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UNIVERSIDADE PAULISTA – UNIP O sujeito humano – maquínico nas configurações sociais propostas pelo cinema de ciência – ficção. Dissertação apresentada ao Programa de Pós - Graduação em Comunicação da Universidade Paulista – UNIP para obtenção do título de mestre em Comunicação. MARIA AUXILIADORA LEITE COSTA SÃO PAULO 2006

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UNIVERSIDADE PAULISTA – UNIP

O sujeito humano – maquínico nas configurações sociais propostas pelo cinema de ciência – ficção.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós

- Graduação em Comunicação da

Universidade Paulista – UNIP para obtenção

do título de mestre em Comunicação.

MARIA AUXILIADORA LEITE COSTA

SÃO PAULO

2006

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UNIVERSIDADE PAULISTA – UNIP

O sujeito humano – maquínico nas configurações sociais propostas pelo cinema de ciência – ficção.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós

- Graduação em Comunicação da

Universidade Paulista – UNIP para obtenção

do título de mestre em Comunicação.

MARIA AUXILIADORA LEITE COSTA

SÃO PAULO

2006

3

Costa, Maria Auxiliadora Leite

O sujeito humano - maquínico nas configurações sociais propostas pelo cinema de ciência ficção / Maria Auxiliadora Leite Costa. – São Paulo, 2006.

236 f. Dissertação (Mestrado) – Apresentada ao Instituto de Ciências Sociais e Comunicação da Universidade Paulista, São Paulo, 2006. Área de Concentração: Comunicação e cultura midiática.

“Orientação: Profº. Dr. Juan Guillermo Droguett”

1. Comunicação 2. Cinema 3. Recepção 4. Grupos sociais I. Costa, Maria Auxiliadora Leite. IV. Título.

Cada momento é absolutamente preenchido por incontáveis instantes, cada instante é ponto singular e se destaca pela multiplicidade. O deslocamento deste instante pontual desenha a linha do tempo. E foi neste macro cruzamento de circunstâncias particulares e singulares que surgimos nós dois (Edith Derdyk)

Para Helder por estar ao meu lado.

4

5

Agradecimentos

Gostaria de agradecer imensamente ao meu orientador Juan Droguett por

ter me levado pela mão a uma incursão no mundo do saber, pela sua

delicadeza, paciência e generosidade, e por ter me ensinado a respeitar os

grandes pensadores.

Quero agradecer a Romy Tutia e Patrícia Fonseca pela compreensão e

incentivo que recebi para ir adiante neste projeto.

A Sueli Garcia e Suzana Avelar amigas - irmãs de todas as horas.

A Clarice Keiko pela presteza e amabilidade com que atendeu aos meus

pedidos de socorro.

A Valéria Pereira que dedicou horas preciosas do seu tempo na revisão

deste trabalho.

Aos meus amigos de trabalho que tiveram a paciência na hora exata.

Aos meus alunos que souberam compreender os momentos de ausência.

E, principalmente, ao meu pai (in memoria) que me ensinou o gosto pela

leitura e a minha mãe de quem herdei a capacidade para realizar os meus

objetivos.

6

RESUMO

O sujeito humano – maquínico nas configurações sociais propostas pelo

cinema de ciência – ficção é o título desta dissertação, que tem como

objetivo caracterizar uma construção midiática da sétima arte, oferecida

como um produto cultural de identificação ao grande público receptor.

Sendo a comunidade - grupos sociais - de artistas e cientistas, que

aparecem na obra de Blade Runner - O caçador de andróides, os

principais responsáveis pela configuração do tempo e do espaço prefigurado

pelo cinema de ciência – ficção, o trabalho analisa tal produção como um

paradigma social da passagem da Modernidade à Pós – Modernidade na

trama narrativa dessa ficção.

O principal problema enfrentado na pesquisa está relacionado à definição

de Modernidade diretamente ligada ao fenômeno de massa e às Revoluções

Industriais, que encontram no cinema – invenção moderna por excelência –

um outro tipo de revolução, mais difícil de definir por seu caráter estético,

advindo do modo de subjetivação que transforma as condutas desses

grupos sociais empenhados em se perpetuar por meio das suas

representações.

O objeto desta dissertação resulta de uma construção do imaginário

cultural que as sociedades promovem, em seu desejo de capturar o tempo.

Neste sentido, formula-se uma trajetória metodológica que vai desde a

contextualização cultural, com o surgimento do fenômeno de massa até a

aplicação das seguintes categorias, escolhidas em função de nosso

trabalho: natural versus artificial; homem versus máquina; o real e o

7

imaginário; a desumanização das cidades e a identidade humana

enunciadas pelo próprio idealizador Ridley Scott que, baseado nos

pressupostos de sua prática de cineasta e de pesquisador, reflete em sua

obra a relação do sujeito com seu correlato maquínico.

A partir destes pressupostos, enunciados a modo de temática,

transformamos estas categorias de análise para evidenciar a trajetória

cultural do ser humano em sociedade.

Os principais referenciais teóricos usados neste trabalho se ancoram em

obras tais como: A rebelião das massas (2002) de José Ortega Y Gasset;

Humano demasiado humano (2005) de Friedrich Nietzsche; Ensaios e

conferências (2006) de Martin Heidegger, O discurso filosófico da

modernidade (2002) de Jürgen Habermas para extrair delas as causas do

fenômeno de massa e os efeitos que este provocou na sociedade

contemporânea.

Para questões sobre teorias do cinema, utilizamos a obra de Gilles

Deleuze La imagen – movimiento (1984), que situa o leitor no âmbito da

ciência – ficção e dos efeitos receptivos da câmera, da montagem e da

própria filmagem.

Enfim esta dissertação discute mais do que questões do gênero de

ficção, uma temática social e um mal-estar instalado na cultura sobre o

futuro do sujeito, mostrado pelo meio da clarividência do cinema.

Palavras – chave: sujeito humano – maquínico, cinema, configurações

sociais.

8

Abstract

The human subject - in the social proposal for the science of cinema in the

mechanical configurations - fiction is the heading of this dissertation that has

an objective to characterize the construction of the seventh art presented as

a product of cultural identification for the public.

Being a community - social groups - artists and scientists, who appear in

the film Blade Runner, as the primary ones responsible for the configuration

of time and space preconfigured for science-fiction cinema, the work

analyzes the production as a social paradigm, the passing from modernity to

post – modernity. This is the plot narrative of this piece of fiction

The main problem faced in the research, is related to the definition of

Modernity directly linked with the phenomenon of mass and the Industrial

Revolutions, which is found in cinema - modern invention par excellence -

another type of revolution, much more difficult to define for its aesthetic

character, coming from the subjective transformation of their behavior in

these social groups, committed to perpetuate by means of their

representation.

The object of this dissertation results in an imaginary construction of a

cultural, one that society promotes in its desire to capture time. In this way,

formulating a methodology trajectory that goes from the cultural

contextualization with the appearance of the mass phenomenon until the

application of the categories, chosen in function of our work : natural versus

artificial; man versus machine; Real and imaginary; the dehumanization of

the cities and human identity expressed by the idealizer himself Ridley Scott,

9

based on the presumption of his cinematographer career and research

reflected in his art the relationship between the citizen and his mechanical

correlative. .

From these presuppositions expressed in a thematic way, we

transform these analytic categories to show the cultural trajectory of the

human being in society.

The main theoretical references used in this work is based on such pieces

of work as: A rebelião das massas (2002) by Jose Ortega Y Gasset;

Humano demasiado humano (2005) by Friedrich Nietzsche; Ensaios e

conferências (2006) by Martin Heidegger, O discurso filosófico da

modernidade (2002) by Jürgen Habermas to extract from them the cause of

the mass phenomenon and the effects that this provoked on modern society.

For questions on cinematographic theories, we use the work of Gilles

Deleuze La image - movimiento (1984) that puts the reader in the realm of

science-fiction and of the accepting effect of the camera, the setting and the

filming itself.

Finally this dissertation discusses more than just the questions of the type

of fiction, a social theme and a bad feeling installed in culture about of future

of the subject shown by the clairvoyance of cinema.

Keyswords:

human subject – cinema – social proposal

SUMÁRIO

10

INTRODUÇÃO, 02

Capítulo I – Cultura de massa – o início das grandes revoluções, 05

1. Do ser humano– massa ao sujeito maquínico das grandes revoluções, 09

2. Efeitos da Revolução Industrial, 35

3 Técnica e tecnologia no auge de uma nova era, 54

Capítulo II – Blade Runner – O caçador de Andróides, 67

1. A relação humana – maquínico em Blade Runner – decupagem das

principais cenas, 69

2. A relação maquínico – humana, 92

3. Projeção do espaço humano – maquínico, 115

Capítulo III – Estruturas sociais do sujeito maquínico na configuração midiática, 131

1. O sujeito moderno, 133

2. O sujeito pós – moderno, 170

3. O sujeito maquínico, 196

CONSIDERAÇÕES FINAIS, 215

BIBLIOGRAFIA, 219

ANEXO I, 225

ANEXO II, 230

ANEXO III, 235

INTRODUÇÃO

11

As mudanças acentuadas nas esferas sociais, políticas e econômicas

engendradas pelas Revoluções Industriais ocorridas principalmente na

Inglaterra legitimaram o conhecimento objetivo, a razão e a capacidade

intelectual do ser humano como indivíduo autônomo engenheiro do seu

próprio destino. No século XX e XXI, este sujeito que surgiu das revoluções

industriais se depara com uma outra revolução, esta de caráter estético e

que chamamos neste presente trabalho de Revolução Estético –

Tecnológica que está ligada às questões dos meios de comunicação de

massa e a virtualização através de seus produtos culturais.

No primeiro capítulo serão abordados os elementos dessa

reestruturação da sociedade advinda das Revoluções Industriais que solicita

uma reflexão na medida em que parece indicar uma importante ruptura ante

a confirmação de uma maquinação do humano na esfera bioquímica e que

dá início ao estudo do sujeito humano – maquínico desta dissertação.

Este presente trabalho utiliza o cinema, concebido como uma das

grandes invenções do século XIX, e que nos servirá como suporte técnico na

sua vocação de ficção como uma arte essencialmente realista, uma arte

ilustrativa do mundo e da ciência. Consideramos que o cinema foi, desde o

seu nascimento, o espaço da representação da realidade do sujeito,

colocando-o frente a frente com o seu duplo refletido nas telas. Sendo

também, um suporte capaz de antecipar por meio do caráter prefigurativo as

conseqüências sociais, políticas e psicológicas das sociedades

representadas na tela, e por isso mesmo o instrumento ideal para as

análises que ora iremos desenvolver.

O segundo capítulo utilizando o suporte fílmico escolhido para este

estudo, Blade Runner – o caçador de Andróides (1982), do diretor inglês

12

Ridley Scott, tratará de analisar os efeitos do crescimento desenfreado da

sociedade emergente das revoluções industriais, por meio da decupagem

das principais cenas do filme em questão.

O terceiro capítulo será dedicado à análise do sujeito moderno, a crise

do sujeito e a passagem do sujeito moderno para a condição de sujeito pós-

moderno evidenciando uma outra característica do sujeito: a de sujeito

maquínico, bem como outras questões, não menos importantes, como por

exemplo, a criação pelo homem de um duplo à sua imagem e semelhança

por meio da biotecnologia e os contrastes entre a alta tecnologia e a

decadência das cidades.

Esta dissertação é de caráter teórico que se fundamenta no estudo de

Erick Hobsbawn sobre as Revoluções Industriais, nos pressupostos

filosóficos do sujeito, tratado por autores como Friedrich Nietzsche, Ortega y

Gasset, Martin Heidegger e Walter Benjamin e na concepção de montagem

fílmica e definições de tempo e espaço cinematográficos de Giles Deleuze .

As categorias de análise no primeiro capítulo de fundamentação serão

extraídas das três Revoluções ocorridas consecutivamente na cultura e que

nos serviram como antecedentes para pensar o sujeito humano – maquínico

como objeto desta dissertação.

Os dois últimos capítulos serão extraídos da decupagem das

principais cenas do filme Blade Runner – o caçador de andróides bem como

dos conceitos na própria análise do filme para demonstração das categorias

idealizadas dos sujeitos e das cidades na criação cinematográfica de Ridley

Scott.

13

Neste contexto nossas referências tradicionais se vêem fragilizadas e

talvez só possamos compreender o que se passa recorrendo às lições de

filmes como Blade Runner - o caçador de Andróides.

14

Capítulo I

Cultura de massa – o início das grandes revoluções.

Este capítulo tratará das grandes transformações sociais ocorridas

com o advento da Segunda Revolução Industrial, que se concretizou através

da reprodutibilidade técnica das artes, ofícios e produtos, destinados à

grande massa (BENJAMIN, 1992: 77). Tratará também de estudar este

período que glorificou o poder do ser humano na transformação e no

progresso da sociedade, surgindo nesta época um sujeito autônomo e

singular assombrado pelo desenvolvimento de um saber tecnocientífico e

pela invasão das invenções, o que viria a ser uma transformação do sujeito –

massa em sujeito – maquínico.

Conforme o historiador Eric Hobsbawm (2003:49), a Revolução

Industrial pode ser dividida em duas fases subseqüentes. A primeira

Revolução Industrial, que ocorreu na Inglaterra de 1760 até meados do

século XIX, na qual a energia a vapor foi a principal fonte de transformação

da sociedade. E a segunda Revolução Industrial que se prolongou até o final

do século XIX, cujas transformações deram conta da descoberta e do uso,

em todos os setores da sociedade, da energia elétrica. O uso da energia

elétrica avança pelo século XX em aplicações revolucionárias como, por

exemplo, o uso público, através da iluminação dos espaços urbanos, e da

transformação radical da comunicação, com o advento do telégrafo, cinema

e do rádio. Devido às grandes descobertas, a Segunda Revolução Industrial

também é conhecida como Revolução – tecnológica 1.

1 Em sentido restrito, a expressão "revolução industrial" serve para designar o conjunto de transformações técnicas e econômicas que se caracterizam pela substituição da energia física pela energia mecânica, da ferramenta pela máquina e da manufatura pela fábrica, no processo de produção capitalista (HOBSBAWN, 2003:57).

15

Atropelados pelas mudanças sociais e econômicas, o sujeito do

século XIX teve que enfrentar alterações abruptas impostas pelas

revoluções do seu tempo. Estas revoluções estão imbricadas com o avanço

da economia, do capitalismo e do progresso social. Este progresso social

delineou uma nova forma de sociedade, de ocupação dos espaços urbanos,

de convivência com os outros sujeitos no dia–a–dia, bem como da

adaptação destes aos inventos que proliferavam com uma rapidez

espetacular. Esses progressos são reconhecidos, nas ciências sociais, como

os atributos básicos da construção de um sujeito estruturado em torno de

uma sociedade de consumo, da reprodução em série, do pensamento

padronizado, dos simulacros, do hedonismo, da efemeridade e das

tecnologias2.

Partindo das revoluções industriais, que colocaram o sujeito em

contato com uma cultura dita mundializada, a linguagem cinematográfica foi

considerada a primeira forma de arte industrializada. Neste sentido, os

Estados Unidos, através de Hollywood, organizaram a arte cinematográfica

em uma lógica industrial baseada na otimização de todas as fases de

fabricação de um produto segundo estratégias comerciais, direcionando o

cinema para um mercado vasto de público. Os teóricos da Escola de

Frankfurt criticaram fortemente a influência de Hollywood na formatação de

uma lógica econômica e industrial do cinema, transformando esta nova arte

em mero produto industrializado.

Além desse aspecto, o cinema também é reconhecido como uma

linguagem universal e está inserido na vida cotidiana do sujeito objeto de

2 Sociedade de consumo, reprodução em série, pensamento padronizado, simulacros, hedonismo, efemeridade e tecnologias – conceitos estes que serão explorados no decorrer do projeto em questão e no desfecho dessa dissertação.

16

estudo desta dissertação, assim o cinema será o nosso suporte para o

estudo dessas transformações sociais, dos seus efeitos e das crises

vivenciadas pelo sujeito moderno.

Estudaremos neste capítulo alguns aspectos da ficção tanto literária

quanto do cinema. Os contos e as lendas são os pontos de partida: o mito

grego de Prometeu, a lenda judaica do Golem. Fausto de Goethe (1808) e

Frankenstein de Mary Shelley (1818) abrem o caminho para que possamos

entender algumas destas questões, os personagens e as situações de

estranhamento. No período moderno, Frankenstein (1818) de Mary Shelley

é considerado como o primeiro romance de ficção – científica. Os filmes do

Expressionismo alemão inauguram uma forma de pensar e mesmo de

antecipar as conseqüências sociais, políticas e psicológicas provocadas por

este novo desenvolvimento técnico-científico, pois colocam o sujeito frente

ao medo da morte, da sua maquinização, das sombras, de encontrar o seu

duplo e do desconhecido.

Estes períodos das revoluções colocam o sujeito diante de dilemas

como a ruptura do passado próximo, a quebra de tradições, as grandes

descobertas científicas, a industrialização da produção e de produtos

culturais e o surgimento dos sistemas de comunicação de massa. Essa

quebra de tradições e a industrialização da cultura põem em curso uma

outra revolução, uma Revolução Cultural, que conforme Walter Benjamin

coloca a obra de arte vista sob “o signo da união do autêntico com o

efêmero” sendo regida pela economia de mercado e pelas técnicas de

reprodução.

17

Internet, ciberespaço e realidade virtual são algumas formas de

integração homem – máquina. Para compreendermos o que se passa,

recorremos à ficção – científica para demonstrar sua proximidade com as

questões da cultura contemporânea: as múltiplas desconstruções, as

diferenças entre natural e artificial, humano e não-humano, vivo e não vivo,

real e virtual; as mutações e as reconstruções dos corpos humanos.

Neste cenário aprofundaremos o início do que é considerado como a

era das grandes revoluções.

18

1. Do ser humano – massa ao sujeito maquínico das grandes

revoluções.

“... Massa é todo aquele que não atribui a si mesmo um valor –

bom ou mau – por razões especiais, mas que se sente “como

todo mundo” e, certamente não se angustia com isso, sente-se

bem por ser idêntico aos demais...” (ORTEGA Y GASSET, 2000:

45).

Ortega y Gasset, ao cunhar o conceito do ser humano – massa, fez

uma alusão direta ao valor que tem o ser de reconhecer-se a si na sua

capacidade de sentir e sentir-se em sintonia com o mundo, no que se refere

à apreensão do conhecimento e das experiências que o tornam semelhante

àqueles com quem partilha a vida. Neste sentido justifica – se a premissa do

autor que diz: “eu sou eu e a minha circunstância”, isto é, o ser humano é

um sujeito individual e ao mesmo tempo um ser em sociedade.

O contexto social a partir do qual Ortega y Gasset formula o conceito

de massa está relacionado com os efeitos mais imediatos da Revolução

Industrial. A Revolução Industrial foi uma das grandes transformações pela

qual passou a sociedade no setor da produção, em decorrência dos avanços

das técnicas de cultivo e da mecanização das fábricas. Segundo o

historiador Eric Hobsbawm, em seu livro A Era das Revoluções (2003), a

invenção e o uso da máquina permitiram o aumento da produtividade, a

diminuição dos preços e o crescimento do consumo e dos lucros.

Ainda segundo Hobsbawm (idem: 178), as Revoluções Industriais

compreendem transformações econômicas, políticas e sociais surgidas na

Grã – Bretanha a partir de meados do século XVIII, estendendo – se depois

19

para outros países europeus. Tais Revoluções caracterizaram-se pelas

passagens da oficina artesanal–manufatura para a fábrica – máquinas e da

sociedade rural para a urbana – burguesia e proletariado –, com o

aparecimento da organização fabril em detrimento das corporações de

ofício.

Essa caracterização do homem–massa está diretamente ligada aos

resultados dos avanços tecnocientíficos que começaram a dominar o mundo

e com os quais os sujeitos passaram a conviver. Um mundo dominado pelo

trabalho de homens e máquinas, lugar possível para a realização de todos

os desejos materiais através do domínio da técnica. Esse mundo

tecnicamente perfeito também é aludido em Blade Runner – o caçador de

andróides (1982); aliada à alta tecnologia na concepção de simulacros

humanos por meio da engenharia genética dos “replicantes”, que são

considerados a expressão máxima dessa sociedade industrializada3

(HARVEY, 2004:278).

Nos séculos XVIII e XIX a tecnologia vai adquirindo seu caráter

moderno de ciência aplicada e as descobertas e invenções encontram

rapidamente aplicação prática na indústria ou no desenvolvimento da

ciência. Estas descobertas e transformações também trouxeram o

desenvolvimento dos transportes e dos meios de comunicação dessa época.

Dedicados ao fazer artesanal, o ser humano tinha muito pouco ou quase

nada para que pudesse almejar novos postos na escala social; relegados à

sua própria sorte, não vislumbravam outros horizontes senão o da

continuidade.

3 Replicantes – reproduções autênticas, indistinguíveis em quase todos os aspectos dos seres humanos. Eles possuem força, inteligência e de poderes que estão no limite, ou até maiores que os seres humanos comuns. Os replicantes são frutos do trabalho de engenharia genética e foram fabricados com o intuito de ajudar na colonização interplanetária (idem, 277).

20

Retomando o pensamento de Ortega y Gasset, (2002:86) que

caracteriza o ser humano como carregado pelas limitações impostas pelas

condições em que nasceu; o sujeito que emerge das Revoluções vê diante

de si este cenário sofrendo profundas transformações, dando início a um

novo limiar à vida em sociedade. Nesta presente dissertação estamos nos

referindo a três categorias de revoluções: a Revolução Tecno – Industrial,

cujo princípio foi a produção em série; a Revolução Tecno – Científica, que é

a síntese da técnica com a ciência e que representou as descobertas e os

avanços tecnológicos e, por último, a Revolução Estético – Tecnológica, que

apresenta de maneira bastante eloqüente o poder que a mídia tem de

reivindicar a virtualização através de seus produtos culturais. Coloca – se

aqui também o fato de que desde os eventos das Revoluções Industriais e

durante todo o século XX, o conceito de sujeito está atrelado à ciência e às

técnicas, como um referente desta condição “do fazer” humano.

A imbricação da técnica e da ciência produziu o avanço tecnológico

que substituiu o sujeito nas ações básicas do modo de fazer e de produzir,

criando máquinas que, ao mesmo tempo em que aliviam e melhoram suas

condições de vida, não passam de um simulacro desse semblante humano

projetado em estruturas de aço e nas próteses de silicone.

O desenvolvimento tecnocientífico das revoluções industriais

reestruturou o sujeito na esfera social. Neste sentido, as ciências humanas e

sociais abraçaram uma nova concepção desse ser humano emergente

desdobrado ou projetado na máquina.

No entanto, aqui surge um problema fundamental que a filosofia,

matriz de todas as ciências, logo esclarece: o humano e o maquínico são

duas naturezas distintas do ser que não se podem misturar. Porém, o

21

desenvolvimento tecnológico criou artefatos e maquinarias suficientemente

capaz de operar em um sistema de produção artesanal, antes de domínio do

humano, para um sistema fabril que se opera através das máquinas,

máquinas como as de última geração que são providas de organização, que

interagem com o ambiente e executam tarefas cognitivas, habilidades até

então reservadas ao humano.

Por sua vez, os avanços científicos promoveram interações

moleculares e programas genéticos, produzindo uma maquinação do

humano na esfera bioquímica. Além dessa maquinização do humano e da

humanização das máquinas, a inteligência artificial, as biotecnologias e a

engenharia genética produzem próteses, implantes, tecnologias que tornam

ambíguas as diferenças entre natural e artificial, pensante e não-pensante,

orgânico e maquínico (OLIVEIRA, 2004).

Frente aos novos caminhos impostos pela tecnologia, o sujeito do

século XXI encontra–se desapropriado de suas funções, desterritorializado,

sente – se perdido em meio às transformações que ele mesmo idealizou: a

substituição do humano pelas máquinas. Esta inversão de papéis, em que a

máquina ocupa o lugar do humano, e quando esse mesmo ser humano pode

reconstituir-se através da manipulação científica, acaba consolidando o que

vem a ser chamado de crise de identidade, pois o sujeito vê sua essência

decodificada através da manipulação genética (SANTAELLA, 2004:31).

Durante o século XIX e o século XX, esse sujeito passa a ser

comparado com outros modelos de sujeito humano que ele próprio ajudou a

construir. O sujeito é confrontado com a capacidade que ele mesmo tem de

reinventar – se e de criar novos elementos constitutivos do seu corpo,

colocando em xeque a condição do humano. Esse sujeito que pensava ser o

22

centro do universo no século XIX chega ao século XXI fragmentado, em

desconstrução, em crise, descortina – se no outro, no estar no mundo com

outros, outros que podem não ser tão humanos quanto pensam que são

(idem: 16). É através das técnicas e dos artefatos tecnológicos que este

sujeito se vê transformado, modificado, descorporificado, hibridizado.

Vê diluídas as fronteiras que davam suporte ao que podia ser

considerado humano enquanto corpo, desaparecendo o limiar entre orgânico

– inorgânico, artificial – natural, real – simulacro (ibidem: 29). Fala – se da

morte do sujeito, pois este que emerge das revoluções é singular, é um

sujeito à procura de seu eu, da sua representação como corpo e rosto que é.

O sujeito que surge no século XIX não vê impedimentos para viver,

tem agora ao seu dispor todas as facilidades para resolver os seus

problemas: materiais ou espirituais, ele se percebe livre das amarras morais

e civis, aprende que todos os homens são legalmente iguais (ORTEGA y

GASSET; 2002: 87). Libertos das condições pouco favoráveis o sujeito vê –

se diante de uma nova circunstância de vida, de quebra de tradições e

conceitos, percebe que ele próprio pode criar seu destino, pode criar o

cenário para sua existência, pode através das técnicas e artefatos se

refazer4. O sujeito que começa a ser lapidado no século XIX vem sendo

construído durante toda a história da humanidade, mas este que foi

denominado de moderno é diferente dos seus antecessores. Por quê?

4 “A vida humana é sempre a de cada um, é a vida individual ou pessoal e consiste em que o EU que cada qual é se encontre tendo de existir em uma circunstância – o que costumamos chamar mundo - sem segurança de existir no instante imediato, tendo sempre de estar fazendo algo - material ou mentalmente, - para assegurar esta existência. O conjunto desses afazeres, ações ou comportamentos é a nossa vida. Só é, pois humano no sentido estrito e primário, o que faço por mim mesmo e em vista dos meus próprios fins ou, o que é a mesma coisa, o fato humano é um fato sempre pessoal” (ORTEGA Y GASSET, 1973: 45).

23

Este sujeito se descobre capaz de criar, de fabricar, de produzir, de

traçar o seu próprio destino, descobre – se como o centro do mundo. Ele é o

centro; não mais a natureza, não mais Deus, o sujeito é o senhor do seu

próprio caminho. Seu mundo passa a ser construído pela sua capacidade de

inventar e tornar real aquilo que imagina. Seu mundo é o do trabalho, da

produção de coisas, do artificial (ARENDT, 2004: 15). Um mundo que pode

ser construído tecnicamente perfeito, sem limites nem barreiras para

realização de todos os seus desejos. Esse sujeito aprende que é necessário

inovar para sobreviver, construir para desconstruir; este é um dos grandes

paradigmas do sujeito do século XIX, é a incerteza, a agitação que o move

para frente. O sujeito dos séculos XIX e XX aprende que, para estar de

acordo com o seu tempo é preciso querer mudar, mais do que isso, é

preciso aspirar à mudança em todos os aspectos de sua vida, tanto social

quanto pessoal (BERMAN, 2003:109). É o sujeito construído dentro de uma

sociedade de consumo, sociedade que se forma para se renovar, destruindo

o que está pronto: tudo é feito para ser refeito, das roupas ao pensamento,

tudo tem que ser despedaçado, fragmentado para ser reestruturado

velozmente. Um sujeito criado em meio às máquinas com semblantes cada

vez mais desumanizados, um sujeito sem raízes, autômato a partir das suas

próprias ações, um sujeito desterritorializado, indiferente, perdido num

mundo onde tudo pode ser ficção.

Esse sujeito é fruto dessa era chamada de tempos modernos.

Tempos modernos que trazem consigo uma aura de poder e força

inigualáveis a qualquer outra época que já existiu.

...Conforme escreveu Hegel no prefácio à Fenomenologia do

espírito, “que nosso tempo é um tempo de nascimento e de

passagem para um novo período. O espírito rompeu com seu

mundo de existência e representação e está a ponto de submergi-

lo no passado e [se dedica] á tarefa de sua transformação... A

frivolidade e o tédio que se propagam pelo que existe e o

pressentimento indeterminado do desconhecido são os indícios

de algo diverso que se aproxima. Esse desmoronamento

gradual... é interrompido pela aurora, que revela num clarão a

imagem do novo mundo...” (HABERMAS, 2002: 11).

Neste contexto surgem as palavras, cujos significados até hoje são

considerados pertinentes para definir tempos modernos: revolução,

progresso, emancipação, desenvolvimento, crise, etc. (idem: 12).

Encontramos os significados e os efeitos da Revolução Industrial

retratados no filme Tempos Modernos (1936) de Charles Chaplin, no qual o

ser humano vive subjugado e à mercê das máquinas; o sujeito não convive

apenas com a revolução tecnológica, mas também, com uma revolução de

hábitos, costumes e valores humanos5. Tempos Modernos (1936) levanta

ainda uma questão importante do século XX: o conflito homem versus

máquina, no qual o progresso é direcionado para reduzir o ser humano à

condição de uma peça a mais na linha de produção industrial (VIVEIROS,

2003:38).

Fig. 1 Tempos Modernos (1936).

24

5 Tempos Modernos (título original – Modern Times); filme lançado em 1936, em preto e branco, com duração de 87 minutos. Charles Chaplin dirigiu e protagonizou Tempos Modernos, cujo enredo foi ambientado nos anos 30, era da Depressão Americana após a queda da bolsa em 1929. O filme procura retratar às conseqüências nefastas da industrialização, da substituição do homem pelas máquinas. Usando a linha de montagem proposta por Henry Ford, Chaplin mostra que as máquinas são engrenagens que escravizam, atormentam e enlouquecem os operários "em nome" do progresso tecnológico e a serviço de lideranças gananciosas (VIVEIROS, 2003: 39).

O sujeito é confrontado com a sua própria criatividade e os abismos

que essa mesma criatividade foi capaz de inventar. Ao mesmo tempo

maravilhado com o progresso, o sujeito também é assombrado pelo futuro

que desconhece, pela expansão do seu poder através da racionalidade e

das descobertas científicas. Homens e mulheres – sujeitos humanos em

potencial que experimentam as possibilidades de descobertas científicas,

compartilhando tempo e espaço, seus e dos outros, vivenciando as

alterações sociais dos novos tempos e o turbilhão de transformações que se

sucedem uma após outra, vivem o que se denominou modernidade.

Encontramos, às portas do século XX, um fenômeno que transforma

todo o contexto que permeou a vida em sociedade do homem comum. Este

fenômeno estreitamente ligado à vida nas grandes cidades que se

originaram a partir da Revolução Industrial é denominado de multidões, ou

melhor, massa (ORTEGA y GASSET, 2002: 41).

Esta massa é dotada de uma influência social jamais vista, tem um

caráter peculiar, o de fazer prevalecer sua vontade. Essa massa quer ser

igual, quer ser uniforme, quer ter acesso a todos os bens, sejam materiais,

espirituais ou culturais. Esse fluxo de pessoas, que preenche todos os

espaços urbanos, teatros, cafés, hotéis e ruas, deseja a “posse dos locais e

utensílios criados pela civilização”, deseja ver – se reproduzida em imagens

e sons, quer alcançar tudo e todo ao mesmo tempo, quer nivelar – se por

igual, nos quatro cantos do mundo, deseja recriar o próprio corpo. Corpo que

é a representação espacial do seu eu no mundo (idem: 42). É a

padronização do sujeito humano, da industrialização da cultura desse

mesmo sujeito.

25

26

A palavra cultura, dentro de suas inúmeras definições, pode ser

pensada enquanto herança do ser humano, passada de geração a geração

em um grupo específico; costuma – se também equivaler cultura à tradição6.

Em 1871, Edward Tylor definiu “cultura” como “o conjunto de crenças, artes,

leis, moral, costumes, e qualquer outra capacidade ou hábito adquirido pelo

homem enquanto membro da sociedade” (TYLOR, 1871 apud WARNIER,

2000: 11 – 12). Essa noção de cultura permeia a identidade do indivíduo

enquanto ser único no mundo. Identidade aqui definida como o conjunto dos

repertórios de ação, de língua e cultura que permitem a uma pessoa

reconhecer sua vinculação a certo grupo social e identificar-se com ele.

Cultura e identificação têm um papel importante ao propor repertórios de

ação e representação, prontos para serem usados, permitindo que os

sujeitos ajam de acordo com as normas do grupo. Ao adotar estes

repertórios, eles afirmam sua vinculação, ao mesmo tempo em que agem

por conta própria, inclusive nos conflitos de poder e de interesse que se

opõe aos outros sujeitos (Idem: 18).

Pode – se afirmar ainda que a cultura é complexa, pois se estabelece

através de um conjunto de normas, de hábitos, de ação em conjunto com os

outros, e que é parte de um todo – o indivíduo enquanto membro de uma

sociedade. A cultura se define também pelo conjunto de práticas religiosas e

regras definidas sobre organização de família, do parentesco e dos grupos

políticos. Além desses atributos, a cultura é considerada única, com posição

geográfica definida ou localizada, e é um fator de identificação dos grupos e

de indivíduos e de diferenciação entre eles. As transformações do contexto

6 Tradição “é o que persiste de um passado no presente em que ela é transmitida. Presente em que ela continua agindo e sendo aceita pelos que a recebem e que, por sua vez, continuarão a transmiti-la ao longo das gerações” (PUILLON,1991 apud WARNIER, 2000:12).

27

histórico reformulam as culturas e a sua transmissão através dos tempos

(SANTAELLA, 2000: 23).

A noção de cultura está ligada ao sentido da unicidade, da

identificação dos grupos, e da diferenciação entre eles. Estas diferentes

culturas existentes ao redor do mundo sempre estiveram em contato entre

si, e em condições de troca umas com as outras, mas eram tidas pelos seus

membros como sendo um ponto central a ser seguido a partir dos grupos de

origem, garantindo assim a sua vinculação por vontade própria ao grupo a

que pertenceu desde que nasceu. Assim, a cultura pode ser padronizada,

pois os comportamentos tendem a serem repetidos, criando uma estrutura

reconhecível (SANTAELLA, 2003: 44). Estas ações garantiram que cada

cultura distinta fosse reconhecida como tal, ou seja, usos e costumes eram

associados a determinado povo, em determinado lugar do mundo, mesmo

em situações de troca com outras culturas. Porém, com o advento das

revoluções industriais, este contexto histórico começou a mudar.

Os avanços técnicos permitiram aos países envolvidos nestas

revoluções desenvolver produtos, ditos “culturais”, além de meios capazes

de difundir de forma homogênea estes produtos mundo afora. Segundo Jean

Pierre Warnier, em seu livro A mundialização da cultura (2000: 27).

“...foram consideradas como indústrias culturais aquelas cuja

tecnologia permitia a reprodução em série de bens que

evidentemente fazem parte do que é chamada cultura. As

imagens, a música e a palavra fazem parte das culturas

tradicionais. Conseqüentemente, o cinema, a produção de

suportes de música gravada (discos e fitas) e a edição de livros e

de revistas foram considerados como indústrias culturais...”.

28

De modo rápido, os países envolvidos com as Revoluções Industriais

puderam difundir sua própria cultura, além da cultura de outros para o resto

do mundo. Assim surgiu o que viria depois a ser chamado de indústria

cultural pela Escola de Frankfurt7. Denomina – se Escola de Frankfurt o

grupo de filósofos e pesquisadores alemães que, a partir da década de 20,

desenvolveu um pensamento crítico ligado principalmente à cultura de

massa e aos produtos culturais. Dedicaram – se também às reflexões e

críticas sobre a razão, a ciência e o avanço do capitalismo. Os pensadores

da Escola de Frankfurt consideraram a racionalidade tecnológica do mundo

moderno uma nova forma de dominação. A idéia de deixar a ciência mais

acessível à sociedade e, assim favorecer a reflexão coletiva marca o

trabalho desses filósofos. Suas idéias influenciaram o movimento estudantil

alemão norte – americano no final dos anos 60. Entre os filósofos desta

Escola destacamos: Walter Benjamin, que discutiu a arte e a cultura do

século XX em A Obra de Arte na Época de Sua Reprodutibilidade

Técnica (1936), reflexões sobre a perda da aura. Por aura entende-se o

conjunto dos traços de autenticidade, autoridade e unicidade das obras de

arte, aquilo que faz do objeto de arte algo único e irreproduzível. Essa perda

da aura abordada por Benjamin vem acompanhada de alterações impostas

pelo surgimento da cultura de massa e pela reprodução técnica, que em

certo sentido, altera os pressupostos sociais do que vem a ser considerado

como obra de arte (CARCHIA, 2003:45). Até o século XIX, a obra de arte era

vista como inacessível e irreproduzível, mas diante da emergência da

7 Escola de Frankfurt – escola que reuniu filósofos influenciados pelas idéias de Karl Marx e Max Weber (1864-1920), e que se contrapõe ao Iluminismo e ao Funcionalismo de Émile Durkheim (1858-1917), concebe a sociedade como um organismo com funções específicas, desconsiderando o processo histórico. Entre os pensadores vinculados ao grupo de Frankfurt destacam-se Walter Benjamin (1892 – 1940), Theodor de Adorno (1903 – 1969) e Max Hokheimer (1895- 1973). Junta-se a eles, mais tarde, Jürgen Habermas (1929 -), responsável pela difusão da Teoria Crítica, conjunto de textos dos principais filósofos frankfurtianos (WIGGERSHAUS, 2002: 56).

29

massa, o surgimento da fotografia e, posteriormente, do cinema tornam a

reprodução do original indistinguível da cópia, anulando a distância entre a

obra de arte e as massas. Sem a aura, a recepção da obra de arte deixa de

ser contemplativa e ótica e passa a ser mais tátil, dirigida a olhares

ocasionais, fragmentados. O cinema, dentro deste contexto, encarna a

aproximação das artes à massa. Surge um novo modo de usufruir a obra de

arte, um modo de usufruir distraído, anestésico, sem reflexão, sem

referencial. Assumindo, deste modo, o lugar das artes tradicionais,

encontramos a edição de livros impressos, o cinema, a televisão, o

espetáculo, e a mídia que cria um universo paralelo.

Theodor Adorno, outro filósofo da Escola de Frankfurt, dissemina o

conceito de indústria cultural que diz respeito aos bens produtos – culturais,

difundidos pelos meios de comunicação de massa, que impõem formas de

comportamento e consumo. Segundo Adorno, a indústria cultural caracteriza

– se pela exploração comercial e pela vulgarização da cultura, produzindo o

entretenimento e não a reflexão (WIGGERSHAUS, 2002: 103). Além dessas

contribuições, os filósofos da Escola de Frankfurt previram, de modo

profético e prefigurativo, os efeitos da Revolução Industrial sobre a cultura

de modo geral, a desterritorialização e a crise do sujeito do século XXI. Os

pensadores da Escola de Frankfurt construíram uma reflexão profunda sobre

a formação da cultura em torno de uma indústria de entretenimento como

efeito das Revoluções Industriais do século XIX (idem: 105).

A partir da fabricação em série dos produtos ditos culturais surge uma

terceira Revolução, denominada Estético – tecnológica,diretamente

imbricada com as transformações sociais e econômicas entre o século XIX

30

e XXI Trata-se de uma nova forma de produção das artes, que foi

denominada por Walter Benjamin como a era da reprodutibilidade técnica.

Essa questão se coloca diante dos novos meios de produção que surgiram e

que impulsionaram a fabricação em série de produtos culturais e o acesso a

estes bens a uma grande massa de consumidores. Nesta questão, Benjamin

deixa claro que não se refere à imitação da arte como forma de aprendizado,

mas à reprodução com fins de obtenção de lucros. Esta reprodutibilidade

técnica caracteriza a perda da autenticidade na criação artística. Este

processo de reprodução técnica foi se formando ao longo da história, sendo

concretizado como forma de arte em série entre o século XIX e XX. A pintura

foi reproduzida pelas artes gráficas, pela fotografia e por fim, ganhou

movimento no cinema e na televisão. O século XX foi o palco dos

espetáculos da era da reprodutibilidade técnica, presenciando a evolução do

cinema, a invenção do rádio, da televisão, e por último, a rede de

comunicação virtual – Internet. Estes meios denominados midiáticos foram

além de qualquer expectativa estabelecida, surgindo um fenômeno cunhado

de cultura de massas. Segundo Santaella, esse fenômeno é derivado “da

explosão dos meios de reprodução técnica – industriais: jornal, foto, cinema -

seguido da onipresença nos meios eletrônicos de difusão – rádio e televisão”

(2003: 52).

Dentro deste contexto, a relação entre o homem e a técnica é

marcada por mutações ocorridas ao longo dos tempos, visíveis em uma

materialidade associada à idéia de progresso, mas também na própria

definição do papel da técnica. Toda a experiência humana passa,

necessariamente, pelo campo da técnica. As suas manifestações são

irreversíveis e fundadoras de ambigüidades. Embora, na cultura ocidental, a

31

máquina seja naturalmente considerada como símbolo da atividade técnica,

a verdade é que se trata de um campo complexo que abarca outro tipo de

experiências, para além do fabrico de artefatos, remontando aos primórdios

da existência humana. A compreensão da sua natureza é indissociável do

próprio percurso da razão e das suas manifestações materiais. Nesta

dissertação a questão da técnica estabelece os caminhos que levam à

concepção do sujeito contemporâneo e à necessidade de revelar o segredo

da criação de um sujeito por meio do seu simulacro corpóreo e da

representação da sua vida cotidiana.

Assim, o tema das criaturas construídas à imagem do homem passa a

ser abordado por um conjunto de linguagens, que recorrem tanto à literatura,

à religião ou à arte, bem como à linguagem da ciência e da técnica. Cada

época introduz a sua solução para a construção dessas criaturas. Na

modernidade será, assim, sucessivamente assumida pela magia, pela

mecânica, pela automação, pela informática, pela biologia (BRETON, 1995:

15 a 17).

Apesar do caráter de modernidade de que se reveste o tema das

criaturas construídas à imagem do homem, este tema constitui uma

realidade antiga, sucessivamente abordada quer pela mitologia, quer pela

religião ou pela magia, quer pela literatura, quer pelo cinema ou ainda pelo

universo da ciência e da técnica. Existe alguma ligação entre todas as

criaturas construídas à imagem do homem ao longo dos séculos? (idem: 9)

Nota-se que a convergência desta ligação está centrada na consciência do

homem da sua própria existência, consciência esta subjetiva, que o

confronta com o fato indiscutível de que é um ser finito, e que seu domínio

ou poder sobre a vida e sobre o confronto inevitável com a morte é nulo. Ao

longo da vida, o sujeito se depara com sentimentos, emoções, conflitos de

toda espécie, o desconhecido que se impõe a todo o momento, experiências

humanas com as quais o sujeito aprende a conviver dia após dia.

A necessidade de encontrar uma explicação e de dar sentido aos

mistérios da vida sempre fez parte da natureza humana desde os tempos

mais remotos; o sujeito, além de observar a natureza, observava a si próprio,

a morte, a dor, os sonhos, o medo, a angústia, o desejo de criar, de capturar

a si mesmo e de se recriar através de um dispositivo artificial maquínico,

moldado, segundo a época. Criando, assim, um ser à própria imagem, o

sujeito pressupõe ter desvendado o segredo da vida, da beleza, da

imortalidade, da inteligência (ibidem: 11). O homem, ao longo da história,

projeta o seu desejo de ser Deus através da invenção de criaturas à sua

imagem e semelhança, na esperança de reproduzir os segredos da criação

divina.

As lendas sobre a iniciativa do ser humano de fabricar um outro ser à

sua imagem e semelhança existem em praticamente todas as culturas. São

narrativas que transitam ao longo dos tempos contando que algum titã, um

mago ou xamã, desafiando os céus e as forças divinas, deu vida a uma

criatura qualquer. Relatos que herdamos da Grécia desde os tempos em que

surgiu o mito de Prometeu e que nos chegam até hoje, envoltas com outros

nomes e novas fórmulas, mas que na verdade tratam da mesma coisa: o

extraordinário desafio do homem de criar um ser à sua imagem e

semelhança.

Para explicar a origem do saber, os gregos criaram o mito de

Prometeu. Este mito relata uma querela entre deuses, e mostra o início do

32

mundo. Neste mundo, a vida humana nada significava para os deuses.

Prometeu, ao tomar para si a tarefa da criação, tornou a humanidade

superior, foi ao Céu e acendeu no Sol uma tocha que trouxe para a terra

entregando esta fagulha de luz ao homem 8 (HAMILTON, 1997: ).

Prometeu, ao roubar uma fagulha de fogo e entrega – la ao homem,

promove o deslocamento deste, de seu estado de acomodação para o do

aprendizado, construindo o mito da técnica, no qual através do fogo, o

homem aprende a construir casas, a iluminar as trevas noturnas, a prolongar

a vida, a tratar de doenças, a inventar variados instrumentos, aprende a lidar

com números, aprende à escrita e a interpretar os sonhos. A posse do

fogo representa o despertar do homem para sua realidade material, a saída

das trevas, o dom da consciência transcendental da condição humana.

Desse modo, o mito de Prometeu traça o caminho do homem em busca do

saber inerente à condição do “fazer humano”.

Fig. 2 Prometeu leva o fogo á humanidade

Criaturas artificiais, seres de ficção, robôs e autômatos sempre

estiveram presentes na cultura Ocidental, desde suas raízes até os dias de

33

8 O material para a narrativa deste mito foi extraído de dois poetas, o grego Ésquilo e o romano Ovídio.

hoje. Há um desejo de se capturar e compreender o humano imitando-o,

representando – o e fabricando cópias através de dispositivos artificiais.

Pode-se dizer que boa parte da mitologia antiga: grega, romana ou oriental,

enfatiza as virtudes e os perigos em que incorre o ser humano, ao tentar

ultrapassar os limites fixados pelas leis naturais que regem o universo.

Existem, em quase todas as culturas, uma infinidade de narrativas que

registram essas tentativas fracassadas ante o destino inexorável da

humanidade.

Fig. 3

Lilith – a segunda Eva

Em certo sentido, poderíamos dizer que o primeiro destes mitos

encontra-se na própria narrativa sobre a criação do homem, na Bíblia, no

Livro do Gênesis. Afinal, Deus molda o homem a partir de uma mistura de

água e terra, e por essa razão, é chamado “Adão”, nome oriundo de “terra”,

Adamá; e depois lhe insufla o sopro da vida. Lilith também é uma dessas

figuras mitológicas. Segundo escreve Siegmund Hurwitz, em seu livro

Lilith – a primeira Eva (2006), o primeiro capitulo da Bíblia conta a história

de Adão e Eva, porém, segundo o Zohar - comentário rabínico dos textos

sagrados - Eva não teria sido a primeira mulher de Adão. Quando Deus criou

Adão, ele fé – lo macho e fêmea, depois o cortou ao meio, e chamou a esta

nova metade Lilith e deu – a em casamento a Adão. Mas Lilith recusou, não

34

queria ser oferecida a ele, tornar – se desigual, inferior, e fugiu para ir ter

com o Diabo, por isso Lilith é identificada com os atributos dos seres

noctívagos e, por extensão, com as trevas, a escuridão sendo sua natureza

maligna, demoníaca, de espírito violento e tempestuoso.

A partir dessas narrativas bíblicas surge à lenda do Golem, uma

criatura artificial da tradição mística judaica, baseada no plano divino, da

ressurreição, e da salvação. Isaac Bashevis Singer no livro O Golem (1991)

nos fala desse singular personagem que surgiu no contexto da teodicéia

judaica e que legou sua contribuição para o mito da criação de um ser

humano artificial.

Residia em Praga, no século XVI, um rabino chamado Judá Loew ben

Bezalel, que dispunha do poder de curar os enfermos conjurando forças

sobrenaturais. Para ajudá-lo na missão de defender sua comunidade, o

rabino criou um Golem de barro, com um dos nomes de Deus gravados na

testa. Com o poder do Sagrado Nome, o Golem viveria o tempo suficiente

para realizar a missão a que fora destinado – proteger os demais judeus no

gueto de Praga.

35

Fig. 4 O Golem - Como Veio ao Mundo

(1920)

O rabino, orientando – se pelas instruções existentes nos escritos

sagrados, aprendeu que as disposições alfabéticas indicavam que era

preciso, partindo das letras IHVH, faze – las combinar 231 vezes para dar

36

vida a uma criatura, ou o dobro, isto é, 462 vezes, se desejasse fazer com

que ela, depois de posto em pé, voltasse ao pó original. Deu – se o milagre:

do monte de pó uma figura humana começou a ter vida. Era um Golem, algo

amorfo, sem formas ainda, que não disfarçava sua aparência de ter vindo do

barro. Dizem que o rabino, para dar um sopro de vida àquela argamassa de

aspecto humano, escreveu então sobre a testa da criatura a palavra EMET

– Verdade.

Após algum tempo, o rabino resolveu que já era hora de o Golem

voltar ao pó de onde havia saído, pois já havia cumprido a sua missão . O

rabino então se curvou sobre ele e recitou uma pequena oração apagando a

primeira letra do Sagrado Nome Emet da testa do Golem, ficando assim o

termo Met – Morte; beijou a argila onde o Santo Nome estivera gravado, o

Golem deu um último suspiro e deixou de ter vida.

Como outros mitos e lendas, este conto em particular tem sido ligado

aos avanços da inteligência, sendo relacionado à tecnologia e à informática,

e para o nosso contexto serve para ilustrarmos que, no decorrer do tempo,

essa característica de inventar ou criar um ser à nossa imagem e

semelhança permeia toda história humana. Além desse significado mágico e

mecânico, o mito do Golem pode ser encontrado em várias expressões

artísticas da era moderna, do Romantismo ao Expressionismo, da literatura

à ficção cinematográfica.

Bonecos de barro, criaturas nefastas são próprias da criação de um

simulacro humano: nem vivo nem morto, nem máquina inerte nem humano

certo. Ser sem alma ou sem consciência, é um eterno errante que,

37

exatamente pela sua condição, não cessa de aparecer, de se apresentar

ante o olhar “estranho” dos indivíduos. O zumbi, o robô, o sonâmbulo, o

monstro, o replicante são algumas representações do simulacro corpóreo.

Quase três séculos depois do Golem de barro judaico, no ano de

1816, à beira do lago Genebra, na Suíça, os poetas Lord Byron e Percy

Shelley discutiam sobre a natureza da origem da vida e de que forma coisas

inanimadas poderiam voltar a mexer – se. Na mesma sala, escutando – os

atentamente estava Mary Shelley, mulher de Percy, que, algum tempo antes,

interessara – se pelas histórias fantasmagóricas dos tempos góticos da

Alemanha, entre elas, possivelmente, a lenda do Golem.

No início do século XIX, os europeus estavam impressionados pelas

experiências de Luigi Galvani com a "eletricidade animal". Luigi Galvani

havia descoberto, em torno de 1780, que quando se tocava uma

extremidade de um músculo dissecado da perna de uma rã, com um metal e

a outra extremidade com outro metal diferente, colocando – se em contacto

dos dois metais, o músculo se contraía.

A nova fonte de energia estava no nascedouro e logo se imaginou a

possibilidade de aplicar – se uma carga qualquer a um corpo inerte e ver o

que acontecia. Inspirada pelos avanços da época, Mary Shelley começou a

escrever aquela que viria ser considerada a primeira obra de ficção

científica. O romance relata a história de Victor Frankenstein, um estudante

de Ciências Naturais que constrói um monstro em seu laboratório, a partir de

restos de cadáveres, criando um corpo fragmentado e que ganha vida

através de descargas elétricas.

A história de Frankenstein tornou-se um clássico do gênero: o rabino

Judah Loew de Praga foi substituído por um cientista, o doutor Victor

Frankenstein de Ingolstadt. E, claro, as combinações cabalísticas cediam à

vez às experiências de Galvani, executadas pelo jovem doutor. O Golem

renascia atualizado, produto da tecnologia da Revolução Industrial em

marcha. Porém, como o monstro feito de barro do gueto de Praga, a criatura

do Dr. Frankenstein não era agradável de ser vista. Se, tecnicamente o

trabalho do sábio fora perfeito, meticuloso, preciso, a aparência do produto

final era espantosa, terrível, assustando quem quer que pusesse os olhos na

criatura, ante o horror daquela visão de uma figura fragmentada e construída

com retalhos de cadáveres.

Como se vê, comum, as duas histórias aqui mencionadas, a medieval

e a moderna, cabalística ou científica, predomina a crença de que alguém

assim fabricado, além de representar um ato de impiedade, acaba por fugir

ao controle do seu criador, trazendo grandes desgraças para a comunidade.

Fig. 5 Dr. Victor Frankenstein e sua criatura

(1931).

Acredita-se que o romance Frankenstein (1818), de Mary Shelley

tenha sido fundamental no estabelecimento de uma visão negativa da

ciência, mostrando pela primeira vez a imagem do cientista tomado pela

38

paixão e pela loucura, "criando" um monstro que foge ao seu controle e

ameaça a sociedade. Surgia o "cientista louco" e a ciência como um

instrumento perigoso e incontrolável; ciência e tecnologia reconstruindo um

corpo fabricado em laboratório, à imagem e semelhança do homem.

No século XIX, quando o domínio da técnica, as Revoluções

Industriais e as descobertas científicas transformaram radicalmente o modo

de vida do sujeito deste período, à projeção do humano, na literatura passou

a ser representada com uma aura de fascinação e de horror ao mesmo

tempo, criaturas inspiradas pelo desenvolvimento e pelo progresso da

ciência.

Fig. 6 Fausto (1926)

O Fausto de Goethe (1808) é uma dessas criaturas9. O Fausto

proposto por Goethe decorre da necessidade do próprio autor de representar

um novo tempo, tempo das grandes construções e das transformações

39

9 Em 1808 Goethe publicou a primeira parte do livro Fausto. Nesta primeira parte, o demônio, Mefistófeles, obtém permissão nos céus para tentar Fausto, um intelectual desiludido com o mundo. Em seu gabinete, Fausto medita sobre sua existência e o sentido da vida, que não consegue desvendar; e pensa em suicídio. O demônio se apresenta e lhe propõe acompanhá-lo em sua vida terrena, em troca de sua alma, no além. O contrato é selado com o sangue de Fausto, que daí por diante tem uma vida de maravilhosas aventuras. Goethe dramatizou um relato histórico sobre um verdadeiro Fausto, que teria vivido na Alemanha no final do século XVI. Era um mágico, astrólogo

40

sociais do mundo em constante mudança, ampliando – se para todos os

lados e obrigando aos que nele vivem a uma constante adequação às novas

circunstâncias da vida.

“No princípio era a Ação”, assim Fausto (1808) redefine o papel de

Deus e assume o lugar Dele no mundo terreno, um Deus voltado para a

ação, para o “fazer”. Fausto faz um pacto com o diabo – Mefistófeles – um

pacto diferente, pois envolve “o desejo de desenvolvimento”, desejo de

poderes humanos elevados à máxima potência, o poder para imitar Deus,

desejo esse vinculado às transformações do mundo físico, moral e social em

que Fausto vive (BERMAN, 2003: 53). O poder de Fausto está em conseguir

reunir recursos materiais, em dominar a técnica, transformando esse

domínio em novas estruturas da vida social. Sendo uma obra concebida na

Era das Revoluções, Fausto mostra uma sociedade dinâmica,

empreendedora e livre, na qual o sujeito vive a mercê do desenvolvimento.

O contraponto desse sujeito livre para ir ao encontro das mudanças é

encontrado no Frankenstein de Mary Shelley, (1818). Ao contrário de

Fausto, que necessita do mundo para encontrar a sua essência criadora, Dr.

Frankenstein busca a solidão absoluta para poder criar a vida, inspirado

pelos avanços da ciência.

Criaturas nefastas e monstruosas corporificam os medos e as

esperanças da sociedade de cada época, retratando em imagens e mitos a

própria idéia da criação de um ser à imagem e semelhança do homem, bem

como a idéia do progresso da ciência, que povoa o imaginário dos indivíduos

e alquimista que andava pelo país gabando-se de poder predizer o futuro, explorando a credulidade do povo ignorante e supersticioso, e dele se dizia que tinha parte com o demônio.(HAUSER, 1998: 595).

41

ao longo da história. A concepção profética de um sujeito demoníaco, dotado

de poder ou desumanizado pela ciência, adquire relevância quando estes

mesmos elementos, antes imaginados, tornam – se realidade através do

espaço e do tempo ficcionais. Dentro deste contexto, o cinema é capaz de

evidenciar misteriosamente estes determinantes, mostrando o simulacro

daquilo que um dia poderá ser a realidade cotidiana daquele sujeito (MORIN,

2005:13).

Simulacro que surge como paradigma em um mundo manipulado pela

técnica, pela ciência, em uma sociedade que se move por meio de modelos

e na qual tudo pode ser simulado. Simular significa imitar, representar,

reproduzir, mas significa também mentir, enganar ou fingir. Baudrillard

considera a simulação como modelo hipotético, distante da idéia tradicional

de representação, mas relacionada com os meios de comunicação de

massa. Braudrillard classifica os simulacros em três categorias:

1. Simulacros naturais baseados na imagem, na imitação e no

fingimento, harmoniosos, otimistas e que visam à restituição ou

à instituição ideal de uma natureza à imagem de Deus;

2. Simulacros produtivos baseados na energia, na força, na sua

materialização pela máquina e em todo sistema de produção.

Objetivo “prometiano” de uma mundialização e de uma

expansão contínua, de uma libertação de energia indefinida;

3. Simulacros de simulação, baseados na informação, no modelo,

no jogo cibernético (BAUDRILLARD, 1991: 151).

O filósofo francês Jean Baudrillard apresenta o termo simulacro como

sendo uma realidade além da realidade, que, apreendida por todos no

cotidiano, transforma tudo, do mais próximo ao mais distante, em uma noção

de realidade construída ao modo da verossimilhança, ou seja, semelhante à

42

verdade, ou que parece verdadeiro. Segundo Braudrillard, são considerados

simulacros todo tipo de estereótipo, de modelo, cujo significado funciona por

si só, sem a necessidade de um referente físico ou factual.

São signos ou imagens com sentidos próprios, produzindo realidades

autônomas além da realidade de fato. Com o avanço das tecnologias de

comunicação, podemos hoje “viver” situações que, em um plano de verdade

mais palpável, não existem, ou melhor, são medidas de tal modo que o

existente é apenas a versão, o modelo, ou o simulacro. A própria ficção de

nossa época utiliza – se da metalinguagem dos simulacros para construir

mundos imaginários no qual tudo que “existe”, na verdade, “não existe”. A

noção humana da realidade se dá por meio de modelos apreendidos durante

toda uma vida em sociedade e da interação com outros. Simulacros é a

extrapolação destes modelos, assumindo estes o papel da própria realidade

vivida.

A conseqüência desses simulacros nos leva à hiper – realidade, que

engana a consciência por separar qualquer engajamento emocional real,

pois parece que nela mesmo as emoções são de certo modo e em alguma

escala condicionada por elementos hiper – reais, concebidos previamente

com essa intenção, e reproduções de aparência fundamentalmente vazia,

nas quais se tenta implantar um pseudo – preenchimento. Podemos

considerar exemplos de simulação de uma hiper – realidade:

• Uma árvore de Natal de plástico que parece melhor do que uma

árvore de verdade poderia ser;

• Uma revista com fotos de modelos "retocadas" por computador;

• Quaisquer fatos históricos, do presente ou do passado, promovidos

massivamente, como que ressuscitados;

43

• A TV e o cinema em geral, devido à criação de um mundo de fantasia

e dependência que o telespectador estabelece com esses mundos

fantásticos;

Ciência, técnica, tecnologia, padronização e simulação são palavras que

fazem parte da reprodutibilidade técnica que estão arquitetando o sujeito –

maquínico da nossa hodierna sociedade.

Em poucos anos, a humanidade caminhou decisivamente no sentido

do domínio técnico dos artefatos vivos. Este domínio da técnica tem

produzido vários questionamentos, que têm levado à reconsideração da

noção do sujeito. Um sujeito formatado a partir das imagens sugeridas pela

comunicação de massas, pela televisão, pelo cinema, pelo ciberespaço, um

sujeito criado a partir do que se supõem as imagens de um ideal de sujeito

hibridizado pelas máquinas.

Partindo destes pressupostos vindos do simulacro como efeito das

Revoluções Industriais, é possível analisar sob outra ótica, à luz do cinema –

utilizando o filme Blade Runner (1982) - os atuais imaginários da ficção –

científica que cercam as tecnologias dos sujeito – maquínico desta

dissertação.

44

2. Efeitos da Revolução Industrial.

“...Existe um outro tipo de linguagem, uma outra forma de

comunicação: a comunicação através de sentimentos e imagens.

Trata – se do contato que impede as pessoas de se tornarem

incomunicáveis e que põe por terra todas as barreiras. Vontade,

sentimento, emoção – eis o que elimina os obstáculos entre as

pessoas que, de outra forma, encontrar-se-iam nos lados opostos

de um espelho... A tela se amplia, e o mundo, que antes se

encontrava separado, passa a fazer parte de nós, tornando-se

uma coisa real...” (TARKOVSKY, 2002: 9).

É notório que o cinema, através das narrativas de ficção científica, leva

ao público sentimentos, emoções e dúvidas com as quais esse mesmo

público não teria contato de outro modo. Portanto, existe na representação

cinematográfica uma magia que perpassa o imaginário do espectador, lugar

no qual imaginação e realidade se misturam. Deste modo, a ficção científica

traz para a tela os híbridos na figura dos robôs, replicantes, clones e

"cyborgs", criaturas simultaneamente homens, animais e máquinas,

produzidos por meios naturais, mas também construídos, cuja criação se dá

de forma manipulada, não prevista sem a interferência técnica. Esses seres

criados em laboratórios não possuem história, tradição, memória. Esta foi a

grande questão do filme Blade Runner, os replicantes sentiam e se

emocionavam como nós, os espectadores.

O século XIX nos legou um dos inventos mais originais, o cinema – a

imagem em movimento. Imagens que passam pelos olhos sem se fixar e

que dão à ilusão de movimento. Movimento este que dá corporeidade aos

objetos, concedendo–lhes uma alma, uma autonomia ao sonho projetado na

tela, uma forma de tempo, tempo impresso nos negativos dos filmes e que

se harmonizam e se equilibram através das montagens cinematográficas

(idem: 64).

O cinema é capaz de se apropriar do tempo, registrando de forma

incondicional as manifestações e realidades humanas, de dar alma às

memórias. Desse modo, os filmes tornam – se cúmplices dos sonhos

humanos, os filmes marcam de modo indelével na memória dos

espectadores o tempo passado na tela, fixa na alma desses espectadores

vestígios que só o tempo vivido é capaz de trazer em seu interior (idem: 66).

As inovações técnicas e as investigações sobre a ótica e a mecânica

alcançaram seu desenvolvimento pleno no cinematógrafo dos irmãos Louis e

Auguste Lumiére. Este aparelho permitiu que fossem projetadas imagens em

movimento em uma tela, dando origem ao que hoje conhecemos como

cinema. Foi em 1895, no Grand Café de Paris, que os irmãos Lumiére

oficializaram esta nova arte com a primeira projeção pública, tornando – se,

com o tempo, uma das mais expressivas formas de arte da sociedade de

massa.

Georges Méliès, um dos espectadores da sessão de 1895, viu no

cinema uma forma de explorar e melhorar seus espetáculos de magia. Se

em um primeiro momento, Méliès usa o ilusionismo, através de truques de

montagem, em um segundo momento transfere os meios do teatro para a

tela, introduzindo elementos como: argumento, direção de atores, guarda-

roupa, caracterização, cenários, iluminação, divisão em atos, os quais

transformam o cinema em um meio de representação (VIVEIROS; 2003: 20).

45

Fig. 7

Viagem à Lua (1902) – Geoges Méliès

46

Nunca antes uma invenção havia afetado tantos indivíduos, levando-

os ao mundo do imaginário, do irreal e da fantasia com tanta realidade.

Descobriu – se que seria permitido daquele momento em diante “sonhar de

olhos abertos” (DROGUETT, 2004: 159). Esta era a única fábrica que ainda

não tinha sido inventada, uma fábrica de sonhos, de fantasias e de mistério.

Enfim, o homem do século XIX vê a possibilidade de representar o que viria

a ser a reprodução de si próprio, a industrialização da sua alma, do seu

espírito, que se processa nas imagens projetadas na tela (MORIN; 2005:

13). Essa conjunção entre a realidade da imagem em movimento e a

corporeidade das formas e objetos projetados na tela levou o espectador da

nova arte a uma sensação de vida concreta e à percepção de uma realidade

objetiva, pois ele vê a tradução de si próprio para um tempo – espaço que já

existiu, mas não existe mais. Dentro deste contexto, o sujeito se vê

reproduzido por um modelo idêntico a si próprio, simulacro bastante

convincente, a qual ele concede o poder subjetivo da realidade (METZ,

2002:34). Ainda sob o impacto das revoluções, o sujeito se vê diante de uma

nova possibilidade, a de se recriar a partir da ficção cinematográfica. O

cinema foi o suporte ideal para representar os contrastes violentos, das

sombras, da névoa sinistra, das visões criadas por um estado de alma

sombrio e atormentadas pelos efeitos das revoluções, das guerras do

começo do século XX e do futuro que estava por vir.

Estes elementos puderam ser transpostos com rara fidelidade para o

cinema, que lhes forneceu um suporte a um só tempo concreto e irreal. No

início do século XX, os meios visuais do cinema tiveram a oportunidade de

expressar sua força de alcance, ao serem utilizados para mostrar as nações

em guerra, as atividades básicas dos seus adversários (FURHAMMAR e

ISAKSSON, 1976: 7). Os filmes passaram a refletir sobre os pensamentos e

47

atitudes da sociedade, sofrendo influências dos movimentos de arte

existente em cada época. Apropriando – se de elementos comuns

preferidos pela sociedade, o cinema tornou – se um fenômeno de massas,

passou a satisfazer o seu público seguindo normas estéticas, religiosas e

políticas com as quais a grande massa se identificava. O cinema americano,

no início do século XX é o maior expoente dessa indústria, voltada para a

satisfação de todos, principalmente no que diz respeito à arrecadação de

altas somas nas bilheterias. Em 1907, a indústria americana já estava

organizada em três níveis: produção, exibição e distribuição, divisão esta

que proporcionou a estandardização do cinema. Nesta mesma época, o

cinema inicia o desenvolvimento de uma arte de narrar histórias através de

imagens, de mostrar padronizações de pensamentos e comportamentos

humanos, da representação simbólica da realidade do humano e de sua vida

como tal.

Dentro deste contexto, o sujeito do século XX reproduziu no cinema

um espelho da realidade da terra e do homem. Um olho mecânico que capta

a vida para reproduzi – la, são as imagens da vida real reproduzidas como

forma de espetáculo, espetáculo que muitas vezes se revela para o sujeito

como um estranhamento de si próprio, pois o sujeito se vê refletido na tela,

com alma e sentimentos que só a ele podem ser atribuídos, mas que não

são seus, já que um outro tomou o seu lugar.

Por esse viés encontramos no Expressionismo Alemão uma das

formas mais representativas do mundo e do homem modernos10. O caráter

apocalíptico do Expressionismo atinge tanto os objetos da realidade quanto

os produtos da imaginação pura. A capacidade de evocar imagens fúnebres

10 Vanguardas artísticas e literárias abriam espaço para experimentos estéticos, opondo-se às estruturas de poder autoritárias provenientes do período que antecedeu a Primeira Guerra Mundial.O Expressionismo foi um movimento artístico de vanguarda que surgiu na primeira década do século 20, um fenômeno hegemônico cultural que surgiu na Alemanha, presente nas artes gráficas, nas pinturas, na escultura, no teatro, na musica, na dança e no cinema, assumindo formas mais radicais, onde a expressão do sentimento tem mais valor que a razão (DIAS, 1999:14).

e nefastas, em busca do eterno e da inquietação de um sujeito aterrorizado

pelos fenômenos que constata ao seu redor, são traços da incapacidade do

sujeito moderno de decifrar os mistérios à sua volta A percepção desse

sujeito emergente do caos da guerra e do desenvolvimento técnico e

científico que o atormentam, são também elementos que caracterizam o

sujeito humano – maquínico, objeto de estudo nesta dissertação (EISNER,

1985: 21).

O Expressionismo, com suas visões abstratas, dramáticas e

apocalípticas, tornou-se extremamente popular na Alemanha do pós –

Primeira Guerra Mundial, e influenciou decisivamente o surgimento do

cinema expressionista, inaugurado com o clássico O Gabinete do Dr.

Caligari, de Robert Wiene, em 1919, seguido por Metropolis de Fritz Lang,

em 1926, períodos que integram a República de Weimar. Os anos da

República de Weimar ocupam um papel central na história do cinema

alemão, registrados na memória coletiva como os "anos dourados", em que

a atmosfera cosmopolita, liberal e urbana deu o tom ao repertório cultural do

país.

48

Fig. 8 Nosferatu (1922) F.W. Murnau

A República de Weimar, assim chamada porque a sua constituição foi

assinada em Weimar, uma cidade da Saxônia, logo após a derrota da

Alemanha na Primeira Grande Guerra Mundial. Como expressão artística o

49

cinema foi um dos principais representantes da República de Weimar e pode

ser dividido em três fases. A primeira, entre 1919 e 1924, com o surgimento

do Expressionismo; a segunda, entre 1924 e 1929 – os anos da Nova

Objetividade (Neue Sachlichkeit) – e a terceira, entre 1929 e 1933, os anos da

introdução do cinema falado e de uma politização que precedeu a ascensão

dos nazistas ao poder (SANTANA, 1993: 136).

O Expressionismo, no cinema alemão, é uma representação de

determinados aspectos do mundo, inspirada no temor ao desconhecido e ao

sobrenatural. O cinema expressionista busca a essência das coisas, daquilo

que não se vê, mas que se sente. São visões anti – naturalistas que

demonstram o medo do racional e do irracional, de um mundo povoado por

incertezas e sombras, da representação do horror à morte, dos sentimentos

de terror e misticismo, reflexos de uma cultura em crise e do desalento

espiritual nascido nos campos de batalha da Primeira Grande Guerra. Este

momento vivido pela Alemanha; a derrota na guerra, a miséria e a

preocupação constante com o futuro próximo, aliados à atração pelo obscuro

e pelo indeterminado, bem como, tudo aquilo que foge a lógica da

casualidade e a abstração da realidade são a base do movimento em

questão. O teórico Wilhelm Worringer, em sua tese de doutorado

publicada em 1907, “Abstraktion und Einfühlung”, argumentava que

esta abstração nascia da grande inquietação que experimentava o homem

aterrorizado pelos fenômenos que se passavam à sua volta, e cujas relações

ou misteriosos contratempos eram incapazes de decifrar11.

11 Wilheim Worringer (1881- 1985), historiador de arte e um dos mais importantes teóricos da arte expressionista, cujas propostas aparecem em “Abstraktion und Einfühlung” (Abstração e Empatia), sua obra mais conhecida. O Expressionismo tratado aqui foi uma definição popularizada a partir de 1911 por Willheim Worringer para qualificar um conjunto de obras pictóricas, especialmente dos fauvistas Derain, Dufy, Braque e Marchet, então expostas em Berlim; e para opô-las ao Impressionismo. Mais tarde, o termo passou a definir toda a arte na qual a forma nasce não diretamente da realidade observada, mas de reações subjetivas à realidade (EISNER, 2002: 20).

50

Na dinâmica expressionista, o homem deixa de ser um elemento

ligado a uma moral ética ou religiosa, a uma obrigação social, à família, a

uma sociedade. A imagem do mundo se reflete no expressionista em sua

pureza primitiva, a realidade é subjetiva e existe apenas em nós. O

Expressionismo significa um subjetivismo levado aos extremos, a afirmação

de um Eu totalitário e absoluto, que forja o mundo à sua imagem e

semelhança. Retrata o homem formado pela situação social crítica e da

desesperança vivida pela Alemanha do pós – guerra, segundo escreveu o

autor anteriormente citado.

Os filmes expressionistas agrupam – se de acordo com a ruptura da

representação direta da realidade, realidade incapaz de ir além do visível.

Para o Expressionismo as coisas parecem não ser mais do que sonhos, são

apenas sombras às quais a vida lhes foge – “o homem já não vê, mas tem

visões” ou seja, vê através de visões o que está escondido por detrás da

realidade sensível (EISNER, 2002: 19). Os filmes expressionistas têm como

princípio uma visão subjetiva do mundo. Buscam na memória imagens para

a representação dessa visão; para atingir este estado de representação, os

expressionistas lançam mão de recursos como a iluminação estilizada, os

contrastes acentuados, os cenários incongruentes e excêntricos, os temas

surreais e góticos relacionados a realidades sobrenaturais, projetando na

tela um mundo subjetivo e louco, repleto de evocações fúnebres, de horrores

e de uma atmosfera de pesadelo. Assim, o crime, a morte, o terror e o

fantástico dominam o Expressionismo e expõem uma galeria de seres

sobrenaturais vindos das lendas e literatura alemãs.

Por conta das dificuldades do pós – guerra, os diretores de teatro

alemães estavam impossibilitados de produzirem cenários elaborados para

as suas produções expressionistas; o diretor Max Reinhardt confiou nos

cenários pintados, nas perspectivas bizarras e nos efeitos de luz para criar o

ambiente pretendido e atrair a atenção para as emoções individuais de cada

personagem. Estas técnicas inusitadas estariam na base de um novo

cinema do qual O Gabinete do Dr. Caligari (1919), de Robert Wiene, é o

primeiro exemplo paradigmático. O filme marca uma transição entre um

modelo de narração e filmagem arcaicas, dos primórdios do cinema, para

uma linguagem mais desenvolvida. No filme, dois homens sentados no

banco de um parque, em um asilo para loucos, trocam entre si relatos

insólitos. O mais jovem conta para seu interlocutor uma estranha história

ocorrida na pequena vila medieval de Holstenwall, de um hipnotizador que

controla um homem sonâmbulo para os seus propósitos malévolos. Sendo

a história de um louco, o filme leva – nos para um mundo que é a expressão

da sua loucura. A criação desta atmosfera pesada e fantasiosa foi criada a

partir de uma concepção estética expressionista na cenografia e objetos

cênicos, nos personagens, na iluminação (KRACAUER, 1985:65).

Fig.9 O Gabinete de Dr. Caligari (1919).

51

Em Caligari (1919), a cenografia expressionista conseguiu construir,

através de cenários pintados, a representação de uma pequena aldeia

medieval, com ruelas tortuosas e escuras, passagens estreitas espremidas

52

entre casas arruinadas. As linhas e planos tortuosos, oblíquos e abruptos do

cenário provocam no público um efeito muito diverso do que o que seria

obtido por uma composição visual mais harmônica. Os planos são

inclinados, as janelas são mais largas na parte de cima do que na base,

portas deslocadas se abrem alucinadamente. A soma destas imagens

expressionistas representa um mundo "interior", uma construção mental que

nega a realidade objetiva (idem: 75).

A visão de perspectivas falseadas e imprevisíveis, de formas

distorcidas, e a consciente intenção de evitar linhas verticais e horizontais,

despertam no espectador os sentimentos de insegurança, inquietação e

desconforto. Os figurinos usados pelos atores, os móveis e os demais

objetos cênicos incorporam – se fielmente a esta concepção. As

personagens, por conseguinte, movem – se num universo que lhes é sempre

incômodo e traiçoeiro, à exceção de Caligari e Cesare, mentores deste

mundo. Ruas sinuosas, edifícios com inclinações impossíveis, quartos

claustrofóbicos e cenários contorcidos criam uma imagem de extrema

instabilidade. A atmosfera é completamente surreal. O uso de linhas

oblíquas serve igualmente para dirigir o nosso olhar. Em O Gabinete do Dr.

Caligari (1919) há um caráter centrípeto da imagem, que concentra todo o

conteúdo. Nota-se ainda uma influência teatral, na qual não é utilizado o

conceito de fora de campo e a ação está perfeitamente controlada dentro do

quadro12 .

Dentro deste contexto, o filme O Gabinete do Doutor Caligari

(1919), com sua estética vanguardista atingiu um grau máximo de abstração

12 Fora de campo - o campo definido por um plano de filme é delimitado pelo quadro, mas acontece, freqüentemente, que elementos não vistos (situados fora do quadro) estejam, imaginariamente ligados ao campo por um vínculo sonoro, narrativo e até mesma visual (AUMONT, 2006: 132).

53

do universo real, de desconstrução da realidade sensorial e dos dados

objetivos da consciência. A nova arte, o domínio da imagem em movimento

conseguido pelo cinema, possibilitou que os elementos essenciais do

Expressionismo dessem vida a mundos paralelos, povoados por visões

subjetivas, misteriosas agitações do inorgânico e profecias inquietantes

sobre uma nova era, que foi chamada Modernidade.

Como já foi dito, o Expressionismo das sombras e incertezas tinha

como pano de fundo a instabilidade social e política que sucedeu à primeira

Guerra Mundial, e trouxe às telas cenários macabros e assustadores, que

podem ser considerados um reflexo do inconsciente da época. Definido

através de determinadas características formais e narrativas, o

Expressionismo alemão remete a uma profunda crise de identidade na

sociedade de massas. Sob o ponto de vista formal, pode-se dizer que o

Expressionismo foi um "fenômeno visual", através do qual conflitos como a

incerteza e o medo provocados pela instabilidade política e econômica foram

levados à tela por intermédio de personagens sombrios e perigosos. No que

diz respeito à narrativa, os filmes expressionistas tinham com freqüência os

perigos e as atrações da metrópole moderna como fio condutor.

Fritz Lang é outro grande símbolo da estética expressionista. Para ele

a tela passa a ser um espelho do que se entendia então por vida moderna e

urbana. O cinema de Lang marcou época, tanto na Alemanha quanto nos

Estados Unidos, ao abordar, com revolucionária concepção visual, temas

como a fatalidade e a luta inevitável do homem para escapar ao seu destino.

Seu filme Metropolis, produzido em 1926, traz à tona a questão da máquina

versus humanos, da escravidão dos operários e do surgimento das grandes

cidades (VIVEIROS, 2005: 51).

Fig. 10 A cidade do filme Metropolis

(1926)

Metropolis (1926) é um retrato do que poderia ser a consumação das

previsões mais sombrias dos tempos modernos, prognósticos nefastos e

ameaçadores para os seres humano, caótico para os espaços urbanos

das grandes cidades que surgiram com a Revolução Industrial. A descrição

representa o imaginário característico da época, quando a Revolução

Industrial já atingira seu ápice e o sistema econômico de produção

capitalista começava a dar sinais evidentes de desgaste. A história se passa

no século XXI, em 2026, um século depois do lançamento do filme. Fritz

Lang constrói um mundo frio, mecânico e industrializado, alertando por meio

das suas idéias sobre as conseqüências do caminho da produção

desenfreada. Seres humanos e tecnologia intrinsecamente unidos em uma

relação de dependência que ilustra o terror da modernidade frente ao

pretenso poder dominador da técnica sobre o ser humano. Previsões

trágicas, aterrorizantes, a cidade como um universo caótico, a tecnologia

massacrando a humanidade... Um simulacro do humano no lugar do

humano (EISNER, 2002:154-155).

54

Algumas das mais sólidas bases para a ficção científica

cinematográfica são aqui lançadas e irão influenciar a construção de

outras Metropolis, como a Los Angeles de 2019, de Blade Runner – O

caçador de andróides (1982), este último, suporte fílmico desta

dissertação.

Fig.11 Metropolis (1926)

Em Metropolis (1926), Freder Fredersen é o herói romântico e

ingênuo que se envolve com a idealista Maria, ambos humanistas13. Em

oposição a eles, encontram – se John Fredersen, o tecnocrata, aquele que

se julga soberano e controlador dos homens e das máquinas; Rotwang, o

cientista deslumbrado com as possibilidades da tecnologia, e um robô, que

representa, na visão dos personagens (o tecnocrata e o cientista) e no

contexto social tecnológico da era industrial, o trabalhador "ideal". Este

robô, esta máquina, o simulacro humano do filme, sintetiza para o diretor

Fritz Lang o conceito de uma época e seu posicionamento frente à

tecnologia e à "ciborgização" 14.

O robô aparece como um substituto do homem, a máquina ocupando

definitivamente o espaço humano nas relações de trabalho, determinantes

naquele modelo econômico. Este simulacro humano assume as feições da

humanista Maria, mas diabolicamente transformada. Tudo o que lhe falta é

55

13 Doutrina segundo a qual o homem, do ponto de vista moral, deve ligar-se exclusivamente àquilo que é de ordem humana. O humanismo designa uma concepção geral de vida (política, econômica, ética), fundada sobre a crença da salvação do homem pelas simples forças humanas (LALANDE, 1999:481). 14 Ciborgue em ficção, seria a junção de um ser robótico com partes humanas. Diferente do robô, que possui apenas partes mecânicas e dos andróides, que apenas aparentam ser um ser humano por fora, mas não possuem quaisquer tecidos humanos mesclados ao metal, o cyborg ou simplesmente "ciborgue”, em português, é uma máquina mais humanizada por possuir externamente ou internamente fragmentos (tecidos, órgãos, braços, pernas, etc.) de um ser humano (SANTAELLA, 2000:204).

56

uma alma, e esta é providenciada, mas também manipulada, para que

incorpore à máquina apenas as características nefastas do homem. Com ou

sem alma, o simulacro é uma ameaça. Metropolis (1926) representa uma

síntese da proposta expressionista que colocou o cinema alemão na

vanguarda da produção cinematográfica dos anos 20. Não é apenas um

clássico da ficção científica cinematográfica, mas representa a importância

do cinema, enquanto meio de comunicação de massa, inserido no fluxo de

uma determinada era cultural, em manifestar e dar corpo, através das

imagens, aos aspectos sociais, filosóficos e relacionais da situação do

homem perante seu tempo, perante o outro e perante a técnica (VIVEIROS:

2003, 51).

Assim como O Gabinete de D. Caligari (1919) e Metropolis (1926),

Blade Runner – O caçador de andróides (1982) dirigido por Ridley Scott,

também é um marco do cinema expressionista contemporâneo. O filme foi

uma adaptação do famoso romance Do Androids Dream of Electric

Sheep? (1968) de Philip K. Dick, considerado o precursor do cyberpunk, um

subgênero da ficção científica que utiliza elementos de romances policiais,

film noir e desenhos animados japoneses. Ridley Scott também se inspirou

em Metropolis (1926) de Fritz Lang, para construir o cenário futurístico de

Los Angeles. Blade Runner (1982) tornou – se filme representativo da pós –

modernidade, na descrição de uma sociedade deteriorada e desconfiante

em face do progresso irrefreado da indústria, da ciência e da tecnologia.

Ambientado em Los Angeles no ano de 2019, Ridley Scott mostra um

cenário opressivo e caótico, exibindo lugares nos quais se contrastam os

ambientes futuristas de altas torres, arquitetadas para permitir o acesso de

veículos aéreos, com ruas sujas e decadentes, típicas de centros de grandes

metrópoles. Asfixiante e decadente, A cidade é habitada por refugiados dos

cinco continentes, sintetizando a confusão babilônica em uma linguagem

mestiça que se ouve pelas ruas de Los Angeles. Nesse mundo futuro, nada

funciona, “exceto a tecnologia”, capaz de manter colônias ativas em

sofisticadas estações interplanetárias.

57

Figura no. 12 Los Angeles no filme Blade Runner

Blade Runner (1982) descreve um futuro em que a humanidade inicia

a colonização espacial; para enfrentar esta tarefa são criados seres

geneticamente desenhados e criados em laboratórios – os replicantes –

utilizados em missões específicas, pesadas, perigosas ou degradantes nas

novas colônias. Fabricados pela Tyrell Corporation como sendo "mais

Humano que os Humanos", os modelos Nexus 6 são fisicamente idênticos

aos seres humanos, mas são mais fortes e ágeis. Devido a problemas de

instabilidade emocional e reduzida empatia, os replicantes são submetidos a

um desenvolvimento agressivo, e por este motivo o seu período de vida é

limitado a quatro anos15.

15 Replicantes – ver glossário ao final desta dissertação

Fig. 13 A replicante Pris

Os replicantes do filme Blade Runner podem ser considerados

resultados da bio – robótica: organismos de tecido vivo e células criadas

artificialmente, robôs que emulam ou simulam organismos biológicos vivos.

Seis destes replicantes, após um motim, voltam à Terra para reclamar junto

ao seu criador um tempo maior de “vida”. Os blade runners são policiais

especializados em “eliminar” os replicantes, que estão fora da ordem

estabelecida16.

O cinema, invenção moderna, apresenta uma impressão da realidade,

através do movimento que este é capaz de dar às imagens. A conjunção

entre a realidade do movimento e da representação do sujeito, atrelada a um

contexto social e político projetados na tela, e que dão a “impressão” de

realidade objetiva, na qual o que é projetado na tela tem uma alma. Esta

alma, representada pelas técnicas cinematográficas, é a que reproduz as

imagens em movimento, capaz de metamorfosear espaço e tempo criando o

universo da ficção. Ficção que apresenta a vida, a morte, as aspirações, os

desejos, os temores e terrores que modelam a imagem para projetá-las

segundo a ordem lógica dos sonhos, mitos e crenças. Desta forma, a ficção

cinematográfica transforma-se, para o sujeito, na mágica da alma que sonha

(MORIN, 2001:72-73).

58

16 Robótica – ver glossário ao final desta dissertação.

59

Esta dualidade, a própria ambigüidade da ficção, entre a realidade e o

sonho, entre verdade e ilusão, entre o ser e seu duplo, e o estranhamento

humano ao deparar – se com o real produzido por ele mesmo, encontra

antes do cinema um vasto campo para discussão. Esta questão do duplo e

do estranho foi tratada por Freud em seu artigo “Unheimlich” publicado em

1919. Segundo Freud “... o tema [do duplo] tem a ver com reflexos, com

espelhos, com sombras, com espíritos guardiões, com a crença na alma e

com o medo da morte...” (FREUD, 1996:252). A palavra alemã “unheimlich”

não tem tradução direta para o português; um possível equivalente na língua

portuguesa seria a palavra “estranho” ou “sinistro” lembrando o significado

do espanhol. Em alemão, “unheimlich” pode significar tanto algo que não é

familiar, não é conhecido, como algo que é familiar, usual. Segundo as

reflexões de Freud, no artigo “O Estranho” (1919), isto é muito significativo,

pois o estranho caracteriza – se justamente por algo que era familiar e se

torna súbita e inexplicavelmente estrangeiro, estranho. Segundo ele, o

estranho deriva seu terror não de alguma fonte externa ou desconhecida,

mas, pelo contrário, de algo estranhamente familiar que supera quaisquer

esforços do indivíduo para se separar dele.

No conto o Homem de areia (HOFFMANN apud Freud, 2006), um

jovem, Nathanael, afastado de sua família por razões de estudo, encontra

um vendedor de barômetros e acredita ser este o mesmo advogado

Coppélius responsável, quando Nathanael ainda era criança, pela morte

violenta de seu pai. Esta lembrança de Nathanael remete à figura

aterrorizante de um "homem de areia", artimanha impingida às crianças para

convence – las a ir para a cama, fazendo-o lembrar também do advogado

que visitava o pai com alguma freqüência, sempre à noite. Lembranças que

60

o assombra e o atemoriza na atualidade, trazendo de volta uma experiência

fantasmática da infância - a morte do pai.

Assim como o conto O Homem de Areia, existem na literatura vários

autores que tratam da narrativa fantástica, que tem como fim primacial

mostrar a “irrealidade da realidade”.

Um desses autores é Jorge Luís Borges (1899-1986). Na obra do

escritor argentino as metáforas do tempo, do espelho e do labirinto ajudam

a decifrar aspectos fundamentais em seus escritos. Sua concepção de

labirintos, espelhos, etc., representa a multiplicidade dos caminhos

humanos. Para Borges, o tempo é um eterno retorno, e por isso não se pode

afirmar que este mundo é real, mas um simulacro, e por isso, não se pode

decifrá – lo. Sendo assim, o homem que nele habita é também um

simulacro, pois repete os mesmos atos mecanicamente há séculos.

O submundo e a escuridão da rua são componentes essenciais da

narrativa fantástica e nos remontam às origens góticas da ficção-científica, o

ar sombrio, o estranhamento, o sobrenatural e o etéreo são constituintes da

literatura gótica do final do século XIX, tendo em Edgar Allan Poe alguns de

seus textos fundadores. O fantástico dos seus contos surge como um

intensificador do belo, pela estranheza inquietante que introduz. Estes aliam

o horror gótico à intrincadas narrativas em que a lógica expressionista

deixava antever consideráveis potencialidades cinematográficas. Obras que

misturam elementos entre o sobrenatural, o mórbido, o sinistro, o repulsivo,

o suspense e o aterrorizante. A base do trabalho de Poe vem do fantástico,

das excitações da natureza humana, das alucinações, das mentes inquietas,

61

de personagens neuróticas; o duplo de cada homem carregado de sombras

e elementos de morte e fatalidade.

Este contexto pode nos servir para pensarmos sobre os efeitos de

sentido provocados pelo fenômeno do “estranhamento”. O cinema explora o

“estranho” o “duplo”, pois permite que o estranho projetado na tela seja

muito mais fértil do que na vida real, segundo Freud “... pois contém a

totalidade do imaginado, sem limites, contém algo mais além disso, algo que

não pode ser encontrado na vida real...” (ibidem: 266).

Ao homem moderno, separado do seu duplo pela tela, só lhe resta ser

observador desta identificação, que por vezes ainda emerge, só que agora

como fenômeno sobrenatural, assombração, ou mesmo de ficção. É, assim,

a delimitação desse sujeito, permitindo que a eventual ausência de

mediação simbólica entre o real e o imaginário seja aterradora. É esta

identificação parcial, esporádica, entre o eu e o outro que proporciona a

aparição do real, do “unheimlich”.

Deste modo, o cinema cria um espaço diferente, imaginativo, livre, um

espaço ficcional sem a necessidade do teste da realidade, cujo ponto de

partida – a técnica de montagem – cria um lugar de interação entre o ponto

de chegada - os efeitos receptivos no espectador, sendo que o que resulta

desta interação é, em primeiro lugar paradoxal, pois muito daquilo que não é

estranho na ficção projetada neste espaço interativo, não seria possível de

ser vivido na vida real.

A história de Blade Runner é paralela àquela em que um monstro

sem nome, mais tarde reconhecido pelo sobrenome do seu inventor, exulta

62

ao matar com as mãos o irmão menor do Dr.Frankenstein: “Posso, eu também,

criar o desespero!”.

Os sentimentos e ressentimentos do monstro são postos no centro da

narrativa literária de Shelley, assim como os sentimentos, os sonhos e os

ressentimentos dos replicantes são postos na narrativa fílmica de Blade

Runner.

O que se pode, e o que não se pode conhecer; quem pode, e quem

não pode sonhar – estão postas as questões que aproximam e afastam a

reflexão estética, da técnica e da tecnologia a serviço da subjetividade em

Blade Runner.

63

3. Técnica e tecnologia no auge de uma nova era.

“...A essência da técnica é de grande ambigüidade. Uma

ambigüidade que remete para o mistério de todo

desencobrimento, isto é, da verdade... A questão da técnica é a

questão da constelação em que acontece, em sua propriedade, em

desencobrimento e encobrimento, a vigência da verdade”...

(HEIDEGGER 2006: 35)

A vida humana é principalmente uma atividade, um estado de

produção constante, de permanente autoconstrução e de execuções de

projetos. Essa característica do ser humano tornou – se mais evidente com

as transformações vivenciadas desde o século XIX, a partir das Revoluções

Industriais, conforme já mencionado anteriormente e com as implicações

que o domínio da técnica passa a exercer sobre este sujeito. A técnica pode

ser entendida como um meio do fazer do homem, como um instrumento de

criar e usar os meios para o “fazer” humano (HEIDEGGER, 2006: 9). Sendo

um meio do fazer do sujeito, é a técnica um processo, um conjunto de ações

que se fundem e definem o sujeito, colocando – o frente à possibilidade de

ação dialógica com o próprio meio. Heidegger entende a técnica como um

conjunto de processos que colocarão o sujeito frente a frente com o objeto,

cujo aspecto material e utilitário é resultado do fazer deste sujeito.

A técnica permite fabricar e usar utensílios, aparatos e máquinas,

sendo ao mesmo tempo pertencente às necessidades e aos fins a que

servem. Não sendo só privativa do homem, segundo Maturana e Varela

(2005: 57), a técnica também pode ser encontrada nas atividades dos seres

vivos para a preservação e sobrevivência da sua espécie, porém, no sujeito,

a técnica é a própria ação e possibilita um desdobramento do seu potencial

64

orgânico. Também no sujeito a técnica surge da sua relação com o meio e

apresenta características especiais tais como: consciência, reflexão,

invenção e individualidade. Os seres humanos são capazes de construir

inventivamente técnicas que podem tornar um pensamento em objeto

verdadeiro, para satisfazer seus desejos e necessidades, transformando o

meio em que este ser humano vive.

Segundo Gilbert Simondon (SIMONDON apud FILHO, 1996: 37), os

objetos técnicos assumem o papel de mediadores entre a natureza e o

homem, complementando – se entre si, ou seja, máquina e homem se

fundem em uma relação complexa, uma complementação entre homem e

técnica revelando a existência de uma associação de elementos que se

estruturam reciprocamente. Na sociedade contemporânea, rodeada por

objetos técnicos, o homem tem como papel principal o de organizador; ele

não é submisso às máquinas, mas não tem poderes totais sobre suas

definições e articulações. Este conjunto formado pela relação homem versus

máquina, que se comunica entre si e/ou com outras máquinas e outros

homens puderam gerar fenômenos sociais e estéticos. Assim, técnica e

tecnologia, que começaram a estar presentes na vida quotidiana em fins do

século XIX, avançaram pelo século XX para promover uma espécie de

onipresença nos atos mais triviais do ser humano no século XXI, liberando o

homem de enormes gastos energéticos para confia – los às máquinas e ao

mesmo tempo sujeitar o homem à lógica quantitativa dos artefatos

tecnológicos17. Esta representação corrente da técnica, segundo a qual é

17 Tecnologia – palavra de origem grega: techne "ofício" + logia "que diz" – é um termo bastante abrangente que envolve o conhecimento técnico e científico e as ferramentas, processos e materiais criados e/ou utilizados a partir de tal conhecimento. Estudo dos procedimentos técnicos, naquilo que eles têm de geral e nas suas relações com o desenvolvimento da civilização (LALANDE, 1999: 1111).

65

um meio e um fazer do homem pode, conforme Heidegger em seu

artigo A

questão da técnica (2006), ser considerada como a definição instrumental

e antropológica da técnica.

Segundo Heidegger, a técnica moderna é um meio para atingir certos

fins; desse modo, o homem moderno preocupa – se com o fato de querer

manejar as técnicas, de querer ter “o domínio destas em suas mãos”. Esta

vontade de dominar faz – se tanto ou mais urgente quanto à ameaça da

técnica de escapar ao domínio do homem. Essa ameaça está relacionada

com o fato de que, em sua essência, a técnica não é puramente um meio,

mas um modo de sair do oculto, de desvelar a verdade. O desejo de dominar

a técnica é, para o sujeito, a consciência do seu potencial inventivo e ao

mesmo tempo o seu domínio perante a própria invenção, que muitas vezes

passa a ser desconhecida pelo seu inventor.

Esta revelação do que está oculto é para Heidegger um processo de

desvelar o real, indo além do conceito atrelado aos artifícios tecnológicos,

pois provoca a natureza, exigindo que esta prove o seu potencial, enquanto

fornecedora de elementos energéticos. Esta provocação da natureza pode

ser entendida também no sentido de desocultar a energia que ela armazena,

de extrair o máximo possível do seu potencial. Analogicamente, a relação

entre o desocultar da natureza e o desvelar do sujeito está, no que se refere

a extrair do sujeito o máximo do seu potencial, transformando - o em objeto,

deixando – o na condição de um recurso a ser explorado, esvaziando toda e

qualquer subjetividade desse mesmo sujeito, modificando sua relação com o

real e consigo mesmo (DROGUETT, 2003: 72).

Dentro deste contexto, conforme explica Heidegger, o sujeito, ao

impulsionar a técnica, busca nela um dispositivo para que possa revelar a si

66

mesmo; a técnica moderna passa a provocar o sujeito, que busca uma forma

de existência, uma forma de se situar, de estruturar sua localização no real,

no próprio imaginário que habita este sujeito 18. Este situar-se no real não é

técnico, não é maquínico, é um modo segundo o qual o real e o efetivo do

ser humano saem do oculto como formas de vida. O conjunto integrado

entre as técnicas e o revelar humano constitui a coligação com o sujeito, que

localiza no real um modo de revelar o que se esconde na sua própria

existência (HEIDEGGER, 2006: 15).

Esse homem da era das técnicas consegue, com dispositivos

cristalizados no cinema, revelar aquilo que se escondia na sua mente, nos

seus sonhos, de certo modo consegue se localizar e estruturar no seu real,

projetando na tela aquilo que percebe ser sua existência, revelando o drama

do seu eu oculto.

A esta concepção do filme como suporte técnico para a fixação da

realidade visível e tangível, vem somar-se outra: a do cinema de ficção como

uma arte essencialmente realista, prefigurativa. Blade Runner – o caçador

de andróides (1982) desvela aquilo que o ser humano busca através da

manipulação das técnicas, criar um sujeito a sua imagem e semelhança.

Estes sujeitos que em tudo lembram os humanos, mas que para provar sua

existência buscam na fotografia, um dispositivo antecedente ao cinema, um

passado mesmo que manipulado e irreal, mas que o legitima enquanto ser

humano que não é. No filme as fotos dos replicantes são os objetos que o

tornam mais próximos dos humanos, concedendo – lhes uma família, um

passado, uma vida.

18 Real no sentido metafísico, aquilo que existe por si mesmo, autonomamente, que é relativo às coisas, da idéia ou da representação que formamos da “realidade”. Realidade que corresponde à experiência vivida que o sujeito desse real tem e situa-se no campo do imaginário (JAPIASSU, 1996: 230-231)

Não se pode deixar de destacar a importância da fotografia, que

antecede a técnica cinematográfica. Muito já se discutiu acerca do

parentesco do cinema com a fotografia, haja vista o suporte do dispositivo

cinematográfico tradicional, não digital. Obviamente, o cinema está

intimamente ligado à fotografia, desde as primeiras experiências de Jules-

Marey e Muybridge. Diversos autores se detêm sobre a relação entre as

mídias fotográfica e cinematográfica, as quais, via de regra, partilham o

mesmo suporte. Um dos textos mais famosos a respeito deste assunto é

“Ontologia da Imagem Fotográfica”, em O Que é o Cinema? (1997), de

André Bazin. Neste ensaio, o teórico francês vale-se da reafirmação do

parentesco cinema – fotografia para reforçar sua tese de realismo

cinematográfico.

Fig. 14

O Cinematógrafo - 1894

O cinema, abreviação de cinematógrafo, é a técnica de projetar

fotogramas em quadros de forma rápida e sucessiva para criar a impressão

de movimento, bem como a arte de se produzir obras estéticas, narrativas

ou não. A projeção de imagens estáticas em seqüência para criar a ilusão

de movimento costuma ser de no mínimo 24 fotogramas por segundo, para

67

68

que o cérebro humano não detecte que são, na verdade, frames isolados

(DELEUZE; 1984: 14) 19.

A reprodução da realidade humana proporcionada pela ilusão técnica

cinematográfica é considerada como uma das artes mais próximas das

massas. Este meio artificial de reprodução da realidade através das técnicas

de montagem fílmica dá à produção cinematográfica um caráter estético. O

cinema, como forma mecânica de se contar uma história, dispõe de um sem

números de técnicas que vão desde a exploração dos cenários, a utilização

de vários planos até a montagem das cenas. Esta condição do fazer cinema

não está somente ligada à técnica, mas à capacidade da imaginação

humana em explorar as técnicas disponíveis, da capacidade do sujeito de se

revelar na expressão da realidade ficcional.

Segundo a ótica de Deleuze, o cinema, ao narrar uma história, evoca

as formas do mundo exterior – o espaço, o tempo e causalidade – ajustando

– as ao mundo interno do sujeito: à memória, à imaginação e à emoção.

Estas histórias ganham sentido, do ponto de vista de Deleuze, manipulando-

se as imagens por meio da montagem. Para ele a imagem-movimento nasce

de uma sucessão de planos fixos que ganham coerência com a montagem;

assim, as técnicas de produção de um filme definem a estética

cinematográfica. Neste contexto, a montagem, para além do seu papel

narrativo, tem uma função sintática e de pontuação. Estrutura o filme, seja

qual for o seu gênero, sendo uma das técnicas principais que se

transformam em uma função estilística, produzindo efeitos rítmicos e

plásticos. Ainda conforme Deleuze, a montagem é a composição, a

19 Frame (moldura em português): a noção de moldura/quadro está ligada inicialmente à pintura. A fotografia aproximou o significado entre o quadro do instantâneo e o olhar (do fotográfo) que a foto traduz. Mas as palavras “enquadrar” e “enquadramento” apareceram com o cinema, para designar o conjunto do processo, mental e material, pelo qual se chega a uma imagem que contém certo campo visto de certo ângulo (AUMONT, 2006: 248).

disposição das imagens – movimento como parte da criação de uma

imagem indireta do tempo.

O cinema vai sendo influenciado pelos movimentos vanguardistas de

cada época. No início do século XX, a montagem tem a função de acelerar

as imagens, que refletem a rapidez do mundo urbano, ou de acentuar,

através das técnicas de justaposições o efeito do choque, de contrastes.

Dentro deste contexto, retornaremos ao cinema expressionista alemão,

cujas técnicas retratam este caráter estético do cinema gótico20.

No cinema expressionista alemão, as técnicas com as quais os

cineastas elaboraram a construção dos filmes correspondem de imediato à

ação da luz como sendo o fundamento para criar as imagens em movimento,

movimento este de intensidade. A força da luz se opõe às trevas com uma

força igualmente infinita e sem a qual não poderiam se manifestar. Trata –

se de uma oposição, de uma mescla entre o claro/escuro. O domínio desta

técnica no Expressionismo aponta verdadeiros mestres desta estética

cinematográfica; são eles Murnau, Fritz Lang, Robert Wiene e Ridley Scott.

Scott contribuiu com uma nova estética cinematográfica ao se inspirar em

Metropolis (1926) e nos filmes noir dos anos 40 para filmar Blade Runner –

o caçador de andróides (1982).

z Lang-1926

69

20 Vanguarda - palavra que a partir de meados do século XIX começa a ser aplicada às tendências artísticas que proclamam a ruptura com o passado e a transformação da sociedade, sendo que, apenas no século XX, passa a designar habitualmente aquelas tendências artísticas que atuam como movimentos de inovação e ruptura, rejeitando a arte precedente e propondo-se como procura de novas formas, bem como de uma diferente função social da arte (XAVIER, 2005:99).

Fig. 15 Cenário do filme Blade Runner

70

Ridley Scott utiliza as superposições e os efeitos visuais, bem como a

integração de diversos elementos arquitetônicos, detalhes do vestuário e

símbolos de diferentes culturas e épocas, fazendo uma mescla destes

elementos para causar assombro e sintetizar a confusão babilônica nas ruas

de Los Angeles. Ridley Scott explorou os fundamentos da estética

cinematográfica gótica utilizando – se dos efeitos das luzes e sombras.

Como no Expressionismo alemão, raios e explosões enchem o céu de luz,

mas a escuridão é impenetrável, o pessimismo sobre os limites do

conhecimento do ser humano e a decepção com a tecnologia moderna, a

qual, embora abra os horizontes, destrói o mundo que o ser humano habita,

fizeram de Ridley Scott um criador que estabeleceu uma estética individual

segundo leis próprias e que são muito próximas da estética gótica dos filmes

do Expressionismo alemão.

Os efeitos obtidos com os contrastes entre o branco e o preto ou as

variações do claro/escuro são como dois graus distintos capturados no

mesmo instante, criando no espectador a sensação, no sentido metafórico,

da visão da noite que dissolve os corpos, e do dia, que dissolve a alma.

A técnica de iluminação das cenas permeou todo o cinema

expressionista alemão; assim, o choque do claro/escuro, a iluminação súbita

de um personagem ou de um objeto por um foco de um projetor – e

concentrando sobre ele a atenção do espectador – é acompanhada às vezes

por um reflexo avermelhado, brilhante, cintilante; são técnicas de iluminação

que foram identificadas nas cenas da criação do robô de Metropolis

71

produzido em 1926, assim como de Frankenstein produzido em 1931

(Deleuze; 1984: 80).

O cinema expressionista também rompe com o princípio da

composição orgânica instaurado por Griffith21. O Expressionismo não utiliza

a quantidade de movimentos, mas apresenta uma visão da vida e dos

objetos dissolvidos pelas sombras, submersos nas trevas que ignoram os

limites do organismo. Segundo Deleuze, sob este ponto de vista, todas as

coisas naturais e os produtos artificiais não se diferenciam, são as sombras

das casas que correm pelas ruas, são os móveis, as casas e seus telhados

inclinados que espreitam e se movem. Em todos os casos, o que se opõe ao

orgânico não é o mecânico e sim o vital, comum ao animado e ao

inanimado, vital que se expande por toda a matéria.

O termo Expressionismo foi utilizado pela primeira vez pelo teórico

Worringer e foi definido pela oposição do impulso vital à representação

orgânica, pelo uso das linhas quebradas que não formam nenhum contorno

e onde não se distinguem nem a forma nem o fundo. Deste modo, os

autômatos e robôs não são mecanismos, são zumbis, sonâmbulos que

expressam a intensidade dessa vida inorgânica (EISNER) 22.

21David Griffith (1875-1948), nascido nos Estados Unidos, é considerado o criador da linguagem cinematográfica. É o primeiro a utilizar dramaticamente o close, a montagem paralela, o suspense e os movimentos de câmera. Em 1915, com Nascimento de uma Nação, realiza o primeiro longa-metragem americano, considerado como a base da criação da indústria cinematográfica de Hollywood. Com Intolerância, de 1916, faz uma ousada experiência, com montagens e histórias paralelas. A montagem paralela, isto é, a alternância de duas ou mais linhas de ação, e o “last minute rescue” (salvamento de último minuto) são duas formas de construir o suspense, e foram exploradas exaustivamente por David Griffith.

22 Worringer – Ver citação na página no 52.

Ainda conforme Deleuze, as técnicas do Expressionismo do cinema

alemão obedecem a linhas geométricas que regulam o movimento no

espaço. É uma geometria que constrói o espaço ao invés de descreve – lo;

as linhas se prolongam fora de toda medida, é uma geometria que opera por

projeções e sombras, com perspectivas oblíquas. Estes agrupamentos

geométricos se relacionam diretamente com o corpo humano, corpo

estilizado que se transforma, pois dissolve as diferenças entre o mecânico e

o humano, em proveito da vida orgânica das coisas.

Fig. 16 O gabinete de Dr. Caligari (1919)

O jogo de efeitos de contrastes, claro/escuro e suas variações, são

como dois graus distintos capturados ao mesmo tempo, intensificados por

reflexos de luzes brilhantes, fosforescentes, cintilantes. Conforme já foi

mencionado, estes efeitos foram usados nas cenas da criação do robô Maria

em Metropolis, porém foi Murnau o principal operador destes efeitos,

criando uma atmosfera que anuncia a chegada do diabo e da cólera de

72

73

Deus, através das cenas de Nosferatu (1922) e Fausto (1926) 23. Em

Nosferatu, Murnau passa por todos os aspectos das técnicas de luz do

Expressionismo, do claro/escuro à contra luz e à vida orgânica das

sombras.Assim, os filmes de Murnau retratam um mundo que remete à

dialética: entre o terror da vida orgânica das coisas e da vida sublime do

espírito humano.

Deleuze (idem: 85) analisa algumas técnicas de montagem que para

ele tem uma importância vital e que constituem as visões dos cineastas e a

maneira com que estes manejaram a construção de suas narrativas24. Para

Deleuze, as montagens vão além do caráter técnico, são elas que se

relacionam com o todo da narrativa, dão sentido ao tempo e espaço fílmico,

projetando na tela e passando ao espectador a impressão da realidade

objetiva. Dentro deste contexto, o cinema assume seu caráter de invenção

moderna, na medida em que as técnicas permitem a conjunção da realidade,

do movimento e da aparência das formas passando a ser a base objetiva

para a compreensão desta arte (METZ, 2002:35).

Colocando as técnicas como meio de construção narrativa de uma

história situada num tempo – espaço imaterial, a descoberta da montagem

paralela e do primeiro plano por Griffith permitem uma expressão direta de

23 Friedrich Wilhelm Plumpe, conhecido como F. W. Murnau nasceu em Bielefeld, Alemanha, em 28 de dezembro de 1889. Figura relevante do Expressionismo no cinema, Murnau revolucionou a criação do filme, ao concebê-lo como obra dinâmica e ao usar a câmera para interpretar os estados emocionais dos personagens. Por volta de 1910 entrou em contato com as inovações do diretor teatral Max Reinhardt, que muito o influenciaram. Seu primeiro filme importante foi Nosferatu (1922), que incorpora inovações técnicas e efeitos especiais, como a imagem em negativo de árvores brancas sobre o céu negro.

24 Deleuze tratou em seu livro La imagem - movimiento (1984) de quatro tipos de montagem. São elas: montagem orgânico-ativa, característica do cinema americano, que deu origem às narrativas; a montagem dialética do cinema soviético, orgânica ou material; a montagem quantitativo-psíquica da escola francesa e sua ruptura com o orgânico, e por fim, a montagem intensivo-espiritual do Expressionismo alemão, que une uma vida ainda orgânica das coisas a uma vida espiritual do ser humano. Deleuze estudou a variedade pratica e teórica dos tipos de montagens, segundo as concepções orgânica, dialética, extensiva e intensiva da composição das imagens-movimentos.

74

simultaneidade e justaposição, que possibilitam a integração entre épocas,

entre estados de consciência, entre o passado da memória, o presente da

percepção e o futuro do desejo, entre enredos paralelos e entre experiência

e imaginação. Desta maneira, o cinema, ao invés de limitar-se a

representar conteúdos históricos e culturais, dá forma concreta à

experiência histórica da tendência de fragmentação, de heterogeneidade e

de desintegração do mundo moderno, criando uma nova unidade – possível

materialmente pela película do filme – percebida através do ritmo da

imagem, como alusão a um fluxo infinito e contínuo da experiência interior

do tempo qualitativo, descrito por Bérgson no seu livro A Evolução Criadora

(2005) como "duração – continuidade”.

O tempo perde no cinema a sua irreversibilidade cronológica, em

retrospecções, repetições, lembranças e visões premonitórias, e a imagem

em movimento possibilita relações simultâneas entre acontecimentos

distantes, entre histórias paralelas e entre experiências desconexas no

espaço e no tempo, permite:

“a experiência de tantas coisas tão diferentes, distintas e

irreconciliáveis em um mesmo momento, e que, por outro lado,

diferentes sujeitos em diferentes lugares têm, muitas vezes, a

experiência das mesmas coisas, de que as mesmas coisas

sucedem ao mesmo tempo em lugares completamente isolados

uns dos outros. Este universalismo das quais as técnicas

modernas tornaram possível que o homem contemporâneo

tivesse consciência são, talvez, a real fonte do novo conceito do

tempo e de todo o modo abrupto como a arte moderna descreve

a vida" (HAUSER, 1998: 991).

Desligada da ação direta dos personagens, a narratividade na

75

imagem em movimento figurou uma "linguagem" (DELEUZE, 1984: 86),

que constrói uma simulação estruturada em nossos cérebros das relações

entre as imagens como uma possibilidade objetiva de pensar o tempo. Em

seu estudo sobre o cinema, o filósofo francês insiste na expressão direta da

realidade do tempo nas imagens cinematográficas. Por um lado, na

imagem-movimento, isto é, na imagem que "espacializa o tempo" em uma

relação dinâmica entre imagens que dispensa a ação do herói e concretiza

o puro movimento, e, por outro, na imagem – tempo, que "temporaliza o

espaço", criando uma cristalização do tempo, em que passado, presente e

futuro são dimensões acessíveis, liberadas da cronologia. Deleuze valoriza

no cinema a realidade do tempo como concretizado diretamente em

imagens, sem depender de uma percepção subjetiva. Sua interpretação da

filosofia de Henry Bergson supera a perspectiva fenomenológica e propõe

considerar a “duração – continuidade” como idêntica à consciência,

consciência entendida como um aspecto do tempo materialmente presente

nas imagens e nas relações entre imagens.

Desta forma, o cinema foi considerado como uma das formas de arte

que resultou dos “tempos modernos”, que tratou essas questões de tempo

e espaço de uma narrativa fílmica, entrelaçando-as de forma inteligente por

meio do “uso serial de imagens, bem como a capacidade de fazer cortes no

tempo e espaço em qualquer direção” (HARVEY, 2004:277).

Quebrando o paradigma cinematográfico do cinema moderno, Blade

Runner - o caçador de andróides (1982), de Ridley Scott surge como uma

obra considerada pós – moderna25. Neste filme, os aspectos abordados

expressam a falência do urbanismo moderno e da era da máquina. A

realidade do final do século XX não correspondeu às utopias imaginadas

25 O pós – moderno será um dos tópicos a ser abordado no capítulo subseqüente dessa dissertação.

76

pelas Revoluções Industriais. Blade Runner é um retrato do mundo

contemporâneo, que exprime os extremos de uma sociedade de alta –

tecnologia convivendo com velhas estruturas modernas que lutam por sua

sobrevivência, mas que ainda permitem o uso de espaços de convívio

humano.

CAPÍTULO II

Blade Runner – O caçador de Andróides.

Na era do progresso tecnológico, marcada por grandes avanços,

permanecem atividades nas quais a força bruta ainda é utilizada como força

motriz, a despeito da existência da máquina. Como interpretar as imagens

de Blade Runner – o caçador de Andróides (1982), repletas de homens

que vagueiam pela cidade suja e poluída, empurrando carros – de – mão no

confuso mercado de produtos genéticos fabricados artificialmente e

extremamente sofisticados, senão como um dos traços da pós –

modernidade, de uma era na qual o futuro se afirma e o passado ainda não

deixou de existir, mesmo nos grandes centros?

Miséria e degradação manifestam – se em torno dos interstícios do

desenvolvimento tecnológico e da riqueza. Talvez seja mais apropriado

considerar Blade Runner como uma visão sobre a passagem da

modernidade para a pós – modernidade, exatamente o fio condutor de um

momento ao outro.

77

No que tange a visualização dessa passagem, o cinema que atinge a

grande massa passa a ser o símbolo de todas as formas de representação

visual estética, baseada nas novas tecnologias que surgiram com a era

chamada modernidade. Por essas características, o cinema será o nosso

suporte, para que possamos estabelecer os aspectos fundamentais da

evolução cultural do sujeito moderno, do sujeito pós – moderno e do

sujeito – maquínico que abordaremos no capítulo III. Por isso, neste

capítulo, decuparemos as principais cenas de Blade Runner, cujos

elementos nos servirão para descrever o que será essa passagem. O filme

nos revela a visão de tempo e espaço dos sujeitos que o produzem e trazem

para a tela visões prefigurativas e vinculadas às tradições e ideologias

presentes nestes sujeitos.

Enquadrando suas ações exemplares em seqüências diretas, o

cinema nos encaminha para a idéia de transformação de uma realidade

social. Desde seu nascimento em 1898, o cinema é capaz de trazer para o

espectador realidades e inquietudes que se manifestam no dia–a–dia dos

sujeitos. Ademais, consegue codificar novos significados, profetizando

tecnologias e avanços científicos que tomam forma no novo milênio.

Neste contexto, o filme do gênero ficção científica Blade Runner – o

caçador de andróides (1982), do diretor inglês Ridley Scott estabelece, por

meio de uma visão do futuro, os efeitos dessas revoluções tecnocientífica

que afetaram o sujeito contemporâneo e que se referem à criação, pelo

homem, por meio de manipulação genética, de um duplo à sua imagem e

semelhança. Os elementos visuais e filosóficos do filme nos ajudarão a

refletir os modos de ser, viver e pensar nas sociedades pós – modernas dos

sujeitos – maquínicos.

78

1. A relação humana – maquínico em Blade Runner – decupagem das

principais cenas.

... No início do século XXI a Tyrell Corporation criou os robôs

da série Nexus virtualmente idênticos aos seres humanos. Eram

chamados de replicantes. Os replicantes Nexus 6 eram mais ágeis

e fortes e no mínimo tão inteligentes quanto os engenheiros

genéticos que os criaram. Eles eram usados fora da terra como

escravos em tarefas perigosas da colonização interplanetária.

Após um motim sangrento de um grupo de Nexus 6, os

replicantes foram declarados ilegais sob pena de morte. Policiais

especiais, os blade runners, tinham ordens de atirar para matar

qualquer replicante. Isto não era chamado execução, mas sim

“aposentadoria”...

Este texto está na abertura de Blade Runner – o caçador de

andróides (1982) do diretor inglês Ridley Scott. O filme trata da inquietação

vivida pelos humanos diante de um mundo em extinção e da realidade, a

partir da criação em laboratório por meio da biotecnologia, de seres

79

humanos mais que humanos, como apregoa a Tyrell Corporation – fabricante

dos replicantes, colocando em xeque as bases intangíveis da natureza

humana e do seu futuro.

Visão quase profética de tão atual, Blade Runner nos surpreende até

hoje, vinte e cinco anos depois do seu lançamento, por nos mostrar um

futuro não muito distante e que parece ser um futuro possível, conseqüência

dos avanços das técnicas e do desencantamento dos seres humanos. Um

mundo povoado por seres artificiais e máquinas, lugar no qual o ente natural

perdeu o seu posto para os artefatos tecnológicos criados para servi-lo.

Blade Runner – o caçador de andróides é uma adaptação do livro de

Philip K. Dick: Do Androids Dream of Electric Sheep? (1968), autor

também responsável por um vasto leque de romances que originaram

alguns filmes, tais como Total Recall (1990) de Paul Verhoeven ou Minority

Report (2002) de Steven Spielberg. Ridley Scott e a sua equipe de

argumentistas (Hampton Fancher e David Peoples) trabalharam no alicerce

do livro e edificaram um filme que transcende o próprio romance de Philip K.

Dick, aprofundando – o. A obra de Ridley Scott marcou por sua incrível

beleza, minúcia estética e pelo efeito de caleidoscópio de suas imagens.

Passados os 118 minutos obsessivamente sombrios do filme, guarda – se a

impressão de ter assistido a um espetáculo de elementos poéticos, como se

Ridley Scott tivesse emprestado às imagens e aos sons de sua obra uma

outra voz: uma melodia codificada na ordem das formas do sonho.

No universo criado pela sétima arte, a hiper – realidade, enquanto

imitação do real, não se limita a uma mera reprodução do mesmo; perde-se

a distinção entre os objetos e suas representações, restando somente o que

Baudrillard, no livro Simulacros e simulação (1991), denominou de

simulacros. Simulacros que não se referem a nada senão a si próprios. Os

meios de comunicação, como os anúncios de televisão e os efeitos

especiais que imperam hoje no mundo cinematográfico, reproduzem

uma realidade já existente, assumindo – se esta como uma falsa realidade,

sendo por isso exemplos característicos desses simulacros. Porém, neste

cosmos hiper – real encontramos situações mais inspiradoras, mais belas,

aterradoras e geralmente mais interessantes do que no quotidiano de

qualquer ser humano. O cinema está, por isso, ligado a uma estética do

simulacro enquanto desaparição da realidade.

Fig. 17 Roy Batty – líder dos replicantes

Blade Runner, o cult–movie de ficção científica, oferece – nos uma

descrição futurista da humanidade com seres geneticamente desenvolvido

em laboratório, criados à semelhança do homem. Neste filme somos

confrontados com uma humanidade que se desenvolve em um mundo

fragmentado e construído sob ruínas. Blade Runner mostra – nos o tipo de

sociedade que emergiu a partir da ascensão das tecnologias. Nas ruas da

cidade suja, escura e decadente, encontramos uma desconstrução da

própria realidade em que vivemos, para dar lugar a uma outra realidade. No

80

final, o “humano” apaixona – se pela máquina e têm ambos direito a um final

feliz. Afinal a máquina também pode sonhar. As imagens dão origem a

outras imagens, que não possuem, necessariamente, uma base no real

extra – tela.

Para observarmos esta relação humano – maquínica em Blade

Runner, faz – se necessário o pressuposto técnico, com a ficha da obra, a

sinopse e a decupagem das principais cenas.

81

Título Original: Blade Runner

Gênero: Ficção Científica

Tempo de Duração: 118 minutos

Ano de Lançamento (EUA): 1982

Estúdio: The Ladd Company

Distribuição: Columbia TriStar / Warner

Bros.

Direção: Ridley Scott

Roteiro: Hampton Francher e David W.

Peoples, baseado no livro de Philip K.

Dirk

Produção: Michael Deeley

Música: Vangelis

Direção de Fotografia: Jordan Cronenweth

Desenho de Produção: Peter J. Hampton e Lawrence G. Paull

Direção de Arte: David L. Snyder

Fig. 18 Cartaz do filme Blade Runner (1982)

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Figurino: Michael Kaplan e Charles Knode

Edição: Marsha Nakashima

Efeitos Especiais: Dream Quest Images

Elenco:

Harrison Ford (Deckard), Rutger Hauer (Roy Batty), Sean Young

(Rachael),Edward James Olmos (Gaff), M. Emmet Walsh (Capitão Bryant),

Daryl Hannah (Pris), William Sanderson (J.F. Sebastian),Brion James

(Leon), Joe Turkell (Tyrell), Joanna Cassidy (Zhora), James Hong (Hannibal

Crew), Morgan Paull (Holden)

Sinopse: Blade Runner – o caçador de andróides (1982) trata de um

pequeno grupo de seres humanos geneticamente criados em laboratório,

chamados de “replicantes”, que voltam a terra para enfrentar seus criadores.

Fabricados pela Tyrell Corporation, cujo slogan publicitário é "Mais Humano

que os Humanos", os modelos Nexus – 6 foram desenvolvidos com um

propósito específico: trabalhar como escravos, executando tarefas altamente

especializadas em ambientes inóspitos na colonização espacial. Os

replicantes são dotados de força, de inteligência igual ou até maior que os

seres humanos comuns, e possuem dispositivos sentimentais que em alguns

anos se transformam em emoções próprias, idênticas aos humanos – ódio,

amor, medo, raiva, inveja – pois assim conseguem se adaptar às exigências

de suas tarefas, tarefas que muitas vezes exigem julgamentos que se

igualam aos dos seres humanos naturais. Uma vez que eles têm a

capacidade de sentir, e com isso podem representar em algum momento um

perigo à ordem estabelecida, seus fabricantes criaram um mecanismo de

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proteção – um tempo de vida limitado a apenas quatro anos. Os replicantes

não são meras imitações, mas reproduções autênticas, indistinguíveis dos

seres humanos, exceto por três pormenores: os olhos emocionais, ausência

de memória e vida extremamente curta.

Em novembro de 2019, seis replicantes, após um motim, fogem de

uma das colônias para a terra com o objetivo de encontrar seu criador e

exigir uma modificação genética que lhes aumente o tempo de vida26. Este

incidente transforma os replicantes em seres ilegais na Terra, sendo

condenados à pena de morte. Os policiais especiais, de elite, como são

considerados os blade runners, são responsáveis pela caça e “aposentadoria”

dos replicantes que excedem este tempo de vida ou, como no caso, se

rebelam contra as condições que lhes são impostas. Os blade runners têm

ordem para matar os fugitivos, porém para seguir as leis impostas na

sociedade, este ato de execução é chamado de aposentadoria. Para

localizar e executar os replicantes um ex – blade runner (Harrison Ford) é

convocado para o serviço.

Os primeiros minutos de Blade Runner bastam para traçar uma

radiografia da vida humana em Los Angeles, no ano de 2019. Dois homens,

em um falso diálogo em que se procura determinar a "não humanidade" do

interlocutor, reúnem – se em torno de um instrumento, único juiz a sondar a

pupila de sua vítima, como se fosse um furo na parede. Não há lugar para

sentimentos. O terror da ordem e do protocolo que se instalam, e nos

conduzem ao primeiro crime, que encerra a cena.

26 Há um erro de continuidade talvez proposital quanto ao número de replicantes, por exemplo, Deckard caça quatro replicantes que estão soltos na cidade – Roy, Leon, Zhora e Pris, e os dois que faltam podem estar se referindo a Rachel – sobrinha de Tyrell – que descobre ser replicante durante a trama, transformando-se em fugitiva, e o outro ao próprio Deckard.

Rick Deckard, o policial solitário, vagando nas mais profundas camadas

sociais abandonadas pela ordem, entre a histeria dos néons e a exuberância

barroca das fachadas, começa sua empreitada nas ruas sob um signo de

tolerância – "dois mais dois igual a dois"; breve clarão de esperança no

diálogo surrealista com o chinês da barraca. Deckard procura libertar – se do

sol negro sob o qual passa seus dias em sonolência. Movido pela obrigação

profissional, ele sente, portanto, a cada passo, o apelo insistente de certo

abandono, sacrifício tanto mais apavorante em Los Angeles, reino da

indeterminação e do caos, da visão e da razão, antro da crise das

aparências e do corpo, um deserto espiritual. Não mais se conhece a

linguagem dos sentimentos; como diz Bergman no livro A Evolução

r Harrison Ford

Criadora (2005), não mais se distingue os sentimentos da lembrança dos

sentimentos.

Esta angústia vinda do caos e da indeterminação, presente em Blade

Runner é o que Kracauer, o autor de De Calligari a Hitler (1985) opõe à

iminência da tirania na Alemanha de sua época. Este autor alemão

descrevia uma sociedade de tal insegurança, na qual cada indivíduo era

suspeito de ser o "olho do poder". No filme Blade Runner, cuja inspiração é

retirada do expressionismo alemão, procura – se então a nova forma de

poder nessa desordem, e encontramos a resposta nas alturas de uma

pirâmide inacabada, meio Babel, em um mundo obcecado pela conquista

colonialista do além, pelo domínio da técnica e pelos avanços da engenharia

genética.

Ridley Scott, artista plástico e publicitário, privilegia e desenvolve o

tema da percepção visual, instrumento da consciência. A história começa

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sob um olhar que se pousa sobre os homens, ao mesmo tempo em que se

anuncia a chegada dos misteriosos replicantes. Em Blade Runner o poder

parece medir – se pela capacidade do homem de conhecer sua própria

existência, extraindo da técnica todo o avanço necessário à manipulação da

criação de um ser humano.

Neste caso, o aspecto dos replicantes não nos deixa saber sem

vacilarmos se eles são um artefato ou um ser humano “natural”, ou seja, a

modelagem em laboratório ou o simulacro criado é mais perfeito que o

natural. Simulacro que receberá dados de memória que não são deles,

sentimentos e vivências que não são seus. Simulacros humanos melhores

que os humanos, criados para viver em um mundo paralelo à realidade.

Fig. 19 J.F.Sebastian designer

genético e suas criações

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Blade Runner pretende expressar as suspeitas de que as realidades

mais cotidianas são máscaras com que se revestem o extraordinário avanço

da ciência. O poder supostamente ilimitado dos meios tecnológicos, em

Blade Runner, faz com que duvidemos sem cessar das nossas percepções,

pois, no filme é concedido um papel importante aos artefatos técnicos que se

inserem cada vez mais na vida cotidiana. Cabe aqui a pergunta: seria a

técnica um simples meio para representar o mundo, ou pelo contrário, as

imagens geradas artificialmente já se têm convertido em parte de nossas

percepções e memórias? Em um tempo no qual a tecnologia abre os

horizontes do possível, o cinema é uma arte dedicada a por à prova os

limites da percepção humana. Por isto, não nos deveria surpreender que os

filmes estivessem continuadamente alimentando – se conscientemente da

suspeita de que a vida não é mais que uma refinada ilusão.

Esse caráter ilusório da vida fica mais evidente com o filme Matrix

(1999), dirigido pelos irmãos Andy Wachowski e Larry Wachowski. Matrix

deixa claro para nós, espectadores, a analogia entre o uso do computador

para a criação de simulações, com base nos modelos armazenados na

memória cultural da humanidade. Por esse prisma, o filme pode ser lido

como uma espécie de comentário dos Wachowski ao seu próprio processo

de criação: a concepção e desenvolvimento artificiais de um mundo paralelo

ao nosso, repleto de referências intertextuais às narrativas criadas ao longo

da história do mundo. Nesse sentido, o universo simulado pela Matriz do

filme – o mundo de 1999, recriado pelas máquinas – é, efetivamente, o

nosso mundo contemporâneo, ou uma versão muito fiel dele, onde

intertextualidade, discussões filosóficas sobre o estatuto da realidade e o

surgimento de uma nova onda de religiosidade e misticismo aparecem como

traços marcantes.

Fig. 20 Matrix (1999). 00

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Dentro deste contexto, os sistemas originais que se pretende simular

já são simulações: a imensa gama de histórias do universo ficcional que

constitui o patrimônio cultural da humanidade, no filme, já está disponível

digitalmente. A Matriz usou como base para a criação de sua simulação do

mundo de 1999 não o mundo "real", que se encontrava "lá fora", exterior a si

mesma, mas as inúmeras narrativas que constituem o nosso universo

ficcional, e que estavam disponíveis em sua memória. Por uma questão de

economia de tempo e energia, era mais fácil apropriar – se da realidade já

convertida em informação do que recria – la do zero.

Em Matrix (1999), estamos diante do mundo virtual. Um mundo onde

as coisas existem potencialmente, em estado de latência. Onde há espaço

para a ordem e para a desordem. Este mundo virtual se localiza entre o

mundo real e o imaginário. Por um lado, transporta operações diretas da

realidade, por outro tem a imaterialidade de um universo carregado de forças

simbólicas que transitam além das culturas. Pensar estes elementos como

forma de criação e fragmentação no que concerne a um modelo

estabelecido herdado da imagem estática, tende a delimitar o campo da

representação e permite pensar a simulação como um campo em

construção que suporta as configurações dinâmicas possíveis, não as

sintetizando, mas sustentando as tensões que estas produzem,

estabelecendo um nexo possível entre a representação no campo da arte e

no campo da ciência.

O método dominante de representação do espaço, desenvolvido ao

largo da história moderna da cultura ocidental, esteve baseada na

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perspectiva artificial, logo “naturalizada”. Assim, a forma de representação

aspira a mostrar de forma eficiente a profundidade do mundo real por meio

de um suporte bidimensional, uma abstração em duas dimensões, capaz de

gerar a imagem mais próxima possível ao objeto real tridimensional. Desse

modo, a representação, no conceito tradicional, está ligada à semelhança da

aparência do objeto reproduzido.

Os filmes Blade Runner (1982) e Matrix (1999) colocam a questão da

aparência sob os aspectos existenciais; não só em relação ao corpo, mas

também no que se refere ao sentir e ao pensar. Memória sentimental e

memória do corpo, sentimentos e lembranças, separados pelo abismo no

qual se instala o instrumento técnico, insidiosamente. Como encarar, nesse

mundo, o projeto da célebre frase: "Conhece – te a ti próprio" inscrita no

templo de Apolo em Delfos? Como se armar de coragem para fazer as

verdadeiras perguntas, como os replicantes em busca do ser demiúrgico,

cujo crime projeta a sombra sobre suas vidas breves? Pois, para conquistar

o além, era necessário criar escravos; e para que fossem utilizáveis, estes

deveriam ter uma vida curta o bastante para que não aprendessem os

sentimentos, e para que não começassem a questionar. Em Blade Runner,

Tyrell, o gênio, cientista biomecânico e tecnocrata com feições clericais,

criou a vida perfeitamente útil e em Matrix, Neo habita o deserto do real

onde tudo é possível.

Os replicantes de Blade Runner foram feitos para produzir, e parecem

empenhados em uma busca desenfreada pelas atividades humanas

improdutivas: os desejos e os sonhos ou distrações que entorpecem.

Buscam esta “alegre primavera” do tempo leviano, em oposição ao tempo

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pesado e lento da virtual escravidão em que se encontram. É interessante

notar que para entender sua existência, os replicantes tenham chegado ao

conhecimento de que, ao contrário da sua aparente superioridade em

relação aos organismos com base de carbono, não são seres totalmente

liberados da carne e do sangue: são também escravos de uma existência

determinada e limitada pela finitude de um tempo, programados pela Tyrell,

que os faz descartáveis e substituíveis.

Anuncia – se o consumo voraz, a efemeridade das coisas, a passagem

do tempo e a fugacidade da vida, conceitos aos quais se refere Baudrillard,

no seu livro A Sociedade de Consumo (2000). Sociedade de consumo que

é expressa pelos produtos da indústria cultural e de bens de consumo que

são adquiridos, músicas que podemos ouvir, filmes e programas que

podemos assistir, etc., produzindo um ambiente em que proliferam

elementos apropriáveis segundo uma dinâmica lúdica, despreocupada, que

parece ser o oposto exato da premência do trabalho maçante e repetitivo a

que seres humanos estão condicionados normalmente na vida cotidiana.

O fundamento da cultura do consumo é o da apropriação estética do

gozo narcíseo de manipular ludicamente qualquer coisa que se afigure como

signo da inteireza de si mesmo. Em outras palavras, a grande fantasia que

move o indivíduo contemporâneo é a de que ele possui um ego

suficientemente forte, capaz de prolongar a sensação de prazer que ele

busca em cada um dos objetos que poderiam refletir a sua imagem. Tudo o

que é pretendido dos objetos é apenas que eles confirmem que o nosso

desejo tem certa legitimidade, desejos expressos nesta marcha inexorável

da vida, estendendo – se na medida em que se consegue gerar um tecido

razoavelmente homogêneo, capaz de circunscrever toda a nossa libido até

se apossar dos objetos como se quisesse apossar – se do próprio eu.

Na ânsia de buscar esta solidez, propiciada pelo consumo e almejada

como o cume da felicidade, o sujeito também parece perder aquilo que ele

tanto procura que é o limite que circunscreve a sua própria identidade. Os

objetos nos dão uma identidade fragmentada, constituída por esta trama de

relações espaciais e de multiplicidade temporal expressas nos filmes,

programas de televisão e nos produtos que são freneticamente postos ao

alcance do sujeito e por ele são comprados na mesma rapidez com que são

fabricados.

Fig. 21 Zhora – replicante dançarina

No filme Blade Runner, a sociedade de consumo atingiu um alto grau

de sofisticação, consegue – se de tudo, desde oportunidades em outras

galáxias, bem como seres artificiais, graças aos avanços da engenharia

genética. Tornou – se possível produzir não só animais artificiais, já que a

maioria das espécies entrou em extinção, como também protótipos humanos

que podem ser adquiridos como empregados. Essa sociedade de consumo

é representada em Blade Runner pela personagem Zhora. Esta replicante

trabalha em uma espécie de casa de shows, onde tudo é exibição, um

espetáculo, e a imagem pública é essencial, a começar pelos freqüentadores

do lugar com suas roupas exóticas, um revival de várias épocas, anos 40,

dançarinas de cabarés, anos 30... A própria replicante é a imagem do

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espetáculo, com sua cobra artificial e o seu corpo exibido através das

roupas que veste.

Fig. 22 Zhora é eliminada por Deckard

Peças de vestuário que deixam o corpo à mostra e, lembrando uma

vitrine, ela coloca uma capa de plástico transparente e se põe a fugir de

Deckard pelas ruas labirínticas de Los Angeles. Na cena da sua morte,

Zhora é atingida nas costas por um tiro disparado pelo blade runner Deckard e

atravessa camadas e camadas de vitrines, nas quais estão expostas vários

tipos de mercadorias e produtos. Além dessas características próprias do

consumo moderno, Blade Runner apresenta um mercado livre, onde se

pode encontrar outros produtos, como simulacros de animais que foram

extintos da natureza, peles artificiais, olhos humanos, produtos da

engenharia genética e das tecnologias proporcionada pelos avanços da

sociedade pós – moderna presente no filme.

Na cena final vemos o interrogatório do início transformado em

perseguição: o caçador tornou-se a presa. O replicante Roy, fruto da

engenharia genética, ser construído com os produtos do mercado pós –

moderno, dança em êxtase, uivando, irradiando a força; ele guarda todas as

saídas do apartamento em que se encontram. Aterrorizado, o herói Deckard,

escala a fachada do prédio até o alto. Sua única escapatória é saltar no

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vazio para alcançar o prédio vizinho – o policial blade runner prepara-se para

dar o pulo… Deckard pendurado pelas mãos, vê apenas Roy, o filho

prodigioso de Tyrell imitar seu salto, como se voasse. Parece um semideus;

neste estado exaltado encontra a vontade positiva de salvar Deckard, que

lhe estende a mão em seu desespero trágico. Deckard alcançou o limite da

mediocridade, Roy o limite da morte: a figura do sacrifício, um estado de

abandono.

Blade Runner é uma odisséia de sujeitos – homens e mulheres –

humanos e pós–humanos, em busca da sua essência. Esta busca conduz o

espectador a uma indagação sobre o que é ser humano. É um filme que

contém uma reflexão filosófica sobre o problema da identidade humana,

debilitada pela fragmentação e pelo medo que sente o sujeito diante da

vigência de estruturas mecanicistas e dos avanços biotecnológicos.

Fig. 23 O gabinete de Dr. Caligari

(1919)

Para trazer a atmosfera do medo e do desconhecido, Ridley Scott

inspirou-se no filme noir como possibilidade de aproximar – se do futurismo

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empreendido pelos diretores alemães expressionistas como F. W. Murneau

e Fritz Lang. Estes diretores transformaram – se em mestres do cinema, e

vieram depois a inspirar o cinema noir das décadas de 40 e 50 dos filmes

americanos. Uma das características desses diretores do cinema alemão

pós - primeira Grande Guerra foi expressar o medo do homem daquela

época frente ao desconhecido, ao horror da guerra e a mecanização pela

qual o mundo estava passando. Além disso, a Alemanha enfrentava uma

séria crise financeira e o cinema conseguiu sobreviver com orçamentos

baratos, graças à incursão de arquitetos e profissionais vindos do teatro, que

utilizavam uma cenografia simples como uma boa solução aos altos

custos27. Nesse contexto, Ridley Scott trabalhou o cenário futurista por meio

de maquetes e sobreposições de imagens, o que trouxe para as telas uma

idéia da fragmentação dos sujeitos e do mundo contemporâneo. Estes

artifícios cênicos criaram um efeito de caleidoscópio e, de certo modo,

tornaram possível a materialização de um mundo confuso e destruído,

amedrontador, tal qual nas cenas dos filmes do expressionismo alemão.

O expressionismo alemão, conforme já citamos anteriormente, é uma

cultura de crise, um reflexo do profundo desalento espiritual gerado nos

campos de batalha da Primeira Guerra Mundial. A face da morte, estampada

nos rostos de milhões de jovens precocemente ceifados, despertou os

sentimentos de terror, misticismo e magia, adormecidos na alma alemã. A

certeza positiva dos sonhos de glória do imperialismo germânico cedeu

espaço à sombra da derrota, da humilhação e do desespero. O

27 O filme noir basicamente significa “filme escuro”, uma variação do termo francês do século XIX “novela escura” – referindo-se a qualquer número de dramas policiais carregados de significados psicológicos, gênero cinematográfico expressivo dos anos 40 e 50. Há sete elementos em um filme noir que Raymond Borde e Etienne Chauteton apontam em Panorama du film Americain: um crime; a perspectiva vista dos criminosos, e não da polícia; uma visão invertida das tradicionais fontes de autoridade, tal como a corrupção policial, alianças e lealdades instáveis; a femme fatalle - a mulher que causa a ruína e a morte de um bom homem; violência bruta; motivação e mudanças em complôs bizarros.

renascimento do horror foi, pois, o fermento ideal para o surgimento do

espírito expressionista, fim de todas as ilusões de poder. Povoado de

incertezas e sombras, surgia, inclemente, um novo mundo, e o movimento

expressionista, apoteose do indistinto e do vago, se transformaria na estética

perfeita para esta realidade atroz.

Neste contexto podemos afirmar que Ridley Scott, em Blade Runner,

traça um paralelo entre o horror da guerra vivida pelos alemães e o

estranhamento da evolução tecnocientífica vivida pelo homem pós –

moderno. Por meio de sua visão expressionista, torna recorrente a descrição

de um futuro no qual a humanidade é controlada de modo absoluto pelas

máquinas ou pelos grandes conglomerados que monopolizam a tecnologia,

tais como a Tyrell Corporation, a empresa de engenharia genética que fabrica

os replicantes. No filme, a técnica se converte em um meio para a fabricação

de seres vivos, sejam eles humanos ou não, simulacros da natureza perdida.

Figura no. 24 Cena do filme Blade Runner

Os objetivos, tanto da Tyrell como dos replicantes, parecem convergir:

a Tyrell busca a fabricação de seres perfeitos “mais humano que os

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humanos” e para isso, cria o mecanismo de implantes de memórias, para

dar a falsa impressão ao replicante de que ele é humano. Já os replicantes

fugitivos buscam um aperfeiçoamento de sua genética para aumentar a sua

expectativa de vida. O drama dos replicantes é o drama humano, ou seja, ao

ouvir do seu criador que não podem ter um tempo de vida maior, os Nexus 6

colocam – se diante do limite da inteligência humana. Diante dessa

impossibilidade de realizar o seu desejo – viver mais – em uma das cenas

mais significativas do cinema no século XX, Roy mata Tyrell, a cena do

criador sendo dilacerado pela própria criatura remete a uma morte

metafísica, a morte de Deus, do criador sugerida por Nietzsche.

Há duas versões para o filme de Ridley Scott. A primeira, lançada

comercialmente em 1982, continha uma narração em off, por imposição dos

executivos do estúdio, e feita por Harrison Ford - protagonista do filme,

intérprete de Deckard. Na versão do estúdio, o policial Deckard (Harrison

Ford) termina com a replicante Rachel (Sean Young) sobrevoando num

spinner, em um céu azul sobre um prado verde, um verdadeiro happy end

hollywoodiano. Completando este final feliz, os executivos determinaram que

Rachel era um tipo de replicante especial e que ninguém sabia quando ela

morrerá.

A outra versão foi lançada em 1991, em DVD, e é chamada versão do

diretor. Nesta versão Scott reivindicou a sua genuína visão, sem a

adulteração dos estúdios. Nela, o diretor deixa mais claro que Deckard é um

replicante, elimina a narração em off e o final “feliz”, menos ambíguo,

imposto pelos estúdios. O final do filme é assombroso, violento e envolvente.

A fantástica visão gótica de Scott é expressa por meio dos belos efeitos

plásticos como: a iconografia, o futurista mundo alquebrado, a fotografia, a

composição musical e o instigante argumento que deificam a história.

Fig. 25 Rick Deckard

Ridley Scott concebeu Blade Runner como uma história futurística,

uma grande metrópole dominada por asiáticos em um vasto centro urbano.O

desenvolvimento da sociedade do capital é o desenvolvimento ampliado de

suas contradições sociais, seja no campo da técnica e da tecnologia, seja no

da sociabilidade e subjetividades humanas e também do ecossistema

urbano – social. O “estranhamento” atinge o trabalho e a reprodução social,

o que significa que desefetiva a memória e a identidade do homem,

dilacerando seus referentes de espaço – tempo, comprimindo – os e

imprimindo neles sua marca indelével. A manipulação de homens e coisas

assume dimensões cruciais. A sociedade pós – moderna tende a se tornar

uma imensa coleção de objetos – mercadorias complexos, criados pelas

tecnologias de engenharia genética. No limite, a produção de mercadorias

atinge a produção de supostas inteligências artificiais e de objetos –

replicantes no limiar do ser humano.

A ordem industrial pós – moderna parece dar lugar a novos princípios

de organização estruturados em torno do conhecimento, não da relação

trabalho/capital, baseados na máquina para ampliar o poder mental, ao invés

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da força muscular. No filme, o conhecimento em expansão produziu um

comércio no qual a engenharia genética introduziu um simulacro humano.

Os replicantes vivem em um mundo que superou suas limitações de

tempo/espaço, graças às tecnologias e à globalização do mundo. Mas a

antiga classe trabalhadora ainda não desapareceu totalmente. Seres

humanos vindos de países pobres vivem em Los Angeles e formam o

proletariado pós – industrial explorado. É essa mescla cultural, intensificada

pelos novos meios de comunicação, que confere ao pós – moderno seus

pontos de referências sociais.

Fig. 26

Vídeo – wall em Blade Runner

O filme dirigido por Ridley Scott atravessou o imaginário do futuro com

sua construção de identidades difusas, especialmente prematuras para

1982, mas que a globalização e as tecnologias de informáticas trataram de

ilustrar na continuação do tempo. Na cidade de Los Angeles há o triunfo da

cultura oriental e das próteses corpóreas, um futuro no qual convivem a

técnica e o homem que alteram as leis naturais, replicantes em busca da

consciência, do passado, da memória nunca possuída e a vertigem das

cenas noturnas, com as luzes da metrópole transfiguradas pelo sentido

artificial da angústia das próteses vivas e humanizadas.

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A decadência da sociedade é retratada através de imagens de

destruição, destruição do mundo e dos seus habitantes por meio de um

sistema de fabricação de produtos desordenado e descontrolado. Estas

imagens estão presentes principalmente nas figuras dos próprios

replicantes, com seu design idêntico aos seres humanos, sendo produtos

descartáveis, iguais a tantos outros da sociedade contemporânea,

fabricados para ter uma vida útil curta; além disso, as imagens de

decadência também se refletem na fragmentação da própria vida.

Blade Runner envolve temas pós – modernos situados em um

contexto de compressão de tempo – espaço. O conflito ocorre entre pessoas

que vivem em escalas de tempo diferentes e que vivem e vêem o mundo de

formas diferentes. A cidade de Los Angeles é a representação de um futuro

em ruínas, uma paisagem decrépita de desindustrialização e de decadência

pós – industrial, reflexo de uma sociedade em crise e em busca de respostas

que resolvam os problemas que a sociedade inventou.

Fig. 27 A cidade de Los Angeles

A Los Angeles do futuro representa a (des) ordem da sociedade

subjugada por um Estado de vigilância e controle. A ordem é assumida pelas

corporações pós – industriais, que usam seu poder para criar réplicas

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humanas criadas para servir a estas corporações. Com o surgimento desses

seres fabricados, dá – se o surgimento de formas de vida de sujeitos que

não são humanos, mas que têm mais sentimentos que os próprios humanos.

Dentro deste contexto, o propósito de se criar novas formas de sujeitos

deriva do desejo de conseguir uma existência supra – humana e de se

estabelecer novas formas de controle.

Os replicantes de Blade Runner são a sublimação do desejo de criar

um ser superior em inteligência e dotado de vida, mas subordinado e

escravo da vontade humana e das corporações que os criaram. Os

replicantes são o substituto ideal, para as atividades pesadas que são

executadas fora da terra, o substituto idôneo e perfeito do humano frágil; não

se queixa, rende mais e trabalha melhor, seu desgaste é mínimo e seu

salário inexistente. Os replicantes pertencem à Tyrell Corporation – uma

grande corporação que garantiu a sua sobrevivência em troca da sua

liberdade, submetendo-os ao sistema de produção sem questionamentos e

sem que eles se rebelem contra o seu poder.

Outra característica marcante em Blade Runner é a música. A

atmosfera sombria do filme é enriquecida pela trilha sonora criada por

Vangelis28. Vangelis trabalha sobrepondo suas performances umas às

outras, em um gravador multifaixas - multitrack record - tocando virtualmente

toda a peça musical sozinho. Esta trilha em particular é um esforço

tecnológico, atraindo a força conjunta de uma bateria de sintetizadores e

28 Vangelis Papathanassiou – compositor grego, autor da trilha sonora do filme Blade Runner – o caçador de andróides.

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outros equipamentos. Algumas das principais razões pelas quais a trilha

sonora de Blade Runner ainda parece contemporânea, foram a escolha dos

instrumentos usados e também o modo como Vangelis combinou sons

acústicos e eletrônicos para produzir texturas sonoras evocativas, muito

originais, como por exemplo, a combinação de instrumentos de percussão

orquestral e linhas completas onipresentes com sintetizadores, ouvidas no

tema de abertura, tocadas no sintetizador predileto de Vangelis, o Yamaha

CS80. Este sintetizador analógico pode ser ouvido em quase todas as faixas

da trilha sonora de Blade Runner, tornando-se um impressionante veículo

sonoro. No caso específico de Blade Runner, é a música emocional que

parece dar vida, envolvendo em uma atmosfera inquietante os mundos frios,

duros e tecnológicos representados na tela.

Blade Runner e seus replicantes são singulares, seja na música, seja

na história. Do mesmo modo que Frankenstein escapa das mãos de seu

criador, os replicantes também fogem em busca do seu tempo perdido. O

mistério da vida e o enigma de sua diversidade desabam como a chuva em

Los Angeles do século XXI.

101

2. A relação maquínico – humana.

A história se passa em data e lugar concretos: “Los Angeles, novembro

de 2019”. A partir deste posicionamento espaço – temporal, Ridley Scott

desenvolve questões que podem ser divididas em categorias dialéticas

filosóficas que são tratadas no filme e que analisaremos neste tópico e no

subseqüente. Estas dialéticas estão assim categorizadas: natural versus

artificial; homem versus máquina; o real e o imaginário; a desumanização

das cidades e a identidade humana.

a) Natural versus artificial

A oposição entre natural e artificial é assim o operador de todo um

conjunto de passagens e de transgressões que nos revelam o homem como

um ser arrancado de sua mera verdade física e biológica. O homem é um

ser de fronteira que assume seu lugar como um ser capaz da transformação

criativa do mundo. O paralelo do natural e do artificial estava frente ao

avanço da técnica como um devir da literatura de ficção científica

transfigurada para a sétima arte. No filme, Ridley Scott traça um paralelo

entre o que é natural e o que artificial representado pela criação de um

conjunto de seres artificiais inteligentes com capacidade de produzir

autonomamente a sua própria expressão da vida ao levantar um conjunto de

questões, não só no que se refere ao que é artificial, mas acima de tudo à

própria idéia do humano.

Fig. 28 O olho humano em Blade Runner

Em uma das primeiras cenas, em claro contraste com o vasto

panorama urbano, aparece um olho humano no qual se refletem as luzes da

metrópole. É um olho vigilante – talvez o olho do espectador, talvez o olho

do diretor – que ocupa toda a tela como uma espécie de monitor ou espelho

no qual se refletem as ameaçadoras bolas de fogo que cruzam o céu.

102

A tomada seguinte mostra uma colossal construção: duas pirâmides,

símbolos do conhecimento, poder e morte. De novo aparece o olho, que

agora nos recorda um hieróglifo egípcio. Trata – se de várias coisas: um

órgão sensorial que durante o filme revela – se importante para a

identificação e a diferenciação dos replicantes; uma sala de projeção, lugar

no qual o espectador estará vivenciando o mundo real do filme; e os

103

símbolos do poder humano: conhecimento, força e morte. Nesta tomada a

íris é filmada em primeiro plano: o centro do olho parece agora um sol negro

rodeado de fagulhas de luz que nele se refletem; o universo espelhado no

olho se apresenta mesclado, interdependente e indivisível.

Gradualmente a câmara se dirige às pirâmides. Em uma das janelas

podemos ver o interior da construção, e encontramos um objeto

extremamente antiquado para esta megalópole futurista: um ventilador de

teto que revolve o ar pesado de fumaça de cigarro. Estamos no

departamento pessoal da Tyrell Corporation. Novamente nos deparamos com

a visão de um olho que agora parece ameaçador. Trata – se sem dúvida de

um olho artificial, de um aparelho fixo na pupila de Leon, um dos replicantes.

Em continuidade, na cena aparece algo mais familiar, uma tela que lembra

nossos monitores de computador. Por meio de um questionário especial, o

interrogador descobrirá que Leon é um replicante, uma obra mestra da

engenharia genética, muito difícil de se distinguir de um ser humano.

“Fale-me das boas coisas sobre sua mãe” – é assim que o investigador

de Blade Runner formula o que acabou sendo a última questão de um

interrogatório que tinha como objetivo testar se o seu interlocutor era um

humano ou um replicante."Minha mãe.... Devo falar sobre minha mãe..." -

não apenas a pupila de Leon não se dilata nem se contrai sob emoção, mas

o replicante nesse momento reage com um tiro a uma lembrança que ele

não possuía e a uma história que ele não poderia apresentar, ferindo o

investigador.

Fig. 29

O replicante Leon

Nesta cena, em que se desenrola o interrogatório, Ridley Scott traça

um paralelo entre o olho humano e o olho da câmara, entre o original

desenhado pela natureza e a imitação artificial. Olho e câmara se

confundem, como que querendo mostrar a origem de um e do outro. Ambos

conseguem muito mais que gerar imagens da realidade: os dois, câmara e

olho, são pontos de encontro e intercâmbio entre o mundo exterior e o

interior, entre percepção e identidade. Identidade retratada no filme que ora

analisamos por um dos blade runners – o policial Gaff –que aparece a

princípio como uma figura negativa, mas encarna um amplo espectro de

identidades, é fruto de uma mescla de várias raças, culturas e idiomas. Com

o enfoque mais positivista deste personagem, Blade Runner retrata uma

sociedade multicultural que une todas as raças, culturas e idiomas do

mundo.

Observamos em Blade Runner que o homem se livrou das limitações

do instinto para ajustar e variar as suas técnicas, não segundo suas

necessidades, mas segundo seus desejos. Na história do ser humano, de

modo geral, a técnica foi vista como “aplicação” da ciência – e nega assim

qualquer especificidade à inventividade como prova de um engenho

humano. Mas Martin Heidegger deixa claro no seu ensaio sobre a técnica

104

(2006) que a essência da técnica nada tem de técnico, ou seja, em outras

palavras, que essa essência é metafísica, e coloca para o mundo os seus

recursos à disposição do ser humano. Ridley Scott mostra os sujeitos

humanos ou artificiais como seres singulares que são, seres inteligentes

sempre em busca de novas descobertas. Sujeitos que não se adaptam ao

meio, mas que pelo contrário, adaptam o meio aos seus desejos, que se

revelam tão insaciáveis quanto diversos.

Fig. 30 Os replicante Pris e Roy

No filme, graças ao uso da essência da técnica, o homem se afirma

não como um ser de necessidades ou de razão, mas como um ser de

desejos. Estes desejos são identificáveis na epopéia do homem, ao criar um

duplo à sua imagem e semelhança totalmente artificial, mas que o

tornam tão perfeito, indistinguível do ser humano natural.

- Por que olha para nós, Sebastian? – pergunta Roy, o líder dos

replicantes.

- Por que são tão diferentes, tão perfeitos. De que geração

vocês são? Pergunta Sebastian, o designer genético da Tyrell.

- Nexus 6 – responde Roy.

105

- Eu sabia. Sou projetista genético da Tyrell Corporation. Há um

pouco de mim em vocês. Mostrem-me algo. - pede Sebastian.

- Não somos computadores, Sebastian. Somos seres vivos – diz

Roy.

- Penso, Sebastian, logo existo – completa Pris.

106

Fig. 31 Aparelho de Voigt Kampff

Em Blade Runner, o corpo artificial criado em laboratório em

nada difere do corpo natural criado pelo sistema biológico humano. O

filme trata do avanço da biotecnologia na construção do simulacro dos

homens, tão perfeitos que não são identificáveis, nem pelos

personagens do filme e nem pelos espectadores. Essa identificação

passa a ser possível por meio do teste Voight Kampff que é aplicado

aos suspeitos de serem replicantes29.

“... É a própria singularidade e exclusividade do humano

que se dissolvem quando vem à existência de uma criatura tecno

– humana... que simula o humano, que em tudo parece humana,

que se comporta como humano, mas cujas ações e

29 Voight kampff – ver terminologia ao fim desta dissertação.

107

comportamentos não podem ser atribuídos a nenhuma

interioridade, a nenhuma racionalidade, a nenhuma qualidade que

se costuma utilizar para caracterizar o humano” (SILVA, 2000: 15

a 16).

Por isso, no filme, a idéia dos replicantes é tão aterradora, pois

questiona a originalidade do humano na sua essência. A questão da

essência humana se dá no contexto de uma antropologia filosófica. Ela foi

elaborada pelos gregos à luz da questão do cosmos, pelos medievais à luz

do Deus Criador, pelos modernos à luz da Ciência e hoje esta questão se

coloca à luz dos atos tecnocientíficos, ou seja, pode – se dizer que o homem

é seu genoma. É uma definição muito perto de ser cientificamente exata: o

homem é a totalidade de seus genes mapeados e conhecidos em suas

funções.

No Dicionário de Filosofia (2001: 896 a 906), de autoria de Ferrater

Mora, encontramos uma observação do filósofo Max Scheller a respeito da

essência humana que anuncia o conflito do sujeito na pós – modernidade:

"Na história de mais de 10.000 anos, pela primeira vez o Homem tornou – se

problemático para si mesmo. O Homem não sabe mais quem ele é e se dá

conta de não sabê – lo. Já não temos do Homem uma definição global e de

aceitação universal, como na Grécia e na Idade Média; mais gravemente,

não sabemos definir o que é o ser humano”.

Ainda conforme Ferrater Mora, no que se refere à ontologia, a

questão da essência humana pode ser expressa assim: é a união do espírito

com o corpo, ou seja, o espírito define a especificidade humana. Portanto, a

alma racional nos diferencia radicalmente dos outros seres vivos. Esta

diferença é tão profunda que demanda uma intervenção divina.

108

Este é o núcleo metafísico e permanente do ser humano; dele

emergem como conseqüências naturais, a inteligência, a liberdade, a

criatividade, a consciência ética, a capacidade de diálogo, a sociabilidade,

enfim, todas as qualidades superiores do homem. Evidentemente, estas

qualidades são muito importantes, mas não são fundantes da estrutura

radical do homem: são somente conseqüência e manifestação de uma

estrutura mais profunda e ontológica, ou seja, a essência humana como a

união do Espírito com o corpo.

O ser humano é transcendente não só no sentido de uma intervenção

divina especial, mas no sentido de que é o produto mais avançado da

evolução da natureza. Nele e por ele a natureza dá um salto qualitativo e

alcança o estágio superior. Isto é, no homem e pelo homem a natureza salta

do estágio meramente físico, biológico e determinista para o estágio da

História presidida pela inteligência e pela liberdade.

Estas questões, à luz do filme, colocam a essência humana em

xeque: o homem se iguala a Deus, pois consegue criar um corpo por meio

de manipulação genética, intervindo no que deveria ser um ato biológico e

da natureza. Além disso, consegue dar uma alma, que seria um dom divino,

a um ser feito à sua imagem e semelhança e, por meio de próteses,

consegue dar a este ser potencialidades e possibilidades pelo exercício do

pensamento.

Diante da possibilidade de que tudo poder ser convertido em

simulacros, a distinção entre natural e artificial praticamente deixa de ter

sentido, só encontrando ainda uma necessidade de justificar esse sentido na

qualidade humana. O sujeito passa a ser projetado na existência de uma

máquina, enquanto que a máquina é a existência projetando a

109

potencialidade do criador. Uma ontologia centrada sobre a distinção entre

natural e artificial falha no essencial desta nova situação, ou seja, no fato de

ela própria oferecer uma condição comum a todas as coisas, tão

radicalmente comum quanto a da própria natureza, pois também ela contém

o humano e o não – humano e, ainda, o real informacional. Em todos estes

domínios parece viável a emergência de novas sintetizações

tecnobiológicas, tecnoquímicas e tecnofísicas.

b) O homem versus máquinas

A oposição entre orgânico e mecânico, na qual o pensamento moderno

tendeu a fixar – se desde a invenção dos primeiros mecanismos

automáticos, foi o primeiro pólo aglutinador da comparação entre os homens

e as coisas. O organismo, realidade a que a biologia moderna deu um lugar

central, importava como grande imagem da vida, da sua organização e da

sua complexidade, e como possibilidade de esclarecimento do seu mistério.

Mas o que começou a tornar – se verdadeiramente obsedante,

nomeadamente entre o séc. XVII e séc. XIX foi a possibilidade de

compreender e controlar a fronteira entre vida e não vida, como mostram as

miragens literárias de criação de seres artificiais e o desejo de animar as

imagens, como o cinema, a televisão e a interação do sujeito com as

diversas mídias que surgiram durante o século XX.

As tecnologias existentes mostram o outro através de inventos high tech

e se tornam evidentes e invasivas. No filme o olho mecânico tem a função

de vigiar e controlar o replicante por meio dos dispositivos tecnológicos,

avaliando as respostas e as ações dos replicantes denunciando sua

110

verdadeira identidade. A câmara de segurança, que mostra o olho

manipulado pela engenharia genética do replicante, é o olho onipresente e

onisciente da lei e da ordem, implantado pela Tyrell Corporation para

identificar os próprios replicantes que criou e não consegue mais distinguir

dos próprios humanos. O replicante cede ao olho vigilante, pois o seu olhar é

a possibilidade real de identificá – lo como ser não – humano que é.

A seqüência do Esper Machine é bastante ilustrativa no que se refere à

questão mecânica, envolvendo a reflexão das multimídias, especialmente as

mídias fotográficas e cinematográficas. A seqüência analisada concentra

todo um discurso referente à potência da imagem, as inter – relações

midiáticas e o impacto das tecnologias de informação nas sociedades

contemporâneas30.

Ao dar início à sua investigação, Deckard revista o quarto de hotel em

que Leon morava – um dos replicantes fugitivos, responsável por ter atirado

em outro blade runner chamado de Holden, ao se submeter ao teste Voigth

Kampff – teste da íris - que é aplicado nos replicantes. Ao vasculhar uma das

gavetas, Deckard encontra algumas fotografias que são coletadas como

provas para um exame posterior. Entre as referidas fotografias há uma que

chamará a atenção do investigador, que retrata um interior – provavelmente

do próprio quarto em revista. Nesta fotografia percebe – se um homem com

o braço direito refletido sobre a mesa, à esquerda da imagem, alguma

mobília e objetos domésticos espalhados pelo espaço e, mais ao centro – do

lado direito, um espelho redondo, fixo a uma parede – é pertinente lembrar

que a atmosfera da fotografia, sua iluminação, disposição dos objetos, o foco

30 Esper Machine – ver terminologia ao fim desta dissertação.

111

e o espelho retratados evocam a obra de Jan van Eyck – O Matrimônio

Arnolfini (1434), um quadro que mostra os protagonistas, além do pintor e

seu assistente, refletidos em um espelho, seqüência que conduz o

espectador a uma viagem pela arte ocidental.

Algumas seqüências adiante, no filme de Scott, Deckard encontra – se

sozinho em seu próprio apartamento, quando decide investigar a fotografia

encontrada no quarto de Leon. Ele insere a foto em um esper machine sobre

uma TV e automaticamente a imagem é reproduzida no vídeo. O blade

runner inicia uma investigação minuciosa da fotografia, operando comandos

vocais que ordenam ao aparelho ampliar determinadas regiões da imagem,

rastrear outros espaços, mudar de ângulo, reduzir e reenquadrar diversas

vezes. Com este artifício Deckard literalmente disseca a fotografia,

investigando cada região da imagem, cada vestígio suspeito, valendo – se

até mesmo de uma segunda imagem presente na primeira: o reflexo no

espelho circular. É nessa complexa investigação que Deckard irá descobrir,

após diversas ampliações, reenquadramentos e giros de ângulo, a imagem

de um indivíduo até então ignorado na fotografia a olho nu: uma mulher com

uma tatuagem no pescoço. Após centrar o foco sobre o rosto da

mulher e ampliar consideravelmente a imagem, Deckard solicita uma

cópia impressa em papel. Esta pista levará o blade runner a outro replicante

e dará início efetivo à caçada nas ruas de Los Angeles. Conforme observa

Bukatman em seu livro Blade Runner (2003), ficam evidentes as

características que definem o envolvimento entre a máquina e o humano.

Fig. 32

Aparelho esper machine.

A foto é inserida no esper machine, que reproduz a imagem

esquadrinhada no vídeo. O dispositivo é uma extensão tecnológica da visão

humana, capaz de desbravar minúcias de um universo em contato constante

com o virtual. Ainda conforme Bukatman, a investigação criminalística ocorre

extra loco, sendo que a busca de pistas é operada em um terminal

eletrônico. Além disso, o palco dessa mesma busca de pistas não deixa de

ser um fragmento de memória externalizado: deparamos neste ponto com

uma nova dimensão das relações entre o real e o virtual. O Esper Machine,

aparelho dissecador de imagens, amplia consideravelmente o poder da

visão, transportando o homem a outro patamar de realidade: renderizado e

virtual.

A fotografia pertencente ao replicante Leon, ampliada no vídeo é

investigada por meio de travellings, zooms e reenquadramentos, tudo isso

relatado em uma seqüência fílmica exposta ao espectador, que põe em

evidência a fotografia, o vídeo e o cinema, explicitando relações entre

diferentes suportes midiáticos. O filme de Ridley Scott, como aponta a

referida seqüência, é portador de um discurso relativo às simulações e

simulacros da pós – modernidade. O universo de Blade Runner é

extremamente simulado e ambíguo, baseado em tecnologias como extensão

112

do homem, conforme explica Marshall McLuhan no seu livro Os meios de

comunicação como extensões do homem (1996), as únicas capazes de,

ainda que fragilmente, distinguir a natureza do artifício. Assim como as

fotografias, os replicantes são mecanicamente reproduzidos à semelhança

dos humanos, e se constituem como a prova de uma humanidade que uma

vez houve, mas não existe mais.

As fotografias têm no filme uma simbologia especial: serviam para

legitimar as falsas lembranças dos replicantes. Em uma das mais tocantes

passagens do filme, a replicante Rachel, por quem Deckard se apaixona,

mostra para ele uma antiga fotografia, onde aparece ainda menina junto com

sua mãe. Rachel, que não tinha consciência de sua condição de replicante,

enxerga na fotografia uma maneira de comprovar suas lembranças e seus

laços afetivos com outros humanos. Esta imagem, completamente falsa para

o espectador, é o único indício que Raquel possui de seu passado, vivência

que, na realidade, só existe na fotografia.

Fig. 33 Deckard e suas investigações.

A investigação da realidade, do que é natural em oposição ao que é

fabricado, chega ao nível microscópico, conforme observamos na seqüência

em que uma mulher asiática atesta a artificialidade de uma escama de

cobra, examinando – a ao microscópio eletrônico, por meio do qual se pode

constatar o “número de série do fabricante”. A imagem da escama de cobra

ampliada no microscópio eletrônico para que se possa identificar a

113

114

impressão do número de série do fabricante, quase em nível molecular,

remete a um novo patamar de realidade, pois os artifícios da técnica já são

capazes de forjar a natureza, e começar a pôr em xeque a própria

concepção do real, em um universo no qual a imagem é passível de assumir

o caráter de verdade absoluto.

c) O imaginário e o real

Ridley Scott situa o real e o imaginário em Blade Runner por meio de

alguns dispositivos ligados à memória visual, tais como as fotografias e os

implantes que são colocados nos replicantes. Os replicantes não têm

passado: “nascem prontos”, para durar apenas quatro anos, são

emocionalmente inexperientes e produzem incansavelmente um acervo de

memórias visuais, as quais colecionam como um bem precioso, afinal é algo

que os humaniza. Os replicantes adoram suas preciosas fotos, lembranças

fragmentadas de uma vida não vivida, e guardam passagens de suas vidas

através de uma memória visual que lhes será recorrente em vários

momentos – “Eu vi coisas que vocês humanos não acreditariam”, exclama

Roy Batty em determinado momento do filme.

Memórias protéticas, fotografias arranjadas transformam a realidade do

tempo, e a existência em objetos tangíveis. Em Blade Runner essas

memórias e fotografias tornam – se a prova cabal de que seu portador vive.

As fotografias colecionadas pelos replicantes, como podemos constatar na

personagem Rachel, são como uma caução da sua própria existência. A

memória visual e sua materialidade momentânea constituída pelas fotos

“constroem” a identidade de objetos técnicos que almejam o status humano.

A foto da replicante Rachel, a sua prova de existência humana, no

entanto, revela – se uma fraude: as lembranças da replicante não passam

de um “implante de memória”. Se as fotografias de Leon fazem parte do seu

acervo de memórias, a despeito de sua materialidade e disponibilidade

no plano real, no caso da replicante Rachel a manipulação do

particular vai ainda mais longe: seus implantes de memória são um

experimento da Tyrell Corporation, com vistas a amortizar a inexperiência

emocional de seres com existência pré – determinada, bem como

aperfeiçoar a semelhança entre replicantes e humanos. “Mais humano que

um humano, esse é o nosso lema” - menciona o empresário Eldon Tyrell –

desmoronando a fronteira entre o real e o imaginário, entre o privado e o

público. As memórias de Rachel são de outro indivíduo, suas supostas

experiências são de conhecimento comum. Assim como o unicórnio que

aparece em sonho a Deckard, reproduzido em origami pelo personagem

Gaff – outro policial – no fim do filme, também são implantes colocados no

blade runner.

Fig. 34 A replicante Rachel.

Rachel, uma replicante de fabricação mais sofisticada, tenta convencer

Deckard de sua autenticidade como pessoa, produzindo uma fotografia de

sua mãe e uma menina que diz ser ela. No filme as fotografias são feitas

como uma prova de história real, mesmo que ela tenha sido forjada. A

imagem passa a ser a prova de realidade, e as imagens podem ser criadas e

manipuladas. Desse modo, imagem e memória acabam sendo suportes

115

116

essenciais da identidade, como diz o historiador Ulpiano Bezerra de

Meneses:

“O conceito de identidade implica semelhança a si próprio,

formulada como condição de vida psíquica e social. Nessa linha,

está muito mais próximo dos processos de reconhecimento do

que de conhecimento. (...) A Antropologia e a Sociologia, por sua

vez, nos informam que a identidade, quer pessoal, quer social, é

sempre socialmente atribuída, socialmente mantida e também só

se transforma socialmente. (...) Isto é, não se pode ser humano

por si, por representação própria: os valores, significações, papéis

que me atribuo necessitam de legitimidade social, de confirmação

por parte de meus semelhantes. Pode-se dizer, assim, que é em

virtude de definições que existem indivíduo e sociedade. Dentro

dessa ótica, é fácil entender que o processo de identificação é um

processo de construção de imagem, por isso terreno propício a

manipulações” (MENESES: 1987, 182 a 191).

Mais do que os meandros biológicos da vida, em que ainda hoje se

embrenham as discussões sobre o corpo “orgânico” ou “pós – orgânico”, são

os meandros metafísicos que estão em pauta nesta nova comparação entre

o ser humano e os objetos. Aliás, as imagens prospectivas de uma “vida

artificial” parecem dispensar crescentemente a idéia de um corpo, de um

espaço temporal de vida. Os objetos técnicos como os replicantes cobiçam

os atributos do humano manifestando precisamente uma pretensão ao que

nele há de mais intangível – a sua alma, ou aquilo que pensamos estar sob

a sua égide. O mundo artificial do mecanismo, centrado sobre as

compatibilidades e incompatibilidades entre o objeto e o corpo está dando

lugar a uma nova miragem: a tecnologia dos artefatos técnicos ou objetos

117

técnicos, do objeto que pensa, que sente, que simula as mais elevadas

capacidades da vida humana. Esta tecnologia promete, através de uma

inteligência artificial e de uma sensibilidade artificial, animar um mundo

imaterial, para o qual poderíamos fazer transitarem muitas das nossas

experiências humanas. As ficções destas novas animações inquietam e

seduzem inevitavelmente o mundo animado do cinema, como por exemplo,

o universo de Blade Runner (1982), Videodrome (1983) e, mais

recentemente, de Matrix (1999) e eXistenZ (1999). Por mais imateriais que

sejam os suportes deste novo mundo de coisas animadas, elas não deixam

por isso de ser coisas e de ser coisas que manifestam antes de nada mais o

seu modo pós – moderno de ser - o da sua disponibilidade para a

manipulação, que o virtual tecnológico aparentemente vem acentuar, por

meios de situações como “interatividade”, “conectividade”, “hibridação”.

O cinema, desde os primórdios, é pródigo na apresentação dessa

desestabilização das experiências humanas, bem como de experiências

fantásticas que vão desde a representação de seres sobrenaturais, humanos

ou artificiais, traduzidas em atitudes ambíguas em relação às

transformações científicas, combinando cinema com ciência – ficção. O

cinema também se consolidou como o lugar das celebrações da era da

máquina, instituindo o império da modernização, das novas tecnologias e

dos novos princípios científicos, sobretudo pela divulgação dos valores

utilitários que começaram a organizar o comércio e a produção e a alterar,

de maneira irreversível, o panorama da vida cotidiana.

Coube ao cinema parte importante da tarefa de domesticação desses

novos aparatos que povoaram o mundo moderno, gerando o novo universo

de consumo e desejo. Resumindo, o cinema é o terreno adequado para a

118

acolhida desta forma de narrativa que fala de hibridações, misturas, outras

experiências espaços – temporais, outras subjetividades, inteligências e

mesmo anatomias.

Dentro deste contexto, pode – se reconhecer no termo conjunto ficção

– científica um paradoxo, já que aí se juntam a liberdade da ficção e o rigor

da ciência, que atua, no entanto, produzindo e refletindo sobre a produção

das misturas. Podemos dizer que a modernidade formulou na ficção –

científica e no domínio privilegiado do cinema, do seu primórdio, desde

Metropolis (1926) de Fritz Lang, Blade Runner (1982) até a trilogia dos

irmãos Wachowski: Matrix (1999), Matrix Reloaded (2001) Matrix

Revolutions (2003), ou os filmes Videodrome (1983) e eXistenZ (1999) de

David Cronenberg, entre tantos outros, revelando graças à sua própria

forma híbrida de arte e indústria, as suas suspeitas e suas apostas diante

das possibilidades existentes nos hibridismos entre homens, animais e

máquinas, gerando assim versões possíveis de nós mesmos e “descrevendo

a vida tal como não a conhecemos”.

Assim explica – se o duplo vetor de interesse de filósofos e teóricos

da cultura como Baudrillard, Deleuze, Bukatman, Morin etc, buscando na

ficção – científica os sintomas e tendências da nossa época; e autores como

Ridley Scott, os irmãos Wachowski, David Cronenberg, e tantos outros, que

fazem implícita ou explicitamente menções a estes autores em seus filmes.

Listando os temas mais freqüentes da ficção – científica, temos: o fim

dos tempos; os paradoxos temporais; a comunicação com “inteligências

demonstrando formas de vida diferentes”; as desconstruções múltiplas das

diferenças entre natural e artificial, humano e não – humano, vivo e não –

vivo, real e virtual; as mutações e reconstruções dos corpos humanos, etc.

119

É evidente que se pode encontrá – los, em combinações próprias, na

cinematografia contemporânea, mas é possível também mapear sua

presença no conjunto da história da ficção – científica: literatura e cinema, o

que nos permite dizer que foi aí que estes temas primeiro apareceram para

nós. Em particular, a tecnologia ampliada pela ficção – científica no cinema,

nas suas realizações e potencialidades, parece destruir fronteiras

estabilizadas, expandido até domínios inimagináveis a experiência humana e

reconfigurando a capacidade cognitiva dos indivíduos.

Reconhecemos no mundo contemporâneo um leque composto pelas

biotecnologias, pela engenharia genética e pelas ciências cognitivas

relacionadas diretamente com o campo da inteligência artificial e da robótica

e as ciências da informação, que atuam na área dos computadores e das

redes e atualizam nossas experiências de simulação, realidade virtual,

ciberespaço, cibercultura, etc.

Os filmes que recentemente têm tematizado as ligações entre as

tecnologias do virtual e a transcendência, a máquina já não aparece mais

em sua materialidade como figura essencial, nem como objeto nitidamente

identificável. Não é possível detectar os signos de reconhecimento

tradicionais: engrenagens, botões, parafusos, brilho metálico, etc. Em Matrix

(1999), por exemplo, sabe – se que os “agentes” são programas de

computador que existem apenas enquanto entidades virtuais. As outras

“máquinas” apresentadas no filme possuem um aspecto que em nada

lembra as máquinas de filmes como Metrópolis (1926), um dos primeiros a

apresentar uma máquina – robô; e são poucos os elementos que permitem

reconhece – las como máquinas. Elas nos dão a impressão de serem

criaturas orgânicas: aranhas, polvos, besouros...

120

Fig. 35 Videodrome (1983)

O universo de David Cronenberg apresenta as duas obsessões que

prevalecem neste tipo de cinematografia: a intersecção sangrenta entre a

tecnologia e as bizarrices da mente humana, que desafiam a noção de

realidade. Um de seus filmes, Videodrome (1983) é uma perturbadora

película que revolve as influências da imagem do vídeo na mente humana,

desafia as nossas expectativas, e abre – nos para o estranhamento, sendo

também uma bizarra premonição de futuro: basta substituírem a tecnologia

do vídeo pelas tecnologias digitais, e Videodrome torna-se uma

prefiguração do futuro virtual da humanidade.

Videodrome narra o percurso em queda livre de Max Renn, diretor de

um pequeno canal de televisão via cabo, a Civic TV, especializada em

conteúdos pornográficos. Numa tentativa de aumentar a audiência, Max está

sempre à procura de produtos novos, que testem os limites, indo sempre

um pouco mais além daquilo que já é oferecido. Ele descobre, por meio de

um dos seus funcionários, através da pirataria, uma emissão de sinal de TV

que é constituída apenas por torturas e assassinatos de caráter sexual

perpetrados em uma simples sala vermelha, e que deixam Max Renn

121

fascinado. Esta emissão, simplesmente intitulada Videodrome, é para ele o

futuro do seu canal. Mas Renn depara – se com estranhas personagens que

vivem à margem de uma cultura audiovisual centrada na tela da televisão.

Vê – se assim, um campo de batalha em que se digladiam um

teórico/teólogo da transcendência da humanidade através do vídeo, um

personagem inspirado pelo influente teórico cultural que foi Marshall

McLuhan, e os interesses ocultos da corporação multinacional que produz o

Videodrome.

O sinal do Videodrome gera alucinações na mente de Max Renn; o seu

corpo começa a sofrer mutações físicas. Em uma das cenas mais

arrepiantes, Max Renn é programado através da inserção de um cabo de

vídeo, que respira e se mexe nas mãos dos programadores, em um orifício

estranhamente vaginal que se abre no seu peito. Em outra cena, a mão de

Max Renn transmuta-se num apêndice biomecânico, fundindo – se com uma

arma. Como toda a história é contada sob o ponto de vista de Max Renn,

nunca percebemos se as alucinações são ou não reais; na mente de Renn,

as fronteiras da realidade dissolvem – se, as imagens televisivas se

sobrepõem às imagens reais. A televisão tornou – se a retina dos olhos da

sua mente e prepara – se para transcender a sua humanidade e transformar

– se na nova carne.

Videodrome (1983), ao debater as fronteiras entre a realidade e a

virtualidade, preconizou as noções de "realidade virtual" e "realidade

aumentada", em que os dados digitais se sobrepõem às percepções dos

nossos sentidos, para gerar a realidade que a nossa mente percebe. Depois

Cronenberg realizou eXistenZ (1999), que de certa forma atualiza os temas

de Videodrome, explorando as intersecções físicas e mentais entre a

realidade e a virtualidade, levando – nos a questionar se o que vemos e

pensamos é, realmente, verdadeiro.

122

Fig. 36 eXistenZ

Em eXistenZ (1999), os personagens encontram – se em um cenário

de jogos de computador e da realidade virtual, que retrata os encontros de

usuários de um videogame, neste jogo a máquina é literalmente um ser

vivo e orgânico, que se pluga simbioticamente na espinha de seus

usuários, imergindo – os em um mundo de experiências absolutamente

virtuais, porém tão ou mais “reais” do que a realidade. Durante um encontro

destinado a testar o novo jogo eXistenZ, alguém tenta assassinar a

criadora e designer do jogo, Allegra Geller. Ted Pikul, um pacato estagiário

de marketing, é incumbido de zelar pela segurança da atemorizada designer.

Geller está preocupada, acima de tudo, com os danos infligidos ao programa

e solicita a Pikul que se conecte com ela, para poderem jogar e fazer os

testes necessários. Mas Pikul é um dos poucos que não possuem um Bio –

Port, a ligação na base da coluna que permite ligar os pods diretamente ao

sistema nervoso, fornecendo ao jogador ilusões impossíveis de distinguir na

realidade. O casal é perseguido através de cenários que podem, ou não,

fazer parte do mundo real. Essa desmaterialização da figura das máquinas é

acompanhada por uma desmaterialização do corpo humano. A máquina

passa a ser apenas um ruído para aqueles usuários conectados em

123

sistemas de rede e que depois de horas imersos, vêm experimentar a

realidade.

Neo, o protagonista de Matrix (1999), trava suas batalhas sem fazer

uso de seu corpo real, por meio de uma “imagem digital” de si mesmo, o que

caracteriza a identidade dos sujeitos não é a presença do corpo humano,

mas sim a “humanidade” de sua personalidade, ainda que esta seja uma

construção inteiramente virtual e artificial.

Scott Bukatman, no seu livro Blade Runner define com perfeição

esse novo estado de coisas: “Os símbolos visíveis da aspiração tecnológica (...)

desapareceram de nossa visão e de nossa consciência. As novas tecnologias eletrônicas que

agora proliferam na era da informação são invisíveis, circulando fora de nossas

experiências do espaço e do tempo” (1998: 2).

Bukatman analisa esse “desaparecimento” da tecnologia, bem como

a diluição do humano no maquínico no contexto da “ficção científica pós –

moderna”. Ao novo modelo de identidade – imaterial – surgida nesse

cenário, o autor chama de “identidade terminal”. A identidade terminal

representa, assim, uma “dupla articulação na qual encontramos tanto o fim do

sujeito como uma nova subjetividade construída na estação de computador ou na tela da

televisão” (Idem: 9).

As categorias que foram analisadas no filme Blade Runner, e os

aspectos das novas possibilidades de hibridização entre o sujeito e as

tecnologias vistas em Videodrome, Matrix e eXistenZ evidenciam o que

vem a ser a vida artificial modelada pelas tecnologias de comunicação e o

impacto dessas hibridizações, reconfigurando as diferenças entre o sujeito

moderno o sujeito pós – moderno.

124

Se o sujeito tradicional desaparece de fato, é uma questão que ainda

deixa margem a muitas dúvidas. Mas é inegável a proliferação de

representações culturais que dão conta dessa morte ou virtualização do

sujeito, projetado no espaço humano – maquínico.

3. Projeção do espaço humano – maquínico

Uma imensa cidade que parece sem fim, intensamente verticalizada,

negra e febril, fortes explosões de gigantescas chaminés quase atinge uma

máquina voadora. A cidade sendo observado por um olho que reflete as

luzes desta megalópole. Assim somos apresentados ao mundo e ao que

seria a projeção do espaço humano – maquínico de Blade Runner (1982).

O mundo da experiência urbana; lugar onde o ser humano vive seus dias no

caos por ele criado, mundo no qual a natureza não existe, ou, quando existe,

é artificial e criada pelo próprio homem.

d) A desumanização das cidades;

A cidade do futuro de Blade Runner situa a Tyrell Corporation no centro

da metrópole e as demais estruturas estão ao seu redor. Na marginalidade

das fábricas, corporações e indústrias estão os grupos sociais. Os membros

desta sociedade localizada na metrópole de 2019 do século XXI se

organizam em clãs que lutam entre si para possuir o território. Estão

claramente identificados em um espaço de caos, no qual a anarquia

prevalece. Uma metrópole onde as leis e o poder assumem uma postura

repressora que propicia a segmentação, privilegiando algumas classes em

detrimento de outras.

Fig. 37 Los Angeles, 2019

O filme retrata a cidade nos seus extremos, cidade sem fim que agride,

aprisiona, mas que é o ambiente do ser humano, portanto onde a luta pela

125

126

vida se dá. A cidade pós – futurista do filme é um ambiente hostil, mas que

proporciona a vida a diferentes tipos de seres humanos. Lugar em que reina

o caos, espaço onde se dá a tensão entre a tecnologia avançada - no caso

os replicantes - e a luta pela sobrevivência de seres humanos, lugar da

selvageria das ruas imundas e do ar irrespirável. Cidade multicultural,

fragmentada, alucinante, caótica. Cidade pós – moderna: a cidade que

representa o fim das utopias.

Os prédios são gigantescos, quatrocentos andares do chão para cima,

formando canyons artificiais por onde a chuva ácida se acumula. No nível da

rua, a multidão – uma exótica mescla de raças – se amontoa com seus

guarda – chuvas com luzes de néon. Centenas de pessoas, asiáticos, punks,

gangues de ruas, hare krishnas, caminham pelas ruas exibindo um vestuário

exótico. A cidade vomita fogo. As chaminés das fábricas iluminam o céu

com imensas explosões, o ar está contaminado, os céus escuros, turvos

pela poluição das fábricas, uma chuva incessante cobre a cidade. A cidade

que aparece nas primeiras cenas mostra a decadência irreversível do

sistema urbano e a desumanização das cidades.

Raios de luz cortam a cidade labiríntica e enormes video-walls exibem

imagens publicitárias aparentemente acima do nível das ruas. Não sabemos

identificar sua territorialidade física, mas percebemos que estamos

mergulhando nas intricadas redes de uma megalópole futurista, nas suas

estruturas rizomáticas, na angústia do caos dentro da obscuridade da cidade

que se alastra sem limites, envolvendo a cidade e seus habitantes.

Fig. 38

Los Angeles século XXI

A cidade de Los Angeles que aparece em Blade Runner mostra os

aspectos de uma cidade em decadência pós – industrial. Armazéns vazios e

instalações abandonadas são atingidos ininterruptamente por uma chuva

ácida provocada pela poluição. A névoa toma conta de tudo, o lixo está

acumulado em toda parte, as infra – estruturas estão em desintegração, à

cidade é um imenso canteiro de obras, não para construir, mas para

consertar a cidade destroçada. Mas acima das ruas, da decadência e do

caos urbanos, há um mundo de alta tecnologia, veículos velozes sobrevoam

as ruas, balões dirigíveis de publicidade anunciam uma nova oportunidade

de vida fora da terra nas colônias interplanetárias.

Em Blade Runner, Los Angeles aparece tanto como um parque

temático, quanto uma simulação, combinando símbolos da era espacial de

alta – tecnologia com a visão vitoriana do crescimento desordenado e não

planejado. A cidade também é como uma entidade negativa, um espaço

escuro e super povoado, quebrado por formas e luzes em néon e estruturas

corporativas.

No nível da rua a cidade é caótica em todos os sentidos. Os projetos

arquitetônicos são de uma mescla de estilos que culminaram com o pós –

moderno que David Harvey denominou em seu livro A condição Pós –

127

128

Moderna (2004). A Tyrell Corporation está abrigada em um edifício que

parece uma réplica das pirâmides egípcias; a arquitetura é uma mescla de

colunas gregas e romanas que se misturam à arquitetura dos maias, dos

orientais, da era vitoriana e a contemporânea lembrando os shoppings centers

(2004: idem, 279). Shopping centers pós – moderno representado pelo grande

mercado global a céu aberto que se tornou a cidade, onde se compra todo

tipo de mercadorias, de roupas a cobras artificiais, um imenso shopping center

de simulacros.

Bukatman, no seu livro Blade Runner (1998) explica que essa

representação do espaço aponta para uma desorientação ou um

deslocamento de um mapa cognitivo, para que o sujeito possa compreender

os novos termos da existência na contemporaneidade. É nesta questão

relacionada a espaços e distâncias – podendo ser a separação entre as

pessoas, entre humanos e não humanos, entre planetas, entre ambientes

físicos e eletrônicos – que está a definição da existência contemporânea dos

personagens de Blade Runner, pois é nesse entre – lugar que se dá

configuração e a reconstrução da identidade e da memória. É dentro desse

contexto que a cidade aparece como elemento definidor e central da

existência humana.

A Los Angeles de Blade Runner apresenta um mundo no qual a

principal nota distópica é a mistura. Nada é o que pretende ser, tudo se

mescla e se imbrica, há um idioma que parece um esperanto degenerado,

falado pelas etnias que habitam a cidade. A arquitetura é um conjunto de

obras que remetem às arquiteturas egípcia, maia e neogótica. Esse mosaico

é a própria distopia, visto que elimina toda possibilidade de um mundo

purificado.

Fig. 39 O mundo de Blade Runner

Há conflitos entre as camadas da sociedade, entre pessoas que vivem

em escala de tempos diferentes e como resultado, vêem e vivem o mundo

de maneiras bem distintas. Os replicantes não têm história real, mas podem

fabricar uma, e a história foi, para todos, reduzida à prova da fotografia.

Mesmo que a convivência em sociedade ainda seja necessária e importante

para a história pessoal, também pode ser reproduzida, como mostra a

replicante Rachel. O simulacro é fortemente presente em todas as partes

desta sociedade. Deckard e os replicantes possuem um vínculo social –

tanto o policial quanto os replicantes são controlados e escravizados por um

poder corporativo dominante. Ao final do filme há uma certa tolerância por

parte das autoridades, quando o policial Gaff deixa Deckard e Rachael

fugirem para destino ignorado. Desse modo, o problema dos replicantes fica

sem solução, assim como as péssimas condições da imensa massa humana

que habita as ruas criminosas de um mundo considerado pós – moderno,

decrépito, desindustrializado e decadente (HARVEY, 2004: 281).

129

130

e) O desequilíbrio ecológico;

O mundo que é mostrado na tela do filme Blade Runner está

devastado pela poluição das indústrias químicas. Em primeiro plano vemos,

no horizonte, milhares de refinarias e usinas funcionando

desordenadamente. Este meio – ambiente apresentado no filme está

terrivelmente contaminado, dúzias de bolas – de – fogo explodem, deixando

uma névoa densa de produtos químicos expelidos das chaminés das

refinarias e usinas. A chuva ácida cai incessantemente sobre as ruas

abarrotadas de gente em Los Angeles. Mas seus habitantes parecem mais

melancólicos que essa chuva, perfilada como finas agulhas de cristal. A luz

não vem de nenhum lugar definido, mas de todos os pontos, do céu, dos out

– doors que sobrevoam a cidade, dos guarda – chuvas de néon, dos letreiros

luminosos das barracas. Tudo tem sua luz, mesmo que seja artificial, a

cidade brilha.

Em Blade Runner o meio – ambiente está exaurido pelas guerras, pela

poluição e pela superpopulação. O clima é quente e úmido devido ao

aquecimento global. A natureza está ausente do filme – quando se menciona

algum encanto natural, ele é artificial, pertencente apenas aos bem –

aventurados que podem se refugiar nas colônias interplanetárias.

“Uma nova vida espera por você nas colônias

interplanetárias. A chance de começar novamente em uma terra

dourada de oportunidades e aventuras. Novo clima, facilidades

de divertimento... Use seu novo amigo como um empregado

pessoal ou um incansável operário: feito sob medida,

geneticamente construído, uma réplica humana desenhada

especialmente para suas necessidades. Vamos para as colônias!

Este anúncio é um oferecimento da Shimago – Dominguez

Corporation. Ajudando a América a entrar num novo mundo”

(cena do filme Blade Runner).

Esta relação com a Natureza retorna no filme através da utopia

genética. Em um mundo sintético e funcional, introduz-se o sucedâneo

possível do natural – assim há uma coruja artificial vigilante no grande

escritório da corporação do Dr. Tyrell, existe uma jibóia artificial para

fazer o número com a replicante – dançarina Zhora, a primeira

replicante a ser removida por Deckard. Sebastian vive rodeado de

brinquedos construídos por ele, que andam e falam como se tivessem

vida. É um mundo onde se baniu a natureza e o natural, mas não seus

simulacros.

Fig. 40 Simulacros de Blade Runner

Em Blade Runner, a divisão de classes assume, de forma

radical, dimensões sócio – territoriais: os homens, embora proprietários

da força de trabalho ou de mercadorias que vendem no bazar global,

de fato, herdarão a Terra, mas uma Terra devastada enquanto

ecossistema, pela lógica da produção desenfreada. Estamos diante do

resultado supremo da sociedade de classes. Diante de um espaço

territorial exaurido no decorrer de uma modernização predatória, os

131

132

capitalistas decidem “curtir” sua vida e uma suposta identidade

humana em paraísos distantes “... terra dourada de oportunidades e

aventuras”, colônias espaciais, artifícios urbano – sociais, servidos por

escravos replicantes, novos servos pós – modernos, simulacros

funcionais de homens e mulheres. Na sua derradeira cena, o

replicante Roy traduz o que é próprio da condição humana sob o

sistema do capital e da vida imposta aos replicantes. Disse ele: “Uma

experiência e tanto viver com medo, não? Ser escravo é assim”. O

capital tende sempre a criar novas fronteiras de colonização para si,

mesmo que possuam o sentido ilusório de um “Novo Mundo”.

f) O que é a essência da identidade humana;

Ainda no que se refere à fotografia, encontramos no teste de Voight –

Kampff alguns aspectos referentes à relação entre fotografia, identidade e

história.31 Logo no início do filme, em uma espécie de prelúdio a toda a

ação, o replicante Leon é submetido ao teste pelo blade runner Holden – até

então não é dada ao espectador nenhuma explicação do que está

ocorrendo. Conforme será explicado algumas seqüências depois, o teste

consiste num esquema de perguntas cujo objetivo é motivar uma resposta

empática do indivíduo submetido – enrubescimento, flutuação da pupila,

dilatação da íris. A rigor, replicantes não têm emoções, nem mesmo uma

história, portanto não são capazes de demonstrar empatia. Mas o que mais

interessa é a natureza das perguntas com vistas a motivar uma resposta

empática; durante a inquisição do replicante Leon, a pergunta formulada por

Holden, definitiva para o desfecho da s eqüência é: “diga – me, em poucas

31 Teste de Voight-Kamff – ver terminologia ao final desta dissertação.

133

palavras, tudo que você se lembra de bom em relação à sua mãe”. Ora uma

vez que foram “manufaturados”, os replicantes desconhecem o significado

da palavra mãe, especialmente como elemento fundamental da própria

história pessoal de cada um. Em contrapartida, a replicante Rachael, dotada

de memórias “falsas”, procura atestar a verdade e o direito de sua existência

por meio de uma fotografia virtualmente sua, quando pequena, abraçada por

sua mãe. “Veja, essa sou eu com minha mãe”, exclama Rachel, exibindo a

Deckard a imagem, que ontologicamente comprovaria a veracidade de sua

existência. Conforme Roland Barthes escreve em seu livro A Câmara Clara:

Reflexões sobre fotografia (2000) as memórias são centradas na figura da

mãe, à medida que esta se relaciona com toda a questão da história. A

fotografia e a mãe são o elo perdido entre passado, presente e futuro.

No filme a mãe é necessária para contar uma história, à afirmação de

uma identidade no decorrer do tempo. Aquela fotografia – de posse de

Rachel, na qual se vêem uma mulher e uma criança – representa o traço de

uma origem e, logo, uma identidade pessoal, a prova de ter existido e,

portanto ter o direito de existir. Deste modo, Rachel, mesmo sem ter a

certeza de ser replicante, sente – se profundamente incomodada com sua

condição de não – humana. É próprio de sua natureza, ser incapaz de

possuir memória de vida pessoal única. Para ela, a memória é um simulacro

expresso em imagens fotográficas. Rachel, como o mundo midiático de

Blade Runner, está totalmente imersa em um universo de imagens

fotográficas; basta verificar, por exemplo, o próprio apartamento de Deckard

– a presença de inúmeros quadros de fotografias é marcante, o que mais

uma vez afirma que também Deckard é um replicante. O replicante está em

busca de sua identidade, nem humano nem máquina, o replicante é um

134

produto elaborado pelo ser humano, mas torna – se rejeitado por seus

próprios criadores, assim como o Frankenstein de Mary Shelley. São

apenas vítimas de experiências para serem simulacros vazios dos seus

criadores. Porém algo é subvertido no meio do caminho, de caçador à caça,

e o blade runner Deckard vai descobrir que nada é o que realmente parece.

Nem ele mesmo.

Os replicantes não possuem memória, mas implantes de lembranças e

recordações de outras pessoas. A ausência de memória dos replicantes não

os torna inferiores a outros humanos, mas, pelo contrário, é o que os torna

singulares. Eles têm um tempo de vida limitado e, tendo adquirido emoções

humanas, passaram a viver com uma melancolia tipicamente humana: a

não aceitação da finitude. Criados para serem escravos das colônias

interplanetárias, queriam libertar – se – queriam tempo. A angústia da

brevidade da vida se converte em uma presença inelutável para os

replicantes, uma vez que eles tomam consciência dessa fugacidade

temporal. O tempo “retirado” é a duração dos corpos manipulados pela

engenharia genética: quatro anos. Esta “idade ligeira” mudará, ou melhor,

eliminará a viagem em busca da vida de Roy e seus acompanhantes.

Em Blade Runner os replicantes se rebelaram contra o Estado,

representado pela Tyrell Corporation que os criou, fugitivos começam uma

luta sangrenta por sua liberdade. Os replicantes do filme estabelecem tanto

uma luta pela vida, quanto esta luta se estabelece contra o seu criador.

O ponto alto desta busca infindável de mais tempo é a seqüência em

que J.F.Sebastian, trabalhador terceirizado pela indústria genética de Tyrell,

e fabricante de brinquedos que lhe fazem companhia, solitário e doente

encontra – se com Roy – o líder dos replicantes – em seu apartamento, para

irem em busca do seu inventor – Criador, o genial Dr. Eldon Tyrell.

135

Fig. 41 A morte de Eldon Tyrell

A metáfora do filho pródigo que volta querendo esclarecimentos de seu

Pai e Criador é um dos momentos mais instigantes do filme. Roy ouve de um

Tyrell amedrontado e fascinado que ele é a sua obra mais bem – acabada.

Então por que tão pouco tempo é dado para um replicante? - retruca Roy.

Tyrell tem explicações que nada explicam. O filho rebelde tem que se

contentar com os “insondáveis desígnios” da Criação. Roy esmaga o

pescoço e fura os olhos do seu Criador. Vingado, desce para as ruas,

iluminado como Lúcifer, “anjo da luz”, exultante com a lucidez sem solução

da criatura precária datada para morrer. Além de Lúcifer, ele é Prometeu, o

“ladrão do fogo”, briga pela condição humana contra a arbitrariedade cruel

dos deuses.

Fig, 42

Roy Batty

136

Uma das cenas mais poéticas do filme é a morte do replicante

Roy, na qual ele comenta com Deckard sobre as coisas maravilhosas

que vivenciou nos confins das galáxias e lamenta – se que: “Eu vi

coisas que vocês nunca acreditariam. Naves de ataques em chamas

perto da borda de Orion. Vi a luz do farol cintilar no escuro, na

comporta de Tannhauser. Todos esses momentos se perderão no

tempo como lágrimas na chuva. Hora de morrer!” Na iminência do

cessar de sua vida, Roy salva Deckard, que o perseguiu durante todo o

filme sob a justificativa de que – talvez, porque naquele momento, a

vida fosse infinitamente preciosa para ele.

Roy, preocupado com a decadência corporal à qual foi

condenado, não encontra respostas; ele busca encontrar na riqueza

das recordações a possibilidade de reclamar uma origem. Mas

finalmente é derrotado pelo sistema que o criou e que determinou o

tempo de sua vida, dominando sua temporalidade e não lhe permitindo

fugir ao modo de produção vigente. Torna – se impossível para ele

escapar, ultrapassar as fronteiras de sua condição e vencer a

brevidade do seu tempo de vida. Time to die - Tempo de morrer!

O dilema humano se amplia no replicante Roy, cujo grau de

subjetividade atinge o padrão mais próximo do humano – quando pergunta a

Deckard se ele "sabe o que é viver com medo“. Sua angústia e seu medo

vêm da iminência da morte; ao ver coisas extraordinárias, ele que foi

produzido para destruir, mas ao longo do seu curto período de vida evoluiu e

sensibilizou-se, ganhando uma dimensão humana. Prestes a morrer, Roy

solta uma pomba branca – símbolo do Espírito Santo na religião cristã – que

137

mergulha em um vôo em direção ao céu que se mostra levemente azul claro.

O replicante sente a angústia do tempo, destacando a unicidade e a

fluidez da sua experiência singular de vida. Roy serenamente descansa a

sua cabeça sobre seu peito deixando a vida.

O olho é o órgão guia de quem naquele ambiente procura a vida. O

caçador de replicantes (ele também um replicante?) procura na sua coleção

de fotografias aquele tempo perdido que sua memória não pode oferecer. Os

replicantes procuram em seu criador, o humano, a chave para ultrapassar

aquela memória implantada que só a fotografia pode lhe dar. O replicante e

o humano são filhos do mesmo ambiente. Ambiente esse que, por lhes

negarem a vivência, os transformam em caçadores. A cidade é a selva

desse enlace pós – moderno, ao mesmo tempo é quem dá a vida e quem a

rouba. Blade Runner expressa o limiar da passagem do moderno para o

pós – moderno, a falência da utopia moderna. Passado, presente e futuro

estão contidos numa mesma temporalidade.

Como Já foi dito no capítulo anterior, a possibilidade de se criar uma

máquina inteligente, e se possível mais inteligente do que nós, sempre

esteve presente nos sonhos humanos, ora como ambição, ora como

pesadelo. Para nós, do Golem aos replicantes, a história é conhecida. Na

primeira fase, dos primórdios até aos anos oitenta do século XX, o modelo

para a construção dessa máquina foi o próprio homem, tanto na forma,

quanto na configuração da própria inteligência, ou seja, tanto no fenótipo

quanto ao genótipo. Daí a construção de desajeitados bonecos de lata ou o

objetivo de ver um computador derrotar o campeão mundial de xadrez, uma

e outra coisa foram realizadas sem sobressaltos. Isto nos leva ao caminho

da reprodutibilidade técnica, seja de produtos, seja das imagens. No que

138

tange à reprodutibilidade da imagem, esse caminho percorrido vai desde a

pintura, passando pela invenção da fotografia, depois com a criação da

imagem em movimento do cinema e da televisão e também das imagens

digitalizadas.

A invenção do cinema e o aparecimento do computador conduziram a

uma alteração nos domínios da imaginação e da visualização. Aquilo que a

invenção da fotografia significou como desligamento da realidade, a imagem

criada para o cinema e a imagem digital radicalizou um novo tipo de

realidade, chamada de virtual. Uma realidade que efetivamente não existe

fisicamente em parte alguma, mas que produz efeitos, tão ou mais profundos

do que a realidade vivida. A realidade virtual vem demonstrar que o nosso

cérebro não faz distinção entre o mundo físico e o mundo imaginado. Coisa

que já sabíamos a partir dos sonhos, mas que adquire uma outra dimensão

fenomenológica, já que com o cinema temos sonhos perfeitamente

acordados.

Somam – se as expressões provenientes da fotografia e do cinema:

revelar, velar, obturar, super expor, aplicar filtros. Assim, hoje é possível

rebobinar o filme da vida, operar flashbacks ou cortes abruptos em certas

seqüências, focalizar ou aplicar zoom sobre um determinado detalhe, evocar

uma cena em câmera lenta ou realizar uma decupagem cuidadosa, fazer um

rápido travelling em uma paisagem ou em um cenário particular, efetuar um

close-up sobre um rosto específico, repassar uma seqüência inteira do próprio

passado de maneira linear e pormenorizado, priorizar a trilha sonora de um

determinado episódio ou editar a montagem de diversos eventos como se

139

fosse um vídeo – clipe. E, ainda, reproduzem – se cada vez com mais força

as metáforas procedentes do universo informático: agora também é possível

arquivar ou deletar algum dado da nossa mente, escanear na memória

procurando algo esquecido, gravar uma informação com segurança

redobrada, clicar no ponto certo e abrir um inesperado link hipertextual.

Não são inocentes estas alterações nas formas com que pensamos

as recordações, os mecanismos da memória humana e a própria vida como

um relato. A vida passa a ser, com freqüência crescente neste novo

contexto, uma história inspirada nos modelos cinematográficos e

multimidíaticos que permeiam e recriam constantemente o mundo, enquanto

o “eu” se espelha nos personagens que desbordam das telas e modelam o

real. Esta evidência permite-nos encarar a criação de mundos paralelos que,

por serem virtuais, não são menos reais do que o mundo que nos é dado

existir. A realidade virtual da era digital é na realidade expandida, uma nova

dimensão que se acrescenta.

Além disso, o mundo do trabalho de Blade Runner é constituído por

uma mancha de “informalidade”, de trabalhadores autônomos, alguns

altamente especializados, que utilizam a alta – tecnologia. Deckard recorre

aos serviços de uma artesã hightech para identificar o número de código de

um fragmento de escama encontrado nos vestígios deixados por Zhora, uma

replicante Nexus 6, no apartamento de Leon. Ora, no cenário pós – moderno

de Blade Runner, conciliam-se degradação ambiental e pessoal com high

tecnology. O mundo do trabalho é um imenso bazar de atividades de serviços

industriais subcontratados e de entretenimento de caráter mafioso, e

expressão de sobrevivências seculares da sociabilidade urbana degradada,

como o saloon de Taffey Lewis, onde se apresentava a replicante Zhora com

seu número “Sra. Salomé e a Cobra”.

Fig.43 Zhora e a cobra artificial.

A recorrência à fotografia, às questões de origem, às tecnologias da

informação e à própria figura dos replicantes, simulacros do humano

que perderam o elo com seu próprio referente, remetem a uma busca de

identidade. A construção realiza-se no âmbito da morte, da destruição e do

final como um começo lembrando o eterno retorno. O filme, fragmentado em

universos descontínuos e paralelos, evidencia um tempo e um lugar repleto

de características ligadas à pós – modernidade: simulacro, o bem – estar

estrutural, a ruptura entre o corpo e a linguagem e o futuro do virtual.

Blade Runner expressa, no melhor estilo pós – moderno, uma

bricolage de situações típicas da temporalidade estendida e presente do

capital. Passado, presente e futuro estão contidos em uma temporalidade

hipertensa. Enfim, não existem, a partir da ótica da narrativa, perspectivas

de “negação da negação”. No bom estilo de Hollywood, as contradições

sociais se traduzem em meras saídas individuais – mas perguntaríamos,

parafraseando Gaff, são realmente saídas? Afinal, quem escapa?

140

141

Capítulo III

Estruturas sociais do sujeito – maquínico na configuração midiática.

Este capítulo será dedicado ao estudo das transformações do sujeito

gerado no cerne de uma sociedade em transformação: o sujeito moderno

formatado a partir da idéia do que é Modernidade, e o sujeito pós – moderno

do século XXI.

Começamos definindo o que é Modernidade, Modernidade

considerada como a era da transformação do conhecimento científico em

tecnologia, da industrialização da produção, da criação de novos ambientes

humanos a partir da destruição dos antigos, da explosão demográfica, dos

sistemas de comunicação de massa dinâmicos e híbridos. Modernidade que

traz a questão do sujeito moderno e o coloca frente a frente com o humano e

o não – humano.

Porém, no século XXI, diante do que chamamos de Revolução Tecno

– estética, outra experiência está por se formar e, portanto, encontra – se

ainda em curso, chamada de Pós – Modernidade. Estamos diante desta

experiência, de tempo e espaço, de si e dos outros, das possibilidades da

vida, momento no qual surge outra concepção de sujeito, o qual se

convencionou chamar de sujeito pós – moderno.

Em um curto espaço de tempo, a humanidade caminhou

decisivamente em direção ao domínio técnico, tanto de artefatos quanto dos

seres vivos. Nesta caminhada o ser humano viu surgir diante de si

passagens significativas dessa sua história. Os avanços da inteligência

humana, ilustrados através dos progressos tecnológicos, puseram em

142

evidência a evolução da ciência em função do domínio das técnicas, domínio

este voltado para a construção de um sujeito pós – moderno que a

sociedade científica e tecnológica está colocando em curso.

Ao longo do tempo, o homem imaginou inúmeras versões do humano.

Muitas dessas versões, por mais interessantes ou inteligentes que

parecessem foram efetivamente descartadas, enquanto outras, também

inteligentes ou execráveis, foram guardadas no museu de horrores que a

humanidade sempre se mostrou capaz de produzir. Mas as versões que se

tornaram aceitáveis e que adquiriram corpo histórico nunca se impuseram

em um só dia, sem erros, dramas e convulsões (LECOURT: 2003 14). A

época da tecnologia é, para a consciência humana, uma época de

esperança e horror, ambígua e confusa. Enquanto, em um dado momento, a

tecnologia é igualada ao progresso e à promessa de um mundo de

abundância, livre de labuta, em outro ela evoca a visão de um mundo

enlouquecido, fora de controle, remetendo às visões de Mary Shelley em

Frankenstein (1808) ou de Goethe no Fausto (1818).

Possuímos, mesmo que de maneira confusa, a consciência de viver

um desses momentos, em que somos incumbidos da responsabilidade de

“criar” uma nova concepção, uma nova prática do que é o sujeito em

sociedade (Idem: 16).

Neste contexto, procuraremos elaborar o caminho que o sujeito tem

percorrido para construir – se e se reconstruir no processo civilizatório.

143

1. O sujeito moderno

Para definirmos o que é sujeito moderno é necessário, em primeiro

lugar, definir o que é Modernidade. Modernidade, como entendemos, é uma

designação abrangente para uma série de mudanças materiais, sociais,

intelectuais e políticas que ganharam visibilidade a partir do final do século

XVII e início do XVIII, com a emergência e a difusão do Iluminismo, até se

consolidar durante o século XIX e na primeira metade do século XX.

Anthony Giddens (1991:13) define a Modernidade como sendo um conjunto

de descontinuidades em relação ao período anterior (pré – moderno), em

que dominavam as tradições e as crenças irracionais, instituindo modos de

vida diferente dos anteriores. Touraine (1994:12) afirma que “a

Modernidade rompeu o mundo sagrado, que era ao mesmo tempo natural e

divino, transparente à razão, lugar no qual o bem e o mal deixam de ser

definidos por uma tradição ou mensagem divina”.

Portanto, o sujeito moderno é aquele que incorpora uma identidade,

que possui valores pautados pelos elementos característicos da

subjetividade, tais como as questões de ordem moral, de Estado, culturais e

artísticas, e que estabelecem as bases para a convivência em sociedade.

A Modernidade é, muitas vezes, definida em relação ao

Humanismo, seja para saudar o nascimento do sujeito, seja para anunciar a

sua morte. Paralelamente a esta discussão, encontra – se também o

nascimento da questão relativa à “não – humanidade” das coisas, dos

objetos e o surgimento de um Deus destituído de seu poder Criador. Este

conjunto de situações também contribuiu para o surgimento da

Modernidade; em um plano no qual proliferavam os objetos híbridos, criando

144

mundos separados, dividindo entre o que está acima e o que está abaixo,

entre os humanos de um lado e os não – humanos de outro.

Por isso, Blade Runner (1982), de Ridley Scott, com seu conjunto de

metáforas, mostra a passagem do período compreendido como

Modernidade para a Pós – Modernidade. Visto sob este ponto de vista,

consideramos o filme como um suporte metodológico do qual extrairemos

nossa constatação teórica. Ridley Scott aborda a transição da Modernidade

para a Pós – Modernidade por meio de dialéticas traduzidas, em sua

maioria, por situações nas quais os personagens, seus sentimentos e a

ambientação do filme, são dotados de certa ambigüidade. Nestes ambientes

o novo e o antigo convivem, confirmando esta dialética.

O desenvolvimento das sociedades modernas expressa – se pela

formação de esferas de valores como o Estado, a sociedade, a ciência, a

moral e a arte, entendidas como encarnações do princípio da subjetividade.

Subjetividade representada no filme pelo protagonista Deckard, que é

obrigado pelos dispositivos controladores da sociedade – os policiais

corporativos – a “aposentar” os replicantes. Apesar de ter – se aposentado,

no sentido usual do termo, Deckard é convocado a utilizar a sua habilidade

de investigador policial, de blade runner, para caçar os replicantes da geração

Nexus 6. Sua vida pregressa é obscura, escondendo talvez algo

incriminador, pois percebe – se que, para “convencer” Deckard a cumprir

sua missão, é feito um jogo de chantagem pelo chefe de polícia Capitão

Bryant. Como diz ele: “Conheço o jogo, meu chapa. Se não topar, está

acabado”.

A passagem de uma sociedade pré – moderna e teo – determinada,

secular e ascética para a Modernidade, teve como figura emblemática o

145

filósofo René Descartes. Contudo, essa passagem não se deu com uma

ruptura brusca, ignorando tudo o que veio antes de uma maneira radical –

daí o termo “descontinuidade” de Giddens. Stuart Hall (2005: 27), explicando

essa descontinuidade, diz que “Descartes acertou as contas com Deus ao

torna – lo o primeiro Movimentador de toda a Criação; daí em diante, ele

explicou o resto do mundo material inteiramente em termos mecânicos e

matemáticos”. Em Blade Runner, Rick Deckard, personagem interpretado

por Harrison Ford é uma das alusões filosóficas subjacentes do filme; não é

por coincidência que a fonética do nome do protagonista do filme Deckard é

idêntica ao do filósofo francês Descartes. Outras alusões também são

colocadas no filme, por exemplo, a morte de Deus anunciada por Nietzsche,

questionamentos sobre a essência humana e sobre os avanços das técnicas

e da ciência.

Descartes concedeu privilégio absoluto à mecânica, supondo uma

organização geral da natureza, porém pressentiu o movimento da vida, a

espessura da história e a desordem, difícil de ser dominada, da natureza.

Mergulhado em um mundo dominado pela perfeição reguladora do relógio,

Descartes procura definir o homem – ou pelo menos a sua essência –

através da exclusão: o universo pode ser como uma máquina; o corpo,

inclusive o humano, pode ser como uma máquina; mas a alma ou a mente,

e, portanto, aquilo que faz de nós de fato humanos, terá necessariamente

de escapar a este universo do mecanismo. No seu quadro teórico, que é

ainda equiparável ao de muitas doutrinas contemporâneas, só o dualismo

entre o ghost e a machine permite salvar o livre – arbítrio de uma concepção do

mundo progressivamente mais determinista. Desse modo, o embate entre os

replicantes – não – humanos contra seus criadores – humanos pode ser

considerado como a metáfora do dualismo da máquina e do espírito. Quanto

146

mais nos aproximamos da era contemporânea, mais o dualismo cartesiano,

quando observado segundo a perspectiva aqui eleita, parece resultar da

necessidade obstinada de se conceder ao homem um último reduto de

autonomia face à técnica, a qual, de tanto moldar o mundo e a sua imagem,

ameaçaria arrastar o homem à metáfora do universo como máquina e do ser

vivo como autômato.

O que não deixa de ser intrigante, pois acerca desta época ainda se

poderia afirmar que é o homem quem controla as suas invenções. Nesse

sentido, a alegoria marxiana do aprendiz de feiticeiro pode ser entendida

como a expressão mais acabada daquilo em que se transforma o

cartesianismo, quando levado às últimas conseqüências. Ou então de uma

espécie de pós – cartesianismo estranhamente coincidente com um

“animismo” invertido: a época atual em que a nova metáfora por excelência é

a do computador. Na cena do interrogatório em que o replicante Leon

elimina seu inquisidor, ao responder com dois tiros à pergunta: fale sobre

sua mãe? - é bastante elucidativa no que se refere ao “animismo” invertido,

pois a máquina tende a eliminar o problema para o qual não tem resposta.

Falar em subjetividade significa necessariamente falar em René

Descartes, o que não significa dizer que essa questão tenha surgido com a

filosofia moderna. Ao investigar os domínios da subjetividade, este pensador

do século XVII transformou – a em referencial central para o conhecimento e

a verdade. É na perspectiva do racionalismo que a filosofia moderna constrói

sua subjetividade, no interior da qual mantém as mesmas exigências e os

mesmos objetivos do discurso de Platão: a busca da objetividade pela razão.

Diante da incerteza quanto à realidade do mundo objetivo, Descartes afirma

a certeza do cogito. Porém, em Blade Runner esta certeza já não é

147

suficiente, como disse a replicante Pris para J.F. Sebastian: “Penso,

Sebastian, logo existo”. Isto é, não basta apenas “pensar para existir”; a

referência à famosa frase de Descartes, no filme, sugere uma critica ao

racionalismo cartesiano, base da filosofia do sujeito e da civilização do

capital. Em Blade Runner, o homem demonstrou ser capaz de dar a vida

aos artefatos – os replicantes Nexus 6 – mas não conseguiu ainda ser capaz

de dar – lhes um sentido para viver, condenando – os a sofrer de forma

infinitamente intensa esta experiência trágica.

É interessante verificar que Descartes coloca a tônica no pensamento,

enquanto o eu fica praticamente de fora de sua filosofia. Quando fala do eu,

não se refere a um sujeito, mas a uma substância pensante, substância esta

que é composta de linguagens e imagens. Por mais paradoxal que possa

parecer, a máxima cartesiana cogito ergo sum assinala a emergência da

subjetividade, mas não a do sujeito32. O homem presente em sua filosofia é

espécie ou gênero. Esta perspectiva é de racionalização do indivíduo e do

que se denominou pensamento cartesiano.

Com seu “penso, logo existo”, Descartes deslocou o centro das

coisas, de Deus para o homem individual, racional, centrado em si,

constituído pela sua capacidade de pensar e raciocinar por si – o sujeito

autônomo, “iluminado”, agente – sendo por isso chamado de sujeito

cartesiano.

A etimologia da palavra sujeito advém de sub + etno: em baixo,

situado. Inicialmente é um termo que se refere à substância das coisas

materiais, ao mundo objetivo e não ao sujeito. Atualmente, porém, o termo

sujeito faz sentido em oposição ao objeto, remetendo à idéia de substância.

32 “Penso, logo existo” - máxima do pensamento cartesiano.

148

Desta forma, remete a uma concepção essencialista, a uma noção de

interioridade. A noção de subjetividade, advinda do sujeito, refere – se a

sentimentos, à interioridade, em oposição ao mundo objetivo e aos outros

sujeitos.

Já a denominação indivíduo diz respeito ao que é indivisível,

compondo – se em oposição à idéia de sociedade. Neste sentido, este

conceito adquire significado no deslocamento da sociedade para o homem.

A identidade, em conseqüência, é o que mais ressalta o aspecto grupal e

coletivo da formação do indivíduo, opondo – se à similaridade com outros

indivíduos e à diferença dentro do grupo. Stuart Hall no livro Identidade

Cultural na Pós Modernidade (2005), afirma que a identidade moderna é

descentrada, ou seja, é deslocada ou fragmentada, havendo uma perda do

sentido de si como um elemento estável e um descentramento do sujeito de

seu lugar no mundo e com relação a si mesmo.

Os replicantes não possuem estes lastros da experiência humana.

Aliás, podem até possuí – las, mas são meras próteses, implantes de

outros sujeitos. Por exemplo, a experiência de memória de Rachel é um

implante da experiência de vida da sobrinha de Tyrell. Rachel chega a dizer,

imersa em uma crise de identidade: “Não sei se sou eu ou a sobrinha de

Tyrell”. Enfim, suas memórias pessoais não pertencem a ela, mas são de

outrem. Nos replicantes a própria memória passa a ser o descentramento do

seu lugar no mundo e em relação a si mesmo.

Segundo Hall, Raymond Williams acrescenta os seguintes

significados de indivíduo: indivisibilidade e singularidade, distinção e

unicidade. Aponta os movimentos históricos que atuaram no sentido de

149

construir esta concepção do indivíduo, a Reforma e o Protestantismo. Tais

movimentos teriam libertado a consciência individual das instituições

religiosas da Igreja. O Humanismo Renascentista, por sua vez, colocou o

Homem no centro do universo e as revoluções científicas conferiram ao

Homem a faculdade e as capacidades para inquirir, investigar e decifrar os

mistérios da Natureza. Desta forma, o Iluminismo centrou a imagem do

Homem racional, científica, libertado do dogma e da intolerância perante o

qual se estendia a totalidade da história humana, para ser compreendida e

dominada. O sujeito moderno, racional, centrado e unitário, na avaliação pós

– moderna, é uma construção muito particular do projeto iluminista, que o

pressupunha como capaz de opções racionais conscientes e autônomas em

relação à sociedade, desde que devidamente educado. Isso o tornava peça

fundamental na organização econômica e social dos Estados modernos. A

construção desta idéia de sujeito, universal e atemporal, só se tornou

possível graças aos aparatos discursivos e lingüísticos que, historicamente,

o manufaturaram.

O sujeito da razão, com o desenvolvimento dos aparatos da

Modernidade – Estado nacional, por exemplo, tornou – se enredado nas

maquinarias burocráticas e administrativas, que forneceram as bases para a

constituição da noção sociológica de indivíduo. Esta noção, apoiada nas

proposições da biologia darwiniana e nas ciências sociais constituiu um

sujeito biológico e socializado. Assim, a ‘internalização’ do exterior no

sujeito, e a ‘externalização’ do interior através da ação no mundo social

constituem a descrição sociológica primária do sujeito moderno e estão

encapsuladas na teoria da socialização (HALL, 2005: 12). Estas noções

foram se deslocando, a partir de algumas contribuições teóricas. Neste

150

sentido, tiveram efeito as críticas de Freud ao sujeito psicológico, as críticas

da razão instrumental da escola de Frankfurt e as críticas da filosofia da

linguagem ao sujeito constituinte de sentido.

Seguindo a argumentação de Hall, podemos apontar algumas

rupturas, tanto no nível teórico quanto no político, que possibilitaram o

surgimento da idéia de identidade enquanto algo não definível, não fixado.

Inicialmente, podemos colocar a tradição do pensamento marxiano, com a

idéia de que não há uma essência universal do homem e que essa essência

não é atributo de cada indivíduo singular. Posteriormente, com a crítica que

o inconsciente freudiano instaurou, colocando a noção de que há um

sistema preexistente ao sujeito, e há um outro da razão produzindo efeitos,

isto é, o recorte freudiano afirma que o inconsciente produz efeitos que o

consciente – lugar da razão – não controla.

Ainda no período da Modernidade, a crise da identidade e os

processos sociais estimularam o declínio das antigas identidades e o

surgimento de novas identidades que desconstroem o sujeito moderno. Tais

processos fazem proliferar situações, experiências, estímulos ilimitados e em

ritmo acelerado, fazendo os sujeitos transitarem entre demandas e desejos

diversos, impossibilitando-os de se constituírem como "sujeito unificado". O

sujeito que emerge desse processo é pura possibilidade, entrecruzamento

de identificações e diferenciações, como sujeito mutante e gestor de

"identidades próteses", que além de diferenciadas, são muitas vezes

contraditórias.

As fotografias da replicante Rachel são necessárias para afirmar para

si própria o simulacro de sua identidade pessoal. Tais representações, ou

151

melhor, signos de memórias, é quase uma extensão de si. O se que coloca,

a partir da experiência de Rachel em Blade Runner é o seguinte: até que

ponto nossas memórias pessoais são nossas e não representações ou

signos protéticos, implantados pelo complexo midiático vigente do sistema

do capital que produzem, por exemplo, nostalgia de um tempo não – vivido,

mas percebido no plano imagético? Dentro deste contexto o mundo social de

Blade Runner é o mundo de aguda manipulação da subjetividade.

No entanto, é preciso entender que a subjetividade moderna é capaz

de comportar uma pluralidade de identidades, pois está imersa em práticas

sociais descontínuas, que são sucessivamente reformuladas, instituindo

processos de identificação que sustentam a idéia da “política da diferença".

Estamos vivendo uma proliferação de processos e movimentos de

formação de identidades, sejam de caráter social, político, religioso, cultural,

étnico, nacional, sexual entre outros. Assim, nas sociedades

contemporâneas os indivíduos já não têm um lugar estável, seguro no

mundo social. Falta-lhes uma identidade que fixe e assegure um lugar e

significados. Ao contrário, estão imersos em processos e existências que

estimulam a pluralidade de ser e o fragmentam, descentrando-o em

"identidades abertas, contraditórias, inacabadas, fragmentadas", como diz

Hall (2005: ibidem 36). O personagem Gaff – um blade runner – encarna um

amplo espectro de identidades e é fruto da mescla de várias raças, culturas

e idiomas. Este personagem anuncia uma sociedade multicultural que

integra as raças e os idiomas da terra.

Essa permanente busca, essa vontade de ser, coloca o sujeito diante

do imponderável – circunstância indefinível, mas que influencia o fazer e o

sentir – para encontrar a autenticidade desejada de fazer coincidir o que se

quer ser com o que se é. Rachel sente – se profundamente incomodada com

sua condição de replicante. É próprio de sua natureza ser incapaz de possuir

memória de vida pessoal única. Rachel, como o universo midiático de Blade

Runner, está totalmente imersa em um mundo de imagens fotográficas, por

exemplo, tanto o escritório do chefe de polícia – Capitão Briant – que

conversa com Deckard logo no início do filme quanto o próprio apartamento

de Deckard é possível encontrar a presença de inúmeras fotografias, o que

pode nos levar a refletir: se seriam eles todos replicantes, ou será que são

meros seres humanos em processo de desconstrução de sua identidade

humana por meio da corrosão da memória pessoal ou por meio da

manipulação avassaladora de suas experiências de vida passada?

Memórias protéticas e fotografias transformam a realidade do tempo e

da existência em objetos tangíveis. Em Blade Runner, esses objetos tornam

– se a prova cabal de que seu portador “vive” – paradoxalmente, em

consonância com a ambigüidade que permeia toda a sua estrutura, o filme

também irá insistentemente pôr à prova a noção da fotografia como prova de

um fato verdadeiro, e os replicantes buscam na fotografia sua identidade

perdida e aquilo que eles não são e nunca poderão ser – humanos.

\

Fig.44 Fotografias

152

153

Os sujeitos modernos buscam esta identidade perdida em uma

sociedade intensamente narcisista e individualista, como tem sido estudada

por Baudrillard em seu livro A Sociedade de Consumo (2000). É uma das

facetas do individualismo que emerge no contexto de uma lógica social do

consumo onde tudo e todos são transformados em formas produtivas.

O sujeito do Iluminismo fundamentava-se na idéia de um ser humano

centrado, unificado, racional, científico, dotado de consciência e ação. Seu

"centro" surgia no nascimento da pessoa e se desenvolvia ao longo da

existência, porém permanecia essencialmente o mesmo ao longo da vida.

Esse "centro essencial" era a identidade do indivíduo. A partir do Iluminismo,

o homem passa a ser entendido como um ser dotado de razão e capaz de

administrar a si próprio e a sociedade, sem a tutela de um ser superior. O

Iluminismo baseou-se nas leis da física de Isaac Newton; se estas

prescrevem a racionalidade da natureza, a natureza humana também

deveria ser regida pela razão. A Modernidade, portanto, estende ao sujeito

os mesmos princípios de estabilidade, unidade, equilíbrio e permanência que

caracterizavam a natureza. O sujeito do humanismo moderno é aquele que

está totalmente presente em si mesmo, auto – suficiente, racional e

possuidor de livre arbítrio.

No filme, os replicantes rejeitam o sonho da Idade Moderna, que

acreditava fielmente que a técnica era o paraíso sobre a terra. Se os novos

recursos tecnológicos são capazes de construir duplo de humanos, por que

não seriam capazes de conduzi – los à liberdade? Os replicantes querem

“humanizar” e “eternizar” os benefícios das tecnologias. Os seus sonhos –

almejam o direito à vida e a natureza perdida. Eles rejeitam a técnica que os

154

condenam a viver tão limitados, reivindicando novos recursos tecnológicos

para vivenciar experiências sem limites no presente.

O homem faz parte da natureza, mas suas capacidades específicas

de pensar, de ter consciência de si e de constituir uma cultura, distinguem –

no, concedendo – lhe a superioridade sobre os outros animais. É um ser que

se constitui como sujeito a partir de sua diferenciação com os objetos do

mundo. No entanto, ele é também objeto de conhecimento, o que lhe

confere o estatuto de sujeito e objeto, simultaneamente.

Porém, na medida em que as sociedades modernas se tornavam

mais complexas, elas adquiriram uma forma mais coletiva e social. As leis da

economia política, da propriedade, do contrato e da troca tinham que

prevalecer, depois da industrialização. O capital de Marx foi transformado

nos grandes conglomerados empresariais da economia moderna. O sujeito

individual tornou – se enredado nas maquinarias burocráticas e

administrativas do Estado moderno (HALL, 2005: 31). Surge a concepção do

sujeito sociológico, que reflete a crescente complexidade do mundo

moderno. A grande mudança ocorre na visão acerca do "centro essencial"

do indivíduo. Ele deixa de ser autônomo e auto – suficiente, estruturando –

se a partir das relações estabelecidas com outras pessoas responsáveis por

mediações de valores, símbolos e sentido – ou seja, a cultura. Assim, a

identidade é o espaço entre o "interior" e o "exterior", entre o mundo pessoal

e o mundo público do ser humano. O mundo social de Blade Runner é um

mundo capitalista, com a presença visível dos ícones das corporações

globais – Pan Air e Coca – cola – cintilando em luzes néon em um cenário

distópico.

155

O sujeito passou a ser visto como mais localizado e “definido”, no

interior dessas grandes estruturas e formações que passaram a sustentar a

sociedade moderna. Além disso, ele passou a ser localizado em processos

de grupo e nas leis coletivas. O homem sociológico refletia a complexidade

do mundo moderno e a consciência de que este núcleo interior do indivíduo

não era autônomo, e sim formado em sua relação com outras pessoas: a

identidade da pessoa é formada na interação entre o eu e a sociedade.

Emerge desse processo uma noção de sujeito e de identidade mais

perturbadora; esta noção está vinculada aos movimentos estéticos e

intelectuais associados ao surgimento da Modernidade. Identifica – se a

figura do sujeito isolado, exilado ou alienado, em uma multidão ou em uma

metrópole anônima e impessoal, assim como vemos em Blade Runner – o

caçador de Andróides (1982).

Gianni Vattimo em seu livro O Fim da Modernidade (2002) aborda

as reflexões de Heidegger e de Nietzsche sobre o fim da época moderna e o

início da Pós – Modernidade. Nestas reflexões Vattimo aponta duas

questões importantes que conduziram o sujeito moderno a se deparar com o

momento de ruptura com as tradições modernas.

Segundo Vattimo, em primeiro lugar, Heidegger considerou que, a

partir do momento no qual o sujeito passa a ter um valor de troca, sendo

apropriado por outrem, surge a questão da redução de tudo que a técnica

pode criar, colocando o sujeito frente à dissolução do ser no valor de troca.

O sujeito se vê frente à crise diretamente ligada ao surgimento das técnicas,

que foram consideradas como a causa de um processo de desumanização,

e da perda da subjetividade humana (VATTIMO: 2002: 13). Enquanto

156

mercadorias complexas, os replicantes estão submetidos à lei do valor.

Portanto, devem ter um tempo de vida útil restrito. Deste modo, não é

apenas contra a perversidade dos limites objetivos da ciência e da técnica

da Tyrell Corporation que se revoltam os replicantes, mas contra a lei do valor

e a lógica contraditória do capital, que frustra as promessas de uma vida

plena de sentido, seja para homens, seja para os replicantes Nexus 6, em

uma etapa avançada do processo civilizatório.

Em segundo lugar, Vattimo associa as considerações de Nietzsche

sobre o niilismo e a morte de Deus a uma reflexão sobre o fim da

Modernidade. Sobre o niilismo, Nietzsche alega que a Modernidade chega

ao fim face ao que ele considera a decadência européia, a ruína dos

valores tradicionais consagrados pela civilização do século XIX. Nietzsche,

por intermédio do niilismo, desacredita em um futuro ou destino glorioso da

civilização, opondo – se, portanto, à idéia do progresso; e pela afirmação da

“morte de Deus”, negando a crença em um absoluto, fundamento metafísico

de todos os valores éticos, estéticos e sociais da tradição. O niilismo de

Nietzsche deve, no entanto, levar – nos a novos valores que sejam

“afirmativos da vida”, da vontade humana, superando os princípios

metafísicos tradicionais. A “morte de Deus” anunciada por Nietzsche existe

precisamente na medida em que o saber não precisa mais chegar às causas

últimas, o homem não precisa mais acreditar que ele possua uma alma

imortal (Idem: 9).

A partir da crise desencadeada pela técnica abordada por Heidegger

e do niilismo de Nietzche, Vattimo assinala o fim da Modernidade:

157

“... a consumação do niilismo, a vicissitude do valor da troca, da

dessacralização do humano... As características da existência na

sociedade capitalista, da mercadorização totalizada em

“simulacralização”... No mundo do valor de troca generalizado

tudo é dado – como sempre, mas de maneira mais evidente e

exagerada – como narração, relato da mídia essencialmente que

se entrelaça de inextrincável com a tradição das mensagens que a

linguagem nos traz do passado e das outras culturas...” (ibidem:

13).

O século XX foi fundamental para o estabelecimento da

reestruturação da sociedade; é a partir da consolidação dos processos

comunicacionais fomentados no século XIX – a fotografia e o jornal –

que começa a ser construída uma cultura semeada por processos de

produção, distribuição e consumo comunicacionais, classificada por

Santaella como “cultura das mídias”. Esses processos são distintos da

lógica massiva e vieram fertilizando gradativamente o terreno sociocultural

para o surgimento da cultura virtual ora em andamento (2000: 13) .

Como conseqüência das tecnologias de comunicação aparecidas no

século XX, e das circunstâncias geopolíticas configuradas na mesma época,

a cultura de massa desenvolveu – se a ponto de ofuscar os outros tipos de

cultura anteriores e alternativos a ela. Antes de existir o cinema, o rádio e a

TV, falava – se em cultura popular, em oposição à cultura erudita das

classes aristocráticas; em cultura nacional, componente da identidade de um

povo; em cultura clássica, conjunto historicamente definido de valores

estéticos e morais; e em um número tal de culturas que, interagindo entre si,

formavam identidades diferenciadas das populações.

158

A chegada da cultura de massa, porém, acaba submetendo as

demais “culturas” a um projeto comum e homogêneo — ou pelo menos

pretende essa submissão. Por ser produto de uma indústria de porte

internacional e, mais tarde, global, a cultura elaborada pelos vários veículos

então emergentes esteve sempre ligada intrinsecamente ao poder

econômico do capital industrial e financeiro. A massificação cultural, para

melhor servir esse capital, requereu a repressão às demais formas de

cultura — de forma que os valores apreciados passassem a ser apenas os

compartilhados pela massa.

A cultura popular, produzida fora de contextos institucionalizados ou

mercantis, teve de ser um dos objetos dessa repressão imperiosa.

Justamente por ser anterior, o popular era também alternativo à cultura de

massa, que por sua vez pressupunha — originalmente — ser hegemônica

como condição essencial de existência. O que a indústria cultural percebeu

mais tarde, é que ela possuía a capacidade de absorver em si os

antagonismos e as propostas críticas, ao invés vez de combatê – los. Desta

forma, a cultura de massa alcançaria a hegemonia: elevando ao seu próprio

nível de difusão e exaustão qualquer manifestação cultural, e assim

tornando – a efêmera e desvalorizada.

No contexto da indústria cultural — da qual a mídia é a maior porta – voz

— são totalmente distintos e independentes os conceitos de “popular” e

“popularizado”, já que o grau de difusão de um bem cultural não depende

mais da sua classe de origem para ser aceito por outra. A grande alteração

da cultura de massa foi transformar todos em consumidores que, dentro da

lógica iluminista, são iguais e livres para consumir os produtos que

desejarem.

159

Os anos oitenta do século XX constituem a ponte que liga um mundo

monocentrado nas grandes narrativas, como escreveu Jean – François

Lyotard no seu livro Linguragens: real versos virtual (1999), a um outro

mundo no qual o midiático e a instantaneidade se unem ao estreitamento

espacial do universo – a globalização – e, sobretudo, à pluralidade ou

fragmentação de códigos, referências e valores, descontruindo a identidade

do sujeito da razão. A subjetividade cartesiana vem sendo substituída

gradualmente por outras subjetividades, como escreve Lúcia Santaella no

seu livro Corpo e Comunicação...

“Subjetividade distribuída, socialmente construída, dialógica,

descentrada, múltipla, nômade, fala-se de subjetividade inscrita

na superfície do corpo, produzida pela linguagem, etc...”

(2004:17).

Esse pressuposto de um sujeito universal, centrado e unitário vem

sendo questionado neste intervalo entre a passagem de um pensamento

cartesiano, para um pensamento formatado a partir do surgimento de uma

nova era, a era da comunicação midiática, ou do sujeito midiático, em vias

de se tornar um sujeito virtual, face a cultura digital do século XXI.

Entendemos por ‘midiático’ o atributo característico de todas as entidades

cuja existência é determinada por uma rede, ou conjunto de circuitos, ou

seja, os novos limites que advêm da expansão do sujeito tecnológico.33

O midiático impõe – se numa época nova em que os grandes códigos

totalizantes deixam de mobilizar as sociedades, como já referimos, e, no

momento em que, por outro lado, surgiram novos moldes de interação e

espaços ciberespaciais, assim como uma assinalável ficcionalidade da

experiência, corporizada pelas redes midiáticas e ainda por uma

33 Digital: que se refere à simulação e ao computador.

reconfiguração radical do agir livre do sujeito e do objeto que se tornaram

globais.34

Fig. 45 Cena do filme Blade Runner

David Harvey, no livro A Condição Pós – Moderna (2004) apresenta

uma teorização sobre o espaço, na qual o encolhimento do mundo é

entendido como sendo um efeito de compressão do espaço – tempo, isto é,

da aniquilação do espaço pelo tempo resultante do desenvolvimento das

indústrias de transportes, comunicação e informática. Podemos concluir que

os fatores velocidade e simultaneidade são as bases estruturais para a

criação do mundo contemporâneo, pois ambos concorreram de forma

decisiva para o seu encolhimento e para o aumento da percepção

fragmentada do mundo, ao colocarem à disposição velozmente da

sociedade de massas uma incrível e inusitada quantidade de estímulos e

informações. Velocidade traduzida em Blade Runner pelos veículos que

sobrevoam a cidade e pelos raios de luz que cortam a cidade e os outdoors

que desfilam imagens no espaço repleto de significações, mas que não

160

34É na obra de William Gibson, Neuromancer, de 1984, que aparece pela primeira vez o termo ciberespaço (cyberspace). Neuromancer é um romance descrito pelo autor como uma “alucinação consensual” da mente, alcançada através da técnica do “jack in” – conexão do cérebro através de um plugue implantado na nuca. Cyberespaço tornou-se um sinônimo para a Internet e para a intrincada relação entre o virtual e o real no mundo contemporâneo (GIBSON: 2003, 5).

161

possui, no entanto, centro definido. Não sabemos identificar a sua

territorialidade física, mas percebemos que estamos a um passo de

mergulhar nas estruturas rizomáticas da cidade de Ridley Scott.

A velocidade, hoje, tornou – se um fato corriqueiro em nossas vidas;

os atuais meios de transportes deram um salto vertiginoso em termos de

velocidade e tecnologia, do começo do século XX até os nossos dias. O

trem, o navio, o carro e o avião são símbolos da Modernidade. Eles

possibilitaram o transporte mais rápido e seguro de pessoas e,

principalmente, agilizaram o comércio internacional.

Por outro lado, os aparelhos de simultaneidade – o satélite, a

televisão, o telefone e a internet – contribuíram sobremaneira para a criação

de realidades que, não sendo nossas, são vividas como tais. Esta

virtualidade facilita e energiza a mistura hipercomplexa de pessoas, capital e

informações, provocando dessa maneira uma profusão de informações que

os habitantes da nossa sociedade têm de processar.

Para poder processar tal quantidade de informações, o homem

moderno teve que adotar uma linguagem única, globalizada, provocando,

como conseqüência, a perda de sua identidade cultural, dos regionalismos,

das particularidades que o diferenciavam do outro. Ocorre então uma

uniformização que leva a uma alienação não só do discurso do sujeito, mas

também uma desreificação da realidade – o virtual torna tudo possível.

Estas considerações podem nos fornecer uma visão geral de como as

modificações, na cultura, levadas a cabo através da mídia, interferiram na

construção da subjetividade do sujeito, fazendo com que ocorresse um

162

descentramento da questão do sujeito como sujeito do desejo, para a do

sujeito do consumo transformado em objeto.

Quanto ao tecnicismo da sociedade, este “colaborou” para a

descaracterização do sujeito racional. Telefone, Internet, chats, celulares, e –

mails, tudo contribuiu para a constituição do e – indivíduo; onde quer que

estejam, centenas de milhões de pessoas, em um espaço virtual para uma

vivência digital, unindo fragmentos, pedaços do que não é; vivenciando a

comercialização da informação e a comercialização do indivíduo. Várias

redes em todo mundo, teias que o prendem a essa era tecnológica,

possibilitando – lhe várias formas de expressão, de existência.

Dentro desse contexto, a transição da sociedade moderna para uma

sociedade pós – moderna representa o desenvolvimento ampliado de suas

contradições sociais, quer no campo da técnica e da tecnologia, quer no da

sociabilidade e subjetividades humanas e também do ecossistema urbano –

social. O estranhamento atinge o trabalho e a reprodução social, o que

significa que desconstrói a memória e a identidade do homem, dilacerando

seus referentes de espaço – tempo, comprimindo – os e imprimindo neles

sua marca indelével. A manipulação de homens e objetos assume

dimensões cruciais. A sociedade em transição tende a se tornar uma imensa

coleção de múltiplo objeto - mercadorias complexas criadas pelas

tecnologias de engenharia genética. No limite da transição das sociedades

moderna para a pós – moderna, a produção de mercadorias atinge a

produção de supostas inteligências artificiais e do objeto – replicante no

limiar do ser humano.

163

Em uma perspectiva de confiança humanista na docilidade

instrumental do conhecimento técnico – científico, que alimentou grande

parte da aventura moderna, era possível pensar ainda que conhecíamos ou

compreendíamos melhor aquilo que precisamente fazíamos ou

realizávamos, nós mesmos. Mas, a aceleração do progresso técnico,

sobretudo a partir do século XIX, assim como alguns dos seus efeitos

problemáticos sobre a vida, trouxe consigo a impressão quase generalizada

de que a técnica corresponde a uma espécie de processo autônomo.

Processo pelo qual seríamos arrastados e cuja natureza escaparia aos

desígnios e finalidades estabelecidos pelo homem, algo que alguns filósofos

acabaram por descrever como a realização impensada de uma potência

libertada pela metafísica ocidental, mas não controlável pela sua ética, pela

sua moral, ou por qualquer outra filosofia prática. Grande parte da reflexão

sobre alguns importantes domínios da tecnociência contemporânea tem sido

feita sob o signo do fim do humano, ou do que alguns designam como o

“trans – humano” ou o “pós – humano”, nomeadamente diante das novas

possibilidades de manipulação e design da vida, em concorrência com a

própria natureza. Ainda que esta perspectiva seja abraçada por alguns com

entusiasmo, senão mesmo com euforia, não é possível evitar, no mínimo,

uma inquietação justificada: aquilo que estamos em vias de realizar e de

alcançar como novas conquistas e nova etapa da cultura humana se nos

apresenta como imensamente estranha ou incomensurável em relação à

própria idéia de humano, contradizendo a velha máxima de Terêncio: “nada

do que é humano me é estranho”.

Na era do “design completo” um estranho paradoxo parece, pois, se

instalar: a dominação artificiosa dos mistérios do mundo natural não

164

torna necessariamente o mundo mais humano ou mais familiar, como obra

nossa, mas sim, de novo, estranho e inquietante, senão mesmo mágico,

quase tão inapreensível e inapelável como uma nova natureza. O humano,

que nos habituamos a pensar como um processo de incrustação continuada

da cultura no que é natural, parece debater – se hoje com a imposição

cultural ou artificial de uma nova natureza. Foi sempre nesta oposição entre

natureza e cultura em que esteve fixado o pensamento da antropologia

moderna. Aquilo a que chamamos “natureza humana” constitui – se, não

sobre um conjunto de atributos essenciais conferidos pela história natural,

mas sobre uma questão ontológica: aquela que precisamente une e separa

“natureza” e “humano”.

Os replicantes de Blade Runner reconfiguram a idéia defendida pelo

romantismo alemão, que conferiu a figura do duplo – um sentido trágico e

maléfico. Mais uma vez, o temor em relação à presença da técnica, que na

concepção romântica tomaria o lugar do homem, é questionável. Trata – se

de uma falsa dicotomia entre técnica e homens sapiens, na tentativa de

esconder a natureza humano – maquínica dos seres humanos.

O problema do humano é assim o problema do nosso lugar e da

nossa ação no seio de todas as coisas existentes. E a resposta a este

problema veio, desde logo, por meio de um conjunto de gestos que visavam

e implicavam em si a natureza, operando transformações decisivas no seu

seio, e aprofundando a cisão do homem relativamente a ela. O gesto técnico

surge como decisivo, desde tempos imemoriais, para uma determinação do

humano e da sua relação à natureza. E, por isso, foi desde cedo evidente

para uma antropologia filosófica, que o crescente desenvolvimento da

técnica poderia vir a revelá – la como uma “segunda natureza”. Esta

“segunda natureza” em Blade Runner é desvelada por meio do artefato

“humano” desenvolvido pela Tyrell Corporation, pois o verdadeiro objetivo do

criador Eldon Tyrell é alcançar a perfeição fabricando artefatos técnicos

“mais humanos que os humanos”.

O olhar da moderna paleontologia confirma esta visão de uma

segunda natureza, transformando – a mesmo em uma espécie de narrativa

fundadora: a narrativa de um homem que surge, verdadeiramente, quando

nele se manifesta a capacidade de compreensão e manipulação do mundo à

sua volta, concomitante, por sua vez, ao surgimento da própria capacidade

simbólica. Para o olhar dos modernos não há invenção do humano sem

reinvenção da natureza e, por isso, todo o mistério da origem do humano

aparece como indissociável da oposição do artifício e do desígnio humanos

a uma plenitude do que é natural.

Fig. 46 Natural x artificial

A oposição entre natural e artificial é assim o operador de todo um

conjunto de passagens e de transgressões que nos revelam o sujeito como

um ser arrancado à sua mera verdade física e biológica. O sujeito é, assim,

um ser de fronteira e da transformação criativa do mundo, por ação

deliberada dele próprio, o sujeito cria processos nos quais se inscreve todas

as coisas dessa mesma fronteira entre natural e artificial. O modo de ser

165

166

daquilo a que chamamos “mundo” ou “humano” parece, pois, desde sempre,

indissociável de uma verdade ontológica, inscrita no coração das coisas, que

repete a própria cesura do homem. Esta cesura representa a todo o

momento o que permite ao homem a transcendência do que lhe aparece

como dado, mas também o peso desse dado sobre a invenção de outros

possíveis, isto é, o peso da criatura sobre o gesto criador. A humanidade

sente a constante necessidade de exceder os limites, criando formas

artificiais de vida, explorando a natureza e retirando dela elementos que se

tornam essenciais para suas criações. Blade Runner, através da cisão entre

os homens e as coisas por ele fabricadas, planta questões filosóficas e

morais, e prevê uma sombria distopia.

Se acreditarmos nas descrições e previsões atuais acerca das

possibilidades de ação e de intervenção do homem sobre todas as coisas,

nomeadamente sobre a vida e sobre si mesmo, dir-se-ia estar em

constituição uma nova ontologia em que tal cesura se apagaria: uma

ontologia do artificial, isto é, um modo de ser inteiramente intencionado pelo

homem. O apagamento da cesura do natural e do artificial faria com que

tudo não fosse senão testemunho do homem, em um certo sentido, portanto,

"demasiadamente humano" para ser ainda do homem e por isso, talvez,

“trans – humano” ou “pós – humano”. A ontologia do artificial requer uma

ontogenia que o próprio humano não parece suportar e que recai então

sobre a técnica, como se esta se emancipasse da própria esfera do humano

e da cesura que nela a inscreve.

A possibilidade de um universo artificial parece depender assim,

inteiramente, da hipótese de um estatuto autônomo e ontogênico da

tecnociência moderna. Tal possibilidade assenta, por sua vez, em um

167

pressuposto propriamente metafísico, o qual, em outros momentos, foi da

máxima importância para a ontologia, para a cosmologia, para a teologia

cristã e mesmo para a própria história natural - o princípio de “plenitude”,

conforme relembra o sociólogo português Hermínio Martins no seu livro

Hegel, Texas e outros ensaios de teoria social (1996). Segundo o

princípio metafísico da plenitude, tudo o que é possível é, foi, ou será atual,

isto é, realizado. Compreende – se, assim, esse sentimento fundamental do

nosso tempo: o sentimento de que a técnica é algo que nos impele, nos

conduz como um destino e não como um desígnio, algo que se substitui à

própria história ou a toda teleologia, algo perante o qual todos os debates,

nomeadamente éticos ou simplesmente metodológicos, acerca da imposição

de determinadas finalidades ou de determinados usos à técnica parece, no

mínimo, extremamente frágeis.

Encontramos na narrativa cinematográfica de ficção científica o

“Princípio da Plenitude”, no qual tudo é possível, pois na medida em que

esta investiga os modos de produção de subjetividade em uma sociedade

tecnocientífica, transforma tudo ou quase tudo o que é imaginado em

atualidade. Deste modo, Blade Runner prefigura a dissolução de fronteiras

entre humano e não – humano, factual e ficcional, visível e invisível, ciências

humanas e teórico – experimentais, trazendo para as telas o que poderá ser

transformado em objetos ou técnicas que farão parte do cotidiano do

indivíduo em um futuro próximo.

Em Blade Runner vê–se que a identidade do homem como sujeito da

Modernidade prometeica encontra – se irremediavelmente obliterada. Blade

Runner tende a negar, em si, qualquer identidade do homem consigo

mesmo. É possível destacar, dentre os múltiplos detalhes significativos do

168

filme, alguns elementos sobre a identidade do sujeito fragmentado. A

Tyrell Corporation é uma empresa – rede, tendo em vista que ela utiliza o

trabalho subcontratado de fornecedores para a produção das mercadorias –

objetos tecnicamente complexos – os replicantes, sujeitos não – humanos,

fragmentados em sua fabricação, produzindo apenas um determinado

componente daquela estrutura biotecnológica.

Por exemplo, quando o replicante Roy visita a oficina de trabalho de

um dos subcontratados da Tyrell, percebe que o fornecedor desconhece os

demais componentes de um organismo Nexus 6. Especializou – se apenas

em fabricar os olhos, mas nada sabe sobre o dispositivo capaz de dar mais

tempo de vida aos replicantes. É sintomático que Ridley Scott tenha

escolhido a atividade do produtor dos olhos para expressar a fragmentação

da atividade produtiva, atividade que nomeamos de “design completo”, seja

para a produção dos artefatos humanos ou para a fabricação de objetos. No

filme, os que produzem os olhos estão cegos sobre o produto final. Eis uma

dimensão suprema do estranhamento desse sujeito fragmentado.

Somando todos os caminhos percorridos pelo sujeito do Iluminismo,

chegamos a uma condição de transição do sujeito racional, moderno, para

um sujeito que sabe traçar o próprio caminho por meio do domínio da

técnica e da criação de um mundo no qual os artefatos e objetos, humanos

ou não, alcançarão a perfeição estética. Roy Batty, o líder dos replicantes, é

a tradução da perfeição estética humana tratada no filme. Belo replicante do

sexo masculino, é alto, louro, forte e ágil, além de inteligente, representando

a perfeição do design genético

169

O fato é que estamos nos aproximando de um momento de

transformação radical da nossa cultura, que poderíamos definir como a

entrada em uma era do design. Tal não significa apenas o reconhecimento

usual de que tudo ou quase tudo vai incorporando a sofisticação de

uma conjugação estética e funcional, como acontece, hoje em dia, com o

mais insignificante objeto, utensílio, aparelho ou máquina. De fato, o

reconhecimento do caráter crescentemente expansivo do design é, em geral,

identificado com uma ascensão de quase todas as coisas a uma discursão

social e cultural.

A era do “design completo” será, pois, a era na qual tudo ou quase

tudo parecerá ser o resultado de uma história natural, sendo ao mesmo

tempo, contudo, inteiramente intencionado, inteiramente concebido e

inteiramente desenhado, manipulado. Ou seja, a cultura, no seu estado de

“design completo” é a cultura inserida na era do apagamento da fronteira

entre natural e artificial, o momento em que aquilo que é inteiramente

intencionado pelo homem, tenderá a apresentar-se como puramente natural.

Na realidade, este pensamento vai ao encontro do próprio sentido da

palavra design, aparentada com a idéia de iludir, enganar, ou de criar

elementos que eliminarão os obstáculos que se apresentam à ação do

homem. Já que design , quer como nome quer como verbo significa

não apenas intencionar, visar segundo um plano, mas também esboçar com

sucesso uma simulação de algo sobre o qual possuímos um conjunto de

intenções. É neste plano que a idéia de design mais intimamente se reúne

às noções de arte, de técnica - techné e, ainda, de mecânica e de

máquina,

170

aproximáveis, todas elas de um pensamento artificioso que caracteriza o

sujeito como artefato manipulável e um ser de cultura.

No caso da distopia de Ridley Scott, existe um intenso jogo de

manipulação, objetivo e subjetivo, que podemos reportar à questão

da comunicação contemporânea. O ato de manipulação não ocorre apenas

na dimensão da exterioridade - a manipulação que outrem exerce sobre

mim, como é perceptível nas propagandas de néon em Blade Runner;

porém, a manipulação percorre a dimensão da interioridade, aparecendo

como intensa auto – simulação, na qual o ego manipula a si mesmo,

buscando constituir uma identidade pessoal auto – referenciada, como no

caso das fotos dos replicantes.

Este sujeito, resultado da tecnociência atual, vê – se diante de

programas radicais de substituição das realidades naturais em vários

domínios – biológico, químico e geoquímico, capazes de manter a

adequação de um meio ambiente crescentemente depauperado; programas

de hibridação, sobretudo no domínio da diversidade biológica; e, ainda,

como metodologia de simulação, ou como virtualização dos objetos –

artefatos. Como diz Hermínio Martins: uma prodigiosa fertilidade de

produção de novos seres, não só físicos, químicos, biológicos, mas híbridos,

de várias ordens e graus de hibridismo, em que tudo se pode combinar e

articular. Hibridismo realizável em grande parte pelo prisma da informação,

em que todos os seres vivos se encaram como sistemas de processamento

de informação, comensuráveis pelo código genético, e mais geralmente pela

aritmética binária e a digitalização, que torna possível a sua manipulação e,

portanto a sua miscigenação sem limites.

171

O sujeito moderno ganha força pelo fato da técnica permanecer de

olhos postos nas qualidades, nas formas e nas ocorrências do que é natural.

Mais do que uma transcendência da natureza o que a técnica nos propõe,

com enorme sistematicidade, é a sua imitação radical, isto é, uma imitação

que, desta vez, pretende dispensar toda a mediação. Por isso domina

mesmo nos programas mais ousados das ciências que visam

biologicamente ou informacionalmente a reproduzir a vida, uma terminologia

efetivamente ligada à mimesis - “clonagem”, “replicação”, “simulação”.

Independentemente das novas realidades e até dos novos seres que

possamos ver surgir destes programas, trata – se de uma criatividade cujo

fundamento é, ainda, o da imitação, pelo menos formal, de processos e

movimentos da vida, pois o sujeito moderno ainda tem que conviver com

velhos processos de criação. Os replicantes, cópias humanas, representam,

para a pedagogia da práxis mimética, aquilo que Aristóteles considerava

fundamental no próprio ato da educação. Em Aristóteles, a arte de aprender

se reduz a imitar e a copiar por muito tempo. Desse modo o homem, para

atingir a condição de criatura perfeita, procura recriá – la, copiando em tudo

o que acredita ser humano. Já os replicantes querem em tudo imitar os seus

criadores, buscando viver mais para aprender mais e se tornarem iguais

àqueles que os criaram.

Na época contemporânea, o sujeito está preocupado em estabelecer

uma nova ontologia do artificial por meio de uma análise e recomposição do

existente, imitando os efeitos sintéticos da natureza, mas não,

verdadeiramente, seus procedimentos. A potência dessa ontologia manifesta

– se, contudo, na forma como os seus procedimentos parecem atravessar e

172

embaralhar todos os domínios, ameaçando dissolver não apenas a fronteira

entre o que é natural e o que é fabricado pelo homem, mas também as

distinções precisas que estabelecem o seio da natureza: a distinção

entre seres orgânicos e não orgânicos, entre seres animados e inanimados,

entre seres inteligentes e não inteligentes, entre seres que sentem e seres

que não sentem etc.

O que chamamos de sujeito moderno tem sido pensado como um

cruzamento preciso de alguns destes atributos, organizando à sua volta uma

certa cosmogonia. O limite inferior desta cosmogonia era o dos animais e o

seu limite superior o de Deus. Mas se a distinção entre Deus e o sujeito e

entre o sujeito e o animal são distinções fundantes de toda a nossa cultura, é

também verdade que o homem se pensou, necessariamente, a partir delas,

como sendo, quer uma “espécie de animal”, quer, também, uma “espécie de

Deus” ou um “quase Deus”.

Neste contexto é interessante uma análise da cena em que Tyrell,

dono da corporação industrial que produz os replicantes encontra – se com

Roy, em um embate entre criador e criatura. Tyrell é um gênio solitário,

cercado de objetos vivos, artificiais. É provável que Tyrell cultive um prazer

estético, quase erótico, pelos seus objetos vivos, inclusive os replicantes. Na

cena do seu encontro com Roy e conseqüentemente da sua morte, Tyrell

está em seu quarto, que lembra em vários aspectos um altar religioso, com

móveis em estilo barroco, velas acesas, suas vestes – um roupão – lembra a

indumentária clerical. A cena da chegada de Roy é associada à volta do filho

pródigo que volta para encontrar o seu pai:

173

"A criatura sobe pelo elevador e chega ao sofisticado

apartamento do criador. O criador não se espanta. A criatura

lhe pede: eu quero mais vida, Pai... O criador explica, paternal,

que alterações em sistemas orgânicos são fatais. Uma vez

estabelecida, a seqüência codificada não pode ser modificada. A

criatura pergunta, por quê? E segue-se a partir daí um diálogo

científico, no qual o criador junto com a sua criatura trava um

jogo de conhecimento. Por fim o criador reconhece que as

soluções propostas pela criatura para aumentar seu tempo de

vida são brilhantes, mas impossíveis de dar certo. A criatura se

cala. O criador, comovido, diz que tudo isso é acadêmico e

procura abraçar sua criatura. “A criatura, com um sorriso de

desespero, aceita o abraço – para matar o criador” (Cena do filme

Blade Runner).

Os termos científicos da cena pertencem às especulações da

engenharia genética. O diálogo do criador com a criatura representa o

confronto de saberes que não se sabem, que não salvam a criatura – e não

perdoam o criador.

De fato, o sujeito é o único ser que atravessa toda a extensão desta

cosmogonia, desde o seu limiar inferior até ao seu limiar superior e, por isso,

a possibilidade de um pós – humano afeta não apenas uma visão do sujeito,

mas, necessariamente, a visão de tudo à sua volta. Nesta travessia do

sujeito moderno para o sujeito pós – moderno, só as coisas, as coisas

inertes e inanimadas, parecem constituir a verdadeira alteridade do humano.

Voltando à sociedade de consumo e segundo uma expressão de

Walter Benjamin, no seu livro Modernidade e os modernos (2000): “ agora

é a coisa que atrai toda a nossa atenção, (...) que se converteu ao mesmo tempo

em centro de todas as inquietações e em promessa de felicidade”. No limite,

estaríamos diante de um devir coisa do mundo, à qual os modernos

precisamente denunciaram por várias formas, como uma “reificação”, o que

queria geralmente dizer, alienação do humano.

Fig.47 Linha de montagem de cyborgs

A visão tecnológica de hoje dá seguimento a este pensamento como

uma alienação dos atributos do humano, que poderiam agora ser

redistribuídos pelas coisas. Tudo não seria senão coisas, mas elas poderiam

chamar a si uma infinidade de atributos que, em princípio, lhes são

estranhos: organicidade, vida, movimento, inteligência, sensibilidade.

O sujeito moderno vislumbrou a possibilidade de um devir coisa do

humano, e de um devir humano da coisa, que contém por inerência uma

nova cosmogonia. Ao distribuir indistintamente os atributos do homem, esta

nova cosmogonia surge ainda dominada pela idéia do humano, mas deixa

de poder concebe – lo como a figura organizadora e central dessa

hierarquia vertical que nos situava em um ponto da escala entre a vida e a

sua transcendência divina. A nova cosmogonia lança tudo na

horizontalidade, distribuindo o homem aos pedaços pelas coisas,

174

fragmentando – o. Coisas quase vivas, quase humanas, e até quase

mágicas, como Deuses.

Fig.48 Cyborg

A ficção científica há muito que se entretêm a fabricar uma nova

etologia imaginária de seres artificiais: robôs, andróides, cyborgs, replicantes

que não são verdadeiramente classificáveis como espécies, mas sim como

coisas, através dos seus modelos, gamas, patentes, séries de fabricação,

etc.

A oposição entre organismo e mecanismo, na qual o pensamento

moderno tendeu a fixar – se, desde a invenção dos primeiros mecanismos

automáticos, foi o primeiro pólo aglutinador da comparação entre os homens

e as coisas. O organismo, realidade a que a biologia moderna deu um lugar

central, importava, antes demais, como uma grande imagem da vida, da sua

organização e da sua complexidade, e como possibilidade de

esclarecimento do seu mistério. A possibilidade de redesenhar a vida, desde

o mais elementar movimento - kínesis - que a expressa, até ao mais inefável

ânimo que a sustenta, é a miragem da enorme galeria de seres fantásticos

que estranhamente povoam o imaginário da entrada na era da técnica

175

moderna, e de que são espécimes inesquecíveis o Frankenstein de Mary

Shelley (1808) e o robô Maria de Metropolis (1926).

Fig.49 O mecanismo artificial

O mundo artificial do mecanismo, centrado sobre as compatibilidades

e incompatibilidades entre a coisa e o corpo, está decisivamente dando lugar

a uma nova miragem: a tecnologia da animação, da coisa que pensa, da

coisa que sente, da coisa que simula as mais elevadas capacidades da vida

humana. Esta tecnologia de vocação «psicodélica» promete, através de uma

inteligência artificial e de uma sensibilidade artificial, animar um mundo

imaterial, para o qual poderíamos fazer transitarem muitas das nossas

experiências.

Dentro deste contexto, na seqüência em que Deckard utiliza o

aparelho Esper Machine para investigar uma foto, é possível observar a

descrição que Ridley Scott faz de um mundo largamente baseado nas

tecnologias da informação e nos dispositivos ampliadores do potencial dos

sentidos. O Esper Machine, aparelho “dissecador” de imagens, nada mais é

do que uma extensão tecnológica da visão humana, que amplia

consideravelmente o poder do sentido em questão. A fotografia investigada

por Deckard através de seu aparelho miraculoso extrapola seu caráter

ordinário, de imagem estática e bidimensional.

176

Fig.50 Bioport

As ficções destas novas animações inquietam e seduzem

inevitavelmente o mundo animado do cinema, como por exemplo, o universo

de David Cronenberg em Videodrome (1983) ou em ExistenZ (1999). Por

mais imateriais que sejam os suportes deste novo mundo de coisas

animadas, elas não deixam por isso de ser coisas e de ser coisas que

manifestam antes de mais nada o seu modo moderno de ser coisa - o da

sua disponibilidade para a manipulação. Coisas disponíveis e armazenáveis

são, também hoje, o conhecimento, as emoções e as impressões que

encontram nas inúmeras espécies de ligação tecnológica uma espécie de

dispensador universal de experiências. Por isso o design se aplica já hoje a

desenhar essas experiências, às quais, como coisas, virão a corresponder

registros de patentes.

A discussão sobre a distinção entre coisa e não coisa vem sendo

talvez atualizada na oposição entre real e virtual, bem como outras

distinções que se fariam necessárias nesta discussão para diferenciar este

mundo moderno: a distinção fundamental entre jogo e não jogo, distinção

que o simples gesto já não permite fazer, quando trata – se apenas de

acionar um botão – que pode ser o de uma máquina fotográfica, o on ou o off

de uma televisão, ou o comando de um brinquedo eletrônico, ou o enter do

computador. 177

178

Dentro deste contexto, nenhuma reinvenção do humano será

arrancada à pura imaginação criativa, à pura vontade de demiurgia, mas sim

a muitos gestos, pequenos e grandes por intermédio dos quais, a todo o

momento, implicamos um destino. De novo, como primordialmente acontecia

no seio da natureza, o humano parece ser uma frágil condição, sem

verdadeiras garantias. Neste sentido, a nova cosmogonia horizontal em que

estamos lançados só encontra de fato paralelo nessa situação

absolutamente primeva da história humana, quando não estava ainda

garantida a supremacia do homem sobre os outros seres, nem inventada a

supremacia de nenhum Deus sobre os homens. É neste sentido que tal

condição merece, sem dúvida, o nome de uma nova natureza.

Diante desta questão - uma nova natureza - o sujeito moderno

transcende a fronteira para descobrir – se como sujeito pós – moderno.

Nessa passagem, o sujeito moderno depara – se com um fato novo na

época contemporânea, que é a crescente penetração dos corpos pela

técnica. Não é casual que a medicina e a genética se tornaram

absolutamente centrais, convergindo para o digital com o Programa

Genoma. Processos que até aqui só tinham lugar no cinema de ciência –

ficção estão na ordem do dia. A clonagem, a replicação, a robótica ou o

uploading da consciência está provocando uma crise profunda nas nossas

visões sobre a natureza do corpo. A fragilidade da carne que outrora era

“eternizada” teologicamente, parece invocar um hiper – corpo, criado

tecnicamente.

Na ficção cientifica, na visão prefigurativa do cinema, a brevidade da

vida e a fugacidade do tempo estão presentes como uma preocupação

179

angustiante. Devemos partir da premissa de que os modos de sentir não são

arbitrários ou carentes de efetividade na história da cultura. A troca material

supõe reações e reelaborações das formas de interpretar o mundo. Assim

como representado em Blade Runner, o sujeito contemporâneo busca

formas de representar a si mesmo, dando ênfase ao monopólio sobre o

segredo da inovação técnica acerca de si próprio. Dentro deste contexto, o

sujeito moderno se vê impelido a construir novos dispositivos para a

produtividade, seja no sentido da construção de objetos, seja na construção

de suas potencialidades enquanto ser humano, encontrando através da

ciência dispositivos postos a serviço de um processo de produção em

laboratório, de mecanismos que poderão lhes aumentar a vida, ou mesmo

criá – la com o propósito de torná – lo imortal, concedendo – lhes o poder de

manipular o seu próprio corpo.

O momento atual caracteriza-se pela expansão mundial da tecnologia

e pelo esmaecimento de fronteiras que têm propiciado novas condições de

possibilidade de subjetividade e novos espaços, como o ciberespaço e a

realidade virtual para a experiência humana. A época moderna trouxe à tona

processos técnicos avançados gerados no âmbito da simulação, permitindo

formas híbridas de interação entre sujeitos e máquinas reconfigurando as

possibilidades de experiência dos homens. Esta reconfiguração permite

novos modos de produção de subjetividade, ampliando o poder humano de

se reconstruir. Desse modo, o sujeito moderno concedeu às máquinas,

através dos seus sistemas avançados, o poder de criar simulações e

simulacros à sua imagem e semelhança, possibilitando a simulação de um

organismo vivo a partir de um sistema interativo.

180

2. O sujeito pós – moderno.

Neste início do século XXI, o sujeito tem sido abalado por uma

complexa combinação de crises e transformações profundas na sociedade,

que desencadeou processos originais que têm desafiado a sua explicação

pelas ciências sociais. É inegável que são muitos os enigmas que

emanaram do desenvolvimento histórico da sociabilidade humana

contemporânea, e que é igualmente premente a sua decifração intelectual.

Dentre as múltiplas problemáticas, destaca – se a questão da constituição

da individualidade, em um processo de entrecruzamento relacional das

dimensões sociais e psíquicas e dos condicionantes objetivos e subjetivos

que estão presentes na formação histórica do sujeito.

Nas últimas décadas tem havido um enorme e diversificado esforço

intelectual de reflexão sobre a natureza, as características e as implicações

dos fenômenos e das transformações que se processam no âmbito das

sociedades humanas. Nessa discussão, surge a noção de que essas

mudanças e os novos problemas vividos pela humanidade significam ou

indicam uma situação histórica sem precedentes, configurando a própria

“crise da Modernidade”. Houve um “envelhecimento” da era moderna e a

“crise da Modernidade” é uma constatação consensual e o ponto de partida

para análises com diagnósticos extremamente diferenciados, feitos a partir

de perspectivas teóricas e ideológicas muito heterogêneas (LYOTARD:

2001, 34).

Partindo das constatações de Lyotard, o pensamento pós – moderno

se afirma como a expressão intelectual de uma suposta nova ordem

societária que se estaria formando em contraposição à Modernidade em

181

crise. Desse modo, o pensamento pós – moderno instauraria uma nova

modalidade de “racionalidade” e de cultura, que é a expressão de um

conjunto de transformações econômicas, sociais e políticas, produzindo uma

mudança qualitativa nas instituições da sociedade moderna. Assim, o

pensamento pós – moderno significaria, simultaneamente, uma crítica e uma

ruptura com a Modernidade, com implicações que atingem desde a vida

cotidiana até a produção do conhecimento social, bem como aquilo que

conhecemos como identidade humana.

A identidade humana em Blade Runner é debilitada não apenas pelo

cenário distópico da Los Angeles de 2019, com seu urbanismo opressor e

sua humanidade utópica, mas pelo próprio desenvolvimento tecnocientífico e

pela engenharia genética que criou os novos objetos vivos, os replicantes,

imagens perfeitas do homem, “mais humano que os humanos”. Objetos

técnicos complexos que desencantam irremediavelmente qualquer idéia de

uma unicidade humana e remetem ao que Walter Benjamin já demonstrou: a

reprodutibilidade técnica tende a ocasionar a perda da aura da obra de arte

e diríamos nós, da própria vida, no caso dos replicantes.

As mudanças experimentadas pelas sociedades contemporâneas nos

últimos tempos alteraram as formas como os homens sentem e representam

para si mesmos o mundo onde vivem. Há uma enorme dificuldade de sentir

e representar o mundo contemporâneo, pois a sensação vigente é de

irrealidade, de vazio e de confusão. Estaríamos diante do predomínio de um

princípio esvaziador que atuaria em todas as esferas do mundo e da

sociedade modernos, envolvendo suas instituições e suas formas

simbólicas. Assim, por exemplo, estariam em processo a

desreferencialização do real, a desmaterialização da economia, a

desestetização da arte, a desconstrução da filosofia, a despolitização da

182

sociedade e a dessubstancialização do sujeito. Ou seja, tudo o que existe

estaria marcado pela efemeridade, pela fragmentação, pelo descentramento,

pela indeterminação, pela descontinuidade, pelo ecletismo das diferenças e

pelo caos paradoxal.

O cotidiano constitui o espaço onde encontram – se condensados os

traços definidores da Pós – Modernidade. Atualmente, a nossa cotidianidade

está atravessada pela individualização, pelo consumismo e pelo predomínio

da informação. Por meio da midiatização, que invadiu todas as brechas da

vida do homem – no trabalho, na escola, no lazer, nas ruas, nos transportes

ou em casa –, ocorreu a estetização dos objetos de consumo e a

personalização das mercadorias. Os meios de comunicação passaram a ser

dimensões indispensáveis para existência de todas as coisas do mundo,

desmaterializando a realidade social.

Para Lyotard, no livro A Condição Pós – Moderna (2002) ciência e

sociedade se constituem, em nossa contemporaneidade, em uma complexa

rede de jogos de linguagem, com seus próprios conteúdos e regras de

legitimação, sem possibilidade de entendimento. A interpretação homogênea

dos acontecimentos, que, no início da era moderna, era dada através

das narrativas científicas ou filosóficas legitimadoras do saber, perdeu

sua validade.

A conquista de novos conhecimentos no interior dos "jogos de

linguagem" – narrativos – legitimadores torna – se restrita aos que podem

mais, aos que dispõem de melhores condições financeiras, pois o saber está

diretamente subordinado ao lucro. Na ótica de Lyotard, o conhecimento,

hoje, está sempre se codificando e recodificando das mais diferentes

183

maneiras, em função da transformação das condições técnicas e sociais da

comunicação.

Dentro deste contexto, Lyotard considera que a sociedade pós –

moderna se configura como uma nebulosa de “jogos de linguagem” que

tecem os vínculos em sociedade. Os sujeitos sociais dissolvem – se pela

atomização do social em redes flexíveis de jogos de linguagem

heteromórficos, que se disseminam e que não podem ser disciplinados por

regras gerais. A realização diferenciada e heterogênea de jogos de

linguagem cria instituições sociais “em pedaços”, de onde emanam regras

de enunciação que definem o que pode ser dito e como pode ser dito.

Porém, esses poderes institucionais, dispersos em nuvens de elementos

narrativos, não estabelecem limites absolutos, pois essas regras de

enunciação são mutáveis e flexíveis. A sociedade, assim, teria se

transformado num conjunto descentrado e pluralista de redes de enunciados

de diferentes tipos.

Em uma perspectiva distinta, mas complementar a essa Baudrillard,

em A sociedade de consumo (2000), afirma que a comunicação de massa,

que caracteriza a sociedade contemporânea, ao autonomizar a

produção de signos em relação a qualquer referente concreto, transformou a

realidade em simulacro: um mundo artificial que substitui o mundo real. Isso

ocorre através da produção de objetos que tentam ser mais reais do que a

própria realidade, gerando – se uma hiper – realidade. O personagem J.F.

Sebastian é um criador, em Blade Runner, destas hiper – realidades.

Projetista genético, designer dos Nexus 6, que, tal como eles, sofre de

decrepitude acelerada, vive sozinho, rodeado de bonecos e brinquedos

vivos, aos quais Sebastian chama de amigos.

184

Haveria um esvaziamento da realidade material, com a emancipação

dos signos que produzem uma realidade aparente como puro simulacro.

Como exemplo acabado disso, os meios midiáticos atuariam como um jogo

sobre si mesmos, deixando de existir um diálogo entre o emissor e o

receptor, que são as massas inertes, fascinadas com o poder da

comunicação. Assim, as mercadorias perdem sua materialidade e seu valor

de uso e só adquirem sentido por intermédio da mídia, que faz da imagem

um simulacro da mercadoria. A comunicação de massa transferiria a

vivência no real para a vivência no signo. Portanto, a cultura pós – moderna

seria a cultura do simulacro.

Entretanto, para Jameson, no seu livro Teoria de La Post

Modernidade (1998) – em uma instigante abordagem teórica que supera

certos limites da análise frankfurtiana da indústria cultural, mesmo tendo – a

como premissa – o Pós – Modernismo significa a lógica cultural do

capitalismo avançado. A produção cultural foi assimilada pela produção de

mercadorias em geral, na qual a inovação e a experimentação estéticas

passaram a ter uma função estrutural essencial diante da necessidade

frenética de produzir uma infinidade de novos bens com uma aparência cada

vez mais nova.

Com a expansão das tecnologias comunicacionais, a produção e a

circulação de informações passaram a ser uma das mercadorias mais

importantes no capitalismo contemporâneo. Assim, os conflitos e as

contradições, antes relacionados principalmente à produção material,

espalham – se e invadem também a produção cultural. E tudo isso se faz

acompanhar de uma profunda mudança nos hábitos e atitudes de consumo

e nas relações intersubjetivas que ocorrem no mundo cotidiano. O Pós –

Modernismo inaugura uma nova superficialidade, onde o mundo objetivo é

185

convertido em um conjunto de textos e simulacros, e as coisas são

reduzidas à imagem de suas superfícies externas.

A produção cultural foi assimilada pela produção de mercadorias em

geral, onde a inovação e a experimentação estéticas passaram a ter uma

função estrutural diante da necessidade frenética de produzir uma infinidade

de novos produtos aparentemente inovadores. Os meios midiáticos criam

consumidores que devem estar permanentemente insatisfeitos, intranqüilos,

ansiosos e entediados, para que o consumismo se afirme como verdadeiro

modo de vida nas sociedades capitalistas.

Na visão do senso comum, em geral, confundem – se o narcisismo

com o hedonismo, o auto – interesse, o egoísmo e a indiferença social. No

entanto, o narcisismo, muito mais do que individualismo anti – social,

significa uma individualidade plasmada em uma cultura na qual não mais se

distinguem a realidade e o reflexo da realidade, e não mais se consegue

diferenciar a fantasia da realidade. Não há distinção entre o eu e o mundo

dos objetos. As fronteiras entre o indivíduo e o mundo exterior circundante

foram apagadas. A personalidade narcisista atravessa uma profunda crise

de identidade, pois o eu narcisista não tem segurança sobre seus próprios

limites. O narcisismo produz a disposição de ver o mundo como um espelho

ou como uma projeção dos próprios medos e desejos do indivíduo. Neste

contexto, a estética de Blade Runner põe em questão a problemática da

estética das superfícies, das aparências e da realidade, das identidades

falsas e verdadeiras. A construção do corpo perfeito, a juventude, embora

por um curto espaço de vida, o aspecto físico de Roy alto, louro e forte é

uma referência direta ao super – homem imaginado por Nietzsche, ou os

replicantes que são fabricados de acordo com um modelo – Pris modelo de

prazer, Zhora modelo de combate e de prazer, Leon modelo de trabalho.

É assim que surge um conjunto de novos descontentamentos. O

consumo de mercadorias promete suplantar o tédio, o cansaço, a futilidade e

o vazio, vividos cotidianamente pelas pessoas, jogando sedutoramente com

o mal – estar peculiar à vida pós – moderna. A mercadoria passa a conferir

prestígio social a quem a consome, configurando – se uma sociedade

dominada fundamentalmente pelas aparências, na qual os múltiplos e

complexos sentidos do ser humano estão subordinados ao exclusivo sentido

do ter.

Fig.51 O design das coisas

A sociedade em que vivemos está enredada numa trama cultural

marcada por um amálgama de elementos aparentemente díspares, onde o

indivíduo cada vez mais sente dificuldades de se firmar em algo que seja

minimamente estável e que lhe assegure alguma sensação de tranqüilidade

e bem – estar íntimos. Estamos imersos em um tempo em que os valores

dominantes estão polarizados em torno do consumismo, do individualismo e

do hedonismo. Ao mesmo tempo em que tenta e vai conseguindo

sobreviver, o homem está envolto por um estado permanente de

insatisfação, ansiedade, intranqüilidade, apatia e uma enorme sensação de

vazio interior na vivência do seu cotidiano.

186

Fig. 52

Tom Cruise e Angelina Jolie

A cultura de massas parece dissolver o mundo das coisas materiais e

substituí – lo por um mundo vago e fluido de imagens, abalando

profundamente o nosso senso de realidade. Assim, a realidade parece

coincidir cada vez mais com as imagens que dela se produzem e veiculam.

Ou seja, a realidade sofre um processo de “desmaterialização”, sendo

substituída por imagens e por um mundo especular. A realidade foi

completamente tomada e saturada por todo o tipo de imagens que permeiam

o conjunto das relações sociais e são uma mediação necessária da

sociabilidade humana no mundo contemporâneo. A realidade foi subsumida

à imagem, que passou à condição de elemento fundante de todo o real. A

vida societária aparece, portanto, como mundo hipostasiado de pura

especularidade e espectralidade. Enfim, como nos sugere Harvey em A

Condição Pós-moderna (2004), a cultura pós – moderna constitui o mundo

como o “espelho dos espelhos”.

Na esfera estética teve início o uso do termo “pós – moderno” para

cuidar do movimento de crítica e negação do Modernismo que acontecia na

arquitetura e na literatura, a partir do final dos anos 50 e do início da década

de 60. As tecnologias, como a televisão, o vídeo e o computador, eram

vistas com grande entusiasmo como novas possibilidades de produção

artística. Provocando o fim das fronteiras entre a arte popular e de massas e

187

188

a arte erudita, estas expressões artísticas foram reconhecidas pela

superficialidade e pelo recurso ao ecletismo e à colagem de estilos e de

linguagens, no seu esforço de estetização do cotidiano.

Por outro lado, o predomínio e a universalização da comunicação de

massa são acompanhados pela produção de signos e de imagens que se

autonomizaram de qualquer referente concreto, substituindo o mundo real

pelo mundo artificial do simulacro. Um signo pode ser um objeto material,

figura ou som que toma o lugar de uma coisa ausente ou impossível de se

perceber, que traz em si uma realidade oculta (LALANDE: 1999,1012). Aqui

os signos são, ao mesmo tempo, auto – referentes e mais reais do que a

própria realidade, que se tornou uma hiper – realidade. Dessa forma, a

comunicação de massa desloca a experiência do real para a vivência no e

do signo. A realidade social se desmaterializou, tornando – se o domínio do

signo auto – referente e o cotidiano se transformou na vivência imediata do

simulacro e da hiper – realidade, com a centralidade da informação na

sociedade de massas.

Estaríamos, assim, assistindo à emergência da Pós – Modernidade,

que imprimiria a marca da fragmentação, do simulacro, da efemeridade, da

indeterminação, da descontinuidade, da alteridade e do ecletismo paradoxal

a tudo e a todos.

Em sua origem, Pós – Modernismo significa a perda da historicidade e

o fim da "grande narrativa" - o que no campo estético significou o fim de uma

tradição de mudança e ruptura. A concepção do sujeito pós – moderno

aponta para a fragmentação do indivíduo. Ele não tem apenas uma, mas

várias identidades e, assim, o sujeito pós – moderno não possui identidade

fixa, essencial ou permanente. Diferentemente dos sujeitos modernos, nos

189

quais, a um corpo, a um indivíduo acoplava – se uma identidade que o

acompanharia por toda uma vida, uma vida em relação, em interação com a

sociedade, mantendo, entretanto “o núcleo interior” (HALL, 2005: 11).

Segundo Stuart Hall em Identidade cultural na pós – modernidade

(2005), o conceito de identidade, no período da Pós – Modernidade, está

posto em xeque. O autor questiona os estágios que imprimiram uma versão

particular do ‘sujeito’ – com certas capacidades humanas fixas e um

sentimento estável de sua própria identidade e lugar na ordem das coisas na

Modernidade e como esta versão está sendo ‘descentrada’ na Modernidade

tardia. Neste sentido Hall, cita autores diferentes como Giddens e Harvey,

que abordam as mudanças ocorridas no mundo chamado

convencionalmente de pós – moderno, concordando que a descontinuidade,

a fragmentação, a ruptura e o deslocamento são características do momento

histórico de final do século XX:

“O sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o eu ‘real’,

mas este é formado é modificado num diálogo contínuo com os mundos

culturais ‘exteriores’ e as identidades que esses mundos oferecem” (Idem:

12).

Contemporaneamente, diferentemente dos modernos como

colocado anteriormente, o sujeito pós – moderno tem sua identidade

em constante mutação, ele é instado a ser múltiplo. Sua identidade é

formada e transformada continuamente nas relações que estabelece

com os sistemas culturais, que também sofrem transformações. Surge

um sujeito conceitualizado como não possuidor de uma identidade fixa

permanente.

190

“...A identidade torna-se uma ‘celebração móvel’: formada e

transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos

representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam...”

(Ibidem: 13).

O sujeito então assume diferentes identidades em diferentes

momentos, identidades estas que não são unificadas em torno de um Eu

coerente e :

“....à medida que os sistemas de significação e representação cultural

se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e

cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos

identificar” (Ibidem: 14).

Neste desenrolar, a mídia possui um papel fundamental,

possibilitando a um grande contingente de pessoas o acesso, através

de suas mensagens e imagens, a diferentes culturas, diferentes modos

de ser, mesmo que formatados por um olhar ocidental, que agirá

reflexivamente sobre nós. Então, diferentemente dos modernos, nos

quais a uma identidade acoplava – se um corpo sempre igual a si

mesmo, o sujeito pós – moderno irá (re)produzir – se em diferentes

corpos, projetados para diferentes ocasiões, ou projetados para serem

a expressão de um desejo, de um corpo que se fará presente de

acordo com a imagem esperada e desejada de si.

Ao imaginarmos o corpo e suas implicações com o virtual no que

afeta a ação e a percepção sobre o mundo, bem como a virtualização de sua

superfície, fazendo surgir pele sobre pele, tornando possível à visão de seu

interior, torna – se claro que a tecnociência aplicada ao corpo é um fator de

transformação e atualização. A partir daí definimos o corpo pós – moderno

191

como o do mutante: a tecnociência enseja múltiplas maneiras de

(re)construção e (re)modelação do corpo, maneiras estas que passam pela

dietética, pela moda enquanto prótese corporal, pelo body building, pelo body

modification que inclui desde escarificações, piercings, tatuagens, até cirurgias

plásticas, passando pela intrusão de chips sob a pele que provocarão

movimentos involuntários, não programados; assim como outros processos

que colocarão em questão: intervenções sobre o corpo, o que seja o belo, o

feminino e o masculino, devir em si mesmo um outro, de modo a pôr em

questão o estatuto do corpo e do sexo na sociedade atual35.

Pensando no corpo, devemos levar em conta suas performances,

seus limites e considerá – lo como elemento constitutivo do universo

semiótico, onde as subjetividades são produzidas. Tal qual a identidade que

se faz múltipla, o corpo acompanha esta mutação em identificações que não

se fazem permanentes.

Aberto ao novo e à diferença, o sujeito pós – moderno torna – se frágil

frente à verdadeira avalanche que a atualidade lhe traz. Sem o aval das

antigas certezas – Deus, Ser, Razão, Verdade, Totalidade, Estado, Família,

– ele se torna cambiante e exposto ao lado perverso da tecnociência,

quando esta se alia ao poder político e econômico; presa fácil de artefatos e

serviços que não lhe oferecem nenhum “valor” moral além de um

desbravado delírio hedonista e consumista. Ele acaba por consumir

imagens, identifica – se em sua fragilidade com os modelos que lhe são

ofertados pela mídia.

Este indivíduo sente viver em um mundo que foge à natureza e à

cultura, real e irreal, privado e público. O corpo hoje se (re) inventa, faz parte

do objetivo de consumo; nem mesmo a certeza de um código que nos defina

35 Body building, body - modification - construção e modificação do corpo respectivamente.

192

é mais possível, visto que este é também passível de manipulações. E ao se

inventar, “neste momento de crise, o corpo deixa de funcionar enquanto dado de

identidade fixa e natural, lugar de delimitação e referência estável, para assumir

paradoxalmente, a expressão da identificação pela mutação, simulação e pela

performance” , adquirindo um papel na produção da subjetividade (VILLAÇA,

1999: 24).

Vivemos imersos em uma cultura tecnológica que embaça as antigas

oposições modernas; as fronteiras não são mais seguras, as ondas

eletromagnéticas atravessam o planeta e os corpos. Já não se pode dizer o

que é real ou irreal, o que é corpo e o que é mente, o que é vida e o que é

morte. Ao imbricar – se com os artefatos tecnológicos, o indivíduo colocou

o mundo e a si mesmo em cheque. Quando seus olhos e ouvidos puderam

mover – se a longas distâncias, num tempo simultâneo do aqui e agora, por

meio dos sistemas de comunicação - máquinas sensórias - outras oposições

embaralharam-se: local e global, privado e público, aqui e lá. O sujeito

desacreditado de si aprende a avaliar – se face aos outros e se vê através

dos olhos do outro. Percebe que a imagem que projeta conta mais que a

experiência e as habilidades adquiridas. Nas sociedades pós – industriais,

baseadas no consumo, onde a superfície é a base, chega – se ao estágio da

indiferenciação entre o eu e o seu invólucro. E é neste invólucro, o corpo –

superfície da pele – lugar de liberdade, mas também de submissão, que a

tecnociência, aliada ao poder político e econômico, como já foi apontado

anteriormente, através das tecnologias da informação – desde as

tecnologias da comunicação até a manipulação genética – que virtualizam o

corpo, conduzindo o indivíduo à fragilização e à fragmentação de si próprio.

193

Fig.53

Corpo fragmentado

Esse sujeito fragmentado vê – se diante de avanços científicos que

permitiram com que a genética e a biologia molecular constituíssem uma

grande capacidade tecnológica, que se torna cada vez mais efetiva, como,

por exemplo, modificar substancialmente vírus, bactérias, plantas, animais e

os próprios seres humanos. No mundo contemporâneo, processa – se uma

nova revolução, cujos alcances extrapolam tanto as fronteiras das ciências,

da organização social, da estrutura econômica, quanto o novo modo de

pensar sobre a natureza humana, no caso, por intermédio das dimensões

filosóficas e jurídicas. Estes avanços científicos em Blade Runner ainda

não conseguiu compatibilizar vida intensa e a maior inteligência ao maior

tempo de vida. Ao pedir mais tempo de vida, o replicante Roy ouve de seu

criador Tyrell o seguinte: “Fazer alterações na evolução de um sistema

orgânico é fatal”. Um código genético não pode ser alterado depois de

estabelecido. Roy e Tyrell estão diante de um limite objetivo da engenharia

genética. Tyrell está justificando a impossibilidade de alterar o código

genético de Roy e de seus amigos replicantes. O que não significa a

impossibilidade de alterá – lo para as demais gerações de Nexus 6. O

próprio Tyrell trabalha em um sistema mais avançado e sofisticado de

replicante – Rachel que tem implantes de memória e que pode viver mais de

quatro anos.

Na era da biotecnologia, destaca – se a bioética, que tem fascinado

muitos escritores ao longo deste século, estimulando – os a vislumbrar e

194

sonhar uma maneira nova de construir o mundo humano, cheio de utopias,

tanto no campo da arquitetura, da manipulação de espaços vitais nas

grandes cidades, na conquista do espaço sideral e na própria manipulação

da vida. Temáticas anunciadas como prefigurativas de uma sociedade pós –

moderna, tais como o Admirável Mundo Novo, (2001) de Huxley, ou Blade

Runner (1982) de Ridley Scott, que englobavam as previsões de conquistas

da medicina, da clonagem e do design genético, do mapeamento do genoma

humano, bem como as previsões econômicas e políticas pessimistas para o

século XXI, que já se concretizaram em parte.

O objeto já não é a radical alteridade do sujeito. A eliminação das

distâncias e das mediações traz o objeto para dentro do que era

tradicionalmente a esfera do sujeito, eliminando – os como opostos. O corpo,

lugar dessa união, perde por isso a sua familiar evidência e torna – se, em

contrapartida, lugar de crise. A confusão entre o corpo e o humano é uma

das ramificações da raiz dessa crise.

Um dos traços característicos da Pós – Modernidade surge da

profunda transformação sofrida pelo objeto, enquanto categoria, o que faz

dele um conceito inquietante. O objeto era o mundo do qual nós aprendemos

a nos destacar, era o “radicalmente outro” do sujeito, condição da sua

diferença. O humanismo moderno distinguia o homem como sujeito racional

a partir dessa diferenciação em relação aos objetos do mundo. O sujeito

impunha – se pela sua capacidade de pensar, pela consciência que tinha de

si e do que o rodeava, pelo seu agir no mundo. E o corpo era o lugar dessa

identidade, a fronteira entre o sujeito e o outro.

Tanto Ieda Tucherman no livro Breve história do corpo e de seus

monstros (1999), como Donna Haraway no Manifesto para os cyborgs

(1994) fazem referência às três rupturas que, tendo marcado o final do

século XX, se revelam fundamentais para pensar e compreender a

contemporaneidade: humano – animal, animal – humano – máquina, e físico

– não físico, rupturas estas que emergem da ação da técnica e que atingem

não só a idéia de corpo como totalidade e fronteira como também,

conseqüentemente, a própria idéia de humanidade.

Fig.54 O sujeito metamorfoseado

Transplantes, implantes, próteses, conexões, substituições, rompem a

pele que fechava e delimitava o território do sujeito, transformando o corpo

em um feixe de ligações entre elementos distintos. O antagonismo cede

lugar à simbiose e o corpo emerge como processo, como projeto, forçando –

nos a repensar o nosso estar no mundo e as possibilidades do nosso devir

(in) humano. A penetração da vida e do corpo pela técnica anuncia a

obsolescência do dualismo humano – não humano, fazendo emergir a figura

do pós – humano. Percebemos estas intervenções no universo de David

Cronenberg, em Videodrome (1983) e eXistenZ (1999), o corpo

195

196

Humano tem uma entrada para que este se conecte a uma realidade virtual

que se confunde com a realidade vivida.

O cultivo da pós – humanidade está, por norma, hifenizado à

obsessão pelo aperfeiçoamento da condição humana, que encontra em

ciências como a Genética, a Nanotecnologia, a Microbiologia, a Realidade

Virtual, a Vida Artificial, a Neuropsicologia, a Inteligência Artificial, entre

outras, terrenos férteis em entusiasmo. Um mundo sem carne, sem corpo,

sem limite é, para muitos, o ápice desse aperfeiçoamento. Para David Le

Breton em Adeus ao corpo – antropologia e sociedade (2003) , o

momento que marca definitivamente a ruptura entre o homem e o seu corpo

é o ato de dissecação, por intermédio do qual os anatomistas profanam pela

primeira vez a barreira da pele, iniciando o desmantelamento do cadáver.

Maravilhados pelo mecanismo que descobriram, subjacente ao

funcionamento do corpo, biólogos e cirurgiões rapidamente chegam à

constatação da sua fragilidade, da precariedade que o expõem a lesões tão

definitivas como o envelhecimento ou a morte. Morte ou óbito são termos

que podem se referir ao término da vida de um organismo. Biologicamente, a

morte pode ocorrer para o todo, para parte do todo ou para ambos. Por

exemplo, é possível que células individuais, ou mesmo órgãos morram, e

ainda assim o organismo, como um todo, continue a viver. Também é

possível que o organismo morra, por exemplo, no caso de morte cerebral, e

que suas células e órgãos vivam, e sejam usadas para transplantes. A morte

é uma constatação que dá origem ao desejo de superar essa fragilidade,

criando “peças” eficazes e funcionais com as quais se substituem os

elementos falhos da máquina corporal.

197

São os anatomistas que, ainda antes de Descartes e da filosofia

mecanicista, fundam o dualismo que estará no centro da Modernidade e que

distingue o sujeito do seu corpo físico, tornado objeto e destituído de valor

próprio. Mas esta é apenas mais uma das muitas contribuições que, ao

longo da história, têm colaborado para fabricar uma noção de corpo que,

conseqüentemente, se revela cada vez mais abstrata, ambígua e pouco

evidente.

A Modernidade e a progressiva secularização da sociedade originam

uma nova compreensão do corpo, para a qual são determinantes as

descobertas da medicina, a qual, através da observação e da dissecação,

revela o seu funcionamento mecânico, substituindo a alma pelo fluxo

sanguíneo e pelas reações nervosas como fonte de “animização” do corpo.

O sujeito pós – moderno, dotado de consciência e corpo próprios,

ascende à categoria de indivíduo, tendo nesse corpo próprio o limite da sua

individualidade, a marca de identidade do seu ser e estar no mundo. As

imagens sombrias e melancólicas de Blade Runner, que descrevem o

caminho do caçador de replicantes Rick Deckard rumo a uma nova visão da

vida, em um corpo orgânico ou sintético, acaba por confirmar que os

artefatos técnicos - os replicantes - constituem meras extensões, projeções e

amplificações das capacidades próprias ao corpo humano.

É a rudeza da carne, a sua contingência e perecibilidade, que

emergem no corpo em falha, convocando todos os esforços para expulsá –

las da visão e restaurar a imagem do corpo, que o pensamento pós –

moderno associa não à ordem da natureza, mas sim à ordem da razão e da

cultura. A Pós – Modernidade assume a carne como material de trabalho e

suporte dos avanços da técnica. Penetrada, modificada, desintegrada, a

198

carne é o palco das fusões que anunciam não o fim, mas as possibilidades

do humano no futuro evolutivo da espécie. É deste universo de possíveis

que surge a mais atual imagem do corpo: um corpo ao qual Kerckhove, em

A pele da cultura uma investigação sobre a nova realidade eletrônica

(1997) chama biotécnico e que exibe as suas ligações. Os replicantes não

se livraram do corpo e da carne humana. Seus corpos, embora construídos

em laboratório, têm nas veias sangue e na sua composição músculos, que

lhes dão a estrutura necessária para se locomover. Construídos de pedaços,

o criador Tyrell se converte no Dr. Frankenstein pós – moderno e os

replicantes em suas criaturas, que espalham o terror não por suas

aparências, mas pela violência com que querem resolver seus problemas.

Nos corpos ‘dentro’ e ‘fora’ se desvanecem, cedendo lugar a uma

nova premissa: ‘através’ do corpo, espelho da atual dificuldade em

estabelecer uma fronteira precisa. A relação homem – máquina que emerge

do progresso tecnológico começa, logo no século XIX, a deixar as suas

marcas no imaginário sócio – cultural da época, traduzindo – se na criação

de toda a espécie de híbridos, que simbolizam já esse misto de fascínio e

terror suscitado pelas possibilidades da técnica.

A história do Golem do período talmúdico constitui, segundo Philippe

Breton em À imagem do homem – do Golem às criaturas virtuais (1995),

uma das origens das narrativas que encenam a criação de um ser artificial

moldado à imagem do ser humano. O Golem, o ser feito de barro que

atravessa a tradição hebraica – vai inspirar e influenciar as criaturas que a

literatura do século XIX produziu tão generosamente, sendo Olímpia, a

heroína mecânica de O Homem de Areia, de Ernst Hoffman (1816), e o

monstro de Frankenstein, de Mary Shelley (1818) talvez seus exemplos

mais significativos. Dentro deste contexto histórico concluímos que a fusão

199

entre a ciência e a tecnologia se dá no campo artístico por meio do cinema.

O cinema, que interagindo com estes grupos sociais, cria o espaço que

denominamos de cibercinema. Lugar no qual se dá o entrelaçamento social,

científico e artístico do pensamento, lugar por excelência do casamento

entre ciência e arte.

Técnica e ficção se complementam no desejo de superar o poder

criativo e criador da natureza, mas as suas produções revelam – se

monstruosas e nefastas, lugar de violência e maldade, fonte de atração e

repulsa. Embora a história seja pródiga na confecção de criaturas artificiais,

é sem dúvida o século XX que mais proficuamente contribuiu para esta

galeria de horrores, sobretudo através das criações cinematográficas, que

emprestam animação ao nosso imaginário ficcional. robots, replicantes,

mutantes, andróides, cyborgs, são a nova face do avanço tecnológico que,

no fim do segundo milênio, associa mais do que nunca o terreno ficcional

e o imaginário social às conquistas da ciência, cada vez mais pródiga nas

suas próprias criações artificiais, tornando progressivamente mais difusas as

fronteiras da ligação homem – máquina e da própria idéia do que é ficção e

do que é realidade, à medida que a tecnologia se inscreve mais e mais

fundo no corpo humano, levando – o ao limite.

A hibridação que se impõe como imagem de marca da

contemporaneidade é justamente responsável por tornar muito menos nítido

e operacional todas as oposições radicais – eu – outro, corpo – mente,

criador – criatura, verdade – ilusão, real – irreal, orgânico – inorgânico –, que

marcaram a história do pensamento. Mas, claro, este desvanecimento de

antigos e confortáveis dualismos não poderia ser isento de conseqüências

nem deixar incólume a nossa condição humana, ou melhor, a idéia que

temos dessa condição.

Será o cyborg, de fato, a nova ontologia, o nosso devir, o corpo da

nossa pós – humanidade? O termo cyborg (cybernetic organism) surge nos anos

60 quando, no contexto da conquista espacial, é pensada a criação de um

homem capaz de resistir a condições distintas das oferecidas pela Terra.

Fig.55 O ser humano conectado

Este organismo

cibernético seria um híbrido homem – máquina, um corpo reforçado com as

mais diversas próteses, onde orgânico e inorgânico, carne e metal se

encontram e mesclam, produzindo uma figura – limite que não é nem ‘eu’

nem ‘outro’. O interesse que nos suscita o cyborg reside não no que o

distancia, mas naquilo que o aproxima de nós. Independentemente da sua

configuração, este organismo cibernético é uma desfiguração do

‘mesmo’, algo com o qual não nos confundimos, mas do qual também não

conseguimos diferenciar – nos totalmente. É interessante ressaltar que a

diferença entre os robôs, replicantes e cyborgs está justamente na sua

estrutura. O robô é formado de matéria inorgânica, os replicantes de matéria

orgânica manipulada e os cyborgs por matéria orgânica e inorgânica. O filme

Blade Runner explora a possibilidade de simbioses entre o corpo humano e

máquinas. Corpos artificiais, que transitam na cidade neogótica de Ridley

200

Scott, onde está em jogo a forma terminal de uma dialética da servidão

dissimulada sob as vestes da liberdade.

Até que grau de deformação ou estranheza permaneceremos

humanos? Eis a questão que o cyborg e os replicantes nos coloca. E, de fato,

até que ponto resistirá a imagem humana, tal como a conhecemos? A

quantas outras intervenções resistirá mais?

201

Fig. 56

O estranho humano

A importância desta questão prende – se à concepção do corpo como

lugar do humano e da identidade. Ao criar o monstro Frankenstein, Mary

Shelley anuncia a crise de referências aberta pela intervenção da técnica no

corpo:

“O corpo do monstro (...) construído como uma colcha de retalhos de pedaços de

outros corpos, sem memória e sem nome, criava uma vida de identidade impossível. A

sua existência, absurda e anônima, negava-lhe a possibilidade de auto-referência, nenhum

signo (nome) o tornava idêntico a si mesmo” (SHELLEY, 1808).

O apagamento das fronteiras culturalmente estabelecidas que o

híbrido simboliza interpõe – se como obstáculo à realização do processo

identitário no seio dessa mesma cultura; e, ao perder a identidade, a

subjetividade pode correr o risco de se transformar num signo vazio. Mas

também pode acontecer que desta hibridização nasça um novo tipo de

202

subjetividade, ou seja, que a simbiose origine a semiose, gerando um outro,

um novo sentido para o nosso corpo futuro.

A questão de um ‘corpo futuro’ e todas as possibilidades por ela

abertas surgem particularmente hifenizadas à idéia de que o nosso ‘corpo

presente’ possa estar obsoleto. No entanto, essa obsolescência não tem de

se traduzir impreterivelmente em uma atitude de repulsa em relação ao

corpo, significando antes a necessidade de redesenhá – lo e reconstruí - lo.

No esteio deste pensamento, que vê na realidade física a grande crise

do nosso tempo, a utopia da imortalidade, da durabilidade, solicita um corpo

perfeito, revisto e corrigido, desembocando, nas correntes mais extremas, no

desejo da ausência do corpo. De fato, como refere Le Breton, são já muitas

as vozes que sugerem que a espécie humana corporal já não está à altura

de acompanhar o ambiente técnico e informativo que criou, esmagada pela

velocidade, precisão e poder da tecnologia e pela quantidade e

complexidade da informação acumulada. Dissociar o corpo da carne e

imaterializar a espécie é, portanto, a meta destes “novos gnósticos”, que

vêem na derradeira fusão com a máquina o devir lógico da bioevolução.

A desintegração da realidade corporal, o fim do humano concreto,

conecta – se diretamente à idéia de um corpo e, conseqüentemente, de um

sujeito em crise, uma vez que esse corpo era a principal referência a partir

da qual os sujeitos constroem a sua identidade.

A idéia de necessidade que preside historicamente à inovação técnica

se desvanece na medida em que essa mesma técnica evolui para uma logo

– técnica, para uma técnica racionalizada, tornada discurso, desembocando

em uma crescente tendência para a imaterialização. O distanciamento entre

máquina e utensílio/ferramenta já havia sido analisado por Heidegger, a

propósito da passagem do trabalho feito pelo homem ao trabalho efetuado

203

pela máquina, algo que, para ele, significava a passagem da realidade para

a possibilidade.

De acordo com Heidegger, a principal característica da máquina é a

sua capacidade de fabricar não só o real como o possível – um possível

formal que, como tal, ao abrir espaço para a concepção de todas as formas

possíveis, desemboca hoje numa total abstração, levada ao clímax na idéia

de espaço virtual ou ciberespaço. Mergulhar em ambientes tridimensionais,

imergir na paisagem digital, já não são experiências exclusivas do patrimônio

imaginário do sujeito pós – moderno. A liberdade de viajar sem peso nem

contrariedade para qualquer ponto do planeta vai imbuir o sujeito

contemporâneo em uma universalidade que não deixará de defini – lo como

pessoa. No entanto, há na relação do sujeito com a idéia de realidade virtual

algo de inevitavelmente alucinatório, pela absoluta libertação de si que essa

relação implica – libertação é sempre desdobramento, libertação que é

também, ou, sobretudo, diluição e ausência ao mesmo tempo em que é

hiper – presença. Na condição fragmentária e acidentada do self enquanto

corpo incessantemente possuído e despossuído, conectado e desconectado

pelos dispositivos da sociedade globalizada, adivinha – se a sensação de

um sujeito em vertigem, fragmentado até ao infinito nesse espaço que lhe

permite ser quantos de si desejar, sob o anonimato de máscaras textuais e

imagéticas. Os replicantes de Blade Runner são fabricados aos pedaços,

confeccionado por fabricantes terceirizados que fazem às vezes dos

cemitérios por onde andava o Dr. Frankenstein a cata dos pedaços de

corpos para fabricar sua criatura artificial.

Jean – François Lyotard é um dos teóricos que sustenta que a

evolução da técnica desembocará inevitavelmente na emergência de

configurações desincorporadas, dotadas da natureza leve da linguagem. De

204

fato, um dos truísmos da teoria contemporânea é o de que o discurso

escreve o corpo, cuja materialidade sucumbe, em nível de importância, às

estruturas lógicas e semióticas que ele encerra, ou seja, à sua dimensão

lingüística e discursiva. Por outro lado, a atual obsessão pela tradução do

ser humano em um código genético e o sucesso das pesquisas que têm feito

do gene o verdadeiro “ícone cultural” dos nossos tempos, transforma em

possibilidade a fantasia do corpo – discurso ou do corpo – informação. É sob

a égide da informação que se dá a mais íntima aproximação entre

organismo e mecanismo. Já não se trata de fusão ou invasão. A informação

nivela a existência, considerando todas as formas de vida como sendo uma

soma organizada de mensagens e dissolvendo – as nos seus componentes

mais elementares, de modo a reduzir a complexidade do mundo a um

modelo único que, ao permitir uniformizar realidades de início absolutamente

diferentes, colocando – as em um mesmo plano, torna – as comparáveis.

Este esvaziar da vida e do inerte da sua substância, valor e sentido, de

modo a torná – los traduzíveis em um mesmo código, vão gerar formas

abstratas que se podem constituir e desconstituir, codificar e decodificar,

indo perfeitamente ao encontro da idéia da dissolução do corpo num fluxo ou

feixe de informações promovido pela tecnologia.

Segundo David Le Breton, este fascínio pela Genética surge da

esperança de que a transparência do gene possa significar a transparência

do sujeito. Se assim fosse, o genoma seria o graal que finalmente nos

revelaria o significado de se ser humano. No entanto, para Le Breton, “o

corpo humano não tem a transparência dos bits”, o que, em sua opinião,

invalida a freqüente associação da identidade última do ser humano a um

problema de DNA ou código genético.

205

Neste sentido, a inserção em um computador de um código que fosse

o nosso equivalente numérico poderia não vir a se traduzir na nossa integral

e fiel reconstituição imaterial no interior da máquina. A questão é: seríamos,

de fato, nós mesmos? Conseguiríamos nos reconhecer? Haveria ainda algo

para reconhecer? A verdade é que não sabemos se a nossa evolução pós –

biológica, a concretizar – se, vai ou não residir na fusão do homem com a

máquina. Apesar do interesse ou da curiosidade suscitados pelas teorias

mais extremistas, a maioria das teses, entre as quais as de Donna Haraway,

apontam não para o desaparecimento de uma das partes, mas para a

redefinição de ambas. A tendência é para a confluência entre organismo e

mecanismo, observável no fato de nos assemelharmos cada vez mais às

máquinas, tal como elas se assemelham cada vez mais a nós. Apesar de

continuarmos a insistir em que somos diferentes, baseando essa diferença

no fato de termos emoções, um corpo e um intelecto; na realidade, é

atualmente quase impossível pensar o ser humano sem relação com a

máquina. Por outro lado, embora insistamos em nos diferenciarmos, não

resistimos ao fascínio de perseguir e tentar concretizar o sonho da máquina

inteligente, ou seja, de vencer na máquina aquilo que ainda a diferencia de

nós.

206

3. O Sujeito Maquínico

As teorias da Pós – Modernidade, o contexto da sociedade

contemporânea, a aceleração e a propagação das tecnologias de

comunicação têm gerado diversos fenômenos sociais e estéticos. Como

descreveu Baudrillard em A sociedade de consumo (2000), estamos

rodeados de objetos por todos os lados e esses objetos adquiriram uma

“vida” através da tão proclamada reificação, ou seja, da sua elevação ao

status de quase mágicos, imprescindíveis, como se jamais pudéssemos ter

vivido sem tais objetos, ou melhor, como se toda a humanidade jamais

pudesse ter existido sem eles.

A idéia de uma alquimia, apresentada em Blade Runner, entre

corpos e máquinas, que hoje começa a ser sugerida a propósito das sempre

crescentes capacidades de manipulação das tecnociências biomédicas,

nada tem de metáfora casual ou fortuita. Com efeito, não só a tradição

alquímica privilegiou a manipulação dos corpos com as escassas

possibilidades que então lhe conferia a técnica pré – moderna, como foi a

memória viva dessa ambição transformadora que moldou o imaginário do

homem científico que conduziu boa parte das explorações da biotecnologia

contemporânea.

Autores mais recentes, como Philippe Breton, esmiuçaram ainda mais

os modos pelos quais os estudos científicos das biotecnologias aplicadas ao

humano, sobretudo nos domínios da genética e da vida artificial, têm

contribuído para materializar a idéia de se construir seres vivos.

A sociedade pós – moderna exibe, entre muitos outros, um paradoxo

que pode parecer desconcertante. Por um lado, percebe – se um evidente

enaltecimento do corpo humano. Último grande refúgio da subjetividade, o

207

corpo é obstinadamente submetido a toda uma série de estratégias de design

epidérmico que apontam para o cultivo das “boas aparências”, em uma era

na qual a visibilidade e o reconhecimento no olhar alheio são fundamentais

na definição do que cada um é. É interessante observar que o instrumento

capaz de identificar os replicantes Nexus 6 é um aparelho de leitura da íris

dos olhos – o Voight Kampff. Por meio do olhar, em Blade Runner

encontramos ou não respostas emocionais; a imagem dos olhos é

expressão da “janela da alma”, da subjetividade do olhar avassalado do

homem diante do sistema do capital.

Segundo Habermas em O futuro da natureza humana (2004), o

progresso das ciências biológicas e o desenvolvimento das biotecnologias

ampliam de modo urgente não apenas as possibilidades de ação já

conhecidas, mas possibilitam um novo de tipo de intervenção no sujeito.

Esses avanços aliados à informática, às telecomunicações e às

biotecnologias são fundamentais para a tecnociência contemporânea. Tais

saberes contribuem fortemente para a produção dos corpos e das

subjetividades deste início de século, apresentando todo um leque de

promessas, temores e sonhos. Dentre eles, surge uma possibilidade

inusitada: o corpo humano, na sua antiga configuração biológica, estaria

tornando – se “obsoleto”.

Nesse sentido, os cientistas definem seu trabalho como uma tentativa

de redefinir o humano redesenhando o corpo, idéia concretizada em si

mesma, no decorrer dos últimos vinte anos, adicionando os mais diversos

mecanismos eletrônicos e magnéticos ao corpo humano, no intuito de

expandi – lo e superar as suas limitações, tanto físicas como psicológicas. O

replicante quer mais vida, porque o seu tempo traz limite datado e próximo;

208

exige isto do criador, ou melhor, da ciência - mas a ciência não resolve o

problema que ela mesma gerou. O criador, por sua vez, é o cientista que

formulou o código genético completo dos replicantes; comove – se com o

desejo do ser que foi além de toda programação porque quis mais, porque

sentiu falta. Descarta a discussão técnica por ser acadêmica, quando se

defronta com o tamanho da vontade do outro. Vontade que se transforma no

desespero trágico e demasiado humano.

O que tempos atrás era denominado de natureza orgânica e podia ser

“criado no cultivo”, move – se atualmente no campo da intervenção orientada

para um objeto específico. A atualização cientifico – tecnológica da velha

estrutura orgânica já não segue, então, as velhas ordens da evolução

biológica. Com ela, pelo contrário, estaríamos inaugurando uma nova era: a

da “evolução pós – humana” ou “pós – evolução”, que supera amplamente,

em velocidade e eficiência, os lentos ritmos da evolução natural.

Seguindo as reflexões do sociólogo português Hermínio Martins,

podemos ver estes fenômenos sob o viés de certa tradição fáustica do

pensamento ocidental sobre a tecnociência. Em oposição à tradição

prometéica, que pensa a tecnologia como a possibilidade de estender

e potencializar gradativamente as capacidades do corpo humano, a corrente

fáustica enxerga na tecnociência a possibilidade de transcender a própria

condição humana. Valendo – se da nova alquimia tecnocientífica, o “sujeito

pós – biológico” estaria em condições de superar as limitações impostas

pela sua organicidade, incluindo as doenças, o envelhecimento e até a

morte. A visão do replicante Roy após matar seu criador, remete às figuras

míticas de Prometeu e de Fausto. Ao descer o elevador, Roy traz nos olhos

o brilho do olhar de Lúcifer, do Fausto atormentado pelos seus desejos de

progresso e ao mesmo tempo, lembra Prometeu que tenta roubar uma

209

fagulha de sabedoria do seu criador e não consegue, mas lhe rouba algo

mais precioso: a vida.

Em Blade Runner percebemos a aguda contradição entre o

desenvolvimento das forças produtivas do homem, capaz de criar vida

inteligente e complexa, e as relações sociais capitalistas, imersas na lógica

do controle do tempo e do tempo restringido em função da utilidade do

capital. Mas é importante destacar o seguinte: a incapacidade da ciência e

da técnica da Tyrell Corporation em estender a vida dos replicantes não é

apenas um dado objetivo, mas é algo socialmente determinada pelo sistema

do capital.

Para os sujeitos produtores dessas intervenções, surge uma nova

auto – referência, que alcança o nível mais profundo do substrato orgânico.

Neste caso a possibilidade real e nova de intervenção está ligada à questão

de manipulação do genoma humano. Essa potencialidade “demiúrgica”

dos homens contemporâneos parece estar marcando a ruptura entre

“humanidade” e “pós – humanidade”: agora o homem tem condições de se

auto – criar, de produzir seu próprio corpo. Outro corte radical decorre da

dissolução das velhas fronteiras entre o organismo natural – o próprio corpo

– e o arsenal de artifícios que a tecnociência coloca nas mãos do novo

demiurgo humano para que ele administre a sua “pós – evolução”.

Segundo Francis Fukuyama em Nosso futuro pós-humano (2003), a

biotecnologia fornecerá os instrumentos que nos permitirão realizar o que os

especialistas em engenharia social não conseguiram. Neste estágio,

teremos encerrado definitivamente a história humana, porque teremos

abolido os seres humanos enquanto tais. Então começará uma nova história,

para além do humano. Segundo o autor o espectro da eugenia – isto é da

reprodução deliberada de pessoas com certos traços hereditários escolhidos

210

– tem pairado por sobre o campo da genética contemporânea, introduzindo

dessa forma uma nova eugenia, mas que não levará a uma eugenia mais

delicada esvaziando a parte de horror a que está tradicionalmente

associada. Segundo Habermas, até os dias de hoje, o pensamento

embasado na Modernidade, tanto quanto a crença religiosa, parte do

princípio de que a constituição orgânica do homem recém – nascido é o

início de sua futura história de vida, que escapa à programação e

manipulação de qualquer ordem feita por terceiros.

Para David Le Breton, o indivíduo na sociedade contemporânea

pensa o corpo como um material, como simples suporte e veículo do sujeito,

que o faz andar e pensar; desse modo o sujeito pós – moderno parece se

afastar cada vez mais do seu próprio corpo e concebê-lo como uma matéria

imperfeita, corrigível e, finalmente dispensável, revelando a

contemporaneidade do dualismo cartesiano.

O pensamento de Le Breton demonstra como esse grande desprezo,

essa vontade de corrigir e eliminar o corpo estão principalmente veiculados

pelas tecno – ciências – medicina, genética, robótica, informática – que

pretendem liberar o homem do seu corpo, mudar a condição humana,

declarando o fim do corpo e das suas imperfeições e anunciando uma

profunda mutação epistemológica: pensar um homem sem corpo.

“Hoje, o corpo é escaneado, purificado, gerado, remanejado,

renaturalizado, artificializado, recodificado geneticamente, decomposto e

reconstruído ou eliminado, estigmatizado em nome do grande 'espírito' ou do

gene 'ruim'. A sua fragmentação é conseqüência da do sujeito. O corpo

aparece hoje como o maior desafio político, ele é o analisador fundamental

das nossas sociedades contemporâneas" (BRETON: 2003, 21).

211

Para o autor acima mencionado as representações pós – modernas

do corpo e as novas técnicas corporais ocidentais, e o espaço que separa o

homem do seu corpo se estenderam. Para ele, já entramos no tempo "pós –

biológico" da história humana, período no qual a humanidade busca superar

as fragilidades e as imperfeições ligadas a sua condição "corporal". As

inovações tecnológicas, com seus discursos, suas experiências e suas

descobertas, sonham com um corpo biônico, tão perfeito e controlável

quanto um computador, e nos convidam a conceber a carne do corpo como

um puro feitiço, do qual seria melhor se livrar logo.

A ficção científica sempre esteve muito interessada nas

conseqüências que as tecnologias poderiam ter sobre o corpo; do cinema à

literatura, muitos foram os romancistas que entenderam que, no "futuro", o

homem iria querer mudar sua condição corporal e que a noção de corpo se

constitui como uma grande musa da imaginação futurista. Na ficção

científica de Blade Runner (1982), assim como em Matrix (1999), o uso do

corpo humano como um material biológico disponível coloca sempre em

cena personagens cuja evidência "humana" é rompida e cujo estatuto

antropológico suscita o medo. Em Matrix, a carne é considerada como uma

doença, a condição corporal vista como epidemia e os corpos humanos são

fabricados e controlados industrialmente pelos próprios robôs, que

inverteram os papéis e demonstraram a superioridade dos materiais

eletrônicos sobre as matérias vivas, da eternidade sobre a morte. Este poder

de "dar a vida" que têm os robôs no filme parece muito com os poderes que

querem adquirir os geneticistas e os engenheiros da Inteligência Artificial do

final do século XX.

212

Le Breton coloca em evidência a velocidade das transformações nas

representações e nos usos sociais e medicinais do corpo humano.

Tradicionalmente inspirada pelas últimas descobertas científicas e as suas

possíveis perspectivas futuras, a ficção científica de hoje está sendo,

paradoxalmente, cada vez mais "realista". A aceleração das descobertas nas

biociências e os avanços tecnológicos produzem um "efeito de real" que

ultrapassa muitas vezes o próprio desafio "futurístico" da ficção científica:

descrever um futuro radicalmente diferente do presente, uma ficção do

tempo no mundo. Nesse marco, a sociedade atual assiste ao surgimento

das mais variadas “visões ficcionais”, aspirantes a “um saber total quase

divino”, capaz de controlar a vida superando todas suas limitações

tipicamente orgânicas. Inclusive a mais fatal de todas elas: a mortalidade.

Na segunda metade do século XX, dois acontecimentos

tecnocientíficos permitiram desconstruir as fronteiras e os conceitos que

sustentavam a experiência moderna e, conseqüentemente, seus modos de

subjetivação: o desenvolvimento das tecnologias comunicacionais e das

tecnologias biocientíficas.

Como mencionamos no primeiro capítulo desta dissertação, estas

tecnologias tornam contígua a linha entre animais, homens e máquinas, ao

mesmo tempo em que reconfiguram as noções de tempo, espaço, modos de

interação e limites da experiência, rompendo com os modos como

pensávamos a subjetividade e suas condições de produção. Este novo

cenário embaralha os conceitos de natureza, cultura, ciência e técnica,

forçando – nos a nos deslocarmos e repensarmos o sujeito em suas novas

conexões com o mundo.

213

A natureza humana racional e singular é desafiada de modo

inquietante pela sociedade tecnologicamente avançada. As máquinas das

últimas gerações tornaram ambíguas as diferenças entre natural e artificial,

corpo e mente, orgânico e metálico. Os animais têm sido humanizados pela

ciência que descobre seus sentimentos e expressões, e as idiossincrasias

de grupos culturalmente estruturados. Os humanos, ao contrário, têm sido

“desumanizados”. Cientistas, pensadores e artistas plásticos defendem a

total ruptura de fronteiras entre corpos biológicos e mecânicos, engendrando

hibridismos e metamorfoses que já permeiam nosso presente e parecem ser

a tônica do futuro, representando o paradigma da Modernidade e Pós –

Modernidade.

No lugar do corpo próprio, surge o que Pierre Lévy chama de hiper –

corpo. A virtualização do corpo incita todo tipo de troca. Os transplantes

favorecem o intercâmbio entre seres humanos vivos ou mortos. Os

implantes e as próteses imbricam os limites entre o vivo e o mineral. O

sangue foi desterritorializado e percorre uma rede internacional de corpos. O

corpo coletivo modifica a carne primária. “Cada corpo individual torna – se parte

integrante de um imenso hiper – corpo híbrido e mundializado” (LÉVY, 1996: 31).

Desse modo os sujeitos e suas identidades atuais são fluidas,

desterritorializadas, híbridas; referem – se apenas a diferenças relativas e

não à diferença absoluta, em si mesma. Os processos de subjetividade

permitem pensar a diferença absoluta. Nesta perspectiva, o homem pode ser

entendido como um ser de possibilidades infinitas, como aquele que tudo

pode e nada é. A subjetividade não se fixa a significados e identidades.

Permite que os corpos produzam sentidos e estejam em permanente

214

processo de produção a partir das experiências que realizam e não por

significados definidos por identidades.

Unindo estas experiências fragmentadas de identidade e de

subjetividade surge no contexto maquínico a tecnologia, pois não estando

presente fisicamente em nenhum lugar, e podendo estar em todos ao

mesmo tempo, o virtual, para alguns, carrega consigo a sombra do

monstruoso.

Do campo do humano surgem as dúvidas mais inquietantes. Diante

da humanização de animais e máquinas, aos quais são imputados

comportamentos inteligentes e reações emocionais, diante da abstração do

corpo na realidade virtual e da produção de corpos híbridos e metamórficos,

até onde podemos nos transformar e misturar sem perder nossa

humanidade? Ainda existe algo que singularize o humano?

A sociedade pós – moderna, maquinica, convive no mundo real com

os cientistas que criam camundongos com enxertos de orelhas humanas nas

costas; os filmes mostram a Humanidade ameaçada por cyborgs e replicantes.

Os monstros parecem ter escapado da ficção e invadido nossas revistas

científicas, programas educativos e laboratórios bem conceituados. E o mais

surpreendente: nós nos sentimos à vontade com eles. Essa banalização de

corpos monstruosos — que a ciência denomina híbridos — instiga – nos a

compreender as mudanças de nosso tempo, nas quais o deslocamento do

sentido de monstruoso parece articular – se inextricavelmente com as

noções de crise do corpo e perda de referência do humano.

Nesse palco de construção de identidades e diferenças, a

comunicação e o corpo desempenham papéis principais. A comunicação é

ela própria um mecanismo de identificação. Permite atenuar as diferenças

entre os indivíduos de uma cultura, criando vínculos e mediações simbólicas

que organizam as alteridades internas. O corpo é constituinte e constituído

pela identidade cultural que lhe reveste com significações e valores próprios

de cada cultura.

Fig. 57

Hibridação (1)

Talvez seja esta a razão da aceitação dos corpos monstruosos: ou

porque os monstros derrubaram as cercas que traçavam, no imaginário e na

prática, os limites do humano; ou talvez porque diante da possibilidade de

corpos híbridos e metamorfoseados precisemos nos confortar com monstros

cada vez mais aterrorizantes que permitam construir novas identidades. Os

replicantes de Blade Runner seduzem com os seus corpos plenos de

beleza e juventude, o que realmente os tornam aterrorizantes é a violência

de seu comportamento, a vontade de exterminar aqueles que se interpõem

em seu caminho.

Enquanto a Modernidade singularizava o humano por sua capacidade

de pensar e a imagem do corpo articulava – se com o logos, na atualidade a

215

216

tecnologia faz conexões com a carne - physis. A engenharia genética e as

neurociências trabalham com o biológico, com a matéria. Clonagem,

próteses, manipulações genéticas são associações diretas com a carne. A

manipulação da natureza em grande escala configura uma situação nova,

cheia de conseqüências transcendentais de ordem social, política,

econômica, legal e estética. Jamais, em nosso passado histórico, aconteceu

tamanha manipulação da natureza e das bases da vida, tal qual como

estamos assistindo atualmente no ciberespaço.

Devemos nos lembrar que, em virtude das potencialidades

tecnológicas e científicas atuais, somos levados a vislumbrar que tudo isso

será apenas o início. Esta faceta histórica é conhecida como a era da

dominação da Biotecnologia, ou seja, a cultura, sob o ponto de vista do

processo biológico e tecnológico, ou ainda, da transformação da natureza

por meio de um novo processo criativo ou destrutivo.

Um processo humano que por sua vez pode ser decisivo, por

implicar em um processo irreversível do homem sobre a natureza e sobre si

próprio, essa dimensão traz possibilidades criativas e ao mesmo tempo de

destruição, ambos atributos do ser humano. Seguindo esse caminho,

podemos afirmar que o ser humano é consciente de que ele pode realizar

definitivamente sua historicidade. Historicidade, nesse caso, sempre

pensada na perspectiva demiúrgica e impregnada pelo impulso de alcançar

sua imortalidade pela própria idéia criativa e transformadora, sob o prisma

de uma nova cultura instalada por meio de transformações científicas,

estendida sobre a vida humana em todos os sentidos.

217

A tecnociência contemporânea visa à ultrapassagem das limitações

biológicas ligadas à materialidade do corpo humano e que restringem as

suas potencialidades. Várias dessas limitações pertencem ao eixo “temporal”

da existência humana. Nesse sentido, está bem representada pelas atuais

descobertas e projetos na área das biotecnologias – transgênicos,

clonagem, genoma, etc., que colocam o arsenal cientifico – tecnológico na

luta contra o envelhecimento e a morte.

Segundo Hermínio Martins, as biotecnologias “não buscam

meramente facultar melhoramentos cosméticos e mais próteses para

organismos humanos e não – humanos, mas criar novas formas de vida”.

Tais ferramentas da mais recente tecnociência não pretendem “estender” ou

“ampliar” as capacidades do corpo humano; pelo contrário, elas têm uma

“vocação mais decididamente ontológica”. É a vocação

“transcendentalista” que enxerga no arsenal tecnocientífico a possibilidade

de ultrapassar as limitações inerentes à condição humana. Como diz

Martins: as formas de vida artificial iludem as fronteiras naturais e os limites

da evolução biológica ‘normal’. A atual agenda biotecnológica também inclui

a criação de formas de vida mistas, biológicas e mecânicas.

Com as suas “criações ônticas”, a biotecnologia contemporânea

redefine as antigas fronteiras, “rediferencia, desdiferencia e re – estratifica a

cadeia pré – existente de seres naturais como matéria puramente

manipulável, afirma Hermínio Martins. Subvertida a velha prioridade do

orgânico sobre o mecânico, impõe – se o que Martins denomina “a agenda

da demiurgia tecnológica atual”, da qual faz parte “a criação de novas tecno

– espécies, envolvendo várias combinações do orgânico e do inorgânico, do

natural e do artificial, do humano e do não – humano”.

Fig. 58 Hibridização (2)

Assim como os corpos dos homens, na sociedade biotecnológica

também o mundo e o cosmos se tornaram “pós – biológicos” e “pós –

orgânicos”. As biotecnologias colocam em questão as velhas fronteiras entre

esses mundos, bem como entre o natural e o artificial.

No processo de hibridização com as máquinas, o corpo humano

poderia se livrar da sua natural finitude. Os cientistas que hoje trabalham em

projetos de inteligência artificial, por exemplo, visam remover a mente do

cérebro humano e transferi – la para uma máquina. “Todos os poderes da

mente humana - concebida como uma espécie do gênero de sistema de

processamento de informação – poderiam, em princípio, ser integralmente

transferidos para programas de computador”, constata Hermínio Martins.

O mito do cyborg como proposto por Donna Haraway poderia nos

libertar das hierarquias sociais e das dicotomias reinantes na civilização

ocidental. Haraway define como cyborg um organismo cibernético, híbrido de

homem e máquina, orgânico e inorgânico; surge em um universo de

fronteiras rompidas; tessitura de natural e artificial, desconhecendo

oposições binárias, bem como a diferenciação dos sexos – auto –

reprodutora. É heterogêneo e múltiplo, não aspira à totalidade, aberto a toda

mistura; inteiramente conectável. Torna imprecisa a distinção identidade/

218

219

alteridade. Sua neutralidade pode, segundo Haraway, mudar o mundo: um

mundo sem sexualidade dominante, sem classes sociais, sem política de

dominação hierárquica e desejos de posses. As tecnologias cyborgs podem

ser, segundo Haraway, restauradoras, normalizadoras, reconfiguradoras -

construção de criaturas pós – humanas semelhantes aos humanos, mas

diferentes deles – e melhoradas relativamente aos seres humanos.

Entretanto, como bem salienta Haraway, a prole “ilegítima” é com muita

freqüência infiel às suas origens. Construídos fragmentados, no grande

bazar capitalista, por produtores especializados em fabricar pedaços

humanos, os replicantes desconhecem sua origem, exceto o seu criador – a

empresa sede e seu dono Tyrell e não hesitam em matar seu criador quando

contrariados.

O cyborg, para Haraway, não busca uma origem ou finalidade: surge no

cruzamento de mundos outrora separados, ou seja, em um entrecruzamento

de limites entre o homem e o animal, entre o homem e a máquina e entre a

natureza e a técnica. Ao ter lugar no cruzamento destes mundos,

antes separados, cruzamento propiciado pelos progressos da ciência e das

técnicas, o cyborg se coloca como fruto da seqüencialidade das atividades

tecnocientíficas, daí não reivindicar uma origem e por conseqüência um fim.

“O cyborg não sonha com a comunidade a partir do modelo da

família orgânica... Não reconheceria o paraíso, não é feito de barro e não

pode sonhar com a volta ao pó” (HARAWAY: 1994, 246).

Repetindo o abalo das fronteiras antes estabelecidas, o cinema tornou

possível o cyborg, como um mito, uma ficção, uma narrativa, que nos permite

pensar a sociedade tecnológica contemporânea.

220

Para concluirmos nossas reflexões recorremos mais uma vez ao

sociólogo português Hermínio Martins que nos seus ensaios Hegel, Texas:

tema de filosofia e sociologia da Técnica e Tecnologia, Modernidade e

Política (1996), vale – se de duas figuras míticas, as quais nos reportam ao

início deste trabalho, da cultura ocidental para analisar a tecnociência

moderna e contemporânea.

A tradição “prometéica” e a tradição “fáustica” constituem duas linhas

de pensamento sobre a técnica, que podem ser detectadas nos textos de

diversos autores dos séculos XIX e XX. Martins conclui que é na segunda

dessas duas tendências que se inscreve a filosofia subjacente à

tecnociência contemporânea: as suas características “fáusticas” podem ser

inferidas nos diversos projetos, pesquisas e descobertas que brotam da

prolífica agenda tecnocientífica de nossos dias. Para explorar as razões de

tal alinhamento e analisar a maneira peculiar com que a construção do

“homem pós-orgânico”, cyborg, replicante, do duplo, enfim qualquer que seja

o desejo humano de construir – se em laboratório, se encaixa nessa

problemática.

Segundo Hermínio Martins, em primeiro lugar, se a tradição

prometéica pretende dominar tecnicamente a natureza, o faz visando “fins

humanos”, mais especificamente: “o bem humano, a emancipação da

espécie inteira e, em particular, das ‘classes mais numerosas e pobres’”.

Apostando no “papel intrinsecamente libertador do conhecimento científico”,

visa atingir o “melhoramento tecnológico das condições de vida da espécie”,

graças à dominação racional da natureza. Confiantes no progresso, os

cientistas prometéicos têm uma visão instrumental da técnica, cujo

desenvolvimento levaria à construção de uma verdadeira “sociedade

científico – industrial”, capaz de superar a opressão e a miséria humanas.

221

Do outro lado, onde se instalam os cientistas faústicos, Martins coloca

como pretensa forma de superação “ultrapassar os parâmetros básicos da

condição humana – a sua finitude, contingência, mortalidade, corporalidade,

animalidade, limitação existencial – aparece como um móbil e até como uma

das legitimações da tecnociência”.

Nos discursos percorridos neste trabalho, percebe – se claramente tal

intenção de superar a condição humana, a viscosidade do corpo orgânico,

os limites espaciais e temporais ligados à sua materialidade, e inclusive as

doenças, o envelhecimento e a própria morte. Em síntese: transcender a

humanidade.

As reflexões de Martins permitem enxergar, tanto nas promessas

quanto nas realizações dos programas de informática e biotécnicos, a

necessidade de se transcender radicalmente a condição humana e não

simplesmente de melhora – la e habilitar os seres humanos a triunfarem

sobre forças naturais hostis.

Tal característica encontrada neste programas é marcadamente

fáustica, em oposição às ambições prometéicas do projeto científico

moderno. É fáustico o “tecno – transcendentalismo” associado aos discursos

sobre o nascente “homem pós – biológico”. A partir dos projetos

transcendentalistas da tecnociência mais recente encontramos: horror ao

orgânico, repugnância pelo corpo, aversão pelo natural, à viscosidade das

coisas é sentida como radicalmente inimiga do espírito, esclarece o próprio

Martins.

A tecnologia da informática e das telecomunicações parece estar

disposta a realizar tais sonhos, pois, com a sua tendência “virtualizante”, a

aparelhagem digital converte tudo em “informação”, inclusive os próprios

corpos humanos. Como já foi mencionado, o corpo que interage intimamente

com estas vertentes da tecnociência contemporânea – a informática e as

biotecnologias – é um corpo – informação. Deixando para trás o modelo

mecânico do corpo – máquina, os novos corpos da era pós – industrial se

inspiram no modelo da informação digitalizada, composta de luz, feita

apenas de uns e zeros, que não precisa de um suporte material para

atravessar tempos e espaços. Adotando a terminologia proposta por

Hermínio Martins, então, diremos que esta rejeição da materialidade

orgânica e esta vontade de “virar luz”, ultrapassando as limitações

temporais e espaciais ligadas ao fato de sermos “orgânicos,

demasiadamente orgânicos”. De acordo com esta tendência, então,

estaríamos virando “pós – orgânicos” e, com isso, “pós – humanos”,

apontando para a imortalidade e a virtualidade.

O que é humano? O que é maquínico? O que é a vida? As condições

cambiantes da reprodução da vida social e os impactos dos avanços

tecnológicos sobre nossas representações tornaram estas antigas questões

mais candentes do que nunca. Sem dúvida, o papel da tecnologia é crucial

neste âmbito já que é uma mediação entre nós mesmos, o mundo natural e

artificial. Nossa espécie está definitivamente presa a um sistema de retro-

alimentação que envolve nossos corpos, o mundo externo e nossa

habilidade de controlá – lo e aperfeiçoá – lo em proveito próprio.

Fig.59 Humano – maquínico

222

223

As possibilidades de cruzamento dos avanços científicos –

tecnológicos e da engenharia genética – trazem para o imaginário ficcional

do cinema, expresso por meio da ficção científica e da popularização de

inovações pelos meios de comunicação de massa, visões de cérebros

inteligentes, transplantes, próteses perfeitas, chips implantados, clones

humanos, que saem progressivamente da ficção ampliando cada vez mais o

reino dos simulacros. Defrontamo – nos com uma ampliação do universo

desses simulacros e simulações, com outro regime de visualidade com suas

implicações para as formas de perceber e representar o mundo, implicações

com impactos que se estendem da formação da subjetividade à formação de

grupos sociais.

Vemos como o impulso de ampliação, via tecnologia, da capacidade

corporal e da mente, coloniza cada vez mais nosso mundo,

problematizando díades antes consideradas fixas e intransponíveis como

natureza/cultura, orgânico/inorgânico, real/imaginário, criando ou

exacerbando porosidades, trânsitos, fusões, novas relações entre os

elementos destes pares. Como pano de fundo, o capital que, via

biotecnologia, alcançou a própria lógica da cadeia da vida, e, via

ciberespaço, realiza seus desígnios de poder e acumulação no próprio

universo virtual.

Freud, ao explorar os elos entre as tecnologias e o desejo de

transcendência, de onipotência e onisciência projetadas nos deuses

transformados em espelhos e ideais inatingíveis, assim condensa essas

complexas relações: “O homem, por assim dizer, tornou – se uma espécie

de ‘Deus de prótese’. Quando este faz uso de todos os seus órgãos

auxiliares e objetos por ele criados, ele é verdadeiramente magnífico; esses

órgãos, porém, não cresceram nele e, às vezes, ainda lhe causam muitas

224

dificuldades. As épocas futuras trarão novos e provavelmente inimagináveis

grandes avanços nesse campo da civilização e aumentarão ainda mais a

semelhança do homem com Deus” (FREUD, 2005: 152).

Aqui, transcendência é a palavra chave, já que as criações

tecnológicas implicam extensões e ampliações do corpo finito – mortal e o

acúmulo de poder dos sujeitos em suas relações com a natureza e grupos

sociais. No cibercinema, organismos geneticamente criados em laboratórios

e cyborgs metaforizam a procura por transcendência tanto quanto são

índices de ansiedades culturais do nosso tempo.

Os seres humanos sempre estiveram imersos em universos

metafóricos que permitem a dramatização e o questionamento do

desconhecido, isto é, a atribuição de sentido ao que não se pode saber

com toda certeza. Na verdade, tudo isto é marcadamente político, pois o que

se disputa é o controle do futuro no presente, operação simbólica –

hermenêutica típica das utopias e distopias. Não é incomum que as

metáforas envolvam simulacros, clones, mais ou menos perfeitos, que quase

sempre se revoltam ameaçando seus criadores ou a ordem por eles

estabelecida. Tem sido assim de Adão, passando por Frankenstein, aos

‘replicantes’ do filme Blade Runner.

No mito de origem cristão, o criador, ao ser traído pela criatura, criada

à sua imagem e semelhança, dela retira atributos inicialmente concedidos

para expô – la à finitude, ao controle da dor e da morte. Nesta cosmogonia,

o demiurgo lança mão de uma tecnologia mágico – religiosa, inatingível por

outros. Não é pouco o que a criatura perde: a felicidade e a própria

eternidade. Mas, tudo parece valer a pena contanto que se possa recuperar

a possibilidade de ser sujeito do seu próprio desejo.

225

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta dissertação o sujeito humano maquínico nas

configurações sociais propostas pelo cinema de ciência – ficção considerou

como ponto de partida, o processo de construção de um objeto de estudo

pertencente ao campo da filosofia contextual, sendo a denominação sujeito

uma denominação da ciência ao concebê-lo na dimensão individual e social

um sujeito dividido. Dentro deste campo semântico a palavra sujeito surge

como uma designação dada ao sujeito humano que na sua condição de ser

simbólico foi se definindo na linguagem técnica e da ciência.

O estudo das Revoluções – Industrial, Científica e Estético –

Tecnológica colocou, nesta dissertação, o sujeito frente às criações da era

maquinica, cuja principal invenção foi o cinema, o cinema que surge como

invenção da era moderna, na qual o sujeito encontrou os modos de

representação do seu próprio imaginário.

Constatamos que o cinema, através das narrativas de ficção

científica, provoca no público sensações, emoções e sentimentos com os

quais esse mesmo público vivencia as experiências da identificação. Desde

suas origens, a ficção tem encontrado distintos modos de ser representada

na literatura, no teatro – na tragédia e na comédia – como uma forma de ver

representada no imaginário cultural da humanidade o pulsar da vida.

Um exemplo desse pulsar da vida e da morte em termos de

representação constitui a abordagem do Expressionismo alemão que surgiu

neste trabalho no sentido de amparar e fornecer elementos considerados

ideais para representar os contrastes violentos, a névoa sinistra, as visões

criadas por um estado de alma sombrio e atormentadas pelos efeitos das

revoluções, das guerras do começo do século XX e do futuro configurado na

cultura do ciberespaço, no qual o tempo real funciona como um

226

determinante da morte do sujeito e de suas representações, restando a

experiência estética como uma possibilidade aberta a reivindicação do

humano em uma síntese artística do humano e o maquínico.

A escolha do filme Blade Runner – o caçador de andróides de

Ridley Scott se deve ao seu caráter paradigmático que ilustra a “suposta”

passagem da Modernidade para a Pós – Modernidade que alguns críticos

pretendem delimitar no exíguo espaço de sua critica. Sendo este filme um

produto cultural reconhecido socialmente, seja pela figura do seu produtor,

pelos efeitos midiáticos por ele produzido, haja visto o êxito de bilheteria,

assim como, o reconhecimento da comunidade científica que o considera um

dos três filmes mais importantes da crítica cinematográfica enquanto

prefiguração do espaço virtual hoje reconhecido na arquitetura e em todas

as expressões da arte.

A análise de Blade Runner – O caçador de andróides (1982)

proporcionou neste estudo o momento em que, pelo menos no cinema, o

sujeito moderno transpõe a barreira para se confrontar com aquilo que vem

a ser o sujeito pós – moderno e a relação do humano com o maquínico,

delimitando assim uma característica predominante nesta relação – a

tecnologia.

Inspirado em Metropolis (1926), Ridley Scott ambienta a história em

Los Angeles no ano de 2019, lugar opressivo e caótico, trazendo um cenário

de conflito, uma urbe pós – moderna onde o ser humano luta contra o

avanço desenfreado da tecnologia. Ridley Scott descreve um futuro em que

a humanidade inicia a colonização espacial desenvolvendo os replicantes,

seres geneticamente desenhados e criados em laboratórios, estes

replicantes são utilizados em missões específicas, pesadas, perigosas ou

degradantes nas novas colônias. Desse modo, esta análise possibilitou

227

estudarmos o encontro do sujeito com o seu duplo construído por ele

mesmo, resultado do avanço das técnicas e tecnologias na pós –

modernidade.

Para completar o panorama no qual inserimos a pós – modernidade e

suas conseqüências analisamos, entre outros, filmes como Matrix (1999),

Videodrome (1983) e eXistenZ (1999). Estes filmes tratam das discussões

mais recentes do fenômeno virtual que não deixa de afetar os grupos sociais

aos quais pertencem cientistas e artistas. Configurando o sujeito em

estruturas de metal, ou em estruturas corporais que se conectam para atingir

espaços virtuais e projetando – os para um mundo na fronteira do humano,

Blade Runner – o caçador de andróides, Matrix, Videodrome e eXistenZ

apresentam a imaterialidade dos corpos como poder e conflito entre o ser

humano e a inteligência artificial autônoma.

Após detalhada análise do filme escolhido, do conceito da técnica

proposto por Heidegger, das questões que envolve o pós - humano e sob o

intuito de estudarmos a construção do sujeito – maquínico acreditamos

termos elaborado um percurso conceitual que colocam em questão a

passagem da modernidade para a pós – modernidade. Assim como a

análise de categorias insinuadas pelo próprio produtor que procuramos

transformar em categorias de análises para produção de ciência – ficção.

As possibilidades de cruzamento dos avanços científicos -

tecnológicos e da engenharia genética - trazem para o imaginário ficcional

do cinema, expresso por meio da ficção científica e da popularização de

inovações pelos meios de comunicação de massa, visões de cérebros

inteligentes, transplantes, próteses perfeitas, chips implantados, clones

humanos, que saem progressivamente da ficção ampliando cada vez mais o

228

reino dos simulacros. Defrontamo – nos com uma ampliação do universo

desses simulacros e simulações, com outro regime de visualidade e suas

implicações para as formas de perceber e representar o mundo, implicações

com impactos que se estendem da formação da subjetividade à formação de

grupos sociais.

A conclusão desta pesquisa aponta para a continuidade da

investigação no que se refere à relação entre o cinema – invenção moderna

por excelência e o ser humano em sociedade. Apesar dessa polarização

entre o orgânico – artificial, existem tempos e espaços qualitativamente

diferentes a ser explorados no ciberespaço, revelando o caráter prefigurativo

do cinema que aliado à ciência, transforma-se na máquina que veio projetar

a capacidade do indivíduo de imaginar a utopia de um mundo socialmente

justo e esteticamente admirável.

229

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235

ANEXO (I)

Referência das imagens

Fig. 1 – Chaplin e as engrenagens no filme Tempos Modernos (1936).

www. cineplayers.com – capturado em 25.11.06.

Fig. 2 – Prometeu Leva o fogo à humanidade – Quadro de Heinrich Fueger

(1817). www. wikipedia. org – capturado em 25.11.06.

Fig. 3 – Lilith – Quadro de John Collierin (1887). www. wikipedia. org –

capturado em 25.11.06.

Fig. 4 – O Golem como veio ao mundo (1920), filme dirigido por Paul

Wegener. www. cineplayers.com – capturado em 25.11.06.

Fig. 5 – Frankenstein (1931), filme dirigido por James Whale. www.

cineplayers.com – capturado em 25.11.06.

Fig. 6 – Fausto (1926) e o diabo Mefistófeles, filme dirigido por F.W.

Murnau. www. cineplayers.com – capturado em 25.11.06.

Fig. 7 – Viagem à Lua (1902), filme de George Méliès. Tem a duração de

13 minutos e considerada a primeira ficção científica, foi inspirado na obra

de Júlio Verne. www. notorius,com,br

Fig. 8 – Nosferatu (1922), direção F.W. Murnau. www. cineplayers.com –

capturado em 25.11.06.

Fig. 9 – O gabinete de Dr. Caligari (1919), filme dirigido por Robert Wiene.

www. cineplayers.com – capturado em 25.11.06.

Fig. 10 – Cena do filme Metropolis (1926), dirigido por Fritz Lang. www.

cineplayers.com – capturado em 25.11.06.

Fig. 11 – O primeiro robô do cinema. Cena do filme Metropolis (1926). www.

cineplayers.com – capturado em 25.11.06.

236

Fig. 12 – Los Angeles no filme Blade Runner – o caçador de andróides

(1982), direção Ridley Scott. www. cineplayers.com – capturado em

25.11.06.

Fig. 13 – Replicante Pris, cena do filme Blade Runner – o caçador de

andróides. www. cineplayers.com – capturado em 25.11.06.

Fig. 14 – O cinematográfo de Louis e Auguste Lumière.

www.notoriuns.com.br – capturado em 03.12.06.

Fig. 15 – Rua imaginária da cidade de Los Angeles em 2019 do filme Blade

Runner – o caçador de andróides. skyjude.users.btopenworld.com –

capturado em 03.12.06

Fig. 16 – O gabinete do Dr. Caligari – Murnau, 1919. www.fueradecampo.cl

– capturado em 03.12.06.

Fig. 17 – Replicante Roy - Blade Runner – o caçador de andróides.

www.fantascienza.com – capturado em 04.12.06.

Fig. 18 – Cartaz do filme Blade Runner (1982). www.fantascienza.com –

capturado em 04.12.06.

Fig. 19 – J.F. Sebastian – Designer genético da Tyrell Corporation e suas

criações – a Replicante Pris e seus bonecos vivos.

skyjude.users.btopenworld.com - capturado em 04.12.06.

Fig. 20 – Cartaz do filme Matrix (1999). www.smoothartist.com - capturado

em 04.12.06.

Fig. 21 – Replicante Zhora do filme Blade Runner (1982). cineplayers.com -

capturado em 04.12.06.

Fig. 22 – Replicante Zhora eliminada por Deckard. www.cineplayers.com –

capturado em 04.12.06.

Fig. 23 – Cenário do filme O gabinete de Dr. Caligari (1919) - Direção:

Murneau. www.fueradecampo.cl – capturado em 03.12.06.

237

Fig. 24 – Cena do filme Blade Runner – Roy salva o policial Deckard. www.

cineplayers.com - capturado em 04.12.06.

Fig. 25 – Cena do filme Blade Runner – Rick Deckard e a cidade de Los

Angeles – www. cineplayers.com - capturado em 04.12.06.

Fig. 26 – Publicidade em vídeo Wall em Blade Runner. www.

cineplayers.com - capturado em 04.12.06. www.scifi.about.com

Fig. 27 – Los Angeles, 2019 – Blade Runner- o caçador de andróides. www.

cineplayers.com - capturado em 04.12.06.

Fig. 28 – O olho humano – cena do filme Blade Runner. www.

cineplayers.com – capturado em 04.12.06.

Fig. 29 – Leon, o replicante assassino – cena do filme Blade Runner.

www.scifi.about.com – capturado em 05.12.06.

Fig. 30 – Pris e Roy – Replicantes Nexus 6 - cena do filme Blade Runner.

www.scifi.about.com – capturado em 05.12.06.

Fig. 31 – Aparelho para teste de Voigth Kampff. www.scifi.about.com –

capturado em 05.12.06.

Fig. 32 – Aparelho de esper machine. www.scifi.about.com – capturado em

05.12.06.

Fig. 33 – Deckard em sua investigação sobre a cobra artificial.

www.scifi.about.com – capturado em 05.12.06.

Fig. 34 – Rachel sobrinha de Tyrell. www.scifi.about.com – capturado em

05.12.06.

Fig. 35 – Cena do filme Videodrome de David Cronenberg (1983). www.

cineplayers.com – capturado em 04.12.06.

Fig. 36 – Cartaz do filme ExistenZ de David Cronenberg (1983). www.

cineplayers.com – capturado em 04.12.06.

238

Fig. 37 – Los Angeles no ano de 2019. www. cineplayers.com – capturado

em 04.12.06.

Fig. 38 – Los Angeles século XXI e seus veículos voadores. www.

cineplayers.com – capturado em 04.12.06.

Fig. 39 – O espaço da cidade de Ridley Scott. . www. cineplayers.com –

capturado em 04.12.06.

Fig. 40 – J. F. Sebastian, designer genético da Tyrell Corporation em seu

apartamento acompanhado do seu brinquedo vivo e da replicante Pris. www.

cineplayers.com – capturado em 04.12.06.

Fig. 41 – Eldon Tyrell sendo assassinado pelo replicante Roy Batty. www.

cineplayers.com – capturado em 04.12.06.

Fig. 42 – A cena da morte de Roy Batty, último replicante vivo.

www.answers.com/topic/blade-runner – capturado em 09.12.06.

Fig. 43 – Zhora e a cobra artificial. www. jason.similar. selection.org –

capturado em 18.12.06

Fig. 44 – Álbum de fotos. www.imagebank.com – capturado em 18,12,05

Fig. 45 – Cena do filme Blade Runner. www. movies.yahoo.com/movie –

capturado em 17.12.06.

Fig. 46 – Natural versos artificial - www.msnbc.msn.com - capturado em

17.12.06.

Fig. 47 – Linha de montagem humano – maquínico. www.imagebank.com –

capturado em 18.12.05.

Fig. 48 – Cyborgs - www.msnbc.msn.com - capturado em 17.12.06.

Fig. 49 – O mecanismo artificial - www. movies.israel.net/exist/exist.html -

capturado em 17.12.06.

Fig, 50 – Bio – port do corpo humano em ExistenZ. www.msnbc.msn.com –

capturado em 10.03.06

239

Fig. 51 – O design das coisas. www.imagebank.com – capturado em

18.12.05.

Fig. 52 – O mundo midiático. Angelina Jolie e Tom Cruise maquínicos.

www.imagebank.com – capturado em 18.12.05.

Fig. 53 - O corpo fragmentado. www.msnbc.msn.com - capturado em

17.12.06.

Fig. 54 – O ser humano modificado. www.msnbc.msn.com - capturado em

17.12.06.

Fig. 55 – O sujeito conectado. www.imagebank.com – capturado em

18.12.05.

Fig. 56 – O estranho no humano – maquínico. www.imagebank.com –

capturado em 18.12.05.

Fig. 57 – Hibridização (1). www.imagebank.com – capturado em 18.12.05.

Fig. 58 – Hibridização (2). www.imagebank.com – capturado em 18.12.05.

Fig. 59 – Humano – maquínico. www.imagebank.com – capturado em

18.12.05.

240

ANEXO (II)

FICHAS TÉCNICAS DOS FILMES

Filme: O Gabinete do Dr. Caligari (1919)

Título original: Das Kabinett des Doktor Caligari

Diretor: Robert Wiene.

Duração: 76 min. Preto e branco

Gênero: Terror

Origem: Alemanha

Elenco: Werner Krauss, Conrad Veidt, Friedrich Feher, Lil Dagover, Hans

Heinrich von Twardowski, Rudolf Lettinger

Filme: Metropolis (1926)

Título original: Metropolis

Direção: Fritz Lang

Gênero: Ficção Científica

Tempo de Duração: 100 minutos

Ano de Lançamento (Alemanha): 1926

Estúdio: Universum Film S.A.

Distribuição: Paramount Pictures / Kino International

Elenco: Alfred Abel, Gustav Fröhlich, Brigitte Helm ,Rudolf Klein-Rogge,

Fritz Rasp, Theodor Loos, Heinrich George, Erwin Biswanger.

Fime: Nosferatu (1922)

Título Original: Nosferatu, eine Symphonie des Grauens,

Direção: F.W. Murnau

Gênero: Suspense/Terror

241

Origem: Alemanha

Duração: 94 minutos

Elenco: Max Schreck ; Gustav von Wangenheim , Greta Schröder,

Alexander Granach,, Georg H. Schnell , Ruth Landshoff ,John Gottowt

,Gustav Botz , Max Nemetz.

Filme: Fausto (1926)

Título original: Fausto

Direção: F.W. Murnau

Gênero: Drama/Fantasia/Terror

Origem: Alemanha

Duração: 116 minutos

Elenco: Emil Jannings, Gösta Ekman, Camilla Horn, Frida Richard, William

Dieterle, Yvette Guilbert, Eric Barclay, Hanna Ralph, Werner Fuetterer

Filme: O Golem - Como Veio ao Mundo (1920)

Título original: Der Golem - Wie er in die Welt Kam.

Direção: Paul Wegener

Gênero: Fantasia/Terror

Origem: Alemanha

Duração: 91 minutos.

Elenco : Ernst Deutsch, Lothar Müthel, Dore Paetzold, Max Kronert, Hans

Stürm, Albert Steinrück, Paul Wegener, Greta Schröder, Loni Nest.

242

Filme: Tempos Modernos (1936)

Título Original: Modern Times

Direção, roteiro, Produção e música: Charles Chaplin

Gênero: Comédia

Tempo de Duração: 87 minutos

Ano de Lançamento (EUA): 1936

Elenco: Charles Chaplin, Paulette Goddard,Henry , Tiny Sandford ,Chester

Conklin Hank Mann, Stanley Blystone Al Ernest Garcia, Cecil Reynolds,

Mira McKinney, Murdock McQuarrie ,Richard Alexander

Filme: Videodrome (1983)

Título Original: Videodrome

Direção e roteiro: David Cronenberg

Gênero: Suspense

Tempo de Duração: 87 minutos

Ano de Lançamento (Canadá): 1983

Elenco: James Woods, Sonja Smits, Debbie Harry, Peter Dvorsky,,Leslie

Carlson, Jack Creley,Lynne Gorman, Julie Khaner, Reiner Schwartz, David

Bolt, Lally Cadeau, Henry Gomez..

Filme: O Vingador do Futuro (1990)

Título Original: Total Recall

Direção: Paul Verhoeven

Gênero: Ficção / Ação

Tempo de Duração: 113 minutos

Ano de Lançamento (EUA): 1990

243

Elenco: Arnold Schwarzenegger, Rachel Ticotin, Sharon Stone, Ronny Cox,

Cohaagen, Michael Ironside, Marshall Bell, Mel Johnson Jr.,Michael

Champion,Roy Brocksmith, Ray Baker, Rosemary Dunsmore, David Knell,

Alexia Robinson, Dean Norris, Mark Carlton.

Filme: Matrix (1999)

Título original: The Matrix

Direção: Larry Wachowski, Andy Wachowski

Gênero: Ação/Ficção Científica

Origem: Estados Unidos

Duração: 136 minutos

Elenco: Keanu Reeves, Laurence Fishburne, Carrie-Anne Moss, Hugo

Weaving, Gloria Foster, Joe Pantoliano.

Filme: Matrix Reloaded (2003)

Título original: The matrix reloaded

Direção: Larry Wachowski, Andy Wachowski

Gênero: Ação/Ficção Científica

Origem: Estados Unidos

Duração: 138 minutos

Elenco: Keanu Reeves, Anthony Zerbe, Harry J. Lennix, Harold Perrineau

Jr. Jada Pinkett Smith, Lambert Wilson, Monica Bellucci, Gloria Foster, Hugo

Weaving, Carrie-Anne Moss, Laurence Fishburne, Helmut Bakaitis.

Filme: Matrix Revolutions (2003)

Título original: The Matrix Revolutions

244

Direção: Larry Wachowski, Andy Wachowski

Gênero: Ação/Ficção Científica

Origem: Estados Unidos

Duração: 129 minutos.

Elenco: Keanu Reeves, Tanveer Atwal, Anthony Zerbe, Mary Alice, - Harold

Perrineau Jr., Jada Pinkett Smith, Lambert Wilson, Monica Bellucci, Hugo

Weaving, Carrie-Anne Moss, Laurence Fishburne, Helmut Bakaitis

Filme: Minority Report - A Nova Lei (2002)

Título original: Minority Report

Direção: Steven Spielberg

Duração: 145 min.

Origem: Estados Unidos (2002)

Gênero: Ficção-científica

Elenco: Tom Cruise, Kathryn Morris, Samantha Morton, Max Von Sydow,

Colin Farrell, Tim Blake Nelson, Neal McDonough.

245

ANEXO (III)

Glossário

Biorobótica - O termo biorobótica é comumente usado como referência ao

estudo da criação dos robôs que emulam ou simulam organismos biológicos

vivos, ele é também utilizado ao contrário: tornando organismos biológicos

manipuláveis e funcionais como robôs.Em outro sentido a biorobótica se

refere a uma disciplina teórica da engenharia genética aonde os organismos

são criados e projetados por meios artificiais. A criação de vida de uma

matéria não-viva, por exemplo, é biorobótica. Devido ao seu estado

altamente teórico, ela é atualmente limitada à ficção científica, o campo atual

em seu começo é a biologia sintética.

Blade Runner - codinome dado aos detetives policiais que são

especialmente treinados no manuseio do aparelho Voight-Kampff. Sua função

específica é identificar e eliminar qualquer replicante que volte a conviver

com a sociedade se passando por um ser humano natural.

Ciborg - O neologismo ciborg (cib-ernético mais org-anismo) foi inventado por

Manfred E. Cllynes e Nathan S. Kline, em 1960, para designar os sistemas

homem-máquina auto – controlativo, quando ambos ampliavam a teoria de

controle cibernético aos problemas que as viagens especiais impingem

sobre a neurofisiologia do corpo humano.” (SANTAELLA: 2003, 185).

Esper Machine é o nome dado ao aparelho que amplia a fotografia e opera

a investigação da mesma, no apartamento de Deckard, sob o comando

vocal do blade runner.

246

Replicantes – são seres criados através da biorobótica, são organismos de

tecido vivo e células criadas artificialmente. Uma criatura desenvolvida pela

engenharia genética, composta de substâncias orgânicas. Os replicantes

foram desenvolvidos primeiro para uso como animais. Mais tarde os

replicantes humanos foram criados com propósitos militares e para

colonização do espaço. Depois a Tyrell Corp. introduziu o Nexus 6, uma

geração de replicantes mais forte, mais ágil e virtualmente indistinguível do

ser humano natural. As leis da Terra não permitiam aos replicantes viverem

no planeta, exceto como trabalhadores no grande complexo industrial onde

eles foram criados. As leis não consideravam os replicante humanos e por

isso eles não tinham seus direitos protegidos como os seres humanos

naturais.

NEXUS 6 – Estado de arte dos replicantes. Uma das mais prefeitas máquinas

bio-mecânica, réplica feitas a partir do modelo humano. Os replicantes da

geração Nexus-6 só podem ser diferenciados dos humanos por meio do

teste de Voigt-Kampff.

V-K Test – É um teste aplicado por um policial blade runner com a máquina

de Voigt – Kampff. Um aparelho extremamente avançado, que possui um

detector de mentiras e que mede as contrações do músculo ocular – a íris e

que detectar a presença de invisíveis partículas emitidas pelo corpo dos

replicantes. O designer da máquina Voigt – Kampff é composto por um

mecanismo que insufla ar dando-lhe um aspecto sinistro. O teste de voigt

kampff é usado para determinar se um suspeito é um humano verdadeiro

através da medição do grau de empatia com que as resposta são dadas às

questões feitas pelos blade runners.

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