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UNIVERSIDADE PAULISTA O MURO COMO MÍDIA: UMA INTRODUÇÃO SOBRE AS IMAGENS URBANAS NAS SUPERFÍCIES DA CIDADE DE SÃO PAULO Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Midiática da Universidade Paulista UNIP, para obtenção do título de mestre em Comunicação. DANY RIBEIRO SÃO PAULO 2015

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UNIVERSIDADE PAULISTA

O MURO COMO MÍDIA: UMA INTRODUÇÃO SOBRE AS

IMAGENS URBANAS NAS SUPERFÍCIES

DA CIDADE DE SÃO PAULO

Dissertação apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Comunicação e Cultura

Midiática da Universidade Paulista – UNIP,

para obtenção do título de mestre em

Comunicação.

DANY RIBEIRO

SÃO PAULO

2015

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UNIVERSIDADE PAULISTA

O MURO COMO MÍDIA: UMA INTRODUÇÃO SOBRE AS

IMAGENS URBANAS NAS SUPERFÍCIES

DA CIDADE DE SÃO PAULO

Dissertação apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Comunicação e Cultura

Midiática da Universidade Paulista – UNIP,

para obtenção do título de mestre em

Comunicação.

Orientador: Prof. Dr. Maurício Ribeiro da

Silva

DANY RIBEIRO

SÃO PAULO

2015

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Ribeiro, Dany.

O muro como mídia: uma introdução sobre as imagens urbanas nas superfícies da cidade de São Paulo / Dany Ribeiro - 2015. 75 f. : il. color. + CD-ROM.

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Paulista, São Paulo, 2015. Área de Concentração: Comunicação. Orientador: Prof. Dr. Maurício Ribeiro da Silva.

1. Mídia. 2. Muro. 3. Imagem. 4. Grafite. 5. Pichação. I. Silva, Maurício Ribeiro da (orientador). II. Título

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DANY RIBEIRO

O MURO COMO MÍDIA: UMA INTRODUÇÃO SOBRE AS

IMAGENS URBANAS NAS SUPERFÍCIES

DA CIDADE DE SÃO PAULO

Dissertação apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Comunicação e Cultura

Midiática da Universidade Paulista – UNIP,

para obtenção do título de mestre em

Comunicação.

Aprovado em: ____/____/_______.

BANCA EXAMINADORA

___________________________________

Prof. Dr. Maurício Ribeiro da Silva

Universidade Paulista - UNIP

___________________________________

Prof. Dr. Jorge Miklos

Universidade Paulista - UNIP

___________________________________

Prof.ª Dr.a Simonetta Persichetti.

Faculdade Casper Libero

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Dedico este trabalho à minha família e à razão da minha vida, Catarina Ribeiro Franco, e a Marco Antonio Franco Ribeiro.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço as pessoas com quem tive o privilégio de conviver no transcorrer desta

experiência viabilizada pelo Programa de Mestrado em Comunicação Social da

Universidade Paulista – UNIP –, tanto pela oportunidade de interação e troca durante as

aulas realizadas ao longo deste curso, quanto pelas contribuições advindas dos debates

ocorridos, que muito contribuíram para a formação de meu conhecimento e do desejo de

compreender uma das partículas formadoras do pensamento humano no contexto da

sociedade da informação. Todos os meus professores, colegas e funcionários foram

fundamentais nesse intento.

Agradeço em especial o meu orientador, Prof. Dr. Maurício Ribeiro da Silva, pelo

apoio, por sua generosidade em compartilhar seus conhecimentos e experiências,

oportunizando a abertura de meus horizontes intelectuais, pelo companheirismo, por

compreender meus silêncios e dificuldades, mas, sobretudo, pela paciência em acreditar no

meu potencial e crescimento acadêmico.

Ao Prof. Dr. Jorge Miklos, por suas aulas, as quais despertaram um olhar mais atento

e curioso para os temas tratados no âmbito das Ciências Sociais, tornando as questões

discutidas pelos teóricos desta área mais acessível e interessante para mim.

Meus agradecimentos aos arquitetos Maria de Assunção Ribeiro Franco e Antonio

Franco, pelo constante incentivo, apoio e encaminhamento; à minha mãe, Ruth Marcelino,

agradeço pela vida e às minhas irmãs, pela possibilidade de enxergar o outro em mim

mesmo. E finalmente, mas principalmente, à minha esposa Catarina Ribeiro Franco, por

tudo.

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RESUMO

Esta pesquisa está inserida no campo da Comunicação e Cultura Midiática, vinculada à linha Contribuições da Mídia para a Interação entre Grupos Sociais e tem como tema “O Muro como Mídia”. O muro, compreendido como mídia, caracteriza-se como um local em que comumente se registram mensagens, imagéticas ou escritas, que expõem pensamentos, técnicas e formas, registrando imagens e textos desde os primórdios da humanidade até o tempo presente. A partir desta perspectiva, definimos como objetivo principal compreender o papel desta superfície na cultura e, sobretudo, nos processos comunicacionais. Como objetivos derivados, compreender a complexidade desta manifestação no contexto urbano e dos espaços públicos, focando em especial as manifestações que ocorrem na cidade de São Paulo compreendidas tanto como grafite e quanto pichações. A hipótese central da pesquisa aponta o muro como um veículo do imaginário, capaz de possibilitar a genealogia da cultura humana presente, ainda, no contemporâneo, no qual pudemos constatar significativa relação com o ambiente virtual. O método baseia-se na problematização, a partir das referências teóricas, do fenômeno observado no ambiente urbano e na rede mundial de computadores. Para tanto, a pesquisa conta com contribuições da Teoria da Mídia (Harry Pross), da Teoria da Imagem (Norval Baitello Jr., Hans Belting e Mauricio Ribeiro da Silva), da Teoria do Imaginário, do Mito e da Cultura (Gilbert Durand, Mircea Eliade), assim como o conceito de Mediosfera (Malena Segura Contrera). Palavras-chave: Mídia. Muro. Imagem. Grafite. Pichação.

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ABSTRACT

This research is inserted in the field of communication and Media Culture, linked to the line of Media Contributions to the interaction between Social Groups and has the theme "The Wall as a media". The wall, taken as a media, is characterized as a place a place where messages can be commonly expressed, either through images or written ones, which express thoughts, techniques and designs, recording images and texts since the dawn of humanity to the present time. From this perspective, we aim at understanding the role of this surface in culture, especially in the communication process. Secondly we aim at understanding the complexity of this manifestation in the urban environment and public spaces, mainly focusing on the demonstrations taking place in São Paulo through graffiti and the Spraypainting. This work hypothesis consider the wall as an imaginary vehicle, capable of providing the genealogy of human culture still present nowadays and in which was observed a significant relationship with the virtual environment. The method is being questioned, based on the theoretical references, the phenomenon observed in the urban environment and on the World Wide Web. Therefore, the research is based on the Media Theory (Harry Pross), Theory of Image (Norval Baitello Jr., Hans Belting and Mauricio Ribeiro da Silva), Theory of the Imaginary, Mith and Culture (Gilbert Durand, Mircea Eliade), as well as the concept of Mediosfera (Malena Segura Contrera). Keywords: Media. Wall. Image. Graffiti. Spraypainting.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Afresco nas catacumbas do Vaticano, Roma. .......................................... 22

Figura 2 – Pinturas rupestres de Lascaux, França, descobertas em 1940. .............. 30

Figura 3 – Hieróglifos (escritas sagradas elaboradas pelo Deus Thot). .................... 31

Figura 4 – Afresco representando natureza-morta, Pompeia, Itália. ......................... 34

Figura 5 – Mosaico romano da Menorá, c. 300-500 a.C., Tunísia, Museu Brooklin,

NY. ............................................................................................................................ 35

Figura 6 – Diego Rivera pintando El levantamiento em sua oficina de trabalho.

México, 1931. ............................................................................................................ 39

Figura 7 – Eduardo Kobra, mural na fachada do Museo dell’Altro e Dell’Altrove, via

Prenestina, Roma. ..................................................................................................... 43

Figura 8 – Grafiteiros trabalham na avenida 23 de maio (2014), em São Paulo. ...... 48

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 9

2 O MURO E A CULTURA URBANA ...................................................................... 14

2.1 Muro: um ambiente midiático ...................................................................... 14

2.2 As imagens tradicionais e os valores simbólicos ........................................ 29

3 O MURO NO ASPECTO CONTEMPORÂNEO .................................................... 38

3.1 Os muros da cidade e os processos sociais e culturais de uma época ...... 38

CONCLUSÃO ........................................................................................................... 54

REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 65

APÊNDICES ............................................................................................................. 67

Apêndice A – Pichação .......................................................................................... 68

Apêndice B – Pichação .......................................................................................... 69

Apêndice C – Pichação.......................................................................................... 70

Apêndice D – Pichação.......................................................................................... 71

Apêndice E – Grafite .............................................................................................. 72

Apêndice F – Grafite .............................................................................................. 73

Apêndice G – Grafite ............................................................................................. 74

Apêndice H – Grafite.............................................................................................. 75

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1 INTRODUÇÃO

Esta pesquisa reúne o resultado de estudos sobre imagens, símbolos e muros

como superfícies de comunicação e interação social da cidade de São Paulo, por

meio de pichações e grafites. A análise parte de uma breve levantamento dessas

aplicações murais através dos tempos, sendo verificado em um contexto histórico e

social mundial.

O muro, enquanto estrutura é analisado na presente pesquisa como uma

superfície verticalizada que não só representa a defesa da fronteira, símbolo da

separação, da força, da divisão, do isolamento e da privacidade, mas também como

um veículo criador de valores simbólicos que interagem com os indivíduos acima de

um nível comum, com força de contenção e significados.

Sob a mesma ótica, a superfície muro, como espaço de representação de

imagens e como forma de comunicação e reprodução simbólica, passa também a

ser compreendido pelas comunidades humanas como veículo adequado para a

manifestação, em princípio, contra aquilo que se entende como hegemônico em

determinado contexto social.

Para que possamos compreender essas questões, é preciso constatar a

importância do conceito de espaço em relação ao objeto de estudo muro,

considerando-o, na linha do tempo, como fator histórico. Nesse sentido, o muro é

concebido como espaço a partir do momento em que se verifica a presença do

corpo, tido, em primeira análise, como espaço físico, mas concebido, hoje, também

em um aspecto virtual. Tal abrangência pode ser verificada desde a Idade da Pedra

(homo sapiens) até a atualidade (pós-modernidade ou sociedade da informação).

Assim, os lugares, ou os espaços propriamente ditos, originariamente formam uma

identidade histórica com o homem, principalmente o primitivo, desenvolvendo

vínculos com os receptores humanos, e por consequência tonando-se espaços

sagrados (ELIADE, 2010, p. 17).

Levando em conta essas características espaciais, constrói-se uma cidade,

ou seja, a partir da formação e da delimitação desses espaços, considerados

originariamente como sagrados, temos, em contraposição, o sentido de urbano, já

que, de certo modo, o urbano sempre nos remete a ideia de caos (ELIADE, op. cit.,

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p. 32). O homem, inserido neste conceito de "caos urbano", acaba compreendendo o

espaço físico da cidade, aqui representado por meio dos muros (considerados

corpo1 comunicador e interlocutor), como forma de proteção do seu território, porém,

a princípio, esse é um espaço antinatural e distante do conceito originário de lugar

sagrado. Todavia, por se apresentarem de forma contínua e necessária, esses

muros acabam por se tornar a sua realidade adequada.

Dentro da mesma concepção de proteção, o ciberespaço nos remete ao

muro, já que o indivíduo que com ele se relaciona compreende estar protegido por

um pseudoanonimato (considerado aqui como o muro de proteção), conforme

vendido pelas redes sociais e pelos aplicativos atuais.

Ademais, as muradas proporcionadas por meio dessa comunicação terciária

profetizam também uma falsa liberdade de expressão, em que o emissor da

mensagem ou imagem se sente mais confortável e confiante para disseminar suas

opiniões, sem perceber que, ao aderir a esse tipo de comunicação, inevitavelmente

acaba por ter de se adequar a modelos de conduta e procedimentos

preestabelecidos por esse tipo de mídia.

Ante esses preceitos físicos e virtuais, nascem os muros, as muralhas e as

paredes para os homens, que compreendidos como corpo, ganham a função de

proteção do caos estabelecido e tido como natural a qualquer comunidade que

possua a característica urbana, formando vínculos culturais, simbólicos e históricos

nesses espaços.

Nos ambientes urbanos e dentro das transformações inerentes a qualquer

desenvolvimento cosmopolita, o ser humano precisa se proteger por meio da criação

de muradas físicas ou psicológicas, para sobreviver ao que, de fato, não lhe é

natural, e, neste contexto, perde o sentido de lugar. Atualmente, tais conceitos de

divisões estabelecidas pelos muros podem ser aplicados de forma análoga às

segregações estabelecidas no meio virtual, que também servem para os indivíduos

como tipos de proteção, seja de sua imagem de fato, seja daquela construída de

forma simbólica ou fantasiosa.

1 BELTING, Hans. Imagem, mídia e corpo: uma nova abordagem à iconologia. Revista Ghrebh.

Disponível em: <http://www.revista.cisc.org.br>. Acesso em: 28 nov. 2014.

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Os lugares físicos ou virtuais, em princípio, expressam a materialidade que

tem sentido, mas quando verificamos a materialidade sem sentido, comum

atualmente nos espaços urbanos, temos "não lugares", conforme define Augé (2012,

p. 72-73). Dessa forma, se um lugar pode ser definido como identificador, relacional

e histórico, representará um lugar em sua concepção integral. Já um espaço que

não pode ser definido como identitário, relacional ou histórico, definirá o que o autor

entende por "não lugar".

Igualmente também são entendidos os muros na arquitetura da cidade, já que

muitos nos remeterão ao conceito de "lugar" por formarem vínculo de identidade,

racionalidade e historicidade, e tantos outros serão considerados não lugares

justamente pela falta desta tríplice conjugação, bem como por ser o espaço urbano,

por sua própria natureza, caótico.

Augé (2012) ainda revela a hipótese de que a supermodernidade é produtora

de não lugares, isto é, de espaços que não são em si lugares antropológicos e que,

contrariamente à modernidade baudelairiana,2 não integram os lugares antigos:

estes, repertoriados, classificados e promovidos a “lugares de memória”, ocupam aí

um lugar circunscrito e específico.

Com base nessa teoria, podemos afirmar que o caos urbano, compreendido

como necessariamente natural para o homem que habita grandes cidades,

configurando um mundo essencialmente tratado por meio de objetos, torna o muro

físico ou virtual como não lugar caótico, com a repetição daquilo que é considerado

vulgar e não pertencente a ninguém ou a nada, mecânica advinda da

supermodernidade. Nesse sentido, nasce a necessidade de se estabelecer entre os

indivíduos sociais uma hegemonia, uma antinatural sensação de igualdade ou de

semelhança dentro de um espaço físico que espontaneamente proporciona conflitos.

Aplicando essas considerações na análise do corpo tido como muro urbano,

entendemos que tais conflitos surgem quando as imagens neles dispostas

2 Charles-Pierre Baudelaire (Paris, 9 de abril de 1821 - Paris, 31 de agosto de 1867), teórico da arte

francesa, considerado um dos precursores do Simbolismo (um dos princípios básicos dos simbolistas era sugerir através das palavras, sem nomear objetivamente os elementos da realidade. [...] Para interpretar a realidade, os simbolistas se valem da intuição, e não da razão ou da lógica). Baudelaire também é reconhecido como fundador da tradição moderna em poesia juntamente com Walt Whitman. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Charles_Baudelaire> e em <http://pt.wikipedia.org/wiki/Simbolismo>.

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(pichações ou grafites) não propiciam ao seu receptor a natureza dos sentidos, por

melhor ou mais perfeito que seja o seu apelo estético, afastando do indivíduo a

construção de uma correlação dessas imagens e/ou escritos com algo que lhe

remeta ao valor sagrado e simbólico da obra. Isso ocorre porque há perda da

materialidade, da essencialidade da manifestação, tornando-se apenas imagem

técnica, tida ou imposta nos dias atuais como necessária à sobrevivência do

indivíduo inserido nesse lugar físico ou virtual urbano, que só quer aparecer, estar

nas redes sociais. É justamente nesse contexto que serão analisados os significados

das imagens nas paredes e nos muros da cidade de São Paulo, ampliando essas

considerações também ao ciberespaço.

Igualmente, ao inserirmos nesta discussão a análise daquele grafite que não

tem a materialidade e a relação com o espaço e o lugar, concluímos que este acaba

por deixar de expressar o valor simbólico, porque lhe falta uma objetivação no

processo de criação das imagens. Isso acarreta a falta de sentidos de suas

intervenções, que, por consequência, acabam se esvaziando e se tornando apenas

imagens passageiras. E a partir do momento que a imagem criada por grafiteiros

e/ou pichadores estiver esvaziada de sentidos, estabelece-se a necessidade de

expor uma imagem que se traduz como cópia e que ocupa o espaço, mas não

cumpre a sua função de transmissão comunicacional.

Da mesma forma, a partir do momento em que se estabelecem lugares como

muros, paredes e fachadas de prédios para grafitar, que não foram estabelecidos

pelo próprio executor da obra, a produção ou sua intensão se tornam desprovidas de

sentidos incrementam o caos urbano e o acúmulo de imagens descontroladas.

O grafite enquanto ocupante do lugar urbano, pode até existir de forma mais

rara como materialidade com sentido, mas, o que mais comumente se nota, é a sua

ocupação como não lugar, representada pela materialidade sem sentido, que é o

mundo dos objetos que nivelam os indivíduos a um mesmo contexto. Obviamente,

essas ideias não transitam apenas nos espaços físicos urbanos, mas também nos

espaços virtuais correspondentes, já que, dentro do conceito de comunicação

terciária, a repetição do mesmo interage em tempo real em lugares materiais e

imateriais.

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Neste sentido, a compreensão da representação simbólica do grafite atual

como uma ocupação do lugar urbano desprovido de sentidos guarda coerência

porque não tem a materialidade devida ou definida por seu emissor de forma natural

ou personalíssima.

Destarte, a questão que se apresenta nos dias atuais, dirige-se às superfícies

que deixam de ter uma fundação fixa e se tornam virtuais, desvinculando as

imagens e a textualização dos muros como uma suposta mídia que se comunica

com o corpo. Mesmo não se tratando especificamente de um corpo físico, mas, sim,

de alguma necessidade de chamar o olhar do outro para si, de estar nas redes,

obter status, este movimento físico externo acaba por interligar os indivíduos aos

padrões sociais impostos pelo chamado quarto poder, conduzindo-nos a uma

inevitável aceitação e cultuação daquilo que nos é previamente selecionado.

Pelo viés sociológico, o que se nota é que a comunicação promovida pelos

emissores do grafite não é capaz de estabelecer um entendimento da imagem em

relação ao corpo, meio de sua concretização, já que o indivíduo também está

suscetível a um meio ambiente antinatural e impregnado de prévias seleções, fator

que acaba por corromper o sentido da obra. Existe uma estrutura no espaço e no

lugar que se traduz pela existência de um lastro cultural que está incutido em todos

os integrantes sociais, e que até de forma involuntária é tido como simbólico. Desse

modo, nem todo lugar é transmissível, mas o é a imagem que vincula a obra a ele. E

é exatamente nesse sentido que hoje se verifica a ruptura com o simbólico, já que

não há objetivação impossível ao seu alcance.

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2 O MURO E A CULTURA URBANA

2.1 Muro: um ambiente midiático

Para que possamos compreender o muro como uma superfície na qual se

registra o imaginário da cultura humana, é preciso destacar que esse conceito de

muro e seu significado para o homem já se apresentavam na Pré-História, como

registrado na arte rupestre das cavernas, sendo também encontrados nos locais

onde viveram os povos antigos do Egito, da Grécia, de Roma, da Síria e da

Babilônia, e ser interpretados por uma estreita correspondência antropológica e

sociológica com a atualidade.

Ao longo do tempo, encontramos diversos aspectos individualizantes em

relação à adoção de determinadas técnicas, à escolha de uma ou de outra,

diferenciais quanto a forma, os métodos e as maneiras da transmissão de ideias e

conceitos dependendo do recorte e da intersecção histórica que analisamos.

Todavia, o ponto de conjunção e correspondência pertinente à presente pesquisa

pretende identificar o muro midiático como um meio de comunicação do homem que

atravessa o tempo, revelando mais sobre a humanidade que o simples olhar

preliminar do conjunto arquitetônico sugere.

Nesse contexto, a percepção sobre o muro como ambiente midiático surge

inicialmente da depuração da ideia de mídia secundária aplicada ao objeto de

estudo. A mídia secundária é compreendida como aquela relativa aos meios de

comunicação capazes de transportar aos receptores uma mensagem significativa,

independentemente da aplicação de qualquer mediador, concluindo a relação entre

destinatário e remetente no que diz respeito à valoração e à apreciação de seu

conteúdo. Assim, tendo o emissor um suporte para a realização da comunicação e

havendo sua efetivação, nada mais será necessário para formar o liame, senão a

apreciação do receptor. Tais premissas podem ser elucidadas nas considerações de

Harry Pross (1997), que define como mídia secundária:

Aqueles meios de comunicações que transportam as mensagens aos receptores, sem que estes necessitem de aparatos para captar significados, portanto são mídias secundárias a imagem, a escrita, o impresso, a gravura, a fotografia, também em seus desdobramentos enquanto carta, panfleto, livro, revista, jornal. Na mídia secundária, apenas o emissor necessita um

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aparato suporte. Assim, constituiriam mídia secundária as máscaras, pinturas e adereços corporais, roupas, a utilização do fogo e da fumaça, os bastões, a antiga telegrafia ótica, bandeiras, brasões e logotipos, imagens, pinturas e quadros, a escrita, o cartaz, o bilhete, calendário. Como se pode facilmente constatar, o grau de complexidade de alguns veículos da mídia secundária está por merecer melhor atenção da pesquisa em nossa área. Desde já, as ciências da comunicação vêm dedicando pouca atenção às implicações da escrita, seus desdobramentos históricos e sua progressiva perda, causadora de sucessivas crises na mídia impressa. Assim, podemos dizer que, na mídia secundária, apenas o emissor se utiliza de prolongamentos para aumentar seu tempo de emissão, seu espaço de alcance, ou seu impacto sobre o receptor, valendo-se de aparatos como suportes materiais (muro) que transportam suas mensagens. (PROSS, 1997, p. 127)

Dessa forma, considerando que a comunicação secundária necessita de

aparatos impressos ou materiais para concretizar a comunicação e o enfoque para a

superfície muro como aparato material interlocutor da mensagem comunicacional,

como se classificariam as comunicações corporais e as comunicações que nascem

por meio de aparatos eletrônicos? A comunicação viabilizada pela superfície muro,

considerada na realidade da sociedade da informação ou pós-moderna, teria a

mesma classificação de suporte viabilizador da comunicação secundária ou também

estaria suscetível a alterações valorativas pela aplicação da tecnologia como

interface, gerando uma possível deturpação ou modificação valorativa quanto à

mensagem contida no muro?

Para que tal questão seja elucidada com melhor clareza, é necessário

abordar o conceito de mídia primária, isto é, aquela em que a comunicação é feita

por meio dos corpos presentes e de maneira imediata, dando valor natural à

comunicação e colocando-a em um patamar de compreensão desprendida de

quaisquer suportes ou intervenções adjacentes.

Nessa linha, Maurício Ribeiro da Silva destaca a conceituação alinhada por

Pross: “Toda a comunicação começa na mídia primária, na qual os participantes

individuais se encontram cara a cara e imediatamente presentes com seu corpo:

toda comunicação humana retornará ao corpo.” (SILVA, 2012, p. 29)

Desse modo, considerando a comunicação primária aquela que se realiza por

vias diretas e presentes, a secundária aquela que necessita de um suporte material

para criar o liame entre emissor e receptor da mensagem, falta-nos desvendar os

pressupostos realizadores da comunicação terciária.

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Nesse passo, definimos como comunicação terciária aquela que depende de

suportes artificiais e tecnológicos para concretizar a relação, a fim de que se

estabeleça o liame entre emissor e receptor, ou seja, ambos necessitam utilizar o

aparelho para concretizar o objetivo comunicacional. Com maior clareza, Pross

(1972, p. 226, apud BAITELLO Jr., 2014, p. 109) vai mais adiante quando conclui

que: “A mídia terciária são aqueles meios de comunicação que não podem funcionar

sem aparelhos tanto do lado do emissor quanto do receptor”. Incluem-se nessa

classificação a telegrafia, a telefonia, o cinema, a radiofonia, a televisão, a internet

etc.

Com isso, o advento da mídia secundária não suprime nem anula a mídia

primária, que continua existindo como núcleo inicial e germinador. De maneira

semelhante, a mídia terciária não suprime a primária e tampouco a secundária, mas

apenas acrescenta uma etapa às anteriores, introduzindo o veículo eletrônico como

liame para a concretização da comunicação pretendida (PROSS, 1972, p. 226, apud

BAITELLO Jr., 2014, p. 109).

No entanto, ao analisar essas concepções, devemos questionar a introdução

da tecnologia como fator necessário e indispensável para o estabelecimento da

comunicação entre emissores e receptores das mensagens, bem como as

consequências advindas das manipulações adjacentes a esse processo, que

interferem no processo de comunicação da sociedade atual, lembrando, porém, que

nosso objeto de recorte para este estudo é o muro.

Nesse contexto, e ao tratar o muro como elemento histórico, consideramos

necessário verificar sua etimologia. Muro vem de múrus,3 proveniente do latim, e

significa estrutura sólida utilizada para separar ou proteger qualquer recinto, também

denominada “parede”. O abarcamento de seu significado se refere à proteção contra

os inimigos, que em um sentido primeiro de proteção, seriam os predadores

naturais. Posteriormente, o muro passou a ser utilizado para fazer valer a soberania

de determinado povo, definir a separação de ideias e ideais entre povos ou ainda

delimitar a propriedade no sentido de direito individual oponível contra invasões de

terceiros, não detentores de determinado título de propriedade. São, assim,

incontáveis as interpretações correlatas que poderíamos fazer pensando nos

sentidos da palavra muro.

3 Disponível em: <http://www.etimo.it/?term=muro>. Acesso em: 19 abr. 2015.

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Todavia, mesmo no chamado pós-modernismo e tendo ultrapassado a era do

Iluminismo, em que se acreditava ter a humanidade superado os seus momentos

mais obscuros em relação à barbárie, à falta de diálogo e às ações ditatoriais, os

muros ainda continuam a ter serventia em sentido mais literal e bárbaro: o da

separação por meio da imposição de um elemento físico, forte e que aponta a falta

de solidariedade e acordo entre as relações sociais, já que o muro é necessário para

impor o limite desejado.

Tanto é verdade que, mesmo após a queda do muro de Berlim em 1989,

símbolo da Guerra Fria e que circundava toda a Berlim Ocidental, estabelecendo

sua separação da Alemanha Oriental (incluindo Berlim Oriental), a humanidade

ainda se utiliza da barreira física muro para estabelecer, por meio da força, a

imposição de um ideal e a conquista do poder inerente a ele. São também exemplos

notórios: o muro que separa a Cisjordânia de Israel, também conhecido como “O

muro da vergonha” pelos oposicionistas da ocupação israelense; os muros que

separam Espanha e Marrocos, chamados de muros de Ceuta e Melilla, frutos do

resquício do colonialismo europeu no continente africano; o muro que separa os

Estados Unidos da América e o México, símbolo da política anti-imigração norte-

americana; o muro que separa a Turquia e a Grécia, tido pela União Europeia como

“a porta dos fundos” de entrada dos imigrantes na Europa, também símbolo da

política anti-imigração perpetrada pela Grécia, país severamente afetado pela crise

econômica de 2008; e o muro que divide a Coreia do Sul e a Coreia do Norte, que

ainda se sustenta como estrutura de separação.

Nesse sentido, incontroverso é o fato de que os muros físicos carregam em si

a função de ser um suporte midiático em que as escritas e imagens neles contidas

finalizam o que presumimos ser o papel da mídia secundária, conforme propôs

Flusser, não deixando também de participar da mídia primária, porque exigem a

permanência de emissores receptores em um mesmo espaço físico e a presença do

corpo, realizando, assim, a transmissão e a consecução da comunicação desejada.

Todavia, é, na atualidade, tempo em que a tecnologia invade quase que

irrestritamente a vida de todos, interferindo na rotina dos que dela dependem,

concordando ou discordando de seus difusos impactos nas relações sociais, que o

muro, como conceito de separação de interesses dos grupos sociais, difunde-se,

criando novos contornos e transformando-se também em uma espécie de mídia

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terciária, com o estabelecimento dos muros virtuais, que segregam as comunidades,

de acordo com os interesses, senão da máquina, pelo menos daqueles poucos que

detêm o poder sobre ela, ou o poder sobre o conteúdo inicial da reflexão que será

transmitido pelo canal de comunicação.

Desse modo, na contemporaneidade, os muros não são mais compreendidos

apenas em seu aspecto físico e estrutural, mas são vistos como um símbolo de

separação imaterial, principalmente no que diz respeito às divisões estabelecidas

entre os sujeitos nas relações sociais, efeitos propiciados pelos diversos ideais

implementados pela indústria cultural,4 já estabelecida em uma filosofia

globalizadora e transcontinental, inserida em um contexto tecnológico.

A ideia aqui introduzida segue Adorno e Horkheimer (1985), quando trataram

dos reflexos produzidos pela industrialização e da difusão de seus ideais em

situações de dominação histórica das massas, fazendo uma sutil alusão dos muros

já virtuais criados para estabelecer as ideias de condução da conduta humana em

larga escala.

Quanto mais firmes se tornam as posições da indústria cultural, mais sumariamente ela pode proceder com as necessidades dos consumidores, produzindo-as, dirigindo-as, disciplinando-as e, inclusive, suspendendo a diversão: nenhuma barreira se eleva contra o progresso cultural. [...] o espectador via no filme, no casamento representado no filme, o seu próprio casamento. Agora os felizardos exibidos na tela são exemplares pertencentes ao mesmo gênero a que pertence cada pessoa do público, mas a igualdade implica a separação insuperável dos elementos humanos. A semelhança perfeita é diferença absoluta. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 119-20)

4 Indústria Cultural: o termo “indústria cultural”, em alemão Kulturindustrie, foi criado pelos filósofos

e sociólogos alemães Theodor Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1895-1973), a fim de designar a situação da arte na sociedade capitalista industrial. Membros da Escola de Frankfurt, os dois filósofos alemães empregaram o termo pela primeira vez no capítulo “O Iluminismo como mistificação das massas”, no ensaio Dialética do esclarecimento, escrito em 1942, mas publicado somente em 1947. Para os dois pensadores, a autonomia e o poder crítico das obras artísticas derivariam de sua oposição à sociedade. No entanto, o valor contestatório dessas obras poderia não mais ser possível, já que se provou ser facilmente assimilável pelo mundo comercial. Adorno e Horkheimer afirmavam que a máquina capitalista de reprodução e distribuição da cultura estaria apagando aos poucos tanto a arte erudita quanto a arte popular. Isso estaria acontecendo porque o valor crítico dessas duas formas artísticas é neutralizado por não permitir a participação intelectual dos seus espectadores. A arte seria tratada simplesmente como objeto de mercadoria, estando sujeita às leis de oferta e procura do mercado. Ela encorajaria uma visão passiva e acrítica do mundo ao dar ao público apenas o que ele quer, desencorajando o esforço pessoal pela posse de uma nova experiência estética. As pessoas procurariam apenas o conhecido, o já experimentado. Por outro lado, essa indústria prejudicaria também a arte séria, neutralizando sua crítica à sociedade (SELIGMAN-SILVA, M. Adorno. São Paulo: Publifolha, 2003; THOMSON, A. Compreender Adorno. Petrópolis: Vozes, 2010).

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Desse modo, a teoria desenvolvida pela Escola de Frankfurt, que parte da

premissa de uma “cultura industrializada”, tece suas considerações com base no

estudo do período nazista, já que toda a arte produzida naquele contexto era dirigida

somente ao próprio sistema. Em situação correlata, mas diferente, apontam que, nos

Estados Unidos, o sistema da indústria cultural assumiu uma forma mais enrustida,

principalmente no campo do entretenimento, mas com o mesmo objetivo de

estabelecer uma barreira de aplainamento da opinião social. Em um primeiro

momento, isso foi possível por meio da difusão do cinema, como exemplificou

Adorno. Assim, segundo esses preceitos, a indústria cultural se faz presente e nos

apresenta uma comunicação de massa capaz de construir fortes muros de

constituição do ideário de determinada sociedade, como ocorreu no exemplo norte-

americano, em que o intuito de desviar os olhares da população dos problemas

sociais na década de 1930 foi alcançado pela introdução desse terceiro mediador, o

cinema, na transmissão da mensagem, estabelecendo, dessa forma, o muro que

afastaria ou desviaria a atenção do que não era desejável: a condução das

ambições políticas da época.

Observa-se, portanto, que a indústria cultural, segundo Adorno e Horkheimer

(1985), consiste em moldar toda a produção artística e cultural, de modo que elas

assumam os padrões comerciais e possam ser facilmente reproduzidas. Assim, as

manifestações de arte não são vistas somente como únicas, extremamente belas,

mas principalmente como mercadorias, que incentivam uma reificação (ou

transformação em coisa) e a alienação da arte feita para poucos e carentes de uma

visão crítica. Isso somente foi possível pela introdução da tecnologia como suporte

indispensável à transmissão da mensagem, estabelecendo não somente muros

virtuais entre emissor e receptor, mas também muros capazes de conter ou inserir o

ideário controlador das sociedades em níveis cada vez mais massificados.

Diante dessa ideia, não é difícil compreendermos que, segundo a teoria que

identificou a intenção da indústria cultural, o principal objetivo não era a promover

conhecimento, já que, inevitavelmente, conhecer levanta questionamentos, rompe

paradigmas e faz com que sejam necessárias novas respostas. O sistema

incorporou nos participantes sociais, via tecnologias comunicacionais, uma nova

necessidade: a do consumo, geradora de mercadorias próprias para a venda e

advindas do sistema capitalista. Foi, e ainda é, possível representar e incentivar o

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produto em vez do conhecimento propriamente dito, sua representação, por sua vez,

se tornou produto da elite. São esses aspectos que Adorno e Horkheimer (1985)

questionam quando tratam de indústria cultural, ou seja, sobre a forma pela qual as

artes e o conhecimento humano são tratados e se tornaram de fácil manipulação.5

É significante ressaltar que, com a era industrial, com todas as demandas

que lhe são inerentes, foi possível introduzir um poderoso mecanismo de

comunicação, cujo comando desejado para guiar determinado ideal social já estaria

embutido em uma ideia camuflada de opção individual do sujeito, isto é, o indivíduo

pensa estar fazendo uma escolha, enquanto, na realidade, está sendo conduzido a

adimplir com o que foi previamente imaginado ou determinado por aquele ou pelo

grupo que detém o poder da comunicação em determinado contexto e tempo

histórico.

Destarte, independentemente do período histórico que tomemos por análise,

encontraremos no muro o elemento arquitetônico como meio público para as trocas,

normalmente anônimas, de ideologias e de sensações entre as comunidades.

Todavia, o desafio dentro do contexto da sociedade da informação é identificar de

que forma e por quais formas as mensagens e imagens nele contidas estabelecem

vínculos entre emissores e receptores, bem como com que intuito de fato o

fenômeno se estabelece.

Em nossos estudos, verificamos que o hábito de expor ao público opiniões,

crenças ou a própria indignação nos muros e paredes vem de longa data: os

anúncios e pinturas de anônimos cidadãos romanos já era bastante presente no

Império Romano. As datações históricas avalizam as primeiras pichações e a

legibilidade das letras que durante o Império Romano foram empregadas nos muros.

Estes, por sua vez, eram amplamente utilizados como superfícies de diálogos na

esfera pública, bem como serviam de suporte físico para a divulgação de imagens

desprovidas de moralismo, religiosidade e espiritualidade, mesmo porque a tradição

judaico-cristã não era levada em conta pelos seus cidadãos: eles simplesmente

acreditavam que os deuses puramente existiam, não dando importância a

questionamentos galgados naqueles preceitos.

5 SILVA, D. R. Adorno e a Indústria Cultural. Disponível em:

<http://www.urutagua.uem.br//04fil_silva.htm>. Acesso em: 21 abr. 2015.

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Os romanos escreviam do mesmo modo que os gregos, usando letras

maiúsculas para inscrições em pedras e letras de cera. Esse popular sistema de

escrita apareceu entre os séculos II e III a.C., se espalhando por todas as regiões da

Europa que estavam sob o domínio dos romanos. O latim foi a língua escrita usada

oficialmente na Europa até meados do século XI.

A escrita maiúscula romana desenvolveu-se como escrita monumental. No

primeiro século da era cristã, era produzida com tamanha perfeição artística que se

tornou exemplo de incomparável beleza e elegância na grafia, o que lhe conferiu

lugar na escrita histórica. Foi nesse contexto ocidental que foram notadas as

questões sobre o tempo da escrita, mais pontualmente a gestação do tempo lento

da escrita. Quanto a esse tempo, afirma Pross ser um período que não apenas

permite a reflexão, mas também a retrospecção, abrindo, assim, as portas para a

escrita da história.

Há evidente avanço na relação do homem consigo mesmo, trazido pela mídia secundária, uma evidente expansão das fronteiras de seu imaginário e, portanto, de sua cultura. A mídia primária é presencial, exige a permanência de emissores e receptores em um mesmo espaço físico e num mesmo tempo, portanto, a mídia que representa o tempo presente e suas tensões e surpresas, de sua sensorialidade múltipla e de sua sensualidade potencial. (PROSS, 1972)

Fato notório no contexto ocidental presente no período do Império Romano, a

alfabetização dá início à constituição do tempo da escrita, à necessidade sobre a

reflexão, bem como à retrospecção, sintetizando assuntos políticos, econômicos e

culturais, um privilégio conferido normalmente à classe alta, embora tenham sido

encontrados sinais reveladores de que outras camadas da população tivessem

acesso ao aprendizado da escrita. A influência grega era tão determinante na cultura

romana que não era considerado culto quem não tivesse estudado e aprendido as

línguas e as literaturas gregas, mesmo que não tivesse conhecimentos de retórica.

Um fenômeno relevante do ponto de vista da comunicação era a prática de

acompanhar o desenrolar dos processos na Justiça. Os intelectuais pensavam de

formas diferentes sobre a sociedade em que viviam, elaborando propostas para

melhorá-la e às formas e maneiras de governar, tecendo críticas sobre os assuntos

em debate, mas propondo alternativas políticas para intermediar os conflitos de

interesse. O posicionamento dos intelectuais em relação ao poder dava sentido às

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transformações que transcorriam no mundo, que também estava em transformação,

e muitas das escritas em Roma eram gravadas sobre suportes duráveis, tais como

muros e paredes. A durabilidade da escrita impressa transmitia a lentidão da escrita

e do tempo.

Pross (1972) ainda afirma que a escrita e seus precursores impunham ao

homem indagações sobre a morte e seu tempo irreversível, vencendo

simbolicamente seu maior e mais poderoso adversário, sendo certo que o grande

trunfo da escrita não é a velocidade, mas a lentidão que permite cifrar enigmas. O

tempo lento da escrita e da leitura permite alongar a percepção do tempo de vida.

Figura 1 – Afresco nas catacumbas do Vaticano, Roma

Nas entradas e saídas das cidades, locais onde se enterravam os mortos, as

tumbas serviam de suporte para as mais diferentes mensagens. Tão logo cruzava a

porta da cidade, o viajante passava entre duas fileiras de sepulturas, que

procuravam chamar-lhe a atenção. As inscrições nas tumbas e nos muros não se

dirigiam à família ou aos próximos, mas a todos. Os epitáfios romanos diziam: “Lê,

transeunte, qual foi o meu papel neste mundo [...]. E agora que me leste, boa

viagem. – Salve, tu também”.6 Assim, tal como os atuais grafites de rua, em

Pompeia, as paredes e os muros estavam cobertas de grafites e escrituras traçados

6 Disponível em: <http://clickeaprenda.uol.com.br/portal/mostrarConteudo.php?idPagina=30951>.

Acesso em: 31 jul. 2015.

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pelos transeuntes, que queriam se divertir ou chamar a atenção de outros passantes

das vias públicas da cidade para alguma questão.

Não obstante os períodos históricos até aqui abordados, é sabido que,

durante a maior parte da sua existência, os homens pré-históricos foram entendidos

como caçadores e coletores. No decurso de sua vida, aprenderam a domesticar

animais e a cultivar alimentos, mas o rendimento de suas plantações não era

grande, razão pela qual a caça continuou a ser vital para sua sobrevivência.

Possivelmente importantes para o surgimento dos primeiros vilarejos, por volta do 7°

milênio a.C., o cultivo de grãos e o aperfeiçoamento das técnicas de cultura indicam

ainda um avanço significativo nas formas de comunicação desenvolvidas pelo

homem desse período, que contribuíram não só com a possibilidade de romper com

o estigma de seleção natural do animal mais forte, mas também de posicionar o

homem como animal capaz de articular, por meio da comunicação, seu modo de

sobrevivência e subsistência.

Junto ao homo sapiens, surgem as fases dos homens escondidos, um ser afetivo, ansioso, angustiado, gozador, extático, violento, furioso, invadido pelo imaginário consciente da morte e luta para não acreditar nela, um ser que se alimenta de ilusões, um ser incerto e que produz a desordem, se transformando em homo demens. (MORIN, 1979)

Destarte, houve seguramente uma mudança significativa nas relações sociais

e nas comunicações. Se as tribos de caçadores e coletores reuniam um número de

aproximadamente 12 a 20 pessoas, os primeiros vilarejos já contavam com algumas

centenas, como foi constatado na maioria dos sítios arqueológicos encontrados nas

regiões do Irã, da Arábia, Síria, Armênia e do Norte da África. Nesse período

histórico, entre 6.000 e 4.000 a.C., aproximadamente, mais pessoas juntas

significava mais trocas de experiências e mais informações a transmitir e a

armazenar.

Todo esse acervo de informações precisava ser armazenado para não se

perder no tempo e no espaço. O crescimento dos grupamentos humanos gerou a

demanda da transmissão do conhecimento acumulado de forma sistematizada e

para um número maior de pessoas do que aquele que se reunia em volta de uma

fogueira para ouvir um narrador. Para a humanidade, esse processo permitiu

armazenar as informações coletivas para que pudessem ser acessadas por

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diferentes pessoas. Não existem evidências de que a escrita tenha sido criada para

enviar mensagens, mas tudo leva a crer que a intenção de registrar está associada à

necessidade de lembrar, mantendo a trajetória humana sempre viva, e à ambição de

tornar a experiência um ponto de partida para o próximo passo, viabilizando, assim,

o aprimoramento das descobertas ou abrindo caminho para que outras ocorressem.

De qualquer modo, a necessidade da humanidade de registrar sua trajetória

se une também à história da escrita e da conservação da imagem como forma de

comunicação da sociedade. Até o século XVIII, boa parte da doutrina ocidental

baseava-se no dogma de que a origem do alfabeto era divina. Toda a mitologia

sobre o princípio da escrita tem uma mesma característica: a crença de que surgiu

um dia já pronta, concluída, magicamente estruturada. Nenhum desses mitos aborda

a noção da evolução de um sistema de comunicação mais simples, como a fala,

para outro mais complexo, como a escrita. Platão falava de um mito egípcio, o deus

Thoth (deus da sabedoria), inventor da escrita para o homem, que foi censurado

pelo rei Thamus, já que este previra que o homem passaria a contar apenas com o

que estava escrito, o que prejudicaria o desenvolvimento da capacidade de

memorização. Os antigos hindus, antes da introdução da escrita, sabiam os Vedas7

de cor, sendo que era um volume muito maior do que a Bíblia cristã, e é certo que os

transmitiam oralmente, de geração para geração.

Possivelmente, conforme previa o rei Thamus, a escrita diminuiu o poder

original da memória, mas trouxe muitas compensações, permitindo ao homem

contemporâneo, inserido em uma civilização extremamente complexa, proteger-se

contra a sobrecarga dessa mesma memória. Dessa forma, incontáveis e

indetermináveis questões que distrairiam a mente e dissipariam a memória estão

guardadas na escrita – e a ela a humanidade deve as condições que atingiu até a

atualidade.

Contribuição análoga se dá hoje com a transferência de informações para a

memória dos computadores ou para qualquer outra base tecnológica, como as

denominadas “nuvens”.

7 Denominam-se Vedas, ou Vêdas, os quatro textos escritos em sânscrito por volta de 1500 a.C.,

que formam a base do extenso sistema de escrituras sagradas do hinduísmo, que representam a mais antiga literatura de qualquer língua indo-europeia. A palavra veda, que significa conhecer ou conhecimento, representa esse conjunto de textos, considerado por muitos historiadores como as escritas sobreviventes mais antigas de que se tem conhecimento científico comprovado.

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Tomando como ponto de partida todas as considerações históricas até aqui

traçadas e com base em uma percepção evolutiva dos eventos contidos ao longo do

tempo, verificamos que o muro também acabou se transformando em um ambiente

midiático que, perpassando o espírito do tempo, torna perenes as crenças de cada

época e lugar. Os muros fazem do registro das imagens neles contidas os elos de

conectividade entre o homem e seus símbolos, isto é, entre o pensamento humano e

as teorias simbólicas, de acordo com seus contextos históricos, tornando-se um

signo notoriamente importante. Nesse sentido, a mesma relação faz Harry Pross

(apud BAITELLO, 2005, p. 4) ao afirmar que “os símbolos vivem mais que os

homens”. No Brasil, o pensamento científico atual também aponta a importância do

suporte para a difusão dos símbolos como elemento de comunicação humana. De

acordo com Maurício Ribeiro da Silva (2007):

A longa vida dos símbolos somente é possível graças aos seus suportes, as imagens (não importa em que tipo de linguagem, se visual, se auditiva, se olfativa, tátil ou performativa). No entanto, não é o suporte que se esvazia, senão os símbolos que acabam se perdendo quando se inflacionam e esvaziam as imagens. (SILVA, 2007, p. 75).

Desse modo, e com base em Harry Pross, podemos considerar o muro como

uma superfície que atravessou a linha do tempo, justamente por ser um suporte

onde, ao longo do tempo, registraram-se, e registram-se, escritas simbólicas e

intervenções estéticas, função que o suporte arquitetônico, direta ou indiretamente,

carregará até o momento em que deixar de existir.

Essas variações e intervenções estéticas podem ter diversos significados

conforme o aspecto que se adote para o estudo de cada caso. Para muitos

estudiosos, os muros representam de forma simbólica a força, a privacidade e a

contenção. O muro encerra e protege o interior de um determinado lugar ou espaço.

Um exemplo dessa ótica são o muro da Cisjordânia e a grande muralha da China,

que evidentemente representam e comunicam a divisão, o isolamento e a separação

de seus respectivos povos.

Encontramos ainda uma significação de muro derivada de suas diferentes

qualidades, tomadas alternativamente como fundamentos para a definição dos seus

sentidos. Um exemplo dessa concepção são os símbolos, desenhos e escritos,

deixados pelos egípcios. Assim, os hieróglifos são signos determinantes que

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expressam a ideia de elevação a um nível de compreensão comum. Percebe-se

claramente que se tratava de valores dominantes representados pelas ilustrações

como composição estética.

Nas cidades atuais, existe um diversificado leque de ilustrações que

compõem a estética dos muros urbanos, que vão além daqueles próprios de sua

construção e idealização arquitetural: são os adornos implementados de maneira

proposital, legal, voluntária ou involuntária que acabam por compor a estética mural.

São exemplos dessas aposições os números e nomes de rua, as formas, os

desenhos artísticos e seus textos, bem como os grafites e as pichações simples e/ou

com xingamentos, protestos, palavras de ordem, tipologias, desenhos obscenos,

texturas e cores.

Tais manifestações nos muros encontram seu princípio no decorrer da história

humana e são de longa data conhecidas. Esses modelos históricos transpõem o

tempo e atravessam as fronteiras culturais e, embora a justaposição de estilos possa

parecer abrupta em alguns momentos, a diversificada gama de exemplos é

deliberada.

Antigos povos e civilizações desenvolveram, conforme suas necessidades,

técnicas de construção de muros cada vez maiores, acompanhando o

desenvolvimento dos armamentos bélicos. Os muros, cada vez mais símbolos de

poder e riqueza de um povo, cresceram até assumirem a forma de muralhas. Os

materiais e técnicas desenvolvidas condiziam com o espaço e o tempo em que sua

construção era realizada. Os recursos disponíveis, muitas vezes escassos,

incentivaram o desenvolvimento das mais diversas tecnologias. Todo esse quadro

acaba por revelar uma arquitetura totalmente integrada com o local, tornando-se o

muro, muitas vezes, um protetor de um espaço sagrado e, ao mesmo tempo,

revelador de um espaço profano.

A representação do espaço sagrado encontra fundamento nos edifícios como

casas de moradia e que, de alguma forma, são protegidas por muros, sejam

paredes, sejam edificações circulares que rodeiam o edifício principal. Tais

construções acabam por representar para o indivíduo, de forma mística e simbólica,

a proteção maternal, remetendo sempre à figura feminina que tanto precisa de

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proteção, por ser frágil, mas também possuidora de força maternal para proteger o

que lhe pertence (ELIADE, 2010), tornando o espaço sagrado. Assim:

[...] a revelação do espaço sagrado tem um valor existencial para o homem que se torna religioso; porque nada pode começar, nada se pode fazer sem uma orientação prévia e toda a orientação implica a aquisição de um ponto fixo. É por essa razão que o homem religioso sempre se esforça por estabelecer-se no “Centro do Mundo”. Para viver no mundo é preciso fundá-lo e nenhum mundo pode nascer no “caos” da homogeneidade e da relatividade do espaço profano. A descoberta ou a projeção de um ponto fixo equivale à criação do mundo e não tardaremos a citar exemplos que mostrarão de maneira absolutamente clara, o valor cosmogônico da orientação ritual e da construção do espaço sagrado. (ELIADE, 2010, p. 26)

Para se proteger da obscuridade do mundo, o homem não só cria as

superfícies chamadas muros, mas também constrói muralhas, tradicionalmente

consideradas, de forma mais abrangente, como as cintas protetoras, que encerram

um muro e evitam que nele penetrem influências nefastas, profanas e de origem

inferior. As muralhas têm a função de limitar o domínio, mas a vantagem de

assegurar sua defesa.

Grande parte desses muros ainda assume uma função mais primitiva: a

distinção entre o espaço interno privado e o espaço externo, que pode ser coletivo.

Atualmente, os muros assumiram as mais diversas posições, seja no âmbito físico,

seja virtual, já que as barreiras murais também são amplamente inventadas e

discutidas nos espaços das novas tecnologias. Os materiais e as técnicas

conhecidas são inúmeros e estão em constante renovação. Dentro desse espaço

interno, o que se quer proteger é uma atitude de grande simbolismo, que, em certos

momentos, acabou chegando a um padrão extremo.

Podemos citar o Muro de Berlim como fruto desses estertores físicos, que foi

um símbolo vivo da divisão da Alemanha em dois países, a República Federal

Alemã e a República Democrática Alemã. Sua queda marcou o declínio do

comunismo e seus restos são considerados até hoje testemunhos de uma época de

segregação, intolerância e violência. Alguns historiadores lutam para preservá-lo

como importante registro histórico de indignação e luta protestante de uma

civilização.

Nesse mesmo sentido, não podemos deixar de citar o famoso Muro das

Lamentações. Assim, chegou-se à significação mais fundamental do muro:

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separação-fronteira, propriedade entre nações, tribos, indivíduos; separação entre

famílias e separação entre Deus e a criatura; entre o soberano e o povo; entre o

sagrado e o profano; separação entre os outros e eu. O muro é a comunicação

cortada, com a sua dupla incidência psicológica: segurança, sufocação, prisão,

proteção e expressão. O muro se aproxima, nesse momento, do simbolismo e do

elemento chamado superfície, que representa um suporte vertical que atravessa a

linha do tempo, expressando-se enquanto um espaço de representação. Nesse

sentido, Eliade (2010, p. 26-27) afirma que:

Em contrapartida, para a experiência profana, o espaço é homogêneo e neutro, nenhuma outra diferença qualitativamente às diversas partes de sua massa. O espaço geométrico pode ser cortado e delimitado por uma muralha, ou seja, em que direção for, mas sem nenhuma diferenciação qualitativa e, portanto, sem nenhuma orientação de sua própria estrutura. Basta que nos lembremos da definição do espaço dada por um clássico da geometria. Evidentemente, é preciso não confundir o conceito do espaço geométrico homogêneo e neutro com experiência do espaço “profano”, que se opõe à experiência do espaço sagrado, e que é a única que interessa ao nosso objetivo. O conceito do espaço homogêneo e a história desse conceito constituem um problema completamente diferente, que não abordaremos aqui. O que interessa à nossa investigação é a experiência do espaço tal como é vivida pelo homem não religioso, quer dizer, por um homem que recusa a sacralidade do mundo, que assume unicamente uma existência profana, purificada de toda pressuposição religiosa.

Dessa forma, podemos afirmar que o muro é um ambiente midiático no qual o

espírito do tempo e as crenças de cada época e de cada lugar são registrados, não

sofrendo grandes alterações, mantendo seu formato nos tempos atuais. Criam-se,

assim, os ícones cosmopolitas, que mais adiante servirão a interesses capitalistas

para fomentar o consumo, juntando-o à necessidade das novas manifestações

urbanas de pichadores e grafiteiros que querem aparecer nas redes. O reflexo disso

na sociedade é a total alienação de seus espectadores e a proliferação de uma

cultura de comunicação embasada em questões simbólicas, desprovidas de

qualquer fundamentação e indagação lógicas, que só visam a ter visibilidade por

meio das imagens, para manter status e ganhar dinheiro.

E quanto às imagens como formas representativas nas paredes e muros, de

que forma se estabelecem suas conectividades em faces e teorias simbólicas?

Neste momento, é importante acrescentarmos as discussões e as conceituações de

imagens como forma de representações tecidas por Flusser (2009, p. 7):

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Imagens são superfícies que pretendem representar algo. Na maioria dos casos, algo que se encontra lá fora no espaço e no tempo. As imagens são, portanto, resultado do esforço de se abstrair duas das quatro dimensões de espaço-tempo, para que se conservem apenas as dimensões do plano. Devem sua origem à capacidade de abstração específica que podemos chamar de imaginação. No entanto, a imaginação tem dois aspectos: de um lado, permite abstrair as duas dimensões abstraídas na imagem. Em outros termos: imaginação é a capacidade de codificar fenômenos de quatro dimensões em símbolos planos e decodificar as mensagens assim codificadas. Imaginação é a capacidade de fazer e decifrar imagens.

Ao introduzir esse tema, o autor afirma que imagens são criadas para abstrair

duas das quatro dimensões de espaço-tempo, conservando apenas as dimensões

do plano. Dessa forma, cria-se o que podemos chamar de “imaginação”. E

imaginação é a capacidade de fazer e decifrar imagens. Portanto, há 25 mil anos,

teoricamente e antropologicamente falando, os homens da Idade da Pedra, época

em que não havia a escrita como hoje conhecemos, acabaram criando, através das

imagens, meios para se imaginar a capacidade de fazer e criar imagens.

No mesmo sentido, as imagens são compreendidas como códigos que

traduzem eventos em situações, processos em cenas. Não que as imagens

eternizem eventos: elas substituem eventos por cenas, tal poder mágico, inerente à

estruturação plana da imagem, domina a dialética interna dessa imagem, própria a

toda mediação, e nela se manifesta de forma incomparável. Imagens são mediações

entre o homem e o mundo. O homem “existe”, isto é, o mundo não lhe é acessível

imediatamente. Imagens têm o propósito de representar o mundo. Mas, ao fazê-lo,

interpõem-se entre o mundo e o homem. Seu propósito é serem mapas do mundo,

mas passam a ser biombos. O homem, em vez de se servir das imagens em função

do mundo, passa a viver em função de imagens.

2.2 As imagens tradicionais e os valores simbólicos

Na Pré-História, as imagens tradicionais já tinham valores simbólicos. Em

algum momento daquele período histórico, os homens do período Neolítico ou da

Idade da Pedra desceram literalmente das árvores e começaram a andar com as

próprias pernas. Passaram, então, a criar técnicas para construir armas e

instrumentos com pedras polidas mediante o atrito (daí o nome: Idade da Pedra),

tornando-se caçadores. Como consequência, veio a necessidade de criar seu

habitat e conquistar seu território na comunidade que também se formava. Logo,

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começou a viver em cavernas, mas à medida que suas técnicas se apuravam,

abandonou-as e construiu suas moradias.

Simultaneamente, outro processo se desenvolvia: o da criação da linguagem

falada e da tomada de consciência do eu: “existo e faço parte deste mundo”. Nessa

formação da consciência, imaginaram que as imagens seriam uma forma de decifrar

o que queriam dizer e comunicar entre si e entre suas comunidades. A partir de

então, criaram instrumentos, ferramentas e insumos que lhes deram impulsos

determinantes para chegarem ao apogeu sobre a verdadeira função das imagens:

representar algo que se encontrava fora do espaço e do tempo, sendo classificadas

atualmente como imagens meramente representativas e sem qualquer conteúdo,

surgindo assim o nascimento da “consciência histórica” mediada pelos muros e

paredes.

Dessa forma, as primeiras imagens criadas nas paredes e muros no segundo

milênio antes de Cristo. tinham esta grande capacidade de abstrair a imaginação

mágica, que acabou destruída pelo homem, durante sua evolução, por meio da

escrita. A escrita funda-se sobre a nova capacidade de codificar planos em retas e

abstrair todas as dimensões, mostrando que o pensamento conceitual é mais

abstrato que o pensamento imaginativo, pois preserva apenas uma das dimensões

do espaço-tempo (FLUSSER, 2009, p. 9).

As imagens primitivas rupestres não são obras de arte ou objetos artísticos,

não foram criadas para adornar o corpo ou para decorar cavernas, paredes e muros,

mas, sim, uma tentativa de abstrair a imaginação no espaço-tempo e de controlar as

forças da natureza.

Figura 2 – Pinturas rupestres de Lascaux, França, descobertas em 1940.

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Desse modo, os símbolos referentes às mãos, sinais, rabiscos, animais e

pessoas tinham para o homem primitivo significação sobrenatural, como um condão

a lhes conferir poderes mágicos ao serem expressos em superfícies (paredes)

normalmente rochosas. Tal forma de expressão primitiva é chamada de mitologia e

simbolismo.

Na criação de imagens em paredes de cavernas, realizadas com carvão e

outros pigmentos para delinear as irregularidades nas rochas que se assemelhavam

às formas encontradas na natureza, a noção de volume era dada pelas saliências,

enquanto as tonalidades terrosas expressavam contornos e perspectivas.

Os desenhos eram distribuídos aleatoriamente, talvez atendendo à

necessidade de novas imagens antes de cada caçada. Essas imagens são

representadas em perfil bidimensional e parecem flutuar no espaço, sem qualquer

representação de suporte, chão ou ambiente, e tinham uma significância única para

os homens primitivos, podendo ser classificadas como temas primários ou naturais.

Com o surgimento da civilização egípcia, aperfeiçoaram-se as técnicas de

comunicação por meio da escrita junto com as imagens.

Ao inventar a escrita, o homem se afastou ainda mais do mundo concreto quando, efetivamente, pretendia dele se aproximar. A escrita surge de um passo para aquém das imagens e não de um passo em direção ao mundo. Os textos não significam o mundo diretamente, mas através de imagens rasgadas. Os conceitos não significam fenômenos, significam ideias. Decifrar textos para descobrir as imagens significadas pelos conceitos. A função dos textos é explicar imagens, a dos conceitos é analisar cenas. Em outros termos; a escrita é metacódigo da imagem. (FLUSSER, 2009, p. 10)

Figura 3 – Hieróglifos (escritas sagradas elaboradas pelo Deus Thot).

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A escala monumental das imagens e da escrita pertencia aos templos e às

tumbas. A vida cotidiana dos antigos egípcios era representada através das

gravuras e dos relevos das paredes e pilares dos templos. As imagens e os

desenhos eram vistos como parte essencial da própria vida. Eram regidas por regras

de proporções da natureza, vinculadas a desenhos sagrados. Eles estudavam a

estrutura sintática e buscavam retratar a perfeição de suas faces, como se pode

perceber nos narizes de perfil, para torná-los mais visíveis e nos olhos frontais, que

significavam ser verdadeiro. Tinham a necessidade de se comunicar e contar suas

histórias por meio das imagens codificadas, procurando colocar tudo em sua ordem

natural.

O Egito deixou um legado duradouro, e não é de surpreender que os

conceitos de comunicação por imagem e escrita tenham se mantido sem mudanças

por três mil anos. Muito do que se conhece sobre o Egito provém das tumbas que

restaram e do ritual de mumificação, que intrigou cientistas de boa parte do mundo,

até ser estudado cientificamente, pois era esta a mais pura expressão da crença

daquele povo em vida após a morte. As pinturas e os hieróglifos presentes nas

paredes dos templos representavam a comunicação de uma maneira mais perpétua

e formal.

Assim, durante milhares de anos, acompanhando a ascensão e a queda de

cada civilização, as imagens encarnaram uma forma de comunicação e não mais

uma abstração da criação da imaginação. O espaço-tempo não estava mais em

evidência. As imagens tinham outros objetivos, expressavam ambições, sonhos e

valores da cultura. Mesmo sabendo que muitos artistas eram anônimos, grande

parte do que se descobriu da sociedade antiga e do modo como viviam e

enxergavam o mundo vem das imagens e da escrita que nos legaram.

A necessidade de se comunicar e criar imagens simbólicas nos muros e

paredes aparece também no Império Asteca, entre outros. A construção de

fundações arquitetônicas e a criação de espaços sagrados foram destaques nessa

civilização. Seus desenhos e arquitetura eram planejados para reverenciar os

deuses e a força do império, pois, há aproximadamente 1,5 mil anos, a capital dos

Astecas, Tenochtitlan, teve de ser construída após ser devastada por uma

inundação. Tenochtitlan foi reconstruída com sua principal avenida indo de leste a

oeste, para marcar a passagem do Sol pelo céu.

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O homem toma conhecimento do sagrado porque este se manifesta, se mostra como algo absolutamente diferente do profano. A fim de indicarmos o ato da manifestação do sagrado, propusemos o termo hierofania. Este termo é cômodo, pois não implica nenhuma precisão suplementar: exprime apenas o que está implicado no seu conteúdo etimológico, a saber, que algo de sagrado se nos revela. (ELIADE, 2010, p. 17)

Os astecas acreditavam que ali era o centro da Terra, a fundação do espaço

sagrado. Eles tinham a mais básica tecnologia, usavam desenhos simbólicos

chamados glifos, pois não possuíam alfabeto, e estes símbolos eram usados para

representar os 20 dias do calendário sagrado. No entanto, a beleza da sua criação

era tão enfeitiçante que os levou à própria destruição. Em 1519, a beleza e a magia

dos astecas acabaram atraindo grandes inimigos: mais de 600 espanhóis chegaram

à costa do México com o objetivo de destruir o Império Asteca, que se rendeu após

três anos – e a cidade de Tenochitlan transformou-se em ruínas. O sucesso e a

confiança daquele povo dependiam da ajuda dos deuses e, por pura inocência, eles

acreditaram que, por estarem em uma fundação sagrada, estariam protegidos do

mal, que o profano jamais poderia atingi-los.

Em outro ponto da História, séculos antes, os gregos apresentavam novas

percepções sobre as imagens. Para eles, fazia parte da natureza das coisas

acreditar que as imagens belas faziam parte do divino. Tinham a ideia de que o ouro

era a representação do divino e algo considerado belo não era captado pela

imagens por si só, mas, sim, pela compreensão por trás das imagens. Com o passar

do tempo, certos conceitos relacionados às imagens e ao divino também criaram

consequências catastróficas para o povo grego. A força de suas belas imagens na

arquitetura e na escultura acabou transformando-as em alvo do Império Romano,

que as saqueou por muitos anos: “Não somos nós que devoramos as imagens, são

elas que nos devoram” (BAITELLO Jr., 2014, p. 7).

Norval Baitello Jr. (2014) afirma que as imagens contribuíram para a era

“iconológica”, criando, assim, três grandes catástrofes:

A primeira catástrofe, nasce com o surgimento do homem primitivo que desce das árvores e ganha seus territórios, adquirindo conhecimentos, porque o ato de andar, caminhar, buscar e saber é o conhecimento da história. A segunda catástrofe é o nascimento da cultura, fixando-se em lugares, criando o início dos paradigmas sociais. E a terceira e última catástrofe é a entrada do mundo da informação.

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A ideia de que o homem poderia ter imagens no lugar de Deus ou Cristo fez

do Império Romano um império profano e sem espiritualidade, criando, assim, novos

conceitos sobre a abstração das imagens. No auge do esplendor, o Império Romano

se estendia da Inglaterra ao Egito e da Espanha ao sul da Rússia. Pela exposição

dos costumes de outros povos, os romanos absorveram elementos de culturas

antigas por meio de outras tradições, como a grega, surgindo, assim, a cultura

greco-romana.

A escrita e as imagens dos romanos vieram a ser a pedra fundamental de

todos os períodos posteriores. Mais tarde, os romanos transformaram os significados

das imagens gregas, criando caminhos para erros, porque acreditavam que elas

eram a representação do ideal de vida. Os romanos expressavam imagens menos

idealizadas e intelectuais nos muros e paredes do que os gregos, eram mais

seculares e funcionais.

Figura 4 – Afresco representando natureza-morta, Pompeia, Itália.

Enquanto os gregos brilhavam na inovação do belo e do divino, o forte dos

romanos era a administração, a escavação e, principalmente, os discursos

científicos, deixando de lado a espiritualidade, revelada nos muros e paredes dos

templos e residências, pinturas de naturezas-mortas e paisagens realistas em todas

as superfícies.

Como as casas não tinham janelas, mas se abriam para um pátio central, os

romanos criavam um ambiente imaginário, sem nenhuma tecnologia, pintando

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janelas de faz de conta que mostravam cenas requintadas. Este estilo de pinturas

em paredes abrangia desde simples imitações de mármores colorido até cenas de

complexos panoramas urbanos, como se fossem vistos através das janelas

imaginárias emolduradas por colunas fantasiosas.

Figura 5 – Mosaico romano da Menorá, c. 300-500 a.C., Tunísia, Museu Brooklin, NY.

Os artistas dominavam técnicas de perspectiva e de efeitos de luz e sombra,

desconhecidos até então no mundo das artes. As paredes resplandeciam com

vívidos painéis em vermelho, ocre e verde. Mosaicos eram montados com vidros,

pedras e conchas, revestindo paredes, tetos e chão. Grandes temas eram

relacionados a cenas profanas e obscenas.

Já no período medieval, a chave das imagens é a ideia do Novo Testamento.

Ainda influenciadas pela arte romana, elas acabam se destacando com mosaicos

nas paredes. Esses mosaicos, por sua vez, eram utilizados na proporção do novo

ofício do cristianismo, portanto, eram realizados em grandes dimensões nas paredes

e muros, tendo como tema central a pregação do iconoclasmo,8 representando a

imagem de Jesus Cristo como o filho de Deus, Senhor Todo-Poderoso.

8 Iconoclastia ou iconoclasmo são expressões de origem grega constituídas da junção dos termos

“ícone”, enquanto expressão de imagem, e, “quebrar”, que etimologicamente significam “quebrador de imagem”. A iconoclastia foi um movimento político-religioso contra a veneração de ícones e imagens religiosas no Império Bizantino, que começou no início do século VIII e perdurou até o século IX. Os iconoclastas acreditavam que as imagens sacras seriam ídolos, e a veneração e o culto de ícones, por consequência, constituía uma idolatria. Em oposição à iconoclastia, surgiu a iconodulia ou iconofilia (também do grego, cujo significado pode ser “venerador de imagem”), que defende o uso de imagens religiosas como forma de expressão e reafirmação da fé cristã.

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Assim, as imagens assumiam caráteres infinitos e a ideia do Novo

Testamento fazia com que se transformassem na razão verdadeira do sagrado.

Dessa forma, vão se tornando razão e verdade. De acordo com Eliade (2010):

Poder-se-ia dizer que a história das religiões, desde as mais primitivas às mais elaboradas, é constituída por um número considerável de hierofania, (ato de manifestação do sagrado), pelas manifestações das realidades sagradas. A partir da mais elementar hierofania, por exemplo, as manifestações do sagrado num objeto qualquer, uma pedra ou uma árvore e até a hierofania suprema, que é, para um cristão, a encarnação de Deus em Jesus Cristo, não existe solução de continuidade. Encontramo-nos diante do mesmo ato misterioso: a manifestação de algo “de ordem diferente” de uma realidade que não pertence ao nosso mundo em objetos que fazem parte integrante do nosso mundo “natural”, “profano”. (ELIADE, 2010, p. 14).

Com o passar do tempo, a era profana ganha corpo. Como consequência da

industrialização e da urbanização das grandes cidades, surgem massas

populacionais de operários submetidos a grandes e desumanas jornadas de

trabalho. A população, marginalizada e insatisfeita com sua vida, cresce de forma

absurda nos grandes centros industriais. O ritmo do progresso científico e os males

do capitalismo aumentam e criam um muro urbano como um novo cenário propício

às manifestações populares, políticas, artísticas e culturais. Quando chega a era do

Iluminismo, certas manifestações acabam perdendo força. Com isso, as pessoas

não conseguem alcançar os objetivos elencados pelos iluministas.

A ideologia iluminista9 tinha o objetivo de modelar a sociedade pelos

conhecimentos herdados da tradição medieval, apurando-os, com o objetivo de

torná-los úteis ao homem moderno. Mas acabou perdendo forças porque a ênfase

na razão sobressaiu mais do que a liberdade e a igualdade, como proposto por eles.

Como consequência, surgiu um movimento contrailuminista, que contribuiu para que

o Iluminismo decaísse.

9 Iluminismo, também conhecido como Século das luzes, foi um movimento cultural da elite

intelectual europeia, do século XVIII, que procurou mobilizar o poder da razão, a fim de reformar a sociedade e o conhecimento herdado da tradição medieval. Abarcou inúmeras tendências e, entre elas, buscava um conhecimento apurado da natureza com o objetivo de torná-la útil ao homem moderno e progressista. Promoveu o intercâmbio intelectual e foi contra a intolerância de Igreja e do Estado. Foram vários os príncipes reinantes que muitas vezes apoiaram e financiaram figuras do iluminismo e até mesmo tentaram aplicar suas ideias ao governo. Originário do período compreendido entre os anos de 1650 e 1700, o iluminismo foi despertado pelos filósofos Baruch Spinoza (1632-1704), John Locke (1632-1704), Pierre Bayle(1647-1706) e pelo matemático Isaac Newton (1643-1727). Floresceu até cerca de 1800, após o qual a ênfase na razão deu lugar à ênfase ao romantismo, à emoção e a um movimento contra iluminista, que ganhou força. (AZEVEDO, 1990, p. 216, 217)

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Apesar disso, as imagens nos muros ainda estavam presentes, mas sem

grandes destaques. Quando chega o século XX, as imagens nos muros reaparecem

com grande importância, como forma de visibilidade midiática. No México, por

exemplo, com os muralistas Orozco, Siqueiros e Rivera; no Brasil, com os

modernistas como Cândido Portinari, que criou imagens de grande porte nos

ambientes interiores (paredes).

Algumas décadas depois, entram em cena as imagens urbanas nos muros

das cidades como Nova Iorque e São Paulo. Manifestações não autorizadas

proliferam com a pichação (Apêndices A, B, C, D) e o grafite (Apêndices E, F, G, H),

época em que entramos, por conseguinte, na era da iconofagia: “a devoração das

imagens ou pelas imagens: corpos devorando imagens e imagens que devoram

corpos”,10 acompanhada ainda pelos conceitos atuais de informação, idolatria à

velocidade e ao futurismo. O new-nomadismo e a eletricidade começam a criar

arquétipos no mundo das comunicações mediáticas e dos adoradores de ícones.

Norval Baitello Jr. (2014) mostra-nos com clareza o novo cenário que ele mesmo

denominou “devoradores de imagens”:

Devorar imagens ou ser devorado por elas não são possibilidades

alternativas, mas simultâneas. É um estado da questão, uma descrição de

nossa realidade cotidiana, uma condição inexorável da qual os humanos da

era digital não podem escapar. O momento histórico que nos tocou é o da

proliferação indiscriminada, às vezes cruel e selvagem, de imagens que não

são somente objetivos do nosso olhar (e como tais permanecem no exterior,

fora de nós, a certa distância de seguridade, diríamos), senão quanto

melhor atuam, orientam, ordenam, se convertem em tiranas de nossos

sentimentos e percepções. De tal sorte, grande parte de nossas reações e

sentimentos sobre pessoas e situações do mundo não derivam de nossa

experiência direta, senão de nossas imagens mentais, já pré-fabricadas por

nosso sistema social (incluem-se aqui todos os estereótipos que se referem

a pessoas que conhecemos, e os prejuízos contra as minorias, os

diferentes, os estrangeiros que não conhecemos). As imagens se

convertem em nosso arquivo histórico, em nossas memórias coletivas, e

cada vez mais imagens aspiram colonizar nosso futuro, nosso imaginário,

nossos desejos. Recordamos, pensamos, sonhamos através de imagens

que invadem nossa existência, afastando-a da vida real, projetando-nos em

uma dimensão virtual em que os sentidos e as linguagens do nosso corpo

são substituídos pelas imagens que as máquinas criam para nós.

(BAITELLO Jr., 2014, p. 7-8).

10

Devorando Norval Baitello Jr. Entrevista, jun. 2007. Disponível em: <http://www.conjecturas.com.br/edicao05/cerebrar/norval.htm>. Acesso em: 27 abr. 2015.

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3 O MURO NO ASPECTO CONTEMPORÂNEO

3.1 Os muros da cidade e os processos sociais e culturais de uma época

O muro contemporâneo evoluiu e vibra no espírito do tempo. O muro midiático

busca alta visibilidade querendo ter destaque nos espaços de circulação com suas

imagens, formas e escritas, tornando-se um traço marcante da nossa época. As

formas aparecerem mais do que o escrito, tendo como característica um nível

cultural empobrecido pela nossa sociedade. O muro, como uma superfície, sofre,

desde o passado, intervenções que acabam tendo profunda relação com as crenças

e imagens místicas, desde a época das cavernas, não mudando suas características

até hoje, seguindo a linha do tempo.

O século XX chega com o surgimento do ser humano contemporâneo, que se

distancia das imagens relacionadas à sua essência, significância e percepções

fenomenológicas, enfim, à sua existência, mas que nunca se esquece do fantasma

da morte. Nesse contexto, inicia uma busca de elementos contraturantes de sua

cultura, que o torna bipolar. Isso porque o homem do século XX vive pensando na

morte, circulando entre dois polos: o positivo e o negativo. A morte como parte da

natureza, sendo uma passagem, tem característica positiva; e a ideia da morte

séptica, negativa. Essas características acabam influenciando as imagens nos

muros e paredes do novo século. A influência europeia contemporânea atinge os

novos tipos de murais.

Nesse momento, mudam os locais e os espaços, imagens que no passado

eram sagradas e simbólicas, passam a decorar fachadas de prédios públicos,

parlamentos, igrejas e universidades. Temos, assim, um momento de transição entre

o universo exterior, relacionado às imagens, e o interior, relacionado às percepções.

Desse modo, a impossibilidade de decisão sobre o estado de vida ou de

morte consiste na incapacidade de divisão entre o universo exterior (imagens) e o

interior, relacionado à percepção fenomenológica destas mesmas imagens,

passíveis de interpretação imaginária, tornando-se, então, o próprio corpo imagem,

de maneira a configurar a diferenciação inerente à comparação entre a imagem

percebida e a imagem emitida.

Como expressão desse paradigma, podemos citar o artista José Guadalupe

Posada (1852-1913), que se destacou no México com a apresentação das

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denominadas “clavanas”, caricaturas em forma de esqueleto pintadas no próprio

corpo para representar imagens que fundamentam as percepções corpóreas

internas e externas, hoje associadas ao Dia de Finados.

No mesmo contexto, relacionados ao universo exterior e interior, os muros

reaparecem no século XX com novas imagens e manifestações em razão do

ressurgimento do muralismo, instigado pelo movimento modernista. A pintura mural

ressurge, com todo vigor, mas mais expressionista e abstrata, com os

grupos cubistas e fauvistas, em Paris, adotada por artistas como

Picasso, Matisse, Léger, Miró e Chagall.

No México, a tradição milenar da pintura mural, também praticada por

algumas culturas pré-colombianas, ressurgiu nas primeiras décadas do século XX,

coincidindo com o movimento revolucionário. Os artistas da época viram no

muralismo o melhor caminho para amalgamar suas ideias com uma arte nacional

popular e engajada. No Brasil, no mesmo período, o muralismo tomou corpo com

Cândido Portinari, artista reconhecido internacionalmente por aplicar o estilo tanto no

país como em outros países.

Em Portugal, existe uma variante de muralismo executada em azulejo, que

consiste em murais de azulejos que representam vários tipos de expressão, desde a

simples composição com azulejos coloridos até a forma clássica de desenhos

executados antes de o azulejo ser cozido.

Figura 6 – Diego Rivera pintando El levantamiento em sua oficina de trabalho. México, 1931.

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O termo muralismo (1920 a 1930) se refere ao renascimento da pintura em

larga escala sob influência do cenário político da época, momento em que um

grande número de murais são encomendado no México. A arte mural mexicana teve

como fonte basal e cultural de inspiração a rica arte desenvolvida pelo povo maia.

Na era maia, pinturas e outras representações de imagens em paredes e muros

eram muito comuns como forma de comunicação, expressão e registro histórico do

cotidiano e dos costumes daquele povo. Mesmo após a colonização espanhola, a

arte maia foi empregada para decorar igrejas barrocas espanholas, aparecendo

também como arte folclórica nas pousadas e hospedarias mexicanas.

Imbuídos de ideais e posições político-partidárias, há vários artistas

muralistas que se destacaram nesse período, entre eles, podemos citar José Orozco

(1883-1949), David Siqueiros (1866-1974) e, especialmente, Diego Rivera (1886-

1957), conhecidos como “Os três grandes”. Totalmente envolvidos nas mais

extensas pinturas murais desde a Renascença italiana, refletiam em suas obras os

temas do cotidiano dos oprimidos, reforçando a importância do México e da cultura

dos povos indígenas colonizados. Pregavam a ideia de que as imagens fechadas

entre quatro paredes, isto é, em galerias, retratavam a burguesia, mas nos murais

em grande escala ficavam acessíveis para o povo.

Até então, os muralistas acreditavam influenciar pessoas com suas pinturas e

imagens realistas e ricas de detalhes. Mas talvez não tenham percebido que a

abstração ou a ideia das imagens que deixaram não podiam ser interpretadas como

verdade única.

Com isso, percebemos a sombra das imagens, como se fossem entradas

para uma caverna. A imagem atual é a cópia imperfeita da realidade. O pensamento

é o que olha para a imagem (ideia do pensamento), o caminho da razão via palavra

e a razão se contrapondo à imagem.

As imagens nos muros se tornam mais diversificadas com o fenômeno da

globalização, assumindo consequentemente os ideais capitalistas da nova geração,

veiculados principalmente pelos novos meios de comunicação e novas mídias. A

nova era perde o vínculo com a imaginação e o mundo simbólico. Com a

globalização e o capitalismo em alta, a imagem se transforma em textos e os

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criadores das imagens modernas se tornam funcionários. Vilém Flusser (1985, p. 9)

aponta com muita maestria que:

A necessidade de estabelecer uma nova categoria para pensar o humano neste mundo, onde imperam as imagens técnicas, pois considera que o termo “homem”, devido a sua complexidade, não é capaz de retratar com precisão sua posição na contemporaneidade. Buscando entender em bases antropológicas históricas o tema flusseriano do funcionário, a filósofa austríaca Elisabeth Samsonow (2005) formulou os conceitos dos “sujeitos e objetos hipnógenos” tecendo um paralelo com fenômenos do totemismo, nos quais as decisões e o exercício da vontade são delegados aos totens. O tema da dissolução da vontade, tão importante nas sociedades e nas culturas primordiais, ganha extrema atualidade na sociedade mediática.

Assim, observam–se no contexto contemporâneo certas atitudes recorrentes,

como as imagens modernas que caracterizam o homem funcionário. Voltadas a

grandes cunhos políticos, as imagens nas superfícies atuais acabaram caindo em

mimese e empatia, tornando-se apenas signos. Temos, então, instalações e grafites

que invadiram o mundo, carregadas de textos que forçavam o espectador a refletir

sobre temas sociais, econômicos e culturais. Os materiais e os formatos são tão

variados como as imagens derivadas dos grafites.

Nesse momento, as imagens nos muros se tornam técnicas e representam

signos. A vida humana do século XX acaba se caracterizando por ser mais

complexa. Quanto mais elementos disponíveis, mais crises aparecem em razão

dessa complexidade, passando o homem a buscar status e a ganhar dinheiro para

se manter nas crises, o que, paradoxalmente, leva à perda da complexidade e do

imaginário, uma vez que a sobrevivência da complexidade é o cérebro do

imaginário. É o que faz fortalecer o homem e a capacidade de reinventar a vida!

Chegamos, então, no empobrecimento e na incapacidade do homem para

praticar o espaço (AUGÉ, 2012, p. 78), assim, as imagens acabam virando signos,

e, consequentemente, se transformam em imagens técnicas e mecânicas. O homem

funcionário se torna uma pessoa que brinca com aparelhos e age em função deles,

simulando um tipo de pensamento (FLUSSER, 1985, p. 9).

Com isso, as imagens urbanas dos grafites e suas derivações invadem as

paredes e os muros das grandes cidades do mundo, como São Paulo,

descomprometidas e sem vínculo com os espaços e lugares, constituindo a ideia de

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ser outro e passar ao outro. Tal cenário condiz com que se escreve Michel de

Certeau (apud AUGÉ, 2012, p. 78-79):

Praticar o espaço é repetir a experiência jubilosa da infância: é, no lugar, ser outro e passar ao outro. A experiência jubilosa e silenciosa da infância é a experiência da primeira viagem, do nascimento como experiência primordial da diferenciação, do reconhecimento de si como si mesmo e como outro, que reitera a do andar como primeira prática do espaço e do espelho como primeira identificação com a imagem de si. Todo relato volta à infância. Ao recorrer à expressão “relatos de espaço”, Certeau quer tanto falar dos relatos que atravessam e organizam lugares quanto do lugar que constitui a escrita do relato, a leitura é o espaço produzido pela prática do lugar que constitui um sistema de signos.

Portanto, as imagens condicionadas e as técnicas praticadas nos “não

lugares”, uma espécie de qualidade negativa do lugar, mencionadas por Certeau,

podem até ser simbólicas, mas com menos durabilidade e desprendimento de

significados. No mesmo sentido, afirma Vilém Flusser (2009, p. 13):

Imagens técnicas são, portanto, produtos indiretos de textos, que lhes conferem posições históricas e ontológicas diferentes das imagens tradicionais. Historicamente, as imagens tradicionais precedem os textos, por milhares de anos, e as imagens técnicas sucedem aos textos altamente evoluídos. Ontologicamente, a imagem tradicional é abstração de primeiro grau: abstrai duas dimensões do fenômeno concreto e a imagem técnica á abstração de terceiro grau: abstrai uma das dimensões das imagens tradicionais para resultar textos.

Atualmente, tais expoentes da arte urbana mural alcançam o sucesso popular

por meio da exposição de suas obras “nos não lugares”, conforme descrito por

Augé, adotando temas inegavelmente influenciados pelas mídias. Vejamos os

exemplos dos grafiteiros Eduardo Kobra, OSGEMEOS e Nina, que alcançaram

reconhecimento nacional e internacional ao expor suas obras grafites em espaços

compreendidos a priori como não lugares, dando-lhes um sentido inegavelmente

estético, porém sem provocar nos expectadores um vínculo cultural reflexivo, assim,

o não lugar se transforma em espaço de passagem, em itinerário. Segundo Certeau

(apud AUGÉ, 2012, p. 80), o ato de passagem dá uma condição individualizante aos

nomes dos lugares, configurando itinerários.

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Figura 7 – Eduardo Kobra, mural na fachada do Museo dell’Altro e Dell’Altrove, via Prenestina, Roma.

No contexto de itinerários, são comuns os murais que retratam o

politicamente correto, o comercialmente vendável, o historicamente culto, o

esteticamente perfeito, extravagante e cult. Ou seja, as imagens vinculadas aos

muros atuais são realizadas com uma intenção: satisfazer o outro, não o criador. O

criador se engana perante a satisfação do outro, quando conquista status e fama.

Baitello Jr. cita Belting ao tratar das imagens internas e externas, ou endógenas e

exógenas:

Imagens internas e externas, trata-se, como vimos acima, de uma categoria criada por Belting para, de uma vez por todas, definir uma imagem a partir do ambiente em que ela se manifesta. São duas realidades profundamente distintas quando falamos de nossas imagens interiores (dentre as quais, aquelas de nossos sonhos) e quando falamos dos anúncios publicitários na tevê ou dos inúmeros painéis, outdoors, cartazes, anúncios publicitários em revistas, jornais, muros, postes, paredes, nas ruas, nos prédios, projetadas ou pintadas no chão. Experimentos e estudos médicos já comprovaram que nossas primeiras imagens são interiores, endógenas, produzidas ainda na vida intrauterina. Não são da natureza visual, mas da natureza tátil. (Essa questão, o conceito mais amplo de imagem, como imagem sonora ou audioimagem, imagem tátil, imagem olfativa, imagem proprioceptiva e imagem gustativa, será objeto de um dos próximos saltos). Mas as imagens visuais exteriores se tornaram tão numerosas, tão gritantes, tão chamativas, tão atraentes, tão sedutoras, que nos esquecemos de nossas próprias fantasias e sonhos. Já as imagens exógenas, aquelas que estão soltas pelos ambientes do mundo, aprenderam a tirar partido desses ambientes, aproveitar suas características e explorá-las. E os ambientes dos automóveis, as grandes vias de acesso rápido, as artérias das cidades, as autoestradas, as avenidas de grande circulação são esses ambientes que se tornam lugares privilegiados para os grandes painéis e as imagens se colocarem estrategicamente como se estivessem armando uma emboscada para os carros que por ali passam. Criam-se verdadeiras vias de imagens pelas quais passam nossos olhos, enquanto o corpo sentado nos carros tem seus movimentos reduzidos ao mínimo, apenas para comandar a máquina. Passar por imagens é, de certo modo, a inversão de um desfile. Quem quer se mostrar, desfila, expõe-se de modo a atrair a atenção. Nas vias, as imagens é que ficam paradas nos olhando enquanto passamos. E o mais incrível é que elas sabem com detalhes quem somos, quantos somos, como somos, nós que passamos. (BELTING apud BAITELLO Jr., 2014, p. 111, 115)

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Chegaremos à conclusão de que a maioria das imagens nos muros e paredes

da cidade representa muito mais a preocupação com a forma e o tema do que com o

significado simbólico, pois simplesmente por sintetizam signos e indicam a certeza

de que as criações concluídas são imagens vistas no mundo. Mas, na verdade, o

que se vê não é o mundo, mas o gesto de ver, gestualidade típica da atualíssima

mídia pura, aquela que não disfarça sua verdadeira vocação, não se contamina de

notícia, de informação ou de entretenimento, não usa iscas para atrair olhares.

Embora seja financiada pela publicidade, não se propõe nem ao menos como

Narciso, a quem bastava ver a própria imagem e nela afundar. Esse é o sentido que

Baitello Jr. (2012, p. 112) apresenta ao tratar da mídia pura:

Passar pelo lugar mais emblemático de São Paulo, a Avenida Paulista, às seis da tarde, no inverno, quando já está escuro, como passar por tantas outras avenidas emblemáticas em uma outra grande cidade do Brasil ou do mundo, é uma experiência de observação do observador. Os painéis eletrônicos reinam absolutos e magníficos, com imagens luminosas e exuberante brilho e colorido, que se substituem a cada poucos segundos, três ou quatro segundos elas duram, para se desfazer e dar passagem à próxima, de igual duração. O que elas nos relatam, nos mostram, nos esclarecem? Sentados que estamos em carros com mais de três ou quatro (às vezes cinco) assentos vazios, como soberanos solitários de um império de assentos, elas nos mostram apenas o mostrar. O que observamos? Observamos a nós mesmos observando. Elas são mídia pura, janelas sem mundo para mostrar, um tipo de televisão pura, uma vez que não têm o compromisso de veicular nada do mundo que não seja elas mesmas. Janelas que mostram... janelas.

Dessa maneira, os muros midiáticos atuais estampam na cidade de São

Paulo imagens comerciais que precisam constantemente se renovar com novas

sucessões de imagens sobre aquelas que viraram passagens. Essas imagens são

alimentadas por nosso olhar e, quando deixam de ser admiradas e encantadas,

também deixam de ser comunicações midiáticas.

Abordando essa ideia, Baitello Jr. define:

O que nos preocupa com os meios, com esse meio de campo entre o um e o outro? Porque há aí um abismo e temos horror ao vazio, acabamos tentando preenchê-los com tudo que temos à mão: gestos, vozes, rastros, escritas de todos os tipos e com as máquinas que produzem imagens. Como dizia Walter Benjamim em suas “Teses sobre a noção de história um lampejo no momento do perigo”, para conseguir esses lampejos e tais relances é que experimentamos todos os sons, gestos, perfumes naturais e artificiais, sabores, rastros e escritas. A essa atividade damos o nome de comunicação, criação de pontes para atravessar o abismo que separa o eu do outro. A essas pontes, como elas se colocam no meio de campo, dá-se o nome de “mídia”, ou “meios” ou “media”. Repetindo e resumindo, pois nunca

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é demais enfatizar: mídia é o meio de campo que procura superar o abismo entre o eu e o outro. “Não se esqueçam de que abismos são zonas inóspitas, tais quais os desertos.” Há uma maneira simples de compreender os meios segundo seu grau de utilização de recursos externos ao homem. Foi proposta pelo jornalista alemão Harry Pross, ao classificar os meios em primários, secundários e terciários. Os primários são aqueles que não precisam de nenhum recurso além daqueles oferecidos pelo próprio corpo, seus sons, movimentos, gestualidades, odores. Entre um corpo e outro não há nenhum artefato. Os secundários são aqueles que lançam mão de materiais extracorpóreos para deixar ou mandar mensagens. Um corpo imprime seus sinais em um suporte que é recebido por outro corpo. Os meios terciários são aqueles que requerem um jogo de aparatos em quem transmite e outro que recebe os sinais. São, portanto, três diferentes maneiras de preencher o vazio entre o eu e o outro. A primeira é presencial. A segunda gerou as escritas. A terceira é fruto da eletricidade e possui suas características: é instantânea e fugaz como o raio. Mas todas elas têm um elemento comum: começa no corpo e termina no corpo. Eis o porquê de estarmos falando sobre meios, mídia e comunicação. Todas essas coisas têm um forte impacto sobre nosso corpo e sua existência no mundo. Temos um tipo de existência quando nos comunicamos presencialmente, corpo a corpo, temos outro tipo de existência quando passamos nossa vida trocando mensagens escritas sobre suportes opacos e, por fim, existimos de uma maneira quando nos colocamos diante de aparelhos que recebem sinais transmitidos por outros aparelhos, como o telefone, rádio, televisão, internet, tablets etc. (BAITELLO Jr., 2012, p. 60-61)

Assim, considerando nossas evoluções pautadas em comunicações

transmitidas por imagens que marcam a presença e a ação do corpo, os muros

nascem como superfícies que criam imaginários via ação do corpo. Desse modo, a

compreensão do surgimento das paredes e dos muros como meios midiáticos nos

leva a compreender a necessidade de estar presentes e expressar imagens como

forma de cultuar as crenças. E o muro, nesse cenário, é o agente transmissor que

sobreviveu à linha do tempo até o presente momento com o mesmo formato e a

mesma ideia de manifestação coletiva cultural urbana.

As considerações de Edgar Morin e de João Artur Izzo apontam que tais

ideias são intrínsecas ao homem, que cria individualmente e coletivamente imagens,

conceitos, seres imaginários, mitos e significados. A noosfera trabalha as imagens

endógenas do cérebro, são elas que dialogam com o inconsciente coletivo, ou seja,

com os arquétipos coletivos e individuais, fazendo uma ponte entre o mundo cultural,

imaginário, e o mundo da vida, como nos diz Edgar Morin (2001, p. 141):

A noosfera não é apenas o meio condutor/mensageiro do conhecimento humano. Produz, também, o efeito de um nevoeiro, de tela entre o mundo cultural, que avança cercado de nuvens e o mundo da vida. Assim, reencontramos um paradoxo maior já enfrentado: o que nos faz comunicar é, ao mesmo tempo, o que nos impede de comunicar.

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Para Baitello Jr. (2014), o ser humano, vivendo em uma era extremamente

mediatizada, globalizada, que o “teleidiotiza”, está perenemente exilado em sua casa

(sua própria pele, seu próprio corpo), porque vaga perdido em um labirinto de

imagens que, em vez de refleti-lo, o inventa, o deforma, o converte em um

holograma, um desenho que outros desenham, doce sonho ou pesadelo, com que

os interesses do mercado sonham para aumentar seus ganhos.

Devorar imagens” ou “ser devorado por elas” não são possibilidades alternativas, mas simultâneas. É um estado da questão, uma descrição de nossa realidade cotidiana, uma condição inexorável da qual os humanos da era digital não podem escapar. O momento histórico que nos tocou é o da proliferação indiscriminada, às vezes cruel e selvagem, de imagens que não são somente objetos do nosso olhar (e como tais permanecem no exterior, fora de nós, a certa distância de seguridade, diríamos), senão quando melhor atuam, orientam, ordenam, se convertem em tiranias de nossos sentimentos e percepções. De tal sorte, grande parte de nossas reações e sentimentos sobre pessoas e situações do mundo não derivam de nossa experiência direta, senão de nossas imagens mentais, já pré-fabricadas por nosso sistema social (incluem-se aqui todos os estereótipos que se referem a pessoas que conhecemos, e os prejuízos contra as minorias, os diferentes, os estrangeiros que não conhecemos). As imagens se converteram em nosso arquivo histórico, em nossa memória coletiva, e cada vez mais imagens aspiram colonizar nosso futuro, nosso imaginário, nossos desejos. Recordamos, pensamos, sonhamos através de imagens que invadem nossa existência, afastando-a da vida real, projetando-nos em uma dimensão virtual em que os sentidos e as imagens e as linguagens do nosso corpo são substituídos pelas imagens que as máquinas criam para nós. (BAITELLO Jr., 2014, p. 7-8)

Desse modo, justifica-se a nova era da iconofagia e a transformação das

imagens dentro da linha do tempo. As manifestações do imaginário popular e urbano

nos muros do século XX evoluem e vibram no espírito do tempo, buscando alta

visibilidade, querendo ser grande, estar no espaço de circulação, estar nas redes, na

internet, no mundo do irreal, tendo como característica o traço marcante desse

século.

Gilbert Durand, definiu as imagens do século XX como objetos fantasmas:

A imagem é uma sombra de objeto ou então nem sequer é um mundo do irreal, a imagem não é mais do que objeto fantasma, sem consequências: todas as qualidades da imaginação são apenas nada; os objetos imaginários são duvidosos; vida fictícia, coalhada, esfriada, escolástica, que para a maior parte das pessoas é somente o que lhes resta, é ela precisamente que um esquizofrênico deseja. (DURAND, 2002, p. 23).

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Partindo do pressuposto de que as imagens são objetos fantasmas de uma

vida fictícia, existe um diversificado leque de imagens que compõem a estética dos

atuais muros urbanos desprovidas de qualquer consequência, porque, para Durand,

a imagem nada mais é do que uma descrição fenomenológica que revela uma

consciência transcendental, fora do alcance da ação do conhecimento intimista, não

ensina nada, não passa de uma quase observação. Portanto, as imagens atuais,

como grafites, pichações simples e/ou com xingamentos, protestos, palavras de

ordem, tipologias, desenhos obscenos, texturas, são sombras das superfícies

conhecidas como muro.

Atualmente os muros assumiram as mais diversas posições, seja no âmbito

físico, seja virtual, já que as barreiras murais também são amplamente inventadas e

discutidas nos espaços das novas tecnologias. Os materiais e técnicas conhecidos

são inúmeros e estão em constante renovação. Dentro deste espaço interno, o que

se quer proteger é uma atitude de grande simbolismo, que muitas vezes acabou

chegando a um padrão extremo.

Para a nossa sociedade, o que tem maior visibilidade são as formas, como no

grafite, mais do que o escrito das pichações. Esta característica é cultural, para a

população como um todo, as pichações são de baixa legibilidade e os pichadores

são um grupo de marginais, que querem marcar presença na vida urbana, nas

redes, na internet, desejando simplesmente aparecer nos lugares por meio dos

muros.

O lugar, ou muro, registra manifestações concretas nos espaços, os usos e

hábitos constroem a imagem do lugar, mas a rotina cotidiana impede sua percepção,

resultando em todo homogêneo e ilegível, uma imagem sem codificação.

O homem na cidade não é um mero receptor passivo, ele interage, codifica e decodifica e devolve a essa cacofonia de elementos a sua (re)significação. Portanto, o espaço urbano não é fruto apenas de uma formação geográfica ou espacial, mas é parte de um processo histórico onde ocorre um debate de ordem simbólica, e as gramáticas visuais fabricadas coletivamente desencadeiam-se na intersecção entre a estrutura que se impõe aos cidadãos, que imprimem no espaço suas biografias individuais e coletivas. (CAMPOS, 2009, p. 7)

Assim, para o receptor da cidade, as formas e legibilidades criadas pelos

pichadores e grafiteiros se tornam decodificadas, o que entre criadores é uma forma

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de codificação secreta. Portanto, para muitos, as pichações são simplesmente

sujeiras realizadas por vândalos vazios de ideias, não havendo mensagem alguma a

ser delas abstraída, pois, quando não são xingamentos, têm uma legibilidade sem

nexo, que só os pichadores entendem, configurando uma linguagem do gueto, que

só pretende aparecer, sujar, destruir, debochar, sem nenhuma intenção verdadeira

ou legítima de protesto. No entanto, seguindo essa mesma linha de raciocínio já

rotulado pela sociedade, grafitar é, sim, uma manifestação artística que tem formas

e imagens agradáveis que deixam de ser marginalizadas. Trata-se, nesse caso, de

uma arte urbana autorizada, regida pelos governantes e permitida socialmente, em

muros e paredes exclusivamente cedidos. Isso acontece porque o grafite é

considerado uma forma de viver em uma pseudoliberdade, apresentando a

conotação do politicamente correto, dentro de um livre-arbítrio pré-programado, o

que, por consequência, livra a sociedade dos danos e constrangimentos da cidade.

Figura 8 – Grafiteiros trabalham na avenida 23 de maio (2014), em São Paulo.

Com isso, a arte urbana do grafite e suas derivações invadem os muros e

paredes da cidade de São Paulo e acabam sendo aceitas socialmente, revelando,

não mais pichadores marginalizados, mas artistas consagrados nacional e

internacionalmente, como já citamos. Ora, em qual momento o pichador marginal se

torna o artista grafiteiro reconhecido nacional e internacionalmente? Em qual

momento a sociedade o institucionaliza, assina sua carteira profissional de cidadão

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que merece respeito, sob quais condições? Para o fotógrafo e ensaísta francês

Brassaï (apud OLIVEIRA, 2011, p. 2):

O grafite/pichação é uma presença urbana dotada de uma linguagem secreta e codificada. Essas manifestações não surgem por mero acaso ou como iniciativa isolada. O fenômeno está ancorado em grupos que partilham um mesmo sentido, objetivo ou propósito que comungam: um código de comunicação, estilo e proposta artística de com alguma similaridade.

A resposta a estes questionamentos está pautada fundamentalmente nos

interesses comerciais das mídias (emissoras de TV, revistas, jornais, agências

publicitárias, espaços culturais) ou de grupos que elegem objetos de desejo da

massa, independentemente das codificações das formas, propostas artísticas e

similaridades. Assim, quando o muro e o protesto, manifestação, imagem,

intervenção, artística ou não, têm o condão de se tornar cult, pop art, kitsch, retrô ou

simplesmente símbolo de autoafirmação cultural, a mídia automaticamente o

institucionaliza, para ato contínuo, torná-lo comercial e, por consequência e na

maioria das vezes, destituído de valores motivacionais de fundo.

O conceito da arte pública está mudando em função de diversidade de obras

e intervenções artísticas que têm usado o espaço urbano nos últimos tempos,

segundo Baixo Ribeiro,11 antigamente a ideia que se tinha de arte pública era algo

de caráter oficial, como bustos e monumentos, mas, hoje, muitas outras categorias

de trabalhos têm se apropriado do espaço público, desde grafite, intervenções e

instalações específicas, até mapeamentos e outras formas de intervenções de

linguagens, misturando arquitetura, urbanismo e urb design.

Em decorrência das proibições das publicidades e anúncios em espaços

públicos na cidade de São Paulo, que provocou o reforço da institucionalização da

arte de rua, acabamos por verificar a multiplicação destas intervenções em outros

municípios nos últimos anos. Nas capitais como Belo Horizonte e São Paulo, foram

baixados decretos que permitiam publicidade com “cara” de street art em tapumes e

11

Baixo Ribeiro é curador de arte, especializado em arte pública, arte urbana, novas linguagens artísticas e urbanismo. Nasceu em São Paulo, em 2 de setembro de 1963 e estudou arquitetura e urbanismo na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e moda com Marie Rucki & Estúdio Berçot/Rhodia. É um dos fundadores da galeria Choque Cultural, que possui proposta diferente das demais e mais tradicionais galerias de arte existentes no mercado nacional, já que as paredes nunca são brancas, os preços estão fixados ao lado das obras e a informalidade entre os atendentes e o público são pontos predominantes.

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laterais de prédios, desde que o maior fator motivacional fosse realizar obras

assinadas por artistas hoje consagrados na área.

Produz-se assim, a intervenção que ultrapassa a barreira da legibilidade

impondo imagens ou ações carregadas de símbolos, de natureza textual ou

pictórica, pressupondo a existência de um circuito de comunicação: a presença de

um autor e de um eventual destinatário da mensagem, já tratado em parágrafos

anteriores por Campos:

Existe a consciência clara de quem produz um grafite de que há um potencial público, que há consequências que resultam de um processo de comunicação em que alguém inscreve um símbolo para um ou mais destinatários. Este é um receptor anônimo, concebido em função de determinada estratégia de visibilidade que tem em conta o potencial de exposição das diferentes superfícies citadinas. Importa basicamente selecionar locais com grande visibilidade. Em segundo lugar, encontramos os pares. Os membros da comunicação são os únicos com capacidade para descodificar e avaliar o grafite enquanto produto cultural, sendo a sua apreciação fundamental para a forma como se estrutura o campo. (CAMPOS, 2010, p. 45-46; 56)

Nesse contexto, verificamos que o muro, superfície de comunicação social tão

utilizada em momentos históricos importantes, perdeu totalmente sua finalidade de

conversação direta entre manifestantes e sociedade, impedindo totalmente a

reflexão daqueles que, por ventura, estejam imersos em um cotidiano condicionante,

com isso, tira-se a provocação ou a capacidade de interpretação diferente, já que o

que é permitido foi manipulado midiaticamente pelos micros e macros poderes:

O grafite/pichação deseja atingir o maior número de pessoas, uma vez que disputa visibilidade com a publicidade ou placas referenciais. A comunicabilidade do grafite/pichação só adquire sentido e se legitima quando atinge o destinatário. (OLIVEIRA, 2011, p. 7)

As grandes empresas passaram, assim, a se interessar por algo que traria

benefícios financeiros para as cidades e, com isso, perdeu-se a fundamentação

original das manifestações murais, já que agora são direcionadas a outros

interesses, distintos dos originais. As organizações que, em um primeiro ou

expresso momento, se preocupam com a estética da cidade, pensam em converter

esses elementos em pontos positivos para si próprias. A ideia é buscar um

engajamento entre os grafiteiros, principalmente na cidade de São Paulo, tendo o

princípio de embelezar a metrópole dentro de padrões previamente estabelecidos,

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tornando-a um lugar melhor, escondendo sujeiras, mas desrespeitando a história da

cidade. Além disso, são pinturas e desenhos que nos levam a um imaginário

desenganado, a uma pobreza essencial, conforme Durand.

Com a Lei da Cidade Limpa, a prefeitura permite que placas com o nome das

empresas sejam colocadas a poucos metros da lateral pintada, geralmente em

praças ou calçadas. Além das placas com os nomes das empresas, apresentam-se

informações com os nomes dos artistas responsáveis pelos desenhos. No ano de

2012, a GE (General Eletric Company, EUA) usou plataformas digitais, como

Facebook e Google Art Project, para promover ação desse tipo. A construtora

MaxHaus também foi uma das empresas que aderiu à ideia de transformar os

tapumes, que enfeavam a cidade, em suportes para uma suposta manifestação

artística.

Assim, o grafite se tornou um dos tipos de arte que mais reflete o espírito da

alta expressão, algo que é absolutamente valorizado “pela nossa marca”, conforme

afirma a diretora de marketing da MaxHaus, Luana Rizzi, em entrevista à revista

Computer Arts Brasil (ed. 71, jul. 2013). Segundo a diretora, a curadoria para a

escolha de artistas garante a diversidade e a qualidade das obras, mas, por ser

tratar de arte, o processo de criação e sua subjetividade são “respeitadas”. O

máximo que a empresa faz é orientar para que algumas temáticas sejam evitadas,

uma vez que atua no espaço de moradia das pessoas.

Lembra ainda a diretora da MaxHaus as palavras do artista e grafiteiro

Eduardo Kobra: “As empresas (não identificadas pelo grafiteiro) que me chamam, já

sabem quem sou e quais são as características das minhas obras”. Sua

característica são os grafites hiperdimensionados de imagens fotográficas antigas da

cidade de São Paulo, elaboradas com capacidade técnica inconfundível nos muros e

fachadas da capital paulista.

Verifica-se assim a atual manipulação da mídia quanto às intervenções

murais artísticas, o que nos leva a uma simples e inegável conclusão: os pichadores

se tornam grafiteiros de respeito pelas mãos comerciais do governo e de grandes

grupos econômicos e sua arte é limitada a interesses de pessoas que sequer estão

ligadas a um meio artístico. Essa é a verdadeira institucionalização da arte e do

protesto, pois somente os temas autorizados podem ser discutidos socialmente,

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cabendo questionar: em qual lugar colocamos a liberdade artística e de

manifestação? A resolução é simples: o grafite institucionalizado é belo, permitido e

comercial, a pichação é inculta, suja e desprovida de aceitação social.

Diante de tais conclusões, poderíamos dizer que tanto o grafiteiro quanto o

pichador vivem de imagens distantes do tempo real, porque se perdem não só nos

espaços e lugares e em suas diferenças, como também no mundo vivo e no mundo

imaginado. Para James Hillman (1993, p. 44, 61, apud SILVA, 2007, p. 129, 134):

Embora os lugares governem nossa experiência na cidade, o espaço tende a regular nosso pensar e nosso planejamento das cidades. Às vezes, o espaço leva embora nosso sentido de lugar e aí nos perdemos, precisamos de placas e sinalizações como num estacionamento, no aeroporto, no subsolo dos grandes arranha-céus envidraçados. Lugar como piazza, place, plaza é uma localidade autolimitada, caracterizada qualificada, com nome e uma habitação. Temos imagens de lugares, enquanto que espaço é um conceito abstrato, melhor apresentado geometricamente, um tipo de espírito formal na mente. Quando pensamos em transporte, em termos espaciais, estamos automaticamente dentro de grafos e mapas, conceitos de linhas diretas, eixos, vórtices, quilômetros por hora e horas por quilômetro, alta velocidade. [...] Portanto, compreendemos que o sentido do termo “espaço” vincula-se com o conceito abstrato, lógico, racional atribuído ao território enquanto por “lugar” compreendem-se centros aos quais, atribuído valor e sobre os quais acionamos nossa percepção corpórea. Vivemos nos espaços da cidade sonhando com imagens dos lugares desejados. Esta diferenciação é particularmente importante na medida em que se aprofunda a cisão entre a vivência do corpo (espaço) e avida na comunicação (lugar) através das imagens distantes em “tempo real”. Constitui-se aí um caminho para a análise do impacto do fenômeno das tecnologias de comunicação e informação na cultura contemporânea.

Dessa forma, as leituras das imagens que vemos nos muros da cidade são

consequências de percepções corpóreas que criam lugares (vida na comunicação) e

ignoram espaços (vivência do corpo), porque ambos acabam tendo algo em comum,

perdem-se com as novas tecnologias da comunicação e os processos sociais,

culturais e contemporâneos, tendo como traço marcante estar nas redes buscando

alta visibilidade e emitindo imagens para ser percebido.

Assim, o muro contemporâneo carrega consigo a realidade do universo

exterior relacionada às imagens que carrega e do interior relacionada à percepção

fenomenológica destas imagens criadas por um corpo que necessita aparecer,

tornando-se o próprio corpo, imagem. Considerando, então, o entrelaçamento entre

a realidade simbólica (das imagens exteriores ao corpo, exógena) e a imaginação (a

ação interna sobre as imagens), fundamentada na percepção corpórea:

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As mídias digitais reintroduzem a antologia ao corpo via negação. A perda do corpo já assombrou as fantasias sobre espelhos do século dezenove quando sua aparição não mais obedece ao espectador e abandona a mimese do corpo refletido. As imagens digitais geralmente endereçam-se à imaginação dos nossos corpos e cruzam o limiar entre imagens visuais e imagens virtuais, imagens vistas e imagens projetadas. Neste caso, a tecnologia digital busca a mimese da nossa própria imaginação. As imagens digitais inspiram e são, na mesma medida, inspiradas por imagens mentais e seu livre fluxo. Assim, as representações internas e externas são estimuladas a se misturarem. (BELTING, 2006 apud SILVA, 2012 p. 63)

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CONCLUSÃO

Desde os primórdios da espécie humana, a comunicação sempre foi um

desafio para o homem, seja pelo fato mais basilar que é a sobrevivência da

comunidade, seja pela busca de novas formas de se relacionar com os demais e

com o meio ambiente no qual está inserido, seja, ainda, pela precisão de

estabelecer novos elos e aglomerados sociais na busca de sua autodeterminação

individual e coletiva. Conjuntamente a estas necessidades, o homem foi a espécie

que inaugurou e desenvolveu o pensamento racional questionador, capaz de

proceder às reflexões sobre sua existência, isso significa que, por meio do binômio

necessidade/capacidade, desenvolveu um processo de tradução de formas

simbólicas e sinais gráficos, exprimindo, assim, sua realidade temporal e espacial de

forma diferenciada dos demais seres vivos, o que lhe permitiu chegar ao topo da

cadeia de dominação, fato que relacionamos, de maneira particularizada, com a

questão do desenvolvimento das formas e dos meios de comunicação.

A procura constante do ser humano por novas formas e meios de linguagem

também se relacionou com a necessidade de interpelar o espaço em busca de sua

percepção, criação, delimitação e conquista. Assim, a exterioridade do mundo força

o homem e sua racionalidade específica a traduzir as imagens simbólicas ali

contidas, para que fosse possível a própria perpetuação da espécie e seu

fortalecimento, e é provável que, sem este desenvolvimento comunicacional, não

teríamos chegado a tão longeva existência da espécie humana, tendo em vista que,

em termos físicos, somos mais frágeis e vulneráveis que muitos outros seres

existentes no planeta.

À medida que os valores simbólicos foram se apresentando ao homem dentro

de seus contextos específicos, surgiu a necessidade de reinventar e amadurecer as

formas de transmiti-los e, neste sentido, a comunicação sempre exerceu forte

influência sobre a perpetuação da espécie, desde o homo sapiens até a era da

informação, como a conhecemos atualmente. Assim, diversos foram os processos

de mutação e desenvolvimento, levando em consideração não só as particularidades

genéticas do ser humano, mas também as questões geográficas, temporais e

sociais.

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No momento em que nos primórdios os indivíduos tiveram a necessidade de

se comunicar, criando relações interpessoais e coletivas, surgiu também a

necessidade de criar instrumentos, ferramentas, superfícies e suportes, que lhes

permitissem os impulsos necessários para conceber um mundo imaginário

representativo, voltado a algo que se encontrava fora do espaço e do tempo. São as

chamadas imagens iconográficas (PANOFSKY, 1955, p. 45), isto é, meramente

representativas de qualquer conteúdo secundário ou terciário interpretativo,

relacionado a uma análise do nascimento de imagens artísticas, como ocorre na

atualidade, mais por meio de instrumentos tecnologicamente mais avançados, mas

que, em síntese, pretendem compor a mesma abstração comunicacional de outrora,

porém com processos imaginários mais complexos. Neste sentido, Edgar Morin

afirma:

O homem de Neanderthal cria imagens simbólicas e sinais gráficos [...] que [nos leva a] tentar fazer a grafologia do homo sapiens. Surgem então, as fases dos homens escondidos, um ser afetivo, ansioso, angustiado, gozador, estático, violento, furioso, invadido pelo imaginário, consciente da morte e luta para não acreditar nela, um ser que se alimenta de ilusões, um ser incerto e que erra e produz a desordem, transformando se em homo demens.

No processo de comunicação pós moderno, conforme evidenciado por Morin,

o indivíduo passa a utilizar o pensamento simbólico, mitológico e mágico com uma

máscara de racionalidade compreendida como certa e positivista da qual não cabe

qualquer questionamento sob pena de ser considerado mito. Isso se deve em razão

do legado deixado pelo Iluminismo, momento histórico em que os mitos tradicionais

foram relegados e substituídos pelo mito unívoco da ciência e da razão, tornando o

conceito de esclarecimento comunicacional totalitário (ADORNO; HORKHEIMER,

1985, p. 19).

Os autores da Escola de Frankfurt, inaugurada pela obra dialética do

esclarecimento de Adorno e Horkheimer, desenvolveram o tema já em 1942, com a

criação do conceito de indústria cultural, ideia que está até os dias de hoje muito

coerente com a realidade social experimentada pelo pós-modernismo, ou sociedade

da informação. Nesta realidade, a complexidade da compreensão humana é

substituída pela racionalidade unívoca e pela plurivocidade,12 temos, assim, aquele

12

A plurivocidade se define como um dos fatores de construção do espaço poético autônomo na obra de Drummond.

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conceito uno racionalista que, por meio do poder das comunicações na atualidade,

controla os indivíduos sobre uma pretensão de verdade incontestável.

Inseridos em processos aparentemente mais racionais e certos, são incluídos

como representação os valores simbólicos, o próprio corpo e os temores

existenciais, e o homem, então, passa a buscar, por meio dessa verdade totalitária,

a explicação para a própria existência humana, e a sentir a necessidade de não

viver em solidão. No entanto, o que se verifica, por fim, é o distanciamento

promovido pela inserção dos intermeios terciários, tornando-se cada vez maior entre

o conteúdo comunicacional, sua fonte e o respectivo destino, causadores da

alienação e promovedores do conformismo.

Tal aspecto da pós-modernidade não significa que o homem deixou de ter

uma medida primária em seus processos comunicacionais, mas, sim, que estes vêm

sendo substituídos ou desvalorizados em relação aos estabelecidos por aqueles que

se utilizam de interfaces tecnológicas. A importância da comunicação primária,

aquela que diz respeito à significação do orador, do mensageiro que transmite

mensagens ao receptor, é destacada e elucidada por Pross, 1971, apud Baitello Jr.,

2001, p. 231: “O orador deve dominar gestualidade e mímica, o mensageiro deve

saber correr, cavalgar ou dirigir e garantir assim a transmissão de sua mensagem”.

E ainda:

Toda comunicação humana começa na mídia primária, na qual os participantes individuais se encontram cara a cara e imediatamente presentes com seu próprio corpo; toda comunicação humana retornará a este ponto. (PROSS 1978; p. 128 apud BAITELLO Jr., 2003(d), p. 2).

Pross segue descrevendo as infinitas e ricas possibilidades de linguagem da

mídia primária, lembrando a importância da expressividade dos olhos, testas, bocas,

narizes, posturas da cabeça e movimentos dos ombros, andar, postura corporal,

tórax e abdômen, mãos e pés, sons articulados, odores, cerimoniais, ritmos e

repetições, rituais e, por fim, das línguas naturais, faladas ou escritas, na

consecução dos processos comunicacionais.

Tal afirmação de Pross foi fundamental para o presente estudo, no sentido de

confirmar que a diminuição crescente de relações humanas neste âmbito primário

vem contribuindo para o processo de coisificação dos indivíduos, ou seja, os

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sentidos humanos vêm sendo substituídos pela máquina, desnaturalizando a

relação, o que gera a banalização ou torna o valor menos importante do que seria.

Antes da chegada da máquina como forma de interface nas relações

comunicacionais, houve o surgimento da comunicação descrita como secundária,

em que o corpo, ante as imagens, insere-se em um processo de transformação da

matéria-prima em um conceito de elaboração das imagens que consomem o corpo e

os espaços por meio das superfícies verticalizadas. O imaginário toma conta do

corpo além dos seus próprios horizontes e o homem entra na era do nomadismo.

Dentro do conceito orbitacional do imaginário, o indivíduo cria a mídia secundária

(PROSS apud BAITELLO, 1999, p. 3), o renascimento da mídia cultural e a

percepção do nômade. A mídia secundária é constituída, segundo este conceito,

por:

[...] aqueles meios de comunicação que transportam a mensagem ao

receptor, sem que este necessite de um aparato para captar seu significado, portanto é mídia secundária a imagem, a escrita, o impresso, a gravura, a fotografia, também em seus desdobramentos enquanto carta, panfleto, livro, revista, jornal. (PROSS, apud BAITELLO, 1999. p. 3)

Harry Pross ainda acrescenta:

Na mídia secundária, apenas o emissor necessita um aparato (ou suporte). Assim, constituem mídia secundária as máscaras, pinturas e adereços corporais, roupas, a utilização do fogo e da fumaça, os botões, a antiga telegrafia ótica, bandeiras, brasões e logotipos, imagens, pinturas e quadros, a escrita, o cartaz, o bilhete, o calendário.

Desse modo, com as mídias secundárias, inicia-se o processo de

transformação das mensagens por meios e aparatos materiais (suportes) elaborados

para facilitar os meios de comunicação, os símbolos e os arquétipos. O homem se

percebe enquanto ser vivo e com consciência da própria morte, passa a criar a

história de seu tempo, cultuando imagens em superfícies verticalizadas como o muro

e as paredes, agentes midiáticos registradores e transmissores das crenças, culturas

de cada civilização seguindo a linha e o espírito do tempo.

Com chegada do século XX, e já experimentadas algumas das

consequências dos processos de industrialização e da globalização, chegamos à

pós modernidade, em que as máquinas e novas tecnologias começam a

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desempenhar papéis cada vez mais determinantes nas comunicações e nas

relações humanas. Nesse contexto, a expressão da comunicação terciária chega ao

fim.

No contexto do século XX, ocorre uma explosão de manifestações nos

espaços urbanos das megacidades, percorrendo seus muros e paredes e revelando

a incapacidade de entendimento entre os indivíduos, apesar do movimento iluminista

ter apregoado o fim das trevas e o início da era do esclarecimento humano por meio

da ciência racionalista. Essa ideia foi descrita por Adorno e Horkheimer ao

interpretar o caos gerado pela manipulação do conhecimento e o surgimento de uma

indústria cultural alienante das grandes massas, como decorrência do

desenvolvimento dos novos meios de comunicação:

A perda do apoio que a religião objetiva fornecia à dissolução dos últimos resíduos pré-capitalistas e a diferenciação técnica e social e a extrema especialização levaram a um caos cultural. Pois a cultura contemporânea confere a tudo um ar de semelhança. O cinema, o rádio e as revistas constituem um sistema. Cada setor é coerente em si mesmo e todos o são em conjunto. Até mesmo as manifestações estéticas de tendências políticas opostas entoam o mesmo louvor do ritmo de aço. Os decorativos prédios administrativos e os centros de exposição industrial mal se distinguem nos países autoritários e nos demais países. Os prédios mais antigos em torno dos centros urbanos feitos de concreto já parecem slums e os novos bungalows na periferia da cidade já proclamam, como as frágeis construções das feiras internacionais, o louvor do progresso técnico o convidam a descartá-lo como latas de conserva após um breve período de uso. Mas os projetos de urbanização que, em pequenos apartamentos higiênicos, destinam-se a perpetuar o indivíduo como se fosse independente, submetem-no ainda mais profundamente a seu adversário, o poder absoluto do capital. Do mesmo modo que os moradores são enviados para os centros, como produtores e consumidores, em busca de trabalho e diversão, assim também as células habitacionais cristalizam-se em complexos densos e bem organizados. A unidade evidente do macrocosmo e do microcosmo demonstra para os homens o modelo de sua cultura: a falsa identidade do universo e do particular. Sob o poder do monopólio, toda a cultura de massa é idêntica, e seu esqueleto, a ossada conceitual fabricada por aquele, começa a se delinear. O cinema e o rádio não precisam mais se apresentar como arte. A verdade é que não passam de negócio, eles a utilizam como uma ideologia destinada a legitimar o lixo que propositalmente produzem. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 99-100.)

O caos cultural aparece no contexto pós-moderno com grande agressividade,

facilmente notada pelo processo de coisificação do indivíduo, fruto do consumismo

levado ao extremo pela promessa de planificação e estreitamento do globo. E se,

neste processo, o indivíduo tornou-se coisa, o lugar onde vive passou a ter menor

valor ontológico do que em outros períodos históricos. Nos espaços urbanos, este

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fato é facilmente notado pela invasão das pichações como forma de movimentação

contra-hegemônica. Tal situação evidenciou-se em escala mundial, a partir dos anos

1970, com a inserção de interferências ora tidas como vandalizadoras, ora admitidas

como manifestação de arte urbana ou de cunho ideológico e político. Assim, os

prédios das grandes cidades foram e ainda são disputados pelos pichadores,

grafiteiros e demais produtores de intervenções estéticas, que vão desde a

publicidade até o caos formado pelo sobreposição de todas estas interferências,

criando, assim, um contexto urbano definidor do que conhecemos por ambiente

caótico. Os estilos e manias sobrepunham-se uns aos outros com a mesma rapidez

com que a tecnologia digital invadia nossas casas já no final do século, dando uma

prévia de como se estabeleceria a comunicação humana no início do século XXI,

rápida, fugaz, invasiva, permeável e totalitária. Manifestações visuais em muros,

paredes e fachadas subvertem a arquitetura das cidades e compõem os contextos

urbanos atuais. Imagens e desenhos começam a ocupar e a se espalhar

rapidamente pelos mais diversos espaços públicos e particulares das grandes

metrópoles, principalmente no caso da capital paulista.

Consequentemente, os pontos e espaços urbanos, em meio a esse contexto

caótico, perdem a materialidade e o sentido, porque os ambientes não estão mais

conectados a um sentido relacionado ao condutor ou portador identificável ou

personalíssimo, a sobreposição de informações e as referências são estabelecidas

sem critério. A falta de sentido e a dilaceração das imagens advindas das pichações

dificultam sua identificação como arte, escrita, intervenção ou protesto, seus estilos

gráficos, apesar de compor o universo da manifestação urbana, contribuem de fato

com a interpretação da sensação de vazio que se estabelece entre a arte mural

formal e direcionada e legalizada, os grafites e as marginalizadas pichações.

As intervenções gráficas urbanas não só invadem os espaços externos, como

os internos, como pátios escolares, banheiros públicos, até o interior de veículos

públicos. Embora as intervenções gráficas urbanas estudadas neste trabalho sejam

consideradas de senso comum e, em algumas hipóteses, arte de rua, caracterizando

uma atitude irreverente e expressando a personalidade do urbano no sistema social,

tais referências são questionáveis quando analisamos sua finalidade de promover

uma efetiva comunicação e transmissão da mensagem entre emissor e receptor.

Muitas dessas iniciativas de intervenção artística acabaram se tornando modismos e

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promovendo simplesmente a repetição de signos que não são imaginados para a

consecução de transmissão de uma ideia, mas simplesmente para repetir o que

esteticamente ornamenta o local.

No início dos anos 1960 e 1970, os pichadores e grafiteiros do Brasil, mais

precisamente de São Paulo, tinham como objetivo protestar contra museus, galerias

de artes e as formas tradicionais de acesso às artes. Objetivavam dialogar com o

público que estava às margens dos espaços institucionais. Usavam as

manifestações artísticas nos muros e paredes das ruas como suportes, sem as

badalações e divulgações das grandes mídias.

No Brasil dos anos 1990, com o início do acesso em massa aos novos meios

de comunicação, como os computadores, acrescido da chegada da internet, as

intervenções nos muros e prédios da cidade começam a traçar novos rumos. O

advento da globalização contribuiu sobremaneira para a difusão do que ocorria pelo

mundo e introduziu no país, com uma nova roupagem menos contestadora e mais

homogeneizada, os estilos de intervenções de grafites e pichações, agora muito

mais vinculados à moda e aos ideais de consumo estabelecidos pelo poder da mídia

e seus diversos veículos de propagação das informações às massas.

Considerados marginalizados em épocas passadas, pichadores e grafiteiros

acabaram caindo nas redes sociais da internet como referências daquilo que era

considerado cult e controvertido, disseminando uma cultura aparentemente

heterogênea, que, com a aplicação em larga escala, passou também a ter valor

comercial e a ser objeto de interesse dos grandes empresários que verificaram a

oportunidade de explorá-la economicamente. Consequentemente, surge o interesse

em divulgar os trabalhos e manifestações com esta aparente roupagem

contraventora, mas que de fato transmitia a imagem e não o conteúdo contestador.

Nesse cenário, diversos foram os expoentes que ganharam destaque por

meio da denominada e antropofagiada street art, como Eduardo Kobra,

OSGEMEOS, entre outros. Atualmente, esses expoentes têm notoriedade popular

nacional e internacional, sendo requisitados para trabalhos direcionados e

institucionalizados. Incontestável é o fato de que, por meio da exposição destas

obras, tecnicamente diferenciadas, esteticamente impostas como belas ou

inovadoras ou até mesmo inegavelmente hiper-realistas, patrocinadas pelo poder de

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consumo e oportunizadas graças a ele, criou-se um culto à imagem técnica,

tornando a criação intelectual destes artistas ou contestadores objeto de exploração

da indústria cultural.

No contexto da pós-modernidade, as imagens se tornam técnicas e

simplesmente visuais, em que todos nos vemos, mas pouco ou nada interpretamos

ou abstraímos, propagando a superficialidade da qual padece o conhecimento na

era da informação. O objeto de discussão do presente estudo não é simplesmente a

análise das imagens enquanto produto do intelecto ou da criatividade de seus

emissores, mas, sim, o emprego que lhes é dado pelos responsáveis por sua

propagação e utilização comercial.

Ao comparar as imagens contidas em obras revolucionárias ou contestadoras

de outros períodos históricos, chega-se à conclusão de que a indústria cultural atual

reproduz imagens desprovidas de significação e de interpretação, tornando-se

apenas estereótipos. Pelos muros da cidade de São Paulo, referência urbana da

América Latina, temos diversos suportes arquitetônicos, entre eles, os muros e as

muradas, que são utilizados, por essa mesma indústria cultural, como veículos de

propagação dos símbolos contemporâneos urbanos, mas o que se questiona não é

a exposição em si das obras, mas sua finalidade quase sempre impositiva e

direcionada, mascarando a indução do consumo e do que deve ser consumido pelos

integrantes desta sociedade urbana.

Contrariamente ao que ocorria em tempos passados, em que o artista

pensava a obra para determinado local com o fim de transmitir alguma mensagem

aos receptores de sua arte, hoje vemos uma crescente indução direcionada pelo

mercado da arte e seus desdobramentos comunicacionais, em que o artista é usado

como mero feitor da imagem, que os fornecedores de produtos e serviços

pretendem arraigar ideologicamente em determinado local, tornando a mensagem

uma obra meramente estética e vazia de correlação com as pessoas e os espaços

aos quais pertencem.

As ideias das imagens atuais e principalmente o futuro dos suportes urbanos

e das novas técnicas de produção utilizadas nos muros da cidade de São Paulo,

estarão condenados a serem meros outdoors mediáticos. António Damásio,

professor de Neurociência da Universidade de Southern da Califórnia (EUA),

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aproxima-se deste conceito de imagens atuais e de sua dinâmica ao definir que as

imagens:

[...] não se referem apenas à imagem “visual”, e também não há nada de estático nas imagens. As imagens de todas as modalidades retratam processos e entidades de todos os tipos, concretos e abstratos. As imagens também retratam as propriedades físicas das entidades e, às vezes imprecisamente, às vezes não, as relações espaciais e temporais entre entidades bem como as ações destas. Em suma, o processo que chegamos a conhecer como mente quando imagens mentais se tornam nossas, como resultado da consciência, é um fluxo contínuo de imagens, e muitas delas se revelam logicamente inter-relacionadas. (DAMÁSIO, 2000, p. 402-403)

Assim, o conformismo que se estabeleceu na sociedade pós-moderna, em

que as obras e intervenções são transformadas praticamente em logomarcas,

indica-nos um caminho a ser revisto, já que relega à arte e aos movimentos

emergentes das ruas um papel condicionado que não lhes é natural.

O muro não representa apenas a matéria arquitetônica delimitadora de sua

finalidade e função espacial, é também um suporte no qual o espírito do tempo, as

crenças, os costumes e a cultura de cada época são registrados como forma de

leitura que aponta os processos sociais em determinado contexto. Os conceitos de

Damásio, que nos propõe considerar que o pensamento humano nada mais é do

que o fruto dos fluxos contínuos de imagens, denotam um caminho que tende à

dominação dos processos ideológicos por aqueles que de fato detêm o

conhecimento, podendo manejar com facilidade os rumos que continuaram a

sustentar um modelo capitalista de consumo não sustentável, que só aumentará as

desigualdades sociais.

A cidade que hoje se verticaliza por meio da construção de arranha-céus,

também se verticaliza nos monitores dos computadores, promovendo uma produção

de estereótipos matematicamente calculados para sustentar tanto a máquina estatal,

quanto um modelo de administração social parametrizado predominantemente pelo

viés econômico. Assim, a oportunidade de construção de arquétipos no horizonte da

noosfera, antes possíveis de ganhar força como forma de combater o que era

imposto, hoje são filtrados por uma avassaladora máquina de manipulação midiática

tecnológica, de grande permeabilidade social e rapidez temporal, que difundem as

imagens desencantadas no mundo da mediosfera, fazendo com que tais conceitos

sejam entendidos pelos receptores como verdade única, invariável e impermeável.

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A substituição dos mitos tradicionais pela ciência racional muito contribuiu

para incutir no inconsciente coletivo que o caminho da verdade para o homem só

poderia ser alcançado pela aplicação de seu método, com base em seus preceitos,

retirando a crença na capacidade individual de imaginar outro ou novo caminho, já

que sair da ciência racional significaria necessariamente adotar um caminho pouco

empírico e baseado em mitos. Todavia, a ciência racional acabou por se transformar

em mito, pelo qual o caminho da verdade só encontrará guarida sobre os seus

pilares.

De acordo com Contrera (2010, p. 20-21), as imagens simbólicas

superficializadas nos muros da cidade e reproduzidas pelas mais diversas

tecnologias midiáticas da atualidade, internet, rádio, televisão, transformam tudo em

supostas obras de artes capazes de ser reproduzidas em larga escala, e de acordo

com algum interesse econômico, com a velocidade necessária à movimentação do

mercado cada vez mais dependente de grandes estruturas. No entanto, é inegável

que muitas das obras citadas apresentam um conteúdo esplêndido do ponto de vista

estético, técnico, artístico e formal, possuindo cores extravagantes e traços

desafiadores, que, sem dúvida, contagiam pela grandeza e técnica, podendo até

contribuir com o embelezamento e a composição urbana paulistana, mas a

discussão estética não era o objetivo deste trabalho, nosso propósito foi abordar a

intenção e/ou finalidade do mercado no emprego dessas obras, compartimentando-

as em uma estrutura exclusivamente econômica e de reprodução sem anseios

educacionais ou artísticos, disseminadora das múltiplas vertentes do conhecimento

humano.

Concluímos, portanto, que o muro atual se tornou um suporte de emprego a

serviço dos agentes mediáticos esvaziados de intenção promovedora do

pensamento contestatório, perdendo sua finalidade que outrora se prestava a criar

uma situação de desconforto e levantar pontos de vistas diferentes dos de ocasião.

Não é a arte ou mensagem exposta no muro que é vazia de conhecimento, sob o

ponto de vista do emissor ou realizador direto, mas, sim, os significados simbólicos

que nela ficam contidos para os receptores por determinado período de tempo, já

que vivemos em uma cultura de consumo apenas apreendendo a ver imagens

técnicas, porque a mensagem interpretativa é inexiste ou não é capaz de permear o

indivíduo destinatário, por se tratar de imagens superficiais.

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O processo alienante introduzido pela era da informação acabou por tirar a

alma dos muros, que se tornaram superfícies verticalizadas de maneira formal e

digital, passando de uma realidade física da noosfera para superfícies que se

verticalizaram nas telas dos computadores, cultuadas pelos mitos hodiernos num

processo hipnótico inconsciente à massa, mas planejado e calculado por quem

detém o poder econômico e midiático.

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APÊNDICES

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Apêndice A – Pichação

Pichação nos muros de uma escadaria na rua Cardeal Arcoverde. Pinheiros, SP.

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Apêndice B – Pichação

Pichação na porta de um estabelecimento no bairro da Lapa, SP.

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Apêndice C – Pichação

Pichação na avenida Doutor Arnaldo, Pinheiros, SP.

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Apêndice D – Pichação

Pichações na rua Fradique Coutinho, Vila Madalena, SP.

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Apêndice E – Grafite

Grafite de Rui Amaral na passagem de nível da av. Paulista, SP.

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Apêndice F – Grafite

Grafites no Beco do Batman, Vila Madalena, SP.

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Apêndice G – Grafite

Grafites no Beco do Batman, Vila Madalena, SP.

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Apêndice H – Grafite

Trabalho realizado pelo grafiteiro Zezão, na rua Cardeal Arcoverde, Pinheiros, SP.