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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO Entre Jesus e Barrabás: realidade, expectativas e a escolha da multidão em Marcos 15,6-15 por Ruthe Ventura Cuesta São Bernardo do Campo 2009

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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO

FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

Entre Jesus e Barrabás: realidade, expectativas e a

escolha da multidão em Marcos 15,6-15

por

Ruthe Ventura Cuesta

São Bernardo do Campo

2009

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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO

FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

Entre Jesus e Barrabás: realidade, expectativas e a

escolha da multidão em Marcos 15,6-15

por

Ruthe Ventura Cuesta

Orientador: Dr. Archibald Mulford Woodruff

Dissertação apresentada em cumprimento parcial às exigências do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, para obtenção do grau de Mestre.

São Bernardo do Campo

2009

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FICHA CATALOGRÁFICA

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BANCA EXAMINADORA

Presidente

1º Examinador

2º Examinador

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Aos meus pais, Ana e Carlos (in memoriam), por construírem as bases

para eu ser quem sou...

Ao Juan, à Joana e ao Arthur, e às demais (muitas) crianças de minha

vida, por me fazerem desejar ser melhor, e por me mostrarem que

isso é possível...

Ao mais do que professor Archibald, por não desistir de acreditar (às

vezes mais do que eu mesma), que entre esses tempos, no hoje,

existe alguém “suficientemente bom”...

Com meu carinho.

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AGRADECIMENTOS

Seria impossível agradecer a todas as pessoas que direta ou

indiretamente colaboraram para a elaboração deste trabalho, uma vez que

este é fruto da vivência cotidiana e do relacionamento com cada pessoa que

fez ou faz parte de minha vida. Por isso, gostaria de agradecer às muitas

pessoas que não serão nominalmente citadas, mas que fazem parte da

construção deste trabalho.

Contudo, alguns agradecimentos especiais são necessários:

Ao Prof. Dr. Archibald Mulford Woodruff, meu orientador e amigo, pelo

incentivo, dedicação, carinho e paciência trilhando esse caminho... Acima de

tudo por ser exemplo de pessoa e de cristão que nos incentiva a caminhar...

Aos professores do Programa de Pós Graduação em Ciências da

Religião da Universidade Metodista de São Paulo, especialmente aos

professores Dr. Paulo Augusto de Souza Nogueira, Dr. Paulo Roberto Garcia e

Dr. Jung Mo Sung, pelo conhecimento compartilhado...

À Igreja Presbiteriana Independente do Brasil, especialmente ao

Presbitério São Paulo, do qual tenho a alegria de fazer parte, pelo apoio desde

os primeiros passos...

Ao Seminário Teológico de São Paulo, todos os professores e

funcionários, especialmente aos reverendos Paulo Sérgio de Proença, Marcos

Paulo Monteiro da Cruz Bailão e Gérson Correa de Lacerda, que fazem com

que esse lugar continue sendo quase um lar...

Aos colegas e amigos da Agência Afonso Sardinha da Caixa Econômica

Federal, especialmente ao gerente de relacionamento Enio Fusco Pavan e ao

gerente geral da unidade, Cezar Arruda de Oliveira, pela compreensão e

apoio...

Ainda da Caixa Econômica, aos colegas da GILIE SP e aos gestores

Olivio Zanovello Junior, (Gerente de Serviço) e Eunice Martins Araújo

(Gerente de Filial), por terem me recebido (muito bem) num momento em

que minha atenção estava tomada por este trabalho...

Aos queridos amigos: Isabel e Luiz, Carla Macedo, Viviane Gaino

Vieira, Ricardo de Oliveira e Tati, pelo carinho sempre...

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À “família Gimenes”, que me recebeu com todo carinho desde o

começo, com destaque especial às tias Elza e Mara...

À Rosa Gimenes, minha sogra, verdadeiramente uma “Noemi”, pelo

apoio, atenção, pelas muitas e constantes orações que demonstram seu

amor...

À minha mãe Ana, minha irmã Raquel e à Joana, por simplesmente

existirem em minha vida e me apoiarem, mesmo sem entender...

Ao Renato, meu marido e amor da minha vida, minha melhor escolha,

pela constante demonstração de amor e disposição de construir a vida...

Àquele a quem as palavras não são necessárias, que conhece

profundamente o meu coração e sabe o quanto esse momento é importante...

Nenhum agradecimento seria suficiente...

O meu carinho, a minha gratidão, o meu desejo de que eu possa

aprender a ser para vocês um pouco de tudo o que representam pra mim!

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A realização deste trabalho não seria possível sem o apoio das

seguintes instituições: IEPG, com concessão de Bolsa De Estudos

Parcial de 02/2007 a 01/2008 e Capes, com concessão de Bolsa

Flexibilizada de 02/2008 a 02/2009.

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CUESTA, Ruthe Ventura, Entre Jesus e Barrabás: realidade,

expectativas e a decisão da multidão em Marcos 15,6-15,

Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo,

julho de 2009, 154p.

SINOPSE

O trabalho a seguir visa apresentar um estudo da palavra

“multidão” no Evangelho de Marcos, considerando-a como personagem

importante na estrutura literária concebida pelo autor, destacando

especialmente sua atuação na cena da apresentação de Jesus diante

de Pilatos em que é dada a ela – a multidão – a oportunidade de

escolher pela libertação de Jesus ou de Barrabás.

O texto em referência será estudado levando-se em conta o

contexto de dominação romana em que estava inserido, como

composição literária que reproduz a estrutura dos munera (combate

ente gladiadores), fenômeno característico da civilização romana e

símbolo de sua dominação, fazendo com que o escrito de Marcos seja

uma paródia que visa esclarecer seu público acerca de sua própria

situação.

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CUESTA, Ruthe Ventura, Between Jesus and Barabbas: reality,

expectations and the decision of the crowd in Mark 15: 6-15,

Methodist University of São Paulo, São Bernardo do Campo,

july 2009, 154p.

ABSTRACT

The following work aims to present a study on the word “crowd”

in the Mark’s book, considering it is an important character on the

literary structure conceived by the author, highlighting specially its

performance on the scene of the presentation of Jesus before Pilate in

which is given it – the crowd – the opportunity to choose the freedom

of either Jesus or Barabbas.

The referred text will be studied taking into consideration the

context of roman overrule in which it was put in , as a literary

composition that reproduces the structure of munera (a battle between

gladiators), featured phenomenon of the roman civilization and symbol

of their domination, making the writing of Mark to be a mockery which

intends to enlighten its public concerning its own situation.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 13

1º CAPÍTULO O EVANGELHO DE MARCOS: SEU MUNDO E SUAS PESSOAS

1.1. O Evangelho e seu mundo 19

1.1.1. Considerações sobre o domínio romano: a paz e a desordem 24

1.1.2. O produto da dominação: os miseráveis da Palestina 27

1.1.3. Dominação ideológica: multidões de marginalizados 31

1.1.4. Sintomas da revolta e anúncios da destruição: o contexto de

guerra 35

1.2. O Evangelho e as pessoas 42

1.2.1. o;cloj: mais que uma palavra 42

1.2.2. Quem é o;cloj no evangelho de Marcos? 46

1.2.3. A multidão e os discípulos em Marcos 52

1.2.4. O Jesus de Marcos e o;cloj: um relacionamento paradoxal 55

2º CAPÍTULO O IMPÉRIO ROMANO DIRIGINDO O MUNDO

2.1. O mundo dos dominadores 59

2.1.1. Um mundo romano: processos de expansão e dominação 65

2.1.2. Reorganização do espaço como tática de dominação 70 2.1.3. Princeps, Patrono e Imperador 73

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2.2. O fenômeno dos munera 78

2.2.1. Além do sangue: princípios e valores nos munera 81 2.2.2. Os munera e o exercício de poder 85 2.2.3. Apresentando os munera: na arena 88

2.3. Considerações acerca da plebe romana 91

3º CAPÍTULO

O TEXTO DE MARCOS: REALIDADES E REPRESENTAÇÕES

3.1. Um pouco sobre o texto 97 3.1.1. Unindo o texto e o contexto 98 3.1.2. O texto de Marcos 100 3.1.3. O texto como realidade: historicidade ou plausibilidade? 105 3.1.4. Uma realidade por trás do texto 110

3.2. Os personagens da cena de Marcos 112 3.2.1. Sacerdotes, escribas, anciãos: a nata da sociedade 112 3.2.2. O representante do imperador: Pilatos 116 3.2.3. Barrabás, um gladiador 120 3.2.4. A última cena da multidão 123

3.3. A cena montada: um munera 127 3.3.1. Colocando os personagens na arena 127 3.3.2. A arena e o duelo de ideologias 129

CONCLUSÃO 133 BIBLIOGRAFIA 139

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INTRODUÇÃO

Começando Uma Conversa

1. Um galo sozinho não tece uma manhã:

ele precisará sempre de outros galos.

De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro; de um outro galo

que apanhe o grito de um galo antes e o lance a outro; e de outros galos

que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo,

para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos.

2.

E se encorpando em tela, entre todos, se erguendo tenda, onde entrem todos, se entretendendo para todos, no toldo

(a manhã) que plana livre de armação.

A manhã, toldo de um tecido tão aéreo que, tecido, se eleva por si: luz balão.

Tecendo a Manhã

João Cabral de Melo Neto

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A complexidade nos assusta: A complexidade da vida, a

complexidade do mundo, a complexidade das coisas que consideramos

mais simples sem perceber que são, muitas vezes, as mais

importantes. Assusta-nos, mas nos fascina!

Assim é o Evangelho de Marcos: aparentemente simples, mas

profundamente complexo; assustador, mas fascinante. Saber que já

foi e ainda é fonte de inúmeras pesquisas, que foi motivo de tantas

discussões e que ainda hoje não existem conclusões passivas a seu

respeito, perceber que é um marco no sentido de representar a

primeira história narrativa de Jesus, e aquilo que poderíamos chamar

de “primeira busca do Jesus histórico”, perceber o quão engajado seu

autor estava em sua realidade e em seu contexto, a ponto de desejar

tornar a pessoa de Jesus presente e real para as pessoas concretas de

sua realidade... Tudo isso nos faz perceber a grandiosidade desse livro

e o tamanho da responsabilidade que assumimos ao estudá-lo.

Percebemos também que este é um livro que nos abre muitas

possibilidades, e que é preciso fazer escolhas. Escolhemos, pois,

estudar o texto do Evangelho de Marcos a partir da análise de um

termo que pode ser considerado fundamental à estrutura da narrativa:

o;cloj, a “multidão” que participa constantemente da vida e ministério

de Jesus desde a Galiléia até sua condenação e morte. Ao mesmo

tempo, estudamos o texto concernente ao julgamento de Jesus

perante o governador romano, Pôncio Pilatos, capítulo 15 versos 6 a

15 do referido Evangelho, tentando verificar qual o papel da também

referida multidão nesse episódio, uma vez que parece haver uma

contradição entre o relacionamento da multidão com Jesus ao longo da

narrativa, e a posição da mesma pedindo a condenação e crucificação

de Jesus, no texto estudado.

Com essa intenção em mente, o estudo do texto de Marcos

15,6-15 mostrou-nos um outro caminho, uma outra perspectiva a ser

observada: sua estrutura, a montagem da cena do texto e a disposição

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e ação dos personagens na cena poderiam ser comparadas com a

estrutura, a posição e especialmente os significados dos munera, os

combates de gladiadores, fenômeno característico da Roma antiga,

símbolo dessa civilização que, à época da vida de Jesus e da

escrituração do Evangelho de Marcos (épocas distintas), dominava a

Palestina e começava a se constituir como um Império.

Verificar o papel e ação da multidão nesse texto, considerando

essa possibilidade de estruturação, demandou trilhar um caminho de

pesquisa “interdisciplinar”, que apresentamos a seguir.

Em primeiro lugar, foi preciso contextualizar o Evangelho de

Marcos, tentar perceber as particularidades e complexidades de seu

mundo e de seus destinatários. Dessa forma, no Primeiro Capítulo,

traçamos algumas considerações sobre o contexto de dominação

romana em que a Palestina de Marcos vivia, especialmente no período

da Guerra Judaica (entre 66 e 70 d.C), período em que datamos o

texto de Marcos, demonstrando os aspectos dessa dominação sob o

ponto de vista da população mais empobrecida: a perda das

propriedades, o endividamento cada vez maior devido à exploração e

aos impostos, a crescente marginalização e segmentação da sociedade

que gerava sentimentos de revolta ou alienação. Ao mesmo tempo,

salientamos a também presente opressão ideológica/religiosa, que

também fomentava marginalização e descontentamento. Nesse

contexto, procuramos salientar as expectativas das pessoas que

viviam sob essas circunstâncias, expectativas que as fazia seguir

líderes carismáticos que se oferecessem com propostas que pudessem

dar algum tipo de esperança.

Inserindo o Evangelho de Marcos nesse contexto, na segunda

parte do capítulo, apresentamos a palavra que estudamos,

o;cloj/multidão como personagem importante deste Evangelho,

representativa desse grupo de pessoas cujas expectativas repousam

sobre Jesus. Verificamos tratar-se de palavra com forte significação e

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sentido agregado, usada de forma consciente pelo evangelista para

representar um tipo de relacionamento das pessoas não apenas com

Jesus, mas com as demais pessoas – uma forma de inserção no

mundo. Procuramos destacar, nesta parte do trabalho, que o termo

o;cloj não é um conceito fechado, mas tem significação relacional: ser

o;cloj não significa pertencer a uma classe social específica, não pode

ser entendida simplesmente como “pobres”, mas representa um

posicionamento diante do mundo que, de acordo com o Evangelho de

Marcos, pode ser transformado.

O Capítulo Dois introduzirá alguns aspectos acerca do Império

Romano – o ponto de vista do dominador. Apresentamos, nesse

capítulo, algumas considerações sobre o tipo de conquista e de

dominação empreendidos pelo Império nascente, bem como algumas

formas que o mesmo usou para estabelecer e manter seu domínio.

Destacamos, nesse sentido, alguns elementos dessa dominação que

consideramos relevantes para a Palestina e para o contexto do

Evangelho de Marcos, como a questão da resignificação do espaço

(como demonstração do poder imperial e ao mesmo tempo como

instrumento de expansão/inserção cultural); o sistema do Patronato,

que regia as relações entre as províncias e o Império, e,

especialmente, o fenômeno dos munera. A segunda parte do capítulo é

dedicada a esse fenômeno, que é apresentado como símbolo da

civilização romana, e como um forte instrumento na difusão da cultura

romana e transmissão dos valores dessa sociedade, além de funcionar

como um mecanismo de coerção e controle social, tanto por

apresentar uma visão da superioridade romana e do destino dos

adversários de Roma, como por representar uma forma de participação

popular que pode ser considerada como um “paliativo” diante da

verdadeira falta de poder de decisão das pessoas comuns.

O Capítulo Três apresentará uma análise do texto escolhido

(Marcos 15,6-15), à luz dos capítulos anteriores, e procurará

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demonstrar a relação entre os elementos desses capítulos através da

análise da estrutura do texto. Apresentaremos um estudo do texto a

partir do texto grego, salientando alguns aspectos do mesmo que

consideramos relevantes para a leitura política que empreendemos,

procurando verificar a intenção do autor na estruturação de alguns

detalhes do texto, na relação desse texto com outras partes do

Evangelho, a fim de demonstrar que o texto de Marcos é um relato

coerentemente arquitetado em que se encontram vários elementos

representativos do Império Romano.

Nesse capítulo empreenderemos também uma comparação ente

Marcos 15,6-15 e o fenômeno dos munera apresentado no capítulo

anterior, com o objetivo de demonstrar tratar-se de uma paródia em

que o autor desejou esclarecer para seu público os valores do Império

(que já faziam parte da visão de mundo também da população

dominada da Palestina) e subvertê-los através do exemplo de Jesus.

Nessa comparação, procuraremos destacar o papel da multidão, tão

significativo neste texto.

Concluímos apresentando nossa visão acerca de o;cloj com a

esperança de que se aproxime o tanto quanto possível da visão e

compreensão que Marcos desejava fomentar: pessoas reais e

humanas, nem totalmente boas nem completamente más, que

apresentam expectativas de acordo com seus modelos e visão de

mundo, e que em todo o Evangelho encontram oportunidades e

possibilidades de transformação desses conceitos a partir de seu

relacionamento com Jesus, mas nem sempre atendem a isso.

Um fator que procuramos salientar durante todo o trabalho é a

necessidade de compreendermos a complexidade de cada elemento

apresentado. Tanto no que se refere ao Evangelho de Marcos e seu

contexto e ao uso que faz da palavra o;cloj, como no que se refere ao

mundo romano e aos munera, ou mesmo em relação à estrutura do

texto estudado, é imprescindível que compreendamos que há vários

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elementos envolvidos, entrelaçados, relacionando-se e formando cada

realidade.

Não pretendemos apresentar um trabalho neutro. Cremos que

essa tentativa seria ilusória e que tal ideia acerca da exegese (Bíblica

ou não) já está felizmente ultrapassada. Apresentamos um texto que

tem uma base, um chão concreto e real, como foi também o

Evangelho de Marcos. E o apresentamos como mais um passo nessa

grande caminhada com o texto, sem a pretensão de haver chegado,

mas com o desejo de nos juntar aos outros caminhantes, que já

vieram e que nos ajudaram a chegar aqui, e aos que ainda virão.

Para que a manhã se eleve!

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1º Capítulo

O EVANGELHO DE MARCOS: SEU MUNDO E SUAS PESSOAS

Somos muitos Severinos Iguais em tudo na vida:

Na mesma cabeça grande Que a custo é que se equilibra,

No mesmo ventre crescido Sobre as mesmas pernas finas

E iguais também porque o sangue Que usamos tem pouca tinta.

E se somos Severinos

Iguais em tudo na vida, Morremos de morte igual,

Mesma morte Severina: Que é morte de que se morre

De velhice antes dos trinta, De emboscada antes dos vinte

De fome um pouco por dia

João Cabral de Melo Neto

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1.1. O EVANGELHO E SEU MUNDO

Uma grande novidade. Essa é a forma como podemos considerar

o Evangelho de Marcos. Novidade na forma literária, no conteúdo e até

mesmo no fato de ser um documento escrito. Essas “novidades”

percebidas não podem ser ignoradas, se pretendemos apresentar

“mais um” trabalho sobre este Evangelho, que já foi e ainda é objeto

de tantos estudos e discussões.

Falamos em novidade literária porque o Evangelho de Marcos

apresenta um tipo de escrito até então desconhecido, algo novo,

embora formado e elaborado com elementos de diversos gêneros

literários correntes em sua época, sem entretanto poder ser

considerado como qualquer destes gêneros.1 Podemos pensar nesse

Evangelho como fruto de um “desenvolvimento redacional” que traz

elementos literários e conteúdos anteriores elaborados de forma

própria. O resultado dessa elaboração é o que chamamos de

“novidade”, e nessa articulação de elementos podemos perceber a

ousadia e genialidade do autor.

O escrito de Marcos, além disso, pode ser considerado como

uma novidade teológica. É o primeiro relato narrativo da pessoa e da

vida de Jesus, e esse é um ponto importantíssimo, não apenas porque

se refere à demonstração de um desenvolvimento acerca dos relatos

sobre Jesus, mas também porque esse fato tem muito a dizer a

respeito do contexto e do objetivo do autor, como veremos a seguir.

Ao tratarmos o Evangelho de Marcos dessa forma, como uma

novidade literária e teológica, estamos aceitando a teoria não apenas

1 Para uma visão mais detalhada acerca das diversas formas literárias que compõem

os Evangelhos, ver Klaus Berger, As Formas Literárias do Novo Testamento, São Paulo: Loyola, 1998, p.100. Com relação especificamente ao Evangelho de Marcos, ver Xabier Pikaza, Para Viver El Evangelio – Lectura de Marcos Estella (Navarra): Editorial Verbo Divino, 1997, p.9-22 e Ched Myers, O Evangelho de Marcos, São Paulo: Paulinas, 1992, p.43-65.

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de que Marcos foi o primeiro dos Evangelhos a ser escrito, mas

também a de que serviu de fonte para os demais Evangelhos

Sinóticos. Essa teoria apóia-se na “Teoria das Duas Fontes”, segundo a

qual, além do Evangelho de Marcos, os evangelistas Mateus e Lucas

dispuseram de uma outra fonte sobre Jesus, chamada de “fonte Q” –

que não era uma fonte narrativa, mas uma coleção de histórias e ditos

de Jesus. Dessa forma, Marcos, como primeiro Evangelho, seria um

avanço na história literária do cristianismo por apresentar pela

primeira vez uma narrativa – uma organização contextualizada do

material acerca de Jesus e sua história. O Evangelho de Marcos é uma

narrativa estruturada, e nele os atos e palavras de Jesus situam-se

histórica e socialmente, tornam-se concretos, fazendo com que a

própria pessoa de Jesus torne-se mais concreta para seus

ouvintes/leitores2.

Dessa forma, percebemos que o autor do Evangelho (que

chamaremos de Marcos) tinha uma grande preocupação ao escrever

sua obra, e escolher fazê-lo dessa forma nova pode nos orientar, como

tem orientado a muitos estudiosos, acerca dessa preocupação.

Concordamos com Benjamin W. Bacon em sua posição de que o texto

nasceu a partir de necessidades concretas, e que o distanciamento

temporal dos eventos – o fato de que a “primeira geração” de cristãos,

aqueles que haviam de fato conhecido a Jesus e aos apóstolos havia

morrido - é uma das causas dessa necessidade de fixar a história de

Jesus3.

2 Nesse trabalho, trataremos os destinatários do Evangelho de Marcos como

ouvintes/leitores por entender que, na antiguidade o acesso aos escritos era bastante raro, por isso sua compilação não anulava a importância e a necessidade de transmissão oral, através de leituras ou encenações. Talvez o reconhecimento e a vivência desse processo, aliás, tenha motivado o autor a produzir uma obra narrativa de “ação”, e com tantos pontos dramáticos e, às vezes, até mesmo caricaturados. O fenômeno da transmissão oral e da dramatização dos textos, aliás, nunca deixou de existir, e nos acompanha até o presente.

3 Benjamin Bacon, “The Purpose of Mark’s Gospel” em Journal of Biblical Literature, volume 29, nº.1 (1910), p.41-60. Published by The Society of Biblical Literature, URL: http://www.jstor.org/stable/3260133

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Além dessa necessidade, Myers sugere que o Evangelho foi

escrito para eliminar (ou minimizar) ocorrências de deturpação daquilo

que para o evangelista seria a mensagem de Jesus, uma vez que as

“ideias soltas” acerca de Jesus poderiam facilmente serem usadas para

qualquer fim e para a disseminação de quaisquer doutrinas. A

contextualização da mensagem, dessa forma, impediria deturpações,

por fixar um sentido à mesma, porém sem perder a dinamicidade e a

possibilidade de contextualização, pois como salienta esse autor,

Marcos apresenta seu texto como um evento – como um desafio

dinâmico, através do qual Jesus torna-se não apenas um personagem

histórico de determinado período, mas faz-se presente em toda a

história e na realidade de seus ouvintes/leitores.4

Bravo Gallardo salienta, além disso, que o autor do Evangelho

tencionava corrigir ideias “triunfalistas” acerca do cristianismo, que

haviam se desenvolvido a partir da ênfase em apresentar o Jesus

glorioso, operador de milagres e ressuscitado, ênfase que tendia a

fazer de Jesus uma espécie de “mago” que resolveria todos os

problemas das pessoas sem fazer nenhum tipo de exigência. Diante

desse risco, Marcos apresentaria um Jesus real, que certamente era

poderoso e fazia milagres, mas sempre sob a perspectiva da cruz. Ao

mesmo tempo, esse autor sugere que o evangelista pretendia

esclarecer seu auditório acerca de sua própria situação histórica e

social, desejando levá-lo a um posicionamento concreto diante das

realidades de seu tempo5.

A partir da posição desses autores, podemos perceber que o

Evangelho de Marcos não é um texto “neutro” diante da realidade –

até porque sabemos que esse ideal é ilusório, uma vez que cada autor,

em todos os tempos, imprime em seu trabalho o reflexo de seu

4 Ched Myers, O Evangelho de Marcos, São Paulo: Paulinas, 1992, p.127-129. 5 Carlos Bravo Gallardo, Jesus homem em conflito: o relato de Marcos na América

Latina, São Paulo: Paulinas, 1997. 389p. (Coleção Estudos Bíblicos).

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contexto e visão de mundo. O Evangelho de Marcos é um texto que

reflete as realidades diárias de sua época, realidade que, como

veremos a seguir, está repleta de doença, fome, miséria, violência e

exploração.

Além do pressuposto adotado de que Marcos foi o primeiro dos

Evangelhos Sinóticos, tomaremos por base também algumas posições

acerca de local e data de composição sem nos aprofundarmos nessas

discussões, uma vez que dispomos de trabalhos de muitos estudiosos

(exegetas, historiadores, lingüistas, filólogos e teólogos) que, durante

mais de dois séculos, têm se debruçado sobre essas questões (sem

chegar a uma conclusão definitiva). Aceitamos nesse trabalho a

posição não majoritária, mas aparentemente crescente entre os

estudiosos6, de que o Evangelho de Marcos foi composto na Palestina

Setentrional7, provavelmente na Galiléia ou adjacências, entre os anos

de 66 a 70 d.C., ou seja, entre os anos que compreendem a revolta

judaica que culminaria com a destruição do Templo de Jerusalém em

70 d.C.8

Situando o texto nesse ambiente, estamos colocando a realidade

de Marcos num contexto de forte opressão e dominação e, ao mesmo

tempo, de grande turbulência e agitação social. Compreender um

pouco esse contexto é essencial para entendermos o significado do

Evangelho e sua mensagem.

6 Ched Myers, O Evangelho de Marcos, São Paulo: Paulinas, 1992, p.68. 7 Usaremos, neste trabalho, o nome “Palestina” para nos referir à região que integra a

Judéia, Samaria e Galiléia, embora saibamos tratar-se de um anacronismo, uma vez que essa região só foi chamada dessa forma após a derrota da resistência judia em 135 d.C.- período posterior ao que estudamos. Cremos, contudo, que o uso dessa nomenclatura facilitará nossa percepção acerca da área referida, uma vez que é o termo corrente.

8 Para uma visão acerca dessas discussões e argumentos a respeito das posições adotadas, sugerimos a leitura de Joel Marcus, “The Jewish War and The Sitz in Leben Of Mark”, em Journal of Biblical Literature, volume 111 nº.3, 1992, p.441-462. Também Leif Vaage, “Que o leitor tenha cuidado: o Evangelho de Marcos e os cristianismos originais da Síria-Palestina”, em Revista de Interpretação Bíblica Latino Americana nº 29, Petrópolis: Vozes, p.11- 31.

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A Palestina judaica tardia do Segundo Templo é, pois, o contexto

em que o Evangelho de Marcos está inserido. Mas o que isso quer

dizer?

1.1.1. Considerações sobre o domínio Romano: a paz e a

desordem

O contexto de Marcos é reflexo de situações históricas e sociais

que se desenvolveram desde muito antes de sua composição!

Décadas antes do nascimento de Jesus os exércitos romanos

haviam invadido a região da Palestina, dizimando pessoas, saqueando

e queimando aldeias, escravizando a população.9 A ocupação da Judéia

por Pompeu marcou o fim do poder dos últimos descendentes

asmoneus, herdeiros dos Macabeus, que haviam defendido a liberdade

religiosa e autonomia política dos judeus contra a opressão dos

Selêucidas. A partir de então, o poder é entregue ao idumeu Antípater,

nomeado procurador da Judéia, e mais tarde outorgado ao seu filho

Herodes, proclamado rei pelo Senado romano em 40 a.C., mas que

teve que lutar por três anos até acabar com Antígono, último herdeiro

asmoneu, e poder reinar de fato.

Herodes governou despoticamente. Deu-se o direito de nomear

os sacerdotes do Templo de Jerusalém arbitrariamente. Também em

seu governo o poder do Sinédrio10 teve sua autoridade suplantada.

9 Richard A. Horsley, Jesus e o Império:o reino de Deus e a nova desordem mundial,

São Paulo: Paulus, 2000. p.21. 10Autoridade judaica que tinha, sob o Império Romano, autoridade para resolver

questões internas do “judaísmo” e questões ordinárias entre judeus. Parece ter surgido nos tempos da dominação persa, com os “conselhos de anciãos” de que o Sumo Sacerdote havia se cercado. No tempo do rei Herodes, foi quase exterminado e perdeu força, mas retomou suas atividades após sua morte. No tempo de Jesus, bem como no do evangelista Marcos, era composto pelos “chefes dos sacerdotes”, anciãos (representantes da aristocracia leiga), e escribas (representantes da aristocracia intelectual). Para uma explanação mais detalhada, ver Émile Morin, Jesus e as Estruturas de seu Tempo, São Paulo: Paulus, 1.988. p.103- 104.

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Além disso, patrocinou obras imensas (como teatros, anfiteatros e

ginásios) e instituiu práticas como jogos atléticos regulares (realizados

em honra a César).

Para evitar possíveis revoltas e confusões, governou com “mão

de ferro”, instituindo uma política de controle terrorista sobre a

população. Flávio Josefo, historiador judeu do 1º século da nossa era,

assim descreve tal política:

“Ficaram indignados com sua dedicação a essas atividades, pois para eles significava o desmantelamento de sua religião e a mudança dos seus costumes. Essas questões eram amplamente discutidas porque eles (os judeus) eram constantemente provocados e incitados. Mas Herodes tratava tal situação muito cautelosamente, eliminando qualquer ocasião de agitação e forçando-os ao trabalho duro. Proibia reuniões públicas, grupos andando juntos e a vida comunitária normal. Toda a atividade era vigiada. As punições para os que eram flagrados eram impiedosas e muitos foram levados pública ou secretamente para a fortaleza Hircânia e ali executados. Tanto na cidade quanto nas estradas abertas havia homens que espionavam aqueles que encontravam... Os que recusavam obstinadamente a adaptar-se a essas coações sociais eram punidos das mais diversas maneiras... Aqueles que mostravam alguma coragem e indignação em relação à sua imposição (de jurar lealdade) eliminava-os de qualquer maneira possível.”11

Certamente, essa política de Herodes estava também

relacionada à opressão econômica que recaiu sobre o povo, como

veremos a seguir, pois a manutenção desse estilo de governo – em

que abundavam as obras e tributos a Roma – onerou a população de

forma colossal. Embora Herodes possa ter evitado a eclosão de

grandes rebeliões em seu reinado, cremos que suas práticas, somadas

à natural indisposição judaica para com dominadores estrangeiros,

fomentou o sentimento de indignação e as consequentes revoltas que

mais tarde explodiriam na região.

A sucessão de Herodes, após sua morte em 4 a.C. não foi fácil.

Arquelau, que recebeu metade do reino (as regiões da Judéia, Iduméia

e Samaria), manteve-se no poder apenas por dez anos, ao fim dos 11 Flávio Josefo, Antiguidades Judaicas 15, 365-369.

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quais foi desterrado (arrastado pelas inúmeras sublevações

acontecidas em seu reinado, e acusado de extrema violência), sendo a

região anexada à Síria, tornando-se uma província imperial. Começa

então o período de governo da região pelos governadores romanos.

Herodes Antipas reinou muito tempo, até 39 d.C., nas regiões

da Galiléia e Peréia e Filipe governou também por largo tempo (até sua

morte em 34 d. C.) nas regiões do Norte da Palestina.

O reino de Herodes foi reunificado por pouco tempo sob seu

neto Herodes Agripa, que recebeu do Imperador Calígula

primeiramente o território governado por Filipe, depois o território de

Herodes Antipas, e recebeu de Cláudio, em 41 d.C., o da Judéia e

Samaria. Porém, seu domínio durou pouco, e a partir de 44 d.C. toda a

região passou a ser província romana, governada por procuradores

romanos, até a revolta de 66 d.C.12

Esses procuradores ou prefeitos romanos eram responsáveis

pela administração da região, pela manutenção da paz e da ordem e

pela manutenção da fidelidade no envio de tributos a Roma. Em outras

palavras, eram os representantes do Imperador romano nas

províncias, e deveriam trabalhar em conjunto com as elites locais no

sentido de integrar as províncias ao Império Romano nascente. Dessa

forma, de acordo com a política romana, deveriam respeitar os

costumes e leis locais sempre que possível, a fim de evitar conflitos, o

que dava às elites locais certo poder, mesmo diante do controle

romano. Na Palestina não foi diferente: mesmo sob a dominação

romana direta, o Sinédrio tinha autoridade para decidir questões

consideradas “internas” ou específicas entre os judeus.

Percebemos que a falta de habilidade de alguns desses

representantes romanos (como Pilatos, por exemplo) associada à

ganância das elites nativas (que lucravam com a dominação romana e

12Giuseppe Barbaglio, Jesús, Hebreo de Galiléia – Invetigación Histórica, Salamanca:

Secretariado Trinitário, 2.003, p.113- 179.

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aproveitavam da situação não apenas através de empréstimos à

população endividada, mas também participando do sistema de

arrecadação de impostos) acelerou os processos de insatisfação e

revolta entre a população, que se percebeu cada vez mais carente de

líderes que realmente a representasse no âmbito do “poder político

oficial”.

Essas considerações acerca da política da Palestina são

necessárias para compreendermos o contexto em que nasceu o

Evangelho de Marcos, que apresenta não apenas a história de Jesus,

mas a história de sua própria comunidade. Uma vez que cremos, como

mencionamos anteriormente, que o texto surgiu de realidades e

necessidades específicas, saber quais eram essas realidades, e como

eram sentidas e percebidas pelas pessoas que dela faziam parte é

essencial para entendermos o objetivo do autor e de seu texto.

Além desse ambiente politicamente confuso e instável,

dominado pela forte presença militar romana enviada para “manter a

paz e a ordem” (uma vez que, como dissemos, os governantes

romanos e as elites locais não conseguiam cumprir esse papel), o povo

era economicamente explorado, e precisamos compreender melhor sua

situação econômica para compreendermos melhor as implicações do

escrito de Marcos.

1.1.2. O produto da dominação: os miseráveis da

Palestina

Como dissemos anteriormente, o domínio romano na Palestina

não teve apenas conseqüências políticas significativas, mas também

afetou as esferas econômica e social, além de modificar a demografia e

a cultura. O fato de Herodes ter patrocinado várias construções –

cidades inteiras, teatros, anfiteatros – e ter-se mantido absolutamente

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leal a Roma – especialmente nas questões de tributo e presentes –

aumentou consideravelmente a carga tributária do já então pobre povo

da Palestina. Mas não podemos considerar que todos os problemas e

injustiças sociais que esmagavam o povo nessa época sejam fruto

desse período, uma vez que o processo de empobrecimento dos

agricultores, com o abalo das formas tradicionais de distribuição de

bens e posse da terra se desenvolveu desde o período de dominação

persa e helênica, e durante o período de governo asmoneu essa

situação parece não ter sido revertida.

Contudo, é incontestável que o período de dominação romana

agravou essa situação de empobrecimento. A dominação romana da

Palestina começou com uma conquista violenta, em todos os sentidos,

e seguiu com uma política opressora de controle sobre a região,

assegurada através de controle militar e mantida através dos

impostos.

Dentre os meios de fiscalização e manutenção do controle, e

como forma de disseminar o que podemos chamar de “modo romano

de viver”, o Império tinha o costume de oferecer porções das terras

conquistadas a seus soldados (como forma de recompensa pela

dedicação) ou ofertá-la a camponeses romanos, formando colônias

romanas nas regiões conquistadas13. Essa prática, somada à já

existente tendência de formação de latifúndios entre a elite judaica

desde períodos anteriores, gerou uma crescente alienação dos

agricultores da região, que se viram privados de sua forma de

subsistência e de sua forma tradicional de vida.

Essa alienação dos pequenos agricultores e a formação

crescente de latifúndios tem a ver com a política econômica adotada

pelo governo romano, mercantilista, consideravelmente oposta ao

modo agrário tradicional e familiar existente na Palestina. Para existir,

13 Pedro Paulo de Abreu Funari, Grécia e Roma, (Repensando a historia), São Paulo:

Contexto, 2004, p.85-86.

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o comércio incentivado pelo governo romano dependia, além da

produção de excedentes, do desenvolvimento de latifúndios e de uma

infra-estrutura (de estoque, conservação e transporte) que apenas um

pequeno grupo de comerciantes poderia alcançar. Esse modelo,

baseado na lógica de concentração de poder e de verticalização da

sociedade levava a um contínuo e crescente empobrecimento do povo,

que passava a ter cada vez menos acesso aos meios de produção e,

consequentemente, de manutenção própria.

Os já mencionados impostos, cobrados duplamente – havia os

impostos religiosos judeus e os cobrados pelo governo romano –

constituíam outro fator de empobrecimento. Basicamente, havia três

tipos de cobrança em cada caso: para o governo romano, pagava-se

pela posse das terras, pela produção e pelo uso de vias e rotas

comerciais. Para o Templo, pagava-se o dízimo, as primícias e um

imposto devido de cada cidadão judeu maior de 13 anos. O pagamento

desses impostos, como mencionamos anteriormente, dependia de uma

produção de excedentes praticamente impossível aos pequenos

agricultores, o que os levava muitas vezes a terem de apelar a

empréstimos para sanar suas obrigações fiscais. Não é difícil imaginar

que a maioria dessas pessoas não conseguiria pagar os empréstimos,

o que os levava a dívidas cada vez maiores, que os forçava a vender

suas propriedades e às vezes até mesmo a si próprios, com o decorrer

do tempo.

Dessa forma, esse sistema produziu pobres cada vez mais

pobres, e ricos cada vez mais ricos... Entre os pobres, os antigos

proprietários rurais tornavam-se trabalhadores instáveis, assalariados

ou desempregados (cada vez em maior número), que poderiam

tornar-se mendigos (migrando para as cidades) ou bandidos. De forma

geral a população era obrigada a viver, na maioria das vezes, com

muito menos que o suficiente para a subsistência (o que gerava

subnutrição, doenças e mortalidade).

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A situação econômica e os meios de subsistência na Palestina,

na época de Marcos, eram tais que estima-se que cerca de 1/3 das

pessoas que ultrapassavam o primeiro ano de vida (e que não eram

consideradas vítimas da mortalidade infantil) morriam até os 6 anos de

idade. Dos sobreviventes, cerca de 60% morreria até os 16 anos. 75%

já teria morrido até os 26 anos e, aos 46 anos, 90% já teriam

sucumbido. Menos de 3% da população chegava aos 60 anos de

idade!14

Obviamente, as pessoas que mais sofriam eram as que

pertenciam às classes mais pobres, especialmente na zona rural15.

Com moradias precárias, sem condições sanitárias adequadas, sem

assistência médica, com uma má alimentação... Essas eram

características da audiência de Jesus e, sequencialmente, da de

Marcos. Pessoas sem muitas alternativas de transformação nem

perspectivas, para as quais “bastava a cada dia o seu mal”, mas que

ainda nutriam expectativas e esperanças que as fazia procurar

estímulo – em líderes religiosos ou revolucionários carismáticos que

produzissem alguma esperança – esperança que estava centrada e se

baseava, na maioria das vezes, no imaginário religioso.

Essa situação econômica e social constituía uma situação

paradoxal de assimilação e inconformismo – gerada da também

paradoxal diferença econômica, pois como dissemos estabeleceu-se

uma diferenciação radical de classes entre ricos e pobres. Esses

paradoxos eram fonte de constantes e frequentes conflitos em toda a

Palestina, e especialmente na Galiléia, área mais fértil da região e,

consequentemente, muito disputada. Em toda parte encontravam-se

grupos de pessoas arruinadas, que haviam perdido suas propriedades,

além de pessoas que já haviam nascido sem propriedades devido à

14Richard L. Rohrbaugh, “Introduction”, em The Social Sciences and New Testament

Interpretation, Peabody: Hendrickson, 1996, p.4-5. 15Temos que considerar que tais dados são relativos, e referem-se especialmente à

população rural empobrecida. Nas cidades, poder-se-ia encontrar diversas outras situações.

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acumulação de dívidas de gerações anteriores, dispostas a seguirem

um líder que, como mencionamos anteriormente, produzisse alguma

esperança de transformação, ainda que irreal. Ao mesmo tempo, ao

povo comum, apesar da percepção da injustiça e do sentimento de

indignação, havia a necessidade de continuar procurando a

manutenção da vida, buscando meios que pudessem produzir

esperança em seu dia a dia. Nesse sentido, a religião teria um papel

relevante, se não estivesse também marcada pela ideologia da época.

1.1.3. Dominação ideológica: multidões de

marginalizados

A cada vez maior setorização e divisão social e econômica da

sociedade desenvolvida através da situação acima descrita,

demonstrou ser também existir ideologicamente. A divisão econômica

produziu conflitos sociais que agravavam a divisão de classes, e os

ideais e expectativas religiosos de cada classe muitas vezes eram

diferentes, embora basicamente todos fossem derivados da mesma

base comum, a saber, a religião de Javé, e reivindicassem sua

legitimidade.

Apesar de considerarmos que havia formas diversas de viver a

religiosidade, existia certamente uma opressão religiosa e ideológica

imposta pelas classes dominantes, defensoras do que se poderia

chamar de “religião oficial”: centrada no Templo de Jerusalém e no

cumprimento da Lei conforme certas interpretações dadas pelos

fariseus. Embora pudesse haver (e provavelmente houvesse) certo

descontentamento com essa religião oficial, que demonstrava apoio ou

ao menos conformidade com a dominação romana, o valor simbólico

do Templo, da Lei e de seus representantes pesava sobre o povo e

gerava conflitos, especialmente entre a população mais humilde,

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instituindo religiosamente a já corrente divisão social entre “elite” e

“marginalizados”.

Mencionamos anteriormente que a maior parte do povo da

Palestina (e da Galiléia, onde cremos que o Evangelho de Marcos foi

originariamente escrito) era pobre, doente e faminta. Mencionamos

que sofria com opressão militar, que assombrava a população geral, e

com opressão econômica. Diante dessa realidade, mencionar a

opressão religiosa e os conflitos dela advindos pode nos ajudar a

compreender o posicionamento de Jesus frente à religião oficial, bem

como pode nos auxiliar a compreender algumas expectativas das

pessoas sobre Jesus e sua disposição em seguí-lo.

Pelo tempo de Jesus e de Marcos, a religião farisaica, com sua

ênfase na pureza ritual, havia ganhado força e terreno, em parte

porque os fariseus, líderes ideológicos, queriam estabelecer certo

domínio entre o povo, uma vez que de fato não eram os responsáveis

pelo “governo” político, que ainda era exercido através do Templo de

Jerusalém pelos sacerdotes e pelo Sinédrio, composto especialmente

pelo partido dos saduceus, oposto aos fariseus.

A fim de expandir sua influência sobre o povo, os fariseus

difundiam suas práticas religiosas, e passaram a defender que estas

deveriam ser cumpridas por todas as pessoas. Dessa forma, os rituais

de pureza e as regras que inicialmente faziam parte do dia a dia

apenas dos sacerdotes passaram a ser exigidos de todo o povo, como

sinal de que pertenciam a Deus e cumpriam a Lei. Havia sem dúvida

um teor populista nesse esforço dos fariseus em levar a “Lei” – a sua

Lei, pelo menos16 – às pessoas comuns, e o fato é que as exigências

de seus rituais e a impossibilidade de o povo cumprir com eles cavou

um fosso ainda maior entre as pessoas, acentuou a marginalização e a

16Havia uma discordância entre o que os saduceus consideravam como Lei – apenas os

livros escritos - e os fariseus, que se diziam portadores de verdades reveladas secretamente por Moisés e transmitidas oralmente, as quais apenas estes tinham conhecimento.

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divisão entre classes e, o que é pior, estabeleceu uma classe de

pessoas (a maioria da população) “indigna de Deus”, tudo com a

validação teológica religiosa.

Cremos ser provável que nas regiões rurais (a maioria da

Palestina) houvesse certa “adaptação” popular dessas exigências

farisaicas, mas a presença nessas regiões de “fariseus vindos de

Jerusalém” nos demonstra uma preocupação em adequar essas

religiosidades populares ao “ideal religioso oficial”, que tendia a

desprezar e desconsiderar qualquer manifestação religiosa que não

cumprisse exatamente suas regras. Considerando que os fariseus,

como líderes religiosos, gozavam de respeito e admiração popular,

suas exigências seriam consideradas, pelo menos por grande parte das

pessoas, como a verdade a ser seguida.

Ocorre que, para a grande maioria das pessoas comuns, cumprir

com as exigências impostas pela lei farisaica era praticamente

impossível, o que as marcava com a insígnia de “pecadores” e

“impuros”, indignos do favor de Deus, situação que dificilmente seria

alterada, uma vez que tais pessoas não conseguiriam adequar-se ao

“padrão necessário” para serem consideradas puras e dignas.

Estabelece-se dessa forma um tipo de estratificação permanente que

quebra o sentido de comunidade e de equidade.

Nas sociedades tradicionais, como é o caso da sociedade

palestinense da época, não havia a separação moderna entre “vida

religiosa” e “vida secular”. Havia apenas “vida”, e a religião fazia parte

de todas as esferas da vida da sociedade, sem que as pessoas

tivessem que pensar sobre isso, e sem que ao menos houvesse

cogitação de separação dessas esferas da vida.

Quando pensamos na marginalização religiosa criada pelas

imposições dos fariseus e pela impossibilidade de cumprimento dessas

imposições pelo povo comum (ou por não terem condições econômicas

ou por terem de trabalhar em alguma atividade “impura”, ou por

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terem algum problema de saúde que os tornava “pecadores” e

“impuros”), sabemos que tal marginalização e separação dar-se-ia

também em todos os níveis sociais e relacionais das pessoas e

podemos imaginar a imensa carga simbólica que isso representava

social e emocionalmente, especialmente pelo fato de que as próprias

pessoas marginalizadas, na maioria das vezes, não se questionavam

ou ousavam discordar dessa opinião, uma vez que estavam revestidas

de um caráter sacro.

Diante de uma opressão externa, como era o caso da dominação

romana, o povo poderia rebelar-se (especialmente se lembrasse sua

própria tradição de libertação e êxodo), mas diante de opressão

justificada teologicamente, não haveria rebelião. O povo assumia a

condição marginal, e passava a entender-se e agir como quem estava

sendo “punido” ou esquecido por Deus. Essa percepção por parte das

pessoas poderia dar origem a diversas formas de resposta, desde a

alienação e conformismo resignados, até sentimentos (muitas vezes

irracionais) de que a transformação da realidade por meios radicais e

violentos seria a forma de acabar com esse “castigo” de Deus

manifesto nas diversas formas de dominação e suas consequências.

É diante desse contexto, aqui apenas esboçado, que Marcos

escreve. É para essas pessoas, dominadas política, econômica e

ideologicamente que ele aponta Jesus – um Jesus histórico e inserido

num contexto social e político como o daquelas pessoas, que surge

com um novo posicionamento e com uma nova proposta.

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1.1.4. Sintomas da Revolta e Anúncios da destruição: O

Contexto de Guerra

Marcos escreve, portanto, num contexto de revolta e guerra,

gerado por anos de exploração por parte da elite dominante, tanto

local quanto estrangeira, e pelo crescente descontentamento popular.

O povo da Palestina nunca se conformou com a dominação e opressão

romanas (como não havia se conformado com as dominações

anteriores), e durante todo o período dessa ocupação aconteceram

revoltas e manifestações de descontentamento, o que via de regra

gerava repressão ainda maior e agravava a força e a brutalidade

romanas para com a população, especialmente a população

camponesa.

Como mencionamos anteriormente, durante o reinado de

Herodes, o Grande, o país viveu um período de “paz”, conquistada e

mantida à força. Contudo, após sua morte, deu-se um período de não

poucas manifestações e movimentos que proclamavam ideais de

transformação político-religiosos; algumas dessas manifestações

pacíficas e outras violentas, na maioria das vezes estimuladas por

alguma liderança carismática marcante.

Percebemos que esse período revelou o descontentamento

sempre presente na população, mas nem sempre manifestado e nem

sempre consciente ou organizado. O desejo de reforma social, de

correção das injustiças econômicas e sociais existentes entre os

próprios judeus (com consequente revolta contra as classes

dominantes nacionais) uniu-se ao sentimento de insatisfação contra os

dominadores estrangeiros, fomentando assim as revoltas, que eram

alimentadas por ideais religiosos de “restauração de Israel”, como

veremos a seguir.

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Nesse processo, podemos perceber desabrocharem e se

manifestarem as expectativas da população, expectativas com as quais

Jesus e Marcos tiveram que se relacionar e que geraram muitos

conflitos, uma vez que Jesus, segundo Marcos nos apresenta, não

corresponde a elas e por vezes se opõe às mesmas, como veremos

adiante. Apresentamos a seguir a descrição de alguns exemplos dessas

manifestações e sublevações, que culminaram na revolta dos anos 66

a 70 d.C., a fim de percebermos melhor o ambiente conturbado em

que viveram Jesus e a comunidade de Marcos, depois dele.

Esses exemplos nos mostram a grande complexidade da

situação e das relações estabelecidas, uma vez que percebemos que

não há homogeneidade na posição da população, e nem mesmo dentro

dos grupos da sociedade. Os sentimentos de descontentamento e a

percepção das injustiças parece terem estado sempre presentes na

população geral, mas as respostas a essa percepção foram

diferenciadas em cada grupo e situação, e na maioria das vezes era

vivido de forma não organizada e por vezes não consciente. Por isso,

como mencionamos acima, era necessário o surgimento de líderes

carismáticos para produzir algum nível de organização entre essas

pessoas e incentivá-las a algum tipo de ação.

Por exemplo, o descontentamento foi demonstrado antes

mesmo da morte de Herodes (quando este já se encontrava

desenganado), quando alguns jovens, guiados por dois líderes, Judas e

Matias – chamados por Flávio Josefo de “os mais instruídos dos judeus

e intérpretes incomparáveis das leis ancestrais”17, protestaram contra

o poder herodiano destruindo uma águia de ouro que Herodes havia

mandado construir sobre a porta principal do Templo de Jerusalém18. A

reação herodiana foi rápida e cruel: quarenta desses jovens e seus

17Flávio Josefo, Antiguidades Judaicas, 17, 149. 18Essa situação pode ser utilizada também como um exemplo da inabilidade dos

governadores da Palestina, pois significava um desrespeito gratuito e não necessário aos costumes judeus, uma afronta.

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dois mestres foram capturados e executados, sem antes manifestarem

sua disposição em morrer como “mártires da Lei de Moisés” diante da

injustiça de Herodes19.

Sob Arquelau tais movimentos se multiplicaram. Embora tenha

demonstrado inicialmente certo interesse em ouvir as reivindicações

populares para baixar os altos impostos, para soltar os prisioneiros

políticos ainda detidos e para substituir o Sumo Sacerdote, Arquelau

agiu traiçoeira e brutalmente, provocando um massacre durante uma

comemoração pascoal. Esse evento, descrito por Josefo20, provocou

reações e movimentos populares em várias regiões da Palestina

judaica, uma verdadeira revolta camponesa generalizada que se

manifestou de diferentes formas: movimentos pela independência que

visavam uma realeza alternativa; movimentos messiânicos e proféticos

e, finalmente, banditismo e revoltas armadas. Obviamente, tais

movimentos causavam reações cruéis por parte do governo romano,

que acabavam por agravar a situação da população mais pobre,

especialmente os camponeses, que tiveram cada vez mais suas terras

saqueadas e destruídas.

Flávio Josefo apresenta pelo menos três movimentos derivados

das atitudes de Arquelau (além de outros, menos detalhados) que

visavam o estabelecimento de uma “realeza alternativa”: o primeiro,

liderado por Judas, na região da Galiléia; o segundo, liderado por

Simão, na Peréia e o terceiro, liderado por Atronges21. Esses

movimentos demonstram forte teor religioso/teológico, uma vez que a

idéia dessa realeza deriva, sem dúvida, da tradição de Davi, o “rei

justo” que restauraria a justiça entre a população. Tais movimentos

foram obviamente reprimidos pelo governo romano, e causaram

represália a todo o povo.

19 Flávio Josefo, Antiguidades Judaicas, 17, 149-159. 20 Flávio Josefo, Las Guerras de Los Judios 2, 39-54 Antiguidades Judaicas 17, 250-

268. 21 Flávio Josefo, Antiguidades Judaicas, 17, 271-283.

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Esses movimentos, que visavam a uma “nova realeza”, embora

também não fossem homogêneos, traziam consigo a manifestação de

expectativas messiânicas comuns – a esperança de que um “agente”

inspirado por Deus traria libertação ao povo e a paz, restaurando o

antigo reino de Israel.

Além desses movimentos e das expectativas reveladas por eles,

temos na Palestina judaica da época a manifestação de outro tipo de

movimento que também revela a insatisfação do povo diante de sua

situação e sua propensão ao seguimento de líderes carismáticos, a

saber, os movimentos proféticos – com profetas de ação, que

lideraram movimentos camponeses no que seria uma “antecipação”

dos atos divinos de libertação (que haveriam de acontecer em breve),

e profetas oraculares, que anunciavam ou o julgamento de Deus sobre

a injustiça ou a iminente libertação divina. Esses movimentos

proféticos arrebanhavam muitas pessoas, que por vezes deixavam

suas casas para seguir seus líderes, mas diferentemente dos

movimentos messiânicos, não eram nem se transformaram em

rebeliões armadas22. Percebemos que há nesses grupos forte

expectativa de uma ação divina espetacular, quer fosse histórica ou

escatológica. A diferença maior entre esses movimentos e os citados

anteriormente seria o fato de que os últimos dependeriam de uma

ação quase exclusiva de Deus, que é quem lideraria e executaria a

libertação.

Outra forma de manifestação popular que se desenvolveu e

cresceu nesse período foi a das revoltas armadas (não

necessariamente messiânicas – pelo menos inicialmente) e o

banditismo social, formado por grupos de salteadores que se juntavam

sob uma liderança comum para a prática de assaltos. Esses grupos,

frequentes na região durante o primeiro século da era cristã, eram em

grande parte frutos da exploração econômica explanada 22Richard A. Horsley e John S. Hanson, Bandidos, profetas e messias – movimentos

populares no tempo de Jesus, São Paulo: Paulus, 2007, p.144-165.

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anteriormente, derivados da expropriação de terras e do

empobrecimento que deixava grande parte da população sem recursos

para sua manutenção.

Na década de 50 d.C. temos o aparecimento em cena dos

sicários, cujo nome deriva do tipo de arma que usavam, um tipo de

punhal curvo, chamado de “sica”. Esse grupo, talvez de caráter mais

conscientemente político que os anteriores, se caracterizou por

projetar e executar ataques armados contra membros da nobreza

judaica, assassinando-os e às vezes sequestrando-os em troca de

resgate (que poderia ser a libertação de algum membro do grupo que

estivesse preso). Percebe-se entre os sicários grau elevado de

organização (era um grupo aparentemente composto por intelectuais)

e o descontentamento com a injustiça social e opressão impostos pelos

próprios judeus a seus compatriotas. Embora não deixasse de

representar uma ameaça ao Império Romano, os sicários

concentravam seus ataques a líderes nacionais (que eram

colaboradores dos romanos, não podemos nos esquecer)23, praticando

um tipo de “violência seletiva” contra o grupo dominante24.

Aparentemente, esse grupo criou grandes preocupações e temores

entre a classe dominante, a ponto de estas providenciarem segurança

para si através da contratação de “seguranças mercenários” (que

formavam verdadeiros esquadrões), o que fez aumentar o clima de

tensão e a violência do período. Contudo, o movimento dos sicários

(assim como o banditismo social dos saqueadores mencionados acima)

parece ter servido mais como um catalisador, como uma válvula de

escape de um determinado grupo do que um movimento social por

transformação.

Na revolta de 66-70 d.C., o papel dos sicários parece ter sido

bastante limitado, atuando apenas no começo da revolta junto com

23Richard A. Horsley e John S. Hanson, Bandidos, profetas e messias – movimentos

populares no tempo de Jesus, São Paulo: Paulus, 2007, p.173- 175. 24Ibid, p.176.

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outros grupos e não necessariamente como líderes, como comumente

se pensa25. Poucas semanas depois de reunirem-se aos revoltosos em

Jerusalém, os sicários foram expulsos por outros membros da rebelião.

Entre os anos 67-68, portanto em meio à guerra e enquanto os

exércitos romanos começavam a conquistar a Judéia após um período

de êxito da rebelião, temos a menção de um grupo que se tornou

famoso, inclusive por sua referência nos Evangelhos: os zelotas. Esse

grupo tem sido muitas vezes confundido e identificado com os sicários,

gerando muita confusão interpretativa.

A origem desse grupo é incerta, mas pode ser relacionada com o

movimento de fuga dos camponeses judeus e especialmente galileus

do exército romano (em 67 d.C. os exércitos romanos tinham vencido

as forças de resistência judaica da Galiléia, aumentando o clima de

terror com sua represália). Esses camponeses desterrados formavam

muitas vezes bandos de salteadores e muitos, procurando um lugar

mais seguro, iam refugiar-se na cidade de Jerusalém, onde formavam

coalizões. Em Jerusalém, esses grupos atacaram certos nobres

herodianos que ainda estavam na cidade (acusando-os de entregar a

cidade nas mãos dos romanos) e elegeram, por sorteio, o Sumo

Sacerdote (dentre pessoas comuns). Esses atos geraram o que pode

ser considerada uma “guerra interna”, dentro do conflito maior, pois os

antigos Sumos Sacerdotes conseguiram organizar uma força de

combate contra os zelotas, que se refugiaram no Templo e tiveram que

pedir ajuda aos idumeus. Uma vez controlada a situação, e tendo

controle sobre a cidade de Jerusalém, outros problemas se

avolumaram, com a disputa de poder entre os zelotas e outros grupos

rebeldes26 que também queriam a liderança da cidade e da rebelião,

disputa que só foi aplacada quando o assédio romano já estava bem

25Richard A. Horsley e John S. Hanson, Bandidos, profetas e messias – movimentos

populares no tempo de Jesus, São Paulo: Paulus, 2007, p.182-183 26Falamos do movimento messiânico comandado por João de Gíscala e pelo

comandado por Simão bar Giora.

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instalado ao redor de Jerusalém. A partir daí, o grupo dos zelotas foi

relativamente insignificante durante a resistência ao cerco romano,

embora tenham participado e lutado ativamente até o fim da guerra27.

Conforme defendemos acima, Marcos escreve nesse contexto,

em que Jerusalém representava um caldeirão em verdadeira ebulição e

em que o Templo era um “covil de salteadores” não apenas por

representar dominação ideológica e econômica, mas por estar de fato

tomado e sendo usado como “quartel general” de revoltosos! Sua

destruição era sem dúvida iminente, e os ouvintes/leitores de Marcos

teriam que tomar uma decisão acerca de seu posicionamento diante

dessa situação.

Os movimentos sociais e a situação esboçada acima

demonstram que o povo, vítima de diversos tipos de dominação

diferentes, buscava ainda esperança, alimentando expectativas de

transformação e sendo levado, muitas vezes, a aderir a movimentos

evidentemente fadados ao fracasso, em nome dessa esperança. No

entanto, a verdade é que não havia perspectivas reais de

transformação.

O Evangelho de Marcos caminha, com seu autor e seus

destinatários, entre o sentimento de impotência, resignação e

conformismo, e o desejo revolucionário suicida por transformação. É

diante desse contexto que a comunidade de Marcos tem que se

posicionar, e Marcos tem o desafio de indicar o caminho do discipulado

nessa situação de extremo conflito.

27Richard A. Horsley e John S. Hanson, Bandidos, profetas e messias – movimentos

populares no tempo de Jesus, São Paulo: Paulus, 2007, p.189.

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1.2. O EVANGELHO E AS PESSOAS

“A plebe apenas pode fazer tumultos. Para fazer uma revolução, é preciso o

povo.”

“Quanto a lisonjear a multidão, juro que não posso! O povo está no alto, a multidão está no fosso.”

Victor Hugo

1.2.1. o;cloj: Mais Que Uma Palavra

Diante do que expusemos até aqui, podemos perceber que o

texto do Evangelho de Marcos não é de forma alguma neutro, nem

pretende sê-lo. Trata-se de um texto inserido num ambiente

desafiador, e procura responder a esses desafios de seu contexto

apresentando Jesus de forma nova, como dissemos anteriormente.

Numa construção literária como esta, em que o autor serve-se

de diversos elementos existentes em sua época, tanto no que diz

respeito à forma como ao conteúdo, para criar uma obra

corajosamente nova, nenhum elemento pode ser considerado

ocasional.

Aquilo que poderíamos chamar de “coragem redacional” do

autor vai desde a opção pelo gênero literário narrativo até a

montagem da dinâmica estrutural e a escolha das palavras do texto,

que têm certamente significado para a trama da história.

Destacamos, nesse sentido, a presença de uma palavra

“inesperada” usada pelo evangelista várias vezes no decorrer da

narrativa – inesperada por sua conotação à época da escrituração e

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pela ênfase dada à mesma na narrativa marcana em que, como

veremos, ganha papel de destaque. Trata-se da palavra o;cloj.

Esse termo, que poderíamos traduzir como “multidão”, tem

significados sociais e políticos acentuados, que Marcos parece conhecer

e assumir em seu Evangelho de forma elaborada e consciente.

Inicialmente, conforme nos indica Ahn Byung-Mu28, constatamos

que Marcos é o primeiro autor do Novo Testamento que utiliza essa

palavra. O termo não aparece nos escritos do Novo Testamento

anteriores a Marcos – a saber, as epístolas de Paulo, concluídas cerca

de dez anos antes do Evangelho de Marcos29, e o uso da palavra nos

escritos posteriores a este Evangelho (nos demais Evangelhos, em

Atos e no Apocalipse) parecem ter sido derivado do uso que o

evangelista Marcos faz do mesmo. Nem mesmo a discutida “Fonte Q”,

usada pelos evangelistas Lucas e Mateus, segundo a “Teoria das

Fontes”, apresenta uso significativo dessa palavra. De fato, segundo a

reconstrução feita por Kloppenborg30, a palavra teria sido usada

apenas seis vezes nos textos atribuídos a Q31.

Mas qual seria a origem dessa palavra, e qual a importância de

estudarmos esse termo no Evangelho de Marcos?

A palavra, de origem incerta 32, é um substantivo provavelmente

relacionado com o verbo evnocle,w, “causar confusão ou tumulto” ou

28Ahn Byung-Mu, “Jesus and the minjung in the gospel of Mark”, em Minjung

Theology: people as the subjects of history, Edited by The Commission on Theological Concerns of the Christian Conference of Asia (CTC- CCA), New York: Maryknoll, 1983, p.149.

29Carlos Bravo Gallardo, Jesus homem em conflito: o relato de Marcos na América Latina, São Paulo: Paulinas, 1997. (Coleção Estudos Bíblicos).

30John S. Kloppenborg, Q Parallels: Synopsis Critical Notes & Concordance, Sonoma: Polebridge, 1988.

31Tomando como referencial o Evangelho de Lucas, essas passagens seriam: 3,7; 7,9; 7,24; 11,14; 11,29 e 12,54. Com exceção de 3,7, que refere-se às multidões que buscavam o batismo de João, as demais passagens estão relacionadas a um contexto de cuidado de Jesus com as pessoas, ensino ou realização de milagres, aparentemente sem nenhuma conotação especial.

32Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, p.1743 / Theological Dictionary of The New Testament (Gerhard Friedrich) p.582.

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com ovcle,w, “impelir ou causar problemas”. Seu significado, num

primeiro momento, denotaria uma multidão de pessoas reunidas, um

ajuntamento de várias pessoas, em contraste com o individual/privado

e em contraste também com a aristocracia ou pessoas importantes.

Essa “aglomeração de pessoas simples”, sem poder, pode ser

entendida com o que chamaríamos hoje de “massa”, e a palavra

parece ter alto grau de depreciação moral (que pode ser ainda mais

evidente se considerarmos a relação desse substantivo com os verbos

citados acima!). A palavra era usada ainda para referir-se a um

destacamento militar, ou a pessoas que serviam ou acompanhavam

um exército, encarregadas de trabalhos servis – não se referindo

nunca a qualquer tipo de liderança, mesmo nesse caso33.

Na Septuaginta, a palavra aparece cerca de 60 vezes apenas,

especialmente em textos tardios do Antigo Testamento, normalmente

usada de modo pejorativo ou para referir-se a um grupo indefinido de

pessoas, uma “grande multidão”. O termo parece indicar, nas

passagens da Septuaginta, tanto um fator numérico – uma grande

quantidade de pessoas – quanto o social – a “massa”, uma

aglomeração irregular, diferenciada de “povo” ou “povo de Deus”.

Verificando alguns textos da Septuaginta em que a palavra é

usada, percebemos também ênfase numa conotação militar (Ezequiel

23,46; Josué 6,13; 2 Samuel 15,22; 2 Crônicas 20,15; 1 Macabeus

1,17; 20,29, dentre outros). Na maioria dos casos percebemos que a

palavra é usada com referência ao exército inimigo, também em

contraste com os judeus.

Dessa forma, em 2 Crônicas 20,15, por exemplo, o termo é

usado para distinguir o exército inimigo em oposição ao povo de Deus:

33Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, p.1743/Theological

Dictionary of The New Testament (Gerhard Friedrich) p.582. 33

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kai. ei=pen avkou,sate pa/j Iouda kai. oi` katoikou/ntej Ierousalhm kai. o ̀basileu.j Iwsafat ta,de le,gei ku,rioj u`mi/n auvtoi/j mh. fobei/sqe mhde. ptohqh/te avpo. prosw,pou tou/ o;clou tou/ pollou/ tou,tou o[ti ouvc u`mi/n evstin h` para,taxij avllV h' tw/| qew/|/| 34

“Prestai atenção vós todos de Judá e habitantes de Jerusalém, e tu ó rei Josafá! Assim fala Iahweh: Não temais, não vos deixeis atemorizar diante dessa imensa multidão; pois esta guerra não é vossa, mas de Deus”.35

Assim, podemos perceber que o;cloj não é um termo “neutro”,

mas é uma palavra carregada de sentido simbólico, através da qual se

expressa juízo de valor, em que o contraste com o grupo dos

“socialmente bons” torna-se evidente e caracteriza o grupo de pessoas

identificado por o;cloj como marginal.

Considerando o Evangelho de Marcos, a freqüência com que a

palavra é utilizada, e a forma como são apresentadas as pessoas a

quem o;cloj faz referência podemos perceber que o termo faz parte da

estrutura narrativa do autor, que também não é neutra. Assim,

precisamos verificar, no Evangelho de Marcos, qual o significado e o

valor atribuído a o;cloj , tentando perceber se tal sentido coaduna com

o sentido corrente da palavra, e qual a intenção de Marcos

demonstrada pelo seu uso.

No Evangelho de Marcos, o;cloj aparece 36 vezes, sem contar

as vezes em que é referido ou sugerido por pronomes indicativos, e

designa um grupo de pessoas que se relaciona com Jesus em toda a

narrativa. São pessoas que estão com Jesus desde o início até o fim de

seu ministério, tornando-se “o;cloj” um personagem importante da

narrativa, assim como podemos considerar o grupo dos discípulos (de

quem o;cloj é claramente diferenciado) e o grupo dos “doze” (também

diferenciado em Marcos). Essa diferenciação entre os grupos também 34Versão LXX. Bible Works 7. Grifo nosso. 35Tradução Bíblia de Jerusalém – Nova Edição Revista e Ampliada: Paulus, 2002. Grifo

nosso.

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deve ser percebida como fundamental à estrutura do livro e à intenção

do autor, como procuraremos verificar adiante.

1.2.2. Quem é o;cloj no Evangelho de Marcos?

A primeira vez que a palavra aparece no Evangelho é em Mc

2,4, na perícope que relata a cura do paralítico que é descido pelo teto

de uma casa, na cidade de Cafarnaum:

kai. mh. duna,menoi prosene,gkai auvtw/| dia. to.n o;clon avpeste,gasan th.n ste,ghn o[pou h=n( kai. evxoru,xantej calw/si to.n kra,batton o[pou o` paralutiko.j kate,keitoÅ

“E não podendo trazer (o mesmo) a ele por causa de a multidão descobriram o teto onde (ele) estava, e fazendo abertura baixam a maca onde o paralítico estava deitado.36

Essa passagem é bastante significativa, pois o;cloj, a multidão,

é o grupo de pessoas que “atrapalha” a entrada do paralítico na casa.

Essa característica de o;cloj, como veremos, será marcante nesse

Evangelho, e parece coadunar com uma das conotações correntes da

palavra: pessoas que causam tumulto ou confusão. Ao longo de toda

narrativa, o;cloj estará presente, como já dissemos, como um

personagem importante da história, e essa conotação de

“atrapalhamento” será várias vezes utilizada.

Apesar desse sentido, que poderia ser considerado como

pejorativo, percebemos que Marcos usa a palavra o;cloj para referir-se

às pessoas sem nome e sem status que chegavam a Jesus e que eram

aceitas e atendidas por ele, aparentemente sem exigências. Marcos

parece deixar claro que apesar de o;cloj representar um grupo sem

identidade definida, confuso e marginal, Jesus não lhes atribuía os 36Novo Testamento Interlinear Grego Português: Sociedade Bíblica do Brasil, 2004.

Grifo nosso.

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juízos de valor da época, que fariam com que ele não aceitasse tais

pessoas nem delas se aproximasse. Marcos aparentemente não

esquece o sentido corrente da palavra, ao contrário, parece usá-lo

intencionalmente para demonstrar a ousadia e a novidade de Jesus em

relacionar-se com tais pessoas. Como dissemos anteriormente, Marcos

usa a palavra conscientemente, sabendo o que sua menção significava

e sem desprezar isso, mas parece querer atribuir novas possibilidades

a esse grupo a partir da postura de Jesus diante dessas pessoas.

Segundo Ahn Byung-Mu, essa palavra indica uma classe social

composta por pessoas excluídas religiosamente, que ele identifica

como “pecadores”37. Para esse autor, o uso da palavra é

paradigmático, uma vez que a exclusão religiosa e a alienação social

eram realidades complementares, e o relacionamento de Jesus com

tais pessoas mostraria que Jesus não compartilhava dessa opinião

acerca dessas pessoas, mas as via como seres humanos dignos do

cuidado e amor de Deus.

Embora compartilhemos da opinião de que Jesus (na descrição

de Marcos) enxergava a humanidade e as possibilidades das pessoas

que compunham o;cloj, não concordamos que o;cloj represente em

Marcos uma classe social propriamente dita, ou que seja composta de

pessoas constantemente marginalizadas. Observando seu uso no

Evangelho, percebemos tratar-se de um termo usado de forma

relacional. As pessoas que compõem a multidão não são fixas, nem

pertencem a uma mesma classe, mas são o;cloj a partir de seu

relacionamento com outras pessoas e com a sociedade. Dessa forma,

não podemos dizer que o;cloj compõem-se apenas dos pobres, pois

havia cobradores de impostos entre aqueles que são designados dessa

forma – sendo evidente que a questão não se regia por separação

37Ahn Byung-Mu, “Jesus and the minjung in the gospel of Mark”, em Minjung

Theology: people as the subjects of history, edited by The Commission on Theological Concerns of the Christian Conference of Asia (CTC- CCA), New York: Maryknoll, 1983, p.142–146.

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puramente econômica – entre pessoas das mesmas condições, poderia

haver os marginalizados por algum motivo e os aceitos socialmente.

Além disso, um grupo que num lugar poderia ser identificado

como o;cloj, em outro poderia deixar de sê-lo. Tomamos como

exemplo do que queremos dizer um texto do Evangelho de Marcos que

consideramos emblemático e crucial para a compreensão desse termo

e do uso que o evangelista parece querer dar ao mesmo. Trata-se do

capítulo 3 do referido Evangelho, versos 7 a 9:

Kai. o` VIhsou/j meta. tw/n maqhtw/n auvtou/ avnecw,rhsen pro.j th.n qa,lassan( kai. polu. plh/qoj avpo. th/j Galilai,aj Îhvkolou,qhsenÐ( kai. avpo. th/j VIoudai,aj kai. avpo. ~Ierosolu,mwn kai. avpo. th/j VIdoumai,aj kai. pe,ran tou/ VIorda,nou kai. peri. Tu,ron kai. Sidw/na plh/qoj polu. avkou,ontej o[sa evpoi,ei h=lqon pro.j auvto,nÅ kai. ei=pen toi/j maqhtai/j auvtou/ i[na ploia,rion proskarterh/| auvtw/| dia. to.n o;clon i[na mh. qli,bwsin auvto,n\

“E Jesus com os discípulos dele retirou-se para o mar, e grande multidão de a Galiléia [seguiu]; e de a Judéia e de Jerusalém e de a Iduméia e de além do Jordão e ao redor de Tiro e Sidom, multidão[2] grande[1] ouvindo (eles) as coisas que fazia veio para ele. E disse aos discípulos dele para que (um) barco estivesse preparado para ele por causa de a multidão para que não apertassem a ele;”38

Nesse texto, temos em primeiro lugar a identificação de dois

grupos: o grupo dos discípulos e a “multidão”. Todavia, há duas

classes de multidão envolvidas no texto, e isso chama a atenção!

O primeiro grupo é a multidão que viera da Galiléia, que até

então havia sido identificado no texto como o;cloj mas que aqui é

identificado por plh/qoj - palavra que designa povo, um ajuntamento

numericamente grande, mas sem a ênfase depreciativa de o;cloj, uma

vez que a palavra pode ser usada para designar “plenitude” ou mesmo

38Novo Testamento Interlinear Grego Português: Sociedade Bíblica do Brasil, 2004.

Grifo nosso. 39Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, volume 2, p.1669.

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uma assembléia39, indicando que as pessoas que compõem esse grupo

tinham algo em comum, que as tornava um “povo”. Dessa forma,

aqueles que eram o;cloj na Galiléia e nas demais regiões citadas no

texto, que não tinham nada em comum e que não formavam um

grupo, ao relacionarem-se com outros grupos, de outras regiões,

tornavam-se plh/qoj, pois tinham algo em comum que os diferenciava

do outro grupo (eram da Galiléia, ou da Judéia, ou da Iduméia). Da

mesma forma, quando esses plh/qoj distintos se juntam, no verso 9, e

novamente tornam-se uma multidão indistinta, sem identidade de

grupo, são chamados novamente o;cloj!

Outro texto surpreendente que nos demonstra essa função

relacional dada ao termo pelo evangelista é o de Mc 12,41:

Kai. kaqi,saj kate,nanti tou/ gazofulaki,ou evqew,rei pw/j o` o;cloj ba,llei calko.n eivj to. gazofula,kionÅ kai. polloi. plou,sioi e;ballon polla,\ kai. evlqou/sa mi,a ch,ra ptwch. e;balen lepta. du,o(...

“E tendo-se assentado diante de o gazofilácio observava como a multidão coloca dinheiro em o gazofilácio. E muitos ricos colocavam muito; e vindo uma viúva pobre colocou moedinhas[2] duas[1],...”40

Esse texto chama a atenção porque nele o termo o;cloj é usado

para referir-se a pessoas ricas! Esse fato nos demonstra claramente

que o termo não se refere simplesmente a uma classe econômica ou

social distinta, mas aponta para uma forma de posicionamento das

pessoas diante da sociedade e do mundo, indicando uma condição de

indistinção que poderíamos chamar de falta de identidade.

Dessa forma, algumas características de o;cloj podem ser

percebidas: este é um grupo de pessoas reunidas sem terem

necessariamente alguma coisa em comum e que causam tumulto e

confusão, e muitas vezes “atrapalham”. Essas pessoas, ao comporem

40Novo Testamento Interlinear Grego Português: Sociedade Bíblica do Brasil, 2004.

Grifo nosso.

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o;cloj perdem sua identidade individual, tornando-se parte do

aglomerado, da massa.

Se verificarmos o uso da palavra no Evangelho de Marcos,

perceberemos claramente que o;cloj, embora seja alvo dos ensinos e

dos milagres de Jesus, tende a atrapalhar sua movimentação,41

kai. avph/lqen metV auvtou/Å kai. hvkolou,qei auvtw/| o;cloj polu.j kai. sune,qlibon auvto,nÅ

E (Jesus) foi com ele. E seguia a ele grande multidão e apertavam a ele.

avkou,sasa peri. tou/ VIhsou/( evlqou/sa evn tw/| o;clw| o;pisqen h[yato tou/ i`mati,ou auvtou/\

tendo ouvido a respeito de Jesus, tendo vindo em a multidão por detrás tocou na veste dele;42

os próprios milagres43,

kai. evpeti,mwn auvtw/| polloi. i[na siwph,sh|\ o` de. pollw/| ma/llon e;krazen\ ui`e. Daui,d( evle,hso,n meÅ

e repreendiam a ele (Bartimeu) muitos (multidão) para que se calasse; mas ele muito mais gritava: Filho de Davi, tem compaixão de mim. 44

chegando a colocar a vida e o bem estar de Jesus em risco45:

Kai. e;rcetai eivj oi=kon\ kai. sune,rcetai pa,lin Îo`Ð o;cloj( w[ste mh. du,nasqai auvtou.j mhde. a;rton fagei/nÅ

E chega em casa; e ajunta-se novamente a multidão, a ponto de não poderem eles nem pão comer.

kai. le,gei auvtoi/j\ deu/te u`mei/j auvtoi. katV ivdi,an eivj e;rhmon to,pon kai. avnapau,sasqe ovli,gonÅ h=san ga.r oi` evrco,menoi kai. oi` u`pa,gontej polloi,( kai. ouvde. fagei/n euvkai,rounÅ

Vinde vós mesmos a sós para lugar deserto e descansai um pouco, pois eram muitos os que vinham e os que iam, e nem para comer tinham tempo.46

41Por exemplo, Marcos 5,24 e 27 em que a multidão comprime Jesus. 42Novo Testamento Interlinear Grego Português: Sociedade Bíblica do Brasil, 2004.

Grifo nosso. 43Marcos 2,4 já mencionado na página 25 e 10,48 – a cura de Bartimeu, por exemplo. 44A multidão e Bartimeu são mencionados no versículo 46 do capítulo 10. Grifo nosso. 45Em Marcos 3,20 e 6,31, por exemplo, quando a multidão o impede de comer.

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Não é de admirar que os líderes judeus tivessem medo desse grupo47:

avlla. ei;pwmen\ evx avnqrw,pwnÈ & evfobou/nto to.n o;clon\ a[pantej ga.r ei=con to.n VIwa,nnhn o;ntwj o[ti profh,thj h=nÅ

Mas (se) dissermos: De seres humanos? – temiam o povo; todos pois tinham João realmente que profeta era.

Kai. evzh,toun auvto.n krath/sai( kai. evfobh,qhsan to.n o;clon( e;gnwsan ga.r o[ti pro.j auvtou.j th.n parabolh.n ei=penÅ kai. avfe,ntej auvto.n avph/lqonÅ

E procuravam a ele prender, e temeram a multidão, pois souberam que contra eles falou a parábola. E deixando a ele partiram.48

Percebemos, portanto, que o termo o;cloj não representa um

grupo fixo de pessoas, mas designa um relacionamento e uma forma

de comportamento das pessoas e grupos. Embora represente um

personagem marcante no Evangelho de Marcos, notamos também que

não se trata sempre do mesmo grupo de pessoas – muito ao contrário,

vários grupos distintos, de diferentes lugares e posições sociais, são

chamados pelo evangelista de o;cloj, por apresentarem as mesmas

características destacadas acima.

Essas pessoas, ao serem representadas em diversas ocasiões

pela mesma palavra – palavra marcante e com forte significado, como

vimos, aproximam-se de Jesus a partir de alguma expectativa –

expectativa de milagres, de curas, de exorcismos... Essas expectativas

podem ser satisfeitas ou não, mas o fato é que, ao aproximar-se de

Jesus, o;cloj espera receber algo, e essa é outra característica de

o;cloj49. Tais expectativas e a resposta que Jesus dá a elas, como

veremos adiante, são determinantes no desenrolar da narrativa de

46O versículo 34 do capítulo 6 deixa claro tratar-se de o;cloj. Grifo nosso. 47Marcos 11.32; 12.12. 48Novo Testamento Interlinear Grego Português: Sociedade Bíblica do Brasil, 2004.

Grifo nosso. 49Elizabeth Struthers Malbon, “Disciples / Crowds / Whoever: Markan Characters and

Readers”, em Novum Testamentum, volume 28, nº.2, Leiden, 1986, p.104-130.

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Marcos, e definirão as atitudes desse “personagem” do Evangelho

diante de Jesus – atitudes que vão da aclamação ao pedido de morte!

Podemos entender que Marcos usa a palavra sem esquecer de

seu sentido corrente, ou seja, não ignora nem disfarça o sentido de

“confusão” associado à mesma. Especialmente se considerarmos o

sentido militar da palavra (como destacado na Septuaginta), e o temor

dos líderes judeus à multidão, esse potencial de o;cloj de causar

tumulto pode ser percebido no texto marcano (potencial destacado

ainda mais pela apresentação de o;cloj como um grupo que muitas

vezes tende a atrapalhar Jesus, como mencionamos). Apesar disso, no

Evangelho de Marcos é perceptível também que o;cloj tem um

potencial positivo pois, como veremos a seguir, é um grupo que

apresenta possibilidades e é recebido e tratado por Jesus com carinho

e atenção.

1.2.3. A multidão e os discípulos em Marcos

Outro fator a ser destacado é que, no Evangelho de Marcos,

como já mencionamos, o;cloj é claramente diferenciado dos discípulos

ou seguidores de Jesus. Essa distinção parece-nos bastante

significativa, e é claramente estabelecida em toda a narrativa. No

entanto, não podemos pensar nesses grupos como oponentes, mas

como grupos distintos que refletem tipos diferentes de relacionamento

com Jesus.

Interessante observarmos que, à exceção de referências abertas

e não definidas em que usa as palavras “todos” (Marcos 1,27; 1,33;

1,37) e “muitos” (2,2), a primeira menção a um grupo distinto ocorre

em Marcos 2,4, e refere-se a o;cloj. Embora já tenha ocorrido no texto

o chamado de Jesus a Simão, André, Tiago e João (Marcos 1,16-20), a

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palavra “discípulos” (maqhth,j) é usada pela primeira vez apenas em

Marcos 2,16! Esse fato parece-nos bastante significativo por indicar

não apenas a presença dos dois grupos distintos, mas por sugerir uma

progressão lógica que cremos estar presente (mesmo que como

possibilidade) no texto de Marcos: da multidão sem rosto e sem nome

(o;cloj) podem formar-se discípulos (maqhth,j).

No entanto, o Jesus de Marcos não espera essa transformação

para agir em prol da multidão. Ao contrário, o texto marcano

apresenta-o dando atenção à multidão de forma surpreendente. A

multidão é, sem dúvida, objeto das ações e do ensino de Jesus, e foco

de seu ministério. No entanto, com o estabelecimento desse “novo

grupo” – os discípulos, algumas atitudes descritas por Marcos – tanto

dos referidos grupos como de Jesus para com eles – passam a ser

diferenciadas.

Dessa forma, percebemos algumas diferenças na postura das

pessoas de cada um dos grupos com relação a Jesus. Embora ambos

sejam chamados por ele, a multidão e os discípulos apresentam-se

com expectativas distintas.

A multidão apresenta-se com expectativas de receber algo em

seu próprio benefício, sejam milagres ou o ensino de Jesus, e é

apresentada como pessoas que se aproximam de Jesus, que vão até

onde ele está. Essa postura demonstra, sem dúvida, disposição e

interesse em Jesus, e expectativa de que o mesmo poderia atendê-las.

Os discípulos, por sua vez, são caracterizados por sua ação em

nome de outros, não aparecendo, na maioria das vezes, como

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recebedores diretos dos milagres50, e são caracterizados como pessoas

que seguem Jesus, acompanhando-o por onde ele vai51.

Sem dúvida, os discípulos são também destinatários diretos dos

ensinos de Jesus, e o texto de Marcos demonstra um interesse especial

de Jesus no ensino dos mesmos52. Nota-se também que, embora o

evangelista deixe claro que Jesus ensinava à multidão, o conteúdo

desse ensinamento normalmente não é mencionado. Quando Jesus

está com os discípulos, porém, o evangelista mais de uma vez

descreve o conteúdo dos ensinos de Jesus (que geralmente é

associado à sua paixão e ressurreição53). Além disso, é aos discípulos,

e não à multidão54, que Jesus questiona55, desafia56 e instiga57.

Podemos pensar que essa postura de Marcos com relação aos

ensinos de Jesus, bem como o fato de Jesus se retirar com seus

discípulos (não apenas para ensinar, mas numa demonstração de

convívio58) faz parte da estrutura narrativa de Marcos para salientar a

necessidade de um ensino específico aos discípulos a fim de poderem

cumprir seu papel como “assistentes” de Jesus no evangelho e

“continuadores” de seu ministério, uma vez que esse evangelho os

apresenta dessa forma.

Assim, podemos estabelecer alguns pontos semelhantes e

outros divergentes acerca dos posicionamentos de Jesus com relação à

50 Percebemos certa dinâmica no texto, pois as pessoas recebem os milagres de Jesus

antes de tornarem-se seguidores ou seguidoras; a partir daí, tais pessoas podem ou não tornarem-se seguidoras, e essa decisão definirá o tipo de relacionamento que terão com Jesus.

51Elizabeth Struthers Malbon, “Disciples / Crowds / Whoever: Markan Characters and Readers”, em Novum Testamentum, volume 28, nº.2, Leiden, 1986, p.104-130.

52Note-se que por vezes Jesus os ensina em particular: 4,10; 4,34; 7,17; 9,28; 10,10; 10,26; 13,4.

53Marcos 8,31; 9,31. 54Embora haja passagens em que apareçam ou sejam sugeridas perguntas de Jesus

em meio à multidão (Marcos 4,13; 12,35), parece não haver o mesmo desafio direcionado aos discípulos, podendo essas perguntas serem entendidas como perguntas retóricas, que não esperavam resposta!

55 Marcos 9,33. 56 Marcos 4,40; 8,17-21; 8,36-37. 57 Marcos 4,21; 4,30; 9,11-12. 58 Marcos 3,9; 4,36; 6,31; 6,45; 7,17.

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multidão e aos discípulos: ambos são chamados por ele59 e recebem

seu ensino60, e os dois grupos respondem ao ensino e aos milagres de

Jesus com surpresa, admiração61. No entanto as posturas diante de

Jesus serão diferenciadas: enquanto a multidão vai até Jesus em busca

da satisfação de suas expectativas (de milagres ou de ensino), os

discípulos seguirão Jesus, isto é, estarão com ele onde este estiver, e

serão estimulados a agir em prol dos outros e especialmente, em prol

da multidão62. Essa insistência de Jesus, bem como o já citado “ensino

diferenciado” sugere que, no caso dos discípulos, havia um processo

de mudança de expectativas a partir de uma compreensão mais

profunda da proposta de Jesus e do discipulado proposto por ele. Essa

compreensão estabelece uma tensão no Evangelho de Marcos, entre o

chamado e o desafio de seguir a Jesus, o desejo de fazê-lo e os

perigos (dor, sofrimento) que isso implica.

Compreender essa diferença de postura – tanto com relação às

expectativas como em sua atuação, parece-nos fundamental para a

compreensão do Evangelho de Marcos, quando considerado em seu

difícil contexto, pois indica a intenção do autor do evangelho em

confrontar seus destinatários e orientá-los a partir tanto da atitude de

Jesus quanto da identificação com algum dos grupos descritos.

1.2.4. O Jesus de Marcos e o;cloj: um relacionamento

paradoxal

A partir dessa diferença em sua postura e em seu

relacionamento com Jesus, cremos ser possível pensar em pelo menos

duas conclusões: O Jesus de Marcos, em seu relacionamento com a

59 Ver Marcos 7,14 e 8,34, por exemplo. 60 Verificar Marcos 3,13. 61 Marcos 2,12; 4,41; 5,15; 9,15; 10,24; 10,26; 11,18. 62 Por exemplo, Marcos 9,41; 10,17-22.

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multidão, era um exemplo de como a comunidade deveria ser, uma

vez que os discípulos de Jesus, nesse Evangelho, são claramente

chamados para agir como ele. Em segundo lugar, e fundamental para

nossa compreensão do texto, percebemos que existe uma intenção de

que as pessoas da multidão saiam da mesma e “mudem de grupo”.

Percebemos essa possibilidade em passagens como Marcos 7,14 e

8,34, por exemplo, nas quais pessoas saem ou emergem do o;cloj /

multidão e se apresentam diante de Jesus como indivíduos que são

transformados e reintegrados à comunidade de forma restaurada. Essa

nova postura representaria uma mudança de perspectiva e de

expectativa, a partir de uma nova compreensão da missão de Jesus e

de um novo tipo de relacionamento com ele e com o mundo. Essa

possibilidade parece consistir um objetivo de Marcos ao apresentar

o;cloj.

Dessa forma, temos estabelecido um paradoxo: ao mesmo

tempo que Jesus se relaciona com o;cloj de forma radicalmente livre

de preconceitos, aceitando essas pessoas perto de si, ensinando-as e

realizando milagres em seu benefício sem fazer nenhuma exigência,

Marcos apresenta o desejo de transformação dos indivíduos que

compõe o;cloj, a fim de que possam torna-se discípulos ou seguidores

de Jesus.

Ao caminhar pelo Evangelho de Marcos, percebemos que não

podemos tratá-lo como um texto neutro, mas temos que considerar

seu contexto (de extremo conflito, como esboçamos acima).Também

não podemos considerar seus elementos – palavras ou estruturas, de

forma simplista. Dessa forma, ao tratarmos do uso do termo o;cloj

neste Evangelho, temos que tentar compreender sua complexidade.

o;cloj não é apenas uma palavra. Remete a pessoas: as pessoas

que viviam e sofriam no contexto que descrevemos acima, e que

tinham suas vidas permeadas pelas expectativas descritas –

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expectativas de mudança e libertação através da vinda de um

“messias davídico”, de uma ação divina direta ou de uma revolução

armada. Ou ainda o;cloj poderia representar pessoas sem muita

expectativa, desiludidas e apáticas diante da realidade, para quem não

havia mais nenhuma esperança de transformação.

Sabemos que, em sua época, Jesus não foi o único líder a

conseguir arrebanhar seguidores, e descrevemos há pouco alguns

exemplos de movimentos que eclodiram na Palestina durante o

primeiro século. Esse fato demonstra, como já mencionamos, o desejo

e as expectativas das pessoas, e podem nos ajudar a compreender a

postura de Jesus e da multidão no decorrer do Evangelho.

Marcos escreve num contexto de forte opressão política e

econômica, conseguida e mantida às custas de opressão militar,

dominação ideológica e tentativa de aculturação de povos

conquistados pelos romanos. O Império Romano estabeleceu-se e

manteve-se dessa maneira, e o Evangelho de Marcos expõe essa

realidade de diversas formas. Nesse sentido, a escolha de uma palavra

de forte significação social e com certa conotação militar não pode

passar despercebida.

Às perguntas iniciais acerca de o;cloj no Evangelho de Marcos –

quem eram essas pessoas e por que Marcos escolhe deliberadamente

uma palavra tão cheia de significados – junta-se uma outra: como

entender as diferenças de postura de o;cloj diante de Jesus, se

pensarmos que a mesma palavra é usada para descrever as pessoas

que, do capítulo 2 ao 12, ouvem Jesus com alegria, recebem seus

milagres e querem até aclamá-lo como rei, em Mc 14,43 participam de

sua prisão e, no capítulo 15 (versos 6 a 15), participam ativamente de

sua condenação, pedindo sua morte? Por que Marcos usa

deliberadamente a mesma palavra, indicando tratar-se do mesmo

personagem de seu Evangelho? Teria havido algum “engano” da parte

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de Marcos, ou havia uma intenção esboçada desde o início da

narrativa, que pretende levar seus destinatários a alguma nova

compreensão acerca da realidade?

Por que o;cloj muda tão radicalmente sua posição e sua atitude

diante de Jesus?

Procuraremos responder a essa questão estabelecendo um

paralelo entre o texto e contexto de Marcos e algumas situações

representativas do Império Romano, que cremos terem permeado a

mente não apenas de Marcos, mas de seus destinatários naquele

momento específico, buscando identificar de que forma o Jesus de

Marcos se relacionou com a visão de mundo do Império que, de certa

forma, era compartilhada pelo povo judeu, embora, nesse caso, fosse

apresentada apenas como expectativas.

O capítulo seguinte nos remeterá, pois, ao Império Romano e

algumas das características representativas de sua visão de mundo, a

fim de podermos estabelecer o paralelo desejado e prosseguirmos em

nossa busca pela compreensão do papel de o;cloj no Evangelho de

Marcos, e da postura de Jesus diante de o;cloj.

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2º Capítulo

O IMPÉRIO ROMANO DIRIGINDO O MUNDO

“Você espera sempre mais Você não se conforma

Você não se satisfaz Todo mundo diz acreditar na paz

E você acredita ou não?

E então, o que você faz pela paz? O que você faz pela paz? O que você faz pela paz?

Todos são capazes da guerra

Mas ninguém luta por você Você ainda está sozinho

Ninguém acredita em ninguém

E você acredita ou não? E então, o que você faz pela paz?

O que você faz pela paz? O que você faz pela paz?”

Pela Paz

Branco Mello, Nando Reis, Sérgio Britto, Charles Gavin, Paulo Miklos

Gravação: Titãs

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2.1. O MUNDO DOS DOMINADORES

Roma nos fascina! As várias imagens e ideias transmitidas a nós

pela história e pelas artes através dos séculos, e sempre avivadas em

cada geração, fazem com que cada um de nós tenha uma – ou várias

– percepções acerca do mundo romano.

Dessa forma, ao falar do mundo romano, logo nos vem à mente,

dentre outras ideias que compõe nosso imaginário, a visão de uma

sociedade promíscua e violenta, em que as pessoas (especialmente a

plebe, ou o povo comum) preocupavam-se apenas com diversões e

prazeres considerados atualmente “imorais”. Tais ideias foram criadas

e transmitidas graças às imagens e representações de Roma que se

formaram em diferentes momentos históricos, motivadas pelas

realidades e necessidades de cada momento, uma vez que cada

historiador interpreta o passado e constrói seu discurso a partir de sua

própria percepção da realidade63.

Essas percepções, contudo, têm se mostrado superficiais, uma

vez que não contemplam a complexidade dessa sociedade, separada

de nós por tantos anos e por uma cultura que tantas vezes não

compreendemos. Além disso, tendem a ignorar que as ideias

apresentadas acerca dessa sociedade podem não representar a

realidade da grande maioria das pessoas que compunham esse

ambiente tão diversificado e cheio de nuances que nos acostumamos a

chamar de “Império Romano”.

Certamente, não temos condições, neste trabalho, de apresentar

um estudo exaustivo dessa sociedade, nem é esse nosso objetivo,

embora a tentação de nos aprofundar nesse tema seja bastante

grande. Devemos nos ater ao período da história romana relacionado

com o texto bíblico estudado, bem como salientar, dentro da 63 Renata Senna Garrafonni, Gladiadores na Roma Antiga – dos combates às paixões

cotidianas, São Paulo: Annablume / Fapesp, 2004, p.34.

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complexidade de temas e assuntos possíveis, aqueles que julgamos

fundamentais à nossa análise, por serem relevantes à compreensão do

referido texto.

Dessa forma, situamos nossa análise no primeiro século da era

cristã, período que pode ser considerado como intermediário na

história da antiga Roma, época da “infância” do Império Romano. As

agitações, os conflitos e as mudanças ressaltadas na Judéia – província

romana, como anteriormente mencionado – são também vivenciados,

embora de forma diferenciada, em toda extensão da heterogênea área

dominada, e na própria estrutura do Império em formação.

O Império Romano não pode ser entendido, como muitas vezes

o fazemos, como um Estado moderno, não representava uma

organização social homogênea e singular, mas abrigava sociedades

distintas, das quais a judaica é uma delas.

Os processos de conquista militar e centralização política

difundidos por Roma não se abstiveram de conflitos, numa dinâmica

de assimilação, ajustamento, negociação e resistência presentes não

apenas na Judéia, mas em diversas outras regiões dominadas. A

eclosão da revolta judaica dos anos 66 a 70 d.C., período em que

situamos historicamente o texto evangélico estudado, não pode ser

considerado como um fato isolado, assim como a exploração

econômica, política e social ao qual aquele povo foi exposto também

não o foram.

Precisamos, portanto, verificar melhor o período a que nos

referimos, procurando perceber ao menos em parte seu contexto e sua

complexa realidade, a fim de termos condições de melhor analisar e

entender o texto do Evangelho de Marcos, que nasceu sob essa visão

de mundo e que carrega, em sua narrativa, elementos desse período.

Situando o texto de Marcos entre os anos 66 a 70 d.C., como o

fizemos, colocamo-lo num período em que o nascente Império

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estabelecia-se politicamente como um Principado – o primeiro período

do Império Romano, que sucedeu à República64. Torna-se muito difícil

estabelecer uma data para essa mudança na forma romana de

governo, uma vez que o final do período republicano pode ser

entendido como um processo que se iniciou em cerca de 133 ou 121

a.C., com a morte dos irmãos Tibério e Caio Graco65. Apesar dessa

dificuldade no estabelecimento de uma data precisa, podemos

entender que os vários elementos de desagregação da República66,

que fizeram com que esta perdesse sua força como “guardiã dos

interesses públicos” diante dos crescentes interesses privados, foram

estimulados pelo crescimento da dominação territorial romana e todas

as mudanças advindas desse crescimento.

Essa mudança no modo de governo significou também uma

transformação cultural gradativa, que influenciaria todo o modo de

vida daquela sociedade e das diversas sociedades que passariam a

fazer parte do Império.

Embora estejamos falando de um período de transição, em que

os elementos não são facilmente distinguíveis, podemos considerar

como marco para o estabelecimento do poder pessoal que define o

Principado os governos de Caio Graco, Sila, Pompeu e Júlio César67.

64 O Principado pode ser compreendido como o “primeiro período” da recém restaurada

monarquia romana (entre os anos 27 a.C. e 193 d.C.), constituindo um período político híbrido que conservava as instituições republicanas, mas colocando-as sob a tutela do Princeps. Foi seguido historicamente por um “segundo período” monárquico denominado Dominato.

65 Norma Musco Mendes, “O Sistema Político do Principado”, em Gilvan Ventura Silva e Norma Musco Mendes, (Org.), Repensando o Império Romano - Perspectiva Socioeconômica, Política e Cultural, São Paulo: Editoras FCAA, Edufes e Mauad, 2006, p.22. Verificar também Leon Bloch, “Luchas Sociales” em La Antigua Roma, Buenos Aires: Editorial Claridad, 1934.

66 Podemos citar, de acordo com Norma Musco Mendes, o conflito entre individualismo X coletivismo, as lutas pelo exercício do poder, que formaram coligações políticas, o uso de violência na vida pública e especialmente a criação de um exército profissional e permanente como fatores básicos para o desenvolvimento de um poder pessoal, p.22.

67 Acerca desse período da história romana, verificar: Leon Bloch, “Luchas Sociales” em La Antigua Roma, Buenos Aires: Editorial Claridad, 1934; Gilvan Ventura Silva e Norma Musco Mendes, Repensando o Império Romano - Perspectiva Socioeconômica, Política e Cultural, São Paulo: Editoras FCAA, Edufes e Mauad,

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Especialmente o último pode ser considerado como o responsável por

lançar as bases de um poder pessoal absoluto, com forte ênfase

militar, que se desenvolveria até consolidar-se na monarquia romana.

Mesmo não tendo tido tempo hábil para consolidar-se como regente, é

sobre suas bases que essa monarquia seria erguida.

Otávio Augusto, filho adotivo e sucessor de Júlio César, foi quem

estabeleceu o sistema monárquico através do Principado, não sem

uma disputa anterior68, e ainda necessitando, para isso, do apoio do

Senado. Apresentando-se como “defensor da tradição romana” contra

a ameaça oriental (simbolizada por Marco Antonio e sua aliança com o

Egito, especialmente), Otávio ganha a simpatia tanto da aristocracia

quanto do povo de Roma e, especialmente depois da batalha em que

derrota Marco Antonio, em 31 a.C., estabelece-se como o “restaurador

da liberdade e da paz” que garantiria a proteção do Estado e dos

cidadãos romanos, além de manter a dominação do mundo

conquistado.

O desenvolvimento desse Principado por Otávio, bem como a

obtenção de cada vez mais poder e autoridade foram gradativos e

muitas vezes não perceptíveis, pois havia a aparência de que a

soberania do Senado e do povo estava mantida, embora na prática

ambos tenham se tornado, como veremos adiante, em “clientes” do

Princeps, dentro do sistema do Patronato.

O Principado trouxe a Roma e a todo o Império nascente

algumas consequências importantes. Marcou o fim do pouco que ainda

restava de decisão popular, pois a liberdade eleitoral foi quebrada e as

questões políticas passaram a não serem mais debatidas em público,

como ocorria durante a República. O exército passou a ser regular e

2006, 300p.; Theodor Mommsen, História de Roma (Excertos), Rio de Janeiro: Editora Opera Mundi, 1973. 333p.

68 Referimo-nos às disputas ocorridas durante o chamado Triunvirato, período em que o governo romano foi dividido entre Lépido, Marco Antônio e Otávio, especificamente a disputa entre Otávio e Marco Antônio (Lépido havia morrido), que deu ao primeiro a vitória e a posição de regente único de Roma.

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sustentado pelo Estado, cujo representante máximo era o Imperador,

o que estabeleceu um vínculo fortíssimo entre ambos. Foram criados

diversos cargos públicos a fim de manter o novo regime, o comando

do exército e a administração das províncias, muitos deles assumidos

pelos Senadores que, ao mesmo tempo, tinham seu poder cada vez

mais reduzido. Essas mudanças, obviamente, acarretaram num

aumento de gastos, criando-se a necessidade de aumento das

receitas.

Essa necessidade de aumento das receitas impeliu a criação de

impostos. Conhecendo o cadastro provincial, Augusto criou o tribunum

capitis, um imposto “por cabeça” do qual a Itália estava isenta, e o

tribunum soli, imposto “sobre as propriedades”, cobrado de todos os

proprietários de bens imóveis. Além desses, foram criados impostos

indiretos aliados às taxas de alfândega e circulação de mercadorias.

A política monetária era prerrogativa do Príncipe, que se

constituiu, assim, como o cidadão mais rico do Império. Essa noção

também é muito importante para a prática do Patronato, como

veremos a seguir.

Os sucessores de Augusto procuraram consolidar seu sistema

administrativo e ampliar o poder imperial. A partir da ditadura de Júlio

César, o Senado já havia perdido seus poderes principais. Augusto

dissimulou essa impotência política dando novas atividades ao Senado,

que se tornou um corpo de funcionários civis que anunciava ou

confirmava as decisões do Príncipe. Ao mesmo tempo, ao povo restou

um poder de decisão apenas figurativo, uma vez que a confirmação

dos poderes ou decisões do Príncipe era apenas nominal e não

influenciava nas decisões já tomadas. Além disso, o contato físico

entre os cidadãos e entre estes e as instâncias de poder, desenvolvido

durante a República, foi substituído gradativamente pelo aparelho de

Estado recém criado.

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Como mencionamos anteriormente, todas essas mudanças

marcaram não apenas a política e a economia da sociedade romana,

mas sua cultura e visão de mundo. Citando Mendes:

“À nova identidade política do Princeps como tutor de todo processo decisório civil e militar se aliou a ideia de início de uma nova era, durante a qual Roma, pela vontade divina e providencial, havia superado um momento de caos dominado pelas guerras civis e estava destinada a organizar e controlar o mundo conhecido.”69

Com o fim das guerras civis que marcaram o final da República,

a união do povo romano sob um mesmo líder e a expansão territorial e

financeira, estava inaugurada a “Paz Romana”, a Paz de Augusto, com

todas as consequências sociais, culturais e políticas que adviriam dessa

dominação e de sua manutenção.

2.1.1. Um Mundo Romano: Processos de Expansão e

Dominação

Conforme citado anteriormente, o processo de expansão

territorial romano foi longo (compreendendo desde o século 5 a.C. ao

século 2 d.C., aproximadamente), com intensidade variada no decorrer

desse período, e foi acompanhado por transformações sociais, políticas

e, consequentemente, culturais.

Com as transformações políticas que outorgaram a dominação

para uma só pessoa, Otávio assumiu o título de imperator, derivado da

palavra imperium, termo revestido de caráter sagrado, que significava

“uma força transcendente, criativa e reguladora, capaz de agir sobre o

69 Norma Musco Mendes, “O Sistema Político do Principado”, em Gilvan Ventura Silva e

Norma Musco Mendes, (Org.), Repensando o Império Romano - Perspectiva Socioeconômica, Política e Cultural, São Paulo: Editoras FCAA, Edufes e Mauad, 2006, p.37.

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real e de o submeter à sua vontade”70. Acreditava-se que esse poder

era prerrogativa do deus Júpiter, concedido por este ao magistrado

escolhido pelo povo romano, capacitando-o ao governo e ao mesmo

tempo identificando-o com a divindade. Essa ideologia coadunava com

o pensamento oriental de um “benfeitor universal”, assumido por

Otávio Augusto e por seus sucessores.

Um fator importante, que marcou profundamente a visão de

mundo e a postura romana é que por tradição, o imperium deveria ser

concedido no campo de batalha pelos soldados vitoriosos que

aclamavam seu chefe ou general, concedendo-lhe o título de

imperator. Somente uma vitória em batalha permitia tal aclamação,

que deveria ainda ser confirmada pelo Senado. Durante o período do

Principado, especialmente na época de nosso maior interesse,

percebemos que essa tradição era bastante forte, uma vez que a

sucessão dos Imperadores não era hereditária (nem poderia ser, pelos

ideais republicanos ainda presentes). Esse título e a tradição a ele

vinculada acentuam a importância e a força que o exército romano

teve na história não apenas da expansão e conquista territorial

romana, mas em sua manutenção71.

Dessa forma, após a morte de Otávio em 14 d.C., o poder é

assumido por Tibério, que havia sido escolhido e preparado por Otávio

e confirmado pelo Senado (sem seguir a tradição mencionada acima,

embora houvesse recebido o comando militar superior antes da morte

de Otávio). Contudo, com a morte de Tibério em 37 d.C., como não

havia regras definidas para a sucessão, o exército aclama Calígula,

70 Norma Musco Mendes, “O Sistema Político do Principado”, em Gilvan Ventura Silva e

Norma Musco Mendes, (Org.), Repensando o Império Romano - Perspectiva Socioeconômica, Política e Cultural, São Paulo: Editoras FCAA, Edufes e Mauad, 2006, p.38.

71 Esse interesse do exército pelo Imperador pode ser compreendido também pelo fato de, nessa época, o exército ser permanente e depender do Estado (ou do Imperador) para sua manutenção!

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cuja designação é confirmada pelo Senado72. A tradição de aclamação

prossegue: em 41 d.C, com a morte de Calígula, os pretorianos73

aclamam Cláudio, tio de Calígula, decisão também confirmada pelo

Senado; em 54 d.C, com a morte de Cláudio, acontece a aclamação de

Nero (também pelos pretorianos), mais uma vez ratificada pelo

Senado74.

Com a morte de Nero, em 68 d.C. (portanto, exatamente no

período de nosso maior interesse, em meio à Guerra Judaica), inicia-se

a primeira crise sucessória do Império Romano. Durante o período de

um ano (entre 68 e 69 d.C.), quatro Imperadores assumem o governo:

Galba, Oto, Vitélio e Vespasiano, que havia sido aclamado pelo

exército e é confirmado pelo Senado, apesar de não ser legitimamente

romano (Vespasiano era proveniente de uma família rica da região da

Sabina, província romana)75. Vespasiano consolida sua autoridade

apesar de inicialmente ter a seu favor, aparentemente, apenas o

sucesso militar conseguido através da Guerra Judaica. É a partir de seu

governo que a “autoridade” do Princeps passa a ser reconhecida

constitucionalmente e não mais como uma “concessão temporária”

dada pelo Senado (o que viria a ser uma prerrogativa para a

monarquia absoluta).

Buscando a estabilidade e temendo uma nova crise, como a

acontecida nos anos 68 e 69 d.C., Vespasiano designa seus filhos como

seus sucessores, tendo-os como colaboradores principais de seu

governo. Dessa forma, com sua morte em 79 d.C., seu filho Tito o 72Norma Musco Mendes, “O Sistema Político do Principado”, em Gilvan Ventura Silva e

Norma Musco Mendes, (Org.), Repensando o Império Romano - Perspectiva Socioeconômica, Política e Cultural, São Paulo: Editoras FCAA, Edufes e Mauad, 2006, p.44.

73Originalmente, o termo “pretor” referia-se ao magistrado romano responsável pela administração da justiça e era, por isso, responsável pelo seu policiamento. Os pretores constituíam, dessa forma, uma força militar citadina, responsável especialmente pela segurança do Imperador.

74Norma Musco Mendes, “O Sistema Político do Principado”, em Gilvan Ventura Silva e Norma Musco Mendes, (Org.), Repensando o Império Romano - Perspectiva Socioeconômica, Política e Cultural, São Paulo: Editoras FCAA, Edufes e Mauad, 2006, p.44.

75Ibid, p.45.

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sucede por apenas dois anos, sendo seguido por seu irmão Domiciano

em 81 d.C., finalizando o que poderia ser chamada de “dinastia”

iniciada por Vespasiano. A partir de então, acontecem alterações nas

formas de escolha dos Imperadores, que deveriam ser indicados pelo

Imperador ainda reinante e ser a pessoa mais qualificada para exercer

essa tarefa.

Apresentamos essa breve exposição das sucessões de

Imperadores desse período de início e consolidação do Principado para

demonstrar como a noção de imperium estava ainda vinculada, nesse

período, à vitória militar que dava autoridade a um general para ser

aclamado, e como essa noção foi assimilada à política de Roma e ao

seu representante máximo, o Princeps ou Imperador.

Essa compreensão acerca do imperium transformou também a

visão de mundo romana acerca da abrangência dessa palavra, que

passou a significar não apenas o poder ou ato de governar, mas

também a própria região governada. Assim, a expressão Imperium

Romanum passou a designar não apenas o poder concedido ao

Princeps, mas o espaço em que este exercia seu poder. Essa seria a

gênese da ideia de Império transmitida desde então, da qual o Império

romano tornar-se-ia paradigma.

Esse Imperium era concebido pelos romanos como sendo

composto por dois espaços principais, a Urbs, identificada pela cidade

de Roma, que era o centro do mundo, e a Orbis Terrarum Imperium,

que seria constituída por duas partes: um território organizado e

submetido às leis civis romanas, e as externae gentes, representadas

pelas terras não anexadas mas que reconheciam a superioridade

romana.

Não podemos dizer, contudo, que as diversas áreas

conquistadas pelo Império Romano tenham sido anexadas obedecendo

a um programa elaborado, nem que houve algum planejamento

econômico acerca da exploração dessas terras. As palavras que

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poderiam ser utilizadas no contexto de exploração das terras

conquistadas e anexadas seriam integração e articulação: o Império

romano integrou as economias e as culturas conquistadas, procurando

articular seus interesses com os interesses das elites nativas, a fim de

gerar algum tipo de unidade que assegurasse a manutenção de suas

conquistas.

Percebemos que, na estrutura concêntrica do Império nascente,

em que Roma simbolizava o centro político e econômico (embora essa

centralidade econômica seja também questionável, e sofra

transformações devido ao estímulo do comércio), a integração entre

centro e áreas integradas (periféricas ou semi-periféricas) era feita

através de relações de troca de poder e riqueza entre as partes. Esse

tipo de relação, característico do sistema conhecido como Patronato,

será melhor explanado adiante, e é uma das razões da manutenção,

sempre que possível, de estruturas de poder nativas e da cooptação de

suas elites.

Temos que salientar, também, que as relações de exploração

exercidas por Roma também sofreram alterações, e não se

mantiveram iguais durante o período do Império. Num primeiro

momento, que aconteceu ainda durante o período republicano, o

interesse na expansão e consolidação do domínio romano (sobre a

Itália, inicialmente, e depois sobre os demais territórios), a exploração

consistiu na anexação de terras e obtenção de espólios de guerra

(bens materiais e humanos). Em seguida, houve um período que pode

ser entendido como “exploração desenfreada”, comandada por ações e

interesses individuais, sem sistematização, o que favoreceu a

corrupção e extorsão, o arrendamento de serviços públicos e a

cobrança de altas taxas de juros nos empréstimos feitos às províncias.

Com o Principado, temos uma terceira fase da exploração, mais

sistematizada e organizada, em que o “amadorismo” civil e militar

anteriores foram dando lugar a um burocrático aparelho de Estado que

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visava um melhor e mais efetivo controle e uma exploração mais

racional das áreas dominadas.

Obviamente tal descrição é tipológica, e sabemos que esses

períodos de exploração não foram claramente definidos, uma vez que

o processo de conquista foi longo, e as províncias apresentavam

estágios diferentes desse processo e formas diferenciadas de reação –

que muitas vezes definia o tipo de tratamento que tal província

receberia. Além disso, temos que considerar o que dissemos

anteriormente sobre a “política de integração” das diferentes

realidades que compunham o Império, que fez com que o

relacionamento fosse diferenciado. No entanto, percebemos que os

territórios conquistados, independentemente de sua situação, eram

considerados como áreas legítimas de exploração, terras públicas de

Roma.

2.1.2. Reorganização do Espaço Como Tática de

Dominação

Através do exposto, percebemos que já estava arraigada, no

primeiro século de nossa era, uma auto compreensão romana de

superioridade diante de outros povos. Por isso, Roma deveria cumprir

sua missão “civilizadora” e estabelecer seu domínio universal sobre

esses povos. Nesse contexto, o processo de conquista territorial e

dominação assume funções que vão além da ocupação militar e

exploração econômica acima esboçados, utilizando diversos outros

mecanismos a fim de propagar o que poderíamos chamar de um

“projeto cultural” que difundisse a identidade romana aos povos

conquistados e anexados ao Império.

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Esse processo de propagação é o que tem sido chamado de

Romanização76 – um esforço por parte da metrópole, Roma, para

difundir seu modo de pensar e viver aos povos conquistados. Ao

falarmos sobre esse termo e sobre o sentido do mesmo, entretanto,

precisamos ter cuidado, pois como tantos outros, esse tem sido um

termo mal compreendido e por vezes utilizado de forma simplista nos

estudos acerca da história desse período. Conforme mencionamos,

precisamos ter em mente que os processos romanos de expansão e

conquista aconteceram de forma heterogênea e complexa, com

diversas fases e também diversas formas de percepção e reação. Não

podemos ser simplistas ao verificar esses fenômenos, ou reduziremos

sua dimensão.

O termo “romanização” foi utilizado muitas vezes para designar

a forma de mudança cultural resultante da incorporação de uma

cultura por outra, vinculado ao termo “aculturação”, que indicaria um

tipo de transmissão de cultura do povo dominador sobre o dominado

de forma uniforme e “progressista” (concordando com a ideia de que a

cultura romana, nesse caso, seria “superior”). Sabemos, entretanto,

que a interferência entre culturas não se processa dessa forma e,

especialmente no que concerne a povos dominados, os graus de

assimilação e resistência são muito variados. Além disso, havemos de

considerar que esse processo sempre representa, ainda que de forma

desigual, algum nível de intercâmbio, ou seja, o pensamento romano

também era influenciado, muitas vezes, pelos costumes e culturas dos

povos conquistados.

De qualquer forma, havia um interesse em estabelecer um

“modo romano de viver” a partir da crença na superioridade romana e

em sua missão de civilizar o mundo. Dentre as estratégias utilizadas

para esse fim, de forma consciente ou não, destacaremos algumas que

consideramos relevantes para a compreensão do contexto da Palestina 76Termo que surge na historiografia em fins do século 19 e início do 20, significando o

contato entre os romanos e outros povos e a difusão de seus padrões a esses povos.

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no período de escrituração do texto de Marcos, salientando tratarem-

se de apenas alguns aspectos dos complexos mecanismos de relação

entre Roma e os povos conquistados.

Uma das estratégias utilizadas pelo Império Romano para

promover a já citada integração das terras conquistadas foi a

reestruturação e redefinição do espaço e dos territórios conquistados.

Essa reestruturação poderia acontecer pelo menos de duas formas

diferentes: através de aliança, em que os líderes e elites dos povos

dominados eram incluídos na órbita romana, aceitando a hegemonia

política romana, ou através de subjugação, em que, após resistência,

os povos derrotados eram submetidos ao jugo romano – massacrados

ou escravizados, tendo suas terras tomadas e divididas entre os

romanos e seus aliados77.

Em muitos casos, como na região da Palestina, parece ter

havido formas híbridas de dominação, pois as formas de resistência

eram variadas. Percebemos, contudo, que havia uma tendência maior

à revolta nos meios rurais, tradicionalmente periféricos, enquanto nas

cidades, onde se concentrava a maior parte da elite, as alianças eram

estabelecidas. Além disso, diante do costume romano de estabelecer

colônias romanas entre os povos conquistados, concedendo terras a

camponeses (cidadãos romanos) e aos soldados (como forma de

reconhecimento/pagamento), havia uma grande ameaça aos meios de

sobrevivência dos camponeses, que dependiam da terra para sua

subsistência. Como mencionamos no capítulo anterior, esse costume

parece ter acentuado e acelerado o processo de empobrecimento dos

camponeses da região da Palestina e da Galiléia, mais especificamente.

Destaca-se também, nesse processo de reestruturação do

espaço, uma ênfase no estabelecimento, desenvolvimento ou

remodelamento de cidades romanas (civitates), que representavam o

ideal romano de vida e serviam para estabelecer certa unidade ao

77 Pedro Paulo de Abreu Funari, Grécia e Roma, São Paulo: Contexto, 2004, 142p.

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Império, dando-lhe certa coerência. As cidades serviam, além disso,

como um centro organizador das áreas rurais e como centralizadoras

econômicas, possibilitando o gerenciamento do excedente produtivo e

a centralização dos tributos. Além disso, representavam os centros da

cultura romana e reproduziam o modo romano de viver. Nesse sentido,

podemos compreender melhor as diversas obras de Herodes Antipas,

citadas no capítulo anterior, como uma tentativa de “adequação” do

território aos gostos e interesses romanos, assumindo assim seu papel

como “rei cliente” – papel que seria também desempenhado por seus

sucessores, e mesmo pelos procuradores romanos.

O estabelecimento das colônias, a reestruturação do espaço

urbano e a ampliação das redes de acesso viário, enfim, todo o

programa de reestruturação do espaço aplicado por Roma às

províncias funcionaram como demonstração de sua dominação sobre

essas regiões, e serviram como meios de inserção que acarretaram

mudanças econômicas, políticas e culturais significativas, aumentando,

pelo menos na região da Judéia, os desníveis econômicos e acirrando

as diferenças sociais locais.

Precisamos entender melhor, nesse ponto de nossa análise, a

relação política estabelecida entre Roma e as províncias. Para isso,

analisaremos mais detalhadamente o que seria essa forma de governo

que temos chamado de Principado.

2.1.3. Princeps, Patrono e Imperador

Como dissemos anteriormente, o período político conhecido

como Principado estabeleceu-se como um regime que mesclou padrões

e costumes antigos (vindos do período republicano) e novos.

Dentre as concepções antigas, reapropriadas e resignificadas

pelo Principado estão os conceitos de Princeps e Patrono, ambos de

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significado amplo e complexo, altamente importante para a

compreensão das relações políticas do período.

Segundo Paul Veyne78, “clientela” e “patronato” eram palavras

que os romanos utilizavam para pensar as mais diferentes relações,

integrando o cotidiano de pessoas de todas as classes sociais romanas.

Significava um tipo de relação pessoal estabelecida pela prestação de

algum favor ou benefício entre pessoas, que poderiam ser “pares” (ou

seja, pessoas de mesmo nível social) ou não (nesse caso, o favor era

prestado normalmente pelo detentor da condição mais alta). Esse

processo geraria uma relação de troca recíproca, em que o patrono

provaria seu meritum através de suas ações, que deveriam, por sua

vez, ser respondidas com gratia, ou seja, reconhecimento e lealdade.

As pessoas recebedoras dos favores do patrono eram chamadas de

amigos (amici), em caso de terem o mesmo nível social, ou mais

frequentemente de clientes.

Dessa forma, o termo patrono era usado para descrever o papel

que um indivíduo tinha na sociedade, e a consequente atenção que

recebia em função de suas capacidades morais e materiais, que lhe

dava autoridade (auctoritas) para atuar publicamente. Assim, um

patrono poderia ser conhecido pela quantidade de “amigos” ou

“clientes” que conseguia devido às suas virtudes e às suas realizações,

sendo necessário, portanto, certo grau de riqueza para que pudesse

ser considerado um benfeitor e, dessa forma, ter destaque ou fama.

O patronato constituía uma relação de troca, pois assim como os

amigos ou clientes precisavam da ação do patrono, este também

precisava do reconhecimento e da fidelidade destes para mostrar sua

dignidade e mérito. Esse era um fator de valor moral importantíssimo,

inclusive para que tal patrono pudesse vir a ter algum cargo público.

78Paul Veyne, “O Império Romano”, em G. Duby e P. Áries (organizadores), História da

Vida Privada, São Paulo: Companhia das Letras, 1990, volume 1, p.111.

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Assim, estabeleceu-se nas cidades romanas, desde períodos

republicanos, a figura de notáveis locais que se destacavam por suas

ações em favor de seus clientes e das próprias cidades, como forma de

demonstrar sua dignidade. Veyne usa a expressão evergetismo79 para

descrever esse tipo de ação, em que tais notáveis ofereciam à cidade e

seus cidadãos edifícios públicos, festas, banquetes e espetáculos

(como os de gladiadores, que veremos adiante). Esses notáveis eram

chamados, ainda no período republicano, de Príncipes Civitates, o

“Príncipe da Cidade”, função que se tornou uma obrigação pública

daqueles que desejavam mostrar que pertenciam à classe

governante80.

O Princeps deveria ser, nesse contexto, o cidadão mais

proeminente de uma cidade, o “primeiro entre os pares”, destacado

por sua popularidade, dignidade e autoridade.

O sistema político do Principado, com sua centralização de poder

(advinda da centralização da cidade de Roma como centro do Império

e cidade mais importante) fez nascer um regime instituído pela

monarquia de um chefe intitulado significativamente Princeps. Essa

representação é muito importante para nós, pois apresenta o

governante romano como um “cidadão especial”, alguém com papel de

destaque que deveria desempenhar, como veremos, sua função como

“máximo patrono” do Império Romano e de seu povo!

A nova estrutura política estabelecida no Principado, em que o

governante detinha o Imperium, o poder de governar (como vimos

anteriormente), foi marcada por relações de trocas pessoais baseadas

no sistema do patronato, em que o Princeps/Imperador desempenhava

a função de “Supremo Patrono” de Roma, seu sumo benfeitor. As

relações políticas estabelecidas – inclusive no que concerne à eleição e

nomeação para cargos políticos, mesmo nas províncias, obedecia à

79Paul Veyne, “O Império Romano”, em G. Duby e P. Áries (organizadores), História da

Vida Privada, São Paulo: Companhia das Letras, 1990, volume 1, p.114. 80 Ibid, p.114, 115.

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estrutura de clientelismo e dependia, obviamente, de um bom

relacionamento com o Imperador ou com sua rede de amigos mais

próximos.

Mais uma vez, ressaltamos a necessidade de perceber que o

processo político aconteceu de forma dinâmica, e que cada Imperador

lidou com o poder de forma diferenciada, assim como cada província e

cada grupo governante local respondeu de forma também

diferenciada. No entanto, importa-nos saber que essa rede de

relacionamento foi mais um fator de agregação do Império, uma vez

que os líderes nativos das províncias, bem como os procuradores

romanos designados para tais cargos (como foi o caso da Judéia),

tinham interesse em manter sua posição e privilégios e, por isso,

precisavam demonstrar gracia, (reconhecimento e lealdade) ao

Imperador conservando a paz e a ordem em sua região, bem como

mantendo a fidelidade no envio de tributos e presentes. A habilidade

com que cada um desses líderes faria isso, tornando-se também

“patronos” da população em cada região, demonstraria sua capacidade

de permanecer ou não no cargo ocupado81.

O paradoxo dessa posição do Imperador como Princeps e

Patrono de Roma, porém, é que à medida que crescia seu poder (e

diminuía o poder do Senado), foi sendo criado um cada vez mais

apurado aparelho de Estado que tornava o Princeps gradativamente

mais distante da população de quem devia ser o benfeitor, alterando o

caráter de relacionamento direto que era uma marca do patronato. Ao

mesmo tempo, como vimos anteriormente, esse distanciamento

significou a perda de poder da população.

Além disso, com o estabelecimento desse sistema no

relacionamento entre as províncias e a capital do Império, coube aos 81Não havia interesse, da parte de Roma, de que as populações das províncias se

revoltassem, daí a necessidade de as elites e governos locais estabelecerem meios de controle e manutenção da paz. Percebemos que, no caso das províncias da Palestina, não houve essa habilidade, e o agravamento das diferenças econômicas acentuou o clima de revolta da população.

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lideres nativos, como dissemos, a tarefa de demonstrar

constantemente seu reconhecimento ao Imperador, o que acirrou as

diferenças econômicas e sociais nas províncias e estimulou a

exploração dessas elites nativas sobre as populações locais, a fim de

que estas pudessem cumprir fielmente suas obrigações econômicas

com Roma, e até excedê-las através de presentes, quando possível.

Percebemos que o patronato no período do Principado tinha dois lados:

estabelecia uma rede de relações cada vez mais hierárquicas, cujo

ápice era o Princeps, das quais as elites e lideranças faziam parte

ainda que de forma distante, e ao mesmo tempo estabelecia níveis

cada vez maiores de marginalidade, tendo o Princeps e Roma como

referencial. Dessa forma, tomando a Palestina como exemplo, esta

poderia ser considerada como periferia do Império e, dentro dela, a

Galiléia, zona predominantemente rural, era a periferia. Da mesma

forma, se a liderança nativa era cliente e devedora do Imperador, a

população local da província o era (ou deveria ser) desses líderes, que

deveriam proporcionar (mas de fato não o faziam, na maior parte das

vezes) à população algum tipo de benefício.

Construção de edifícios públicos, promoção de festas, banquetes

e espetáculos, e distribuição de donativos estavam entre esses

benefícios que deveriam ser concedidos à população pelo benfeitor. No

caso da capital do Império, a cidade de Roma, o Imperador era o

responsável pela manutenção dessa obrigação e, nos demais lugares,

seus representantes deveriam fazê-lo.

Analisaremos a seguir um fenômeno do mundo romano que

compunha essa gama de “benefícios”, e que se destacou como uma

das marcas dessa civilização, transmissor dos valores romanos e de

“romanização” e, ao mesmo tempo, pode ser entendido como um meio

de manifestação popular: as lutas de gladiadores.

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2.2. O FENÔMENO DOS MUNERA

Durante séculos, as lutas de gladiadores (munera82) atraíram os

olhares e interesses do público romano. Ainda hoje, por diversos

motivos, esse fenômeno chama a atenção, suscitando comentários que

vão desde o estranhamento pela violência dos espetáculos à procura

pelo significado dos mesmos.

A origem dos munera é incerta, e compõe ainda fonte de

discussão entre pesquisadores da área. Renata Senna Garraffoni

apresenta a data provável de 264 a.C. para a apresentação do

primeiro combate de gladiadores em Roma, embora saliente que esse

dado ainda é discutível, assim como a tradicionalmente aceita origem

etrusca de tais combates83.

Na atualidade os combates de gladiadores continuam sendo alvo

de interesse e atenção, constituindo fonte para os mais diversos

sentimentos, que vão da curiosidade para entender a razão do fascínio

exercido tanto tempo pelos espetáculos à repulsa pela violência dos

mesmos, tão enfatizada. De fato, imaginar que grandes públicos,

formados por pessoas das mais diferentes condições sociais e

culturais, se aglomerassem em anfiteatros para assistir a combates

sangrentos, caçadas, execução de criminosos ou simulações de

batalhas navais (naumáquias) soa-nos estranho e muitas vezes

incompreensível.

82Munus, palavra latina cujo plural é munera, é um termo de caráter jurídico-social

cujo significado pode ser “empenho”, “presente”, obrigação”, gratificação”, representando um dever que um cidadão deveria prestar aos demais (como a obrigação de um magistrado com relação a seus encargos, bem como as obrigações dos nobres das cidades para com sua população). O vínculo com os combates de gladiadores parece advir do fato de que, inicialmente, tais combates, de significação religiosa, representava uma homenagem de honra que deveria ser prestada a um falecido ilustre (múnus funebre), constituindo uma “obrigação” de seus familiares. Acerca dos significados do termo, conforme Pedro Paulo de Abreu Funari, Cultura Popular na Antiguidade Clássica, São Paulo: Editora Contexto, 1989.

83Renata Senna Garraffoni, Gladiadores na Roma Antiga – Dos Combates às Paixões Cotidianas, São Paulo: Fapesp/ Anablume, 2005, p.19.

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Talvez realmente não sejamos capazes de compreender esse

fenômeno e a influência que exerceu na vida e na mentalidade romana

por mais de seis séculos84, mas cremos que muito de nosso

estranhamento deve-se ao fato de que os conhecimentos que temos

sobre as lutas de gladiadores tendem a ser simplistas, exaltando

apenas um lado ou uma parte das mesmas, sem considerar a

necessidade de verificar tal fenômeno como algo complexo, composto

por vários aspectos e realidades (como temos ressaltado diversas

vezes nesse trabalho). Em outras palavras, a percepção simplista que

recebemos acerca das lutas de gladiadores (como de outras realidades

históricas) tende a nos tornar preconceituosos e nos impede de ver

que há muito mais significados envolvidos nesse fenômeno.

Dessa forma, nossa proposta é tentar verificar melhor a

complexidade do fenômeno dos munera e seus significados,

especialmente no período histórico de nosso maior interesse, ou seja,

o primeiro século da era cristã, considerando o contexto de mudanças

políticas e sociais desse período, nos aspectos apresentados acima.

Ao procurar compreender os combates dessa forma dinâmica e

complexa, percebemos, através da verificação dos discursos

historiográficos acerca do mundo romano, que os autores tenderam a

ressaltar aspectos parciais do fenômeno, dando a estes uma condição

por vezes dogmática de “única interpretação possível”. Felizmente,

esse tipo de posicionamento tem sido questionado e repensado pela

historiografia moderna, que tem apresentado pesquisas que

consideram as complexidades e as diversas possibilidades de

interpretação dos fatos históricos.

As pesquisas sobre os munera remontam ao século 19,

juntamente com pesquisas acerca de outros tipos de espetáculos (os 84Consideramos as datas prováveis de 264 a.C. para a realização do primeiro combate

público em Roma e a data de 313 d.C, em que o Imperador Constantino proibiu os combates, como marcos referenciais, embora saibamos que os mesmos aconteceram desde antes dessa data, bem como se estenderam pelo menos por mais alguns anos após o decreto de Constantino.

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jogos circenses e o teatro), e existe uma diversidade de percepções

acerca de como se organizavam os espetáculos, seus significados e

funções sociais. Assim, no século 19 e início do 20 os espetáculos,

especialmente os combates de gladiadores, foram interpretados como

parte da chamada política do “pão e circo”, que visava alimentar e

divertir uma população ociosa e desinteressada. Essa visão, bem como

a expressão que a denomina, tornou-se popular. Já nos anos de 1970,

propõe-se uma interpretação das arenas como espaço de confronto

entre o povo e o Imperador, alterando a visão de que a população era

desinteressada, dando um caráter mais político aos combates, todavia

continuando com a tradição de visão única e homegeneizante do

fenômeno. Na década de 1980, os estudiosos passam a perceber a

possibilidade de interpretação levando em conta aspectos culturais dos

espetáculos, suas particularidades e complexidade85.

Nesse contexto, Garraffoni86 apresenta sua pesquisa acerca dos

munera de forma diferenciada, considerando não apenas as diversas

possibilidades interpretativas desse fenômeno ao levar em conta as

diferenças regionais e temporais (uma vez que os combates

aconteceram por um período muito longo, numa vasta região), mas

também dando lugar à pesquisa que busca identificar um tipo de

manifestação popular sobre os combates, fato até então pouco

observado, uma vez que os estudos costumam levar em conta

normalmente materiais escritos em sua maior parte pelas elites.

Consideraremos, contudo, o estudo e opiniões dos diversos

classicistas mencionados como passos importantes para a

compreensão dos munera, passos que, se verificados à luz de outras

possibilidades, podem nos indicar pistas de análise bastante

interessantes, se relacionadas e vistas como partes do complexo

85Renata Senna Garraffoni, Gladiadores na Roma Antiga – Dos Combates às Paixões

Cotidianas, São Paulo: Fapesp/ Anablume, 2005, p.59- 90. 86Renata Senna Garraffoni, Gladiadores na Roma Antiga – Dos Combates às Paixões

Cotidianas, São Paulo: Fapesp/ Anablume, 2005, 225p.

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imaginário romano. Sabemos que ainda dessa forma não poderemos

supor “desvendar definitivamente” esse fenômeno complexo e amplo,

mas cremos ser possível identificar elementos que nos ajudem na

compreensão de parte da realidade vivenciada e expressa nos

combates de gladiadores no primeiro século da era cristã, e relacioná-

los com a estrutura narrativa do texto bíblico estudado, estabelecendo

um diálogo entre o texto e os munera.

2.2.1. Além do Sangue: Princípios e Valores nos Munera

Um primeiro aspecto que chama a atenção com relação aos

munera é, como salientamos anteriormente, a violência dos combates,

e o fato de pessoas dos mais diferentes níveis sociais e culturais se

reunirem para assistir a tais demonstrações de violência.

Ao analisar os combates temos que ter em mente, porém, que

os conceitos de “violência” são relativos e dinâmicos, socialmente

criados, assim como a maioria dos conceitos morais que utilizamos.

Essa ideia pode parecer chocante à nossa “sensibilidade

contemporânea”, mas não devíamos nos espantar, uma vez que

percebemos, mesmo em nossa época, que os padrões que definem

quais níveis de violência são “moralmente aceitos” são diferentes em

cada cultura, e são constantemente transformados. Portanto, para um

romano não consistia nenhum crime abandonar filhos indesejados (ou

filhas, na maioria das vezes) aos apetites dos animais na floresta, ou à

mercê de mercadores de escravos ou de quem as desejasse, nas

cidades87, da mesma forma que não é chocante em muitas sociedades

contemporâneas a prática de aborto, a doação de crianças indesejadas

para adoção ou a eutanásia.

87Paul Veyne, “O Império Romano”, em G. Duby e P. Áries (organizadores), História da

Vida Privada, São Paulo: Companhia das Letras, 1990, volume 1, p.23- 26.

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Não podemos julgar com nossos padrões morais uma sociedade

formada e mantida através de princípios e valores militares rígidos,

como o era a sociedade romana, por encarar com naturalidade (e até

entusiasmo) a morte apresentada nos combates da arena, chamados

de “espetáculos”. Na verdade, a arena expressava, como veremos

adiante, a visão de mundo e os valores dessa sociedade,

materializando-os e tornando-os palpáveis. Esses valores, inclusive o

conceito de morte e o significado da morte na arena, precisam ser

compreendidos, a fim de que possamos superar a ideia de que as

arenas eram apenas uma demonstração bizarra de sadismo.

Em sua origem, os munera eram ritos sagrados privados, uma

homenagem oferecida por um falecido ilustre e, por isso,

desempenhava uma função sagrada de comunicação com os deuses e

ao mesmo tempo de sacrifício ritual. Segundo essa idéia, o sangue

derramado nos combates servia para aplacar a ira dos deuses e tinha

um poder de manter a alma do falecido em segurança88. Ao

popularizar-se em Roma, os munera foram resignificados, e perderam

gradualmente grande parte desse caráter sacro, mas podemos crer

que seu significado “vicário” sempre esteve presente, sob outras

formas de compreensão e manifestação, embora as formas de culto, a

religião e a sociedade tenham mudado.

O aspecto de manutenção da ordem ou de vitória sobre o caos

adjacente ao rito acima descrito, por exemplo, pode ser encontrado na

idéia de soberania de Roma sobre seus inimigos, presente nos

combates em que os gladiadores eram prisioneiros de guerra vencidos,

ou através da apresentação e execução de criminosos (especialmente

criminosos políticos) que haviam perturbado a paz do Império, ou nas

demonstrações de superioridade diante da natureza e do mundo

88J. Garrido Moreno, “El Elemento Sagrado En Los Ludi Y Su Importancia En La

Romanizaciòn Del Occidente Romano”, em Ibéria: Revista de La Antiguidad, ISSN 1575-0221, nº 3, 2000, p.51-82. Disponível em http//www.dialnet.unirioja.es/servlet/articulo/codigo201019

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“bárbaro”, quando animais eram caçados nas arenas. No Principado,

não havia mais sacrifício aos deuses ou aos ancestrais, mas um

“sacrifício” ao Império e ao Imperador (a quem também se devia

culto), para manutenção da paz e da ordem!

Com o desenvolvimento dos combates e a gradativa diminuição,

pelo menos oficialmente, de seu caráter sagrado/religioso, os

combates passam a ser identificados pelo termo ludi89, assim como os

jogos circenses, as corridas de carros e o teatro. O caráter religioso

desses espetáculos nunca deixou de existir (como salientamos acima),

mas ao passarem a ser considerados como “jogos”, foram agregados

outros aspectos e significados aos mesmos, fazendo com que a

comunicação estabelecida nos combates se desse não apenas com a

divindade, mas entre as pessoas. Isso porque os jogos, em sua

natureza, eram uma forma de reprodução da relação que as pessoas

tinham com o mundo e, ao mesmo tempo, uma forma de poder, por

transmitirem ideais e valores compartilhados que deveriam ser

seguidos.

Esses valores, como mencionamos anteriormente, expressavam

os ideais em que a mentalidade romana estava alicerçada: virtude,

coragem, disciplina e paciência ou destemor diante da morte, além da

fama, da glória e da manutenção da paz e da ordem. Os munera, de

certa forma, criavam um paradoxo, pois os gladiadores, personagens

centrais nesses eventos, eram em sua maioria pessoas consideradas

infames pela sociedade: criminosos, prisioneiros de guerra. Mesmo os

homens livres que se “vendiam” para o trabalho na arena passavam a

ser considerados dessa forma. No entanto, ao adentrarem à arena, de

acordo com seu desempenho, poderiam adquirir “fama” e, de certa

forma, ser “aceitos” socialmente. O reconhecimento e a fama poderiam

vir tanto através da vitória como da derrota: se vencesse, o gladiador

poderia construir uma “carreira” que lhe daria glória e 89Plural de ludus, palavra geralmente traduzida como “jogo”, que foi usada também

para identificar escolas de gladiadores, em que estes treinavam para os espetáculos.

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reconhecimento; se perdesse, mas tivesse lutado bravamente,

demonstrado uirtus90, poderia ser perdoado ou ter uma morte digna

(pela espada), concedida apenas aos cidadãos romanos.

O poder de decisão acerca do destino do gladiador derrotado

era, pelo menos teoricamente, da multidão. Acerca desse poder, há

muito a ser questionado porque a última palavra cabia, na verdade, ao

Imperador (ou seu representante) que era, no Principado, quem

oferecia o espetáculo.

Além do significado religioso e de expressão de valores morais

da sociedade romana, a arena funcionava também como símbolo dos

poderes políticos e da superioridade de Roma, responsável pela “paz” e

pela “ordem” que deveriam ser mantidas. Nesse sentido os munera

podem ser vistos como um meio de controle social e político, de

legitimação das estruturas sociais e como meio de coerção. A arena

serve para demonstrar o destino daqueles que se opõe de alguma

forma ao poder Imperial.

Essas significações presentes e adjacentes aos munera não

devem ser entendidas, contudo, como percepções totalmente

racionais, compreendidas pelas diversas pessoas que realizavam ou

assistiam aos espetáculos. Tampouco devemos pensar que tais

significações e percepções eram as mesmas entre pessoas de

diferentes classes sociais ou lugares. Por exemplo, a percepção que

um habitante da cidade de Roma acerca de um espetáculo e seus

valores adjacentes seria deveras diferente da de um habitante de

90Virtus era um conceito que representava a integração de valores morais que

concediam ao homem a excelência global e a solidez de caráter que deveriam caracterizar o “homem ideal romano”. Dentre as “virtudes” a serem desenvolvidas destacavam-se a pietas (piedade) referente aos deuses, à família e à compaixão com os vencidos, a fides (lealdade) relativa ao respeito aos pactos políticos, militares e individuais e a gravitas (dignidade), que expressava o domínio de si mesmo, a capacidade de enfrentar situações difíceis (inclusive a morte) com serenidade e a emissão de juízos. Esses valores faziam parte do ideal da elite, e eram esperados dos homens públicos, especialmente, mas de certa forma eram valores compartilhados que faziam parte do imaginário popular como o perfil do “homem ideal romano”.

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Província. Temos que ter em mente que não apenas os significados

poderiam ser diversos, mas as formas de pensar acerca dos mesmos

seriam dinâmicos e diversos. Dessa forma, não podemos supor, por

exemplo, que os valores apresentados como fundamentais à

mentalidade romana “oficial” (como o conceito de uirtus e o desejo de

recuperar a fama, por exemplo) fossem aceitos por todas as pessoas,

indistintamente. Podemos questionar quais ideias outras regiões do

Império – a Palestina, por exemplo – apresentavam acerca desses

valores.

2.2.2. Os Munera e o Exercício de Poder

Voltando aos conceitos de “patronato” e “evergetismo” citados

anteriormente, e lembrando o papel ocupado pelo Princeps como o

maior benfeitor de Roma e supremo patrono, e dada a importância

simbólica e factual dos combates de gladiadores, o Princeps/Imperador

torna-se, desde Otávio Augusto, o responsável pelo oferecimento

desse tipo de espetáculo à população, assim como pela distribuição de

grãos à mesma, na cidade de Roma. Nas demais cidades e províncias

do Império, essa tarefa seria assumida pelos representantes do

Imperador, os governantes nomeados pelo mesmo91. Dessa forma, os

munera passaram a ser cada vez mais relacionados ao Estado

Romano, tanto no que se refere à sua realização como aos seus

significados, embora nesse caso as mudanças sejam mais gradativas e

diferenciadas, uma vez que dependiam de fatores subjetivos que

escapavam ao controle do Estado.

De qualquer forma, é interessante observarmos como os

processos de transformação caminham de forma semelhante: a

91Ana Teresa Marques Gonçalves, “As Festas Romanas”, em Revista de Estudos do

Norte Goiano, volume 1, nº 1, ano 2008, p.51.

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religião, outrora familiar e representada pelo “pai”92, que era o

sacerdote, foi se institucionalizando a ponto de, já no período da

República, passar a ser representada pelo Princeps da cidade e depois

pelo Imperador, assim como os espetáculos de gladiadores, que

outrora eram privados e oferecidos pelas famílias, depois pelo Princeps

da cidade e, finalmente, pelo Imperador, o Princeps de Roma!

Podemos, a partir dessa constatação, concordar com a historiadora

Ana Teresa Marques Gonçalves, “os rituais não são máscaras para o

poder, mas uma forma de poder”93, pois “num momento festivo ou

ritualístico se definem várias formas de interação e de relacionamento

social, criando-se hierarquias e estruturando-se formas de poder”94.

No período do Principado, cremos que essa manifestação de

poder realmente acontecia nos combates de gladiadores de forma

dinâmica, ao mesmo tempo manifestando o poder de Roma e do

Imperador e a participação ou intenção da plebe, da população. Em

outras palavras, cremos que as arenas eram espaços de transmissão

de ideias e ideais, de oferecimento de rituais e ao mesmo tempo de

confronto e conflito.

Do ponto de vista dos detentores do poder oficial, o fato de a

realização dos espetáculos ter sido assumido pelo Imperador já é

bastante significativo. Demonstra que havia consciência da importância

desses eventos e das possibilidades que os mesmos representavam –

possibilidades de construção e transmissão de ideias, de justificação e

manutenção das estruturas sociais. Embora não possamos dizer que

havia qualquer tipo de hegemonia no Império Romano, nem no campo

das ideias, os valores simbólicos compartilhados adjacentes aos

munera serviam para validar e fortalecer as ideias transmitidas neles e

através deles e, nesse sentido, deter o “controle” dos combates era

92Numa Denis Fustel de Coulanges, A Cidade Antiga – Estudos Sobre o Culto, o Direito,

as Instituições da Grécia e de Roma, São Paulo: Editora Hemus, 1975, p.188- 195. 93Ana Teresa Marques Gonçalves, “As Festas Romanas”, em Revista de Estudos do

Norte Goiano, volume 1, nº 1, ano 2008, p.26. 94Ibid, p.26.

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deter o poder de influenciar e produzir idéias socialmente aceitas, o

que é, segundo Faversani, “elemento fundamental para a construção

de hierarquias e objeto de luta social”95. Em outras palavras, ideias são

poder, e as oportunidades de reafirmação e propagação dos valores

romanos presentes nos munera constituíam uma oportunidade ímpar

de exercício de poder.

Além disso, ao assumir o controle sobre os espetáculos sob as

estruturas do patronato, cria-se uma relação de benefício/dívida que

não pode ser ignorado. A ingratidão era um tipo de comportamento

intolerável. Por isso, ao aceitar um benefício, os compromissos de

reconhecimento e lealdade deveriam ser exercitados. Nesse caso,

embora não houvesse também hegemonia nesse aspecto,

especialmente durante os espetáculos, em que a aglomeração de

pessoas facilitava o anonimato e dava por isso a possibilidade de uma

manifestação mais livre por parte do público, talvez houvesse o desejo

de produzir aquele tipo de sentimento.

Acerca dessa possibilidade de manifestação, a percepção dos

munera como lugar de confronto e conflito significa que estas eram

ocasiões em que as pessoas poderiam manifestar-se diante dos

magistrados, dos nobres e do próprio Imperador. Ao mesmo tempo

que para o Imperador era uma forma de “testar” sua popularidade, as

pessoas podiam também manifestar-se. Em um contexto político em

que a participação popular havia se extinguido, como era o caso, e em

que o contato entre o povo e o Imperador (e mesmo os senadores)

havia deixado de acontecer, esse encontro era uma grande

oportunidade de manifestação, especialmente se destacarmos o fator

da facilidade de anonimato mencionado acima. Todavia, esse contato

não abalava de nenhuma forma o Imperador, que certamente se

resguardava de qualquer ameaça, e pode ser entendido como uma

95Fábio Faversani, “Pequenos Impérios e Sociedade Na Roma Imperial”, em Fábio

Vergara Cerqueira e outros, Guerra e Paz No Mundo Antigo, Pelotas: IMP e LEPAARQ, 2007, p.225. 223- 237p.

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“liberdade concedida” exatamente com a intenção de demonstrar

“disponibilidade” “acessibilidade”, gerar nas pessoas das mais

diferentes classes e condições sociais um sentimento de pertencimento

ao glorioso Império Romano (que era negado no dia a dia à maioria

das pessoas) e inibir qualquer tentativa real de mudança, que seria

entendida como traição ao Império.

2.2.3. Apresentando os Munera: Na Arena

Mencionamos acima que os combates de gladiadores, em seu

início, eram vinculados a funerais privados, oferecidos por grandes

famílias romanas, tornaram-se espetáculos públicos desde 264 a.C.,

popularizaram-se depois dessa data a ponto de serem considerados,

até hoje, como um marco e símbolo da civilização romana. Verificamos

também que tais espetáculos passaram a ser oferecidos pelos princeps

das cidades e que, a partir de Otávio Augusto, todos os combates

passaram a ser realizados em nome do Princeps de Roma, o

Imperador. Procuramos perceber, dentre a imensa gama de

possibilidades interpretativas desse fenômeno, algumas possibilidades

de compreensão de seus significados e a forma como esses

significados foram assimilados e utilizados na construção da identidade

romana. Falta-nos verificar, ainda, como aconteciam os espetáculos, e

o que era esperado num dia de “jogos gladiatórios”.

Primeiramente, precisamos diferenciar os munera das

venationes. Os primeiros eram combates realizados entre homens

(eventualmente mulheres), relembrando batalhas do passado ou

fazendo parelhas de combatentes, enquanto as segundas eram lutas

entre animais ou caçadas realizadas nas arenas dos anfiteatros. Os

anfiteatros eram construções que poderiam ser desmontáveis (de

madeira) ou permanentes, de pedra, de formato oval, e recebem esse

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nome exatamente porque correspondiam ao formato de “dois teatros”.

A existência de anfiteatros de madeira nos indica que eram

espetáculos que poderiam ser transportados pelas mais diversas

regiões do Império, fato que nos ajuda a compreender melhor a

extensão do alcance desse fenômeno.

Nos anfiteatros, os lugares eram determinados e demarcados de

acordo com a classe social do público, sendo reservado, na primeira

fileira, o podium para o Imperador e seus convidados. Depois, havia as

arquibancadas (maeniana), divididas em andares. Os gladiadores, que

preparavam-se para os espetáculos em uma escola própria, formavam

grupos chamados de famílias, chefiadas por negociantes especializados

em combates. Na véspera dos combates, que eram amplamente

anunciados, participavam de um lauto banquete (cena libera) do qual o

público podia participar.

Desde Otávio Augusto, os espetáculos passaram a ser

organizados e a seguirem um padrão. Pela manhã, por volta das nove

horas, aconteciam as matutina, com a apresentação das venatione –

os combates entre animais, combates de homens contra animais

(bestiari) e caçadas, como mencionamos anteriormente. Ao meio-dia,

no chamado meridiani, faziam-se execuções públicas de criminosos, e

apresentavam-se danças e competições atléticas. Finalmente, à tarde,

eram realizados os combates entre gladiadores, a parte mais esperada

do dia96.

Percebemos nessa estrutura dos espetáculos muitos valores e

significados que, como vimos, passaram a ser usados como

instrumento romano não apenas de propagação de ideias, mas de

manutenção da ordem e coerção, e nesse sentido chama a atenção a

inserção, nos eventos de combates, da realização das summa suplicia,

as penas capitais romanas destinadas às pessoas de mais baixa

96Kyle D. G., Sport and Spectacle in the Ancient Word, Oxford: Blackwell, 2007, p.297-

298.

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condição social, que se caracterizam por sua natureza expositiva,

ignominiosa e, ao mesmo tempo, exemplar e ordálica. Eram: a

crucificação (crux), um suplício servil (servile supplicium) que, além da

lenta agonia, tinha um sentido de exposição ignominiosa do corpo

perante a comunidade; a cremação (crematio), em que a pessoa era

queimada viva; e a arena (ad bestias), em que o réu era condenado a

enfrentar sem armas feras ou gladiadores armados. Devemos

distinguir esse tipo de execução da condenação ad gladium ludi, que

era um tipo de condenação de um criminoso à arena para lutar com

outros criminosos, que não era exatamente uma pena capital, porque

o vencedor (ou sobrevivente) poderia conseguir perdão ou conseguir

uma morte “digna”, pela espada. Havia também a condenação ad

ludum gladiatorium, que obrigava o condenado a ser gladiador, como

um “trabalho forçado”, que também não representava uma pena

capital.

As summa supplicia eram as formas de morte mais dolorosas e

cruéis existentes no mundo romano, aplicadas, salvo raríssimas

exceções, apenas a escravos e a homens livres da mais baixa condição

social, especialmente em casos de crimes políticos que desafiassem a

soberania de Roma. Inserir essas execuções na estrutura dos munera

transforma esses suplícios em um espetáculo, ao mesmo tempo em

que transforma os munera num sistema eficaz de manutenção da

ordem sociopolítica e demonstração de poder, utilizando os valores e

significados já presentes nos combates de gladiadores para

demonstrar a vitória sobre inimigos de qualquer tipo, internos e

externos, atualizando rituais e demonstrando a plenitude dos ideais de

força viril acalentados pela sociedade.

O ponto máximo do dia, entretanto, era o espetáculo da tarde, o

combate entre gladiadores, e é esse o momento esperado pela grande

maioria dos espectadores. É para essa hora que é esperada, inclusive,

a presença do Imperador ou seu representante. O público que se

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reúne na arena espera um grande espetáculo, com duelos

emocionantes e justos, em que cada combatente dê o melhor de si,

demonstrando uirtus. Para que isso acontecesse, era preciso que

houvesse compatibilidade entre as armas e condições dos gladiadores,

e o público estava sempre atento à manutenção dessa “justiça”. Como

mencionamos anteriormente, a morte poderia fazer e por vezes fazia

parte do espetáculo, mas não necessariamente. Havia casos em que,

devido à grandeza da luta e pelo fato de ambos terem demonstrado

destemor diante da morte, as expectativas do público eram superadas

de tal forma que nenhum gladiador morria. Os munera eram eventos

que, além de carregar todos os significados acima expostos, deviam

satisfazer ao público, às expectativas das pessoas reunidas. O preço

para a frustração das expectativas era a morte daquele que havia

“decepcionado”.

2.3. CONSIDERAÇÕES ACERCA DA PLEBE ROMANA

Começamos este capítulo apresentando alguns aspectos do

nascente Império Romano no primeiro século da era cristã, destacando

as mudanças políticas, sociais e culturais que esse período de transição

na forma de governos apresentou e algumas maneiras de inserção

utilizadas por Roma para tentar dar coesão às diferentes realidades

das terras conquistadas. Buscamos também apontar que esse processo

romano de extensão territorial e conquista não foi homogêneo nem

harmonioso, acarretando diversos tipos de reações entre as

populações a quem se dirigiu. No que se refere à capital do Império,

Roma, muitas mudanças também acompanharam esse período –

mudanças sociais, políticas, econômicas e culturais.

Até aqui, entretanto, apresentamos essas mudanças do ponto

de vista do poder imperial estabelecido, apesar de termos salientado

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em diversas ocasiões, a complexidade dos fenômenos e situações

descritas, que implicam numa variedade de reações. Com relação aos

munera, destacado em nosso texto como um símbolo da cultura

romana e ao mesmo tempo abraçado e utilizado como símbolo de

poder e mecanismo para seu exercício, apontamos a presença de

pessoas das mais variadas classes sociais – especialmente dos setores

subalternos da população – mas cumpre-nos esclarecer quem seriam

essas pessoas e qual a importância de sua presença e manifestação

nos munera.

Durante séculos, tem se estabelecido a visão da população

romana (e aqui se destaca a população da cidade de Roma, capital do

Império, mas as visões acera da plebe são gerais) sendo composta por

uma massa amorfa, desinteressada pela política e pelo trabalho,

desejosa de “pão e circo”, de viver às custas do Estado e divertir-se.

Essa imagem, derivada da reprodução irrefletida das fontes da

antiguidade (fontes que representavam, em sua maioria, a visão de

mundo e a opinião das elites), foi propagada por classicistas dos

séculos 19 e 20, como mencionamos anteriormente, de forma bastante

simplista, homogeneizante e acrítica.

Dessa forma, a tendência de muitos estudiosos97 foi de

considerar sob o rótulo de “povo” todos os segmentos populares,

indistintamente. Bandidos, gladiadores, escravos, libertos e pobres em

geral eram vistos como pertencentes ao mesmo grupo e teriam,

portanto, a mesma visão de mundo e as mesmas ideias. Obviamente,

essa percepção desconsidera as particularidades de cada grupo

específico e as possibilidades de conflito entre os mesmos98.

97Conforme Theodor Mommsen, História de Roma (Excertos). Rio de Janeiro: Editora

Opera Mundi, 1973; J. Carcopino, Roma no Apogeu do Império, São Paulo: Companhia das Letras, 1990; J. N. Robert, Os Prazeres de Roma, São Paulo: Martins Fontes, 1995; M. Rostovtzeff, História de Roma, Rio de Janeiro: Zahar, 1977.

98Precisamos ter em mente que a dicotomia simplista “elite/plebe” não corresponde à complexa realidade do período. Além da divisão social entre cidadãos e não cidadãos havia a divisão entre pessoas livres e não livres. Entre os “livres”, havia os livres de nascimento e os libertos e, entre os cidadãos, também havia ordens: plebéia,

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A respeito da possibilidade de conflitos, a opinião geral entre

esses pesquisadores, destacada por Veyne99, é a de que esses grupos

(ou esse grupo, a plebe) teria internalizado de tal forma os valores da

elite que as diferenças de classe e de condição social (de quem poderia

usufruir as benesses do Estado, os excedentes da economia e assim

por diante) era consideradas como naturais. Para esse autor, as

classes populares buscavam apenas beneficiar-se através das relações

pessoais do patronato, e os conflitos que poderiam advir seriam

devidos a essa relação: ou conflitos entre clientes pela

preferência/acesso ao patrono, ou conflitos entre clientes de patronos

diferentes para a ascensão de seu benfeitor e consequentemente

maior acesso aos benefícios do sistema.

Outro ponto salientado pelos estudiosos, nesse contexto, seria a

pretensa ociosidade do povo romano, que o levava a viver às custas do

Estado e dessas relações patronais, compreensão que deu extensão à

popular e errônea idéia de que o “povo” romano (como um todo)

andava ansioso apenas por “pão e circo”100, que eram oferecidos pelo

Estado na forma de doação de trigo e oferecimento de espetáculos

regulares, entre os quais se incluíam os munera.

eqüestre e senatorial. Além dessas divisões, havia as divisões econômicas entre os grupos. A enorme gama de possibilidades de associação entre essas divisões nos permite perceber a impossibilidade de simplificar a questão acerca da composição social de Roma, bem como nos impede de pensar que não havia conflitos entre esses grupos.

99Paul Veyne, “O Império Romano”, em G. Duby e P. Áries (organizadores), História da Vida Privada, São Paulo: Companhia das Letras, 1990, volume 1, p.61-121.

100 A expressão deriva de uma Sátira de Juvenal, autor latino (62-67 a.C. a 130 d.C., aproximadamente), conhecido por seu tom pessimista acerca da sociedade romana, que muitas vezes beirava ao trágico, com áridas críticas ao comportamento social e descrição exagerada de cenas e personagens. Pelo fato de descrever situações cotidianas em detalhes, os escritos de Juvenal tornaram-se referência para os estudos modernos, especialmente por apresentarem informações acerca dos mais baixos estratos sociais romanos, muitas vezes inexistentes em outras fontes. Todavia, a tendência de desconsiderar as características estilísticas desses escritos e deslocá-los de seu contexto tem criado interpretações simplistas e irreais, como aparentemente é o caso da interpretação corrente dada à expressão acima. Considerada em seu teor irônico e em comparação com o contexto maior da obra, percebemos uma crítica à corrupção dos valores da sociedade como um todo, especialmente com relação ao apego à riqueza. Existe de fato apresentação de uma imagem negativa da plebs, mas esta encontra-se em um contexto mais amplo, cujo significado é mais amplo do que o corrente e que merece ser melhor analisado.

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Entretanto, essa visão despolitizada e totalmente dependente

acerca da plebe romana, assim como a ideia de que as pessoas das

classes subalternas da sociedade poderiam ser consideradas como um

mesmo grupo coeso precisa ser questionada. Embora percebamos que

havia uma visão pejorativa por parte das elites (de onde deriva a

maioria das fontes escritas do período, como mencionamos

anteriormente) com relação a essas classes populares, essas mesmas

fontes indicam que tais pessoas eram socialmente ativas, possuíam

atividades rentáveis que proviam à sua subsistência e, ainda, tinham

um potencial político que poderia se manifestar.

Em sua tese de doutorado defendida em 2007, Luciane Munhoz

de Omena101 apresenta uma análise da visão do filósofo estóico Sêneca

(4 a.C – 65 d.C) acerca dos setores subalternos da sociedade romana

buscando desconstruir essa imagem de “plebe ociosa”, demonstrando

que os escritos do filósofo apontam os trabalhos e ofícios

desempenhados por essas pessoas para sua manutenção. Embora o

filosofo apresente esses ofícios de forma bastante desdenhosa e

pejorativa, assim como faz com as próprias pessoas que os

desempenham, constata-se que a suposta ociosidade do povo, embora

pudesse ser um ideal, defendido pela elite como condição para se

desenvolver a uirtus102, não era a realidade dessas camadas

subalternas da população.

101Luciane Munhoz de Omena, Pequenos Poderes na Roma Imperial: O Povo Miúdo na

Ótica de Sêneca, Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós Graduação em História Social do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Faculdade de São Paulo, sob orientação do Prof. Dr. Norberto Luis Guarinello. São Paulo, 2007.

102O ócio e a repulsa ao trabalho eram, no mundo romano, valores cultivados pela elite e devidos aos cidadãos nobres, pois quem fosse obrigado a ganhar seu sustento trabalhando, de acordo com essa opinião, não poderia desenvolver-se moralmente. O trabalho era admitido para as classes mais baixas (pois era uma necessidade para a manutenção do Estado e para a ocupação da plebe), mas eram separados em categorias, pois havia atividades que poderiam ser exercidas pelos cidadãos pobres, e outras que só deveriam ser executadas por não cidadãos. Conforme Paul Veyne, “O Império Romano”, em G. Duby e P. Áries (organizadores), História da Vida Privada, São Paulo: Companhia das Letras, 1990, volume 1.

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Segundo Omena, as palavras utilizadas por Sêneca em suas

obras para referir-se a essas camadas subalternas demonstram seu

desprezo e seu sentimento de superioridade: populus, plebe, turba,

humilli são palavras de conotação pejorativa, que indicam uma

multidão sediciosa, delinquente, insensata e autodestrutiva, associada

à mediocridade, à ira, à guerra e à luxúria103. No entanto, o mesmo

filósofo, ao aconselhar o Imperador Nero, orienta que o mesmo cultive

uma boa convivência com essas pessoas assim como com a elite, a fim

de obter a admiração, aprovação e fidelidade de todo o povo, coisas

sem as quais não poderia governar, pois por mais absoluto que fosse o

poder, não seria possível exercê-lo sozinho104.

Essas indicações nos levam a duas conclusões. A primeira é que

havia um desprezo pelas camadas populares por parte das elites

romanas (das quais Sêneca é representante). A segunda é de que

havia o receio de que essas camadas populares viessem a causar

problemas à administração do Império, realidade que não pode ser

ignorada.

Dizer que a população de Roma era composta por uma massa

despolitizada e amorfa mostra-se, portanto, como uma declaração

irreal. A vida e a cultura da população eram marcadas por

contradições, e essas eram sentidas nos seios das camadas

subalternas da sociedade. No entanto, devemos compreender que essa

percepção formava um paradoxo, pois as formas de manifestação

populares não eram sistemáticas, não havia a elaboração de

pensamentos “transformadores”, como nos acostumamos a pensar que

103Luciane Munhoz de Omena, Pequenos Poderes na Roma Imperial: O Povo Miúdo na

Ótica de Sêneca, Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós Graduação em História Social do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Faculdade de São Paulo, sob orientação do Prof. Dr. Norberto Luis Guarinello. São Paulo, 2007, p.98.

104Luciane Munhoz de Omena, Pequenos Poderes na Roma Imperial: O Povo Miúdo na Ótica de Sêneca, Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós Graduação em História Social do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Faculdade de São Paulo, sob orientação do Prof. Dr. Norberto Luis Guarinello. São Paulo, 2007, p.67.

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as manifestações políticas devem ser. Os elementos citados acima, que

compunham a visão de mundo acerca do que era a sociedade romana

compunham uma imagem permeada de sentidos simbólicos que

dificultava grandemente qualquer ideia de transformação. Ainda assim,

havia a preocupação, como apontado por Sêneca, de que o Princeps

mantivesse as coisas em ordem, não desagradando à população.

Dessa forma, consideramos que o oferecimento de espetáculos

era um instrumento usado com esse objetivo não porque as pessoas

fossem politicamente desinteressadas, mas ao contrário, porque

precisavam de um “paliativo político” que amenizasse a perda de poder

sentida (mencionada acima) com o estabelecimento do Principado e as

diferenças sociais e econômicas, dando a sensação ao mesmo tempo

de pertencimento ao grupo, de colaboração com a manutenção do

Império, de proximidade com o Imperador (quando presente aos

espetáculos) e de decisão, ao determinar o destino de um gladiador.

Percebemos que a compreensão acerca da plebe pode ser

comparada com o uso frequente da palavra o;cloj utilizada por Marcos

na composição de seu Evangelho.

Pretendemos agora aproximar os dois “mundos” apresentados

até aqui: o mundo do Império Romano colonizador e dominador, e o

mundo da Palestina, periferia do Império e dominado, para ver que

relações o texto de Marcos tem com esses mundos, e qual a relação

entre o texto estudado, o Império Romano e, mais detalhadamente, o

fenômeno dos munera. Passemos, pois, ao próximo capítulo.

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CAPÍTULO 3

O TEXTO DE MARCOS: REALIDADES E REPRESENTAÇÕES

“A minha alma tá armada e apontada Para cara do sossego!

Pois paz sem voz, paz sem voz Não é paz, é medo!

Às vezes eu falo com a vida,

Às vezes é ela quem diz: ‘Qual a paz que eu não quero conservar,

Prá tentar ser feliz?’

As grades do condomínio São prá trazer proteção

Mas também trazem a dúvida Se é você que tá nessa prisão

Me abrace e me dê um beijo,

Faça um filho comigo! Mas não me deixe sentar na poltrona

No dia de domingo, domingo!

Procurando novas drogas de aluguel Neste vídeo coagido...

É pela paz que eu não quero seguir admitindo

É pela paz que eu não quero seguir É pela paz que eu não quero seguir

É pela paz que eu não quero seguir admitindo!”

Minha Alma (A Paz Que Eu Não Quero) Composição: Marcelo Yuka

Gravação: O Rappa

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3.1. Um Pouco sobre o Texto

3.1.1 Unindo o Texto e o Contexto

Nesse capítulo, pretendemos propor uma “conversa” entre o que

vimos a respeito do Evangelho de Marcos e o uso singular que este faz

da palavra o;cloj no decorrer de toda a sua obra e o que descrevemos

acerca do Império Romano, especialmente acerca dos munera,

característica marcante e distintiva desse Império.

Sem nos afastar ou esquecer do contexto maior representado

pelo Evangelho de Marcos, estudaremos de forma especial o texto

apresentado no capítulo 15 versos 6 a 15 do mesmo, cena que

descreve a apresentação de Jesus a Pilatos e a entrevista entre ambos,

diante da multidão e dos líderes judeus, que termina com a

condenação de Jesus à morte. Nossa intenção será verificar, através

da percepção da estrutura narrativa do texto e de seu

desenvolvimento, os papéis e funções atribuídos a cada personagem

do mesmo e a forma como esses personagens se relacionam para

conduzir ao desfecho da cena (a condenação de Jesus), dando especial

atenção ao papel atribuído a o;cloj /multidão.

Paralelamente, pretendemos contrastar esses papéis e funções

atribuídos aos personagens da narrativa à estrutura dos munera e aos

papéis e funções atribuídos a cada grupo participante dessa prática

caracteristicamente romana: o Imperador, o público e os gladiadores.

Dessa forma, o texto de Marcos será compreendido como uma paródia

interdiscursiva que dialoga com a realidade e procura esclarecer e

subverter essa realidade através de uma proposta de inversão de

valores. Procuraremos perceber de que forma Marcos procurou inserir

o texto no contexto da dominação romana e da guerra judaica, e que

atitudes esperava despertar em seus ouvintes/leitores.

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Sabemos que tal proposta é ousada, pois embora tenha sido

sugerida por outros pesquisadores105, não foi desenvolvida a contento.

Além disso, essa possibilidade de interpretação dá a todo texto de

Marcos (e não apenas ao capítulo 15) uma interpretação

extremamente politizada, engajada e consciente, difícil de ser admitida

à primeira vista. No entanto, quando lemos esse Evangelho com

atenção e à luz do que conhecemos acerca da dominação romana,

percebemos o quanto o texto está marcado com referências e símbolos

do Império Romano e dessa dominação. Desde o nome do demônio

que aflige o jovem na cidade de Gadara (Legião)106 e o fato de pedirem

para serem enviados aos porcos (animal símbolo das legiões

romanas)107, as menções da grande admiração das pessoas a Jesus,

que poderiam ser comparadas (ou dar ensejo) à aclamação108

(lembrando a aclamação dos Imperadores romanos), referências aos

tributos a serem pagos a César109 e a própria cena da entrada de Jesus

em Jerusalém110, que pode ser comparada com uma cerimônia de

adventus do Imperador111, caminhamos no texto de Marcos com varias

indicações de presença romana, até chegarmos ao nosso texto de

estudo. Paralelamente a essas referências à presença romana, Marcos

faz também o;cloj caminhar em seu Evangelho, estando presente,

com suas expectativas, nessa cena crucial e determinante.

À luz dessas observações, a proposta de que o texto

apresentado a seguir foi composto como uma paródia dos munera

105 Ched Myers, O Evangelho de Marcos, São Paulo: Paulinas, 1992, p.452. 106 A legião romana era a divisão fundamental do exército romano. Variavam entre

8.000 e 4.000 homens, dependendo das baixas que eventualmente sofressem nas batalhas. Para além dos soldados, há que contar com os inúmeros servos, escravos e seguidores que as acompanhavam.

107 Marcos 5,1-14. 108 Por exemplo: Marcos 1,28; 2,12, ente outros. 109 Marcos 12,13-17. 110 Marcos 11,1-11. 111 A cerimônia do Adventus era uma festividade romana celebrada quando o Princeps

visitava uma cidade. Tratava-se de uma cerimônia de recepção em que as ruas eram enfeitadas com flores, tochas e incensos e o Princeps recebia as chamadas ovationes da população (incluindo os nobres e soldados), que eram aclamações de aprovação pelos seus feitos.

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pode ser impressionante e ousada, mas tem de ser considerada como

uma possibilidade bastante plausível, que procuraremos demonstrar

nas páginas seguintes. Antes disso porém, convém conhecermos um

pouco melhor o texto de Marcos 15,6-15.

3.1.2 O texto de Marcos

Apresentamos abaixo o texto do Evangelho de Marcos capítulo

15, versos 6 a 15, conforme apresentado no Novum Testamentum

Graece, seguido de tradução própria, com a qual trabalharemos

adiante:

6. Kata. de. e`orth.n avpe,luen auvtoi/j e[na de,smion o]n parh|tou/ntoÅ

7. h=n de. o` lego,menoj Barabba/j meta. tw/n stasiastw/n dedeme,noj oi[tinej evn th/| sta,sei fo,non pepoih,keisanÅ

8. kai. avnaba.j o` o;cloj h;rxato aivtei/sqai kaqw.j evpoi,ei auvtoi/jÅ

9. o` de. Pila/toj avpekri,qh auvtoi/j le,gwn( Qe,lete avpolu,sw u`mi/n to.n basile,a tw/n VIoudai,wnÈ

10. evgi,nwsken ga.r o[ti dia. fqo,non paradedw,keisan auvto.n oi` avrcierei/jÅ

11. oi` de. avrcierei/j avne,seisan to.n o;clon i[na ma/llon to.n Barabba/n avpolu,sh| auvtoi/jÅ

12 o` de. Pila/toj pa,lin avpokriqei.j e;legen auvtoi/j( Ti, ou=n Îqe,leteÐ poih,sw Îo]n le,geteÐ to.n basile,a tw/n VIoudai,wnÈ

13. oi` de. pa,lin e;kraxan( Stau,rwson auvto,nÅ 14. o` de. Pila/toj e;legen auvtoi/j( Ti, ga.r evpoi,hsen kako,nÈ oi` de. perissw/j e;kraxan( Stau,rwson auvto,nÅ

15. o` de. Pila/toj boulo,menoj tw/| o;clw| to. i`kano.n poih/sai avpe,lusen auvtoi/j to.n Barabba/n( kai. pare,dwken to.n VIhsou/n fragellw,saj i[na staurwqh/|Å

6.Durante (a) festa, soltava para eles qualquer prisioneiro que pediam.

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7.estava o chamado Barrabás preso junto com rebeldes112 que na rebelião cometeram assassinato.

8.e subindo113 a multidão começou pedir conforme fazia a eles

9.Pilatos respondeu a eles dizendo: quereis que (eu) liberte a vós o rei dos judeus?

10.Pois sabia que por inveja o entregaram os sacerdotes 11.(mas) os sacerdotes incitaram a multidão para que

Barrabás fosse libertado para eles 12.Pilatos novamente respondendo disse a eles: Que

então quereis que eu faça a quem chamais o rei dos judeus?

13.Mas novamente gritaram: crucifica-o! 14.Pilatos disse a eles: que mal fez? Ainda mais gritaram:

crucifica-o! 15.Pilatos querendo satisfazer114 às multidões soltou para

eles Barrabás e entregou Jesus (para) ser açoitado, para que fosse crucificado.

O texto de Marcos é, à primeira vista, claro e simples. Não

apresenta dificuldades para a tradução nem variantes textuais

relevantes a ponto de sugerir alguma dúvida acerca de sua

composição. No entanto, tal “simplicidade” não deve nos iludir, pois

apresenta uma estrutura complexa e bem montada. Os versos que

antecedem o texto estudado, a saber, Marcos 15,1-6, apresentam a

112 A palavra stasiastw/n, traduzida como “rebeldes”, não é encontrada em nenhuma

outra passagem do Novo Testamento, o que deixa seu significado bastante impreciso mas, ao mesmo tempo, nos dá liberdade maior de interpretação sem “pressupostos”. Advém da mesma raiz da palavra sta,sei, que traduzimos como “rebelião” e que é usada poucas vezes no Novo Testamento, e cada uma delas com sentido diferente: além de nosso texto, aparece em Atos 15,2 significando contenda ou divergência, e em Hebreus 9,8 com sentido de permanecer, subsistir.

113 O aparato textual do Novum Testamentum Graece apresenta como variante e conseqüentemente possível leitura a palavra Avnabohsaj particípio aoristo do verbo Avnaboaw (gritar), que pode ser traduzida como “gritando”: e gritando a multidão, começou a pedir...”. Nesse caso, dar-se-ia a impressão de que a multidão já estava presente durante o processo de Jesus, e perder-se-ia a noção de movimento. Como veremos adiante, cremos que isso seria improvável, do ponto de vista do processo judicial romano ao qual Jesus havia sido submetido, bem como parece não condizer com o movimento que Marcos da à cena, pois não há descrição da multidão entre os presentes nos versos 1 e 2 do capítulo 15. Dessa forma, cremos que o texto utilizado é de fato o mais coerente.

114 Literalmente, a tradução das palavras to. i`kano.n poih/sai seria ”fazer o suficiente”. Contudo, trata-se de uma expressão que pode ser traduzida como contentar ou satisfazer.

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cena do julgamento de Jesus por Pilatos de forma curiosamente

paralela à estrutura da cena anterior de julgamento de Jesus diante

dos líderes judeus, o Sinédrio115. Não nos deteremos na discussão

acerca desses dois julgamentos, mas temos que observar que ambos

fazem parte de um plano narrativo formulado pelo autor e não podem

ser considerados casuais.

Percebemos que o julgamento de Jesus diante de Pilatos

acontece nos versos anteriores, em Marcos 15,1-5. Curiosamente,

porém, a cena do julgamento é interrompida para a introdução do

episódio de Barrabás. Dizemos que a cena foi interrompida porque, se

considerarmos que Jesus é submetido a um tribunal romano e a um

processo judicial romano, como Marcos descreve, esse processo é

interrompido antes do ato que o concluiria, a saber, a declaração do

veredicto e a aplicação da pena. De acordo com Joachim Gnilka116,

havia quatro princípios que assinalavam um processo judicial romano:

1) o julgamento é público; 2) a acusação, que é privada (de onde

entendemos que a multidão não estava presente em toda a cena); 3)

direito de defesa e 4) veredicto e proclamação da sentença, que é o

que terminava o processo.

Temos essa estrutura presente na descrição de Marcos: ao

amanhecer, os líderes judeus levam Jesus amarrado até o governador

romano Pilatos, que era o responsável pela administração da justiça.

Pode-se entender que o julgamento de Jesus não seria o único caso a

ser julgado naquele dia, e que Pilatos cumpria com sua obrigação

normal (não estava lá por causa de Jesus)117. Esse é o momento que

115 Marcos 14,53-64. O verso 65, integrante da perícope, forma também um paralelo

com Marcos 15,16-20, referentes ao escárnio e zombaria sofridos por Jesus, primeiro por “alguns” (talvez os guardas do Templo) e depois pelos soldados romanos.

116 Joachim Gnilka, Jesús de Nazaret – Mensaje e História, Barcelona, Editorial Herder, 1993, p.364-365.

117 Joachim Gnilka, Jesús de Nazaret – Mensaje e História, Barcelona, Editorial Herder, 1993, p.366. Considerando que a residência do governador era Cesaréia e que este deveria estar em Jerusalém por conta da festa da Páscoa, é bastante provável que houvesse vários casos para serem julgados, para “aproveitar” sua presença ou,

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identificamos como a “instituição do processo” contra Jesus diante do

tribunal romano, e esse ato certamente foi público, ou seja, num local

aberto118.

Em seguida, acontecem dois momentos em que Jesus tem

oportunidade de defesa: nos versos 2 e 4. No primeiro momento, após

a pergunta (sarcástica, por sinal) de Pilatos: “És tu o rei dos

judeus?”119, Jesus responde (também com sarcasmo): “Tu o dizes”120.

Essa resposta de Jesus poderia ser considerada por Pilatos como uma

confissão, o que faria com que os outros atos do processo não fossem

necessários, mas Marcos relata que Pilatos não considerou dessa

forma, pois novamente questiona Jesus e lhe dá oportunidade de

defesa no verso 4, ao que Jesus não responde, demonstrando descaso

e desprezo que não teriam passados despercebidos por Pilatos121, e

que o teriam irritado muitíssimo, pois não era concebível ignorar o

governador romano, símbolo máximo do poder imperial naquela

região!

Entre as duas possibilidades (“desperdiçadas”) de defesa, o

verso 3 apresenta o que poderia ser considerado o testemunho da

acusação, realizado pelos sacerdotes. Nesse ponto a narrativa do

processo é interrompida, e só é retomada na parte final do verso 15:

“... e, após mandar açoitar a Jesus, entregou-o para ser

crucificado”122. Aqui estaria marcado o fim do processo de Jesus: a

sentença/veredicto e a entrega à penalidade. No caso de Jesus,

condenado à crucificação, o flagelo anterior (açoites) fazia parte da

mesmo se assim não fosse, o costume era o de que os julgamentos romanos eram feitos no alvorecer, nas primeiras horas do dia, o que combina com o relato de Marcos.

118 Marcos 15,1. 119 Conforme tradução de João Ferreira de Almeida, 2ª Edição Revista e Atualizada,

publicada pela Sociedade Bíblica do Brasil, 1988. 120 Conforme tradução de João Ferreira de Almeida, 2ª Edição Revista e Atualizada,

publicada pela Sociedade Bíblica do Brasil, 1988. 121 Marcus J. Borg e John Dominic Crossan, A Última Semana: um relato detalhado dos

dias finais de Jesus, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007, p.143. 122 Conforme tradução de João Ferreira de Almeida, 2ª Edição Revista e Atualizada,

publicada pela Sociedade Bíblica do Brasil, 1988.

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pena, e dessa forma compõe o castigo de alguém condenado por crime

político contra Roma e pertencente ao estrato mais baixo da população

(as penalidades romanas ao mesmo crime variavam de acordo com o

status do condenado).

Entre a condenação de Jesus, sugerida no verso 5, e o ato que o

declarava réu de morte no verso 15, entra em cena a multidão e

desenrola-se o episódio de nosso particular interesse.

Portanto, quando o verso 6 (e o texto que estudamos mais

detalhadamente) começa, Jesus já está julgado – já é um condenado

por crime político, pois as perguntas que Pilatos lhe dirige são a

respeito de uma suposta realeza que Pilatos com certeza não entende

como “espiritual”, mas como uma dentre tantas tentativas de

restauração do reino político de Judá (“És tu o rei dos judeus?”, em

15,2). Concluímos que a cena que se desenrola entre os versos 6 a 15

não é de julgamento, mas um relato acerca de uma suposta

oportunidade de anistia, de “não punição” pelo crime, e a comparação

com os munera não teria sentido se não fosse dessa forma.

Jesus e Barrabás são apresentados por Pilatos como iguais:

ambos já estavam condenados à morte, aparentemente pelo mesmo

tipo de crime: crime político contra Roma123. Porém, um deles poderia

alcançar a libertação através do “costume de libertar um prisioneiro”

que de acordo com o direito romano, segundo Gnilka, poderia

acontecer antes ou depois da proclamação do veredicto: sendo antes,

funcionaria como uma anulação do processo, sendo depois, seria a

anulação da sentença124. Veremos, entretanto, que existe uma

123 Embora no caso de Barrabás haja o agravante do assassinato, que parece ter sido

colocado para salientar a agressividade e violência de Barrabás e seu grupo e não para alterar o tipo de crime cometido

124 Joachim Gnilka, Jesús de Nazaret – Mensaje e História, Barcelona, Editorial Herder, 1993, p.369. Esses dados, contudo, referem-se ao direito romano conforme conhecido e praticado em Roma, e pode não corresponder à realidade das províncias, em que os governadores assumiam o papel de máximo juiz e muitas vezes agiam de forma diferenciada. Voltaremos a essa questão da “anistia” adiante.

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problemática a respeito dessa “anistia pascal”, que tem levantado

muitas dúvidas a respeito da confiabilidade do texto de Marcos.

3.1.3 O texto como realidade: historicidade ou

plausibilidade?

Ao trabalharmos com um texto da forma como temos feito,

tentando perceber seu contexto e os significados nele contidos,

precisamos estar atentos à realidade de que estamos diante de dois

períodos distintos: a época do autor do texto (em nosso caso, a época

de Marcos, descrita nesse trabalho) e a época que o texto representa

(o período anterior, em que Jesus viveu e morreu). Essa consciência é

imprescindível para evitarmos equívocos perigosos com relação à

interpretação do texto.

Como união de duas realidades o texto apresenta dados dos dois

períodos, que precisam ser identificados. Mesmo os dados referidos, os

dados do passado, que poderíamos chamar de “históricos” serão

lembrados e utilizados a partir da realidade do autor e não serão

neutros, mas interpretações e leituras do passado feitas pelo mesmo.

Marcos 15,6-15 é apresentado, dessa forma, como um relato do

encontro de Jesus com Pilatos acontecido certamente entre os anos 26

a 36/37 d.C. (período em que Pilatos governou a Judéia), mas sob o

ponto de vista e com elementos da realidade de Marcos, que escreveu

entre os anos 66 a 70 d.C. Apesar de crermos que muitos elementos

desses períodos distintos não eram diferentes, até porque o tempo

decorrido entre as duas realidades pode ser considerado breve, não

podemos confundir as épocas distintas.

Outro ponto que precisamos salientar acerca do relato de Marcos

é a discussão acerca de sua “historicidade” – ponto que desperta muito

interesse de pesquisadores desejosos de saber se as coisas

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aconteceram exatamente como foram relatadas. Essa preocupação

demonstra, em nosso ponto de vista, uma dificuldade em compreender

o texto como composição literária complexa, que une elementos

selecionados do passado com a intenção do autor de transmitir uma

mensagem que transponha tal período e alcance sua própria época, e

tem sido fonte também de equívocos e de uma certa desconsideração

com o texto bíblico porque, em não se comprovando a “veracidade do

fato narrado”, o texto perde seu valor.

O que podemos saber de “concreto” acerca do relato de Marcos

é que Jesus foi crucificado por ordem do governador romano Poncio

Pilatos, conforme relatam fontes alheias aos Evangelhos, como os

historiadores Flávio Josefo e Tácito125, e que sua condenação obedeceu

aos preceitos de uma condenação romana destinada a culpados por

crimes políticos: a crucificação, certamente com todos os requintes de

crueldade que esse tipo pena representava.

Podermos afirmar tão pouco a respeito dos “fatos” não significa

que devamos desprezar o texto de Marcos (e tantos outros textos do

período) e considerá-lo sem valor histórico. Como documento, é certo

que o mesmo apresenta dados relevantes, mas estes devem ser

considerados à luz de sua intenção e de sua própria época, por isso é

preciso saber discernir os elementos presentes no texto e verificar

quais as possibilidades de as coisas terem acontecido conforme

relatado. Nesse sentido, o conceito de plausibilidade histórica passa a

ser mais importante que o de historicidade propriamente dita: não

podemos afirmar que as coisas aconteceram de determinada forma,

mas podemos tentar verificar, de acordo com os dados, quais eram as

possibilidades de acontecerem e, assim, podemos perceber melhor o

que foi apropriado pelo autor, de que forma e com que objetivo, bem

125 Haim Cohn, O julgamento de Jesus, O Nazareno, Rio de Janeiro, Imago Editora,

1990. p.16-17. O autor descreve as controvérsias acerca das obras dos referidos historiadores, mas aponta as citações como passíveis de credibilidade pelo menos no que se refere aos personagens.

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como podemos discernir mais claramente aquilo que se trata de

criação literária sem vinculação histórica.

Acerca do texto de Marcos, muitas cenas podem ser

compreendidas a partir dessa perspectiva de plausibilidade, e uma das

que mais tem chamado a atenção – especialmente devido a uma

procura excessiva pela “historicidade” do fato, é a menção de Marcos

ao costume de libertar um preso na ocasião da Páscoa – a “anistia

pascal”. A dificuldade em encontrar paralelos históricos a esse

“costume” tem levado muitos pesquisadores a simplesmente negar

essa possibilidade e a considerar o texto como uma criação do

evangelista como recurso para transferir a responsabilidade da

condenação de Jesus para os judeus. Esse tipo de interpretação fere

aquilo que acreditamos ser o objetivo de Marcos, como veremos a

seguir126.

Queremos propor, pois, que a cena descrita pelo evangelista

seja considerada como uma possibilidade, como plausível, embora não

possamos afirmar se tal prática representaria um “costume” judeu,

romano ou pessoal (de Pilatos, como procurador), e qual a origem e

extensão do mesmo. A respeito dessa plausibilidade, Robert L Merritt,

em um artigo publicado no Journal of Biblical Literature127, apresenta

vários possíveis paralelos de origem babilônica, assíria, grega e

romana – todas vinculadas a ritos religiosos – como referências que

podem ter sido usadas para compor a idéia desse “costume”. Contudo,

o autor permanece na idéia de que tal costume foi usado no texto de

Marcos para eximir Pilatos e consequentemente os romanos da culpa

pela crucificação de Jesus, colocando a culpa de tal condenação na

126 Percebemos que a grande maioria dos comentaristas atribui essa cena da multidão

a uma tentativa de Marcos (utilizada posteriormente pelos outros evangelistas) de eximir os romanos da culpa pela morte de Jesus, colocando a culpa unicamente nos judeus. Verificaremos, no decorrer de nosso estudo, que acreditamos que a intenção de Marcos foi exatamente contrária a esse ponto de e vista.

127 Robert L. Merritt, Jesus, Barabbas and the Paschal Pardon, em: Journal of Biblical Literature, vol 104, n 1 (março 1985), p.57-68 URL: http://www.jstor.org/stable/3260593

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multidão. Esperamos ter deixado claro, contudo, que não

compartilhamos dessa opinião, uma vez que acreditamos que quando

a multidão entra na cena Jesus já está condenado, e que tal

condenação era prerrogativa apenas e tão somente do governador

romano. A multidão participará na escolha de um prisioneiro, já

condenado, para ser libertado, mas a condenação já havia pressuposto

a execução.

Gnilka trabalha com a possibilidade desse costume ser um

desdobramento dos preceitos do direito romano, e essa parece uma

idéia bastante interessante. Todavia, não podemos afirmar que o

direito romano, conforme apresentado por este autor, fosse executado

nas províncias ou, mais especificamente, na Judéia128.

Gostaríamos de agregar outra possibilidade, considerando os

elementos que conhecemos acerca da dominação romana e dos

munera, que podem nos ajudar a pensar essa cena e esse “costume”.

A dominação romana havia sido estabelecida e era executada

através de políticas que visavam manter a “paz” conquistada

militarmente, e que essa paz dependia muito da “fidelidade” (ou

submissão) das massas. Por isso, cremos que em todo o Império (e

não apenas em Roma), havia espaços de liberdade concedidos, ações

que visavam agradar às pessoas a fim de que estas não se

revoltassem. Em outras palavras, era preciso manter uma ilusão de

liberdade e de participação. As revoltas, sublevações e rebeldias,

embora pudessem ser e fossem passíveis de repressão e controle

militar, não eram desejadas e deveriam ser evitadas.

Considerando o contexto de dominação romana na Palestina e

as expectativas messiânicas sempre presentes em sua população, a

Páscoa, como a principal festa religiosa e também a de maior valor

simbólico – pois relembrava a libertação do antigo povo de Israel da

128 Joachim Gnilka, Jesús de Nazaret – Mensaje e História, Barcelona, Editorial Herder,

1993, p.369.

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escravidão sob o Egito – era sempre um período perigoso, em que

afloravam os sentimentos de nacionalismo e de descontentamento

diante da dominação. Era um período em que os líderes deviam estar

atentos, por ser muito propício para revoltas populares. Conceder um

“espaço de liberdade” num momento assim pode ter consistido numa

estratégia empreendida pelo Império Romano, e não representaria

uma fraqueza por parte do governador romano, mas uma

demonstração (necessária) de habilidade política. Essa proposta pode

ser ainda mais interessante se considerarmos que a cena representa

um múnus129, pois dentre outros significados, os munera

representavam uma forma desse tipo de concessão de liberdade, como

verificamos no capítulo anterior.

Assim, embora não possamos comprovar o citado (e debatido)

costume de libertar um prisioneiro na festa da Páscoa, podemos

considerá-lo como uma possibilidade bastante justificável naquele

contexto. Embora para nosso estudo de Marcos essa constatação não

fosse absolutamente necessária, uma vez que empreendemos uma

leitura do texto da forma como se apresenta, consideramos tal

verificação importante não apenas por propor uma alternativa à

compreensão do texto, mas por demonstrar o dinamismo do autor em

utilizar elementos “históricos” e elementos comuns de sua época para

compor sua narrativa, combinando-os a fim de transmitir sua

mensagem. Além disso, essa compreensão nos liberta da necessidade

de “comprovar” um texto antes de estudá-lo ou valorizá-lo, e nos

ajuda a respeitar o texto, seu conteúdo e sua intenção.

O texto é criação literária que apresenta fatos realmente

acontecidos (ou possíveis de terem acontecido), mas sob o olhar, a

perspectiva e seguindo a intenção do autor. Dessa forma, podemos

considerar o texto com mais liberdade, não descrendo de suas

129 Singular de munera

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possibilidades de fornecer dados históricos, mas percebendo que o

mesmo não foi produzido para este fim.

3.1.4 Uma realidade por trás do texto

Quando estudamos um texto, seja este bíblico ou não, um dos

pontos comumente observados é a influência que o mesmo recebeu de

outras fontes e a forma como o autor do referido texto se apropriou e

usou essas fontes, que podem ser outros textos, tradições, obras de

arte ou situações. De certa forma, a procura por essas influências no

texto não nos é estranha. No entanto, a percepção de um nível de

transtextualidade como a que sugerimos ao texto de Marcos parece-

nos ainda desconfortável, por estarmos acostumados a valorizar aquilo

que nos acostumamos a chamar de “originalidade” e porque tal

perspectiva acerca do texto pode nos levar, novamente, a questionar a

“verdade” contida no mesmo.

Quando tratamos de um texto revestido com o caráter sagrado,

essa dificuldade em considerar a possibilidade de que o mesmo tenha

recebido influências alheias ou à verdade factual (ponto que discutimos

acima) ou à “inspiração” genuinamente divina aumenta. Contudo,

precisamos aprender a enxergar os autores bíblicos como o que de

fato são: autores, que têm uma mensagem a transmitir e que utilizam,

para isso, dos recursos disponíveis.

Por isso, nossa proposta é procurar a intertextualidade de

Marcos 15,6-15, e queremos esclarecer o que queremos dizer com

esse termo: trata-se de estudar, dentro do texto, os elementos

presentes de outro texto ou situação e como esses elementos se

relacionam. A intertextualidade pode se manifestar de diversas

formas: através de citações, alusões, plágios, paráfrases e paródias,

entre outras. Cada uma dessas formas de apresentar a “fonte” ou as

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ideias que compõem o texto demonstra uma intenção, um objetivo

diferenciado.

Com relação ao texto de Marcos 15,6-15, o termo normalmente

utilizado (inclusive sugerido por Myers130) para compor o tipo de

relação entre o texto e a situação que o inspirou é paródia – um tipo

de relação textual em que os elementos de um texto (em nosso caso

de uma realidade paradigmática) são retomados e trabalhados com

novas e diferentes intenções, normalmente com o objetivo de inverter

os valores da obra original. Dessa forma, uma “paródia” não

representa uma repetição, mas uma “imitação com distância crítica”.131

A paródia propõe um processo de desconstrução e reconstrução

de ideias que tem como pressuposto que o ouvinte/leitor reconhecerá

a obra ou cena original (e consequentemente seus valores) e

compreenderá a inversão sugerida. Por isso, as alusões feitas através

da paródia devem ser conhecidas do público a quem esta deseja

alcançar, caso contrário o processo de comunicação ficará

comprometido. Em nosso caso específico, por exemplo, podemos crer

que se Marcos construiu seu texto tendo como referência os munera, é

porque esperava que seus ouvintes/leitores reconhecessem tal alusão

e percebessem a inversão de valores proposta.

A paródia é, pois, um diálogo entre textos, ou entre realidades.

Diálogo crítico entre aquilo que é parodiado e a paródia. Pode ser

entendida como um recurso para a tomada de consciência, uma forma

de as pessoas perceberem sua realidade a partir desse diálogo, pois as

ironias e inversões características das paródias expõem ideologias e

valores muitas vezes não percebidos. Cremos que esse foi um dos

objetivos de Marcos ao utilizar esse recurso literário em um ponto

crucial de sua obra – ideia que concorda com nossa posição inicial de

que o texto de Marcos não é de forma nenhuma neutro, mas

130 Ched Myers, O Evangelho de Marcos, São Paulo: Paulinas, 1992, p.152. 131 Linda Hutcheon, Uma teoria da paródia, Lisboa, Edições 70, 1989. p.54

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carregado de sentidos e intenções que vão se desenvolvendo e

esclarecendo no decorrer de toda a narrativa do Evangelho. Marcos

queria, com seu texto, “escancarar” a realidade diante de seu público.

Uma dificuldade que talvez se levante acerca dessa sugestão é

que o termo paródia tem sido normalmente identificado como

representante de um estilo burlesco, satírico ou cômico. De fato,

embora esse tipo de discurso (a paródia) seja muito mais antigo, foi

através da produção satírica latina que ganhou notoriedade. No

entanto, autores modernos têm percebido que esse fenômeno não se

ateve apenas a essas características burlescas, reconhecendo relações

intertextuais sérias – sugerindo para esses casos o nome de

transposição, como forma de diferenciação do termo paródia.

Para os objetivos desse trabalho, não nos cabe aprofundar

nessas questões literárias, bastando-nos reconhecer essas

características críticas, subversivas e desafiadoras dessa forma de

discurso132, bem como sua existência em contextos que vão além das

sátiras e comédias133.

3.2 Os Personagens da Cena de Marcos

3.2.1 Sacerdotes, Escribas, Anciãos: A Nata da Sociedade!

Embora em seu ministério na Galiléia e adjacências Jesus tenha

gerado incômodo e conflito graças à sua postura e ensinamentos

(especialmente com os fariseus), é em Jerusalém que a ameaça de

132 Tratamos a paródia como forma de discurso e não como gênero literário por

entendermos tratar-se de um “metagênero”, que se serve de diversos recursos e gêneros literários em sua composição.

133 Não podemos deixar de comentar que, mais uma vez, Marcos surpreende ao usar um recurso que, como dissemos, se difundiu entre os romanos e foi consagrado na literatura romana, especialmente no 1° século de nossa era. Já se comentou, inclusive, que os romanos se especializaram em “imitar” a literatura grega, fazendo isso não apenas através de paródias. Como exemplo, podemos citar a “encomenda” que o Imperador Augusto fez a Virgílio para que escrevesse a Eneida, que deveria ser uma epopéia “perfeita”, que superasse as obras do grego Homero.

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morte começa a se configurar de forma mais real, através de outros

personagens: os sacerdotes, os anciãos e os escribas.

Esses grupos podem ser considerados como formadores da

aristocracia judaica, a elite da sociedade, e eram as pessoas que

compunham o Sinédrio, a principal instância nativa de exercício de

poder. Desenvolvem, de acordo com o Evangelho de Marcos, um ódio

mortal a Jesus, desejando, planejando e atuando de forma ativa em

sua prisão e morte.

Por “principais sacerdotes”, expressão muito utilizada em

Marcos, pode-se entender o Sumo Sacerdote que está ocupando o

cargo (na época de Jesus era Caifás), seus predecessores e os

ocupantes dos altos cargos sacerdotais, como o capitão e o tesoureiro

do Templo – na época de Jesus, todos cooptados e nomeados pelo

governo romano e obviamente colaboradores do mesmo134. Eram os

representantes da aristocracia religiosa, administradores da lei e as

pessoas autorizadas a determinar quem poderia participar da religião

e, consequentemente, de toda vida civil e social da Judéia (por serem

as pessoas responsáveis pela realização dos sacrifícios e pela

“declaração de pureza”). Certamente, esse grupo de sacerdotes de

Jerusalém não ficou feliz com as notícias acerca de um líder Galileu

que pregava o perdão e aceitação de Deus sem a necessidade de

sacrifício no Templo, pois esse ensino representaria não apenas uma

perda de autoridade, mas uma perda econômica significativa, dada a

importância do Templo nesse aspecto.

Os anciãos, por sua vez, eram os representantes da aristocracia

laica, e era um grupo formado por ricos chefes de família de origem

pura. Segundo Morin, o poder romano escolhia entre eles quem

responderia com sua fortuna pessoal pela entrada dos impostos

134 Giuseppe Barbaglio, Jesus, Hebreo de Galilea – Investigación Histórica, Salamanca:

Secretariado Trinitario, 2003, p.471-475.

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devidos, determinados pelo Império135, fator que colocava sobre eles

uma preocupação grande acerca do controle da arrecadação e os

tornava rigorosos com seus concidadãos (em outras palavras, tornava-

os exploradores de seus pares).

Os escribas podem ser considerados o grupo menos coeso

dentre os três. Formavam a aristocracia intelectual e, diferentemente

dos outros grupos, não eram todos ricos nem compartilhavam todos da

mesma simpatia pelo poder romano. Eram os especialistas na Lei e

acredita-se que muitos eram fariseus. Dentre os grupos que

compunham o Sinédrio, é o que mais frequentemente aparece no

Evangelho de Marcos, inclusive na Galiléia, e por isso devem ser

diferenciados – certamente, havia muitos escribas que não faziam

parte da elite, assim como muitos sacerdotes que não eram “os

principais”. Existia estratificação social e econômica mesmo entre

esses grupos representativos, e precisamos estar atentos a essa

realidade a fim de não cedermos à tentação das generalizações.

O Sinédrio era um conselho composto por esses três grupos,

responsável pela administração nativa, poder concedido pelo Império

Romano como forma de aliança com os povos dominados. Não

sabemos exatamente qual a extensão do poder do Sinédrio no tempo

de Jesus, nem podemos precisar sua composição exata, mas a

denominação aparece no texto de Marcos, como dissemos, como

instituição responsável pela sua condenação juntamente com a

instituição romana de poder.

Não vamos nos aprofundar acerca das causas que levaram esses

grupos a hostilizarem Jesus de forma tão radical, uma vez que cremos

que essa discussão seria assunto para uma pesquisa específica136, mas

135 E.Morin, Jesus e as Estruturas de Seu Tempo, São Paulo, Paulus, 1981, p.106. 136Cremos não ser possível falar de apenas um motivo como a causa de tal hostilidade,

mas de uma confluência de razões, das quais citamos a “fama” de milagreiro de Jesus e o conteúdo revolucionário de sua mensagem, especialmente no que se refere ao Templo, a admiração que Jesus conquistara das massas, que poderia ser considerado como fator de risco de sublevação e de conflito contra Roma, a atitude

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podemos notar no decorrer da narrativa que esses personagens se

articulam e trabalham para alcançar a morte de Jesus:

• Em Marcos 11,18 (depois da cena da “Entrada Triunfal” de

Jesus em Jerusalém), os sacerdotes e escribas procuram

um motivo para matar Jesus devido à sua influência sobre

a multidão (seria um medo político, de algum tipo de

“messianismo davídico” da parte de Jesus?);

• Em 12,12 “eles” (aludindo aos principais sacerdotes,

escribas e anciãos) desejam prender Jesus, mas temem a

multidão;

• Em 14,1 temos um planejamento para prender Jesus à

traição;

• Em 14,10 o plano segue com Judas negociando a

“entrega” de Jesus com os sacerdotes;

• Em 14,43 Judas “entrega” Jesus, acompanhado dos

representantes dos sacerdotes, escribas e fariseus;

• Em 14,53 Jesus é conduzido ao Sumo Sacerdote e aos

principais sacerdotes, escribas e anciãos;

• Em 14, 55 os principais sacerdotes e o Sinédrio procuram

um testemunho para condenar Jesus, o que fazem em

14,56-64 (num tribunal judaico, seria um primeiro

julgamento ou um recolhimento de provas para o

julgamento de Pilatos);

• Finalmente, em 15,1, os principais sacerdotes, anciãos,

escribas e todo o Sinédrio entregam Jesus a Pilatos.

Na sequencia dessa série de aparições que configuram um plano

ardiloso para executar Jesus, diante da possibilidade de que Jesus

de Jesus com relação ao Templo. Contudo, como dissemos, a verificação dessas percepções carece de pesquisa mais aprofundada, fora do âmbito deste trabalho.

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fosse solto pelo apelo popular, devido à anistia pascal, os principais

sacerdotes incitam a multidão (a mesma que temiam, no texto

anteriormente citado) a pedir que Barrabás fosse solto. Interessante

percebermos que, no texto de Marcos, os principais sacerdotes não

pedem à multidão para crucificar Jesus, mas para soltar Barrabás! Era

óbvio que, como Jesus já estava condenado, como vimos acima, se

Barrabás fosse solto consequentemente Jesus seria executado, por

isso os principais sacerdotes, presentes à cena, não precisam desafiar

a multidão ou correr o risco de que esta se levantasse contra eles.

Conhecendo as expectativas da multidão e a fama de Barrabás, eles

ardilosamente “sugerem” que Barrabás fosse solto “de preferência”.

Embora os líderes judeus não simpatizassem com Barrabás nem

com a ideia de qualquer tipo de revolta contra Roma, consideraram

que Barrabás era menos nocivo e menos perigoso às estruturas de

poder do que Jesus, posição com a qual concordamos, e logo veremos

porque.

3.2.2 O representante do Imperador: Pilatos

Durante séculos, os textos dos Evangelhos tem sido

interpretados sob um ponto de vista que apresenta Pôncio Pilatos, o

governador romano da Judéia entre os anos 26 a 36/37 d.C., como

uma pessoa fraca, indecisa ou neutra, que “lava as mãos” diante da

decisão mais importante da história, para mostrá-lo como

“simpatizante” de Jesus e disposto a libertá-lo, tendo sido impedido

por ter medo da multidão, que pedia a condenação de Jesus. Um

estudo dos dados acerca de Pilatos, contudo, mostra que essas

interpretações estão longe de representar a verdade tanto acerca de

sua pessoa como acerca do mundo imperial romano.

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Em primeiro lugar, precisamos entender que a figura do

governador era estratégica e fundamental para a manutenção do

sistema romano de dominação, o que torna inconcebível a visão de um

procurador ou governador romano fraco e comandado pelas multidões,

ou mesmo pelos líderes nativos (no caso, o Sinédrio). O governador

romano deveria apresentar-se como figura poderosa que pudesse de

fato representar o Império e o Imperador. Além disso, deveria

manifestar os valores romanos e estabelecer, junto às províncias,

alianças com as lideranças nativas que eram, juntamente com os

tributos e o poder militar, formas efetivas de estabelecer o controle

sobre essas regiões. Essas alianças obedeciam aos critérios do sistema

de patronato, anteriormente descrito, em que a troca de favores

deveria ser uma constante.

Especificamente no caso do governador Pilatos, todo histórico

referente à sua pessoa depõe contra a imagem fraca ou indecisa

tradicional: perdeu o cargo em 36-37 d.C. devido a inúmeras queixas

referentes às arbitrariedades de seu governo, e deixou uma imagem

descrita por termos como suborno, rapina, ofensas, execuções

sumárias (sem processo judicial), crueldade inaudita e intolerável,

criador de conflitos que poderiam ser evitados se exercesse

prudentemente o cargo. Essa “descrição”, atestada por historiadores

como Filón e Flavio Josefo, mostram a natureza dura e truculenta de

Pilatos, e uma certa falta de reverência e respeito para tratar dos

assuntos dos judeus137.

Apesar dessa reconhecida irreverência e crueldade de Pilatos,

que talvez colocassem mais dúvidas acerca da plausibilidade da

concessão da “anistia pascal”, algumas circunstâncias podem nos

ajudar a compreender e a perceber como factível a cena apresentada

pelo evangelista Marcos: o fato de já ter sido repreendido oficialmente

137 Gerd Theissen, Colorido Local, Contexto Histórico em Los Evangelios – Uma

contribución a la historia de la tradicion sinóptica, Salamanca: Ediciones Sigueme, 1997, p.189-211.

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por Roma por sua má administração dos negócios da Judéia, e o

exemplo recente do que havia acontecido com Sejano, Prefeito do

Pretório e Cônsul138 na época do Imperador Tibério, que havia sido

condenado à morte devido a denúncias de violência excessiva,

execuções sumárias e traição139, podem ter feito com que Pilatos

percebesse ser o momento de demonstrar moderação e uma certa

simpatia para com o povo sob sua administração. Em outras palavras,

Pilatos não podia se dar ao luxo, naquele momento, de descontentar

nem a liderança nativa judaica nem a multidão, que poderia causar

uma sublevação que seria muito perigosa. Ele precisava mostrar

disposição em estabelecer um relacionamento forte com os líderes

judeus e, ao mesmo tempo, manter boas relações com o povo.

O evento do julgamento de Jesus, nesse contexto delicado, deve

ter sido uma situação difícil, pois colocou Pilatos numa posição em que

precisaria ser hábil o suficiente para ao mesmo tempo satisfazer as

expectativas dos dois grupos, que possivelmente não eram as

mesmas. E Pilatos consegue isso com a ajuda dos sacerdotes, dando à

multidão presente na cena a oportunidade de escolher entre dois

prisioneiros, contentando a multidão com a impressão de que era ela

quem decidia o destino de Jesus enquanto na verdade era sua vontade

(em aliança com os sacerdotes) que prevalecia, uma vez que era sua a

última palavra.

A interpretação corrente entre exegetas e biblistas de que

Pilatos demonstrou simpatia com Jesus ou que não queria realmente

condená-lo mostra-se longe de ser verdadeira. Pilatos não estava

138 Durante a República, os cônsules eram os mais importantes magistrados romanos:

comandavam o exército, convocavam o Senado, presidiam os cultos públicos e, em épocas de "calamidade pública" (derrotas militares, revoltas ou catástrofes), indicavam o ditador que seria referendado pelo Senado e teria poderes absolutos por seis meses. Durante o Império Romano, o consulado tornou-se uma magistratura puramente honorífica, mas ainda abria caminho para alguns cargos efetivos, como o exercício de certos governos provinciais (proconsulado).

139 A morte de Lúcio Élio Sejano aconteceu em 31 d.C. Este havia sido considerado o homem mais importante do Império, abaixo do Imperador, e seu “braço direito”. Sua morte causou uma série de tumultos em Roma.

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interessado em Jesus (ou em Barrabás), mas em si mesmo e na

manutenção de seu poder. Ardilosamente, apresenta diante da

multidão um outro prisioneiro, alguém que representaria, aos olhos do

povo, os ideais de libertação nacionalista que a época da Páscoa

despertava (era um revolucionário) e com isso consegue dissuadir a

multidão de qualquer menção a libertar Jesus.

Toda a narração de Marcos, nesse sentido, caminha para

demonstrar que a libertação de Barrabás com a consequente

condenação de Jesus contentou aos dois grupos: à liderança judaica,

representada pelo Sinédrio, e à liderança romana, representada por

Pilatos. Ambas estavam preocupadas e interessadas na manutenção de

seu poder e consideravam Jesus uma ameaça – para o Sinédrio, as

acusações estavam relacionadas à postura de Jesus anti-Templo e ao

messianismo e, para Pilatos, à sua postura anti imperial, representada

pela acusação “rei dos judeus” e pela postura de Jesus diante de sua

autoridade, como vimos acima. Dessa forma, podemos perceber que

Pilatos tem um papel central na crucificação de Jesus. Não é por acaso

que a morte de Jesus ocorre do modo típico de controle imperial

romano: Ele é crucificado, morte destinada às pessoas do mais baixo

estrato social e culpados de crimes políticos, o tipo de morte que, nas

províncias, servia como instrumento para dissuadir as idéias de

rebeldia patriótica e para causar terror140.

Pilatos não foi em nenhum momento “fraco” ou indeciso, mas foi

ardiloso e agiu em seus próprios interesses, de forma bastante

sarcástica (as perguntas que faz à multidão demonstram desprezo e

sarcasmo), trabalhando em favor de si mesmo e de seus aliados

políticos locais. Ao menos é assim que Marcos o descreve. E nesse

sentido, assume de fato uma posição que pode ser realmente

comparada à postura do Imperador quando concede à multidão, na

arena, o direito de decidir pela vida ou morte de um gladiador. 140 Giuseppe Barbaglio, Jesus, Hebreo de Galilea – Investigación Histórica, Salamanca:

Secretariado Trinitario, 2003, p.463-469.

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3.2.3 Barrabás, Um Gladiador

Marcos introduz, nessa parte de sua narrativa, um novo

personagem, muito importante para a construção da cena e que tem

causado discordância entre os estudiosos do Novo Testamento:

Barrabás. Descrito por Marcos como um “rebelde” participante de um

ato em que acontecera um assassinato, esse personagem é

contraposto a Jesus e apresentado como uma opção de prisioneiro a

ser libertado. Marcos não nos aponta claramente a natureza da

“rebeldia” de Barrabás mas, considerando o contexto de escrituração

do livro, torna-se fácil supor algumas alternativas: ele poderia fazer

parte (ou representar) algum tipo de liderança revolucionária contrária

a Roma existente no tempo do evangelista (um zelota ou um sicário,

por exemplo141) ou ser um “mercenário” contratado por um membro

da elite como responsável por sua segurança, uma vez que diante das

constantes revoltas e ameaças (especialmente dos sicários), os

membros da elite judaica, inclusive sacerdotes, contratavam esse tipo

de serviço que, via de regra, gerava mais turbulência e violência. Na

verdade, não há como precisar a natureza exata do delito de

Barrabás142, mas Marcos parece querer salientar seu caráter violento

através da menção ao assassinato cometido. Diferentemente de Jesus,

independente da posição política de Barrabás (revolucionário contra

Roma ou contratado pela elite pró-romana), este havia realmente

cometido um crime (não era apenas uma ameaça contra o poder

imperial). Interessante também percebermos que a palavra usada por

Marcos para descrever seu crime, stasiastw/n/rebelde, é diferente da

usada para os ladrões ao lado de quem Jesus foi crucificado: lh|sta,j

141 Lembramos que essas categorias de revolucionários não existiam no tempo de

Jesus, mas no de Marcos. Talvez seja essa a razão de Marcos ter usado uma palavra aparentemente “neutra”.

142 A palavra usada por Marcos para descrever a causa de sua prisão, traduzida como “rebelde”, tem apenas essa aparição no Novo Testamento, o que torna difícil sabermos com exatidão em que consistia essa “rebeldia”.

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(literalmente “ladrões”, mas a palavra era usada para descrever os

“bandidos sociais” surgidos no 1º século, mencionados anteriormente

como aqueles que viriam a formar o grupo dos zelotas. Essa palavra

tem, obviamente, forte sentido social, e é significativo que Jesus esteja

literalmente entre eles!143).

Como dissemos, as opiniões acerca desse personagem

divergem, especialmente no que tange à “historicidade” de sua

existência e à identificação de sua pessoa. Nada é conhecido sobre ele

além de sua menção nos Evangelhos – e a primeira menção é

conseqüentemente a contida em nosso texto, uma vez que cremos ser

o primeiro dos Evangelhos a ser escrito.

Mais importante do que tentar verificar a historicidade de sua

pessoa ou sua origem é significativo percebermos algumas

singularidades apresentadas por Marcos. Entre elas, chama a atenção

o nome do personagem: Barrabás (Barabba/j) é uma composição de

palavras aramaicas que significa algo como “filho do pai” – sugerindo

tratar-se mais de um título ou apelido do que um nome próprio. Esse

título, “filho do pai” é deveras significativo, tanto para a tradição

judaica quanto para o mundo romano no qual Marcos e a Palestina

estavam inseridos.

Tradicionalmente, temos aprendido que o termo Abba é usado

frequentemente por Jesus para referir-se a Deus como Pai. No

entanto, um estudo do Novo Testamento indicará que a palavra é

usada apenas três vezes, sendo uma delas pelo evangelista Marcos,

em 14,36144:

143 Aliás, essa é a mesma palavra usada na prisão de Jesus, em 14,48: “E

respondendo Jesus disse a eles: como contra um bandido saístes com espadas e porretes para prender a mim?” (tradução conforme o Novo Testamento Interlinear. Grifo nosso).

144 As outras passagens são Romanos 8,15 e Gálatas 4,6.

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“E dizia: Aba, Pai, tudo te é possível; passa de mim este cálice; contudo, não seja o que eu quero, e sim o que tu queres.”145

Essa passagem é a única em todos os Evangelhos em que o

termo é colocado na boca de Jesus146, exatamente em sua oração

angustiada nos momentos que antecedem sua prisão, e parecem

querer indicar ao mesmo tempo a relação de Jesus com Deus e sua

submissão a Ele e à Sua vontade. A passagem, de certa forma,

identifica Jesus como Filho de Deus, e é como tal que será preso e

chegará à cena do julgamento. Não nos parece casual que o nome do

condenado com quem Jesus é confrontado diante da multidão seja

chamado de “filho do pai”, e nossa pergunta é: se Marcos descreve

anteriormente Jesus como filho de Deus e Barrabás é “filho do pai”,

quem seria esse “pai” de Barrabás, a quem o mesmo representa?

Temos uma sugestão a essa questão que nos parece um tanto ousada,

mas plausível.

Somos conhecedores de que as sociedades tradicionais antigas,

não apenas a judaica, mas também a romana, obedeciam uma

estrutura familiar em que cabia ao pai toda autoridade sobre os

componentes da casa (não apenas familiares, mas também escravos).

Esse sistema, conhecido como patriarcado, era vivido nas esferas

pessoais e reproduzido nas esferas coletivas, e Roma é um grande

exemplo disso, especialmente a partir de Otavio Augusto, que

consagrou o imperialismo romano. A fim de que o acúmulo de poderes

que conquistou não soasse como tirania, e devido ao fato de o

imperador ser considerado como um benfeitor, que deveria “cuidar” da

população, da paz e da ordem, foi naturalmente atribuído ao mesmo o

título de Pai da Pátria. Em outras palavras, para a mentalidade

145 Conforme tradução de João Ferreira de Almeida, 2ª Edição Revista e Atualizada,

publicada pela Sociedade Bíblica do Brasil, 1988. 146 Consideramos que tal raridade pode dever-se ao fato de os Evangelhos terem sido

escritos em grego, e compreendemos isso com naturalidade. O que chama a atenção, no caso, não é a ausência do termo nos demais Evangelhos, mas seu uso por Marcos, o lugar escolhido para usá-lo e a seguinte composição do nome Barrabás!

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romana, um único homem passou a unificar e integrar a sociedade

romana, unindo cada família particular à grande família romana cujo

príncipe era o Pater Patriae147. Isso significava que o Imperador tinha

total autoridade sobre as pessoas de todo o Império, como um pai

teria sobre seus filhos, no sistema patriarcal e, ao mesmo tempo,

significava que as pessoas, os “filhos”, deveriam representá-lo e

honrar seu nome148. Os filhos deveriam representar os princípios e

valores do pai.

Pode parecer estranho falar do conceito de Pater Patriae na

identificação de um personagem de nome (ou epíteto) Barrabás, de

composição aramaica, mas não será tão estranho se considerarmos o

contexto em que esse nome está inserido (o confronto com Jesus, o

Filho de Deus), os valores que representa (rebelião, violência, revolta

armada) e o contexto romano do Evangelho de Marcos, que já

destacamos. Queremos dizer com isso que o Barrabás apresentado por

Marcos, apesar de ser judeu e de ter um nome genuinamente judaico,

representava os valores do Império Romano e de seu pai, o

Imperador: valores de poder pela violência. Dois filhos, representando

a visão de mundo e valores de dois “pais”. Esse parece ser o confronto

sugerido por Marcos ao identificar esse “rebelde” cujos valores, como

veremos, são preferidos pela multidão.

3.2.4 A última cena da multidão

O texto que estudamos apresenta a última aparição, no

Evangelho de Marcos, desse personagem tão marcante, que

147 Norma Musco Mendes, “O Sistema Político do Principado”, em Gilvan Ventura Silva

e Norma Musco Mendes, (Org.), Repensando o Império Romano - Perspectiva Socioeconômica, Política e Cultural, São Paulo: Editoras FCAA, Edufes e Mauad, 2006, p.42.

148 Essa seria, inclusive, a motivação (pelo menos inicial) do culto imperial, derivado dos rituais antigos de cultos familiares em memória ou honra aos ancestrais!

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acompanhou Jesus desde o início da narrativa. E essa despedida de

o;cloj acontece de forma um tanto significativa, tanto pela repetição

da palavra – três vezes em um texto consideravelmente pequeno

(versos 8, 11 e 15), como por apresentar aparentemente uma postura

diferenciada em relação a outras passagens do Evangelho,

especialmente no seu relacionamento com Jesus, como vimos no

primeiro capítulo deste trabalho.

Após uma pequena ausência da palavra o;cloj no período de

“estadia” de Jesus em Jerusalém (última referência acontecera em

12,41), o termo volta a ser usado de forma espantosa em 14,43

identificando a “turba” que havia ido prender Jesus a mando dos

sacerdotes, escribas e anciãos. O uso da palavra o;cloj nessa

passagem é realmente muito surpreendente, chega a ser chocante, e

não pode ser considerado como destituído de significado! Nessa

passagem da narrativa, a posição da multidão começa a ser diferente

da apresentada até então. Esta ainda “procura” Jesus, de certa forma,

mas não mais como mestre ou líder, uma vez que o;cloj, nesse texto,

está liderada pelos sacerdotes, escribas e anciãos. No entanto, quando

chega diante de Jesus, essa “turba” apresenta atitudes contraditórias:

um dos presentes parece querer começar uma “revolta” sacando a

espada e ferindo um dos servos do sumo sacerdote e, ao final da cena,

Marcos descreve que “todos” (isso inclui o;cloj ?) fugiram (ficando

provavelmente os guardas para levar Jesus ao Sinédrio). Temos a

descrição de uma multidão confusa, talvez em dúvida em relação às

suas expectativas (estimuladas pela época da Páscoa) e facilmente

influenciável, uma vez que aparentemente estava ao lado dos líderes

judeus no início da cena, mas se dispersa ao seu final, depois de

encontrar Jesus.

Em Marcos 15,8 a multidão/o;cloj reaparece para pedir a Pilatos

que cumprisse com o costume de soltar um prisioneiro, por ser a

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Páscoa. De acordo com a estrutura do texto de Marcos, é possível que

a multidão não soubesse que Jesus estava entre os prisioneiros, que já

havia sido julgado (conforme vimos, nos versos 1 a 5 do capítulo 15) e

condenado à morte. A multidão se dirige ao palácio do governador

para pedir a libertação de qualquer preso, por causa do costume. Vai

literalmente a um “espetáculo” concedido pelo representante de Roma

para contentar a população dominada, pelo “presente de Páscoa”

concedido por Pilatos. Ao chegar ao palácio do governador, a multidão

encontra-se com os líderes judeus, que haviam ido entregar Jesus a

Pilatos, e é informada, talvez pelo próprio Pilatos, da presença de

Jesus.

Não podemos afirmar se no decorrer da cena Jesus e Barrabás

estariam presentes ou seriam apenas referidos. Marcos nos informa

que Barrabás já estava preso com outros rebeldes, mas Jesus havia

sido julgado há pouco e não há indicação a respeito dele, se

continuava ali ou não. Considerando que a cena se desenvolve no

palácio de Pilatos, cremos ser pouco provável que os condenados

estivessem ali, o que nos faz considerar a idéia de que a multidão não

estava vendo nem Jesus nem Barrabás. Os verbos utilizados no verso

15 para indicar a libertação de Barrabás e a entrega de Jesus aos

soldados (para a sessão de flagelos que antecedia a crucificação),

avpe,lusen/soltou e pare,dwken/entregou, estão ambos conjugados na

forma indicativa do aoristo, indicando mais um aspecto (o efeito da

ação) do que um tempo propriamente dito, e não podem ser

entendidos como ações que aconteceram ao mesmo tempo ou

exatamente na sequência do verso 14, mas como uma conseqüência

do mesmo.

Marcos continua descrevendo a cena com a opção dada por

Pilatos de libertar Jesus, diante do pedido da multidão. No entanto,

Pilatos faz isso de forma sarcástica e astuta, pois não se refere a Jesus

pelo nome, mas pelo suposto título que deu origem à sua acusação e

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condenação e que refletia, para o Império Romano, um indício de

rebeldia e traição: rei dos judeus. É possível que essa referência de

Pilatos tenha despertado receio na multidão, que era certamente

conhecedora da crueldade do governador e de sua tendência a

represálias violentas. Embora esse medo de ser considerada como

traidora seja bastante plausível, e possa ser entendido como um

astuto recurso de Pilatos, o evangelista destaca o papel dos sacerdotes

(aliados dos romanos) influenciando a decisão popular: são eles que

incitam a multidão a preferir Barrabás. Em outras palavras, a escolha

foi dos sacerdotes, e foi adotada pela multidão.

De forma muito interessante, Marcos demonstra nessa cena que

a decisão final seria, de qualquer forma, de Pilatos. Ele não precisa

obedecer à multidão, assim como o Imperador não precisava aceitar a

opinião do público ao decidir o destino de um gladiador numa arena.

Mas, como o Imperador que quer contentar as massas, Pilatos quer

satisfazer à multidão, porque sua situação política o obriga a fazê-lo.

Como mencionamos há pouco, ele e os líderes judeus dirigem a cena a

fim de que a multidão pareça realmente participar ativamente da

decisão acerca da vida de Jesus, e assim esta decide algo que, na

verdade, já estava decidido.

Se de fato Jesus e Barrabás não estivessem presentes na cena,

o fato de a multidão ter sido tão facilmente manipulada pode ser

compreendida mais facilmente, pois poderia haver algum paralelo com

a postura descrita em 14,43, texto que demonstra posturas diferentes

da multidão quando longe de Jesus e influenciada pelo líderes judeus e

quando perto dele. Embora seja uma possibilidade relevante, cremos

que o fator determinante dessa postura da multidão deve ser

entendido pelas visões de mundo, valores e expectativas

representados por cada um dos prisioneiros, que assumem os papéis

de gladiadores em um combate verdadeiramente ideológico, cujo final

demonstra não apenas a confusão da multidão, mas sua incapacidade

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de superar expectativas ingênuas e irreais, o que a torna facilmente

influenciável. A multidão/o;cloj se despede do Evangelho de Marcos de

forma triste: como uma massa de pessoas influenciáveis e que se

contenta com os paliativos dados pelo dominador para apaziguar e

diluir seus anseios por transformação real, contentando-se, como

veremos, com idealizações ilusórias de transformação.

3.3 A Cena Montada: Um Munera

3.3.1 Colocando Os Personagens na Arena

Temos procurado demonstrar, até aqui, que Marcos estruturou

sua narrativa como se fosse um combate de gladiadores, e

apresentamos, de acordo com o texto, alguns personagens da cena

descrita.

Percebemos que Pôncio Pilatos, o governador romano e

representante do poder imperial, é apresentado como o Imperador ou

como o patrono. Ele é quem oferece o espetáculo (a libertação do

prisioneiro, que é o que atrai a multidão), e se comporta na cena como

aquele que de fato detém o poder, mas que permite à multidão a

decisão – uma decisão controlada, com limites estabelecidos, e que

não colocasse em risco sua autoridade.

O Sinédrio, principal instância de poder nativo, é representado

por seus componentes, escribas, anciãos e sacerdotes, que podem ser

entendidos como as elites que também freqüentavam os munera e que

demonstravam as polaridades sociais e as divergências de interesses

mas que, de certa forma, simbolizavam os valores da sociedade –

porque o conceito de uirtus, por exemplo, tão apreciado e desejado

nos gladiadores, era um conceito fundamentalmente elitista, não

alcançável pela plebe. Os sacerdotes representam, além disso, a

estrutura social e econômica judaica e a ideologia excludente do

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Templo, fatores formadores de marginalidade, como vimos no Primeiro

Capítulo.

Além disso, temos a multidão, o grupo de pessoas tão queridas

e atendidas por Jesus durante toda a narrativa e que, neste momento

da mesma, posiciona-se contra Jesus. Apresenta-se na cena de uma

forma bastante paradoxal, pois tem a iniciativa de ir ao “espetáculo”

oferecido por Pilatos para pedir a libertação de um prisioneiro qualquer

mas, ao saber da situação de Jesus e ter a oportunidade de escolher

libertá-lo, escolhe Barrabás, motivada por líderes que na verdade não

a representava. Tal escolha aparentemente é feita de forma irrefletida,

ao calor das emoções.

Por fim, temos os “gladiadores”, Jesus e Barrabás, pessoas que

são “jogadas” na cena, que dela participam sem oportunidade de

escolha e alheios à sua vontade (ao contrário de todos os demais, que

estavam ali porque queriam!). Não são necessariamente inimigos, mas

representam posturas e propostas diferentes e conflitantes, visões de

mundo e modos de agir diferenciados que os identificam149 e que

determinarão a derrota de um e a vitória do outro. Essas duas

pessoas, transformadas na cena de Marcos em gladiadores, são

jogadas na arena montada por Pilatos e, como num combate real, têm

a oportunidade de lutar por suas vidas, cada um com suas “armas” e

seus recursos.

A idéia que esboçamos acima, de que ambos já eram, nesse

ponto da narrativa, prisioneiros condenados, combina com o que

descrevemos acerca do tipo de punição romana que condenava o réu a

combater na arena (ad ludum gladiatorium), e não pode ser

confundida com o outro tipo de condenação descrito como “espetáculo

sangrento” do summa suplicia. No primeiro caso, que cremos ser o que

Marcos descreveu, havia a possibilidade de o prisioneiro/gladiador

149 Cada um desses “gladiadores” já tem uma fama, já é conhecido por um tipo de

postura e comportamento!

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conseguir, por seu desempenho, o perdão e a liberdade, depois de

sobreviver a certo número de combates. É possível ainda que Marcos

tenha aludido a outra forma dessa punição, que colocava os

condenados na arena para lutarem até que só restasse um

combatente, cujo destino seria decidido pelo Imperador ou pelo

público, se este lhe desse esse privilégio (ad gladium ludi). De

qualquer forma, ao fim do “duelo” apresentado por Marcos, um dos

gladiadores, Barrabás, recebe a liberdade, enquanto outro, o

derrotado, é condenado à morte. Porém, essa morte não é a morte

“digna” que os gladiadores podiam conseguir por desempenhar um

bom combate, mas é um suplício humilhante e terrível: a cruz.

3.3.2 A arena e o duelo de ideologias

Jesus ou Barrabás?

Chegamos, finalmente, ao confronto entre os dois “gladiadores”

na estrutura montada por Marcos. Dois condenados são confrontados,

não por vontade própria, e entre essas duas pessoas se revelam

semelhanças e diferenças. De semelhante, verificamos o fato já

salientado de que ambos estavam presos e condenados por crimes

políticos, crimes contra a ordem romana. Os dois representavam

algum tipo de oposição e ameaça à ordem estabelecida.

No entanto, o que se destaca são suas diferenças, e são essas

que determinam o desfecho da cena. Barrabás representa um tipo de

revolta violenta e armada, condizente com a época de Marcos e

facilmente compreendida no contexto da Revolta Judaica em que o

texto está inserido. É um tipo real de oposição, conhecida e vivenciada

pelos ouvintes/leitores de Marcos, que provavelmente eram assediados

para que dela fizessem parte.

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No entanto, conforme destacado na exposição que fizemos do

nome Barrabás, essa posição, embora direcionada contra Roma,

guardava os mesmos princípios e a mesma visão de mundo do

dominador: a vitória pela força, imposta pela violência. Não

representava nem desejava uma mudança na estrutura das situações

de injustiça, mas uma mudança de conjuntura: desejava inverter a

ordem de dominação, sem questionar as estruturas de poder. Deixar

de ser dominados e tornarem-se dominadores, sem questionar a

existência dessa estrutura que divide as pessoas entre esses grupos

(de dominadores e dominados). Nesse sentido, Barrabás era “filho” do

Império Romano: havia internalizado seus valores e sua forma de

conduta, e reproduzia isso.

Jesus, por outro lado, apresenta uma opção extremamente

radical, que é entendida por Marcos como mais perigosa, por atacar

exatamente a lógica e a estrutura do sistema de dominação. A revolta

proposta por Jesus é a do tipo que, embora pacífica, “não deixaria

pedra sobre pedra”, pois questionava a validade do sistema e

conscientizava as pessoas acerca de sua realidade e da necessidade de

estabelecer um novo tipo de postura no mundo baseado em relações

restauradas e em laços de solidariedade que tornassem as regras

estabelecidas obsoletas. Essa postura de Jesus, contudo, necessitava

de um nível de desprendimento das velhas formas de vida e de

comprometimento com o novo que a maioria das pessoas (que o;cloj)

não pode compreender ou assumir.

De fato, o tipo de revolta proposto por Barrabás permite um

comprometimento “em massa” e promete “resultado imediato” para si

mesmo, diferente da proposta de Jesus, que tem que ter

comprometimento pessoal em prol da comunidade, e que não promete

soluções imediatas.

Essas eram as propostas de cada um dos dois gladiadores, e é

por essas propostas e visões de mundo que ambos se faziam

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conhecidos. Quando são confrontados, são seus ideais e sua visão de

mundo que duelam, e é a partir deles que seus destinos – e o destino

da Judéia – serão determinados.

A multidão escolhe libertar Barrabás, dá a ele a vitória do duelo

e condena Jesus à morte. Por quê? Porque a postura de Jesus é lida e

entendida como fraqueza, ele é visto como alguém que se recusa a

lutar – e de fato se recusa. Jesus não apresenta um bom espetáculo,

não é um bom gladiador porque não assumiu as armas e as formas

imperiais e correntes nem de submissão nem de revolta. Mereceu

morrer porque não demonstrou uirtus. E a multidão fez o seu papel:

escolheu de fato o melhor gladiador, de acordo com suas expectativas.

Dissemos anteriormente sobre a postura contraditória e confusa

da multidão, sobre sua tendência de procurar Jesus para satisfazer

suas necessidades e desejos. Conhecemos um pouco de sua situação

de extrema opressão e os desejos de liberdade e justiça que

alimentavam, bem como suas expectativas messiânicas que,

certamente, foram depositadas em Jesus. Na Galiléia, a multidão havia

tido suas expectativas satisfeitas por Jesus, e é muito provável que

acreditasse que Jesus estava indo para Jerusalém para “completar”

essas expectativas através da reivindicação messiânica (afinal,

Jerusalém era o lugar ideal para isso). No entanto, diante da postura

de Jesus em Jerusalém, a multidão se frustra, talvez percebendo que

Jesus não assumiria o papel de messias, rei ou revolucionário que esta

desejava.

Cremos, portanto, que o que determina a escolha da multidão,

no Evangelho de Marcos, é sua frustração. A multidão esperava que

Jesus apresentasse uirtus, a “virtude” romana, com os padrões

romanos, como Barrabás o fez. A multidão crê que é possível derrotar

o Império com as mesmas armas, que é possível acabar com a

opressão com uso de armas que oprimem e matam, e não

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compreendem o fato de Jesus recusar-se a apresentar tal

comportamento.

Ironicamente, se para os líderes judeus, ricos, aliados de Roma,

beneficiários do sistema de dominação e opressão, Jesus era mais

perigoso do que Barrabás, para a multidão oprimida, desesperada e

explorada, ele não correspondia às expectativas. Talvez porque os

líderes compreendessem que a transformação proposta por Jesus era

muito mais efetiva do que a de Barrabás... E talvez seja por isso que

Marcos quis apresentar essa cena dessa forma:como um múnus, como

um combate tipicamente romano em que se revela o que está por trás

das ações: os valores e princípios.

No duelo montado por Marcos, inegavelmente Jesus perdeu. Ele

recusa-se a demonstrar as virtudes desejadas pelo Império, que são as

mesmas desejadas pela multidão. Jesus perde porque, depois de

acompanhá-lo em todo seu ministério, a multidão continua tendo os

mesmos valores, desejando as mesmas coisas, continua sendo o;cloj.

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Para Concluir...

Não serei o poeta de um mundo caduco. Também não cantarei o mundo futuro.

Estou preso à vida e olho meus companheiros Estão taciturnos, mas nutrem grandes esperanças.

Ente eles, considere a enorme realidade, O presente é tão grande, não nos afastemos.

Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas. Não serei o cantor de uma mulher, de uma história.

Não direi suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela. Não distribuirei entorpecentes ou cartas suicida.

Não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins. O tempo é minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,

A vida presente.

Carlos Drummond de Andrade

Começamos nossa pesquisa motivados por um questionamento:

por que a postura da multidão, identificada pela palavra o;cloj e bem

definida como personagem importante no Evangelho de Marcos, muda

tão radicalmente no final do Evangelho? Se, como temos verificado, o

termo refere-se a um personagem que aparece acompanhando Jesus,

recebendo seus ensinos e seus milagres, tendo sua atenção e cuidado

e demonstrando prazer em sua companhia e admiração ao seu ensino

a ponto de querer fazê-lo rei, qual a explicação para tal mudança?

Será que a explicação corrente de que a multidão, como “massa de

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manobra” foi manipulada pelos líderes judeus é satisfatória e

convincente?

Ao longo de nossa pesquisa, percebemos que as questões

acerca da postura e da identidade de o;cloj/multidão são muito mais

complexas do que pensávamos de início, e esperamos ter demonstrado

um pouco dessa complexidade na verificação de que o termo, no

Evangelho de Marcos, é usado de forma relacional, não significando

uma classe social propriamente dita, mas representando uma postura

diante da vida e das pessoas – postura marcada pelo anonimato, pela

procura da satisfação de suas próprias necessidades e interesses,

muitas vezes assumindo posições que atrapalham o desenvolvimento

do ministério de Jesus. Percebemos também que, paradoxalmente, as

pessoas que compõem o;cloj são identificadas pela possibilidade –

possibilidade de emergir da multidão, ser identificadas e transformadas

em sua visão de mundo e em sua postura. Muitas pessoas, no decorrer

da narrativa de Marcos, passaram por esse processo, saíram da

multidão e tornaram-se seguidoras de Jesus.

Ao verificar essa complexidade, percebemos que trabalhávamos

com a questão errada. Marcos não apresenta, no capítulo 15 de seu

Evangelho, uma postura diferenciada da multidão. Ao contrário, o

“problema” reside no fato contrário: apesar de conviver com Jesus, de

receber seu ensino, atenção e milagres, o;cloj não mudou! Deveria ter

mudado. Poderia ter mudado, mas não mudou. Por isso, ao final do

evangelho, suas expectativas e sua visão de mundo continuam as

mesmas do início: satisfação de suas necessidades imediatas,

esperança de que um líder resolveria imediatamente todos os

problemas relacionados à opressão e injustiças sofridos. Essas

expectativas não transformadas é que levam o;cloj a escolher

Barrabás em detrimento de Jesus.

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Saímos, portanto, do “lugar comum” que tende a enxergar

o;cloj de forma simplista, vendo-a como composta por pessoas

ingênuas que, devido à sua simplicidade, são facilmente induzidas ou

influenciadas. A multidão de Marcos não é assim: é composta por

pessoas reais, nem totalmente boas nem completamente más, pessoas

que vivem em realidades complexas e que têm desejos egoístas

(muitas vezes motivados pelo desespero), mas também têm grandes

possibilidades. Não são vítimas nem vilões, mas podem ser as duas

coisas, conforme suas escolhas. Quando falamos anteriormente que a

multidão foi influenciada pelos líderes judeus para escolher a libertação

de Barrabás o que queremos dizer é que os líderes conheciam as

expectativas dessa multidão e trabalharam com aquilo que sabiam que

já estava em sua mente e visão de mundo. Não teriam tido êxito se,

em vez de o;cloj tivessem encontrado seguidores comprometidos com

Jesus, por mais “humildes” que esses seguidores pudessem ser.

Entendemos, portanto, que Marcos apresenta, em seu

Evangelho, duas possibilidades de relacionamento com Jesus, dentre

as quais seus ouvintes/leitores teriam que escolher: continuar na

multidão, ou sair dela e tornar-se discípulo ou seguidor de Jesus.

Nesse caso, há necessidade de transformação da visão de mundo e

das expectativas a fim de poder compreender a proposta de

transformação de Jesus, seus compromissos e riscos, pois não há

garantias de satisfação pessoal, mas compromisso com a missão

restauradora de Jesus. A diferenciação apresentada no Capítulo 1 entre

os discípulos (ajudadores de Jesus) e a multidão (ajudados por Jesus)

ganha uma significação ainda mais profunda, pois Marcos não nega a

presença sempre constante da multidão, e desafia sua comunidade a

ter a mesma postura que Jesus teve, apesar da inconsistência da

mesma. Ao mesmo tempo, paradoxalmente, desafia sua platéia a que

se posicione.

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Esse posicionamento ganha definições políticas definidas, que

devem ser também compreendidas. Marcos apresenta a postura

antiimperialista de Jesus de forma clara. Seu Evangelho, como vimos,

está repleto de referências críticas à dominação romana e procura

desvendar os mecanismos dessa dominação, assim como o faz com a

dominação econômica, ideológica e religiosa exercida pela liderança

judaica. Mas o tipo de resistência de Jesus é diferente de tudo que sua

comunidade conhece.

Em um contexto de guerra, em que sua comunidade estava

sendo desafiada a tomar um posicionamento ou de alienação e

separação total (como os essênios, por exemplo) ou de aceitar e fazer

parte da revolta armada, o Jesus de Marcos apresenta outra opção:

resistência pacífica baseada na restauração das relações de

solidariedade e ajuda mútua que caracterizavam o antigo Israel. Jesus

propõe o Reino de Deus como uma realidade em que não existam

dominadores e dominados, mas ajuda mútua. Marcos entende que

qualquer tentativa de rebelião armada seria suicida (como de fato foi)

e, ao mesmo tempo, sabe que o conformismo e a alienação

sedimentariam cada vez mais a situação de injustiça e opressão.

Nenhuma dessas duas posturas representaria o compromisso com

Cristo e os valores do Reino.

Dessa forma, entendemos a opção de Marcos em estruturar o

texto do confronto entre este e Barrabás da forma como o fez: como

um munera, um evento símbolo da dominação romana, certamente

conhecido e facilmente reconhecido por seus ouvintes/leitores. Os anos

de dominação romana, o convívio com soldados romanos na capital e

no interior da província, o esforço das lideranças nativas em agradar

ao Império e propagar seus valores certamente haviam dado à

população a oportunidade de conhecer esse fenômeno tão

característico e carregado de significados, que seriam percebidos pela

sua comunidade. Mais do que isso, o confronto entre a ideologia

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imperial “disfarçada” de nacionalismo, representada por Barrabás,

certamente provocariam o choque e a compreensão dos valores

expostos na atitude de Jesus: não adiantava querer opor-se ao

dominador com as mesmas armas do mesmo (até porque ele seria

muito mais forte), não adiantava querer mudar apenas a conjuntura e

inverter os papéis entre dominadores e dominados, exploradores e

explorados. Era preciso ir além: questionar e derrubar as estruturas, o

modo de pensar e se posicionar que faz com que seja necessário

existir essas divisões.

Jesus perde o duelo porque quer. Ele deliberadamente assume o

risco de sua atitude, e não se pode dizer que tenha morrido

“injustamente”, diante das posições que assumiu. Em sua morte, não

há mal entendido ou equivoco, pois Jesus morreu por aquilo que havia

decidido ser, pelo que era, por suas decisões e valores, pelo “Pai” que

representava. Na cena descrita por Marcos, sua recusa em participar

do confronto com as mesmas “armas imperiais” determinaram sua

morte, porque isso significaria ter que internalizar os valores do

Império, e isso Jesus não faz. Sua atitude, que poderia ser lida como

fraqueza, como falta de uirtus, demonstra na verdade uma coragem

radical que não é compreendida pela multidão: coragem de manter

sua identidade e o projeto do Reino de Deus pelo qual vivera.

E esse é o confronto máximo no qual a comunidade de Marcos

também estava inserida e devia posicionar-se. Assumir os riscos do

discipulado seria assumir uma identidade diferenciada da multidão,

sair de o;cloj e estar disposto a correr os riscos.

Mas, em Marcos, os seguidores de Jesus também não estão

presentes, também o abandonam... Fugiram como “todos”, na cena de

sua prisão (Marcos 14,50). Também são apresentados como humanos,

também têm medo e ficam confusos. Mas há uma diferença em Marcos

– uma diferença crucial: o abandono não é a palavra final. Os

discípulos reaparecem, depois da ressurreição, no chamado de Jesus

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para que se encontrem com ele na Galiléia – onde tudo começou.

Porque com os discípulos, com os seguidores, o relacionamento

continua mesmo diante da frustração, dos riscos e dos fracassos. Isso

é compromisso, assumido apenas por quem tem coragem de sair de

o;cloj e aprender novos valores e nova forma de viver.

Terminamos esse trabalho com uma certeza: não chegamos à

verdade. Apenas demos mais um passo em direção à compreensão de

um texto que procurou revelar a importância do fenômeno Jesus em

uma realidade complicada, cheia de injustiças, conflitos e gente aflita –

realidade como a nossa. O esforço do Evangelista Marcos em

compreender sua realidade e ao mesmo tempo torná-la compreensível

aos seus ouvintes/leitores, apresentando Jesus e o Reino de Deus

como a verdadeira solução nos desafia a dar mais um passo: seguir

seu exemplo!

“Podemos, dessa maneira, distinguir dois tipos de busca da

verdade. O primeiro é o que nasce da decepção, da incerteza e da

insegurança e, por si mesmo, exige que saiamos de tal situação

readquirindo certezas. O segundo é o que nasce da deliberação ou

decisão de não aceitar as certezas e crenças estabelecidas, de ir além

delas e encontrar explicações, interpretações e significados para a

realidade que nos cerca”150.

150 Marilena Chauí, Convite à Filosofia, São Paulo: Ática, 2000, p.114-115.

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