblos", in The Anchor Bible Dictionary, ed. David Noel
Freedman, New York: Doubleday, 1992, p.342. Consultar esse artigo para a discussão da
intentio auctoris de Eusébio em citar Philo de Byblos. 31 Na PE 1.9.24, Eusébio cita Philo “Sanchuniathon, truly a man of great learning and
curiosity, who desired to learn from everyone about what happened from the first, when the
universe came into being, quite carefully searched out the works of Taautos. He did this since
he realized that Taautos was the first person under the sun who thought of the invention of
writing and who began to compose records, thereby laying the foundation, as it were, of
learning. The Egyptians call him Thouth and the Alexandrians Thoth and the Greeks
translated his name as Hermes”, in Attridge e Oden Jr., eds., Philo of Byblos, the Phoenician
History: Introduction, Critical Text, Translation, Notes, p.29. Vide também o testemunho
preservado em Porfírio (de abstinentia 2.56), “The Phoenincian history ... which Sanchuniathon
wrote in the Phoenician language and Philo of Byblos translated into Greek in eight books”,
in Attridge e Oden Jr., eds., Philo of Byblos, the Phoenician History: Introduction, Critical Text,
Translation, Notes, p.17.
24
inventor da escrita – as primeiras fontes para o historiador. Sanchiniathon teria vivido
antes da Guerra de Tróia.32
Eusébio preservou seis fragmentos do primeiro dos oito ou nove volumes da
História dos Fenícios. Os temas dos fragmentos cuidam: a) de cosmologia; b) das
invenções culturais; c) da história de Kronos; d) dos últimos governantes; e) do
sacrifício de humanos; f) serpentes.
Interessa diretamente à dissertação o fragmento da PE 1.10.44.
“Imediatamente após ele disse, ‘Entre os povos antigos em situações críticas
de perigo era costume para os regentes da cidade ou nação, mais do que
perder alguém, fornecer o mais adorado de seus filhos como sacrifício
propiciatório para as divindades iradas. A criança então oferecida era morta
segundo um ritual secreto. Assim Cronos, a quem os Fenícios chamam El,
que foi posteriormente divinizada após sua morte como a estrela de Cronos
tinha um único filho com uma noiva local chamada Anobret, e portanto eles o
chamabam Ieoud. Então quando graves perigos assolaram a terra, Cronos
vestiu seu filho com veste real, preparou um altar e o sacrificou’”.33
Esta breve passagem nos informa que o sacrifício de crianças era praticado em
situações de crise para apaziguar a raiva de divindades. O sacrifício não era público e
era responsabilidade da autoridade maior da cidade ou nação. O exemplo trazido é
mitológico: Kronos/El sacrifica seu filho (não nomeado) em uma situação de crise. A
vítima recebeu uma vestimenta real e foi morta sobre um altar.
32 PE 1.9.21 fine in Attridge e Oden Jr., eds., Philo of Byblos, the Phoenician History: Introduction,
Critical Text, Translation, Notes, p.21. 33 Attridge e Oden Jr., eds., Philo of Byblos, the Phoenician History: Introduction, Critical Text,
Translation, Notes, p.63.
25
2.2.2 Ugarit
O quadro da pesquisa das divindades cananéias apoiava-se substancialmente na
tradição preservada pela Patrística, a exemplo de Philo de Byblos. Mas este quadro se
alterou com a descoberta em 1929 dos textos da antiga υΓρΤ (∋υΓαρΙΤ).34
Não há no corpus ugarítico nenhuma referência ao culto a µΟλεκ. Mas será
necessário traduzir e comentar alguns textos alfabéticos, pois fazem referência a
divindades ctônicas e astrais que podem lançar iluminar várias questões levantadas pela
leitura das passagens do culto a µΟλεκ preservadas na BHS. A tradução de textos
ugaríticos, inéditos em português, é, a despeito das imperfeições inevitáveis, uma
contribuição da dissertação.
2.2.3 Bíblia Hebraica Stuttgartensia
2.2.3.1 Corpus Textual
As ocorrências textuais acerca do culto a µΟλεκ se reduzem a poucas frases.
Em primeiro lugar, buscamos as frases com a ocorrência do nome µΟλεκ, em seguida
organizamos estas frases em sintagmas e buscamos outras ocorrências com estes
sintagmas na BHS, ainda que não apresentassem o nome µΟλεκ.
Sem dúvida que ainda outros sintagmas poderiam ser propostos para abranger
casos de sacrifícios de humanos que não foram identificados por este procedimento.
Mas a pesquisa aumentaria demasiadamente em complexidade, desrespeitando os
limites factíveis de uma dissertação de mestrado. Assim, não entraram em discussão,
por exemplo, Gn 22,1-14; Jz 11,29-40; Sl 106,37.38; Ez 16,21.
34 Para as etapas da pesquisa sobre Ugarit, vide a reconstrução de Mark S. Smith, Untold Stories:
the Bible and Ugaritic Studies in the Twentieth Century, Peabody: Hendrickson Publishers, 2001.
Para uma discussão sobre o comparativismo, vide Wayne T. Pitard, "Voices from the Dust:
The Tablets from Ugarit and the Bible", in Mesopotamia and the Bible: comparative explorations, ed.
Mark W. Chavalas e K. Lawson Younger Jr., Grand Rapids, Mich.: Baker Academic, 2002 e
Mark W. Chavalas, "Assyriology and Biblical Studies: a Century of Tension", in Mesopotamia
and the Bible: comparative explorations, ed. Mark W. Chavalas e K. Lawson Younger Jr., Grand
Rapids, Mich.: Baker Academic, 2002.
26
As ocorrências do corpus textual são estereotipadas, como pode ser observado
nos sintagmas abaixo. O verbo ritual expressa a ação principal, uma metonímia do rito,
que ocorre em um local, conduzido por um sujeito, que destina o objeto pessoal a uma
divindade recipiente. Evitamos falar em “vítima”, pois seria um termo mais apropriado
caso os ritos fossem inequivocamente de natureza sacrificial, o que não é o caso e está
em discussão.
A organização dos sintagmas tem implícita um conceito de ritual e sacrifício.
Ainda é de grande validade para a pesquisa o artigo célebre de Hubert e Mauss, no qual
o sacrifício é definido como o “ato religioso que, pela consagração de uma vítima,
modifica o estado moral da pessoa que o realiza ou de certos objetos pelos quais ela se
interessa”.35 A definição elaborada na conclusão é “[sacrifício é um processo que]
consiste em estabelecer uma comunicação entre o mundo sagrado e o mundo profano
por intermédio de uma vítima, isto é, de uma coisa destruída no decurso da
cerimônia”.36 A unidade das múltiplas formas de sacrifícios (que possuem objetivos
específicos), não sua derivação de sacrifícios primitivos comuns, mas a mesma função.
Metodologicamente, as definições e a descrição do sacrifício de Mauss e Hubert não
são históricas no sentido de se referirem apenas a um conjunto específico de fontes,
mas também não são abstrações, uma vez que é uma generalização a partir de ritos
hindus e israelitas (Levítico). A importância do artigo, ao nosso ver, consiste em
explicar o sacrifício como um sistema com ritos de entrada e saída: sujeitos, objetos
ingressam, realizam a morte ritual da vítima (por ritos próprios) e se retiram do
sistema. Assim, uma série de dados dispersos nas fontes (lugar, tempo, grau
participação dos sujeitos, manipulação dos objetos) pode ganhar inteligibilidade em
razão de sua posição no sistema. O ritual é definido como conjunto de ações que criam
um hiato temporal à parte do tempo cotidiano.37
35 Henri Hubert e Marcel Mauss, "Ensaio sobre a natureza e a função do Sacrifício (1899)", in
Ensaios de Sociologia, ed. Marcel Mauss, São Paulo: Perspectiva, 1999, p.151 36 Hubert e Mauss, "Ensaio sobre a natureza e a função do Sacrifício (1899)", p.223 37 P. Smith, "Rite", in Dictionnaire de L´Ethnologie et de L´Anthropologie, ed. Pierre Bonte e Michel
Izard, (Quadrige/PUF), Paris: Presses Universitaires de France, 2000. Victor W. Turner, O
Processo Ritual: Estrutura e Antiestrutura, Petrópolis: Vozes, 1974, pp.13ss.
2.2.3.1.1 Sintagmas
Ocorrência Verbo Ritual
(H)
Divindade
Recipiente
Objeto pessoal do rito Local Sujeito do
rito
Nm 31,23 ??? + '??
??? + ????
lacuna ?????'??????
'??
'?????????'???
lacuna 2mpl
Dt 18,10 ??? (H.part) + '?? lacuna ?"?????? lacuna 2ms
2Rs 16,3 ??? + '?? lacuna ????"? lacuna 3ms
(Acaz)
2Rs 17,17 ??? + '?? lacuna ??????"
???"???"??
lacuna 3mpl
2Rs 21,6 ??? + '?? lacuna ????"? lacuna 3ms
(Manassés)
2Rs 23,10 ??? + '?? ???? ?"??"??????"? "?"??"?
???????????'?
'??
Jr 32,35 ??? ???? ??????"
???"???"??
????"????"?
????'?
??????
3mpl
28
Ocorrência Verbo Ritual
(G)
Divindade
Recipiente
Objeto pessoal do
rito
Local Sujeito do rito
Dt 12,31 ??' + '?? ??????? ??????"?
???"???"??
lacuna 3mpl
2Rs 17,31 ??' (G part.) + '?? ???????
??????
??????"? lacuna ???????
Jr 7,31 ??'? (G inf.constr.) + '?? lacuna ??????"?
???"???"??
"?"?"???
????'?
??????
3mpl
Jr 19,5 ??'? (G inf.constr) + '?? ???? ??????"? ????"????"? 3cpl
Ocorrência Verbo Ritual
G
Divindade
Recipiente
Objeto pessoal do rito Local Sujeito do rito
Lv 20,2 ?" ???? ??? lacuna ???'?????'??'??
2.2.3.1.2 Comentários
A primeira tabela é organizada pelo verbo ritual (H) '????? . A segunda,
pelo verbo ritual '????' , e a terceira, pelo verbo ritual ?"? . A partir destes
verbos, organizamos os demais sintagmas que possuem um padrão recorrente.
O primeiro verbo ritual é predominante quer no conjunto, quer nas perícopes
do livro de Reis (4 ocorrências). Aqui, a ocorrência de 2Rs 23,10 é a mais completa. No
livro de Reis, a única ocorrência com o segundo verbo ritual é 2Rs 17,31. Vale observar
que em Jeremias há ocorrências com os dois verbos rituais.
A citação do nome da divindade ???? é quase exclusividade das ocorrências
em Levítico (sempre com o verbo ?"? ), sendo citado ainda apenas em 2Rs 23,10 e Jr
32,35.
Consoante a delimitação proposta para a dissertação, nos concentraremos
apenas nas ocorrências do livro de Reis. O alvo da dissertação é situar o culto a µΟλεκ
e os sacrifícios de humanos nos quadros da crise religiosa do final da Monarquia. As
ocorrências em Levítico nos conduziriam a outro universo religioso, posterior a este
marco cronológico. Já as ocorrências em Jeremias, mereceriam uma discussão mais
detalhada. Ocorre que, ao fazê-lo, seria necessário discutir o espinhoso problema da
redação deuteronomista de Jeremias38, o que nos levaria a discussões redacionais que
aumentariam enormemente a complexidade da dissertação, desviando-nos de uma
pesquisa com ênfase histórica, razão pela qual também foram excluídas da dissertação,
exceto para ilustrar algum sintagma que ocorra nestas passagens de 2 Reis.
38 Rainer Albertz, A History of Israelite Religion in the Old Testament Period. From Exile to the
Maccabees, vol. 2, (The Old Testament Library), Louisville, Kentucky: Westminster/John Knox
Press, 1994, pp.382ss.
30
3 Culto a Molek e Sacrifício de Crianças: verbo ritual, divindade recipiente, localização e objeto pessoal
Estudaremos na seqüência os dois verbos rituais com ocorrência no livro de
Reis e suas perícopes. Em seguida, investigaremos os demais sintagmas: o nome divino
µΟλεκ, o local geográfico do culto e o objeto pessoal do ritos. Discussões de crítica
textual desenvolvemos no corpo da dissertação.
3.1 Ritual ϖΒρ Β∋Η
3.1.1 O rito em Israel
A única ocorrência do ritual ϖΒρ Β∋Η no Reino do Norte está em 2Rs 17,17.
Mas, está estabelecido na pesquisa, que se trata de uma passagem secundária.39 Faz
parte do juízo sobre a queda do Reino do Norte, após o evento. O texto de 2Rs 17 tem
uma redação complexa. O ritual em estudo faz parte da perícope de 2Rs 17,7-21.
Oportunamente discutiremos a ocorrência do outro ritual na perícope de 2Rs 17,24-41.
O vocabulário emula inteiramente textos do Reino do Sul, como veremos
quando cuidarmos deles. Vale frisar que o argumento redacional, por si só, não retiraria
a importância da passagem para a pesquisa. Ainda que fosse um texto tardio, poderia
refletir uma tradição ou, pelo menos, a prática contemporânea do rito. Mas a
informação redacional tem relevância histórica pois indica que a passagem não vem do
Norte. Há também um argumento histórico independente para recusar uma
proveniência do Norte: em nenhuma outra passagem, se menciona qualquer rei de
Israel que tenha praticado o rito.40
Assim, uma conclusão importante para a nossa investigação é que não há
nenhuma evidência do rito ϖΒρ Β∋φφΗ no reino de Israel.
39 Erik Eynikel, The Reform of King Josiah and the Composition of the Deuteronomistic History,
(Oudtestamentische Studiën XXXIII), Leiden; New York; Köln: Brill, 1996, p.91. 40 Mordechai Cogan e Hayim Tadmor, II Kings: a new translation with introduction and commentary,
1a ed., New York: Doubleday, 1988, p.205-206.
31
3.1.2 O rito em Judá: Acaz e Manassés
3.1.2.1 Tradução
a) 2Rs 16,1-4
%l:±m' Why"+l.m;r>-!B, xq;p,Þl. hn"ëv' hreäf.[,-[b;(v. ‘tn:v.Bi 1
`hd'(Why> %l,m,î ~t'ÞAy-!B, zx'îa'
1 No décimo sétimo ano de Peca, filho de Remalias/ se-tornou-rei Acaz, filho de Jotão, rei de Judá.
%l:ßm' hn"ëv' hreäf.[,-vvew> Akêl.m'B. zx'äa' ‘hn"v' ~yrIÜf.[,-!B, 2
dwIïd'K. wyh'Þla/ hw"ïhy> ynE±y[eB. rv'ªY"h; hf'ä['-alw> ~÷Il'_v'WryBi
`wybi(a' 2 De idade41 20 anos, Acaz, quando se tornou rei ele42, e dezesseis anos reinou em Jerusalém/ E não fez o reto aos olhos de Javé, seu Deus, como David seu pai.
vaeêB' rybiä[/h, ‘AnB.-ta, ~g:Üw> lae_r'f.yI ykeäl.m; %r,d,ÞB. %l,YE¨w: 3
ynEïB. ynEßP.mi ~t'êao ‘hw"hy> vyrIÜAh rv,’a] ~yIëAGh; ‘tAb[]to)K.
41 O nome ?? também introduz idade, vide Koehler e Baumgartner, The Hebrew and Aramaic
Lexicon of the Old Testament, p.138. 42 O termo ????? é um infinitivo construto com ?? que sintaticamente traduz-se por uma
oração temporal; o sufixo pronominal da 3ª pessoa masculino singular funciona como sujeito
da oração.
32
`lae(r'f.yI 3 E andou no caminho dos reis de Israel/ E também ao filho-seu passou no fogo, como abominações das nações, que desapossou43 Javé a elas de diante dos filhos de Israel.
#[eî-lK' tx;t;Þw> tA[+b'G>h;-l[;w> tAmßB'B; rJE±q;y>w: x;Beóz:y>w: 4
`!n")[]r; 4 E sacrificou e queimou-incenso nos altos e nos outeiros/ e debaixo de toda árvore cheia-de-folhas44.
b) 2Rs 21,1-7
‘vmex'w> ~yViÛmix]w: Akêl.m'b. hV,än:m. ‘hn"v' hreÛf.[, ~yTe’v.-!B, 1
`Hb'(-ycip.x, AMßai ~veîw> ~÷Il'_v'WryBi %l:ßm' hn"ëv'
1. De idade doze anos, Manassés, quando se tornou rei ele, e reinou cinqüenta e cinco anos reinou em Jerusalém/ E o nome de sua mãe, Hefzibá.
vyrIåAh ‘rv,a] ~yIëAGh; ‘tbo[]At)K. hw"+hy> ynEåy[eB. [r;Þh' f[;Y:ïw: 2
43 Raiz ????? no H conjugação aformativa. Tem o sentido de desapossar, vide Koehler e
Baumgartner, The Hebrew and Aramaic Lexicon of the Old Testament, p.441. 44 Koehler e Baumgartner, The Hebrew and Aramaic Lexicon of the Old Testament, p.1269 aponta o
sentido de “cheia-de-folhas”. Em português há a expressão correlata “frondosa”, adotada
correntemente nas traduções nacionais.
33
`lae(r'f.yI ynEïB. ynEßP.mi hw"ëhy> 2. E fez o mal aos olhos de Javé/ como as abominações das nações, que desapossou Javé a elas de diante dos filhos de Israel.
~q,Y"“w: wybi_a' WhY"åqiz>xi dB;Þai rv<ïa] tAmêB'h;-ta, ‘!b,YI’w: bv'Y"©w: 3
%l,m,ä ‘ba'x.a; hf'ª[' rv<åa]K; ‘hr'vea] f[;Y:Üw: l[;B;ªl; txoøB.z>mi
`~t'(ao dboß[]Y:w:) ~yIm;êV'h; ab'äc.-lk'l. ‘WxT;’v.YIw: laeêr'f.yI
3. E tornou e construiu os altos que fez-destruir Ezequias, seu pai/ E levantou altares para Baal, e fez Ashera tal como fizera Acabe, rei de Israel, e curvou-se a todo Exército dos Céus, e serviu a ele.
~÷Il;Þv'WryBi hw"ëhy> rm:åa' ‘rv,a] hw"+hy> tybeäB. txoßB.z>mi hn"ïb'W 4
`ymi(v.-ta, ~yfiîa' 4 E construiu altares na casa de Javé/ da qual Javé disse: em Jerusalém, porei meu nome.
tArïc.x; yTeÞv.Bi ~yIm"+V'h; ab'äc.-lk'l. tAxßB.z>mi !b,YIïw: 5
`hw")hy>-tyBe 5. E construiu altares a todo Exército dos Céus/ nas duas salas da casa de Javé
34
~ynI+[oD>yIw> bAaß hf'['îw> vxeênIw> !nEåA[w> vaeêB' ‘AnB.-ta, rybiÛ[/h,w> 6
`sy[i(k.h;l. hw"ßhy> ynEïy[eB. [r;²h' tAfï[]l; hB'ªr>hi
6. E fez-passar o filho -seu no fogo e interpretou-sinais-das-núvens45 e deu-predições-com-cobras46 e fez espírito-de-morto e necromancia47/ E deu-crescimento no fazer maldade aos olhos de Javé, para provocar-ira.
rm:Üa' rv,’a] tyIB;ªB; hf'_[' rv<åa] hr'Þvea]h' ls,P,î-ta, ~f,Y"¨w: 7
~÷Il;ªv'WrybiW hZ<÷h; tyIB;’B; Anëb. hmoålv.-la,w> ‘dwID'-la, ‘hw"hy>
ymiÞv.-ta, ~yfiîa' laeêr'f.yI yjeäb.vi ‘lKomi ‘yTir>x;’B' rv<Üa]
`~l'(A[l.
7. E pôs a imagem de Asherá que fizera/ na casa que disse Javé a David e a Salomão, seu filho: nesta casa e em Jerusálém, que escolhi de todas as tribos de Israel colocarei o meu nome para eternidade.
45 O verbo ??? está em um tronco raro, o poel. Trata-se de um verbo denominativo a partir
do nome ??? (“nuvem”). Uma tradução proposta para o verbo, neste tronco, é
“interpretation of signs”, Koehler e Baumgartner, The Hebrew and Aramaic Lexicon of the Old
Testament, pp.857-858. Nossa tradução pretendeu preservar a origem denominativa do verbo. 46 O verbo '?? está no tronco D e tem como tradução proposta “to give omens”, Koehler e
Baumgartner, The Hebrew and Aramaic Lexicon of the Old Testament, p.690. Aqui, também há uma
proximidade com o nome '?? (“cobra”), que era utilizada em práticas divinatórias, como
mostra o texto ugarítico que traduziremos mais abaixo. Nossa tradução pretendeu preservar
esta informação. 47 Estas duas palavras formam um sintagma e merecem uma discussão à parte.
35
3.1.2.2 Comentários
A persquisa das formas identificou o chamado Regnal Resumé (Abriss einer
königlichen Regierungeszeit) que introduz os reis de Judá e Israel. Esta forma é dividida em
duas partes: a) introdução e b) conclusão. A introdução (1) o nome do rei e o
sincronismo com a outra casa monárquica (até 722), (2) a idade de ascensão do rei
(apenas para os reis de Judá), (3) a duração do reinado, (4) o nome da rainha mãe
(apenas para os reis de Judá), (5) uma avaliação teológica estilizada. A conclusão que
indica (1) uma fórmula de citação, apontando para as fontes de informação, (2) notícia
da morte e enterro do rei, (3) notícia de sucessão.48
As duas perícopes acima traduzidas são exemplos das fórmulas de abertura. 2Rs
16,1 apresenta a nota sincrônica que define a data de ascensão ao trono (“No décimo
sétimo ano de Peca, filho de Remalias, se-tornou-rei Acaz, filho de Jotão”). O verbo
??????, G conjugação aformativa, é comumente traduzido por “reinar”, mas também
tem o sentido de “tornar-se rei”, mais apropriado aqui, pois indica a data da ascensão.49
A nota sincrônica não existe para Ezequias (725/728? – 697/700?), como não poderia
ser diferente com o fim do reino de Israel (722).
2Rs 16,2a indica a idade de ascensão, o tempo de duração do reinado em
Jerusalém. Mas não indica o nome da mãe de Acaz, como seria de se esperar para os
reis de Judá (inter alia 2Rs 8,26; 2Rs 14,2; 2Rs 15,2; 2Rs 15,33). 2Rs 21,1 é completo
para Manassés: a idade de ascensão, o tempo de duração do reinado em Jerusalém e o
nome de sua mãe.
Os versos seguintes apresentam o juízo teológico sobre o reinado e se trata do
canteiro de obras da pesquisa redacional. Não acompanharemos a discussão redacional
48 Vide lista das formas Burke O. Long, 2 Kings, (The Forms of the Old Testament literature
10), Grand Rapids, Mich.: Eerdmans, 1991, p.259. Vide ainda com algumas matizações
Eynikel, The Reform of King Josiah and the Composition of the Deuteronomistic History, pp.33, 102
passim. Vide também, o importante estudo, Martin Noth, The Deuteronomistic History, Sheffield:
Journal of Studies of Old Testament Press, 1981, passim. 49 Koehler e Baumgartner, The Hebrew and Aramaic Lexicon of the Old Testament, p.590.
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em sua minúcia, mas apenas anotaremos alguns resultados que interessam diretamente
à dissertação.
2Rs 16
2bα : ????????????????????'???????? (“E não fez o reto aos olhos de
Javé, seu Deus, como David, seu pai”). Esta fórmula é singular! A fórmula negativa
tem a forma ???????????????????????? (“E fez o mal aos olhos de Javé”) e é
utilizada para os reis de Israel. Apenas em três ocasiões é utilizada para os reis de Judá:
2Rs 8,18 (Jeorão), 2Rs 8,27 (Acazias) e 2Rs 21,2 (Manassés). Já fórmula positiva tem a
forma ?????????????????????????? (“E fez o reto aos olhos de Javé”), aplicável
comumente aos reis de Judá (inter alia 1Rs 15,11; 2Rs 14,3).
A fórmula negativa aplicada a Acaz é única. Uma explicação sugerida é de
assinalar a ruptura com os reis de Judá de maneira especial, com a negação da fórmula
positiva típica.50 Uma observação feita pelos estudiosos é que os ritos com ϖΒρ Β∋Η
apenas são citados a partir de Acaz. Esta observação deverá ser analisada também em
sede histórica, mas redacionalmente, está sugerida a singularidade de Acaz dentre os
reis de Judá.
3a: ???'????????????? (“E andou no caminho dos reis de
Israel”). Ocorreu em 2Rs 8,18 (Jeorão). Esta fórmula é similar à "?????????????, 2Rs 8,27 (Acazias).
O verso com o ritual que estamos estudando ocorre em 3b. Porém, é
fundamental destacar que é introduzido por ???, um dos indicadores mais usuais de
inserção redacional na história deuteronomista.51 A principal característica é que se trata
da formulação mais resumida, considerando os sintagmas. Compare-se com 2Rs 17,17;
2Rs 21,6; 2Rs 23,10.
Anotamos ainda a referência, na seqüência de outras práticas religiosas que
parecerão na Reforma de Josias (4).
A principal conclusão redacional de Eynikel é que os fragmentos 3b e 4aβ, 4b
são de estratos diferentes e posteriores do restante da perícope, sendo que a acusação
50 Eynikel, The Reform of King Josiah and the Composition of the Deuteronomistic History, p.105 nota
246. 51 Eynikel, The Reform of King Josiah and the Composition of the Deuteronomistic History, pp.272-273.
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da prática do rito com crianças e do culto debaixo das árvores têm a finalidade de
agravar o juízo que recai sobre Acaz.52
2Rs 21
2b: ????"???"? (“como as abominações das nações, que
desapossou Javé a elas de diante dos filhos de Israel”). Esta é uma expressão atribuída
ao redator deuteronomista pré-exílico. Ocorre também em 1Rs 14,24; 1Rs 21,26; 2Rs
17,8 dentre outras passagens. Trata-se de um termo abrangente para designar práticas
cultuais cananéias ligadas ao culto dos altos (???), que não eram anti-javistas em
textos pré-deuteronomistas (vide, v.g., 1Rs 3,2).
3, 5 e 7a: estão em relação intertextual clara com a Reforma de Josias, como
veremos oportunamente.
O verso com o ritual em estudo é 6aα: '?????"??????? (“E fez
passar o seu filho no fogo”). Observamos que, diferentemente de 2Rs 16,3b, não há
neste verso alguma termo que sugira quebra redacional, como o ???. Outra
característica importante é a informação contextual (“e interpretou-sinais-das-núvens e
deu-predições-com-cobras e fez espírito-de-morto e necromancia”), que aparece mutatis
mutandis em Dt 18,10; 2Rs 17,17 e 2Rs 23,24a(?). Vale anotar que este verso 6, Eynikel
propõe a datação no exílio.53
52 Eynikel, The Reform of King Josiah and the Composition of the Deuteronomistic History, p.106. 53 Eynikel, The Reform of King Josiah and the Composition of the Deuteronomistic History, p.114.
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