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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO ESCOLA DE COMUNICAÇÃO, EDUCAÇÃO E HUMANIDADES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO TIAGO ABDALLA TEIXEIRA NETO UM SER HUMANO EM ESPLENDOR É SEMELHANTE AOS ANIMAIS QUE PERECEM”: UMA ANÁLISE EXEGÉTICA DO SALMO 49 São Bernardo do Campo 2018

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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO

ESCOLA DE COMUNICAÇÃO, EDUCAÇÃO E HUMANIDADES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

TIAGO ABDALLA TEIXEIRA NETO

“UM SER HUMANO EM ESPLENDOR É SEMELHANTE AOS

ANIMAIS QUE PERECEM”: UMA ANÁLISE EXEGÉTICA DO

SALMO 49

São Bernardo do Campo

2018

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TIAGO ABDALLA TEIXEIRA NETO

“UM SER HUMANO EM ESPLENDOR É SEMELHANTE AOS

ANIMAIS QUE PERECEM”: UMA ANÁLISE EXEGÉTICA DO

SALMO 49

Dissertação apresentada em cumprimento dos

requisitos do Programa de Pós-Graduação em

Ciências da Religião da Universidade Metodista de

São Paulo, para obtenção do grau de Mestre.

Orientador: Dr. José Ademar Kaefer

São Bernardo do Campo

2018

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FICHA CATALOGRÁFICA

T235q

Teixeira Neto, Tiago Abdalla

“Um ser humano em esplendor é semelhante aos animais que perecem”: uma

análise exegética do Salmo 49/ Tiago Abdalla Teixeira Neto -- São Bernardo

do Campo, 2018.

165fl.

Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Universidade Metodista de

São Paulo - Escola de Comunicação, Educação e Humanidades Programa de

Pós-Graduação em Ciências da Religião São Bernardo do Campo.

Bibliografia.

Orientação de: José Ademar Kaefer

1. Bíblia – A.T. – Salmos – Período pós-exilio 2. Bíblia – A.T. –

Salmos – Critica e interpretação 3. Bíblia – A.T. – Literatura

sapiencial (Tradição) I. Título

CDD 223.206

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A dissertação de mestrado intitulada: “Um ser humano em esplendor é semelhante aos

animais que perecem”: uma análise exegética do Salmo 49, elaborada por Tiago Abdalla

Teixeira Neto, foi apresentada e aprovada com louvor (summa cum laude) em 3 de abril de

2018, perante banca examinadora composta por José Ademar Kaefer (Presidente/UMESP),

Edson de Faria Francisco (Titular/UMESP) e Matthias Grenzer (Titular/PUC-São Paulo).

__________________________________________

Prof. Dr. José Ademar Kaefer

Orientador e Presidente da Banca Examinadora

__________________________________________

Prof. Dr. Helmut Renders

Coordenador do Programa de Pós-Graduação

Programa: Pós-Graduação em Ciências da Religião

Área de Concentração: Linguagens da Religião

Linha de Pesquisa: Literatura e Religião do Mundo Bíblico

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Esta pesquisa foi realizada com o apoio da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior)

durante os anos de 2016 e 2017.

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AGRADECIMENTOS

A Deus, o Doador da vida e do sustento nesta breve jornada terrena.

À minha esposa Fabi, רעיתי יפה, que me deu suporte e incentivou durante todo o meu

tempo de pesquisa, proporcionando todas as condições necessárias para o estudo em um lar

que se aproxima do céu.

À Katharina, minha pequenina filha, “herança de YHWH”, que sempre aparece em

meu escritório para alegrar os momentos de estudo.

A meus pais, pelo carinho, apoio e por me ensinarem desde cedo as “Sagradas Letras”.

Ao Dr. José Ademar Kaefer, por me orientar pacientemente ao longo desta jornada de

pesquisa no Salmo 49, trazendo sempre contribuições, correções e me encorajando a seguir

adiante nas descobertas do texto bíblico.

Ao Dr. Edson de Faria Francisco, que tem sido sempre muito solícito em conversar

sobre aspectos do texto hebraico e de crítica textual e esclarecer minhas dúvidas.

Ao Dr. Matthias Grenzer, por suas preciosas contribuições e correções na leitura de

minha dissertação e na avaliação em minha banca de defesa.

Ao Dr. Tércio Siqueira Machado, que tem contribuído para minha formação na área

exegética, compartilhando suas descobertas na pesquisa do livro de Salmos.

À CAPES e à UMESP, que tornaram o sonho da pesquisa de mestrado uma realidade.

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RESUMO

O foco desta pesquisa concentra-se em uma antiga poesia sapiencial de Israel: o Salmo 49. No

capítulo 1, foram examinados aspectos de crítica textual e a integridade do TM, observando

que as variantes textuais das versões, como a LXX e a Héxapla, e de alguns manuscritos

hebraicos ocorreram por tentativas de tornar o texto mais claro e compreensível. Em seguida,

foram analisados os elementos literários e de coesão do salmo, observando vocábulos que se

repetem e uma estrutura literária bem desenvolvida. No capítulo 2, o conteúdo do Salmo 49

foi estudado mediante análise semântica e sintática. Constataram-se alguns temas dominantes:

o problema da confiança nas riquezas e a exploração social; a perspectiva de que a morte dará

fim à maldade dos ímpios, sem uma visão clara do além-túmulo; e a natureza sapiencial do

poema, revelando um salmista estudioso e apreciador da tradição de sabedoria do antigo Israel

ligado ao templo e aos levitas descendentes de Corá. Por fim, no capítulo 3, analisou-se o

chamado “consenso” de que o salmo é pós-exílico, observando que não há nada que torne

esse consenso irrefutável, sendo mais provável que o salmo tenha sido composto ainda na

época do primeiro templo, durante o reinado de Jeohaquim, momento em que imperava a

injustiça promovida pela elite palaciana, sacerdotal e de senhores de terra. O levita pobre

anuncia sua mensagem contra esse contexto em que impiedade e crises sociais dominavam o

cenário do Israel pré-exílico.

Palavras-chave: Salmo 49; Sheol; morte; conflito socioeconômico; tradição sapiencial.

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ABSTRACT

This research is focused on an ancient Israel’s sapiential poetry: the Psalm 49. In chapter 1,

aspects of textual criticism and integrity of the TM were investigated, noting that textual

variants from other versions, such as LXX and Hexapla, and from some Hebrew manuscripts,

occurred for attempts to make the text clearer and more comprehensible. Next, the literary and

cohesive aspects of the psalm were analyzed, observing repeated words and a well-developed

literary structure. In chapter 2, the researcher analyzed the content of Psalm 49 through

semantic and syntactic analysis. Some dominant themes were identified: the problem of trust

in wealth and social exploitation; the prospect that death will bring an end to the wickedness

of the evil ones, without a clear vision of the beyond-grave; and the sapiential nature of the

poem, revealing a scholar and appreciator of the ancient Israel’s wisdom connected with the

temple and a levite descending from Korah. Finally, in Chapter 3, we analyzed the so-called

“consensus” that the psalm is post-exilic, noting that there is nothing that makes this

irrefutable, and it is more likely that the psalm was composed even at the first temple period,

during the reign of Jehoaquim, when the injustice were promoted by the palace, priesthood

and land lords. The poor Levite announces his message against this context in which

wickedness and social crises dominated the scene of pre-exilic Israel.

Keywords: Psalm 49; Sheol; death; socioeconomic conflict; wisdom tradition.

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ABREVIATURAS DE OBRAS E PERIÓDICOS

Versões Bíblicas e Obras e Séries de Referência

ABC – Anchor Bible Commentary

ARA - Versão Almeida Revista e Atualizada

ARC – Versão Almeida Revista e Corrigida

A21 – Versão Almeida do Século 21

Ave Maria – Bíblia Ave Maria

BCBO - Biblioteca de Ciencias Biblicas e Orientales

BCOT - Baker Commentary on the Old Testament

BDB - The Brown-Driver-Briggs Hebrew and English lexicon

BRENTON - The Septuagint version of the Old Testament: English translation

BHK – Biblia Hebraica de Kittel

BHS - Biblia Hebraica Stuttgartensia

BJ – Bíblia de Jerusalém

CC – A Continental Commentary

ESV – English Standard Version

FOTL – Forms of the Old Testament Literature

HALOT - The Hebrew and Aramaic lexicon of the Old Testament

HCSB – The Holman Christian Standard Bible

JSOTS – Journal for the Study of the Old Testament Supplements

LEXHAM LXX - The Lexham English Septuagint

LXX – Septuaginta

LXXApp - The Old Testament in Greek: according to the Septuagint (Apparatus)

NA27

- Nestle-Aland 27th edition

NAC – New American Commentary

NEB – The New English Bible

NET Bible - The NET Bible

NIBC – New International Biblical Commentary

NICOT – The New International Commentary on the Old Testament

NVI – Nova Versão Internacional

NVT – Nova Versão Transformadora

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OTL – The Old Testament Library

OTG – Old Testament Guides

RSV – The Revised Standard Version

SVOTE - The Septuagint Version of the Old Testament: English translation

SVT – Supplements to Vetus Testamentum

THOTC – The Two Horizons Old Testament Commentary

TLOT - Theological lexicon of the Old Testament

TM – Texto Massorético

UBS4 - The Greek New Testament 4

th edition

WBC – Word Biblical Commentary

Periódicos

AUSS - Andrews University Seminary Studies

BAR – Biblical Archaeology Review

BASOR - Bulletin of the American Schools of Oriental Research

BBR - Bulletin for Biblical Research

BI – Biblical Interpretation

BR - Bible Review

BS - Bibliotheca Sacra

CBR - Currents in Biblical Research

IBS - Irish Biblical Studies

JBL - Journal of Biblical Literature

JBQ - Jewish Bible Quarterly

NEAS – Journal of Near Eastern Studies

JSBLE - Journal of the Society of Biblical Literature and Exegesis

JSOT – Journal for the Study of the Old Testament

RE – Review & Expositor

RIBLA – Revista de Interpretación Bíblica LatinoAmericana

TB - Tyndale Bulletin

TBT - The Bible Translator

VE - Verbum et Ecclesia

VT – Vetus Testamentum

ZAW - Zeitschrift für die Alttestamentliche Wissenschaft

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SUMÁRIO

Páginas

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 10

1. ANÁLISE TEXTUAL E LITERÁRIA DO SALMO 49 ............................................... ..15

1.1. Tradução Interlinear e Proposta de Tradução do Salmo 49.......................................15

1.1.1. Tradução Interlinear do Salmo 49 ............................................................. .......15

1.1.2. Proposta de Tradução do Salmo 49 .................................................................. 18

1.2. Análise de Crítica Textual do Salmo 49 .................................................................... 21

1.3. Análise Literária do Salmo 49 ................................................................................... 42

1.3.1. A Gattung do Salmo 49: Um Salmo de Sabedoria ........................................... 43

1.3.2. Estrutura do Salmo 49 ...................................................................................... 46

1.3.3. Coesão e Aspectos Retóricos do Salmo 49 ...................................................... 52

2. ANÁLISE DO CONTEÚDO DO SALMO 49 ................................................................ 57

2.1. Epígrafe do salmo (v. 1) ............................................................................................ 57

2.2. Introdução: convocação sapiencial (v. 2-5) ............................................................... 61

2.3. Estrofe I: A realidade da morte elimina o temor dos opositores que confiam em suas

riquezas (v. 6-12) .................................................................................................................. 80

2.4. Refrão: O homem em esplendor perecerá como os animais (v. 13) ........................ 102

2.5. Estrofe II: A realidade da morte e a confiança na redenção divina eliminam o temor

de alguém que se enriquece (v. 14-20) .................................................................... ...........106

2.6. Refrão: O homem em esplendor e sem entendimento perecerá como os animais (v.

21).......................................................................................................................................123

3. SABEDORIA, RIQUEZA E OPRESSÃO: O CONTEXTO HISTÓRICO-SOCIAL DO

SALMO 49 ............................................................................................................................. 125

3.1. O “consenso” da datação pós-exílica do Salmo 49: uma exposição

crítica...................................................................................................................................125

3.2. Salmo 49 como poesia sapiencial pré-exílica: redesenhando o processo

histórico...............................................................................................................................134

3.3. A vox pauperis e o quadro de conflito socioeconômico..........................................143

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 149

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA ........................................................................................ 152

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10

INTRODUÇÃO

Um antigo ditado latino, presente em relógios solares de várias igrejas barrocas

brasileiras, diz: “Vulnerant omnes, ultima necat” (“toda hora fere, a última mata”),1

lembrando que o ser humano é incapaz de fugir ou evitar a morte. Uma mensagem semelhante

também está presente na entrada da capela de ossos em Évora, Portugal, em que os restos

mortais dizem: “Os nossos ossos esperam pelos vossos”.

A morte é um tema de bastante reflexão em todas as culturas de todas as épocas. Não

há sociedade humana que não reflita a respeito da morte ou expresse reações de medo e temor

ou alegria e expectativa perante ela.2

A morte e a limitação que ela impõe a esta vida têm sido o foco de reflexão literária e

filosófica. O filósofo Sêneca dedicou um livro sobre a brevidade da vida,3 em que começa seu

ensaio com uma citação de Hipócrates, o pai da medicina:4 “Ars longa, vita brevis” (“A arte é

longa, a vida é breve”). A ideia central do que desejava comunicar é que a maioria dos

mortais demora muito tempo para adquirir e aperfeiçoar o conhecimento ou a habilidade, e

nós temos apenas pouco tempo para fazê-lo.5 Para Sêneca, o verdadeiro desafio do ser

humano não é somente a brevidade do tempo, mas também nossa tendência em desperdiçá-lo:

“Não temos exatamente uma vida curta, mas desperdiçamos uma grande parte dela. A vida, se

bem empregada, é suficientemente longa e nos foi dada com muita generosidade para a

realização de importantes tarefas”.6

Entretanto, a reflexão sobre a morte e a brevidade da vida não é uma característica

exclusiva da cultura greco-romana, ela também foi parte integrante da cultura do Antigo

Oriente Próximo: egípcios, mesopotâmicos, arameus, cananeus e israelitas pensaram acerca

da morte e o além.

No antigo Egito, o tema da morte como a partida, em que “a pessoa tem de deixar

para trás tudo o que possui” sem uma perspectiva pós-túmulo,7 é bastante enfatizado nas

1MIRANDA, 1999, p. 161.

2Ver MARTIN-ACHARD, 2015, p. 32ss. 3SÊNECA, 2006.

4SÊNECA, 2006, p. 25 (cf. nota 14).

5VANHOOZER, 2016, p. 89-90.

6SÊNECA, 2006, p. 26.

7ZANDEE, 1960, p. 55-6.

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11

canções dos harpistas, embora não representasse a visão religiosa tradicional:8 “Veja!

Ninguém tem a permissão de levar seus bens consigo. Veja! Não há ninguém que tenha ido e

retornado!”.9 Outro texto egípcio antigo, do segundo milênio A.E.C., chamado “Debate sobre

o suicídio”, um homem inicia um diálogo com sua alma e diz que as misérias desta vida

tornam o suicídio uma opção atrativa. No entanto, sua alma tem uma visão bem pessimista da

morte e não considera o suicídio uma solução razoável.10

O texto não tem seu fim preservado

e, por isso, não sabemos qual foi o resultado do diálogo.

Em uma das três tabuletas de Ras Shamra (coleção de textos do noroeste da Síria-

Canaã) que narram a história de Aqhat, o filho prometido pelo deus El a um homem chamado

Danel,11

ocorre a cena em que Anat (deusa da guerra e da caça), desejosa em obter as armas

de Aqhat, oferece ao herói o maior de todos os presentes: a imortalidade. No entanto, a

resposta do herói é surpreendente: ele rejeita a oferta da deusa, afirmando que, apesar de suas

promessas, “a morte o aguardava, assim como o faz com todo o mortal”.12

Esses exemplos revelam como a questão da morte fazia parte da reflexão literária e

filosófica do homem e da mulher do Antigo Oriente Próximo. Como parte de tal contexto

cultural, os antigos israelitas também pensaram bastante acerca da morte e de seu significado.

Segundo observou Gerhard von Rad, para Israel “o âmbito de morte atingia muito mais

profundamente a área dos vivos. Fraqueza, doença, prisão e emergência criada por inimigos já

constituíam em si uma espécie de morte”.13

O autor do Salmo 49, vivendo sob a opressão de ricos injustos e que não temiam a

YHWH, usou a temática da morte e da impossibilidade de o ser humano comprar a vida

eterna para confrontar a maldade dos poderosos e confortar os justos sofredores com a

proteção da vida deles por YHWH. Como “o homem é mestre em fazer-se ilusões, em fátuas

‘confianças’”,14

o salmista adverte os ímpios de seu tempo de que “o rico não é mais forte por

sua riqueza, o pobre não é mais fraco por sua pobreza. O túmulo é a casa comum de todos”,

onde os seres humanos se encontram na reta final de suas vidas.15

8FISCHER, 2002, p. 106-8.

9LICHTHEIM, 1945, p. 193.

10CRAIGIE, 1983, p. 329.

11COOGAN; SMITH, 2012, p. 27-8

12COOGAN; SMITH, 2012, p. 28-9.

13VON RAD, 2006, 376.

14ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 672.

15BORTOLINI, 2000, p. 207.

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12

O intuito desta dissertação é investigar a mensagem do Salmo 49 e o contexto em

que ela foi composta. Na análise hermenêutica do salmo, adota-se como abordagem básica o

modelo da exegese clássica, que envolve uma combinação eclética dos métodos diacrônico e

sincrônico.16

A abordagem diacrônica focaliza a origem e o desenvolvimento de um texto,

examinando os seguintes elementos: crítica textual, estudos sintáticos e semânticos e estudo

do ambiente histórico-cultural da produção do texto.17

Por outro lado, a abordagem

sincrônica se preocupa com a forma final do texto bíblico e investiga os elementos

relacionados à análise de seu gênero literário, à estrutura e coesão literária da passagem

bíblica e à crítica retórica do texto, bem como a relação da passagem com o contexto mais

amplo.18

Todos esses aspectos serão examinados ao longo dos capítulos 1 a 3 deste trabalho.

Em cada capítulo, este pesquisador buscará lidar com um/uma problema/pergunta central e

respondê-lo/a de forma exegética.

No primeiro capítulo, a pergunta que o norteará será a seguinte: Qual é o texto do

Salmo 49 e de que modo funcionam sua estrutura, aspectos retóricos e coesão?

Antes de perguntar: “O que o texto significa?”, é necessário indagar: “Qual é o

texto?”. Isso demanda uma análise da passagem usando os critérios da crítica textual. A

ciência da crítica textual é fundamental para a interpretação da passagem bíblica desta

dissertação, em especial para que se consiga discernir o texto produzido antes que o processo

de cópia e preservação dele gerasse alterações.19

Além disso, o Salmo 49 deve ser estudado conforme a identificação de sua

Gattung,20

uma forma de classificação literária21

que agrupa unidades poéticas identificadas e

associadas por características distintivas de forma, estilo e conteúdo.22

A Gattung possibilita

observar características literárias, temas e aspectos em comum do Salmo 49 com outros

16

GORMAN, 2001, p. 7-31. 17

SIMIAN-YOFRE et al., 2015, p. 77-114; GORMAN, 2001, p. 15-7. 18

GORMAN, 2001, p. 12-3. 19TOV, 2017, p. 20Por Gattung entende-se a classificação do “tipo literário” de um salmo, que é identificado por “características

formais, estilo, modo de composição, [e] terminologia” (MUILENBURG, Introduction, in: GUNKEL, 1967, p.

v). Claus Westermann identifica sete principais Gattungen: salmo de lamento comunitário, salmo de lamento do

indivíduo, salmo de louvor declarativo da comunidade, salmo de louvor declarativo do indivíduo, salmo de

louvor descritivo, salmo litúrgico e salmo de sabedoria (WESTERMANN, 1980, p. 25-8). 21Ver GUNKEL, 1967. 22BARTH, 1966, p. 13.

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13

salmos que pertencem ao mesmo “tipo literário”, bem como auxilia na identificação do

ambiente de vida em que o texto foi produzido.23

O texto do Salmo 49 também apresenta estrutura, coesão e aspectos retóricos que

precisam ser examinados antes da análise de seu/sua conteúdo/mensagem. O estudo da

estrutura e da coesão literária contribuirá na percepção de como o discurso está construído

como uma unidade e de que modo as partes interagem entre si e esclarecem umas as outras.24

A crítica retórica implica a busca pelo entendimento dos recursos e estratégias literárias

empregados no texto para persuadir ou influenciar o leitor e embelezar o texto, bem como dos

objetivos ou efeitos gerais desses elementos retóricos.25

A questão central que guiará o capítulo 2 é: O que a análise de conteúdo do Salmo

49 (especialmente a análise sintática e semântica) revela sobre a mensagem desse hino a

respeito da morte e dos conflitos sociais em que o autor vivia? Para compreender a

perspectiva do salmista, é necessário investigar o salmo como um todo, visto que “qualquer

interpretação feita de uma parte do mesmo texto poderá ser aceita se for confirmada por outra

parte do mesmo texto, e deverá ser rejeitada se a contradisser”.26

Como bem observou Osborne, a sintaxe contribui para “elucidar o desenvolvimento

e significado” do enunciado como um todo, não apenas de uma de suas partes.27

O estudo

sintático analisa o relacionamento das palavras em uma locução, oração ou período,

observando a ordem em que foram organizadas e suas prováveis funções em uma passagem,28

tendo em mente a cadeia textual em que estão inseridas.

...sintaxe é a disposição de palavras de maneira a formarem locuções, orações ou

períodos. É um ramo da gramática.

Dificilmente uma palavra isolada transmite uma ideia completa. Como os tijolos de

uma construção, as palavras são elementos isolados que juntos formam frases, que

são unidades elementares do pensamento.29

Associado ao aspecto estrutural da sintaxe poética está o recurso literário do

paralelismo, em que duas ou três declarações são justapostas.30

Entender a dinâmica do

23BELLINGER, 2012, p. 18 24Embora Zenger e Hossfeld vejam duas camadas em tensão no Salmo 49 (ZENGER; HOSSFELD, 1993, p. 299-

301), a hipótese inicial é de uma coesão mais clara no salmo e sua produção por um único autor. A “Análise

Literária do Salmo 49” avaliará melhor a hipótese deste pesquisador. 25

GORMAN, 2001, p. 13. 26

ECO, 2012, p. 76. 27OSBORNE, 2009, p. 140-1. 28

WILLIAMS, 1976, p. 3. 29

ZUCK, 1994, p. 135. 30

CHISHOLM, 2016, p. 176.

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14

paralelismo hebraico na poesia do Salmo 49 contribuirá bastante para o entendimento da

intentio operis a ser analisada.31

A análise semântica envolverá o exame de palavras-chave do Salmo 49, observando

as ocorrências delas — sua distribuição (e.g., usos na literatura de sabedoria ou hínica) e os

grupos sintáticos relacionados a ela (e.g., preferência por uma determinada preposição ou

verbo) —, organizando os dados e classificando-os conforme os sentidos primários,

secundários e metafóricos.32

Léxicos de referência33

e concordâncias são as fontes primárias

dessa pesquisa.

Por fim, a pergunta principal do capítulo 3 será: Qual é o contexto histórico do

Salmo 49 à luz dos dados coletados na investigação textual, na análise literária e no

estudo do conteúdo do salmo? Ou seja, em que ambiente do antigo Israel o texto do Salmo

49, com seu conteúdo e modo de refletir a respeito da vida, poderia ter sido produzido?

Como a religião bíblica se desenrola ao longo da história, é fundamental que o

intérprete investigue a sociedade e a cultura em que o texto foi produzido para ter condições

de “entendê-lo”, não apenas “usá-lo”; isso implica pesquisar os aspectos geográficos,

políticos, econômicos, religiosos entre outros do antigo Israel.34

O estudo do ambiente

histórico-cultural do Salmo 49 será o foco de parte do capítulo 3, em que se avaliará o

chamado “consenso” de que esse Salmo 49 é pós-exílico. Além disso, será desenvolvida uma

investigação sobre a possibilidade de ele pertencer ao contexto de vida do Israel pré-exílico.

Com essas perguntas e observações em mente, dá-se início à pesquisa exegética do

Salmo 49 delineada nesta introdução.

31

Ver ALTER, 2011. 32

OSBORNE, 2009, p. 125. 33

Léxicos de referência para o hebraico bíblico são: BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977; KOEHLER;

BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2000; CLINES, 1993-2011; ALONSO SCHÖKEL, 2004. 34

OSBORNE, 2009, p. 198-209.

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15

1. ANÁLISE TEXTUAL E LITERÁRIA DO SALMO 49

Neste primeiro capítulo, será desenvolvida uma análise textual do Salmo 49 com

base no aparato crítico da BHS e no estudo realizado por eruditos textuais. Essa análise servirá

de fundamento, juntamente com o estudo sintático mais adiante, para a tradução do texto

hebraico do Salmo 49 apresentada no início deste capítulo. Não há como saber “o que o texto

significa”, sem antes definir “qual é o texto” a ser analisado. Por isso, a crítica textual é

importante. Em seguida, serão analisados aspectos literários centrais: a Gattung35 do salmo,

sua estrutura e coesão e os aspectos retóricos do texto.

1.1. Tradução Interlinear e Proposta de Tradução do Salmo 49

A seguir, elabora-se uma tradução interlinear do Texto Massorético (TM) do Salmo

49 e, com base nela, bem como em aspectos sintáticos e em reconstruções textuais, o autor

apresentará uma proposta de tradução por equivalência formal da mesma passagem.

1.1.1. Tradução Interlinear do Salmo 49

1 למנצח לבני־קרח מזמור

um salmo36

concernente aos filhos de Corá ao dirigente37

נוהאזי כל־ישבי חלד 2 שמעו־זאת כל־העמים

mundo todos os habitantes de dai ouvidos todos os povos escutai isto

35

Conforme explicado na introdução, por Gattung entende-se a classificação do “tipo literário” de um salmo, que

é identificado por “características formais, estilo, modo de composição, [e] terminologia” (MUILENBURG,

James, Introduction, in: GUNKEL, 1967, p. v). Outa definição útil de é a de Cristoph Barth: “Por ‘categoria

formal’ (Gattung) os eruditos bíblicos [...] se referem a um grupo de passagens inteiras de poesia ou prosa que

podem ser identificadas como estando associadas por características distintivas de forma, estilo e conteúdo”

(BARTH, 1966, p. 13). Claus Westermann identifica sete principais Gattungen: salmo de lamento comunitário,

salmo de lamento do indivíduo, salmo de louvor declarativo da comunidade, salmo de louvor declarativo do

indivíduo, salmo de louvor descritivo, salmo litúrgico e salmo de sabedoria (WESTERMANN, 1980, p. 25-8). 36

Para essa tradução do termo מזמור, ver KIRST, 2004, p. 121; HOLLADAY; KÖHLER, 2000, p. 189;

SWANSON, 1997, verbete 4660 (edição eletrônica). 37 verbo, particípio, piel, masculino, singular. Para a tradução deste verbo no particípio por “dirigente”, ver - נצח

BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 664 (itálico acrescentado): “ח ,nos títulos de salmos tem למנצ

provavelmente, um sentido semelhante de dirigente musical ou regente de coro”. Ver apoio para essa

compreensão do termo em HOLLADAY; KÖHLER, 2000, p. 244; GESENIUS; KAUTZSCH; COWLEY, 2003.

p. 562.

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16

3 גם־בני אדם גם־בני־איש יחד עשיר ואביון

e pobre rico juntos também filhos de homem ser humano também filhos de

4 פי ידבר חכמות והגות לבי תבונות

entendimento38

do meu coração e a meditação sabedoria39

falará a minha boca

5 אטה למשל אזני אפתח בכנור חידתי

o meu enigma com cítara exporei o meu ouvido a um provérbio inclinarei

6 למה אירא בימי רע עון עקבי יסובני

me cercará os meus calcanhares maldade de mau dias de temerei por que

7 הבטחים על־חילם וברב עשרם יתהללו

gloriam-se a riquezas deles e na abundância de na40

posse deles os que confiam

8 אח לא־פדה יפדה איש לא־יתן לאלהים

para ’ não dará homem redimirá não redimir irmão

כפרו

o pagamento expiatório41

dele

9 ויקר פדיון נפשם וחדל לעולם

para sempre e cessará a vida deles o resgate de e é valioso42

38

Esse é um uso do plural para substantivos abstratos, cujo equivalente na tradução em português é a forma

singular do termo. Ver PINTO, 1998. p. 14; ROSS, 2009, p. 399; GESENIUS; KAUTZSCH; COWLEY, 1910,

p. 397, §124.d, e. 39

Esse é um uso do plural para substantivos abstratos, cujo equivalente na tradução em português é a forma

singular do termo. Ver GESENIUS; KAUTZSCH; COWLEY, 1910, p. 397, §124.d, e; PINTO, 1998, p. 14;

ROSS, 2009, p. 399. 40

Ver BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 752-3, uso II.1. 41

Sobre a tradução, ver discussão sobre o sentido do termo em “Análise do conteúdo do Salmo 49”. 42

KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 431-2.

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17

10 ויחי־עוד לנצח לא יראה השחת

a sepultura43

verá não para sempre para que44

viva ainda

11 כי יראה חכמים ימותו יחד כסיל ובער

e bruto insensato juntos morrerão os sábios verá certamente

יאבדו ועזבו לאחרים חילם

a posse deles para outros e deixarão perecerão

12 קרבם בתימו לעולם משכנתם לדר ודר

de geração e geração as suas habitações para sempre as suas casas seu pensamento íntimo45

קראו בשמותם עלי אדמות

terras sobre com seus nomes invocaram

13 ואדם ביקר בל־ילין נמשל כבהמות נדמו

perecerão aos animais é semelhante não permanece46

em esplendor mas ser humano

14 זה דרכם כסל למו ואחריהם בפיהם ירצו סלה

selá têm prazer na sua boca e seus seguidores para eles tolice o caminho deles este

ירדוו בם 15 כצאן לשאול שתו מות ירעם

sobre47

eles e dominarão os pastoreará morte dirigem-se48

para sheol como rebanho

43

KIRST et al, 2004. p. 249; KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 1473. 44

Para esse uso final (indicando propósito) do verbo no jussivo + waw consecutivo subordinado a uma oração

com verbo no imperfeito, ver MITCHELL, 1915, p. 87-90; KEIL; DELITZSCH, 1996, v. 5, p. 351; GESENIUS;

KAUTZSCH; COWLEY, 1910, p. 322, §109.f; NET Bible, 2005, Psalm 49.9, translator note 14. 45

KEIL; DELITZSCH, 1996. v. 5. p. 351; HOLLADAY; KÖHLER, 2000, p. 324 (cf. Gn 18.12; Sl 5.10[9];

62.5[4]; 64.7[6]; Jr 4.14). 46

BROWN, DRIVER, BRIGGS, 1977, p. 533. 47

Ver esse uso da preposição ב com o verbo רדה em BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 922 (cf. os seguintes

texto bíblicos: Gn 1.26,28; Ne 9.28). 48

Ver GOLDINGAY, 2006, v. 1, Psalm 49, nota 10 da tradução do Salmo 49 (edição kindle).

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18

ישרים לבקר וצירם לבלות שאול מזבל לו

para ele de mansão o sheol para engolir e a forma deles na manhã justos

ני סלה ך־אלהיםא יפדה נפשי מיד־שאול כי יקח 16

selá me tomará certamente da mão do sheol minha vida redimirá mas49

י־ירבהכ כבוד ביתו 17 אל־תירא כי־יעשר איש

a casa dele glória de se aumentar homem se multiplicar as riquezas não temas

מותוב יקח הכל לא־ירד אחריו כבודו 18 כי לא

a glória dele atrás dele não descerá o todo tomará na morte dele não certamente

19 כי־נפשו בחייו יברך ויודך כי־תיטיב לך

para ti pois vai bem e te louvam [ele] congratulasse: em suas vidas embora50

sua alma

20 תבוא עד־דור אבותיו עד־נצח לא יראו־אור

verão luz não para sempre os pais dele até a geração de ela irá

21 ואדם ביקר ולאיבין נמשל כבהמות נדמו

perecerão aos animais é semelhante e não entende em esplendor e ser humano

1.1.2. Proposta de Tradução do Salmo 49

Apresentamos a seguir uma tradução por equivalência formal de Salmo 49:51

49. 1Para o dirigente de música,

52 um salmo

53 concernente aos coraítas.

49

Ver KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 45. 50

Para o uso concessivo de כי, ver a discussão da análise do conteúdo de Salmo 49.19. Cf. também WILLIAMS,

1976, p. 73, 88, §448, 530; PINTO, 1998, p. 144, 19.64. 51

Várias decisões de tradução aqui são fruto da discussão ao longo da exegese contida nos dois primeiros

capítulos. 52

Ver BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 664: “ח nos títulos de salmos tem, provavelmente, um sentido למנצ

semelhante de dirigente de música ou regente de coro” (itálico acrescentado). Ver apoio para essa compreensão

do termo em HOLLADAY; KÖHLER, 2000, p. 244; GESENIUS, 2003, p. 562.

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19

2Escutai isto, todos os povos!

Dai ouvidos, todos os habitantes do mundo!

3Sim, seres humanos, [todas as] pessoas;

54

seja55

rico, seja pobre.

4Minha boca falará sabedoria,

56

e a meditação do meu coração [transmitirá]57

entendimento.58

5Inclinarei

59 a um provérbio o meu ouvido,

exporei60

com a cítara61

meu enigma.

6Por que temerei os dias maus,

[quando] a maldade dos que me atacam por trás62

me cercar?

7Os que confiam em suas posses

E na abundância de seus bens se gloriam.

8Um ser humano

63 não redimirá de modo algum [seu] irmão.

Não dará a Deus um substituto expiatório64

por ele

9(Pois é valioso

65 o resgate

66 da vida deles;

E cessará67

para sempre.)

10Para que

68 viva continuamente para sempre

69

53

KIRST et al, 2004, p. 121; HOLLADAY; KÖHLER, 2000, p. 189; SWANSON, 1997, verbete 4660 (edição

eletrônica); KIDNER, 1980, p. 51. 54

Para a tradução desse verseto, ver a análise de conteúdo do versículo 3. 55

Para essa tradução de יחד, ver BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 403. 56

Esse é um uso do plural para substantivos abstratos; ver PINTO, 1998, p. 14; ROSS, 2009, p. 399. 57

O verbo aqui é pressuposto por elipse; ver comentário do versículo 4. 58

Esse é um uso do plural para substantivos abstratos; ver PINTO, 1998, p. 14; ROSS, 2009, p. 399. 59

KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 693. 60

Para essa tradução de פתח, ver ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 552; BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p.

835. O verbo pode ter o sentido de “falar” ou “declarar”, especialmente quando é acompanhado do substantivo

.Cf. KIDNER, 1980, p. 203 .(boca”; cf. Ez 21.27; Jó 3.1; Dn 10.16; Sl 38.14“) פה61

Ver KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 484. 62

Ver discussão sobre essa opção de tradução na análise exegética do versículo 6. 63

Ver esse sentido amplo de איש em Jó 38.26; cf. KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM,

1994-2001, p. 48. 64

Sobre a tradução, ver discussão sobre o sentido do termo em “Análise do conteúdo do Salmo 49”. 65

O uso do verbo יקר no pretérito (wayyiqtol) tem função parentética (insere uma nota explicativa ou um

comentário), como ocorre em outras passagens da Bíblia Hebraica (1Rs 13.4; 1Cr 11.6; cf. CHISHOLM, 2016,

p. 151-2). 66

KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 913. 67

O perfeito com waw consecutivo tem aspecto futuro (ver MERWE; NAUDÉ; KROEZE, 1999, p. 168, §21.3

[edição eletrônica]). Merwe, Naudé e Kroeze observam que a acentuação na última sílaba indica um perfeito + ו

consecutivo (ver também ROSS, 2009, p. 143-4). 68

Para esse uso final (indicando propósito) do verbo no jussivo + waw consecutivo subordinado a uma oração

com verbo no imperfeito, ver EWALD, 1870, p. 231, §347; KEIL; DELITZSCH, 1996, v. 5, p. 351;

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20

E não veja a sepultura.

11Certamente, verá que os sábios morrem,

70

Insensato e bruto juntos são destruídos71

E deixam para outros suas posses.

12Seu pensamento íntimo

72 [é que] suas casas são eternas,

E suas habitações, de geração em geração.

Aclamam seus nomes sobre as terras.

13Mas um ser humano em esplendor

73 não permanece,

É semelhante aos animais [que] perecem.

14Este é o caminho daqueles [cuja] tola confiança [é] para si,

Mas seus seguidores têm prazer no que eles dizem. Selá.

15Como rebanho dirigem-se

74 para o Sheol,

Morte os pastoreará.

De manhã, os justos dominarão sobre75 eles.

O Sheol engolirá suas formas,76

Longe da77 mansão dele.

16Mas

78 Deus redimirá minha vida do poder

79 do Sheol,

GESENIUS; KAUTZSCH; COWLEY, 1910, p. 322, §109.f; NET Bible, 2005, Psalm 49.9, translator note 14.

Cf. também a discussão no capítulo 2 sobre o versículo 9. 69

O termo hebraico עוד indica continuidade, por isso, nossa tradução: “continuamente” (cf. ALONSO

SCHÖKEL, 2004, p. 481; KEIL; DELITZSCH, 1996. v. 5. p. 351; ver o único outro exemplo da Bíblia Hebraica

em que עוד e לנצח [“para sempre”] são empregados juntos em Jr 50.39, mas ali são precedidos pelo advérbio לא). 70

O imperfeito do verbo מות aqui tem a função de indicar uma ação que pode ocorrer repetidamente em qualquer

momento e que é conhecida pela experiência humana (GESENIUS; KAUTZSCH; COWLEY, 1910, p. 315-6,

§107.g). 71

Para essa tradução do imperfeito de אבד, ver GESENIUS; KAUTZSCH; COWLEY, 1910, p. 315-6, §107.g e

nota anterior. 72

Para a tradução de קרבם por “seu pensamento íntimo”, veja as ocorrências de קרב em Gn 18.12; Sl 5.10[9];

62.5[4]; 64.7[6]; Jr 4.14. Na antepenúltima referência (Sl 62.5), há claramente um contraste entre o ato da “boca”

dos homens falsos de “abençoar” e o “pensamento interior deles” (קרבם), que “amaldiçoa”. Em Jr 4.14, é no קרב

que estão presentes os “maus pensamentos” (מחשבותאונך). Cf. COPPES, Leonard J., קרב, in: HARRIS; ARCHER

Jr.; WALTKE, 1999, p. 813; HOLLADAY; KÖHLER, 2000, p. 324; KOEHLER; BAUMGARTNER;

RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 1135, sentido 2. 73

Ver o uso do termo com esse sentido em Jr 20.5; Ez 22.25 (cf. PLEINS, 1996, p. 20-1). 74

Ver esse sentido de direção em GOLDINGAY, 2006, psalm 49, nota 10 da tradução do Salmo 49 (edição

kindle); KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, 1485, exemplo 7c. 75

Ver esse uso de da preposição ב com o verbo רדה em BDB, p. 922 (cf. os seguintes texto bíblicos: Gn 1.26,28;

Ne 9.28). 76Ver também ALTER, 2007, p. 174. 77A preposição מין em מזבל é plenamente compreensível em sua nuance privativa: “longe de”, “fora de” (NET

Bible, 2005, Psalm 49.14, translator note 32; BRIGGS, 1906, p. 414). 78

Ver KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 45. 79

Para o sentido abstrato de “poder” do termo, ver DAHOOD, 1965, p. 301.

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21

Certamente me tomará. Selá.

17Não temas se um homem alcançar riquezas,

80

Se aumentar a glória de sua casa.

18Certamente não tomará tudo [consigo] em sua morte,

Não descerá atrás dele sua glória.

19Embora em sua vida ele se

81 congratulasse:

“E es te ouva , pois as coisas vão be contigo”.

20Ele

82 irá até a geração de seus pais;

Não verão a luz para sempre.

21Pois um ser humano em esplendor

83 não entende,

É semelhante aos animais que perecem.

1.2. Análise de Crítica Textual do Salmo 49

A ciência da crítica textual é fundamental para a interpretação da passagem bíblica

em análise nesta dissertação, em especial para que se consiga discernir o texto produzido

antes que o processo de cópia e preservação dele gerasse alterações. Antes de perguntarmos:

“O que significa este texto”, devemos perguntar: “Qual é o texto?”, o que demanda a

investigação da história de transmissão da Bíblia Hebraica, ler e avaliar as várias testemunhas

textuais (TM, LXX, Vulgata Latina, Peshitta, etc.)84

e orientar-se segundo os cânones de

crítica textual que esclarecem as práticas dos antigos escribas.85

A BHS indica em seu aparato crítico 43 problemas textuais no Salmo 49,86

muitos

deles envolvem diferenças entre as versões, e poucos problemas consistem em tentativas de

mera reconstrução de H. Bardtke, editor do livro de Salmos da BHS. Segundo Leo G. Perdue,

o “estabelecimento do texto hebraico” do Salmo 49 é “um difícil problema devido ao grande

80

Ver esse sentido do verbo עשר no grau hifil em KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM,

1994-2001, p. 897. 81

Para essa tradução de נפש com o sentido de pronome pessoal ou pronome reflexivo, ver WOLFF, 2008, p. 52-5.

Quanto à defesa de נפש como sujeito deste verbo, ver a seção de análise de crítica textual mais adiante. 82

O sujeito aqui é entendido como o substantivo feminino נפש do versículo 19 (ver NET Bible, 2005, Psalm

49.19, translator note 42). 83

Ver o uso do termo com esse sentido em Jr 20.5; Ez 22.25 (cf. PLEINS, 1996, p. 20-1) 84

Uma ferramenta bibliográfica fundamental para a compreensão do processo de transmissão textual das versões

e para a leitura do aparato crítico usada neste trabalho é FRANCISCO, 2008. 85

TOV, 2017, p. 1-2; CHISHOLM, 2016, p. 23-5. Ver STUART, 2009, p. 6-7, 35-8. 86

ELLIGER; RUDOLPH (eds.), 1997, p. 1130-1.

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22

número de variantes nas principais tradições textuais”.87

Assim, dedicamos a análise a seguir

à grande maioria desses problemas em busca da leitura mais próxima do texto hebraico

original do Salmo 49.

No versículo 2, o aparato indica que um manuscrito [Ms] traz חדל (forma vocalizada

,”cessação“ ,חדל88

“região/domínio dos mortos”89

) em vez do termo חלד (“mundo”; “tempo de

vida”).90

O fato de a L trazer (“terra habitada”; “mundo”),91

e a Vulgata, orbis

(“território”, “região”;92

“mundo”93

), ambas apoiando a leitura do TM, sugere que a diferença

em um único manuscrito ocorreu por metátese, um erro de cópia que consiste na troca da

posição de fonemas ou sílabas de um vocábulo — ou seja, por descuido, o copista inverteu a

ordem das letras ד e ל.94

No versículo 4, há dois problemas textuais relacionados ao texto hebraico da

Héxapla de Orígenes ( εβρʹ).95

A segunda coluna da Héxapla com a transliteração do

hebraico em caracteres gregos,96

cujo propósito era auxiliar o leitor na pronúncia do texto

hebraico,97

traz αχα ωθ, o equivalente a חכמות, em vez de חכמות do TM. A distinção é

pequena e não afeta significativamente a leitura do termo, que em ambos os casos teria o

sentido de “sabedoria”. A vocalização proposta por Orígenes (חכמות) seria, segundo Dahood, a

forma plural do substantivo (“sabedoria”).98

Quanto à pontuação do TM (חכמות), Dahood

entende ser uma forma fenícia singular equivalente ao termo do hebraico clássico.99

Entretanto, é provável que חכמות seja uma forma plural posterior de no hebraico bíblico

(cf. Pv 1.20; 9.; Eclo 4.11),100

funcionando como um plural de intensidade101

ou um plural

para substantivos abstratos.102

87

PERDUE, 1974, p. 533. Ver também a mesma observação em DECLAISSÉ-WALFORD; JACOBSON;

TANNER, 2014. p. 441. 88

BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 293. 89

HOLLADAY; KÖHLER, 2000, p. 96. 90

KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 316. 91

ARNDT; DANKER; BAUER, 2000, p. 699. 92

WHITAKER, 2012, verbete orbis. 93

HARDEN, 1921, p. 83. 94

Ver mais informações e exemplos relacionados à metátese em BROTZMAN; TULLY, 2016, cap. 6 (edição

kindle). Tov resume a metátese como “a transposição de duas letras adjecentes” (TOV, 2017, p. 236). 95

Quanto à abreviatura da Héxapla no aparato crítico, ver FRANCISCO, 2008, p. 73. 96

BROTZMAN; TULLY, 2016, cap. 4 (edição kindle); KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON;

STAMM, 1994-2001, p. 314. 97

WÜRTHWEIN, 1995, p. 57, nota 25. 98

DAHOOD, 1965. p. 297. 99

DAHOOD, 1965, p. 296-7. Essa leitura singular de um termo cujo final se parece com o sufixo plural de

substantivos femininos lembra a forma singular do termo hebraico (“irmã”). 100

KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 314-5.

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23

Também na segunda coluna da Héxapla, há uma variante textual relacionada ao

hapax legomenon103

do TM. O texto hebraico transliterado em grego na (”meditação“) הגות

obra de Orígenes consta αγιθ, que, segundo a BHK,104

implica a reconstrução והגית, pois o

antigo sistema de transliteração grega da Héxapla usava omicron-upsilon ( ) para representar

o ו em início de palavras.105

No entanto, essa variante não tem correspondente em hebraico ou

aramaico bíblicos, sendo extremamente improvável como leitura do texto original.

Dahood106

também apresenta uma proposta de leitura, que implica mudança sutil na

pontuação massorética, alterando a vogal longa: והגות (“meditação”), um substantivo, passa a

ser lido como והגות (“falar”),107

uma raiz verbal hebraica no modo infinitivo absoluto. Em vez

de “e a meditação do meu coração [transmitirá] entendimento”, ele lê “e meu coração

proclamará entendimento”. O problema com essa repontuação das vogais é que ela não tem o

apoio do TM nem das principais versões, como a L ( ε , “meditação”, “estudo”)108

e a

Vulgata (meditatio, “meditação”, “contemplação”).109

O próprio Dahood admite que a forma

infinitiva da raiz verbal com ת no final é incomum, pois o normal seria הגו ou הגה. Assim, não

há razão alguma para seguir essa reconstrução e deve-se manter a leitura massorética.

101

GOLDINGAY, 2006, psalm 49, nota 1; KEIL; DELITZSCH, , 1996, v. 5. p. 349; ALONSO ALONSO

SCHÖKEL; CARNITI, 1996, v. 1. p. 666. Embora Gesenius defenda que a forma חכמות é singular, ele apresenta

uma série de exemplos úteis para a compreensão do plural de intensidade em GESENIUS; KAUTZSCH;

COWLEY, 1910, p. 397-8, §124.e. 102

BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 315. Ver outros exemplos do uso do plural para substantivos abstratos

em PINTO, 1998, p. 14; ROSS, 2009, p. 399. 103

Tanto o BDB quanto o HALOT confirmam a única ocorrência do termo na Bíblia Hebraica (ver KOEHLER;

BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 238; BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 212) 104

KITTEL, Rudolph (ed.). Biblia Hebraica. Leipzig: J.C. Hinrichs, 1906. v. 2. p. 944. 105

Aqui sou devedor do auxílio do Prof. Edson de Faria Francisco, que, em uma mensagem pessoal, esclareceu a

reconstrução da transliteração grega para o hebraico e chamou a atenção para a ajuda fornecida no aparato da

BHK (FRANCISCO, 2017). Em relação à correspondência entre ו e , Prof. Edson F. Francisco observa:

“Joüon-Muraoka [...] estabelecem que a pronúncia da letra ו é como w (como em inglês) (JOÜON; MURAOKA,

2009. p. 20).

Gesenius estabelece também que a pronúncia da letra ו é como w (u) (p. 26). Ele diz, ainda, que a letra ו é de

natureza vocálica, podendo ser transcrita como u (GESENIUS; KAUTZSCH; COWLEY, 1910, p. 26, n. 1).

Sáenz-Badillos menciona que a letraו, em início de palavra, é transcrita em inscrições gregas, como a Héxapla,

como omicron-upsilon ( ) (SÁENZ-BADILLOS, 1996,p. 85).

Então, na época da Héxapla, a transcrição da variante hipotética והגות do Salmo 49.4 seria algo como αγιθ. Isto

é, a conjunção waw era transcrita em letras gregas como . Isto indicaria que a primitiva pronúncia da letra ו da

época da Héxapla seria algo como o som de w (inglês) e não como v.” 106

DAHOOD, 1965, p. 297. 107

Observe-se que essa proposta não é original de Dahood, pois Briggs já mencionava a possibilidade de leitura

do infinitivo construto do mesmo verbo (ver BRIGGS, 1906, p. 412). 108

ARNDT; DANKER; BAUER, 2000, p. 625. Ver também a tradução inglesa de Salmo 48[49].3[4] da LXX de

BRENTON: “and the meditation of my heart…” [e a meditação de meu coração] (itálico acrescentado). 109

WHITAKER, 2012, verbete meditatio.

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No versículo 6, há, novamente, dois problemas textuais relacionados com a

transliteração grega do texto hebraico na Héxapla de Orígenes ( εβρʹ). No primeiro problema

indicado pelo aparato da BHS, em vez de עקבי (lit. “os meus calcanhares” = “os que me

atacam por trás”),110

a segunda coluna da Héxapla traz ββαε ,111

que, de acordo com

Bardtke, resultaria na forma hebraica עקבי (lit. “os meus enganosos”112

= “os meus

enganadores”). Em seguida, o editor de Salmos da BHS propõe (prp) a leitura עקבי (“meus

traidores”; ou “os caluniadores”) e tem o apoio de alguns comentaristas.113

Na primeira opção, עקבי significaria “os meus enganadores”, ou seja, “aqueles que

me enganam”, uma junção do adjetivo עקב (“enganoso”, “astuto”, traiçoeiro; “tortuoso” [Is

40.4])114

+ o sufixo pronominal da 1ª. pessoa do singular (י ). Jeremias 17.9 chama o

“coração” (לב) de עקב (“enganoso, ardiloso”). Pessoas falsas ou traiçoeiras seriam o tipo de

gente que perseguiria o justo sofredor.

Na opção de Bardtke, עקבי significaria “os que me enganam/traem”, um particípio

ativo עקבים (“os que traem”, “enganam”; “os que pegam o calcanhar” [Os 12.4])115

+ o sufixo

pronominal da 1ª. pessoa do singular (י ). Essa raiz verbal descreve a atitude característica de

Jacó, como alguém que “enganou” (ויעקבני) Esaú duas vezes (Gn 27.36), bem como a postura

geral entre parentes na época de Jeremias, em que “todo irmão só age deslealmente” (כל־אח

Dahood propôs essa última opção de leitura do hebraico, mas traduzindo .(Jr 9.3[4]) (עקוביעקב

o particípio por “os difamadores”/“os caluniadores”, com base no ugarítico.116

Entretanto,

essa interpretação tem sido contestada por não se basear em um exemplo claro do sentido da

raiz verbal ‘qb em ugarítico, que tem o significado mais comum de “impedir”, “segurar”.117

Embora a revocalização proposta por Bardtke na BHS não demande alteração das

consoantes do texto do TM e faça bastante sentido aqui,118

é melhor propor uma tradução que

mantenha o texto hebraico majoritário עקבי (dos meus calcanhares [relação genitiva]), que é

110

Ver a tradução interlinear e a discussão na análise de conteúdo do versículo 6. 111

FIELD, 1875, v. 2, p. 170. 112

Na tradução proposta aqui, lê-se o termo como plural de עקב (“enganoso”, “tortuoso”), cuja forma feminina

demanda uma redução idêntica à do plural com SPP nas vogais do radical (cp. עקבי e עקבה; ver ALONSO

SCHÖKEL, 2004, p. 514; KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 873). 113

E.g., CRAIGIE, 1983, p. 357; DAHOOD, 1965, p. 297. A segunda opção de tradução do mesmo termo

hebraico é uma opção apresentada por Dahood com base no ugarítico e entendendo que o SPP da 1ª. Pessoa do

singular tem ênfase de artigo ou de pronome demonstrativo. 114

KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 873. 115

HOLLADAY; KÖHLER, 2000, p. 281; GESENIUS, 2003, 649. 116

DAHOOD, 1965, p. 297. 117

CRAIGIE, 1983, p. 319. 118

É a opção de VanGemeren e de Craigie (ver VANGEMEREN, 1991, p. 368; CRAIGIE, 1983, p. 356-7).

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basicamente seguido tanto pela LXX ( ῆς π ρ ς , “do meu calcanhar”) quanto pela

Vulgata (calcanei mei, “meu calcanhar”), embora ambas traduzam o termo no singular, em

vez de no plural (como no TM).119

Há dois problemas textuais e algumas questões sintáticas na primeira parte do dístico

do versículo 8 que têm levado estudiosos a debaterem sobre a reconstituição do texto e sua

tradução. Bardtke observa que poucos manuscritos hebraicos (pc Mss — entre 3 a 10)120

trazem אך (“certamente”, “de fato”; “entretanto”, “porém”), em vez de אח (“irmão”;

“companheiro”; “compatriota”), e propõe que se leia conforme a variante textual, bem como

se repontue יפדה ([ele] redimirá [3ª. pessoa masculino singular do qal]) para דהיפ ([ele] se

redimirá121

[3ª. pessoa masculino singular do nifal]).122

Muitos estudiosos têm seguido essa

proposta.123

Na primeira questão textual, o argumento para se modificar אח para אך é que a

estrutura comum não é אח [...] איש (“irmão [...] homem”), mas אח [...] אח (“irmão [...] irmão”)

ou איש [...] איש (“homem [...] homem”),124

além de não ser comum ter אח no começo do

verso.125

Ademais, embora o uso do infinitivo absoluto com função enfática já esteja presente

no verseto, há evidência do uso de ךא precedendo verbos infinitivos absolutos com função

adverbial (Gn 44.28; cf. 27.30).126

Em tese, a razão para a modificação inserida no TM e

seguida pela LXX e Vulgata se deveria a um erro de audição ou homofonia, visto que ambas

as palavras têm pronúncia bem semelhante.127

Quanto à modificação de יפדה (qal) para יפדה (nifal) com sentido reflexivo, ela

demanda uma pequena alteração vocálica em uma língua escrita apenas com consoantes,128

e

119

KRAUS, 1993. p. 730; GOULDER, 1982, p. 185-6. Ver a tentativa de tradução de Alonso Schökel e Carniti:

“quando me cercam para derrubar-me criminosos” (ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 664, 666). 120

FRANCISCO, 2008, p. 86. Segundo Kraus, o número exato aqui são oito manuscritos (KRAUS, 1993, p. 730) 121

Para esse sentido reflexivo do nifal, ver KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-

2001, p. 912. 122

ELLIGER; RUDOLPH, 1997. p. 1131. 123

Ver KRAUS, 1993, p. 729-30; TESH, 1999, p. 354; CRAIGIE, 1983, p. 357; VANGEMEREN, 1991, p. 369-

70; ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 664, 666. 124

CRAIGIE, 1983, p. 357. 125

VANGEMEREN, 1991, p. 369. 126

GESENIUS; KAUTZSCH; COWLEY, 1910, p. 342, §113.n. 127

Para explicação e exemplos desse tipo de erro, ver SIMIAN-YOFRE et al., 2015; ARCHER, 1994.

BROTZMAN; TULLY, 2016, cap. 6 [edição kindle] afirmam: “... há [...] alguns erros na transmissão do texto do

Antigo Testamento que são, evidentemente, originados não em problemas de visão e cópia, mas de audição e

cópia. Ao que tudo indica, ao menos em algumas ocasiões, os escribas hebreus produziam suas cópias com base

na leitura em voz alta de um manuscrito feita por outra pessoa”. 128

Sobre esse tipo de erro com vogais, ver ARCHER, 1994, p. 63.

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é uma decorrência lógica da ausência de objeto direto no caso da reconstrução de אח para

.אך129

Alguns propõem a manutenção de אח, mas o interpretam como uma exclamação:

“Meu Deus!”130

ou “Hum!”.131

Enquanto Dahood segue a mudança na raiz verbal פדה para o

nifal com sentido reflexivo, Goldingay prefere mantê-la de acordo com o TM, interpretando

como objeto do verbo e “riqueza” como sujeito implícito, conforme o contexto do איש

versículo 7.

Apesar dessas possibilidades de leitura, deve-se observar que as evidências externas

favorecem, antes de tudo, a leitura do Texto Massorético (talvez com emenda em פדה); a

leitura da LXX diz (às vezes confusa):132

δε φὸς ὐ ρ ῦ αι· ρώσε αι ἄ θρωπ ς (“um

irmão não redime; um homem redimirá?”).133

A Vulgata apresenta a seguinte tradução do

hebraico: frater non redimit redimet homo (“um irmão não redime, um homem redimirá?”).

Ambas as versões entendem que o primeiro termo hebraico é אח ( δε φὸς; frater),134

não o

advérbio אך (“certamente”) da emenda textual que segue poucos manuscritos hebraicos. A

Vulgata segue a leitura do TM ao manter os dois verbos ativos,135

e a L usa um verbo

( ρ ω) que só aparece na voz média e passiva na literatura clássica, na LXX e no Novo

Testamento,136

tendo força ativa em várias ocorrências da LXX.

A evidência interna também corrobora a leitura do TM. Conforme Goulder observou

acertadamente:

Contudo, אך é a leitura mais fácil; Kraus apenas diz que ela deve ser lida, sem dar

explicação alguma sobre como uma leitura אח passou a existir. É essa ‘facilidade’

que pode explicar a vario lectio: os oito manuscritos poderiam não ver também

sentido em אח. A história da interpretação do salmo é uma lição objetiva dos perigos

129

ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 664, 666; KRAUS, 1993, p. 729-30; VANGEMEREN, 1991, p.

369. 130

DAHOOD, 1965, p. 298: “A inclinação moderna em formar interjeições com base em palavras expressando

relacionamento de sangue (e.g., o italiano mamma mia, literalmente ‘Minha mãe!’, uma exclamação de surpresa

ou medo) tem análogos bíblicos em ’ , ‘meu Deus’, que ocorre em Ezequiel vi 11, xxi 20”. 131

GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição kindle). Ele fundamenta sua escolha na interjeição indicada em

BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 25. 132

Compare, por exemplo, duas versões de tradução da LXX para o inglês: (1) “A brother is not redeemed. Will

a person redeem?” [“Um irmão não é redimido. Uma pessoa será redimida?] (BRANNAN, 2012); (2) “A brother

does not redeem, shall a man redeem?” [Um irmão não redime, deve um homem redimir?] (tradução da LXX de

BRENTON). 133

Para a tradução na voz ativa do verbo grego na voz média seguimos o léxico de LUST; EYNIKEL;

HAUSPIE, 2003, verbete ρ ω (edição eletrônica): “regatar por um pagamento de resgate, redimir [...];

libertar (vida, alma)”. 134

KIDNER, 1980, p. 204, nota 15. 135

Ver análise morfológica em WHITAKER, 2012, verbetes redimit, redimet. 136

ARNDT; DANKER; BAUER, 2000, p. 482.

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da preferência por leituras convenientes e do tratamento dos pontos vocálicos

tradicionais como uma questão sem importância.137

As regras ou cânones de crítica textual são muito claros e amplamente aceitos: lectio

difficilior praestat facilior — uma leitura mais difícil prevalece sobre uma mais fácil.

“Sempre é mais explicável que o escriba ou tradutor tenha procurado simplificar um texto que

causava dificuldade, visando fazê-lo mais compreensível ou mais claro aos leitores”.138

Portanto, quando estudiosos argumentam, sem apoio da evidência externa, contra a leitura do

TM porque ela é “problemática”139

ou porque não é uma “expressão idiomática comum”,140

na verdade, revelam a “mente de um escriba” na confecção da emenda textual: “a tendência

dos escribas em simplificar e esclarecer os textos que estavam copiando com muito mais

frequência do que os teriam tornado mais difíceis”.141

Portanto, seguimos a lectio difficilior do TM, que tem o apoio da LXX e da Vulgata,

considerando o objeto do verbo o primeiro termo do verseto: יפדהאיש um ser“ — אחלא־פדה

humano142 não redimirá de modo algum [seu] irmão” (v. 8a).143

Na segunda parte do versículo 8, há uma variante textual na BHS que não parece

trazer alterações significativas nem recebe menção na BHK.144

Bardtke observa que muitos

manuscritos hebraicos medievais (mlt Mss — entre 21 e 60 manuscritos)145

acrescentam o ו

(“e”) antes de לא (“não”) formando ולא (“e não”).146

O acréscimo da conjunção hebraica

apenas tornaria o texto mais fluente, porém, não alteraria em nada seu sentido.147

Tanto a

LXX ( ὐ δώσει, “não dará”) quanto a Vulgata (non dabit, “não dará”)148

apoiam o texto do

TM ao não inserir conjunção antes do advérbio de negação.

Em seguida, H. Bardtke, editor do livro de Salmos da BHS, sugere que todo o texto

do versículo 9 é, provavelmente, uma glosa (prb gl),149

uma nota explicativa acrescentada por

137

GOULDER, 1982, p. 187. 138

SIMIAN-YOFRE et al, 2015, p. 67. 139

VANGEMEREN, 1991, p. 369. 140

CRAIGIE, 1983, 357. 141

BROTZMAN; TULLY, 2016, cap. 7 (edição kindle). 142

Ver esse sentido mais abrangente de איש em Jó 38.26; cf. KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON;

STAMM, 1994-2001, p. 48. 143

Ver também a opção da NET Bible: “Certainly a man cannot rescue his brother” [Certamente um homem não

pode resgatar seu irmão]. 144

Ver KITTEL, 1906, v. 2, p. 944. 145

FRANCISCO, 2008, p. 87. 146

ELLIGER; RUDOLPH, 1997, p. 1131. 147

Ver a proposta de tradução de Craigie que tem por base a leitura alternativa (CRAIGIE, 1983, p. 356-7). 148

WHITAKER, 2012, verbetes non, dabit. 149

FRANCISCO, 2008, p. 36, 51.

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um escriba posterior.150

Embora o versículo 9 tenha natureza explicativa e sua remoção dê

mais fluência ao texto,151

o caso aqui implicaria um conflito entre dois cânones de crítica

textual: o da lectio difficilior, em que a leitura mais difícil deve ser mantida, tendo em vista a

tendência dos escribas em esclarecer e simplificar;152

e o da lectio brevior (“leitura mais

breve”) devido à inclinação dos copistas a ampliarem os textos visando esclarecimento ou

melhor fluência.153

O primeiro cânone favoreceria a permanência do versículo 9, ao passo que

o segundo demandaria sua exclusão. Optamos por manter o versículo 9 devido ao apoio que o

TM tem de outras versões importantes, como o Targum (que traz acréscimos ao texto e tem

suas próprias variantes),154

a LXX (ver também a Héxapla de Orígenes) e a Vulgata, e pelo

fato de que a remoção do texto é apenas fruto de hipótese dos estudos bíblicos modernos, sem

apoio algum da evidência externa antiga.

Logo no início do versículo 9, há uma variante textual relacionada ao termo ויקר,

uma forma da 3ª. pessoa do singular do pretérito155

do grau qal da raiz verbal יקר (“ser

precioso”; “ser estimado”; “ser raro”; “ser digno”).156

A LXX lê o início do versículo 9 como

uma continuação do versículo anterior, indicando a segunda parte do objeto da oração,

conforme indicado pelo caso acusativo do substantivo (em vez da raiz verbal usada pelo TM):

α ὴ ι ὴ (“e/nem o preço”). De acordo com a LXX, não há uma interrupção entre os

versículos 8 e 9: ὐ δώσει ῷ θεῷ ἐξί ασ α αὐ ῦ, α ὴ ι ὴ ῆς ρώσεως ῆς ψ χῆς

αὐ ῦ (“8b

não dará a Deus oferta propiciatória157

dele 9a

nem o preço158

da redenção da alma

dele”) (grifo e itálico acrescentados). De acordo com Bardtke, a expressão da LXX ( α ὴ

ι ὴ ) implicaria a reconstrução ויקר (ו [“e”] + יקר [“preciosidade”, “preço”, “honra”])159

no

hebraico, o que não demandaria mudança no texto consonantal, mas apenas na pontuação

massorética.

150

Briggs, Craigie e Kraus defendem o mesmo entendimento de que o versículo 9 é uma glosa (ver BRIGGS,

1906, p. 413; CRAIGIE, 1983, p. 357; KRAUS, 1993, p. 731). Na BHK, sugere-se que o primeiro verseto seja

eliminado (ver KITTEL, 1906, v. 2. p. 945, nota a do v. 9 no aparato crítico). 151

GOULDER, 1982, p. 188; KRAUS, 1993, p. 731. 152

SIMIAN-YOFRE et al, 2015, p. 67; ARCHER, 1994, p. 65; BROTZMAN; TULLY, 2016, cap. 7 (edição

kindle). 153

ARCHER, 1994, p. 65; BROTZMAN; TULLY, 2016, cap. 7 (edição kindle). 154

Ver o texto de Salmos 49.9 da edição do Targum de KAUFMAN, 2005. 155

Classificamos como “pretérito” usando a designação indicada por ROSS, 2009, p. 142-3: “Alguns professores

preferem chamar essa construção de tempo imperfeito + w w consecutivo, mas ‘pretérito’ descreve como mais

exatidão a forma como um tempo passado”. 156

KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 431-2. 157

LUST; EYNIKEL; HAUSPIE, 2003, verbete ἐξί ασ α. 158

ARNDT; DANKER; BAUER, 2000, p. 1005. 159

BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 430.

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Essa continuidade entre os versículos 8 e 9 não consta apenas no Pasalterium

Gallicanum (o texto de Salmos da antiga Vetus Latina traduzido da LXX e revisado por

Jerônimo), mas também no Psalterium iuxta Hebraeos,160

a tradução do texto hebraico de

Salmos para o latim feita por Jerônimo.161

O Psalterium iuxta Hebraeos traz a leitura: 8b

nec

dabit Deo propitiationem pro eo 9a

neque pretium redemptionis animae eorum (“nem dará a

Deus propiciação por ele nem o preço de redenção da alma deles”). Com exceção do pronome

final (singular no grego: αὐ ῦ; plural no latim: eorum), o primeiro verseto do v. 9 no

Psalterium iuxta Hebraeos é idêntico ao da LXX.

A tradução do Salmo 49.9 de Jerônimo (Psalterium iuxta Hebraeos) e a da LXX

parecem seguir o mesmo texto (vocálico e consonantal) hebraico básico, que mantém as

mesmas consoantes do TM, porém difere da pontuação vocálica dos massoretas. Essa

dificuldade no entendimento de ויקר também se reflete no texto da Peshitta, cuja leitura

( ) implicaria a reconstrução (ו)יקר,162

um adjetivo (“precioso”, “glorioso”; “caro”), em

vez da raiz verbal יקר (TM) ou do substantivo יקר (Jerônimo e LXX).

A diversidade de leituras no texto vocálico do hebraico torna muito difícil uma

decisão, embora nos pareça que o TM com sua interrupção brusca, ao contrário da melhor

fluência da LXX e da Vulgata (com uma ligação mais natural entre os v. 8 e 9), nos ofereça a

lectio difficilior a ser seguida. Além disso, outras variantes nos versículos 9 e 10 da LXX e do

Psalterium iuxta Hebraeos possibilitam um texto perspícuo, mas a leitura do TM se distingue

dessas versões na continuidade do Salmo 49, de modo que seria impossível compreendê-lo

caso adotássemos aqui a variante de Jerônimo e LXX.163

Ainda na primeira parte do versículo 9, H. Bardtke indica uma leitura variante do

TM: em vez de נפשם (“vida deles”), a L apresenta ψ χῆς αὐ ῦ (“vida dele”). Tendo em

vista que a tradução do hebraico de Jerônimo (“animae eorum”) apoia o TM e que este traz a

variante de leitura mais difícil, pois o contexto anterior usa o singular (כפרו e אח no v. 8), a

leitura da LXX provavelmente sofreu alteração por escribas que tentaram harmonizar o objeto

do v. 9 com o do v. 8. O ם final (em נפשם) pode ser enclítico (como שמם em Sl 109.13) ou ser

160

WEBER; GRYSON (eds.), 1969 (edição eletrônica). 161

Sobre a história das duas versões de Salmos da Vulgata, ver FRANCISCO, 2008, p. 523-4. 162

Ver ELLIGER; RUDOLPH, 1997, p. 1131. 163

Este não seria um caso de lectio difficilior, mas de uma leitura “sem sentido” que impediria um texto

“razoável e adequado” (ver WALTKE, Bruce, The textual criticism of the Old Testament, in: GAEBELEIN,

1991, v. 1, p. 226).

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uma referência tanto ao sujeito (איש) quanto ao objeto (אח) do versículo 8.164

Por fim, a

transliteração do texto hebraico em grego na Héxapla propõe a leitura 3) יחדלms imperfeito do

qal) em vez de וחדל (3ms perfeito do qal + waw consecutivo) (TM), o que não resulta em

mudança significativa, pois o perfeito + waw consecutivo também tem aspecto futuro.165

No versículo 10, o aparato da BHS observa que muitos manuscritos hebraicos

medievais (mlt Mss — entre 21 e 60 manuscritos)166

acrescentam o ו (“e”) antes de לא

(“não”), formando ולא (“e não”). A tradução de Jerônimo (Psalterium iuxta Hebraeos) apoia o

acréscimo da conjunção (et non videbit interitum, “e não veja tendo sido perecido167

”) (grifo e

itálico acrescentados). A LXX não traz em seu texto um termo de correspondência literal

exata ao sentido de ו (e.g, αί), mas usa a conjunção ι (“porque”), que pode ser uma

tradução interpretativa do ו presente na leitura variante dos manuscritos hebraicos. À luz da

grande quantidade de manuscritos, além do apoio de Jerônimo e (possivelmente) da LXX, que

apresenta o acréscimo da conjunção antes do advérbio de negação, esta leitura (ולא) parece

corresponder ao texto original.

No início do versículo 12, o aparato crítico da BHS indica leituras variantes em

relação ao sintagma קרבם (“interior/entranhas deles”) do TM. Segundo Bardtke (mantendo a

proposta da BHK),168

deve “ser lido” (l) קברם, (“sepultura deles”)169

com o apoio, em parte, da

LXX, da Peshitta e do Targum dos Salmos, “ou” (vel)170

preservando as mesmas ,קברים

consoantes, porém com o acréscimo de uma mater lectionis171

.para formar o plural (י) 172

As

leituras variantes (קברם) sugerem que a diferença central ocorreu por metátese,173

ou seja, uma

troca na posição das consoantes — por descuido, copistas inverteram a ordem das letras ב e

.ר174

A LXX lê o primeiro verseto: α ἱ άφ ι αὐ ῶ ίαι αὐ ῶ ε ς ὸ α ῶ α (“e as suas

164

Ver essas possibilidades em DAHOOD, 1965, p. 298; ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 667. 165

MERWE; NAUDÉ; KROEZE, 1999. p. 168, §21.3 (edição eletrônica). Merwe, Naudé e Kroeze observam que

a acentuação na última sílaba indica um perfeito + consecutivo, por isso, o aspecto futuro (ver também ROSS,

2009, p. 143-4). 166

FRANCISCO, 2008, p. 87. 167

WHITAKER, 2012, verbete interitum. A tradução “tendo sido perecido” é o correspondente literal desse

verbo latino em sua forma no particípio passivo do tempo perfeito. 168

Ver KITTEL, 1906, v. 2, p. 945. 169

Essa leitura é adotada por DECLAISSÉ-WALFORD; JACOBSON; TANNER, 2014, p. 441. 170

FRANCISCO, 2008, p. 62. 171

Sobre as matres lectionis, ver ROSS, 2009, p. 137-8; FRANCISCO, 2008, p. 631-2; TOV, 2017, p. 239-40. 172

Essa opção, que acrescenta uma mater lectionis ao texto consonantal do TM e não tem apoio textual sólido, é

seguida por CRAIGIE, 1983, p. 356-7. 173

ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 667. 174

Ver mais informações e exemplos relacionados à metátese em ARCHER, 1994, p. 61; BROTZMAN; TULLY,

2016, cap. 6 (edição kindle); TOV, 2017, p. 236-7.

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31

sepulturas175

[serão] as casas deles para sempre” [itálico acrescentado]). O Targum de

Salmos176

apresenta uma leitura semelhante: לעלם ישרון קבורתהון Na casa dos seus“) בבית

sepulcros177

habitarão para sempre”).

Como Goldingay e Goulder observam, a leitura variante (especificamente a da LXX)

é a mais fácil,178

portanto o TM apresenta a lectio difficilior, que tem o apoio do Psalterium

iuxta Hebraeos (Jerônimo), cuja leitura é a seguinte: interiora sua domus suas in saeculo

(“interiores deles [são?] suas casas em [uma] geração179

”). Assim, opta-se aqui pela leitura do

TM.180

Uma segunda variante textual está relacionada à expressão בשמותם, com Bardtke

afirmando que a expressão deve “ser lida” (l) sem a presença da preposição ב, conforme as

Versões (que de fato não trazem uma preposição equivalente — ver ἐπε α σα ὰ

ὀ α α [LXX]; vocaverunt nominibus suis [Jerônimo]).181

Entretanto, essa rejeição do TM

parece ser apressada, visto que outras passagens da Bíblia Hebraica (cf. Is 44.5: יקרא

para (שם substantivo + ב preposição + קרא verbo) usam uma construção semelhante (בשם־יעקב

indicar revindicação de pertença ou de propriedade.182

Portanto, não parece haver aqui

variação de leitura, mas somente formas distintas das versões traduzirem a construção

hebraica em seu próprio idioma.183

O aparato crítico da BHS indica mais um problema no versículo 12, em que a LXX e

a versão grega de Teodocião (versão produzida no final do século II E.C.)184

trazem o

equivalente a אדמותם (“suas terras”), em vez de אדמות (“terras”) do TM. O Psalterium iuxta

Hebraeos (Jerônimo) também apresenta o acréscimo do pronome pessoal (terras suas). O

termo אדמה do TM no plural ocorre somente aqui em toda a Bíblia Hebraica.185

Como a lectio

brevior deve ser preferida, tendo em vista a tendência das versões de usarem mais palavras

175

LUST; EYNIKEL; HAUSPIE, 2003, verbete άφ ς; ARNDT; DANKER; BAUER, 2000, p. 992; LIDDELL,

H. G. A lexicon: abridged from Liddell and Scott’s Greek-English lexicon. Oak Harbor: Logos Research

Systems, 1996. p. 794. 176

Primeiro verseto de Salmos 49.12 na edição de KAUFMAN, 2005. 177

Entende-se בית קבורה como um único termo, conforme KAUFMAN, 2004, verbete ביתקבורה. 178

GOLDINGAY, 2006, Psalm 49, nota 5 (edição kindle); GOULDER, 1982, p. 189. 179

A tradução “em [uma] geração” se baseia na opção apresentada em LEWIS, 1890, verbete saeculum;

HARDEM, 1921, p. 105. 180

Ver também KEIL; DELITZSCH, 1996, v. 5, p. 351. 181

Kraus segue a proposta de Bardtke (ver KRAUS, 1993, p. 730-1). 182

KEIL; DELITZSCH, 1996, v. 5, p. 351. 183

Observe-se que a BHK não identifica essa suposta variante indicada pela BHS (ver KITTEL, 1906, v. 2, p.

945). 184

FRANCISCO, 2008, p. 73, 464-6. 185

DAHOOD, 1965, p. 299; GOULDER, 1982, p. 189.

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para esclarecer o texto hebraico que elas traduzem,186

o TM apresenta, provavelmente, a

leitura original.187

No versículo 13, há uma variante textual relacionada à raiz verbal 3) יליןª. pessoa do

singular imperfeito do qal do verbo לין, “pernoitar”; “permanecer”, “habitar”) do TM, que se

deve a uma tentativa da LXX (a Peshitta a segue em parte) de padronizar o refrão que ocorre

também no versículo 21.188

A leitura das duas versões189

usa o mesmo verbo no primeiro

verseto tanto em 49.13 quanto em 49.21. Entretanto, essa leitura discordante do TM, que

busca manter o refrão idêntico nos dois versículos, não é imprescindível, pois a “variação é

normal nos refrões dos salmos (cf. 42.5,11; 43.5)”.190

Há certo complemento no emprego de

verbos distintos, em que o uso de duas descrições com som semelhante torna ainda mais

trágica a situação do “ser humano em esplendor” (אדםביקר, v. 13,21).

Em relação à homogeneidade dos refrões, é verdade que as antigas versões — e os

intérpretes modernos — tendem a adaptar um verbo ao outro. As expressões

relevantes no Salmo 49, ba - n, “ele não permanecerá” (v. 13), e ’ b n, “ele

não entenderá” (v. 21), realmente são muito semelhantes em som e na escrita.

Portanto, é mais difícil explicar as diferenças [observe, aqui, a lectio difficilior] no

vocabulário, e podemos considerar essas diferenças como sendo mais provavelmente

originais. Ademais, a poesia não é tão rigidamente fixa a ponto de proibir pequenas

variações nos refrões, especialmente se um cântico é apresentado por um cantor

como no caso do Salmo 49 [...].191

A outra variante textual no versículo 13 ocorre com a raiz verbal נדמו (“são

destruídos”, “deixam de existir” [3ª. pessoa do masculino plural do perfeito do nifal]),192

em

que a reconstrução com base nas versões LXX, Peshitta193

e Psalterium iuxta Hebraeos

(Jerônimo), apoiadas por poucos manuscritos hebraicos medievais (pc Mss — entre 3-10),

implica uma raiz verbal formada pelas mesmas consoantes, mas na forma singular 3) נדמהª.

pessoa do masculino singular do perfeito do nifal). Embora as versões ofereçam a leitura de

um verbo com as mesmas consoantes, a raiz verbal é distinta, conforme indicado por BDB e

186

SIMIAN-YOFRE et al, 2015, p. 67-8; CHISHOLM, 2016, p. 25; ARCHER, 1994, p. 65. 187

Outros comentaristas, que em outras partes preferem a leitura da LXX, aqui escolhem o texto apresentado

pelos massoretas (ver DECLAISSÉ-WALFORD; JACOBSON; TANNER, 2014, p. 442; CRAIGIE, 1983, p.

356). 188

Quanto ao reconhecimento de que os versículos 13 e 21 são o refrão do Salmo 49, ver, e.g., ZUCKER, 2005,

p. 145; GERSTENBERGER, 1988, Psalm 49 (edição kindle); ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 672;

KIDNER, 1980, p. 203. 189

L traz uma forma conjugada do verbo σ ί ι, “entender”, “compreender” (ver ARNDT; DANKER;

BAUER, 2000, p. 972). 190

GOULDER, 1982, p. 190. 191

GERSTENBERGER, 1988, Psalm 49 (edição kindle); cf. BRIGGS, 1906, p. 409. 192

BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 198. 193

OLIVER, 1861, p. 94, tradução e nota crítica do v. 12.

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33

HALOT.194

Tanto a LXX ( α ὡ ιώθ αὐ ῖς, “é semelhante a eles”) quanto o Psalterium

iuxta Hebraeos (et exaequatus est, “e é feito semelhante [a]”) leem דמה (“ser como”,

“assemelhar-se”) no singular, portanto, como uma referência a אדם (“ser humano”), não aos

.como faz o TM com o verbo no plural ,(”animais”, “gados“) בהמות

Briggs parece estar correto ao ler o verbo נדמו como uma oração relativa195

(“que

perecem”) que apresenta uma característica dos animais. A leitura do TM parece explicar

melhor196

a variante das versões por usar um verbo cujas consoantes são iguais às de outra

raiz verbal que tem um sentido semelhante ao do verbo imediatamente anterior (נמשל, “é

semelhante [a]”, “torna-se semelhante”). Assim, as versões leram דמה como uma repetição

enfática do refrão cujo sujeito é אדם, sem perceber o paralelismo entre נדמו (“que serão

destruídos”) e a última expressão do verseto anterior בל־ילין (“não permanece”), exatamente o

ponto de semelhança entre אדם e os בהמות.197

No versículo 14, o aparato da BHS apresenta quatro questões de crítica textual. A

primeira leitura variante ocorre com o termo כסל do TM, que é traduzido por σ ά δα

(“armadilha”, “cilada”)198

na LXX, leitura seguida, em parte, pela Peshitta.199

Embora a BHK

não houvesse indicado essa leitura alternativa,200

Briggs, em seu comentário de Salmos,201

já a

havia assinalado e feito a retroversão para a leitura correspondente da LXX em hebraico: uma

forma nominal da raiz verbal כשל (“tropeçar”, “cambalear”). Como o texto de Salmos da

Peshitta tende a seguir a LXX,202

não há apoio significativo da evidência externa para a leitura

variante (Jerônimo apresenta uma leitura igual à do TM: insipientiae eorum, “insensatez

deles”), que quase não é discutida pelos comentaristas.203

Portanto, o texto da tradição

massorética deve ser mantido aqui.

194

Os dois dicionários fazem diferença entre דמה (“ser como”, “assemelhar-se”) e דמה (“destruir”; nifa : “ser

destruído”). Ver BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 197-8; KOEHLER; BAUMGARTNER;

RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 225-6. 195

Em português chamaríamos de oração subordinada/transposta adjetiva (ver BECHARA, 2009, p. 463-4, 486-

9). 196

Ver a preferência pela leitura que melhor explica as demais como um cânon da crítica textual em ARCHER,

1994, p. 65. 197

Keil e Delitzch também apoiam essa leitura do TM (ver KEIL; DELITZSCH, 1996, v. 5, p. 352). 198

LUST; EYNIKEL; HAUSPIE, 2003, verbete σ ά δα . 199

OLIVER, 1861, p. 94, nota crítica do v. 13. 200

KITTEL, 1906, v. 2, p. 945. 201

BRIGGS, 1906, p. 413. O próprio Briggs indica que essa leitura da L é “improvável”. 202

Segundo Edson de Faria Francisco, a tese de que a Peshitta segue a LXX em Salmos e nos Doze Profetas é

defendida por F. E. Deist e Emanuel Tov (FRANCISCO, 2008, p. 499). 203

E.g., não mencionam esse problema os seguintes comentários: DECLAISSÉ-WALFORD; JACOBSON;

TANNER, 2014; KRAUS, 1993; CRAIGIE, 1983.

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34

O segundo problema textual do versículo 14 tem sido objeto de bastante debate entre

exegetas, envolvendo a tradição massorética (ואחריהם, “e depois deles”) e o Targum (ובסופהון,

“o fim204

deles”). Ainda que vários estudiosos defendam a mudança no texto consonantal para

que faça mais sentido — alguns seguindo a leitura do Targum (em retroversão para o

hebraico: אחריתם, “o fim deles”),205

outros propondo uma emenda textual que estabeleça um

termo paralelo a דרכם (neste caso: ארחותם, “suas veredas”)206

—, não há razão substancial para

rejeitar a forte evidência externa.

A leitura אחריהם (“depois deles”) tem o apoio de outras versões, como a LXX ( ε ὰ

αῦ α, “depois dessas coisas”), a Vulgata (postea, “depois disso”, “posteriormente”)207

e o

Psalterium iuxta Hebraeos (post eos, “depois deles”), que entendem o texto hebraico de

forma semelhante à tradição massorética e o traduzem de forma quase literal. Visto que o TM

faz sentido (embora seja a lectio difficilior) e sua locução אחריהם pode ser traduzida de várias

formas,208

além do grande amparo da evidência externa, não há razão alguma para seguir o

Targum.209

Nas outras duas questões levantadas no aparato crítico do versículo 14, a primeira

tem pouca importância por dizer respeito a uma variação de preposição hebraica: enquanto o

TM traz בפיהם (“nas bocas deles”), dois manuscritos hebraicos medievais (2Mss) trazem

הםפיכ . Segundo Bardtke,210

Jerônimo (Psalterium iuxta Hebraeos) apoia a leitura dos dois

manuscritos ao usar a expressão iuxta os eorum (“como211

a boca deles...”). Entretanto, esta

não é a primeira vez que a preposição ב é usada para indicar o objeto da raiz verbal רצה (cf. Sl

147.10; 149.4),212

o que torna difícil fazer uma retroversão da tradução de Jerônimo para

afirmar seu apoio a uma ou a outra variante textual. A leitura do TM certamente deve ser

seguida aqui.

204

KAUFMAN, 2004, verbete סוף; KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, v. 5,

p. 1938. 205

ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 666, 667; DECLAISSÉ-WALFORD; JACOBSON; TANNER,

2014, p. 442 (ver, em especial, a nota 6); BRIGGS, 1906, p. 413; 206

Esta é a proposta de KRAUS, 1993, p. 730-1 e a que o próprio editor da BHS, H. Bardtke, acha mais provável

(frt l) e cita Jó 8.13 (Hi 8,13), que traz o plural ארחות (“veredas”) com o sentido de “destino” dos ímpios, como

apoio a essa hipótese, (ver ELLIGER; RUDOLPH, 1997, p. 1131). 207

HARDEM, 1921, p. 90; WHITAKER, 2012, verbete postea. 208

Ver, e.g., as tradução de DAHOOD, 1965, p. 296, 299-300 (“o final definitivo daqueles...”) e CRAIGIE, 1983,

p. 356 (“daqueles depois deles...”). 209

Ver também a análise em KEIL; DELITZSCH, 1996, v. 5, p. 352. 210

Ver ELLIGER; RUDOLPH, 1997, p. 1131. 211

WHITAKER, 2012, verbete iuxta. 212

NET Bible, 2005, Psalm 49.13, translator note 27.

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35

O problema textual seguinte diz respeito ao verbo 3) ירצוª. pessoa do masculino

plural do imperfeito do qal de רצה, “ter prazer [em]”, “ser favorável a”), que é traduzido na

versão grega de Áquila (α´)213

por δρα ῦ αι214

(2 . aoristo do verbo ρ χω, “propagar”;

“progredir livremente”; “correr”),215

cuja leitura aparece na tradução de Jerônimo (Psalterium

iuxta Hebraeos) como current (“fluirá rapidamente”; “prosseguirá”; “correrá”). Essa leitura

variante teria o correspondente na forma 3) ירצוª. pessoa do masculino plural do imperfeito do

qal de ץרו , “correr”( do hebraico, que parece ser apoiada pela transliteração ιαρ σ da

segunda coluna da Héxapla de Orígenes ( εβρʹ). Portanto, a variante textual surgiu de uma

pontuação vocálica diferente,216

em nada alterando o texto consonantal. A LXX

(εὐ γήσ σι , “falarão bem”, “louvarão”; “bendirão”)217

apoia a leitura do TM, que

apresenta a provável leitura original.218

No aparato crítico da BHS há dez questões textuais indicadas no versículo 15,219

cinco a mais do que a edição mais antiga (BHK).220

Portanto, nossa análise desse versículo se

limitará aos problemas de crítica textual que estejam relacionados às versões e testemunhas

antigas, não às sugestões de emendas de Bardtke sem evidência externa que as apoie.221

A letra g do aparato crítico indica que muitos manuscritos (mlt Mss) e o qerê (Q)

[texto lido] apresentam a variante וצורם (“e a forma deles”; “e o modelo deles”; 222

“e os

ornamentos talhados deles”223

); o ketîv (K) [texto escrito] tem a leitura וצירם (“e a forma

deles”, “e a imagem deles”);224

na tradução da LXX consta α ἡ β ήθεια αὐ ῶ (“e a ajuda/o

suporte225

deles”); a Peshitta traz t n,226

que é correspondente a צורתםו (“e a forma

213

FRANCISCO, 2008, p. 73. 214

Mais especificamente: δρα ῦ αι εί (ver FIELD, 1875, v. 2, p. 171). 215

ARNDT; DANKER; BAUER, 2000, p. 826-7. 216

Sobre esse tipo de erro de cópia, ver ARCHER, 1994, p. 63. 217

BAUER; ARNDT; GINGRICH; DANKER, , 1979, p. 322; LIDDELL, 1996, p. 327. 218

A grande maioria dos comentaristas segue a leitura do TM aqui. Ver DAHOOD, 1965, p. 296, 300;

DECLAISSÉ-WALFORD; JACOBSON; TANNER, 2014, p. 442; KRAUS, 1993, p. 730; CRAIGIE, 1983, p.

356. 219

ELLIGER; RUDOLPH, 1997, p. 1131. Embora as variantes de leitura sejam listadas até a letra k, a BHS omite

a letra j das variantes, o que resulta em dez problemas analisados, não onze. 220

KITTEL, 1906, v. 2, p. 945. As variantes de leitura são listadas até a letra e. 221

Na edição da BHS, as discussões que não envolvem a evidência externa de testemunhas e versões antigas são:

a, b—b, c, d, e—e, f. 222

BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 849. Para a ausência do ת na ligação do substantivo com o SPP 3MP,

que aparece na reconstrução da Peshitta, ver GESENIUS; KAUTZSCH; COWLEY, 1910, p. 255-6, §91.e. 223

GOULDER, 1982, p. 191. 224

KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 1024. 225

LOUW; NIDA, 1996. v. 1. p. 458.; ARNDT; DANKER; BAUER, 2000, p. 180. 226

Oliver traduz por “beleza”, mas reconhece que a Peshitta traz o mesmo termo do TM (ver OLIVER, 1861, p.

95, nota crítica do v. 14.).

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36

deles”, “e a imagem deles”; “e os ornamentos talhados deles”), o mesmo termo do qerê, mas

com o ת para o acréscimo do sufixo pronominal possessivo (ם ).227

Bardtke propõe (prp)

צרםוי ם + יצר) , “obra talhada deles”, “obra de artífice deles”,228

“forma de imagem esculpida

deles”229

) ou (vel) םצורי ם + יצור) [?], “o membro deles”).230

De acordo com John E. Hartley, ambas as formas do ketîv (ציר) e do qerê (צורה)

estão associadas a צור, que é uma provável derivação de יצר (“formar”, “moldar”) e teriam

quase o mesmo sentido.231

Devido ao apoio de muitos manuscritos e da indicação de leitura

da tradição massorética, a leitura original mais provável é וצורם, o que explicaria a confusão

na tradução da LXX com um termo composto com as mesmas consoantes no hebraico

(β ήθεια [“ajuda”, “socorro”] = צור, “segurança”, “refúgio” [sentido figurado]).232

No problema textual seguinte, Bardtke afirma que poucos manuscritos hebraico

medievais (pc Mss – de 3 a 10 manuscritos) trazem לכלות (preposição ל + infinitivo construto

do grau piel de כלה, “para” + “esgotar”, “consumir”, “destruir”, exterminar),233

em vez de

,”para” + “gastar”, “consumir“ ,בלה infinitivo construto do grau piel de + ל preposição) לבלות

“desfrutar plenamente”)234

da BHS. A proposta de Bardtke é uma revocalização do próprio

TM: לבלות (preposição ל + infinitivo construto do grau qal de בלה, “para” + “gastar-se”,

“desgastar-se”; “envelhecer”).235

Não há razão para seguirmos a revocalização do editor de

Salmos da BHS, tanto pela falta de apoio da evidência externa quanto pelo claro sentido que o

TM transmite, em especial com o Sheol como sujeito da ação. A explicação para a leitura

diferente de alguns manuscritos hebraicos é a confusão natural que escribas poderiam fazer

entre as letras ב e כ por sua semelhança na forma quadrática (ou “escrita aramaica”; cf.

também 1Cr 17.20).236

Na letra i do aparato do versículo 15, Bardtke informa que há leituras variantes em

relação à expressão מזבללו (“[longe] da mansão dele”) do TM: a L (e a Peshita, mas em

parte) apresenta o sintagma ἐ ῆς δ ξ ς αὐ ῶ (“de glória deles”), o Códice Alexandrino da

227

BRIGGS, 1906, p. 413-4. 228

KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 429; 229

BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 428. 230

Sobre a suposta construção do singular do termo hebraico יצרים que só ocorre no plural em outras partes da

Bíblia Hebraica, ver KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 429. 231

HARTLEY, John H. צור. In: HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1999, p. 761-2. 232

GESENIUS, 2003, p. 706; cf. ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 668. 233

HOLLADAY; KÖHLER, 2000, p. 158; BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 478. 234

ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 104; KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001,

p. 132. 235

Para o significado do verbo no grau qal, ver SWANSON, 1997, verbete 1162. 236

BROTZMAN; TULLY, 2016, cap. 6 (edição kindle).

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37

LXX (séc. V) e o texto grego da LXX segundo a recensão de Luciano de Antioquia (séc.

III)237

trazem a leitura do TM mais o verbo ἐξώσθ σα (3ª. pessoa do plural do aoristo

passivo de ἐξωθ ω — “são lançados fora/são expulsos [de sua mansão]”).238

A Peshitta está

relacionada com as duas leituras porque ela traz o que seria o equivalente a ἐ ῆς δ ξ ς (“da

glória”) da primeira variante, e ἐξωθ ω (“são lançados fora”) da segunda variante.239

A

proposta (prp) do editor de Salmos da BHS é que se leia זבוללמו (“mansão para eles/deles240

”).

Não há razão para mudar מזבל, visto que essa expressão hebraica do TM pode ter

estado presente na tradição textual que serviu de base para a tradução ἐ ῆς δ ξ ς da LXX,

revelando uma interpretação da versão grega, não uma tradução literal.241

Ademais, Jerônimo

(Psalterium iuxta Hebraeos) entende זבל como habitaculum (“habitação”). A preposição מין

em מזבל é plenamente compreensível em sua nuance privativa: “longe de”, “fora de”,242

portanto, não há razão para eliminá-la como propõe Bardtke. No entanto, é provável que ele

tenha razão em sua reconstrução למו, em vez de לו do TM (uma provável omissão não

intencional do copista), que tem o apoio de αὐ ῶ na leitura da LXX.243

O último problema textual indicado no versículo 15 (k) apenas esclarece que muitos

manuscritos (mlt Mss) não têm o dagesh forte na letra ז da palavra מזבל (“da habitação

elevada”), algo que é plenamente compreensível, pois, quando a preposição מין ocorre em seu

modo inseparável com um substantivo, o “ fo te pode estar ausente de uma letra

pontuada com e ’”.

244 A questão do versículo 16 apontada no aparato crítico somente

declara que o acento disjuntivo de cantilação ’atna ( ) deve ser transposto (huc tr)245

para a

última sílaba.

No versículo 18, vários manuscritos hebraicos medievais (nonn Mss — entre 11 e

20)246

e a LXX acrescentam o ו (“e”) antes de לא (“não”) formando ולא (“e não”). A indicação

de que a LXX apoia a leitura ולא é uma suposição com base no termo grego ὐδ (“nem”, “e

237

Ver FRANCISCO, 2008, p. 71, 77-8. 238

ARNDT; DANKER; BAUER, 2000, p. 355; LIDDELL, 1996, p. 277. Nossa tradução entende o tempo aoristo

em seu aspecto pontilear. 239

Ver a tradução para o inglês desse versículo da Pehitta em OLIVER, 1861, p. 95. 240

Quanto ao entendimento do SPP como plural, ver GESENIUS; KAUTZSCH; COWLEY, 1910, p. 301,

§103.f. 241

ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 668. 242

NET Bible, 2005, Psalm 49.14, translator note 32; BRIGGS, 1906, p. 414. 243

A preposição ל é usada no sentido de posse (ver WALTKE; O’CONNOR, 2006, p. 206-7 [exemplos 13-16]). 244

ROSS, 2009, p. 82. 245

FRANCISCO, 2008, p. 38. 246

ELLIGER; RUDOLPH, 1997, p. LXVI.

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não”, “nem sequer”),247

porém não há conjunção αί (“e”) para tornar evidente esse apoio da

versão grega à leitura variante dos manuscritos hebraicos. Portanto, não existe razão

suficiente para ler o texto hebraico diferente do TM.

No final da primeira parte do versículo 19, Bardtke declara que dois manuscritos

hebraicos medievais (2 Mss) leem 3) יברךª. pessoa do masculino singular do imperfeito do

grau pual da raiz verbal ברך)248

em vez de 3) יברךª. pessoa do masculino singular do

imperfeito do grau piel da raiz verbal ברך) do TM. A LXX traz como leitura εὐ γ θήσε αι

(“será louvada”, “será abençoada”249

— ἡ ψ χὴ αὐ ῦ = נפשו como sujeito do verbo) que

corresponderia a 3) תברךª. pessoa do feminino singular do imperfeito do grau pual da raiz

verbal ברך).250

Na leitura do TM, o indivíduo é quem “bendiz” ou, conforme nossa tradução,

“congratula”251

sua נפש (“vida”).252

Na tradução da LXX, a alma/vida é “louvada” ou

“felicitada”, sem ter o próprio indivíduo como sujeito da ação. Na leitura de dois manuscritos

hebraicos medievais, o indivíduo é “congratulado” ou “felicitado” (passivo, masculino),

pressupondo o sujeito mencionado no versículo 18. A última leitura produziria um sentido

estranho à frase, pois não leva em conta a presença de נפשו (“sua vida”).253

Como o

Psalterium iuxta Hebraeos (Jerônimo) traz o verbo na voz ativa (benedicet — diferente da

LXX) e a Peshitta lê da mesma forma que o TM (o indivíduo como sujeito da oração que

abençoa a própria alma),254

a evidência externa indica que a tradição massorética preserva a

provável leitura original.

Na letra b do versículo 19 do aparato crítico, Bardtke afirma que ויודך (“e eles te

louvam”)255deve ser lido (l) “com” (c) um manuscrito hebraico medieval (Ms) que traz ויודך

247

ARNDT; DANKER; BAUER, 2000, p. 734-5. 248

KELLEY, 1998. p. 398. 249

BAUER; ARNDT; GINGRICH; DANKER, 1979, p. 322; LUST; EYNIKEL; HAUSPIE, 2003, verbete

εὐ γ ω. 250

KELLEY, 1998, p. 398. 251

Para o sentido de “congratular” do verbo ברך, ver 2Sm 8.10; KOEHLER; BAUMGARTNER;

RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 160. 252

Em nossa tradução por equivalência formal, נפש é entendida com o sentido de pronome reflexivo (WOLFF,

2008, p. 52-5). 253

Quanto à leitura “sem sentido” que impediria um texto “razoável e adequado” (ver WALTKE, Bruce, The

textual criticism of the Old Testament, in: GAEBELEIN, 1991, v. 1, p. 226). 254

Ver tradução da Peshitta para o inglês em OLIVER, 1861, p. 95. 255

3ª. pessoa, masculino, plural, pretérito, hifil do verbo ידה + sufixo pronominal possessivo da 2ª. pessoa do

masculino singular.

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(“e ele te louva”),256

orientando a “comparar” (cf) com a L e a Peshitta. Ambas de fato

pressupõem um sujeito do verbo na terceira pessoa do singular,257

o que apoiaria a leitura

proposta pelo editor da BHS. Entretanto, o Targum (ויודונך, “confessarão”, “louvarão”)258

e o

Psalterium iuxta Hebraeos (laudabunt, “[eles] louvarão”, “[eles] recomendarão”)259

ratificam

a leitura do TM com seus verbos na 3ª. pessoa do plural.

O último problema textual do versículo 19 assinalado no aparato da BHS diz que o

sintagma לך (“contigo”, “para ti”) do TM deve “ser lido” (l) de modo diferente, adotando

(“com” [c]) a locução apresentada em “poucos manuscritos” (pc Mss), na L (αὐ ῷ, “com

ele”) e na Peshitta,260

o que corresponderia a ול (“com ele”, “para ele”). Entretanto, como o

texto de Salmos da Peshitta tende a seguir a LXX,261

não há apoio significativo da evidência

externa para a leitura variante, visto que a tradução de Jerônimo (Psalterium iuxta Hebraeos)

apresenta uma leitura igual à do TM (tibi, “contigo”). A grande maioria dos comentaristas

segue a leitura do TM como a original,262

assim como fazemos aqui.

No versículo 20, o aparato indica no problema textual a que a Peshitta tem o

sintagma wtmtjwhj, traduzido pelo editor por et perduces eum (“e tu o levarás”),263

em lugar

de תבוא (“tu irás” ou “ela irá”) do TM. Bardtke, então, propõe a leitura na 3ª. pessoa: יבוא

(“ele irá”). Tanto Jerônimo (intrabit, “[ele/a] entrará”) quanto a LXX (ε σε εύσε αι, “[ele/a]

irá para dentro”, “entrará”) apoiam a leitura na 3ª. pessoa (masculino [Bardtke] ou feminino

[TM]). Embora Kraus ache ilógica a leitura do TM,264

e Craigie siga a reconstrução de

Bardtke afirmando que a LXX apoia essa leitura265

(o que não é seguro, pois a leitura do TM

pode ser a 3ª. pessoa do feminino), Goulder propõe שנפ como o sujeito da construção do TM

(“ela [a נפש] irá”), o que é plausível à luz de outro trecho do Saltério em que a נפש corre o

256

3ª. pessoa, masculino, singular, pretérito, hifil do verbo ידה + sufixo pronominal possessivo da 2ª. pessoa do

masculino singular. 257

A LXX traz ἐξ γήσε αί (“ele louvará”, “dará graças”, “professará”). Quanto ao verbo usado na Peshitta,

ver OLIVER, 1861, p. 95, espec. nota crítica do v. 18. 258

WHITAKER, 2012, verbete laudabunt. 259

KAUFMAN, 2004, verbete ידי. 260

OLIVER, 1861, p. 95, versículo 18. 261

Segundo Edson de Faria Francisco, a tese de que a Peshitta segue a LXX em Salmos e nos Doze Profetas é

defendida por F. E. Deist e Emanuel Tov (FRANCISCO, 2008, p. 499). 262

DAHOOD, 1965, p. 296, 302; GOULDER, 1982, p. 194; DECLAISSÉ-WALFORD; JACOBSON; TANNER,

2014, p. 442; CRAIGIE, 1983, p. 357; GOLDINGAY, 2006, psalm 49. 263

Ver também a tradução de OLIVER, 1861, p. 95, versículo 19. 264

KRAUS, 1993, p. 730,732. 265

CRAIGIE, 1983, p. 357.

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risco de ser lançada ao Sheol: נפשילשאוללא־תעזב (“não abandonarás minha נפש no Sheol”).266

Portanto, não há razão segura para descartar a leitura do TM, em especial porque o texto dos

versículos 19 e 20 (TM) tem uma grande variação de pessoa nas raízes verbais e nos sufixos.

Naturalmente, essa variação explica a tentativa de Bardtke (e também da LXX) de formular

um texto mais padronizado com sufixos e raízes verbais conjugados na terceira pessoa do

masculino singular.267

Nesse caso, a leitura que melhor explica as demais deve ser

preferida,268

ou seja, a do TM.

No segundo problema textual do versículo 20, o editor de Salmos da BHS indica

uma variante de leitura relacionada a יראו (verão), em que dois manuscritos hebraicos

medievais (2 Mss) trazem יראה (verá) com o apoio da LXX (ὄψε αι, “verá”) e da Peshitta

(“verá”).269

Como já assinalado no parágrafo anterior, há claramente uma tentativa de

padronização dos verbos e sufixos da LXX na terceira pessoa do singular, o que é visto mais

uma vez aqui.270

Um escriba era mais capaz de simplificar ou esclarecer o fraseado de seu original do

que de torná-lo mais difícil para a compreensão em sua leitura pública. Se ele deixou

uma palavra rara, uma expressão difícil ou uma forma gramatical irregular, isso deve

ter ocorrido porque ele a encontrou dessa forma em seu texto padrão.271

O Psalterium iuxta Hebraeos (Jerônimo) usa o verbo na terceira pessoa do plural em

sua tradução: videbunt, “verão”.272

É interessante notar que o próprio Kraus, cuja preferência

em problemas textuais anteriores foi pela L , decide seguir o TM neste caso: “que no ven la

luz” [que não veem a luz].273

A variação de pessoas, em vez da padronização, é uma evidência

interna que favorece a leitura do TM.

No versículo 21, os problemas textuais a e c são tentativas de estabelecer uma forma

idêntica à do refrão no versículo 13, que é repetido aqui. No versículo 13, o texto do TM

começa com ואדם (a conjunção ו + o substantivo), ao passo que o versículo 21 (TM) traz

apenas o substantivo: אדם. Então, Bardtke assinala que poucos manuscritos hebraicos

medievais (pc Mss), os Códices Veronense (séc. VI) e Sinaítico (séc. IV) da LXX, bem como

266

GOULDER, 1982, p. 194. Observe-se que Goldingay também pensa ser absolutamente possível a leitura de

.(GOLDINGAY, 2006, psalm 49, nota 17) תבוא como sujeito de נפש267

Ver essa tentativa de padronização na próxima questão textual e nas anteriores. 268

CHISHOLM, 2016, p. 24-5. 269

A tradução da Peshitta se baseia na tradução para o inglês de OLIVER, 1861, p. 95, versículo 19. 270

O texto de Salmos da Peshitta tende a seguir a LXX, o que explica sua conjugação no singular. Ver a

discussão anterior nesta seção e a análise em FRANCISCO, 2008, p. 499. 271

ARCHER, 1994, p. 65. 272

WHITAKER, 2012, verbete videbunt. 273

KRAUS, 1993, p. 730. Ver também ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 665.

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o texto da recensão da LXX feita por Luciano de Antioquia (séc. III),274

trazem a leitura ואדם,

igual ao texto do versículo 13. A maioria dos manuscritos da LXX (ἄ θρωπ ς), a Peshitta275

e

o Psalterium iuxta Hebraeos (homo) apoiam a leitura do TM. A forte evidência externa

favorece a tradição massorética, que também apresenta a lectio difficilior.

Outra tentativa de manter uma forma idêntica dos refrões (problema textual c do

versículo 21) ocorre com o verbo יבין (“entende”), que é substituído em poucos manuscritos

hebraicos medievais (pc Mss) por ילין (“permanece”), formando um texto hebraico idêntico ao

do versículo 13. Esse fato é reconhecido pelo próprio editor de Salmos da BHS (ut [“como”]

13).276

Não há apoio externo algum para essa variante textual,277

que deve ser descartada pela

razão apresentada por Gestenberger: “... as antigas versões — e os intérpretes modernos —

tendem a adaptar um verbo ao outro. [...] Portanto, é mais difícil explicar as diferenças no

vocabulário, e podemos considerar essas diferenças como mais provavelmente originais.”278

O problema textual d do versículo 21 é semelhante ao problema textual b do

versículo 13, e já foi discutido em detalhes em nossa análise crítica acima. Por fim, a questão

c do versículo 21 no aparato da BHS indica leituras variantes para o sintagma ולא (conjunção ו

+ advérbio de negação) do TM: dois manuscritos hebraicos medievais (2 Mss) e as versões

(Vrs) trazem לא (sem a conjunção ו); poucos manuscritos hebraicos medievais (pc Mss — de

3 a 10)279

apresentam a leitura בל (advérbio: “não”).

A segunda variante é, evidentemente, mais uma tentativa de padronização de refrão

(v. 13, 21), que foi analisada e rejeitada nos dois parágrafos anteriores. Além disso, ela carece

de evidência externa que a apoie claramente e não oferece, de modo significativo, mudança de

sentido em relação à primeira variante de leitura (versões). Quanto à ausência ou presença da

conjunção ו, as versões parecem oferecer uma leitura razoável e que deve remontar ao texto

hebraico original, pois formam um único testemunho textual em favor da ausência da

274

Para a leitura do aparato apresentada aqui, ver FRANCISCO, 2008, p. 78, 80. 275

OLIVER, 1861, p. 95, versículo 20. 276

ELLIGER; RUDOLPH, 1997, p. 1131. 277

Ver LXX (σ ῆ ε ); Psalterium iuxta Hebraeos (intellexit); Peshitta (OLIVER, 1861, p. 95, versículo 20). 278

GERSTENBERGER, 1988, Psalm 49 (edição kindle). 279

FRANCISCO, 2008, p. 86-7.

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conjunção280

e estabelecem um princípio geral como qualificativo para o ביקר ser“) אדם

humano em esplendor”): ele “não tem entendimento” (לאיבין).281

Depois de examinar a grande maioria dos problemas listados pelo aparato crítico da

BHS, ficou constatado que o TM reflete com mais probabilidade o texto em sua época de

produção, antes que começasse a ser copiado e preservado. A LXX segue o TM em grande

parte do Salmo 49, mas diverge dele em alguns trechos (muitas vezes acompanhada da

Peshitta), geralmente buscando uma leitura mais fluente e mais clara (e.g., v. 9a, 12a, 19ac,

20). A Segunda Coluna da Héxapla de Orígenes diverge em diversos aspectos do TM,

apresentando leituras variantes bastante peculiares em alguns momentos (v. 4, 6). O

Psalterium iuxta Hebraeos apoia em grande parte o TM e confirma a antiguidade da leitura

massorética. As variantes textuais normalmente são causadas por metátese (inversão de

sílabas em uma palavra), confusão de grafias semelhantes e de tentativas de deixar o texto

mais claro ou menos truncado. Em geral, o TM deve ser seguido, ora por forte apoio da

evidência externa, ora por apresentar a lectio difficilior ou lectio brevior.

1.3. Análise Literária do Salmo 49

“A poesia lírica se distingue de outras formas literárias no fato de ela ser uma forma

mais concentrada de discurso com uso mais intencional de elementos artísticos”.282

Portanto,

não observar a forma artística usada pelos poetas bíblicos para comunicar sua mensagem de

modo vívido e claro a seus leitores implica, certamente, deixar de apreciar parte do sentido

que o texto pode nos transmitir.

Nesta subseção, pretende-se lidar com os aspectos literários do Salmo 49. A princípio,

o objetivo é investigar sua relação com a chamada literatura de sabedoria: é possível

classificá-lo como poesia sapiencial, distinta, por exemplo, de outras composições cultuais,

como os lamentos e os hinos de louvor? Em seguida, será analisada a estrutura do salmo,

examinando propostas e sugerindo uma maneira de compreender o arcabouço literário que

contribua para uma apreciação mais ampla de sua beleza retórica. Por fim, serão destacados

280

LXX ( ὐ σ ῆ ε σ ῆ ε ); Psalterium iuxta Hebraeos (non intellexit); Peshitta (OLIVER, 1861, p. 95,

versículo 20: “Man in his honour hath no understanding…”). 281

Ver apoio à leitura variante das versões em ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 665; DECLAISSÉ-

WALFORD; JACOBSON; TANNER, 2014, p. 442; CRAIGIE, 1983, p. 357; KRAUS, 1993, p. 730; NET

Bible, 2005, Psalm 49.21. 282

ROSS, Allen P., Psalms, in: WALVOORD; ZUCK, 1985, v. 1, p. 780.

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elementos artísticos que reforçam e tornam mais vívida a mensagem do texto bíblico que é

objeto do presente estudo.283

1.3.1. A Gattung do Salmo 49: Um Salmo de Sabedoria

Em geral, há o reconhecimento de que alguns salmos da Bíblia Hebraica devem ser

classificados como “salmos de sabedoria” (e.g., Sl 37; 73; 112),284

relacionados aos mestres

do antigo Israel, que estavam, de certa forma, ligados ao movimento mais amplo da sabedoria

no Antigo Oriente Próximo.285

Alguns temas centrais da sabedoria em Israel eram pobreza

versus riqueza e a retribuição divina,286

devido à sua preocupação com o ensino de uma

conduta prática, fornecendo regras para uma filosofia de vida.287

O salmos sapienciais

também lidam com problemas que ameaçavam a vida dos fiéis no antigo Israel,

desenvolvendo reflexões e propondo soluções.288

Segundo Westermann, devemos distinguir entre “ditados de sabedoria”, breves

sentenças sapienciais encontradas, por exemplo, nos Salmos de Peregrinação (שירהמעלות; Sl

127.1,2,3-5; 133), e os “poemas/cânticos de sabedoria” (e.g., Sl 37; 49; 73; et al.), que eram

composições maiores e tinham uma profunda relação com o culto no antigo Israel.289

À

medida que os antigos mestres dominaram os gêneros dos salmos começaram a usá-los como

meios para expressar suas reflexões,290

havendo, consequentemente, uma influência recíproca

de temas entre a literatura sapiencial e a tradição do culto a YHWH.291

Os salmos sapienciais estão relacionados entre si não por um gênero literário

específico, mas por temas e linguagem comuns.292

Essas características têm sido identificadas

por estudiosos a fim de auxiliar na classificação dos textos de sabedoria da tradição cultual

hebraica. Apesar da relutância de poucos estudiosos em classificar o Salmo 49 como “salmo

283

Para uma análise mais breve do Salmo 49 publicada por este autor, ver NETO, 2017, p. 146-155. 284PLEINS, 2001, p. 430-8; SAUR, 2015, p. 181-201. 285

BERRY, 1995, cap. 2 (edição kindle); KRAUS, 1993, p. 89-90; LASOR; HUBBARD; BUSH, 1999, p. 485-7. 286

SABOURIN, 1974, p. 370; PINTO, 2014, p. 478. 287

ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, v. 1. p. 59; BELLINGER, 2012, p. 129. 288

VON RAD, 1973, p. 72. 289

WESTERMANN, 1980, p. 111. 290

VON RAD, 1973, p. 72. 291

WEISER, 1994, p. 59. 292

KRAUS, 1993, p. 90; SABOURIN, 1974, p. 369-71.

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de sabedoria”,293

há um consenso de que esta seja a designação mais adequada para o texto de

nossa análise.294

Diversos elementos indicam que o Salmo 49 é sapiencial (cf. Sl 37; 73, 112). Em

primeiro lugar, salmos sapienciais apresentam um chamado inicial feito pelo mestre (cf. Sl

78.1; Pv 2.1; 7.24: “E agora, filhos, dai-me ouvidos...”).295

“Essa é uma exortação transmitida

entre um mestre humano e alunos humanos, com o mestre convocando os alunos a receberem

a sabedoria declarada a eles por meio do ato de ouvir”, o que ecoa “um tipo específico de

discurso encontrado na literatura bíblica de sabedoria”.296

O início do texto do Salmo 49 traz

esse chamado que se dirige não apenas a Israel, mas a todos os povos (v. 2):

ל־העמיםשמעו־זאתכ

“Escutai isto todos os povos!”

האזינוכל־ישביחלד

“Dai ouvidos, todos os habitantes do mundo!”

Além do chamado inicial, um aspecto literário significativo dos salmos sapienciais é

que eles “não são dirigidos a YHWH em oração e louvor, mas aos homens, especialmente aos

menos instruídos”.297

O salmo 37, por exemplo, começa com uma exortação com diversos

verbos no imperativo da segunda pessoa do singular: “Não te ires [...] Não tenhas invejas [...]

Faze [...] Confia [...] Habita...” (37.1ss.),298 e depois refere-se a YHWH ou ’ n , na

terceira pessoa do singular, como a divindade que pune os ímpios e abençoa os justos: “O

293

Gerstenberger, por exemplo, demonstra essa relutância e afirma que o salmo é uma “comunicação cultual

divina” composta para ser cantada por um solista em um contexto de culto religioso em Israel. No entanto, ele

mesmo reconhece que a linguagem do salmo revela “a influência da reflexão de sabedoria na adoração posterior

ao Exílio” e o classifica como “Meditação e Instrução” (GERSTENBERGER, 1988, Psalm 49 [edição kindle]). 294

MURPHY, 1977, p. 34-5; SAUR, 2015, p. 192-5; BROYLES, 2009, p. 98; CRAIGIE, 1983, p. 358; SMITH,

2011, p. 107-8; RENDTORFF, 1998, p. 39; DAHOOD, 1965, p. 296; ZUCKER, 2005, p. 147; WEISER, 1994,

p. 285; KRAUS, 1993, p. 732-3; GIMÉNEZ-RICO, 2014, p. 400; SABOURIN, 1974, p. 374-5; LONGMAN III,

2014, Psalm 49 (edição kindle); SILVA, 2003, p. 21. 295

BUSS, 1963, p. 383. BELLINGER, 2012, p. 130; KRAUS, 1993, p. 91; O salmo 78 tem uma introdução

semelhante, em que há um apelo imperativo a “dar ouvidos” (האזינה) v. 1; cf. 49.2), uma referência à “boca”

como o veículo do discurso de sabedoria (v. 2; cf. 49.4) que profere “parábola” e “enigmas” (78.1-3; cf. 49.5)

(ver DUNN, 2009 [Tese de Doutorado], p. 203). 296

PETRANY, 2014, p. 87. 297SCOTT, 1971, p. 197. Cf. CROFT, 1984, p. 58: “Claramente, o Salmo 49 é um sermão, não uma oração —

dirigido a homem, a todos homens, não a Deus”. 298

שכן ה [...] אל־תקנא […] בטח […] ועש אל־תתחר [...]

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Senhor rirá dele299 [...] mas YHWH sustenta os justos300 [...] os passos do homem são

preparados por YHWH”301 (v. 13,17,23).302

Com o Salmo 49 não é diferente. Além do chamado inicial na segunda pessoa do

plural (v. 2-5; ver análise acima), o salmista apresenta uma reflexão sobre as riquezas e a

morte introduzida pela primeira pessoa do singular: “Por que temerei os dias maus...?”303 (v.

6-16), em que há referências a “Deus” (אלהים) na terceira pessoa do singular (v. 8,16), e

depois, apresenta uma exortação a seu público na segunda pessoa do singular: “Não

temas...”304 (v. 17-20). Portanto, não há súplica ou ação de graças dirigida a YHWH.

Outra característica importante dos salmos sapienciais é a tentativa de responder à

evidente ausência de retribuição à maldade dos ímpios e à justiça dos fiéis nesta vida, pois os

ímpios parecem prosperar enquanto os justos padecem.305

O Salmo 49 busca lidar com essa

questão debatida pelos sábios. A pergunta inicial, logo na primeira parte do salmo, indica esse

foco do autor: “6Por que temerei [...] [quando] a maldade dos que me atacam por trás

306 me

cercar? 7Os que confiam em suas posses e na abundância de seus bens se gloriam?”

307 (Sl

49.6,7]). Claramente, os ricos são identificados como traidores maldosos que perseguem o

justo.

A resposta/advertência segura no versículo 17 realça, novamente, essa questão e

mostra que o justo não precisa temer o ímpio que se enriquece: “Não temas se um homem

alcançar riquezas,308

se aumentar a glória de sua casa”,309

pois a morte é a grande niveladora

e demonstrará, de forma, definitiva o caráter efêmero das riquezas, cancelando as diferenças

entre ricos e pobres:310

“Pois não tomará tudo [consigo] em sua morte, não descerá atrás dele

sua glória” (v. 18). Enquanto o autor do salmo manifesta sua certeza de que será redimido

299

אדניישחק־לו300

הצדיקךוסומ יםיהו 301

י־גיהוהמ נומצעד ברכונ 302No Salmo 73, que também é classificado como sapiencial por vários estudiosos (e.g., PLEINS, 2001, p. 434-

5), há uma descrição da situação passada do salmista de questionamento acerca da prosperidade dos ímpios (v. 3-

16) e da resolução de seu dilema ao entrar no santuário de ’ e ver o “fim deles” (לאחריתם) como resultado do

juízo divino, em contraste com justo que é guiado e “recebido em glória” por Deus (v. 17-24). O louvor ocorre

apenas em uma pequena parte no final do salmo (v. 25-28). Ver também o Salmo 128. למהאיראבימירע303 אל־תירא304305

LONGMAN III, 2014, Psalm 49 (edição kindle); SABOURIN, 1974, p. 370. 306

Ver discussão sobre essa opção de tradução na análise exegética do versículo 6. 307

ילםוברבעשרםיתהללו יםעל־ח הבטח ני בייסוב עוןעק למהאירא[...]

308Ver esse sentido do verbo עשר no grau hifil em KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM,

1994-2001, p. 897. 309

רבהכבודביתואל־ת ישכי־י יראכי־יעשרא 310

GOULDER, 1982, p. 181; BERRY, 1995, cap. 5 (edição kindle).

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,da morte por YHWH (v. 16 [15]), os que confiam nas riquezas, em vez de em YHWH (פדה)

“como rebanho dirigem-se311

para o Sheol, Morte os pastoreará...”312

(v. 15 [14]).

Termos do salmo como חכמה (“sabedoria”; cf. Pv 1.20; 9.1; 24.7), תבונה

(“entendimento”; cf. Jó 12.12; 26.12; Pv 5.1), משל (“provérbio”; cf. Pv 10.1; 25.1; Ec 12.9),

são característicos da literatura de sabedoria do antigo (enigma”; cf. Pv 1.6; Sl 78.2“) חידה

Israel.313

A estilização autobiográfica também faz parte da poesia sapiencial (cf. Sl 73; Pv

24.30-34).314

No Salmo 49, a declaração do autor de que falará de “sabedoria” e exporá um

“enigma” ocorrem na primeira pessoa (v. 4-5), bem como a descrição da situação inicial em

que o salmista se vê cercado por ímpios traiçoeiros e ricos (v. 6,7).

Diante dos vários aspectos aqui destacados, parece seguro afirmar que o Salmo 49 é

uma poesia de sabedoria, escrita por um mestre que reflete sobre as incoerências da vida e

busca respondê-las com os elementos da morte e do cuidado de YHWH com aqueles que nele

confiam ao livrá-los do Sheol.

1.3.2. Estrutura do Salmo 49

Dentre as propostas mais ousadas para entender a estrutura do Salmo 49 está a de

David Zucker, que propõe uma reordenação dos versículos, seguindo uma estrutura de

degrau315

e perguntas-respostas, em que parte de um verseto é repetida e se torna o ponto de

partida para um novo movimento na poesia do salmo.316

O problema com a proposta é que ela

demanda uma mudança radical na sequência do texto, sem apoio textual para isso, como se

observa a seguir:317

Introdução (v. 2,4,3,5)

A. Por que devo temer o mal?

A morte é o destino dos que confiam em si (v. 6,14)

B. Pessoas que confiam na riqueza

A morte será o pastor delas (v. 7,15)

C. O dinheiro não pode redimir

Deus redime da morte (v. 8,16)

311

Ver esse sentido de direção em GOLDINGAY, 2006, psalm 49, nota 10 da tradução do Salmo 49 (edição

kindle); KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, 3c. 312

ותירעם כצאןלשאולשתומ313

GERSTENBERGER, 1988, Psalm 49 (edição kindle); BERRY, 1995, cap. 1 (edição kindle). 314

KRAUS, 1993, p. 90. 315

Embora ele cite Briggs para apoiar sua proposta de estrutura, o paralelismo de degraus explicado por Briggs

demanda repetição dos mesmos termos hebraicos, o que não ocorre na reestruturação de Zucker (ver BRIGGS,

1906, p. xxxvii). 316

ZUCKER, 2005, p. 145-7. 317

ZUCKER, 2005, p. 145-50.

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D. O preço do resgate é muito alto

Por isso, não tenha medo da riqueza (v. 9,17)

E. Acaso um indivíduo viverá para sempre?

A riqueza não descerá atrás de nós (v. 10,18)

F. Todos morrem

Embora em vida o indivíduo se abençoe (v. 11,19)

G. Mesmo os ancestrais famosos morreram

Ele se reunirá a seus ancestrais (v. 12,20)

Refrão: Como animais perecemos

Como animais perecemos (v. 13,21)

A falta de correspondência em algumas perguntas-respostas também revela a fraqueza

do esquema de Zucker, reconhecida pelo próprio autor, mas justificada como sendo causada

pelas alterações que o salmo sofreu no processo de transmissão.318

Fica evidente o argumento

circular aqui: algumas perguntas-respostas não têm correspondência porque sofreram

corrupção, e a suposta corrupção é vista na falta de correspondências entre as perguntas-

respostas.

Em vez de uma estrutura em degraus, alguns estudiosos têm observado uma estrutura

no Salmo 49 em forma de quiasmo relevante para o entendimento de sua mensagem central.

David Pleins, em um de seus artigos, desenvolve uma proposta de estrutura que ajuda

a ver essa natureza quiasmática do salmo, embora seja fragmentada demais para formar uma

estrutura geral. Ele observa que tanto no centro quanto no início/fim do salmo a ênfase do

texto está no fato de que os bens do rico tolo não o acompanharão em sua morte, servindo de

testemunho de sua tolice e da natureza humana passageira.319

Pleins elabora o seguinte

quiasmo no Salmo 49 com base em repetição de termos semelhantes no hebraico e em

paralelos temáticos:320

A. Ouvir: a primeira forma adequada de receber sabedoria (v. 2)

B. Todas as pessoas são chamadas a um entendimento mais profundo sobre a condição humana (v. 3-

4)

C. Uma pessoa cresce em entendimento à medida que dá ouvidos à sabedoria do salmo (v. 5)

D. O temor dos dias maus e os que confiam em suas riquezas (v. 6-7)

E. Um homem não pode redimir sua vida da morte (v. 8-9a)

F. O rico vê o sábio e o tolo morrendo, porém não atenta para a

sepultura (v. 9b-11a)

G. Os ricos e seus bens não são permanentes (v. 11b)

H. As construções dos ricos testemunham de que eles

não são eternos (v. 12-13)

318

ZUCKER, 2005, p. 151. 319

PLEINS, 1996, p. 19-20, 25-6. 320

PLEINS, 1996, p. 19-27.

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G’. A reputação dos ricos permanece como testemunho de sua

tolice (v. 14)

F’. O rico também está destinado à sepultura sobre a qual os justos

pisarão (v. 15)

E’. Deus pode redimir a vida do homem da morte (v. 16)

D’. Os dias maus são definidos pelo enriquecimento de um indivíduo, em que os bens de

sua casa aumentam (v. 17,18)

C’. Uma pessoa perde discernimento à medida que dá ouvidos às falsas visões sobre si mesmo (v.

19)

B’. Deixar de dar ouvidos à sabedoria e ao entendimento liga poeticamente a humanidade à geração

de seus pais (v. 20-21a)

A’. Silêncio: a segunda forma adequada de receber sabedoria (v. 21b)

A estrutura de Pleins, embora chame a atenção para ideias paralelas significativas do

Salmo 49, apresenta fraquezas que a tornam inviável. Em primeiro lugar, as partes A e A’ não

parecem enfatizar a mesma atitude positiva na recepção da sabedoria (segundo Pleins, ouvir e

ficar em silêncio).321

Enquanto o versículo 2 enfatiza o “ouvir” e o “dar ouvidos” para receber

a sabedoria, o versículo 21b não trata de uma recepção correta dela, mas do fim lastimoso do

“ser humano em esplendor” que “não entende”, ou seja, que rejeita a sabedoria, em vez de

recebê-la de modo apropriado. Ao “deixar de entender plenamente as dimensões da morte, é

inevitável que também deixem de entender plenamente as dimensões da vida”.322

São atitudes

opostas, não complementares, no trato da sabedoria.

Em segundo lugar, a ligação entre C (v. 5) e C’ (v. 19) é muito frágil. O foco do

versículo 5 não está tanto na audiência dando ouvidos à sabedoria,323

mas no autor do salmo

atuando como mediador de revelação divina;324

portanto, não há um claro contraste com o

indivíduo autoconfiante que “não verá a luz para sempre” (v. 19,20a). Por fim, a conexão

entre F (v. 9b,10,11a) e F’ (v. 15) é bastante tênue, pois o v. 10 tem uma forte

correspondência verbal com o v. 20 (não com o v.15), como o uso em ambos os versículos de

/לאיראה e de (”para sempre“) לנצח לאיראו (“não verá”/“não verão”), tornando pouco provável

uma ligação paralela entre v. 10 e v. 15 proposta por Pleins, que não apresenta associação

verbal alguma.

J. Spangenberg propõe uma divisão em que a introdução (v. 2-5) é seguida por quatro

estrofes (v. 6-10, 11-12, 14-16, 17-20), com os refrões (v. 13, 21) separando a primeira dupla

321

PLEINS, 1996, p. 20. 322

CRAIGIE, 1983, p. 360. 323

PLEINS, 1996, p. 21. 324

GOULDER, 1982, p. 185; WEISER, 1994, p. 286.

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de estrofes da segunda.325

Para Spangenberg, o salmo tem uma estrutura quiasmática e

concêntrica, em que há uma relação entre as estrofes A. 6-10 e A’. 17-10 e as estrofes B. 11-

12 e B’. 14-16, bem como entre os refrões C. 13 e C’. 21.326

Introdução (v. 2-5)

A. Estrofe I (v. 6-10)

B. Estrofe II (v. 11-12)

C. Refrão (v. 13)

C’. Refrão (v. 21)

B’. Estrofe III (v. 14-16)

A’. Estrofe IV (v. 17-20)

John Goldingay propõe uma divisão semelhante à de Spangenberg, mas, assim como

Derek Kidner,327

liga os refrões à segunda (v. 11-13) e à quarta (v. 17-21) estrofes,328

produzindo a seguinte estrutura quiasmática:

Introdução (v. 2-5)

A. Estrofe I (v. 6-10)

B. Estrofe II (v. 11-13)

B’. Estrofe III (v. 14-16)

A’. Estrofe IV (v. 17-21)

A justificativa dos autores para essa divisão quádrupla, distinta da estrutura tradicional

de duas estrofes, é a relação quiasmática paralela entre as estrofes tanto em temas quanto em

vocabulário. Há paralelos entre os v. 6 e v. 17 (a questão do temor) e entre o v. 10 e o v. 20

(uso do verbo - “não veja a sepultura”/ “não verá a luz”), ligações que, no esquema de

Spangenberg, iniciam e fecham as estrofes.329

Goldingay observa, ainda, que as estrofes A (6-

10) e A’ (17-21) focalizam o tema de que a riqueza não consegue livrar os ricos da morte.330

No segundo paralelo de estrofes B (v. 11-12) e B’ (v. 14-16), Spangenberg destaca que

os v. 11 e v. 16 contêm, respectivamente, o משל (“provérbio”) e o חידה (“enigma”) (v. 5). O

provérbio do v. 11 afirma que a morte é o único estado do qual rico e pobre, sábio e

insensato/bruto não podem ser redimidos. Assim, o enigma está no fato de que o fiel afirma

que ele será redimido (v. 16).331

Já Goldingay defende que a ligação está no fato de ambas as

325

SPANGENBERG, 1997, p. 329-30. 326

SPANGENBERG, 1997, p. 330-1. 327

KIDNER, 1980, p. 203-6. 328

GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição kindle). 329

SPANGENBERG, 1997, p. 331-2. 330

GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição kindle). 331

SPANGENBERG, 1997, p. 332.

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estrofes B e B’ declararem que a morte atinge a todos, inclusive sábios e ricos, a menos que

Deus os redima.332

Apesar dessas ligações temáticas relevantes, a divisão em quatro estrofes deixa de

notar outros links temáticos e verbais que poderiam ser identificados caso se preservassem

apenas duas estrofes com dois refrões no final de cada uma. Por exemplo, a estrofe A (6-10)

tem fortes relações temáticas/verbais com a estrofe B’ (14-16), como a ideia da redenção

indicada pelos termos פדיון (“resgate”) e פדה (“redimir”) em v. 8-9 (A) e v. 16 (B’) ou o termo

פש ,em v. 9 (A) e v. 16 (B). A mesma relação pode ser traçada entre B (v. 11-12 (”vida“) נ

Spangenberg) e A’ (17-20, Spangenberg): o túmulo como בית (“casa”) do rico (v. 12) é

contraposto à בית (“casa”) atual dele (v. 17). A ideia de deixar os bens para trás (v. 11 e v. 18)

também é uma ligação entre ambas as partes.

Portanto, a melhor estrutura para interpretar o salmo e apreciar sua arte retórica e

unidade, observando as relações paralelas entre as estrofes e refrões, é mantê-lo com uma

introdução (v. 2-5),333

seguida por duas estrofes principais (v. 6-12 e 14-20) com dois refrões

semelhantes, mas não idênticos, ao final de cada uma delas (v. 13, 21).334

“As duas partes têm

o mesmo tema e algumas relações significativas, sem ser duplicação”.335

Na introdução do salmo (v. 2-5), há um “chamado sapiencial/didático” a “ouvir”/“dar

ouvidos” (האזינו/שמעו) feito pelo mestre (cf. Sl 78.1; Pv 2.1; 7.24),336

que se dirige a todos os

povos (כל־העמים), isto é, todos os habitantes deste mundo transitório (חלד – “mundo”;

“existência”) (v. 2).337

Não há distinção de classe social no chamado (“seja rico, seja pobre”,

v. 3), pois todos os seres humanos (גם־בני־איש גם־בניאדם) carecem da essência do conteúdo a

ser anunciado, que consiste em “sabedoria” (חכמות) e “entendimento” (תבונות) (v. 4), em forma

de “provérbio” (משל) e “enigma” (חידה) (v. 5).

A primeira estrofe do Salmo 49 (v. 6-12) é introduzida por uma problemática que

surge da experiência do autor (רע בימי אירא (”?[...] Por que temerei os dias maus“ — למה

332

GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição kindle). 333

GIMÉNEZ-RICO, 2014, p. 401. 334

BORTOLINI, 2000, p. 206; BORTOLINI, 2002, p. 243; CRAIGIE, 1983, p. 358; GERSTENBERGER, 1988,

Psalm 49 (edição kindle); MAYS, 2011, p. 191. WEISER, 1994, p. 285; LONGMAN III, 2014, Psalm 49

(edição kindle). Raabe propõe algo semelhante, reconhecendo um prelúdio/introdução (v. 2-5), duas estâncias (v.

6-12, 14-20), seguidas cada uma por um refrão (ver RAABE, 1990, p. 84-5; cf. tb. SIQUEIRA, Comentário de

Salmos [no prelo]); entretanto Raabe distingue estância (seções maiores) de refrão (subseções) (p. 83-4). 335

ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 672. 336

BELLINGER, 2012, p. 130; KRAUS, 1993, p. 91. O chamado inicial feito pelo mestre (cf. Sl 49.1; 78.1; cf.

Pv 2.1; 5.1 7.24) também é conhecido por sua designação Lehreröffnungsruf (“exortações inaugurais do mestre”)

(ver NETO, 2016, p. 370). 337

Ver análise do versículo 2 no cap. 2.

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diante da oposição dos “que confiam em suas posses” (v. 6,7).338

Nos versículos 8-12, o

salmista apresenta sua primeira resposta à questão com uma nuance negativa:339

ninguém é

capaz de pagar “resgate” (כפר) a Deus para não ver a “cova” (שחת) (v. 8-10); portanto, todas

as diferenças entre os homens são niveladas pela morte, que atinge todos, não importando

suas aquisições e construções nesta vida (v. 11,12).340

No primeiro refrão (v. 13), o salmista lembra que o “ser humano em esplendor” “não

permanece” (בל־ילין), por isso, é semelhante aos “animais” (בהמות) que “perecem”.

A segunda estrofe (v. 13-20) tem uma nuance positiva ao contrapor o destino (lit.:

“caminho”) dos tolos autoconfiantes — o Sheol, onde a Morte os pastoreará (v. 13-15) — ao

do salmista,341

em que Deus fará o que homem algum é capaz de fazer: redimir sua vida da

morte (v. 16).342

Então há uma exortação343

a seus ouvintes para que não temam (אל־תירא -

“Não temas...”) o enriquecimento de um homem que se congratula (כי־נפשובחייויברך) achando

que “as coisas vão bem”, porque ele não levará consigo seus bens para a sepultura e sua

condição ali será permanente: “Não verão a luz para sempre” (v. 17-20).344

No segundo refrão (v. 21), há uma nova qualificação do “ser humano em esplendor”:

ele “não entende” יבין enfatizando a autoilusão do rico tolo que, por não adquirir o ,לא

“entendimento” (תבונות) oferecido no início (v. 4), pensou que viveria em suas casas “para

sempre” ou dizia a si mesmo que tudo ia bem, sem perceber que ele é “igual aos animais que

perecem” (cf. v. 12,19).345

Portanto, podemos propor a seguinte estrutura quiasmática, mas não concêntrica, para

o Salmo 49:

Epígrafe: Identificação do destinatário e da coleção do salmo (v. 1)

Introdução: Convocação sapiencial (v. 2-5)

a. chamado universal para ouvir (v. 2-3)

b. essência da mensagem: sabedoria e entendimento (v. 4)

c. forma da mensagem: parábola e enigma (v. 5)

338

TESH; ZORN, 1999. p. 353; WEISER, 1994, p. 285. 339

DECLAISSÉ-WALFORD; JACOBSON; TANNER, 2014, p. 439. 340

WEISER, 1994, p. 285; LONGMAN III, 2014, Psalm 49 (edição kindle). 341

WEISER, 1994, p. 285. 342

GERSTENBERGER, 1988, Psalm 49 (edição kindle); LONGMAN III, 2014, Psalm 49 (edição kindle). 343

James L. Mays também identifica essa última parte como uma exortação feita pelo mestre do salmo (ver

MAYS, 2011, p. 191). 344

RAABE, 1990, p. 88. 345

ESTES, 2004, p. 70.

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A. Estrofe I: A realidade da morte elimina o temor dos opositores que confiam em suas riquezas

(v. 6-12)

a. problemática: por que temer a oposição dos que confiam em suas riquezas? (v. 6-7)

b. resposta inicial: nenhum ser humano é capaz de se redimir da morte, que elimina todas as

diferenças entre os mortais (v. 8-12)

B. Refrão: O homem em esplendor perecerá como os animais (v. 13)

A’. Estrofe II: A realidade da morte e a confiança na redenção divina eliminam o temor de

alguém que se enriquece (v. 14-20)

a. resposta completa (parte 1): o destino dos ricos tolos é o Sheol, onde a Morte os pastoreará (v.

14-15)

b. resposta completa (parte 2): YHWH redimirá do Sheol a vida de quem nele confia (v. 16)

c. exortação decorrente das respostas: não temas quando alguém se enriquece porque a morte o

destituirá de seus bens terrenos (v. 17-20)

B’. Refrão: O homem em esplendor e sem entendimento perecerá como os animais (v. 21)

1.3.3. Coesão e Aspectos Retóricos do Salmo 49

Nesta última parte, pretendemos analisar o estilo e a arte retórica do autor do Salmo

49 destacando aspectos literários na construção de seu texto que o tornam mais claro e vívido

para o leitor. Northrop Frye ajuda na compreensão do que esta pesquisa entender por arte

retórica:

A retórica, desde o início, significou duas coisas: discurso ornamental e discurso

persuasivo. Essas duas coisas parecem psicologicamente opostas uma à outra, como

o desejo por ornamento é essencialmente desinteressado e o desejo por persuadir

essencialmente o oposto. De fato, a retórica ornamental é inseparável da literatura,

ou o que chamamos de estrutura verbal poética, cuja existência é autojustificada. A

retórica persuasiva é literatura aplicada, ou o uso da arte literária para reforçar o

poder de argumentação. A retórica ornamental atua sobre seus ouvintes

estaticamente, levando-os a admirar sua própria beleza ou engenho; a retórica

persuasiva procura levá-los cineticamente a um percurso de ação.346

Portanto, a crítica retórica implica a busca pelo entendimento dos recursos e

estratégias literárias empregados no texto para persuadir ou influenciar o leitor e embelezar o

texto, bem como a investigação dos objetivos ou efeitos gerais desses elementos retóricos.347

O fato de que os salmos são obras artísticas significa que eles revelam em plena

medida e com maior frequência os elementos da forma artística, incluindo arranjos,

esquema, unidade, harmonia e variação. Os salmistas eram imaginativos e criativos;

eles consideravam seu trabalho artístico tão fundamental quanto seu conteúdo.348

Um dos elementos retóricos usados pelo salmista é a repetição, que serve para

unificar as várias partes das duas estrofes.349 Alonso Schökel e Carniti350

notam o uso

346

FRYE, 2014, p. 391-2. 347

GORMAN, 2001, p. 13. 348

ROSS, 1985, v. 1, p. 780. 349

RAABE, 1990, p. 86.

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reiterado da raiz משל, que ocorre tanto na introdução quanto nos refrões do meio e do fim do

salmo. O autor diz que inclinará seu ouvido “a uma parábola/comparação” (למשל) (v. 5),

então, afirma que o “ser humano em esplendor” (ביקר)351

“é semelhante a” (נמשל) aos animais

em dois aspectos: não “permanece” (ילין) (v. 13) nem “entende” (יבין) (v. 21). “Como se

dissesse: vou propor uma comparação ou semelhança [...]: A que se assemelha o homem rico?

— Parece-se com os animais que perecem”352

e não têm entendimento.

Chama a atenção a repetição da raiz verbal ירא (“temer”), que aparece na pergunta

retórica do versículo 6: “Por que temerei...”, a qual é respondida em tom parenético no v. 17:

“Não temas...”.353

A repetição também ocorre com a raiz verbal ראה. Afirma-se que o homem

é inefetivo em sua tentativa de dar a Deus o “substituto expiatório” (v. 8) para que “não veja a

sepultura” (לאיראההשחת) (v. 10). De forma irônica, os ímpios ricos “não verão a luz” (לא

.uma imagem para o cadáver dentro da sepultura ,(v. 20) (יראו־אור

O uso de “geração” (דור) é muito significativo, pois o rico pensa que suas mansões

permanecerão “de geração em geração” (לדרודר) (v. 12) até descobrir que suas posses não o

poderão acompanhar quando for ter “com a geração de seus pais” (עד־דוראבותיו) (v. 20). “Em

vez de desfrutar de prosperidade perpétua, eles serão enviados para o mesmo destino não

invejável de seus predecessores”.354

Outro uso proposital de repetição ocorre entre os versículos 8 e 16, em que ambos

apresentam duas declarações básicas sobre a redenção com a mesma raiz verbal פדה: “Um ser

humano não redimirá de modo algum [לא־פדהיפדה] [seu] irmão” (v. 8), “mas Deus redimirá

.minha vida do poder do Sheol” (v. 16) [יפדה]355

O Salmo 49 também apresenta vários campos semânticos que estão

interrelacionados para costurar a coesão e transmitir a ênfase da mensagem do autor.356

Os

substantivos para designar os conceitos de riqueza e morte ocorrem quatorze vezes ao longo

da parte principal do salmo (v. 6-21), sete ocorrências dos termos do primeiro campo

semântico, e seis ocorrências do segundo. As formas nominais para indicar riqueza são: עשר

(v. 7b), חיל (v. 7a, 11c), כבוד (v. 17b, 18b), יקר (v. 13a, 21a). Os substantivos que descrevem a

350

ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 669-70. 351

Ver o uso de יקר em Ester 1.4; 6.3 (cf. GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 [edição kindle]). 352

ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 670. 353

ESTES, 2004, p. 59-60. 354

ESTES, 2004, p. 60. 355

GERSTENBERGER, 1988, Psalm 49. 356

GIMÉNEZ-RICO, 2014, p. 401.

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morte são: מות (v. 15b), שאול (v. 15a, d, 16b), שחת (v. 10b) e a cadeia de construto דוראבותיו

(v. 20a).357

Outro campo semântico que também é bastante ressaltado em Salmo 49 é o da

sabedoria, fazendo uso também do contraste com termos relacionados a seu oposto, a tolice.

Logo na convocação de abertura do cântico (v. 2-5), quatro termos relacionados à sabedoria

são empregados: חכמה (“sabedoria”),358 תבונה (“entendimento”),359 משל (“provérbio”),360 חידה

(“enigma”).361 “Minha boca falará sabedoria, e a meditação do meu coração [transmitirá]

entendimento. Inclinarei a um provérbio os meus ouvidos, exporei com a cítara meu enigma.”

(v. 4-5). No versículo 11, os dois grupos que representam os polos opostos da sabedoria e da

insensatez, יםחכמ (“sábios”) versus ערכסילוב (“insensato e bruto”), vivenciam uma realidade

comum à humanidade: “morrem ... são destruídos”.362 Por fim, o indivíduo que “não entende”

e “é semelhante aos animais” (v. 21) estabelece um contraste com aqueles que dão (ולאיבין)

ouvidos ao “entendimento” (תבונות) (v. 4) proclamado no início do salmo e exposto ao longo

do cântico.363

Outro elemento retórico bem empregado pelo autor do Salmo 49 é a assonância.

Ocorre um jogo de palavras com assonância entre אדם (“ser humano”) e אדמה (“terra”). O

primeiro termo é usado nos versículos 3, 13, 21 associando todas as pessoas por sua

humanidade em comum. Os ricos dão “seus nomes às terras [אדמות]” com a esperança de que

durarão “para sempre” (v. 12), mas o “ser humano [אדם] em esplendor não permanece” (v.

13).

A assonância também é vista entre o início do v. 8 e o do v. 16. No versículo 16, o

autor começa com uma partícula de ênfase אך (a , “mas [certamente]”)364

que remete ao som

da palavra inicial אח ( , “irmão”) do versículo 8, ambas introduzindo duas linhas que fazem

declarações com o termo פדה e tratam, respectivamente, da impossibilidade ou possibilidade

de redenção do Sheol (ver acima).365

357

RAABE, 1990, p. 87. 358

Cf. o uso comum de חכמה em textos sapienciais, e.g., Pv 1.20; 9.1; 24.7. 359

Cf. as ocorrências de התבונ em Jó 12.12; 26.12; Pv 5.1. 360

Cf. משל em Pv 10.1; 25.1; Ec 12.9. 361

Cf. חידה em Pv 1.6; Sl 78.2 362

ESTES, 2004, p. 61-2. 363

Observe-se o comentário de CRAIGIE, 1983, p. 360. 364

KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 45; KEIL; DELITZSCH, 1996, v.

5, p. 353. 365

RAABE, 1990, p. 87.

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Alguns autores tentaram reconstruir o texto do versículo 21, como fizeram escribas

de alguns manuscritos de textos hebraicos,366

alterando יבין (“entende”) para ילין

(“permanece”), a fim de torná-lo idêntico ao versículo 13. No entanto, essa reconstrução

destrói a assonância pretendida pelo autor entre יבין e ילין, que fornece as características

complementares “[d]os que confiam em suas riquezas”:367

tal “ser humano” [אדם] “não

permanece” (בל־ילין) e “não entende” (ולאיבין); nesses dois aspectos descritos por assonância,

o tolo “é como os animais que perecem” (v. 13, 21).

Por ser um texto poético antigo, o Salmo 49 está repleto de imagens. Como Leland

Ryken observou, “o princípio mais simples da linguagem poética é, talvez, o mais importante:

poetas pensam em imagem”, pois enquanto “a prosa expositiva usa a sentença ou parágrafo

como sua unidade básica, e a narrativa, o episódio ou a cena, a unidade básica da poesia é a

imagem individual ou figura de linguagem”.368

O uso de símile369

está presente nos dois refrões do Salmo 49 (v. 13,21), em que o

“ser humano em esplendor” (ביקר ) ”é comparado explicitamente “aos animais (ואדם נמשל

cujo termo hebraico pode indicar tanto “animais selvagens” quanto “animais ,(כבהמות

domésticos”,370

mas neste hino é definido especificamente como um “rebanho” (צאן) de

ovelhas em outra símile que ocorre no versículo 15: “Como rebanho dirigem-se para o Sheol,

Morte os pastoreará” ( ירע םמות שלשאכצאן תוול ). Os símiles estabelecem uma coesão e

esclarecem o tipo de animal a que o salmista se refere.

Outra maneira figurada de falar das condições de indivíduos e do próprio ’E ao

lidarem com a morte dos humanos ocorre pelo uso de termos cúltico-comerciais como a raiz

verbal פדה (“redimir”, “resgatar”) e o substantivo פדיון (“resgate”, “preço de redenção”) (v. 8-

9,16), empregados geralmente para se referir ao resgate cultual tanto de animais quanto dos

filhos mais velhos dos israelitas (Êx 13.13,15; 34.20; Nm 18.15), em que um valor monetário

poderia ser usado para esse fim (Lv 27.27; Nm 18.15b).371 O emprego de כפר (“substituto

expiatório”, v. 8), que provém do contexto judicial das leis civis para indicar uma reparação

366

Ver a nota do aparato crítico do versículo 21 na Biblia Hebraica Stuttgartensia (ELLIGER; RUDOLPH, 1997,

p. 1131) 367

ESTES, 2004, p. 69-70. 368

RYKEN, 1992, p. 159-62. 369

Entende-se por símile uma figura de comparação explícita, que usa expressões “como”, “é semelhante a”, etc.

Ver CORLEY; LEMKE; LOVEJOY, 2002. p. 26. 370

KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 111-2. 371

ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 672-3; KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON;

STAMM, 1994-2001, p. 912.

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(Êx 21.30; Nm 35.31),372 também é usado como imagem para tratar da relação dos seres

humanos com a morte.

Bortolini também observa o uso de “imagens e palavras fortes do âmbito do campo e

da terra” para comunicar a mensagem do autor, listando uma série de termos: “cova (10), [...]

a besta que morre (13,21), caminho (14), rebanho [...], a figura da nobreza que murcha como

erva (15)...”.373

Em conclusão de nossa análise, podemos afirmar que o Salmo 49 fez parte da

produção literária dos mestres do antigo Israel, tanto por sua linguagem sapiencial

(“sabedoria”, “entendimento”, “parábola”, etc.), quanto por elementos formais da literatura

(e.g., o chamado inicial; trechos em primeira pessoa) e por temas que aparecem nele

(retribuição e riqueza e pobreza).

A melhor estrutura para estudar o salmo é aquela que mantém duas principais

estrofes, que seguem a introdução e são seguidas por dois refrões semelhantes, mas não

idênticos. Por fim, percebe-se uma ênfase na repetição de certos termos com o propósito de

chamar a atenção para sentimentos (temor), comparações (“como os animais”) e para retratar,

com certa ironia, a infeliz sina dos que confiam em riquezas transitórias ao serem incapazes

de alterar o curso final da vida humana: a morte.

372

MAAS, F., כפר, in: JENNI; WESTERMANN, 1997, p. 626. 373

BORTOLINI, 2002, p. 245; BORTOLINI, 2000, p. 208.

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2. ANÁLISE DO CONTEÚDO DO SALMO 49

No presente capítulo, será desenvolvida uma análise exegética dos aspectos

sintáticos, semânticos e literários do Salmo 49, que examinará o texto conforme os blocos da

divisão literária proposta no capítulo anterior. Na sintaxe, o foco estará na interrelação das

palavras nas frases e orações dos versetos ou de grupos de versetos. No estudo semântico, será

dada atenção ao sentido de palavras centrais à luz do contexto literário específico do próprio

salmo e da Bíblia Hebraica em geral. Embora o cerne da análise literária esteja no capítulo

anterior, os tipos de paralelismos no conjunto de dois ou três versetos (bicólons ou ticólons)

também será objeto da pesquisa exegética deste capítulo.

2.1. Epígrafe do salmo (v. 1)

49.1Para o dirigente de música, um salmo concernente aos coraítas.

O Salmo 49 inicia com a informação de que foi composto למנצח (“para o dirigente de

música”; “para o mestre de música” [NVI]; ou “ao regente do coro” [A21]). Segundo o BDB,

“[a expressão] ח em títulos de salmos, tem, provavelmente, o sentido semelhante a ,למנצ

dirigente de música ou regente de coro”.374

O último vocábulo (מזמור) é uma designação bastante comum nos títulos da salmódia

israelita e também aparece ao final da epígrafe em outros salmos dos filhos de Corá (Sl 47.1;

84.1; 85.1; 87.1).375

O sentido básico de מזמור é o de “salmo”,376

mas parece indicar “uma

música cantada com o acompanhamento de um instrumento musical” (cf. Sl 33.2; 71.22; Sl

98.5; 147.7; 149.3).377 Geralmente, a LXX traduz essa palavra hebraica por ψα ς (“cântico

de louvor”, “salmo”, “música tocada com um instrumento”).378 Hans-Joachim Kraus explica

que a diferença básica entre מזמור e שיר (“canção”;379 outro termo bastante comum nos títulos

dos salmos) é que o segundo “designava provavelmente de modo original e dominante a

374

Ver BROWN.; DRIVER.; BRIGGS, 1977, p. 664. Ver apoio para essa compreensão do termo em

HOLLADAY; KÖHLER, 2000, p. 244; GESENIUS, 2003, p. 562. 375CLINES, 1998, v. 4 p. 209. 376KIRST et al., 2004, p. 121; HOLLADAY; KÖHLER, 2000, p. 189; SWANSON, 1997, verbete 4660 (edição

eletrônica); KIDNER, 1980, p. 51. 377

KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, p. 566. 378

LUST; EYNIKEL; HAUSPIE, 2003, verbete ψα ς (edição eletrônica). 379BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 1010.

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execução vocal e recitada de um salmo”, ao passo que o primeiro indicava, “antes de tudo, o

canto com acompanhamento de instrumentos”.380

A expressão hebraica רחלבני־ק pode ser entendida tanto como uma indicação de que o

salmo foi escrito por um dos descendentes de Corá quanto que ele foi escrito para ser cantado

por esses levitas.381

A grande problemática repousa na definição do uso semântico da

preposição ל,382

que pode ser traduzida de diversos modos, como “para”, “de”, “concernente

a”, “em relação a” ou “dedicado a”.383

Wilhelm Gesenius entendia o uso do ל nos títulos dos salmos como um lamed

auctoris, ou seja, um indicativo de autoria, por exemplo, em Salmo 3.1: לדוד salmo“ מזמור

pertencente a Davi como o autor”, com base em línguas semíticas (em especial, o árabe).384

No entanto, o uso da preposição le em ugarítico, como nos ciclos de Baal, por exemplo, na

expressão b‘ , não indica autoria, mas a tabuleta “pertencente a[os textos] de Baal” ou o texto

que fala “a respeito de Baal”.385

Clines classifica o uso dessa preposição nos salmos com o

sentido de posse, com as traduções “de”, “pertencente a”, “concernente a”, em vez de definir

se a ideia é de origem ou destinatário (e.g., “de Davi” ou “para o mestre de música”).386

Em usos específicos em títulos de cânticos ou poemas da Bíblia Hebraica, a

preposição ל parece ter o sentido de origem ou autoria (Hc 3.1: “oração de Habacuque” em

resposta à revelação divina dos caps. 1—2; cf. Is 38.9; Sl 18.1). Em outros casos pode indicar

a quem o salmo se destina ou de qual coleção faz parte (“para o / da coleção do mestre de

música” em Sl 4.1; 11.1), bem como o momento em que deveria ser cantado ou lido (“para [o

uso n]o dia de sábado” (Sl 92.1).

Na verdade, é muito provável que os coraítas não apenas fossem responsáveis pelo

louvor em Israel (“para os coraítas”) (2Cr 20.19), mas também compusessem músicas (“dos

coraítas”), como os Salmos 42—49; 84—85; 87—88.387 Hemã talvez seja representativo

dessa situação: ele era líder dos coraítas, dirigindo o canto no santuário de YHWH (1Cr 6.31-

380KRAUS, 1993, p. 29. 381

Ver a discussão sobre o lamed auctoris em CRAIGIE, 1983, p. 33-35. 382

ALTER, Robert, Salmos, in: ALTER; KERMODE, 1997, p. 264; GOULDER, 1982, p. 2. 383

FRANCISCO, Edson F. Antigo Testamento Interlinear: os Escritos, v. 4, Salmo 3.1: preposição lamed (no

prelo); BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 510-517; VANGEMEREN, 1991. v. 5., p. 19. KOEHLER;

BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2000, p. 507-510. 384GESENIUS; KAUTZSCH; COWLEY, 1910, p. 419-20, §129.c. 385CRAIGIE, 1983, p. 34; ver WEISER, 1994, p. 64 386CLINES,1998, v. 4, p. 479-80, sentido 1. 387BUSS, 1963, p. 382-92.

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38, esp. v. 33,37; 15.17,19) ao mesmo tempo que aparece como autor do Salmo 88388 (להימן

יהאזרח – de [lamed auctoris] Hemã, o ezraíta), que tem a indicação לבני־קרח (“concernente aos

filhos de Corá”).

Embora seja provável que canções pertencentes aos coraítas fossem compostas por

levitas relacionados ao templo e à adoração,389 como parece ser o caso do Salmo 49,390 talvez

a questão central não seja definir o sentido exato de ל, mas vê-lo como indicador de que cada

salmo com o título לבני־קרח (“concernente aos filhos de Corá”) pertencia a uma coleção

atribuída aos “coraítas” antes de ser inserida no Saltério mais amplo.391

“Mais do que

qualquer outro grupo, o pessoal ligado ao serviço do culto [...] tinha o maior interesse na

coleção, conservação [...] do antigo patrimônio dos cânticos”.392

Quem eram os coraítas? A tradição bíblica os retrata como descendentes de Corá,

antigo líder de uma família levítica que teria se revoltado contra a liderança de Israel no

deserto.393

Corá ben Isar era um homem rico, primo de Moisés e fazia parte do clã dos

Coatitas (Êx 6.18-21; Nm 27.58-59; 1Cr 6.18-22[33-37]; 32.12-13). Ele se rebelou contra

Moisés e Arão com alguns rubenitas (Datã, Abirão e Om) e mais 250 levitas. Datã e Abirão

foram tragados vivos com suas famílias pela terra que se abriu e desceram ao Sheol (Nm

16.30-33). Isso também ocorreu com Corá, seus bens e os homens que o serviam.

No entanto, o texto de Números afirma que os filhos de Corá foram poupados394

por

YHWH e redimidos do Sheol: “... Mas os filhos de Corá não morreram” (Nm 26.10,11).395

O

evento foi tão marcante na vida dessa família que ela o guardou na memória ao atribuir nomes

a seus descendentes que recordavam o evento, conforme indicado por David C. Mitchell:

Elcana (“Aquele a quem Deus redimiu”, ou mesmo “Deus Zeloso”, Êx 6.24; 1Cr

6.8-12[23-27]; cf. v. 19-22[34-37]), Abiasafe (“Pai do Ajuntamento” ou mesmo

paronomasticamente: “Ele recolheu meu pai", Êx. 6.24; 1Cr 6.22 [37]). E os seus

descendentes eram Naate (“Afundado” [...] 1Cr 6.11[26],19[34]); Zufe

(“Submergido”, 1Cr 6.20 [35]); Aimote (“Irmão da morte”, 1Cr 6.10[25],20 [35] ); e

Taate (“Mundo inferior”, 1Cr 6.9[24],22[37]).396

388KIDNER, 1980, p. 48-9; ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 77; LONGMAN III, 2014, Introduction

2a (edição kindle). 389GOULDER, 1982, p. 2; BUSS, 1963, p. 382-92. 390Ver análise no cap. 3 sobre a relação entre o templo e os sábios no antigo Israel. 391

MITCHELL, 2006, p. 368. 392WEISER, 1994, p. 65. 393

SARNA, 1993b, p. 37. 394KIDNER, 1980, p. 48. 395

MENDONÇA, 2012, p. 26-8. 396MITCHELL, 2006, p. 369-70, 372-3.

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A importância do Sheol e os horrores da morte assumiram grande ênfase em vários

salmos dos coraítas:397 “e a minha vida se aproxima do Sheol” (Sl 88.4[3]); “atirado entre os

mortos; como os feridos de morte que jazem na sepultura” (88.6[5], ARA); “e me livraste a

vida do mais profundo poder do Sheol” (86.13); “para nos esmagares onde vivem os chacais;

e nos envolveres com as sombras da morte” (44.20[19]).398 O Salmo 49, que é o foco desta

pesquisa, enfatiza ainda mais o tema da morte, do Sheol e do livramento deste:

Certamente, verá que os sábios morrem, insensato e bruto juntos são destruídos. (v.11)

Mas um ser humano em esplendor não permanece, é semelhante aos animais [que] perecem. (v. 13)

Como rebanho dirigem-se para o Sheol, Morte os pastoreará. De manhã, os justos dominarão sobre eles. O Sheol

engolirá suas formas. (v. 15)

Mas Deus redimirá minha vida do poder do Sheol; certamente me tomará. (v. 16)

O cronista apresenta informações importantes sobre esse grupo de levitas. Eles são

retratados como porteiros do santuário (1Cr 9.19; 26.19), responsáveis pelo preparo de bolos

das ofertas de sacrifício (1Cr 9.31) e por entoar louvores na casa de Deus, conduzindo o

louvor da congregação de Israel sob a liderança de Hemã (1Cr 6.31-38; 2Cr 20.19).399

Embora se questione o quadro histórico apresentado pelo autor bíblico como uma

projeção da época do segundo templo sobre um período anterior, os dados parecem confirmar

a atuação desse grupo no período pré-exílico. Em primeiro lugar, o livro de Esdras-Neemias,

ao relatar os grupos levíticos que voltaram do cativeiro, menciona apenas os asafitas (Ed 2.41;

Ne 7.44; ), que também atuaram na cerimônia de fundação do templo pós-exílico (Ed 3.10).

No entanto, Hemã, Etã e os coraítas, personagens e grupos levíticos que aparecem em

Crônicas (1Cr 6.31-38; 9.19,31; 15.17,19; 26.19; 2Cr 20.19) não recebem menção alguma. Se

eles eram levitas atuantes no segundo templo, por que não existe referência alguma a eles em

outros textos pós-exílicos? Por que o cronista teria inventado grupos leviticos que nunca

existiram?400

O segundo fator que corrobora a atuação do coraítas na Judá pré-exílica foi a

descoberta do templo em uma fortaleza em Tel-Arad, no sul de Judá, com estrutura

arquitetônica semelhante à de Jerusalém.401

No estrato VIII, que remonta ao século VIII

A.E.C. e apresenta indícios da destruição causada por Senaqueribe, rei da Assíria, foram

397MENDONÇA, 2012, p. 28-9. 398MITCHELL, 2006, p. 374-6. 399KRAUS, 1993; KIDNER, 1980, p. 48. 400SARNA, 1993a, p. 21-2. 401

SIQUEIRA, 2012, p. 44-51.

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encontrados oito óstracos, um deles fazendo referência a Pasur, personagem sacerdotal

referido em 1Crônicas 9.11. Nesse mesmo nível da escavação, descobriu-se na base de um

vaso polido referência aos pagamentos ou às porções de alguns grupos, dentre eles os “filhos

de Corá”.402

Segundo o relato arqueológico, o templo desse estrato continha também um altar

demolido, que pode remontar à reforma de Ezequias — destruição de todos os altares

concorrentes em Judá (2Cr 32.11-12; 2Rs 18.22; Is 36.7) e a eventual transposição de levitas e

sacerdotes para o templo de Jerusalém (2Cr 29.1-17).403

Vários estudiosos têm reconhecido a antiguidade dos salmos dos filhos de Corá,404

em especial os capítulos 42—49, por ser uma coleção menor dentro de outra coleção do livro

de Salmos, a coleção Elohista.405

Se os coraítas já estavam em Arad, no sul do Judá no século

VIII A.E.C., a tese de que eles serviam no santuário de Dã, ao norte, e depois migraram para o

sul após a destruição de Samaria é bastante improvável.406

A lista antiga de Números 26.58

que cita os coraítas juntamente com outros grupos da região de Judá parece reforçar a tese de

que eles atuavam no Reino do Sul.407

A importância de Jerusalém e do culto nos salmos dos

coraítas (46.5,6; 48.3,4,9; 87.5) e a saudade do templo sentida pelo levita exilado (Sl 42.1-4)

reforçam essa tese.408

Portanto, parece adequado propor a origem do Salmo 49 nesse ambiente

cultual do sul de Judá

2.2. Introdução: convocação sapiencial (v. 2-5)

49.2Escutai isto, todos os povos!

Dai ouvidos, todos os habitantes do mundo!

3Sim, seres humanos, [todas as] pessoas;

seja rico, seja pobre.

4Minha boca falará sabedoria,

e a meditação do meu coração [transmitirá] entendimento.

5Inclinarei a um provérbio os meus ouvidos,

Exporei com a cítara meu enigma.

402

SARNA, 1993a, p. 21-2; AHARONI; HERZOG; RAINEY, 1987, p. 34-5. Esse achado desmonta a antiga tese

de C. H. Toy de uma data pós-exílica para os salmos dos coraítas e defende uma data final para a formação dessa

coleção no período dos macabeus (ver TOY, 1884, p. 80-92). 403

AHARONI; HERZOG; RAINEY, 1987, p. 23-6, 34-5. 404GERSTENBERGER, 1988, cap. 1.1 (edição kindle); SARNA, 1993b, p. 37. 405CRAIGIE, 1983, p. 28-30. 406MILLER, 1970, p. 62-64. Contra GOULDER, 1982, p. 1-84; MENDONÇA, 2012, p. 40-1). 407BUSS, 1963, p. 388. 408KRAUS, 1993.

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62

O versículo 2 dá início ao salmo com dois versetos409

estruturados em um

paralelismo sinônimo direto410

da seguinte forma: A. verbo (“Ouvi”) / A’. verbo (“Dai

ouvidos”); B. pronome demonstrativo (“isto”) / B’. elipse (“—”); C. vocativo (“todos os

povos”) / C’. vocativo (“todos os habitantes do mundo”).

שמעו / זאת / כל־העמים

האזינו / ---- / כל־ישביחלד

Apesar de estar ausente por elipse no segundo verseto, o pronome demonstrativo זאת

é pressuposto411

na segunda linha e funciona como objeto dos dois verbos.412

Ele é usado

como um pronome neutro (“isto”), sem definir o que os ouvintes devem “ouvir”,413

pois o

conteúdo é determinado pelo texto a seguir (v. 6-21).

Os verbos paralelos (שמעו e האזינו) são recorrentes em textos da tradição sapiencial,

como um chamado a amigos (שמע em Jó 5.27; 13.6,17; 15.17; 21.2; 32.10; 33.1; אזן em Jó

33.1; 34.16; 37.14), a sábios (שמע em Pv 1.5), a esposas (שמע e אזן em Gn 4.23), ao povo (אזן

em Sl 78.1) ao filho/discípulo (שמע em Pv 1.8; Pv 4.1; 5.7; 7.24 et alli), aos céus e à terra

para ouvirem o ditado, o conselho ou a argumentação do falante (um (em Dt 32.1 אזן e שמע)

amigo, sábio, pai, marido, líder da nação), que supostamente tem algo sábio a dizer.414

Observa-se, neste versículo, um chamado universal do sábio dirigido a “todos os

povos” (כל־העמים) e a “todos os habitantes do mundo” (יחלד .(v. 2) (כל־ישב415

Os imperativos

são usados com o sentido de convite (”ouvi“) שמעו e (”dai ouvidos“) האזינו416

para que todos

ouçam ou prestem a atenção à resolução do enigma que o salmista apresentará.417

Essa

409

Seguimos a preferência de Robert Alter por “verseto”, em vez de usarmos hemistíquio ou colon (plural cola),

porque “ambos têm associações equivocadas com a versificação grega, o último termo também evoca, de forma

inadvertida, associações com órgãos intestinais ou refrigerantes” (ALTER, 2011, p. 8 [edição kindle]). 410

Ver RYKEN, 1992, p. 180-181; KÖSTENBERGER; PATTERSON, 2014, p. 240-1; CHISHOLM, 1998. cap.

6 (edição kindle). 411

Köstenberger e Patterson explicam o fenômeno da elipse na estrutura de versetos paralelos da poesia hebraica:

“a supressão de uma palavra presente apenas em um verso paralelo, embora se deva compreendê-lo nos dois”,

assim, o termo “do primeiro verso paralelo está ausente no segundo verso, porém, subentendido nos dois”

(KÖSTENBERGER; PATTERSON, 2014, p. 262). Ver também MILLER, 2003, p. 251-270. 412

GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição kindle). 413

WALTKE; O’CONNOR, 2006, p. 312, 17.4.3.a. 414

Ver também BELLINGER, 2012, p. 130; KRAUS, 1993, p. 91. 415

O uso de כל duas vezes (כל־העמים e חלד ressalta o caráter universal do público ao qual o salmista se (כל־ישבי

dirige 416

MERWE; NAUDÉ; KROEZE, 1999, p. 151, §19.4.2.1.d (edição eletrônica); WALTKE; O’CONNOR, 2006,

p. 571-2 (exemplos 9-11). 417

Cf. o uso do imperativo com a mesma função em Rt 2.14; Is 5.3 (na segunda passagem, há um chamado

coletivo, mas aos homens de Judá).

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mensagem universal era uma característica da literatura de sabedoria,418

uma tradição

“abrangente e internacional em substância e escopo”.419

Os próprios temas centrais do salmo,

a morte que atinge a todos (v. 8-13) e o problema da prosperidade dos ímpios (v. 6-7, 17-20),

afetam os seres humanos em geral, o que também dá sentido ao apelo transcultural do

salmista.420

O contexto literário mais amplo também apresenta um foco universal. No salmo 46, a

“voz” (קול) de YHWH faz as “nações” se agitarem e se abalarem (46.7), por isso, são

chamadas a aquietar-se e reconhecer que o “Deus de Jacó” (אלהייעקב) é “Deus, exaltado nas

nações, exaltado na terra” (בארץ ארום בגוים Neste salmo, predomina o .(46.11) (ארום

substantivo גוי (“nação”) no plural para se referir aos habitantes da “terra” (cf. 46.7,11). Já o

salmo 47 começa com o vocativo כל־העמים (“todos os povos”, 47.2), que é idêntico ao de 49.2

(“Escutai isto, todos os povos [ יםכל־העמ ]”),421

chamando os povos a darem gritos de alegria

.em honra a Deus (47.2) (הריעו)

No paralelismo dos vocativos, o segundo (“todos os habitantes do mundo”) parece

complementar o primeiro (“todos os povos”), “apontando para o aspecto cronológico, em vez

de simplesmente geográfico ou étnico. O quadro de todos nós como pessoas de uma era que

está passando ( e e ) nos dá uma dica sobre a direção para a qual o salmo está

caminhando”.422

Essa observação de Goldingay é pertinente, pois, de fato, o substantivo לד ח

pode indicar “mundo”,423

“vida” ou “existência”424

e “tempo de vida”.425

Esse sentido temporal — e com uma limitação implícita — de לד é visto em suas ח

outras ocorrências na Bíblia Hebraica. Salmos 17.14 fala dos homens “do mundo” (לד (ח426

cuja “porção” está nesta “vida”. Em Jó 11.17, o sentido é de “vida”,427

a existência de um ser

humano neste mundo. Em Salmos 39.6[5], לד designa a “vida/existência” do salmista que é ח

“como nada diante de ti” e, em Salmos 89.48[47], o termo aparece na pergunta do fiel a Deus:

“O que é a vida/existência [minha]?”. Percebe-se nesses textos a concepção de que a vida é

418

ALTER, 2007.

170-1; ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 669; KIDNER, 1980, p. 203. 419

CRAIGIE, 1983, p. 358. 420

WEISER, 1994, p. 286; CHARRY, 2015, Psalm 49 (edição kindle). 421

GOULDER, 1982, p. 184. 422

GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição kindle). 423

BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 317; KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM,

1994-2001, p. 316. 424

ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 221. 425

GESENIUS, 2003, p. 279; HOLLADAY; KÖHLER, 2000, p. 104. 426

A L usa πὸ γῆς (“da terra”). 427

A LXX traduz por ζωή (“vida”).

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breve e de que o “mundo” é o mundo da vida ou existência humana, ambas passageiras; “o

substantivo e e tem a conotação do que é limitado e restrito ao tempo [...] um mundo

passageiro”.428

Nesse sentido, podemos concordar com BDB de que לד seria sinônimo do ח

termo grego α ώ (“era”, “século”; “mundo”), não de σ ς (“mundo”, “universo”).429

Assim, a mensagem do salmista se dirige a todos os seres humanos e os lembra de que são

mortais.

No versículo 3, há um problema de tradução que merece atenção especial. A maioria

das versões costuma entender a sentença גם־בניאדםגם־בני־איש como indicadora de dois grupos

opostos socialmente. O grupo de classe social baixa seria אדם ,(” ’ lit., “filhos de) בני

expressão traduzida por “gente do povo” (NVI, BJ), “humildes” (A21, ARC, Ave Maria),

“plebeus” (ARA), e o de classe mais alta seria בני־איש (lit., “filhos de ’ s ”), traduzido por

“homens importantes” (NVI), “nobres” (A21), “os de fina estirpe” (ARA), “grandes” (ARC),

“homens de condição” (BJ), “poderosos” (Ave Maria).

Essa hipótese tem recebido apoio de comentaristas, como Hans-Joachim Kraus: “O

paralelismo, com seu efeito de quiasmo, mostra que a combinação em estado construto בניאדם

pode ter o sentido de ‘gente simples’, enquanto בני־איש designa os ‘filhos de senhores’, a

‘gente importante’”.430

Em um comentário mais recente, Goldingay defende a mesma ideia e a

propõe em sua tradução:

O versículo 2 [v. 3, TM] leva essa ideia adiante, se ‘filhos de um ser humano’ (ben

’ ) e ‘filhos de um indivíduo’ (ben ’ ) denotarem pessoas de status e pessoas

sem importância [em ordem inversa no texto da tradução de Goldingay] — e, de

qualquer modo, o segundo cólon apresenta uma ideia semelhante com sua referência

tanto a ricos quanto a pobres. A questão do salmo é importante para todas as

pessoas do mundo, independente de sua posição social ou de seus recursos.431

Em um comentário de Salmos, Alonso Schökel oferece a mesma proposta de seu

dicionário432

e vê nessas duas expressões “merisma ou expressão polar”, um “recurso

ordinário de amplificação”,433

assim, “por polarização”,434

ele apresenta a tradução “tanto

plebeus como nobres”. Essa tradução/interpretação do primeiro verseto de Salmos 49.3 tem

428

RAABE, 1990, p. 70. 429

BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 317. 430

KRAUS, 1993, p. 734. 431

GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição kindle, itálico acrescentado). Como a parte em destaque deixa claro,

para Goldingay, o primeiro verseto (que apresenta o problema de tradução) trataria de classes sociais opostas, ao

passo que o segundo faria referência à distinção econômica. Essa também parece ser a posição de Craigie e

Longman III (ver CRAIGIE, 1983, p. 358; LONGMAN III, 2014, Psalm 49). 432

Ver ALONSO SCHÖKEL, 2004. p. 27-8. 433

ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 674. 434

ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 666.

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sido seguida por vários comentaristas.435

De acordo com as teses de Kraus e Alonso Schökel,

os dois versetos formariam um paralelismo sinônimo invertido ou quiasmático436

estruturado

da seguinte maneira: A. “pessoas comuns” / A’. “pobre”; B. “nobres” (“isto”) / B’. “rico”.

גם־בניאדם / גם־בני־איש

עשיריחד / ואביון

Entretanto, essa compreensão tradicional de אדם tem uma série de בני־איש e בני

problemas. Em primeiro lugar, há propostas que defendem uma tradução inversa das duas

expressões, ou seja, אדם .”como “pessoas comuns בני־איש como “nobres”, e בני437

Ainda no

contexto da literatura sapiencial (do qual o Salmo 49 faz parte), J. Ademar Kaefer, em uma

análise semântica detalhada de אדם em Eclesiastes, chega à conclusão de que o termo significa

“o amante do ‘dinheiro’, o rico [...] o comerciante, uma categoria comercial emergente

alinhada com o setor opressor: proprietários, administradores e rei”.438

Se compararmos a proposta tradicional dos comentaristas e versões com a proposta

recém-citada, a pergunta central é: Como um termo (אדם) e uma expressão (אדם (בני

praticamente iguais podem significar ideias tão opostas (“rico opressor”439

e “gente

simples/pessoas comuns”440

) em textos que fazem parte da mesma tradição sapiencial? Essa

pergunta nos leva à hipótese de que אדם e אדםבנ י têm um sentido mais amplo a ponto de

abranger ambos os conceitos.

Em segundo lugar, as expressões אדם não parecem ser opostas, mas בני־איש e בני

paralelas, semelhantes, não indicando classes sociais distintas, mas a humanidade em sua

fragilidade e em contraste com Deus.441

Essa foi a conclusão de J. van der Ploeg em uma

análise semântica das duas expressões no Antigo Testamento e na literatura sapiencial:

Todos esses textos (com a possível exceção de 2Sm 17.25), dão uma ideia muito

clara de que ben ’ é usado como uma expressão paralela de b

en ’ , não tendo

um sentido especial. Como é a regra nesses casos, o salmista usa, primeiramente, a

435

DAHOOD, 1965, p. 295-6; GERSTENBERGER, 1988, Psalm 49 (edição kindle); TESH, 1999. p. 353;

CRAIGIE, 1983, p. 358; LONGMAN III, 2014, Psalm 49. 436

KÖSTENBERGER; PATTERSON, 2014. p. 240-1; ZUCK, 1994, p. 160-1; 437

BRUEGGEMANN, 1984, p. 107. 438

KAEFER, 2016, p. 146 (ver o estudo semântico nas p. 145-147). Kaefer defende a mesma tese em outro texto,

a de que ’ são os comerciantes, ávidos por dinheiro, uma categoria socioeconômica pertencente ao terceiro

plano da pirâmide social no contexto dos ptolomeus, abaixo do rei e de seus administradores (ver KAEFER,

2007, p. 271-298). 439

KAEFER, 2016, p. 146. Kaefer, ao analisar Eclesiastes 3.18,19, identifica os אדם como os “filhos” do בני

“’a a opressor” (p. 145). 440

KRAUS, 1993, p. 734; GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição kindle). 441

GOULDER, 1982, p. 184.

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expressão que é a mais comum para ele, isto é, ben ’ , e, na sequência, uma

expressão menos comum.442

Depois de observar a natureza geral de e individual de ’ , Derek Kidner

também defende uma leitura distinta da tradicional, vendo ambos os termos como

semelhantes, não opostos, e segue a proposta de tradução da NEB: “A dupla frase é

interpretada por NEB de modo convincente: ‘toda a humanidade, todo homem vivo’”.443

A

nota da NET Bible, cuja tradução também difere da tradicional,444

apoia a conclusão de Ploeg

sobre as duas expressões paralelas, afirmando:

A rara expressão בני־איש (“filhos de um homem”) parece se referir aos seres

humanos em geral em seus outros usos (Sl 4.2; 62.9; Lm 3.33). É melhor entender

‘mesmos os filhos da humanidade’ e ‘mesmo os filhos de um homem’ como

expressões sinônimas [...] A repetição enfatiza a necessidade de todas as pessoas

prestarem a atenção, pois a mensagem do salmista é relevante para todos.445

Qual é a evidência do estudo semântico para essa conclusão? A primeira expressão

ocorre com mais frequência do que a segunda no Pentateuco. Os בניאדם são os habitantes da

terra que acabam sendo espalhados por YHWH (Gn 11.5, cf. v. 1). Na estrutura paralela do

ditado de Números 23.19, בן־אדם (“filhos de ’ ”) é sinônimo de איש (“homem”, aqui em

seu sentido mais amplo de “ser humano”446

), que são contrapostos, como criaturas, à natureza

do próprio “Deus” (אל). Em Deuteronômio 32.8, בניאדם é uma indicação dos seres humanos

que foram divididos entre as várias “nações” ou estabelecidos nos diversos “povos” da terra

(Dt 32.8).447

Nos Profetas Anteriores, os אדם estão em oposição a YHWH: ou YHWH ou os בני

“filhos de ” (seres humanos) estavam incitando Saul a perseguir Davi (1Sm 26.19). Ou

seja, o jovem belemita indica que a perseguição de Saul poderia ter sido provocada por uma

de duas fontes: divina ou humana;448

ele presume que seja a segunda opção: “pois, hoje, me

expulsaram...” (cf. o plural “filhos de ’ ”). Em 2Samuel 7.14, há uma estrutura poética

em que vara de אנשים (“homens/seres humanos”, plural de איש)449

forma um paralelismo

442

PLOEG, 1963. p. 142 (ver a análise semântica nas p. 141-2). 443

KIDNER, 1980, p. 203. 444

Uma versão em português que se destaca por se distinguir das demais é a NVT: “Toda a humanidade, sem

exceção”. 445

NET Bible, 2005. Psalm 49.2, translator note. 446

KÜHLEWEIN, J. איש, in: JENNI; WESTERMANN, 1997, p. 101. 447

A expressão “filhos de Israel” neste versículo é uma clara referência aos israelitas, consequentemente, os

“filhos da humanidade” (בניאדם) são os “seres humanos”. 448

KLEIN, 1983, p. 255, 258-9; SMITH, 2000, p. 308-9. 449

GESENIUS, 2003, p. 40; KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 43.

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sinônimo ou reiterativo450

com golpes de אדם Em 1Reis 8.39, a .(” ’ filhos de“) בני

memória cultural do antigo Israel registra a oração de Salomão a Deus para que ouça, perdoe

e faça יולאישככל־דרכ (“ao homem conforme todas as suas obras”) porque só ele conhece o

coração de כל־בניהאדם (“todos os filhos de ’ ”). Claramente, a oração pede a YHWH que

aja com cada indivíduo (איש) conforme seu profundo conhecimento da humanidade em geral

האדם) האדם e איש Há um progresso do individual para o coletivo, em que .(בני são termos בני

semelhantes, não opostos, o primeiro (indivíduo) fazendo parte do conjunto do segundo

(humanidade).

Isaías usa a expressão אדם Em Isaías 51.12, a .איש e a אנוש de forma paralela a בני

expressão מאנושימות (“da raça humana/ser humano [que] morrerá”) é paralela a ומבן־אדםחציר

ambas indicando que o ser humano ,(”do filho de d m, [que] será entregue [como] erva“) ינתן

tem uma existência frágil e passageira.451

Um paralelismo semelhante ocorre em Isaías 56.2,

em que אנוש (“ser humano/raça humana”) é paralelo a בן־אדם (“filho de ”) e definem um

conjunto de seres humanos que é mais amplo que o Israel étnico ou puro (cf. “estrangeiro”,

“eunuco” e “todos os povos” nos v. 3-7). Em Isaías 52.14, אדם está em paralelismo com בני

,em seu sentido amplo (“ser humano”) איש452

descrevendo alguém cujo aspecto/aparência

físico/a se distingue de toda a humanidade.453

Em Salmos, בן־אדם é paralelo de שאנו , indicando a pequenez do ser humano diante da

grandeza das obras divinas (Sl 8.5[4]) e sua experiência efêmera e passageira que é atingida

pela morte (Sl 90.3; cf. v. 3-6). Os אדם em Salmos 66.5 parecem ser o mesmo grupo de בני

pessoas chamado de “toda a terra” e que é convidado a adorar a Deus (v. 1,4). O “filho de

‘ d m que fortaleceste para ti” (לך אמצת forma um paralelo com o “homem de tua (בן־אדם

destra” (ימינך parecem ser termos sinônimos בן־אדם e איש ,Aqui .(Sl 80.18[17]) (איש

acompanhados por qualificativos que indicam a relação especial que esse “ser humano” tem

com YHWH.

450

CHISHOLM, 2016. 451

“Se o Deus do êxodo está do lado deles [israelitas], eles não precisam temer os homens frágeis e transitórios

deste mundo” (SMITH, 2009, p. 406; cf. GOLDINGAY, 2001, p. 296. 452

Ver essa compreensão na proposta de tradução em D. Vetter. ראה. In: JENNI; WESTERMANN, 1997, p.

1183. 453

Embora a expressão no singular בן־אדם tenha um uso bastante particular e específico em Ezequiel, nenhum

livro dos profetas bíblicos exemplifica melhor a ideia de בן־אדם, utilizando-o 93 vezes em referência ao profeta

(e.g., Ez 2.1,3,8; 3.1,4,10;4.1,16;7.2; 12.2; 13.17 et al.). Ao explicar o termo em Ezequiel, L. E. Cooper

apresenta seu sentido básico no livro: “Portanto, ‘filho do homem’ pode significar simplesmente ‘membro da

humanidade’. Mas a característica da humanidade, e talvez o foco em seu uso em Ezequiel, é a fragilidade e

mortalidade, em contraste com a eternidade e tremenda majestade de Deus (cf. 31.14).” (COOPER, 1994, p. 74.)

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No salmo 62.10[9], o texto faz referência a אדם que é uma expressão paralela a ,בני

e ambos são qualificados por “vaidade” ou “falsidade”; não há clara distinção entre os בני־איש

dois grupos, ao contrário, são vistos da mesma perspectiva:454

como seres humanos falíveis e

limitados, eles não são dignos de confiança, da confiança que, em contraste, só o Deus de

Israel é merecedor (cf. v. 9,11[8,10]).

Na literatura de sabedoria, observa-se uma continuidade no paralelismo sinônimo

entre os termos בן־אדם e איש. Em Jó 35.8, os termos são paralelos para indicar o ser humano

que pode ser prejudicado com a maldade ou beneficiado com a justiça. Em Provérbios 8.4,

não de forma oposta, mas sinônima, ressaltando o בניאדם está em paralelo a (”homens“) אישים

aspecto universal da convocação feita pela Sabedoria — ela se dirige a todos os seres

humanos.455

A sabedoria encontra suas delícias entre os בניאדם, que parece ser uma referência

a todos os habitantes do תבל (“mundo”; “mundo habitável”) (Pv 8.31).

O uso da expressão אדם em Eclesiastes 3.18,19 não parece indicar um grupo בני

especial de descendentes de pessoas ricas, mas ser, como enfatizam Norbert Lohfink e outros

exegetas, uma referência a todos os seres humanos em sua individualidade e mortalidade em

comparação com os animais.456

Em síntese, podemos dizer que בן־אדם é, basicamente, (1) sinônimo e paralelo de איש

em textos em que ambos ocorrem juntos, fazendo referência aos seres humanos como um

grupo universal (ao qual o איש, “indivíduo”, pertence) ou em oposição à natureza confiável e

eterna da divindade (Nm 23.19; 1Rs 8.39; Is 52.14; Sl 62.10[9]; Pv 8.4); (2) esse conceito de

ser humano mortal e distinto de YHWH (embora semelhante aos animais) também está

presente quando ן־אדםב aparece sozinho em outras passagens bíblicas (1Sm 26.19; Ec

3.18,19). Os בניהאדם também representam (3) aqueles que habitam o mundo ou a terra como

um todo (Gn 11.5; Dt 32.8; Pv 8.31). Por fim,בן־אדם pode ser (4) paralelo de אנוש com a ideia

de ser humano ou humanidade (Is 56.2) cuja existência é efêmera e passageira (Is 51.12; Sl

8.5[4]; 90.3).

Essa análise demonstra que, embora haja alguns textos discutíveis (e.g., Jl 1.12; Sl

14.2; Sl 31.20; Sl 57.5[4]; 89.48[47]), os textos mais claros indicam que בן־אדם deve ser

entendido como “ser humano” ou “humanidade”, um sentido que seria perfeitamente

454

KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 43. 455

HUBBARD, 1989. p. 118. 456

LOHFINK, 2003, p. 63,67. Douglas B. Miller também apoia essa interpretação de Lohfink, entendendo בניאדם

como uma referência aos seres humanos em geral em sua comparação com os animais (ver MILLER, 2010, p.

75-6). Ver também HUWILER; MURPHY, 1999.

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adequado mesmo em ocorrências sujeitas a debates. O fato de que o termo pode abranger

tanto os pobres justos sujeitos à maldade e aos caprichos dos ímpios (“leões”) (Sl 57.5[4])

quanto um grupo de pessoas ricas, que “devoravam” o povo de YHWH como pão e

ridicularizavam o conselho dos “aflitos” ou pobres (14.2,4-6; cf. 53.3), é uma advertência

contra a tentativa de determinar um sentido social ou/e econômico específico para בן־אדם,457

que retrata as atitudes ambivalentes dos seres humanos em geral e em sua individualidade.

A segunda expressão é usada em Gênesis 42.11,13, em que os בני איש são os “filhos”

do es o “ o e ”, ou seja, filhos do mesmo pai, Jacó,458

que mora em Canaã — sem

nuance socioeconômica. No livro de Samuel, em que a maior parte das ocorrências estão

concentradas, a expressão pode indicar o descendente de um homem que recebe algum

qualificativo — בן־אישימיני (“filho de um homem benjamita”, 1Sm 9.1); בן־אישגר (“filho de

um homem estrangeiro”, 2Sm 1.13). Em 2Samuel 23.20 significa, simplesmente, “homem”,

em que Benaia é descrito como לבן־איש־חי (“homem de valor/valente”; cf. também o texto

paralelo de 1Cr 11.22).

Lamentações 3.33 afirma que Deus não aflige nem entristece os בני־איש de bom

grado, uma provável referência às pessoas em geral,459

que recebem tanto bênçãos quanto

maldições das mãos de YHWH. Em Salmos 4.3[2], o termo poderia ter o sentido de “nobres”,

pessoas da elite,460

porém, ele está em claro contraste com YHWH, que aparece no versículo

4: enquanto os בני־איש buscam o vexame do salmista devoto (v. 3), YHWH trata de forma

distinta e especial quem lhe é fiel (v. 4). Novamente, a referência aqui pode ser vista como um

simples contraste entre a divindade e os perseguidores do salmista, que não passavam de seres

humanos mortais (veja o uso semelhante בניאדם em 1Sm 26.19 e a análise acima).461

Em resumo, quando está no singular, o termo בן־איש indica o descendente de um

indivíduo ou o próprio indivíduo, geralmente com alguma qualificação, como local de origem,

característica pessoal ou nome (1Sm 9.1; 2Sm 1.13; 2Sm 17.25). No plural, בני־איש indica,

basicamente, pessoas, em contraste com Deus (Lm 3.33; Sl 4.3[2]).

O HALOT admite as duas possibilidades para a tradução de בני־איש — tanto a ideia

de “indicação de posição”, como “pessoas importantes” ou “governantes de baixo escalão”,

457

GOULDER, 1982, p. 184-5. 458

ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 49. 459

KÜHLEWEIN, 1997, p. 101. 460

Ver GERSTENBERGER, 1988, Psalm 49 (edição kindle); CRAIGIE, 1983, p. 80; VANGEMEREN, 1991, p.

82. 461

Ver PLOEG, 1963, p. 142. Esse também é o sentido apresentado por KÜHLEWEIN, 1997, p. 101.

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quanto o sentido de “ser humano”, “filhos de homem”, “mortais” —, embora defenda o

primeiro sentido para o Salmo 49.3[2]. Chama a atenção o fato de que no único outro texto

em que אדם o próprio HALOT não (Sl 62.10[9]) בני־איש é uma expressão paralela de בני

identifica uma distinção entre posições, mas um uso paralelo em que ambas as construções

designam o “ser humano” em sua mortalidade.462

Não fica clara a razão para ver um contraste

no Salmo 49.3[2] e um paralelismo sinônimo em 62.10[9].

Embora BDB e Alonso Schökel, ao tratar de אדם, definam as expressões בן־אדם e

ישבן־א como antônimas nos dois salmos (49.3; 62.10), eles o fazem sem dar explicações

satisfatórias para essa oposição,463

ao mesmo tempo que reconhecem a semelhança de

significado entre בן־אדם e איש.464

O pesquisador fica a perguntar como dois termos que são

tratados como sinônimos e sem uma conotação socioeconômica clara nos exemplos

apresentados se tornam, de repente, tão específicos e opostos.

Parece que a necessidade de tornar essas duas expressões paralelas aos dois termos

do verseto seguinte ( אביוןעשירו [“rico e pobre”]) é que levou os dicionários a padronizarem

essa tradução de אדם ,(”pessoas comuns” e “nobres“) בני־איש e בני465

mesmo que alguns

tenham sido reticentes em dar como certo tal interpretação no Salmo 49.3[2].466

Entretanto, a

poesia hebraica é dinâmica, podendo haver uma relação especificadora entre os dois

versetos,467

em que “ricos e pobres” revelam, de modo mais específico, quem são os “seres

humanos”, ou as “pessoas”, aos quais o salmista se dirige no versículo 3a.468

462

KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 43. 463

Para sermos justos, BDB menciona que esse uso é frequente no fenício e sabeu e cita como base a pesquisa de

David H. Müller na página 680 do periódico Zeitschrift der Deutschen Morgenländischen Gesellschaft de 1875.

A dificuldade é que este autor encontrou o artigo de Müller, intitulado “Himjarische Inschriften” (que analisa

uma inscrição dos sabeus), porém, as páginas do artigo são 591-628, não há p. 680 nem p. 686 (ver MÜLLER,

1875, p. 591-628; cf. BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 9). Também chama a atenção o fato de que

Dahood não faça menção alguma ao ugarítico-fenício em sua proposta de tradução de Salmo 49.3, justamente ele

que tanta vezes recorre a esse idioma para suas propostas de leitura e tradução (ver DAHOOD, 1965, p. 296). 464

Alonso Schökel, por exemplo, diz que o sentido básico de בן־אדם é “homem, ser humano, indivíduo, pessoa;

homens; cada um” e reconhece que o termo é sinônimo de איש em Jeremias 49.18 e que designa o “ser humano,

mortal” em Isaías 51.12 e 56.2. Contudo, no último dos sentidos, Schökel simplesmente indica os dois salmos

citados acima e diz que ambos são opostos, significando “plebeu oposto a nobre” (ALONSO SCHÖKEL, 2004,

p. 27-8, itálico do original). BDB faz o mesmo, reconhecendo várias ocorrências em que אדם e איש são sinônimos

(Is 2.9,11,17; 5.15; 2Sm 7.14; Pv 8.4), mas indicando que בניאדם e בני־איש são opostos com o sentido respectivo

de “homens de baixa condição social opostos a homens de elevada condição social”, porém, não indicam algum

outro texto da Bíblia Hebraica que justificaria o uso antônimo de termos que, nas demais ocorrências, são

sinônimos (ver BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 9). 465

Ver, e.g., KRAUS, 1993, p. 734. 466

Ver KÜHLEWEIN, 1997, p. 101. 467

CHISHOLM, 2016, p. 176. 468

Talvez possa haver também uma estrutura de paralelismo sintético, em que a segunda linha expande ou

completa a primeira (RYKEN, 1992, p. 182).

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Sem um precedente claro da Bíblia Hebraica para designar ambos os termos como

opostos (“gente do povo” e “nobres”), o natural é entender בניאדם e בני־איש como sinônimos,

indicando os seres humanos, as pessoas em geral, como fazem a NET Bible (“all you people”

[todas as pessoas]), a NVT (“todos os seres humanos, sem exceção”) e as traduções de Robert

Alter (“You human creatures, you sons of man”)469 e de Matthias Grenzer (“tanto os filhos da

humanidade quanto os filhos do homem”).470 “O contraste não é necessário para fazer sentido

aqui: ‘todos os habitantes do mundo’ ainda são considerados juntamente no v. 2a [3a, TM],

sua fragilidade sendo enfatizada com o poder de Deus de enviá-lo ao Sheol (v. 7ss.)”.471

Essa leitura também conta com o apoio da LXX, que traduz os termos

respectivamente por γ γε εῖς (“habitantes da terra”)472

e ἱ ῶ θρώπω (“filhos dos

homens”), mantendo o paralelismo sinônimo entre os termos, sem uma oposição de classes

socioeconômicas. Por fim, tanto איש quanto אדם são usados no Salmo 49 para descrever o

homem de posses (איש, v. 8,17[7,16]; אדם, v. 13,21[12,20]).

Essas partes do poema conclamam todas as pessoas, de forma coletiva (’ ), a se

empenharem para obter um entendimento mais profundo em relação à condição

humana. Deixar de dar ouvidos à sabedoria, à percepção e ao entendimento do

poema serve, poeticamente, para ligar todos os ‘filhos da humanidade’ (v. 3) à

‘geração dos seus pais’ (v. 20) — uma unidade que é, como veremos, fisicamente

produzida pela sepultura.473

A segunda linha poética do versículo 3 deixa mais claro que toda a humanidade a

quem o salmista se dirige envolve o “rico” (עשיר) e o “pobre” (אביון). Ambos devem ouvir a

mensagem que ele está prestes a anunciar, “pois a sabedoria se aplica a todos, independente

de sua posição na vida, sua riqueza ou pobreza”.474

“Ao rico é feita uma advertência, e ao

pobre é oferecido consolo”.475

O termo עשיר é uma referência ao “rico” ou “abastado”,476

alguém que, segundo a

tradição sapiencial do antigo Israel, tem grandes chances de fazer de seus “bens” ou

“riquezas” (הון) a sua “cidade forte” (עזו ou de considerar-se sábio aos próprios olhos (קרית

469Ver a tradução e o comentário de Salmos 49.3 em ALTER, 2007, p. 171. 470Ver tradução de Salmo 49.3 em GRENZER, 2017, p. 114. 471

GOULDER, 1982, p. 185. 472

ARNDT; DANKER; BAUER, 2000, p. 196. Ver o uso desse termo em FILO DE ALEXANDRIA, Leis

especiais 2.124 (cf. FILO DE ALEXANDRIA,The Special Laws, in: YONGE, 1995, p. 580. Ver também o

sentido primário do termo apresentado em LUST; EYNIKEL; HAUSPIE, 2003 (edição eletrônica). verbete

γ γε ής. 473

PLEINS, 1996, p. 20. 474

CRAIGIE, 1983, p. 358. 475

KRAUS, 1993, p. 734. 476

KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 896; BROWN; DRIVER;

BRIGGS, 1977, p. 799; ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 524.

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(Pv 28.11). Por ter poder econômico, ele corre o risco de oprimir o mais pobre, tomando à

força o que não lhe pertence, como ilustra a estória contada por Natã a Davi (2Sm 12.1,4), que

nada mais era que uma expressão do próprio pecado pelo qual o rei é confrontado. O profeta

Miqueias já denunciava os ricos por sua “violência”, uma expressão que descreve várias

formas de exploração daqueles que estão em condição social inferior, efetuadas por meio da

violência física e psicológica (Mq 6.12).477

O profeta Jeremias adverte os “ricos” a não se gloriarem em suas riquezas (Jr 9.22),

mas em conhecer YHWH, o Deus de Israel (9.23-24), visto que a sabedoria hebraica já

ensinava que a riqueza é passageira como um sono: depois de dormir, o “rico” abre os olhos e

já não vê suas riquezas (Jó 27.19). A advertência do salmista em 49.3[2] e de Jeremias 9.22-

24 revelam que é possível ao rico não permitir que os bens se tornem o “deus” em quem ele

confia (cf. Sl 49.7[6]). A passagem de Jeremias “tem a forma de uma exortação positiva que

desafia a estima social por sabedoria, poder e riqueza e recomenda uma diferente tríade de

prioridades, as virtudes da aliança, que são a lealdade (cf. 2.2), a justiça e a conduta

correta”.478

No entanto, embora admita a possibilidade de um rico não ser norteado pelo

pensamento hegemônico da elite de opressão e desprezo pelos pobres, o Salmo 49 tem, em

geral, uma perspectiva negativa dos que acumulam riquezas: “os que confiam em suas posses”

são os “os que me atacam por trás” (v. 6,7); o “homem em esplendor” que “não entende” é

“como os animais que perecem” (v. 21[20]; cf. v. 13[12]); e são aqueles que habitam em

“mansões” que terão sua aparência consumida pelo Sheol, enquanto o salmista piedoso terá

sua vida redimida por YHWH (15,16[14,15]).479

Assim, podemos concordar com

Gestenberger que “no Salmo 49 a raça humana é dividida em ricos e pobres, aqueles que

dominam outros e aqueles que são dependentes de outros (v. 3)”.480

477

PATTERSON, 2008, p. 339. 478

ALLEN, 2008, p. 120. 479

Nossa proposta, portanto, é oposta à perspectiva de Spangenberg. Com base na tese desenvolvida por Albertz

de que havia dois grupos de classe alta no período pós-exílico — o primeiro tipo desfrutava de sua posição e era

indiferente ao pobre e o segundo era compassivo com os pobres e buscava aliviar o sofrimento deles, mesmo que

isso afetasse suas condições financeiras pessoais —, Spangenberg afirma que o compositor do Salmo 49 fazia

parte do segundo grupo e utilizou o provérbio do v. 11[12] para mostrar que a riqueza é passageira e a morte é

inevitável (ver SPANGENBERG, 1997, p. 339). Aqui, não rejeitamos de imediato a tese de Albertz de que o

salmo era pós-exílico (ver cap. 3), porém, entendemos que o salmista era alguém oprimido pelos ricos, não um

rico compassivo, como o restante da exegese demonstrará. 480

GERSTENBERGER, 1988, Psalm 49 (edição kindle).

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O segundo tipo de pessoa que o salmista menciona, o אביון (“pobre”), são os “pobres”

ou “carentes”,481

aqueles que são necessitados no espectro socioeconômico (Êx 23.11; Dt

15.7; Et 9.22; Jó 31.19, et al). Em 1Samuel 2.8, eles estão no “monturo” ou “lixão” (אשפת),

um termo que indica o lugar na parte externa de uma cidade, onde os mendigos se assentavam

durante o dia para pedir esmolas e à noite para dormir.482

Por se encontrarem nessa condição, estavam “sujeitos à opressão e ao abuso” (Am

2.6; 5.12; Sl 109.16).483

Eles eram vítimas da opressão e “esmagados” pelos ricos, bem como

tratados com indiferença por estes (Am 4.1).484

A cultura de opressão, muito comum em todo

o Antigo Oriente Próximo, foi intensamente criticada pelo deuteronomista, que aconselhava

os israelitas a “abrir a mão” ao pobre e necessitado que houvesse na terra, não deixando de

ajudá-lo quando este precisasse (Dt 15.4,7,11). Esse quadro do cuidado e preocupação com o

pobre é retratado pela tradição de sabedoria na figura de Jó, que era “pai” dos pobres e se

angustiava com a condição dos necessitados (Jó 29.16; 30.25).

Por não ter a quem recorrer senão o próprio YHWH, o termo “pobre” passou a ser

usado em um sentido religioso485

para descrever aqueles que eram perseguidos e clamavam

pela ajuda do Deus de Israel, praticamente um sinônimo para o justo sofredor (Sl 40.18[17];

86.1). Assim eles são objeto especial do cuidado de YHWH, que se levanta para libertar os

“necessitados” (Sl 12.6[5]) das mãos dos malfeitores (Jr 20.13). Os próprios israelitas no

exílio serão descritos como האביונים (“os necessitados”),486

a quem YHWH suprirá a água pela

qual anseiam e não os desamparará (Is 41.17).

No versículo 4, o salmista apresenta a razão para que os “seres humanos”, “todos os

habitantes do mundo”, “seja rico, seja pobre”, deem ouvidos ao que ele tem a dizer. Os dois

versetos estão em uma relação de paralelismo direto,487

com a elipse do verbo que ocorre na

primeira linha, um fenômeno muito comum na poesia hebraica, em que “uma palavra,

geralmente um verbo, rege também a oração paralela do segundo verseto”, caracterizando

481

KIRST et al., 2004, p. 2. 482

KLEIN, 1983. p. 18; GORDON, 1988, p. 80. 483

BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 2. 484

HOLLADAY; KÖHLER, 2000, p. 2. 485

KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 5. 486

GESENIUS, 2003, p. 5. 487

Ver RYKEN, 1992, p. 180-1; KÖSTENBERGER; PATTERSON, 2014. p. 240-1; CHISHOLM, 1998, cap. 6

(edição kindle).

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uma espécie de “repetição ‘oculta’”.488

Assim, propomos a seguinte estrutura do paralelismo

no versículo 4: A. “minha boca” / A’. “a meditação do meu coração”; B. “falará” / B’. elipse

do verbo (“—”); C. “sabedoria” / C’. “entendimento”.

פי / ידבר / חכמות

והגותלבי / ---- / תבונות

A princípio, chama a atenção a relação entre פי (“minha boca”) e הגותלבי (“meditação

do meu coração”), pois a tradição sapiencial relaciona, de forma recorrente, “boca” (פה) e

“coração” (לב). Em Provérbios 15.14, o נבון que “busca” o ,(”coração do entendido“) לב

conhecimento, é contraposto à כסילים que “se apascenta” de ,(”boca dos insensatos“) פני

insensatez. Enquanto o צדיק רשעים reflete antes de responder, a (”coração do justo“) לב פי

(“boca dos ímpios”) “jorra”489

maldades (Pv 15.28). Qohelet aconselha sua audiência a não se

precipitar com “a tua boca” (פיך) nem a permitir que “o teu coração” (לבך) se apresse em

“fazer sair palavra” (דבר é (חכם) ”na presença de Deus (Ec 5.1). Por isso, o “sábio (להוציא

aquele cujo “coração” (לב) “dá entendimento” ou “ensina” (ישכיל)490

“sua boca” (פיהו) (Pv

16.23).

Por ter um coração que medita (cf. הגות)491

e transmite “entendimento” (תבונות), é

natural que a boca do salmista fale “sabedoria”, visto que o “coração” é visto como “fontes”

(תוצאות)492

de vida (Pv 4.23). Na tradição sapiencial, bem como na Bíblia Hebraica,

predomina o sentido de “boca” como “órgão da fala”.493

A “boca” de uma mulher adúltera

pode ser como uma “adaga de dois gumes” afiada, que traz um amargo fim aos que dão

ouvidos ao discurso dela (Pv 5.4);494

da mesma forma, a “boca” do insensato é “ruína

488

ALTER, 2011, p. 25. Alter continua sua explicação: “Eu sugeriria que é útil identificar esse recurso como uma

repetição oculta ou implícita porque, apesar de sua diferença de métrica em relação à repetição com o

incremento, ela está intimamente relacionada à última no sentido de que é usada para introduzir um incremento

de sentido” (p. 25). A classificação de Alter parece representar melhor a ideia de elipse do que a de Grant

Osborne que chama esse tipo de paralelismo de “paralelismo incompleto” (ver OSBORNE, 2009, p. 294). 489

KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 665. 490

SWANSON, 1997, verbete 8505 [edição eletrônica]) 491

O substantivo הגות é uma hapax legomena derivado do verbo הגה (BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p.

211-2; WOLF, Hebert. הגה, in: HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1999, p. 205), que é usado na Bíblia Hebraica

em referência à responsabilidade de Josué de “meditar” na lei de YHWH dia e noite (Js 1.8), assim como o faz

aquele que é “bem-aventurado” no salmo 1.2. 492

GESENIUS, 2003, p. 859. 493

LABUSCHAGNE, C. J. פה, in: JENNI; WESTERMANN, 1997, p. 977-8; BROWN; DRIVER; BRIGGS,

1977, p. 804-5. 494

BERMAN, 2002, p. 293. Como Berman argumenta, há nesta passagem um jogo de palavras entre as “bocas”

.da espada e as “bocas”, ou conversa persuasiva e bajuladora, da mulher adúltera (פיות)

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iminente” (מחתהקרבה) (Pv 10.14). Por outro lado, a “boca” do justo é “fonte de vida” (מקור

e produz (חיים495

“sabedoria” (חכמה) (Pv 10.11,38), como faz a “boca” do salmista aqui.

O termo חכמה (“sabedoria”) aparece como um conceito amplo nos textos da Bíblia

Hebraica, podendo indicar, assim como na antiga Mesopotâmia,496

certas habilidades, como a

técnica de processar metais (1Rs 7.14), de trabalhar com ouro (Êx 31.3), de confeccionar

tecidos (Êx 35.25), de navegar (Ez 27.8; Sl 107.27) e de comandar um exército vencedor (Is

10.13).497

Entretanto, a “sabedoria” também podia indicar pessoas capazes de aconselhar

outros a tomar decisões difíceis ou de fornecer decisões/auxílio para dirigir suas ações (2Sm

14.2-20; 16.23; 1Rs 3.28; 10.24; Pv 10.14).498

Para a tradição sapiencial, a sabedoria está na presença de Deus desde a criação do

mundo (Pv 9.22-31) e encontrá-la implica alcançar o favor de YHWH (Pv 9.35). O texto de Jó

28, ao descrever o paradeiro da Sabedoria, também mostra o íntimo relacionamento dela com

Deus, o único que conhece onde a Sabedoria habita (Jó 28.23-24). “O desejo de relacionar

Deus com a humanidade de forma mais direta deu origem à reflexão [...] sobre a Sabedoria.

Deus manifesta sua presença nas vidas de suas criaturas por meio dela...”.499

Um aspecto importante enfatizado pelos sábios no antigo Israel diz respeito à

conduta individual — a חכמה (“sabedoria”) e o דרך (“caminho”; “procedimento”) aparecem

juntos: “A sabedoria do prudente é entender o seu próprio caminho, mas a estultícia dos

insensatos é enganadora” (Pv 14.8, ARA, grifo acrescentado).500

Como característica

individual, há sábios e insensatos em todas as classes sociais. Em geral, sabedoria de vida tem

mais a ver com caráter do que com o intelecto, visto que os sábios, em geral, se identificam

com a justiça, e os insensatos, com a maldade/impiedade: “O sábio é cauteloso e desvia-se do

mal, mas o insensato encoleriza-se e dá-se por seguro” (Pv 14.16, ARA). “Para o insensato,

praticar a maldade é divertimento; para o homem inteligente, o ser sábio” (Pv 10.23, ARA,

grifo acrescentado).501

A חכמה (“sabedoria”) estava intimamente relacionada com o יהוה temor de“) יראת

YHWH”). Para o verdadeiro israelita, “toda sabedoria tinha raízes em Deus e só estava à

495

.(ver HOLLADAY; KÖHLER, 2000, p. 230; SWANSON, 1997, verbete 5649) ינוב496

Ver HARRISON, 2004. p. 1004. 497

WOLFF, 2008. p. 311. 498

LASOR; HUBBARD; BUSH, 1999, p. 497; BERRY, 1995, cap. 1 (edição kindle). 499

CRENSHAW, 1977, p. 365. 500

WOLFF, 2008, p. 313 (cf. PINTO, 2014, p. 507). 501

VON RAD, 1973, p. 91-2; WOLFF, 2008, p. 313-4.

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disposição dos homens porque estes eram criaturas de Deus, capazes de receber a revelação

divina”.502

Como observou G. von Rad, a ideia de “temor de YHWH” como princípio da

sabedoria “aparece cinco vezes — com pequenas variantes — na literatura didática, algo que

não ocorre com nenhuma outra frase e que indica, portanto, a importância que deve ter

tido”.503

As passagens didáticas em que ela ocorre são as seguintes:

O temor do SENHOR é o princípio do saber,

mas os loucos desprezam a sabedoria e o ensino. (Pv 1.7, ARA)

O temor do SENHOR é o princípio da sabedoria,

e o conhecimento do Santo é prudência. (Pv 9.10, ARA)

O temor do SENHOR é a instrução da sabedoria,

e a humildade precede a honra. (Pv 15.33, ARA)

O temor do SENHOR é o princípio da sabedoria;

revelam prudência todos os que o praticam. (Sl 111.10, ARA)

Eis que o temor do Senhor é a sabedoria,

e o apartar-se do mal é o entendimento. (Jó 28.28, ARA)

A concepção de “temor de YHWH” como princípio do saber parece indicar tanto a

devoção a YHWH como parte principal do desenvolvimento da sabedoria quanto um modo de

vida cujas escolhas acertadas refletem a reverência a Deus.504

Ao comentar essas passagens,

G. von Rad diz que o temor de Deus é o ponto de partida do saber, o elemento que nos conduz

à sabedoria, capacita-nos a adquiri-la e nos educa nela.505

O versículo 5 aponta, no primeiro verseto, para a fonte externa do ensinamento do

salmo, pois o autor precisa inclinar seus ouvidos à mensagem de outro: “Inclinarei506

a um

provérbio os meus ouvidos” (אטהלמשלאזני) (cf. Pv 2.1; 4.1; 5.1). “O autor inclina seu ouvido,

abre-se ao outro mundo, para escutar a sentença decisiva que servirá para aterrorizar os ricos e

consolar os pobres”.507

Chama a atenção a ausência de um mestre que lhe transmita o

“provérbio” (משל) a fim de que o comunique às pessoas a quem convoca. “‘Inclinar o ouvido

a’ um texto ou dito [...] é fórmula conhecida (p. ex., Sl 78.1; 88.3; Pv 4.20; 5.1,13); só que

502

LASOR; HUBBARD; BUSH, 1999, p. 498. 503

VON RAD, 1973, p. 92. 504

BERRY, 1995 (edição kindle). 505

VON RAD, 1973, p. 94. 506

KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 693. 507

KRAUS, 1993, p. 735.

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nesses casos o texto é pronunciado por terceiro, ao passo que no salmo fala o mestre

sozinho.”508

David Pleins observa que “em nenhum outro salmo se diz que o poeta inclina seu

ouvido. O padrão retórico normal é clamar a Deus, no início do poema, para que ele incline

seu ouvido [...] (cf. e.g. Sl 71.2,22; 86.1,12; 88.3,11).”509

Surge, então, a pergunta: A quem o

salmista inclina seus ouvidos? “Escuta a si próprio? Ouve mentalmente um ensinamento

tradicional? Supõe-se um terceiro que pronuncia o provérbio para que seja comentado?”.510

Dahood, ao comentar o primeiro verseto, relaciona-o com o segundo e diz: “Para captar a

inspiração, ele sussurrará ao acompanhamento da lira. Cf. Jó 4.12: ‘Agora, uma palavra veio a

mim silenciosamente / Há pouco um sussurro chegou ao meu ouvido’”.511

No segundo verseto, o salmista acrescenta uma ideia que parece ter função

complementar,512

não necessariamente sinônima ou antitética — o que constituiria um

paralelismo sintético.513

Ele diz: “Exporei com a cítara meu enigma” ( בכנוראפתח Sob .(חידתי

uma perspectiva complementar do dístico do versículo 5, é possível afirmar que o ato de

“inclinar o ouvido” é concomitante ao de “expor o enigma” enquanto a cítara é dedilhada. “O

dedilhar da cítara e o paralelismo das expressões lhe dizem que está transcendendo a si

mesmo, a verdade divina está se fazendo ouvir assim como ocorreu quando o tangedor tocou

para Eliseu (1Rs 3.15)”.514

A única cena bíblica em que alguém fala ao som de um instrumento é aquela em que

o profeta Eliseu traz uma mensagem de YHWH para Jorão e Josafá quando os dois saíram à

guerra contra o rei de Moabe (2Rs 3.14-16), o que poderia indicar que, para o salmista, o

discurso seguinte é fruto da inspiração divina.515

Embora nesse trecho não se mencione a

“cítara” (כנור) propriamente dita nem o ato de inclinar os ouvidos (אזני [...] אטה), muito menos

se use a raiz verbal פתח (“abrir”; “expor”) para descrever o ato de revelação, é interessante

508

ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 674. 509

PLEINS, 1996, p. 21. Cf. DUNN, 2009, p. 206. 510

ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 674. 511

DAHOOD, 1965, p. 297. 512

CHISHOLM, 2016, p. 176-7. 513

Em que a segunda linha expande ou completa a primeira (RYKEN, 1992, p. 182). Essa relação entre as duas

partes do dístico também é chamada de “paralelismo progressivo” (ver OSBORNE, 2009, p. 290). 514

GOULDER, 1982, p. 185. 515

WEISER, 1994, p. 286. Contra Gerstenberger, que diz que a expressão אטהלמשלאזני é equivalente a “Vamos

escutar” e nada tem a ver com um relato da revelação (GERSTENBERGER, 1988, Psalm 49 [edição kindle]; cf.

GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição kindle), que apoia a ideia de que a expressão é um convite a ouvir à

mensagem, não um processo de inspiração). Tesh apoia a ideia de que o autor inclina os ouvidos à mensagem

divina, mas não associa a cítara com o processo de revelação, pois entende que o enigma, com a solução, “será

recitado em uma canção, com o acompanhamento de instrumentos de corda” (TESH, 1999, p. 353)

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notar o seguinte: enquanto o instrumento era dedilhado pelo “tangedor” (המנגן), “a mão de

YHWH esteve sobre ele, e ele disse: ‘Assim diz YHWH...’”516

(2Rs 3.15). A execução do

instrumento é concomitante à revelação de YHWH e à transmissão dessa revelação às pessoas

presentes, algo que o hebraico deixa claro pelo uso da preposição כ + a raiz verbal no

infinitivo נגן no grau piel (כנגן), cuja sintaxe implica a ideia de “quando tocou”, “enquanto

tocava” (cf. Gn 4.8; 1Rs 15.29).517

Essa semelhança entre o Salmo 49 e 2Reis 3 na descrição do processo de inspiração e

transmissão da mensagem divina acompanhadas por um instrumento musical parece favorecer

a ideia de que Salmos 49.5[4] remete a uma mensagem externa ao salmista, concedida por

revelação divina e que ele transmitirá a seus ouvintes.518 O que reforça essa ideia de

inspiração é o uso da raiz verbal פתח (“expor”) no salmo, pois esse termo também é usado em

referência à capacitação divina de Ezequiel para que anunciasse a mensagem de YHWH:

“Abrirei [אפתח] a tua boca e lhes dirá: Assim diz o Senhor...” (Ez 3.27; cf. 33.22). 519

O salmista define a mensagem a ser exposta como חידה (“enigma”) (Sl 49.5b),

palavra que tem sido calorosamente discutida entre os estudiosos. Leo G. Perdue, em “The

riddles of Psalm 49”, propõe que o salmo é a resolução de um enigma (חידה) apresentado pelo

próprio salmista. Inicialmente, o autor desenvolve uma definição abrangente de “enigma”,

tendo em mente suas diversas formas: “um enigma é uma proposição misteriosa em que uma

criatura, um objeto ou um evento é descrito de forma obscura ou paradoxal conforme um ou

mais de seus aspectos característicos”.520

516

ותהיעליויד־יהוה ויאמרכהאמריהוה517

Ver WALTKE; O’CONNOR, 2006, p. 604; PINTO, 1998, p. 82, 123-4; CHISHOLM, 2016, 95; (cf.

KELLEY, 1998, p. 217-8). 518

Esse também é o entendimento de Roger N. Whybray: “A explicação provavelmente deva ser encontrada no

entendimento de que a referência à música está relacionada com a inspiração do salmista, em vez de com seu ato

de cantar. O salmista fala de ouvir (v. 5a), talvez para captar o eco de uma lembrança de um ensino sapiencial

antigo com o qual estava familiarizado em sua juventude, mas é mais provável que ele se refira a uma palavra da

parte de Deus, isto é, uma instrução divina que ele deveria transmitir. Portanto, ele não está se referindo ao

acompanhamento musical de uma canção: ele havia mencionado no v. 4 que o que ele estava prestes a falar

( ibb — ele nada diz sobre cantar) era resultado de uma meditação interna anterior” (WHYBRAY, 1996, p.

65). 519

BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 835. 520

PERDUE, 1974, p. 534 (itálico acrescentado). Ele também entende que o conteúdo dos enigmas varia de

cultura para cultura. Os temas típicos nas resoluções dos enigmas podem ser comuns e claros quando revelados

ou extremamente esotéricos, relacionados apenas com o conhecimento de sábios e sacerdotes. Por fim, há

variação na natureza da linguagem com que um enigma é elaborado. Há vários artifícios literários que são

empregados, como paronomásia, metáfora, aliteração, símile, assonância, rima, métrica, paralelismo, etc. Perdue

desenvolve a tese de A. Jolles (Einfache Formen) de que a fórmula do enigma é o ponto central de um debate ou

disputa que resulta, de forma figurada ou literal, em “vida” ou “morte” para os participantes, em morte para o

proponente do enigma se este for decifrado ou para quem o enigma é proposto caso não consiga resolvê-lo. Da

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Como o salmista propôs o enigma no início do salmo, que irá “expor” (פתח, v. 2-5), o

autor do artigo entende que a charada e sua resposta devem estar no próprio texto, ou seja, nos

versículos 13 (TM) [resposta] e 21 (TM) [pergunta]. A pergunta (reconstruída pelo autor do

artigo) seria: “Qual é a semelhança entre o homem sem entendimento e o animal ‘mudo’ (v.

21)”? A resposta (no v. 13) é: a morte, não a estupidez; os ricos não “entendem” que eles,

assim como os demais seres humanos, estão destinados à morte, ou ao Sheol.521

Ele identifica,

então, mais um enigma presente nos versículos 8 e 16 (TM), que não é formulado com

pergunta e resposta, mas com duas afirmações paradoxais: o salmista reconhece que a morte é

um estado do qual nem rico nem pobre nem tolo nem sábio podem ser redimidos (vv. 7-10),

mas declara que ele será objeto da redenção divina.522

Perdue parece estar correto ao menos em relacionar o “enigma” com o refrão do

salmo nos versículos 13 e 21 e expor a questão central da mensagem do sábio: um homem

com todas as riquezas (“um ser humano em esplendor” — ב יקרואדם )523 que “não entende”

( יןולאיב ) em nada difere de um animal ao deparar-se com a morte: todos “perecem” ( ונדמ ) (Sl

49.13,21). No entanto, deve-se observar que חידה (“enigma”) está em paralelo com משל

perspectiva de quem tenta responder ao enigma, a reação inicial é de tensão e ansiedade, pois se não responder

corretamente isso lhe resultará em “morte”, porém, se for capaz de resolver o enigma, ele demonstra seu

conhecimento e sua habilidade aguçados para encontrar ordem e sentido naquilo que parece ser obscuro e

contraditório. Quem descobre o enigma é o verdadeiro homem sábio. (PERDUE, 1974, p. 534, 535-6). 521

PERDUE, 1974, p. 538-540. 522

PERDUE, 1974, p. 540-1. Como base para essa ideia, Perdue menciona outras histórias do Antigo Oriente

Próximo, inclusive do AT, o pano de fundo para o Salmo 49: heróis que conquistam ou perdem a imortalidade

em sua busca por alcançar vida eterna ou status divino ao descobrirem o segredo da sabedoria dos deuses.

Assim, no Salmo 49, “um homem sábio, valendo-se de um tema comum no Antigo Oriente Próximo, está

confiante de que será salvo da morte [...] não por causa de sua moralidade ou piedade, mas porque somente ele

possui a sabedoria secreta relacionada aos mistérios de vida e morte” (PERDUE, 1974, p. 541-2). Outra proposta

de entendimento de חידה é feita por ZUCKER, 2005, p. 143-152, mas não é muito esclarecedora e demanda uma

série de intervenções e alterações no TM. Ele propõe uma reestruturação e reconsideração do salmo, em que o

segundo conjunto de sete versículos (v. 14-20) responde ao primeiro conjunto de sete versículos (v. 6-12), sendo

os versículos 2-5 uma introdução que chama os ouvintes a dar atenção ao que o autor tem a dizer (ZUCKER,

2005, p. 145-8). Os versículos 13 e 21 seriam o refrão do salmo. A proposta demanda uma mudança radical na

sequência do texto, sem apoio textual para isso: v. 2 e v. 4, v. 3 e v. 5 / v. 6 e v. 14, v. 7 e v. 15, v. 8 e v. 16, v. 9

e v. 17, v. 10 e v. 18, v. 11 e v. 19 / v. 12 e v. 20 (ZUCKER, 2005, p. 145-7). A falta de correspondência em

algumas perguntas-respostas e a ausência de apoio textual para essa reconstrução revelam a fraqueza do esquema

de Zucker, reconhecida pelo próprio autor, mas justificada como sendo causada pelas alterações que o salmo

sofreu no processo de transmissão. Fica evidente o argumento circular aqui: algumas perguntas-respostas não

têm correspondência porque sofreram corrupção, e a suposta corrupção é vista na falta de correspondências entre

as perguntas-respostas. 523Em Jeremias 20.5, יקר está relacionado a termos como חסן (“tesouro”, “suprimentos”)

523 e יהודה מלכי אוצרות

(“tesouros dos reis de Judá”). Nos textos sapienciais (mesmo gênero que o Salmo 49), יקר é usado para se referir

à busca do homem por “tudo [o que é] precioso” (כל־יקר) ao escavar nas rochas (Jó 28.10), em uma alusão aos

metais preciosos. Em Provérbios 20.15, יקר funciona como qualificativo e indica “objeto de valor” (כלייקר) em

paralelo a “ouro” (זהב) e “pérolas de coral” (פנינים). Ver HOLLADAY; KÖHLER, 2000, p. 112. KOEHLER;

BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 946.

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(“parábola”) do segundo verseto, algo que ocorre quando se faz referência a uma máxima

sapiencial (Pv 1.6; Hc 2.6)524 ou a uma fábula que é contada para fazer a audiência refletir

sobre uma mensagem (Ez 17.2ss.). Portanto, Hamp parece estar correto em dizer que חידה

tornou-se praticamente um sinônimo de máxima sapiencial: “declarações simbólicas e símiles,

salmos paradoxais e profundos poderiam ser chamados de enigmas”, pois “a linguagem

enigmática da sabedoria sempre tem de ser decifrada por alguém com conhecimento”.525

No

caso do Salmo 49, a questão da teodiceia e a vaidade das riquezas é o tema tanto expresso

quanto implícito na comparação (observe-se que o verbo לנמש [“é semelhante”] é de mesma

raiz que משל [parábola], o termo paralelo a חידה).

2.3. Estrofe I: A realidade da morte elimina o temor dos opositores que

confiam em suas riquezas (v. 6-12)

49.6Por que temerei os dias maus,

[quando]a maldade dos que me atacam por trás me cercar?

7Os que confiam em suas posses

E na abundância de seus bens se gloriam.

8Um ser humano não redimirá de modo algum [seu] irmão.

Nem dará a Deus um pagamento expiatório por ele.

9(Pois é valioso o resgate da vida deles;

E cessará para sempre.)

10Para que viva continuamente para sempre

E não veja a sepultura.

11Certamente, verá que os sábios morrem

Insensato e bruto juntos são destruídos

E deixam para outros suas posses.

12Seu pensamento íntimo

526 [é que] suas casas são eternas,

E suas habitações, de geração em geração.

524

YAMAUCHI, E., חוד. , in: HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1999, p. 616. 525HAMP, חידה, In: BOTTERWECK, 1997, v. 4, p. 321-2. 526

Para a tradução de קרבם por “seu pensamento íntimo”, veja as ocorrências de קרב em Gn 18.12; Sl 5.10[9];

62.5[4]; 64.7[6]; Jr 4.14. Na antepenúltima referência (Sl 62.5), há claramente um contraste entre o ato da “boca”

dos homens falsos de “abençoar” e o “pensamento interior deles” (קרבם), que “amaldiçoa”. Em Jr 4.14, é no קרב

que estão presentes os “maus pensamentos” (מחשבותאונך). Cf. COPPES, Leonard J. קרב, in: HARRIS; ARCHER

Jr.; WALTKE, 1999, p. 813; HOLLADAY; KÖHLER, 2000. p. 324; KOEHLER; BAUMGARTNER;

RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 1135, sentido 2.

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Aclamam seus nomes sobre as terras.

O dístico do versículo 6 é composto por dois versetos complementares, formando

um paralelismo sintético527

ou progressivo.528

O segundo verseto, “[quando] a maldade dos

que me atacam por trás me cercar?” (יסובני עקבי complementa e aprofunda o sentido de ,(עון

“dias maus” (בימירע), a última expressão da primeira parte. Além disso, é possível identificar

um paralelismo rítmico ou métrico de 3 + 3 neste dístico,529

além da clara assonância nas

sílabas que recebem ênfase no primeiro verseto, que transliteramos e destacamos (negrito)

para clareza: ’ b (למהאיראבימירע).

A raiz verbal ירא da pergunta inicial do versículo ocorre tanto na literatura hebraica

quanto na ugarítica530

e tem uma ampla gama de nuances de sentido no grau qal, como

“temer, assustar-se, alarmar-se”; “tremer, estremecer, levar um susto”; “ser tímido, covarde”;

“ter medo, temor, receio, apreensão”; “ter respeito, reverência, respeitar, venerar”.531

Quando

se trata de objetos, seres e pessoas, o temor pode ser uma reação psíquica às ameaças: temor

de animais e eventos naturais, como o leão (Am 3.8) ou a neve e abalos sísmicos (Pv 31.21;

Sl 46.3); temor de guerras e fome (Jr 42.16; Ez 11.8); temor da morte causada por pessoas

(Gn 32.12; 1Rs 1.50ss.; Jr 26.21) ou por eventos da natureza, como uma tempestade em alto

mar (Jn 1.5); temor de um povo ou exército inimigo (Êx 14.10; Js 9.24; 1Sm 7.7; 2Rs

10.14).532

Além desses medos ou temores, o indivíduo pode “temer” (ירא) inimigos pessoais.

Na obra de Neemias, um homem chamado Semaías havia sido subornado pelos inimigos do

líder judaíta “para que eu temesse” (למען־אירא) (Ne 6.13). Embora tenha cumprido a ordem de

YHWH para destruir o altar de Baal, Gideão realiza essa tarefa de noite porque “temeu” (ירא)

represálias contra si de sua família e dos homens de sua cidade (Jz 6.27). O quadro paranoico

de Saul retratado em 1-2Samuel envolveu seu temor (וירא) a Davi (1Sm 18.12). A confiança

em YHWH livra o fiel do temor a outros humanos (Sl 27.1,2),533

de “muitas” (רבים) pessoas

527

RYKEN, 1992, p. 182. 528

Essa é a classificação de KÖSTENBERGER; PATTERSON, 2014, p. 242-3. Ver a análise de Osborne: “O

paralelismo progressivo também é chamado ‘paralelismo sintético’ e se refere a um desenvolvimento do

pensamento no qual o segundo verso [sic] acrescenta ideias ao primeiro” (OSBORNE, 2009, p. 290). 529

CRAIGIE, 1983, p. 356. Isso implica ler os termos רע juntos e com acentuação ou ênfase no adjetivo בימי

monossilábico (רע); todos o demais termos dos versetos recebem ênfase em sua última sílaba. 530

STÄHLI, H. -P. ירא. In: JENNI; WESTERMANN, 1997, p. 568. 531

ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 292. 532

STÄHLI, 1997, p. 570. 533

Observe-se o uso de מי (“quem?”; cf. GESENIUS, 2003, p. 468-9) indicando que o objeto do temor seriam

pessoas, não tendo em vista outros seres vivos, desastres naturais ou objetos inanimados.

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que o perturbam e se opõem a (”ser humano“ ,אדם ;”carne; mortal“ ,בשר ;”ser humano“ ,אנוש)

ele (Sl 56.2-5,12[1-4,11]; Sl 118.6).

No Salmo 49, o objeto do temor é esclarecido tanto pelo outro uso do verbo ירא no v.

16[17], em que o salmista exorta sua audiência: “Não temas...” (אל־תירא) se “um homem

alcançar riquezas” (יעשראיש), quanto pela definição no v. 7[6] de quem são os inimigos do

salmista: “Os que confiam em suas posses” (על־חילם O texto parece indicar que .(הבטחים

pessoas com poder econômico ameaçam a integridade do fiel, e este se encontra do outro lado

do espectro, em um nível socioeconômico mais baixo.534

Em oposição ao temor dos seres humanos mortais (cf. Sl 49.7-11[6-10]), a mesma

raiz verbal é usada para indicar o temor a YHWH. O conceito do “homem que teme YHWH”

(cf. האישיראיהוה em Sl 25.12) é comum na religiosidade hebraica e expressa uma atitude que

pode ser descrita tanto pelo verbo ירא (“temer”, “reverenciar”)535

quanto pelo substantivo יראה

(“temor”, “medo”, “terror”).536

Ela envolve especialmente um sentimento de reverente

consideração por Deus,537

combinado com assombro e temor do juízo divino contra a

desobediência (cf. Êx 18.21; Dt 4.10; 25.18; Js 24.14 Sl 112.1; Jr 5.22).538

O temor de YHWH, o Deus de Israel, é exigido por ele mesmo (Êx 20.20; Dt 6.13; Js

4.24; 1Sm 12.24; Jó 6.14; Sl 33.8; 34.9; Pv 23.17; Ec 5.7) como elemento essencial da

religião javista (Sl 34.11; Jr 2.19; cf. Ec 12.13). De forma prática, temer YHWH implica

obediência e prazer nos mandamentos divinos (Dt 31.11-12; Sl 112.1; Ec 12.13), aborrecendo

e evitando o mal (Pv 8.13; Pv 16.6), afastando-se da idolatria (Dt 6.13-14) e praticando o que

534

“O mestre adverte sua audiência a não ficar com medo por não ter riqueza alguma enquanto outros se tornam

ricos” (CRAIGIE, 1983, p. 360); assim, o salmista se dirige a pessoas que viviam “em épocas difíceis”;

“ameaçadas pela morte, era difícil não temer os inimigos poderosos, cujas riqueza e posição parecia torná-los tão

vulneráveis a ameaças semelhantes [v. 6-7]” (p. 359). “Essa é uma composição literária didática dirigida não a

Deus, mas aos homens, em que o moralista adverte os ricos da vaidade de seus valores, e tranquiliza a si mesmo

e aos fiéis a Deus pobres, que são seus companheiros. Talvez eles estejam sendo oprimidos pelos ricos no

presente, mas a morte será o grande nivelador...” (GOULDER, 1982, p. 181; contra SPANGENBERG, 1997, p.

339). “Embora se dirija tanto a ricos quanto a pobres (v. 3), ele está falando em favor daqueles que sofrem

ostracismo” (GERSTENBERGER, 1988, Psalm 49 [edição kindle]; ver também VANGEMEREN, 1991, p. 366;

GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 [edição kindle]; WEISER, 1994, p. 285). 535

Ver ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 293. Ele classifica esse uso do verbo como “específico” e o atribui ao

“campo religioso”. 536

KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 433-4; BROWN; DRIVER;

BRIGGS, 1977, p. 432. 537

BOWLING, Andrew. ירא. In: HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1999, p. 399-400. 538

WALKER, 1939 (versão eletrônica).

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é justo diante de YHWH (2 Sm 23.3).539

O temor de YHWH é o “segredo” para uma vida

sábia e bem-sucedida na Terra Prometida (Pv 1.7; 9.7; 14.27; Sl 110.10; 128.1,4).540

A segunda parte do verseto diz: “[quando] a maldade dos עקבי me cercar” (v. 6b).

Em primeiro lugar, o texto hebraico deixa muito claro que é a maldade dos inimigos

traiçoeiros/perseguidores que cercam o salmista ou sua audiência, trazendo tribulação e

angústia.541

A maldade é personificada, assume vida e cerca o justo como um inimigo feroz

que o persegue, colocando-o em uma situação de dificuldade.542

Há muito debate sobre o termo עקבי (lit., “meus calcanhares”), bem como várias

propostas de tradução por razões hermenêuticas e de crítica textual, o que fica muito evidente

nas diferenças entre as versões A21 (“perseguidores”), NVI (“inimigos traiçoeiros”) e BJ (“a

maldade me persegue”). O texto hebraico transliterado na segunda coluna da Héxapla de

Orígenes ( εβρ)543

traz o termo ββαε , que é entendido pela BHS como עקבי, mas o editor

H. Bardtke de Salmos propõe a leitura עקבי.544

Conforme observado na análise de crítica textual, deve-se escolher uma tradução que

mantenha o texto hebraico majoritário עקבי (“dos meus calcanhares” [relação genitiva]), que é

basicamente seguido tanto pela LXX ( ῆς π ρ ς ) quanto pela Vulgata (calcanei mei).545

Afinal, esse termo pode ser traduzido por “retaguarda” de um exército (Gn 49.19; Js 8.13).546

A palavra é originária de uma raiz verbal que pode indicar tanto “segurar no calcanhar” (Gn

25.26) quanto “enganar” (Jr 9.4). A ideia de um amigo íntimo e de confiança que “faz crescer

o calcanhar contra mim” (Sl 41.10[9]) indica traição e deslealdade.547

Os “meus calcanhares”

seriam uma figura de linguagem para os inimigos do salmista que o atacam por trás, pelo

calcanhar. “A agressividade exerce-se com fraude e embuste: pelo calcanhar, pelas costas”.548

Por isso, nossa tradução: “... [quando] a maldade dos que me atacam por trás me cercar”.

539

BOWLING, 1999, p. 399-400; BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 431. 540

LIMBURG, 2000. p. 81; WEISER, 1994, p. 240-241. 541

O verbo na 3ª. pessoa do masculino singular (יסובני) [com o sufixo que indica o objeto – “me”] demanda um

sujeito que seja masculino singular, neste caso, עון (“maldade”, “impiedade”). 542

“Poetas, autores e oradores recorrem à personificação por várias razões (e.g., o pecado deixa de ser uma

abstração quando ele é personificado como um animal predador rastejando pela porta)” (RYKEN, 2014. verbete

personification [edição kindle]). 543

FRANCISCO, 2008. p. 73; NET Bible, 2005, Psalm 49.5, text-critical note. 544

ELLIGER; RUDOLPH, 1997, p. 1131. 545

KRAUS, 1993, p. 730; GOULDER, 1982, p. 185-6. Ver a tentativa de tradução de Alonso Schökel e Carniti:

“quando me cercam para derrubar-me criminosos” (ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 664, 666). 546

GESENIUS, 2003, p. 649. 547

Brown, Driver, Briggs propõem: “aqueles que tomariam alguma vantagem traiçoeira de mim” (BROWN;

DRIVER; BRIGGS, 1977. p. 784; cf. SWANSON, 1997, עקב [edição eletrônica]) 548

ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 674.

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Quem são os inimigos do salmista, que o atacam por trás? “Os que confiam em suas

posses e na abundância de seus bens se gloriam” (v. 7).549

Este versículo forma um

paralelismo sinônimo invertido ou quiasmático550

estruturado da seguinte maneira: A. “Os

que confiam” / A’. “se gloriam”; B. “em suas posses” (“isto”) / B’. “na abundância de sua

riqueza”.551

הבטחים / על־חילם

ם / יתהללו וברבעשר

A primeira característica dos opositores em foco neste salmo é que eles “confiam em

suas posses” (הבטחיםעל־חילם). O uso do particípio relativo,552

isto é, como componente verbal

em uma oração adjetiva553

(lit. “os que confiam...”, הבטחים), ocorre com uma raiz verbal (בטח,

“confiar”; “ser confiante”)554

bastante significativa no hebraico, que qualifica quem são “os

que me atacam por trás”.

A raiz verbal בטח pode ser usada com o sentido de apoiar-se no aspecto físico, por

exemplo, em um bastão de cana (Is 36.6).555

Também significa “estar seguro” ou “estar

tranquilo”, descrevendo um povo que “está confiante/seguro” (בטח) em sua terra, livre de

preocupações (Jz 18.27).556

É possível “estar seguro” em uma situação ou estratégia de guerra

(Jz 20.36). O salmista diz “eu estou seguro” (ח בוט porque YHWH é a fortaleza de sua (אני

vida (Sl 27.3; cf. v. 1). Há pessoas que estão confiantes porque vivem de modo

complacente,557

despreocupadas com o juízo divino, que lhes sobrevirá de modo iminente (Is

32.9; Am 6.1).

Entretanto, a nuance de Salmo 49.7 é a de “confiar em algo” ou “confiar em

alguém”. O profeta Jeremias afirma ser maldito o homem “que confia em [outro] ser humano”

também é tolice confiar no próprio coração (Pv 28.26). Condena-se ;(Jr 17.5) (אשריבטחבאדם)

“os que confiam em imagens talhadas” (הבטחיםבפסל) e anuncia-se sua confusão vergonhosa

(Is 42.17), pois, da perspectiva do profetismo do antigo Israel, os ídolos são inúteis (Hc 2.18).

549

“O versículo 7 esclarece a identidade daqueles que são mencionados no v. 6b” (RAABE, 1990, p. 71). 550

KÖSTENBERGER; PATTERSON, 2014. p. 240-1; ZUCK, 1994. p. 160-1; RYKEN, 1992, p. 327. 551

Ver também DAHOOD, 1965, p. 298. 552

WALTKE; O’CONNOR, 2006, p. 621-2. 553

WILLIAMS, 1976, p. 40; PINTO, 1998, p. 85. 554

KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 120. 555

ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 97. 556

KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 120. 557

OSVALT, John N. בטח. In: HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1999, p. 102.

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O profeta Jeremias condena Moabe por confiar em seus tesouros (Jr 48.7). E o

salmista coloca o ímpio sob a mesma perspectiva, mas no âmbito individual: os inimigos do

fiel “confiam” em suas “posses” (חילם) (Sl 49.7), ao passo que tanto a tradição profética

quanto a hínica e sapiencial afirmam que somente os que confiam em YHWH é que são

felizes, experimentam salvação e estão seguros (Jr 17.7; Sl 28.7; Pv 29.25). Aliás, quem

confia “na abundância de seus bens” (עשרו cf. expressão bastante semelhante em Sl ;ברב

49.7b: עשרם לאישיםאלהים) ”o faz porque “não estabeleceu Deus [como] sua fortaleza (וברב

implica negar o (כתם) ”no “ouro (בטח) ”Sl 52.9[7]). Segundo o livro de Jó, “confiar - מעוזו

Deus que habita as alturas (כי־כחשתילאלממעל) (Jó 31.24,28). Afinal, “a base de sua confiança

define o proceder e o destino do homem”.558

A consequência de escolher a riqueza (עשר) como objeto da confiança será a queda:

“O que confia em seus bens cairá” ( ב עשרוהואיפלבוטח - Pv 11.28), pois “... as riquezas são

notoriamente instáveis (Pv 23.5). Agora surge o pleno absurdo disto, viver em prol daquilo

que sempre acaba falhando, e que faz assim justamente no ponto em que o fracasso

desmancha tudo.”559

O segundo verseto diz: “e na abundância de seus bens se gloriam” (עשרםיתהללו וברב).

Em outras passagens da Bíblia Hebraica, ter riqueza (עשר) em “abundância” (ברב ou לרב) não

é necessariamente um mal e pode ser visto como sinal do favor e da bênção de YHWH (2Cr

17.5; 18.1; cf. 1Rs 3.13).560

Entretanto, as riquezas podem levar a uma confiança indevida em

sua grande quantidade561

e revelar falta de confiança em Deus (Sl 52.9[7]).

O uso da raiz verbal (יתהללו) הלל no imperfeito, aqui, tem função habitual, indicando

uma prática, ações habituais, de ricos da época do salmista.562

Em geral, a raiz verbal הלל no

grau hitpael refere-se ao gloriar-se em YHWH: o fiel comum563

(Sl 4.3[2]) e o rei da nação

(Sl 63.12[11]) se gloriam em YHWH, pois essa é a atitude esperada dos que são “retos de

coração” (ישרי־לב, Sl 64.11[10]).564

Jeremias exorta cada cidadão de Judá a “gloriar-se”

em YHWH, não na própria força, sabedoria ou riqueza (Jr 9.22,23[23,24]). A segunda (יתהלל)

558

ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 674. 559

KIDNER, 1980, p. 204. 560

ALLEN, Ronald B. עשר, in: HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1999, p. 706. 561

ESTES, 2004, p. 61. 562

MERWE; NAUDÉ; KROEZE, 1999, p. 148; PINTO, 1998, p. 63; ROSS, 2009, p. 137. 563

Para o uso de נפש como circunlocução para “eu” ou “me”, ver WOLFF, 2008, p. 52-3. 564

É interessante notar que sempre que o livro de Salmos faz referência a “gloriar-se” (הלל) em YHWH, o verbo

paralelo que o acompanha no dístico é “alegrar-se” (שמח), indicando que a glória do fiel é sua fonte de alegria

(cf. Sl 34.3; 63.12; 64.11; 105.3; 106.5; cf. 1Cr 16.1). Ver também as observações sobre o uso de הלל no hitpael

em Salmos feitas por WESTERMANN, Claus, הלל, in: JENNI; WESTERMANN, 1997, p. 374

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parte do livro de Isaías anuncia um momento em que “toda descendência de Israel se

gloriará” (ויתהללוכל־זרעישראל) em YHWH (Is 45.25).

Por isso, a atitude de “gloriar-se” em qualquer outro ser ou objeto que não YHWH,

como fazem os ricos opositores do salmista, é retratada de maneira negativa em outros textos:

os que se gloriam em ídolos serão envergonhados (Sl 97.7); gabar-se da vitória de uma

batalha que nem começou é perigoso (1Rs 20.11), assim como não é recomendável gloriar-se

no dia que virá porque não se sabe o que ele trará à luz (Pv 27.1). Comentando o uso de בטח e

:no Salmo 49.7, Goldingay observa הלל

O verdadeiro risco em sua atitude [dos ricos] está implicado nos verbos do salmo.

Ele fala de sua confiança e exultação (louvor). Esses são verbos que merecem ter

Yhwh como seu objeto (e.g., 22.4,5[5,6]; 34.2[3]), mas aqui seus objetos são os

recursos e a riqueza.565

O versículo 8 é formado por dois versetos complementares, em um paralelismo

sintético566

ou progressivo.567

A primeira parte do dístico mostra a incapacidade de um ser

humano de redimir um companheiro ( אישאח יפדה לא־פדה ) enquanto a segunda completa a

ideia, mostrando que tal resgate é impossível de ser dado a Deus (לא־יתןלאלהיםכפרו).

Na primeira parte de Salmo 49.8, uma construção sintática incomum é a presença do

advérbio de negação antes do verbo no infinitivo, quando a regra é o advérbio precedendo o

verbo finito, não o infinitivo.568

[verbo finito no imperf.] יפדה + [verbo infinitivo] פדה + [adv. negação] לא־

A raiz verbal פדה (v. 8a) contém o sentido básico de “conseguir a transferência de

propriedade de uma pessoa para outra mediante pagamento de uma quantia ou de um

substituto equivalente”.569

O conceito de resgate estava muito presente na sociedade do antigo

Israel. Pessoas que se endividavam e acabavam tornando-se escravas para quitar uma dívida

poderiam ser “resgatadas” dessa condição por um parente ou um amigo próximo que tivesse

condições de pagar a dívida ao credor (e.g., והפדה em Êx 21.8; cf. talvez Jó 6.23).570

Mantendo a ideia básica de “resgatar”/“redimir”, פדה foi um termo que marcou a

libertação de Israel do Egito, da terra da escravidão, como se Deus estivesse comprando a

565

GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição kindle). 566

RYKEN, 1992, p. 182; CHISHOLM, 2016, p. 176-7. 567

OSBORNE, 2009, p. 290; KÖSTENBERGER; PATTERSON, 2014, p. 242-3. 568JOÜON; MURAOKA, 2011, p. 395. Ver outras exceções em Amós 9.8 e Gênesis 3.4. Ver o texto de Levítico

7.24: [verbo finito imperf.] תאכלהו + [adv. negação] לא + [verbo infinitivo] ואכל 569

COKER, William B. פדה. In: HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1999, p. 716. 570

LONGMAN III, 2014, Psalm 49 (edição kindle); KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM,

1994-2001, p. 912; SWANSON, 1997, verbete 7009 [edição eletrônica])

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nação do faraó para si (cf. Dt 7.8; 13.6[5]; 1Cr 17.21; Mq 6.4).571

Um salmista pediu a Deus

que fizesse no presente como havia feito no passado, rogando-lhe que resgatasse (פדה) a nação

de seu estado de sofrimento (Sl 25.22),572

pois cria que “YHWH resgata [פדה] a vida [נפש]

dos seus servos, e dos que nele confiam nenhum será condenado” (Sl 34.22). Em outras partes

da Bíblia Hebraica, a raiz verbal descreve a salvação/redenção de Deus da “vida” (נפש) do fiel

ou da nação de Israel de alguma opressão ou perseguição (Sl 55.18; Sl 69.18-19 [17-18];

78.42; Jr 15.21) ou de sofrimentos/tribulações (Sl 25.22; 44.23-26[24-27]).573

Entretanto, o versículo 8a afirma que o “ser humano”574

é incapaz de realizar (איש)

essa redenção (יפדה (פדה) com o infinitivo absoluto פדה A repetição da raiz verbal .(לא־פדה

antes do imperfeito (יפדה) serve para acrescentar ênfase575

e seria adequadamente traduzida

por: “não redimirá de modo algum...”. Como declarou A. Weiser:

Pela morte ergue-se ao homem um limite que por si mesmo não pode ultrapassar. O

poder e as riquezas humanas não são suficientes para resgatar da morte. Pois na

morte o homem enfrenta inexoravelmente o poder de Deus, por mais que de outras

vezes tenha procurado evitá-lo e afirmar-se. E por se tratar de poder de Deus, todo

poder humano que se levanta contra ele necessariamente fracassa. O poder de Deus

e o poder humano situam-se em níveis diferentes. Sua diferença não é quantitativa,

mas qualitativa.576

Na segunda parte do versículo 8, o autor do salmo desenvolve ainda mais a ideia de

impossibilidade de resgate ao declarar: “Não dará a Deus כפרו”. O termo hebraico é o

substantivo כפר acompanhado do sufixo ו (sufixo pronominal possessivo da 3ª. pessoa do

singular: “dele”). A palavra כפר não ocorre muitas vezes na Bíblia Hebraica577

e traz uma

nuance um pouco mais restrita que o termo do verseto anterior.

Enquanto a raiz verbal פדה está especialmente relacionada ao ato de resgatar alguém

do poder de outra pessoa ou do lugar em que se é mantido sob um determinado poder (Êx

571

BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 804. 572

O uso da preposição מן indica o movimento para fora de um estado de existência, no caso de Sl 25.22, o

sofrimento (cf. GESENIUS; KAUTZSCH; COWLEY, 1910, p. 275. 2.a). 573

COKER, William B. פדה. In: HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1999, p. 716. 574

Ver esse sentido amplo de איש em Jó 38.26; cf. KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM,

1994-2001, p. 48. 575

GESENIUS; KAUTZSCH; COWLEY, 1910, p. 122-3, 342: “O infinitivo absoluto ocorre com mais

frequência em relação imediata com o verbo finito da mesma raiz para, de várias maneiras, definir de modo mais

acurado ou reforçar a ideia do verbo [...] O infinitivo usado antes do verbo para reforçar a ideia verbal, i.e.,

enfatizar dessa forma ou a certeza (especialmente no caso de ameaças) ou a eficácia e natureza completa de um

evento” (p. 342, itálico do original). No Salmo 49.8a, o infinitivo absoluto enfatiza a certeza de que o homem é

incapaz de redimir outra pessoa (cf. também PINTO, 1998, p. 79). CHISHOLM, 2016, p. 93 confirma esse uso

enfático do infinitivo absoluto exposto por Gesenius e a presença dele antes do verbo finito. 576

WEISER, 1994, p. 287. 577

O HALOT alista todas as ocorrências em um total de 13 versículos (ver KOEHLER; BAUMGARTNER;

RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 495)

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21.8; Lv 19.20; Dt 7.8; Sl 119.134; Is 35.10),578

o substantivo כפר envolve o pagamento de

algo com o propósito de propiciação ou expiação a fim de evitar um juízo ou morte iminentes

(Êx 21.30; 30.12 com 2Sm 24; Nm 35.31,32).579

Como Goldingay ressaltou, “um discurso

sobre redenção muitas vezes perde suas conotações monetárias, mas aqui elas são

importantes. Os que atacam o salmista acham que podem comprar o futuro na vida e uma

velhice feliz.”580

A lei hebraica previa casos em que a vida humana poderia ser resgatada da morte;

uma delas era quando um homem, por descuido, deixava seu boi solto e este feria

mortalmente uma pessoa que não era o proprietário do animal (Êx 21.28-32).581

Caso o dono

soubesse do histórico violento de seu boi e não tivesse sido cuidadoso o suficiente para

prendê-lo, tanto o animal quanto seu possuidor deveriam ser mortos (v. 28,29). No entanto, se

um parente exigisse um resgate (כפר) pela vítima fatal da agressão,582

o dono do boi pagaria

essa indenização e não receberia a execução de morte (v. 30-32).583

O רכפ substituía a “vida”

.do proprietário, funcionando como solução alternativa e atenuante para a pena capital (נפש)

Em Êxodo 21.30, o substantivo pe significa a quantia que substitui a punição

violenta da pena de morte em um contexto de procedimento legal. [...] [a passagem

apresenta] a suavização de uma punição severa.584

Entretanto, nem sempre havia a possibilidade do כפר, como em um homicídio

premeditado (Nm 35.31).585

O texto ordena aos israelitas: “Não tomeis כפר pela vida [נפש] do

assassino”. Portanto, em Números 35.31, כפר basicamente tem o sentido de um substituto

sacrificial ou monetário que expia a culpa pela vida humana cujo sangue foi derramado.586

O

código legal proibia o uso de כפר em homicídio doloso, distinguindo esse tipo de crime

daquele descrito em Êxodo 21; a única solução para o problema apresentado em Números

578

YARON, 1960, p. 84-5. 579

SPEISER, 1958, p. 21-2. 580

GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 [edição kindle]. 581

STUART, 2006. p. 495-6. 582

Deve-se ressaltar aqui que o “resgate” (כפר) era uma possível solução para o problema do assassinato

cometido pelo animal, não era automática nem compulsória: “[o resgate] era uma possibilidade se a família da

vítima livremente consentisse com ele. A família ofendida poderia preferir essa solução não sangrenta a solução

da pena de morte” (SCHENKER, 1982, p. 33). 583

NORMAN, Stan. Redeem, redemption, redeemer, in: BRAND, p. 1370; ver GOLDINGAY, 2006, Psalm 49

[edição kindle]; KRAUS, 1993, p. 736. 584

SCHENKER, 1982, p. 37. 585

ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 675. Walter Kaiser observa que o único crime merecedor de pena

de morte que não poderia ser atenuado por uma pena de morte era o assassinato doloso (KAISER, 2016, p. 168). 586

COLE, 2000. p. 555.

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35.31 era a execução sumária do assassino: “mas certamente morrerá”.587

A pena capital para

assassinos intencionais era uma demanda da antiga lei do talião, que é refletida em Gênesis

9.6: “O que derrama sangue do ser humano por meio do588

ser humano o sangue dele [do

assassino] será derramado”.589

Portanto, ao seguir o mesmo princípio de Gênesis 9.6, a

passagem de Números 35.31 declara que “só a morte de um homem podia fazer expiação pela

morte”590

causada intencionalmente por ele.

Isto posto, a comparação entre os dois textos da legislação israelita revela que a

“morte” de todo ser humano não tem um “pagamento expiatório” (כפר) (cf. Nm 35.31), como

no caso de Êxodo 21.30, para ser dado “a Deus” (לאלהים) (v. 8);591 ao contrário, todos, tanto o

“sábio” quanto o “insolente”, “morrerão” (Sl 49.11).592

O versículo 8b, portanto, parece tratar

a morte de todos os seres humanos como punição capital pela culpa que a humanidade carrega

perante ’E .593

É provável que haja uma relação deste trecho com o relato de Gênesis 2 e

3, que descreve a morte como a punição contra os seres humanos ao comerem do fruto

proibido. Existe semelhança entre a construção sintática da descrição da punição de Gênesis

2.17: “certamente morrerás” (מותתמות), e a da sentença de Números 35.31: “certamente será

morto” (מותיומת). A morte é a sentença que todo ser humano experimentará um dia, e não é

possível dar a Deus (לאלהים ן pois “não ,(Sl 49.8b) (כפר) ”um “pagamento expiatório (לא־ית

existe uma taxa ao alcance do homem”.594

O versículo 9 realça ainda mais o contexto legal como pano de fundo para este

trecho do Salmo 49 por seu uso do vocábulo פדיון (“resgate”), que ocorre apenas aqui e em

Êxodo 21.30, o mesmo versículo que emprega o termo כפר (“pagamento expiatório”): “Se um

587

O uso reiterado do mesmo verbo no infinitive absoluto e no imperfeito (יומת serve para enfatizar a (מות

necessidade de executar o assassino como única solução para o caso específico (ver PINTO, 1998, p. 79). 588

O ב tem sentido instrumental (ver WALTKE; O’CONNOR, 2006, p. 197, 11.2.5d, ex. 17). 589

ךד ךשפ םהאדםבאדםדמוישפ 590

WENHAM, 1985, p. 248. 591

Para essa conexão com a questão da pena de morte, ver também SIQUEIRA, Comentário de Salmos, Salmo

49 (no prelo). 592

Alonso Schökel e Carniti observam essa ligação entre a ideia de Números 35.31 e Salmos 49.8: “Segundo a

legislação (Nm 35.31), não se admite resgate em caso de homicídio. O salmo transfere a proposição à condição

radical do homem, ao ponto em que o resgate teria de ser pago ao senhor da vida e da morte, a Deus” (ALONSO

SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 675). Hans-Joachim Kaus também reconhece uma ligação com Êxodo 21 e vê

um elemento judicial no salmo em que “Deus pronuncia, por meio da morte, um juízo”, mas o aplica não a todos

os seres humanos (conforme nossa interpretação), e sim, aos ricos (KRAUS, 1993, p. 735-6). Propomos aqui

uma aplicação mais universal, como Alonso Schökel e Carniti. 593

Schenker observa esse mesmo aspecto punitivo ao interpretar כפר em Salmo 49.8 como “a substituição da

penalidade máxima pelo pagamento de uma quantia” (SCHENKER, 1982, p. 45). 594

ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 673.

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90

pagamento expiatório [כפר] lhe for imposto,595

dará o resgate [פדין] de sua vida [נפשו]

conforme tudo o que lhe foi imposto”.596

Chama a atenção também a mesma construção frasal

de Êxodo 21.30, o “resgate da vida dele” (פדין נפשו), aparecendo em Salmo 49.9: o “resgate

da vida deles” (פדיון נפשם). O autor do salmo deseja comunicar com clareza a impossibilidade

de redenção da morte por meio de recursos meramente humanos. Não há um recurso de

resgate judicial como o de Êxodo 21.28-32 em que o ser humano seja capaz de dar algo a

“Deus” (Sl 49.8,9).597

“A fonte da vida é Deus, portanto, é a ele que o preço da redenção, o

resgate, deve ser pago, e Deus não está empenhado em deixar que esse tipo de processo

decida se as pessoas viverão ou morrerão”.598

Embora o versículo 9 seja, muito provavelmente, um comentário ou uma observação

parentética,599

ele realça a linguagem legal do versículo anterior e estabelece um contraste

entre a condição do homem perante Deus, que não é passível de redenção da morte por

recursos humanos (v. 8,9), e a condição do homem diante de outros homens, em que há a

possibilidade de redenção (Êx 21.28-32).600

O “resgate da vida deles”601

( פשםנ .isto é, do “ser humano” e de seu “irmão” (v ,(פדיון

8),602

não pode ser pago a Deus porque ele “é valioso” (ויקר) (v. 9).603

Há certamente uma

ironia aqui por meio de um jogo de palavras da mesma raiz destacado anteriormente: o resgate

da vida de uma pessoa é tão valioso (יקר) (v. 9) que mesmo um ser humano em esplendor

.é incapaz de pagar, por isso, ele “é semelhante aos animais [que] perecem” (v (v. 13) (יקר)

13). Todos os recursos humanos são insuficientes quando se trata de escapar da morte.604

595

Ver a tradução do grau hofal de שית em KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-

2001, p. 1486. 596

אם־כפריושתעליוונתןפדיןנפשוככלאשר־יושתעליו597

Ver LONGMAN III, 2014, Psalm 49 (edição kindle). 598

GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição kindle). 599

VANGEMEREN, 1991, p. 370; CRAIGIE, 1983, p. 357, 359; KEIL; DELITZSCH, 1996, v. 5, p. 351;

GOULDER, 1982, p. 188. Alguns comentaristas chegam a propor que o v. 9 é uma glosa posterior (ver

BRIGGS, 1906, p. 405, 413; KRAUS, 1993, p. 732). 600

Ver BRIGGS, 1906, p. 408. 601

Embora Horace Hummel defenda o uso do ם enclítico neste trecho do v. 9 e defenda uma compreensão do

sufixo como singular, não como plural (ver HUMMEL, 1957, p. 102), essa hipótese provavelmente demandaria

uma reconstrução com o acréscimo de uma matter lectionis (DAHOOD, 1965, p. 298), que não tem o apoio do

TM. Ela também deixa de levar em conta que פדיון נפש pode ser uma referência tanto a אח quanto a איש, ou seja, o

ser humano não consegue resgatar a si mesmo nem ao seu próximo. 602

Para a possibilidade de interpretação desses dois termos como os antecedentes aos quais o sufixo pronominal

se refere, ver ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 667. 603

Observe-se que o verbo יקר na 3ª. pessoa do masculino singular é uma referência a פדיון (“resgate”), que é o

substantivo masculino (BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 431-2), não a נפש (“vida”), que é substantivo

feminino (HOLLADAY; KÖHLER, 2000, p. 242). 604

CHARRY, 2015, Psalm 49 (edição kindle); DECLAISSÉ-WALFORD; JACOBSON; TANNER, 2014, p. 444.

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Na segunda parte do versículo 9, há um debate sobre o sentido exato de “e cessará

para sempre” (לעולם é que (פדיון) ”Quem seria o sujeito do verbo: (1) O “resgate .(וחדל

“cessará para sempre”, isto é, será insuficiente?605

(2) Ou o “ser humano” “cessará para

sempre”, isto é, deixará de existir?606

Em seu artigo sobre ambiguidades deliberadas em

Salmos, Paul Raabe afirma que o Salmo 49.9b é um caso de ambiguidade de sujeito, em que o

texto é propositalmente ambíguo para acomodar as duas possibilidades: tanto o “resgate”

faltará quanto o homem rico deixará de existir.607

O problema da interpretação de Raabe é que ela considera leituras prováveis dois

sujeitos que estão em relação distinta com a raiz verbal חדל (“cessar”): o termo פדיון do

versículo 9, e o homem rico arrogante (sujeito oculto) do versículo 12.608

É evidente que o

antecedente imediato e mais provável é פדיון (“resgate”) por ser o único termo masculino

singular que ocorre no primeiro verseto de Salmo 49.9. O sufixo pronominal possessivo ם

que acompanha נפש (“vida deles”) é plural e, portanto, não é um antecedente provável para

,(”e cessará“) וחדל609

um verbo conjugado no singular. Além disso, Goldingay observa que

não há paralelo para o uso da raiz verbal חדל com o sentido de “deixar de existir”.610

Alonso Schökel observa que a análise de חדל deve distinguir entre seu uso transitivo

e intransitivo.611

Dos textos que alista como exemplos do uso intransitivo de חדל — o caso de

Salmo 49.9 — chama a atenção o fato de a raiz verbal ser utilizada para uma mudança de

condição fisiológica (Sara “cessou” de menstruar, Gn 18.11) ou climática (os trovões

“cessaram”, Êx 9.29,33), e em referência à ausência de uma atividade (“cessaram” as

caravanas, Jz 5.6) ou da geração/produção de algo (a planta cujo rebento/broto não “cessará”

de nascer, Jó 14.7). O termo pode indicar a decisão de “desistir” ou “deixar” de realizar algo:

Ismael “desiste” de matar homens que vinham de algumas cidades de Judá (Jr 41.8); os

israelitas ou seu rei perguntam a YHWH se devem “desistir” de lutar contra um inimigo

605

Cf. A21; ESV; ARC; NVT; RSV; GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição kindle); WEISER, 1994, p. 284,

287; BORTOLINI, 2000, p. 206-7; BORTOLINI, 2002, p. 244. Uma leitura alternativa entende que o איש

“cessará” ou desistirá da ideia/tentativa de dar a Deus um “resgate” (פדיון), pois este nunca seria o bastante (ver

ARA; KRAUS, 1993, p. 729, 736; CRAIGIE, 1983, p. 356, 359; GOULDER, 1982, p. 186, 188; BRIGGS,

1906, p. 408; KEIL; DELITZSCH, 1996, v. 5, p. 351). O problema da leitura alternative é que o hebraico não

traz o suposto objeto, pois é intransitivo. 606

Cf. NET Bible; DAHOOD, 1965, p. 295, 298. 607

RAABE, 1991, p. 219-20. 608

RAABE, 1991, p. 220. 609

Para a leitura no tempo futuro do tempo perfeito com waw consecutivo, ver MERWE; NAUDÉ; KROEZE,

1999, p. 168, §21.3; ROSS, 2009, p. 143-4. 610

GOLDINGAY, 2006, Psalm 49, nota 4 (edição kindle). 611

ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 204.

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específico (Jz 20.28; 1Rs 22.6); algumas pessoas do povo talvez “deixariam de” ouvir a

mensagem profética (Ez 3.27). Por fim, o verbo pode indicar o ato de “repousar” (Jó 14.6) ou

de “abandonar” alguém próximo (Jó 19.14).

Em Salmo 49.9, o verbo וחדל (“e cessará”) indica que seu antecedente פדיון

(“resgate”) cessará ou se esgotará “para sempre” — os recursos de um ser humano para

alcançar a vida eterna acabariam e não atingiriam seu objetivo de evitar a morte, pois são

insuficientes como pagamento a ’E pela “vida” (נפש) humana.

O versículo 10 retoma o fluxo do versículo 8, depois do comentário parentético do v.

9:612

“Não dará a Deus um pagamento expiatório por ele [...] para que viva continuamente

para sempre e não veja a sepultura” (v. 8,10).

H. G. Mitchell, em um artigo sobre construções finais (i.e., indicando propósito),

afirma: “Quando o verbo da oração subordinada é um volitivo, isto é, um jussivo, um

coortativo ou um imperativo, a forma em si mesma sugere propósito, especialmente se o

verbo da oração principal também for um volitivo”.613

Em seguida, ele cita vários exemplos

de “formas volitivas” ligadas diretamente com o conectivo (waw), entre eles orações

subordinadas com formas verbais no jussivo + waw consecutivo ligadas a uma oração

principal com a raiz verbal no imperfeito, como ocorre aqui no Salmo 49.10.614

Portanto, o

verbo inicial ויחי (lit.: “e viva [ele]”) do versículo 10 deve ser entendido como um jussivo que

expressa intenção ou propósito em relação de subordinação com o verbo imperfeito

precedente (יתן) por meio de um waw consecutivo:615

Não dará“) לא־יתן [...] כפרו [...] ויחי־עוד

[...] um pagamento expiatório por ele [...] para que viva continuamente...”).

O propósito de pagar o “resgate” seria obter vida imortal (“viva continuamente para

sempre”),616

um tema bastante recorrente na literatura do antigo Oriente Próximo, que relata

heróis alcançando a vida eterna ou falhando em seus esforços para obtê-la.617

A última expressão hebraica do primeiro verseto de Salmo 49.10, “para sempre”

] לנצח) ל comunica uma condição interminável, sem fim, que aparece também no ([נצח +

612

KEIL; DELITZSCH, 1996, v. 5, p. 351; VANGEMEREN, 1991, p. 370; GOULDER, 1982, p. 188. 613

MITCHELL, 1915, p. 87. 614

MITCHELL, 1915, p. 89-90, 4.a.(4),(5). 615

Ver apoio também em GESENIUS; KAUTZSCH; COWLEY, 1910, p. 322, §109.f; NET Bible, 2005, Psalm

49.9, translator note 14; EWALD, 1870, p. 231, §347. Cf. esse mesmo uso final do jussivo com waw consecutivo

seguido de um imperfeito em 1Rs 13.33: כהניויהיאת־ידוימלאהחפץ (“quem lhe agradava, [ele] consagrava [lit.:

enchia a sua mão] para que fosse sacerdote…”). 616

ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 675; CRAIGIE, 1983, p. 359 617

PERDUE, 1974, p. 542-3. Um exemplo que Perdue menciona é o de Utnapshitim, no Épico de Gilgamesh,

que obteve vida imortal após o dilúvio.

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pequeno apocalipse de Isaías (Is 25.8) como uma esperança de que YHWH do Exércitos

“tragará a morte para sempre” (לנצח בלעהמות).618

A literatura sapiencial, por outro lado, usa o

termo לנצח para afirmar que “os perversos” apodrecerão “para sempre” como o próprio

esterco (Jó 20.5,7; cf. 14.20). Portanto, Salmo 49.10 apresenta a vida eterna como

humanamente impossível, um conceito que está em harmonia com outros textos sapienciais e

de Isaías, pois, conforme o profeta, só YHWH é capaz de conferi-la, ecoando alguns hinos da

Bíblia Hebraica: “YHWH é o que tira a vida e a dá, faz descer à sepultura e faz subir” (1Sm

2.6, ARA; cf. Dt 32.39).

O segundo verseto do versículo 10 usa uma imagem concreta para tornar mais

específica a ideia geral declarada no primeiro, estabelecendo um “paralelismo de

especificação” conforme a classificação de Robert Alter: “o termo geral é transformado em

um exemplo específico ou uma imagem concreta, a ideia se torna mais penetrante, mais

enfática”.619

A ideia geral de “viver continuamente para sempre” se torna mais específica pela

imagem de “não ver a cova” (lit.): A. “para que viva continuamente” / A’. “não veja”; B.

“para sempre” / B’. “a sepultura”.

ויחי־עוד / לנצח

לאיראה / השחת

O contraste irônico a ser revelado mais à frente no salmo é que “não ver” (לאיראה),

embora com o sentido de imortalidade aqui, indica ausência de vida mais adiante no versículo

20: “Ele irá até a geração de seus pais; não verão a luz para sempre [לאיראו־אור]”,620

e isso é

reforçado pelo mesmo termo “para sempre” (עד־נצח) no v. 20, ainda que seja antecedido por

uma preposição distinta.

O termo traduzido por “sepultura” (שחת) também ocorre em outra passagem dos

Salmos acompanhado do verbo “ver” (ראה):621

“Pois não abandonarás minha vida no Sheol,

não permitirás a teu fiel622

ver a sepultura” (Sl 16.10).623

Embora o termo שחת tenha o sentido

de “cova” usada como armadilha para caçar animais (Ez 19.3,4) ou, em sentido figurado, para

618

BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 664. 619

ALTER, 2011, p. 21. Segundo a classificação de Köstenberger e Patterson, a relação entre os versetos de

Salmo 49.10 seria um paralelismo progressivo, em que o segundo complementa a ideia do primeiro (ver

KÖSTENBERGER; PATTERSON, 2014. p. 242-3; cf. OSBORNE, 2009, p. 290-1). 620

ESTES, 2004, p. 68. 621

KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 1473; BROWN; DRIVER;

BRIGGS, 1977, p. 1001. 622

Para essa tradução de חסיד, ver MARTIN-ACHARD, 2015. p. 235. 623

ןחסידךלראותשחת כילא־תעזבנפשילשאוללא־תת

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prejudicar outras pessoas (Sl 7.16[15]; 9.16[15]; 35.7; Pv 26.27),624

tanto em Salmo 49.10

quanto em Salmo 16.10, “ver a sepultura” implica experimentar a morte,625

pois a expressão

está em contraste a viver para sempre e em paralelo à ideia de ser abandonado no Sheol, que

é “o lugar aonde todas as pessoas vão quando morrem”.626

No caso desses dois salmos, שחת

parece indicar a “sepultura”, a cova em que o morto é colocado.627

É provável que a palavra “cova” passou a significar “a sepultura” — as sepulturas

naquela época eram geralmente cavadas na rocha — e então foi ampliada para se

referir à corrupção da sepultura [...] A tradução “sepultura” ou “decomposição da

sepultura” corresponde muito bem a essas passagens que não se referem à “cova”

como uma armadilha.628

Outros doze versículos reforçam essa ligação entre שחת e a morte.629

O rei Ezequias

ora com gratidão a YHWH por ter livrado sua vida (נפש) da “cova/sepultura de

decomposição” (בלי não há mais louvor a (מות) ”ou na “morte (שאול) pois no Sheol ,(משחת

YHWH (Is 38.17,18). A “sepultura” (שחת) forma um paralelismo com “verme” (רמה) nos dois

versetos de Jó 17.14, ambos relacionados ao Sheol (cf. v. 13). Em Salmo 30.10[9], a

“sepultura” (שחת) envolve um estado de morte (“meu sangue” [בדמי]) em que o homem se

decompõe e se torna “pó” (עפר). Nesses três exemplos, é possível entender שחת como uma

referência ao local em que o corpo se decompõe (Is 38.17)630

até tornar-se pó (Sl 30.10) e ser

comido pelos vermes (Jó 17.14).

O Salmo 49.11 começa com uma conjunção enfática ou asseverativa (כי) 631

que

reforça o que foi declarado nos versículos anteriores, ou seja, que os seres humanos são

624

GESENIUS, 2003, p. 816; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 1001. 625

TROMP, 1969. p. 69-70. 626

SMITH, 2001. p. 366; cf. a análise em MARTIN-ACHARD, 2015, p. 54-63. 627

Embora Tromp proponha inicialmente que שחת se refere ao “mundo inferior”, ele reconhece que o sentido em

Isaías 38.17 é “evidentemente” uma referência “ao destino do corpo na sepultura” e acrescenta: “aqui, os limites

entre a sepultura e o mundo inferior não podem ser traçados” (TROMP, 1969, p. 69-70). O fato de שחת ser

paralelo a שאול (e.g. Sl 16.10) não implica que os dois têm exatamente o mesmo sentido, mas sim, que ambos

fazem referência à condição de um morto ou ao âmbito da morte (ver observação semelhante em TRULL, 2004,

p. 319). 628

HARRIS, R. Laird. שחת. In: HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1999, p. 911. 629

Ver Jó 17.14; 33.18,22,24,28,30; Sl 30.10[9]; 55.24[23]; 103.4; Is 38.17; Ez 28.8; Jn 2.6. 630

Ver uma perspectiva semelhante defendida por Janet K. Smith: “A palavra hebraica para ‘Cova’ reforça a

impressão de que a sepultura é um lugar temível e negativo para ir. Uma cova não é nada mais que um enorme

buraco em que os animais mortos eram lançados. Quando o salmista aflito queria retratar o temor ou medo da

morte prematura, ele com frequência usava essa palavra para se referir ao sheol (e.g., 88.4,6)” (SMITH, 2011, p.

120) 631

Sobre esse uso enfático ou asseverativo de כי, ver GESENIUS; KAUTZSCH; COWLEY, 1910, p. 498,

§159.ee; KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 470; PINTO, 1998, p. 145,

19.67; ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 312.

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incapazes de evitar a morte com os próprios recursos:632

“Certamente [...] morrerão [...] serão

destruídos”.

O versículo 11 parece ter uma estrutura de três versetos (trístico ou tricola),633

em

que os dois primeiros versetos formam um paralelismo sinônimo634

por meio de merisma, isto

é, uma forma retórica em que o autor menciona dois extremos ou grupos de pessoas opostos

(os חכמים de um lado, o כסיל e o בער do outro) para indicar a totalidade da espécie humana.635

O último verseto do trístico estabelece um paralelismo progressivo ou sintético636

com o

segundo verseto, acrescentando ideias a este e revelando o resultado da destruição de כסיל

(“insensato”) e בער (“bruto”).637

Podemos descrever a relação entre os três versetos da

seguinte maneira:

כייראה / חכמים / ימותו

יחדכסילובער / יאבדו

ועזבולאחריםחילם

O elemento A do primeiro verseto está presente por elipse no segundo;638

o merisma

entre o primeiro e o segundo verseto formam os paralelos da parte B, e os verbos, os paralelos

da parte C: A. “Certamente, verá” / A’ [elipse verbal: ele verá]; B. Os sábios / B’. insensato e

bruto juntos C. morrem / C’. são destruídos.

Entre o segundo e o terceiro versetos há complemento de ideias, revelando a

consequência da morte do insensato e do bruto: “os tesouros que acumularam em vida

deixarão aos outros quando morrerem”.639

Ou seja, A. “insensato e bruto” (ובער כסיל) B. “são

632

VANGEMEREN, 1991, p. 369; GERSTENBERGER, 1988, Psalm 49 (edição kindle); GOULDER, 1982, p.

188. 633

TERRIEN, Samuel. The Psalms: strophic structure and theological commentary. Grand Rapids: Eerdmans,

2003. p. 388; RAABE, 1990, p. 80. 634

KÖSTENBERGER; PATTERSON, 2014, p. 240-2. 635

Sobre o merisma, ver RYKEN, 2014, verbete merism (edição kindle); ZUCK, 1994, p. 177. 636

OSBORNE, 2009, p. 290-2. 637

Aqui, concordamos com Raabe que o terceiro verseto, bem como o dístico do versículo 12 é uma referência a

esses dois grupos (כסיל e בער) opostos aos חכמים (RAABE, 1990, p. 73,80; cf. GOLDINGAY, 2006, Psalm 49

[edição kindle]). 638

Alter chama esse tipo de paralelismo de “paralelismo elíptico” e dá diversos exemplos, entre eles uma oração

principal em Provérbios 2.16 que é pressuposta, ainda que esteja oculta, nos versículos 17-19 (ALTER, 2011, p.

25-8). Este exemplo se assemelha bastante ao de Salmo 49.11, pois כייראה também é a oração principal, seguida

por duas orações subordinadas. Ver também a discussão sobre elipse verbal em MILLER, 2003, p. 251-270. A

proposta do elemento A (“Certamente ele vê”) desta análise discorda da ideia de Briggs de que esse elemento A

teria sido um acréscimo posterior de um escriba (BRIGGS, 1906, p. 408). Não há qualquer base textual para a

conjectura de Briggs. 639

WEISER, 1994, p. 287. Embora Weiser entenda que o último verseto esteja relacionado aos dois anteriores,

em contraste com a tese defendida aqui de que ele se aplica somente aos dois personagens do segundo verseto.

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destruídos” (יאבדו) / B.’ “e [, consequentemente,] deixarão para outros suas posses” ( ועזבו

.(לאחריםחילם

A referência aos חכמים (“sábios”) como indivíduos que ימותו (“morrem”) pode

surpreender o intérprete por colocá-los na mesma condição do grupo oposto (o “bruto” e o

“insensato” do segundo verseto).640

Entretanto, conforme indicado anteriormente, o autor faz

uso de merisma para mostrar que “todos os homens, sem distinção, sucumbem à morte”.641

O

que está em questão é a “radical condição humana, ’a a ”, desses grupos, pois os “mestres

são lição para os ricos, mais com seu destino do que com seus ensinamentos”, e revelam que

“se os doutos morrem, quanto mais os ricos”, visto que “dos sábios [o autor] não predica

delito nem vã confiança, como fez dos ricos”.642

O fato é que a literatura sapiencial, em especial o Qoheleth, enfatiza esse elemento

universal que atinge tanto sábios quanto tolos: “Pelo que disse eu comigo: como acontece ao

estulto, assim me sucede a mim; por que, pois, busquei eu mais a sabedoria? [...] Ah! Morre o

sábio, e da mesma sorte, o estulto!” (Ec 2.15,16, ARA, itálico acrescentado).643

Embora isso

deixe o Qoheleth inquieto e deprimido, aqui o salmista e seu público são encorajados pelo

fato de que os ricos orgulhosos não escaparão do destino final: a morte.644

Embora a חכמה (“sabedoria”), característica central dos חכמים (“sábios”), já tenha

sido estudada em detalhes na análise exegética do versículo 4, os dois termos que qualificam

o grupo oposto (כסיל ובער) merecem uma investigação mais detida.

Os léxicos de referência definem o substantivo כסיל como “estúpido (em aspectos

práticos)” ou “insolente (na religião)”,645

“néscio”, “tonto”, “idiota”, “ignorante”, “insensato”,

“imprudente”.646

M. Saebø analisa o termo em detalhes, afirmando que seu sentido básico é

“insensato” ou “insensatez” e indicando que é notoriamente um vocábulo sapiencial, que

ocorre setenta vezes na Bíblia Hebraica, em sua esmagadora maioria nos textos de

640

Von Rad expressa essa perplexidade ao afirmar que ninguém ainda resolveu as dificuldades textuais que o

versículo 11 apresenta (VON RAD, 1973, p. 263, nota 16). Kraus também declara: “Apesar de tudo, o

significado do v. 11 continua sendo difícil dentro do contexto” (KRAUS, 1993, p. 736) 641

KEIL; DELITZSCH, 1996, v. 5, p. 351 (itálico acrescentado). 642

ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 675. 643

Ver também Eclesiastes 9.2: “Tudo sucede igualmente a todos: o mesmo sucede ao justo e ao perverso; ao

bom, ao puro e ao impuro; tanto ao que sacrifica como ao que não sacrifica; ao bom como ao pecador; ao que

jura como ao que teme o juramento [...] Porque os vivos sabem que hão de morrer, mas os mortos não sabem

coisa nenhuma, nem tampouco terão eles recompensa, porque a sua memória jaz no esquecimento” (Ec 9.2,5,

itálico acrescentado) 644

LONGMAN III, 2014, Psalm 49 (edição kindle). 645

KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 489. 646

ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 322; BROWN, DRIVER, BRIGGS, 1977, p. 493.

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sabedoria.647

“kesîl se tornou gradualmente uma personalidade específica, em particular o

oposto de , o “sábio”, do qual kesîl aparece como o antônimo mais importante”.648

Há diversos textos que revelam essa oposição entre חכם (“sábio”) e כסיל, o que torna

“insensato” a melhor tradução para o termo כסיל (Pv 3.35; 10.1; 13.20; 14.16,24; 15.2,7,20;

21.20; 26.5; 29.11; cf. 10.23; 17.16; 28.26; Ec 2.14-16; 4.13; 6.8; 7.4s.; 9.17; 10.2,12).

Algumas passagens em que o paralelismo antitético utiliza opostos entre os dois versetos649

são suficientes como exemplos desse contraste entre חכם e כסיל. “Os sábios [חכמים] herdarão

honra, mas [ele] exalta os insensatos [כסילים] à vergonha pública” (Pv 3.35). “Quem anda com

os sábios [חכמים] será sábio, mas o companheiro dos insensatos [כסילים] se tornará mau” (Pv

13.20, ARA). “Os olhos do sábio [החכם] [estão] na sua cabeça, mas o insensato [הכסיל] anda

em trevas” (Ec 2.14).

O substantivo כסיל pode também funcionar como adjetivo, o que ocorre em vários

textos sapienciais em que representa o oposto do sábio e daquele que tem conhecimento (Pv

10.1; 14.7; 15.20; 17.25; 19.13; 21.20; Ec 4.13). “O filho sábio [חכם ן alegra o pai, mas o [ב

filho insensato [ן é a tristeza de sua mãe” (Pv 10.1; cf. Pv 15.1, um texto muito [כסיל ב

semelhante). “Tesouro desejável e azeite na habitação do sábio, mas o ser humano insensato

os desperdiça [כסיל]650

” (Pv 21.20). “Melhor é o jovem pobre e sábio [חכם] do que o rei velho

e insensato [כסיל]” (Ec 4.13)

Assim como a sabedoria na Bíblia Hebraica têm fortes contornos morais, a

insensatez, representada pelo כסיל, é essencialmente negativa da perspectiva moral e

religiosa:651

o “insensato” é equiparado ao “perverso de lábios” (מעקששפתיו) (Pv 19.1), ele

provoca “contendas” (Pv 18.6), espalha “difamação” sobre os outros (Pv 10.18), despreza sua

mãe (Pv 15.20) e tem prazer em praticar a “perversidade” (Pv 10.23).652

O segundo termo do versículo 11 para representar o grupo de pessoas oposto ao dos

sábios é בער. Ele ocorre somente cinco vezes em toda a Bíblia Hebraica e apenas em textos

poéticos (Sl 49.11; 73.22; 92.7[6]; Pv 12.1; Pv 30.2).653

647

SAEBØ, M. כסיל. In: JENNI; WESTERMANN, 1997, p. 620-1. 648

SAEBØ, 1997, p. 621. 649

Sobre o paralelismo antitético como um modo de declarar a mesma ideia por meio de um contraste entre os

versetos, ver KÖSTENBERGER; PATTERSON, 2014, p. 242; RYKEN, 1992, p. 181. 650

Para essa tradução de בלע no grau piel, ver BROWN, DRIVER, BRIGGS, 1977, p. 118. 651

Ver a exposição sobre vários aspectos morais e religiosos negativos do כסיל em GOLDBERG, Louis. כסל. In:

HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1999, p. 449-50. 652

SAEBØ, 1997, p. 621. 653

BROWN, DRIVER, BRIGGS, 1977, p. 129.

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Em Salmo 73.22, בער parece estar em uma relação de hendíadis654

com a expressão

que o acompanha no mesmo verseto, “e não tinha conhecimento” (דע א comunicando ,(ולא

juntos um único conceito cujo paralelo no verseto seguinte ajuda a entendê-los: “eu era um

animal diante de ti” (עמך está em paralelo com o termo בער ,Em salmo 92.7[6] .(בהמותהייתי

do segundo verseto, o mesmo termo que o acompanha em Salmo 49.11. É (”insensato“) כסיל

interessante que, mais uma vez, בער é retratado como alguém sem conhecimento: איש־בערלא

.(”não conhece בער homem“) ידע

A oposição entre o “ter/amar o conhecimento” e a pessoa que é descrita como בער

também está presente em Provérbios 12.1 em um paralelismo antitético direto:

A. אהבמוסר (“o que ama a disciplina”)

B. הבדעת (”ama o conhecimento“) א

A’. ושנאתוכחת (“mas que odeia a repreensão”)

B’. בער (“[é] בער”)

Não há como deixar de perceber essa associação entre בער e a falta de conhecimento.

Embora Provérbios 30.2 não use a raiz verbal ידע (“conhecer”) nem o substantivo דעת

(“conhecimento”), nele ocorre outro termo que também diz respeito ao aspecto

intelectual/moral: בער é alguém que “não [tem] entendimento de ser humano” (ולא־בינתאדם).

Portanto, os termos “bruto” ou “estúpido”655

definem bem o segundo termo do segundo

verseto de Salmo 49.11, alguém que carece de conhecimento e age de modo irracional, à

semelhança de um “animal” (בהמה, Sl 73.22).656

“A raiz [de בער] parece estabelecer um

contraste entre a capacidade do homem de raciocinar e entender e a incapacidade do animal

de fazer isso (Pv 30.2)”.657

Outra questão também presente no versículo 11 é se o terceiro verseto (“e deixam

para outros suas posses” [לאחריםחילם diz respeito somente ao anterior ou também ao ([ועזבו

grupo dos sábios que aparece no primeiro verseto. Keil e Delitzsch entendem que “certamente

não é a intenção do poeta” ter os sábios como “sujeito” do último verseto, que “deixam [...]

654

Entende-se hendíadis como um conceito que é comunicado “por dois termos coordenados (ligados por ‘e’) em

que um dos elementos define o outro” (ZUCK, 1994, p. 177). 655

KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 146. 656

GESENIUS, 2003, p. 133. 657

OSWALT, John N. בער. In: HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1999, p. 121.

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suas posses”.658

Paul Raabe também destaca que o “sujeito do verbo e o antecedente do sufixo

pronominal é o ‘insensato e o bruto’ do versículo 11b, pois o foco está na riqueza”.659

De fato, é significativa a repetição de חילם (“suas posses”) no versículo 11c, pois,

anteriormente, essa construção foi usada para designar “os que confiam em suas posses

O uso do mesmo termo acompanhado do mesmo sufixo pronominal possessivo .(v. 7) ”[חילם]

é, muito provavelmente, estratégia retórica do autor para criticar “os que confiam em suas

posses” como “insensato[s]” e “bruto[s]”, o que implica ausência de uma vida moral correta

”O “pensamento íntimo .(בער) ou de uma forma de agir sensata e lúcida (כסיל)660

dessas

pessoas de que suas casas serão eternas (v. 12) só reforça o argumento de que o sujeito dos

verbos nos v. 11c e 12 são o “insensato” e o “bruto” do v. 11b, não os sábios do primeiro

verseto. E o mais trágico do destino de “bruto” e “insensato” é que “deixarão para outros suas

posses”, ou seja, qualquer pessoa que venha a tornar-se o novo proprietário desses bens, “que

nem sequer é definida por um sufixo [...] para indicar seus próprios sucessores, seus

descendentes”.661

Assim como o anterior, o versículo 12 apresenta uma estrutura de três versetos

(trístico ou tricola),662

em que os dois primeiros versetos formam um paralelismo sinônimo,663

e a terceira linha do trístico estabelece um paralelismo progressivo ou sintético com o

segundo verseto,664

expandido a ideia anterior665

sobre a expectativa dos ricos de que “suas

habitações” permanecerão “de geração em geração” (ודר eles “aclamam seus nomes :(לדר

sobre as terras” (קראובשמותםעליאדמות). No paralelismo sinônimo das duas primeiras linhas,

observa-se o paralelismo entre B. בתימו (“suas casas”) e B’. משכנתם (“suas habitações”), e C.

לםלעו (“eternas”) C’. ודר seu“) קרבם .com o elemento A ,(”de geração em geração“) לדר

pensamento íntimo”) do primeiro verseto presente por elipse no segundo.666

Assim a estrutura

tripla do versículo 12 pode ser descrita seguinte forma:

ימובת / לעולם קרבם /

משכנתם / לדרודר

658

KEIL; DELITZSCH, 1996, v. 5, p. 351. 659

RAABE, 1990, p. 73. 660

Para a escolha da leitura do TM (קרבם), ver a análise de crítica textual no cap. 1 (cf. GOULDER, 1982, p.

189). 661

BRIGGS, 1906, p. 409. 662

RAABE, 1990, p. 80; cf. a divisão poética do trístico em ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 664. 663

KÖSTENBERGER; PATTERSON, 2014, p. 240-2. 664

OSBORNE, 2009, p. 290-2. 665

RYKEN, 1992, p. 182. 666

Cf. o “paralelismo elíptico” em ALTER, 2011, p. 25-8.

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קראובשמותםעליאדמות

Conforme discutido na seção de Crítica Textual do capítulo 1, o versículo 12

começa, provavelmente, com a leitura do TM: רב) קרבם ;”lit.: “interior [de uma região] ,ק

“partes internas”; “sede do pensamento e da emoção”; “entranhas”667

ם + [sufixo pronominal

possessivo da 3ª. pessoa do masculino singular], “seu”, “deles”), que é preferível tanto por ser

a lectio difficilior668

quanto por ter o apoio do Psalterium iuxta Hebraeos (Jerônimo).669

O sentido provável de רב .”neste versículo é “pensamento íntimo ק670

Conforme

atestado por seu uso em outras passagens da Bíblia Hebraica,671

o termo pode ser uma

referência à “faculdade” ou à “sede do pensamento e da emoção”.672

Em Salmo 62.5[4], há

claramente um contraste entre o ato da “boca” dos homens falsos de “abençoar” alguém e o

“pensamento interior deles” (קרבם) que “amaldiçoa” a mesma pessoa. Em 64.7[6], o salmista

usa רב ”juntos para indicar o locus em que os malfeitores “tramam/planejam (”coração“) לב e ק

”que estão presentes os “maus pensamentos קרב a maldade. Em Jeremias 4.14, é no (יחפשו)

אונך) dos habitantes de Jerusalém. Portanto, o salmista expõe o que há oculto no (מחשבות

pensamento do “insensato” e do “bruto”, uma expectativa equivocada e contrária ao que a

reflexão sapiencial dos versículos 8-11 demonstrou.

O uso plural dos dois termos paralelos B. בתימו e B’. משכנתם deve ser entendidos

como um plural de intensidade (v. 12),673

em vez de quantidade, enfatizando a rica condição

dos “insensatos” e “brutos”. As casas são mencionadas aqui por ser o lugar em que o homem

estabelece suas raízes: “Qual ave que vagueia longe do seu ninho, tal é o homem que anda

vagueando longe do seu lar” (Pv 27.8, ARA), e pelo fato de que a sabedoria hebraica fala

sobre a importância de edificar a “casa” com entendimento (Pv 14.1; 24.3).674

Como o salmo deixará evidente logo a seguir no refrão: a esperança de que suas

casas/habitações serão eternas (“eternas” ou “de geração em geração”) não passa de

667

ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 591; BROWN, DRIVER, BRIGGS, 1977, p. 899; KOEHLER;

BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 1135. 668

GOLDINGAY, 2006, Psalm 49, nota 5 (edição kindle); GOULDER, 1982, p. 189. 669

A leitura do Psalterium iuxta Hebraeos é a seguinte: interiora sua domus suas in saeculo (“interiores deles

[são?] suas casas em [uma] geração”). 670

Ver as análises de COPPES, Leonard J. קרב. In: HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1999, p. 813; HOLLADAY;

KÖHLER, 2000, p. 324; KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 1135,

sentido 2. 671

Cf. as ocorrências de קרב em Gn 18.12; Sl 5.10[9]; 62.5[4]; 64.7[6]; Jr 4.14. 672

BROWN, DRIVER, BRIGGS, 1977, p. 899. 673

GESENIUS; KAUTZSCH; COWLEY, 1910, p. 397-8, §124.e; GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição

kindle). 674

ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 676.

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autoilusão, pois “o ser humano em esplendor não permanece” (v. 13).675

“As casas terrenas

que o rico tinha possuído, chamando-as por seu nome na vã esperança de um tipo

perpetuidade, passariam para as mãos de outros”.676

Como acontece com todos, “também a

vida daqueles que, como proprietários ou detentores de poder, consideraram extensas terras

como suas, acabará entre as estreitas paredes do túmulo. Este é o fim da glória humana”.677

Todas as casas de um homem neste mundo são interinas e provisórias, somente o sepulcro é a

morada que perdura,678

como a tradição sapiencial faz questão de enfatizar: a “morte” (מות) é

a “casa” (בית) para onde vão “todos os viventes” (Jó 30.23; cf. 17.13).

Mark Smith vê na estrutura sintática בש אדמותקראו עלי מותם (v. 12c) um foco

religioso/cultual e apresenta um estudo de vocábulo (e.g., Gn 12.8; 26.25; Êx 34.5; 1Rs 18.24;

Sl 116.4) para demonstrar que há linguagem religiosa quando o substantivo שם (“nome”) é o

objeto do verbo e é governado pela preposição ב (“em”; “por”) referindo-se à prática de

invocar os nomes dos ancestrais.679

Ele conclui que a expressão hebraica do versículo 12 não

indica a prática de dar o nome da família ou do ancestral dela à terra (cf. Nm 32.42; Dt 3.14),

mas é uma crítica ao rico, que, de modo errado, conforta a si mesmo ao praticar a invocação

de seus ancestrais falecidos.680

Entretanto, há alguns problemas críticos na proposta de M. Smith. Em primeiro

lugar, a pessoa ou ser que é invocado como objeto de adoração aparece explicitamente

relacionado ao substantivo “nome” (שם) nas passagens em que a construção שם + ב + קרא tem

conotação religiosa. Por exemplo, em Gênesis 13.4, o nome de YHWH é claramente indicado

como objeto de culto de Abrão: “E invocou ali o nome de YHWH” ( בשםיהוהשםאברםויקרא ).

No texto de 1Reis 18.26, Baal é claramente identificado como o objeto da invocação: “E

invocaram o nome de Baal” ( בשם־הבעלויקראו ). No Salmo 49.12, são os próprios ricos

(“insensato” e “bruto”) que funcionam como sujeito e objeto da invocação por formarem o

antecedente plural da raiz verbal קרא, literalmente: “Invocam os nomes deles...” ( קראו

675

KEIL; DELITZSCH, 1996, v. 5, p. 351-2. 676

CRAIGIE, 1983, p. 359. 677

WEISER, 1994, p. 287; cf. TESH, 1999, p. 354; VANGEMEREN, 1991, p. 369. 678

ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 676. 679

SMITH, 1993, p. 105-7. 680

SMITH, 1993, p. 106-7.

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ou seja, são os ricos, não seus antepassados que funcionam como objeto de ,(בשמותם

autoadoração.681

Em segundo lugar, a mesma construção םש + ב + קרא pode ter outras conotações

além de cultuais: separação para uma tarefa — “Chamei Bezalel pelo nome [...] para

elaborar projetos...” ( ב מחשבתלחש בצלאלקראתיבשם [...] ) (Êx 31.2; cf. 35.30ss.); e separação

para pertencer a YHWH como resultado da redenção divina — “Pois eu te redimi / eu te

chamei pelo nome, para mim [és] tu” ( גאלתיך לי־אתהבשמךקראתיכי ) (Is 43.1; cf. 45.4).

Portanto, embora a linguagem religiosa esteja presente na construção de Salmo 49.12, ela não

é exclusiva e pode indicar posse, como é o caso do último exemplo bíblico mencionado.

Além disso, o uso de (קראו [...] עליאדמות) על + קרא também confirma esse sentido de

posse ou reivindicação de propriedade, como a conquista de Rabá por Joabe deixa claro: ונקרא

שמ עליהי (“seja aclamado o meu nome sobre ela”).682

“No v. 12 descreve-se a atividade

poderosa dos ricos, que como reis proclamam seus nomes sobre as terras (2Sm 12.26ss.). קרא

”.designa um ato jurídico por meio do qual ocorre uma transmissão de domínio שם683

Portanto, é possível entender a existência de ambiguidade no versículo 12c, em que

o verseto indica tanto a autoadoração dos ricos insensatos quanto sua reivindicação de

propriedade sobre as terras que conquistaram ou adquiriram. Os ricos buscam a imortalidade,

distinguindo-se de outros mortais, ao dar “seus nomes às terras [אדמות]” (v. 12), mas seus

planos fracassam, pois o “ser humano [אדם] em esplendor não permanece” (v. 13).

A princípio, o leitor pensa na expressão idiomática comum בשם invocar o“) קרא

nome de”), que geralmente é usada para a invocação do nome de Yahweh. Em vez

de invocar o nome de Yahweh, os ricos arrogantes “invocam os seus próprios

nomes”; eles deificam a si mesmos (cf. v. 7). Mas a expressão seguinte אדמות עלי

(“sobre as terras”), traz à mente outra expressão idiomática comum לנקראשמע (“o

nome de alguém ter sido aclamado sobre” algo). Este idiomatismo denota posse de

uma propriedade. [...] Isso parece ser uma combinação deliberada das duas

expressões idiomáticas.684

2.4. Refrão: O homem em esplendor perecerá como os animais (v. 13)

Mas um ser humano em esplendor não permanece,

681

Embora M. Smith defenda a leitura mais fácil da LXX e Peshitta, o termo קברם (“a sepultura deles”) é singular

e não poderia funcionar como antecedente do sufixo pronominal possessivo da 3a. pessoa do masculino plural

ם , portanto, não pode ser usado como justificativa aos ancestrais falecidos. 682

GOULDER, 1982, p. 189: “Eles têm chamado (קראו) as terras segundo eles mesmos, como Davi fez em

Rabat-Amon…”. Paul Raabe cita outras passagens além de 2Samuel 12 (1Rs 8.34; Is 4.1; Am 9.12) e diz: “O

idiomatismo se refere à posse. Portanto, a frase significa que o rico reivindica posse de muitas terras” (RAABE,

1990, p. 73). 683

KRAUS, 1993, p. 737. 684

RAABE, 1991, p. 221-2.

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É semelhante aos animais [que] perecem.

O refrão do salmo, na forma do versículo 13, começa com um ו adversativo685

para

indicar o contraste entre as expectativas internas do rico “insensato”. Ele pensa que “suas

casas” e “suas habitações” durarão “para sempre” ou “de geração em geração” (v. 12), mas,

na verdade, o “ser humano em esplendor não permanece”, pois “é semelhante aos animais

[que] perecem” (v. 13). Como Goulder assinalou, há uma ligação entre o último termo do

versículo 12, אדמות (“terras”), e o primeiro substantivo do versículo 13, אדם (“ser humano”):

A palavra para terra é encontrada no plural somente aqui [v. 12]. Com frequência,

ela significa terra arável, mas é usada para a terra de Israel (Ez 11.17), a terra do

Egito (Gn 47.20,26), etc. O uso aqui deve-se provavelmente a אדם no versículo

seguinte [v. 13] (cf. v. 2, 20), como em Gênesis 2.7, “o SENHOR Deus formou אדם

do pó da אדמה”.686

A ironia está no fato de que a tradição preservada em Gênesis 3.17-19 relata a

condenação de ’E contra אדם (“Adão”): ele deverá retornar à “terra” (אדמות; cf. “até

retornares à terra”, וב ךאל־האדמהעדש ), isto é, experimentar a morte retornando ao “pó da terra”

(“ao pó tornarás”, וב תש como consequência de sua desobediência ao mandamento (ואל־עפר

divino. Ao invocar/aclamar seu nome sobre as אדמות, o rico insensato se esqueceu de que ele é

.é que reivindicará posse sobre ele אדמה e de que a אדם

Outra ligação entre os versículos 12 e 13 ocorre por meio da raiz verbal לין

(“pernoitar”; “alojar-se”; “permanecer”)687

(v. 13) e o substantivo בית (“casa”) (v. 12),688

visto

que diversos trechos da Bíblia Hebraica falam sobre “pernoitar/alojar” (לין) em uma “casa”

”em esplendor“ אדם A grande ironia é que o .(Gn 19.2; 24.23; Jz 18.2; 19.15; 1Cr 9.27) (בית)

(v. 13) passa boa parte de sua vida investindo em “suas casas” (בתימו), pensando que elas

durariam “eternamente” (לעולם) (v. 12), porém, logo descobrirá que nela não

pernoitará/permanecerá (בל־ילין),689

mas, assim como os animais, אדם perecerá (cf. נדמו) (v.

13).

685

PINTO, 1998, p. 138, 18.32; WILLIAMS, 1976, p. 71, §432; NET Bible, 2005, Psalm 49.13, translator note

23: “A construção vav (ו) + substantivo no início do versículo pode ser interpretado como contrastivo em relação

ao que o precede” (cf. Gn 6.8; 1Rs 2.26; Pv 10.4). 686

GOULDER, 1982, p. 189. 687

KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 529; BROWN, DRIVER,

BRIGGS, 1977, p. 533; ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 343. Contra a proposta de Judah J. Slotki de que o verbo

aqui é לון (“murmurar”, “queixar-se”), indicando que o ser humano fica “mudo” (בל־ילין, “não se queixa”) diante

das injustiças evidentes (SLOTKI, v. 28, n. 3, p. 361-2). Ver também a crítica à proposta de Slotki em SMITH,

2011, p. 123-4. 688

ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 676. 689

CRAIGIE, 1993, p. 360.

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104

O versículo 13 está estruturado em um paralelismo progressivo,690

que corresponde

bem à categoria de paralelismo de especificação ou intensificação, em que a ideia geral é

transformada em uma imagem concreta, mais penetrante e enfática:691

a afirmação de que o

ser humano não permanece é reforçada e enfatizada com a imagem dos animais “que

perecem”.

Aqui, há uma alusão à introdução do salmo pelo uso reiterado da raiz משל. No

versículo 5, o autor diz que inclinará seu ouvido “a uma parábola/comparação” ( משלל ), e, no

refrão do versículo 13, afirma que o homem “em esplendor” (ביקר) “é semelhante” ( משלנ ) aos

animais em sua mortalidade.692

A conclusão inevitável é apresentada na forma de um ‘provérbio’. O homem, quem

quer que ele seja (rico ou pobre), não pode usar a riqueza para sua vantagem diante

da morte. Um único fim atinge toda a humanidade e os animais da mesma forma,

isto é, a morte (cf. Ec 3.19). A própria natureza da ‘vida’ (animal e humana) é tal

que ela está inserida na obsolescência.693

Keil e Delitzsch observam o uso da raiz verbal משל + a preposição כ para estabelecer

comparação dos seres humanos com elementos da natureza: por exemplo, em sua aflição, o

ser humano “é semelhante” (משל) “ao pó e à cinza” (פר .(Jó 30.19) (כעפרוא694

No grau qal, o

termo משל pode ter o sentido de “formular ou propor uma parábola” (cf. Ez 18.2ss; 24.3),695

mas no nifal, como é o caso de Salmo 49.13, o sentido é de “representar”, “ser semelhante a”

(cf. Is 14.10; 143.7).696

Portanto a relação do v. 13 com o v. 5 ocorre pelo uso de termos com

a mesma raiz, em que o versículo 13 explicita a “parábola” do salmo por meio do ato de

“representar” ou comparar.697

Mitchell Dahood propõe a leitura “Mansão”698

para יקר com base em um artigo de R.

P. Joüon, em que este autor analisa uma estátua honorária bilíngue e propõe que o substantivo

690

OSBORNE, 2009, p. 290; KÖSTENBERGER; PATTERSON, 2014, p. 242-3. 691

ALTER, 2011, p. 21. Cf. também a análise desse mesmo tipo de paralelismo no v. 10. 692

ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 669-70. Observe-se esse mesmo entendimento de que o verbo משל

está relacionado ao substantivo משל (v. 5) em DECLAISSÉ-WALFORD; TANNER; JACOBSON, 2014, p. 444. 693

VANGEMEREN, 1991, p. 369. 694

KEIL; DELITZSCH, 1996, v. 5, p. 352. 695

KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 647. 696

BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 605. 697

Neste sentido, o v. 13 é tanto a comparação da “parábola” mencionada anteriormente quanto o é o v. 21. Não

há uma relação em que o primeiro refrão seria um enigma, e o segundo uma solução para ele, como propõe

McDaniel (MCDANIEL, 2001, p. 49), menos ainda o inverso, como defende Perdue (PERDUE, 1974, p. 538-

540). 698

DAHOOD, 1965, p. 295, 299.

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105

palmirense יקרא tem seu correspondente no termo grego ι ή (“honra”), cujo sentido em

algumas inscrições funerárias seria “monumento de honra”.699

Em seguida, Joüon afirma:

Como ocorre com frequência em nossas línguas, a palavra com o sentido de “honra”,

ι ή, é usada também no sentido concreto de ‘uma honra’ dada a alguém, “o que

constitui sinal de honra” [...] Descobrimos ele sendo usado com um significado

concreto de ‘marca, sinal ou monumento de honra’ em uma inscrição bilíngue [...]:

“Este [memorial] que é um monumento de honra da sepultura”.700

Entretanto, essa tradução é muito pouco provável à luz do contexto próximo do

Salmo 49 e de seu uso ao longo da Bíblia Hebraica. O HALOT reconhece dois sentidos

básicos para יקר: “preciosidade” e “honra”, atribuindo o uso em Salmo 49.13 ao primeiro

sentido associado a itens preciosos (em que também são alistadas as seguintes passagens: Jr

20.5; Ez 22.25; Jó 28.10; Sl 49.13,21).701

O BDB também reconhece esses dois sentidos

básicos, mas entende o Salmo 49.13 no segundo sentindo de יקר: “honra” (com Et 1.4; 6.3;

8.16).702

O que chama a atenção é que não há uma associação, em nenhum dos léxicos, com o

sentido de “monumento de honra” funerário como propõe Dahood.703

Ao contrário da proposta de BDB, o termo יקר parece ser melhor traduzido por “a

riqueza/pompa do esplendor de sua grandeza” (יקרתפארתגדולתו) no texto de Ester 1.4, pois o

sentido básico de יקר pode ser identificado pela expressão paralela anterior, que faz referência

à “riqueza da glória de seu reinado” (עשרכבודמלכותו).

Chama a atenção o uso de sufixo pronominal possessivo ao final de גדולתו (“sua

grandeza”) e de מלכותו (“seu reino”), estabelecendo-os como duas expressões paralelas na

cadeia de construto, que são imediatamente precedidas por dois sinônimos no hebraico תפארת

(“esplendor”) e כבוד (“glória”).704

Portanto, é provável que o texto de Ester 1.4 empregue יקר

com o sentido semelhante a עשר (“riqueza”) para se referir à riqueza e objetos de valor que o

rei Assuero ostentava e revelou a seus vassalos.

Em Jeremias 20.5, יקר está relacionado a termos como חסן (“tesouro”,

“suprimentos”)705

e יהודה מלכי Nos textos sapienciais .(”tesouros dos reis de Judá“) אוצרות

(mesmo gênero que o Salmo 49), יקר é usado para se referir à busca do homem por “tudo [o

699

JOÜON, R. P. Glanes palmyréniennes. Syria, v. 19, n. 1, 1938, p. 100. Cf. SABOURIN, 1974, p. 375. 700

JOÜON, 1938, p. 100. 701

KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 432. 702

BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 430. Cf. também GESENIUS, 2003, p. 363. 703

Isso é surpreendente em relação ao HALOT, que não considera o sentido descoberto na pesquisa de R. P.

Joüon uma possibilidade a ser aplicada ao Salmo 49 como faz Dahood. Paul Raabe nota os dois sentidos básicos

dos léxicos mencionados aqui e diz ser improvável a reconstrução de Dahood à luz do segundo refrão (RAABE,

1990, p. 73) 704

Ver em ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 707, como תפארת pode funcionar como substituto 705

HOLLADAY; KÖHLER, 2000, p. 112.

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que é] precioso” (כל־יקר) ao escavar nas rochas (Jó 28.10), em uma alusão aos metais

preciosos. Em Provérbios 20.15, יקר funciona como qualificativo e indica “objeto de valor”

.(פנינים) ”e “pérolas de coral (זהב) ”em paralelo a “ouro (כלייקר)706

Não resta dúvida de que, à

luz da discussão sobre as riquezas e sua insuficiência para redimir um ser humano porque o

resgate da vida dele “é valioso” demais (v. 7-12, esp. v. 9), que יקר tem o sentido de

“esplendor” ou “pompa”, indicando um “ser humano” (אדם) que adquiriu muitos “objetos de

valor”.707

Como já enfatizado anteriormente, há uma ironia aqui por meio de jogo de palavras:

o resgate da vida de uma pessoa é tão valioso (יקר) (v. 9) que mesmo um ser humano em

esplendor (יקר) (v. 13) é incapaz de pagar, por isso, ele “é semelhante aos animais [que]

perecem” (v. 13). Isso produz um importante impacto retórico, pois um grupo específico de

pessoas ricas e poderosas é comparado aos animais irracionais.708

2.5. Estrofe II: A realidade da morte e a confiança na redenção divina eliminam o

temor de alguém que se enriquece (v. 14-20)

14Este é o caminho daqueles [cuja] tola confiança [é] para si

Mas seus seguidores têm prazer no que eles dizem.

15Como rebanho dirigem-se para o Sheol,

Morte os pastoreará.

De manhã, os justos dominarão sobre eles.

O Sheol engolirá suas formas,

Longe da mansão dele.

16Mas Deus redimirá minha vida do poder do Sheol,

Certamente me tomará. Selá.

17Não temas se um homem alcançar riquezas,

Se aumentar a glória de sua casa.

18Certamente não tomará tudo [consigo] em sua morte,

Não descerá atrás dele sua glória.

19Embora em sua vida ele se congratulasse:

“E es te ouva , pois as coisas vão be contigo”.

706

KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 946. 707

KEIL; DELITZSCH, 1996, v. 5, p. 352; GOULDER, 1982, p. 189-90. 708

SMITH, 2011, p. 124.

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107

20Ele irá até a geração de seus pais;

Não verão a luz para sempre.

O versículo 14 está repleto de discussões textuais,709

que foram analisadas no

capítulo 1 desta dissertação e cujo estudo demonstrou que o TM deve ser mantido sem

alterações por emendas textuais ou leituras das versões. Esta nova estrofe (v. 14-20) apresenta

em detalhes o destino “daqueles [cuja] tola confiança [é] para si” (v. 14; cf. v. 6). Como o

versículo 13 é o refrão que conclui a seção precedente, deve-se ler זהדרכם (“este é o caminho

daqueles”) (v. 14) como uma indicação do que o texto está prestes a descrever.710

O

substantivo דרך (“caminho”) aqui não tem seu sentido figurado mais comum, o de “conduta”

ou “modo de vida” (1Rs 2.3; Jó 34.21,21; Sl 1.1; Pv 14.8),711

mas implica destino (cf. Sl 35.6:

“Seja o caminho deles trevas”; 37.5),712

como o versículo 15 com sua descrição do fim dessas

pessoas no Sheol deixará claro.713

O termo hebraico כסל no Salmo 49.14 é identificado como o substantivo abstrato da

raiz II em HALOT714

e Holladay,715

equivalente ao da raiz I de Alonso Schökel.716

Tanto o

BDB quanto Gesenius não fazem essa distinção da raiz verbal e analisam o substantivo como

de uma só raiz com vários sentidos.717

Na raiz I (HALOT e Holladay), o substantivo כסל tem

o sentido concreto de “lombo” ou “lado” e se refere aos “lombos” (כסלים) dos animais cuja

gordura era queimada nos holocaustos do povo de Israel (Lv 3.4,10,15; 4.9; 7.4). Também

descreve o lombo humano cheio de gordura (פימהעלי־כסל) como figura para alguém próspero

(Jó 15.27).718

Na raiz II (HALOT e Holladay), כסל é um substantivo abstrato e pode ter mais de um

sentido. O mais comum é “confiança”/“segurança”: a “confiança” que uma pessoa tem em um

ser ou em algum objeto de valor ou a “segurança” que se garante a alguém. Pode ser uma

709

GOULDER, 1982, p. 190. Ver os quatro problemas textuais (a, b, c, d) no texto e aparato crítico de

ELLIGER; RUDOLPH, 1997, p. 1131. 710

KRAUS, 1993, p. 730-1; NET Bible, 2005, Psalm 49.13, translator note 26. 711

WOLF, Herbert. דרך. In: HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1999, p. 196-7; ALONSO SCHÖKEL, 2004, p.

162. 712

DAHOOD, 1965, p. 299; cf. a tradução de ZUCKER, 2005, p. 144 (também p. 148): “Such is the fate…”

[“Tal é o destino”]. 713

GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição kindle); GERSTENBERGER, 1988, Psalm 49 (edição kindle). 714

KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 489. 715

HOLLADAY; KÖHLER, 2000, p. 161. 716

ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 322. 717

BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 492; GESENIUS, 2003, p. 408. 718

Robert Alden observa: “Na antiguidade, a prosperidade era evidente na obesidade, ao passo que a magreza

revelava penúria (cf. Pv 11.25; 13.4). Naturalmente, o ímpio rico era obeso, com faces gordas e cintura

protuberante” (ALDEN, R. L. Job. NAC. Nashville: Broadman & Holman, 1993, p. 179)

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referência à “confiança” (כסל) posta no ouro (זהב), isto é, em suas riquezas e prosperidade (Jó

31.24).719

Aqueles que “se esquecem de Deus” (ל א י ,.i.e ,כסלו) ”terão sua “confiança (שכח

objeto/ser em que confiam) frustrada (Jó 8.13,14). Em contraste, Provérbios 3.25,26, diz que

o justo não precisa temer o ataque dos perversos porque Deus é a “segurança” (כסל) dele.

Assim como em Jó 8.13,14, Salmos 78.7 estabelece um contraste entre a confiança em Deus

( כסלםבאלהים ) e o esquecer-se de seus feitos (ישכחומעללי־אל). O único caso em que כסל da raiz

II tem o claro sentido de “insensatez” ocorre em Eclesiastes 7.25 por sua associação com o

termo “tolice”720

.(סכלות) 721

No entanto, parece haver um jogo de palavras por meio da assonância entre כסיל e

”e bruto juntos são destruídos [כסיל] No versículo 11b, há a informação de que “insensato .כסל

e “deixam para outros suas posses”. Ao utilizar כסל (“confiança”) no versículo 14, o texto

enfatiza, mais uma vez que, a confiança (כסל) em si (ou nas riquezas, v. 7) é a atitude do

insensato (כסיל), não do sábio. Nesse sentido, Paul Raabe define bem a ideia do termo כסל

(em associação a כסיל) como tola confiança,722

por isso, a tradução aqui proposta: “[cuja] tola

confiança [é] para si”.

A expressão hebraica do TM ואחריהם (lit.: “e depois deles”), que deve ser mantida,

pode ser traduzida tanto por “o fim definitivo deles...”723

quanto por “aqueles depois

deles...”.724

Embora a primeira leitura seja possível sem alteração do TM e com base em um

cognato ugarítico cujo sentido é “destino”, “destino final” (u t),725

o sentido mais natural é

entender a expressão אחריהם como “aqueles depois deles”, ou seja, seus seguidores,726

que

imitam o estilo de vida727

do indivíduos cuja tola confiança está em si mesmo e que “têm

prazer” (ירצו) no que sai da “boca” dos insensatos autoconfiantes (v. 14b).728

“Aqueles que

719

“Os salmos e a literatura sapiencial estão cheios de censura àqueles que colocam sua confiança (kesel, mi t )

em sua riqueza, em vez de em Deus (Sl 49.7-8 [6-7]; 52.9 [7] etc.; cf. Jó 22.25)” (GRAY, John. The Book of Job.

Sheffield: Sheffield Phoenix, 2010. p. 387) 720

HOLLADAY; KÖHLER, 2000, p. 256. 721

OGDEN, 2007. p. 129. 722

RAABE, 1990, p. 74. 723

DAHOOD, 1965, p. 296, 299-300. 724

CRAIGIE, 1983, p. 356. 725

LETE; SANMARTÍN, 2003. p. 41. Kraus, porém, propõe uma reconstrução do texto (cf. KRAUS, 1993, p.

730-1). 726

Ver tradução de GOULDER, 1982, p. 190; NET Bible, 2005, Psalm 49.13; 727

BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 30; RAABE, 1990, p. 74. 728

Cf. a discussão sobre essa possibilidade em GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição kindle).

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concordam com suas palavras, muitas vezes se beneficiando de seu poder e prestígio, também

morrerão e não mais existirão”.729

Como o ensinamento já foi apresentado de que os homens pomposos são como

animais, o salmista talvez esteja dizendo que aqueles que seguem um tolo em seu

caminho tornam-se tolos eles mesmos. Pode-se pensar em uma vaca ou cabra com

um sino que atrai os outros animais do rebanho.730

O texto do Salmo 49.15 é bastante complexo tanto em sua reconstrução textual731

quanto na interpretação de sua estrutura sintática e de aspectos semânticos.732

Embora Raabe

entenda a estrutura do v. 15 como formado por dois versos de um dístico cada,733

o texto

hebraico parece fazer mais sentido se for dividido em dois versos, o primeiro com um dístico

associado por paralelismo sinônimo734

(em que o primeiro termo é presumido no segundo

veserto por elipse735

), e o segundo com um trístico de paralelismo progressivo de

intensificação (em que a situação dos ímpios no Sheol é descrita de forma cada vez mais

trágica),736

mantendo לו לבלות na linha final, e (”longe da mansão dele“) מזבל lit.: “e) וצירם

suas formas para ele engolir”) na anterior (segundo verseto do trístico).737

Verso 1: Dístico

שתולשאולכצאן

ירעםמות

Verso 2: Trístico

בםישריםוירדו לבקר

וצירםלבלותשאול

מזבללו

729

VANGEMEREN, 1991, p. 370. 730

SMITH, 2011, p. 125. 731

A BHS alista cerca de dez problemas textuais analisados no aparato crítico, embora só quatro representem

variantes de versões ou manuscritos antigos (ver ELLIGER; RUDOLPH, 1997. p. 1131.) Kraus chega a afirmar

que “o texto no v. 15 está corrompido de modo irreparável” (KRAUS, 1993, p. 731). Entretanto, em nossa

análise de crítica textual buscamos propor uma solução para os quatro problemas principais. “A hipótese que

busca entender o TM é melhor do que essas conjecturas e esse desespero” (GOULDER, 1982, p. 191) 732

KEIL; DELITZSCH, 1996, v. 5, p. 352-3 discute mais detidamente vários aspectos sintáticos e semânticos

deste trecho. Cf. também as boas análises de ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 668; DAHOOD, 1965,

p. 300-1. 733

RAABE, 1990, p. 69-70, 79. Outros comentaristas também dividem em dois dísticos: GOULDER, 1982, p.

190; CRAIGIE, 1983, p. 356. 734

RYKEN, 1992, p. 180-181; KÖSTENBERGER, 2014, p. 240-1. 735

KÖSTENBERGER; PATTERSON, 2014, p. 262; MILLER, 2003, p. 251-270. 736

OSBORNE, 2009, p. 290; ALTER, 2011, p. 21ss. 737

GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição kindle). Ver as traduções nas análises de comentários e artigos que

também identificam um segundo com três versetos, em vez de dois: DECLAISSÉ-WALFORD; TANNER;

JACOBSON, 2014, p. 442; DAHOOD, 1965, 296; ZUCKER, 2005, p. 146 (cf. ALONSO SCHÖKEL;

CARNITI, 1996, p. 665, que invertem: um trístico e, depois, um dístico).

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110

O versículo 15 segue descrevendo o “destino” (lit. “caminho”) “daqueles cuja tola

confiança [é] para si” (v. 14). Como um “rebanho” de ovelhas (כצאן)738

incapazes de definir

seu destino ou de ter controle sobre a própria vida, os ímpios “dirigem-se”739

uma forma ,שתו)

variante de שתו,740

3ª. pessoa masculino plural de שית) para o Sheol, que funciona no texto

como o curral dessas ovelhas (v. 14).741

No contexto dos salmos dos coraítas, um dos poetas

havia se lamentado diante de YHWH: “Entregaste-nos como ovelhas para o corte, e nos

espalhaste entre as nações” (Sl 44.12[11]), agora a situação se inverte, em que os ímpios são

ovelhas submetidas a outro pastor em um redil nada atraente.742

Pois tudo aquilo sobre o que está constituída a vida desses homens seguros de si

desvanece na morte. Sem vontade própria como um rebanho, privados de qualquer

esperança apresentam-se ao mundo inferior, onde, como numa imagem grandiosa,

diz o poeta, a morte os apascentará e será o seu senhor.743

Há muita discussão sobre o sentido de “Sheol” (שאול) da Bíblia Hebraica, um termo

hebraico recorrente (65 vezes) relacionado à morte e a post mortem, mas que não aparece em

ugarítico, fenício ou púnico.744

Uma possível alusão a esse termo foi descoberta em uma

maldição em acádico nos textos de Ras Shamra.745

O sentido básico de שאול é o “além”,746

a

morada dos mortos, geralmente localizado nas profundezas da terra (Gn. 37.35; 1Rs 2.6; Sl

86.13; Pv 9.18; Is 38.10).747

O שאול representava uma condição de semivida, desconhecida, sombria e obscura em

sua essência, sem a plenitude que tornava possível o relacionamento com Deus.748

Em

Ezequiel, o Sheol é retratado como um lugar a ser habitado pelos mortos de todas as classes,

poderosos e oprimidos (Ez 31.15-17; 32.21,27). Todos irão para o Sheol um dia (Sl 89.48).

738

O verbo no plural (שתו) nos leva a traduzir צאן como um singular coletivo: “rebanho” (ver KOEHLER;

BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 993). 739

Ver esse sentido reflexivo de direção em GOLDINGAY, 2006, psalm 49, nota 10 (edição kindle); KOEHLER;

BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, 1485, exemplo 7c. 740

GESENIUS; KAUTZSCH; COWLEY, 1910, p. 183, §67.ee. 741

KEIL; DELITZSCH, 1996, v. 5, p. 352. 742

GOULDER, 1982, p. 191. 743

WEISER, 1994, p. 288. 744

TROMP, 1969, p. 21. Este autor oferece uma excelente discussão sobre a provável etimoglogia do termo שאול

nas p. 21-23 de seu livro. 745

DAHOOD, 1965, p. 212. 746

TROMP, 1969, p. 21. 747

DECLAISSÉ-WALFORD; TANNER; JACOBSON, 2014, p. 440. 748

CRAIGIE, 1983, p. 93, 95-6.

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111

Nas fontes mesopotâmicas, todas as pessoas, sem distinção, também iam para o

mundo inferior, e ali viviam em trevas e tristeza, comiam barro e sofriam de diversas

formas.749

Na descrição vívida de Martin-Achard:

De modo geral, o Sheol é uma região da qual não se sai, “uma país sem retorno”, a

semelhança do Aralu babilônio. “Porque, decorridos poucos anos, eu seguirei o

caminho por onde não tornarei”, afirma Jó (Jó 16.22), que sabia também que o reino

das sombras era semelhante a uma cidade ou a uma casa que tem suas portas, suas

fechaduras [...] neste lugar, no qual reina uma obscuridade fúnebre. Por isso, as

trevas são frequentemente sinônimas de Sheol: “Saber-se-ão as tuas maravilhas nas

trevas, e a tua justiça?” (isto é, no mundo dos mortos), pergunta o salmista.

[...] Uma das particularidades do Sheol é ser um lugar onde reina um profundo

silêncio. [...] (Sl 88.10-12). O morto não pode invocar e louvar a Yahweh: “Porque

não pode louvar-te o Sheol, / Nem a morte glorificar-te; / Nem esperarão em tua

verdade os que descem à cova”, clama Isaías [sic: Ezequias] (Isaías 38.18).750

Entretanto, a morte não era vista como a não existência, mas sim, como uma forma

bastante débil de vida. O hebreus falavam de “sombras” que viviam em lugar dos mortos,

ainda que sua existência não fosse verdadeira como a da vida sobre a terra (p. 127).751

Sabe-se, ao menos, que a ideia de sepultura também está contemplada na definição

mais ampla do שאול (Sl 88.12; Jr 38.6ss.; Lm 3.55).752

Jacó, triste pela suposta morte de José,

disse que desceria à “sepultura” (שאול) chorando (Jó 37.35). O texto de Jó 17.13-16 ilustra

bem a ideia do Sheol como a sepultura, o lugar em que o corpo de alguém é enterrado e

simboliza o fim de sua vida.

Assim como hoje, as pessoas eram sepultadas abaixo da terra, geralmente em

buracos feitos em rochas. As tumbas reais de Ur, na Mesopotâmia, chegavam a ter mais de

nove metros de altura, o que deve ter originado o conceito de Sheol como oposto a céu (Sl

139.8; Jó 11.8; Am 9.2) e à visão dos homens da Antiguidade do mundo dos mortos como o

submundo.753

Em Salmos, o Sheol torna-se o lugar de onde o justo precisa ser liberto, e o

ímpio, emudecido (Sl 16.10; 30.4; 31.17; 55.15). Diferente dos cananeus, que acreditavam no

deus Môt, os israelitas viam o Sheol como uma triste realidade, mas que não fugia do controle

ou autoridade de YHWH (Sl 139.8).

Os ímpios, que em sua prosperidade ameaçavam de morte os justos, agora se veem

diante da ameaça da Morte como seu supremo pastor: “Morte os pastoreará” (ירעם A .(מות

Morte é personificada neste versículo como um pastor que mantém o rebanho em seu redil, o

749

HARRIS, R. Laird. שאול. In: HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1999, p. 892. 750

MARTIN-ACHARD, 2015, p. 57-8. 751

CATE, 1989. p. 127. 752

MARTIN-ACHARD, 2015, p. 55. 753

HARRIS, R. Laird. שאול. In: HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1999, p. 892-3.

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Sheol, em contraste com YHWH, que é o pastor dos fiéis no livro de Salmos e cuja pastagem

está na terra dos vivos (Sl 23.1; 28.9; 100.3).754

“A imagem da morte como pastor é,

evidentemente, uma perversão sarcástica do belo pensamento de que o rei e Deus estão

cuidando de seu povo (v. 15[14]; cf. Sl 23; Ez 34)”.755

Em Jeremias 9.20[21] a Morte também é personificada, mas como intrusa que entra

pelas janelas das casas, carregando as pessoas consigo e eliminando a população de uma

cidade.756

“A Morte da fome e da peste obtém fácil acesso às casas, mesmo as mais seguras,

saqueia o capital de duas gerações e deixa em seu rastro uma multidão de cadáveres não

sepultados”.757

No Salmo 49.15, “Morte” é o pastor, e o “Sheol”, o curral em que os ricos pastarão.

O supremo pastor dos “que confiam em si” é a Morte. “Morrer é como deixar o domínio em

que Deus o pastoreia [...] para um domínio em que a Morte o pastoreia”.758

Tanto na estrutura

sintática do uso da raiz verbal רעה nesta oração do versículo 15 quanto nos paralelos da Bíblia

Hebraica, a melhor interpretação de מותירעם é a de que a Morte terá o papel de pastor dos

ricos ímpios (“Morte os pastoreará”), não de uma besta que os devora (“Morte apascenta-se

deles”).759

Os dois últimos versetos de Salmo 49.15 dizem que a “forma” (ציר)760

dos ricos —

isto é, seu corpo físico761

— será para o Sheol consumir, longe de suas belas casas (וצירםלבלות

,O fim dessas pessoas será distante de suas majestosas mansões (v. 15) .(v. 15) (שאולמזבללו762

pois descerão ao Sheol, onde seu belo corpo será consumido. “Seu destino não são as

754

RAABE, 1990, p. 74; KEIL; DELITZSCH, 1996, v. 5, p. 352. 755

GERSTENBERGER, 1988, Psalm 49. 756

KIDNER, 1980, p. 205. 757

ALLEN, 2008, p. 120. 758

GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição kindle). 759

COLLINS, C. John. “Death will be their shepherd” or “death will feed on them”? a et i ‘e in Psalm

49.15 (EVV v. 14)”. TBT, vol. 46, n. 3, 1995, p. 320-6. Este autor apresenta as duas possibilidades de

interpretação (“a morte os apascentará” ou “a morte os devorará”). Então, descreve a razão dada por exegetas

para a segunda tradução, especialmente a ideia de que a morte é descrita nas imagens do AOP e do AT como um

monstro que devora as pessoas. Depois disso, mostra três opções de construção sintática com o verbo רעה que

implicam três possibilidades semânticas, que incluem tanto a ideia de “pastorear/apascentar” quanto de

“alimentar-se”. Refutando a ideia de que a morte se alimenta dos ricos, Collins mostra como a construção

sintática juntamente com a imagem precedente dos ricos como um rebanho de ovelhas requer que a leitura seja a

de que os ricos são “apascentados” pela morte. Caso o salmista desejasse retratar a morte se alimentando dos

ricos teria de usar outro verbo hebraico, não רעה. “No Salmo 49 [ET, v. 14] mawet é uma personificação

demitizada da morte. E, em contraste com os piedosos, que têm o Senhor como seu pastor (Sl 23.1), o rico

despreocupado tem apenas a triste perspectiva de ser pastoreado pela morte” (p. 324). 760

KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, 1024; BROWN; DRIVER;

BRIGGS, 1977, p. 849 761

KEIL; DELITZSCH, 1996, v. 5, p. 352. Contra BRIGGS, 1906, 410-11. 762

WOLF, Herbert. זבל. In: HARRIS, R. Laird. שאול. In: HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1999, p. 235.

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‘residências grandiosas’ para as quais todo o foco de suas vidas foi direcionado, mas seus

corpos (‘formas’, v. 15) estão destinados a serem consumidos no Sheol”.763

Deus vindicará os justos oprimidos pelos ímpios. Por isso, “de manhã, os justos

dominarão sobre764

eles” (v. 14). A “manhã” (בקר) é, em geral, uma figura para se referir a um

momento de salvação trazido por Deus após a “noite” ou as “trevas” da perseguição e

dificuldades (Sl 30.5ss.). A manhã descreve também a salvação que Deus trará a Jerusalém ou

a Israel diante de todas as nações (Sl 46.5-7; 59.6-17; 90.13-16). Portanto, “manhã” no v. 15

indica “mais uma inversão nesta vida para pessoas que experimentam tribulação e

instabilidade (v. 5). A manhã é o momento em que Deus age nesta vida para libertar [...] e os

justos então experimentarão a libertação de Deus.”765

O propósito do versículo 16 é claramente estabelecer um contraste entre o indivíduo

cuja “tola confiança [é] para si” (v. 14), conduzido para o redil do Sheol (v. 15), e o indivíduo

cuja confiança está em YHWH e experimenta sua redenção (v. 16).

O autor começa com uma partícula de ênfase אך, com função adversativa (“mas

[certamente]”)766

nesta passagem e que remete por assonância ao v. 8. Embora este versículo

comece com um substantivo, אח ( , “irmão”), ele tem o mesmo som que a particula enfática

com uso adversativo אך (a ) no v. 16a. Ambos fazem duas afirmações básicas sobre a

redenção usando a mesma raiz verbal פדה: “Um ser humano não redimirá de modo algum

יפדה] .”minha vida do poder do Sheol [יפדה] irmão”, “mas Deus redimirá [seu] [לא־פדה767

Como observou Gestenberger: “A palavras de conforto do v. 16[15] formam um paralelo com

o v. 8[7]: pessoas não podem resgatar a si mesmas da morte, mas Deus de fato liberta o

fiel.”768

Este versículo do Salmo 49 (v. 16) talvez seja o que mais atrai a discussão

hermenêutica sobre a possibilidade de vida além-túmulo. Muitos estudiosos interpretam a

linha “Deus redimirá minha vida do poder do Sheol” à luz do verseto seguinte: “Certamente

763

CRAIGIE, 1983, p. 360 764

Ver esse uso de da preposição ב com o verbo רדה em BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 922 (cf. os

seguintes texto bíblicos: Gn 1.26,28; Ne 9.28). 765

GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição kindle). 766

Ver KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 45; KEIL; DELITZSCH,

1996, v. 5, p. 353. 767

Leo Perdue chama a atenção para a ligação entre esses dois versículos e identifica neles um segundo “enigma”

referido pelo autor na introdução (v. 5), que não é formulado com pergunta e resposta, mas com duas afirmações

paradoxais: o salmista reconhece que a morte é um estado do qual nem rico nem pobre nem tolo nem sábio

podem ser redimidos (v. 7-10), mas declara que ele será (v. 16). 768

GERSTENBERGER, 1988, Psalm 49 (edição kindle).

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me tomará!”. A observação feita com frequência é que “o verbo recorda as tradições acerca

de Enoque e Elias (Gn 5.24; 2Rs 2.3,5)” e que “seu significado básico aqui é

“arrebatar’”.769

Hans Walter Wolff confirma a mesma interpretação:

A superação da aflição da morte não se manifesta na forma de alguma esperança

elaborada do além, mas na certeza tranquila de que a comunhão com Javé, por causa

de sua fidelidade, não pode ser suprimida pela morte [...] Essa concepção é

esclarecida ainda pela ideia de arrebatamento (לקח) no Salmo 49.15.770

Com exceção de Dahood, e alguns seguidores de sua proposta, que chegam a

defender uma escatologia individual explícita em alguns salmos,771

a maioria dos

pesquisadores não postula uma visão clara de um paraíso ou céu, nem mesmo da ressurreição,

mas apenas da expectativa de que a comunhão com YHWH era tão profunda que nem mesmo

o Sheol poderia rompê-la:772

Com base no texto não se pode responder com certeza se está em questão a ideia do

arrebatamento antes da morte, como em Gn 5.24 e 2Rs 2.9ss, ou da libertação do

Xeol (mundo dos mortos), por exemplo, através da ressurreição, como em Is 26.19

ou Dn 12.2. Em todo caso, para o poeta é a confiança em Deus, único com poder

sobre a morte, e a esperança da eternidade baseada nisso, que ocupa o centro, não só

769

MURPHY, 1977, p. 35; KRAUS, 1993, p. 737; cf. DAHOOD, 1965, p. 301; RAABE, 1990, p. 77; WEISER,

1994, p. 288; ALEXANDER, 1987, p. 13-6; TESH, 1999, p. 355. Segundo Von Rad: “o verbo em questão

significa (a propósito da morte) ‘arrebatar’. O melhor é entender a frase como expressão da esperança em uma

comunhão de vida com Deus que dura além da morte” (VON RAD, 1973, p. 263; cf. VON RAD, 2006. p. 393-

4). “Em relação aos ímpios, é claro que o Sheol significa a morada das sombras, para além da sepultura; em

relação aos justos, deve o Sheol, consequentemente, ter o mesmo sentido, e significar que em vez de ir para o

Sheol, Deus o receberá. [...] O que o salmista está dizendo é que as desigualdades desta vida se endireitarão na

outra.” (ROWLEY, H. H. A fé em Israel. São Paulo: Teológica, 2003. p. 252-3). Essa ideia de o fiel ser elevado

à presença divina já havia sido defendida no ambiente acadêmico alemão por Paul Volz, que interpretava o verbo

como um termo técnico para o arrebatamento do Sheol logo após a morte. Além de Gênesis 5 e 2Reis 2, ele לקח

cita o Épico de Gilgamesh para defender sua tese. Volz observa aqui o início da crença na imortalidade e uma

inversão do ideal egípcio: não serão os aristocratas elevados até os deuses, enquanto o povo comum transforma-

se em nada com a morte; ao contrário, os nobres ricos ficarão presos ao Sheol, ao passo que os piedosos serão

arrebatados à presença divina (ver VOLZ, Paul. Psalm 49. ZAW, v. 55, n. 3-4, 1937, p. 242-3, 249-50) 770

WOLFF, 2008, p. 175. 771

Por exemplo, em relação ao Salmo 49, ele afirma: “Um salmo de sabedoria que reflete sobre a natureza

transitória da riqueza e do prazer. Não se deve invejar os ricos, pois a sepultura os aguarda, onde seu destino será

o mesmo que o dos animais que perecem. Entretanto, o Paraíso com Yahweh aguarda o homem justo que coloca

sua confiança em Deus, não nas riquezas ou prazeres terrenos.” (DAHOOD, 1965, p. 296). 772

Essa também é a compreensão de WITTE, 2000, p. 554: “Er beschrankt sich darauf, wie der Verfasser von Ps

lxxiii.24-5 mittels des Begriffs לקח auf eine den Tod besiegende Aufnahme in die unzerbruchliche Gemeinschaft

mit Gott zu hoffen (V 16b). Die Henoch und Elia zuteilgewordene Entruckung aus dem irdischen Leben

erscheint hier einerseits demokratisiert, andererseits auf die Zeit nach dem Tod verschoben. Daher trifft die

Wiedergabe von לקח in Ps xlix.16 mit ‘entrucken’ nicht den genauen Sinn, zumal wenn unter ‘Entrukkung’ eine

Herausnahme des Menschen aus diesem Leben unter Umgehung der Todesgrenze zu verstehen ist. Auf die

Ausmalung seiner postmortalen Existenz verzichtet der Beter von Ps xlix. Er beschrankt sich darauf, allein Gott

als die fur seine Erlösung verantwortliche Große zu benennen. Damit signalisiert er, daß fur ihn eine den Tod

überdauernde Gottesgemeinschaft nur im Vertrauen auf Gott selbst möglich ist. Dieses Vertrauen sieht der

Verfasser des Psalms in enger Verbindung mit der Fähigkeit, unterscheiden zu können (v. 21). Der Dichter von

Ps xlix bezeugt so den engen Zusammenhang von Glaube und Verstehen. Glaube erscheint hier - wie in Ps lxxiii

17 und Job xlii 3 - als ein Differenzierungsvermogen im Blick auf Zeit und Ewigkeit, Mensch und Gott, Leben

und Tod.”

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do seu pensamento, mas também de sua vida. A certeza da fé de que fala não é tanto

o conhecimento do que acontecerá e sim, antes, a força que o transporta e o faz

andar com segurança também onde não vê concretamente o caminho. A certeza de

que pela morte é Outro que decide sobre a vida e não o homem com seu poder....773

Entretanto, parece que o quadro da Bíblia Hebraica, em especial no livro de Salmos,

não manifesta uma visão positiva a respeito da post mortem,774

por isso, os fiéis pediam a

Deus que os livrasse da morte prematura e violenta. O exemplo do fiel sofredor suplicando a

YHWH, em 6.4,5, parece não confirmar a expectativa mencionada pelos pesquisadores

citados acima: “Volta-te, SENHOR, e livra a minha vida; salva-me por tua graça. Pois, na

morte [במות], não há recordação de ti; no Sheol [בשאול], quem te dará louvor?”. A Gattung do

Salmo 30 é um Louvor Declarativo do Indivíduo775 e na retrospectiva de sua invocação pela

ajuda de Deus, o salmista expressa a mesma falta de esperança depois da morte no versículo

10[9] (ARA):

Que proveito obterás no meu sangue, quando baixo à cova?

Louvar-te-á, porventura, o pó?

Declarará ele a tua verdade?

Quando o salmista apela para a celebração de YHWH, há aqui um apelo ao interesse

dos seres humanos, que deixam de celebrar o livramento do salmista por Deus. O texto parece

sugerir que a morte implica incapacidade de se relacionar com Deus, de reconhecer quem ele

é e o que faz.776

A vida era central na promessa da aliança de Deus; a morte era o oposto dessa

promessa (Dt 30.15-20) [...] O foco da aliança, em sua forma antiga, era esta vida

como o palco em que a bênção e a prosperidade de Deus poderiam ser

experimentadas; a morte, antes da plenitude dos anos, não era simplesmente a morte

do corpo, mas também o rompimento do relacionamento pactual com Deus.777

Uma pessoa que estivesse passando por sofrimentos, como perseguição, doenças,

entre outros problemas, já estaria à beira do Sheol (Sl 88.3) ou até mesmo dentro dele (Jn 2.3;

Sl 18.4,5; 30.3; Sl 116.3-6).778

Diante disso, o Salmo 49 parece indicar uma perspectiva distinta dos demais

salmistas? Em primeiro lugar, a raiz verbal פדה (“redmir”) foi usada em Salmos como

773

WEISER, 1994, p. 288. Essa 774

Chisholm afirma: “Os salmistas tinham uma visão limitada e pouco negativa da vida após a morte. Para eles, a

morte era uma intrusa indesejável, porque separava das ações reveladoras de Deus e da comunidade de

adoradores” (CHISHOLM, Robert. Uma teologia dos Salmos. In: ZUCK, Roy B. (org.). Teologia do Antigo

Testamento. Rio de Janeiro: CPAD, 2009. p. 260). 775WESTERMANN, 1980, p. 71-80; PINTO, 2014, p. 469-71. 776

GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição kindle). 777

CRAIGIE, 1983, p. 255. 778

ALTER, Robert . Salmos. In: ALTER, Robert; KERMODE, Frank. Guia Literário da Bíblia. São Paulo:

Unesp, 1997. p. 281.

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referência à salvação de um perigo temporário que ameaçava os salmistas ou a nação, não

implicando uma expectativa de pós-morte.779

No salmo 25.22, o fiel pede a Deus que redima

sua nação da tribulação específica pela qual ela passava, tirando Israel do seu estado de (פדה)

sofrimento e humilhação (cf. 25.2,3).

O salmo 34.23[22] declara que “YHWH redime a vida dos seus servos [פודהיהוהנפש

ים] ”Sl 34.23[22]; observe-se o paralelo com Sl 49.16: “Deus redimirá minha vida) ”[עבדיו אלה

O que esse resgate implicava? Livrar o fiel de “todas” as suas aflições terrenas (Sl .([יפדהנפשי

34.20[19]), preservar a integridade física do justo (“preserva todos os seus ossos”, v. 21[20]) e

trazer “desgraça” (רעה) sobre o ímpio que lhe causaria a morte (v. 22[21]). Não há expectativa

de uma redenção posterior à morte, ao contrário, aguardava-se o livramento da morte

iminente.

Quanto ao uso de לקח, os que defendem uma esperança de comunhão com YHWH na

vida além-túmulo no versículo 16 ignoram o fato que o “tomar” (לקח) é usado diversas vezes

em outros trechos além das histórias de Enoque e Elias, incluindo o livro de Salmos, para

indicar a libertação da tribulação deste mundo (cf. Sl 18.16[17]; Ez 36.24; 37.21), um

livramento do Sheol ou da maneira que a morte consegue colocar suas mãos sobre o fiel ainda

nesta vida (cf. 16.10; 18.5[6]; 30.3[4]).780

Em especial, o Salmo 18.17,18[16,17] deixa claro

que o ato de “tomar” (לקח) implica libertação da ameaça temporária e iminente: “Do alto me

estendeu ele a mão e me tomou [יקחני] [...] livrou-me de forte inimigo [...] pois eram mais

fortes do que eu”.781

Por fim, David Pleins oferece algumas considerações hermenêuticas que tornam a

interpretação de נייקח como esperança de vida com YHWH além-túmulo bastante improvável:

Acaso o salmista pretende indicar que o ato de Deus o “tomar” aqui se refere a um

livramento da morte como o destino dos verdadeiros sábios? Várias considerações

parecem se opor a essa visão. Como observação geral, podemos sugerir que o

salmista, ao deparar com o sepulcro, está afirmando a sabedoria da redenção divina

acima da tolice dos ricos, da mesma maneira que Qoheleth afirma os prazeres da

vida (com moderação) ao confrontar-se com as negações da morte (cf. e.g. Ec 9.3-

10). […] Além disso, os textos paralelos mais decisivos para a interpretação do

Salmo 49 vêm do próprio Saltério, em especial do Salmo 18.4-20, em que Davi/o

salmista, rodeado pela morte e pelo Sheol, clama a Deus, que age em seu favor, e é

‘tomado’ (yiqqâh nî, 18.17) por Deus, usando exatamente a mesma expressão verbal

779

DECLAISSÉ-WALFORD; TANNER; JACOBSON, 2014, p. 445. 780

GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição kindle). Ver a mesma percepção em DUNN, 2009, p. 212-3: “A

palavra [לקח] é melhor interpretada em referência à redenção da morte nesta vida, remetendo às promessas da

aliança de paz, vida longa e prosperidade”. Observe-se que, embora defenda uma perspectiva de ressurreição no

Salmo 49, David C. Mitchell reconhece, no Salmo 18.6[5], “uma linguagem figurada para o resgate da ameaça

de morte” (MITCHELL, 2006, p. 371). 781

GOULDER, 1982, p. 191-2.

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que o Salmo 49. Esse ‘tomar’ de Deus é explicado em Salmo 18.17-20 por meio de

várias imagens e expressões relacionadas ao resgate divino diante da destruição

iminente.782

O salmista inicia o versículo 17 retomando a questão do versículo 6: “Por que

temerei...” e apresenta a seguinte resposta: “Não temas...” (אל־תירא).783

O problema que

preocupava o justo sofredor no início do salmo diante do poder econômico do ímpio já não o

preocupa mais, pois sabe que a morte cancelará essa distinção.784

O aspecto pessoal do v. 6

parece ter se resolvido com a reflexão dos versículos 8-16, e o autor, então, volta-se a seu

público para apresentar uma exortação com as razões para seguir seu conselho.785

“O que

antes dissera em relação a si mesmo, apresenta agora como orientação para os outros”.786

O versículo 17 reforça a relação entre o enriquecimento dos poderosos e o

sofrimento dos justos, desenvolvida anteriormente nos versículos 6-7.787

A riqueza de homens

que não confiam em YHWH (v. 7) e que se opõem aos justos (v. 6b) aumenta seu poder e lhes

dá condições de oprimir outros.788

“Temer”, da forma como o autor utiliza o termo, significa algo muito mais profundo

que a simples reação ao perigo. Ele fala de um temor que é uma intensa ansiedade

apreensiva a respeito do sentido e do destino da vida, uma preocupação diante da fé

do rico em sua riqueza [...] Esse é um temor que desorienta uma pessoa do único

temor que está associado à fé, o temor do SENHOR (Pv 1.7).789

Há um pressuposto básico que perpassa a literatura sapiencial: YHWH é o único

digno do temor do fiel. Para os antigos israelitas, o êxito na obtenção de sabedoria não

consistia, simplesmente, em submissão às instruções sábias, mas em “confiança, reverência e

submissão ao Senhor (Pv 1.7; 3.5,6; 9.10), que criou todas as coisas e governa tanto o mundo

da natureza quanto a história (3.19,20; 16.4; 21.1)”.790

“Em Israel, a capacidade de

conhecimento do homem nunca se afastou do fundamento de sua existência total; isto é,

nunca rompeu seu vínculo com Deus para atuar de forma autônoma”.791

782

PLEINS, 1996, p. 23. 783

ESTES, 2004, p. 59-60. 784

BERRY, 1995, cap. 5. 785

DECLAISSÉ-WALFORD; TANNER; JACOBSON, 2014, p. 445; RAABE, 1990, p. 88. Embora não chegue

à mesma conclusão, Terrien examina a possibilidade de que a questão pessoal resolvida torna-se oportunidade

para a exortação pública (TERRIEN, 2003, p. 392). 786

WEISER, 1994, p. 288. 787

“É notável que o poeta sapiencial já veja um perigo ameaçador no ato de enriquecer-se: um perigo que paira

sobre o pobre e constitui um prova dilaceradora para sua fé no Deus justo (cf. Sl 73.2ss.)” (KRAUS,1993, p.

739) 788

NET Bible, 2005, Psalm 49.16, study note 39. 789

MAYS, 2011, p. 192. 790

ROSS, Allen P. Proverbs. In: GABELEIN, Frank E. T e Exposito ’s Bib e Co enta . Grand Rapids:

Zondervan, 1991, v. 5. p. 885. 791

VON RAD, 1973, p. 96.

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Como o temor a meros mortais é oposto ao temor e à confiança em YHWH: “O

medo de seres humanos produz cilada, mas o que confia em YHWH estará protegido”792

(Pv

29.25; cf. 1Sm 15.24), o sábio exorta seus leitores a não temerem o “homem” (איש) (Sl 49.17).

A situação que poderia gerar “temor” naqueles a quem o salmista faz sua exortação é

descrita como “se793

um homem alcançar riquezas” (איש aqui tem o איש O uso de .(כי־יעשר

sentido genérico de “ser humano”, “mortal” (cf. Sl 31.21[22] Jó 38.26; Jr 10.24),

possivelmente em contraste com Deus (cf. esp. v. 15-16).794

O sentido básico da raiz verbal

.”no grau hifil é “alcançar riqueza”, “tornar-se rico”, “enriquecer עשר795

Em Jeremias 5.26-27,

o verbo עשר é usado em referência a pessoas “perversas” (רשעים) que “se enriqueceram”

à custa de outros, fazendo dos homens vítimas de suas maldades e os tratando como (ויעשירו)

um caçador que persegue pássaros. Em Oseias 12.7,8, YHWH condena a nação de Israel por

se enriquecer mediante ações comerciais desonestas (“balanças enganosas” [מאזנימרמה]) e ao

“oprimir” (עשק) os fracos e pobres.

796

O aumento da “glória” (כבוד) de “sua casa” (v. 17b) é a manifestação concreta de sua

prosperidade. Embora a tradução básica de כבוד seja “glória”,797

o substantivo é usado em

referência às riquezas de Jacó depois de muitos anos de trabalho para Labão (הזה כל־הכבד

[“toda esta glória/riqueza”], Gn 31.1) ou à riqueza [כבד] de Nínive em paralelo com “todo

objeto desejável” [ יחמדהמכלכל ] (Na 2.9); portanto “glória” em Salmo 49.17b é sinônimo de

riqueza.798

O túmulo como בית (“casa”) futura do rico é contraposto à בית (“casa”) atual dele,

que é marcada por כבוד (lit., “glória”, com a ideia de “riqueza”) (Sl 49.17). Apesar de todo

investimento na “glória” de sua casa terrena, o ímpio terá uma surpresa ao descobrir que sua

“casa” definitiva, a sepultura, não é nada gloriosa.

Contra tudo o que era visível — o crescimento de poder dos ímpios e a intensificação

da perseguição que sofria — o salmista exorta sua audiência a não temer os perversos ricos e

poderosos (v. 17).

792

חביהוהישגב שובוט ןמוק ;no pual por “estar protegido”, ver KOEHLER שגב Para a tradução do verbo .חרדתאדםית

BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 1306. 793

Para o uso de כי com sentido de “se” ao introduzir uma oração condicional, ver WALTKE; O’CONNOR,

2006, p. 637, 38.2.d; PINTO, 1998, p. 144, 19.65. 794

ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 49. 795

KIRST et al., 2004, p. 189; GESENIUS, 2003, p. 660. 796

ALLEN, Ronald B. עשק. In: HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1999, p. 705-6; KOEHLER;

BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 897. 797

GESENIUS, 2003, p. 382; GOULDER, 1982, p. 194. 798

DAHOOD, 1965, p. 302; BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 458; RAABE, 1990, p. 78; BRIGGS, 1906,

p. 411-12.

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119

Além da razão fundamental dos versículos 15 e 16, o salmista apresenta outro motivo

para não temer os ímpios no versículo 18: “Certamente não tomará tudo [consigo] em sua

morte, não descerá atrás dele sua glória”. Há um fim para a maldade dos ímpios, e toda a sua

riqueza não os acompanhará quando a morte chegar. A imagem deste verseto é a de um

“cortejo” ou grupo de seguidores (אחריו): todos os bens que o ímpio acumulou em vida não o

seguirão até a sepultura.799

Eles o abandonarão ali e o deixarão sozinho no Sheol. Já não resta

mais nada das riquezas (“glória”, כבוד) de sua casa que aumentaram (cf. uso repetido de כבוד

em v. 17 e 18).

O versículo 18 começa com o uso enfático ou asseverativo da partícula כי:800

“Certamente não tomará tudo [consigo] em sua morte...” ( הכלכי יקח במותו לא ), e o objetivo

aqui é retomar a mesma afirmação de certeza que havia sido feita anteriormente no versículo

11: “Certamente [...] morrerão [...] serão destruídos”. Assim como é certo que todos os seres

humanos morrem — sejam sábios, sejam insensatos —, também é certo que não tomarão

consigo “todos” os bens que acumularam em vida quando descerem à sepultura.

No antigo Egito, o tema da morte como a partida, em que “a pessoa tem de deixar

para trás tudo o que possui” sem uma perspectiva pós-túmulo,801

é bastante enfatizado nas

canções dos harpistas hereges, que não representavam a visão religiosa tradicional:802

“Veja!

Ninguém tem a permissão de levar seus bens consigo. Veja! Não há ninguém que tenha ido e

retornado!”803

Goulder observou que o tema do tirano que desce ao Sheol de mãos vazias é bastante

enfatizado em Isaías 14: “Tu também, como nós, estás fraco? E és semelhante a nós?” (v. 10,

ARA).804

Nicholas Tromp chamou a atenção para outro texto sapiencial da Bíblia Hebraica

que também transmite a ideia de que na morte o homem que se enriqueceu por meio da

opressão nada levará consigo, sobrarão apenas “ruína” e o “vazio” (שוא) (Jó 15.28-31).805

A morte põe fim à vida, e a honra e a riqueza não podem ser levadas juntas no final

da jornada. [...] Pode muito bem haver fundamento para não temer a morte, mas a

riqueza e a posição na sociedade são questões irrelevantes quando a morte chega.806

799

GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição kindle). 800

Sobre esse uso enfático ou asseverativo de כי, ver GESENIUS; KAUTZSCH; COWLEY, 1910, p. 498,

§159.ee; KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 470; PINTO, 1998, p. 145,

19.67; ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 312. 801

ZANDEE, J. Death as an enemy: according to ancient Egyptian conceptions. Leiden: Brill, 1960. p. 55-6. 802

FISCHER, Stephan. Qohelet and ‘heretic’ harpers’ songs. JSOT, v. 26, n. 4, 2002, p. 106-8. 803

LICHTHEIM, Miriam. The songs of harpers. NEAS, v. 4, n. 3, 1945, p. 193. 804

GOULDER, 1982, p. 194. 805

TROMP, 1969, p. 187-8. 806

CRAIGIE, 1983, p. 360.

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120

A repetição de termos com finalidade retórica e irônica chama a atenção aqui:

enquanto ’E “certamente” (כי) “tomará” (לקח) o fiel para si, redimindo-o do Sheol (v.

16), o homem que alcançou riquezas (v. 17) “certamente” (כי) “não tomará” (יקח [...] לא) suas

riquezas consigo quando descer (ירד) ao Sheol (v. 18).

Conforme a análise de crítica textual do capítulo anterior, deve-se manter a leitura do

TM no versículo 19, ainda que no segundo verseto a tradição textual massorética pareça um

pouco desajeitada (lectio difficilior praestat facilior — uma leitura mais difícil prevalece

sobre uma mais fácil).807

Como Aejmelaeus indica em seu artigo, o uso de כי no início da

“oração circunstancial” aqui tem, provavelmente, função concessiva: “embora”, “ainda

que”.808

O versículo 19a nos apresenta o homem de posses congratulando/abençoando a

própria נפש, que funciona como pronome pessoal ou pronome reflexivo no primeiro

verseto:809

“Embora em sua vida ele se congratulasse”. É interessante notar que em outro

texto da Bíblia Hebraica, o ato de abençoar/congratular a si mesmo é a característica de um

coração arrogante.810

Deuteronômio menciona um indivíduo que, ao ouvir o anúncio das

maldições da aliança contra os infiéis a YHWH811

(cf. 28.15-68[15-69]), abençoa a si mesmo

em seu coração (לאמר ו בלבב Haverá paz para mim, ainda que eu persista na“ :(והתברך

obstinação perversa do meu coração” (שלוםיהיה־ליכיבשררותלבי) (v. 19).812

Chama bastante a atenção o uso da raiz verbal ידה na declaração que o rico insensato

diz a si mesmos no v. 19b: “‘Eles te louvam, pois as coisas vão bem contigo’” (ויודךכי־תיטיב

Este verbo é sempre usado no grau hifil em Salmos para o ato de “louvar” ou “dar graças .(לך

a”813

YHWH por suas maravilhas, por sua verdade, seu caráter etc. (Sl 6.5; 7.17; 30.4,12;

35.18; 42.5,11; 43.5; 44.8; 45.17; 52.9; 57.9; 67.3; Sl 79.13; 86.12; 88.10; 89.5; 99.3; 105.1;

106.47; 107.8; 109.30; 111.1; 118.1, 21; 119.62; 122.4; 136.1; 138.1; 139.14; 142.7; 145.10).

807

SIMIAN-YOFRE et al, 2015, p. 67. 808

Cf. AEJMELAEUS, v. 105, n. 2, p. 199, nota 19. Ele afirma que “uma interpretação concessiva pode ser vista

como uma alternativa para a condicional [...]. Particularmente, só não se pode dizer que כי tem a função de

introduzir concessões reais que envolvam um contraste marcante em relação à oração principal. A tradução

concessiva de uma oração introduzida por כי é, portanto, sempre um caso especial da condicional e um resultado

da exegese.” (p. 199). Cf. RAABE, 1990, p. 78. Sobre a função concessiva de כי, ver WILLIAMS, 1976, p. 73,

88, § 448, 530 809

WOLFF, 2008, p. 52-5. 810

GOULDER, 1982, p. 194. 811

והיהבשמעואת־דבריהאלההזאת812

KALLAND, 1991. p. 182. Ver o sentido negativo de לביבש ררות em Jr 3.17; 11.8; 13.10; 16.12; 23.17; Sl

81.12 [BHS 81.13] (cf. KALLAND, 1991, p. 184; C. F. KEIL, F. DELITZSCH, 1996, v. 3, p. 449). 813

KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 389; BROWN; DRIVER;

BRIGGS, 1977, p. 392; HOLLADAY; KÖHLER, 2000, p. 128.

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Fala-se até de “confessar” os pecados a Deus (32.5). Em todas as demais passagens de

Salmos, Deus é sempre o foco do louvor, jamais o homem. Entretanto, Salmo 49.19 é a única

passagem do Saltério em que pessoas “louvam” um “ser humano” mortal. O verseto do

versículo 19b “é uma paródia da frase recorrente: ‘Louvai a YHWH, pois ele é bom’ (Sl

106.1; 107.1; 118.1,29)”.814

A linguagem do “louvor” é o ápice de uma série de termos teológicos significativos

usados em referência a YHWH, mas que no Salmo 49 são invertidos pelos ricos ímpios:

O salmista utilizou cinco palavras que são geralmente atribuídas à adoração de

YHWH à medida que descreveu a exaltação sem fundamento daqueles que são ricos

[...] Ao dar às suas posses a confiança, o louvor, a honra e as ações de graças que os

salmos em outras passagens dirigem a Yahweh, os ímpios estão de fato elevando seu

ouro [gold] à posição de Deus [god] [...] Ao usar termos teologicamente

significativos como ברך ,כבוד ,הלל ,בטח e ידה, o salmista transmitiu claramente sua

mensagem de que os ímpios estão buscando de maneira vã usurpar as prerrogativas

que pertencem somente a Yahweh.815

Esse homem rico e poderoso passa a dar ouvidos ao que as pessoas dizem (“eles te

louvam”) (v. 19b), em vez de escutar com atenção o que a sabedoria tem a dizer: “Escutai

isto, todos os povos! Dai ouvidos, todos os habitantes do mundo! [...] Minha boca falará

sabedoria, e a meditação do meu coração [transmitirá] entendimento” (v. 2, 4). Como

declarou Craigie: “uma pessoa ‘abençoada em sua vida’ (v. 19a) talvez adote com facilidade

uma falsa confiança no que diz respeito à morte porque o louvor em tempos de prosperidade

alimenta essa confiança (v. 19b)”.816

Entretanto, o rico insensato está profundamente enganado, como a oração concessiva

do versículo 19a deixa entrever. A aparente tranquilidade e prosperidade (“... as coisas vão

bem contigo”, v. 19b) é repentinamente substituída pelo quadro de seu destino final: “Ele817

irá até a geração de seus pais...” (v. 20a).

A ideia de ser reunido aos pais ( אל־אבותיוו יאסף ) é um eufemismo para a morte e

ressalta a condição mortal de todas as gerações,818

embora não seja totalmente negativa na

Bíblia Hebraica. Como Nicholas Tromp observou, essa expressão é autenticamente antiga e se

814

RAABE, 1990, p. 78. 815

ESTES, 2004, p. 66. 816

CRAIGIE, 1983, p. 360. 817

O sujeito aqui é entendido como o substantivo feminino נפש do versículo 19 (ver NET Bible, 2005, Psalm

49.19, translator note 42; RAABE, 1990, p. 78). Goulder também propõe נפש como o sujeito da construção do

TM (“ela [a alma] irá”), o que é plausível à luz de outro trecho do Saltério em que alma corre o risco de ser

lançada ao Sheol: לא־תעזבנפשילשאול (“não abandonarás minha נפש no Sheol”, Sl 16.10a) (GOULDER, 1982, p.

194). Observe-se que Goldingay também pensa ser absolutamente possível a leitura de נפש como sujeito de תבוא

(GOLDINGAY, 2006, psalm 49, nota 17 [edição kindle]). 818

ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 677.

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referia à união dos falecidos com seus antepassados no Sheol, que precedia o enterro

propriamente dito:819

“Expirou Abraão; morreu em ditosa velhice [...] e foi reunido ao seu

povo. Então, sepultaram-no Isaque e Ismael, seus filhos, na caverna de Macpela...” (Gn

25.8,9). Ela pressupunha, ainda que antecedesse, o enterro digno ao lado dos familiares (Gn

15.15; 49.29; Jz 2.8-10).820

O problema ressaltado no versículo 20a é que a morte chega cedo demais para os que

confiam em suas riquezas ou vivem desavisados e despreocupados com ela. “É um destino

terrível fazer o bem para si mesmo e, depois, descobrir-se de repente na companhia dos

ancestrais sem ter tido a chance de desfrutar de suas realizações”.821

No segundo verseto do versículo 20, o salmista declara uma realidade tenebrosa:

“não verão a luz para sempre” (ור יראו־א לא Janet K. Smith registra dezenove .(עד־נצח

referências metafóricas à “luz” no livro de Salmos, entre elas: vida (Sl 56.13), presença divina

(Sl 89.15), a Torá (119.105, 130), orientação/verdade divina etc.822

A figura de “ver a luz”

indica a salvação que Israel receberá de Deus após experimentar um período de tribulação (Is

9.2) ou que o indivíduo experimentará da parte de YHWH diante da perseguição de seus

inimigos (Sl 27.1).823

“Ver a luz” é sinônimo de vida e vigor, frutos da benevolência de Deus

(Sl 36.8-10 [7-9]). Crianças que nunca “viram a luz” são natimortos, que nascem sem vida (Jó

3.16). “Ver a luz” é ter a vida salva da morte prematura (Jó 33.28). Diante da temática da

morte que percorre todo o Salmo 49, desde a impossibilidade de redenção (v. 8-11), passando

pela descrição dos insensatos e brutos ricos no Sheol (v. 15), até a afirmação de que eles

descerão de mãos vazias à sepultura (v. 18), é provável que “não verão a luz” seja uma

referência à ausência de vida neste mundo.824

Na sepultura, já não resta mais esperança de salvação ou de vitalidade para aqueles

que apostaram tanto em seus bens. Quando o sepulcro for fechado, o cadáver não mais verá a

819

TROMP, 1969, p 168-9. 820

MARTIN-ACHARD, 2015, p. 47. 821

GOLDINGAY, 2006, psalm 49 (edição kindle). 822

SMITH, 2011, p. 132. 823

KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 25. 824

CRAIGIE, 1983, p. 360; ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 677-8. BRIGGS, 1906, p. 412: “não

verão a luz, que brilha neste mundo, mas não brilha na caverna escura e sombria do Sheol, ou sua Cova,

decadência para a qual o rico deve ir”. WEISER, 1994, 289: “Encaminham-se para a noite eterna, não para a luz,

pois não há nenhuma esperança para além da morte”. Parece muito pouco provável que o foco de “ver a luz”

aqui seja a “imortalidade” ou “a luz da face de Deus nos campos da vida”, como propõe Dahood (DAHOOD,

1965, p. 303), seguido por Janet Smith (SMITH, 2011, p. 132). Ver KOEHLER; BAUMGARTNER;

RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 24: “ראהא׳ = estar vivo Sl 49.20”.

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123

luz, assim como seus antepassados, e isso será “para sempre” (עד־נצח), um caminho sem volta

(2Sm 12.23).825

Eles não o podem salvar, na verdade, o abandonam ali na sepultura.

2.6. Refrão: O homem em esplendor e sem entendimento perecerá como os animais

(v. 21)

Pois um ser humano em esplendor não entende

É semelhante aos animais que perecem.

Assim como na primeira ocorrência do refrão (v. 13), o versículo 21 está estruturado

em um paralelismo progressivo826

ou de especificação/intensificação,827

em que a ideia geral é

transformada em uma imagem concreta, mais penetrante e enfática: a afirmação de que o ser

humano “não entende” é reforçada e enfatizada com a imagem dos “animais que perecem”.

Conforme discutido na seção de crítica textual, não há necessidade de se fazer

emendas para tornar os dois refrões exatamente iguais.828

Há certo complemento no emprego

de raízes verbais distintas, em que o uso de duas descrições com som semelhante (ילין e יבין)829

torna ainda mais trágica a situação do “ser humano em esplendor” (ביקר v. 13,21). O ,אדם

grande problema dos ímpios ricos não é somente o fato de eles perecerem como os animais (v.

13), mas também sua condição sem entendimento, rebaixando-se ao nível dos seres

irracionais.

A assonância entre ילין (v. 13) e יבין (v. 21) desempenha um papel fundamental no

desenvolvimento temático do salmista. O primeiro refrão resume o conteúdo dos

versículos 6-11, em que a presunção arrogante daqueles que confiam em sua riqueza

é subvertida. Portanto, o homem em sua pompa, como os animais que perecem, não

permanecerá (בל־ילין). A segunda referência segue os versículos 14-20, em que Deus

redime e recebe o justo, isto é, aqueles que têm entendimento espiritual. Portanto, o

versículo 21 é uma conclusão apropriada: em contraste com o justo que desfruta o

favor de Deus, “o homem em sua pompa, mas sem entendimento” (לאיבין), é como

os animais que perecem”. A mudança de uma única consoante indica que a posse de

entendimento ensinado no salmo [...], embora facilmente ignorada pelos ricos tolos,

tem consequência eterna definitiva.830

825

GOLDINGAY, 2006, psalm 49 (edição kindle). 826

OSBORNE, 2009, p. 290; KÖSTENBERGER; PATTERSON, 2014, p. 242-3. 827

Categoria desenvolvida por ALTER, 2011, p. 21ss. 828

GOULDER, 1982, p. 190; cf. BRIGGS, 1906, p. 409. GERSTENBERGER, 1988, Psalm 49 (edição kindle):

“Em relação à homogeneidade dos refrões, é verdade que as antigas versões — e os intérpretes modernos tendem

a adaptar um verbo ao outro. As expressões relevantes no Salmo 49, ba - , “ele não permanecerá” (v. 13), e

’ b n, “ele não entenderá” (v. 21), realmente são muito semelhantes em som e na escrita. Portanto, é mais

difícil explicar as diferenças [observe, aqui, e lectio difficilior] no vocabulário, e podemos considerar essas

diferenças como sendo mais provavelmente originais. Ademais, poesia não é tão rigidamente fixa a ponto de

proibir pequenas variações nos refrões, especialmente se um cântico é apresentado por um cantor como no caso

do Salmo 49.” Ver também SAUR, 2015, p. 192-3. 829

DUNN, 2009, p. 210; RAABE, 1990, p. 79. 830

ESTES, 2004, p.70.

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124

Se o rico insensato tivesse dado ouvidos à sabedoria e ao “entendimento” (תבונות) (v.

4) proposto no início do salmo, certamente ele não seria alguém que “não entende” ( ולא

A tolice dos ricos e poderosos consiste de fato na falta de ‘entendimento’; por não“ 831.(יבין

entenderem plenamente as dimensões da morte, é inevitável que eles também não entendam

de modo pleno as dimensões da vida”.832

Como ressaltado por Donald K. Berry, a raiz verbal בין (“entender”) e seus termos

derivados se aplicam às ações de Deus na criação e preservação do mundo (Jó 26.12; Pv 3.19)

e auxiliam a pessoa sábia a distinguir entre a tolice e a sabedoria e entre a impiedade e a

retidão, tornando-se o objetivo final do estudante da sabedoria (Pv 2.3 com Jó 28.12).833

Novamente, “entender” implica muito mais que um exercício intelectual, significa

também, e principalmente, um caráter íntegro e obediência a YHWH:834

“Os homens maus

não entendem [יבינו] a justiça, mas os que buscam YHWH entendem [יבינו] tudo” (Pv 28.5).

Em Isaías 6.9-11, a indisposição da nação de Israel em “entender” (בין) a mensagem

anunciada pelo profeta os impediria de ser converter de seus maus caminhos e, assim,

receberiam o juízo divino de cidades “desoladas” e uma terra totalmente “assolada”.835

Em

Salmos 92.6-8, o “insensato” (כסיל)836

“não entende” (לאיבין)837

(v. 7) de modo proposital as

“obras de YHWH” (v. 6) e, assim, age como “os ímpios” (רשעים) e pratica a “maldade” (און);

por isso, “serão destruídos para sempre” ( מדםעדי־עדלהש ).

No Salmo 49, não é diferente: a constante recusa do rico “insensato” (כסיל) (v. 11)

em entender (יבין דרכם) resulta no triste destino (v. 21) (לא este é o destino”, v. 14) da“ ,זה

morte repentina (v. 15), “como os animais [que] perecem” (v. 21).

831SAUR, 2015, p. 193-4. 832

CRAIGIE, 1983, p. 360. Derek Kidner observa: “Conclama-se à coragem e à fé com visão clara; e o estribilho

final apresenta sua lição ao mudar de modo deliberado sua forma anterior [...]: ‘O homem, revestido de

honrarias, mas sem entendimento, é antes como os animais que perecem’” (KIDNER, 1980, p. 206). 833

BERRY, 1995, cap. 1 (edição kindle). 834

ROSS, 1991, p. 1103. 835

Ver análise desse texto em SMITH, Gary V. Isaiah 1–39. NAC. Nashville: Broadman & Holman, 2007. p.

194ss; CHILDS, Brevard. S. Isaiah. Louisville, London: Westminster John Knox, 2001. p. 56ss. 836

Cf. o mesmo termo em Sl 49.11. 837

Cf. o mesmo termo em Sl 49.21.

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125

3. SABEDORIA, RIQUEZA E OPRESSÃO: O CONTEXTO HISTÓRICO-SOCIAL

DO SALMO 49

3.1. O “consenso” da datação pós-exílica do Salmo 49: uma exposição crítica

Há algum tempo, estabeleceu-se um “consenso” de que os salmos sapienciais são por

natureza pós-exílicos838 e teriam sido produzidos por escribas judeus do período do segundo

templo, que se consideravam os herdeiros dos profetas e antigos salmistas.839 Essa ideia

desenvolvida por Mowinckel de uma “salmografia erudita”840 com perspectiva mais

racionalista e produzida por um grupo de sábios escribas de época posterior841 tem sido

pressuposta nas análises de eruditos posteriores,842 embora cada vez mais se rejeite a

concepção de que esses salmos sapienciais não tiveram “origem nos cantores do templo, mas

eram de uma natureza realmente particular, sem mais alguma relação direta com o culto”.843

A leitura do comentário de Gerstenberger revela a aceitação da tese de Mowinckel de

que os salmos de sabedoria são pós-exílicos:

Sua aparência transformada e sua mensagem diferente devem-se unicamente às

condições alteradas de adoração durante o Exílio e posterior a ele. A estrutura

política e social de Israel havia mudado. Temos de visualizar as comunidades de

judeus espalhadas por todo o mundo, não mais desfrutando a proteção de seu estado

nativo.844

No entanto, há um aspecto de outra profissão que desempenhou um papel

significativo na reconstrução da época pós-exílica [...] sem a dedicação dos escribas

à Lei de Moisés, Israel não teria se recuperado. O próprio Esdras era um escriba (Ed

7.1-10; Ne 8.4) e quem deveria ler a torá (Ne 8.4; v. 2 indica que ele era um

838

Sobre esse tema, ver a análise de DELL, 2004a, p. 452-3; GOULDER, 1982, p. 182-3. 839MOWINCKEL, 1969, p. 208; MOWINCKEL, 2004, p. 211-3. 840Expressão criada em MOWINCKEL, 1969, p. 208. 841MOWINCKEL, 2004, p. 93-4. 842KRAUS, 1993, p. 734-7, por exemplo, entende que o salmo é tardio (pós-exílico) e expressa uma esperança de

vida pós-morte dos pobres que sofrem sob a opressão dos ricos. O autor é um pobre que aguarda ser resgatado da

morte, em contraste com o destino do ímpio. Gerhard von Rad aceita, sem uma análise crítica profunda, tanto a

ideia de que os salmos são pós-exílicos quanto a visão de que eles estavam dissociados do culto: “Em qualquer

caso, o ‘Sitz im Leben’ desses poemas não pode estar no culto. [...] O círculo ao qual pertencem esses salmos às

vezes é mais amplo e, em outras, mais restrito, o que não deve surpreender, tendo em vista a ausência de

características exatas no que diz respeito ao gênero. Claramente, estamos aqui diante de uma espécie de poesia

escolar, que foi apresentada aos alunos nos tempos pós-exilicos. Também é possível que os sábios tenham

escrito esse tipo de oração visando à própria edificação” (VON RAD, 1973, p. 71-2 [itálico acrescentado]). Da

mesma forma, Leopold Sabourin aceita as conclusões de Mowinckel, sem questioná-las: “O problema, na

exegese de salmos, [...] não são os salmos cultuais, mas os não cultuais [...] originados nos círculos dos ‘sábios’,

os líderes eruditos das ‘escolas de sabedoria’. Na mais tardia salmografia, dissociada de situações claras de culto,

os escritores erutidos tentaram aderir às antigas regras de composição, mas sem muito sucesso...” (SABOURIN,

1974, p. 371). 843MOWINCKEL, 1969, p. 211. Ver as críticas a essa ideia em SNEED, 2011, p. 61-4; DELL, 2004a, p. 445-51. 844

GERSTENBERGER, 1988, Introduction to cultic poetry 4.f. (edição kindle).

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sacerdote também). Como Esdras, inúmeros escribas devem ter se ocupado em

copiar e proclamar a lei nas comunidades judaicas pós-exílicas. [...] O conteúdo e a

forma dos salmos de sabedoria do AT e a literatura sapiencial pós-canônica revelam

o ativo envolvimento desses homens eruditos com as questões litúrgicas.845

Uma das razões para datar os salmos sapienciais, em especial o capítulo 49, no

período pós-exílico é a estratificação social entre ricos e pobres refletida de modo muito claro,

por exemplo, no livro de Neemias (Ne 5.1-13). Aqui, há uma discussão sobre qual seria o

grupo responsável pela produção. Pleins relaciona a crítica à riqueza dos salmos sapienciais

(esp. Sl 49 e 73) com um período sacerdotal pós-exílico, em que houve uma fusão dos papeis

de sábios, profetas e sacerdote e em que os textos de sabedoria passaram a proclamar a mesma

justiça social dos profetas pré-exílicos.846

Gerstenberger associa os salmos de sabedoria às

classes mais baixas da hierarquia profética, aos levitas e aos escribas, que assumiram o papel

de aconselhar indivíduos e grupos em aflição e passaram a defender a causa desses

marginalizados.847

Rainer Albertz elaborou a tese, seguida por Spangenberg, de que havia dois grupos

de classe alta no período pós-exílico. O primeiro grupo desfrutava de sua posição e era

indiferente ao pobre, fazendo empréstimos a juros altos e tirando proveito da crise econômica

(Ne 5.7; Ml 3.5). O segundo era representado por Neemias, compassivo com os pobres e

buscava aliviar o sofrimento deles, mesmo que isso afetasse suas condições financeiras

pessoais (Ne 5.9,15).848

Segundo os estudiosos, o autor do Salmo 49 fazia parte do segundo

grupo e escreveu sua reflexão poética tanto como um encorajamento para os ricos piedosos,

que não colocavam sua confiança na fortuna (v. 8,16), quanto como uma crítica aos ricos

indiferentes aos pobres e que os oprimiam, colocando sua confiança nas riquezas, mostrando-

lhes que a riqueza é passageira e a morte é inevitável (v. 11,18).849

845

GERSTENBERGER, 1988, cap. 1.1 (edição kindle, itálico acrescentado). 846PLEINS, 2003, p. 432-7. 847GERSTENBERGER, 1988, cap. 1.2 (edição kindle). 848ALBERTZ, 1999, p. 667-76; SPANGENBERG, 1997, p. 338-9. 849ALBERTZ, 1999, p. 675-7; SPANGENBERG, 1997, p. 338-9. Observe-se que essa tese também é seguida por

Tércio M. Siqueira em seu Comentário de Salmos (no prelo): “ [A] linguagem deste salmo é própria de uma

facção da classe alta da comunidade dos judeus, no período pós-exílico. Esta classe compunha-se de dois grupos:

(a) os judeus funcionários públicos ligados ao Império Persa e proprietários de terra cujas mentalidades

individualista desenvolvia uma prática religiosa bastante arrogante e egoista; (b) judeus, também membros da

classe alta, que expressavam uma prática piedosa voltada para os pobres e explorados. O Salmo 49 é fruto da

crise social que caiu sobre a comunidade dos judeus, na segunda metade do século V aC (cf. Sl 37, 52, 62, 73, 94

e 112). A reportagem do capítulo 5 do livro de Neemias expõe o estado do conflito vivido pela sociedade

judaica. Evidentemente que o autor do Salmo 49 encontra-se entre os que praticavam a lealdade para com as

famílias pobres. Por isso, é muito significativo observar que na comunidade judaica existia pessoas sensíveis à

situação dos pobres. A intenção do salmista era desafiar, no Templo, a posição dos bem-abastados judeus que

negavam às instruções da Torá. [...] Essa crise social, do século V aC, fez produzir uma rica literatura que

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Além do tema da estratificação social como razão para uma datação pós-exílica,

David Pleins também elabora um quadro em que pressupõe certo desenvolvimento de crítica

social da literatura de sabedoria. Ele afirma que as máximas dos mestres da elite urbana do

livro de Provérbios não estabelecem uma crítica social como fizeram os profetas pré-exílicos,

mas estimulam apenas a prática da caridade (Pv 14.31; 19.17; 21.13; 22.9), relacionando a

pobreza com a preguiça (Pv 6.6-11; 10.4; 12.11; 19.15; 20.4) e mantendo as distinções de

classes socioeconômicas (Pv 14.31; 17.5).850

Pleins argumenta, então, que é apenas no

período exílico/sacerdotal, com os livros de Jó, Eclesiastes e o Salmos 49 e 73, que os sábios

passam a criticar o caráter efêmero das riquezas e a defender a ideia de que justos sofrem nas

mãos dos ímpios.851

Essa oposição entre a antiga tradição sapiencial e os grupos proféticos e sacerdotais

pré-exílicos é bastante enfatizada por R. B. Y. Scott, que vê os sábios do período monárquico

como “orientados para o indivíduo”, com um foco secular e mantendo-se indiferentes à

preocupação de “sacerdotes e profetas com a ‘história da salvação’”.852

Segundo o estudioso,

foi somente no período pós-exílico que as três correntes religiosas e teológicas dos profetas,

sacerdotes e sábios foram combinadas em uma “simbiose” de piedade com a antiga tradição

sapiencial e produziram textos como os salmos de sabedoria.853

Embora seja bastante atraente a tese elaborada por Mowinckel e desenvolvida por

estudiosos posteriores acerca dos salmos de sabedoria, em especial o 49, como pós-exílicos,

refletindo conflitos socioeconômicos tardios, um desenvolvimento religioso na crítica social e

uma aproximação das outras tradições, ela tem várias fraquezas e não se impõe como uma

tese definitiva.

Primeiramente, a estratificação social que produzia temor nas pessoas quando “um

homem alcançar riquezas” (Sl 49.17) e que era fruto da “maldade” dos que “confiam” nas

representou um poderoso desafio ético-religioso em toda a comunidade. Evidentemente que foram os sábios que

agiram em defesa dos explorados pela classe alta do povo judeu. Os sábios não foram os únicos que operaram

em favor pobres (cf, Ne 5).” (SIQUEIRA, Salmo 49 [no prelo]) 850PLEINS, 1987, p. 61-78. 851PLEINS, 2001, p. 432-7. John Day apresenta basicamente a mesma concepção que Pleins acerca da divisão de

dois tipos de literatura de sabedoria, sem uma dependência direta. Segundo ele, havia uma abrodagem mais

“ortodoxa”, em que os principais representantes eram o livro de Provérbios e os Salmos 1 e 112, e uma

abordagem “questionadora”, cujos textos representativos eram Jó, Eclesiastes e os Salmos 49 e 73 (ver DAY,

1990, p. 55). 852SCOTT, 1971, p. 17-20. 853SCOTT, 1971, p. 190-2 (cf. p. 17-18).

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riquezas (49.6,7) não se constitui exclusividade da era pós-exílica, mas ocorre em vários

textos da bíblia Hebraica como uma realidade pré-exílica.854

Isaías de Jerusalém, por exemplo, retrata de forma vívida o conflito socioeconômico

e critica a ampliação egoísta de latifúndios na segunda metade do século VIII A.E.C:855 “Ai

dos que ajuntam casa a casa, reúnem campo a campo, até que não haja mais lugar, e ficam

como únicos moradores no meio da terra!” (Is 5.8, ARA). Da mesma forma, Miqueias,

originário de uma aldeia do interior em Judá, expõe os problemas de corrupção e injustiça

praticados pelos dirigentes da nação: “Os seus cabeças dão as sentenças por suborno, os seus

sacerdotes ensinam por interesse, e os seus profetas adivinham por dinheiro; e ainda se

encostam ao SENHOR, dizendo: Não está o SENHOR no meio de nós? Nenhum mal nos

sobrevirá” (Mq 3.11, ARA).856

Sem dúvida, as imagens plásticas dos profetas ficaram na memória, jamais

esquecidas nem perdoadas: a comparação das mulheres da elite com vacas gordas de

Bashan (Am 4.1), as descrições daqueles que ficam estirados e se banqueteiam nas

camas (Am 2.8; 6.4ss.; Mq 2.2), a insaciável cobiça por mais terra e mais posses

(Mq 2.2s.; Is 5.8).857

O historiador deuteronomista revela que o uso da máquina pública para oprimir o

povo comum já estava presente desde os primórdios da monarquia instituída em Jerusalém,

com os excessivos encargos tributários sobre a nação, os trabalhos forçados858

e a

concentração de construções e riqueza na capital e com a elite política (cf. 1Sm 8.10-18; Jz

9.7-15; 1Rs 4.7-19; 5.13-14; 7.1-12; 10.14-22; 11.28; 12.1-17).859

O “Estado tributário que

inicialmente nascera com funções públicas de organização e defesa passa, pouco a pouco, a

ser um autêntico poder de classe (a classe que se constitui nele) para manter e aumentar a

exploração”.860

854GOTTWALD, 2001, p. 233-4. O próprio Gerstenberger reconhece que a estratificação econômica e a crise

social já haviam começado no período monáquico: “Por causa de seus interesses econômicos e militares

centralizados, a monarquia deu oriem a um feudalismo que explorava cruelmente os pequenos proprietérios de

terra e o proletariado urbano e agrário (Am 2.6-8; 5.11,12; Is 5.8-10)” (GERSTENBERGER, 1988, cap. 1.2

[edição kindle]). 855GOLDINGAY, 2001, p. 53. 856KAEFER, 2015, p. 98-9; LIVERANI, 2014, p. 201. Veja a crítica social contra o latifundiarismo proferida por

Miqueias: “Se cobiçam campos, os arrebatam; se casas, as tomam; assim, fazem violência a um homem e à sua

casa, a uma pessoa e à sua herança” (Mq 2.2). 857CRÜSEMANN, 2009, p. 161. 858VAUX, 2004. p. 173-5. 859BRINDLE, 1984, p. 223-30; MERRIL, 2003, p. 338-9. 860DA SILVA, 2011, p. 24-5.

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Essa opressão continuou até o fim da monarquia antes da conquista definitiva de

Babilônia, como fica evidente na crítica do profeta Jeremias a Jehoaquim861

por sua “gestão

de poder”, movida por ganância e expressa na prática da injustiça e opressão (Jr 22.13-19).862

Em Jeremias 5.26-27, o profeta faz referência a pessoas “perversas” (רשעים) que “se

enriqueceram” (ויעשירו) à custa de outros, fazendo dos homens vítimas de suas maldades e os

tratando como um caçador que persegue pássaros.863

“Os pecados eram tanto de omissão

judicial quanto de ordem econômica. Apesar da posição social de poder que os perpetradores

desfrutavam, eles deixaram de defender a justiça”, pois “fecharam os olhos para as decisões

erradas” e nada fizeram para assegurar “direitos legais dos membros marginalizados da

comunidade”.864

Portanto, não há como estabelecer uma datação pós-exílica para o Salmo 49 com

base nas crises sociais da comunidade à qual o salmista se dirige, pois elas também exisitiram

de forma abundante e intensa no período monárquico de Judá. Assim, resta analisar o

argumento socioreligioso em favor da autoria pós-exílica.

A concepção de que o movimento sapiencial pré-exílico esteve em constante conflito

com o movimento profético,865

distante do âmbito do culto,866

com um foco secular e

mantendo-se distante “dos interesses e métodos das tradições proféticas e sacerdotais

religiosamente dominantes”,867

tem sido questionada há algum tempo.

Em sua obra sobre a escola deuteronomista do templo de Jerusalém no século VII

A.E.C., Moshe Weinfeld indicou as estreitas ligações entre a literatura sapiencial e a teologia

deuteronômica, a qual ele entendia estar ligada aos sacerdotes do templo de Jerusalém e ser a

base da reforma josiânica.868

André Lemaire também observa que “em Israel, assim como em

outras nações do Antigo Oriente Próximo, a sabedoria não era irreligiosa. Ao contrário, o

861Aqui, em vez de seguir as traduções de ARA ou da BJ, estabeleço uma tradução/transliteração aproximada

para o nome de יםיהויק , designando-o Jehoaquim. Seu filho será traduzido/transliterado por Jehoakin. 862LIVERANI, 2014, p. 229; CRÜSEMANN, 2009, p. 172-3. 863

KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 897; ALLEN, עשק, in: HARRIS;

ARCHER; WALTKE, 1999, p. 705-6. 864ALLEN, 2008, p. 81. 865WHYBRAY, 1972, p. 9-10. 866VON RAD, 1973, p. 71-2; MOWINCKEL, 1969, p. 208-11. 867SCOTT, 1971, p. 17-20; ver PEINS, 2001, p. 436-7. 868WEINFELD, 1972, p. 244-281. Em um trecho do livro, após fazer várias comparações entre a textos da

tradição sapiencial e o Deuteronômio, ele conclui: “Vimos, portanto, que, em todos os casos em que as pasagens

deuteronômicas tem paralelos claros e literais com a literatura de sabedoria, as prescrições sapienciais

demonstram estar em um contexto original e mais natural. Portanto, podemos apenas concluir que foi o livro de

Deusteronômio quem adotou o material temático específico da literatura de sabedoria, não o contrário” (p. 274).

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comportamento religioso (‘o temor do Senhor’) desempenhou um papel dominante na

sabedoria tradicional”.869

Por ser a obra sapiencial reconhecidamente mais antiga, remontando em grande parte

ao período monárquico,870 o livro de Provérbios apresenta claros exemplos de como os sábios

do período pré-exílico estavam preocupados e envolvidos com a vida cultual de Israel. Uma

das máximas sapienciais critica o adorador que apresenta um sacrifício sem um caráter

íntegro: “O sacrifício dos perversos é abominável ao SENHOR, mas a oração dos retos é o seu

869LEMAIRE, 1990, p. 178. 870Vários estudiosos têm reconhecido a natureza palaciana de grande parte das máximas de Provérbios e sua

identificação com obras bem antigas do Egito e da Mesopotâmia que também estavam ligadas ou à monarquia ou

às escolas nos templos. Depois de um estudo profundo sobre o contexto social e teológico de Provérbios,

Katharine Dell reconhece que as seções 10.1—22.16; 22.17—24.22; 25—29; 30.1-14; 31.1-9 expressam

claramente um contexto palaciano (DELL, 2006, p. 88-9; 195-197) e que mesmo Provérbios 30.15-33, cujas

máximas refletem uma sabedoria da natureza, remontam ao tipo de sabedoria cultivada por Salomão em 1Rs

4.31-34 (DELL, 2006, p. 89). Então, ela conclui que a seção acrescentada por último no livro (Pv 1—9) tem

relação muito próxima com o movimento deuteronômico, o que indica uma coleção sapiencial editada entre o

período do século VII e o exílio; ela diz: “Entretanto, eu argumentaria aqui que nenhuma parte de Provérbios 1—

9 precisa ser datada bem depois do exílio” e ainda acrescenta que o exílio seria o “terminus ad quem para a

produção dessa seção e possivelmente a de todo o livro” (DELL, 2006, p. 196). Em outro texto, ela admite a

possibilidade de que os capítulos 1—9 tenham sido reunidos/editados no exílio ou imediatamente posterior a ele,

porém, sugere que boa parte desse trecho origine-se do período monárquico (DELL, 2009, p. 229-240)

Christopher Ansberry publicou sua pesquisa de doutorado sobre o livro de Provérbios em que compara o

propósito dos textos didáticos do Egito e da Síria/Mesopotâmia com os do antigo Israel. Ele mostra como as

obras egípcias, bem como as mesopotâmicas, visavam à preparação daqueles que trabalhariam na corte, portanto,

foram produzidos, em sua maioria no contexto da elite palaciana. Ele examina as várias seções do livro de

Provérbios e conclui que, devido ao contexto do discurso, o desenvolvimento do material e as ênfases temáticas,

a obra pode ser considerada o documento palaciano que servia para “prover o sensus communis ao jovem

palaciano ingênuo a fim de transformar sua disposição moral, introduzi-lo aos valores básicos os valores do

mundo sociorreligioso e lhe apresentar uma visão perspicaz de vida em suas várias dimensões” (ANSBERRY,

2011, p. 187). André Lemaire também defende um contexto social palaciano para o livro de Provérbios:

“Embora a data final do Livro de Provérbios ainda seja tema de debate, a influência da ‘Instrução de

Amenemope’ sobre Provérbios 22.17—23.12, bem como a importância de outros contatos literários com a

tradição de sabedoria do Egito, poderia ser melhor explicada por um contexto tanto no período salomônico

quanto no reinado de Ezequias. Ademais, em minha avaliação, esse livro é melho entendido como um ensino de

sabedoria transmitido no contexto de uma escola, mais preciamente uma escola monárquica, durante o período

do primeiro templo” (LEMAIRE, 1990, p. 172). Ver ainda a mesma conclusão de Bruce Waltke quanto à data

pré-exílica e o contexto palaciano: “As admoestações e provérbios no texto bíblico também parecem ter

originado-se nos lares cortesãos [...] Além disso, os temas de Provérbios se encaixam melhor nesse contexto.

Alguns deles são mais apropriados para os reis e para aqueles associados com eles, e.g., provérbios relacionados

à nação (11.14) ou ao rei (16.10; 20.2); jantares com a realeza (23.1-3); comportar-se de um modo digno de um

rei (31.4)” (WALTKE, 1979, p. 231-2). J. A. Loader, embora não atribua o processo de compilação e redação de

Provérbios à nobreza, reconhece que as coleções do livro foram reunidas e escritas por uma “classe de

profissionais” que trabalhava na corte real: “Redatores como os ‘homens do rei’ tinham propósitos específicos

com a seleção, edição e transmissão dos provérbios. Seria uma surpresa se isso [o material coletado] não

demonstrasse seu trabalho, isto é, tanto na forma do livro quanto nos provérbios individuais como temos hoje.

Particularmente, espera-se que o próprio Sitz im Leben e sua associação com a corte no Israel pré-exílico sejam

refletidos nos Provérbios.” (LOADER, 1999, p. 233). Até mesmo R. N. Whybray, que considera a seção 1—9

um trecho tardio (pós-exílico), reconhece “que a corte judaica ainda era um centro de atividade sapiencial

trezentos anos depois de Salomão, e é razoável supor que grande parte de Provérbios em sua forma atual seja

produto do desenvolvimento literário sapiencial contínuo ao longo de todo o período da monarquia, ou seja, do

século ao século VI a.C.” (WHYBRAY, 1972, p. 4-5).

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contentamento” (Pv 15.8, ARA, itálico acrescentado).871

Observe-se que há dois elementos

cultuais nesse provérbio: a oração e o sacrifício, e a preocupação do sábio é com o modo de

vida do adorador,872

um tema de textos como os Salmos 15 e 24, bem como da tradição

sacerdotal ligada a Levítico 19.

Outro ditado sapiencial antigo está relacionado a um voto sagrado em um ambiente

cultual: “Laço é para o homem o dizer precipitadamente: É santo! E só refletir depois de fazer

o voto” (Pv 20.25). A advertência para que se avalie a condição de cumprir ou não um

determinado voto a YHWH está presente na literatura deuteronômica (Dt 23.21-23). A

referência ao “filho dos meus votos” (Pv 31.2) parece aludir à prática cultual de uma mulher

fazendo promessas a Deus em sua súplica por um filho (cf. 1Sm 1.11).873

A referência à “sorte [que] se lança no regaço” em Provérbios 16.33 parece ser uma

referência à prática religiosa dos sacerdotes para descobrir a vontade divina mediante o Urim

e Tumim (Êx 28.30; Dt 33.8; 1Sm 23.9-12). O sábio lembra que essa não é uma prática

mágica ou mecânica, mas uma forma de dispor-se a entender a vontade de YHWH (16.33b:

“mas do SENHOR procede toda decisão”, ARA).874

Esses são alguns exemplos de como o movimento sapiencial pré-exílico não era

oposto ou indiferente ao culto no antigo Israel, mas estava profundamente preocupado com a

forma correta de se adorar, pois a “religião cultual” era “uma parte importante e essencial

tanto da herança religiosa de Israel quanto da própria devoção religiosa do sábio”.875

Também é possível identificar um relacionamento entre a tradição sapiencial e os

profetas pré-exílicos, em que algumas formas e temas em comum revelam, em especial, a

influência sapiencial sobre o movimento profético.

O uso da linguagem, formas e ideias de sabedoria conhecidas da própria literatura de

sabedoria (Provérbios, Jó, Qoheleth, vários salmos) não demonstra que os autores ou

os profetas eram sábios. Isso simplesmente revela que eles conheciam essa literatura

ou tradições semelhantes a ela e compartilharam do pensamento de sabedoria geral a

israelitas instruídos.876

871Observe-se a “Instrução ao rei Merikare”: “Mais aceitável é o caráter de um justo de coração do que o boi do

ímpio” (PRITCHARD, 1969, p. 417, coluna 2). WHYBRAY, 1972, p. 88. 872LUCAS, 2015, p. 118. 873DELL, 2006, p. 179-80. 874HUBBARD, 1989, p. 327 875PERDUE, 1977, p. 211. 876

LEEUWEN, 1990, p. 298. Ver DELL, 2008, p. 141.

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Estudiosos têm notado a influência da literatura sapiencial em Amós, profeta do século

VIII.877

Por exemplo, as perguntas retóricas do capítulo 3 (v. 3-8) e de 6.12 se assemelham

bastante com Provérbios 6.27,28; 23.29 e Jó 8.11 e estão presentes em ditados mesopotâmicos

antigos:878

Andarão dois juntos, se não houver entre eles acordo?

Rugirá o leão no bosque, sem que tenha presa?

Levantará o leãozinho no covil a sua voz, se nada tiver apanhado?

Poderão correr cavalos na rocha? E lavrá-la com bois?

Provérbios e salmos sapienciais apresentam, de modo recorrente, um chamado inicial

feito pelo mestre (cf. Sl 49.1; 78.1; cf. Pv 2.1; 5.1 7.24), conhecido também por sua

designação Lehreröffnungsruf (“exortações inaugurais do mestre”).879

O profeta Miqueias, do

interior da Judá do século VII A.E.C., usa também esse tipo de chamado: “Ouvi, todos os

povos, prestai atenção, ó terra e tudo o que ela contém, e seja o SENHOR Deus testemunha

contra vós outros, o Senhor desde o seu santo templo” (Mq 1.2)880

Além disso, o padrão “três-quatro” bastante comum em textos sapienciais da Bíblia

(Pv 30.15,18,21,29; cf. Jó 5.19; Pv 6.16-19) e de civilizações do Antigo Oriente Próximo881

são empregados também pelo profeta Amós (caps. 1 e 2) sob influência dos sábios de

Israel.882

Por exemplo: “Assim diz o SENHOR: Por três transgressões de Damasco e por quatro,

não sustarei o castigo, porque trilharam a Gileade com trilhos de ferro” (Am 1.3).883

Há também uma temática característica da literatura de sabedoria presente nos

profetas. O tema sapiencial da teodiceia, ou seja, a aparente falta de retribuição ao ímpio e de

877DELL, 2004b, p. 264. Segundo Schniedwind, o texto de Amós foi produzido no período de vida do profeta,

tese corroborada pela menção a Gate, destruída em 712 A.E.C., em Amós 6.2. O entendimento de que o profeta

havia previsto corretamente a queda de Samaria e o anúncio de futuros dias gloriosos para dinastia de Davi (Am

9.11) contribuiram para que o texto fosse preservado por escribas do reino do Sul. (SCHNIEDEWIND, 2011, p.

122-3) 878

BERRY, 1995, cap. 1 (edição kindle); VON RAD, 1973, p. 35; LASOR; HUBBARD; BUSH, 1999, p. 488-9:

“Engravidou-se ela sem cópula? Engordou sem ter comido”. Observem-se estes provérbios acádicos da primeira

metade do segundo milênio: “Acaso crescerá o fruto maduro? Como sabemos? Acaso crescerá o fruto seco?

Como sabemos?” (PRITCHARD, 1969, p. 425, coluna 2). Ezequiel 15.2,3 também apresenta uma série de

perguntas retóricas sapienciais que usam de imagens para ensinar sobre o futuro dos hierosolimitas: “[...] por que

mais é o sarmento de videira que qualquer outro, o sarmento que está entre as árvores do bosque? Toma-se dele

madeira para fazer alguma obra? Ou toma-se dele alguma estaca, para que se lhe pendure algum objeto?”

(ARA). O uso desse recurso em Ezequiel pode apontar para uma influência sapiencial sobre os sacerdotes (cf. Ez

1.1-3) anterior ao período exílico (ver adiante). 879

BELLINGER, 2012. p. 130; KRAUS, 1993, p. 91; VON RAD, 1973, p. 35-36. 880Há exemplos desse tipo de chamado também em Isaías: “Inclinai os ouvidos e ouvi a minha voz; atendei bem

e ouvi o meu discurso” (Is 28.23, ARA); “Chegai-vos, nações, para ouvir, e vós, povos, escutai; ouça a terra e a

sua plenitude, o mundo e tudo quanto produz” (Is 34.1, ARA). 881

VON RAD, 1973, p. 55. 882

CRENSHAW, 1967, p. 49. 883

LASOR; HUBBARD; BUSH, 1999, p. 497.

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recompensa ao justo nesta vida — analisada em salmos didáticos, como 49 (vv. 6-19) e 73

(vv. 2-24), em Eclesiastes (7.15; 8.10-14) e no livro de Jó — ocorre também no livro de

Habacuque,884 em que o profeta se esforça para compreender a justiça de um Deus que

controla um mundo aparentemente sem justiça, como suas palavras iniciais indicam: “Por que

me mostras a iniquidade e me fazes ver a opressão? [...] Por esta causa, a lei se afrouxa, e a

justiça nunca se manifesta, porque o perverso cerca o justo, a justiça é torcida.” (Hc 1.3,4,

ARA).885

.

Além de empregar recursos retóricos comuns da literatura de sabedoria, o profeta

Amós também parece enfatizar temas característicos dos sábios, ao tratar do relacionamento

de Israel com as nações, ao usar palavras do movimento sapiencial como נכח (“reto”, Am

3.10; cf. Pv 4.25; 8.9; 24.26) e משפט (“justiça”, Am 5.7,15,24; 6.12; cf. Jó 29.14; Pv 18.5;

19.28; 21.15; 29.4), ao empregar pares antitéticos de palavras e demonstrar uma preocupação

com o pobre e o humilde (Am 2.7; 4.1; 5.11; 8.6).886

Isaías também utiliza ditados reais pré-exílicos de Provérbios (14.27,33;

16.10,12,13,16; 20.26,28; 21.30; 25.5; 29.4,14) para descrever o sábio messiânico ideal em

Isaías 9.1-6a e 11.1-5 e, assim, criticar de forma implícita a falha do rei e dos cortesãos

contemporâneos no exercício da sabedoria adequada a seu ofício. O mesmo profeta também

faz acusações severas e abertas contra os homens de estado usando as normas sapienciais que

se aplicavam a eles: um juiz não deveria se entregar à bebida para não corromper a justiça

nem ignorar o direito dos pobres (Is 5.11,22-23; cf. Pv 31.4,5; 20.1; 29.4,7,14,26; Ec 10.16-

17; cf. Os 7.5).887

Quando o profeta Jeremias deixou claro que cada indivíduo seria responsabilizado por

seus erros e punido por isso (Jr 31.29,30; Ez 18.2-20), não estava estabelecendo novos

padrões, mas remetendo a padrões bastante recorrentes na literatura de sabedoria (e.g.: Pv

5.22,23; 10.6,7), embora não exclusivos dela.888

Assim, fica evidente que a relação de sábios com profetas e sacerdotes não é fruto de

uma combinação tardia desses movimentos889

nem fruto de uma simbiose da piedade com a

884O trecho de Habacuque 1.2-4 é datado por Andersen de meados do século VII A.E.C. (ver ANDERSEN, 2008,

p. 24). ROBERTSON, 1990, p. 34-7, defende a data da obra no final do século VII A.E.C. 885

BERRY, 1995, cap. 1 (edição kindle). 886

HUBBARD, 1966, p. 8-9. 887

LEEUWEN, 19990, p. 302-303. 888HUBBARD, 1966, p. 11. 889PLEINS, 2001, p. 436-7.

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antiga tradição de sabedoria (e.g., salmos sapienciais),890

mas uma realidade bastante antiga

em que sábios tiveram importante participação na produção das tradições do antigo Israel.891

Portanto, Goulder estava certo ao dizer que a “data tardia” para o Salmo 49 está

fundamentada na “visão do consenso, e não se demonstra por aramaismos no texto, como há

nos Cânticos de Subida, ou por evidências externas, como no Salmo 1”.892

Mas esse consenso

ainda é razoável? Diane Jacobson apresenta alguns comentários e questões que colocam em

xeque a tese de que os salmos de sabedoria são pós-exílicos e dissociados do culto:

A maioria dos estudiosos recentes não vê razão suficiente para excluir um contexto

cultual para os salmos de sabedoria ou salmos com elementos sapienciais. Parece

evidente que líderes e escolas de sabedoria interagiam com o culto. [...] Além disso,

a maioria está persuadida de que o pensamento sapiencial como tal está mais

relacionado com uma cosmovisão compartilhada por todos os antigos israelitas do

que com uma forma de refletir praticada apenas pelos sábios. Pode-se fazer a

pergunta se essa cosmovisão mudou consideravelmente do período pré-exílico para

o pós-exílico. [...] O que não sabemos são as diferenças ou ligações entre os

representantes da “sabedoria antiga” [...] e os escritores pós-exílicos.

[...] Estamos convidados a a examinar a evidência com grande cuidado e reconhecer

que simplesmente dizer que algo é pós-exílico não é suficiente em si para esclarecer

o que estava ocorrendo na tradição.893

Assim, abre-se caminho para a análise de uma produção pré-exílica do Salmo 49, um

texto sapiencial, numa época em que sabedoria, culto e profecia estavam em contato

constante, influenciando-se e criticando-se mutuamente, e produzindo textos de elevada

crítica social em uma estrutura poética inteligentemente estruturada.894

3.2. Salmo 49 como poesia sapiencial pré-exílica: redesenhando o processo histórico

Para a concepção do Salmo 49 como um texto sapiencial do período final da realeza

judaíta, é necessário redesenhar o processo em que o Reino do Sul tornou-se o locus de alta

produção literária. Uma das dificuldades de exegetas para aceitar a produção de textos como o

Salmo 49 em Israel na época do primeiro templo está no questionamento se havia escolas de

escribas capazes de produzir literatura como aquela encontrada na Bíblia Hebraica.895

890SCOTT, 1971, p. 191. 891DELL, 2004b, p. 265: a influência sapiencial “pode ser considerada formativa, e não simplesmente uma etapa

editorial em relação a esses textos [bíblicos] com os quais pode ser comparada”. 892 GOULDER, 1982, p. 183. 893JACOBSON, 2014, p. 152, 154. 894SNEED, 2011, p. 64, apresenta uma observação bastante pertinente em um artigo instigante: “Todos os livros

bíblicos são produtos dos escribas eruditos. Não importa que posição social eles tivessem (sacerdote, profeta,

sábio e assim por diante), todos os autores bíblicos estavam unidos em seu papel como escribas e em seu

treinamento escribal em comum. Com relação à cosmovisão dos autores bíblicos, seu papel como escribas

deveria receber mais importância do que a questão se eram ao mesmo tempo sacerdotes, profetas e sábios”. 895

LEMAIRE, 1984, p. 272-3

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O período do século VIII A.E.C. — em que houve um processo de rápida

urbanização em Judá como resultado da expansão do império assírio e do influxo de pessoas

do Reino do Norte para o Sul com a queda de Samaria em 722 A.E.C. — parece ter

contribuído para a produção e preservação literária de diversos textos do antigo Israel, sob a

liderança de Ezequias e de seus escribas.896

Na parte final do Ferro II (séculos VIII e VII A.E.C.), Jerusalém se expandiu, sua

população cresceu, e uma grande área se formou ao redor da cidade, sendo o limite da parte

fortificada de Jerusalém definido, em especial, pelas muitas sepulturas que a cercavam.

Aldeias vizinhas sem fortificações foram construídas ao norte da cidade, e havia propriedades

agrícolas, ao derredor dela, com grandes vilas constituindo a parte mais remota do raio do

território conhecido como “grande Jerusalém”, atingindo um tamanho entre 900 e 1.000

dunans.897

Esse processo de crescimento da Judá do fim do século VIII A.E.C. e a consequente

intensificação da burocracia em Jerusalém demandou a ampliação da atividade literária na

capital e nas principais cidades associadas a ela, conforme a pesquisa arqueológica revela:

“deve-se observar que todos os sete sítios nos séculos VIII e VII contendo direta evidência de

escrita têm sido analisados em diversas conexões da perspectiva de sua dependência de

Jerusalém”, o que implica as demandas da realeza na administração da rede político-

econômica da região.898

Como Schniedewind sintetizou bem:

A urbanização seria o catalisador necessário para uma atividade literária mais

disseminada [...] as condições sociais favoreceram o florescimento da literatura

896

Ver descrição em QUICK, 2014, p. 14, 23-24. 897

MAZAR, 1990, p. 416-424; LIPSCHITS, 2005, p. 215. Ver também as descobertas de uma fortificação ao

norte da cidade que “testemunham um intenso assentamento nesse período [Idade do Ferro]” (BARKAY;

FANTALKIN, 2002, p. 49-71). Dados de uma pesquisa arqueológica realizada na Sefelá desde 1979

complementam o quadro apresentado pelas escavações arqueológicas. Durante os séculos VIII e IX, a Sefelá

experimentou um florescimento populacional, com crescimento de seus habitantes, muitos novos assentamentos

(especialmente, pequenas propriedades agrícolas) e uma ampliação das regiões habitadas. A campanha de

Senaqueribe, em 701 A.E.C., provocou uma diminuição da população, que, todavia, voltou a crescer ao longo do

século VII, experimentando um processo de refortificação e somando, ao final do século, uma área de construção

de cerca de 800 dunans nas principais cidades (FINKELSTEIN, 1994, p. 172-173; LIPSCHITS, 2005, p. 220-

221.). 898JAMIESON-DRAKE, 1991, p. 147-8. Isso também é confirmado por William Schniedewind: “No importante

aparato de um rei estavam incluídos seu escriba e a biblioteca real. Até mesmo aspirantes a reis como Abdi-

Heba, prefeito de Jerusalém no século XIV a.C., ou Mesá, chefe de Moabe no século IX a.C., tinham escribas.

Não é de surpreender que o florescimento da escrita e das artes escribais não fosse um fenômeno exclusivamente

judeu.” (SCHNIEDEWIND, 2011, p. 107). André Lemaire também observa que “escolas nas culturas vizinhas

[de Israel] parecem ter originado-se da necessidade de treinar escribas para o trabalho nas burocracias

governamentais. Com toda probabilidade houve escolas em Israel para o mesmo propósito de treinar futuros

membros da administração real...” (LEMAIRE, 1990, p. 169).

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hebraica no séculos VIII e VII a.C. Essas mudanças na vida social do povo judeu

foram especialmente perceptíveis na cidade de Jerusalém. [...]899

O crescimento de Jerusalém foi um subproduto da ascensão do Império Assírio.

Antes de mais nada, a Assíria destruiu o reino setentrional de Israel, o que resultou

na imigração de israelitas para Jerusalém e outras cidades do Sul. [...] Em 722 a.C.,

Ezequias enfrentava um afluxo de imigrantes vindos do reino do norte derrotado.

Em vez de entricheirar suas fronteiras, Ezequias procurou integrar esses refugiados

em seu domínio, almejando assim restaurar a época de ouro de Israel, o rei Davi e

Salomão. [...] Uma burocracia real floresceu junto com a população de Jerusalém.900

Os dados da Bíblia Hebraica parecem confirmar a presença desse aparato real. Em

Provérbios 25.1, ocorre a menção aos escribas de Ezequias: “São também estes provérbios de

Salomão, os quais transcreveram os homens de Ezequias, rei de Judá” (ARA, itálico

acrescentado).901

Segundo James Crenshaw, durante o reinado de Ezequias, houve o patronato

monárquico que possibilitou a atividade escribal dos “homens de Ezequias”. Como este rei

buscou seguir Salomão em vários aspectos, parece que a referência aos “homens de Ezequias”

reflete a menção na história deuteronomista aos “teus homens”, em um elogio da rainha de

Sabá a Salomão, como uma expressão para os escribas que trabalhavam na corte em 1Rs

10.8.902

Schniedewind também observou que, embora o foco de Provérbios 25.1 seja indicar

que os provérbios ali contidos são de Salomão, a expressão “os homens de Ezequias” é

secundária, portanto, consiste no tipo de referência desinteressada que pode ser a chave para a

pesquisa histórica de que esses homens foram de fato responsáveis por registrar as máximas

de Provérbios 25—29, e não somente isso, mas também foram responsáveis pela primeira

etapa da composição da história deuteronomista.903

Halpern e Lemaire apresentam diversas

razões para uma história protodeuteronômica do livro de Reis produzida na época de

Ezequias.904

Além disso, a menção casual a Sebna em 1Reis 18.18, “escriba de estado” ou

“secretário do rei” (ספר),905

é significativa. A função do ספר ou “escriba” era muito importante

899

SCHNIEDEWIND, 2011, p. 98. 900SCHNIEDEWIND, 2011, p. 99, 101. 901

WHYBRAY, 1972, p. 146: “A referência aos homens de Ezequias, rei de Judá (cerca de 715-687 a.C), que

eram evidentemente escribas na corte real, revela que a literatura sapiencial, já associada com Salomão, ainda

era uma preocupação da corte judaíta dois séculos depois” (o primeiro itálico é do original; segundo itálico foi

acrescentado). 902CRENSHAW, 1985, p. 613-4. Em outra obra, Crenshaw faz observações semelhantes e conclui dizando: “a

posterior [depois dos conselheiros de Davi] aparição dos ‘homens de Ezequiel’ sugere que uma classe distintiva

de sábios existia no século VIII” (CRENSHAW, 1981, p. 29) 903SCHNIEDEWIND, 2011, p. 108-115. 904HALPERN; LEMAIRE, 2010, p. 143-5. 905

KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 767.

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no Antigo Oriente Próximo. As antigas tradições de escribas remontam aos centros da cultura

em cada um dos extremos do Crescente Fértil: Mesopotâmia e Egito — ambos com uma

vigorosa tradição sapiencial, com sábios profissionais que produziam extensas obras

literárias.906

Na Babilônia, a arte do escriba é bastante antiga e foi reforçada pelo

estabelecimento de escolas de escribas, cujas atividades estavam associadas a todas as etapas

da sociedade da Mesopotâmia.907

Do mesmo modo, no Egito, as escolas e seus ensinamentos

eram organizados, desde o Reino Médio, em uma proporção bem ampla, a ponto de todo

egípcio poder levar seu filho à escola no período do Reino Médio.908

A arte de escriba tornou-

se fundamental para a sociedade faraônica, tanto que, na famosa “Sátira sobre os Negócios”, a

profissão de escriba é designada, de modo eloquente, como “o maior de todos os

chamados”.909

Portanto, 2Reis 18.18 testemunha a presença de um escriba (talvez o chefe de um

grupo maior de “homens de Ezequias”) no palácio de Ezequias.910 Como Roland de Vaux

indica:

O secretário Sebna é um dos três ministros que discutem com o mensageiro de

Senaqueribe (2Rs 18.18,37; 19.2; Is 36.3,11,22) [...] esse funcionário era, ao mesmo

tempo, secretário particular do rei e secretário de Estado. Ele redige a

correspondência externa e interna, anota a soma das contribuições (2Rs 12.11);

desempenha um papel importante nos negócios públicos. É inferior ao administrador

do palácio: mas ele vem imediatamente depois do administrador do palácio em

2Reis 18.18s; Isaías 36.3s, e a missão que ambos realizam em conjunto põe em jogo

a sorte do reino.911

906

CRENSHAW, 1981, p. 55. 907

PATTERSON, ספר, in: HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1999, p. 632. 908

LEMAIRE, 1984, p. 275. 909

PATTERSON, ספר, in: HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1999, p. 632. “No Egito do Novo Império, o título

“escriba real” é freqüente, seja só, seja unido a outras funções. Mas, acima dos inumeráveis dedicados à escrita,

alguns escribas reais ocupam funções de primeiro plano e participam em todos os negócios do Estado” (DE

VAUX, 2004, p. 162). 910Rollston afirma: “O fato de um escriba estar presente, juntamente com outros oficiais, nas negociações com a

delegação de Senaqueribe, é também indicativo do poder e da proeminência alcançados às vezes por um escriba

real (2Rs 18.18)” (ROLLSTON, 2010, p. 89). Lester Grabbe faz a interessante síntese: “A Bíblia hebraica

pressupõe que os escribas foram empregados na administração dos reinos de Israel e Judá: os escribas de Davi

(2Sm 8.17; 20.25; 1Cr 18.16; 24.6); escriba de Salomão (1 Kgs 4.3); um escriba real no tempo de Jeoás (2Rs

12.11; 2Cr 24.11); Sebna, o escriba (2Rs 18.18,37; 19.2); Safã, o escriba (2Rs 22.3,8-10, 12; 2 Cr 34.15,18,20);

o escriba do comandante do exército (2Rs 25.19; Jr 52:25). Jeremias tem uma série de referências aos escribas: a

câmara de Gemarias, filho de Safã, o escriba no templo (36.10); câmara do escriba no palácio do rei (36.12);

Elisama, o escriba (36.12,20,21); Baruque, o escriba, desempenha um papel proeminente (36.26,32); Jeremias

foi preso na casa de Jônata, o escriba (3715.20).” (Ver GRABBE, 2014, p. 107) 911

DE VAUX, 2004, p. 162.

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Como os escribas não estavam limitados ao palácio do rei, mas poderiam estar

associados ao templo ou ao ofício profético,912

observa-se o desenvolvimento do trabalho de

escribas no templo de Jerusalém, ocorrendo décadas depois de Ezequias, na segunda metade

do século VI A.E.C. O processo de urbanização do século VII A.E.C. gerou, ao que tudo

indica, uma “democratização” da escrita muito mais ampla do que David W. Jamieson-Drake

havia defendido,913 conforme a obserção de Alan Millard sobre a Judá a partir de 750 A.E.C.,

depois de uma análise das evidências arqueológicas e epigráficas:

A variedade de inscrições antigas — desde textos monumentais em prédios, tumbas

e obras públicas até cartas, selos, listas e nomes riscados em potes — certamente

indicam um difundido uso da escrita, especialmente quando se considera que a vasta

maioria dos documentos foi escrita em papiro, que não teria sobrevivido ao clima

úmido de Israel.914

Assim como ocorria no antigo Egito, em que o templo era uma extensão funcional da

instituição real,915 os escribas no templo de Jerusalém passaram a ter uma importância central

e o santuário tornou-se um dos principais loci de escrita na época de Josias:

Para compreender de que maneira o lugar social da escrita havia se modificado,

retornemos à famosa descoberta do pergaminho: “O sumo sacerdote Helcias disse ao

secretário Safan: ‘Encontrei na casa de YHWH o pergaminho da lei’” [2Rs 22.8]. O

fato de que tenha sido o sumo sacerdote que encontrou o pergaminho no templo é

crucial para compreender o novo lugar social da escrita: os sacerdotes e o templo.916

Antes de Schniedewind, André Lemaire já havia chamado a atenção para o fato de

que a famosa descoberta do “livro da lei/instrução” (התורה na “casa de YHWH” (2Rs (ספר

22.8) pelo sacerdote Hilquias (22.23) poderia ser uma indicação da existência de uma

biblioteca em uma sala no templo de Jerusalém, em que os arquivos e textos eram

armazenados.917

Em sua análise sobre a relação dos sábios do templo com o livro de

Deuteronômio, Lemaire indica que o papel principal na história da descoberta do livro da lei

em 2Reis 22 foi desempenhado por “Safã, filho de Azalias, filho de Mesulão, o escriba [ספר]”.

912SNEED, 2011, p. 62. James Crenshaw observa: “O locus da tradição sapiencial no Egito era faraônico,

enquanto na Mesopotâmia, os sábios atuavam primariamente no templo [...] Enquanto a sabedoria egípicia se

concentrava em fornecer instrução para uma vida bem sucedida na corte real, o seu correspondente

mesopotâmico dava especial atenção em garantir o bem estar por meio de práticas cultuais” (CRENSHAW,

1981, p. 56). Christopher Ansberry observa que os textos sapienciais egípcios também estavam ligados ao

templo e aos sacerdotes (ver ANSBERRY, 2011, p. 18-19). No outro espectro, Tremper Longman chama a

atenção para o fato de que “os escribas profissionais” atuavam “nas várias partes da sociedade, particularmente a

corte real e o templo”, indicando que a E.DUB.BA.A (escola mesopotâmica) não servia apenas ao templo, mas

ao palácio também (LONGMAN III, 2017, p. 192 [edição kindle]). 913JAMIESON-DRAKE, 1991, p. 148. 914MILLARD, 1987, p. 27. 915ANSBERRY, 2011, p. 34. 916SCHNIEDEWIND, 2011, p. 153-4. 917LEMAIRE, 1990, p. 176.

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Ele foi enviado pelo rei Josias ao templo (v. 3), recebeu a mensagem e o livro de Hilquias, o

sumo sacerdote (v. 8), leu o livro para o rei (v. 10) e foi consultar a profetisa Hulda (v. 14).

Posteriormente, membros da família de Safã também tiveram um papel importante em relação

a outro livro, que continha os oráculos de Jeremias: “Leu, pois, Baruque naquele livro as

palavras de Jeremias na Casa do SENHOR, na câmara [בלשכת] de Gemarias, filho de Safã, o

escriba, no átrio superior, à entrada da Porta Nova da Casa do SENHOR, diante de todo o

povo” (Jr 36.10, ARA). Depois disso, o rolo de Jeremias foi depositado em outra “câmara” ou

“sala” (בלשכת) no palácio (36.20).918

O HALOT define לשכה como uma sala geralmente em um prédio religioso com

bancos de pedra dos três lados.919

A referência à לשכה associada a um descendente de um

“escriba” (ספר) e à leitura pública de um “livro” (ספר) no templo parece indicar uma sala em

que a atividade escribal era exercida, ao menos, em seu papel de ensino.920

O relato do

Cronista parece sugerir, fortemente, a presença de salas anexas (לשכות) no entorno do templo,

que tinham vários propósitos: armazéns, locais para os levitas ficarem (1Cr 9.33; 28.12; 2Cr

31.11)921 e, conforme Jeremias 36.10, o ambiente em que escribas desempenhavam suas

funções. Tendo em vista essa ligação entre o templo e a atividade escribal nos dias de Josias e

de Jeremias, parece bastante razoável a tese de Moshe Weinfeld de que o movimento

deuteronomista estava associado a um grupo de sábios do templo de Jerusalém nos dias de

Josias.922

Nessa relação entre o templo e o movimento sapiencial, haveria grande possibilidade

de que salmos sapienciais fossem compostos para celebrações do culto em Jerusalém no

período final do século VII a.C., pois a sabedoria era vista como “parte da mais antiga

918LEMAIRE, 1990, p. 177. 919KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 536-7. 920KAISER, לשך, in: HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1999, p. 483; LEMAIRE, 1990, p. 177-8. 921KELLERMAN, Diether, לשכה. In: BOTTERWECK, 1997, v. 8, p. 35-6. 922WEINFELD, 1972, p. 244-281, apresenta diversos paralelos entre Provérbios e Deuteronômio, indicando que

a literatura sapiencial precede à deuteronômica. Christopher Ansberry também estabelece várias ligações

temáticas entre os dois livros e diz: “A visão moral do livro de Provérbios procura reforçar o paradigma

deuteronômico de liderança. Semelhante ao programa deuterônico, o material sapiencial fornece aos jovens

nobres e inexperientes os valores fundamentais e as atitudes formativas da existência social: delineia o ethos

tradicional que devem incorporar para liderar os encarregados dos seus cuidados. As coleções individuais

incluem preocupações convencionais com material cortesão para inculcar valores estabelecidos e conselhos

práticos em seu público. Ao fazê-lo, o livro não só cultiva virtudes que coincidem com os interesses da

comunidade, mas também identifica certos valores que correspondem aos interesses, aspirações e tentações de

seu nobre destinatário. Esse programa ético complementa o modelo paradigmático de liderança apresentado no

Deuteronômio. Na visão deuterônica, os líderes das instituições sociais deveriam incorporar os valores da

comunidade e promover a justiça dentro de suas respectivas esferas sociais.” (ANSBERRY, 2011, p. 188)

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autoexpressão de Israel em suas festas de adoração, bem como em outras áreas da vida, a

ponto de se manifestar em alguns salmos que revelam a influência sapiencial”.923

Assim,

Martin J. Buss parece estar correto em indicar que o Salmo 49 corresponde com toda

probabilidade à Judá pré-exílica.924 Markus Saur também entende que esse salmo é anterior ao

exílio, remontando a um período em que a realeza ainda não havia sido afetada pela

destruição babilônica.925

O desenvolvimento da análise anterior sobre o desenvolvimento histórico pré-exílico

da literatura sapiencial, leva à conclusão que se deve datar o Salmo 49 no final do século VII

A.E.C., provavelmente posterior a Josias. Existem elementos linguísticos que favorecem essa

datação, além do fato de que a coleção dos “filhos de Corá” geralmente é atribuída ao pré-

exílio.926 Por questão de limites deste projeto, exporemos a seguir somente alguns aspectos

linguísticos que parecem apoiar uma data no final do período pré-exílico.

Primeiramente, uma palavra significativa do Salmo 49 relacionada à crítica

socioeconômica — tema predominante dessa poesia sapiencial — ocorre nos profetas pré-

exílicos e em Ezequiel, mas não nos pós-exílicos.927

O substantivo אביון (v. 3: “pobre”) não

aparece em nenhum profeta considerado pós-exílico pela crítica bíblica (Ag, Ml, Zc, Is 56-

66),928

mas ocorre cinco vezes em Amós (2.6; 4.1; 5.12; 8.4,6),929

três vezes na primeira parte

do livro de Isaías (14.30; 29.19; 32.7; uma vez no chamado “Pequeno Apocalipse”930

: Is

25.4),931

quatro vezes na seção reconhecida como dominantemente pré-exílica de Jeremias (Jr

923DELL, 2004a, p. 458; LEMAIRE, 1990, p. 179: “[Os salmos] parecem refletir a variedade de tradições no

antigo Israel, e alguns deles dão evidência de que a sabedoria também estava presente no templo”. 924BUSS, 1963, p. 387. Embora discorde-se aqui da classificação feita por Buss de que o salmo é “quase secular”

e de natureza “não deuteronômica”. 925SAUR, 2015, p. 199, 201. Embora discordemos de Saur de que os salmos 49 e 73 remontem à época dos

antigos reinos de Israel e Judá. Parece melhor um período em que apenas o Reino do Sul ainda mantinha-se

firme (ver adiante). Como Goulder observou, não há nada no texto que indique uma data tardia para o salmo, a

não ser o “consenso” de que a literatura sapiencial é tardia (GOULDER, 1982, p. 182-3). 926Ver análise da epígrafe do Salmo 49. 927Nesta parte, não faremos comparação com os livros sapienciais, embora haja muitos vocábulos que ocorram

em Provérbios (texto basicamente pré-exílico), outros aparecem em Jó e em Eclesiastes, que são considerados

pós-exílicos pela crítica bíblica. Nesses casos, as palavras características da literatura sapiencial (esp. Pv, Jó, Ec)

não indicam diacronia (fenômenos antigos ou tardios), mas sincronia (aspectos linguísticos sapienciais ou não

sapienciais) (ver HURVITZ, 1988, p. 43-4, esp. nota 12) 928Na narrativa claramente pós-exílica de Ester, אביון aparece somente uma vez (Et 9.22). 929Para a redação final de Amós no período pré-exílico, ver SCHNIEDEWIND, 2011, p. 119,122-3; FINLEY,

2003, p. 102-5. 930PLEINS, 2001, p. 237. 931A ocorrência em Isaías 41.17 é duvidosa por um problema textual (ver ELLIGER; RUDOLPH, 1997, p. 738).

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2.34; 5.28; 20.13; 22.16)932

e três vezes em Ezequiel (Ez 18.12; 16.49; 22.25ss.).933

Os

profetas pós-exílicos usam outros termos paralelos a אביון, por exemplo, עני (“pobre”,

“miserável”, “carente”, “sem posses”)934

(Zc 7.10; 9.9; 11.7,11) ou יתום (“órfão”, com o

sentido de indefeso)935 (Zc 7.10; Ml 3.5).936

A crítica que impera no Salmo 49 em favor do pobre (אביון), contra o rico (עשיר) (v.

3), que é capaz de provocar temor (Sl 49.6,7) nos menos favorecidos por suas prováveis

ameaças e opressão, está presente também em Amós (2.6; 4.1; 5.12; 8.4,6) e em Jeremias

(e.g., 2.34; 5.28).937

Em Jeremias 20.13, o próprio profeta se identifica como אביון a quem

YHWH salva (Jr 20.13),938

o que remete à perspectiva do Salmo 49, em que o autor começa

com uma pergunta retórica na primeira pessoa, colocando-se como um desfavorecido

ameaçado pelos ricos ímpios: “Por que temerei [...] a maldade dos que me atacam [...] os que

confiam em suas riquezas” (v. 6,7).

Chama a atenção o uso de חלד (“tempo de vida”; “mundo”)939

no versículo 2, um

substantivo que ocorre na literatura sapiencial (Sl 49.2; Jó 10.12,20; 11.17), no texto pré-

exílico Isaías 38.11940

e em um salmo que parece ser exílico (Sl 89.48; cf. v. 38-45).941

Assim,

a princípio, o terminus ad quem do uso do vocábulo favorece a produção do Salmo 49 até o

período exílico, pois חלד não ocorre em textos claramente pós-exílicos (e.g., Ag; Ml; Ne, Et).

Há também paralelos verbais entre o Salmo 49 e a primeira parte do livro de

Jeremias que reforçam certa contemporaneidade com o profeta e expressam uma preocupação

semelhante com as desigualdades socioeconômicas na Judá do final do século VI, embora não

sejam argumentos definitivos de datação. Enquanto o salmista menciona o rico (עשיר) (Sl

49.3) e critica aqueles que “se gloriam” ( לויתהל ) em “seus bens” ( םעשר ) (Sl 49.7), o profeta

Jeremias exorta “o rico” (עשיר) a não “gloriar-se” ( ליתהל ) no “seu bem” ( ובעשר ) (Jr 9.23).

932WESTERMANN, 1967, p. 155-63, atribui o primeiro estrato do livro aos capítulos 1—25, com exceção do

cap. 19. Ver também TOV, 1985, p. 211-37; LIPSCHITS, 2005, p. 305-7, que entendem ser o texto da LXX bem

próximo do primeiro estrato de Jeremias (mantendo basicamente o texto de 1—25, com alguns acréscimos de um

editor posterior). Cf. PLEINS, 2001, p. 278. 933BOTTERWECK, G. Johannes, אביון, in: BOTTERWECK, 1977, v. 1, p. 29-33. 934KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 856. 935BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 450 936Observe-se que esses dois substantivos hebraicos também estão presentes em textos pré-exílicos, mas o fato de

.ser usado de forma quase exclusiva no período pré-exílico favorece a autoria antiga do Salmo 49 אביון937BOTTERWECK, אביון, in: BOTTERWECK, 1977, v. 1, p. 31-3. 938PLEINS, 2001, p. 290. 939BRENSINGEN, Terry L., חלד, in: VANGEMEREN, 2011, p. 137, verbete 2689; HOLLADAY; KÖHLER,

2000, p. 104; KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 316 940FREEDMAN, 1987, p. 21-2; SCHNIEDEWIND, 2011, p. 121-2. 941GROGAN, 2008, Psalm 89 (edição kindle); LONGMAN, 2014, Psalm 89 (edição kindle).

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Jeremias afirma que é no קרב (“íntimo”) que estão presentes os “maus pensamentos” (מחשבות

(קרב) ”dos habitantes de Jerusalém (Jr 4.14), e o salmista expõe o que está no “íntimo (אונך

dos que colocam a confiança em suas riquezas (Sl 49.12).

Em Jeremias 5.26-27, a raiz verbal עשר é usada em referência a pessoas “perversas”

à custa de outros, o que parece remeter também a (ויעשירו) ”que “alcançaram riquezas (רשעים)

situação do Salmo 49, em que “alcançar riquezas” ( ריעש ) provoca o temor dos desafortunados

e pobres (Sl 49.17). Tanto Jeremias quanto o Salmo 49 utilizam a raiz עקב para comunicar

uma atitude fraudulenta, que usa de engano para prejudicar outros (Jr 9.4; Sl 49.6). O autor do

Salmo 49 e Jeremias utilizaram יקר (“preciosidade” e “honra”), atribuindo a esse substantivo o

sentido de riqueza (Jr 20.5; Sl 49.13,21).

Portanto, diante do quadro histórico de desenvolvimento da tradição de sabedoria e

das evidências linguísticas cumulativas, além do consenso sobre a datação da coleção dos

salmos de Corá,942

parece-nos adequado concluir que o balanço da probabilidade favorece a

redação do Salmo 49 no período final pré-exílico,943

quando a nação passava a experimentar

um novo momento de vassalagem à Babilônia, mas ainda não havia sido destruída por ela.944

Assim, o quadro de Jeremias 5.20-31; 7.5-6 e 22.11-17 parece corresponder à situação e às

mesmas preocupações do Salmo 49.

Assim como o profeta Jeremias se opunha aos profetas de sua época por praticarem

“a falsidade” (Jr 8.10) e profetizarem “o engano do seu íntimo”, o sábio levita que escreveu o

Salmo 49945 cultivava uma atitude diferente dos sábios do templo de sua época. Eles diziam

“Somos sábios, e a instrução [תורה] de YHWH está conosco” (Jr 8.8), mas, na verdade, “a

falsa pena dos escribas” “converteu em mentira” a tôrâ/instrução de YHWH (Jr 18.8). Em vez

942Ver análise da epígrafe do Salmo 49. 943DELL, 2004, p. 267, lembra que a discussão sobre as origens dos textos sapienciais no pré-exílio não pode ser

provada, mas pode ter “o balanço de probabilidade” a seu favor quando todos os elementos literários,

linguísticos, contexto social e teológico são avaliados. 944Depois da batalha de Carquemis, em que o exército babilônico infligiu uma completa derrota aos egípcios

(para o relato babilônico sobre a batalha de Carquemis, veja WISEMAN, 1956, p. 67-69, B.M. 21946.1-11),

impactando profundamente os moradores da Síria e de Canaã (cf. Jr 46.2-12.), e da ascensão de Nabucodonosor

ao trono (ambos os eventos ocorreram em 605 a.C.), o novo monarca invadiu a Síria-Palestina, subjugou a

cidade de Asquelom e conquistou o apoio de Jeoaquim (Eliaquim) de Judá, submetendo-o à vassalagem (2Rs

24.1) (PROVAN, Iain, A monarquia posterior: os reinos divididos, in: LONGMAN III; PROVAN; LONG, 2016,

p. 428-9). No entanto, os acontecimentos traumáticos viriam depois, nas duas deportações iniciais da população

judaica, em que os nobres e as pessoas da realeza foram exiladas (2Rs 24.14-15; 25.1-12; Jr 39.9-10). 945

Palavras do salmo como חכמה (“sabedoria”; cf. Pv 1.20; 9.1; 24.7), תבונה (“entendimento”; cf. Jó 12.12; 26.12;

Pv 5.1), משל (“provérbio”; cf. Pv 10.1; 25.1; Ec 12.9), חידה (“enigma”; cf. Pv 1.6; Sl 78.2) são característicos da

literatura de sabedoria do antigo Israel (ver as análises nos caps. 2 e 3 sobre as características sapienciais do

salmo; cf. GERSTENBERGER, 1988, Psalm 49 (edição kindle); BERRY, 1995, cap. 1 (edição kindle).

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de rejeitar a “Palavra de YHWH” como os escribas de sua época (Jr 18.9), ele inclina os seus

ouvidos (Sl 49.5) para transmitir a verdadeira “sabedoria” e o “entendimento” (49.4), que

ressaltam a inutilidade das riquezas à luz da realidade da morte (49.8-15,17-21) e subvertem

as perspectivas injustas da elite ímpia do antigo Israel.

3.3. A vox pauperis e o quadro de conflito socioeconômico

À medida que a Assíria entrava em declínio com a morte de Assurbanipal (c.a. 627

A.E.C), o rei Josias de Judá sentia-se livre para implantar seu programa de reforma religiosa

em Judá, opondo-se às práticas religiosas aos deuses estrangeiros, pronafando os altares em

locais ao norte de Judá e tentando uma expansão territorial (2Rs 23.4ss.).946

Certamente, ela

foi apoiada tanto pelo “livro da lei” (התורה encontrado no templo de (?Dt 12—25) (ספר

Jerusalém (2Rs 22.8-20) quanto pelo profeta Jeremias, que conclamou “Israel” (Jr 3.6) e

“Judá” (3.8) a adorarem a YHWH em Jerusalém: “Convertei-vos, ó filhos rebeldes, diz o

SENHOR; porque eu sou o vosso esposo e vos tomarei, um de cada cidade e dois de cada

família, e vos levarei a Sião” (Jr 3.14).947

A centralização do culto em Jerusalém narrada em 1Reis 23.8-20,27,948

sob o

governo de Josias, tem um paralelo estreito com a centralização do culto ordenada em

Deuteronômio 12.949

A celebração da Páscoa no lugar central de adoração, “escolhido por

Deus”, prescrito em Deuteronômio 16.1-8 corresponde à celebração promovida por Josias no

templo de Jerusalém (2Rs 23.21-23).

Infelizmente a reforma oficial de culto parece não ter impactado de forma

duradoura950

e profunda as práticas de justiça na sociedade, pois o profeta Jeremias denuncia

uma arrogante confiança do povo no templo (Jr 7.4,10-11) como justificativa para a prática da

opressão e de toda sorte de corrupção (7.5-6,9).951

Com a morte de Josias por Neco (2Rs 23.29-30), a deposição e aprisionamento de

Jeoacaz (2Rs 23.31-33) e a entronização de seu irmão Eliaquim, ou Jehoaquim, como rei

946KAEFER, 2015, p. 101-3; BARKER, 1999, p. 247-8; ORLINSKY, 1960, p. 94. 947BRIGHT, 2003, p. 402. 948GRANT, 1984, p. 140-1. 949

Gerhard von Rad observa que a teologia da singularidade do caráter de YHWH em Deuteronômio servia de

base para o estabelecimento de um lugar central para a sua adoração (Dt 12.2-7). Enquanto Baal se revelava em

qualquer lugar onde se havia experimentado um mistério da natureza, o culto a YHWH tinha sua característica

única e centralizadora, distinta da forma como se dava a adoração do deus da fertilidade cananeu (Gerhard VON

RAD, 2006, p. 222-223; Ver, também, GOLDINGAY, 1987, p. 150). 950

ORLINSKY, 1960, p. 95 951

BRIGHT, 2003, p. 402. É provável que Jeremias 7 reflita a sociedade da época imediatamente posterior a

Josias, no reinado de Jehoaquim, seu filho (cf. Jr 26.1ss.; FEINBERG, 1986, p. 426).

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títere pelos egípcios em 609 A.E.C. (23.34-35), Judá deixou de ser um reino independente e

voltou à vassalagem e ao pagamento de tributos (23.33-35), desta vez sob o poder dos

egípcios,952 cujo território é definido pelo historiador deuteronomista como “entre o ribeiro do

Egito e o rio Eufrates” (2Rs 24.7 — antes da conquista babilônica).953

Depois da batalha de Carquemis, em que o exército babilônico infligiu uma completa

derrota aos egípcios,954

impactando profundamente os moradores da Síria e de Canaã,955

e da

ascensão de Nabucodonosor ao trono (ambos os eventos ocorreram em 605 a.C.),956

o novo

monarca invadiu a Síria-Palestina, subjugou a cidade de Asquelom e conquistou o apoio de

Jehoaquim (Eliaquim) de Judá, submetendo-o à vassalagem (2Rs 24.1).957

Esta seria a

primeira de oito campanhas do imperador babilônico na região958

e o início da consolidação

de seu domínio sobre Jerusalém.

Infelizmente, Jehoaquim atuava com “mão de ferro” sobre o povo, cobrando tributos

do povo (2Rs 23.35) e construindo um belo palácio à custa da opressão das pessoas comuns e

mediante a prática da corrupção (Jr 22.13-17). O historiador deuteronomista descreve

Jehoaquim como um tirano monstruoso, cuja culpa diante de YHWH era irremediável: “por

causa do sangue inocente que ele derramou, com o qual encheu a cidade de Jerusalém; por

isso, o SENHOR não o quis perdoar” (ARA).959

A prática da injustiça degenerou-se por toda a sociedade de tal modo que as classes

socioeconômicas mais frágeis sofriam nas mãos de quem tinha melhor condição financeira (Jr

7.5-6).960

O período inicial do governo de Jehoaquim e a condição social de exploração dos

pobres pelos ricos parecem corresponder à descrição de Habacuque 1.2-4, quando a Babilônia

ainda não havia assumido o controle do Levante, mas estava prestes a fazê-lo:961

952KELLE, 2014, p. 379-80. 953

PROVAN, 2016, p. 428 954

Para o relato babilônico sobre a batalha de Carquemis, veja WISEMAN, 1956, p. 67-69, B.M. 21946.1-11. 955

Ver o testemunho do profeta Jeremias sobre os efeitos da vitória dos babilônios sobre o Egito em seu relato

poético em Jr 46.2-12. Essa batalha marcou a transferência de poder sobre o Levante do Egito para a Babilônia

(FEINBERG, 1986, p. 365). 956

O ataque babilônio bem-sucedido contra Carquemis ocorreu entre maio e junho de 605, e a coroação de

Nabucodonosor, em setembro do mesmo ano (ver LIPSCHITS, 2005, p. 37-8) 957

KELLE, 2014, p. 380; BRIGHT, 2003, p. 392-3; PROVAN, 2016. p. 428-9. 958PROVAN, 2016, p. 429, nota 112. 959

BARKER, 1999, p. 250. 960

Para a datação dessa profecia no período de Jehoaquim, ver os paralelos entre o sermão do cap. 7 e o cap. 26:

7.1,2 com 26.1,2; 7.12-15 com 26.6,9 (cf. FEINBERG, 1986, p. 426; ALLEN, 2008, p. 94-5, reconhece os

paralelos entre as duas seções e entende serem duas versões do mesmo sermão). 961

ROBERTSON, 1990, p. 34-5; BRIGHT, 2003, p. 400.

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Até quando, SENHOR, clamarei eu, e tu não me escutarás? Gritar-te-ei: Violência! E

não salvarás? Por que me mostras a iniquidade e me fazes ver a opressão? Pois a

destruição e a violência estão diante de mim; há contendas, e o litígio se suscita. Por

esta causa, a lei se afrouxa, e a justiça nunca se manifesta, porque o perverso cerca o

justo, a justiça é torcida.962

Nesse contexto de grave conflito social e perpetuação de injustiças, o autor do Salmo

49 produz sua poesia como crítica àqueles que achavam ter poder perpétuo. Ao contrário da

proposta de Albertz,963

o salmista não representa a vox divitis,964 mas sim, a vox pauperis.965

Ele expõe um mundo socioeconômico polarizado entre o “pobre” (אביון) e o “rico” (עשיר),

identificando-se com a situação do primeiro.

A visão que apresenta sobre os ricos reforça essa natureza dualista de classes

econômicas e exploração da época. Em momento algum o salmista indica uma perspectiva

positiva sobre os ricos, a não ser a possibilidade de ouvirem seu discurso (Sl 49.2,3). Ao

contrário do conceito de “ricos piedosos”,966

as pessoas abastadas de sua época são descritas

como “os que confiam em suas posses” (49.7a) e vistas como inimigas do salmista, pois o

“atacam por trás” (49.6b). O proceder desses ricos estava repleto de “maldade” (עון)967

contra

o próximo (49.6b), talvez roubando o pobre por meio da exploração de trabalho escravo ou

buscando o favoritismo de governantes à custa do marginalizado (uso de עון em Os 7.1-3; Ez

9.9). É possível também que estivessem deixando de “amparar” o “pobre” (אביון) em suas

necessidades (uso de עון em Ez 16.49).

Ao usar os verbos “confiar” (בטח) e “gloriar-se” (הלל), que estão relacionados à

adoração a YHWH (Sl 22.4,5[5,6]; 34.2[3]) ou aos ídolos (97.7) no livro de Salmos, para falar

da relação dos ricos com as “suas posses” ou com a “abundância de seus bens” (Sl 49.7), o

salmista indica um problema básico de adoração e idolatria na sociedade em que vive.968

Não

há menção a adoração aos deuses das nações, mas existe a denúncia de que “Mamom” está

sendo o foco de devoção do establishment da nação. Um materialismo desenfreado tomou

conta dessa gente e isso não representa algo positivo para os desfavorecidos. Pois à medida

962

Tradução da ARA. 963

ALBERTZ, 1999, p. 667-76; SPANGENBERG, 1997, p. 338-9. 964

“Voz do rico” 965

“Voz do pobre”. 966

Ver essa ideia em SIQUEIRA, Salmo 49 (no prelo). 967

O vocábulo עון é geralmente usado para ser referir tanto ao delito quanto à culpa e à punição que advêm do

delito praticado. Portanto, esses ricos que “atacam por trás” o salmista são culpáveis e dignos de punição

(KNIERIM, R., עון, in: JENNI; WESTERMANN, 1997, p. 863-4). 968

GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição kindle): “O verdadeiro risco em sua atitude [dos ricos] está implicado

nos verbos do salmo. Ele fala de sua confiança e exultação (louvor). Esses são verbos que merecem ter Yhwh

como seu objeto (e.g., 22.4,5[5,6]; 34.2[3]), mas aqui seus objetos são os recursos e a riqueza.”

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que os abastados da comunidade do salmista alcançam mais riquezas (עשר)969

e suas casas

manifestam uma prosperidade ainda maior (49.17),970 os pobres são tomados de temor (ירא),

por isso, a necessidade da exortação: “Não temas” (49.17a).

É possível ver aqui uma conexão com a situação de terrível opressão descrita em

Jeremias 5.26,27, em que a mesma raiz verbal עשר (“alcançar riquezas”, “enriquecer”) e o

mesmo susbtantivo בית (“casa”) de Salmo 49.17 são usados em referência a pessoas

“perversas” (רשעים) que “se enriqueceram” (ויעשירו) e aumentaram os bens de “suas casas”

( םבתיה ) à custa de outros, fazendo dos homens vítimas de suas maldades como pássaros

perseguidos por um caçador.

A ampliação egoísta de latifúndios está retratada pela aquisição desmedida de terras

O versículo 12 descreve a atividade poderosa dos ricos como se fossem .(Sl 49.12) (אדמות)

reis que “aclamam seus nomes sobre as terras”971

(2Sm 12.26ss.). “A expressão שם קרא

(“aclamar o nome”) designa um ato jurídico por meio do qual ocorre uma transmissão de

domínio”.972 O plural de intensidade dos dois termos paralelos בתימו (“suas casas”) e משכנתם

(“suas habitações”) (v. 12)973

enfatiza a rica condição dos “insensatos” e “brutos”, adquirindo

cada vez mais bens, ferindo a ideia sagrada no Deuteronômio da “herança” como posse

inalienável de cada família na terra de Israel (transmitida a cada geração – Dt 19.14) e como

porção prometida e dada por YHWH nessa terra de Israel (cf. Gn 15.7-8, 18-21).

Em uma nação com alta densidade demográfica devido à política de expansão e

centralização de Josias, o que sobraria para o “pobre” (אביון), se o rico havia tomado as terras

para cultivar e as casas em que poderia morar? Essa ampliação dos latinfúndios da elite

econômica na Judá da época do Salmo 49 reflete uma condição semelhante àquela anterior de

Isaías 5.8: “Ai dos que ajuntam casa a casa, reúnem campo a campo, até que não haja mais

lugar, e ficam como únicos moradores no meio da terra!” (ARA).

Certamente o autor do salmo não fazia parte da classe socioeconômica alta, pois,

assim como os desfavorecidos de Salmo 49.17 poderiam sentir-se tentados a temer (ירא) a

969

O sentido básico do verbo עשר no grau hifil é “alcançar riqueza”, “tornar-se rico”, “enriquecer”. (KIRST et al.,

2004, p. 189; GESENIUS, 2003, p. 660). 970

Para o uso de כבוד com o sentido de riqueza ou prosperidade, ver DAHOOD, 1965, p. 302; BROWN;

DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 458; RAABE, 1990, p. 78; BRIGGS, 1906, p. 411-12. 971

יאדמות קראובשמותםעל972

KRAUS, 1993, p. 737. 973

GESENIUS; KAUTZSCH; COWLEY, 1910, p. 397-8, §124.e; GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição

kindle).

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ampliação de poder econômico dos donos das terras, o salmista enfrenta esse dilema e

pergunta: “Por que temerei [ירא] [...] a maldade dos que [...] confiam em suas riquezas”.974

Além disso, os que deixam “suas posses” ( םחיל ) para outros ao morrer não são os

“sábios”, grupo com o qual o salmista se identifica pelas carcaterísticas linguísticas e literárias

de seu texto,975 mas o “insensato” e o “bruto” (Sl 49.11).976

Conforme observado

anteriormente, é significativa a repetição de חילם (“suas posses”) em Salmo 49.11c, pois, essa

construção foi usada para designar “os que confiam em suas posses [חילם]” em 49.7. O uso do

mesmo termo acompanhado do mesmo sufixo pronominal possessivo é, muito provavelmente,

estratégia retórica do autor para designar “os que confiam em suas posses” como

“insensato[s]” e “bruto[s]” — indivíduos sem uma vida moral correta (כסיל) ou sem uma

forma de agir sensata e lúcida (בער).

A observação de Erhard Gestenberger em seu comentário parece corroborar a tese de

autoria e ambiente do Salmo 49 que tem sido proposto aqui:

Os teólogos do Antigo Testamento estavam conscientes das distinções de classes e

distinções de interesses dentro da própria Israel. O inimigo e o mal não deveriam ser

simplesmente identificados fora do povo escolhido. Os salmistas muitas vezes

elaboraram severos vereditos contra os opressores dentro de seu próprio grupo

étnico (1Sm 2.3-8; Sl 10).

[...] À medida que a religião popular declinou sob a pressão das tendências

centralizadoras, aqueles de posições mais baixas nas hierarquias profética e

sacerdotal assumiram as responsabilidades de aconselhar pessoas e grupos em

angústia. Essa função explicaria a profunda empatia com os necessitados percebida

em muitos salmos e em sua teologia de compaixão.977

Portanto, à luz da análise do conteúdo e das observações anteriores sobre os salmos

dos filhos de Corá e sobre a relação da escola de escribas com o templo, pode-se concluir que

974

WEISER, 1994, p. 286: “A maneira como o poeta fala da questão que o preocupa deixa claro que não se trata

de um problema que se resolva no âmbito do pensamento teório. O problema nasceu-lhe da sua própria vida e a

resposta que dá está totalmente voltada para a vida prática [...] A pergunta ‘por que vou temer os dias maus,

quando a maldade me persegue e envolve?’ [...] deixa transparecer os sentimentos que o poeta venceu em si

mesmo contra as adversidades que seus ricos inimigos lhe preparavam: o medo e a inveja. Medo do oprimido do

poder humano e a inveja [...] que a riqueza dos outros provoca dolorosamente em face da própria penúria...”. Ver

também BORTOLINI, 2000, p. 206-8; BORTOLINI, 2002, p. 245-6. 975Ver a análise sobre esse tema na subseção 2.3.1 desta dissertação. 976

Keil e Delitzsch entendem que “certamente não é a intenção do poeta” ter os sábios como “sujeito” do último

verseto, que “deixam [...] suas posses” (KEIL; DELITZSCH, 1996, v. 5, p. 351). Paul Raabe também destaca

que o “sujeito do verbo e o antecedente do sufixo pronominal são o ‘insensato e o bruto’ do versículo 11b, pois o

foco está na riqueza” (RAABE, 1990, p. 73.). 977GERSTENBERGER, 1988, cap. 1.2 (edição kindle). Craigie se aproxima de algumas ideias expressas nessa

observação de Gerstenberger, ao sugerir a possibilidade de que o salmo tenha surgido em contexto semelhante ao

do aconselhamento de nossos dias. Uma pessoa com o dilema moral/intelectual se aproximou do representante

da tradição de sabedoria em busca de uma solução. O salmo seria uma resposta (recitada ou cantada) em que

apresenta o contexto adequado para lidar com o dilema das riquezas e da morte (CRAIGIE, 1983, p. 358).

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o autor do Salmo 49 é um levita pobre978

e de baixa posição na hierarquia dos funcionários do

templo, que se opõe ao abuso socioeconômico praticado por aqueles que tinham melhores

condições financeiras, fossem sacerdotes de alta posição, fossem reis e príncipes, fossem os

ricos proprietários de terras.

978BORTOLINI, 2002, p. 245-6; BORTOLINI, 2000, p. 207: “O salmista é pobre e não tem medo de mexer com

os nobres e ricos, que o cercam e o espreitam”.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao final desta pesquisa, é possível vislumbrar de forma mais nítida a situação de vida

do autor do Salmo 49, quais eram seus dilemas, bem como as preocupações daqueles a quem

ele representava. Sua mensagem não foi comunicada em um vácuo histórico, mas em uma

condição repleta de cores e nuances que justificam sua mensagem profética e sapiencial.

No primeiro capítulo, buscou-se responder à pergunta sobre a condição do texto do

Salmo 49, que envolveu a análise de testemunhas textuais divergentes e convergentes com o

TM. Observou-se que o salmo está repleto de problemas textuais (mais de quarenta), porém,

em geral, o TM preserva um texto bem próximo daquele produzido pelo salmista, muitas

vezes apoiado pela Vulgata Latina, às vezes dicordando da LXX e, em várias instâncias,

distinto da Héxapla de Orígenes. Algumas variantes textuais originaram-se de erros

involuntários dos copistas, mas grande parte delas ocorreu por tentativas de tornar o texto

mais claro em trechos do hebraico aparentemente truncados ou confusos.

Em seguida, analisou-se a Gattung do salmo e observaram-se diversos aspectos

literários (o chamado inicial do mestre; a poesia dirigida a homens, não a YHWH) e de

conteúdo (termos sapienciais e a questão da teodicéia) que indicam claramente ser ele um

texto sapiencial, produzido por um antigo sábio de Israel.

Ainda no capítulo 1, estudou-se a estrutura e coesão do salmo. Constatou-se uma

estrutura quiasmática bastante clara e bem planejada, em que há uma sequência de pergunta e

resposta associadas com o aumento da riqueza dos ímpios e a realidade da morte para todos.

Além disso, destacou-se a presença de palavras-chaves ligadas aos campos semânticos da

economia, sabedoria e da morte. Diversas palavras se repetem no Salmo 49 e são usadas às

vezes de forma irônica para demonstrar exatamente o oposto daquilo que o rico ímpio

esperava: não a tão sonhada vida eterna, mas a morte firme e inflexível.

No segundo capítulo, a análise do conteúdo concentrou-se nos elementos

semânticos e sintáticos do Salmo 49, sem deixar de observar aspectos literários, como os

diversos tipos de parallelismus membrorum. O exame do conteúdo revelou alguns aspectos

predominantes sobre a identidade do salmista e sua mensagem: ele era um sábio do antigo

Israel ligado ao templo por sua relação com os coraítas; estava de certa forma associado à

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tradição profética na crítica severa às injustiças sociais; e foi assertivo em declarar que o

homem é incapaz de livrar-se da morte.

O conteúdo do Salmo 49 afirma que somente YHWH pode redimir um ser humano

do poder do Sheol. Os ímpios são entregues à própria sorte e, no fim de suas vidas, são

pastoreados pela Morte (Sl 49.13-15,17-20). Aqui, há certa conexão com o Salmo 1. Assim

como o insensato e o bruto “são destruídos” (יאבדו) em Salmo 49.11, em Salmo 1.6 afirma-se

que o “caminho dos perversos será destruído (תאבד)”. Há nesses dois textos ausência da “ação

de Deus” em relação aos ímpios, que são entregues à autodissolução.979

O rico malvado e

criticado no Salmo 49, em sua arrogância e estupidez (“não tem entendimento” [Sl 49.21]), se

assemelha “aos animais que perecem”.

Em contrapartida, o salmista tem a certeza do cuidado de YHWH em seu favor,

redimindo-o da morte prematura e violenta que os seus opositores lhe intentam causar: “Mas

Deus redimirá minha vida do poder do Sheol!” (Sl 49.16). Constatou-se que não há uma

perspectiva clara sobre a post mortem no salmo, apenas a visão de que YHWH é fiel à sua

aliança, preservando a vida daqueles que o temem. O cuidado de Deus não se manifesta no

além-túmulo, mas na redenção das tribulações e humilhações que os ímpios intentam contra o

justo, as quais são uma antecipação do Sheol (ver análise do conteúdo de Sl 49.16; cf. o uso

de פדה em Sl 25.22; Sl 34.23[22]; cf. o uso de לקח em 18.17,18[16,17] com a ideia de

libertação da ameaça de morte temporária e iminente: “Do alto me estendeu ele a mão e me

tomou [יקחני] [...] livrou-me de forte inimigo [...] pois eram mais fortes do que eu”).980

Por fim, o terceiro capítulo analisou a possibilidade de um contexto pré-exílico para

o Salmo 49, distinto daquele pressuposto pelo “consenso” desde que Mowinckel escreveu sua

tese sobre a “salmografia erudita”. Após um exame detalhado, concluiu-se que não é possível

assumir com segurança um contexto pós-exílico para a produção do texto bíblico em análise,

visto que as razões comumente apresentadas para ele, como os conflitos sociais e a relação da

sabedoria com outros movimentos no antigo Israel, já existiam no período pré-exílico.

Em seguida, procurou-se demonstrar, por um exame do desenvolvimento de escolas

escribais desde o período de Ezequias até o período final da monarquia em Israel, que o

salmista em foco nesta pesquisa poderia ser muito bem um sábio do templo, que conjugou sua

sabedoria com o culto. Por meio de uma análise de aspectos linguísticos e de paralelos com

979GRENZER, 2013, p. 22. 980

GOULDER, 1982, p. 191-2.

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textos do profeta Jeremias, bem como pela semelhança com o contexto social de profundas

distinções socioeconômicas do profeta, esta pesquisa postulou um contexto no período de

Jehoaquim como o provável ambiente em que o Salmo 49 teria sido escrito.

Um levita pobre e sábio, preocupado com as questões do povo a quem ministrava,

provavelmente escreveu esse salmo para alertar os ricos ímpios de que suas riquezas eram

vazias, pois “um ser humano em esplendor” que “não entende” logo passa e se assemelha

“aos animais que perecem”.

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