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CINTIA ROBERTA RIBEIRO HOFFMANN UNUS MUNDUS: os graus da Coniunctio do alquimista Gerardus Dorneus, as fases alquímicas e suas relações com o ritmo ternário dos processos psíquicos em busca da totalidade quaternária, segundo C. G. Jung PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO 2006

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CINTIA ROBERTA RIBEIRO HOFFMANN

UNUS MUNDUS:

os graus da Coniunctio do alquimista Gerardus Dorneus, as fases alquímicas e

suas relações com o ritmo ternário dos processos psíquicos em busca da

totalidade quaternária, segundo C. G. Jung

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

2006

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CINTIA ROBERTA RIBEIRO HOFFMANN

UNUS MUNDUS:

os graus da Coniunctio do alquimista Gerardus Dorneus, as fases alquímicas e

suas relações com o ritmo ternário dos processos psíquicos em busca da

totalidade quaternária, segundo C. G. Jung

Dissertação apresentada à Banca Examinadora

da Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo, como exigência parcial para a

obtenção do título de Mestre em Ciências da

Religião, sob orientação do Prof. Dr. Eduardo

Rodrigues da Cruz.

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

2006

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BANCA EXAMINADORA

__________________________________

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AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente à minha família que ofereceu todo apoio moral, afetivo e

financeiro para que esta dissertação pudesse ser realizada. Agradeço ao prof. e diretor de

Teologia do Mackenzie Antônio Máspoli de Araújo Gomes, que na faculdade de Psicologia,

foi o único professor que aceitou o encargo de me orientar na monografia sob o título, "O Self

e a Pedra Filosofal", resultado da investigação científica no campo da Psicologia e Alquimia.

Além disso, o prof. Máspoli foi a pessoa que incentivou a minha jornada neste mestrado,

indicando para isto, o programa de Ciências da Religião da Puc de São Paulo. Agradeço

também à todos os professores que tive o privilégio de encontrar no programa, em especial,

Enio da Costa Brito, Denise Gimenez Ramos e Amâncio César Santos Friaça. E, por fim,

agradeço ao meu orientador Eduardo Rodrigues da Cruz, pelos apontamentos, correções e,

principalmente, pela confiança no projeto inicial desta dissertação.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO........................................................................................................................................................7

I - Unus Mundus: Um registro da influência do alquimista Dorneus na visão completa do mundo natural de C. G. Jung

I. 1. - Introdução ao universo da alquimia, e sua importância para a Psicologia Analítica....................................................... .14

I. 2. Os graus da Coniunctio do alquimista Gerardus Dorneus...................................................................................................28

I. 3. Sobre a influência de Dorneus nas correspondências Jung-Pauli........................................................................................30

II – Esboço Teórico-Espiritual da alquimia................................................................................................................................38

II. 1. - A Alquimia Asiática.........................................................................................................................................................41

II. 2. - Alquimia Alexandrina......................................................................................................................................................48

II. 3. - A alquimia Árabe.............................................................................................................................................................60

III – As fases alquímicas e suas realções com os graus da Coniunctio do alquimista Dorneus, analisados à luz da Psicologia

Profunda de C. G. Jung

III. 1. O Opus Alchymicum e seus estágios................................................................................................................................67

III. 2. – A fase alquímica nigredo, à luz da Psicologia Profunda de Carl Gustav Jung.............................................................74

III. 3. – A Solutio na fase alquímica nigredo..............................................................................................................................81

III. 4. –A Separatio e a Mortificatio na fase alquímica nigredo.................................................................................................95

III. 5. – A fase alquímica nigredo e sua relação com o primeiro grau da Coniunctio de Gerardus Dorneus............................110

IV – A fase alquímica Albedo à luz da Psicologia Profunda de Carl Gustav Jung

IV. 1 - A subida e a descida do volátil na fase alquímica albedo.............................................................................................121

IV. 2 – A subida e da descida do volátil do ponto de vista psicológico do Opus Alchymicum.................................................131

IV. 3 – O processo alquímico da Circulatio do ponto de vista psicológico do Opus Alchymicum..........................................136

IV. 4. – A tensão dos opostos na alquimia do ponto de vista psicológico do Opus Alchymicum............................................152

IV. 5. – A fase alquímica albedo e sua relação com a produção da Quintessência de Gerardus Dorneus...............................167

IV. 6. Sobre o axioma de Maria Prophetissa...........................................................................................................................180

V – Unus Mundus e o símbolo quaternário:Uma contribuição para o estudo do religioso no campo simbólico.....................184

V. 1. – Paul Tillich e Carl Jung.………………………………………………………………………………………………190

VI – Conclusão..........................................................................................................................................................................203

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................................................................................213

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RESUMO

Em Mysterium Coniunctionis, Jung encontrou nos três graus da conjunção do

alquimista Gerardus Dorneus um terreno seguro para explicar a seqüência dos processos

psíquicos que ocorrem na "retorta", em busca do centro no processo de individuação e,

demonstrou que a conjunção alquímica na verdade ocorrem em três estágios. Apoiado no

estudo do procedimento alquímico, com maior profundidade nos três graus da Coniunctio,

nota-se ainda que, assim como para o alquimista Dorneus eram necessários a realização de

três graus ou estágios para a Conjunção, assim também na Alquimia, o Opus alchymicum, em

toda sua extensão, poderia ser descrito, pela maioria dos alquimistas, em três fases conhecidas

e necessariamente sequênciais: a nigredo, a albedo e a rubedo. Sendo assim, esta dissertação

busca defender sob a óptica junguiana, a hipótese de que os graus da Coniunctio do alquimista

Gerardus Dorneus necessários à uma Coniunctio Final, na vivência religiosa do Unus

Mundus, possuem estreita relação, em seus aspectos psíquicos, com as principais fases

alquímicas, a nigredo, a albedo e a rubedo. Mantendo-se em um campo factível, que é o da

investigação simbólica dos processos alquímicos, tanto através da análise dos graus da

Coniunctio do alquimista Dorneus, quanto das fases alquímicas, esta dissertação encontra um

maior entendimento dos processos psíquicos que se desenrolam no Opus alchymicum até a

Conjunção final, confirmando ser o ritmo ternário dos processos psíquicos em busca da

totalidade quaternária. Entretanto a contribuição da presente tese não se encerra aqui. Esta

pesquisa poderá enriquecer neste sentido a análise e, a constatação junguiana de que, se

entendermos a Trindade como um processo em três etapas, este processo deveria prolongar-se

até chegar à totalidade absoluta, isto é, no símbolo quaternário. Descobrir de que modo estes

processos se apresentam no simbolismo alquímico é uma contribuição para qualquer

indivíduo que se ocupa em estudar a experiência religiosa no processo de individuação,

segundo C. G. Jung.

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ABSTRACT

In Mysterium Coniunctionis, Jung encountered, on the three degrees of the conjunction

of the alchemist Gerardus Dorneus, safe ground to explain the sequence of psychic processes

that occur on the “retorta”, in search of the center the individualization processes, and

demonstrated that the alchemic conjunction actually occurs in three stages. Based on the

study of the alchemic procedure, with bigger depth in the three degrees of the Coniunctio, one

still notices that, as well as it was necessary for the Dorneus alchemist the accomplishment of

three degrees or stages for the Conjunction, in Alchemy the Opus alchymicum, in all its

extension, could be described, by the majority of the alchemists, in three known and

necessarily consecutive phases: nigredo, albedo and rubedo. Thus, this dissertation seeks to

defend, under Jungian perspective, the hypothesis that the necessary degrees of the

Coniunctio of the alchemist Gerard Dorneus for a Coniunctio Final, in the religious

experience of the Unus Mundus, possess a strict relationship, on its psychic aspects, with the

main alchemic phases: nigredo, albedo and rubedo. Staying in a feasible ground, that of the

symbolic investigation of the alchemic processes, as much through the analysis of the degrees

of the Coniunctio of the Dorneus alchemist, as of the alchemic phases, this dissertation finds a

broader understanding of the psychic processes that unfold during the opus alchymicum until

the final Conjunction, confirming to be the ternary rhythm of the psychic processes in search

of the quaternary totality. However, the contribution of this thesis does not end here. This

search will be able to enrich, in this sense, the analysis and the jungian acknowledgement that,

if we understand the Trinity as a process with three phases, such process should continue until

reaching the absolute totality, the quaternary symbol. Find out how these processes present

themselves in the alchemic symbolism is a contribution to any individual who is concerned

with the study of the religious experience in the individualization process, according to C. G.

Jung.

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INTRODUÇÃO

A alquimia sempre exerceu grande fascínio sobre mim, desde a época em que dediquei

maior atenção ao estudo das obras de Carl Gustav Jung, resultando daí o desejo em apenas

concluir o curso de Comunicação e Artes que estava desenvolvendo e, ingressar em outra área

de trabalho. Na Faculdade de Psicologia, desenvolvi, "O Self e a Pedra Filosofal", uma

monografia resultado da investigação científica no campo da Psicologia e Alquimia. Neste

trabalho, realizo uma análise dos três graus da Coniunctio do alquimista Gerardus Dorneus

sob a perspectiva junguiana, orientada pelo professor e diretor de Teologia do Mackenzie

Antônio Máspoli de Araújo Gomes. Aconselhada por este, me dirigi ao programa de Ciências

da Religião da PUC de São Paulo.

Carl Gustav Jung passou o final de sua vida estudando a alquimia e descobriu que o

processo alquímico em busca do "ouro" correspondia à um processo psíquico, ou seja,

enquanto faziam suas experiências químicas, os alquimistas passavam por determinadas

experiências psíquicas que lhes pareciam ser o comportamento particular do processo

químico. Na verdade, como se tratava de uma projeção, o alquimista vivenciava estas

vivências psíquicas como uma propriedade da matéria, embora algum deles tenham

pressentido a simbólica aí existente e souberam do parestesco de tais imagens com sua própria

estrutura psíquica.

O ponto culminante do procedimento alquímico, a criação da Pedra Filosofal, continua

sendo a etapa mais misteriosa e complicada. Em um sentido mais direto, tanto o processo de

individuação quanto o simbolismo alquímico concentram seus esforços últimos no momento

da Coniunctio (Conjunção), ou seja, concomitantemente, no encontro consciente do ego com

o Self e, na produção final da Pedra Filosofal. Assim, a operação alquímica da Coniunctio

seria o objetivo último, onde o alquimista esperava atingir a meta da obra, o verdadeiro ouro,

a Pedra Filosofal. Desta maneira, todo o Opus Alchymicum correspondia, numa perspectiva

junguiana, aos esforços do homem para alcançar o centro do processo de individuação.

Em Mysterium Coniunctionis, Jung dedicou longa atenção ao alquimista Gerardus

Dorneus. A Coniunctio em especial, foi descrita por este alquimista e subdividida em três

graus. Jung encontrou nos três graus da conjunção de Dorneus um terreno seguro para

explicar a seqüência dos processos psíquicos que ocorrem na "retorta", em busca do centro no

processo de individuação. Sob a ótica junguiana, ao descrever e subdividir em três graus o

processo alquímico da Coniunctio, Dorneus, está descrevendo as implicações psíquicas de

um encontro do ego com o Self. Edward F. Edinger é da mesma opinião ao afirmar em sua

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obra intitulada, The Mystery of the Coniunctio, que Jung "demonstrou que a conjunção

alquímica na verdade ocorrem em três estágios"1 e assim, dedicou uma boa parte da sua

última obra na análise minuciosa destes:

Em todo caso deve-se mencionar desde agora que no século XVI já GERARDUS DORNEUS reconheceu o aspecto psicológico do casamento alquímico e o entendeu claramente como aquilo que hoje concebemos como o processo de individuação (JUNG, 1990, p.223, § 334).

Apoiado no estudo concreto do procedimento alquímico, com maior profundidade nos

três graus da Coniunctio, nota-se ainda que, assim como para o alquimista Dorneus eram

necessários a realização de três graus ou estágios para a Conjunção, assim também na

Alquimia geral, o Opus alchymicum, em toda sua extensão, poderia ser descrito, pela maioria

dos alquimistas, em três fases conhecidas e, necessariamente sequênciais: a nigredo, a albedo

e a rubedo. Sendo assim, levanta-se a questão: existe relação entre a nigredo, albedo e a

rubedo, e os estágios da Coniunctio de Dorneus, em seus aspectos psíquicos? Jung foi o

primeiro à apontar uma primeira relação em seus aspectos psíquicos entre o primeiro grau da

Coniunctio de Dorneus e a primeira fase alquímica, nigredo, como se observa neste único

trecho presente em Mysterium Coniunctionis:

Quando, pois, DORNEUS, fala da libertação da alma presa nas cadeias do corpo, está ele exprimindo, em uma linguagem um pouco diferente, a mesma coisa como ALBERTO MAGNO, quando ele trata da transformação artificiosa ou da preparação do argentum vivum. (prata viva, mercúrio) ou quando o rei em sua veste cor de açafrão se racha ao meio. Em todos os três casos se representa a substância do arcano. Desse modo a gente entra na escuridão, a nigredo (negrura), pois o Arcanum, o mistério, é escuro (JUNG, 1990, p. 276, § 396).

Entretanto, esta dissertação busca ir além; o objetivo da dissertação, é defender sob a

óptica junguiana, a hipótese de que os graus da Coniunctio do alquimista Gerardus Dorneus

necessários à uma Coniunctio Final, na vivência religiosa do Unus Mundus, possuem estreita

relação, em seus aspectos psíquicos, com as principais fases alquímicas, a nigredo, a albedo e

a rubedo. Se estas relações forem constatadas no decorrer da dissertação, poderemos, tanto

através do exame dos estágios alquímicos do alquimista Dorneus, quanto das fases

alquímicas, encontrar um duplo subsídio para promover um maior entendimento dos

principais processos psíquicos que se desenrolam no Opus alchymicum até a Conjunção final.

1 "With the help of a lot of alchemical texts chiefly those from the alchemist Gerhard Dorn, Jung demonstrates that the alchemical coniunctio actually takes place in three stages." EDINGER, E. F. The Mystery of the Coniunctio : Alchemical Image of Individuation. Toronto: Ed. Inner City Books, 1994, p. 77.

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Descobrir de que modo estes processos se apresentam no simbolismo alquímico é uma

contribuição para qualquer indivíduo que se ocupa em estudar a experiência religiosa no

processo de individuação, segundo C. G. Jung.

Tanto a nigredo, quanto a albedo e a rubedo foram estudadas por Jung, à luz da

Psicologia Profunda. Entretanto, não há uma análise do processo destas três fases reunidas e,

consequentemente, o entendimento deste processo alquímico como um todo, visto que os

comentários de Jung sobre estes simbolismos, encontram-se distribuídos em Psicologia e

Alquimia, Estudos Alquímicos, A prática da psicoterapia, Aion e nos três volumes de

Mysterium Coniunctionis, de forma desordenada.

Encontramos alguns estudos que abordam a alquimia no âmbito da psicologia

junguiana. Marie-Louise Von Franz, por exemplo, autora de Alquimia: introdução ao

simbolismo e à psicologia e Alquimia e Imaginação ativa, é certamente uma delas, pela

própria ligação com o Jung. No entanto, muitos textos, inclusive o de Von Franz, apresentam

lacunas para quem está em busca de um entendimento do processo alquímico como um todo,

assim como dos processos inconscientes que se desenvolvem na Opus alchymicum.

Outra obra que promete destacar o processo alquímico em paralelo com os processos

inconscientes análogos é : O Caminho da Transformação, segundo C. G. Jung e a alquimia.

O autor, Etienne Perrot, foi encarregado de conferências sobre alquimia no Instituto C. G.

Jung de Zurique, e neste livro ele reúne algumas de suas palestras proferidas. Na primeira

parte do livro, o autor trata primeiramente dos temas principais da psicologia junguiana; para,

na segunda parte, partir para a analogia com os simbolismos alquímicos. No início o autor

parece seguir um trajeto alquímico correspondente ao processo psíquico junguiano, entretanto

posteriormente, deixou, aleatoriamente, que os temas se oferecessem e se encadeassem, como

o autor mesmo afirma, "evitando o discurso lógico."2

Definitivamente, entre os autores, um deles se destaca, para quem está em busca de

um estudo que aborde a sucessão dos processos inconscientes que se desenvolvem no

processo alquímico: Edward F. Edinger

O analista junguiano Edward F. Edinger, professor no C. G. Jung Institute de Los

Angeles, realizou em seu livro Anatomia da psique, uma primeira tentativa de organizar e

analisar os procedimentos alquímicos como a solutio, a calcinatio, a coagulatio, a sublimatio,

a mortificatio, a separatio, e a coniunctio, à luz da psicologia junguiana. Entretanto estes

procedimentos alquímicos foram estudados isoladamente. Além disso, especificamente as

2 PERROT, E. O caminho da transformação. São Paulo: Ed. Paulus,1998, p. 404.

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principais fases alquimícas como a nigredo, albedo e a rubedo, que podem ser produzidas por

uma combinação de procedimentos alquímicos, como por exemplo a nigredo, através da

solutio, da separatio, e da mortificatio, não foram estudadas e analisadas nestes termos.

Posteriomente, há uma outra obra de Edinger, citada acima, The Mystery of The

Coniunctio: alchemical image of individuation, cujo o material deste livro foi primeiro

apresentado pelo autor em forma de palestras no C. G. Jung Institute of San Francisco. Nesta

obra, Edinger aborda a coniunctio e os escritos junguianos sobre este tema em dois ensaios. O

primeiro, "Introduction to Jung´s Mysterium Coniunctionis", é um breve ensaio, onde Edinger

busca promover um maior entendimento do "mistério da conjunção", no entanto, como o

autor mesmo assume, seria mais uma tentativa de encorajar outros suficientemente à fazer um

esforço similar.3 No segundo ensaio, Edinger se ocupa da série de dez figuras do texto

alquímico Rosarium philosophorum, o qual Jung estudou profundamente no seu trabalho A

Psicologia da Transferência. Edinger faz uma interpretação psicológica junguiana das dez

figuras alquímicas e promove um maior entendimento do processo alquímico como um todo

assim como da seqüência dos processos inconscientes que se desenvolvem na Opus

alchymicum. Entretanto Edinger apenas comenta suscitamente os três estágios da conjunção

alquímica de Dorneus e as três fases alquímicas mal são citadas e, muito menos relacionadas

com os estágios do alquimista Dorneus. Sendo assim, uma compreensão suscinta dos três

processos gerais psíquicos necessários à união final e à unificação do homem, não se

encontrada nesta obra.

Uma última obra de Edinger, na qual ele se ocupa da problemática alquímica sob o

prisma junguiano é "The Mysterium Lectures: a journey throught C. G. Jung`s Mysterium

Coniunctionis". Neste livro, Edinger aborda, novamente a obra de Jung Mysterium

Coniunctionis, parágrafo por parágrafo, elucidando tanto os símbolos alquímicos quanto a

interpretação junguiana deles. Edinger busca uma maior amplificação da última maior obra

junguiana, devido o seu grau de dificuldade. Muitos símbolos alquímicos são estudados

profundamente. Os três estágios do alquimista Dorneus analisados por Jung também passam

pelo prisma do autor, porém Edinger não relaciona estes com as três principais fases

alquímicas.

A alquimia, ao atribuir fases aos processos alquímicos, demonstra à Psicologia

Analítica, que formas simbólicas se sucedem nestas. Consequentemente, um estudo das três

3 "...I hope that what I have to say tonight will open it up for you sufficiently to encourage you to make a similar effort." EDINGER, E. F. The Mystery of the Coniunctio: Alchemical Image of Individuation. Toronto: Ed. Inner City Books, 1994, p. 7.

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principais fases alquímicas reunidas, as quais obedecem a seqüência nigredo, albedo e

rubedo, que promova um entendimento do processo alquímico como um todo e,

paralelamente, a relação que estes estabelecem com os três graus da Coniunctio de Dorneus,

ainda se encontra em vias de se realizar. Sendo assim, conforme o axioma alquímico "Non

fieri transitum nisi per medium" (Não ocorre a passagem a não ser por um meio), a presente

dissertação, mantendo-se em um campo factível, que é o da investigação simbólica dos

processos alquímicos, se concentrará nos processos e implicações desta passagem, buscando

encontrar, desta maneira, um maior entendimento dos processos psíquicos que se desenrolam

no Opus alchymicum até a Conjunção final.

No primeiro capítulo, a dissertação fará uma introdução ao universo da alquimia, e

sua importância para a Psicologia Analítica. Desta maneira, a dissertação buscará retomar a

teoria junguiana em seus pressupostos mais básicos ao indicar a influência do alquimista

Dorneus, nas trocas epistolares entre Jung e o físico Wolfgang Pauli, em busca de uma visão

completa do mundo natural.

No segundo capítulo, tendo em vista que qualquer um que se dedique ao estudo da

alquimia, mergulha numa massa caótica de símbolos e alegorias alquímicas; a dissertação, no

intuito de evitar uma sobrecarga no próprio objeto de estudo, esboçará algumas linhas de

orientação que contribuíram para dar a forma que a alquimia finalmente viria a apresentar na

Idade Média, percorrendo a alquimia chinesa-hindu, alexandrina e a árabe. Desta maneira, se

preparará assim o próprio terreno simbólico para o objeto de estudo em questão.

No terceiro capítulo, a dissertação indicará que os textos alquímicos obedeciam uma

sucessão de operações e procedimentos alquímicos descritos, pela maioria dos alquimistas,

em três fases conhecidas e necessariamente sequênciais: a nigredo, a albedo e a rubedo.

Posteriormente, a dissertação analisará, sob a ótica junguiana, os simbolismos alquímicos

relacionados com primeira fase alquímica, com o intuito de, assim, relacioná- los com o

primeiro grau da Coniunctio de Dorneus. Sendo assim, a dissertação indicará que o primeiro

grau da Coniunctio de Dorneus, em seus aspectos psíquicos, estabelece equivalência com

tudo aquilo que culmina, produz ou almeja produzir a respectiva fase “negra”: segundo a tese,

uma unio mentallis (união mental), ou seja, um estado de superação em relação os afluxos do

corpo e da matéria e, em uma discussão psicologica profunda, dos impulsos animais do

inconsciente.

No quarto capítulo, a dissertação analisará, sob a ótica junguiana, os simbolismos

alquímicos relacionados com fase alquímica albedo, com o intuito de, assim, relacioná- los

com a produção da Quintessência de Dorneus. Sendo assim, a dissertação indicará que a

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produção da Quintessência de Dorneus estabelece equivalência com tudo aquilo que culmina,

produz ou almeja produzir a respectiva fase “branca”: segundo a tese, uma união dos opostos.

Sabe-se que a união dos opostos somente ocorre assim que estes estiverem unidos num só, e

mudados em quintessência; assim também Gerardus Dorneus considera a produção da

quintessência necessária para a realização da união da unio mentalis com o corpo. Análogo

ao Mercúrio filosofal e à Quintessência de Dorneus, que, respectivamente, restaura a unidade

da substancia e, promove o Unus Mundus a partir da união da unio mentalis com o corpo,

esta dissertação indicará que a terceira fase, a rubedo, do ponto de vista psicológico,

corresponde agora a integração desses conteúdos na vida real do indivíduo; fato este que

somente poderá ser vivenciado se o indivíduo for confrontado com uma união dos opostos.

Eis também porque a albedo e a rubedo, eram simbolizadas nos tratados alquímicos

concomintantemente juntas; a feminina alba e o servo rubedo formam o par tradicional do

Casamento alquímico, isto é, o relacionamento recíproco do feminino e do masculino. Na

concepção junguiana, o objetivo final da alquimia, a união dos contrários, na pedra,

“corresponde à individuação, à unificação do homem. Diríamos que a pedra é uma projeção

do si-mesmo unificado" (JUNG,1988, p. 161, § 264).

No quinto capítulo, a dissertação analisará a terceira etapa da Coniunctio de Dorneus,

a união com o Unus Mundus, que se tornou também objeto das representações figurativas,

como no estilo da Assunção e coroação de Maria. Mediante as representações da coroação de

Maria a alquimia prepara o caminho para a quaternidade acrescentando o elemento feminino

da terra, do corpo e da matéria à sua Trindade física. Desta maneira, o capítulo indicará de

que forma essa discussão em torno do símbolo da quaternidade alquímica traz uma

contribuição para o estudo do religioso no campo simbólico, enriquecendo neste sentido a

análise e a constatação junguiana de que, se entendermos a Trindade como um processo em

três etapas, este processo deveria prolongar-se até chegar à totalidade absoluta, isto é no

símbolo quaternário. Além disso, o capítulo também buscará estabelecer um paralelo para o

pensamento junguiano na fórmula apresentada por Tillich para a recuperação do eu essencial

primordial expresso no dinamismo da vida trinitária, estabelecendo neste ponto, não só as

semelhanças nas versões que Jung e Tillich, compartilham da experiência ligadas à

integração dos opostos, como também as diferenças. Chegando assim, ao final das

considerações sobre o conceito de Unus Mundus, como ápice do processo alquímico, esta

dissertação buscará contribuir para o estudo do religioso no campo simbólico, à luz da

Psicologia Profunda de Carl Gustav Jung.

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Entretanto, faz-se necessário acrescentar, que esta dissertação não teve oportunidade

de acesso aos originais de Dorneus, tendo que se fiar nas citações reproduzidas nas obras de

Jung. Mesmo assim, acredita-se que este fato não chegou à oferecer impecilho, visto que,

diferentemente da unio mentalis (conjunção do espírito mais a alma) e da unio corporis

(reunião da unio mentalis com o corpo), o único trecho rico em detalhes e, por isso, mais

relevante para a compreensão dos graus da Coniunctio do alquimista Dorneus, ou seja, a

produção da Quintessência, foi transcrito, quase que em sua totalidade, por Jung em

Mysterium Coniunctionis.

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I - UNUS MUNDUS: UM REGISTRO DA INFLUÊNCIA DO ALQUIMISTA

DORNEUS NA VISÃO COMPLETA DO MUNDO NATURAL DE C. G. JUNG

I. 1 - Introdução ao universo da alquimia, e sua importância para a Psicologia Analítica

"O conceito de processo de individuação por um lado,

e a alquimia por outro, parecem muito distantes entre si e

é quase impossível para a imaginação

conceber uma ponte que os ligue"1

Jung

Chega a parecer impossível estabelecer uma relação entre processo de individuação e

alquimia. Entretanto Carl Gustav Jung descobriu essa ligação. A frase acima no início do seu

livro Psicologia e Alquimia faz sutilmente uma confissão à sua genialidade. 2

Jung dava grande valor a todos os caminhos não racionais que, no passado, o homem

tentou explorar o mistério do inconsciente. É essa a razão do seu interesse, por exemplo, pelo

I Ching e outros jogos de tentativa de adivinhação do invisível e do futuro, como o Tarô e a

astrologia. Como cientista devoto que era, ele permanecia tempo suficiente com determinada

fase do seu trabalho, a fim de estabelecer- lhe validade empírica. Feito isso, ele era compelido

a novos estudos e a novas descobertas.

Porém, com relação à alquimia foi diferente. Jung passou seus últimos dez anos de

vida dedicando-se ao estudo desta arte "espagírica"3. Na alquimia ele tinha achado um campo

que valia a pena penetrar até o fundo, "ele praticamente exumou do monturo do passado, pois

era um campo esquecido e desprezado de investigação que foi assim, subitamente

ressuscitado" (VON-FRANZ, 1980, p.3) para o estudo da psique.

Von-Franz em seu livro Alquimia, assegura que o próprio Jung descobriu a alquimia

de uma forma totalmente empírica:

1 JUNG, C. G. Psicologia e Alquimia. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 1991, p. 17, § 1. 2 Embora a obra junguiana seja a que tenha abordado o simbolismo alquímico, do ponto de vista psicológico, à fundo, ela não foi a pioneira neste assunto. A obra Probleme der Mystik und ihrer Symbolik (1914) escrito pelo psicanalista Herbert Silbert (1881-1923) foi o primeiro grande estudo psicanalítico da alquimia (HANEGRAAFF, 1998, p. 512). Com ra zão também H. SILBERER denominou a conjunção a “idéia central” do processo alquímico. Segundo Jung, “este autor reconheceu corretamente o caráter simbólico por excelência da alquimia” (JUNG, 1990, p. 210, § 320). 3 A palavra " espagírica" é formada pela união de dois radicais grecos: “spao”= separar e “ageiro”= reunir, pois "que separa e reune".

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... disse-me certa vez que, com freqüência deparava-se com certos temas nos sonhos de seus pacientes que não era capaz de entender e foi, então, que um dia resolveu consultar velhos livros sobre alquimia e percebeu uma ligação. Por exemplo, certa paciente sonhou que uma águia estava, a princípio, voando alto no céu mas, depois, de repente, virou a cabeça, começou a comer as próprias asas e despencou por terra. (...) Então, um dia, ele descobriu o Manuscrito de Ripley, que dá uma série de ilustrações do processo alquímico - publicadas, em parte, em Psicologia e Alquimia - e onde há uma águia com cabeça de rei, que vira para trás e come as próprias asas (VON-FRANZ, 1980, p.3).

Assim, Jung dedicou longa atenção à alquimia, pois para a Psicologia Analítica, o

simbolismo alquímico estaria mais próximo do produto inconsciente que qualquer outro

material. À favor desta idéia, Von-Franz alega que a maioria dos materiais transmitidos pelas

gerações através dos mitos, contos de fadas, e muitos outros, sofrem o crivo crítico de nossas

consciências, ou seja, o “simbolismo transmitido pela tradição, é em certa medida,

racionalizado e expurgado das grosserias do inconsciente, os pequenos detalhes que o

inconsciente lhe apõe, por vezes contradições e obscenidades" (Ibidem, p. 5). Nesta

constatação, Von-Franz oferece o exemplo de São Nicolau von der Flüe, o santo suíço que

teve a visão de uma figura peregrina e divina que avançou para ele, ostentando um manto de

pele de urso e cantando uma música de três palavras. O relato original se perdeu e apenas se

conhecia a versão de seus biógrafos, que omitiu o detalhe do manto de pele de urso. As três

palavras seriam a Trindade, o peregrino divino seria Cristo, mas quanto a pele de urso, este

detalhe foi abandonado e, só com a casual redescoberta do relato original é que passou a ser

incluído. Ao relatar este fato, instintivamente uma pergunta vem à mente: afinal de contas,

qual o significado da pele do urso? Não obtendo uma resposta, uma primeira reação seria

optar por excluir este dado, o que, ironicamente, comprovaria a tese abaixo de Von-Franz:

É isso o que acontece a experiências originais que são transmitidas a gerações seguintes, pois é feita uma seleção e o que se ajusta ou coincide com o que já é conhecido passa adiante, ao passo que outros detalhes tendem a ser abandonados, porque parecem estranhos e não se sabe como lidar com eles (Ibidem, p.5).

Neste sentido, Jung encontrou na alquimia um campo no qual valia a pena se dedicar.

Ele resolveu ir à fundo nesta "arte" e descobriu que o alquimista ao se debruçar nas

experiências químicas, projetava o inconsciente na escuridão da matéria; o que ele atribuia

ser o comportamento particular do processo químico, era na verdade do seu próprio

inconsciente:

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... Na minha opinião, o praticante tinha certas vivências psíquicas enquanto praticava as experiências químicas no laboratório; no entanto, essas vivências se lhe afiguravam comportamentos específicos no processo químico. Como se tratava de projeções, naturalmente ele não sabia, no nível da consciência que a vivência nada tinha a ver com a matéria propriamente dita (isto é, tal como hoje a conhecemos). O alquimista vivenciava a sua projeção como uma propriedade da matéria; mas o que vivenciava na realidade era o seu inconsciente (JUNG, 1991 [A], p.256-257, § 346).

Assim, Jung observou que o processo alquímico tomado como um todo, oferecia uma

espécie de mapa do processo de individuação, ou seja, pelo menos em sua forma e estrutura,

o conjunto de imagens e tratados alquímicos fornecia o material necessário ao estudo do

processo de individuação:

... A alquimia me prestou, pois um serviço incalculavelmente grande, ao oferecer seu material, em cuja extensão minha experiência encontra o espaço suficiente e assim me possibilitou descrever o processo de individuação em seus aspectos mais importantes (JUNG, 1990, p.312, § 447).

É bastante compreensível que a alquimia tenha prestado o serviço de fornecer o

"material" necessário ao estudo do processo de individuação, partindo do princípio que a

Psicologia é uma ciência, que comparada à outras, carece de uma base fora de seu objeto.

Contra essa opinião, temos o preconceito materialista da Neuro-ciência que considera a

psique apenas um epifenômeno do processo orgânico do cérebro. Ainda que exista uma

inegável conexão entre a psique e o cérebro, para a Psicologia Profunda, este ponto de vista

não pode apresentar uma verdade exclusiva. Por exemplo, com relação aos complexos, estes

se comportam como personalidades fragmentárias inconscientes, isto é, separados da

consciência. Toda vez que estes são acionados, mudanças físicas também acontecem. Sobre

este aspecto, comenta Von-Franz, em seu livro Psique e Matéria:

... Aqui foi mostrado que Jung fez bem em não se precipitar na confirmação de conexões com o processo cerebral , pois mais tarde se tornou claro que estes complexos afetavam toda a esfera corpórea do que apenas o cérebro. Hoje isto é adotado como condição. Nós podemos falar de aspectos psicossomáticos de neuroses cardíacas, e assim por diante. Há neuroses que tipicamente afetam o funcionamento do coração, complexos neuróticos que tipicamente afetam o funcionamento digestivo, o funcionamento do fígado, o funcionamento da vesícula biliar. Se a psique inconsciente parece estar conectada com o corpo, então é natural pensar que ela está conectada com todo o corpo e não apenas especialmente com os processos no cérebro. Em propostas mais recentes, o cérebro parece ser apenas um de uma

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quantidade de sofisticados instrumentos, o qual é especializado em ordenar nossas percepções do mundo exterior.4

Embora seja bastante forte a crença de que a psique seja apenas um sistema intelectual

de conceitos lógicos; para Jung, uma vez que só temos alguma noção da matéria através de

imagens psíquicas, transmitidas pelos sentidos, a psique é a própria existência. Em outras

palavras, o indivíduo só estuda a psique através de seus próprios processos psíquicos.

Primeiro, em épocas remotas, a parte fundamental da vida psíquica aparentemente se situava

fora, nos objetos humanos e não humanos, achava-se projetada, por assim dizer. Com a

retirada das projeções, desenvolveu-se lentamente um conhecimento consciente. Com o

processo histórico da “des-animação” do mundo, tudo quanto se acha fora, ou seja, de caráter

divino ou demoníaco, para Jung, deve retornar à alma, ao interior do homem desconhecido,

ou seja, no confronto dialético do consciente e do inconsciente. Justamente a conciliação dos

opostos (conjunção) é um dos problemas que mais se ocupou a alquimia. Neste sentido, o

simbolismo alquímico se destaca para o psicólogo, na medida em que "há muita pouca

manifestação imediata do inconsciente, seja na história ou em qualquer lugar" (VON-

FRANZ, 1980, p.7).

É um tanto irônico que em pleno século XXI, ainda existam aqueles que apoiam a

teoria de que o inconsciente não tem base científica. Esta afirmativa se encontra no texto de

José Rodriguez Guerrero, em Exame de uma amálgama problemática: Psicologia Analítica e

Alquimia (2001), no qual o autor faz uma crítica da perspectiva junguiana em relação à

alquimia:

Como resultado, o inconsciente do indivíduo, conceito postulado originalmente por Freud e aqui chamado “inconsciente ordinário”, dependeria para Jung, não das linhas freudianas, senão de um elemento de grau superior: o inconsciente coletivo. Nem um nem outro tem base científica. (...) Com respeito ao intitulado “coletivo” se trata de um fator supostamente originado à margem do mundo sensível, supraindividual, transcultural, não submetido a um plano espaço-temporal. Tanto este como seus componentes virtuais, os Arquétipos, resultam assim totalmente inverificáveis.5

4 “… Here it was shown that Jung had done well not to rush into establishing connections with processes in the brain, for it later became clear that these complexes affect the whole bodily sphere rather than just the brain. Today this is taken for granted. We might speak of the psychosomatic aspect of heart neuroses, and so on. There are neuroses that typically affect the functioning of the heart, neurotic complexes that typically affect the digestive function, the liver function, the gallbladder function. If the unconscious psyche appears to be connected with the body, then it is natural to think that it is connect with the whole body and not just especially with processes in the brain. In more recent views, the brain appears to be just one of a number of sophisticated apparatuses, which is specialized in ordering our perception of external world”. VON FRANZ, Marie -Louise Psyche and matter. Massachusetts: Ed. Shamhala Publications, 1992, p. 3. 5 “Como resultado, lo inconsciente del individuo, concepto postulado originalmente por Freud y aquí llamado "inconsciente ordinario", dependería para Jung, no de las pautas feudianas, sino de un elemento de grado

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O autor reitera insistentemente a tese de que a teoria junguiana se apoia em

pressupostos não demonstráveis e, se esconde por trás de uma carga subjetiva que domina

diversos procedimentos propostos. Sob tais pressupostos junguianos não demonstráveis, o

autor assegura que não existem procedimentos sistemáticos e estáveis de verificacão e

controle, como podem ser os dados concludentes no âmbito científico. Ora, essa maneira de

abordar a Psicologia nos remete à uma época, onde os fenômenos da natureza só precisavam

ser desvelados em seus movimentos "perfeitos" passíveis de mensuração e cálculo. Tendo em

vista que Jung, como cientista, sempre privou pela postura experimental de observação para

comprovar se estas podiam ser corretamente verificadas em um marco de um estudo

científico, a consideração de que o inconsciente coletivo e seus componentes “virtuais” são

totalmente inverificáveis, apresenta-se um tanto injusta. Entretanto, para quem aborda a

psique, partindo de pressupostos recionalistas e intelectualistas, não percebe que sua forma de

abordagem é desproporcional em relação ao objeto de que se ocupa.

Um argumento de Guerrero, aparentemente mais sólido, contra a concepção junguiana

com relação à alquimia, é a de que toda a essência de uma etapa básica da história das

ciências se encontra reduzida à um “simples” ato inconsciente, regido por uma série de

“utópicos” simbolos universais e intemporais. Para este argumento, Guerrero defende a idéia

de que a alquimia, como uma disciplina completa e técnica, necessita de um correto estudo e

uma especialização por parte do investigador, visto que os tratados pertencem à diferentes

períodos históricos, determinados por um esquema cultural local e não transcultural, como

supõe o sistema proposto das imagens arquetípicas. Para Guerrero, Jung, nesse sentido, estaria

se utilizando de um método anti-histórico:

De igual modo se manifesta a necessidade de abordar o estudo dos alquimistas e de suas obras desde os modelos filosóficos que conheceram, assim como em um contexto histórico, religioso, social e cultural dos quais surgiram. A excessiva generalização nas conclusões é reconhecida como causa habitual de erro e, como resposta, se adverte a importância enorme de ter presente a identidade própr ia de cada texto e de cada alquimista na hora de estudá-lo, em vista da importante condição autodidata que a aquisição do conhecimento alquímico tem tido no desenvolvimento da história.6

superior: el inconsciente colectivo. Ni uno ni otro tienen base científica. Del inconsciente en el individuo ya hablamos al tratar a Freud. Respecto al tildado como "colectivo" se trata de un factor supuestamente originado al margen del mundo sensible, supraindividual, transcultural, no sometido a un plano espacio-temporal. Tanto él como sus componentes virtuales, los Arquetipos, resultan así totalmente inverificables.” GUERRERO, José Rodriguez. Examén de una amalgama problemática : psicología analítica y alquimia.“Azogue”, nº 4, 2001, não paginado. Texto disponível na Internet: http://idd00dnu.eresmas.net/jung.htm. 6 “De igual modo se manifiesta la necesidad de abordar el estudio de los alquimistas y de sus obras desde los modelos filosóficos que conocieron, así como en el contexto histórico, religioso, social y cultural del cual surgieron. La excesiva generalización en las conclusiones es reconocida como causa habitual de error y, como

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Refutar a afirmação acima, seria quase o mesmo que retomar toda a teoria junguiana

em seus pressupostos mais básicos; algo que inevitalmente será realizado neste capítulo ao

indicar a influência do alquimista Dorneus, nas trocas epistolares entre Jung e o físico

Wolfgang Pauli, em busca de uma visão completa do mundo natural. Porém, inicialmente,

nota-se que para o leigo, que não tem a possibilidade de observar de que maneira se

comportam os complexos autônomos, em geral se inclina a atribuir, em consonância com a

tendência mais comum, a origem dos conteúdos psíquicos ao mundo ambiente.

Pode-se considerar, por exemplo, como um dos maiores méritos de Jung, o de haver

reconhecido, como conteúdos arquetípicos da alma, as representações primordiais coletivas

que estão na base das diversas formas de religião. Sobre este aspecto, considera Jung:

...O ponto de vista religioso coloca obviamente a ênfase naquilo que imprime, o impressor, ao passo que a psicologia ciêntífica enfatiza o tipo (...), o impresso, o qual é a única coisa que ela pode apreender. O ponto de vista religioso interpreta o tipo como algo decorrente da ação do impressor; o ponto de vista científico [da psicologia] o interpreta como símbolo de um conteúdo desconhecido e inapreensível. Uma vez que o tipo é menos definido, mais complexo e multifacetado do que os pressupostos religiosos, a psicologia, com seu material empírico, é é obrigada a expressar a forma mediante uma terminologia que independe de tempo, lugar e meio (JUNG, 1991 [A], p.29, § 20).

Nesse sentido, na linguagem científica, o termo Si-mesmo não se refere nem a Cristo,

nem a Buda, mas à totalidade das formas que representam, e cada uma dessas formas é um

símbolo do Si-mesmo. Por mais obscuro que pareça o núcleo histórico dos fenômenos, às

exigências modernas de exatidão em relação aos fatos, não deixa de ser verdadeiro que os

efeitos psíquicos grandiosos que se prolongam através dos séculos, não surgiram sem uma

causa aparente. Contra essa concepção Jung, assegura a necessidade do distanciamento para

chegar-se à um desdobramento e à uma formulação dos conteúdos “revelados”. O

conhecimento dos fundamentos arquetípicos universais permite uma comprensao mais

profunda das representações primordiais coletivas. Segundo Jung, é muito provável que a

semelhança universal entre os processos psíquicos “se deva à uma regularidade igualmente

universal, da mesma forma pela qual o instinto que se manifesta nos indivíduos representa a

expressão parcial de uma base instintiva universal” (JUNG, 1988, p. 5, §12). O fato é que

respuesta, se advierte la importancia enorme de tener presente la identidad propia de cada texto y de cada alquimista a la hora de estudiarlo en vista de la importante condición autodidacta que la adquisición del conocimiento alquímico ha tenido a lo largo de la historia.” GUERRERO, José Rodriguez. Examén de una amalgama problemática: psicología analítica y alquimia.“Azogue”, nº 4, 2001, não paginado. Texto disponível na Internet: http://idd00dnu.eresmas.net/jung.htm.

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certas idéias ocorrem quase em toda a parte e em todas as épocas, podendo formar-se de um

todo espontâneo, independente da migração e da tradição:

…Os temas arquetípicos provêm, provavelmente, daquelas criações do espírito humano transmitidas não só por tradição e migração como também por herança. Esta última hipótese é absolutamente necessária, pois tais imagens arquetípicas complexas podem ser reproduzidas espontaneamente, sem qualquer possibilidade de tradição direta (JUNG,1999 [B], p.56, § 88).

A qualidade herdada é a possibilidade formal de produzir as mesmas idéias, ou pelo

menos, idéias semelhantes. Enquanto para um historiador, o raciocínio instintivo seria

argumentar que, para realizar uma pesquisa comparativa, seria preciso entender como foram

escritos os textos, a psicologia analítica foca a atenção no que foi impresso, nas

representações primordiais coletivas que independem de tempo, lugar e meio. No entanto,

parece que estes conceitos básicos da teoria junguiana não estão claros até mesmo para

analistas junguianos. Este é o caso do alemão Wolfgang Giegerich, que publicou um artigo

referente à ontogenia e à filogenia sob o título Ontogenia = Filogenia, Critica fundamental da

Psicologia Analítica de Erich Neumann.

Erich Neumann, discípulo e colaborador de C. G. Jung, em sua obra mais famosa

História da origem da consciência, apresenta um grande esquema do desenvolvimento

psíquico, da humanidade e do indivíduo, baseado na relação entre a psicologia e a mitologia,

cujo o próprio prefácio foi elaborado de maneira extremamente positiva pelo próprio Jung.

Este chega admitir que as conclusões e percepções de Neumann “estão entre as mais

importantes já alcançadas nesse domínio” (JUNG, p. 11. In: NEUNMANN, 2003).

Com relação ao artigo, a questão fundamental, que diretamente deprecia a obra de

Neumann é: “há na história cultural uma ‘seqüência regular’ de estágios desenvolvimento da

consciencia?”7 Segundo o autor, com algum grau de certeza, a história necessariamente e, de

forma não ambígua, não conduziu do matriarcado ao patriarcado, do uroboros através da

separação dos pais primal e do esforço do herói à transformação.

A confusão do autor está no fato de desprezar que, para a Psicologia Analítica, o que

se transmite de geração a geração desde os primórdios é a tendência da psique em formar

representações simbólicas, padronizadas em seu sentido genérico, mas extremamente

variáveis em seus detalhes. Esse fenômeno origina um inesgotável universo de formas míticas 7 “Is there in cultural history a "regular sequence" [3] of developmental stages of consciousness?” GIEGERICH, Wolfgang. Ontogenia = Filogenia, Critica fundamental da Psicologia Analítica de Erich Neumann (1975). Acesso em: http://web.utanet.at/salzjung/ontogeny.htm .Versão original GIEGERICH, Wolfgang. SPRING - um anuário da psicologia arquetípica e do Pensamento Junguiano. Dallas: Spring Publications,1975, p.110-129.

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fundadas sobre umas poucas configurações matriciais arcaicas, comuns a toda espécie

humana. Isso explica, ironicamente, o argumento usado por Giegerich, ou seja, ser possível

encontrar desenvolvido um mito do sol-herói, integrado inteiramente na vida ritual entre as

culturas antigas e primitivas. Inversamente, todos os períodos posteriores no desenvolvimento

cultural de civilizações individuais e da humanidade têm naturalmente seus mitos de criação8.

O fato é que os mitos da criação não estão presentes somente nas culturas supostamente de

idades antigas, mas podem estar presentes no tema de um sonho do homem do século XXI.

Como o próprio Jung assegura no prefácio de sua obra mais importante Mysterium

Coniunctionis:

... Propriamente qualquer um estranhará com razão na primeira vez quando certas formas simbólicas do antigo Egito são colocadas em íntimo relacionamento com conteúdos modernos da religião popular da Índia e também com o material onírico tirado de sonhos de um europeu que nada suspeita. O que parece difícil para um historiador e o filólogo não representa obstáculo para o médico. (...) Se ele for psiquiatra, então nem se admirará com a semelhança fundamental dos conteúdos psicóticos, quer provenham da Idade Média ou da Contemporânea, da Europa ou da Austrália, dos indianos ou dos americanos. Os processos fundamentais são de natureza instintiva, e por isso universais e extremamente conservativos. O pássaro tecelão constrói o ninho de sua maneira característiva, pouco importanto onde se encontre; e, como não há razão para supor-se que há 3.000 anos tenha construído ninho diferente, também não há nenhuma probabilidadede que ele altere seu estilo nos próximos milênios (JUNG, 1997, p.XVII).

Da mesma forma, os mitos não apareceram na história precedidos e seguidos por

outros mitos, estabelecendo uma seqüência exata de imagens míticas análogas aos estágios

arquetípicos da consciência. Por isso, novamente, podemos citar Giegerich quando afirma,

embora de modo depreciativo, que Neumann não mostra que o mito da criação precede o mito

do herói ou, que o último, está seguido pelo mito da transformação; ou seja, “historicamente

falando, qualquer mito pode ocorrer em qualquer altura.”9 A razão profunda dessa

“desordem” é sem dúvida “a ‘intemporalidade’ do inconsciente, uma vez que a ordem

sequencial consciente é coexistência e simultaneidade no inconsciente”10.

8 “For how then would it be possible to find, even among primitives (among whom according to Neumann "the earliest stages of man's psychology" prevail), full-fledged hero-myths, that is to say myths presupposing a considerably developed consciousness, according to the System in question? (...) Conversely, all late periods in the cultural development both of individual civilizations and of mankind naturally have their creation myths, which allegedly correspond to early ages.” GIEGERICH, Wolfgang. Ontogenia = Filogenia, Critica fundamental da Psicologia Analítica de Erich Neumann (1975). Acesso em: http://web.utanet.at/salzjung/ontogeny.htm. 9 “Neumann does not show that the creation myth precedes the hero myth or that the latter is followed by the transformation myth.(…), historically speaking, any mytheme may occur at any time” Loc. cit. 10 JUNG, C. G. Ab-reação, análise dos sonhos, transferência. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 1999, p.124,§ 468, nota 10.

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A psicologia enquanto ciência empírica não vai além da possibilidade de constatar, à

base de uma pesquisa comparativa, a produção espontânea do inconsciente e,

consequentemente, a existência de certos símbolos psíquicos e, em última instância, de

padrões arquetípicos. O fato de diferentes arquétipos poderem ser identificados pela

psicologia do inconsciente, demonstra que existe um processo de desenvolvimento da

consciência, que de modo algum é linear. Mesmo o processo de individuação, só pode

estabelecer um esquema típico da sequência de fases, de modo genérico. A experiência é

constituída, na prática, de numerosos casos individuais que representam todas as variantes

possíveis, do mesmo tema fundamental. Sendo assim, constata-se uma ordem totalmente

arbitrária no que diz respeito à sucessão dos diversos estados, apesar de uma concordância

geral acerca dos princípios fundamentais. Por isso, uma descrição condensada deste só é

possível de maneira esquemática. Como Edinger assegura:

... o processo de alternância entre a união ego-Si-mesmo e a separação ego-Simesmo parece ocorrer de forma contínua ao longo da vida do indivíduo, tanto na infância quanto na maturidade. Na verdade esta fórmula cíclica (ou melhor, em forma de espiral) parece exprimir o processo básico de desenvolvimento psicológico do nascimento à morte (EDINGER, 2000, p. 24).

Trata-se do sistema de auto-regulação da psique humana. Logicamente uma redução

deste sistema à dados históricos e personalisticos é cientificamente impossível. Desta maneira

novamente, podemos citar Giegerich quando afirma que “a consciência matriarcal e patriarcal

não pode ser mostrada sucedendo na história com o regularidade de uma lei”11. Mas,

inadvertidamente, Giegerich peca quando faz a afirmação logo abaixo:

... se a fase uroborica, a separação dos pais do mundo, etc., são significados como estritamente simbólicos, isto também significaria que as fases e os estágios em si mesmos, e certamente a noção inteira da evolução e a filogenia no geral, deve do mesmo modo ser tomados simbolicamente e não como uma passagem remetendo aos processos históricos.12

Um dos tipos mais comuns de falácia, trata-se de alterar convenientemente o

argumento a ser combatido, de forma a torná- lo tão indesejável ou, ilógico, quanto possível. O

autor faz nesta afirmação uma confusão com relação à maneira científica da Psicologia

11 “So, too, matriarchal and patriarchal consciousness cannot be shown to ensue in history with the regularity of a law.” Loc. cit. 12 “Moreover, if the uroboric phase, matriarchy, the separation of the world parents, etc., are meant as strictly symbolic, this would also mean that the phases and stages themselves, indeed the entire notion of evolution and phylogeny in general, are likewise to be taken symbolically and not as in any way referring to historical processes.” Loc. cit.

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exercer sua função. Sabe-se que nada há de espantoso no fato de o inconsciente aparecer

projetado e simbolizado, pois, de outra forma, nem poderia ele ser percebido. Sendo assim,

somente através da identificação e análise do simbolo, que a Psicologia tem condição de

identificar em que direção aponta a libido. Posteriormente, tal tipo poderá comprovadamente

ser um tendência da psique (libido-energia psíquica) à formar específicas representações

simbólicas; identificando-se aí o padrão arquétipico por detrás destas. Somente, neste sentido,

o psicólogo tem condições de identificar diferentes tendências psíquicas. Tais tendências não

são simbólicas. Podemos descrevê- lo em linguagem racional e científica, mas nem de longe

exprimiríamos seu caráter vital. Pelo contrário, são a mais alta voz da natureza no homem. O

fato é que se subestima tanto a dependência da consciência ao inconsciente que se chega à

considerar a influência deste como apenas “simbólica”. De qualquer forma, Giegerich

considera que “a mera tentativa de procurar na história por correspondências aos padrões

mitológicos que Neumann estabelece, pode já ser considerada redutível”13. Claramente ao

qualificar o método de Neumann como “redutivo”, o autor remete ao "reducionismo", que

nas últimas décadas, adquiriu o status de termo de baixo calão, em certos meios acadêmicos.

Entretanto, o reducionismo é analítico e, reciprocamente, qualquer análise que mereça este

nome é uma instância do reducionismo. Na prática, utilizamos este método para quase tudo,

não somente nos domínios do intelecto. O próprio sentido humano da visão funciona por

reducionismo. A imagem é processada em diversas camadas de células, de tal forma, que

diversos aspectos vão sendo extraídos da imagem original. Também o sentido humano da

audição baseia-se em uma decomposição espectral, que decompõe (analisa) os sons em suas

diversas freqüências. De maneira semelhante, este é o modo pelo qual a Psicologia Analítica

funciona. Como é humanamente impossível obter uma imagem completa da psique, visto que

o único instrumento que dispomos para analizar o objeto é a própria psique, tratamos de

decompôr e analisar as suas projeções, isto é, a aparência de objeto, de tal forma que diversos

aspectos vão sendo extraídos da imagem original. Isso possibilita a constatação da tendência

da psique em formar representações simbólicas, padronizadas em seu sentido genérico e,

consequentemente, o estabelecimento de padrões arquetípicos no desenvolvimento da

consciência. Nesse sentido, a Psicologia Analítica, à medida em que amplia o seu

conhecimento científico em relação à psique, acrescentando uma ampliação psicológica de

13 “…the mere attempt to search history for correspondences to the mythological patterns Neumann establishes might already be considered reductive.” Loc. cit.

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âmbito maior em relação às ampliações simbólicas, produz, simultaneamente, a ampliação da

consciência da própria humanidade em relação à uma única e abrangente psique.

Por outro lado, afirmar que Giegerich possa estar sendo reducionista, na citação acima,

se configura bastante acertado. Giegerich reduz o conceito de arquétipo à um padrão

mitológico, enquanto que, as representações simbólicas que afloram na psique não se reduzem

apenas aos mitos. Além disso, certamente, as imagens arquetípicas que afloram com tanta

frequência nos produtos do inconsciente, tem seus predecessores na História, sendo possível

assim identificar as configurações matriciais arcaicas, comuns a toda espécie humana.

Entretanto, os simbolos que afloram nestes processos históricos remetem à transições

psicológicas e não à transições simbólicas, como assegura Giegerich. Esta é a razão de Jung,

por exemplo, escrever sua obra AION, estudos sobre o simbolismo do Si-mesmo. Nesta obra,

Jung procura ilustrar a transformação da situação psíquica operada no interior do “éon

cristão”, recorrendo aos símbolos cristãos, gnósticos e alquimistas do Si-mesmo.

De qualquer maneira esta discussão se mostra necessária na presente tese, visto que

esta dissertação analisa, sob a ótica junguiana, simbolismos alquímicos presentes nas fases

alquímicas. Certamente, a alquimia, ao atribuir fases aos processos alquímicos, demonstra à

Psicologia Analítica, que formas simbólicas se sucedem nestas fases, estabelecendo um

modelo, tanto para os processos alquímicos, como para os processos psicológicos necessários

à uma Coniunctio. O Rosarium philosophorum14, por exemplo, por causa do seu

entrelaçamento físico-espiritual, era do interesse particular de Jung. Aliás, Jung talvez tenha

citado este em seus escritos sobre a alquimia mais do que qualquer outro texto. Especialmente

em sua obra Psicologia da Transferência, Jung analisa o conteúdo simbólico presente na série

das gravuras do Rosarium philosophorum e demonstra de que maneira estes simbolismos

alquímicos remetem à processos psíquicos no processo de individuação. Jung, entretanto,

chama a atenção para o fato de que o leitor possa cair no erro de achar que o desenvolvimento

do processo, tal como é descrito na obra, represente o esquema geral do fenômeno. Sendo

14 O Rosarium philosophorum foi imprimido originalmente como a parte II do De Alchemia Opuscula complura veterum philosophorum...Frankfurt, 1550. Também foi publicado no segundo volume da coleção de textos alquímicos de diversos autores Artis Auriferae (1593). O Rosarium contém uma série de 20 gravuras: “O texto é dividido nas seções associadas com estas vinte ilustrações. Estas seções introduzem as idéias que surgem do conteúdo simbólico das gravuras, as quais tecem estas observações com várias citações de sábias autoridades na alquimia, frequentemente usando trechos longos de outros escritores da alquimia. Assim o Rosarium é um recolhimento do material dentro de uma determinada estrutura, ao invés de ser inteiramente um enunciado original de idéias da alquimia” (MCLEAN, Adam. A Commentary on the Rosarium philosophorum. Texto disponível na internet: http://www.alchemywebsite.com/roscom.html). O Rosarium, por causa do seu entrelaçamento físico-espiritual, era do interesse particular de Jung, Entretanto, em Psicologia da Transferência Jung mostra somente 11 das 20 ilustrações.Talvez Jung não tenha tido acesso à uma edição completa do livro, pois como frequentemente ocorre no decorrer dos séculos, algumas destas ilustrações podem ter sido removidas na sua cópia.

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assim, Jung alerta para que o empreendimento deva ser considerado como uma simples

tentativa, o qual ele próprio não gostaria de conferir caráter conclusivo:

Nós nos movemos aqui no campo de singularidades individuais, que não se prestam à comparação. O que podemos, sem dúvida, é por um pouco de ordem nesse processo, mediante a ajuda de certas categorias suficientemente amplas. Podemos descrevê-lo ou pelo menos esboçá-lo por meio de analogias apropriadas; sua essência profunda, porém é a singularidade da experiência individual, que ninguém pode captar de fora, mas na qual está envolvido aquele que a experiencia. A série de gravuras que nos serviu de fio de Ariadne é uma dentre muitas. (...) Mas nenhum desses esquemas seria capaz de exprimir totalmente a multiplicidade infinita das variações individuais, que, todas, têm a sua razão de ser. (...) A importância prática do fenômeno, porém, é de tal ordem, que a tentativa se justifica, por mais que sua imperfeição possa dar margem a desentendimentos [sem grifo no original] (JUNG, 1999[C], p.186, § 538).

Sendo assim, o estabelecimento de uma ordem lógica, ou mesmo a simples

possibilidade de ordenação, não nos diz que uma coisa seja assim ou assim; apenas ilustra um

determinado modo de observação. Este dado é particularmente importante com relação à

alquimia, a medida que, o que se atribuía à transformação misteriosa da matéria, se tratava na

realidade de projeções psíquicas. Como se sabe, não é o sujeito que projeta, mas o

inconsciente. Sendo assim, há anteriormente um fator ordenador para tais projeções, que são

arquetípicas. Claro que então, como é evidente, só se pode conceber uma causa no espaço e

no tempo e, por falta de uma causa demonstrável, caimos na tentação de postular uma causa

transcendental. Entretanto, segundo Jung:

... uma “causa” só pode ser uma entidade demonstrável. Uma causa “transcendental” é uma contradictio in adiecto [uma contradição nos termos], porque o que é trancendental por definição não pode ser demonstrado. (JUNG, 2002 [A], p. 23, § 856).

Se associarmos os arquétipos ao contingente, este último assume o aspecto específico

de uma modalidade que, segundo Jung, “tem o significado funcional de um fator constitutivo

de mundo. O arquétipo representa a probabilidade psíquica, porque retrata os acontecimentos

ordinários e instintivos em uma espécie de tipos” (JUNG, 2002 [A], p.80, § 954). O problema,

uma vez que os arquétipos constelam-se na psique, poder-se-ia pensá- los apenas em termos

psíquicos. Esta questão, fundamental da teoria junguiana, remete à série de correspondências

entre Jung e o físico Wolfgang Pauli, algo que inevitalmente será realizado neste capítulo ao

indicar a influência do alquimista Dorneus, nas trocas epistolares entre Jung e Pauli, em busca

de uma visão completa do mundo natural.

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Inicialmente, entretanto, pode-se considerar que, o fato de se poder identificar uma

modificação na consciência e, um conseqüente desenvolvimento da consciência pela

psicologia do inconsciente, demonstra que existe um processo intencional de diferenciação

psicológica, que tem como fim o afastamento do indivíduo da base coletiva. Isso de modo

algum estabelece uma meta para o desenvolvimento psíquico; os processos podem possuir um

caráter proposital, sem ter a ver com uma meta pré-concebida. A teoria junguiana considera

que a libido, como energia vital num sentido amplo, tem como finalidade principal o

desenvolvimento da vida, nos seus aspectos mais fundamentais, como a sobrevivência e a

reprodução. Mas, quando tais exigências básicas estão satisfeitas, a energia em excesso pode

ser reinvestida em outras atividades, como as produtivas e culturais. Esta transposição da

energia da libido não é realizada simplesmente, por meio de um ato de vontade e livre arbítrio

do eu, mas à autonomia das projeções arquetípicas:

... São fenômenos espontâneos que escapam ao nosso arbítrio e por isso podemos atribuir-lhes uma certa autonomia. Pela mesma razão, devemos considerá-los não só como objetos em si, mas como sujeitos dotados de leis próprias. Podemos, naturalmente descrevê-los e até certo ponto interpretá-los como objetos, sob o ponto de vista da consciência (...).Entretanto, se levarmos em conta esta autonomia, as representações a que nos referimos devem ser tratadas como sujeitos, ou seja, devemos reconhecer seu caráter espontâneo e também a sua intencionalidade, i. É, uma espécie de consciência e de “liber arbitrum” [livre arbítrio] (JUNG, 2001, p. 5, § 557).

Depois de uma fase de gestação, produz-se, ao nível do inconsciente, um símbolo que

é capaz de atrair a libido, desviando-a da sua direção própria. Primeiro, em épocas remotas, a

parte fundamental da vida psíquica aparentemente se situava fora, nos objetos humanos e não

humanos, achava-se projetada, por assim dizer. Ao longo da historia, a atividade ritual

conseguiu deslocar uma parte da energia vital do seu caminho ins tintivo, afastando assim o

homem do estado animal e, desenvolvendo as dimensões que conhecemos como consciência e

vontade. O posicionamento consciente e superior à esfera turbulenta do corpo corresponde ao

processo em si positivo da emancipação da consciência diante da supremacia do inconsciente.

Mas isto apenas representa, alertou Jung, um sucesso precário, sendo estas faculdades muito

menos potentes do que costumamos pensar: os seres humanos continuam a ter uma grande

necessidade do poder transformador do símbolo:

... Uma das tarefas mais importantes da higiene mental consiste em prestar continuamente uma certa atenção à sintomatologia dos conteúdos e processos inconscientes, uma vez que a consciência está continuamente exposta ao risco da

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unilateridade (...). Quanto mais civilizado, mais consciente e complicado for o homem, tanto menos ele será capaz de obedecer aos instintos. As complicadas situações de sua vida e as influências do meio ambiente se fazem sentir de maneira tão forte, que abafam a débil voz da natureza. Esta é substituída então por opiniões e crenças, teorias, e tendências coletivas que reforçam os desvios da consciência. Em tais casos é necessário que a atenção se volte, intencionalmente, para o inconsciente. Por isso é de particular importância que não se pense nos arquétipos como imagens fantásticas que passam rápidas e fugidias, mas como fatores permanentes e autônomos, coisas que o são na realidade (JUNG, 1988, p. 18-19, § 40).

Uma vez que a consciência está continuamente exposta ao risco da unilateridade, a

função complementar ou compensadora do inconsciente faz, porém, com que estes perigos

possam ser evitados até certo ponto. Aparentemente, no entanto um movimento capaz de

alterar o processo e deslocar uma parte da energia vital em direção às necessidades instintivas

e inconscientes, se configura um dilema para o homem moderno. Destituídos da psique

primitiva, já não se percebe qualquer vestígio de uma certa magia em nada que se diz respeito

ao seu dia a dia. Entretanto, esta postura, comparada à do passado antigo, proporcionou uma

maneira produtiva e eficaz de lidar com a realidade. O homem primitivo nunca buscou refletir

a respeito de seus atos, “a verdade é que os homens do passado não pensavam nos seus

símbolos. Viviam-nos, e eram inconscientemente estimulados pelo seu significado” (JUNG,

1964, p. 81). Sendo assim, ganha-se ou perde-se em relação ao passado?

A resposta é que, com relação ao tratamento da realidade externa, é completamente

errôneo aplicar esse modo primitivo; mas é a abordagem correta para lidar com o

inconsciente. Para Edinger:

...precisamos aprender a incorporar categorias primitivas da experiência à nossa visão de mundo sem negar ou prejudicar as categorias conscientes, de carácter científico, de espaço, tempo e causalidade. Devemos aprender a aplicar os modos primitivos de experiência de forma psicológica, ao mundo interno, e não fisicamente, em nossas relações com o mundo externo. A atitude primitiva em nossa relação com o mundo externo é sinônimo de superstição, mas ser primitivo com relação ao mundo interno é sinônimo de sabedoria (EDINGER, 2000, p. 147).

Com o processo histórico da “des-animação” do mundo, tudo quanto se acha fora, ou

seja, de caráter divino ou demoníaco, para Jung, deve retornar à alma, ao interior do homem

desconhecido, ou seja, no confronto dialético do consciente e do inconsciente. Justamente a

conciliação dos opostos (conjunção) é um dos problemas que mais se ocupou a alquimia.

Sobre este aspecto, considera Jung:

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... A imagem da “coniunctio” deve sem dúvida ser contemplada sob este aspecto: a união no plano biológico, como símbolo da “unio oppositorum” (união dos opostos) em seu sentido mais elevado. É o mesmo que declarar, por um lado, que a união dos opostos é tão essencial para a arte régia, quanto a coabitação para a razão comum, e por outro, que o “opus” é uma analogia da natureza, o que faz com que a energia do instinto se desloque, pelo menos em parte para uma atividade simbólica. A criação de tais analogias libera o instinto e toda a esfera biológica da pressão de conteúdos inconscientes. A ausência do símbolo, porém, sobrecarrega a esfera do instinto (JUNG, 1999[C], p. 118, § 460).

Alguns alquimistas pressentiram que o que estavam em busca era algo mais que o

"ouro vulgar". O alquimista Gerardus Dorneus, que será especificamente abordado neste

trabalho, era um deles. Dorneus foi um alquimista paracelsiano do final do século XVI, que

exclamava: "Transformai-vos de pedras mortas em pedras filosofais vivas"15, exprimindo,

segundo Jung, "claramente a identidade daquilo que está no homem com aquilo que está

escondido na matéria" (JUNG, 1991[A], p.281, § 378). O Alquimista Gerardus Dorneus foi

daqueles que mais se ocupou com a problemática da Conjunção. Para este alquimista no

tratado intitulado A Filosofia meditativa, a Conjunção Alquímica, em especial, foi descrita e

subdividida em três graus, que podem ser entendidos como três etapas necessárias à uma

"Conjunção perfeita".

I. 2. – Os graus da Coniunctio do alquimista Gerardus Dorneus

Dorneus trabalha com três categorias nestes três graus da Coniunctio: espírito, alma e

corpo. Resumidamente no primeiro grau da Coniunctio, tem-se a unio mentalis, que

corresponde a união (conjunção) do espírito mais a alma. O segundo grau consiste em reunir

a unio mentalis com o corpo. Finalmente no terceiro grau da Coniunctio ocorre a conjunção

completa, a saber, a união com o unus mundus (mundo uno).

Inicialmente é necessário advertir que os conceitos espírito, nous (espírito do universo)

e pneuma são utilizados de maneira promíscua no sincretismo. O significado mais antigo de

pneuma é vento, sopro, logo um fenômeno aéreo; daí a equivalência do ar e pneuma16.

Segundo Jung:

15 DORNEUS, Gerardus. Theatrum Chemicum, I, 1602, p.267. Apud: JUNG, C. G. Psicologia e Alquimia. Rio de Janeiro: Vozes, 1991, p.281, § 378. 16 Anaxímenes de Mileto, terceiro e último filósofo da escola jônica antiga, propõe o ar como elemento fundamental da natureza, a partir de cuja a complexificação se formam todas as coisas. Embora pouco se saiba sobre a sua vida, ele é contudo citado com frequência para dizer que foi sua a proposição do ar como elemento básico na formação de tudo.

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...Pneuma, como também spiritus, significa originariamente "ar em movimento" (vento), por isso a designação como "ar" parece arcaica ou então intencionalmente física. Mas na realidade pneuma deve ser tomado na significação de espírito (...) (JUNG, 1997, p.131, § 156).

O termo "nous" foi usado pelos primeiros Filósofos. Anaxágoras (c. 500 - 428 a.C.),

nativo de Clazomene, filósofo grego pré-socrático da escola jônica nova, caracterizou-se por

ter concebido todas as coisas da natureza por um número indefinido de pequenas partículas

homogêneas invariáveis, a que chamou espermas. Dotou uma destas partículas de

inteligência (Nous) a qual é ordenadora de tudo. O Nous, na filosofia de Anaxágoras ainda

que signifique Inteligência, é também força motriz, todavia com ação racional.

Dadas as circunstâncias em que Nous foi usado, tem-se preferido não traduzir o

termo, citando-o simplesmente no original grego.O nous para designar a mente superior é

facilmente confundido com a função intelectual, de modo que se faz necessário esclarecer

que se trata antes do spiritus rector, o espírito que rege e orienta. Entretanto alerta Jung:

Em muitas passagens é incerto se spiritus (ou esprit, tal como BERTHELOT traduziu do árabe) significa espírito no sentido abstrato da palavra. Isto ocorre com alguma certeza em DORNEO (séc. XVI), pois este diz que Mercurius possui em si mesmo a qualidade de um espírito incorruptível, semelhante à alma; por sua incorruptibilidade é designado intellectualis (pertencente portanto ao mundo intelligibilis!) (JUNG, 2003, p. 210, § 264).

Dorneus entende por espírito todas as capacidades morais mais elevadas, como

inteligência, conhecimento e decisão moral. Para Dorneus, o espírito confere à alma certo

influxo divino e o conhecimento de uma ordem superior do mundo.

Alma (anima) como corpo sutil significa algo de imaterial ou “mais sutil” do que o ar.

Sua qualidade essencial é a de vivificar e de ser viva. Por isso é apreciável sua representação

como princípio de vida. Segundo Jung, este fato:

…corresponde a uma distinção que se fazia, na Idade Média, entre “corpus” (corpo) e “spiramen” (respiração); o que se entendia por “spiramen” Era muito mais que um simples “sopro”. O que se designava desse modo era a anima, que é uma espécie de sopro (…). Tal sopro é, antes de mais nada, uma atividade do corpo, entendida porém como realidade autônoma, e constituindo uma substância (ou hipóstase) paralela ao corpo. Com isto se queria dizer que o corpo vive, sendo a vida representada como uma entidade autônoma associada, ou seja, como uma alma independente do corpo (JUNG, 1999 [A], p. 20, § 197).

A oposição entre espírito e a alma provêm da subtilidade material desta última. Ela

está mais próxima do corpo (physis) e é mais densa e grosseira do que o espírito:

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Conforme antiga tradição, a alma anima o corpo, como ela por sua parte é animada pelo espírito. Ela tende para o corpo e para tudo o que é corpóreo, sensível emocional. Ela está aprisionada "nas cadeias" da Physis (natureza) e almeja "praeter physicam necessitatem", isto é, para além da necessidade física (JUNG, 1990, p.228, § 338).

Muito também se tem confundido as acepções em torno do conceito de alma.

Considerem alma, anima e psique sinônimos, característico da visão magico-alquímica na

concepção junguiana. Neste sentido, muitas são as associações em torno do objeto primeiro

da psicologia, alguns aproximam o termo alma ao espírito (como ocorreu com as primeiras

interpretações de Platão) ou outros, influenciados pela psicologia que valoriza cérebro como

o principal instrumento, atribuem à alma mais uma conotação materialista (como ocorreu

com as interpretações do trabalho de Aristóteles). Sobre esta segunda vertente, critica Jung:

A história impiedosamente recuperou o que o compromisso alquímico havia deixado sem terminar: inesperadamente o homem físico passou para o primeiro plano e se apossou da natureza em uma medida imprevisível. Juntamente com ele também a sua alma empírica se tornou consciente, ao ter-se libertado do cerco do espírito e ao ter tomado uma forma de tal modo concreta que os traços individuais dela até se tornam objeto de observação clínica. Há muito tempo ela já não é um princípio vital ou qualquer outra abstração filosófica, mas até se tornou suspeita de ser apenas um epifenômeno da química cerebral. Também já não é o espírito que lhe dá vida, antes até se suspeita que o espírito deva sua existência essencialmente à atividade psíquica ( JUNG, 1990, p.301, § 430).

Aproximados, assim, as categorias de espírito, e alma das suas acepções,

respectivamente, nous, pneuma e anima, psique; passamos para a última categoria: corpo.

Por corpo compreende-se physis, elemento, substância, ou seja, relacionado à natureza.

I. 3 – Sobre a influência de Dorneus nas correspondências Jung-Pauli

Em Mysterium Coniunctionis, os "três graus" da conjunção na visão de Dorneus são

minuciosamente estudados por Jung. Paralelamente à esta fase, Jung estava envolto em uma

série de correspondências com o físico Wolfgang Pauli. Estas correspondências se

estenderam de 1932 a 1953, as quais estão atualmente documentadas e editadas em

"Wolfgang Pauli y Carl G. Jung : un intercambio epistolar - 1932- 1958"( Carl A. Meir).17

17 C. A. Meier (1905-1995), psiquiatra e psicoterapeuta, conheceu na intimidade os intercâmbios ocorridos entre Pauli e Jung, tendo também participado ativamente com a elaboração de seus próprios trabalhos e reflexões a respeito. Foi co-fundado do Instituto C. G. Jung, em Zurique, e tamb ém ocupou a cadeira, na qualidade de sucessor de Jung, de Profesor Honorário de Psicologia no Instituto Federal Suiço. A obra em questão foi

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Pauli e Jung buscavam uma visão mais completa do mundo natural, que fosse

proporcionada por um alargamento dos horizontes epistemológicos. Assim, defendia-se uma

mudança na linha demarcatória entre o que deve estar ao alcance do nosso conhecimento

(físico, concreto, apreensível) e o que não está ao nosso alcance (metafísico, irrepresentável).

Segundo César Rey Xavier, autor da dissertação de mestrado (2001) "Encontros e permutas

entre dois pensadores- um estudo sobre as correspondências entre Wolfgang Pauli e Carl

Gustav Jung", na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo18:

... Muitos são os indicadores de que os estudos e pesquisas que Jung vinha efetuando, especialmente na confecção de seu de seu “Mysterium Coniunctionis”, paralelamente àquela fase das cartas, tenham-lhe dado um forte respaldo para suas novas, e, de início, desconcertantes assertivas para a psique. (XAVIER, 2001, p.175)

Coincidentemente, neste período, o estudo dos tratados alquímicos estava por detrás

dos bastidores daquelas discussões. Neste universo alquímico abordava-se incessantemente o

valor anímico nos mistérios da matéria. Escreve Jung:

... O "espírito do mundo" (...) para a Alquimia da primeira metade do século XVII porquanto, ao que sabemos, a expressão usada preferencialmente era a "anima mundi" (...) o espírito do mundo, constitui uma projeção do inconsciente, porque não se encontra um método ou uma aparelhagem capazes de proporcionar uma experiência objetiva deste gênero, e consequentemente, de oferecer uma prova da existência objetiva de uma animação do mundo [sem grifo no original] (JUNG,1988, p.133, § 219).

Nestas novas considerações sobre a visão completa do mundo natural, as três

categorias da Coniunctio de Dorneus reaparecem, quando em meio à díade física-psicologia

(matéria-psique) nas cartas de 50 entre Pauli e Jung, ocorre a inclusão, de um terceiro fator, a

saber, o espírito:

MATÉRIA PSIQUE ESPÍRITO

A psique enquanto representante da Psicologia no esquema interdisciplinar

psicofísico, que até então ocupava uma posição de "igual para igual" perante a matéria, ou

seja, eram, ambas, pólos extremos de um único eixo, a partir daí então ocuparia uma posição

publicada primeiramente em alemão, no ano de 1992, pela Springer-Verlag. Em 1996, a Alianza Editorial publicou a compilação de Carl A. Meier traduzindo-a para o espanhol. 18 Esta dissertação foi publicada sob o título “A permuta dos sábios: estudo entre as correspondências entre Jung e Pauli” pela editora Annablume no ano de 2003.

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de mediadora entre matéria e espírito, estes sim passando a representar uma legítima

oposição. Para Xavier, “a situação da psique como mediadora reproduz fielmente o

significado que esta ambivalência tinha para muitos alquimistas, entre eles o já citado

Dorneus” (XAVIER, 2001, p. 175). No trecho abaixo Jung discorre sobre o elemento

espiritual em posição de "igual para igual" perante a matéria:

Quanto ao espírito (pneuma), gostaria de dizer que espírito e matéria são um par de conceitos opostos que designa apenas o aspecto bipolar da observação no tempo e no espaço. Nada sabemos de sua substância. O espírito é tão ideal quanto a matéria. São meros postulados da razão. Por isso falo de conteúdos psíquicos dos quais são rotulados de espirituais (pneumáticos) e outros de "materiais". (JUNG, 2002 [B], p.25)

Para Jung, não sabemos realmente a ontologia dos reinos material e espiritual, a partir

do momento que o único instrumento que dispomos (psique) transforma tudo em psíquico:

Todas essas afirmações concernentes ao aspecto material, ou bem espiritual, da psique, ou à existência própria dos objetos possuem um importante valor heurístico que eu de nenhum modo menosprezo. A psique é certamente nosso único instrumento de conhecimento e, portanto, indispensável para qualquer concreção. Porém, os objetos de seu conhecimento são psíquicos somente em uma parcela ínfima. Representa-se, de fato, todos os objetos em e por meio da psique, se bem que aqueles não são integrados substancialmente nesta e assim preservam sua existência (JUNG, p.162. In: MEIER, 1996)

A medida que os reinos material e espiritual só possuem sua existência na

representabilidade de nossa psique, e por isso essa representabilidade é convertida em algo

psíquico, significa que a real substância destes reinos nos é desconhecida. Deste modo, a

ontologia dos reinos material e espiritual pertenceria ao reino não concretável,

irrepresentável.:

...devemos verificar que matéria e espírito são dois conceitos diferentes que designam coisas antagônicas e que, enquanto sejam representações de distinta procedência, são psíquicos [...] Porquanto a psique represente às duas entidades metafísica , quer dizer, não diretamente concretáveis, como conceitos, une a estas duas entidades antagônicas ao dotá-las de uma forma de existência psíquica e elevá-las deste modo à consciência (JUNG, p.160 In: MEIER, 1996)

Neste sentido, a ontologia dos reinos material e espiritual faria parte do reino não

concretável. Este reino não concretável, irrepresentável, segundo as próprias denominações

transcorridas entre Jung e Pauli, apenas poderia ser apreendido pela psique, visto que ela se

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caracteriza como o único instrumento legítimo de conhecimento através da consciência, ou

seja, através da sua capacidade de representar ou tornar concretáveis as coisas dos reinos

material e espiritual:

... A experiência psíquica tem duas fontes: o mundo externo e o inconsciente. Toda experiência direta é psíquica. Há experiência fisicamente transmitida (mundo exterior) e a experiência interiormente transmitida (espiritual). Uma é tão válida quanto a outra. (JUNG, 2002 [B], p.180)

Para Jung, o fato de que tudo passa pelo psíquico, confere à psique aquela situação

mediadora em meio ao espírito e à matéria; é nela que os reinos se encontram, ou seja, é

através da psique que se tornam possíveis as representações dos reinos espiritual e material,

pois, caso contrário, suas ontologias não teriam qualquer efeito sobre nosso conhecimento,

uma vez que não teriam como se expressar:

Para mim a psique é um fenômeno quase infinito. Não tenho a mínima idéia do que ela é em si, e sei apenas muito vagamente o que ela não é. Também só sei em grau limitado o que é individual e o que é geral na psique. Parece-me um sistema de relações que, por assim dizer, abrange tudo, sendo "material" e "espiritual" em primeiro lugar designações de possibilidades que transcendem a consciência. Não posso afirmar que nada seja "apenas psíquico", pois tudo na minha experiência direta é psíquico em primeiro lugar. Eu vivo num mundo perceptual, mas não num mundo subsistente por si. Este último é real o bastante, mas só temos informações indiretas sobre ele. Isto vale tanto das coisas externas quanto as "internas", ou seja, das existências materiais e dos fatores arquetípicos (...) Não importa sobre o que eu fale , os dois fatores se interpenetram de uma forma ou de outra. Isto é inevitável, pois nossa linguagem é um reflexo fiel do fenômeno psíquico com seu duplo aspecto "perceptual"e "imaginary". (JUNG, 2002[B], p.244-245)

Relembrando que Dorneus trabalha com três categorias nestes três graus da

Coniunctio, ou seja, espírito, alma e corpo, há fortes indícios que Jung tenha se inspirado em

Dorneus ao atribuir à psique a qualidade de mediadora entre a matéria e o espírito. Segundo

Xavier, "tudo indica que Jung tenha emprestado esta noção do pensamento alquímico,

especialmente de Gerardus Dorneus (...), a cuja a obra vinha se dedicando assiduamente por

aquela época” (XAVIER, 2001, p.159).

Entretanto, Jung abominava o fato de considerarem-no "metafísico", pois tinha plena

consciência da limitação imposta ao aparelho psíquico, e mesmo aos aparelhos

experimentais. Sendo assim, no que concerne à observação daquelas camadas

ontologicamente distantes e inacessíveis às nossas capacidades, ele considera:

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Naturalmente não podemos tirar daí a conclusão metafísica de que no mundo das coisas "em si" não há espaço nem tempo, e que, consequentemente, a mente humana se acha implicada na categoria espaço-tempo como em uma ilusão nebulosa. Pelo contrário, verifica-se que o espaço e o tempo são não apenas as certezas mais imediatas e mais primitivas em nós, como são empiricamente observáveis, porque tudo o que é "perceptível” acontece como se estivesse no tempo e no espaço (JUNG, 1998 [B] p.434).

Neste sentido, naturalmente a função representativa da psique não pode ser estendida

pata além de suas possibilidades. Assim, a psique não é capaz de apreender conscientemente

a maior parte da real procedência ontológica destes, já que são partes do inconsciente.

Entretanto ela busca expandir-se e tornar concretáveis o máximo que puder daqueles

conteúdos irrepresentáveis a priori. Jung estava convencido de que a substância

irrepresentável que habitava a ontologia da matéria e do espírito poderia ser a mesma da

própria psique. A psique estaria em posição destacada, como único instrumento (meio) de

decodificar as manifestações do arquétipo, e em ultima instância decodificar o reino o qual

ele pertence, o irrepresentável. Neste sentido, a parcela de sua substância que é inapreensível,

seria da mesma natureza que a dos dois outros reinos, daí serem possíveis fenômenos como a

sincronicidade quando um único arquétipo pode estar atuando como fator ordenador dos

reinos da matéria e do psíquico. O problema era que, uma vez que os arquétipos constelam-se

na psique, poderia pensá- los apenas em termos psíquicos:

Os arquétipos só se manifestam através da observação e experiência, ou seja, mediante a constatação de sua capacidade de organizar idéias e representações, o que se dá mediante um processo que não se pode ser detectado senão posteriormente. Eles assimilam material representativo cuja procedência a partir do mundo dos fenômenos não pode ser contestada, e com isto se tornam visíveis e psíquicos (JUNG, 1998 [B], p.235).

Portanto, a questão gira em torno de compreender que o arquétipo, em si, não é

psíquico, embora se manifeste no psíquico. Porém se este possuía a propriedade de permear

tanto um processo físico externo com um processo psíquico, demostrava que o arquétipo

pertencia à um reino "diferente". Sobre esta qualidade dos arquétipos, escreve Jung:

Não devemos confundir as representações arquetípicas que nos são transmitidas pelo inconsciente com o arquétipo em si. Essas representações são estruturas amplamente variadas que nos remetem para uma forma básica irrepresentável que se caracteriza por certos limites formais e determinados significados fundamentais, os quais entretanto só podem ser apreendidos de maneira aproximativa (JUNG, 1998 , p.218).

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Jung estava disposto a mostrar a Pauli o fato de que, aquilo que estavam procurando,

ou seja, a linguagem neutra, perpassava a ambivalência da própria psique, ambivalência esta

capaz de acessar e ser acessada por representações de ontologias de reinos distintos ao seu,

como os da matéria e do espírito. Ta l ambivalência do fator psíquico implicava numa psique

que representa e uma psique, que em si mesma, é um dado não concretável:

"Eu não estendo o conceito de psíquico até o não concretável. Aí necessito do conceito especulativo de psicóide, o qual representa uma aproximação à linguagem neutra na medida em que alude à existência de uma entidade não psíquica...." [sem grifo no original] (JUNG, p.160. In: MEIR, 1996).

Neste sentido, embora a Psique seja o trono de qualquer subjetividade, pois tudo na

minha experiência direta é psíquico em primeiro lugar, ela também é perpassada por

elementos objetivos, neutros, irrepresentáveis, visto que ela em si mesma também é

"irrepresentável".

A preocupação de Jung pairava na necessidade de tornar clara e bem definida a

ambivalência psíquica apontando para duas formas de mediação, simultânea e paradoxal: em

uma delas a psique é o ponto de encontro das representações possíveis, isto é, a psique nos

permite reunir subjetivamente o que Jung chamou de “etiquetagens” de procedência material

ou espiritual. Seria a vivência psíquica propriamente dita, onde a psique une os elementos

distintos através da capacidade de representá- los na consciência. Em outra, a psique através

de seu componente psicóide (irrepresentável) é o ponto de encontro metafísico das

irrepresentabilidades, (ou das não concretabilidades), isto é, esta sua componente psicóide

reúne objetivamente as ontologias de procedência material ou espiritual, pois paradoxalmente

a própria psique já seria formada a partir da união dos outros dois, a matéria e o espírito, visto

que, em seu substrato mais profundo, é de uma mesma procedência transcendental.

Em suma, Jung alude à capacidade da psique de representar a matéria e o espírito,

dotando-os de conceitos, ou seja, subjetivando-os, conscientizando-os, capacidade esta que

não deixa de ser uma forma de ligar ou unir os reinos da matéria e do espírito. E

concomitantemente, Jung também se refere à substância metafísica própria da psique que,

como tal, toma parte da mesma trancendentalidade dos reinos da matéria e do espírito.

Assim, na carta de maio de 1953, Jung apresentaria o seguinte esquema quaternário

como esboço para o esquema interdisciplinar:

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Transcedental (Psicóide)

Matéria Espírito

Psique

Neste sentido, o reino transcendental (psicóide) corresponde uma ponte conceitual

entre os distintos reinos ( matéria, psique, espírito). Habita uma esfera transcendental e

portanto de unicidade, trazendo à tona o conceito metafísico do alquimista Dorneus, o "Unus

Mundus". Segundo Xavier:

O conceito metafísico do alquimista Dorneus, (...), o "Unus Mundus" (...); este é o análogo ao conceito junguiano de psicóide; é o tal "substrato", a "linguagem neutra" que vinham tentando estabelecer e, principalmente, uma "referência histórica de base", ou seja, um conceito antigo, de um tempo em que aquilo que Pauli chamava "pensamento quantitativo" e "pensamento qualitativo" ainda caminhavam juntos na mente e na retorta dos artífices da Opus (XAVIER, 2001, p.176).

Com o quaternário acima e com o conceito de "Unus Mundus" atingimos o ápice da

evolução na interface dos esquemas interdisciplinares no encontro Pauli-Jung, encontrando

no conceito de Unus Mundus um correspondente ao reino transcendental postulado nas cartas

de Pauli/ Jung. A carta de 24 de outubro de 1953, explicita a presença de Dorneus, em meio

as trocas epistolares do encontro Pauli-Jung::

... precisamente durante os 10 últimos anos estive ocupado quase exclusivamente deste tema [refere-se à coniunctio] Consegui encontrar uma alquimista do século XVI que havia enfrentado esta questão de uma forma particularmente interessante. Trata-se de GERARDUS DORNEUS, notável também em outros aspectos. Ele vê a finalidade da Opus alquímica por um lado no conhecimento de si mesmo, que é ao mesmo tempo conhecimento de Deus, e por outro lado na união do corpo físico com a denominada unio mentallis, a qual está formada por alma[psique] e por espírito e se produz através do conhecimento de si mesmo. A partir deste (terceiro) nível da Opus se produz, como ele explica, o unus mundus, o único mundo, um pré-mundo ou mundo primogênio platônico, que é por sua vez o mundo futuro, ou seja, o mundo eterno (JUNG, p.182.In: Meier, 1996).

Assim é possível testemunhar, durante as trocas epistolares entre Jung e Pauli, como

as três categorias da Coniunctio de Dorneus influenciaram o desenrolar das trocas epistolares

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entre Jung e Pauli e a visão completa do mundo natural. Análogo ao conceito junguiano de

psicóide; o "Unus Mundus" é a "linguagem neutra" que vinham tentando estabelecer.

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II – ESBOÇO TEÓRICO-ESPIRITUAL DA ALQUIMIA

Qualquer um que se dedique à estudar a alquimia, se deparará com um fenômeno

histórico extremamente complexo e obscuro. Para alguns estudiosos, a alquimia apresenta-se

como uma ciência sem raiz aparente, que se manifesta de súbito no momento da queda do

Império romano e se desenvolve durante toda a Idade Média, no meio dos mistérios e dos

símbolos, sem sair do estado de doutrina oculta e perseguida. Porém, a medida que, pouco a

pouco se vai mergulhando nesta massa obscura, que se apresenta a lendária gênese da

alquimia, notamos o quanto esta ciência é uma mina inesgotável de investigações de toda

espécie e, o quanto é precipitado assegurar sua origem temporal.

Mircea Eliade, em seu livro Ferreiros e Alquimistas, ao seguir o desenvolvimento de

alguns símbolos da metalurgia e das alquimia asiáticas e orientais e, das mitologias próprias

dessas técnicas arcaicas, defende a idéia de que, pelo menos uma parte da "pré-história" da

alquimia deva ser procurada, não nas tradições eruditas da Mesopotâmia, mas nas mitologias

arcaicas. Sendo assim, ele faz o seguinte alerta:

...Querer confinar uma disciplina que, durante 2000 anos, assombrou o mundo ocidental aos esforços para contrafazer o ouro, é esquecer o extraordinário conhecimento que os antigos possuíam dos metais e das ligas metálicas, é também subestimar as suas qualidades intelectuais e espirituais (ELIADE, 1987, p.116-117).

Segundo Eliade, foi provavelmente a concepção arcaica da embriologia dos minerais,

a idéia de que os minerais "crescem" no seio da mina, concepção já atestada na Antiguidade,

que "...cristalizou a fé numa transmutação artificial, isto é, operada em laboratório"(Ibidem,

p. 118). Isso significa que é nas concepções primitivas referentes à Terra-Mãe, aos minerais e

metais, e nas experiências do homem arcaico empenhado nos trabalhos metalúrgicos, que

devemos procurar uma das principais fontes da alquimia. Não, evidentemente, da alquimia

clássica, cheia de cadinhos e alambiques e tratados secretos, mas do espírito alquímico, como

fundamento e justificação do Opus Alchymicum.

Ana Maria Afonso-Goldfarb, que em seu livro Da alquimia à quimica, oferece um

importante estudo sobre a passagem do pensamento mágico-vitalista ao mecanicismo,

também realiza uma importante tentativa de localizar históricamente a prática da metalurgia.

A autora assegura que, desde a formação das sociedades agrícolas, vem a concepção da mãe

terra, como deusa, em cujo o ventre germinavam as sementes:

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...Antes da descoberta da fusão dos metais, houve, contudo, um longo período, durante o qual a metalurgia se imbuiu do espírito, ainda vigente, das sociedades agrícolas e caçadoras. Desta forma, a sociedade que irá se desenvolver ao redor da mineração e da metalurgia herdará a visão vitalista e sagrada do universo (GOLDFARB, 2001, p.43).

Essas concepções primitivas, veiculadas e valorizadas pela mitologia dos tempos

líticos, atestam a crença numa finalidade da natureza: as substâncias minerais e os embriões

metálicos, participam da sacralidade da Terra-mãe e "crescem" no seu ventre, como

sementes. O ouro, um dos raros elementos metálicos a ocorrer na natureza em forma pura,

sem combinar com outros elementos, era considerado a finalidade da Natureza; puro e

incorruptível, sinal duradouro de tudo o que fosse perfeito. Aos mineiros, cabia a difícil

missão de conseguir a permissão da divindade terrena, para poder nela penetrar e arrancar- lhe

os minerais:

Tratava-se de um verdadeiro processo obstétrico, desde a retirada dos embriões minerais, até sua transformação em metais no forno do metalurgista. Junto a esse forno, todo um novo ritual deveria ser cumprido, pois o mineral continuava guardando as características de um ser vivo (...) (Ibidem, p.44).

Neste sentido, o mineiro e o metalúrgico apresentam-se como aqueles que intervêm

no desenvolvimento ctoniano, precipitando o ritmo do crescimento dos minerais. Neste

panorama, o homem sente-se capaz de colaborar com a obra da natureza, capaz de ajudar os

processos de crescimento que ocorrem no centro da terra. O homem favorece e promove o

ritmo destas maturações.

A alquimia apresenta a mesma extensão espiritual: o alquimista se vê diante de uma

tarefa sagrada: deve se dispor ao papel de redentor e enfrentar o caos da matéria, a fim de

libertá- la. Em outras palavras o alquimista intervêm e aperfeiçoa a obra da natureza. O ouro,

como símbolo, é a sua perfeita "maturação". Neste sentido, o athanor, forno do Adepto,

passa a ser uma nova matriz, artificial, onde os minerais terminam a sua gestação; segundo

Eliade “é a conclusão de sua progenitura - mineral, animal ou humana - até a maturidade

suprema, isto é, até a imortalidade e liberdade absoluta. (sendo o ouro o símbolo da soberania

e da autonomia)" (ELIADE, 1987, p.43-44).

Assim, é no encontro com o número infinito de mitos, ritos e técnicas que

acompanham os trabalhos metalúrgicos como a fusão e fundição dos metais, que sobressai a

idéia de uma colaboração ativa do homem com a Natureza. Essas técnicas eram ao mesmo

tempo mistérios, pois implicavam, por um lado, a sacralidade do Cosmos, e, por outro lado,

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transmitiam-se através de numerosas gerações, protegidas zelosamente como segredos de

ofício. Os trabalhos mineiros e metalúrgicos, colocavam, assim, o homem arcaico num

Universo saturado de sacralidade, onde as substâncias minerais participavam da sacralidade

da Terra-Mãe. Mais que isso, o homem participava de uma comunhão com toda espécie de

“substância”. Neste sentido, destaca Eliade:

...foi sobretudo a descoberta experimental da Substancia viva, tal como era sentida pelos artesãos, que deve Ter desempenhado o papel decisivo. Com efeito, é a concepção de uma Vida complexa e dramática da Matéria que constituiu a originalidade da alquimia em relação à ciência grega clássica (Ibidem, p. 118).

Longe de querer abarcar a história da Alquimia, que merecia um volume inteiro para

não ser levianamente tratado, esta questão envolvendo a concepção primitiva de um Cosmos

sacralizado, no qual a natureza, o psíquico e o sagrado constituem uma só substância, vai de

encontro com objetivo deste capítulo. Este capítulo procurará esboçar algumas linhas de

orientação que contribuíram para dar a forma que a alquimia finalmente viria a apresentar na

Idade Média, percorrendo a alquimia asiática, alexandrina e a árabe. Para tal incumbência, é

necessário que se leve em conta, primeiramente, a distância que separa a experiência religiosa

arcaica da experiência moderna dos “fenômenos naturais”. Em outras palavras:

...é evidente que um pensamento dominado pelo simbolismo cosmológico criava "uma experiência do mundo" diferente daquela que possui o homem moderno. Para o pensamento simbólico, o mundo não só está "vivo", como também "aberto": um objeto nunca é simplesmente ele próprio (como considera a consciência moderna), é ainda sinal ou receptáculo de qualquer coisa mais, de uma realidade que transcende o plano do ser do objecto (Ibidem, p.114).

Neste sentido, o que se destaca é a capacidade do homem arcaico de experienciar o

sagrado na relações com a matéria. Tal como o mineiro e o fundidor, o alquimista trabalha

com uma matéria simultaneamente viva e sagrada; o seu trabalho visa a transformação da

matéria, o seu aperfeiçoamento e a sua "transmutação", mas, segundo Eliade, é a experiência

da morte e da ressurreição que é projetada na matéria, onde as substâncias minerais

“sofrem”e “renascem” como outro modo de ser, isto é, são transmutadas:

...convencidos de trabalhar com o concurso de Deus, os alquimistas consideravam a sua obra como um aperfeiçoamento da Natureza tolerado, senão encorajado, por Deus. Por mais afastados que estivessem dos antigos metalúrgicos e ferreiros, prolongavam, apesar disso, a sua atitude face à Natureza: para o mineiro arcaico assim como para o alquimista ocidental, a Natureza é uma hierofania: não só viva como também divina; tem pelo menos uma dimensão divina. É, aliás, graças a essa sacralidade da Natureza - revelada no aspecto "subtil" das substâncias - que o

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alquimista pensava poder obter a Pedra Filosofal, agente de transmutação, assim como o seu Elixir de Imortalidade (Ibidem, p. 135).

Observando outras fontes históricas propriamente ditas, a transmutação dos metais foi

praticada por chineses, indianos, egípcios, gregos e árabes. Todos eles contribuíram para dar

a forma que a alquimia finalmente viria a apresentar na Idade Média.

II. 1. - A Alquimia Asiática

A China, por exemplo, não conheceu uma ruptura entre a mística metalúrgica e a

alquimia. Desde os tempos imemoriais, havia na China, as técnicas dos mineiros e das

fundições de bronze, ao lado da medicina arcaica, à procura de uma droga da longevidade.

Arnold Waldstein, autor francês do livro Os segredos da Alquimia, assegura que na "...China,

a antiga metalurgia sagrada se transformou muito cedo numa mística servida por uma prática"

(WALDSTEIN,1979, p.40). Entretanto, não são todos os estudiosos que concordam com este

ponto de vista. Contrária à idéia de uma continuidade das técnicas arcaicas mágico-

ritualísticas dos mineiros e ferreiros, Goldfarb, com relação à origem da alquimia chinesa,

assegura que esta só poderia instituir-se como tal, a partir do estabelecimento da sabedoria

chinesa. Para a autora, foi no taoísmo, doutrina atibuída a Lao-Tzé (por volta de 600 a.C.)

que, principalmente, a partir do século III a.C., originou as investigações desta ordem.:

A alquimia chinesa não parece estar diretamente vinculada à metalurgia, suposição baseada na escassez de material mineral quanto no lento avanço das práticas metalúrgicas. Isto não significa, contudo, que o alquimista chinês ignorasse a mágica ritualística de seus ancestrais metalurgistas. Antes de qualquer coisa, as pessoas ligadas à alquimia, na antiga China, eram letrados taoístas, que buscavam nas origens das tradições o caminho par a sua própria superação, visando obter o equilíbrio de si mesmos com o “todo" (GOLDFARB, 2001, p. 64-65).

Entretanto, como foi visto anteriormente, Eliade assegura uma continuidade de um

esquema mítico-ritual arcaico nas origens da alquimia. Para o autor, é evidente que os fins da

demanda alquimista, a saúde e a longevidade, a transmutação de metais vis em ouro, a

fabricação do elixir da imortalidade, tem por trás uma longa pré–história que revela de forma

significativa uma estrutura mítico-religiosa. Neste sentido, com relação à alquimia chinesa, o

autor assegura:

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Podemos afirmar que os alquimistas taoístas, apesar de inevitáveis inovações, retomavam e prolongavam uma tradição proto-histórica. As suas idéias sobre a longevidade e a imortalidade pertencem à esfera das mitologias e dos folclores quase universais. As noções de "erva da eternidade", de substâncias animais ou vegetais carregadas de "vitalidade" e contendo o elixir da juventude, assim como os mitos das regiões inacessíveis habitadas por Imortais, fazem parte de uma ideologia arcaica que ultrapassa os confins da China (ELIADE, 1987, p.88).

Na tradição alquímica chinesa, em particular, as plantas e os frutos específicos

desempenham um papel importante na arte de prolongar a vida e de redescobrir a juventude

eterna. Isto se deve ao fato desta trazer como tônica a busca da imortalidade e a "medicina

universal". Ela marca o encontro dos princípios cosmológicos tradicionais, os mitos

relacionados com o elixir da imortalidade e as técnicas que visam o prolongamento da vida.

O “ouro alquímico”, por exemplo, goza da mais elevada estima em toda a literatura

chinesa. Os chineses não procuravam o ouro para o enriquecimento. A busca da

“transmutação” de metais em ouro era uma busca de perfeição; bastava uma pouca quantidade

para transformá-lo em um liquido, no qual ele alcançaria a imortalidade. Neste sentido, surge

a noção de um “elixir”, ou seja, os chineses acreditavam que o ouro produzido pelo

procedimento da transformutação alquímica era dotado de uma vitalidade, de uma qualidade

transcedental, que permitia promover a espiritiualização do corpo. Assim incluíam em sua

dieta “o pó dourado”, para que os cabelos brancos tornassem a ser negros, pois aquele cuja a

forma se alterava e escapava dos perigos da vida, merecia o titulo glorioso de Homem

Verdadeiro.

Mas na China, um outro material que o ouro, teve desde os tempos pré-históricos

muita importância: o divino cinábrio, uma substância talismânica e enormemente apreciada

pelas suas qualidades “doadoras de vida”. A sua cor vermelha ("o sulfeto natural de mercúrio

vermelho") era rica em virtudes vitais, visto ser o emblema do sangue, o princípio da vida,

ajustando-se à associação de uma equivalência entre o interno e o externo no universo

alquímico. Jean-Michel Varenne, autor francês do livro A alquimia, considera que o conjunto

das técnicas psíquicas ou físicas empregadas para prolongar a vida e obter a beatitude ou a

iluminação “consiste essencialmente em alimentar o espírito e o corpo graças à meditação e à

confecção do ´divino cinábrio`"(VARENNE, 1998, p.40). Mas não era apenas a sua cor que

fazia o cinábrio um veículo para a imortalidade. Havia igualmente o fato de que, quando

colocado no fogo, produzia o mercúrio, o “metal vivo”. Sendo assim, o cinábrio, desde os

tempos pré-históricos, era utilizado pelos chineses nos túmulos dos aristocratas ricos, a fim

de promover a imortalidade.

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É certo que os alquimistas contribuíram, de fato, para o desenvolvimento das ciências

naturais, mas fizeram-no de uma forma indireta e, apenas em virtude do seu interesse pelas

substâncias minerais e pela matéria viva. Contudo a sua propensão para a “experimentação”

não se limitava ao mundo natural. As experiências dos alquimistas sobre as substâncias

minerais ou vegetais tinham um objetivo mais grandioso: modificar o seu próprio modo de

ser. Os alquimistas sempre souberam que o próprio homem em sua substância imortal é a

Unidade Imutável, por isso, dentro da chamada religião chinesa, a experiência humana

sempre coube um papel de destaque. Quando o adepto em sua obra experimenta a si mesmo,

então se lhe apresenta em forma nova e imediata a analogia do "verdadeiro homem", Sobre

este aspecto também considera Varenne:

De nada serve - na perspectiva hermética - correr ao laboratório para tratar as matérias "vis", se não se for capaz de sentir e experimentar na própria carne e na consciência a unidade fundamental de todas as coisas, a começar pela identificação do microcosmo e do macrocosmo (VARENNE, 1998, p.62).

O ouro, o cinábrio, todas essas substâncias não se limitavam a conferir ao homem a

longevidade e a saúde perfeita. Ajudavam-no a entrar em harmonia com o próprio princípio

que simbolizavam, a estar organicamente “em paz” com o cosmos inteiro, passando deste

modo a fluir com a perfeição própria daqueles que comungam diretamente com as regras:

... A função de assimilação destas substâncias – através de emblemas, pela alimentação, pelos ritos – era muito complexa. A alquimia não pode ser entendida se não tivermos em conta esta função – tão específica da mentalidade chinesa – por intermédio da qual o indivíduo se esforça incessantemente por alcançar a comunhão com os princípios e a harmonia com as normas, de modo que a vida nele flua sem encontrar nenhum obstáculo (ELIADE, 2000, p. 39-40).

Nada será compreendido da alquimia chinesa, se não a integrar nas suas concepções

fundamentais sobre o mundo. O pensamento chinês faz sua a correspondência tradicional

entre o microcosmo e o macrocosmo, tão familiar na teoria alquímica - " o que está acima é

como o que está em baixo, e o que está em baixo é como o que está acima", diz a A Tábua da

Esmeralda de Hermes Trismegisto.1

De acordo com a crença chinesa, todas as substâncias que podem ser encontradas na

terra e no cosmos estão infundidas de um dos dois elementos essenciais, o yin, feminino e

passivo e o yang, masculino e ativo. Nota-se que no estudo das duas principais tradições

1 TRISMEGISTO, Hermes et al. Alquimia e ocultismo, Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991.p. 23. (Cf. mais sobre este alquimista, no sub-capítulo Alquimia Alexandrina).

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religiosas/filosóficas da China – o Confucionismo e o Taoísmo, ambas podem ser

compreendidas a partir destes princípios. São duas metades de um mesmo todo; contrárias,

porém complementares; e mesmo diferentes, cada qual possui, em menor escala, alguns

elementos da outra. Mas ambos são atuantes somente no domínio do fenômeno, pois tem sua

origem comum no Uno sem dualidade.

Mesmo o Confucionismo, tradição religiosa/filosófica atribuída à Confúcio (551-479

a.C), não repudiou as principais linhas da cosmovisão de sua época, composta de Céu e

Terra, o divino par criador. Pelo contrário, a alusão ao céu como poder ordenador,

manifestando-se no ritmo anual da natureza, corresponde às idéias antigas, já expressas no

Livro das Transformações (I Ching, o livro das Mutações), no sentido de uma ordem cíclica

do mundo, cujo impulso criador tem sua origem na oposição Yang e Yin, a luz e as trevas.

Por isso compete aos homens reconhecer a dinâmica do cosmos, no seu curso rítmico, e

adequar os seus atos em consonância com ela.

No taoísmo, tradição religiosa atribuída à Lao-tzé ou Lao Tzu, um contemporâneo

mais velho de Confúcio, nascido por volta de 604 a.C, há a idéia de um princípio que está por

trás da realidade aparente (Tao) e que dá vida aos os seres humanos, mantendo-se dentro

deles numa porção menor. No Tao Te King, livro tido como a base do pensamento taoísta, o

conteúdo da grande Vida provém inteiramente do Tao. O Tao gera todas as coisas. Ao

formular seu pensamento, Lao-tzé também parte de algumas idéias propostas no I Ching, o

livro das Mutações.

Não é pois, de estranhar que essas duas vertentes da filosofia chinesa, o

Confucionismo e o Taoísmo, tenham suas raízes comuns no I Ching. Esse livro propõe o

mundo como não-estático e em constante transformação/alternância. Toda a mutação do

mundo, assim como a totalidade desse, é vista como conseqüência da relação entre energias

contrárias, porém complementares – o positivo e o negativo, a luz e a sombra, o masculino e

o feminino, o criativo e o receptivo. Transcendendo toda a dualidade, estaria a grande

unidade, chamada Tai Chi. E regendo todas as transformações, estaria o Tao, uma

ordem/caminho que atua tanto no quanto na Terra.

A idéia desse algo que origina todas as coisa, o princípio Uno no interior do múltiplo

remete ao pano de fundo teórico-espiritual da alquimia: "Tudo procede do Um e volta ao Um

e para o Um". Desta forma também se expressa o símbolo do Ouroboros2 (a serpente ou

dragão que morde a própria cauda), o eloqüente símbolo do Um Eterno e Infinito, que

2 Cf. mais sobre o símbolo do ouroboros no sub-capítulo Alquimia Alexandrina.

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representa perfeitamente o grande Ciclo do Universo, assim como seu reflexo, o Magnum

Opus. A serpente abrangente reforça a idéia da unidade cósmica, na qual o mundo acima

banha o mundo abaixo e toda a matéria é intercambiável.

Experimentar a ordem cósmica na vida humana pode possibilitar, no entendimento da

tradição chinesa, desde a sabedoria até a transcendência, harmonia, rompimento das barreiras

do espaço-tempo e a imortalidade. Ora, toda a tradição alquímica invoca a seu favor o

testemunho da experimentação:

...Uma vez que os processos alquímicos se desenvolvem no próprio corpo do adepto, a "perfeição" e a transmutação dos metais correspondem, na realidade, à perfeição e à transmutação do homem. Esta aplicação prática da alquimia esotérica encontrava-se aliás subentendida no sistema tradicional chinês de correspondência Homem- Universo: trabalhando a um certo nível, obtêm-se resultados correspondentes a todos os níveis (ELIADE, 1987, p. 97).

Desta maneira, o homem possui, no seu próprio corpo, todos os elementos que

constituem o Cosmos e todas as energias que asseguram a sua transformação periódica. Um

documento que merece destaque na alquimia chinesa, O Segredo da Flor de Ouro, cuja a data

da primeira impressão é do século XVII, mas acredita-se que seu conteúdo foi transmitido

oralmente desde o seculo VIII, traz como tônica a operação alquímica no próprio corpo do

alquimista. O conteúdo deste foi estudado à fundo pelo próprio Jung, em obra que recebe seu

nome. Porém, de maneira reduzida, pode-se adiantar que, através do movimento circular da

luz e a preservação do centro, o adepto procurava preparar o elixir no próprio corpo,

promovendo desta maneira a perfeição e a imortalidade.

Os pensadores chineses desenvolveram assim uma imagem filosófica do Universo que

sofreria poucas mudanças ao longo de mais de um milênio. Mas a melhor faceta da alquimia

taoísta, baseada nos princípios universais do yin e do yang, iria desabrochar no domínio da

magia sexual e do tantrismo, aproximando-se assim da alquimia hindu, a mais desconhecida.

A Índia conheceu igualmente as investigações alquímicas que constituem uma das

disciplinas ocultas do tantrismo. Para alguns autores, a alquimia seria um ramo do tantrismo;

para outros seria o inverso. Goldfarb defende a idéia de que a alquimia, surge, na India, como

interpretação das práticas míticas arcaicas, envolvendo a agricultura, a metalurgia, a

medicina, todas elas ligadas à magia e neste sentido, foram os sabios budistas, os que se

aproximaram dos mineiros, ferreiros e médicos hindus arcaicos com intuito de interpretar

seus processos na óptica da sabedoria budista. Já Eliade considera ser significativo o fato de a

alquimia hindu ser exclusivamente conhecida e praticada por determinadas seitas ascéticas.

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Estas seitas, segundo Eliade, “são tântricas, o que quer dizer que pertencem a essa corrente de

síntese mística do início da Idade Média que assimilou todas as técnicas espirituais da India,

incluindo as mais ‘primitivas’”(ELIADE, 2000, p. 60).

Essa questão em torno da realidade das operações alquímicas hindus envolve toda

uma discussão de fundo idealístico. Somente alguém para quem o sentido da alquimia tenha

sido esquecido pode associá- la à uma técnica que visa conhecer e dominar o mundo físico-

químico. Segundo Varenne:

Não existe verdadeiramente uma alquimia indiana -- se nos cingirmos à acepção tradicional da palavra: operações materiais de transmutação de um sujeito e relações subtis com um "manipulador" -- e, contudo, as diferentes técnicas físico-espirituais do ioga, (...), correspondem, pelos seus princípios e a sua perspectiva metafísica, aos dados fundamentais da alquimia (VARENNE, 1998, p. 41).

O valor cósmico dos metais, o papel redentor das operações alquímicas, a mística

alquímica foi o que interessou os tântricos. Ao procurar o elixir da vida, a alquimia

aproximava-se da mística e de todas as outras técnicas espirituais hindus que se propunham

chegar à imortalidade, e muito particularmente, do tantrismo e do hatha- ioga, que tinham por

objetivo a obtenção de um corpo são e imortal. Na concepção ocidental da alquimia, as

operações sobre as substâncias minerais só eram válidas, a medida em que envolviam,

principalmente, experiências químicas, mas no universo místico, onde se move o alquimista,

como foi visto anteriormente, as experiências às quais o adepto se entrega procedem de uma

visão metafísica do universo. Neste sentido, segundo Eliade:

...é necessário ter em conta não só a finalidade do alquimista e do seu comportamento, mas também do que podiam ser as "substâncias" aos olhos dos indianos: não eram inertes, representavam estados da inesgotável manifestação da matéria primordial (prakti). Já o dissemos: plantas, pedras e metais, assim como os corpos dos homens, a sua fisiologia e a sua vida psicomental, eram apenas momentos diversos de um mesmo processo cósmico. (ELIADE, 1987, p. 110)

Tal como na China, a alquimia hindu retoma os rituais arcaicos de "imortalização" e os

métodos de rejuvenescimento com ajuda de ervas e substâncias minerais3. Neste sentido, o

ioga tântrico e a alquimia, integraram e renovaram esses mitos, como fizeram na China, o

taoísmo e a alquimia com um número de tradições imemoriais.

3 Fato significativo, somente na China e na Índia eram ingeridos os preparados alquímicos, fossem eles o ouro alquímico ou um derivado de mercúrio.

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Os estudiosos não estão de acordo quanto às origens históricas da alquimia hindu. Para

alguns, a alquimia foi introduzida na Índia pelos árabes, para outros, ela precede a influência

árabe em três séculos. A influência provável da alquimia árabe sobre a alquimia hindu tinha

como principal argumento a seu favor o fato de, alegadamente, a existência do mercúrio na

Índia só se verificar depois da invasão muçulmana. Mesmo supondo que a alquimia hindu

tenha nascido com a descoberta e utilização do mercúrio, constata-se que existia, de há longa

data, uma “alquimia específica” que não pode ter sido influenciada pelo Islão e que

desempenhava a mesma função que a alquimia chinesa, isto é, que não se ocupava do mundo

físico-químico, mas do rejuvenescimento e da imortalidade. Segundo Eliade:

... A dependência da alquimia indiana em relação à cultura árabe não é evidente: encontramos a ideologia e as práticas alquímicas nos meios dos ascetas e iogues, que serão poucos tocados pela influência islâmica no momento da invasão da Índia pelos muçulmanos. (...) Mas mesmo supondo que o mercúrio foi introduzido na Índia pelos alquimistas muçulmanos, constatamos que não se encontra na origem da alquimia indiana, que, como técnica e ideologia solidárias do ioga tântrico, existia já há muitos séculos (Ibidem, p. 105).

Na Índia, a “ciencia do mercúrio” é colocada entre os sistemas de filosofia e de

mística. No tantrismo, o mercúrio desempenhou um papel essencial. Em certos tantra, o

mercúrio é considerado o “princípio gerador” e sua eficácia geralmente aumentava de acordo

com o número de “fixações”. Esta fixação tem um sentido químico propriamente dito, ela

significa a calcinação, a coagulação do mercúrio, também conhecida na alquimia européia

sob o nome de fixação. Entretanto, o sentido místico da fixação do mercúrio era a redução da

volatilidade deste metal sagrado a um valor “espiritual”. Assim como os chineses

acreditavam que o cinábrio ou o ouro produzido pelo procedimento da transformutação

alquímica era dotado de uma vitalidade, de uma qualidade transcedental, que permitia

promover a espiritualização do corpo; a fixação do mercúrio, acima mencionada, tinha a

finalidade de transformar o princípio dinâmico, móvel em princíp io estático, divino. A

operação alquímica tinha uma função redentora. Este princípio espiritual fixado permitia

promover a espiritiualização do corpo e a atingir a imortalidade. Os metais, de forma

idêntica ao corpo, podiam ser purificados e divinizados pelos preparados mercuriais. A

libertação depende da estabilidade do corpo humano e, é por essa razão que o mercúrio, que

pode fortificar e prolongar a vida, é tambem um meio de libertação. Segundo essa concepção,

o corpo “glorioso”, divino, pode ser realizado pelos próprios homens com a ajuda do

mercúrio.

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Assim como na alquimia chinesa, o conjunto de técnicas psíquicas e físicas baseiam-se

em prescrições alimentares e ainda em exercícios respiratórios e, principalmente na alquimia

hindu, o corpo e a psique constituem a matéria prima do adepto. Se caracterizando mais como

uma técnica e uma concepção espiritual, solidárias de outros métodos como o ioga tântrico,

que visa transmudar o corpo humano num "corpo de diamante", eterno, o discípulo trabalha

diretamente sobre seu corpo e sobre sua vida para libertar-se das contingências materiais e

libertar o espírito; este trabalho, abrange, evidentemente, a aposta da Grande Obra.

II. 2. - Alquimia Alexandrina

O Egito foi considerado pela grande maioria dos estudiosos como a pátria de origem

da alquimia. Os primeiros manuscritos egípcios conhecidos, escritos, não em hieróglifos, mas

em grego, datam do início do século III da era Cristã até o começo do século VI.

É principalmente em Alexandria, centro cultural e intelectual de muitos gregos,

egípcios e judeus, também conhecida como a "Cidade Rainha do Mediterrâneo", que a

alquimia é praticada durante esse período. Grande porto de trânsito (símbolo da "trialéctica"

egípcia, grega e romana: Thot, Hermes, Mercúrio), Alexandria estava predestinada à realizar

uma prodigiosa síntese das contribuições egípcias, pré-socráticas, platônicas, aristotélicas.

Não há como não ficar perplexo quando se adentra na mescla de influências

históricas-espirituais que se apresenta o universo da alquimia. Os filósofos gregos, por

exemplo, sustentavam que o universo era um todo unificado, então tudo nele devia ser

constituído por uma só substância subjacente (analogamente, os alquimistas atribuíam à

substâncias mais tangíveis a composição básica de toda a matéria). Primeiramente, o grego

Empédocles4 sustentou no século V a.C. que a água, o ar, o fogo, juntamente com a terra,

eram os elementos básicos, ou "raízes", da matéria. Por vários séculos, esta teoria dos quatro

elementos radicais reinaria suprema; dois dos maiores pensadores do mundo clássico, Platão

e Aristóteles consideraram-na aceitável. Aristóteles utilizou esta hipótese ao desenvolver seu

estudo sistemático dos fenômenos naturais. Porém subjacente à esta idéia, Aristóteles

acreditava que havia um elemento mais básico do que a terra, o ar, a água e o fogo, uma

substância, que séculos mais tarde no universo alquímico, viria a ser conhecida pelo de

matéria original. Sobre este substrato amorfo, considera Goldfarb:

4 Pela indicação das olimpíadas nasceu em 500 a.C. e morreu em 428 a.C.

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...Seria o “éter” ou “quintessência”: o quinto elemento, o diáfano perfeito, que constitui os corpos celestes na esfera imutável, e que, ao penetrar na esfera da natureza, transforma-se na essência das próprias coisas. Poder-se-ia dizer, se existisse o termo, que Aristóteles “fiscalizou” o mundo: a sua era uma física vitalista, com todas suas tendências e qualidades (...) (GOLDFARB, 2001, p. 54).

No entanto, assim como a tentativa de “fabricar” o ouro não constitui a motivação

profunda do "método alquímico", seria também apressado atribuir a causa primária deste à

algum tipo de técnica científica grega empreendida para validar o dogma da unidade da

matéria. Sobre este aspecto alerta Eliade:

...A transmutação, finalidade principal da alquimia alexandrina, não era, no estado contemporâneo da ciência, um absurdo, pois a unidade da matéria era desde há muito um dogma da filosofia grega. Mas é difícil acreditar que a alquimia tenha surgido das experiências empreendidas para validar esse dogma, e demonstrar experimentalmente a unidade da matéria. Encaramos mal uma técnica espiritual e uma soteriologia que encontrem a sua fonte numa teoria filosófica. (ELIADE, 1987, p. 117)

Entre as outras correntes de pensamento que chegaram em Alexandria e se mesclaram

às idéias dos filósofos clássicos estava a astrologia, importada da Mesopotâmia. Esse sistema

confirmava o primeiro dito da crença hermética: "Abaixo tal como acima". Essa máxima está

no cerne de diversas filosofias antigas. E os mesopotâmios, excelentes trabalhadores de

metais, tinham suas próprias teorias a respeito das relações celestiais. Cada um dos metais

mais importantes, segundo acreditavam, pertencia a um dos sete planetas conhecidos. O

chumbo era associado a Saturno, pesado opaco e lerdo. Marte era o ferro, de coloração

acastanhada e importante na guerra. O mercúrio, escorregadio e rápido, era associado ao

planeta do mesmo nome. A Lua era a prata e o Sol, naturalmente, era o ouro.

Não resta dúvida que a principal influência sobre a alquimia foi exercida pela grande

mescla de credos religiosos que encontravam expressão na cosmopolita Alexandria. Esta

intensa fermentação espiritual, toma o aspecto de um vasto sincretismo que une a arte prática

dos Egípcios e a Filosofia grega, as doutrinas orientais e o misticismo alexandrino, de uma

prodigiosa mistura de elementos orientais, gregos, judeus, cristãos.

Em meio a todas essas contrastantes perspectivas religiosas, as crenças ocultistas

pairavam sobre a cidade como uma névoa teológica. Aparentemente, os alquimistas de

Alexandria, pertencentes às diversas religiões (cristianismo, judaísmo, paganismo) sentiam-se

à vontade para escolher idéias ao acaso nesse sortimento variado de credos

Período confuso e atraente em que todas as doutrinas aspiram ao mesmo tempo à

salvação, à pureza e ao conhecimento pela iluminação; a crença de que esse conhecimento

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oculto leva a mente à perfeição, desenvolvia-se há séculos em Alexandria. Certos sábios

judeus viam a sabedoria como um meio para elevar as almas a Deus e essa idéia foi

incorporada à uma filosofia religiosa conhecida como a Cabala. No entanto, são sobretudo os

pensamentos dos gnósticos e dos herméticos, agregados a elementos da cosmologia grega que

contribuirão sem dúvida para o nascimento da alquimia alexandrina.

O gnosticismo - de gnosis, palavra grega para "conhecimento" - propunha questões

como a natureza da realidade, a busca do eterno e a batalha perpétua entre o bem e o mal. Sua

meta era libertar a alma dos grilhões perversos do mundo material e levá- la de volta a Deus.

Os alquimistas encontravam um significado profundo nessa linha de pensamento. Para obter

a perfeição do ouro, necessitavam apenas libertar a essência do nobre metal dos materiais vis,

nos quais ele estava aprisionado. No entanto, o gnosticismo foi totalmente aniquilado e seus

restos se acham de tal modo truncados que, para se ter uma idéia de seu significado interior,

torna-se necessário um estudo especializado. O gnosticismo tem alguns elementos em comum

com o sufismo, o budismo e o hinduismo. Para Goldfarb, sua origem é oriental, e daí sua

influência na alquimia alexandrina, que trazia contribuições híbridas da magia oriental, em

uma junção de magia e astrologia. Sobre este aspecto, acrescenta Goldfarb:

A origem dos gnósticos é bastante obscura, mas, é sem dúvida, oriental. Já presentes no primeiro século antes de Cristo, constituíram não uma escola filosófica, mas um tipo de sincretismo religioso anterior ao cristianismo. Os detalhes de sua concepção de mundo são pouco conhecidos mas em linhas gerais, acreditavam nos deuses-planetas dos caldeus, associando-os, de forma mágica e dual (do tipo bem/mal, luz/escuridão) aos fenômenos naturais. Esta associação era reproduzida, principlamente, através dos ritos de redenção, e morte, retirados talvez da antiga metalurgia do Oriente Médio. Provavelmente por isso tenha o gnosticismo exercido tanta influência na formação do saber alquímico alexandrino (GOLDFARB, 2001, p. 58).

O Corpus Hermeticum, coleção de tratados, escritos em grego, provavelmente

compostos entre o primeiro e o fim do terceiro século de nossa era, é a base dos documentos

da tradição Hermética. Os escritos Herméticos são tradicionalmente atribuídos a Hermes

Trismegistos5, uma deidade sincrética que combina aspectos do deus grego Hermes e do deus

5 Alguns relatos afirmam que Hermes Trimesgisto era a encarnação de Thoth, deus da sabedoria e escriba do mundo subterâneo, que veio à terra e reinou como faraó. Thoth foi o inventor da escrita e também deu ao mundo a matemática, a astronomia, a medicina e a magia. Quando os gregos incorporaram Thoth à sua própria mitologia, equipararam-no à Hermes, mensageiros dos deuses, patrono dos viajantes e dos mercadores. Seja qual for sua verdadeira identidade, os alquimistas adotaram Hermes Trismegistus, o “Três -vezes-Grande” (como Hermes era chamado) como se fosse um deles e o seu ofício tornou-se conhecido como a “Arte Hermética”.Evidentemente os tratados herméticos não são de alquimia, mas estabelecem uma interpretação sapiencial das técnicas mágico-míticas egípcias.

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egípcio Thoth. São revelações divinas da sabedoria divina, nas quais o cosmos constitui uma

unidade, cujas as partes são interdependentes, princípio que se tornou básico na alquimia. O

pensamento hermético, agregado à elementos da cosmologia grega, contribuiu sem dúvida

para o nascimento da alquimia alexandrina. Assim, sob a influência do sincretismo filosófico-

religioso, combinado com os conhecimentos práticos dos metalurgistas, muitos estudiosos

consideram que, foi neste momento histórico, que a visão filosófica que os gregos tinham do

mundo, se voltou para a perícia metalúrgica dos antigos egípcios e, unindo-se às práticas

tradicionais dos ourives, deu a luz à arte da alquimia.

O mais célebre alquimista grego, apelidado "a coroa dos filósofos", foi Zózimo

originário de Panópolis, que viveu em Alexandria no século III. Este alquimista possui um

lugar de destaque na história da alquimia, principalmente no que diz respeito à idéia do

prodigioso Filho dos Filósofos. Ponto crucial da doutrina secreta alquímica, a imagem central

do filius Philosophorum (filho dos filósofos) se fundamenta em uma concepção do Ánthropos

(homem divino) da doutrina gnóstica. A antiga doutrina do Ánthropos ou homem primordial6

diz que a divindade ou o agente criador do mundo deve ter-se tornado manifesto na forma de

um homem primogênito, quase sempre de grandeza cósmica. Este ser, o qual inquietou a

fantasia especulativa durante mais de dezesseis séculos, segundo Jung:

...aparece junto ao demiurgo, mas é um opositor das esferas planetárias; rompe o círculo das esferas e se inclina para a terra e a água (isto é, está prestes a projetar-se nos elementos). Sua sombra cai sobre a terra, mas sua imagem se reflete na água, incendiando o amor dos elementos. A imagem refletida da beleza divina o embevece de tal modo, que gostaria de habitar dentro dela. No entanto, mal desce, a Physis o envolve num abraço apaixonado. Deste abraço surgem os primeiros sete seres hermafroditas. Estes relacionam-se obviamente com os planetas e portanto com os metais, os quais se originam do Mercurius Hermaphroditus, segundo a concepção alquímica (JUNG, 1991 [A], p. 313, § 410).

Zózimo possuía uma espécie de filosofia mística ou gnóstica, cujas idéias centrais ele

projetava na matéria. Daí, sua importância: segundo Jung, a idéia do Ánthropos entrou na

alquimia em primeiro lugar através deste célebre alquimista:

... Os alquimistas, se ainda eram pagãos, tinham uma concepção mística de Deus, proveniente da Antiguidade tardia e que poderia ser designada como gnóstica, por exemplo, em Zózimo; se eram cristãos tinham ainda um acréscimo considerável as concepções mágico-pagãs a respeito de um demônio ou de uma virtus (força) ou de uma alma divina ou da anima mundi (alma do mundo), que estava inerente à physis

6 O símbolo do homem primordial, o primeiro ser que emerge com a criação do cosmos, é comum a um número de tradições religiosas e filosóficas.

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(natureza) ou nela aprisionada. Imaginava-se esta como sendo aquela parte de Deus que constitui a quintessência (...) (JUNG, 1990, p.28-29, § 29).

Esta concepção torna-se evidente já nas fontes mais antigas da alquimia,

manifestando-se, porém, só simbolicamente. Na antigüidade, o mundo da matéria era

preenchido pela projeção de um segredo anímico que, desde então, aparecia como o segredo

da matéria, assim permanecendo até a decadência da alquimia no século XVIII. Os

alquimistas insistiam na busca de uma pedra miraculosa que contivesse um "suco secreto",

uma semente metálica, pois ela é o "espírito" que penetrou na pedra. A menção mais antiga

desta essência pneumática ou substância que penetra todos os corpos, encontramos, segundo

Jung, "numa citação de Ostanes, de considerável antiguidade (datá- la antes de Cristo não é

impossível!), a qual diz: ´Vai às correntezas do Nilo e lá encontrarás uma pedra dotada de

espírito`"(JUNG, 2003, p. 210, § 265).

Essa "matéria - espírito" é o Mercúrio Filosófico, tão caro aos alquimistas como

substância arcana de transformação, que se encontra invisivelmente dentro dos minérios e

que deve em primeiro lugar ser expulso a fim de ser recuperado "in substantia".

É perfeitamente clara aqui a tendência a ver o segredo da animação anímica na

matéria. Para nossas mentes imbuídas pelas ciências naturais é quase impossível conceber e

vivenciar o estado de espírito primitivo da participation mystique, da identidade entre

fenômenos subjetivos e objetivos. É que, no nível primitivo, a vida inteira é dominada por

"pressupostos" animistas, isto é, por projeções de conteúdos subjetivos em situações

objetivas. Neste nível, a afirmação alquímica de que uma determinada substância possui

virtudes secretas, de uma pedra dotada de espírito, ou ainda, de uma força criadora do mundo,

inerente à natureza, ou nela aprisionada, torna-se bastante compreensível. Neste sentido,

assegura Jung:

...A concepção do Ánthropos nasce da idéia de que originariamente tudo era dotado de alma, e é por isso que os antigos mestres interpretavam seu Mercurius como a anima mundi (alma do mundo); assim como o primeiro era contradiço em toda matéria, valia o mesmo para a última. Ela estava impressa em todos os corpos como sua “raison d`être” e como a imagem do demiurgo, que se encarnou em sua criação e até mesmo ficou prisioneiro dela; com isso se aludia ao mito do homem primordial, que foi devorado pela Physis (natureza). Nada parecia mais simples do que identificar essa anima mundi (alma do mundo) com a imago Dei (imagem de Deus) bíblica. Ela representava a veritas (verdade) revelada ao espírito (JUNG, 1990, p. 282, § 403).

Os pontos de vista posteriores giravam em torno da seguinte idéia central: a anima

mundi (a alma do mundo), o Demiurgo ou o espírito divino que fecundava as águas do caos

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inicial permaneceu em estado potencial dentro da matéria e, com isto, se conservou também o

estado caótico inicial. Por isso os alquimistas achavam que a prima matéria era uma parte do

caos primordial “gravido” do espírito. O estado de imperfeição assemelha-se a um estado de

dormência; neste estado os corpos encontram-se como que acorrentados e adormecidos na

Physis. Estes são despertados pela substância divina extraída da pedra miraculosa, cheia do

espírito.

Por “espírito” eles entendiam uma espécie de corpo sutil, que também chamavam de

“volátil”, identificando-o quimicamente com óxidos e outros compostos separáveis. Eles

tencionavam extrair o espírito divino primordial do caos: este extrato foi chamado

quintessência, agua eterna, tintura. Como foi visto mais acima, deram ao espírito também o

nome de mercúrio, o qual, ainda que corresponda ao conceito químico de mercúrio, como

Mercurius noster (nosso mercúrio), não era o Hg comum; filosoficamente, designa Hermes, o

deus da revelação que, sob o aspecto de Hermes Trismegisto, era o pai da Alquimia. A "pedra

que tem um espírito", é a panacéia, a medicina universal, o antídoto, a tintura que transforma

o metal vil e imperfeito em ouro e o cascalho sem valor em pedras preciosas. Ela é a

portadora da riqueza, poder e saúde e em nível mais elevado, como um vivus lapis

philosophicus, é um símbolo de redentor, do Ánthropos e da imortalidade.

Como a sabedoria cabalística7 coincidia com a sabedoria da alquimia, assim também a

figura de Adam Kadmon8 (homem originário judaico) foi identificada com a do filius

philosophorum. Esta é uma continuação da doutrina gnóstica do Anthropos na alquimia, cuja

forma originária é encontrada nos textos mais tardios atribuídos a Zózimo, os quais se pode

distinguir três domínios de fontes: o judaico, o cristão e o pagão. Lá encontramos o

Ánthropos, o primeiro homem, o homem terreno carnal denominado Adam e o homem

espiritual interior nele é denominado "luz". Segue abaixo um pequeno trecho do texto

atribuído a Zózimo, reproduzido no livro Psicologia e Alquimia, de Jung:

7 Na alquimia mais tardia passa para o plano posterior o elemento do sincretismo pagão, a fim de conceber maior destaque ao elemento cristão. No século XVI finalmente torna-se de novo muito mais intensamente perceptível o elemento judaico em consequencia do influxo da cabala, que tinha se tornado acessível a circulos mais amplos primeiramente por Johanes Reuchlin e também sob a influencia de Marsílio Ficino e Picco Della Mirandola. 8 Sobre Adam Kadmon não existe clareza total nos escritos cabalísticos. Às vezes ele é concebido como a totalidade das Sefiroth, outras vezes ele aparece como uma primeira radiação, perante as Sefiroth e elevada acima delas,pela qual Deus se manifestou e de certo modo se revelou como macrocosmo de toda a criação. Neste caso, tem-se a impressão como se Adam Kadmon fosse uma primeira manifestação de Deus, intercalada entre Deus e o mundo, por assim dizer um segundo Deus. O Adam Kadmon é o homo maximus (homem máximo), que representa o próprio mundo.

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...Quando o homem-luz totalmente isento de malícia e de ação, vivia no Paraíso, atravessando pelo sopro do poder do Destino, (os elementos) persuadiram-no a revestir-se do Adam que nele estava, isto é, do Adam forjado pelos quatro elementos e pelo poder do Destino (...). Em sua inocência porem (o homem-luz) não se recusou a eles. Os elementos vangloriavam-se de tê-lo escravizado.9

Ao que tudo indica, segundo Jung, o filho de Deus, em Zózimo, é um Cristo gnóstico10

no qual o "homem" ou o "filho do homem" não coincide com a figura cristã e histórica do

salvador. O Filho de Deus é idêntico a Adam, é o Ánthropos, o primeiro homem. A substância

do arcano aparece aqui como o “homem interior”. O homem espiritual interior é semelhante

ao Cristo interior ou Deus que nasceu na alma do homem. Sendo assim, segundo Jung, o

homem-luz preso em Adão em Zózimo "é uma manifestação da doutrina pré-cristã do homem

primordial" (JUNG, 2003, p.133). Neste sentido, a imagem central do filius Philosophorum

(filho dos filósofos) exprime o "verdadeiro homem", o Ánthropos (homem divino) no

indivíduo, ou seja, "o ´homem total` oculto e ainda não manifesto, que é também o homem

mais amplo e futuro" (JUNG, 1991 [A], p.20, § 6).

Mercúrio, a designação preferida para aquele ser que na obra alquímica se transforma

a partir da prima matéria até atingir a pedra filosofal, era simbolizado como um ser vivo de

natureza hermafrodita, pois tratava-se de um espirito ctônico, material, por assim dizer, de

aspecto masculino-espiritual e feminino–corporal. De igual, maneira, a natureza dupla do

mercúrio se acha projetada no simbolismo alquímico na figura do andrógino.

Conforme a antiga tradição, da criação e queda do primeiro par humano no ciclo de

lendas judaicas e muçulmanas, Adão era Andrógino, antes da criação de Eva. Não se deve

deixar de considerar que, manifestamente, a partir da doutrina gnóstica do homem primordial

hermafrodito, penetraram no cristianismo certas influências e aí, produziram a concepção que

Adão foi criado como um andrógino. Neste sentido, como um sinônimo bíblico para o

Mercurio alquímico se oferecia sem dificuldade a figura de Adão; primeiro como andrógino

em correspondência ao Mercurio hermafroditua; e segundo, em seu aspecto duplo como

primeiro e segundo Adão. Aí, em Zózimo, Adão já é uma figura dupla, a saber: o homem

carnal e o homem luminoso.11

9 ZÓZIMO. In: BERTHELOT, Marcellin. Collection der anciens alchimistes grecs. .Paris 1887/88. Apud: JUNG,C. G. Psicologia e Alquimia. Rio de Janeiro: Vozes, 1991, p.378- 381. 10 Na esfera do Gnosticismo cristão, a figura de Cristo constitui uma ilustração do Homem Primordial, Adão. Da mesma forma que Adão antes da queda, Cristo encarna a imagem divina; o Adão mítico. 11 Segundo as doutrinas cabalísticas, o Adam Kadmon era andrógino.

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As naturezas opostas do Mercurio Filosófico também são frequentemente chamadas de

mercúrio, no sentido estrito, e enxofre (sulphur), sendo que o primeiro é associado ao

feminino, à Eva e o segundo ao masculino, à Adão.12

Adão como composição dos quatro elementos é mencionado muitas vezes na literatura

alquímica mais tardia. Em vista de sua composição dos quatro elementos Adão é designado

como microcosmo:

Devemos agora voltar-nos para a questão de como acontece justamente Adão tenha sido escolhido como símbolo para a prima materia ou respectivamente para a substância da transformação. Isso certamente se baseia sobretudo no fato de Adão ter sido formado do lutum (barro), e portanto a partir daquela materia vilis (materia vil) “espalhada por toda parte”, que axiomaticamente é considerada como prima materia e que, por isso, é desesperadamente difícil de ser encontrada, anda que esteja diante dos olhos de todos”. Ela é um pedaço do caos primordial, aquela massa confusa, que ainda não diferenciado. Dela se pode, pois fazer ainda tudo (JUNG, 1990, p. 138, § 217).

A idéia destes antigos filosofos era de que Deus se revelou em primeiro lugar na

criação dos quatro elementos. A prima matéria, a terra caótica primitiva, mãe de todas as

coisas, era o estado primordial da inimizade dos elementos. Estes elementos não estão unidos

no caos; apenas coexistem lado a lado, devendo por isso, ser unidos mediante o processo

alquímico. O intuito dos alquimistas era transformar a matéria recompondo a unidade na

pedra (ouro) e misticamente, no hermafrodita divino, no segundo Adão, no corpo de

ressureiçao, glotrificado e imortal. O demiurgo, adormecido e oculto, no seio da matéria, é

idêntico ao chamado homo philisophicus, o homem filosófico, o segundo Adão. Este último é

o homem espiritual, superior. Enquanto o primeiro Adão era mortal, por ser composto dos

quatro elementos perecíveis, o segundo é imortal, por ser composto de uma substância pura e

imperecível.

De modo semelhante descreve a alquimia o princípio de transformação do rei, a partir

de um estado imperfeito, para formar um ser intacto, perfeito, íntegro e incorruptível. Tal

figura já se acha presente no tratado de Zózimo, “Verdadeiro livro do Sophe, do egípcio e do

Senhor divino dos hebreus das forças de Sabaoth”. Comentando a citação presente em

Mysterium Coniunctionis, Jung considera, a passagem abaixo, a mais antiga menção do rei na

alquimia:

12 A dualidade enxofre -mercúrio será abordada no sub-capítulo sobra a alquimia árabe, responsável pela introdução destes no simbolismo alquimico através do alquimista Jabir.

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... Mas ao pedido de um dom, provém o símbolo químico a partir da criação do mundo para aqueles que salvam e purificam a alma divina acorrentada nos elementos, ou antes, o pneuma divino, que está misturado com a carne, assim, por exemplo, o sol que é a flor do fogo, e o sol celeste que é o olho do mundo, da mesma forma o cobre, quando se torna flor por meio da purificação, é um sol terrestre, um rei, como o sol no firmamento.13

A figura alquímica do rei deu ensejo a longas dissertações principalmente porque

alude ao mito do heroi, incluindo a renovação do rei e de Deus. Como já demonstra, a mística

egípcia do rei indica um processo que consiste no fato de o potador humano do misterio do rei

ser também incluído no processo de encarnação da divindade. Como a teologia da realeza que

apresenta maior desenvolvimento é a do antigo Egito, ao egípcio Zózimo, a mística do rei

parecia ser era ainda familiar. Daí se conclui no trecho acima, que somente se consegue o

ouro pela libertação da alma divina a partir das cadeias da carne e que o “simbolo da química”

e o rei não são outra coisa senão o ouro, o rei dos metais. Neste sentido, assegura Jung:

... Deste modo o ouro filosófico é uma espécie de representação corpórea da psique e do pneuma, na qual ambos significam algo como “espírito de vida”. Na realidade é um “aurum non vulgi” (ouro não do vulgo), por assim dizer um ouro vivo, que sob todos os pontos de vista, corresponde ao Lapis (pedra). Este é de fato um ser vivo, dotado de corpus, anima e spiritus (corpo, alma e espírito) e por isso capaz de ser personificado como um homem “excelente”, portanto, por exemplo, como um rei, que há longo tempo é considerado um deus encarnado (JUNG, 1990, p. 13-14, § 6).

Na alquimia mais tardia aparece o motivo da renovação do rei. A transformação do rei

indica de maneira primitiva a renovação da força vital. Em muitos tratados, a “decadência”

do rei deriva de sua imperfeição ou de de sua doença. O rei deve retornar aquele estado

inicial obscuro, no estado de massa confusa, desagregação, despedaçamento, pois a

dissolução é condição previa de redenção. Por isso, sua forma, nas alegorias alquímicas, deve

ser decomposta e dividida em pedaços:

Os destinos do rei idoso, seu afundar no banho ou no mar, sua dissolução e decomposição, o extinguir-se da luz em trevas, sua incineração (incineratio) pelo fogo e sua renovação no estado de caos, -- tudo isso os alquimistas derivavam da dissolução em áçidos, da ustulação, dos minérios, da expulsão do enxofre, da redução dos óxidos metálicos, etc (JUNG, 1990, p. 97, § 151).

Através destas representações, a alquimia retratava aquele ser que devia retornar

àquele estado inicial obscuro e padecer através da desagregação, despedaçamento e

13 ZÓZIMO. In: BERTHELOT, Marcellin. Collection der anciens alchimistes grecs. Paris, 1887/88. Apud: JUNG,C. G. Mysterium Coniunctionis. Rio de Janeiro: Ed. Vozes,1990, p.13, § 5 .

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dissolução simbolizado nos processos alquímicos. Esta concepção se encontra na base do

mito alquimico: trata-se de uma substancia do arcano que padece através de processos

alquímicos; processos estes que a alquimia chamava de divisio, separatio, solutio,

mortificatio e, neste caso, trata-se do rei que morre ou é morto.

Descreve assim a alquimia o princípio da transformação do rei, a partir de um estado

imperfeito para formar um ser intacto, íntegro e incorrutível. Este é o “verdadeiro homem”

que o alquimista experimenta em sua obra. Figuras como o “menino régio”, “filho do rei”

(filius regius), que aparecem nas concepções tardias da alquimia ocidental, são portanto

indênticas ao Mercurio Filosófico. Essas designações curiosas se explicam pelo fato

primordial de o filho representar uma forma rejuvenescida do seu pai, o rei. Neste sentido, o

produto final não é apenas um fortalecimento, rejuvenescimento ou renovação do estado

inicial, mas sim uma mudança para uma natureza superior. Sobre a importância da figura

central do rei na alquimia, asssegura Jung:

... A circunstancia de o rei, durante vários anos, ter representado na alquimia medieval um papel considerável, demonstra que, a partir de mais ou menos do século XIII, readquiriram nova importancia aqueles vestígios da renovação do rei, que se haviam conservado desde a época egípcio-helenística, porque passaram a ter um novo sentido (JUNG, 1990, p. 60, § 83).

Como o sol significa na alquimia o ouro, o rei evidentemente corresponde ao Sol. Isso

já se faz notavel na própria citação acima de Zózimo, no qual a pedra (no caso, o cobre) é

comparado à um sol terrestre e por isso à um rei, como o sol no firmamento. A propriedade

divina do Sol era consideravelmente viva para o homem pagão e medieval. É quase

impossivel que para um alquimista tenha passado despercebido o fato de que o sol dele

tivesse alguma relação com o homem. Segundo Jung, o sol é simbolo da fonte da vida e da

totalidade última do homem14:

De tudo o que já foi dito sobre a substancia ativa do sol, já deve ter ficado esclarecido que na alquimia “Sol” não indica propriamente uma substância química determinada, mas sim uma “virtus” ou uma força misteriosa, à qual se atribui um efeito produtor e transformador (JUNG, 1997, p. 90, § 110).

A imagem da divindade, que dorme escondida na matéria, era aquilo que os

alquimistas chamavam também de peixe redondo do mar, ou ovo, ou simplesmente rotundum

14 Ocasionalmente o enxofre (sulphur) é identificado com o ouro. O sol deriva pois do sulphur.

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(redondo)15. O Rotundum pela forma esférica representa o cosmos e tambem a alma do

mundo, a qual envolve pela parte externa o universo e o sustenta por si mesma. Como filho

do macrocosmo e como primeiro homem, o rei tambem está destinado à rotundidade, isto é, à

totalidade:

... A obtenção do redondo e perfeito significa que o filho (...) agora atinge a sua perfeição, isto é, que o Rex (rei) atinge a juventude (eterna) e que seu corpo se tornou incorruptível. Como o quadrado representa o quatérnio (quaternidade, grupo de quatro) dos elementos, que são inimigos entre si, da mesma forma a figura circular indica a união deles para formar um. O um formado dos quatro é a quinta essentia (quintessência) (...) (JUNG, 1990, p. 67, § 100).

Além da mais antiga menção da figura do rei na alquimia, um outro importante

material simbólico deste alquimista são as famosas “Visões de Zózimo”16, comentandas e

discutidas detalhadamente por Jung em Estudos Alquímicos e em O símbolo da

Transformação na missa, no qual Jung apresenta neste último um paralelo deste simbolismo

alquímico com o simbolismo do sacrifício e da transformação cristã.

Zózimo fala em diversas passagens de seus tratados a respeito de suas visões oníricas.

A primeira visao se encontra no início do “Tratado do divino Zózimo sobre a Arte”:

...Ouvi a voz daquele que estava sobre o altar, e disse a mim mesmo: vou perguntar-lhe quem é. E ele me respondeu com voz delicada, dizendo: ‘Eu sou Ion. O sacerdote dos santuários escondidos e mais interiores, e me submeto a um tormento insuportável. Com efeito, alguém veio às pressas, de madrugada, subjugou-me e me transpassou com uma espada e me dividiu em pedaços, mas de tal maneira, que a disposição de meus membros continua harmoniosamente como antes. E arrancou a pele de minha cabeça com a espada que ele vibrou com força e recolheu os ossos com os fragmentos de carne, queimanndo tudo no fogo, com a própria mão, até que percebi me haver transformado em espírito. Este é o meu tormento insuportável. Enquanto falava e eu o obr igava a fazê-lo, seus olhos se tornaram de sangue. Eu o vi transformar-se num homenzinho que perdera uma parte de si mesmo (homenzinho mutilado e diminuído). E Arrancava pedaços de sua carne com os próprios dentes e desmaiava.17

15 “Existe no mar um peixe redondo, desprovido de espinhas e escamas, mas com muita gordura.” Allegoria super librum Turbam. In: Artis Auriferae, Basiléia, 1593, p. 141. Apud: JUNG, C. G. Psicologia e religião. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 1999, p. 59, § 92, nota 27. 16 As obras encontram-se no famoso Codex Marcianus, de origem alquímica e publicadas por M. Berthelot em Collection des Anciens Alchimistes Grecs, em 1887. As visões (ou parte delas) também foram publicadas e traduzidas para o português pelas edições 70, em Alquimia e Ocultismo , em 1991. Optou-se por citar neste capítulo o trecho resumido das visões, publicado em O símbolo da transformação na missa de C. G. Jung. 17 ZÓZIMO. In: BERTHELOT, Marcellin. Collection der anciens alchimistes grecs. Paris 1887/88. Apud: JUNG, C. G. O símbolo da transformação na missa . Rio de Janeiro:Vozes, 1991 [B], p. 27.

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Segundo Jung, aparecem aqui pela primeira vez, na literatura, as idéias e conceitos de

um homunculus (homenzinho). Como foi visto mais acima, o tema da divisão em pedaços, do

castigo, da tortura, que a materia prima deve suportar a fim de ser transformada, se insere no

contexto mais vasto do novo nascimento. A serpente, seu sacrifício e desmembramento, o

milagre da transformação do ouro, a dissolução e decomposição dos metais são de fato

representações alquimicas que tratam do tema da transformação de um modo original. A

procura destes processos pelos alquimistas tem um valor simbólico, estando ligada à

transmutação do próprio alquimista. Enquanto o alquimista incandesce no forno a sua materia,

ele se submete também, por assim dizer, “moralmente” ao tormento pelo fogo e à mesma

purificação e transformação. Por isso, o homem em sua estrutura interior deve incandescer até

o mais alto grau, pois dessa forma a sua impureza é consumida. Assim como o dragão

devorador, enquanto Ouroboros (o todo uno), o homúnculo de Zózimo representa aqui o

uróboro que se autodevora e que dá a luz a si mesmo18. Como foi visto anteriormente na

figura do Rei, o despedaçamento é uma condição previa de redenção. Na figura do homúnculo

de Zózimo, o despedaçamento corresponde à ideia de uma transformação e, assim como o rei

renasce rejuvenescido em outras parábolas, na sequência das visões, o homúnculo percorre as

etapas de transformação do cobre passando pela prata até o ouro. Neste sentido, é o homem

interior que está representado nas qualidades paradoxais de um “homenzinho”. Segundo Jung,

“...Tais etapas correspondem a uma gradual valorização” (JUNG, 2003, p. 91, § 118).

Nota-se que o motivo da tortura tão recorrente nos textos alquímicos já se encontrava

nas vizões de Zózimo e neste sentido a importância deste alquimista para toda a alquimia

ulterior. Além disso, foi possivel observar que, tanto a figura do rei, central no simbolismo

alquimico, quanto a figura do homunculo (homenzinho), segundo Jung, devem à Zózimo suas

primeiras aparições. Além disso, justamente Zózimo ofereceu nesse sentido uma imagem

arquetípica sob a forma do Ánthropos (homem) divino, que, naquela época havia alcançado

importância decisiva, tanto do ponto de vista filosófico como religioso19. Segundo Jung, "...as

idéias deste autor foram normativas direta e indiretamente para toda a orientação gnóstica-

filosófica posterior da alquimia" (JUNG, 1990, p.14, § 8).

Com o tempo, os escritos dos sábios alexandrinos foram ficando cada vez mais

teóricos e evanescentes. No período de 475 a 700 d. C., os monofisistas e os nestorianos 18 Simbolo pagão muito antigo, que se fundamenta na teologia egípcia: a saber, segundo Jung, na doutrina da homoousia (igualdade de substancia de deus- pai com o deus –filho- faraó). Ouroboros deriva do grego oura (“cauda”) boros (“devorar”) e signica “o que devora a própria cauda”. 19 Figuras como as de Zózimo e Maria Prophetissa são expoentes máximos da escola alquímica de Alexandria. Entretanto a égípcia helenizada, Maria, a divina, como era chamada por Zozimo, somente será abordada no quarto capítulo, devido a sua contribuição na compreensão deste através do “axioma de maria”.

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levaram-na através da Síria e da Pérsia - de onde, após o auge do Islã, vieram sábios que

traduziram textos e os divulgaram pelo mundo árabe.

II. 3. - A alquimia Árabe

A alquimia greco-egípcia sobreviveu em Alexandria por vários séculos. Porém, no

século VII, o Egito sofreu a invasão árabe e entre as perdas famosas esteve a grandiosa

cidade de Alexandria. Sua universidade foi destruída e seu precioso depósito de manuscritos

capturado como espólio de guerra. Textos foram traduzidos por sábios impregnados de

cultura alexandrina e divulgados pelo mundo árabe. Os árabes estavam em contato direto com

diferentes sabedorias, “de culturas como a persa, a egípcia ou a mesopotâmia, agregadas ao

que restou da antiga dominação greco-romana, será formado o caldeirão de diversidades, de

onde os árabes irão moldar sua própria cultura” (GOLDFARB, 2001, p. 75).

De fato, possuímos um grande número de obras herméticas escritas em árabe.

Traduções árabes, elaborações e comentários de velhos autores gregos e greco-egípcios

recebidos de versões sírias e, finalmente traduzidos para o latim no século XII e XIII, se

tornaram um importante material para a ciência natural. Este foi o caso de Turba

philosophorum, que relata uma espécie de concílio efetuado pelos filósofos para fixar os

termos do vocabulário hermético; Segundo Hutin, em seu livro A alquimia, os interlocutores

desta obra “são Anaxímenes, Empédocles, Sócrates, Xenófanes e outros grandes pensadores

da Grécia, curiosamente arabizados em Ixidimus, Pandolfus, Frictes, Acsabofen” (HUTIN,

1992, p. 35).

Tão completamente os escritos gregos desapareceram do alcance na Idade Média na

Europa, que séculos depois, por vezes, presumiu-se, que foram os árabes, os criadores de

muitos textos gregos e alexandrinos adquiridos.

O papel dos muçulmanos na história da alquimia revela-se também pelo próprio nome

alquimia. Como o prefixo al indica, é arábico. (isto é, al-kimyâ). Porém a origem da palavra

kimya, pré-arábico, é controvertida. Para alguns, a palavra deriva de Chemeia que apresenta

uma etimologia truncada. Para alguns, Chemeia deriva do termo Citem, de origem egípcia,

isto é negro, de "país negro", nome que designa o Egito na Antiguidade; uma alusão ao

dejetos aluviais que nasciam no Nilo e fluíam anualmente para as Terras do Egito. Ou ainda,

o "negro" faria alusão ao primeiro estágio da Grande Obra, a matéria original da

transmutação, isto é, a arte de tratar o “metal negro” para produzir o ouro. Para outros,

Chemeia deriva do verbo Chew, que em grego significa derreter, isto é, a arte de fundir ouro e

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prata. Ou ainda Chemeia derivaria do grego chumos (sumo), i.é, a arte de extrair o suco ou

propriedades medicinais das plantas.

De qualquer maneira, as descobertas dos adeptos islâmicos deram ao mundo palavras

novas como elixir, arsênico, álcool, alambique, álcali, atanor. A própria noção de elixir,

somou uma nova contribuição árabe neste universo. Este, tal como a pedra filosofal,

transmudaria a matéria vil em ouro, fazendo muitas outras coisas além disso. Já vimos como

as idéias dos alquimistas taoístas retomavam também as noções de "erva da eternidade", do

elixir da "Longa Vida", pertencentes à esfera das mitologias quase universais, como busca da

imortalidade. Porém, como assegura Eliade, foram os árabes que contribuiram para a

associação da noção de elixir à obra alquímica e à Pedra Filosofal:

Os alquimistas árabes foram os primeiros a atribuir virtudes terapêuticas à Pedra e foi por intermédio da alquimia árabe que o conceito de Elixir Vitae chegou ao Ocidente.(...) O conceito alquímico do Elixir, chegado ao Ocidente por intermédio dos autores árabes, substituiu-se ao mito de uma planta maravilhosa ou de uma bebida de imortalidade, mito atestado, desde a mais alta antiguidade, entre todos os povos indo-europeus, e cujo arcaismo está fora de dúvida. O Elixir não era, assim, uma novidade no Ocidente, a não ser na medida em que era identificado à obra alquímica e à Pedra Filosofal (ELIADE, 1987, p.130-131).

De qualquer forma, a alquimia árabe tem uma peculiaridade. Ela, em si mesma, não

evoluiu de um estado de técnica mágico-mítica, nem é um resultado de uma interpretação

sapiencial de uma técnica preexistente. Ela foi adquirida pelos árabes, por assim dizer, já

pronta. Foi transposta de suas origens alexandrino-caldaicas para o contexto árabe já na forma

de alquimia e não de técnica mágico-mítica. Tanto é assim que é possível que o primeiro livro

árabe de alquimia seja o Livro da Composição Alquímica, escrito pelo conquistador árabe

Omeya Khalid Ibn Yazed ou khalid Ibn Jazid, principe omíada (séc. VII) relatando o que lhe

fora transmitido por um monge romano-egípcio, Morienus. Assim, o Alchimiae de Liber de

compositione ou O livro da Composição da Alquimia acredita-se ter sido o primeiro livro de

alquimia a ser traduzido do árabe para latim. Data-se de 1144 e marca o começo do interesse

europeu com a alquimia que resistiu por quase 900 anos. Com a tradução deste livro, Europa

foi familiarizada ao universo alquímico pela a primeira vez e os nomes de Morienus e de

Khalid tornaram-se conhecidos a todos os alquimistas em Europa.

Por outro lado, os alquimista árabes puderam distinguir nitidamente entre o conteúdo

protoquímico das operações alquímicas e as diferentes interpretações sapienciais projetadas

sobre ele. Isto porque estavam em contato direto com as diferentes sabedorias: as

alexandrinas, com sua origem sincrética greco-egípcio-judaica; os persas e sírios, com sua

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origem caldaica; e as hindus, com sua origem budista. Percebiam que a interpretação

sapiencial era diferente, mas a técnica subjacente era a mesma. Disto resultou que muitos

destes foram mais protoquímicos experimentais que místicos sapienciais. Daí o grande

desenvolvimento da paleoquímica árabe - a qual realmente formou a base da química

européia. Assim é que o interesse principal da alquimia árabe era o da preparação dos elixires

para a cura das doenças. Formaram eles uma farmacopéia de remédios, à base de sais

minerais, a qual permaneceu em uso até bem próximo de nossos tempos. Entre os

responsáveis por essa farmacopéia estão os dois primeiros grandes alquimistas árabes. O

primeiro é Jabir ibn Hayyan20 (721-815) considerado o pai da alquimia árabe, que os

ocidentais denominavam Geber. Foi um médico e um grande sábio, que tentou aplicar a

matemática ao estudo do cosmo e descobriu um certo número de corpos químicos novos,

como a aqua rigia (agua régia), uma das poucas substancias suficientemente corrosivas para

dissolver o ouro. A sua obra mais importante, a Summa perfectionis magisterii, só é

conhecida em tradução latina.

No domínio teórico, Jabir desenvolveu as teorias de Aristóteles. Enquanto o grande

filósofo grego ensinava que as "exalações" da terra geravam metais e minerais, Jabir afirmava

que o processo não era tão direto. Segundo ele, os vapores fumarentos transformavam-se

primeiro em enxofre (Sulphur), e os brumosos em mercúrio. Estes, por sua vez, eram blocos

básicos de todos os metais. Impurezas inatas do enxofre e do mercúrio causavam a formação

de metais menores como o ferro e o chumbo. Mas se o alquimista conseguisse tornar essas

substâncias quimicamente puras, o resultado seria o ouro. Jabir distingue dois princípios

geradores dos metais: o enxofre e o mercúrio. O enxofre designa o princípio da fixidez da

matéria, pela secura ígnea do fogo e coagulação da terra, cuja a propriedade sulfurosa é ativa,

ou seja, secativa/coaguladora. O mercúrio designa o princípio da mutabilidade da matéria,

pela umidade fria da água e volatilidade do ar, cuja a propriedade mercurial é passiva, ou

seja, dissolvente/volátil de todos os metais.

A idéia de que os metais eram compostos de enxofre e mercúrio (posteriormente será

incluído um terceiro: o sal ) se configura como a principal contribuição da teoria de Jabir para

a alquimia. Entretanto há controvérsias com relação à este fato. Primeiramente Marcelin

Berthelot acreditava, no século XIX, que a obra latina de Geber, bastante popular na alquimia

do século XIII, nada teria a ver com a figura de Jabir, cujo o trabalho era pouco conhecido

20 Sobre os trabalhos de Jabir confira :STAPLETON, H.E. The antiquity of alchimy , Ambix, vol. V, 1956.Cf. também em HOLMYARD, E.J. (ed.) The works of Geber, reedição inglesa de 1678, feita por. R. Russel, New York:E.P.Dutton & Co.,1928.

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pelos medievais europeus. Além disso, Goldfarb considera que a obra Jabiriana, parte

provavelmente das idéias de Balinus, o qual associam ao nome Apolônio de Tyana, filósofo

itinerante da Capadócia, figura importantíssima na formação da escola neopitagórica. Supõe-

se que sejam seus os originais de Balinus, criador da teoria da dualidade enxofre-mercúrio

que mais marcou a alquimia árabe. Entretanto, Goldfarb também menciona que,

provavelmente, Jabir tivessse conhecimento da teoria chinesa sobre a composição mineral do

ouro alquímico. Os alquimistas chineses imaginavam que o ouro alquímico deveria surgir do

equilíbrio de Yin e Yang. O princípio Yin ficaria a cargo do mercúrio, renascido pela

mortificação do cinábrio, parte feminina e receptora que seria unido ao princípio masculino

Yang, um princípio sulfuroso, ativo e penetrante, e dessa união nasceria o ouro alquímico.

Neste sentido Goldfarb considera:

A obra Jabiriana parte provavelmente das idéias de Balinus (Apolônio de Tyana) sobre a composição mineral, baseada na teoria do “enxofre” e “mercúrio” em diferentes proporções, sendo a proporção perfeita, segundo Jabir, a do ouro. Ele sabia que a mistura de enxofre e mercúrio tinha como produto final o cinábrio, atribuindo, portanto, ao “mercúrio” e “enxofre” da composição dos metais, qualidades excepcionais, das quais as substancias comuns com esses nomes seriam meras aproximações (GOLDFARB, 2001, p. 86).

De qualquer modo, Jabir ficou com o crédito ter sido o responsável pela introdução

destas concepções no universo alquímico. Waldstein, já citado anteriormente, assegura que

"...são numerosos os que lhe atribuem o mérito de ter posto em evidência a dualidade

enxofre-mercúrio, que será a base de toda a alquimia ulterior" (WALDSTEIN, 1990, p.38).

Posteriormente, um terceiro elemento foi incluído nesta concepção da dualidade enxofre-

mercúrio: o sal. Ele é o meio de união entre o Enxofre e o Mercúrio. O sal designa o princípio

anímico da matéria, pois é o elemento novo que aparece no mundo. A alma do mundo

penetra tudo, e da mesma forma o sal. Ele está simplesmente em toda a parte, e por isso

preenche a expectativa relativa à substancia do arcano, de que ela deva ser encontrada por

toda a parte. Compete ao sal as qualidades como substancia luminosa e o significado de um

princípio cósmico. Apesar de geralmente a substância do arcano ser identificada como

Mercurio Filosófico, só em época posterior, o Sal adquiriu significação de um princípio e,

entao, apareceu mais claramente como substancia do arcano e figura independente na tríade,

enxofre-mercúrio-sal:

... Não causa nenhuma estranheza se o “sal” se torna uma das designações de substância do arcano. Parece que essa designação se desenvolveu nos começos da

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Idade Média por influência árabe. Os véstígios mais antigos dela se encontram na Turba Philosophorum, onde o sal e a água do mar já sao sinônimos da aqua permanens (água eterna). (JUNG, 1997, p. 181, § 234).

Esta inclusão do sal na dualidade alquímica do enxofre- mercúrio foi atribuída à Abu

Bakr Muhammad ibn Zakaryya al-Razi (866-925), médico e sucessor de Jabir, conhecido

como al-Razi ou Rahzes. Escreveu 21 livros de alquimia, mas somente alguns são

conhecidos. No Kitab Sirr al-Asrar (Livro do Segredo dos Segredos)21, Razi faz uma

exposição minuciosa e classificatória dos equipamentos e das substâncias utilizadas até então

na alquimia. De maneira reduzida, com relação às substâncias, classificava estas como

animal, vegetal e mineral. As minerais podiam ser espíritos, pedras, corpos, vitríolos, boraxes

e sais. Os espíritos podiam ser de quatro variedades: dois voláteis e incombustíveis, o

mercúrio e o sal amoníaco, e dois voláteis e combustíveis, o enxofre e o arsênico.

Os textos de Jabir e al-Razi inclinam-se mais para uma apresentação da alquimia

prática, experimental, deixando de lado a parte mística e filosófica típica de Alexandria.

Assim, embora admitissem a transmutação de metais e a busca de elixires, os principais

alquimistas desta época concentraram-se mais nos aspectos práticos da arte no laboratório.

Esta atitude influenciou não só os alquimistas árabes posteriores como também, séculos mais

tarde, os alquimistas europeus22. Por outro lado, os árabes contribuíram substancialmente para

a formulação da teoria da composição das substâncias (teoria enxofre-mercúrio). É

desnecessário comentar que esse triunvirato de ingredientes, mercúrio, sal e enxofre, viveria

por séculos nas tradições da alquimia.

Apesar do Mercúrio Filosofal geralmente constituir a meta do Opus alchymicum, os

filósofos sempre dissimularam o nome vulgar da sua matéria, sob uma infinidade de epítetos. 21 Há um outro livro chamado O secretorum do secretum; é um tratado medieval conhecido também como o segredo dos segredos, ou o livro do segredo dos segredos. É uma tradução latina do século XII de uma pesquisa enciclopédia árabe que aborda uma larga escala de tópicos incluindo política, ética, fisionomia, astrologia, alquimia, e medicina. Acredita-se ser uma recomendação suposta de Aristóteles a Alexandre, durante sua campanha em Persia Este é um livro completamente diferente e é uma fonte comum de confusão por causa da semelhança dos nomes, pelo conteúdo similar e, pelo período de tempo. Texto disponível em : http://www.colourcountry.net/secretum/node2.html 22 Um outro grande filósofo-cientista surgiu na Pérsia no século X, Abu Ali al-Husayn ibn Abd Allah ibn Sina (980-1037) ou Avicena, seu nome no ocidente. Avicena, um insaciável estudioso, dedicou-se à medicina e à filosofia tendo sido considerado, pelo seu vasto conhecimento, o principal sábio da Pérsia. É reconhecido no ocidente como príncipe da medicina . É o primeiro filósofo árabe, do qual se conserva uma biografia e restam quase todas as obras . Avicena, pressupondo a unidade da filosofia, tentou conciliar as doutrinas de Platão e Aristóteles. Sua filosofia sintetiza a tradição aristoteliana, as influências Neoplatonicas e da teologia muçulmana.Embora aceitasse a teoria aristotélica dos elementos, Avicena rejeitava a transmutação de metais. Reconhecia que o que os alquimistas conseguiam na verdade era fazer imitações colorindo os metais vulgares de branco (prata), amarelo (ouro) e cor de cobre. Acreditava que estas qualidades eram impingidas aos metais e que os processos usados, entre os quais a fusão, por exemplo, não podiam afetar a proporção de seus elementos constituintes. Considerava que a proporção de tais elementos era uma característica de cada metal. Assim como suas obras as idéias alquímicas de Avicena tiveram grande influência nos séculos posteriores.

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Em resumo, é exato afirmar que o enxofre e o mercúrio são os únicos parentes da pedra.

Assim, o Mercúrio Filosofal é designado de maneira adequada como duplex, como ativo e

passivo. Sua parte “ascendente”, que se mostra ativa é chamada de Sol (ou enxofre), com

muito acerto e, somente por meio dessa parte, é que se percebe a outra parte, que é passiva.

Esta última recebeu, pois o nome de lua (ou mercúrio no sentido estrito), porque ela toma do

sol a luz que tem.

Entretanto, em algumas variantes da alquimia, ao enxofre se atribui também o poder

de dissolver, matar e reanimar os metais que são propriedades de mercúrio e, neste sentido, se

atribui quase tudo o que se diz do primeiro. Sendo assim, em alguns textos alquímicos, o

sulphur (enxofre) é um dos muitos sinônimos para designar a prima matéria em seu aspecto

duplo, isto é como materia inicial e como produto final. Nestes textos, no começo se acha o

enxofre cru ou vulgar, no fim ele é um produto do processo de sub limação. Sob este aspecto

representa ele, o ouro, ou respectivamente, o Sol. Como foi visto no sub-capítulo anterior

referente à alquimia alexandrina, também o Sol, em alguns tratados, significa a substancia do

arcano, de modo que para retratar a natureza dupla deste, os alquimistas chegaram a inventar

até uma sombra para o sol. Esta concepção já se encontra na Turba Philosophorum um dos

mais importantes tratados árabes: “quem pois tingir o veneno dos sábios com o sol e sua

sombra, chegou ao mais alto mistério”23.Também o Sal, por ser a substancia do arcano em

alguns casos, não escapou do caráter paradoxal e a duplicidade de natureza. Desse modo se

diz na Gloria Mundi “que no sal há dois sais”24.

Porém, de modo geral o Sol, como ouro é considerado a metade masculina e ativa do

Mercúrio Filosofal e a Lua, como prata, a parte feminina e passiva deste último25. Com a

síntese final do mercúrio e do enxofre, o alquimista encontra o mercúrio filosófico, e assim

encerra-se este sub-capítulo.

Sabe-se que os esforços pioneiros de Jabir abriram uma idade de ouro para a alquimia

árabe. Foi principalmente por intermédio dos árabes que a alquimia atingiu o Ocidente

Cristão. É pela Espanha - que durante muitos séculos, ficara sob o domínio dos muçulmanos

na maior parte do território - que se fará a principal penetração, a partir do século X. A

alquimia chegou à Europa através das traduções e adaptações de textos árabes, as quais, por

sua vez, já eram traduções e adaptações de velhos textos helenísticos. Nestes textos originais, 23 Turba Philosophorum. In: RUSKA, Julius. Buch der Alaune and Salve (De speciebus salium). Berlim, 1905, p. 130. Apud: JUNG, C. G. Mysterium Coniunctionis. Rio de Janeiro: Ed. Vozes,1997, p. 94, § 114, nota 38. 24 Gloria mundi , alias paradysi tabula. In: Musaeum Hermeticum. Frankfurt, 1678, p. 217s. Apud: JUNG, C. G. Mysterium Coniunctionis. Rio de Janeiro: Ed. Vozes,1997, p. 244, §331. 25 De acordo com a autoridade máxima da Tabua de Esmeralda, o sol é o pai de mercúrio e a lua, sua mãe. Cf em TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo. Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p.23.

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a alquimia já tinha adquirido, um estágio final, se bem que diferente da européia; pois que

houve uma reinterpretação cristã ocidental. Tais reinterpretações serão evidentemente

abordadas nos próximos capítulos, ao tratarmos dos estágios do alquimista Gerardus Dorneus.

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III – AS FASES ALQUÍMICAS E SUAS RELAÇÕES COM OS GRAUS DA

CONIUNCTIO DO ALQUIMISTA DORNEUS, ANALISADOS À LUZ DA

PSICOLOGIA PROFUNDA DE CARL GUSTAV JUNG

III. 1. O Opus Alchymicum e seus estágios

Os textos alquímicos obedeciam uma sucessão de operações e procedimentos

alquímicos complexos com o propósito de criar uma substância miraculosa. No que diz

respeito ao curso exato dos processos e seqüência dos estágios alquímicos, a maioria dos

alquimistas concorda com os principais pontos; assim quatro estágios são assinalados

caracterizados pelas cores originárias: o enegrecimento, o embraquecimento, o amarelamento,

e o enrubescimento. A divisão do processo em 4 fases era chamada a Tetrameria da Filosofia.

Mais tarde, entre os séculos XV e XVI, as cores foram reduzidas a três, e a chamada fase

"citrinitas", o estágio do amarelamento, caiu gradualmente em desuso.

Já nas visões oníricas de Zózimo (séc. III), encontram-se referências à sucessão de

mudanças, etapas e cores durante a Opus alchymicum:

E neste sistema, único e de variadas cores, está compreendida uma investigação múltipla e variada, subordinada à influência da Lua e à medida do tempo, que determina a finalidade e o progresso que regem a transformação da natureza.1

Também a egípcia helenizada Maria Prophetissa2 (ou Maria, a Judia), uma das

mulheres alquimistas mais importantes e um dos alquimistas mais antigos que se tem notícia,

faz referência ao “negro, o branco e ao alaranjado”, em seu tratado “Diálogo de Maria e Aros

sobre o Magistério de Hermes”3. A sucessão de cores no procedimento alquímico negro,

branco e alaranjado, fazem alusão à nigredo, albedo e a rubedo durante a Obra:

1 ZÓZIMO. In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo , Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 26. 2 Tal como aconteceu com a maioria dos primeiros adeptos, a identidade de Maria, perdeu-se na obscuridade. No passado, os alquimistas achavam que se tratava de Miriam, irmã de Moisés, ou a copta, mas há poucas evidencias para comprovar tal hipótese. Não é impossivel que esteja relacionada com a Maria da tradição gnóstica. É mais provavel que ela tenha vivido aproximadamente no século II, em Alexandria e, seja qual for a sua origem, o certo é que era um gênio para desenhar equipamentos de laboratório e usá-los de maneira original. Sua principal contribuição foi um aparelho chamado Kerotakis, destinado a esquentar substancias químicas e coletar seus vapores. Maria, também destaca-se como a inventora do famoso “banho–maria”. 3 O texto original foi impresso em um número de compêndios em latim e em alemão, como por exemplo no primeiro volume do Artis Auriferae (Da arte aurifera), sob o título Practica Mariae propheyissae in artem alchimicam (Exercícios práticos da profetisa Maria referentes à arte alquímica). Texto disponível na internet: http://www.levity.com/alchemy/maryprof.html. O texto integralmente também foi publicado, tal como aparece

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Conservai os vapores – ripostou Maria – e não deixeis que nada escape. Fazei o vosso fogo em proporção com o calor do sol do mês de Junho e Julho. Mantende-vos junto do vosso vaso e vereis coisas que vos surpreenderão. Em menos de três horas a vossa matéria tornar-se-á negra, branca e alaranjada; os vapores penetrarão no corpo e o espírito ficará preso. A mistura tornar-se-á então como leite penetrante e fundente. Este é o segredo escondido.4

Maria Prophetissa juntamente com Zózimo, formam os expoentes máximos da escola

alquímica de Alexandria. Buscando percorrer o traçado da expansão histórica da alquimia e,

passando da alquimia greco-egípcia para a alquimia árabe, a sucessão de cores também é

anunciada no tratado alquímico, o Livro da Composição Alquímica, que como foi visto

anteriormente grava um diálogo entre o primero adepto islâmico, Omeya Khalid Ibn Yazed ou

khalid Ibn Jazid, principe omíada (séc. VII) e o cristão de Alexandria, Morienus. Lá,

Morienus, discorre sobre a importância do “Mágistério” ser feito de uma única substância e

uma única matéria, e neste sentido, chama a atenção também para a sucessão de etapas e cores

durante o Opus alchymicum :

... E da mesma maneira que o corpo do homem contém os quatro elementos, Deus criou-os também distintos e separados e unidos e dobrados em Uno, mas repartidos por todo o corpo, que os contém a todos como se estivessem submergidos nele, e os retém todos numa coisa só. Mas se cada um deles pode realizar uma operação particular, e diferente dos demais, ainda que estejam no mesmo corpo, isto não impedirá que cada um deles tenha a sua cor particular e o seu próprio domínio. Passa-se exatamente o mesmo no nosso Magistério (porque as cores que dependem cada uma de um elemento aparecem uma após a outra). Os filósofos disseram muitas coisas similares sobre este Magistério (...) 5

Durante o diálogo, Khalid parece não compreender se a sucessão de cores durante a Obra,

e suas conversões umas nas outras, ocorrem em uma única operação, ou com duas ou mais.

No trecho a seguir, Morienus trata sobre a necessidade da Obra alquímica seguir uma exata

sequência de fases para atingir o seu fim:

MORIEN – A matéria muda com uma só operação, mas quanto mais cores diferentes recebe do calor do fogo, mais nomes diferentes se lhe dá. (...) Pois da mesma maneira que o Magistério tem um nome próprio, há também uma disposição ou operação que lhe é particular, e para a fazer só há um caminho certo. (...) 6

na versão da edição francesa de “Bibiothèque des auteurs chimiques” de 1672, na seleção de textos alquímicos publicados em Alquimia e Ocultismo , pelas Edições 70, em 1991. 4 DIÁLOGOS de Maria e Aros sobre o Magistério de Hermes. In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo , Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 38. 5 DIÁLOGOS entre o rei Khalid e o filósofo Morien sobre o Magistério de Hermes. In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo , Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 56. 6 Ibidem. p. 58.

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A sucessão de cores também é anunciada em Jabir ibn Hayyan (séc. VIII), mais

conhecido como Geber no ocidente, já citado anteriormente e, considerado o pai da alquimia

árabe. Destaca-se a seguinte citação presente no comentário da décima quinta gravura do

Rosarium philosophorum (Rosário dos Filósofos):

Geber em seus primeiro livro e vigésimo sexto capítulo: Nós concedemos concordamos então de acordo com a opinião dos homens antigos que seguiam esta arte, que os princípios naturais do trabalho da natureza, é um espírito fedorento, que é o Enxôfre, e a água rápida, o qual nós concordamos também ser nomeada água seca. Mas nós dividimos o espírito fedorento, porque é branco no segredo, assim como vermelho e preto no magisterio deste trabalho, mas no manifesto ambos tendem a ser vermelho.7

O espírito fedorento é a prima materia, a qual devem todos alquimistas trabalhar.

Nesta primeira matéria da arte, parcela do caos original, todos os elementos convivem em

desarmonia, pois ela contêm em potência todas as qualidades e propriedades das coisas

elementares. As cores preto, branco e vermelho fazem alusão às fases nigredo, albedo e

rubedo, porém, procurando iludir os falsos alquimistas, nesta citação, elas não apresentam

uma ordem definida. O mesmo ocorre em Turba Philosophorum ou Assembléia dos filósofos,

um dos primeiros manuscritos do árabe traduzidos para o latim, que relata uma espécie de

concílio efetuado pelos filósofos para fixar os termos do vocabulário hermético. Destaca-se no

diálogo de “Eximenus”, no “nono dito”, a seguinte citação:

... Eu dar-lhe-ei um axioma fundamental, a menos que você transforme o cobre acima dito no branco, e faça moedas visíveis e então mais tarde transforme-as outra vez na vermelhidão, até uma Tintura: resulta que certamente você realiza nada. Queime conseqüentemente o cobre, quebre-o acima, prive-o de seu negrume, cozinhando, molhando, e lavando, até o mesmo tornar-se branco. Domine-o então.8

Nota-se que o negrume, a brancura e a vermelhidão não apresentam uma sequência

clara. Inicialmente fala-se em transformar o cobre em “branco” para posteriormente

transformá-lo na “vermelhidão da Tintura”. Entretanto, tendo dito isso, volta-se novamente

7 “Geber in his First Book and 26th Chapter: We grant therefore unto thee according to the opinion of the ancient men which were following this art, that the natural principles of the work of nature, are a stinking spirit, that is Sulphur, and quick water, which we also grant to be named dry water. But we have divided the stinking spirit, for it is white in secret and both red and black in the magistery of this work, but in manifest both of them tend to be red.” THE ROSARY of the Philosophers. (1550). Acesso em: http://www.alchemywebsite.com/rosary0.html . 8 “…I will give you a fundamental axiom, that unless you turn the afore said copper into white, and make visible coins and then afterwards again it into redness, until a Tincture: results, verily, ye accomplish nothing. Burn therefore the copper, break it up, deprive it of its blackness by cooking, imbuing, and washing, until the same becomes white. Then rule it” TURBA Philosophorum. (s.d). Acesso em: http://www.alchemywebsite.com/turba.html .

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para a necessidade de queimar, cozinhar e lavar o cobre até que este seja despojado de sua

“obscuridade”. Entretanto no “décimo dito”, tal sequência de cores é citada detalhadamente:

Arisleus diz -- Saiba que a chave deste trabalho é a arte das moedas. Pegue entao o corpo que eu tenho demonstrado a você e reduza-o à tabuletas finas. Em seguida mergulhe as tabuletas na água de nosso mar, que é água permanente, e, depois que isto estiver coberto, ajuste-as sobre um fogo delicado até que as tabuletas estejam derretidas e se transformem águas ou a Etheliae, que são um e a mesma coisa. Misture, cozinhe, e ferva em um fogo delicado até que Brodium esteja produzido, como a Saginatum. Agite então em sua água de Etheliae até que coagulem, e as moedas tornem-se diversificadas, que nós chamamos a flor do sal. Cozinhe-a, conseqüentemente, até que esteja privada do negrume, e a brancura apareça. Então friccione-a, misture-a com a cola do ouro, e cozinhe até que se transforme Etheliae vermelho. Use a paciência na trituração a fim de que não você se torne cansado. Embeba a Ethelia com sua própria água, que precedeu dela, que é também água permanente, até a mesma tornar-se vermelho.9

A “água de nosso mar” ou a “água de Etheliae” são todos sinônimos da primeira

matéria da obra, pois, como o próprio texto assegura, são um e a mesma coisa. As moedas

devem ser então reduzidas à “tabuletas finas”, e derretidas nesta água, a fim de que sejam

reduzidas à primeira matéria da obra. Os filósofos herméticos, estavam sempre atentos à

esconder o segredo da sua arte, e usaram de muitos artifícios. Neste sentido, esta matéria

desconhecida, recebe diversos nomes, como na citação acima, Etheliae, Brodium e

Saginatum. Assim, a substância do arcano, ou seja, as “moedas” devem (como no diálogo de

“Eximenus”) ser queimadas, cozidas até que sejam despojadas de sua “obscuridade” (alusão à

nigredo) e a brancura apareça na Flor do Sal (alusão à albedo). Posteriormente, deve-se

embeber a mistura com a sua própria água, o que significa que esta mistura deverá ser

destilada e, por isso, embebida pela própria essencia dela extraída, até que seja elevada ao

grau máximo de pureza pelo movimento circular continuado e por fim, bem fixada “com a

cola do ouro”. Assim, embebendo a Ethelia com sua própria água, (que precedeu dela, que é

também água permanente) ela tornar-se-á avermelhada (alusão à rubedo).

A sucessão de cores não influenciou somente os alquimistas árabes posteriores como

também, séculos mais tarde, os alquimistas europeus. Alberto Magno (1193-1280), monge

9 “Arisleus saith:- Know that the key of this work is the art of Coins. Take, therefore, the body which I have shewn to you and reduce it to thin tablets. Next immerse the said tablets in the Water of our Sea, which is permanent Water, and, after it is covered, set it over a gentle fire until the tablets are melted and become waters or Etheliae, which are one and the same thing. (…). Then stir in its water of Etheliae until it be coagulated, and the coins become variegated, which we call the Flower of Salt. Cook it, therefore, until it be deprived of blackness, and the whiteness appear. Then rub it, mix with the Gum of Gold, and cook until it becomes red Etheliae. Use patience in pounding lest you become weary. Imbue the Ethelia with its own water, which has preceded from it, which also is Permanent Water, until the same becomes red. (…)”.TURBA Philosophorum. (s.d). Acesso em: http://www.alchemywebsite.com/turba.html.

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dominicano considerado “o Grande”, em seu tratado Compositum de Compositis10, o

Composto dos Compostos, no quinto capítulo, sobre a “Prática do Mercúrio dos sábios”

considera:

Para cada grau maior de perfeição do Elixir, é o mesmo que para o Elixir branco, até que, por fim, tinja o Sol de quantidades infinitas de Mercúrio e de Lua. Agora, possuis um precioso arcano, um tesouro infinito. Por isso, os filósofos dizem: “A nossa Pedra tem três cores: negra no princípio, branca no meio e vermelha no fim”. Um filósofo afirma: “O calor, actuando, primeiramente, sobre o húmido, engendra negrura, a sua acção sobre o seco engendra brancura e, sobre esta, engendra a vermelhidão. Porque a brancura não é mais que a privação completa de negrura. O branco fortemente condensado pela força do fogo, engendra o vermelho.” “Todos vós, investigadores que trabalhais a Arte - disse outro sábio - Quando vejais aparecer o branco no vaso, sabei que o vermelho está oculto nesse branco. Falta-vos extraí-lo dele, e, para isso, é preciso aquecer fortemente, até à aparição do vermelho.11

Artephius, um grande filósofo hermético, cujo o nome verdadeiro nunca foi

conhecido, diz ter vivido mais que mil anos por meio dos segredos alquímicos. Embora seus

trabalhos fossem realizados sem datas, se sabe que escreveu seu livro secreto no século de

XII. Segue uma importante citação sobre a sucessão de cores durante a obra, presente no

trigésimo oitavo parágrafo do O Livro Secreto de Arthephius:

(38) Pois nossa terra se decompõe e torna-se preta, então ela é decomposta na elevação ou separação; mais tarde tornando-se seca, sua obscuridade vai se afastando, e então ela fica embranquecida, e o dominio feminino da escuridão e da umidade perece; então também o vapor branco penetra através do corpo novo, e os espíritos são ligados acima ou fixados na secura. E isso que é corrompido, deformado e preto através da umidade, desaparece se afastando; assim o corpo novo levanta-se outra vez desobstruído, puro, branco e imortal, obtendo a vitória sobre todos seus inimigos. E como o calor trabalhando em cima daquele que é úmido, causa ou gera o negrume, que é a cor principal ou primeira, assim sempre pela decocção mais e mais calor trabalhando em cima daquele que está seco gera a brancura, que é a segunda cor; e então trabalhando em cima disso que está puramente e perfeitamente seco, produz o amarelamento e a vermelhidão, desta forma muitas cores. NÓS devemos saber conseqüentemente, essa coisa que tem suas cabeças vermelhas e brancas, mas seus pés branco e mais tarde vermelho; e seus olhos de antemão pretos, essa coisa, eu digo, é a única matéria do nosso magistério.12

10 O presente tratado, Compositum de Compositis, encontra-se no tomo IV do Theatrum Chemicum, pg.825, de onde foi traduzido para francês por Albert Poisson. Texto disponível na Internet: http://pwp.netcabo.pt/r.petrinus/Alberto-p.htm. A tradução portuguesa é de Rubellus Petrinus. 11 MAGNO, Alberto (s.d.) Compositum de Compositis. Acesso em: http://pwp.netcabo.pt/r.petrinus/Alberto-p.htm. 12 “(38) For our earth putrefies and becomes black, then it is putrefied in lifting up or separation; afterwards being dried, its blackness goes away from it, and then it is whitened, and the feminine dominion of the darkness and humidity perisheth; then also the white vapor penetrates through the new body, and the spirits are bound up or fixed in the dryness. And that which is corrupting, deformed and black through the moisture, vanishes away; so the new body rises again clear, pure, white and immortal, obtaining the victory over all its enemies. And as heat working upon that which is moist, causeth or generates blackness, which is the prime or first color, so

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Obtêm-se-se nesta citação retirada do Livro secreto de Arthephius, uma visão das três

fases condensadas em um só parágrafo13. Como na citação presente do Composto dos

compostos, o calor, atuando, primeiramente, sobre o úmido, engendra negrura, a sua ação

sobre o seco engendra brancura; Arthephius também considera, primeiramente, que “o calor

trabalhando em cima daquele que é úmido, causa ou gera o negrume, que é a cor principal ou

primeira”. Neste sentido, o embranquecimento da terra decomposta, só ocorre quando o que é

“corrompido, deformado e preto através da umidade” desaparece e “o domínio feminino da

escuridão e da umidade perece”. Por isso o Livro secreto de Arthephius ressalva à “sempre

pela decocção mais e mais calor trabalhando em cima daquele que está seco”; pois desta

maneira separa-se da mistura a parte mais volátil por evaporação seguida da condensação e “o

corpo novo levanta-se outra vez desobstruído, puro, branco e imortal, obtendo a vitória sobre

todos seus inimigos”. O termo “levanta-se outra vez” denota que está operação é repetida

várias vezes, como na “Ethelia de Arisleus”, que é embebida com sua própria água, até que

“gere a brancura, que é a segunda cor”. Além disso, assim como na citação do Composto dos

Compostos, quando aparece o branco no vaso, sabe-se que o vermelho está oculto nesse

branco; desta maneira, a mistura é elevada ao seu grau máximo de pureza pelo movimento

circular continuado. Isso significa, segundo Arthephius, que “o vapor branco penetra através

do corpo novo, e os espíritos são ligados acima ou fixados na secura”; por isso o branco

fortemente condensado pela força do fogo, engendra o vermelho, como assegura o Composto

dos Compostos.

A sucessão de cores é também abordada no sexto capítulo do tratado The mirror of

alchemy (O espelho do alquimia), atribuído à Roger Bacon (1214-1294), o qual é intitulado

“Das cores acidentais e essenciais que aparecem no trabalho”. Segue abaixo um trecho deste

capítulo:

always by decoction more and more heat working upon that which is dry begets whiteness, which is the second color; and then working upon that which is purely and perfectly dry, it produces citrinity and redness, thus much for colors. WE must know therefore, that thing which has its head red and white, but its feet white and afterwards red; and its eyes beforehand black, that this thing, I say, is the only matter of our magistery.” ARTHEPHIUS (s.d.) The Secret Book of Artephius. Acesso em: http://www.levity.com/alchemy/artephiu.html 13 Arthephius nesta citação faz referencia ao estágio do amarelamento, "citrinitas" que gradualmente caiu em desuso no século XIV e XV. O termo em inglês “citrinity” foi citado em algumas traduções inglesas como o tratado alquímico Atalanta fugiens do alemão Michael Maier e O livro das figuras hieroglícas do francês Nicolas Flamel. Neste último, na tradução de Luis Carlos Lisboa, o termo encontra-se traduzido por “alanjado”. Preferiu-se na presente citação traduzir “citrinity” por “amarelamento”, devido ao termo em inglês “citrine”. Do Latim, citrina, citrino, é uma variedade de quartzo amarelo que constitui pedra preciosa. No entanto, há também Citrinus, do latim medieval , que significa da cor da cidra ou do limão.

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CAPÍTULO VI. Das cores acidentais e essenciais que aparecem no trabalho. A matéria da pedra assim terminada, você deverá saber a exata maneira de trabalhar, por qual maneira e regimento, a pedra é mudada frequentemente na decocção em cores diversas. Portanto se diz, assim muitas cores, assim muitos nomes. De acordo com as diversas cores que aparecem no trabalho, os nomes do mesmo modo foram variados pelos filósofos: em cima do qual, na primeira operação de nossa pedra, é chamada putrefação, e nossa pedra é feita preta: a partir do qual se diz, quando você encontra isso preto, sabe que no negrume a brancura está escondida, e você deve extrair a mesma da mais sutil negridão. Mas depois da putrefação desenvolve-se o vermelho, não com uma vermelhidão verdadeira, da qual se diz: isto é muitas vezes vermelho, e frequentemente de uma cor do citrino, muitas vezes derrete, e é frequentemente coagulada, antes da brancura verdadeira. E dissolve-se, coagula-se, putrifica-se, colore-se, mortifica-se, ressucita-se, se faz preta, se faz branca, se faz vermelha. (...) 14

Nota-se que, como Arthephius, em seu livro secreto, Bacon nesta citação também

menciona “uma cor do citrino” fazendo referência ao estágio do amarelamento, "citrinitas",

que no século XIII, ainda era bastante mencionada nos tratados.

Essas citações poderiam preencher grossos volumes e estenderem-se até o século XX,

com Fulcanelli, um dos últimos grandes adeptos conhecidos nesta arte, se certamente não

bastasse abrir qualquer livro que se refira, de longe ou de perto à alquimia, para saber que nele

são mencionadas as três cores principais que durante os trabalhos se sucedem: o negro, o

branco e o vermelho. De fato, parece que é esse o aspecto do trabalho que foi melhor descrito

pelos adeptos quando se referiam às fases coloridas da obra. Estas fases gerais poderiam ser

produzidas por uma combinação de diferentes procedimentos químicos-alquimícos, como a

solução (solutio), a calcinação (calcinatio), a coagução (coagulatio), sublimação (sublimatio),

e outras, sendo a Coniunctio (união), necessariamente a última, por representar a unificação

na pedra filosofal.

14 “CHAPTER VI.Of the accidental and essential colours appearing in the work.The matter of the stone thus ended, you shall know the certain manner of working, by what manner and regiment, the stone is often changed in decoction into diverse colors. Whereupon one says, So many colors, so many names. According to the diverse colors appearing in the work, the names likewise were varied by the Philosophers: whereon, in the first operation of our stone, it is called putrifaction, and our stone is made black: whereof one says, When you find it black, know that in that blackness whiteness is hidden, and you must extract the same from his most subtle blackness. But after putrifaction it waxes red, not with a true redness, of which one says: It is often red, and often of a citrine color, it often melts, and is often coagulated, before true whiteness. And it dissolves itself, it coagulates itself, it putrifies itself, it colors itself, it mortifies itself, it quickens itself it makes itself black, it makes itself white, it makes itself red.(…)” BACON, Roger (1597). The mirror of alchemy . Acesso em: http://www.alchemywebsite.com/mirror.html

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III. 2. – A fase alquímica Nigredo à luz da Psicologia Profunda de Carl Gustav Jung

A obra alquímica começa obrigatoriamente com uma observação longa e paciente,

constantemente maturada nos fenômenos naturais. A natureza é sentida e percebida como um

organismo vivo, inseparável da consciência que a observa. O alquimista comporta-se como

um demiurgo no microcosmo filosofal; ele recria e tenta aperfeiçoar através da arte aquilo que

a natureza deixou inacabado. A sua observação, paciente e escrupulosa, dos fenômenos

naturais, revela- lhe um conjunto de leis misteriosas que regem a coesão invisível da alma e da

matéria que a Grande obra tem como principal tarefa aplicar. O observador nunca é distintinto

ou separado da coisa observada, as substâncias metálicas tratadas. A sua ação não depende de

uma vontade pessoal de realizar uma investigação sistemática, mas tende a provocar um

processo de reciprocidade, cuja a conclusão selará a união do microcosmo e do macrocosmo.

Considerava-se as operações do laboratório como uma empresa demiúrgica: o adepto tenta,

através de todos os meios, reunir o que foi separado, dissolver o que foi agregado. Os textos e

as suas ilustrações simbolizaram muitas vezes estas operações com figuras destinadas a

inspirar e estimular a imaginação do adepto. Sobre este aspecto, salienta Jung:

...Quanto mais antropomórficas, quanto mais teriomórficas as qualificações, mais se manifesta a participação da fantasia lúdica e, portanto do inconsciente. Por aí também se vê que o espírito inquiridor do antigo filósofo da natureza estava exposto à tentação de se desviar do estudo das propriedades da matéria, obscuras para ele, ou seja, de desviar da questão estritamente química, para sucumbir ao mito da matéria. Uma vez que não existe ausência absoluta de pressupostos, o pesquisador, por mais objetivo e imparcial que seja, sempre corre o risco de ser vítima de um pressuposto inconsciente, toda vez que penetrar numa esfera ainda não esclarecida, por falta de apoio em coisa conhecida. Isto não é necessariamnte um mal, pois a idéia que lhe vem para substituir o que não conhece será uma analogia, arcaica sem dúvida, mas cabível (JUNG, 1999 [C], p.38-39, §353).

O processo alquímico deveria ser feito como um experimento que consistia na

separação e na solução, bem como na composição e na fusão de substâncias, onde o produto

resultante era uma mistura contaminada que deveria ser submetida a novos procedimentos,

visando uma nova transformação. Deste modo, a medida que a Pedra ia sendo preparada,

submetía-se o material à repetidas reversões e transformações no seu oposto.

Consequentemente, este processo devia ser feito até que a matétia contaminada passasse por

uma purificação, a fim de que se produzisse a Pedra Filosofal. Análogo ao procedimento

alquímico, o processo de individuação caracteriza-se por um movimento cíclico, cuja a meta

está no fato de trabalharmos incessantemente sobre o Si-mesmo. O Si-mesmo, como centro

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interior da psique total, embora cerque a personalidade por todos os lados e assim, abranja

tanto a vida consciente como a inconsciente, sua essência permanece no inconsciente Nesta

concepção junguiana, cada um de nós deve explorar o seu próprio inconsciente. No entanto, a

consciência resiste a tudo que é inconsciente e desconhecido. Neste processo, necessita-se

sempre voltar a trás, continuamente, para restabelecer as relações com o Si-mesmo. Sendo o

Si-mesmo, a meta do desenvolvimento psíquico “a aproximação em direção à este último não

é linear, mas circular, isto é ‘circum-ambulatória’” (JUNG, 1996, p. 174). Consequentemente

a ampliação da consciência se faz por etapas e ciclos, e assim, aos poucos, passa-se a integrar

os conteúdos inconscientes na consciência.

Nos tratados alquímicos, a matéria original muda progressivamente de cor ao longo

das operações e essa sucessão de cores devia ser escrupulosamente respeitada. A Nigredo ou

negrura, era considerado pelos alquimistas o primeiro procedimento alquímico, o estágio

inicial, do enegrecimento. Este estágio era almejado pelos alquimistas como principal ponto

de partida, pois de acordo com os adeptos desta arte, o começo se encontrava no negro. No

entanto, para este procedimento alquímico era necessário encontrar uma matéria

desconhecida, que entre os alquimistas era conhecida como prima materia. À propósito deste

primeiro corpo, parcela do caos original e mercúrio comum dos filósofos, também conhecido

como nossa água, massa confusa, substância universal, virgem sem mácula, dissolvente

universal, etc, o dicionário alquímico de Martin Ruland15, o Lexicon alchemiae, publicado

primeiramente em 1612, oferece nada menos, nada mais que cinquenta sinônimos para esta

matéria – prima:

... os filósofos tanto admiraram a Criatura de Deus a qual é chamada a matéria primal, especialmente a respeito de seu eficácia e mistério, que lhe deram muitos nomes, e quase toda possível descrição, porque não souberam a elogiar suficientemente.16

Para ilustrar, serão citadas as cinco primeiras definições da prima materia encontradas

no Lexicon alchemiae :

1. Chamaram-na originalmente Microcosmos, um pequeno mundo, onde céu, terra, fogo, água, e todos os elementos existem, também nascimento, doença, morte, e

15 A seção sobre a prima materia do dicionário alquímico de Ruland está disponível na internet, transcrito por John Glenn: http://www.levity.com/alchemy/ruland_e.html. 16 “…The philosophers have so greatly admired the Creature of God which is called the Primal Matter, especially concerning its efficacy and mystery, that they have given it many names, and almost every possible description, for they have not known how to sufficiently praise it.” RULAND, Martin (1612) Lexicon Alchemiae. Acesso em: http://www.levity.com/alchemy/ruland_e.html

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dissolução, a criação, a resssureição, etc.. 2. Foi chamado mais tarde a pedra filosófica, porque foi feito de uma coisa. Mesmo no início dela está verdadeiramente uma pedra. Também porque é seco e duro, e pode ser triturado como uma pedra. Mas é mais capaz da resistência e mais contínua. Nenhum fogo ou o outro elemento podem destruí-la. Não é também nenhuma pedra, porque é fluida, pode ser fundida e derretida. Eles além disso chamam-na a Pedra Águia, porque tem a pedra dentro dela, de acordo com Rosinus. 3. É chamada também Água da vida, porque faz com que o rei, que está inoperante, acorde em uma forma melhor de ser e de vida. É a melhor e mais excelente medicina para a vida da humanidade. 4. O venom, veneno, Chambar, porque mata e destrói o rei, e não há nenhum veneno mais forte no mundo. 5. Espírito - porque voa para o céu, ilumina os corpos do Rei, e dos metais, e lhes dá a vida.17

As citações sobre a matéria do Opus Magnum nesta presente dissertação poderiam ser

infindas, visto que este é o assunto em que os filósofos mais exercitaram sua ciência prática.

Todos que escreveram sobre a arte esconderam o nome verdadeiro desta matéria, como a

chave principal da arte. Tendo potencialmente todas as qualidades e propriedades de coisas

elementares, deram-lhe os nomes de todos os tipos de coisas. É o começo material e fim de

todas as coisas.

Essa “prima materia” há tempos procurada, porém nunca encontrada, está no próprio

homem, como intuíam alguns alquimistas. Na verdade, naturalmente como se tratava de uma

projeção, não viram bem que estavam lidando com um evento psíquico, embora alguns

tenham pressentido de que se tratava de uma própria transformação. Como havia uma

conexão íntima entre o ser humano e o segredo da matéria, os alquimistas exigiam que o

operador estivesse à altura de sua tarefa e, por isso deviam realizar em si mesmos, o processo

que atribuía à matéria. Ao enfrentar o caos da prima materia, este retorno produz um estado

de confusão e escuridão que os alquimistas classificavam como nigredo:

A base da "opus " é a matéria - prima que é um dos segredos mais importantes da alquimia. Isto não é surpreendente, uma vez que ela representa a substância desconhecida portadora da projeção do conteúdo psíquico autônomo. Evidentemente tal substância não era especificada, pois a projeção emana do indivíduo, sendo portanto diferente em cada caso. Portanto, não é correto afirmar que os alquimistas nunca definiram a "matéria -prima"; muito pelo contrário, foram tantas as definições

17 “1. They originally called it Microcosmos, a small world, wherein heaven, earth, fire, water, and all elements exist, also birth, sickness, death, and dissolution, the creation, the resurrection, etc.2. Afterwards it was called the Philosophical Stone, because it was made of one thing. Even at first it is truly a stone. Also because it is dry and hard, and can be triturated like a stone. But it is more capable of resistance and more solid. No fire or other element can destroy it. It is also no stone, because it is fluid, can be smelted and melted. They further call it the Eagle Stone, because it has stone within it, according to Rosinus.3. It is also called Water of Life, for it causes the King, who is dead, to awake into a better mode of being and life. It is the best and most excellent medicine for the life of mankind.4. Venom, Poison, Chambar, because it kills and destroys the King, and there is no stronger poison in the world.5. Spirit - because it flies heavenward, illuminates the bodies of the King, and of the metals, and gives them life.” RULAND, Martin (1612) Lexicon Alchemiae. Acesso em: http://www.levity.com/alchemy/ruland_e.html

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dadas que estas acabaram por contradizer-se repetidamente (JUNG, 1991 [A], p.329, § 425).

Embora os nomes da matéria do opus alchymicum sejam diversos e múltiplos, a

Grande Obra não é efetuada com a multitude das coisas, pois ela é sempre somente uma coisa

e de uma coisa. A matéria é una, proclamam os alquimistas, mas pode tomar formas diversas

e, sob estas novas formas, combinar-se a si mesma e produzir novos corpos em número

indefinido. Muito longe de querer tornar essa premissa alquímica um senso comum, o

objetivo aqui é relembrar o quanto esta noção permeia todo o pensamento alquímico. Pano de

fundo básico da alquimia, tal noção já encontrava no tratado axiomático "A Tábua esmeralda

de Hermes Trismegisto"18 que só era conhecido pela sua versão latina, até ser descoberto o

texto árabe num livro de Jabir, pelo francês E. J. Holmyard, só em 1923: "E como todas as

coisas são e provém de UM, pela mediação de UM, assim todas as coisas nasceram desta

coisa única, por adaptação."19

Neste sentido, os alquimistas ressaltavam que a Pedra Filosofal provinha de uma

"massa confusa", a chamada prima materia que continha em si todos os elementos. Na

concepção junguiana, essa "massa confusa" era um tipo de matéria prima desconhecida, à

qual os alquimistas atribuíam tudo o que se pode atribuir ao inconsciente. Sabe-se que o

inconsciente por definição, não é acessível à observação direta e integrado diretamente, mas

só pode ser “descoberto”. Os conteúdos inconscientes se manifestam sempre, primeiro, de

forma projetada, sobre pessoas e condições sujetivas20. Nada há de espantoso no fato de o

inconsciente aparecer projetado e simbolizado, pois de outra forma nem poderia ele ser

percebido. Neste sentido, em uma discussão psicológica do processo alquímico, não é de se

admirar que os alquimistas à tudo comparassem com a "prima matéria", uma vez que esta

“matéria”, pela qual se deva primeiramente trabalhar, encontra-se por toda a parte, projetada.

Este é precisamente o motivo pelo qual é tão difícil encontrar a “pedra”: por ser a mais barata

e encontrar-se por toda a parte; por ter sido jogada fora e encontrada na rua, nas montanhas e

na água. Todos a possuem, embora desconheçam o seu valor. Além disso, assim como a

18 Segundo Goldfarb, em seu livro, Da alquimia à quimica, quando os árabes conquistaram a Persia e o Egito, no século VII, entraram em contato com essas duas culturas por meio da tradução de seus livros. Entre os livros gregos, traduzidos, estava O Livro dos Segredos da Criação, atribuído a Apolônio de Tiana. Uma parte deste livro é a célebre Tabua de Esmeralda . Tal prestígio recebeu este tratado que sua autoria foi atribuída ao próprio Hermes Trimegisto. 19 TRISMEGISTO, Hermes et al. Alquimia e ocultismo , Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 23. 20 Jung acrescenta: “...Nos casos em que ele aparece irromper diretamente, como nas visões, nos sonhos, iluminações ou psicoses, etc., sempre é possível provar que foram precedidos por condições psíquicas onde a projeção aparece nitidamente”(JUNG,1999 [C], p. 56, § 383).

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matéria una e divina pode tomar formas diversas, combinar-se a si mesma e produzir novos

corpos em número indefinido; o inconsciente também gera uma multiplicidade de imagens

primordiais, que são suscetíveis de transformações infinitas, uma vez que fecunda a si mesmo,

concebe dele mesmo e dá à luz a si mesmo:

... Embora a consciência sucumba sempre a ilusão de que se cria a si mesma, o conhecimento científico sabe que toda a consciência repousa sobre pressupostos inconscientes, sobre um tipo de matéria prima desconhecida, à qual os alquimistas atribuíam tudo o que se pode atribuir ao inconsciente ( JUNG, 1991 [A], p. 451, §516).

Se a psique, como salienta Jung, é o nosso único instrumento de conhecimento,

significa que se aprimorarmos nossa aparelhagem psíquica, então nossa percepção das

representabilidades pode aumentar consideravelmente. Porém como aprimorar nossa

aparelhagem psíquica? Naturalmente a função representativa da psique não pode ser

estendida para além de suas possibilidades:

...“Esvaziar” por completo o inconsciente é impossível, pela simples razão de as suas forças criativas serem capazes de criar novas formas incessantemente. (...) Por mais instruídos que estejamos quanto à importância, aos efeitos e às características dos conteúdos inconscientes, jamais lhes penetraremos a profundidade e as possibilidades totalmente, pois são suscetíveis de variar ao infinito e sua potência a rigor não pode ser diminuída. A única maneira possível de tratá-los na prática consiste em assumir uma atitude consciente que permite a cooperação do inconsciente em vez de sua oposição (JUNG, 1999[C], p.47, §366).

Assim, a psique não é capaz de apreender conscientemente a maior parte da real

procedência ontológica destes, já que são partes do inconsciente. Entretanto ela busca (ou

deveria buscar) expandir-se e tornar concretáveis o máximo que puder daqueles conteúdos

irrepresentáveis a priori. No entanto, assim como o intuito dos alquimistas era transformar a

matéria recompondo a unidade na pedra (ouro), assim também “...o homem não deve

dissolver-se na multiplicidade contraditória das possibilidades e tendências que o

inconsciente lhe aponta, mas sim tornar-se a unidade que abrange toda essa diversidade”

(JUNG, 1999[C], p. 64, § 397). A consciência por mais abrangente que seja, continua sendo

subordinada à um círculo maior, o inconsciente; uma ilha envolvida pelo oceano; e assim

como o mar, o inconsciente também gera uma variedade imensa de conteúdos psíquicos em

constante renovação, cuja a abundância é impossível abranger totalmente.

Não é à toa que a água, na alquimia, era considerada a principal matéria prima da

pedra: “a água é o esperma de todos os metais”, e todos os metais estão resolvidos nele, como

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foi declarado no Rosário dos Filósofos21. A água em todas as suas formas – como mar, lago,

rio fonte , etc – é uma das caracterizações mais usadas para indicar o inconsciente. Como o

caos, a prima materia se identifica com as águas dos primórdios e, na alquimia também ela

tem “mil nomes”, aqua permanens (água eterna ou água divina), aqua vitae, ou seja, a água

miraculosa, pois ela é o material original da pedra filosofal. A água está na primeira figura do

Rosarium Philosophorum. Jung a intitulou de “A fonte de Mercúrio”:

A fonte de Mercúrio (Rosarium Philosophorum, 1550)22

Esta gravura representa a unidade original, o fundamento misterioso da obra. O texto

que segue a alegoria, diz: “Nós somos o começo e a primeira natureza dos metais, a arte por

nós cria a principal tintura. Não há nenhuma fonte nem água encontrada como em mim. Eu

curo e ajudo ao rico e aos pobres, mas contudo eu estou cheio do veneno perigoso.”23 Neste

texto, a água aparece como o começo e a primeira natureza dos metais. Como símbolo do

inconsciente, contêm nela mesma todas as coisas necessárias; e, assim como o último,

fecunda a si mesma, concebe dela mesma e dá à luz a si mesma. Uma vez que esta “matéria”

que pela qual se deva primeiramente trabalhar, encontra-se por toda a parte, projetada, a água

21 “They have also said that our stone is made of one thing and it is true for the whole magistery is done with our water, for that water is the sperm of all metals, and all metals are resolved into it, as has been declared.” THE ROSARY of the Philosophers. (1550). Acesso em: http://www.alchemywebsite.com/rosary0.html . 22 Figura disponível em: http://www.alchemywebsite.com/rosary1.html. 23 “We are the beginning and first nature of metals,Art by us maketh the chief tincture.There is no fountain nor water found like unto me.I heal and help both the rich and the poor,But yet I am full of hurtful poison.” THE ROSARY of the Philosophers. (1550). Acesso em: http://www.alchemywebsite.com/rosary1.html.

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de que e com qual o magisterio é efetuado, é cara e barata, e por isso “ajuda ao rico e aos

pobres”.

Devido ao seu poder de dissolução, a água estava associada à operação alquímica da

solutio (solução). Pela solução filosófica verdadeira, o corpo é transformado em sua primeira

água, a qual tem sido desde o começo um mesmo corpo. Para o alquimista, a solutio significa

o retorno da matéria diferenciada ao seu estado original indiferenciado, à prima materia. Já no

citado tratado “Diálogo de Maria e Aros sobre o Magistério de Hermes”, Maria, a Prophetissa,

faz referência à Solutio:

Reduz tudo isto a água corrente – continuou Maria -- e purificai sobre o corpo fixo esta água verdadeiramente divina tirada dos enxofres, e fazei com que esta composição se torne líquido pelo segredo das naturezas no vaso da filosofia.24

Edinger realizou em seu livro Anatomia da psique, uma primeira tentativa de organizar

e analisar os procedimentos químico-alquímicos como a solutio (solução), a calcinatio

(calcinação), a coagulatio (coagulação), a sublimatio (sublimação), a mortificatio

(mortificação), a separatio (separação), a coniunctio (conjunção), à luz da psicologia

junguiana. Entretanto, as principais fases coloridas da obra, nigredo, albedo e rubedo, que

podem ser produzidas por uma combinação de procedimentos químicos-alquímicos, não

foram estudadas e analisadas nestes termos. Com relação específicamente à fase alquímica da

nigredo, assegura Jung :

O negrume ou "nigredo" é um estado inicial, sempre presente no início como uma qualidade da "prima materia", do “caos" ou da "massa confusa"; pode também ser produzido pela separação dos elementos (solutio, separatio, divisio, putrefactio) (JUNG, 1991 [A], p.244, § 334).

Nota-se que as operações alquímicas ligadas à primeira fase alquímica, ou seja, a

solutio, a separatio e a mortificatio (solução, separação, mortificação) descrevem o processo

de dissolução, discriminação e mortificação do composto. Estas operações alquímicas

descritas nas alegorias envolvem uma gama de simbolismos alquímicos, principalmente os

relacionados à nigredo, pois este parece ser o aspecto que os filósofos da arte mais se

debruçaram.

24 DIÁLOGOS de Maria e Aros sobre o Magistério de Hermes In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo , Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 37.

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III. 3. – A Solutio na fase alquímica nigredo

Com relação inicialmente à Solutio, este é um dos principais procedimentos

alquímicos e é, do mesmo modo, extremamente importante psicologicamente. As imagens

básicas que se referem à este sistema de simbolo são a água, o banho, o afogamento, a

dissolução; mas também batismo e rejuvenescimento. A água foi relacionada com o útero, e

entrar na água, (solutio), era retornar ao útero para renascer. Psicologicamente; isto

significava com frequência uma imagem de uma descida no inconsciente que tem o efeito de

dissolver o sólido, estrutura ordenada pelo ego.

Assim também o mar é sinônimo da prima matéria e, uma imagem recorrente na

dissolução filosófica. O mar é um símbolo comum para o inconsciente. Na Turba

Philosophorum, a água do mar já aparece como sinônimo da aqua permanens, como se

observa no trecho abaixo, citado anteriormente:

Arisleus diz -- Saiba que a chave deste trabalho é a arte das moedas. Pegue entao o corpo que eu tenho demonstrado a você e reduza-o à tabuletas finas. Em seguida mergulhe as tabuletas na água de nosso mar, que é água permanente, e, depois que isto estiver coberto, ajuste-as sobre um fogo delicado até que as tabuletas estejam derretidas e se transformem em águas ou a Etheliae, que são um e a mesma coisa.25

Com freqüência, realiza-se a solutio sobre um rei. Como foi visto anteriormente, na

alquimia, o rei desempenha um papel central, porque alude ao mito do herói, incluindo a

renovação do rei e de Deus. Por esta razão encontram-se um número de alegorias que

envolvem a transformação de um rei. O tratado alquímico Splendor Solis26 é um dos mais

bonitos manuscritos alquímicos iluminados. O tratado consiste em uma seqüência de 22

gravuras elaboradas, cujo o processo simbólico mostra a morte e o clássico renascimento

alquímico do rei. Uma gravura em especial mostra no plano de fundo o rei do mar gritando

por socorro:

25 “Arisleus saith:- Know that the key of this work is the art of Coins. Take, therefore, the body which I have shewn to you and reduce it to thin tablets. Next immerse the said tablets in the Water of our Sea, which is permanent Water, and, after it is covered, set it over a gentle fire until the tablets are melted and become waters or Etheliae, which are one and the same thing. (…).” TURBA Philosophorum. (s.d). Acesso em: http://www.alchemywebsite.com/turba.html 26 O Splendor Solis foi associado com o legendário Salomon Trismosin, suposto professor de Paracelso. Os escritos de Trismosin foram publicadas mais tarde com ilustrações da gravura, no Aureum Vellus.Uma tradução francesa, intitulada La toyson d`or também foi emitida em Paris em 1612.

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Solutio do rei (Salomon Trismosin, Splendor Solis, século XVI)27

Os escritos de Trismosin foram publicadas mais tarde com ilustrações da gravura, no

Aureum Vellus. O texto que acompanha a figura, diz:

27 As pranchas do Splendor Solis estão reproduzídas em vários sites na internet. Esta, em específico, está disponível em: http://my.opera.com/Filectio/albums/show.dml?id=1555.

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...Os antigos viram surgir ao longe um nevoeiro, que encobriu e umedeceu a terra toda, e viram também a impetuosidade do mar e das ondas de água sobre a face da terra; e viram que elas se tornaram podres e fedorentas trevas. E viram também o rei da terra afundar e ouviram que ele gritava com voz ansiosa: Quem me salvar, reinará comigo e reinará em minha claridade, no meu trono real.28

O caos e o mar possuem o significado clássico e mitológico de estado inicial do

mundo. A imersao no “mar” é o mesmo que dissolver (solutio) no sentido físico da palavra. É

a volta ao obscuro estágio originário, mas também a matrix universal de todas as criaturas.

Nesse mar solvente, o rei se banha, mergulha ou se afoga. Deste modo, descreve a alquimia o

princípio de transformação do rei, a partir de um estado imperfeito (no plano ao fundo, o rei

em, vias de afogar-se) para formar um ser perfeito e incorruptível, (no primeiro plano, o rei

renascido). Em uma discussão psicológica desta alegoria Jung considera:

... A obscuridade e a profundeza do mar significam apenas o estado inconsciente de um conteúdo (...) A alegoria alquímica exprime este fato pela imagem do rei gritando por socorro das profundezas do estado dissociado e inconsciente em que se encontra. A consciência deveria atender a esse apelo; seria mister prestar o serviço ao rei (...). No entanto, isto implica a necessidade da descida ao obscuro mundo do inconsciente, o ritual de uma descida ao antro, a aventura de uma viagem marítima noturna, cuja a meta e destino é o restabelecimento da vida, a ressurreição e a superação da morte (JUNG, 1991 [A], p.342, § 436).

Psicologicamente, prestar serviço ao rei, significa que a consciência dominante deve

submeter-se ao inconsciente; deve-se retornar ao estado inicial obscuro, no estado de massa

confusa, em cuja a qual os filósofos da arte prestaram sempre suas homenagens: a prima

materia. Neste sentido, a solutio como uma operação alquímica é uma condição prévia de

redenção.

Jung analisou em sua obra Psicologia e Alquimia, uma série de 50 sonhos, cuja a

identidade do sonhador foi permanecida em sigilo. Hoje, sabe-se pertencer esses sonhos ao

físico Wolfgang Pauli, o qual submeteu-se à terapia com Jung por vários anos. No terceiro

sonho deste conjunto, a impressão visual hipnagógica é descrita: “Praia. O mar invade

inundando tudo. O sonhador está sentado numa ilha solitária” (JUNG, 1991 [A], p. 59, §56).

Aqui o processso de invasão dos conteúdos inconscientes ameaça irromper na consciência.

Jung considera o mar o lugar de predileção para a gênese das visões, isto é, irrupções de

conteúdos inconscientes. O fato é que ao enfrentar o caos da materia, a aparente unidade da

28 Aureum Vellus. Rorschach, 1598. IN: JUNG, C.G. Mysterium Coniunctionis. Rio de Janeiro: Ed. Vozes,1990, p. 82-83, §131.

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pessoa se desagrega sob o impacto do choque com o inconsciente, o que acarreta no

“obscurescimento da luz”:

... Tais irrupções são ameaçadoras por serem irracionais e inexplicáveis à pessoa em questão. Elas acusam uma alteração significativa da personalidade, na medida em que representam um penoso segredo pessoal, isolando a pessoa e alienando-a do seu ambiente (JUNG, 1991 [A], p. 59, §57).

A consciência naturalmente resiste a tudo que é inconsciente e desconhecido, pois ela

se coloca em uma situação perigosa pela descida ao inconsciente. Isso requer uma certa

condição por parte do consciente, ou seja, um rebaixamento do nível mental. Aparentemente é

como se a consciência se extinguisse, pois aquilo que está sendo dissolvido experimenta a

Solutio como aniquilação de si mesmo. Em outras palavras, o que ocorre é uma perda de

potência do consciente:

O forte efeito dos conteúdos inconscientes permite tirar conclusões quanto à energia dos mesmos. Todos os conteúdos inconscientes, quando ativados (isto é, quando se tornam manifestos) possuem, digamos assim, uma energia específica, graças à qual eles podem manifesta-se universalmente (...). Mas esta energia, em circunstância normais, não é suficiente para fazer com que o conteúdo inconsciente irrompa no consciente. Isso requer uma certa condição por parte do consciente. É necessário que este apresente um déficit sob a forma de uma perda de energia. A energia perdida vai aumentar no inconsciente o valor psíquico de certos conteúdos compensatórios (JUNG, 1999[C], p. 49, § 372).

Os alquimistas sabiam do perigo de mergulhar na massa caótica, e sempre nos tratados

exortam à Deus nas operações. É com razão que a Grande Obra principia aqui, pois é

realmente uma questão quase irrespondível como se deverá enfrentar a realidade neste estado

de divisão e ruptura interiores. Eirenaerus Philaletha29, em seu tratado alquímico A porta

aberta do palácio fechado do rei, no trigésimo quarto capítulo, adverte:

Aqueles no caminho do erro crêem que dissolver os corpos é uma operação tão fácil que imaginam que o ouro imerso no Mercúrio dos Sábios deve ser devorado num piscar de olhos, compreendendo mal a passagem do conde Bernard Trévisan, onde fala de seu livro de ouro mergulhado na fonte e que ele não pode recuperar. Mas aqueles que penaram com a dissolução dos corpos podem atestar a verdadeira dificuldade desta operação. Eu mesmo, por ter sido freqüentemente testemunha ocular, certifico que é preciso grande sutileza para controlar o fogo, após a preparação da matéria, de modo a dissolver os corpos sem queimar suas tinturas.30

29 Eirenaerus Philaletha é pseudônimo, sob o qual se suspeita ter escrito o conhecido inglês Eugenius Philalethes, ou Thomas Vaughan (1961-1665). O tratado parece ter sido escrito em 1645. 30 PHILALETHA, Eirenaerus (1645). A entrada aberta ao palácio fechado do rei. Acesso em: http://www.templodetoth.hpg.ig.com.br/alquimia.htm

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No sonho descrito acima, o sonhador se vê sentado numa ilha solitária. Em uma

discussão psicológica, durante o período de “incubação” de mudanças sensíveis é frequente

verificar-se uma perda de energia do consciente. Jung compara essa situação psíquica com o

fenômeno da “perda da alma” dos primitivos e, também, na calma e no vazio que antecedem

as grandes criações; ou então, numa escala menor do fenômeno, na angústia e depressão que

precedem determinados esforços psiquicos em determinados eventos importantes como um

exame, uma entrevista, etc. Para Jung, o isolamento do sonhador pela ativação da atmosfera

psíquica resulta numa espécie de substituto do contato perdido com a realidade exterior:

... Provavelmente o mecanismo de tais fenômenos tem uma explicação energética. As relações normais com os objetos se fazem às expensas de uma certa quantidade de energia. Se essa relação com o objeto é interrompida, há uma “retenção” de energia que forma, por seu lado, um substituto equivalente. (...) uma realidade ilusória vem substituir a animação normal do meio ambiente, e em lugar de pessoas, comecam a mover-se sombras aterradoras e fantasmagóricas (JUNG, 1991 [A], p. 59, § 57).

A Allegoria Merlini31 está entre os tratados medievais mais antigos, o qual mostra a

morte e a resurreição do rei. Conta a alegoria que certo rei pretendia conquistar um poderoso

povo e por isso preparou-se para a guerra. Porém, quando ele ia começar, exigiu que um de

seus soldados lhe dêsse um copo d`água que “poderosamente amava”. O rei começou a beber

e bebeu outra vez até que todos seus membros se encheram e, todas suas veias ficaram

inchadas, e ele ficou todo descolorido. E disse:

Estou pesado e minha cabeça dói, e imagino todos os meus membros repartindo-se em um outro. Conseqüentemente eu comando que você me ponha em um quarto claro, que deva ser um lugar morno e seco, então eu suarei e a água será seca, e eu estarei livre também dela.32

Nota-se que enquanto o tratado alquímico Splendor Solis representa a Solutio com o

rei em vias de afogar-se, a alegoria de Merlin, promove um tipo de afogamento interior, uma

hidropsia, ou seja, uma acumulação anormal de fluido nas cavidades naturais do corpo. A

figura do rei na alquimia como símbolo do sol, do mundo claro e diurno correponderia na

31 A associação com figura céltica de Merlin é obscura e não há nenhuma referência interna (nem certamente algumas ligações com os mitos de Merlin), que pudesse explicar porque este nome é associado com a alegoria. A alegoria existe desde o século XIV – XV em um manuscrito na Biblioteca Nacional de Paris e foi publicado como Merlini-Allegoria, profundissimum Philosophici Lapidis Arcanum perfecte continens, no compêndio alquímico Artis Auriferiae, em 1593.Texto dis ponível na internet: http://www.levity.com/alchemy/merlin.html. 32 "I find myself heavy, and my head aches, and I fancy all my members divide themselves from one another. Therefore I command you that you do bring me into a light chamber, which must be in a warm and dry place, then I shall sweat and the water will be dried in me, and also I will be freed from it". THE ALLEGORY of Merlin (s.d). Acesso em: http://www.levity.com/alchemy/merlin.html.

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psicologia analítica à consciência, na qual e pela qual são reconhecidos os conteúdos do

inconciente. No entanto, qualquer descida ao inconsciente é suficiente para mobilizar

tendências e desejos instintivos. Isto explica-se pelo fato de que uma determinada quantidade

de energia, que não tem mais utilização no consciente, reflui para o inconsciente, onde vai

ativar certos conteúdos. Quando deparamos com tais conteúdos, compreendemos

imediatamente porque o equilíbrio psíquico se encontra perturbado; sabe-se que desses

conteúdos emana um fascínio que se apossa do indivíduo. Desta “água” que ele tão

“poderosamente amava”, o rei bebe tanto que os seus membros e veias ficam “inchadas”. Esta

imagem alquímica, em uma discussao psicológica, está descrevendo o processo de dissolução

da personalidade provocado por uma identificação da consciência com os conteúdos

inconscientes. Na parábola de Merlin o rei ou seja, o princípio dominante, dissolve-se em seu

própria concuspiscência representada aqui pelo “excesso alimentar” e a água miraculosa tem

o efeito que decompõe e dissolve, e que antecipa o despedaçamento causando assim uma

dissociação da personalidade33. Jung comenta esse texto:

... o rei corresponderia ao egoísmo exaltado, que em breve encontrará a sua compensação. Ele está pronto para partir para um ato de violência, o que caracteriza seu estado moralmente defeituoso e necessitado de correção. Sua sede corresponde a uma concuspicência desenfreada ou paixão. Entrementes se torna ele subjugado pela água, isto é, o inconsciente, e este estado reclama auxílio médico (JUNG, 1990, p. 22- 23, § 18).

Na alegoria de Merlim, o rei, como princípio dominante dissolve-se em sua própria

concuspiscência representada aqui pela “sede” como estado moralmente defeituoso e

necessitado de correção. Sabe-se que todo desejo que dê à sua própria satisfação um valor

central transcende os limites da realidade do ego. A aparente unidade da pessoa que insiste em

dizer : “Eu quero, eu penso” etc., cinde-se e se desagrega sob o impacto do choque com o

inconsciente. Neste sentido, quando o eu se defronta com o inconsciente sem uma atitude

crítica, nestas circunstancias, segundo Jung, “o eu é facilmente superado e se identifica com

os conteúdos assimilados” (JUNG, 1988, p. 21, §43). O esmagamento do eu por conteúdos

inconscientes e, uma consequente identificação com a totalidade pré-consciente, não se

recomenda de modo algum ao julgamento humano, pois ela é a “preparação para as umidades

destruidoras” descritas na famosa fase “negra” da alquimia. A água miraculosa no rei tem o

efeito de dissolução, sub jugado este que está pela água do inconsciente.

33 O problema consiste em manter a integridade, do que Edinger nomeou de “eixo ego – Si-mesmo”, ao mesmo tempo em que se dissolve a identificação do Ego ao Si-mesmo.

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Os alquimistas conheciam as armadilhas venenosas do estado inicial da prima materia

e assim esperavam que através de uma atitude de humildade, esforço e oração, o operador

estivesse à altura de sua obra. Do ponto de vista psicológico, uma atitude genuinamente

religiosa consiste no esforço feito para descobrir esta experiência única e para manter-se

progressivamente em harmonia com ela. A transformação e ampliação da consciência se dá

através de um consequente recuo das projeções que ofuscam e distorcem a personalidade e o

mundo. Neste processo, a consciência aparece como papel decisivo através da auto crítica e

da instrospecção ativa, pois uma consciência inflacionada de nada serviria no trabalho de

recuo das projeções. Segundo Jung:

Este apelo a qualidades obviamente morais deixa claro que a opus não exige apenas capacidades intelectuais ou conhecidamente técnicos, como por exemplo o aprendizado pratico do exercicio da quimica moderna, mas constitui muito mais um empreendimento que além de psiquico tambem é moral. É frequente encontrarmos nos textos exortações deste tipo. Elas propõem uma atitude semelhante à que é exigida na execução de um trabalho religioso (JUNG, 1999[C], p.103, § 451).

Uma outra imagem da Solutio do rei aparece no trigésimo primeiro emblema

alquímico do livro Atalanta Fugiens de Michael Maier34 (1568-1622). Lá o rei no mar, nada e

clama em voz alta: “Aquele que me livrar, dar-lhe-ei uma grande recompensa”35:

(Michael Maier, Atalanta fugiens, 1617)36

34 Michael Maier, médico, filósofo e alquimista alemão, escreveu o tratado alquímico Atalanta Fugiens. O Atalanta Fugiens foi publicado primeiramente em latim em 1617. O Atalanta fugiens, é uma espécie de obra hermética total, já que consiste em Estampas, Epigramas em verso, Discurso em prosa e pequenas peças musicais em forma de fuga, cada um desses tipos de textos distintos criados em número de cinquenta. Neste sentido era um exemplo adiantado de combinação de texto gráfico e som na exibição da informação. 35 “… He that delivers me shall have a great reward”. MAIER, Michael (1617). Atalanta fugiens. Acesso em: http://www.alchemywebsite.com/atl31-4.html.

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Na alquimia, o simbolismo alquimico da fase da nigredo está relacionada com o que é

corrompido, deformado e preto através da umidade. Porém, sabe-se que mais tarde tal estado

desaparece tornando-se seco, como afirma o Composto dos compostos já citado anteriormente

“o calor, actuando, primeiramente, sobre o húmido, engendra negrura, a sua acção sobre o

seco engendra brancura”37. Na alegoria de Merlim, em trecho citado, o rei que sofreu de

hidropsia, comanda que o ponha em um lugar morno e seco, para que ele possa então suar

toda a água. Sendo assim, com secar desta água uma transmutação ocorre e o rei é trazido

para à vida, em um forma mais energética. Assim também, observa-se um discurso

semelhante no texto que acompanha o emblema acima do Atalanta fugiens:

Mas que deve ser feito ao rei quando ele é portanto libertado? Primeiramente daquelas águas que ele recebeu deve ser aliviado pela sudorese, do frio pelo calor do fogo, do embotamento de seus membros pelo Banho moderadamente quente, da fome e do querer alimento pela administração de uma dieta conveniente e de outras enfermidades por seu inverso e pelos remédios Saúde-restauradores. (...) 38

O tratado alquímico aconselha que o rei seja aliviado daquelas águas que recebeu no

mar pela sudorese. Além disso, no trigésimo oitavo emblema, Michael Maier retrata o rei em

um banho vaporoso, como se observa na imagem a seguir:

O rei no suadouro (Michael Maier, Atalanta fugiens, 1617)39 36 Figura disponível em: http://www.alchemywebsite.com/atl31-4.html. 37 MAGNO, ALBERTO (s.d.) Compositum de Compositis. Acesso em: http://pwp.netcabo.pt/r.petrinus/Alberto-p.htm. 38 “But what is to be done to the King when he is so delivered? First from those Waters he had received in He must be relieved by Sudorificks, from Cold by the Heat of Fire, from the Numbnesse of his Limbs by Baths moderately Hot, from Hunger and want of food by the Administration of a convenient Diet and from other externall maladies by their contraries and Health-restoring Remedies. (…)” MAIER, Michael (1617). Atalanta fugiens. Acesso em: http://www.alchemywebsite.com/atl31-4.html. 39 Figura disponível em: http://www.alchemywebsite.com/atl26-0.html.

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O texto que segue o emblema do Atalanta Fugiens faz alusão à Alegoria de

Duenech40. Na tradição alquímica nós encontramos algumas alegorias que envolvem a

transformação de um rei, entre elas, as alegorias de Merlin e de Duenech estão entre as mais

antigas. Nesta última, um velho duque, chamado Duenech se sentiu desprezado na reunião

dos monarcas, devido à sua melancolia41 profunda. Após um discussão com amigos sobre

como esta melancolia poderia ser eliminada, eles chamaram Pharut, o príncipe dos médicos e

ofereceram-lhe uma grande recompensa, caso ele conseguisse a cura. Duenech foi posto por

Pharut em uma cama com folhas brancas que então deu- lhe água para beber. Duenech

começou assim a suar fortemente, de modo que as folhas brancas foram manchadas

completamente. A bílis negra tinha sido dissolvida em todo o corpo de Duenech. A alegoria

continua descrevendo o processo de cura de Duenech, onde, resumidamente, por último

Pharut coloca Duenech exausto em uma terceira cama e, o revive com água e o óleo,

misturados com enxôfre. Quando Duenech olhou a si mesmo, viu que estava livre da

melancolia e teve de novo sangue saudável.

Resumidamente, na alegoria de Merlin, o rei sofre de hidropsia e comanda que o

ponha em um lugar morno e seco, para que ele possa então suar toda a água. No Atalanta

Fugiens o rei é aliviado daquelas águas que recebeu no mar pela sudorese, e o Banho

moderadamente quente ou banho vaporoso faz alusão à Alegoria de Duenech. Nesta última,

Duenech começou a suar a água que Pharut deu- lhe de beber sendo assim livrado da “bílis

negra”. Nota-se que os alquimistas escolheram entre um conjunto de símbolos, a sudorese,

como resultado dos processos de lavagens e dos banhos à vapor. Sabe-se que a sudorese é

uma pequena quantidade de sais dissolvidos, o que remete ao simbolismo alquímico do sal. O

sal por sua brancura, geralmente era associado à segunda etapa alquímica da albedo. Por isso,

a relação do sal com a negrura é em geral rara42. Jung, em Mysterium Coniunctionis, analisou

40 A Alegoria de Duenech foi publicada no vasto compêndio alquímico, Theatrum Chemicum III, p.756-757, Ursel, 1602. Esta disponível também em http://www.levity.com/alchemy/duenech.html. 41 Nesta alegoria alquímica, o rei sofre de uma profunda melancolia. No I Ching, a melacolia é um atributo do princípio maleável ou obscuro e por isso imperfeito e desejável de ser transformado: “o atributo do princípio maleável ou obscuro não é a alegria e sim a melancolia” (WILHELM, Richard. I Ching, o livro das mutações. São Paulo: Ed. Pensamento,1998, p. 177). Segundo Jung, “o homem civilizado apresenta manifestações análogas. Também lhe acontece perder repentinamente toda disposição e iniciativa, sem saber por quê. A descoberta da causa verdadeira nem sempre é facil e desemboca regularmente em discussões bastante delicadas sobre os fundamentos psíquicos. A atividade vital pode ficar paralisada por omissões de todo tipo, por deveres negligenciados, por obstinações deliberadas, de tal forma que uma determinada quantidade de energia, que não tem mais utilização no consciente, reflui para o inconsciente onde vai ativar certos conteúdos (compensatórios) e isso com tal intensidade, que começa a exercer uma ação coercitiva sobre o consciente”(JUNG, 1999[C], p. 49-50,§372). 42 Além desta passagem, mais uma relação do sal com a negrura é encontrada em Mylius em sua Philosophia Reformata, de 1622: “O que resta no fundo da retorta é o nosso sal, isto é, nossa terra, e é de cor preta, um dração que devora sua própria cauda. Pois o dragão é a matéria que resta após a destilação de sua água, e aquela

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em detalhes o simbolismo do sal na alquimia. Inicialmente pela relação próxima com a água

do mar, ele aparece como sinônimo do estado inicial ou prima materia. A passagem do

tratado alquímico Gloria Mundi43 diz: “Saiba que o sal de que Geber fala não tem nenhuma

das propriedades específicas do sal, no entanto é chamado um Sal, e ainda é um sal. É preto e

de mau cheiro.”44

Com frequência os alquimistas usaram as qualificações “mau cheiro”, “água fétida”,

“espírito fedorento” para qualificar a matéria primeira da arte, a qual devem todos alquimistas

trabalhar. A água fedorenta, é a mãe de todos os metais, do que, pelo que, e com que, os

filósofos preparam o elixir no começo e na extremidade; é a terra feculenta da qual todos os

filósofos falam. Grande parte desta água é feita preta e maus odores fazem alusão ao fedor

sepulcral e ao negrume da origem que lhe é inerente. Como assegura diz Basílio Valentim45

em sua primeira chave da filosofia:

Tens que saber, meu amigo, que todos os corpos imundos e leprosos são impróprios para a nossa obra, pois a sua lepra e impureza não só não podem produzir algo de bom como também impedem que o que é limpo possa engendrar.46

Entretanto estas qualificaçoes referentes ao estado inicial da matéria muito mais que

uma impureza de substancias; buscavam significar uma podridão e corrupção moral. Em uma

discussão psicológica, análogo ao primeiro processo geral da alquimia, a nigredo, o primeiro

estágio no processo de individuação, se caracteriza pelo encontro com a sombra. A sombra,

segundo Jung, “ constitui um problema de ordem moral que desafia a personalidade do eu

como um todo, pois ninguém é capaz de tomar consciência desta realidade sem dispender

energias morais” (JUNG, 1988, p. 6, § 14). Para que este processo ocorra, é necessário que a

atitude consciente aceite o que parece ser uma “critica do inconsciente”. Problemas morais

água é chamada de cauda do dragão, e o dragão é a sua negrura, e o dragão é embebido em sua água e coagula, e deste modo devora a sua cauda” MYLIUS, Joannes Danielis. Philosophia reformata. Frankfurt, 1622, p.195. Apud: JUNG,C. G. Mysterium Coniunctionis. Rio de Janeiro: Ed. Vozes,1997, p.184,§ 238. 43 Incluído no Musaeum Hermeticum de 1625, embora tenha sido publicado primeiramente no alemão enquanto Gloria Mundi sonsten Paradeiss Taffel, Frankfurt, 1620. 44 “Know that the Salt of which Geber speaks has none of the specific properties of salt, and yet is called a Salt, and is a Salt. It is black and fetid.” THE GLORY of the world. (1620). Acesso em: http://www.alchemywebsite.com/glory1.html 45 Basílio Valentim, segundo os seus escritos, foi um monge pertencente à Ordem Beneditina, que viveu nos princípios do século XV. Mas na opinião da maioria dos estudiosos, inclusive de Jung, os manuscritos não podem ser anteriores ao século XVII. Entre seus livros mais famosos está As Doze chaves da filosofia, cuja a versão de 1609 foi reproduzida em Alquimia e ocultismo , Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p.119-147. Ao que parece, este nome era apenas um pseudónimo que significa “rei valente”, por trás do qual, se esconde, na opinião de Jung, como possível autor, Johan Toide de Turinga. Seja como for, a sua obra começou a ser conhecida a partir de 1602. 46 VALENTIM, Basílio. As doze chaves da Filosofia. In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo , Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991,p. 123.

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são invariavelmente provocados pelo aparecimento da sombra. Neste processo honesto de

auto-crítica, se esbarra com uma dificuldade de ordem ética:

A alquimia anuncia uma fonte de conhecimento que, por assim dizer, é paralela, senão até equivalente à Revelação, mas que fornece "água amarga" e não se recomenda de modo algum ao julgamento humano. Ela é acre e amarga ou como o vinagre (acetum/azedo), isto é torna-se árduo para uma pessoa aceitar a escuridão e a negrura (...) e atravessar essas trevas da sombra. É amargo, na verdade, ter de reconhecer - por trás de seus ideais tendentes para as alturas, por trás de suas convicções parciais e freqüentemente pertinazes, mas por isso tanto mais acariciadas, e por trás de suas reivindicações orgulhosas e heróicas - apenas egoísmo crasso , veleidades infantis e apegos de comodismo.(...) Como dizem os alquimistas, o processo começa pela nigredo ou a produz como condição prévia da síntese, pois jamais podem ser unidos os opostos que não estiverem constelados ou trazidos à consciência (JUNG, 1997, p.249, § 338).

Assim também, o amargor como uma propriedade da substancia tornou-se entre os

alquimistas um conceito técnico. Em Mysterium Coniunctionis, Jung discute, a razão por que

o gosto do sal é dado como amargo e não apenas como salgado; segundo ele “o agrupamento

desses atributos está indicando uma conexão íntima entre ambos: corruptio et impuritas

(corrupção e impureza) estão na mesma linha” (JUNG, 1997, p. 185-186, §240). O sal que

surge a partir dos minerais do mar é amargo por causa de sua origem, mas o amargor também

provém da corrupção e impureza do seu corpo imperfeito e designa o estado inicial da materia

prima. Neste sentido:

A negrura e o mau cheiro designados pelos alquimistas como “odor sepulchrorum” (cheiro de sepulcro), pertencem ao mundo inferior e desse modo às trevas morais. Desse caracter da impureza participa também a “corruptio”, (...) como paralela ao “amargor” (JUNG, 1997, p. 190, § 248).

Este estado psíquico, onde a aparente unidade da pessoa se desagrega sob o impacto

do choque com o inconsciente, não se recomenda de modo algum ao julgamento humano pois

ela é a “água amarga”, e a “preparação para as umidades destruidoras”. Nesta tomada de

consciência da sombra, trata-se de reconhecer aspectos obscuros da personalidade, que é

indispensável para o autoconhecimento. Entretanto, isto implica em um trabalho árduo que

pode se estender por muito tempo.

A sudorese, pequena quantidade de sais dissolvidos, geralmente é o resultado de

grande fatiga e trabalho excessivo. Psicologicamente corresponde à secagem dos complexos

inconscientes que vivem na água, pois o desejo, exigência ou expectativa antes inconscientes,

primeiro aparecem em estado de identificação com o ego. Edinger em seu livro Anatomia da

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psique compara esse processo psícológico com o processo alquímico da calcinatio

(calcinação), ou seja, ao processo de aquecimento de um sólido, destinado à retirar dele a

água e outros elementos passíveis de volatilização. A sudorese, necessária para o controle da

temperatura corpórea, psicologicamente indica que as energias da psique arquetípica em

estado de identificação com o ego, exprimindo-se no impulso de poder representado na figura

do rei, são purgadas isto é, o fogo da calcinatio, segundo Edinger, purga essas identificações e

“impulsos da raiz ou umidade primordial, deixando o conteúdo em sua condição eterna ou

transpessoal, tendo restaurado seu aquecimento natural - isto é, sua energia e seu

funcionamento próprios” (EDINGER, 1999, p.63).

Sabe-se que as representações alquimicas tratam do tema da transformação de um

modo original. A procura destes processos pelos alquimistas tem um valor simbólico, estando

ligada à transmutação do próprio alquimista. Enquanto o alquimista incandesce no forno a sua

materia, ele se submete também, por assim dizer, “moralmente” ao tormento pelo fogo e à

mesma purificação e transformação. Por isso, o homem interior deve incandescer até o mais

alto grau, pois dessa forma a sua impureza é consumida.

Nota-se que os alquimistas escolheram entre um conjunto de símbolos, a sudorese,

como resultado dos processos de lavagens e dos banhos à vapor. Os corpos deviam ser

purgados e limpos de todas as impurezas. Tanto as lavagens, as Purgações, os Banhos, a

Lacónica (estufa seca no tempo dos romanos) e os banhos vaporosos são todos simbolismos

alquímicos relacionados com a operação alquímica da Solutio. Neste sentido, a solutio tem

duplo efeito: provoca o desaparecimento de uma forma e o surgimento de uma nova forma

regenerada, como mostra principalmente a Visio Arislei47 (Visão de Arisleu).

Na Visio Arislei, os filósofos e o casal de irmão- irmã, Gabricus (ou thabritius) e Beja,

filho do rei e filha do rei, são trancados no fundo do mar dentro de um tripla casa de vidro

pelo “Rei do Mar”. Como no mito do herói que conhece a condição de ser tragado pela

baleia, o calor no ventre desta é tao intenso que o herói chega a perder os cabelos, assim

também os filósofos sofrem um calor insuportável durante o seu encarceramento. Assim como

a finalidade de toda a opus é a transformação e a ressurreição do adepto, a questão aqui

também é a reanimação, não mais do rei, mas do filho do rei, Thabritis (Gabricus) morto, ou o

seu renascimento, segundo outras versões.A segunda versão da Visão de Arisleu aparece na 47 Uma das versões da Visio Arislei se encontra no terceiro texto alquímico do primeiro volume da coleção de textos alquímicos Artis Auriferae. Michael Maier reserva também uma versão intitulada “Epitalâmio em honra das núpcias de Beia e de seu filho Gabrico” em Symbola aurea mensae duodecim nationum.Frankfurt, 1617. Segundo Jung, Arisleu é uma corruptela de Archelaos, devido a uma transcrição árabe. Archelaos poderia ser um alquimista bizantino do século VIII-XI. No entanto, uma vez que a Turba atribuída a Arisleu remonta à tradição árabe, presume-se que Archelaos tenha vivido em época bem anterior. Ruska identifica-o com Anaxágoras.

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quinta figura do Rosarium Philosophorum, onde se diz:”Com tal amor (Beya) abraçou o

Gabricus que ela mesma absorveu completamente a natureza dele e o dividiu em pedaços

indivisíveis.”48 Eis a gravura correspondente:

Beya abraça Gabricus (Rosarium Philosophorum, 1550)49

A concepção alquímica girava em torno da idéia central: a anima mundi (a alma do

mundo) permaneceu em estado potencial dentro da matéria e, com isto, se conservou também

o estado caótico inicial. A idéia destes antigos filosofos era de que Deus se revelou em

primeiro lugar na criação dos quatro elementos. Por isso os alquimistas achavam que a prima

matéria era uma parte do caos primordial “gravido” do espírito. Neste sentido, era tarefa do

alquimista libertar "a substância misteriosa" cativa na matéria. O estado de imperfeição

assemelha-se a um estado de dormência; neste estado os corpos encontram-se como que

acorrentados e adormecidos na Physis. Estes são despertados pela substância divina extraída

da pedra miraculosa, cheia do espírito. Na Visão de Arisleu, Beya, abraçou Gabricus com

amor tão grande que o recebeu por inteiro em sua natureza, dissolvendo-o em partículas

invisíveis. A gravura reproduz a descida do homem primordial ao seio da “physis”, de sua

aproximação dessa Physis que ameaça capturá- lo; e por isso é uma imagem arcaica que

perpassa toda a alquimia. Com relação ao aspecto psicológico da gravura é evidente que se

trata de uma descida ao inconsciente:

... O inconsciente pessoal corresponde à “sombra” e às chamadas “funções inferiores”, que em linguagem gnóstico-cristã significa a pecaminosidade e a impuritas, da qual deve ser lavado o catecúmeno. (...) Os inconsciente que tentam atravessar o mar sem estarem purificados e sem a orientação iluminadora morrem

48 “...And she embraceth Gabrick with so great a love that she hath conceived him wholly in his nature and divided him into inseperable parts.” THE ROSARY of the Philosophers (1550). Acesso em: http://www.alchemywebsite.com/rosary2.html 49 Figura disponível em: http://www.alchemywebsite.com/rosary2.html

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afogados, isto é, ficam retidos no inconsciente e caem na morte espiritual por não serem capazes de desenvolvimento ulterior em sua orientação (JUNG, 1997, p. 192, § 251).

Uma imagem semelhante ao abraço de Beya (que aqui representa o mar inteiro)

absorvendo a natureza de Gabricus completamente e, dividindo-o em pedaços indivisíveis,

aparece na décima terceira figura do Tratado da Pedra Filosofal, de Abraham Lambsprinck50,

mostrando o rei, não mais misturado na profundeza do mar, mas ele próprio como "prima

materia", devorando o filho:

O rei devorando o filho (Lambsprinck, O Tratado da Pedra Filosofal, 1599)51

A gravura novamente reproduz o tema da descida do homem primordial no seio da

“physis”, de sua aproximação dessa Physis que ameaça capturá- lo. O texto que segue a figura

assegura: “Ao entrar o filho na casa de seu Pai, o Pai o rodeou com forte abraço, E ali mesmo

num instante o tragou; engolindo-o com extrema alegria.”52 Psicologicamente, um ego

imaturo é eclipsado e ameaçado com destruição, isto é, à extinção da consciência, quando

abraça ingenuamente o inconsciente maternal. A alquimia expressa isso por meio dos

símbolos da morte, da mutilação ou do envenenamento. Em uma discussão psicológica, Jung

assegura:

50 O Tratado da Pedra Filosofal, de Abraham Lambsprinck, apareceu pela primeira vez numa coletânea de textos alquímicos, publicada em 1599, em Frankfurt, por Nicolau Bernaudo, que afirma tê-lo traduzido do alemão, de “um manuscrito muito antigo”. Ele reapareceu em outras coletâneas similares, como por exemplo, no oitavo volume do Museu Hermético, publicado em 1678, também em Frankfurt. 51 Figura disponível em: http://www.alchemywebsite.com/lambtext.html. 52 TRATADO da Pedra Filosofal de Lambsprinck: o significado do simbolismo da alquimia. Tradução e comentarios explicativos do Prof. Anysio N. Dos Santos. São Paulo: Ed. Ibrasa, 1996, p. 277.

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... O separar a realidade das camadas da ilusão que a envolvem nem sempre é sentido como agradável, mas muito antes como penoso e até doloroso (...) pois o desmascaramento da realidade não somente é, em geral difícil, mas não raramente é até perigoso. As ilusões não seriam tão frequentes, se elas também não fossem boas para alguma coisa e se ocasionalmente não encobrissem um lugar delicado com uma escuridão salutar, da qual às vezes se espera que jamais caia sobre ele algum raio de luz (JUNG, 1990, p. 276, § 396).

Com foi visto anteriormente, com relação específicamente à fase alquímica da

nigredo, além da operação alquímica da Solutio, Também a nigredo poderia ser produzida

pelas operações alquímicas nomeadas Separatio (separação) e mortificatio (mortificação),

segundo as quais descrevem o processo concomitantemente de discriminação e mortificação

do composto.

III. 4. –A Separatio e a Mortificatio na fase alquímica nigredo

Como foi visto anteriormente,a Visio Arislei traz o motivo do despedaçamento pela

água, isto é, a Solutio. Entretanto a dissolução em partículas traz também o tema do ferimento

e da tortura que remonta na alquimia ao tempo de Zózimos e suas visões, como já foi

mostrado no capítulo anterior. Segundo Jung, “nesta forma tão completa, o motivo aliás nao

retorna jamais” (JUNG, 1997, p. 29,§27). Eis a seguir o trecho final destas visões:

Com isto, caindo (em mim) de novo, voltei a adormecer (...) e, quando me aproximei do lugar do sacrifício, o homem que levava a espada disse-me: “Corta-lhe a cabeça e esquateja a sua carne e os seus músculos, pedaço a pedaço, a fim de que a sua carne possa ser fervida segundo ensina o método, e possa depois sofrer o sacrifício”. Neste ponto despertei e disse para mim: “Compreendo bem que estas coisas se referem aos líquidos da arte dos metais.” E de novo, o que trazia a espada disse: “Completaste a subida dos sete degraus.” E o outro, ao mesmo tempo que se fundia em chumbo por acção de todos os líquidos, disse: “A obra está completa.”53

O encontro com o inconsciente e a retirada das projeções da realidade envolve sempre

uma lesão do ego. Essa lesão do ego é simbolizada pelo rei-sol aleijado ou que tem um

membro amputado. Uma das principais imagens referentes à esse processo, como nas visões

de Zózimo, está retratado no tratado alquímico Splendor Solis:

53 ZÓZIMO. In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo , Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 29.

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O corpo mutilado (Salomon Trismosin, Splendor Solis, século XVI)54

54 Figura disponível em: disponível em: http://my.opera.com/Filectio/albums/show.dml?id=1555.

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De acordo com o texto:

Rosinus disse/ quis dar um ensinamento parabólico ao descrever (o quadro de) um ser humano, que jazia morto/ e que ao mesmo tempo tinha o corpo extremamente alvo/ como o sal/ Seus membros estavam separados e sua cabeça era finalmente dourada/ mas separada do corpo/ próximo a ele se erguia um homem rude de face negra terrível/ que tinha na mão direita uma espada de duplo corte, banhada de sangue/ era o executor da pobre vítima/ na mão esquerda ele trazia um cartão sobre o qual estava escrito: Eu te matei/ para que recebas uma vida superabundante/ mas devo esconder a tua cabeça/ para que o mundo não te veja e espalharei teu corpo por toda a terra/ e o enterrarei para que apodreça/ e se multiplique/ e produza frutos em incontável abundância.55

Percebem-se, tanto na imagem quanto no texto, nítidas associações com os temas da

alquimia, tais como a tortura, a morte e o renascer em forma apropriada. As fases da obra

também se apresentam nas cores da imagem. A nigredo está expressa na face escura do

homem com a espada que desmembra aquele corpo. Ao mesmo tempo as roupas

avermelhadas representam a perfeição atingida na fase de rubedo. Na brancura do corpo

mutilado e da túnica do executor está representada a fase de albedo. O estágio denominado

citrinitas está representado na figura na cabeça dourada do corpo morto, que deve, da mesma

forma que o segredo do ouro alquímico, ser escondida do mundo.

Sabe-se que o despedaçamento, o ferimento, aludem à operação alquímica da

Separatio (separação) ou Divisio (divisão). Estas duas operações alquímicas juntamente com

a solutio, constituíam operações alquímicas relacionadas à fase da nigredo. Considerava-se a

prima materia uma mistura de componentes indiferenciados que requeria um processo de

separação. Os vários processos químicos e fisicos realizados no laboratorio formecem

imagens para esse processo. Muito próxima das imagens referentes ao processo alquímico da

Separatio estão as imagens de mutilamento, despedaçamento, ferimento e por último, de

morte. As imagens de morte são associadas com a operação alquímica da Mortificatio

(Mortificação), pois a nigredo, quando não é a condição original da prima materia, tem como

origem a morte de alguma coisa. Com relação à Morticatio, Edinger considera:

A mortificatio nao tem nenhuma referencia quimica (...) Descrever um processo químico como mortificatio é uma projeção integral de uma imagem psicológica. Isso de fato aconteceu. O material contido no frasco era personificado, sendo as operações realizadas consideradas como tortura. (EDINGER, 1999, p. 165-166)

55 Salomon Trismosin, La toison d`or, pp. 206-207. In: BELTRAN, M.H. R. Imagens de magia e de ciência: entre o simbolismo e os diagramas da razão. São Paulo: EDUC 2000, p.76.

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Associado à mortificatio, também se encontra a putrefactio, que significa "putrefação",

a decomposição que destrói os corpos orgânicos mortos. No geral, costuma-se descrever a

dissolução do antigo por meio de uma série de imagens negativas, associando-as com a

nigredo. Porém, essas imagens tenebrosass com frequência levam a imagens altamente

positivas, como crescimento, ressurreição, renascimento. Como foi visto no capítulo anterior,

na alquimia mais tardia aparece o motivo da renovação do rei. A transformação do rei indica

de maneira primitiva a renovação da força vital. Em muitos tratados, a “decadência” do rei

deriva de sua imperfeição ou de de sua doença. No Tratado da Pedra Filosofal, de Abraham

Lambsprinck, o rei, que devorou o filho, é retratado na imagem seguinte, na cama, suando

profundamente por seu filho:

O rei doente (Lambsprinck, O Tratado da Pedra Filosofal, 1599)56

O texto que segue a gravura, diz:

Aqui está o Pai suando por seu filho. E, no fundo do coração reza ao Senhor, que é quem, na verdade, tudo pode, já que foi Ele quem criou tudo que há. Ele pede que de si faça surgir, o Filho de seu corpo, a fim que possa Ressuscitar e retornar à vida plena.57

Quando o rei se torna velho e necessitado de renovação, então se prepara o seu afundar

no banho ou no mar, sua dissolução e decomposição, o extinguir-se da luz em trevas, sua

renovação no estado de caos. Com isso se exprime o pensamento que a posição da

56 Figura disponível em: http://www.alchemywebsite.com/lambtext.html 57 TRATADO da Pedra Filosofal de Lambsprinck: o significado do simbolismo da alquimia. Tradução e comentarios explicativos do Prof. Anysio N. Dos Santos. São Paulo: Ed. Ibrasa, 1996, p. 285.

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consciência envelhecida necessita da influência de seus conteúdos inconscientes para seu

fortalecimento e renovação. A alegoria alquímica retrata o rei doente e frágil representando

um princípio dominante de cunho consciente que perdeu a sua eficácia e deve por isso

submeter-se à transformação. Assim, o rei também é um objeto frequente da mortificatio. No

vigésimo quarto emblema do Atalanta fugiens, um lobo, como prima materia, devora o rei

morto:

O lobo como prima materia devorando o rei (Michael Maier, Atalanta fugiens, 1617)58

Basílio Valentim, em seu livro mais famoso, as Doze chaves da filosofia, já citado

anteriormente, parece fazer referência à este emblema do Atalanta fugiens. No texto que

segue o primeiro emblema e “a primeira chave da filosofia”, Valentim assegura:

...se queres operar nas nossas matérias, pega um feroz lobo cinzento, o qual (...) é encontrado nos vales e nas montanhas do mundo, onde ele perambula quase selvagem com fome. Dê à ele o corpo do rei, e, quando ele o tiver devorado, queima-o totalmente até as cinzas em um grande fogo. Por esse processo, o rei será libertado (...) 59

O aspecto psicológico da alegoria significa que a consciência ao descer por regiões

desconhecidas é dominada por forças arcaicas do inconsciente. O inconsciente é como

58 Figura disponível em: http://www.alchemywebsite.com/atl21-5.html. 59 “If you would operate by means of our bodies, take a fierce grey wolf, which, (…) is found in the valleys and mountains of the world, where he roams about savage with hunger. Cast to him the body of the King, and when he has devoured it, burn him entirely to ashes in a great fire. By this process the King will be liberated (…)” VALENTIM, Basílio (1609). As Doze Chaves da Filosofia. Acesso em: http://www.levity.com/alchemy/twelvkey.html

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natureza e como animal pode irromper na consciencia. Os símbolos teriomórficos60, segundo

Jung, “indicam sempre que um processo psíquico se realiza na etapa animal, isto é, na esfera

dos instintos” (JUNG,1997, p. 143,§173). No processo, a pessoa é “mordida” por animais ao

se expor aos afluxos do inconsciente. O psicólogo Edinger também comenta o emblema

acima do Atalanta fugiens, e assegura:

...a morte do rei é um tempo de crise e de transição. O regicídio é o crime mais grave. Psicologicamente, significaria a morte do princípio que rege a consciência, a mais elevada autoridade da estrutura hierárquica. Por conseguinte, a morte do rei seria acompanhada por uma dissolução regressiva da personalidade consciente. Esse curso de eventos é indicado pelo fato de o corpo do rei servir de alimento a um lobo raivoso; isto é, o ego foi devorado pelo desejo faminto. O lobo, por sua vez alimenta o fogo. Mas lobo = desejo e desejo=fofo. Assim, o desejo consome a si mesmo. Depois de uma descida ao inferno, o ego (rei) renasce, à feição da fênix, num estado purificado ( EDINGER, 1999, p.39).

Toda a regressão ao nível da psique instintiva deve submeter-se à transformação e

perder a identificação com o seu próprio desejo, isto é com o seu inconsciente. Neste sentido,

as paixões estão sempre representadas pelos animais. Um ego frágil é sobremodo vulnerável

ao ser consumido pelo encontro com um afeto intenso. Explosões de afeto, exigências de

poder, ressentimentos devem submete-se à mortificatio, para que a energia do conteúdo

inconsciente se transforme. Jung, em seu livro autobiográfico Memorias, sonhos e reflexões,

descreve o processo de abandonar-se às emoções e sentimentos negativos, os quais

entretanto, ele não podia aprovar. Ele anotava as fantasias que frequentemente pareciam-lhe

insensatas e, que no entanto, provocavam-lhe suas resistências:

...Na medida em que conseguia traduzir as emoções em imagens, isto é, ao encontrar as imagens que se ocultavam na emoção, eu readquiria a paz interior. Se tivesse permanecido no plano das emoções, possivelmente eu teria sido dilacerado pelos conteúdos inconscientes. Ou talvez se os tivesse reprimido, seria fatalmente vítima de uma neurose e os conteúdos inconscientes destrur-me-iam do mesmo modo (JUNG, 1996, p. 158).

Na alquimia o símbolo do dragão, isto é, a serpente ouroboros é um sinônimos da

prima materia. Assim como esta última, ele é bissexual , ou seja, se auto fecunda e nasce de si

mesma. Simbolo da auto-destruição e da transformação, a linguagem alquímica exprime o

próprio inconsciente que se prepara para o processo de renovação. Jung afirma em Mysterium

Coniunctionis que “o draco (dragao), é a forma mais baixa e inicial da vida do rei” (JUNG,

60 Do grego Therion = animal selvagem + morphé= forma, e significa, “em forma de animal”.

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1997, p. 87, § 138). Já nas visões de Zózimo, o dragão aparece como sendo um dos símbolo

da prima materia:

...Observa bem de que lado se encontra a entrada do templo, toma uma espada em tuas mãos e procura-a. Pois o lugar em que se acha o acesso à porta do templo é exígio e estreito. Há um dragão estendido à porta; ele é o guardião. Subjuga-o abatendo-o em primeiro lugar; depois deves escalpelá -lo; toma sua carne com os ossos, retalha seus membros; junta a carne dos membros um a um como os ossos na entrada do templo; faze assim um degrau para ti; sobe-o e entra, lá encontrarás o que procuras (...)61

O dragão que devora a própria cauda é um antigo símbolo alquímico que representa o

“nous” devorado pelas próprias trevas no momento em que é abraçado pela “physis”. Ocorre

que “nous” e “physis” encontram-se em princípio como “caos”. Misturados um com o outro,

não há ainda discernimento. Enquanto a consciência não se manifesta, os opostos do

inconsciente permanecem latentes. Eles são ativados pela consciência e o “regius filius”, é

então tragado pela “physis”, adquirindo um predomínio sobre a consciência. O dragão é um

ser primitivo que vive nas cavernas, e em uma ánalise psicológica, representa uma

personificação da psique instintiva. Jung analisa o trecho acima das visões de Zózimo e

assegura:

O dragão, isto é, a serpente, representa a inconsciência original, pois este animal – como dizem os alquimistas – gosta de permanecer “in cavernis et tenebrosis locis”: Esta inconsciência deve ser sacrificada. Só então poder-se-á encontrar a entrada para a cabeça, isto é, para o conhecimento consciente. Aqui ocorre de novo a luta universal do herói contra o dragão, em que cada vitória o sol nasce, isto é, a consciência se ilumina (JUNG, 2003, p. 90-91,§ 118).

Ligado ao aspecto selvagem da psique, o dragão é escolhido para morrer, no Atalanta

Fugiens, na imagem da Mortificatio do dragão:

61 ZÓZIMO. In: BERTHELOT, Marcellin. Collection der anciens alchimistes grecs. Paris 1887/88. Apud: JUNG, C. G. Estudos Alquímicos. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 2003, p. 65.

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Mortificatio do dragão (Michael Maier, Atalanta fugiens, 1617)62

O mito do herói conhece a condição de ser tragado pela baleia, assim como Jonas foi

tragado pelo peixe e retido em seu ventre. A finalidade de todo conhecimento e de toda a opus

é a transformação e a ressurreição do adepto. Da mesma maneira como o heroi resgata a

donzela cativa do dragão, assim também o alquimista redime a anima mundi de sua prisão na

matéria por meio da mortificatio da prima materia.

Como foi visto no capítulo anterior, o sol é um sinônimo alquímico de ouro;

consequentemente, o rei no essencial é um sinônimo do Sol. Sendo assim, por vezes, o rei é

substituído pelo sol, onde ele, como consciência dominante é engolido pelo leão, isto é, como

mostra a décima oitava no Rosarium philosophorum:

O sol sendo devorado pelo leão (Rosarium Philosophorum, 1550)63

62 Figura disponível em: http://www.alchemywebsite.com/atl21-5.html. 63 Figura disponível em: http://www.alchemywebsite.com/rosary5.html.

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A mortificatio do rei ou do sol refere-se à morte e transformação de um princípio

diretor dominante. Estas representações alquimicas tratam do tema da transformação de um

modo original. São os processos que a materia prima deve suportar a fim de ser transformada,

as quais se inserem no contexto mais vasto do novo nascimento. Eirenaerus Philaletha em A

entrada aberta ao palacio fechado do rei, no Capítulo vigésimo quarto, intitulado “Do

primeiro regime da Obra, que é mercurio”, considera:

Estejas bem certo de que, se bem que nosso Mercúrio devora o Sol, não é da maneira que pensam os Químicos Filosofistas. Porque, mesmo se o unes ao nosso Mercúrio, após uma espera de um ano recuperarás o Sol intacto e em plena posse de sua virtude primeva, se não o fizeste cozinhar ao grau conveniente de calor. Quem o contrario afirmar, Filósofo não pode ser.64

O sol, princípio masculino, espiritual da luz e do logos desaparece no “abraço” da

physis, representado na natureza animal do leão. Nota-se, tanto nesta, quanto nas outras

alegorias, a necessidade da simbolização em forma de animais. A mortificatio, segundo Jung,

“significa a superação do antigo ou precedente; primeiramente é a superação das etapas

perigosas antecedentes, as quais vem designadas por símbolos de animais” (JUNG, 1997, p.

136,§164). Na figura acima, o sol simbolizando a consciência dominante é devorado pelo

Leão. O leão, assim como o dragão, representam o aspecto perigoso da prima materia.

Entretanto, ele é a forma de sangue quente do animal devorador e impetuoso, e neste aspecto,

é a forma mais alta e posterior da transformação do rei, cuja a primeira forma é o dragão:

... este animal régio, que já na época helenística era considerado como a etapa da transformação do Hélio, significa o velho rei (...). Ao mesmo tempo representa ele, na forma teriomórfica, o rei que se transforma, isto é, na forma em que ele, a partir de seu estado inconsciente, se dá a conhecer. A forma animal exprime que o rei de certo modo foi subjugado ou encoberto pelo leão e que por isso toda a sua manifestação de vida consiste apenas em reações animalescas, que justamente nada mais são do que emoções. Emocionalmente, no sentido de afetos desgovernados, é um assunto essencialmente animal (...) (JUNG, 1990, p. 47-48, § 65).

Sendo assim, o leão, símbolo do poder vital e da soberania solar, é o rei dos animais e

aspecto teriomórfico do sol, ou uma etapa de transformação dele. Por isso, há também uma

versão com o próprio leão submetido à mortificatio, pela amputação de suas patas. A

64 PHILALETHA, Eirenaerus (1645). A entrada aberta ao palácio fechado do rei. Acesso em: http://www.templodetoth.hpg.ig.com.br/alquimia.htm

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mutilação do leão tem na alquimia de fa to o significado de domar a concuspicência65. Ao

analisar o décimo sonho de uma série especialmente de cunho metafísico, Edinger comentou

essa imagem alquímica, e assegurou que “as mãos são o agente da vontade consciente. Assim

ter as mãos cortadas corresponderia à experiência da impotência do ego” (EDINGER, 2000,

p. 286). Segue abaixo essa imagem na alquimia, cuja a forma mais extrema, aparece como o

homem esquartejado do tratado Splendor Solis, já visto anteriormente:

O leão sem patas (Songe de Poliphile, 1600)66

No geral, o rei, o sol e o leão referem-se ao princípio diretor do ego consciente e ao

instinto de poder. Num certo ponto, esses aspectos devem ser mortificados para que ocorra

uma transformação em uma forma renovada e mais consciente surja um novo. Uma vez que

sol, rei e ouro se equivalem, assegura Edinger, “isso significa uma descida da consciência ao

reino animal, no qual deve suportar as ferozes energias do instinto. No conjunto químico de

imagens, seria a purificação ou refino do ouro” (EDINGER, 1999, p. 39).

O leão é a forma de sangue quente do animal devorador e impetuoso, cuja a primeira

forma é o dragão. Apos ele ser morto e eventualmente despedaçado, segue quase sempre a

forma de leão. O leão por sua vez é seguido pela águia. Segundo Jung “a águia é a etapa

imediatamente superior à do Leo. Este como quadrúpede, ainda está ligado à terra, ao passo

que a Águia representa um spiritus (espírito)”67. Nota-se que a transformação alquímica

65 Segundo Jung, o leão ígneo, quer representar “ a emocionalidade passional, que significa a etapa previa do conhecimento de conteudos inconscientes” (JUNG, 1990, p. 46, § 64). 66 Parte da imagem tirada do frontispício do Songe de Poliphile (1600), editado por Béroalde de Verville. Figura disponível em EDINGER, E. F. Ego e arquétipo . São Paulo: Ed. Cultrix, 2000, p. 285. Também disponível em JUNG, C. G. Psicologia e Alquimia. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 1991, p. 48. 67 JUNG, C.G. Mysterium Coniunctionis. Rio de Janeiro: Ed. Vozes,1990, p.73,§ 116, nota 256.

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conduz da maior profundidade, representada pelo aspecto primitivo do dragão na caverna, até

as maiores alturas, na águia solar. Do nivel animal e arcaico o alquimista busca-se o homem

místico.

Uma gravura em especial na “terceira chave dos filosofos” do tratado As doze chaves

da filosofia, de Valentim, retrata um dragão com asas e, logo acima da cabeça do dragão,

sobrepõem-se as imagens de um lobo e um pássaro; como pode ser visto à seguir:

A terceira chave dos filósofos (Basílio Valentim, As doze chaves da filosofia, 1609)68

Eis as representações psíquicas daquele alquimista que quer vencer os aspectos

instintivos e selvagens do corpo. Nesta gravura, fica nítido as transformações nos símbolos

teriomórficos. O dragão, a forma mais baixa e inicial da vida do rei, passa a ser retratado com

asas. O lobo, que junto com o cão, por serem a forma de sangue quente do animal devorador e

impetuoso, são colocados no mesmo nível que o leão, passa a ser retratado sendo carregado

por uma águia. Esta como visto anteriomente, é a etapa imediatamente superior à do leão.

Este como quadrúpede, ainda está ligado à terra, ao passo que a águia representa um espírito.

O texto que segue a figura, acrescenta:

O fogo pode sufocar-se e apagar-se com a água; muita água deitada sobre um pouco de fogo faz-se dona deste. Assim se deve fazer o nosso sulfeto ígneo, moderado, vencido e obtido devidamente pela água, para que depois a água ígnea devore e

68 Figura disponível em: http://www.levity.com/alchemy/twelvkey.html.

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domine as águas e se retire. Mas não poderemos obter aqui uma vitória, se o rei não tiver dado a sua virtude e força à sua água e não lhe tiver dado a sua virtude e força à sua água e não lhe tiver proporcionado o seu libre e cor real, para com ele ser dissolvido e convertido em invisível, devendo, contudo, aparecer outra vez e mover-se à vista. E, ainda que isto não se possa fazer sem dano nem lesão do seu corpo, far-se-á contudo com aumento da sua natureza e virtude.69

O sulfeto ígneo, de natureza e cor do fogo, é simbolizado claramente na figura do

dragão. Este como aspecto instintivo da psique será vencido, isto é mortificado pela água da

dissolução, como retrata o trecho “assim se deve fazer o nosso sulfeto ígneo, moderado,

vencido e obtido devidamente pela água”. Entretanto tendo feito isto, este corpo será revivido

novamente pela água, em uma forma superior. Desta maneira separa-se da mistura a parte

mais volátil por evaporação seguida da condensação, por isso o significado do trecho “para

que depois a água ígnea devore e domine as águas e se retire”. Logo o rei vem substituir o

dragão ígneo, representando a renovação em uma forma superior. Este então, passa por uma

nova mortificatio, como descreve o trecho: “Mas não poderemos obter aqui uma vitória, se o

rei não tiver dado a sua virtude e força à sua água”. Embeber a mistura com a sua própria

água, significa que esta mistura deverá ser destilada e, por isso, embebida pela própria

essencia dela extraída, até que seja elevada ao grau máximo de pureza pelo movimento

circular continuado, revivendo em um natureza superior. Desta maneira o corpo novo levanta-

se outra vez desobstruído, puro e imortal, como descreve o trecho: “ainda que isto não se

possa fazer sem dano nem lesão do seu corpo, far-se-á contudo com aumento da sua natureza

e virtude”.

Erich Neumann, discípulo e colaborador de C. G. Jung, em seu livro História da

origem da consciência, descreve a ruptura do estado uroborico inicial. Neste processo, parte-

se do “caos”do estágio da uroboros de Neumann e, se observa, de modo geral, no motivo da

luta com o dragão, um desenvolvimento e transformação da libido. Nesse processo de

transformação da humanidade, assegura Neumann:

... Jung conseguiu provar o significado transpessoal da luta do herói porque não tomou o aspecto familiar pessoal como o ponto de partida para o desenvolvimento humano, mas sim o desenvolvimento e a transformação da libido. Nesse processo de transformação da humanidade, a luta do herói desempenha um papel eterno e fundamental na superação da inércia da libido, inércia que se apresenta no símbolo da mãe-dragão circundante, isto é, do inconsciente (NEUMANN, 2003, p. 122).

69 VALENTIM, Basílio. As doze chaves da filosofia. In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo , Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 127-128.

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O emblema quadragésimo primeiro do Atalanta Fugiens retrata Adônis morto por um

varrão, por quem Venus apressada, tinge as rosas com seu sangue:

Adônis morto por um varrão (Michael Maier, Atalanta fugiens, 1617)70

A narrativa que segue o emblema, diz:

Mas Adonis é morto pelo varrão, (isto é, pela agudeza do vinagre, ou pela água se dissolvendo, a qual possui dentes terríveis como um varrão) e tem seus membros despreendidos e cortados fora. Mas Venus esforça-se para ajudar seu amante; e quando ele estava morto, o estendeu e o preservou entre alfaces.71

O porco e o javali, são animais que representam o aspecto selvagem da psique, por

serem vorazes glutões. Não à toa o texto compara a dissolução da água com os terríveis dentes

destes animais. Estes são os responsáveis pelo estado de desagregamento produzido pelo

impacto do choque com o inconsciente. A figura do cão também se encontra na alquimia

como um dos simbolismos para representar o aspecto da prima materia, isto é, da psique

instintiva. Tanto o lobo, o cão e até mesmo o leão, são colocados no mesmo nível, pois são as

forma de sangue quente do animal devorador e impetuoso. Cérbero, o guardião do inferno, era

um cão mostruoso, de cabeça tripla e cauda de dragão, com que violava todos os que iam ter

os infernos. Ele era o cão de Hades, o deus infernal. No sétimo capítulo do tratado alquímico

70 Figura disponível em: http://www.alchemywebsite.com/atl41-45.html. 71 “But Adonis is slain by the Boar, (that is, by the sharpness of Vinegar, or dissolving water, which hath terrible teeth like a Boar ) and has his members loosened and cut off. But Venus endeavours to help her Lover; and when He was dead, laid out and preserved him among Lettuces.” MAIER, Michael (1617) Acesso em: http://www.alchemywebsite.com/atl41-45.html.

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A Entrada aberta ao palácio fechafo do rei, Eirenaerus Philaletha, faz referência à figura do

cão72:

Daí nascerá o Camaleão, quer dizer, nosso Chaos, onde estão escondidos todos os segredos, não em ato, mas em potência. É esse o infante Hermafrodita, envenenado desde o berço pela mordida do cão enraivecido de Corascena, por causa de uma hidrofobia permanente, ou medo da água, que o torna louco e insensato; e agora que a água é o elemento natural mais próximo dele, ele a abomina e foge dela. Ó Destinos! Não obstante, encontram-se na floresta de Diana, duas pombas que suavizam sua raiva insensata ( se as aplica com arte da Ninfa Vênus ). então para impedir que esta hidrofobia o retome, mergulhe-o nas águas, e que ele pereça. Neste momento, o Cão Negro Enraivecido, sufocado, incapaz de suportar as águas, subirá quase até a sua superfície; persegue-o à forca de chuva e golpes, e faz com que fuja para bem longe; assim desaparecerão as trevas. Quando a Lua brilhar plenamente, dará asas à Águia, que voará (...).73

Na citação acima, o “caos” é um infante hermafrodita, isto é, uma criança andrógina

que foi mordida pelo cão raivoso ainda muito nova. Nota-se que o cão negro e raivoso

representa a nigredo. Devido à contaminação e o envenenamento da prima matéria (cão), o

hermafrodita se tornou hidrofóbico, o que parece insensato aos olhos do alquimista, pois a

umidade é o elemento mais próximo desta fase no mercúrio comum. Mas é justamente das

trevas tenebrosas da nigredo, que o infante quer se afastar. As duas pombas, então, pelo

movimento circular continuado correspondente à destilação, mergulha –o novamente nas

águas, onde o cão se encontra, para que este se transforme em uma forma superior (águia), na

ocasião então da lua cheia (alusão à albedo).

No trecho do tratado de Eirenaerus Philaletha há referencia à Lua. O mundo materno

feminino-ctônico da agua permanens (água eterna), ou respectivamente do “caos” é associado

ao mundo lunar. A prima materia em seu aspecto feminino, é a lua, a mãe de todas as coisas;

ela também tem mil nomes, é a terra e a serpente escondida ne la; por sua umidade estava

relacionada à umidade destruidora da nigredo. A Lua, segundo Jung, “é o oposto do sol; por

isso é fria, úmida, de luz fraca até a escuridão, feminina, corpórea, passiva” (JUNG, 1997, p.

124, §149). Enquanto o sol alquímico, por sua luminosidade era equiparado à iluminação, à

luz da natureza, e em última instância, com o surgimento da consciência, “parece que os

appetitus como ‘potentiae sensuales’ pertencem a esfera da lua; são a ira e o desejo (libido),

ou numa palavra a ‘concuspicentia’” (JUNG, 1997, p. 137,§199).

72 Segundo Jung, “...a figura do cão penetrou na alquimia ocidental pelo Liber Secretorum, que é um tratado de Kalid, talvez escrito originariamente em árabe” (JUNG, 1997, p. 140-141,§169). 73 PHILALETHA, Eirenaerus (1645). A entrada aberta ao palácio fechado do rei. Acesso em: http://www.templodetoth.hpg.ig.com.br/alquimia.htm

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Na alquimia o símbolo da lua, assim como do sol, foi exaustivamente abordado. O

simbolo da lua nova, ou seja quando esta “engole” o sol, foi muitas vezes usada nos tratados

para simbolizar a fase da nigredo. Entretanto, somente na lua cheia ela está em completa

oposição ao Sol, e a sua luminosidade branca e brilhante era associada à fase da albedo. Em

Mysterium Coniunctionis, Jung trata sobre a figura alquímica do cão, e especificamente

analisa o trecho acima de Eirenaerus Philaletha:

Este relacionamento mencionado entre o cão e a Lua permite compreeender que o cão perigoso e doente sofre uma transformação por ocasião do plenilúnio, mudando-se em uma águia. Desaparece então sua natureza sombria e ele se torna um animal solar. Por isso deve-se supor que o pior estado dele cai no novilúnio (...) isto é, na época da nigredo. Não está claro o modo como o cão hidrofóbico e raivoso chega até a água, a não ser que desde o começo já se encontre nas “aquae” (inferiores) (JUNG, 1997, p. 149,§177).

Estas simbologias alquímicas demonstram uma transformação psíquica quanto ao grau

de consciência dos conteúdos inconscientes. Transformações estas que eram acompanhadas

por transformações tanto nos simbolos teriomórficos como nos símbolos ligados às fases da

lua. Deste modo, da escuridão do inconsciente surge a luz da iluminação da albedo. Sobre

este aspecto da lua cheia, Jung traz uma citação do século XVI, no tratado De igne et sale de

Blasius Vigenerus74:

... De tal modo constitui a lua o caminho para o céu que os pitagoreus a designaram como terra celeste e o céu terrestre e astro, porque a natureza inteira é inferior no mundo dos elementos em relação ao intelligibile. (...) Na mesma proporção em que (a lua) se afasta deste [o sol] para atingir a oposição, aumenta também a sua luminosidade para nós neste mundo, mas desaparece no lado que olha para cima. Reciprocamente, se ela está em conjunção quando para nós está obscurecida, se encontra totalmente luminada de brilho na parte que está voltada para cima (para o Sol). Isto acontece para nos ensinar que, quanto mais nosso intelecto descer para as coisas dos sentidos, tanto mais se desvia das coisas inteligíveis, e vice-versa.75

Esta temática envolve toda uma problemática que a alquimia se viu envolvida, a saber,

a problemática da união simbólica do elemento animal com as mais elevadas conquistas

morais e intelectuais do espírito humano. Esta questão traz também o capítulo para o seu

objetivo central que é o de demostrar, sob a ótica junguiana, de que modo o primeiro grau da

Coniunctio de Dorneus está relacionado com a fase alquímica da nigredo. É compreensível

74 Segundo Jung, Blaise de Vigenere (1523-1596 ) era um conhecedor muito douto do hebraico. Na alquimia a cabala foi aceita tanto direta como indiretamente, por isso é possível encontrar citações do Sohar. 75 Theatrum Chemicum.VI, p. 17. In: JUNG, C. G. Mysterium Coniunctionis. Rio de Janeiro: Ed. Vozes,1997, p. 21, § 19.

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também que se fez necessário abordarmos alguns aspectos essenciais presentes na simbólica

da fase seguinte, a albedo, de modo que se demonstre que quanto mais se caminha para uma

unio mentalis, mais se afasta da simbólica envolvida no contexto da nigredo e mais se

aproxima em seus aspectos psíquicos, de tudo aquilo que culmina, produz ou almeja produzir

a respectiva fase “negra”.

III. 5. – A fase alquímica nigredo e sua relação com o primeiro grau da Coniunctio de

Gerardus Dorneus

Os indivíduos que tentam atravessar o mar (inconsciente) sem estarem purificados e

sem a orientação iluminadora morrem afogados, isto é, um ego imaturo é eclipsado e

ameaçado com destruição, quando abraça ingenuamente o inconsciente maternal, ficando

retido no inconsciente, por não ser capaz de desenvolvimento posterior em sua orientação.

Esta ocasião é associada na alquimia com o negrume da lua nova. Entretanto, quanto mais o

intelecto sobe para as coisas inteligíveis, tanto mais se desvia das coisas do sentido. Entre

essas imagens deste processo psíquico, destaca-se a lua cheia. Somente na lua cheia ela está

em completa oposição ao Sol. Na mesma proporção em que (a lua) se afasta deste [o sol] para

atingir a oposição, aumenta também a sua luminosidade para nós neste mundo.

Psicologicamente falando, somente um ego que não sucumbiu ao encontro com a sombra,

mas encontra-se em um estado de igualdade de ânimo, prudência e imparcialidade, transcende

a afetividade e o aspecto instintivo do corpo (Lua). Sobre a passagem simbólica da lua nova

para a lua cheia, do ponto de vista psicológico da Opus, considera Jung:

...No mito alquímico do rei, a confrontação vem expressa pela colisão do mundo paterno espiritual- masculino do Rex Sol (rei sol) com o mundo materno feminino-ctônico da agua permanens (água eterna), ou respectivamente do “caos” (...) O reflexo do Sol é a Luna feminina, que dissolve o rei em sua umidade. É como se o Sol descesse e penetrasse na profundeza escura do mundo sublunar, para unir as forças do (mundo) com as do inferior (...). A dominante da consciência, agora tornada inoperante, desaparece de modo ameaçador nos conteúdos ascendentes do inconsciente, pelo que ocorre primeiramente um obscurescimento da luz. O combate entre a dominante da consciência do eu e os conteúdos do inconsciente é sustentado primeiramente de modo que a inteligência procura colocar cadeias em seu oponente (JUNG, 1990, p. 111-112, § 170).

De modo especial, é importantíssimo o plenilúnio (lua cheia), como aquele estado de

completa oposição ao Sol, que transcende a afetividade e o aspecto instintivo do corpo (Lua).

Jung, na citação acima, assegura, que o combate entre a dominante da consciência do eu e os

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conteúdos do inconsciente é sustentado primeiramente de modo que a inteligência procura

colocar cadeias em seu oponente, isto é, nos conteúdos ascendentes do inconsciente; nesta

simbólica alquímica, a natureza inteira é inferior no mundo dos elementos em relação ao

inteligível. Uma das imagens referentes à esse processo psíquico na alquimia é a decapitação.

A decapitação aparece na imagem do seccionamento da cabeça de ouro, nos manuscritos do

Splendor Solis, no processo alquímico da separatio e mortificatio do corpo, mostrado

anteriormente. Ion é despedaçado pelo homem com a espada já no século III, em Zózimo.

através do escalpelamento, cujo o trecho foi citado no capítulo anterior:

...Com efeito, alguém veio às pressas, de madrugada, subjugou-me e me transpassou com uma espada e me dividiu em pedaços, mas de tal maneira, que a disposição de meus membros continua harmoniosamente como antes. E arrancou a pele de minha cabeça com a espada que ele vibrou com força e recolheu os ossos com os fragmentos de carne, queimando tudo no fogo, com a própria mão, até que percebi me haver transformado em espírito.76

Assim como nos rituais de sacrifício astecas, o Sacerdote, ao se alimentar do coração

da vítima, assimilava sua força e coragem, da mesma forma que os ídolos untados com seu

sangue adquiriam vida e poder; assim também extrair e devorar o cérebro de um inimigo deve

produzir a incorporação de suas forças vitais. Na alquimia, a cabeça desempenha papel

considerável. Em Zózimo e em alquimistas mais tardios, a cabeça, segundo Jung “ tem o

significado do ‘redondo’, do chamado elemento ômega, (...) que se refere à substancia arcana

ou da transformação. A decapitação significa portanto a obtenção da substancia arcana”

(JUNG, 2003, p. 74, § 95). Assim também a cabeça de corvo é a designação tradicional da

nigredo. No Theatrum Chemicum, “a cabeça do corvo é a origem da obra”77. Associado à fase

negra estava a figura do etíope. No Treatrum Chemicum: "a nigredo (negrura) ou

respectivamente caput corvi ( cabeça de corvo), é designada como ´caput nigrum

aethiopis`(cabeça negra do etíope)."78A figura do "etíope", que aparece também em outros

tratados, segundo Jung, origina-se igualmente de um tratado atribuído a Alberto intitulado

Super arborem Aristotelis. A passagem diz: " até que a cabeça negra que se assemelha ao

etíope fique bem lavada e comece a tornar branca".79

76 ZÓZIMO. In: BERTHELOT, Marcellin. Collection der anciens alchimistes grecs. Paris 1887/88. Apud: JUNG, C. G. O símbolo da transformação na missa . Rio de Janeiro:Vozes, 1991, p. 27. 77 Theatrum Chemicum. Vol. I, Ursel, 1602, p. 166. Apud: Jung, C. G. Misterium Coniunctionis. Rio de Janeiro: Vozes, 1990, p. 268, § 386, nota 178. 78 Treatrum Chemicum. Vol. III, Ursel, 1602, p. 854 Apud: Jung, C. G. Misterium Coniunctionis. Rio de Janeiro: Vozes, 1990, p.266, § 384, nota 162. 79 Treatrum Chemicum. Vol. II, Ursel, 1602, p.524s. Apud: JUNG, C. G. Psicologia e Alquimia. Rio de Janeiro: Vozes, 1991, p.418, § 484, nota 171.

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Nicolas Flamel (1330-1418), o mais célebre alquimista francês, em sua obra mais

famosa O livro das figuras hieroglíficas, também menciona a expressão “cabeça do corvo” no

texto sobre quarta figura que trata sobre a “Albificação” e o “Embranquecimento”. A figura

retrata um homem semelhante a São Paulo, vestido com uma roupa branco-alaranjada,

segurando uma espada e tendo a seus pés um homem ajoelhado. Na explicação da figura,

Flamel considera:

... Observa bem este homem na forma de São Paulo, vestido com uma roupa inteiramente branco alaranjada. Se bem o considerares, ele vira o corpo em postura que demonstra que ele quer tomar a espada nua, ou para cortar a cabeça, ou para fazer qualquer outra coisa a este homem que está a seus pés de joelho, vestido com uma roupa alaranjada, branca e negra, o qual diz em seu rolo: (…) suprime minha negritude, termo da arte. Mas queres saber o que quer dizer este homem que toma a espada? Significa que se deve cortar a cabeça do corvo, ou deste homem, vestido de diversas cores, que está de joelho. Tomei esse desenho e figura de Hermes Trismegisto em seu Livro da Arte Secreta, onde ele diz: Suprime a cabeça a este homem negro; corta a cabeça ao corvo, ou melhor, embranquece nossa areia (FLAMEL, 1973, p. 94).

Assim como o homem com a espada arranca a pele da cabeça de Ion, o dragão também

sofre o escalpelamento, ambos nas visões de Zózimo, em trecho já citado: “Há um dragão

estendido à porta; ele é o guardião. Subjuga-o abatendo-o em primeiro lugar; depois deves

escalpelá-lo”80. O escalpelamento, segundo Jung, “deve significar um apropriar-se pars pro

toto do princípi da vida ou da alma” (JUNG, 2003, p. 73, § 93). A mesma operação realizada

com auxílio da espada aparece na segunda figura de Lambsprink:

(Lambsprinck, O Tratado da Pedra Filosofal, 1599)81

80 ZÓZIMO. In: BERTHELOT, Marcellin. Collection der anciens alchimistes grecs. Paris 1887/88. Apud: JUNG, C. G. Estudos Alquímicos. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 2003, p. 65. 81 Figura disponível em: http://www.alchemywebsite.com/lambtext.html

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O texto que acompanha a figura, assegura: “Os sábios afirmam que vive no Bosque,

um Dragão cuja a pele é de um negror completo. Mas se alguém lhe cortar a cabeça, ele perde

na hora sua escuridão. E se torna, inteiro, branco como a neve.”82 Jung comenta o significado

psicológico do símbolo alquímico da decapitação83:

...A decapitação é importante como símbolo, por ser uma separação da “intelligentia” (inteligencia) da “passio magna et dolor” (grande sofrimento e dor), que a natureza causa à alma. Ela é como uma emancipação do pensar residente na cabeça, que é a “cogitatio” (cogitação) ou uma libertação da alma “das cadeias do corpo”. Ela corresponde à intenção de DORNEUS de estabelecer uma “unio mentalis in superatione corporis” (união mental por meio da superação do corpo (JUNG, 1990, p. 269, § 387).

Na simbólica alquímica, o estado de sofrimento da matéria, ou seja, o sofrimento e a

dor, que a natureza causa à alma, desaparece somente quando a fase da nigredo foi vencida e

a aurora anuncia a albedo. Marie-Louise Von Franz em sua obra Alquimia:, considera que a

brancura da fase da albedo, “sugere purificação, o fim da contaminação da materia, o que

significa aquilo que chamamos tecnicamente, e de modo tão displicente, o retrocesso de

nossas projeções” (VON FRANZ, 1980, p. 195). Na simbólica dos três graus da coniuctio de

Dorneus, este estado é alcançado através da unio mentalis. Do ponto de vista psicológico, a

unio mentalis coincide com o auto conhecimento e a ampliação da consciência84. Jung em

Mysterium Coniunctionis define o auto conhecimento como “recuo das projeções ingênuas,

por meio das quais modelamos a realidade que nos circunda e a própria imagem de nosso

carácter” (Idem, 1990, p. 276, § 396). Sobre o retrocesso das projeções representada no estado

de brancura pur ificada da matéria, assegura Von Franz

Logo que uma projeção é realmente retirada, se estabece uma espécie de paz – a pessoa torna-se tranquila e é capaz de observar as coisas de um ângulo objetivo. Ela pode examinar o problema ou o fator específico de forma objetiva e serena, e talvez usar alguma imaginação ativa a respeito do mesmo sem se tornar constantemente emocional ou recair no emaranhado de emoções. Isso corresponde à albedo e constitui, de certa forma, o primeiro estágio do processo em que a pessoa se torna

82 TRATADO da Pedra Filosofal de Lambsprinck: o significado do simbolismo da alquimia. Tradução e comentarios explicativos do Prof. Anysio N. Dos Santos. São Paulo: Ed. Ibrasa, 1996, p. 54. 83 Edinger acrescenta: “That`s the unio mentalis. And, (…), one of the images for that phenomenon is decapitation - beheading, separating the head from the body. That`s a stark and vivid image for the fact that everything going on in the head gangs up against the body, doesn`t want to have anything to do with the body, and so separates from it, (…)” [Esta é a unio mentalis. E, (...), uma das imagens para esse fenômeno é decapitação - degolando, separando a cabeça do corpo. Esta é uma imagem completa e vívida para o fato que tudo que vai sobre a cabeça conspira contra o corpo, não quer ter qualquer coisa a fazer com o corpo, e assim se separa dele (...)] (EDINGER, 1995, p. 285). 84 Jung acrescenta: “A unio mentalis (união mental) representa, pois, tanto na linguagem alquímica como na psicológica a ‘cognitio sui ipsius’ ou o conhecimento de si mesmo” (JUNG, 1990, p. 254, §370).

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mais tranquila, mais despreendida e objetiva; filosoficamente mais imparcial. Ela tem um ponto de vista au dessus de la melée; pode colocar-se no topo da montanha e observar a tempestade que se desenrola embaixo e que ainda está naturalmente em curso, mas pode ser vista sem medo ou sem que a pessoa se sinta ameaçada por ela (VON-FRANZ, 1980, p. 195).

Em uma discussão psicológica, análogo ao estado de igualdade de ânimo, prudência e

“filosoficamente mais imparcial”, que transcende a afetividade e o aspecto instintivo do

corpo, sem recair no emaranhado de emoções; a confrontação com a sombra, segundo Jung,

“causa primeiramente um equilíbrio morto” (Idem, 1990, p. 252, § 367). Tal estado de

despreendimento objetivo é descrito inicialmente como uma atitude realista para com as

exigências do mundo exterior. A disciplina rígida, por seu turno, enfatiza os limites estritos de

comportamento, encoraja a dissolução da identidade ego-Si-mesmo e trata a inflação de modo

aparentemente eficaz. Diz-se “aparentemente”, pois há um verdadeiro perigo de que conforme

o ego vai se separando do si-mesmo, o vínculo vital que os liga seja danificado,

permanecendo alienado do seu próprio intimo. Naturalmente existe a máxima tentação do ego

se identificar com o si-mesmo, o que resulta numa espécie de vago super homem,

alimentando assim a ilusão de um domínio do eu. Neste caso, as figuras do inconsciente são

psicologizadas, e o si-mesmo, em consequência, assimilado ao eu. Em outros casos, considera

Jung:

... o eu se revela fraco demais para se opor a necessária resistência aos afluxos dos conteúdos do inconsciente e, é consequentemente assimilado pelo inconsciente, o que dá origem a um enfraquecimento e obscurescimento da consciência do eu, a uma identificação deste com a totalidade inconsciente. Tanto um como o outro destes dois procedimentos impossibilitam a realização do eu [sem grifo no original] (JUNG, 1998[A], p. 161).

Edinger, em seu livro o Ego e o arquétipo, analisa a separação da identidade

inconsciente com o Si-mesmo, ou seja, estado de identificação com a unidade inconsciente

original, descrito na simbolica alquímica na fase da nigredo e, considera que o ato inflado, ou

seja, o ato de hybris é um crime necessário, pois é preciso defender o mundo da

consciêncienc ia e da realidade contra um estado onírico e arcaico, evitando a assimilação do

eu pelo inconsciente. O autor considera que o tema do encontro com uma cobra ou de ser

mordido por uma cobra, comum nos sonhos, tem o mesmo significado de sucumbir à tentação

da serpente que se apresentou para Adão e Eva, no Jardim do Éden; assim como os sonhos em

que comete-se um crime possui o mesmo significado do crime original do roubo do fruto:

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... A obtenção da consciência é um crime, um ato de hybris contra os poderes estabelecidos, mas é um crime necessario, que leva a uma necessaria alienação com relação ao estado inconsciente natural da unidade. (...) é preferível ser consciente a permanecer no estado animal. Mas, para emergir, o ego é obrigado a colocar-se contra o inconsciente de que proveio e assegurar a sua autonomia com um ato inflado (EDINGER, 2000, p. 50).

Edinger considera que cada um desses passos, na qualidade de ato verdadeiramente

inflado, é acompanhado não só de culpa mas também do risco bastante real de levar a entrar

num estado de inflação que acarrete as consequencias de uma queda. Em certo sentido, a

separação da alma das cadeias do corpo descrito na unio mentalis, transcende a afetividade e o

aspecto instintivo do corpo, e os impulsos animais do inconsciente. Entretanto, este estado

tende a danificar a conexão vital e necessária entre o ego e as raizes que ele mantém no

inconsciente. A separação das esferas espiritual e vital, e a subordinação desta última a pontos

de vista racionais,segundo Jung “ não agrada, uma vez que a ratio (razão) sozinha não é capaz

de avir-se de maneira abrangente e satisfatória com os dados irracionais do inconsciente”

(JUNG, 1990, p. 225-226, § 335).Von Franz em Alquimia, analisa o estado de completa

introversão mental produzida pela unio mentalis entre a mente e anima no primeiro grau da

Coniunctio de Dorneus, e considera:

... o sentimento inconsciente, ou pensar de um certo modo, é uma umidade corruptível de que não nos damos conta, e o objetivo do trabalho é cozinhar toda ela até que seja eliminada. Os sonhos localizam e assinalam o fato e, interpretando e integrando o que eles nos dizem, livramo-nos lentamente dessa umidade. Mas se prosseguirmos por tempo demais, se superanalisarmos, perderemos um certo momento decisivo no processo, que só deveria prosseguir por um determinado período de tempo, visto que, se este for excessivamente prolongado, as pessoas perderão sua espontaneidade (VON FRANZ, 1980, p. 202).

Em certo sentido a unio mentalis no primeiro grau da Coniunctio de Dorneus, tende a

superar aquele estado em que a afetividade aprisionada no corpo influenciava perturbando a

razão; entretanto apresenta, ao mesmo tempo, o risco de danificar a ligação do ego com o

inconsciente, o que desencoraja a espontaneidade. Por isso, sabe-se que o combate entre a

dominante da consciência do eu e os conteúdos do inconsciente é sustentado, primeiramente,

de modo que a inteligência procura colocar cadeias em seu oponente; entretanto, continua

Jung, “com o tempo, falham essas tentativas ate que o eu aceite sua fraqueza e dê liberdade ao

combate furioso das potencias psíquicas que se desenrola no seu íntimo” ( JUNG, 1990, p.

112, §170). No ascetismo religioso a sujeição das paixões afetivas ocorre por meio de

penitencias, abstinências ou de dolorosos rigores inflingidos ao corpo. Em uma discussão

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psicológica, de fato, essa assertiva deve ser tomada em sentido simbólico, e não de forma

literal. Os desejos devem ser mortos em sua forma projetada, de cunho obsessivo. Segundo

Jung:

... Não compensa mutilar por muito tempo o ser vivo pelo primado do espiritual, razão pela qual mesmo o piedoso não pode impedir de sempre de novo pecar uma vez ou outra, e o racionalista deve sempre de novo aborrecer-se com suas irracionalidades. (...) Felizmente a natureza cuida de fazer com que os conteúdos inconscientes mais cedo ou mais tarde despontem na consciência para aí provocar as perturbações correspondentes. Uma espiritualização duradoura e livre de complicações é por isso tão rara que seus detentores são canonizados pela Igreja (JUNG, 1990, p. 226,§335).

Sendo assim, as operações alquímicas ligadas à primeira fase alquímica, ou seja, a

solutio, a separatio e a mortificatio (solução, separação, mortificação) descrevem o processo

de dissolução, discriminação e mortificação do composto. Estas operações alquímicas

descritas nas alegorias envolvem uma gama de simbolismos alquímicos, principalmente os

relacionados à nigredo, pois este parece ser o aspecto que os filósofos da arte mais se

debruçaram. Com o intuito de restringir os aspectos envolvidos aos simbolismos mais

recorrentes, tanto do ponto de vista psicológico quanto alquímico, foi necessário realizar

quase que uma “extração da alma”, a fim de que os mesmos não se perdessem em uma massa

caótica de alegorias e tratados condizentes com a fase “negra”. Na tradição alquímica, dos

tratados e alegorias que envolvem a transformação do rei, através da operação alquímica da

solutio, foram observadas as alegorias de Merlin e de Duenech, que estão entre as mais

antigas. O tratado alquímico Splendor Solis retrata também a solutio do rei, na alegoria que

mostra o rei do mar gritando por socorro. Foi observado a solutio do rei também no Atalanta

Fugiens. Entre os textos que que reproduzem a descida do homem primordial ao seio da

“physis”, destaca-se a Visio Arislei que foi retratado em várias versões inclusive no Rosarium

Philosophorum, entretanto sua origem no tempo é desconhecida. Das operações alquímicas

envolvendo a Separatio e a Mortificatio, o tema do ferimento e da tortura remonta na

alquimia ao tempo de Zózimos e suas visões, no século III. No Tratado da Pedra Filosofal, de

Abraham Lambsprinck, a gravura reproduz a descida do homem primordial ao seio da

“physis”, mostrando o rei, não mais misturado na profundeza do mar, mas ele próprio como

"prima materia", devorando o filho. O rei-sol desmembrado por um homem com a espada,

está retratado novamente no tratado alquímico Splendor Solis. Quanto à mortificatio do rei

ligado aos símbolos teriomórficos, foi observado a versão no Atalanta fugiens, retratando o

lobo, como aspecto devorador da prima materia. O rei substituído pelo Sol é engolido

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também pelo leão no Rosarium Philosophorum. Novamente no Atalanta Fugiens Adônis é

retratado morto por um varrão. Tanto o lobo, o cão e até mesmo o leão, são colocados no

mesmo nível, sendo assim, no tratado alquímico A Entrada aberta ao palácio fechafo do rei,

de Eirenaerus Philaletha, a criança andrógina é mordida pelo cão raivoso. O motivo da

renovação do rei ocorre em paralelo com as transformações nos simbolos teriomórficos Com

relação à estes, o dragão como a forma mais baixa e inicial da vida do rei, é retratado no

Atalanta Fugiens através da Mortificatio do dragão. O leão, forma mais alta e posterior da

transformação do rei, é submetido à mortificatio no frontispício do Songe de Poliphile. No

tratado alquímico, A Entrada aberta ao palácio fechafo do rei, a natureza sombria do cão é

transformada em uma forma superior e finalmente a “terceira chave dos filosofos” do tratado

As doze chaves da filosofia, de Valentim, a transformação nos símbolos teriomórficos

ocorrem tanto na figura do dragão como na figura do cão (lobo).

Resumidamente, as operações alquímicas ligadas à fase da nigredo, solutio separatio,

mortificatio (solução, separação, mortificação) descrevem o processo de dissolução,

discriminação e mortificação do composto. Essa terra, temos de mortificá- la e decompô-la,

segundo ensina a "A Tábua de esmeralda de Hermes Trismegisto": "separa a terra do fogo, o

sutil do denso, com delicadeza e com grande ingenuidade."85 Nota-se que, segundo a

concepção alquímica, tal operação consiste em isolar o mercúrio do enxofre, em separar o

fixo do volátil, o agente do paciente, etc. Sob este conjunto de dualidades, fixo e volátil, ativo

e passivo, agente e paciente, o alquimista quer simbolizar o binário corpóreo-espiritual, o

"nous" e a "physis" na unidade indistinta e caótica da prima materia, Porém, como isolar o

espírito luminoso da matéria tenebrosa se, na unidade, só há uma substância? É que sob este

binário corpóreo-espiritual estava oculto um terceiro, que é o "vínculo do sagrado

matrimônio": a alma. Não seria demais relembrar que nas concepções mais antigas havia um

reino intermediário, segundo Jung, um "domínio anímico de corpos sutis, cuja característica

era manifestar-se tanto sob a forma espiritual, como material" (JUNG, 1991 [A], p. 291, §

394).

Assim, sob a afirmativa de que arte pode romper a coesão da matéria e isolar o

mercúrio do enxofre, buscava-se uma operação em especial: tal operação resultará que a

matéria prima libertará o mercúrio, o que corresponde à uma separação da alma das cadeias

do corpo. Como foi visto anteriormente, o primeiro grau da Coniunctio, Dorneus descreve

como sendo a união (conjunção) da alma com o espíríto. Este estágio recebe o termo em

85 TRISMEGISTO, Hermes. A Tábua de esmeralda de Hermes Trismegisto. In: EDINGER, E. F. Anatomia da Psique. São Paulo: Ed. Cultrix, 1999, p. 247.

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Latim de unio mentalis, que significa uma união mental, o qual ocorre simultaneamente a

separação da alma do corpo. Assim como para uma primeira Coniunctio, descrita na união da

alma com o espírito pelo alquimista Dorneus, foi necessário uma separação da alma do corpo,

assim também, na concepção alquímica da fase da nigredo, o metal dissolvido, triturado,

"despedaçado", entregará um grão puro, ou seja, a alma que ele traz em si mesmo. Assim

compreende-se porque os alquimistas ensinam aos verdadeiros adeptos que "o sapiente sabe

apaziguar a sua dor", uma alusão à necessidade da mortificação e da decomposição da

semente mineral, matéria prima da obra:

A própria elaboração do Elixir mostra-lhe que a morte, transformação necessária, mas não real aniquilamento, não o deve afligir. Bem pelo contrário, a alma liberta do fardo corporal, goza, em pleno impulso, duma independência maravilhosa, toda banhada dessa inefável luz acessível apenas aos espíritos puros. Ele sabe que as fases de vitalidade material e de existência espiritual se sucedem umas após outras, segundo leis que lhes regem o ritmo e os períodos. A alma só deixa o seu corpo terrestre para ir animar outro novo (...) (FULCANELLI, 1990, p. 299).

Ao promover a decomposição prévia da prima materia, o espírito e matéria rompem a

sua associação anímica. Em uma discussão psicológica do processo, o estado composto era

aquele no qual a afetividade do corpo exibia uma influência perturbadora sobre a

racionalidade da mente. Enquanto a energia do forte desejo instintual não tiver sido extraída

de sua forma original e transformada em espírito, isto é, a compreensão consciente, estes

processos psíquicos são simbolizados por meio de um conjunto negativo de imagens, nos

quais os símbolos teriomórficos representam o aspecto selvagem da psique:

Em termos psicológicos isto significa que a união da consciência (Sol) com seu parceiro feminino, o inconsciente (Lua), tem de início um resultado não desejado: daí surgem animais peçonhentos, como dragão, serpente, escorpião, basilisco, sapo; depois leão, urso, lobo, cão, e finalmente águia e corvo. Como se vê, aparecem aí animais de rapina, primeiro os de sangue frio, depois os de sangue quente, e finalmente as aves de rapina e o agourento devorador de carniça. Os primeiros filhos do matrimonium luminarium são pouco agradáveis (JUNG, 1997, p. 138, § 167).

Os animais de sangue frio, os de sangue quente simbolizam o aspecto ligado à psique

instintiva, e quanto mais próximos estes das aves86, mais se denota nas alegorias uma

transformação psíquica na esfera da consciência. Jung parece estar consciente deste fato, pois

com relação não só à aproximação do simbolismo teriomórfico da ave como da mutabilidade

86 As pombas, por sua brancura, eram associadas à fase da albedo, e, “na alquimia representam elas, como todos os seres alados, spiritus ou animae, (...) isto é, a substancia de transformação que é extraída” (JUNG, 1997, p. 150,§ 179).

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da lua, ao comentar o trecho do tratado de Eirenaerus Philaletha, no qual um par de pombas

acalmam o furor do cão raivoso, por ocasião do plenilúnio, assegura ser “importante o

plenilunium (lua cheia): ‘Fulgente Luna in suo plenilunio’ (fulgindo a Lua no plenilúnio), é

enxotado o ‘cão danado’, o perigo que ameaça a criança divina” (JUNG, 1997, p. 126, § 149).

Somente aí desaparece então a natureza sombria do cão, ou seja, há uma transformação no

simbolo teriomórfico: o cão raivoso é sublimado e, se torna uma águia por ocasião do

plenilúnio. Nota-se que a transformação alquímica conduz da maior profundidade, até as

maiores alturas:

... O sol percorre as diversas etapas da transformação passando pelo dragão, pelo leão, pela águia até o hermaphroditus. Cada etapa representa um novo grau de compreensão, sabedoria e iniciação “Nisi me interfeceritis” (se não me matardes) normalmente se refere à mortificatio do dragão, que é, pois a primeira etapa perigosa e venenosa da anima (=mercúrio) libertada da prisão na prima materia (Ibidem, p. 135, §163).

Em uma análise dos simbolismos alquimicos relacionados com a primeira fase

alquímica, nota-se que, embora o primeiro grau da coniunctio do alquimista Dorneus não

apresente equivalência com a simbólica envolvida no contexto da nigredo; em seus aspectos

psíquicos, estabelece sim equivalência com tudo aquilo que culmina, produz ou almeja

produzir a respectiva fase “negra”: segundo a tese, uma unio mentallis, ou seja, um estado de

superação em relação os afluxos do corpo e da matéria e, em uma discussão psicologica

profunda, dos impulsos animais do inconsciente. Este fato é comprensível visto que o

primeiro grau da coniunctio de Dorneus, como o próprio termo assegura, configura uma

união, ou seja, o cume de um processo anterior, enquanto a fase da nigredo, como a própria

semântica deduz, denota uma modificação de um aspecto e por isso, uma passagem. Esta

hipótese é enriquecida pelo motivo da renovação do rei ocorrer em paralelo com as

transformações tanto nos simbolos teriomórficos como na mutabilidade do símbolo da lua.

Sendo assim, quanto mais se realiza um processo de “extração da alma”, tanto mais os

símbolos teriomórficos progridem da esfera dos instintos (corpo) representado nos animais

ligados à terra para a esfera do espírito, e aproximam-se dos símbolismo teriomórficos das

aves; e, respectivamente quanto mais se afasta da inconsciência original no negrume da lua

nova, na mesma proporção é importantíssimo o plenilúnio (lua cheia), como aquele estado de

completa oposição ao Sol, que transcende a afetividade e o aspecto instintivo do corpo (Lua).

No proximo capítulo, serão observadas as imagens alquímicas referentes à situação

psíquica daquele ego que não sucumbiu ao encontro com a sombra, mas alcançou uma Unio

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mentalis87. Mas neste estado ideal e abstrato não se vive, desta maneira, demostrar-se-á de que

modo a fase alquímica da albedo está relacionada com a produção da Quintessência de

Dorneus.

87 Sobre este aspecto, acrescenta Edinger: “...is the first stage of coniunctio, namely the unio mentalis. That would corresponds to a reductive analysis of the shadow (...)” [... é o primeiro estágio da coniunctio, a saber a unio mentalis. Isso corresponde a uma restrita análise da sombra] (EDINGER, 1985, p. 280).

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IV – A FASE ALQUÍMICA ALBEDO À LUZ DA PSICOLOGIA PROFUNDA DE

CARL GUSTAV JUNG

IV. 1 - A subida e a descida do volátil na fase alquímica Albedo

De modo geral, a afirmativa de que a Arte pode romper a coesão da matéria e isolar o

mercúrio do enxofre, corresponde à uma separação da alma das cadeias do corpo. O metal

dissolvido (Solutio), despedaçado (Separatio), e mortificado (Mortificatio) na fase da nigredo,

entregará um grão puro, ou seja, a alma que ele traz em si mesmo. Na linguagem dos

alquimistas, a matéria sofre até a nigredo desaparecer, e a aurora1, que luta para nascer na

alma liberta do fardo corporal, goza de um espírito tão fugidio, que, pela sua volatilidade,

esta libertação das cadeias da prima materia era anunciada na fase “branca”. Já nas visões

oníricas de Zózimo, encontram-se referências à albedo, como se pode observar no trecho a

seguir:

...Vi um homenzinho embranquecido pelos anos e me disse: “ O que é que estás a ver ?” Respondi que estava maravilhado com o ferver das águas, e com os homens que se queimavam mas continuavam vivos. Respondeu-me ele dizendo: “Este é o lugar do exercício denominado conservação (embalsamento), pois os homens que desejam alcançar a virtude vêm aqui e convertem-se em espíritos, voando do corpo.2

Para alguns alquimistas, a obtenção da parte volátil da matéria, era suficiente para uma

comemoração, sob certo ponto de vista, precipitada, da conquista do elixir. Diz-se

“precipitada”, pois na opinião dos alquimistas mais respeitados, tal procedimento alquímico

não se configurava como o requisito necessário para a obtenção da “chave da obra”.

Aprofundando-se no estudo dos tratados clássicos de alquimia, a concepção mais aceita era a

de que, a alma liberta do fardo corporal, pela sua volatilidade, gozava de um espírito tão

fugidio, que o adepto se via no trabalho de fixá-lo em um corpo apropriado. Alberto Magno,

O Grande, no primeiro capítulo de seu tratado Compositum de Compositi, o Composto dos

Compostos, citado anteriormente, sobre o “Arsênico”, considera que alguns, “ignorando a

composição do Magistério, trabalham só com Mercúrio, pretendendo que ele tenha um corpo,

1 Jung acrescenta: “O alvejamento (albedo s. dealbatio) é comparado ao “ortus solis” (nascer do sol). É a luz que surge após as trevas, a iluminação após o obscurescimento” (JUNG,1999[C], p138, § 484). 2 ZÓZIMO. In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo , Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 27.

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uma alma e um espírito”3. Também Bernardo Trevisano4, em trecho do Tratado da Natureza

do Ovo, assegura aos filósofos da arte que não se deve confiar no Mercúrio sublimado:

... não se deve confiar no Mercúrio sublimado, nem dissolvido (já que) o total é fugitivo (a não ser) no calcinado depois da dissolução, como disse o expositor em Luz de Luzes: Estando sublimado é fugitivo do fogo e branco pela sua natureza, mas depois do seu coagulante fica coagulado e calcinado, fixo e retido.5

Nota-se que já na escola alquímica de Alexandria, nos tratados da egípcia helenizada

Maria, a Profetisa, tal concepção já estava presente como se observa no trecho a seguir:

Conservai os vapores – ripostou Maria – e não deixeis que nada escape. Fazei o nosso fogo em proporção com o calor do sol no mês de Junho e Julho. Mantendo-vos junto do vosso vaso e vereis coisas que vos surpreenderão. Em menos de três horas a vossa matéria tornar-se-á negra, branca e alaranjada; os vapores penetrarão no corpo e o espírito ficará preso. A mistura tornar-se-á então como o leite penetrante e fundente. Este é o segredo escondido.6

Na citação de Maria, os vapores fazem alusão à alma liberta do fardo corporal, pela

sua volatilidade. Esta, deve retornar ao corpo, sendo por isso fixada em um corpo apropriado;

por isso a afirmação de que “os vapores penetrarão no corpo e o espírito ficará preso”.

A concepção da necessidade da fixação da alma em um corpo apropriado no

pensamento alquímico é bastante compreensível, pois o corpo sem a alma morrerá; segundo

Jung, como "é a alma que anima o corpo, e com isso representa o princípio de toda a

realização, então os filósofos não podiam deixar de observar que nesse caso o corpo e o

mundo dele estavam mortos” (JUNG, 1990, p.278, § 398). Neste sentido, antes da síntese

final do enxofre e do mercúrio, fazia-se necessário uma outra operação alquímica: a

purificação e regeneração da matéria. Para o alquimista, esta purificação e regeneração se

dava através de sucessivas destilações, onde o mercúrio, a "alma-espírito" é dissolvido

novamente na matéria e, se eleva novamente. Passando da alquimia greco-egípcia para a

alquimia árabe, observa-se que a obtenção da parte volátil da matéria pela nigredo e a

necessária fixação em um corpo apropriado na fase da albedo já se encontrava nos tratados de

3 MAGNO, Alberto (s.d.) Compositum de Compositis. http://pwp.netcabo.pt/r.petrinus/Alberto-p.htm. 4 Bernardo Trevisano, ao que parece, deve ter vivido na segunda metade do século XVI. Alquimista renomado, alquimistas como Basílio Valentim já fizeram suas homenagens à este alquimista. 5 TREVISANO, Bernardo. Tratado da Natureza do Ovo. In: TRISMEGISTO, Hermes et al. Alquimia e ocultismo , p. 75. Texto disponível também em: http://www.levity.com/alchemy/span01.html. 6 DIÁLOGOS de Maria e Aros sobre o Magistério de Hermes.In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo , Rio de Janeiro: Ed. Edições 70,1991, p. 38.

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Morienus, nos Diálogos entre o rei Khalid e o filósofo Morienus sobre o magistério de

Hermes:

MORIEN – Antes de ser feita, tem um odor forte e cheira mal mas, uma vez feita, cheira bem, isto fez exclamar o sábio: “Esta água deita o cheiro do corpo morto e já privado da sua alma.” O corpo neste estado cheira muito mal, com um odor de tumba. Por isso o sábio disse que aquele que tenha branqueado a alma, a tenha feito subir pela segunda vez e tenha conservado bem o corpo e rechaçado toda a obscuridade e mau cheiro, já poderá fazer entrar a alma no corpo, e quando estas partes se juntam acontecem coisas maravilhosas.7

O “branquear a alma” denota que a obtenção da parte volátil da matéria pela nigredo,

ou seja, a alma liberta do corpo que “cheira mal”, necessita da fixação em um corpo

apropriado. Sendo assim, Morien, sob a afirmação de que “aquele que tenha branqueado a

alma, a tenha feito subir pela segunda vez”, chama a atenção para a purificação e regeneração

da matéria através de sucessivas destilações. O termo “segunda vez” ou “levanta-se outra

vez” denota que está operação é repetida, como na “Ethelia de Arisleus” citado em capítulo

anterior, que é embebida com sua própria água, até que “gere a brancura, que é a segunda

cor”. Assim se faz o Mercúrio dos filósofos, afirma Morien, conservando bem o corpo, tendo

“rechaçado toda a obscuridade e mau cheiro, já poderá fazer entrar a alma no corpo”. Isto é o

que atesta os alquimistas também ao dizer que é preciso que o corpo seja liquefeito com o seu

dissolvente, a fim de alterar a sua natureza corporal, até que, o corpo se converta em espiritual

e volátil e, o volátil, se converta em corpóreo e fixo. Este processo foi antigamente

desenvolvido pelos filósofos da arte no enigma: torna o fixo volátil, e, de novo, torna o volátil

fixo. Esta operação é anunciada novamente por Morien neste trecho dos diálogos:

MORIEN – Toda a nossa operação consiste em nada mais do que tirar a água da terra e voltar a pô-la outra vez na terra até que esta apodreça. Pois esta terra apodrece com a água e limpa-se com ela; depois de se ter limpo, estará terminado o regime de todo o Magistério, com a ajuda de deus. Esta é a operação dos sábios; é a terceira parte de todo o Magistério. Ainda te advirto de que se não limpas bem o corpo impuro e não secas e pões branco nem o animas, fazendo-lhe entrar uma alma, se não o libertas de todo o seu mau odor de modo que, depois de se limpar, caia sobre ele a tintura e o penetre, não terás feito nada no magistério por não teres observado bem o seu regime.8

A umidade fria da água e a volatilidade do ar, estavam associadas à propriedade

mercurial-passiva de todos metais, ou seja, à propriedade dissolvente/volátil, como foi visto

7 DIÁLOGOS entre o rei Khalid e o filósofo Morienus sobre o Magistério de Hermes. In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo , Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 59. 8 Ibidem. p. 63-64.

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anteriormente. Por isso, “tirar a água da terra” faz alusão ao mercúrio sublimado e,

consequentemente, à alma liberta do corpo. Segundo Morien, esta “água” deve ser tirada da

terra e posta outra vez, até que a terra esteje “limpa”. A terra aqui designa o princípio da

fixidez da matéria, e por isso estava associada à propriedade sulfurosa- ativa, ou seja, à secura

ígnea do fogo e à coagulação da terra e, neste sentido, à propriedade secativa/coaguladora dos

metais. Esta “terra” é o “corpo impuro”, o qual deve ser limpo e seco, reanimado, na fase da

albedo, “fazendo- lhe entrar uma alma”, segundo Morien. Somente assim, o alquimista liberta

o corpo “de todo o seu mau odor”, como afirma o alquimista acima, porque o revive.

O tema da subida e da descida do volátil se encontravam principalmente nas sentenças

da “Tábua de Esmeralda de Hermes Trismegistus” que orientaram toda a alquimia medieval:

“...Ele sobe da terra ao céu e de novo baixará à terra, e recebe as forças das coisas superiores e

das coisas inferiores”9. Assim também, Fulcanelli, um dos últimos representantes da alquimia,

já no século XX, também assegura:

...A água viva "mais celeste do que terrestre", agindo sobre a matéria grave, rompe a sua coesão, amolece-a, solubiliza-a pouco a pouco, prende-se apenas às partes puras da massa desagregada, abandona as outras e sobe à superfície arrastando o que pode agarrar de conforme à sua natureza ardente e espiritual. (FULCANELLI, 1990, p. 204)

Por este processo acima descrito, separava-se da mistura a parte mais volátil por

evaporação, seguindo da condensação. Esse processo era repetido diversas vezes, onde a

essência extraída é levada ao estado máximo de pureza pelo movimento circular continuado.

Assim, através do famoso axioma alquímico, "solve et coagula" (dissolve e coagula), o adepto

tenta, através de todos os meios, dissolver o que foi agregado e reunir o que foi separado. Daí

o termo “arte espagírica”, ou seja, aquela que separa e que reúne. As repetidas extrações do

espírito mercurial, estão na imagem alquímica a seguir: o eterno processo de sublimação está

simbolizado pela pomba que voa para cima e para baixo. A conjunção e a separação estão

representadas pelas sublimações repetidas:

9 TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo , Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 23.

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As repetidas extrações do espírito mercurial (De Summa, século XVIII)10

O movimento circular continuado já é mencionado por Maria, a Profetiza, como se

observa no trecho a seguir:

...Tomai o corpo claro, colhido nas montanhas pequenas e que não se faz pela putrefacção, mas apenas pelo movimento. Moei esse corpo com a goma Elzaron e os dois vapores. A goma Elzaron é o corpo que agarra e prende o espírito, moei-o todo e aproximai-o do fogo, então fundir-se-á todo e se o projectardes sobre sua mulher a totalidade por-se-á como água que se destila e congelar-se-á ao ar, e só então será um corpo. ... Tereis de saber que os vapores de que acabo de falar são as raízes desta arte e são o Kibrick branco e a cal húmida, a que os filósofos deram toda espécie de nomes.11

10 Reproduzido em: ROLA, Stanislas Klossowiski de. Alquimia. Madrid: Ed. del Prado, 1996, p. 114 11 DIÁLOGOS de Maria e Aros sobre o Magistério de Hermes.In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo , Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 38-39.

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Na citação acima, a alusão à fase da albedo, já se faz notar pela qualificação “corpo

claro”, segundo o qual não se obtinha pela putrefação da matéria12. Se o procedimento

alquímico não se realizava mais pela putrefação da matéria, como afirma Maria, este deveria

ser realizado pelo movimento local, ou seja, pela sublimação filosófica, outro termo usado

pelos alquimistas para anunciar a fase “branca”, como se nota a seguir, na citação do pai da

alquimia árabe, Geber, em trecho do tratado A Suma Perfeição:

Digo que toda a Obra consiste em colher a Pedra – ou seja – a matéria da Pedra – que deve ser já suficientemente conhecida por tudo o que já dissemos,e dar-lhe o primeiro grau de sublimação com um trabalho assíduo, com o fim de tirar-lhe toda a impureza que a corrompe. A perfeição, que a sublimação dá a esta Pedra consiste em torná-la tão fluída que fique elevada à ultima pureza e fluidez, e se converta em algo volátil e espiritual. Ter-se-á, então, que fixá-la com os processos de fixação (...) a fim de que possa resistir ao fogo, por mais violento que seja e permanecer nele sem se evaporar. Este é o fim do segundo grau de preparação, que é preciso dar a esta matéria. Por meio do terceiro grau acaba-se de vez a preparação. Faz-se, sublimando esta Pedra (ou esta matéria) que por meio dessa passa de sólida que era, a volátil; logo de volátil a sólida e, estando dissolvida (após nova dissolução que precedeu uma fixação), faz-se outra vez volátil e volta-se a fixá-la, (…).13

Observa-se na citação que o “primeiro grau de sublimação” promove a obtenção da

parte volátil, isto é, segundo Geber, da parte espiritual da matéria. A necessidade da fixação

deste em um corpo apropriado se dá por meio do fim do segundo grau de preparação. No

terceiro grau, Geber deixa claro que a purificação e regeneração da matéria se dá através de

sucessivas destilações, ou seja, passando “de sólida que era, a volátil; logo de volátil a sólida”,

sucessivas vezes. A sublimação filosófica foi anunciada não somente pelos alquimistas árabes

posteriores como também, séculos mais tarde, também pelos alquimistas europeus. No século

XIII, Alberto Magno em já citado tratado O Composto dos Compostos, considera:

Esta sublimação constitui uma verdadeira separação dos elementos, segundo os filósofos: “O trabalho da nossa pedra não é mais que a separação e a conjugação dos elementos, porque, na nossa sublimação, o elemento aquoso, frio e húmido,converte-se em elemento quente (…) 14

Dissolvendo o que foi agregado e reunindo o que foi separado, o adepto tenta, através

de todos os meios, a “arte espagírica”, por isso na citação acima a afirmação de que “o

trabalho da nossa pedra não é mais que a separação e a conjugação”. No quinto capítulo,

12 Kibrick branco e a cal húmida também pela coloração fazem alusão à albedo. 13 GEBER. In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo , Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 50-51. 14 MAGNO, Alberto (s.d.) Compositum de Compositis. http://pwp.netcabo.pt/r.petrinus/Alberto-p.htm

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“sobre a multiplicação do Mercúrio Filósófico”, o tema da subida e da descida do volátil vêm

à tona quando Magno considera, que de fato, “quando a nossa pedra está em seu vaso e se

eleva, então há sublimação ou ascensão mas, quando em seguida, cai de novo no fundo, diz-se

que há destilação ou precipitação”15. Também no primeiro capítulo, sobre a “Formação dos

metais em geral pelo enxofre e o mercúrio”, fazendo alusão ao movimento circular

continuado da obra, Bacon considera que “a geração dos metais é circular, passando

facilmente, de um a outro, segundo um círculo”16.

Arnald de Villa Nova17 no mesmo sécúlo, em seu Tratado Sumário do Rosário de

Arnold de Villa Nova na parte “ Recapitulação do trabalho” afirma:

Sublime primeiramente a substância, e remova-a de toda corruptiva impureza; dissolva também, com isso, seu suplemento branco ou vermelho até que o todo seja tão sutil e temporário como pode possivelmente se tornar. Fixe-o então por todos os métodos até que seja capaz suportar o teste do fogo. Após isso, sublime a parte fixa da pedra junto com sua parte temporária; faça o fixo temporário, e temporário fixo, pela solução e pelo sublimação alternados; continue assim, e fixe então ambos juntos até que eles formem uma tintura líquida branca ou vermelha. Desta maneira você obtêm o arcanum que não tem preço que é sobretudo o tesouro do mundo.18

Sublimando e dissolvendo a primeira substância, Villa Nova remove a matéria “de

toda corruptiva impureza”. Nota-se que Villa Nova chama a atenção para o estado

momentâneo da parte volátil da matéria, através da afirmação “até que o todo seja tão sutil e

temporário como pode possivelmente se tornar”. A seguir, Villa Nova enaltece a fixação deste

em um corpo apropriado, por meio do aconselhamento “fixe-o então por todos os métodos até

que seja capaz suportar o teste do fogo”. Este operação alquímica é repetida então

sucessivamente, ou seja, fazendo “o fixo temporário, e temporário fixo, pela solução e pelo

sublimação alternados”, obtendo desta maneira o Arcanum.

Um século mais tarde, Nicolas Flame l, em seu tratado O livro das figuras

hieroglíficas, usa o termo “sobe e desce no vaso” na seguinte afirmação :

15 Loc.cit. 16 Loc.cit. 17 Grande sábio valenciano, Arnaldo de Villanueva ou Arnau de Vilanova, nasceu em 1245 e morreu em 1313. 18 “First sublime the substance, and purge it of all corrupting impurity; dissolve also, therewith, its white or red additament till the whole is as subtle and volatile as it can possibly become. Then fix it by all methods till it is able to stand the test of the fire. After that, sublime the fixed part of the Stone together with its volatile part; make the fixed volatile, and the volatile fixed, by alternate solution and sublimation; so continue, and then fix them both together till they form a white or red liquid Tincture. In this way you obtain the priceless arcanum which is above all the treasures of the world.” VILLA NOVA, Arnald de. (1546) Summary of the Rosary of Arnold de Villa Nova. Acesso em: http://www.levity.com/alchemy/arnoldus.html.

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...É que quando o calor do Sol age sobre elas, transforma-se primeiramente em pó ou graxa e viscosa, que, sentindo o calor, foge para o alto na cabeça do frango com a fumaça, isto é, com o vento e o ar; desce aí, esta água, lançada e infusa com as confecções, volta para baixo, e descendo reduz e resolve tanto quanto pode do resto das confecções aromáticas, fazendo sempre assim (...). Eis porque se chama a isso, sublimação, e volatilização, pois voa ao alto, e ascensão e descenso, porque sobe e desce no vaso (FLAMEL, 1973, p. 86).

A ave representa a volatilização e a sublimação que, juntamente com o vento, o ar e a

fumaça, indicam a extração do espírito mercurial da matéria, por isso a afirmação de Flamel

de que “foge para o alto na cabeça do frango com a fumaça, isto é, com o vento e o ar”.

Posteriormente a propriedade mercurial-passiva representada pela umidade fria da água,

“desce”, “volta para baixo”, segundo Flamel, prosseguindo “sempre assim”. Desta maneira,

esta operação alquímica é repetida então sucessivamente, ou seja, porque “sobe e desce no

vaso”, como bem assegura Flamel. No mesmo tratado, em outra citação, Flamel comenta uma

série de expressões alquímicas que fazem alusão à subida e à descida do volátil. Segundo

Flamel, os filósofos invejosos jamais falaram da multiplicação sem os termos comuns da arte:

“abre, fecha, liga, desliga. Chamaram abrir e desligar fazer o corpo (que é sempre duro e

fixo), mole e fluido, e líquido como água, e fechar ou ligar o coagulá-lo por e segundo

decocção mais forte, remetendo ainda uma vez à forma de corpo” (FLAMEL, 1973, p. 108).

Finalmente, no texto sobre a quarta figura mencionada em capítulo anterior, Flamel

comenta a figura que retrata um homem semelhante a São Paulo, vestido com uma roupa

branco-alaranjada, segurando uma espada, e tendo a seus pés um homem ajoelhado. Segundo

o autor, a imagem trata especialmente da “Albificação” e do “Embranquecimento”; Flamel

observa no tratado que a espada nua está enrodilhada por uma cinta negra, mas suas

extremidades não chegam a envolvê- la completamente. Segundo o alquimista, esta espada nua

resplandecente é a chamada “pedra branca, comumente descrita pelos filósofos sob esta

forma. Para então alcançar esta brancura coruscante, deves compreender o enrodilhamento

desta cinta negra, e o que ele ensina, que é a quantidade das embebições” (FLAMEL, 1973, p.

94).

Sendo assim, a alusão à fase da albedo faz-se notar na expressão “pedra branca” do

alquimista. Esta pedra branca somente é alcançada através de sucessivas “embebições”, isto é,

através da sublimação filosófica. Desta maneira então terás o ensino da obra toda, como

assegura o texto da setima figura do Tratado da Pedra Filosofal, de Abraham Lambsprinck.

Segundo o autor, “o mercúrio, sublimado muitas vezes, é fixado, por fim, de forma tal, que

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não assume mais a forma fluída, nem pela força do fogo se evapora. Na verdade, o que se faz

com este metal, é a destilação muitas vezes repetida. Até que ele seja, por fim, bem fixado”20.

Também na oitava figura do seu Tratado da pedra filosofal Lambsprinck oferece,

como ele próprio assegura, uma Receita para a Albificação no texto que segue o título

referido. Assim como Flamel, Lambsprinck indica a necessidade de repetidas “embebições”

para a obtenção do Corpo Branco. Este deve ser colocado repetidamente em esterco de

cavalo, ou em banho-maria, até ser digerido por seu ar próprio, ou, segundo o alquimista, pelo

“espírito separado anteriormente do corpo. O corpo se torna Branco através da Arte e,

igualmente, o espírito se torna Vermelho através dela. A obra tende à perfeição da sua

natureza, e é assim que se prepara a Pedra Filosofal”21.

Um século mais tarde, Basílio Valentim, em As doze chaves da filosofia também

oferece uma espécie de receita para a fixação em um corpo apropriado, na segunda chave da

filosofia. Segundo Valentim, do mesmo modo quando se casa o nosso esposo Apolo com a

sua Diana, “deve-se fazer- lhes diversas espécies de vestidos, lavar- lhes diligentemente a

cabeça e inclusive o corpo todo, com a água, que será preciso preparar com muitas

destilações, pois há muitas espécies de águas e umas são melhores do que outras”22. Nota-se

nesta citação, que a preparação do corpo se faz através de uma lavagem, isto é, de uma

purificação, segundo a qual se promove atraves de sucessivas destilações23. Mais à frente

Valentim assegura na quinta chave da filosofia:

... Ao olhar para um espelho, vê-se a reflexão das espécies, a própria imagem de quem olha, e se alguém quiser tocar com a mão na sua imagem só tocará no espelho para que olhou. Do mesmo modo deve tirar-se desta matéria um espírito visível que contudo seja inatingível. Este espírito é a raiz da vida do nosso corpo, e o Mercúrio dos filósofos, do qual se prepara industriosamente o licor da nossa arte, que tu tornarás material uma vez mais; (...). O nosso começo é um corpo bem ligado e sólido, o meio é um fugaz espírito e uma água de ouro sem corrosão, por meio do qual os sábios gozam os seus desejos nesta vida. O fim é uma medicina fixa, tanto para o corpo humano com para os corpos metálicos (...)24

Como se observa na citação acima, a obtenção da parte volátil da matéria é ressaltada

na frase “deve tirar-se desta matéria um espírito visível que contudo seja inatingível.” Este 20 TRATADO da Pedra Filosofal de Lambsprinck: o significado do simbolismo da alquimia. Tradução e comentarios explicativos do Prof. Anysio N. Dos Santos. São Paulo: Ed. Ibrasa, 1996, p. 183. 21 Ibidem, p. 187. 22 VALENTIM, Basílio. As doze chaves da filosofia. In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo . Trad. de Maria Teresa Carrilho. Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 126. 23 Nesta citação, Valentim faz menção ao casamento de Apolo e Diana, tema este segundo o qual será abordado no decorrer do capítulo. 24 VALENTIM, Basílio. As doze chaves da filosofia. In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo . Trad. de Maria Teresa Carrilho. Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 132.

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espírito é a raiz da vida do nosso corpo, e o Mercúrio dos filósofos, como assegura Valentim,

segundo o qual deverá ser fixado em um corpo apropriado, por isso, a afirmação a seguir de

que “tu tornarás material uma vez mais”. Finalmente na terceira chave da filosofia, Valentim

assegura:

... O que não se pode fazer antes que o mar salgado tenha tragado um corpo e arremessado este, sendo sublimado a um ponto que ultrapasse em muito o esplendor dos outros astros e o seu sangue tão aumentado e aperfeiçoado, que possa como o pelicano que criva o seu peito sem molestar a sua saúde e sem nenhum incômodo para as outras partes do seu corpo, alimentar com o seu próprio sangue todos os seus filhos. É esta a tintura dos filósofos de cor purpurina e o sangue vermelho do Dragão.25

Nota-se na citação acima, que o “tragar e o arremessar” do corpo pelo mar salgado é

mais uma expressão entre outras, como o “abre e fecha” e o “sobe e desce no vaso”, ou seja,

faz referência à subida e à descida do volátil no Opus Alchymicum. Esta operação é repetida

até que o corpo seja “sublimado a um ponto que ultrapasse em muito o esplendor dos outros

astros”, como assegura a recomendação de Valentim. Além disso, a citação de Valentim faz

menção à um importante símbolo alquímico, o Pelicano:

Representação do pelicano (Rhenanus, Solis e puteo emergentis sive dissertationis chymotechnicae libri tres, 1613)26

O Pelicano é um importante símbolo alquímico usado para indicar a sublimação

filosófica na fase da albedo. O Pelicano se chama a retorta em que o tubo de saída torna a

entrar no bojo do vaso. Devido à sua destilação circulatória, o Pelicano era usado na alquimia

pra indicar o movimento circular continuado da albedo. Sobre este aspecto assegura Jung:

25 Ibidem, p. 128. 26 Reproduzido em: JUNG, C. G. Estudos Alquímicos. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 2003, p. 160.

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... Para os alquimistas, a destilação sempre significava um refinamento e espiritualização através da extração da substância volátil, isto é, do espírito, a partir do corpo incompleto ou impuro. Este processo era simultaneamente uma vivência física e psíquica. A retorta destillatio representaria uma destilação em sentido contrário. (...) Poder-se-ia tratar da destilação no chamado pelicanus, em que o escoamento da retorta desemboca novamente no bojo da mesma, e através da qual é realizada uma destillatio circulatoria, tão usada pelos alquimistas. Pela destilação “mil vezes” repetida esperava-se um resultado final particularmente “refinado” (JUNG, 2003, p. 150-151, § 185).

Finalizando estas citações que poderiam preencher grossos volumes, Eirenaeus

Philalethe, em A entrada aberta do palácio fechado do rei, afirma: “Também o fixo se faz

volátil por um tempo, a fim de possuir em seqüência, um estado mais nobre por sua herança,

graças ao que obterás poderosíssima fixidez”27.Nota-se que Philalethe chama a atenção para o

estado momentâneo da parte volátil da matéria, para a seguir enaltecer um “estado mais

nobre”, isto é, de “poderosísima fixidez”.

Sendo assim, pelo enigma: torna o fixo volátil, e, de novo, torna o volátil fixo, segundo

um círculo, diz respeito as sucessivas extrações do espírito mercurial. Pela arte circular o

alquimista buscava produzir a pedra.

IV. 2 – A subida e da descida do volátil do ponto de vista psicológico do Opus

Alchymicum

Mantendo-se em um campo factível, que é o da investigação simbólica destes

processos alquímicos na compreensão do mundo natural, a questão gira em torno de

demonstrar o que o procedimento alquímico da albedo tem à dizer, em seus aspectos

psíquicos. Que o encontro com o caos da prima materia, na fase da nigredo, trata-se, em uma

análise junguiana, do tema do encontro com a sombra, transformou-se quase em senso comum

no meio acadêmico. Entretanto, na óptica junguiana, qual o sentido da concepção de que, a

alma liberta do fardo corporal, pela sua volatilidade, gozava de um espírito tão fugidio, que o

adepto se via no trabalho de fixá-lo em um corpo apropriado? Melhor, qual o sentido do

processo alquímico torna o fixo volátil, e, de novo, torna o volátil fixo para a Psicologia

Analítica?

Na concepção junguiana o aspecto psicológico da albedo, engloba nada mais, nada

menos, que a temática axial da teoria: a “passagem para o centro” ou, a “união dos opostos”.

27 PHILALETHA, Eirenaerus (1645). A entrada aberta ao palácio fechado do rei. Acesso em: http://www.templodetoth.hpg.ig.com.br/alquimia.htm

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Conforme o axioma central da alquimia: “Non fieri transitum nisi per medium” (Não ocorre a

passagem a não ser por um meio), a coniunctio nem sempre representa uma união imediata e

direta, porque necessita de um certo meio. Tal procedimento é descrito pela alquimia, na

passagem do branco para o vermelho, respectivamente da albedo para a rubedo alquímica.

Psicologicamente, trata-se mais precisamente, da necessidade de protegermos o eu contra o

inconsciente e de integrarmos o segundo no primeiro. Etienne Perrot, autor do livro O

caminho da transformação, segundo C. G. Jung e a alquimia, acrescenta:

A obra é feita de vaivém, de subidas e descidas (...).Uma das grandes divisas da obra é: Coagula, solve, “coagula, dissolve”. Coagula: fixa a tua atenção no fim desejado, reforça a tua atitude consciente, firma-te, limita o círculo de teus interesses, evitando distrações e, dentro de tua transformação, recua em relação às produções inconscientes; enfim, de modo mais vasto, expõe-te aos raios de sol, ao calor e à luz do amor que rege o universo, a fim de fazeres secar essa Pedra, que se aglomera em teu vaso. Por outro lado, quando as circunstâncias internas e externas o exigirem, solve, “dissolve”: abandona-te, abre-te ao mar do inconsciente, deixa subir em ti o lodo viscoso, que é a matéria -prima da pedra, ou, em sentido mais restrito, usa mais a liberdade, relaxa e distrai-te, como as crianças entre duas aulas difíceis (PERROT, 1998, p. 225).

As citações até aqui então apresentadas indicam as repetidas extrações do espírito

mercurial da matéria. Como foi visto anteriormente, na alquimia, os seres alados, representam

a sublimação ou volatilização, isto é, a a substância de transformação que é extraída. Na

décima primeira imagem alquímica do Splendor Solis, Saturno é cozido no banho até que seu

espírito, a pomba branca, dele se eleve:

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Mercúrio é cozido no banho até que seu espírito, a pomba branca, dele se eleve.

(Salomon Trismosin, Splendor Solis, século XVI)28

28 As pranchas do Splendor Solis estão reproduzídas em vários sites na internet. Esta, em específico, está disponível em: http://my.opera.com/Filectio/albums/showpic.dml?album=1555&picture=11153.

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O etíope, o “negro”, era associado ao chumbo, a Saturno, símbolo do inconsciente em

seu aspecto negativo, devorador e hostil. Na imagem alquímica, Saturno é cozido no banho

até que seu espírito, a pomba branca, dele se eleve. Do ponto de vista alquímico é uma

imagem que se refere à operação da Sublimatio, segundo a qual transforma a matéria em ar

por meio da elevação e volatilização. Especialmente Edinger analisa em seus aspectos

psíquicos a operação alquímica da Sublimatio, e considera:

... Em termos psicológicos, isso corresponde a uma forma de lidar com um problema concreto. Ficamos “acima” dele quando o vemos objetivamente. Abstraímos um sentido geral dele e o vemos como um exemplo particular de uma questão mais ampla. O simples fato de encontrar palavras ou conceitos adequados para um estado psíquico pode ser suficiente para que a pessoa se afaste dele o bastante para olhá-lo de cima (EDINGER, 1999, p. 135).

No capítulo anterior foram analisadas as imagens alquímicas referentes à situação

psíquica daquele ego que foi ao encontro do inconciente, mas não sucumbiu ao encontro com

a sombra, isto é, alcançou o Primeiro Grau da Coniunctio de Dorneus. Entretanto, se no início

do Opus Alchymicum, a psicologia se vê obrigada a ressaltar a importância do inconsciente,

ela demonstra também que aquele que alcançou uma unio mentalis, apresenta ao mesmo

tempo o risco de que uma redução à consciência separare-o da experiência imediata com a

base inconsciente. Sobre este aspecto psicológico do Opus, Jung adverte:

... O desvanecer da sensação de dependência e o fortalecimento simultâneo da crítica é percebido como progresso, esclarecimento, libertação, e mesmo como salvação, ainda que um ser unilateral e limitado tenha tomado o trono de um rei. Um eu pessoal arrebata as rédeas do poder para sua própria ruína, pois a simples natureza do eu, não obstante a posse de uma anima rationalis (alma racional) não basta para dirigir sua própria vida pessoal (...) (JUNG, 1990, p. 122, §185).

Isso de hipótese alguma significa que a importância do consciente tenha que ser

diminuída, “significa apenas que se deve de certa forma ‘relativizar’ o consciente no caso de

uma valorização excessiva e unilateral do mesmo” (JUNG, 1999[C], p.156,§ 502). Enquanto a

consciência procura o sentido unívoco e as decisões claras, deve ela constantemente libertar-

se de argumentos e de tendências opostos; nessa tarefa especialmente os conteúdos

incompatíveis permanecem inconscientes. Quanto mais isso acontece, tanto mais inconsciente

permanece a posição oposta:

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Quanto mais poderosa e independente se torna a consciência e, com ela, a vontade consciente, tanto mais o inconsciente é empurrado para o fundo, surgindo facilmente a possibilidade de a consciência em formação emancipar-se da imagem primordial inconsciente. Alcançando então a liberdade, poderá romper as cadeias da pura instintividade e chegar a uma situação de atrofia do instinto, ou mesmo de oposição e ele. Esta consciência desenraizada, que não pode mais apelar para a autoridade das imagens primordiais, acede às vezes a uma liberdade prometéica, a uma hybris sem deus (JUNG, 2003, p. 22, §13).

Na concepção junguiana, a existência humana abrange duas vertentes: o movimento

em direção à adaptação ativa e consciente ao ambiente e, o movimento em direção às

necessidades inconscientes; o que, obviamente, não quer dizer que um seja positivo e o outro

negativo. Por isso, Jung propôs que “o conceito de psíquico só fosse aplicado àquela esfera

em que exista uma vontade comprovadamente capaz de alterar o processo reflexivo ou

instintivo” (JUNG, 1988, p. 2, § 3). Trata-se do sistema de auto-regulação da psique humana.

A primeira é ascendente: a pessoa se separa do fascínio da figura dos pais, deixa a infânc ia e

enfrenta o mundo. Nesse período, a tarefa do psicólogo consiste, em favorecer o vôo e em

ajudar a se desatarem os laços que mantinham cativo o jovem29. Há uma ambição louvável,

um desejo nobre de sair da escuridão interior e exterior, reproduzida na simbólica alquímica

da fase negra, porque essa escuridão, sob certos aspectos, é uma forma de inconsciência, da

qual é necessário libertar-se. Mas quando, toda a energia se concentra num dos pólos da

realidade, com prejuízo do outro, no alto, perdendo de vista o baixo, a vida profunda

restabelece imediatamente o equilíbrio. Aquele que acumula avidamente no plano consciente,

dissipa e corrompe no nível inconsciente. De tanto se acentuar a predominância do espírito e a

mortificação dos sentidos, os alquimistas notaram que tinha-se extenuado o corpo e feito

cessar a comunicação harmoniosa entre os diferentes níveis do ser. O intelecto, ceifado de

suas raízes, deve abdicar de sua autonomia e, para escapar à esterilidade, abaixar-se para o

mundo do instinto. A alquimia reproduz este processo psíquico na temática da subida e da

descida do volatil, ou seja, na problemática da união simbólica do elemento animal com as

mais elevadas conquistas morais e intelectuais do espírito humano:

... Na realidade, o intelecto apenas prejudica a alma quando pretende usurpar a herança do espírito, para o que não está capacitado de forma alguma.O espírito representa algo de mais elevado do que o intelecto, abarcando não só este último, mas também os estados afetivos. Ele é uma direção e um princípio de vida que aspira às

29 Segundo Jung, uma atenção muito exclusiva aos processos interiores pode ser prematura e constituir meio de furtar-se às tarefas imediatas, o qual tem como símbolo o puer aeternus, o “menino eterno”. Há casos em que o sonho manda retificar uma atitude que dá muita importância ao inconsciente. Uma atração pelo domínio espiritual e oculto, por exemplo, pode ser acompanhada de uma fuga diante dos problemas concretos, pessoais.

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alturas e sobre-humanas. A ele se opõe o feminino, obscuro, telúrico (yin), com sua emocionalidade e instintividade que mergulha nas profundezas do tempo e nas raízes do continuum corporal (JUNG, 2003, p. 19- 20, § 7).

Uma das dificuldades da obra é a de manter a medida entre a energia inconsciente, que

irrompe, e a capacidade de integração da pessoa no nível consciente. Ademais, Perrot conclui,

“o que o homem exige não é sublimação, mas integração, porque o fim não está nem em

cima, nem embaixo, mas no centro, num centro situado mais profundamente que o ego”

(PERROT, 1998, p. 128). Também sobre este aspecto, Jung afirma que “a confrontação da

consciência com o inconsciente significa de uma parte a dissolução da personalidade, e de

outra parte simultaneamente uma recomposição da totalidade” (JUNG, 1997, p. 214, §288).

Em outras palavras, necessita-se voltar a atenção para a psique arquetípica e estabelecer

contato significativo e real com ela, o que significa que deve-se fazê- lo de modo consciente,

pois assim é possível entender o processo simbólico subjacente a ela. Em uma discussão

psicológica deste processo, o indivíduo deve examinar novamente suas atitudes e falhas,

porque apenas de certo modo, os motivos inconscientes são reprimidos. Na realidade, a

pessoa é sempre de novo advertida por um ressentimento incômodo quanto à existência do

que foi recalcado:

... Quem quer que seja que no tempo hodierno quizer tentar no caminho análogo, a verificação de sua segurança no confronto com a realidade, fará experiencias semelhantes. Mais uma vez aquilo que criou para si despedar-se-á na colisão com o mundo, e ele não deverá desanimar por ter de examinar sempre de novo onde sua atitude ainda tem falhas e quais são os pontos cegos no seu campo visual (JUNG, 1990, p. 291, § 413).

Na fase da albedo, a subida e a descida do volátil desenvolve o processo alquímico da

Circulatio, o qual, do ponto de vista psicológico, será analisado mais de perto a seguir.

IV. 3 – O processo alquímico da Circulatio do ponto de vista psicológico do Opus

Alchymicum

Sabe-se que a geração dos metais circular no processo alquímico da albedo, pelo

enigma: torna o fixo volátil, e, de novo, torna o volátil fixo; segundo um círculo, diz respeito

as sucessivas extrações do espírito mercurial. Pela arte circular o alquimista buscava produzir

a pedra. A idéia clássica da circulatio, do movimento através dos quatro elementos, da

repetição do processo ainda e sempre num outro nível, é a idéia clássica de circum-ambulação

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do Si-mesmo ou seja, entre outras coisas, do processo de individuação através das diferentes

fases da vida. Von Franz analisa o processo alquímico da Circulatio, e considera:

Psicologicamente, isso significa que o Si-mesmo começa a se manifestar no espaço e no tempo, que não se converte em algo num certo momento como um retorno subsequente ao modo de vida anterior do indivíduo, mas, ao contrário, tem efeito imediato sobre a vida toda (VON FRANZ, 1980, p. 144).

Como foi observado anteriormente, devido à sua destilação circulatória, o Pelicano

era usado na alquimia pra indicar o movimento circular continuado da albedo. Von-Franz

analisa o símbolo alquímico do Pelicano e considera este, o recipiente alquímico no qual

ocorre a circulatio (destilação circular), “comparável à circum-ambulação de um problema de

pontos de vistas diferentes e em diferentes fases da vida – a essência do processo de

individuação” (VON-FRANZ, 1980, p. 227). Especialmente Dorneus chama o vaso de “‘vas

pellicanicum’, através do qual é extraída a essentia quinta da prima materia”30. Segundo Jung,

nos escólios do Tractatus Aureus Hermetis31 se acha um quatérnio de superior – inferior,

exterior—interior, segundo os quais são reunidos em uma unidade por uma manobra circular,

chamada “Pelecanus”. O autor anônimo afirma: “Este vaso é o verdadeiro pelicano filosófico,

e não se deve procurar outro no mundo inteiro”32. Em uma análise psicológica tanto do

simbolo alquímico do Pelicano, como consequentemente da sublimação filosófica, Jung

assegura: “A síntese se faz pelo movimento circular (circulatio, rota) no decurso do tempo”

(JUNG, 1997, p. 4-5, §5).

A sexta figura do Tratado da Pedra Filosofal de Lambsprinck, sob o títúlo “Este é

certamente um milagre grande e sem nenhuma decepção – Em um dragão venenoso deve

haver a Grande Medicina”, é retratada da seguinte maneira:

30 DORNEUS, Gerardus. In: Theatrum Chemicum I (1602), p. 500. Apud: JUNG, C. G. Estudos Alquímicos. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 2003, p. 88, § 115. nota 143. 31 Segundo Jung, “este tratado é de origem árabe, e foi impresso em Manget: Biblioteca Chemica, 1702, I, 409s” (JUNG, 1997, p. 9, § 8, nota 39). 32 Theatrum Chemicum (1613) IV, p. 789. Apud: JUNG, C. G. Estudos Alquímicos. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 2003, p. 89, § 115, nota 144.

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Símbolo da Ouroboros (Lambsprinck, O Tratado da Pedra Filosofal, 1599)33

O texto que segue a figura assegura que o “mercúrio convenientemente preparado,

alquimicamente precipitado e sublimado, se dissolve em sua água e coagula.”34 Nota-se no

texto e na figura de Lambsprinck que a sublimação filosófica aparece retratada como um

dragão em forma de círculo, mordendo sua própria cauda, ou seja, pela símbolo da

Ouroboros, sendo este, portanto, um símbolo alquímico para o movimento circular

continuado da opus. Psicologicamente, a finalidade da circulatio, segundo Jung, “ é a

produção (respectivamente, reprodução) do homem primitivo redondo” (JUNG, 1997, p. 5,

§5). Um século mais tarde, Bernardo Trevisano, aconselha que para a matéria possa ser

transformada em elixir completo, deve ser totalmente levada à espírito redondo, feito pela

devida circulação para que assim possa ser chamada de Ovo Filosófico:

...Mas a vossa matéria ainda não chegou à sua propriedade, pela qual possa ser chamada Ovo Filosófico, e por cuja a disposição possa, em última instância, ser transformada em elixir completo, como o ovo em pinto, já que toda a nossa matéria não foi totalmente levada a espírito redondo, feito pela devida circulação, mas é antes um corpo por si fixo, que não foge, um espírito fugitivo somente por si, sem o fixo, o que faz com que isto não pareça ser um ovo, porque o uno repete o resto. (...) Pois nem o corpo permite que se separe sem a sua natureza, nem o espírito quando sobe sem a sua secura, se pode converter em elixires, porque por meio do vapor não podem misturar-se uns com os outros, e esta é a razão porque os filósofos chamaram Ovo ao seu Mercúrio, e isto é assim porque como o ovo é uma coisa circular, redonda, que contém em si duas naturezas e uma substância, o branco e o amarelo, tira de si mesmo outra coisa que tem alma, vida e geração, ou seja, a saber, sai um

33 Figura disponível em: http://www.alchemywebsite.com/lambtext.html. 34 TRATADO da Pedra Filosofal de Lambsprinck: o significado do simbolismo da alquimia. Tradução e comentarios explicativos do Prof. Anysio N. Dos Santos. São Paulo: Ed. Ibrasa, 1996, p. 158.

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pinto. Assim também aqui o Mercúrio contém em si duas coisas de uma natureza, corpo e espírito, e tira de si a alma e a vida (...)35

Na citação acima, Bernardo Trevisano aconselha que, para a matéria se transforme em

elixir completo, esta deve ser totalmente levada à espírito redondo, ou seja, feita pela devida

circulação, a fim de que assim possa ser chamada de Ovo Filosófico. O ovo é o vaso

alquímico, uma espécie de útero e matrix, do qual deve nascer a Pedra filosofal. A Pedra

filosofal possui uma dupla natureza, pois nasce da união do volátil com o fixo, do úmido com

o seco, o que indica o binário corpóreo-espiritual, por isso a afirmação de que “o ovo é uma

coisa circular, redonda, que contém em si duas naturezas e uma substância”. Em uma análise

psicológica da obra alquímica, Jung considera que o Ovo filosófico, ou seja, o verdadeiro

pelicano filosófico, “é a própria lapis e a contém ao mesmo tempo, isto é, o si-mesmo que se

contém. Esta formulação corresponde à frequente comparação da pedra com o ovo ou com o

dragão que se devora e dá nascimento a si mesmo” (JUNG, 2003, p. 89,§115).

A sublimação filosófica aparece no símbolo circular da serpente, em uma citação de

Geber no texto da segunda figura no Rosarium Philosophorum pertencente ao século XVI,

segundo o qual afirma “que aquela água deve ser pura e limpa, e portanto deve não ser feita

mas de um dragão removida. E deixe que o dragão seja removido elevando-o três vezes e

então revivendo”36. Sendo assim, pelo movimento circular continuado do dragão produz-se

aquela água pura e limpa; aquela a qual, Morien no início do capítulo “tirou da terra” e voltou

a “pô-la outra vez”. Ainda no mesmo século do Rosário dos Filósofos, a água aparece na

sublimação filosófica representada pelo “trabalho das mulheres”, que é ensinado pela

Natureza, como se observa na imagem alquímica do Splendor Solis, a seguir:

35 TREVISANO, Bernardo. Tratado da Natureza do Ovo. In: TRISMEGISTO, Hermes et al. Alquimia e ocultismo . Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 76. Texto disponível também em: http://www.levity.com/alchemy/span01.html. 36 “Fifthly, that that water ought to be pure and clean, and should not be made but of a purged Dragon. And let the Dragon be purged by elevating it three times and then by reviving it.” THE ROSARY of the Philosophers. (1550) Acesso em: http://www.alchemywebsite.com/rosary1.html.

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O trabalho das mulheres (Salomon Trismosin, Splendor Solis, século XVI)37

A sublimação filosófica pelo “trabalho das mulheres” também aparece um século mais

tarde, no terceiro emblema do Atalanta Fugiens de Michael Maier: 37 As pranchas do Splendor Solis estão reproduzídas em vários sites na internet. Esta, em específico, está disponível em: http://my.opera.com/Filectio/albums/showpic.dml?album=1555&picture=11166.

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A sublimação filosófica no trabalho das mulheres que é ensinado pela natureza (Michael

Maier, Atalanta fugiens, 1617)38

O texto que segue a figura afirma:

Quando as roupas de linho são poluidas e sujas pelo imundície terrestre (física), estas são limpas pelo elemento seguinte a ele: a saber a Água; e então extraídas pelo calor do sol como pelo fogo, que é o quarto elemento, e se isto for repetido frequentemente, se torna limpa & livre das manchas. Este é o trabalho das mulheres que é ensinado pela Natureza. Para nós vermos (...) se estiverem frequentemente molhada com chuva assim como secas frequentemente pelo calor do sol será reduzido a uma brancura perfeita.39

Nota-se no texto de Maier que, através do trabalho das mulheres, a roupa

repetidamente molhada e seca, referem-se ao corpo liquefeito com o seu dissolvente, a fim de

alterar a sua natureza corporal, até que, o corpo se converta em espiritual e volátil e, o volátil,

se converta em corpóreo e fixo; desta maneira, fazendo alusão à fase da albedo, afirma Maier,

“será reduzido a uma brancura perfeita”. Sobre este símbolismo alquímico, Von-Franz em

Alquimia, obra já citada, considera a nigredo, ou seja, a negrura, a terrível depressão e estado

de dissolução. Este estado psicológico, segundo a autora, tem que ser compensado pelo

trabalho árduo do alquimista:

38 Figura disponível em: http://www.alchemywebsite.com/atl1-5.html. 39 “When Linen Clothes are soiled & made dirty by earthy Filth, they are cleaned by the next Element to it: Namely Water; & then clothes being exposed to the Air, the moisture together with the Faeces is drawn out by the heat of the Sun as by fire, which is the fourth Element, & if this be often repeated, they become clean & free from stains. This is the work of women which is taught them by Nature. For we see (…) if they are often wet with Rain & as often dried by the heat of the Sun will be reduced to a perfect whiteness” MAIER, Michael (1617). Atalanta fugiens. Acesso em: http://www.alchemywebsite.com/atl1-5.html.

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... esse trabalho consiste, entre outras coisas, na lavagem constante; por conseguinte, até o trabalho da lavadeira é frequentemente mencionado no livro, ou a constante destilação, o que também é feito com o propósito de purificação, pois o metal se evapora e depois é precipitado num outro recipiente, removendo assim as substâncias mais pesadas (VON-FRANZ, 1980, p. 194).

Deste fato também se conclui que a água referente à esta fase não está mais associada

à preparação para as umidades destruidoras descritas na fase “negra”, através do tema do

afogamento e da dissolução, no qual o rei se banha, mergulha ou se afoga; de modo geral, a

água que anuncia a fase da albedo é purificadora, isto é, é o orvalho, a água celeste, pois é “a

alma que desce do céu é idêntica ao orvalho, à “aqua divina” que significa o “rex de coelo

descendens” ( o rei que desce do céu)” (JUNG, 1999[C], p. 150, § 497). Basílio Valentim na

terceira chave da filosofia considera:

E tens que saber que se alguns vapores e nuvens se elevam da terra e se amassam no ar, voltam a cair por causa do peso natural da água e a terra recebe mais uma vez a sua humidade perdida com a qual se deleita e alimenta e pela qual se acha mais própria pra produzir o seu fruto. É por isso que é preciso reiterar as preparações das águas com muitas destilações, de maneira que a terra se empape com frequencia na sua humidade. E tal humor tantas vezes obtido (seco), tal como o Euripo, deixa frequentemente a terra em seco, depois volta sempre, até construir o palacio real, com esforço, enfeitado, com grande cuidado e que o mar de vidro o tenha enriquecido, com o fluxo e o refluxo, com muitas riquezas, o rei já poderá entrar e habitá-lo.40

Primeiramente os vapores e nuvens se elevam da terra, denotando uma extração do

espírito mercurial da matéria. Posteriomente, a propriedade mercurial-passiva representada

pela umidade fria do orvalho, volta para a terra. Observa-se também na citação de Valentim

que o “fluxo e refluxo” quer significar a mesma operação alquímica que o “sobe e desce no

vaso”, o “abre e fecha” e o “tragar e o arremessar”, ou seja, as sucessivas destilações, onde o

mercúrio, ou seja, "alma-espírito" é dissolvido novamente na matéria, e se eleva novamente,

procedendo assim, até construir o palácio real, isto é, até que o corpo esteja preparado. Dessa

maneira ,a alma idêntica ao orvalho, desce do céu e, assim, “o rei já poderá entrar e habitá-

lo”, como chama a atenção Valentim.

O enaltecimento do orvalho já esta presente na quarta prancha do Mutus Liber, o Livro

Mudo da Alquimia, como podemos ver na imagem a seguir41:

40 VALENTIM, Basílio. As doze chaves da filosofia. In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo . Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p.126. 41 O Mutus Liber é reconhecidamente uma das mais importantes obras da tradição alquímica. Composto de 15 pranchas, gravadas por Altus (La Rochelle, 1677), descreve os passos para a realização da Grande Obra apenas por imagens.

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Recolhimento do Orvalho (Mutus Liber, 1677)42

Em especial nesta prancha, o alquimista e sua soror mystica recolhem aqui o orvalho

celeste. O casal colocou lençóis pregados em cima de quatro piquetes e deixou-os toda a noite

para que se impregnassem desse elemento sutil. José Jorge de Carvalho, doutor em

Antropologia, especialista em religiões comparadas, mitologia e arte, responsável pela

pesquisa e recompilação que culminou no mais completo estudo iconográfico e simbólico do

Mutus Liber, com relação à “flor do céu” nesta prancha, isto é, ao “orvalho celeste” assegura

que “a flor celeste representa a um só tempo o espírito (o que está em cima) que se tornou

42 Figura disponível em: http://perso.orange.fr/pensee.sauvage/L2/alchimie/mutus.htm

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denso e a matéria (o que está em baixo) que se tornou sutil” (CARVALHO, 1995, p.92).

Ainda sobre o orvalho celeste, Basílio Valentim na quinta chave da filosofia chama a atenção

para o aspecto revificador deste:

Por isto conhecerás que a vida é um puro espírito, é a razão por que tudo aquilo que o ignorante crê morto deve viver com uma vida inatingível, mas visível, espiritual e ser conservado nela. Se queres que a vida coopere com a vida, devem alimentar-se estes espíritos com o orvalho do céu,e tomarão a sua extracção de um ser celeste elementar e terrestre que se chama materia sem forma.43

Deste fato se conclui que a a água na alquimia é aquela que mata e, também, revive a

matéria; neste sentido, tem ela, pois, segundo Jung, um “efeito duplo e oposto entre si”

(JUNG, 1990, p. 19, § 12). No texto que acompanha a segunda imagem alquímica, o

Rosarium Philosophorum ainda afirma que esta água “chamaram-na água da purificação ou

putrefação, e falaram a verdade, porque é purificado por sua água ou purificado de sua

obscuridade. É lavado e feito isso branco e mais tarde vermelho”44. Ainda no texto que

acompanha a primeira figura, referindo-se ao Espelho da alquimia de Roger Bacon, na

seguinte citação sob o título “The mirror” afirma-se :

…até que o espírito e o corpo forem feitos todos um, de modo que os corpos corpóreos sejam feitos incorpóreos, e incorpóreos sejam corporificados Conseqüentemente, a água é a coisa que faz o branco e o vermelho É a água que mata e revive. É a água que queima e faz quente. É a água que dissolve e coagula.45

Assim como a água que mata e revive, o simbolismo alquímico do Pelicano, traz

conotação correspondente; isto é, anteriormente foi observado a sublimação filosófica no

simbolismo alquímico do pelicano; entretanto, não foram esgotados os significados profundos

desta alegoria alquímica46. Em outra parte da Citação do Tractatus Aureus Hermetis,

encontra-se a seguinte afirmação: “Ao aplicar o bico ao peito, curva ele todo o pescoço

juntamemte com o bico formando um círculo ... o sangue que escorre do peito devolve a vida

43 VALENTIM, Basílio. As doze chaves da filosofia. In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo . Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p.132. 44 “… they have called it water of their purification or putrefaction, and they spoke the truth, because it is purified by their water or purified from its blackness. It is washed and it maketh it white and afterwards red” THE ROSARY of the Philosophers. (1550). Acesso em: http://www.alchemywebsite.com/rosary1.html. 45 “…till the spirit and body be made all one, so that the corporate bodies be made incorporate, and the incorporate be made corporate Therefore, water is the thing which maketh white and red. It is the water which killeth and reviveth. It is the water which burneth and maketh hot. It is the water which dissolveth and congealeth.” THE ROSARY of the Philosophers (1550). Acesso em: http://www.alchemywebsite.com/rosary1.html. 46 Jung acrescenta: “...O pelicani rasga o peito para alimentar seus filhotes, sendo por este motivo uma conhecida alegoria do Cristo” (JUNG, 1999[C], p. 177, §533).

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aos filhotes mortos”47. Eis o que pretendiam também significar com outro axioma Matar o

vivo para revificar o morto:

...todos os autores ensinam que é preciso matar o vivo se queremos ressuscitar o morto; eis porque o bom artista não hesitará em sacrificar a ave de Hermes, e em provocar a mutação das suas propriedades mercuriais em qualidades sulfurosas, pois toda a transformação está submetida à decomposição prévia e não pode realizar-se sem ela. (FULCANELLI, 1990, p. 345)

Esta formosa ave, cujas as asas são emblemas da volatilidade e expressão da pureza,

assim como a "água viva mais celeste do que terrestre", possui evidentemente as duas

qualidades essenciais do mercúrio. Este mercúrio que foi libertado inicialmente do fardo

corporal, pelo processo de dissolução, trituração e, despedaçamento, mencionados no capítulo

anterior. Este deve porém ser "sacrificado", porque fixado e coagulado novamente. Sendo

assim, a matéria que estava morta, porque separada do espírito mercurial, revive. Neste

capítulo, observamos a imagem alquímica do Splendor Solis, onde Saturno é cozido no banho

até que seu espírito, a pomba branca, dele se eleve. Ainda com relação à este, BasílioValentim

na nona chave da filosofia chama a atenção para o fato de que, ainda que Saturno tenha

adquirido,por sua vontade, o lugar mais alto sobre os demais planetas, deve, contudo, cair

abaixo de todos, isto é, “cortando- lhe as asas”:

Saturno, o mais alto dos planetas, é o mais baixo e abjecto do nosso magistério; contudo, possui a primeira chave e, sendo vil e carecendo quase de autoridade, ocupa, apesar de tudo, o melhor lugar. Ainda que tenha adquirido,por sua vontade, o lugar mais alto sobre os demais planetas, deve, contudo, cair abaixo de todos, cortando-lhe as asas e, com a sua morte, alcança toda a perfeição da obra, a fim de que o negro se transforme em branco e o branco em vermelho. (...) E ainda que saturno pareça o mais vil e menor de todos, tem, contudo, grande virtude e eficácia. A sua nobre essência ( que na realidade é um frio muito grande) junta-se com um corpo metálico volátil e ígneo, que o torna fixo e sólido e inclusivamente mais firme e permanente que ele mesmo. Essa transmutação toma a sua origem no mercúrio, no sulfureto e no sal. (...) Mas quanto mais vil e abjecta é a matéria, mais elevado e subtil tem de ser o espírito (...) 48

47 “Dum enim rostrum applicat pectori, totum volum cum rostro flectitur in circularem formam ... sanguis effluens e pectore mortuis reddit vitam.” Manget, 1.c.I, 444b. Apud: JUNG, C. G. Mysterium Coniunctionis. Rio de Janeiro: Ed. Vozes,1997, p. 9, §8, nota 40. O mesmo pensamento se repete no texto de Valentim citado anteriormente: “o pelicano que criva o seu peito sem molestar a sua saúde para alimentar com o seu próprio sangue todos os seus filhos.” VALENTIM, Basílio. As doze chaves da filosofia. In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo . Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 132. 48 VALENTIM, Basílio. As doze chaves da filosofia. In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo . Trad. de Maria Teresa Carrilho. Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 141.

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Tanto o verdadeiro pelicano filosófico, que criva o seu peito para alimentar com o seu

próprio sangue os seus filhos, assim como a expressão alquímica recorrente de que “a águia

pode ter suas asas amputadas”, como se observa na citação acima através da expressão

“cortando- lhe as asas”, em uma análise junguiana deste processo, significa a morte do estado

abstrato e ideal, pois é necessario insuflar “sangue”49 e, reanimar a emocionalidade e a

instintividade do corpo. Assim como a água que mata e revive, o simbolismo alquímico do

Pelicano traz conotação correspondente ao orvalho celeste da albedo, isto é, é o sangue e a

umidade anunciando o retorno da alma50. No capítulo anterior, o tema da decapitação na fase

da nigredo, do ponto de vista psicológico do Opus Alchymicum demonstrou ser importante

símbolo da separação da inteligência do grande sofrimento e dor, que a natureza (aspecto

instintivo do corpo) causa à alma. Entretanto, na fase da albedo, a recomendação de que “a

águia pode ter suas asas amputadas”, do ponto de vista psicológico, significa que o que deve

ser excluído na fase da albedo é a unilateridade da consciência, desenraizada da experiência

imediata com a base inconsciente, para que assim, desta maneira, se volte para o corpo.

Sabe-se que Jung entendia o processo de individuação um processo intencional de

diferenciação psicológica que tem como fim o afastamento do indivíduo da base coletiva para

realizar seu destino próprio individual. Sobre este aspecto em especial, Jung analisou uma

sonho dos sonhos da série publicada em Psicologia e Alquimia, no qual a impressão visual

hipnagógica, do quarto sonho é descrita da seguinte maneira: “O sonhador está cercado por

muitas formas femininas indistintas. Uma voz interior diz- lhe “primeiro preciso separar-me

do Pai” (JUNG, 1991 [A], p. 59, § 58). Jung faz a seguinte análise psicológica do sonho:

...As palavras “primeiro preciso separar-me” implicariam a complementação “para depois”. Pode-se supor que este complemento corresponde mais ou menos a : “para depois seguir o inconsciente, isto é, a sedução das mulheres”. O Pai, enquanto representante do espírito tradicional, como nas religiões e concepções gerais do mundo, impede-lhe o caminho, retendo o sonhador na consciência e seus valores. O mundo tradicional masculino, com seu intelectualismo e racionalismo, manifesta-se como um obstáculo (Ibidem, p. 60, §59).

Nota-se que Jung chama a atenção para a necessidade de primeiramente afastar-se do

mundo do Pai, isto é, em outras palavras, a necessidade de livrar-se do hábito de pensar

49 Nas visões de Zózimo encontramos a seguinte citação, indicando a passagem da fase alquímica da albedo para a rubedo: “De novo, ví o mesmo altar sagrado em forma de caldeiro e ví também um sacerdote vestido de branco, que estava a celebrar aqueles temerosos mistérios. “Quem és?”, perguntei-lhe. Ele respondeu-me: “Sou o sacerdote deste Santuário. É preciso meter sangue nos corpos, aclarar os olhos e ressuscitar os mortos.” ZÓZIMO. In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo , Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 29. 50 O sangue segundo Jung, “é um dos sinônimos mais conhecidos da aqua permanens (água eterna) e se apóia muitas vezes na simbólica e na alegórica eclesiásticas do sangue” (JUNG, 1990, p. 43-44, § 61).

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amparado pela tradição e pelo meio ambiente, quando se depende de um hábito que tem o

caráter de lei. É um estágio que se aceita passivamente, um estado de não-reflexão. Isto

significa o sacrifício das perspectivas comuns e a volta para uma ordem de valores que

ultrapasse os limites do eu; como afirma Perrot, seria “o bom senso das realidades profundas

da alma que zomba do bom senso exterior como a verdadeira eloquência zomba da

eloquência” (PERROT, 1998, p. 209). Afastar-se do mundo do Pai significa a aceitação de

caminhos estranhos, de saída imprevisível, revelado no sonho pela atração decisiva pelo

inconsciente (anima). Este último não deve, no entanto, ser subordinado aos julgamentos

racionais da consciência, “mas tornar-se vivência sui generis. O intelecto não aceita isto

facilmente, porque se trata de um ‘sacrificium intellectus’ que, embora não sendo total, é ao

menos parcial” (JUNG, 1991 [A], p. 60, § 59).

Entretanto Jung alerta para o fato de que esta “relativização”da consciência, não deve

chegar a ponto de permitir que o fascínio exercido pelas verdades arquetípicas subjugue o eu:

Edinger nomeou esse processo de coniunctio inferior, ou seja, uma união dos opostos que

foram separados de maneira imperfeita. O produto era sempre “um elemento morto, mutilado

ou fragmentado (uma sobreposição com o simbolismo da solutio e da mortificatio)”

(EDINGER, 1999, p. 228). Isso aparece mais claramente no Rosarium Philosophorum, onde a

nigredo não aparece como estado inicial, mas já como o produto de um processo anterior51.

No Rosarium Philosophorum, isto acontece no abraço Beya em Gabricus: ela mesma

absorveu completamente a natureza dele e o dividiu em pedaços indivisíveis.

Psicologicamente, a coniunctio inferior sempre ocorre quando um ego se ident ifica com os

conteúdos inconsciente; o eu se revela fraco demais para se opor a necessária resistência aos

afluxos dos conteúdos do inconsciente e, é consequentemente assimilado pelo inconsciente52;

isto “gera inevitavelmente uma inflação do eu, caso não se faça uma separação prática entre

este último e as figuras inconscientes.” (JUNG, 1988, p. 21, § 44). Naturalmente será preciso

defender a realidade contra um estado fantasioso. O eu vive no tempo e no espaço e precisa

ajustar-se às leis desta realidade para poder subsistir. Neste sentido, a disciplina, por sua vez,

51 A Coniunctio inferior aparece também no Tratado da Pedra Filosofal de Lambsprinck, no qual, na décima terceira prancha o rei como prima materia devora o filho. Na décima quarta prancha, a necessidade da purificação da matéria é retratada através da imagem, na qual o rei transpira para que “o óleo e a tintura certa dos filósofos jorre dele”. Ele pede a Deus que lhe restitua o único filho, que devorou. Posto isto, é-lhe enviada uma chuva astral (orvalho), que dissolve o seu corpo enquanto dorme. Na décima sexta prancha, o pai que sofre então uma completa transformação, primeiro numa “água transparente” e depois, numa “terra fecunda”, gerou um novo filho. A prancha reproduz assim, o Pai (corpo), o Filho (espírito) e o guia (alma), que formam um só por toda a eternidade. 52 Jung acrescenta: “Assim é que uma consciência masculina, por exemplo, cai sob a influência da anima, podendo até mesmo ser possuido por ela” (JUNG, 1988, p. 21,§ 43)

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enfatiza os limites de comportamento, encoraja a dissolução da identidade ego-Si-mesmo e,

trata a inflação, supostamente, de modo eficaz, evitando a assimilação do eu pelo

inconsciente:

O enraizamento do eu no mundo da consciência e o fortalecimento da consciência por uma adaptação o mais adequada possível são de suma importância. Neste sentido, determinadas virtudes como a atenção, a conscienciosidade, a paciência, sob o ponto de vista moral, e a exata consideração dos sintomas do inconsciente e a auto crítica objetiva, do ponto de vista intelectual, são também sumamente importantes (JUNG, 1988, p. 21, § 46).

No capítulo anterior observamos as imagens alquímicas daqueles que tentam

atravessar o inconsciente sem estarem purificados; em linguagem gnóstico-cristã significa a

pecaminosidade e a impuritas, da qual deve ser lavado o catecúmeno, para isso recomenda-se

o emprego de todas as espécies possíveis de virtude, pois um ego fraco é sobremodo

vulnerável ao ser consumido pelo encontro com um afeto intenso, identificando-se aí com o

desejo projetado. A vontade do rei então deverá ser submetida à uma solutio, separatio e

mortificatio; o que nos apectos psicológicos foi exautivamente abordado anteriormente; mas,

em linguagem gnóstico-cristã, seria a sujeição das paixões apetites por meio de penitências,

abstinências ou de dolorosos rigores aflingidos ao corpo. Do ponto de vista psicológico do

Opus, isto explica o fato de, embora a gravura do abraço Beya em Gabricus no Rosarium

receba o título de “Coniunctio”, a sequência das gravuras seguintes são retratadas com os

seguinte títulos: putrefação, ascensão da alma, purificação, retorno da alma e finalmente novo

nascimento; respectivamente referentes à sexta, sétima, oitava, nona e décima figura. Nota-se,

neste sentido, que a alquimia chama a atenção para a necessidade da purificação da matéria

antes do retorno da alma.

Na concepção alquímica, supõe-se que ambos, o enxofre e o mercúrio deviam ser

purificados de maneira à constituírem a matéria próxima do Magistério, e não conservando já

nenhuma impureza deviam ser unidos. Porém, para recompor o que a natureza alterou, era

necessário tornar o enxofre e o mercúrio, por sua vez, blocos básicos de todos os metais,

"quimicamente" puros, e uni- los, para obter o "ouro". Jung analisa do ponto de vista

psicológico o processo alquímico da purificação presente na fase da albedo e, faz a seguinte

consideração:

A “mundificatio” (purificação) é, pois, uma discriminação do que estava misturado, a saber, da “coincidentia oppositorum”, na qual também está incluído o indivíduo. O homem racional deste mundo tem que diferenciar-se daquilo que ele é “na

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eternidade”, digamos assim. Como indivíduo único, ele representa também o “Homem” como tal, e participa de tudo o que mobiliza o inconsciente coletivo. Em outras palavras: as verdades “eternas” tornam-se perigosos fatores de perturbação, quando oprimem o eu individual e único, vivendo às custas e em detrimento deste último (JUNG, 1999 [C], p.156, § 502).

Do ponto de vista psicológico, na fase da nigredo, o indivíduo caminha ainda

misturado com o inconsciente, quase inconsciente da sua existência. Sendo assim, quando este

último se defronta com o inconsciente sem uma atitude crítica, nestas circunstâncias, “o eu é

facilmente superado e se identifica com os conteúdos assimilados” (JUNG, 1988, p. 21, § 43).

A separação na unio mentalis , portanto, é indispensável, pois somente ocorre uma Coniunctio

superior se houver uma união dos opostos que foram separados de maneira perfeita. Na

alquimia, “a purificação se faz através de uma múltipla destilação; na psicologia, através da

separação radical do ser (eu) humano comum de todas as interferências inflacionárias do

inconsciente” (Idem, 1999[C], p. 157, § 503). Entretanto, a separação da psique coletiva de

caráter animalesco, isto é, da multiplicidade, conduz a um tal distanciamento da psique pré-

histórica, que acarreta uma atrofia da vida instintiva. Do ponto de vista junguiano, o caminho

principia no tempo em que a consciência racional do presente ainda não se separara da alma

histórica do inconsciente coletivo. No entanto, “se a multiplicidade depreciada do homem

natural for rejeitada, sua integração, ou melhor, o processo de auto-realização também será

impossibilitado” (Idem, 1991 [A], p.92, § 105). Sobre este aspecto psicológico do Opus

Alchymicum, existe uma gravura que ilustra uma sentença do filósofo hermético Morienus,

citado anteriormente. A gravura representa um homem pisando conscientemente um monte de

esterco, enquanto, em segundo plano, outro homem, que tentava entrar num edifício pela

janela do primeiro andar, cai de costas:

(Michael Maier, Symbola Aurea mensae duodecim nationum, 1617)53

53 Reproduzido em: PERROT, Etienne. O caminho da Transformação. São Paulo: Ed. Paulus,1998, p. 68. Também disponível no seguinte endereço eletrônico: http://www.alchemywebsite.com/amclglr6.html

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A sentença que inspira a gravura de Michael Maier em Symbola Aurea mensae

duodecim nationum assegura: “Toma essa coisa que é calcada aos pés sobre seus montes de

esterco; do contrário, querendo subir sem escada, cairás sobre a cabeça”54. Segundo Jung, a

“pré-história psíquica é o espírito da gravidade, que exige degraus e escadas, porque não pode

voar, a modo do intelecto, sem corpo e sem peso”.(JUNG, 1991 [A], p. 72, § 79). Do ponto de

vista psicológico, a fonte só será encontrada se a consciência resignar-se a retornar, a fim de

receber, como antes, as diretrizes do inconsciente, pois, de outro modo, “cairás sobre a

cabeça”. Este aspecto psicológico da Obra remete também ao oitavo sonho da série analisada

por Jung em Psicologia e Alquimia. Eis a impressão hipnagógica retrada: “Um arco- íris devia

ser usado como ponte, mas não se deve passar por cima e sim por baixo dele. Quem passar

por cima sofre uma queda mortal” (Ibidem, p.68, § 69). No estado consciente pensamos

ingenuamente que o caminho leva ainda a maiores alturas. Jung acrescenta: “Esta é a

quiméria ponte do arco- íris. Na realidade, para atingir o cume seguinte, teremos primeiro que

descer àquele país onde os caminhos apenas começam a separar-se” (Ibidem, p. 70, § 75).

A volta à pré-história psíquica nao significa que se deve renunciar à diferenciação da

consciência; trata-se mais da questão do homem ocupar o lugar do intelecto ou do que Jung

chamou de a consciência capaz de discernimento; ou seja, é indispensável ter “consciência

dos dois lados da personalidade humana, de suas metas e de sua origem. Esses dois lados

nunca devem ser separados, seja pela soberba (hybris), seja pela covardia” (Ibidem, p. 126, §

148). Neste sentido, no retorno da alma necessário à Coniunctio, nota-se uma acentuação

oposta: se em um primeiro momento, há o afastamento do homem em relação aos seus

instintos, em um segundo, a identificação do espírito com o intelecto, da consciência com o

pensamento, e o mundo da consciência conquistado às duras custas através da separação da

alma do corpo55, deverá ser demolido, em benefício da realidade do inconsciente; é preciso

reconhecer, portanto, que “apesar do inegável sucesso da atitude racional hodienda, sob

muitos aspectos ela é infantilmente inadequada e portanto hostil à vida” (Ibidem, p. 70, § 74).

Neste sentido, outro fator importante a ressaltar é que, de modo oposto, o perigo

psicológico correspondente na fase da albedo se refere à uma colocação do acento sobre a

personalidade do eu, onde agora o Si-mesmo e as figuras do inconsciente são psicologizadas,

54 “Hoc accipe quod in sterquiliniis suis calcatur, si non absque scala ascensurus cades in caput”. Morienus.In: PERROT, Etienne. O caminho da Transformação: segundo C. G. Jung e a alquimia. São Paulo: Ed. Paulus,1998, p. 68. 55 Segundo Jung, “é o afastamento do homem em relação aos instintos a sua oposição a eles que cria a consciência” (Idem,1998 [A], p.337).

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ou seja, assimilados ao eu, o que denota novamente o perigo da inflação56, embora por

motivos contrários:

É bem possível que a colocação do acento sobre a personalidade do eu e sobre o mundo da consciência assuma tais proporções, que as figuras do inconsciente sejam psicologizadas, e o si-mesmo, em conseqüência, assimilado ao eu. Embora isto signifique o processo inverso relativamente ao que acabamos de descrever, a conseqüência que se verifica é a mesma, ou seja, a inflação. Neste caso, o mundo da consciência deveria ser demolido, em benefício da realidade do inconsciente. No primeiro caso será preciso defender a realidade contra um estado onírico arcaico, eterno e “ubíquo”; no segundo caso, deve-se, ao invés, dar espaço ao sonho, em detrimento do mundo da consciência. Na primeira hipótese, recomenda-se o emprego de todas as espécies possíveis de virtude. Na segunda eventualidade, a presunção do eu só poderá ser sufocada por uma derrota moral. Isto se faz necessário, pois de outro modo nunca se alcançaria aquele grau mediano de modéstia que é preciso para manter uma situação de equilíbrio (Idem, 1988, p.23, § 47).

Nota-se que, em um primeiro momento, há um reforço da virtude, da moral e da

postura crítica obtida às duras custas na unio mentalis, produto do encontro com a sombra;

entretanto, em um segundo momento57, “nao se trata de um afrouxamento moral, como se

poderia se supor, mas de um esforço moral numa direção diferente” (JUNG, 1988, p.23, §47).

Do ponto de vista psicológico, nesta fase do Opus Alchymicum, a crítica58 deve conseguir de

um lado, fixar alguns “limites racionais do eu, a partir de critérios universalmente humanos, e

de outro, conferir uma autonomia e uma realidade (de natureza psíquica) a figuras do

inconsciente, isto é, ao si-mesmo, à anima e à sombra” (JUNG, 1988, P. 21-22, §44). De

modo geral, a virada começa aos 35 – 40 anos. A atração do mundo exterior se torna menos

56 Jung acrescenta: “... quanto maior for o número de conteúdos assimilados ao eu e quanto mais significativos forem, tanto mais o eu se aproximará do si-mesmo, mesmo que esta aproximação nunca possa chegar ao fim. Isto gera inevitavelmente uma inflação do eu, caso não se faça uma separação prática entre este último e as figuras inconscientes” (JUNG, 1988, p. 21, § 44). Neste sentido, quando o homem se identifica com os conteúdos a serem integrados, ocorre uma inflação positiva ou negativa. A inflação positiva, segundo Jung, “ assemelha-se a uma megalomania mais ou menos consciente; a inflação negativa vai resultar num aniquilamento do eu. Também pode acontecer que esses dois estados se alternem.Em todo caso, a integração de conteúdos que sempre estiveram inconscientes e projetados significa uma grave lesão do eu” (JUNG, 1999[C], p. 129, § 472). 57 O primeiro estágio da coniunctio, a saber a unio mentalis, corresponde a uma restrita análise da sombra. Entretanto, no segundo estágio, a saber, a união da unio mentalis com o corpo, é necessário que antes o indivíduo se defronte com a sua anima, como será visto maios adiante neste capítulo. Sobre este aspecto Jung acrescenta: “A sombra pode ser integrada de algum modo na personalidade, enquanto certos traços como o sabemos, opõem obstinada resistência ao controle moral, escapando portanto a qualquer influência. De modo geral, estas resistências ligam-se a projeções que não podem ser reconhecidas como tais e cujo conhecimento implica um grande esforço moral que ultrapassa os limites habituais do indivíduo. Os traços da sombra podem ser reconhecidos, sem maior dificuldade, mas tanto a compreensão como a vontade falham, pois a causa da emoção parece provir, sem dúvida alguma, de outra pessoa (...)” (JUNG, 1988, p. 7, § 16). 58 Sobre este aspecto acrescenta Jung: “...Quem não é suficientemente responsável, por exemplo, precisa de um desempenho moral, a fim de que possa satisfazer a mencionada exigência. Para aqueles, porém, que são suficientemente enraizados no mundo, em virtude de seus próprios esforços, vencer suas virtudes, afrouxando, de algum modo, os laços de sua relação com o mundo e diminuindo a eficácia de seu esforço de adaptação, representa um desempenho moral notável” (Idem, 1988, p.23, § 47).

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viva. Diferentemente do estagio anterior, característico do desenvolvimento individual da

primeira metade da vida, onde a formação da personalidade e a adaptação à realidade estão

sob a orientação de uma instância da consciência da ética, correspondente aos valores

coletivos; a pessoa se sente reconduzida a si mesma e sente obscuramente a necessidade de

encontrar uma ordem de valores que ultrapasse os limites do eu:

É necessário perder-se para ganhar-se, abandonar a linha que nos tínhamos fixado, renunciar aos planos de cinco ou dez anos, para seguirmos uma lei mais profunda, mais vasta, porque é a lei do mundo tal como nós, por nossa parte, devêmos vivê-la, a lei da transformação universal, que é a maneira pela qual a divindade imutável se manifesta no tempo e no espaço, aqui, em mim e através de mim. Que isso não se verifica sem incerteza, sem noite, sem crise, é inevitável. Tudo o que ameaça a autonomia do eu é fonte de temor (PERROT, 1998, p. 270).

Pelo processo alquímico da Circulatio, a obra alquímica se aproxima da tensão dos

opostos; através desta operação alquímica o alquimista buscava produzir uma união dos

opostos na Lapis, como será visto a seguir.

IV. 4. – A tensão dos opostos na alquimia do ponto de vista psicológico do Opus

Alchymicum

Um aspecto capital do método da transformação psicológica é a reconciliação

consciente do que fora separado pela consciência e o estabelecimento de uma comunicação e

de uma unidade consciente numa pessoa que, havendo saído da unidade inconsciente,

indiferenciada, passará de lá para o mundo da dualidade. A meta é uma realização mais

elevada do que os ideais da organização coletiva. Contra a superioridade e a brutalidade da

convicção coletiva, assegura Jung, “nada tem o homem para opor a não ser o mistério de sua

alma viva” (JUNG, 1997, p. 159, §191). Sobre este aspecto, considera Neumann:

Uma vez que realizou a divisão da uroboros no par de opostos – os “pais do Mundo” – colocando-se no meio deles, o “filho” estabeleceu com esse ato a sua masculinidade e saiu-se bem no primeiro passo da sua emancipação. O ego no meio dos Pais do Mundo provocou a inimizade de ambos os lados da uroboros, atraindo a fúria do superior e do inferior. Agora ele está diante da iminência daquilo que chamamos a “luta com o dragão”, isto é a guerra com esses opostos (NEUMANN, 2003, p. 121).

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Se o eu aguentar e enfrentar o impulso quase irresistível de fugir do inconsciente, a

tônica do sentimento intervém59, pois esta última representa, de fato, segundo Jung, um “certo

vínculo com a existência e, consequentemente, o sentido dos conteúdos simbólicos, um

compromisso em relação ao comportamento ético, do qual o esteticismo e o intelectualismo

gostariam de se livrar” (JUNG, 1999 [C], p.144, §489). Afastar-se do Pai, na analise

junguiana do primeiro sonho citado neste capítulo, é, portanto, afastar-se da consciência

coletiva, de opiniões e julgamentos tradicionais para seguir o inconsciente coletivo, isto é, a

sedução das mulheres (anima). A anima é uma personificação da atmosfera psíquica ativada,

que indica que o inconsciente começou a atuar; tal como o grupo de figuras femininas,

significa sempre uma atividade autônoma do inconsciente:

A anima torna-se assim um fator dispensador de vida, uma realidade anímica em profunda oposição ao mundo paterno.(...) Mas quem quer que reconheça a realidade da psique e a tome pelo menos como um fator ético e co-determinante ofende o espírito tradicional que há muitos séculos vem regulamentando o ser anímico a partir de fora, através de instituições e também da razão. Não que o instinto irracional se rebele por si mesmo contra a ordem solidamente estabelecida e é bom ressaltar que ele mesmo é, por sua lei interna, a estrutura mais sólida e o fundamento originário criador de toda ordem vigente. Mas justamente pelo fato de este fundamento ser criador, toda a ordem que dele promana – mesmo em sua forma mais divina – é passagem e transitoriedade. O estabelecimento da ordem e a disolução do já estabelecido, contra toda aparência externa, escapam no fundo à arbitrariedade humana (JUNG, 1991[A], p. 82, § 93).

Jung designou o fator determinante de projeções presente no homem com o nome de

anima. A anima é um arquétipo que se manifesta no homem que onde quer que se manifeste:

nos sonhos, e fantasias, ela aparece personificada por um ser feminino, o que denota que o

inconsciente do homem tem por assim dizer, um sinal feminino. Jung usa o vocábulo anima

como um conceito como meio nocional que auxilia o fato de que o inconsciente do homem é

caracterizado mais pela vinculação ao Eros do que pelo caracter cognitivo do Logos. No

homem, assegura Jung, “o Eros que é a função de relacionamento, via de regra, aparece

menos desenvolvido do que o Logos” (Idem, 1988, p.12, §29). Seja do ponto de vista positivo

como negativo, a relação animus-anima é sempre “animosa”, isto é, emocional, e por isso 59 Jung acrescenta: “A função de valor, ou seja, o sentimento, constitui parte integrante da orientação da consciência; por isso, não podem faltar em um julgamento psicológico mais ou menos completo, pois de outra forma o modelo do processo real a ser produzido seria incompleto. É inerente a todo processo psíquico a qualidade de valor, isto é, a tonalidade afetiva. Esta tonalidade indica-nos em que medida o sujeito foi afetado pelo processo, ou melhor, o que este processo significa pra ele na medida em que o processo alcança a consciência. É mediante o ‘afeto’ que o sujeito é envolvido e passa, consequentemente, a sentir todo o peso da realidade.(...) Psicologicamente não se possui o que não se experimentou na realidade. Uma percepção meramente intelectual pouco significa, pois o que se conhece são meras palavras e não a substância a partir dentro” (JUNG, 1988, p. 31, §61).

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mesmo coletiva. Os afetos rebaixam o nível da relação e o aproximam da base instintiva.

Sendo assim, segundo Jung, no homem “o afuscamento animoso é sobretudo de carácter

sentimental e caracterizado pelo ressentimento” (Ibidem, p. 14, §32). Por isso, a anima se

transforma em um Eros da consciência, mediante a integração imprime uma relação e uma

polaridade na consciência do Homem60 :

Este conhecimento é um pré-requisito indispensável para qualquer integração, isto é, um conteúdo só pode ser integrado quando seu duplo aspecto se tornar consciente e o conteúdo tiver sido apreendido no plano intelectual, mas em correspondência com seu valor afetivo. É muito difícil, porém, combinar intelecto e sentimento, pois os dois, “per definitionem”, se repelem. Quem se identificar com um ponto de vista intelectual, poderá eventualmente confrontar-se com o sentimento sob a forma da anima, numa situação de hostilidade; inversamente, um animus intelectual brutaliza-rá o ponto de vista do sentimento. No entanto, quem quiser realizar esta difícil tarefa, não só intelectualmente , mas também como valor de sentimento, deverá, para o que der e vier, defrontar-se com o animus ou com a anima, a fim de alcançar uma união superior, uma “coniunctio oppositorum” [unificação dos opostos]. Este é um pré-requisito indispensável para se chegar à totalidade (JUNG, 1988, p.29, § 58).

Os alquimistas descreveram o tema da tensão dos opostos na maneira de efetuar esta

importante operação sob um conjunto de dualidades, como o fixo e o volátil, por exemplo.

Sendo assim, sob a alegoria do combate da águia e do leão, do volátil e do fixo, ou da "morte

de dois campeões" (em linguagem alquímica, o enxofre e o mercúrio). Trata-se também da

conhecida alegoria do dragão com asas e sem asas, ou ainda, a do pássaro que já aprendeu a

voar e do que ainda não aprendeu. Um dele é Nicolas Flamel, citado anteriormente, que

retrata na segunda imagem alquímica do seu Livro das Figuras Hieroglíficas, a luta de dois

dragões, um com asas e outro sem asas:

Considerai bem esses dois dragões, pois que são os verdadeiros princípios da filosofia, que os sábios não ousaram mostrar a suas próprias crianças.O que está embaixo, sem asa, é o fixo, ou macho; o que está em cima, é o volátil, ou bem a fêmea negra e obscura, que será chamada de muitos nomes. O primeiro é chamado enxofre, ou então calidez e secura, e o último, prata-viva, ou frigidez e umidade. São o Sol e a Lua de fonte mercurial e origem sulfurosa, que pelo fogo continuado

60 O pensamento e o sentimento são funções da consciência sempre em oposição. Ao lado do pensamento, por exemplo, não pode aparecer, como função secundária, o sentimento, pois, segundo Jung, “ sua natureza está em demasiada oposição à natureza do pensamento” (JUNG, 1991[C], P. 382, § 736). Este conhecimento é um pré-requisito indispensável para qualquer compreensão da integração dos opostos, pois como assegura Jung, “... precisa-se, no mínimo, de duas funções ‘racionais’ para se esboçar o esquema mais ou menos completo de um conteúdo psíquico” (Idem, 1988, p. 26, § 52 ). Se o indivíduo for do tipo sentimento, por exemplo, a função mais desvalorizada será o pensamento. Neste caso resultará em um indivídio cuja a observação rancorosa, venenosa e efeminada que ele emprega para desvalorizar todas as coisas, é provocada pelo ofuscamento animoso. Jung completa: “... Por certo é possível que haja também muitos homens que argumentem de maneira bem feminina, naqueles casos, por exemplo, em que são predominantemente possuídos pela anima, razão pela qual se transmudam no animus da sua anima” (Idem, 1988, p. 12-13, §29).

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tornam-se de hábitos reais, para vencer toda coisa metálica, sólida, dura e forte, assim que estiverem unidos num só, e mudados em quintessência. São as serpentes e dragões que os antigos egípcios desenharam em círculo, a cabeça mordendo a cauda, para dizer que se originavam de uma mesma coisa, e que ela só bastava a si mesma e que em seu circuito e circulação ela se aperfeiçoava (FLAMEL, 1973, p. 82).

Nota-se na citação de Flamel que o enxofre está associado ao leão sem asas, isto, é, ao

fixo, ao macho e ao Sol, consequentemente ao ouro. O mercúrio está associado ao leão com

asas, isto é, ao que está em cima, ao volátil, à fêmea, à Lua e à prata-viva. Também o

alquimista Lambrisprink na sétima figura do Tratado da Pedra Filosofal, retrata na imagem

alquímica a seguir, os dois pássaros de Hermes, ou seja, o pássaro que já aprendeu e aquele

que ainda não aprendeu a voar:

(Lambsprinck, O Tratado da Pedra Filosofal, 1599)61

O texto que acompanha a figura considera:

No bosque se encontra um ninho, Onde os Pássaros de Hermes se abrigam. Um deles quer sempre voar para cima, E o outro, nele, quieto permanece. Eles nunca abandonam um ao outro, Mas ficam sempre juntos no ninho, Como um marido, em casa, com a mulher, Solidamente unidos pelos laços do matrimônio. Nós também, nos alegramos a toda hora, Por termos dentro de nós a Águia e sua Fêmea, E damos graças a Deus por este fato. No bosque os Dois pássaros chamam E entretanto, não são mais do que um. O Mercúrio, sublimado muitas vezes, É fixado, por fim, de forma tal, Que não assume mais a forma fluida, Nem pela força do Fogo se evapora. Na verdade, o que se faz com este metal É a destilação muitas vezes repetida, Até que ele seja, por fim, bem fixado.62

61 Figura dis ponível em: http://www.alchemywebsite.com/lambtext.html 62 TRATADO da Pedra Filosofal de Lambsprinck: o significado do simbolismo da alquimia. Tradução e comentarios explicativos do Prof. Anysio N. Dos Santos. São Paulo: Ed. Ibrasa, 1996, p. 182-183.

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Jung analisa especialmente esta imagem alquímica,na qual estes opostos são

simbolizados por dois pássaros no mato, um já emplumado e o outro ainda implume, e

considera que “aqui a oposição dos dois pássaros indica antes a oposição entre o espírito e

corpo” (JUNG, 1997, p. 4, § 3). Nota-se que o caracol com sua concha circular remete a

destilação circular da obra. O mesmo tema reaparece no sétimo emblema do Atalanta

Fugiens, o qual retrata um filhote de águia que tenta voar fora de seu próprio ninho e cai nele

outra vez:

(Michael Maier, Atalanta fugiens, 1617)63

O texto que acompanha a imagem alquímica assegura:

... Conseqüentemente o criador supremo compôs o sistema inteiro deste mundo inteiro de naturezas diversas & contrárias, a saber de claro & de pesado, quente & frio, húmido & seca-o, que um poder pela passagem da afinidade no outro, & uma composição fossem feitos assim dos corpos que devem ser o muito diferente de outro essencialmente, qualidades, virtues & efeitos. Para nas coisas misturadas perfeitamente são os elementos claros, como o fogo & o ar, & do mesmo modo os pesados, como a terra & a água, os quais são balanceado e moderado juntos, aquela que não voa da outra.64

63 Figura disponível em: http://www.alchemywebsite.com/atl6-10.html. 64 “...Therefore the supreme creator composed the whole system of this whole world of diverse & contrary natures, namely of light & heavy, hot & cold, moist & dry, that one might by affinity pass into the other, & so a composition be made of bodies which should be very different one from another in Essence, Qualities, Virtues & Effects. For in things perfectly mixed are the light Elements, as Fire & Air, & likewise the Heavy, as Earth & Water, which are to be poised and tempered together, that one flies not from the other.” MAIER, Michael (1617). Atalanta fugiens. Acesso em: http://www.alchemywebsite.com/atl6-10.html.

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A imagem alquímica a seguir, retrata o tema da tensão dos opostos através daquele que

está solto e o que está preso, ou o mercúrio e o enxofre sob a imagem de uma águia e um

sapo:

O que está solto e o que está preso, ou o mercúrio e o enxofre sob a imagem de uma águia e

de um sapo. (D. Stolcius v. Stolcenberg, Viridarium chymicum, 1624)65

A respeito dessa imagem alquímica, Michael Maier comenta:

... O sapo “está em oposição ao ar, é o elemento oposto a este, a saber a terra, na qual unicamente pode ele movimentar-se a passo lento, e jamais ousa ele ir para qualquer outro elemento. A cabeça dele é muito pesada e se inclina para a terra. Por esse motivo representa ele a terra filosófica, a qual não pode voar (isto é, ser sublimada) por ser firme e sólida. Sobre ela como base ou fundamento, deve ser edificada a ‘casa dourada’. Se a terra não estivesse atuando, o ar evolaria para longe, também o fogo não encontraria alimento, nem a água um recipiente.66

65 Reproduzido em ROOB, Alexander. Alquimia e Misticismo . Trad. Portuguesa de Teresa Curvelo. Lisboa: Ed. Taschen, 1997, p. 27. 66 MAIER, Michael. In: Symbola Aurea Mensae, 1617, p. 200. Apud: JUNG, C. G. Mysterium Coniunctionis. Rio de Janeiro: Ed. Vozes,1997, p. 2-3, § 2.

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Na citação de Maier, o sapo está associado à terra e, por isso ao corpo;

psicologicamente trata-se da pré-história psíquica, da vida instintiva que não pode voar, a

modo do intelecto, sem corpo e sem peso. Sob a óptica junguiana nesta imagem alquímica, o

alquimista expõe a problemática do ser vivo não alheio à materialidade, em oposição à

incorporalidade obrigatória do espírito abstrato.

Jung fez duas constatações: de um lado, os problemas vitais essenciais são

racionalmente insolúveis, porque constituem um confronto de opostos; por outro, se a pessoa

suporta corajosamente seu problema, um dinamismo misterioso se põe em ação, permite que o

conflito seja superado e elabora uma síntese em nível superior. Essa unidade consciente

progride aos poucos através dos conflitos provocados pela colocação dos opostos frente a

frente. Produz-se, então, cada vez, uma diferença de potencial e uma descarga de energia.

Essas provações se multiplicam naquele que deixou a norma coletiva para seguir seu caminho

pessoal. Ele sofre então colisões de deveres, conflitos que deve resolver sozinho, sem

referência, sabendo que se expõe às censuras dos que o observam e não podem suspeitar o seu

drama íntimo. Do ponto de vista psicológico, a integração do inconsciente, porém, só é

possível, se o eu aguentar. Como quer que se encare a situação, assegura Jung, ela sempre

será “um conflito interno e externo: um dos pássaros já aprendeu voar, o outro ainda não. A

dúvida é a seguinte: por um lado um ‘pro’ discutível, por outro, um ‘contra’ que é preciso

acatar”(JUNG, 1999 [C], p. 166, §522). Tal como o alquimista purifica o corpo e submete o

Mercurius à tortura de passar de um vaso à outro, assim também o processo psicológico da

diferenciação não é um trabalho fácil, pois requer paciência e perseverança:

Ascensus e descensus, altura e profundidade, para cima e para baixo descrevem um realizar emocional dos opostos, que lentamente leva ou deve levar a um equilibrio entre eles. (...). neste sentido, o motivo correspondente à luta do dragão alado com o não alado, isto é, o Ouroboros, e Dorneus designa isto também de “destillatio circulatoria” (destilação circular) e de “vas spagyricum” (vaso do arcano), que é para ser construído à semelhança do natural. Com isso se designa a forma esférica. O hesitar entre os opostos ou o ser jogado de um lado para o outro, de acordo com a interpretação de Dorneus, significa o estar contido nos opostos. Os opostos se tornam um vaso, no qual aquele ser que antes ora era um, ora era outro, agora está suspenso a vibrar, e aquela penosa situação de estar suspenso entre os opostos lentamente se transforma em uma atividade bilateral do centro (JUNG, 1997, p. 215-216, §290).

Sendo assim, pelo processo alquímico da Circulatio, a obra alquímica se aproxima da

operação da união dos opostos (Coniunctio). Em uma discussão psicológica desta operação

alquímica, também a consciência deve descer reinterada vezes nas profundezas do

inconsciente em busca da parte negativa e inconsciente da personalidade, pois ainda existe

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sempre e última e mais forte oposição. Segundo Jung, a “estrutura do espírito propria da

sombra primitiva nao pode ser atingida pela razão, mas na mais completa oposição” (Idem,

1990, p. 247, §335). Somente a partir daí, a parte que resiste, deixará de ter existência

autônoma, para se juntar à profunda unidade da psique. Deste modo, aquilo que, de início

escandalizava a consciência, é integrado mais tarde como sua atividade própria. Neste

processo psíquico, o inconsciente criará um simbolo mediador, um terceiro elemento

desproporcional e paradoxal, mas unitivo, pois qualquer conteúdo que transcenda a

consciência e, para o qual não há qualquer possibilidade de apercepção, pode dar origem à

uma simbolica paradoxal ou antinômica. A união do consciente ou da personalidade do eu

com o inconsciente personificado pela anima gera uma nova personalidade:

O choque com a anima e o animus, constitui portanto, um conflito e um problema difícil de resolver, dentro dos quais somos colocados pela própria natureza. Não importa que façamos isto ou aquilo, de qualquer modo a natureza se ressente e tem que sofrer por assim dizer até a morte, pois o homem puramente natural deve morrer de certa forma durante sua própria vida. O símbolo cristão do crucifixo é um modelo e uma verdade “eterna” justamentepor isso. Certas imagens medievais mostram o Cristo pregado na cruz por suas próprias virtudes. Em outros seres humanos são os vícios que se encarregam disso. Aquele que se encontra a caminho da totalidade não pode escapar desta estranha suspensão representada pela crucifixão. Com efeito, ele encontrará infalivelmente aquilo que atravessa o seu caminho e o cruza, isto é, em primeiro lugar aquilo que ele não queria ser (sombra), em segundo lugar, aquilo que não é ele, mas o outro ( a realidade individual do tu) e em terceiro lugar, aquilo que é seu Não-eu psíquico, o inconscientre coletivo (...) (JUNG, 1999[C], p. 128, § 470).

O processo psicológico consiste em amaciar aquelas partes da personalidade que

endureceram e, simultaneamente, solidificar o núcleo da personalidade, o Si-mesmo e isso

conjugaria os opostos de masculino e feminino. Entretanto, tal conflito não pode ser resolvido

pela compreensão, mas só pela vivência. Cada estágio do processo deve ser vivido

plenamente. A unificação da consciência e do inconsciente só pode ser gradualmente, assim

se obtem a fórmula adequada para a correlação consciente- inconsciente, que confira à

personalidade a posição intermediária e correta. Assim pode-se afirmar que existe tanto

separação quanto integração, e isso seria atingir uma condição de tranquilidade pois, quando

podem abandona-se ideais errados ou atitudes coletivas, há um súbito apaziguamento. Desse

modo, a pessoa é redimida do constante esforço de conseguir algo na direção errada. A

integração do si-mesmo é, no entanto, um problema da segunda metade da vida. O homem

que chegou à metade da existência, a esse período no qual o tumulto interior, se foi

enfrentado e transformado, acalma-se; período no qual a pessoa pode aspirar a uma vida

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serena e voltada para a consolidação de sua situação interior e também para a contemplação

dos valores invisíveis:

Após a ascensão da alma, que abandonou o corpo nas trevas da morte, sucede, neste capítulo, uma enantiodromia: à nigredo segue-se a “albedo”. O negrume, ou o estado inconsciente, produzido pela união dos opostos, atinge seu ponto mais profundo, que é ao mesmo tempo seu ponto de reversão. O orvalho caindo anuncia o retorno à vida e uma nova luz. A descida a regiões cada vez mais profundas do inconsciente converte-se numa iluminação vinda de cima. Ao desaparecer com a morte, a alma não se perdeu; apenas foi constituir no além um pólo de vida oposto ao estado de morte neste mundo. Conforme já dissemos, a unidade [lê -se umidade] do orvalho é o anúncio de que ela está descendo de novo (Idem, 1999 [C], p. 145-146, § 493).

A integração do si-mesmo é, no entanto, um problema da segunda metade da vida, isto

é quando o processo de individuação se torna objeto de exame consciente67. Isso significa que

o Si-mesmo começa a se manifestar no espaço e no tempo, que não se converte em algo num

certo momento como um retorno susequente ao modo de vida anterior do indivíduo, mas, ao

contrário, tem efeito imediato sobre a vida toda.

Além destas imagens alquímicas que se ocupam dos símbolos teriomórficos, os

símbolos alquímicos também aparecem na maneira de efetuar esta importante operação sob

um conjunto de dualidades ligados ao masculino e ao feminino, como branco e vermelho, rei

e rainha (no Rosarium Philosophorum também por imperador e imperatriz), homem vermelho

e mulher branca, etc. Esta temática já se mostra presente na alquimia greco-egípcia com

Maria Prophetissa, quando esta em seu diálogo com Aros, aconselha “...Tomais pois o

alúmen, goma branca e goma vermelha que é o Kibric dos filósofos, o seu ouro e a sua maior

tintura e juntai em verdadeiro matrimônio a goma branca com a vermelha”68. Basílio

Valentim na quinta chave da filosofia também acrescenta:

Digo-te isto com verdade. Que um trabalho deve suceder a um trabalho e uma operação seguir-se a outra, pois o princípio deve purgar-se e limpar-se bem a nossa matéria, depois dissolvê-la, fragmentá-la e reduzi-la a pó e cinzas. Logo (deve resultar) um espírito volátil tão branco como a neve e outro tão volátil como o sangue. Estes dois espíritos contém um terceiro, e apesar disso, não são senão um só espírito. São eles três que conservam e prolongam a vida. Põe-nos juntos e dá-lhes de comer e beber segundo a sua natureza, mantém-nos num leite de orvalho que esteja quente até ao termo de sua geração.69

67 Sem dúvida, os símbolos oníricos com características de mandala já podem surgir muito tempo antes, sem que isso implique diretamente o problema do crescimento do homem interior. 68 DIÁLOGOS de Maria e Aros sobre o Magistério de Hermes.In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo , Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 37. 69 VALENTIM, Basílio. As doze chaves da filosofia. In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo , Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 132.

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Assim com a goma branca e a vermelha fazem alusão ao o binário corpóreo-espiritual,

também na citação acima encontramos um espírito volátil tão branco como a neve e o e outro

tão volátil como o sangue. Pela união destes dois, produz- um terceiro mediador, de dupla

natureza; análogo ao mercúrio filosófico, é o remédio alquímico corpóreo-espiritual. A

conjunção do branco e do vermelho, do marido e da esposa, aparece mais claramente na sexta

chave da filosofia de Valentim; a imagem alquímica retrata o casamento filosófico:

A sexta chave dos filósofos (Basílio Valentim, As doze chaves da filosofia, 1609)70

O texto que acompanha a imagem alquímica, considera:

O macho sem a fêmea não é mais que meio corpo, tal como acontece com a fêmea sem o macho, pois estando um sem o outro não podem engendrar nem multiplicar a sua espécie; mas se estiverem casados e juntos, formam um corpo perfeito e completo, próprio pra a geração.71

Este conjunto de dualidades ligados ao masculino e ao feminino, já estava presente no

Livro das figuras hieroglíficas com Flamel. Na terceira figura alquímica, que retrata um

homem e uma mulher, ele traz:

Tens portanto aqui duas naturezas casadas, onde uma concebeu a outra, e por esta concepção está convertida em corpo de macho, e o macho no de fêmea, isto é, foram feitos um só corpo, que é o andrógino dos antigos (...). Desta maneira, represento-te que tens duas naturezas reconciliadas, que (se forem conduzidas e regidas

70 Figura disponível em: http://www.levity.com/alchemy/twelvkey.html. 71 VALENTIM, Basílio. As doze chaves da filosofia. In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo , Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 133.

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sabiamente) podem formar um embrião na matriz do vaso, e depois dar-te à luz um rei poderosíssimo, invencível e incorruptível, porque serpa uma quintessência admirável (FLAMEL, 1973, p. 89).

Se os símbolos teriomórficos voltam à aparecer nesta fase, porém não mais ligados à

característica de ser sempre um desses animais alado e, o outro, desprovido de asas,

certamente aparecerão ligados ao aspecto do masculino e do feminino. A quarta imagem

alquímica do Tratado da Pedra Filosofal de Lambsprinck, é um exemplo disso:

O Espírito e a Alma (Lambsprinck, O Tratado da Pedra Filosofal, 1599)72

O texto que acompanha a imagem alquímica assegura:

Os sábios nos ensinam claramente que dois fortes leões, o macho e a fêmea, vagueiam no esconso Vale das Sombras. (...) Aquele que, com saber e com astúcia possa pegá-los com uma rede e os atar, e domafos, devolvê-los à Floresta, deste se falará com justiça e com direito (...). Pode bem ser grande maravilha, que estes dois leões sejam um. O Espírito e a Alma têm de estar bem juntos e unidos em seu Corpo.73

A imagem alquímica retrata dois leões, sendo um deles macho e o outro fêmea, mas

enquanto nos outros símbolos teriomórficos parece existir oposição entre o espírito e o corpo,

aqui a oposição é entre o espírito e a alma. Segundo Jung, a oposição entre o espírito e a alma

“provém da subtilidade material desta última. Ela está mais próxima do corpo hílico

72 Figura disponível em: http://www.alchemywebsite.com/lambtext.html. 73 TRATADO da Pedra Filosofal de Lambsprinck: o significado do simbolismo da alquimia. Tradução e comentarios explicativos do Prof. Anysio N. Dos Santos. São Paulo: Ed. Ibrasa, 1996, p. 111.

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(material) e é ‘ densior et crassio’ ( mais densa e mais grosseira) do que o espírito” (JUNG,

1997, p. 4, § 3).

Além destas imagens alquímicas que se ocupam dos símbolos ligados à conjunção do

branco e do vermelho, do masculino e do feminino, do marido e da esposa, a alquimia

também se ocupou de retratar esta importante operação através da simbólica Sol- Lua. Com

relação à esta, é necessário acrescentar que os símbolos alquímicos não possuem um

significado estático, como um leigo nos tratados alquímicos poderia supor. Um estudioso

mais atento e dedicado sabe que cada símbolo deve ser interpretado correspondendo à fase

tratada. Neste sentido, as interpretações de um mesmo símbolo mudam durante a obra

alquímica. A profundeza escura do mundo sublunar, por exemplo no início do Opus,

corresponde ao estado úmido e destrutivo da matéria, e por isso uma alusão à nigredo.

Posteriormente, da escuridão do inconsciente surge a luz da iluminação da albedo, trazendo o

plenilúnio (lua cheia), como foi visto anteriormente. No entanto, “seu papel mais importante é

o de ser a parceira do Sol na conjunção” (JUNG, 1997, p. 124, § 149). Neste momento do

Opus Alchymicum, a lua nova aparece para simbolizar a verdadeira Coniunctio superior, ou

seja, uma união daqueles opostos que foram separados de maneira perfeita: o Sol desce e

penetra na profundeza escura do mundo sublunar, para unir as forças do mundo superior com

as do inferior. No texto anônimo Consilium Coniugii de massa solis et lunae (Conselho de

casamento da massa do Sol e da lua, com seus compêndios) citado por Jung está escrito:

Sua alma sobe dele (do enxofre) para o alto e é elevada até o céu, isto é, ao estado de espírito, e ela ao nascer do Sol se torna vermelha e ao surgir da Lua (se torna) de natureza solar. E então o candelabro das duas luzes (...), isto é, a água da vida, retornará à sua origem, isto é, à Terra e desaparece e é rebaixada e apodrece e é afixada a seu amado, o enxofre terrestre.74

De acordo com a concepção alquímica, a Lua é um vaso do sol, ou seja, a umidade

lunar, ventre e útero da natureza recebe as forças do céu e recebe a luz solar. Por isso existe

uma certa analogia entre a lua e a terra75. Jung, comentando o trecho citado acima do

Consilium Coniugii, acrescenta76:

74 Consilium Coniugii de massa solis et lunae,cum suis. In: Ars Chemica, Estrasburgo, 1566, p. 165. Apud: Jung, C. G. Mysterium Coniunctionis. Rio de Janeiro: Ed. Vozes,1997, p. 212, § 285. 75 Jung acrescenta: “...Quanto à albedo, a Terra e a Lua coincidem no mesmo, pois de uma parte a Terra, depois de sublimada e calcinada, aparece como terra alba foliata, da qual se diz que é o ‘bem procurado’, ‘como a mais branca neve’; e de outro lado a Luna é a senhora da albedo, a feminina alba da coniunctio (...)” (JUNG, 1997, p. 125, § 149). 76 Neste caso o enegrecimento (escurescimento) da lua depende do esposo Sol. A parte passiva aqui de mercúrio é chamada de Lua, visto que ela se doa e se esvazia; ela é a nutrição e a morada de todos os metais, o alimento e a mãe de todos os metais. A parte ativa é atribuida ao masculino, isto é ao enxofre terrestre, que sugará o

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Aquilo que sobe é aqui a alma da substancia do arcano. (...) A anima como Luna atinge o seu pleniluniom, o brilho semelhante ao do Sol, para depois decrescer até o novilunium e para o abraço do enxofre terrestre, (...). Pertence a este contexto a descrição horrorosa da coniunctio da lua nova, que se encontra no Scrutinium Chemicum de Majer: A mulher e o dragão jazem enrolados no sepulcro. (JUNG, 1997, p. 213, § 287).

Na alquimia mais tardia tanto o sol como a lua são substâncias do arcano e, também

algo de volatil, espiritual. Assim, nota-se que a prima materia é a mãe de Mercúrio e, ao

mesmo tempo, concluída a sublimação, dá-se a germinação de uma alma de um branco

resplandecente (anima candida) e, por isso é chamada de filha. Por outro lado, o Sol que

ascende da prima materia (inconsciente maternal), isto é, a alma –espírito, é o Filho77 e, ao

mesmo tempo, de acordo com a autoridade máxima da Tabula Smaragdina, o pai de

Mercurius, que descerá ao vaso, isto é, no corpo, tendo este o papel de noiva-mãe (Lua), para

dar a luz ao Mercúrio Filosofal78. Este fato contribui para a compreensão de que se trata de

dois aspectos de uma e mesma substancia, isto é, pra a qualidade binária do mercúrio

filosósico79. Sobre uma análise psicológica de Mercurius duplex, Jung acrescenta:

... Dele deriva a mens humana, a vida acordada da alma, que se deriva consciência. Esta parte reclama inexoravelmente a parte oposta que lhe corresponde, a qual é algo de psíquico escuro, latente, não manifesto, isto é, o inconsciente, cuja a existência somente pode ser conhecida pela luz da consciência. Como o astro noturno se eleva saindo do mar noturno, assim a consciência se forma a partir do inconsciente, tanto de maneira ontogenética como filogenética, e cada noite retorna ela novamente ao estado primordial de sua natureza. Esta duplicidade da existência psíquica é tanto

alimento da mulher branca mercurial, transformando-se no enxofre vermelho dos filósofos. Jung acrescenta: “... Na verdade, o envenenamento oculto, que aliás parte do frio e do úmido (portanto da parte lunar), ocasinalmente é atribuído ao draco frigidus (dragão frio), que se supõe conter um spiritus igneus volatilis (um espírito ígneo e volátil) e ser flammivomus (vomitador de fogo). Assim no 5°[aqui parece ocorrer um erro de tradução, pois trata-se da quinquagésima imagem no Atalanta Fugiens e não da quinta imagem] Emb lema do Scrutinium compete ao dragão ao papel masculino: Ele abraça a mulher no sepulcro em um amplexo mortal. O mesmo pensamento aparece no 5º Emblema em que se coloca um sapo junto ao seio da mulher para que, aleitando ela o sapo, venha ela a morrer, ao passo que sapo cresça. O sapo é um animal frio e úmido como o dragão. Ele esvazia a mulher, como se a Lua se derramasse no Sol (...)” (Idem, 1997, p. 33, § 30). Confira as imagens alquímicas em: http://www.alchemywebsite.com/atalanta.html. 77 Aqui a designação metafórica de Cristo como Sol, que, segundo Jung, “é frequente no modo de falar dos Padres da Igreja, é tomada ao pé da letra pelos alquimistas e aplicada ao sol terrenus” (Idem, 1997, p. 96-97, § 118). 78 O autor anônimo do Consilium coniugii acrescenta “… Do mesmo modo a umidade da Lua mata o Sol ao receber a luz solar que vem para ela, e também morre ao dar à Luz a prole dos filósofos.” Consilium Coniugii de massa solis et lunae,cum suis. In: Ars Chemica, Estrasburgo, 1566, p. 141s. Apud: Jung, C. G. Mysterium Coniunctionis. Rio de Janeiro: Ed. Vozes,1997, p. 25, § 21. 79 Jung conclui: “... Deste modo o Sol é pai e filho ao mesmo tempo; por isso existe o seu correspondente feminino de mãe e filha em uma só pessoa; e, além disso, o masculino (Sol) e o feminino (Luna) são dois aspectos de uma e mesma substancia, que é simultaneamente a causadora e a resultante de ambos; isto é, o Mercurio duplex, de quem dizem os filósofos que nele está contido tudo o que é procurado pelos sábios” (Idem, 1997, p. 97, § 118).

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modelo como imagem original para a simbólica do Sol e da Luna (JUNG, 1997, p. 93-94, §114).

Os esforçosdos alquimistas em unir os opostos alcança assim a meta no “casamento

alquímico”, no relacionamento recíproco do masculino e do feminino. Desses fatos

fundamentais, faz parte o par de opostos primários consciência- inconsciente, cujo o símbolo é

Sol-Luna. Sendo assim, a geração dos metais é circular, passando facilmente, de um a outro,

segundo um círculo80. Desta maneira, “o pássaro sem asas deterá aquele que as tem, e as

substâncias fixas subordinará as Volatéis”, que é a coisa que pela necessidade deve ser

efetuada. Pelo enigma: torna o fixo, volátil, e, de novo, torna o volátil, fixo, o alquimista, pela

destilação “mil vezes” repetida esperava-se um resultado final particularmente “refinado”

obtendo desta maneira o Arcanum. Sob este conjunto de dualidades, fixo e volátil, ativo e

passivo, agente e paciente, macho e femea, Sol e lua, branco e vermelho, o alquimista quer

simbolizar o binário corpóreo-espiritual, e o Mistério da União – simbólica tradicional do

casamento sagrado (hierósgamos), objetivo ultimo da alquimia na operação alquímica da

coniunctio. Dissolvendo o que foi agregado e reunindo o que foi separado, o alquimista

procurava, através de todos os meios, a união dos opostos. Os filósofos, habilmente, soldaram

numa só duas obras sucessivas e com tanta maior facilidade quanto se trata de operações

semelhantes, conduzindo a resultados paralelos. É um processo que resulta em um fenômeno

de transmutação mútua: a matéria- prima liberta o espírito universal, após uma decomposição

e o espírito liberta a matéria, após uma regeneração súbita. Assim cumprido fica o primeiro

termo do axioma Solve et Coagula, pela volatilização regular do fixo e pela combinação com

o volátil; o corpo espiritualizou-se, o espírito corporificou-se, obtendo-se um corpo

glorificado: a Pedra Filosofal. A conhecida alegoria do dragão com asas e sem asas, ou ainda,

a do pássaro que já aprendeu e do que ainda não aprendeu a voar, “trata-se de uma alegoria,

de uma das inúmeras representações da dupla natureza de Mercurius, de sua parte ctônica e

pneumática” (Idem, 1999, [C], p. 147, §494). Este também é representado pelo hermafrodita,

ou seja, é por assim dizer, de aspecto masculino-espiritual e feminino-corporal:

80 Jung acrescenta: “... Tal como o alquimista purifica o ‘corpus’ de todas as ‘superfluitates’ no fogo em seus mais altos graus, e submete o Mercurius à ‘tortura de passar de uma câmara nupcial à outra’, assim também o processo psicológico da diferenciação não é um trabalho fácil, pois requer muita paciência e perseverança” (JUNG, 1999 [C], p. 157, § 503).

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O Rebis hermafrodita (Michael Maier, Atalanta fugiens, 1617)81

Sendo assim, para que este Mercúrio tenha em si a natureza fixadora (que lhe é junta)

como também por causa da sua dupla natureza, os filósofos chamaram-lhe água pemanente e

perseverante ao fogo. Estando sublimado é fugitivo do fogo e branco pela sua natureza, mas

depois do seu coagulante, fica coagulado e calcinado, fixo e retido. Este coagulante, completa

Trevisano, “ é o corpo que fica oculto ao Mercúrio dos filósofos”82. Não há dúvida, segundo

Jung, “ que a substância do arcano, quer seja coisa, quer seja pessoa, sobe da Terra, realiza a

união dos opostos e retorna à Terra, o que significa a sua própria transformação em ‘elixir’”

(JUNG, 1997, p. 212, §285). Assim cumprido fica o primeiro termo do axioma Solve et

Coagula, pela volatilização regular do fixo e pela combinação com o volátil; o corpo

espiritualizou-se, o espírito corporificou-se, obtendo-se um corpo glorificado (repetição).

Porque, se é conveniente dominar o combate e provocar o reencontro, é necessário ainda

captar a parte pura, essencial do novo corpo produzido, a única que nos é útil, a saber: o

mercúrio dos sapientes, o Mercúrio Filosófico83:

Por fim, nota-se que quanto mais se caminha para a produção da Quintessência, mais

se afasta da simbólica da albedo e, mais se aproxima em seus aspectos psíquicos, de tudo

aquilo que culmina, produz ou almeja produzir a respectiva fase “branca”: uma união dos

81 Figura disponível em: http://www.alchemywebsite.com/atl35-40.html. 82 TREVISANO, Bernardo. Tratado da Natureza do Ovo. In: TRISMEGISTO, Hermes et al. Alquimia e ocultismo , p. 75. 83 De modo geral a fase da albedo é a luz que surge após as trevas, a iluminação após o obscurescimento. O orvalho é sinônimo de “aqua permanens” e de “aqua sapientiae”, que por sua vez, significa a iluminação que se produz quando se dá sentido a algo. Assim como o orvalho caindo anuncia o retorno à vida, o espírito Mercurius, “em sua forma celeste como ‘sapientia’ e como Espírito Santo (fogo), vem de cima e purifica o negrume” (JUNG, 1999, [C], p. 138, §484).

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opostos. A união dos opostos somente ocorre assim que estes estiverem unidos num só, e

mudados em quintessência. Sendo assim, esta questão traz também o capítulo para o seu

objetivo central que é o de demostrar, sob a ótica junguiana, de que modo a fase alquímica da

albedo está relacionada com a produção da Quintessência de Geradus Dorneus.

IV. 5. – A fase alquímica albedo e sua relação com a produção da Quintessência de

Gerardus Dorneus

Como foi visto anteriormente, a união dos opostos, somente ocorre assim que estes

estiverem unidos num só, e mudados em uma quintessência. Entretanto, era de conhecimento

do alquimista que não se reconciliaria os opostos, se não lhe viesse em socorro uma certa

substância: trata-se da idéia alquímica do Mercurius, esse ser duplo tanto espiritual como

material. Na perspectiva junguiana, o Mercúrio Filosófico corresponde àquele terceiro-

mediador, necessariamente um símbolo paradoxal, que promoverá união dos opostos. Tal

“substancia” é o objetivo da opus e simultaneamente um "auxiliar", algo que ele não realizaria

a união dos opostos se não viesse em socorro certa substancia. Segundo Jung: "o Mercúrius,

pois, não é apenas o medium coniungendi (meio da união), mas simultaneamente é também

aquilo que deve ser unido, porque ele forma a essência (...) do masculino como do feminino"

(JUNG, 1990, p. 215, § 324).

Para o alquimista Gerardus Dorneus, seria a substância celeste, a Quintessência, o

“remedio incorruptível” que transformaria o corpo e produziria a reuniao da posição espiritual

(unio mentalis) com a esfera corporal. Dorneus começa o processo alquímico da produção da

Quintessência com a destilação do vinho filosófico. O vinho, segundo Dorneus, “pode ser

preparado a partir dos grãos, e igualmente também de todas as outras sementes”. (DORNEUS,

p. 232, § 343. In: JUNG, 1990). Pela destilação do vinum philosophicum (vinho filosófico) ele

acrescenta:

... Por esse processo, a anima (alma) e o spiritus (espírito) são separados do corpo, e sublimados tantas vezes até que eles sejam liberados de toda “phlegma” (fleuma), isto é, de todo líquido, que já não contenha nenhum “espírito” (DORNEUS, p. 240, §351. In: JUNG, 1990).

De início, nota-se que Dorneus reproduz o processo alquímico da extração da anima

(alma) do corpo necessária para o primeiro grau da Coniunctio, no próprio interior da

descrição da produção do remédio que deve servir para prender a unio mentalis (união

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mental) ou, sua posição espiritual, ao corpo; isto é, no preparo da phlegma vini (fleuma do

vinho). Neste sentido, segundo Jung, a unio mentalis “coincide novamente com a

quintessência sublimada a partir da phlegma (líquido viscoso)”84, isto é é reproduzida

novamente no interior da destilação do vinho filosófico na condição mediadora da produção

da quintessência necessária entre a unio mentalis e o corpo. A extração do pneuma (espírito)

ou da alma (anima) da matéria sob a forma de uma substância volátil ou líquida (isto é, capaz

de evaporar-se), mortifica o corpo85. Sendo assim, “apenas começa o processo químico, e já é

o corpo o que resta na retorta após a destilação do vinho” (JUNG, 1990, p. 242, §354). Sobre

este resíduo, que resta na retorta após a destilação do vinho filosófico, acrescenta Jung:

...esta “phlegma” (líquido viscoso) é então tratada assim como o corpo aéreo da alma no purgatório. Como este, também, o resíduo do vinho deve passar por muitos fogos sublimadores, até que ele esteja tão purificado que daí possa ser separada a quintessência da “cor do ar ou do céu” (Ibidem, p. 242, §354).

Com o corpo que resta na retorta após a destilação do vinho filosófico, recomenda

Dorneus:

... Este resíduo, o chamado corpus (corpo), é incinerado “com fogo ardentíssimo”, e depois pelo acréscimo de água quente é transformado em um “lixivium asperrimum” (lixívia fortíssima), o qual então é separado cuidadosamente da cinza por uma inclinação do vaso. Com o resto ou borra procede-se novamente da mesma maneira, e por tanto tempo até não restar na cinza mais nenhuma “asperitas” (aspereza ou caráter de base). A lixívia é então filtrada e a seguir evaporada em um vaso de vidro. Deste modo se obtém o “tartarum nostrum” (nosso tártaro), o calculus vini (ou a pedrinha do vinho), o “sal natural de todas as coisas”. Este sal, se coloca sobre uma placa de mármore em lugar úmido e fresco, pode deliqüescer, formando água tártárica”. Isto é a quintessência do vinho filosófico (DORNEUS, p. 240-241, § 351. In: JUNG, 1990).

Nesta altura da Opus Alchmicum, a propriedade seguinte do arcano a ser considerada é

a natureza física dele: “para DORNEUS não se trata do espírito e da água do vinho, mas de

um resíduo sólido deixado por ele; trata-se, portanto, de algo ctônico e corpóreo, que aliás não

se consideraria como a parte essencial e preciosa do vinho” (JUNG, 1990, p. 283, § 403). Daí

também se conclui que a produção símbolica no interior da produção da Quintessência de

84 JUNG, C. G. Mysterium Coniunctionis. Rio de Janeiro: Ed. Vozes,1990, p. 242, § 355. 85 Entretanto essa mesma substancia revive a matéria; ou seja, “essa ‘aqua permanens’ (água eterna) era empregada para reanimar o corpo e devolver-lhe a alma, e também, ainda que de modo contradidório, para a ‘extração da alma’” (JUNG, 1990, p. 18-19, § 11).

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Dorneus, volta-se novamente para a matéria, isto é, o chamado corpus (corpo), onde está

projetado o inconsciente, que dá a luz à si mesmo. Dorneus acrescenta:

Pelo tratamento alquímico dos ‘grana’ (grãos, sementes da uva) é preparado “nosso Mercurius pela mais elevada sublimação (exaltatione). Pode ser feita a mistura do novo céu, do mel, da chelidonia, das flores do alecrim, da mercurialis, do lírio vermelho, do sangue humano, com o céu do vinho vermelho ou branco, ou do Tártaro (tártaro) (...) (DORNEUS, 233-234, § 345 In: JUNG, 1990).

Aqui a projeção inconsciente se intensifica86. Como foi visto anteriormente, a aqua

permanens, ora é empregada ou, ora é extraída; aqui Dorneus passa a relatar uma série de

ingredientes que devem ser acrescentados ao “céu”; segundo, os quais, “possibilita uma visão

na natureza daqueles conteúdos psíquicos que estão projetados na substância química”

(JUNG, 1990, p. 244, § 358). Na concepção alquímica, a aqua permanens (água eterna) era

empregada para reanimar o corpo87; do mesmo modo, do ponto de vista psicológico, neste

ponto do Opus Alchymicum, a série de ingredientes que devem ser acrescentados à mistura,

denota que o inconsciente ganha vida, isto é, a psique do adepto, “reinando com libertade

plena, se serve de substâncias químicas e dos processos, à semelhança de um pintor que dá

formas à imagem à sua fantasia por meio das tintas da sua palheta” (Ibidem, p. 237, § 347).

Embora, acredita ser o sujeito o autor das projeções, sabe-se que todas as projeções são

identificações inconscientes, o que denota um certo carácter autônomo do inconsciente e

também uma espécie de intencionalidade. Este duplo ponto de vista que devemos assumir em

relação à qualquer organismo mais ou menos autônomo, segundo Jung, “conduz naturalmente

a um duplo resultado: de um lado, a uma espécie de relato sobre aquilo que faço com o objeto,

e, de outro, ao relato do que ele faz (ocasionalmente em relação à mim)” (Idem, 2001, p. 5, §

86 Sobres este aspecto acrescenta Jung: “... A psique do adepto, reinando com libertade plena, se serve de substâncias químicas e dos processos, à semelhança de um pintor que dá formas à imagem à sua fantasia por meio das tintas da sua palheta. Portanto DORNEUS, para descrever a união da unio mentalis (união mental) com o corpo, lança mão de substâncias químicas e de instrumentos, isso não quer dizer outra coisa senão que ele procura tornar plásticas suas fantasias por meio de processos químicos. Para este fim escolhe ele as substâncias adequadas, como o pintor das tintas apropriadas” (JUNG, 1990, p. 237, § 347). 87 No “Aurora consurgens”, o Espírito Santo é comparado com a água mercurial que transforma tudo em celestial, e tem um efeito purificador, vivificador e fertilizante. Sobre o líquido miraculoso, a água divina, Jung acrescenta: “... Em seu aspecto funcional imaginaram-na como uma espécie de água batismal que, a modo da água benta da Igreja, possui uma propriedade criadora e transformadora. Ainda hoje a Igreja Católica celebra o rito da benedictio fontis (benção da fonte) do Sabbathum sanctum na vigília pascal. O rito consiste, entre outras coisas, no descensus spiritus sancti in acquam (descida do espírito santo na água). Com isto a água comum adquire a propriedade divina de transformar o homem e proporcionar-lhe o novo nascimento espiritual. Esta é, precisamente, a idéia que os alquimistas tinham da água divina, e não haveria dificuldade alguma em derivar o aqua permanens do rito da benedictio fontis, se a “água eterna” não fosse de origem pagã e, sem dúvida, a mais antiga das duas. Encontramos a água miraculosa nos primeiros tratados de alquimia grega, que datam do século I” (JUNG, 1999 [B], p. 107, § 161).

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557). Aqui, na produção da quintessência, Dorneus procura tornar plásticas suas fantasias por

meio de processos químicos: esse é o “líquido” que provém do inconsciente, isto é, os

conteúdos inconscientes que forçam a orientação da atenção88. Com relação à Dorneus, Jung

acrescenta:

... Ele sente sua operação como uma ação que atua de modo mágico e confere propriedades mágicas à substância representada. A projeção de propriedades mágicas alude à existência de efeitos correspondentes na consciência, isto é, o adepto sente que um efeito numinoso se despreende do lapis (pedra), seja qual for a denominação dada por ele à substância do arcano. Nosso racionalismo, porém, talvez nem conceda tal coisa às imagens que o homem moderno projeta de sua intuição de conteúdos inconscientes. Este último parece de fato ser influenciado por tais imagens. Chega-se a esta conclusão ao analisar mais exatamente as reações psíquicas quanto às suas representações. Estas com o tempo, exercem um efeito calmante e criam algo como um fundamento interior (Idem, 1990, p. 290, § 412).

Deste modo se obtém o “tartarum nostrum” (nosso tártaro), o calculus vini (ou a

pedrinha do vinho), o “sal natural de todas as coisas” como afirma Dorneus anteriormente.

Como foi visto no capítulo anterior, o sal pode aparecer no simbolismo alquímico

primeiramente associado à sua propriedade amarga, pois o amargor designa a corrupção e

impureza do estado inicial da prima materia; assim também a transpiração pela sudorese

(fluído aquoso, constituído por água e pequena quantidades de sais dissolvidos), apareceu no

simbolismo alquímico como os resultado do processo de tormento constante na fase da

nigredo. Do ponto de vista psicológico da Opus, a volatilização pelo suor é o produto do

reconhecimento dos conteúdos inconscientes pela consciência; e por isso corresponde à

secagem dos complexos inconscientes que primeiro aparecem em estado de identificação com

o ego. Pela evaporação se obtem a retirada da cobertura negra da consciência. Neste ponto,

entretanto, o opus ainda não chegou ao fim, porque resta terra negra, o corpo da pedra. É,

pois, “necessário que as ‘evaporationes’ se precipitem para a ablução da negrura, ‘unde tota

terra albescet’ (pelo que se torna branca a terra toda)” (Idem, 1997, p. 197, § 258). Sobre este

aspecto também acrescenta Von-Franz:

... Se evaporarmos uma substância química, obteremos uma fórmula vaporífera; é a sua alma e, se fizermos de novo a sua precipitação ou coagulação, ela retornará ao corpo, um símile óbvio. Assim, o símile da umidade intervem também, visto que pelo

88 Essa projeção inconsciente, segundo Jung, “...somente muito mais tarde, se isso acaso ocorrer, será compreendida como tal e então retirada. (...) Com isso se suprime a identidade inconsciente com o objeto, e “a alma é libertada de suas cadeias” (JUNG, 1990, p. 243, § 356).

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fogo a umidade corruptível tem que ser destilada e depois é vertida a umidade vivificante (VON-FRANZ, 1980, p. 201).

Do ponto de vista psicológico do Opus, a fase da nigredo corresponde àquele trabalho

analítico, no qual a umidade corruptível é expulsa, isto é, quando se elimina a identidade

inconsciente com o objeto e quando ocorre o recuo das projeções que distorcem a relação do

indivíduo com o mundo: esta é a “extração da alma” que leva à compreensão consciente. No

entanto, o aparecimento na fase da albedo do suor assim como do sal89 na fleuma do vinho

empregado para reanimar o corpo, anuncia o trabalho sintético, ou seja, a integração dos

conteudos inconscientes na vida real do ind ivíduo90, assim como o orvalho, caindo anuncia o

retorno à vida. Segundo Dorneus, este sal, se coloca sobre uma placa de mármore em lugar

úmido e fresco, pode deliqüescer, formando “água tártárica”, isto é, a umidade vivificante,

considerada por Dorneus a quintessência do vinho filosófico. Sobre este aspecto psicológico

do Opus, assegura Jung:

Durante a solutio, separatio e extratio aparece o succus lunariae, sanguis, aqua permanens, que ou é empregado ou é extraído. Esse “líquido” provém do inconsciente, e nem é o verdadeiro conteúdo, mas muito mais o efeito que ele produz na consciência. Trata-se aqui certamente daquele efeito indireto de conteúdos constelados e inconscientes, que é bem conhecido por parte dos médicos e equivale a uma atração, assimilição ou mudança de direção exercida sobre a consciência. Observa-se este processo (...) nos sonhos, nas fantasias e nos processos criativos, nos quais os conteúdos inconscientes forçam a orientação da atenção. A atenção é o succus viate, o sangue, a participação vital (...) (JUNG, 1997, p.145-146, §175).

Os conteúdos personificados do inconsciente uma vez reconhecidos pela consciência

provocam uma mudança psíquica, visto que estes não poderão voltar a ser inconscientes91. A

aquisição do conflito nesta fase pode ser considerada uma vantagem especial, pois sem ele

não existe união, nem nascimento. Nota-se na citação de Jung que o succus vitae ora é

89 Sobre este aspecto acrescenta o alquimista Basílio Valentim : “Tal como o sal conserva todas as coisas e as preserva da podridão, o sal filosófico defende e preserva todos os metais para que não possam ser totalmente destruídos ou reduzidos a nada e não possam fazer nada sem que morra também o bálsamo e o espírito do sal, que é o que são. Neste caso, serão só um corpo morto, que não serviria para nada, porque os espíritos metálicos o abandonariam e, arrancados pela morte natural, deixarão o seu domicílio vazio e morto e nunca lhe poderá dar vida”. VALENTIM, Basílio. As doze chaves da filosofia. In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo . Trad. de Maria Teresa Carrilho. Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 130. 90 Com relação ao sal na fase da albedo, Basílio Valentim, conclui: “Mas, meu amigo, tens que saber que o sal que vem das cinzas tem, com frequencia, uma virtude oculta mas que de nada serve, se o seu interior não se exterioriza, pois só o espírito dá a vida e a força. O corpo sozinho nada pode. Se puderes encontrar este espírito, possuirás o sal dos filósofos” Loc. cit. 91 No entanto, é importante ressaltar na presente dissertação, como bem afirma Jung, de que “a experiência psicológica acentua em primeiro a reação subjetiva na formação das imagens e reserva a si o juizo – libera et vacua mente (com a mente livre e vazia de preconceitos) – quanto a possíveis efeitos objetivos” (JUNG, 1990, p. 290, § 412).

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empregado ou ora é extraído, o que denota as sucessivas “embebições” pela sublimação

filosófica. Do ponto de vista psicológico, a pedra só será encontrada no momento em que a

investigação tornar-se pesada para aquele que investiga, pois forçam a orientação da atenção

às inspirações internos e aos fatos externos. Estes são os oculi piscium (olhos de peixe) tão

frequentemente mencionados pelos alquimistas, como símbolo da atenção permanente e não

diferentemente é mencionado por Dorneus na conclusão que acompanha a produção da

Quintessência92:

... Esta é a base da verdadeira filosofia, Quem considerar tudo isso consigo mesmo e libertar seu espírito de todos os cuidados mundanos e distrações, “este aos poucos e de dia para dia verá com seus olhos espirituais (oculis mentalibus) brilhar as faíscas da iluminação divina (scintillas divinae illustrationis) (...) (DORNEUS, p. 235, § 346. In: JUNG, 1990).

Os oculi piscium na Opus Alchimicum indicam que o lapis (Si-mesmo) está em

formação, e forçam a participação, o envolvimento pessoal e a atitude crítica, pois é

necessário que o homem seja afetado no processo. Esse enredamento nos conteúdos

inconscientes provocados pelo efeito numinoso destes ocorre, segundo Jung, “com a

finalidade expressa de integrar à consciência os enunciados do inconsciente por causa de seu

conteúdo compensativo, e assim realizar esse sentido da totalidade” (JUNG, 1990, p. 288, §

410). O afeto liberado pela aquisição do conflito torna-se o fogo capaz de secar e purificar a

contaminação do inconsciente, pois o que agora se realiza é a confrontação decisiva com o

inconsciente93. De fato acontece como se a atenção reanimasse o inconsciente e deste modo

eliminasse os obstáculos que o separam da consciencia: o que é meio caminho andado para a

experiência e a criação do símbolo da totalidade.

Nota-se que do ponto de vista psicológico da Opus, a reunião da unio mentalis com o

corpo chama a atenção para a questão da experiência real; pois pode haver conhecimento,

sem que este se torne atuante, se a ele não se juntar a experiência. Por esta razão também é

que a questão relacionada à reanimação do corpo, isto é, de tornar a unir a alma ao corpo

desprovido dela, constituía um problema na alquimia: daí a importância da produção do

remédio que devia servir para prender a unio mentalis (união mental) ao corpo e, também da

92 Sobre este aspecto, acrescenta Jung: “..Os olhos de peixe estão sempre abertos, e por isso devem enxergar sempre, razão pela qual os alquimistas os empregam como símbolo para a atenção permanente” (JUNG, 1990, p. 286, §406). 93 No procedimento alquímico da calcinatio, após o processo de intenso aquecimento, resta somente um fino pó seco. Os simbolismos usados para representar este produto final eram as cinzas brancas, o cal e também o sal. Todos estes aludem à fase de embranquecimento, a albedo.

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série de ingredientes que deviam ser acrescentados ao “céu”94. Jung em Mysterium

Coniunctionis analisa a natureza dos conteúdos psíquicos que são projetados por Dorneus na

mistura e, resumidamente, acrescenta:

...Com o mel entrava na mistura o prazer dos sentidos e a alegria da existência, e com isso também o cuidado oculto e o temor por causa do “veneno”, isto é, do perigo mortal do enredamento do mundo. Com a celidônia entrava o sentido e o valor mais elevado dos “filhos da terra”, o si-mesmo como o todo da personalidade, o remédio “curador”, isto é, o remédio unificante que é até reconhecido pela psicoterapia moderna, a união com o amor espiritual conjugal, expresso pelo alecrim, e para que não faltasse o inferior ou o ctônico, a mercurialis acrescenta a sexualidade juntamente com o rubeus (vermelho), o homem movido pelas paixões, sob o símbolo do lírio vermelho. Quem dá a isso tudo também o seu sangue, “coloca também toda a sua alma no prato da balança”. Tudo é unido com a quintessência azul, ou com a anima mundi (alma do mundo), extraída da matéria inerte (...) (JUNG, 1990, p. 248-249, § 364).

Nota-se pela análise junguiana, que a natureza dos conteúdos psíquicos que são

projetados por Dorneus na mistura apontam para o regresso à água da vida, isto é, para um

modo de vida imediato95; por meio destes ingredientes acredita Dorneus que a mistura adquire

a propriedade não apenas de eliminar o impuro, mas também de transformar o espírito em

corpo. A fase alquímica da reanimação do corpo, segundo Von- Franz, corresponde ao

objetivo psicológico da “espontaneidade consciente”, isto é, participar conscientemente no

fluxo da vida:

Emergir da água e sentar-se ao sol, e depois ter que mergulhar de novo na água é um negócio muito perigoso. Isso pode ser feito mediante uma recaída no estado anterior, mas não tem qualquer mérito. Deve-se retornar, mas conservando a segunda forma de consciência analítica, preservando a percepção consciente da sombra e da anima, etc. Assim a segunda fase é espontaneidade consciente, na qual a participação da consciência não se perde, e isso é algo muito difícil, porque é bem mais fácil continuar superanalisando, ou recair no estado anterior de inconsciência [sem grifo no original] (VON-FRANZ, 1980, p. 202).

94 Sobre este aspecto acrescenta Jung: “Se eles tivessem realizado a re-animatio (re -animação) por via direta, a alma por assim dizer teria recaído em sua ligação anterior, e tudo voltaria a ser como antes. Mas não se podia nem por um instante deixar entregue a si mesmo esse ser volátil, que se achava incluso e guardado cuidadosamente no vaso hermético, isto é, na unio mentalis (união mental), porque este Mercurius evasivo de outra forma evolaria e retornaria à sua natureza anterior, como, segundo atestam os alquimistas, não raramente acontecia. O caminho direto e natural teria consistido simplesmente em conceder à alma, curso livre, pois ela sempre se volta para o corpo. Como, porém, ela está mais presa ao corpo do que ao espírito, então ela se separaria deste e retornaria ao estado de inconsciência anterior, sem ter levado consigo algo da luz do espírito para dentro da escuridão do corpo. Por esta razão é que a reunião com o corpo constituía um problema. Expresso na linguagem psicológica, isso significaria que o conhecimento adquirido pelo recuo das projeções não suportaria a colisão com a realidade (...)” (JUNG, 1990, p. 279, § 398). 95 Na concepção junguiana, a experiência individual é a vida imediata; a “vida imediata é sempre individual, pois o individuo é o sustentáculo da vida” (JUNG, 1999 [B], p. 55, § 88).

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Após relatar uma série de ingredientes, que devem ser acrescentados ao “céu”,

Dorneus conclui:

A essência extraída daí é finalmente levada ao estado de sua ‘máxima simplicidade’ pelo movimento circular continuado, ocasião em que o puro se separa do impuro. Então se verá “o primeiro flutuar bem em cima como algo transparente, luminoso e da cor mais pura do ar (portanto: azul)” (DORNEUS, p.232, §343. In: JUNG, 1990).

Nota-se que igualmente como na sublimação filosófica na fase da albedo discutida

anteriormente, onde a separação da mistura da parte mais volátil por evaporação, seguida da

condensação, era repetida diversas vezes e a essência extraída levada ao estado máximo de

pureza pelo movimento circular continuado; assim também a quintessênia do vinho filosófico

é submetida em seguida à rotação mencionada acima. Como em uma centrifugação o puro é

separado do impuro, e por cima fica flutuando um líquido “da cor do céu”. Esta “substancia-

espirito” é uma união dos opostos96; segundo Jung, “representava o equivalente físico do céu”

(JUNG, 1990, p. 300, § 429). Do ponto de vista psicológico, pelo movimento circular, isto é,

o centro da consciência é entregue ao si-mesmo, que se torna o novo centro da personalidade.

Na perspectiva junguiana, o Mercúrio Filosófico corresponde àquele terceiro-

mediador, necessariamente um símbolo paradoxal, que promoverá união dos opostos. Tal

“substancia” é o objetivo da opus e simultaneamente um "auxiliar", algo que ele não realizaria

a união dos opostos se não viesse em socorro certa substancia97. Análogo à esta concepção,

em Dorneus, seria a substancia celeste, a Quintessência, o “remedio incorruptível” que

transformaria o corpo e produziria a reuniao da posição espiritual (unio mentalis) com a esfera

corporal:

... Ele acredita na necessidade da operação alquímica, como também no êxito dela; ele está convencido de que a quintessência é indispensável na “praeparatio” (preparação) deste corpo, e que este último por meio desse remédio é melhorado a tal ponto que possa realizar-se a coniunctio (conjunção) do espírito e da alma (Ibidem, p. 241, § 353).

96 O vinho também segundo Jung, “constitui, pois, um sinônimo adequado, porque ele, sob a forma de um líquido físico, representa o corpo, mas como álcool indica o espírito (spiritus)” (JUNG, 1990, p. 232, § 343). 97 Análogo ao mercúrio dos filósofos, o Si-mesmo se caracteriza por um centro organizador de onde emana o impulso interior de crescimento, portanto, neste sentido, ele corresponde à um "auxiliar". Mas simultaneamente, o Self corresponde à algo que devemos estar conscientemente orientados, e assim corresponde também à algo que deva ser recuperado devido à sua parcela inconsciente. Em outras palavras, ele fica, paradoxalmente, no homem e ao mesmo tempo fora dele; concomitantemente ele é o caminho e o objetivo para a realização dos opostos no processo de individuação.

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Embora Jung tenha indicado a relação do primeiro grau de Dorneus com a primeira

fase alquímica da nigredo, um estudioso mais desatento no assunto, poderia, prematuramente,

subentender que o segundo e o terceiro grau de Dorneus, corresponderiam, respectivamente,

às outras duas etapas gerais da alquimia, a saber, a albedo e a rubedo. Porém, com um certo

domínio, tanto sobre a temática alquímica, quanto da psicologia junguiana, nota-se que estas

relações não ocorrem nesses termos. Ou seja, é possível estabelecer e demonstrar a relação do

primeiro grau de Dorneus com a nigredo, como o próprio Jung indicou e, como no capítulo

anterior se demonstrou. Porém, como no segundo grau da Coniunctio de Dorneus está

incluído o processo alquímico da produção da Quintessência, estas relações não se

estabelecem desta maneira. Sendo assim, esta dissertação demonstra que quanto mais se

caminha para a produção da Quintessência, mais se afasta da simbólica da albedo e mais se

aproxima em seus aspectos psíquicos, de tudo aquilo que culmina, produz ou almeja produzir

a respectiva fase “branca”: uma união dos opostos. Assim como a união dos opostos, somente

ocorre assim que estes estiverem unidos num só, e mudados em quintessência, também

Gerardus Dorneus considera a produção da quintessência, ser “necessária para a unio mentalis

(união mental) com o corpo” (Ibidem, p. 237, § 347).

Eis porque a famosa fase alba, que remete à brancura e a pureza do espírito, nao

corresponde à meta final de um alquimista. A fase alquímica da Rubedo, remete à

vermelhidão do sangue e da vida98, mas este desenvolvimento da consciencia, isto é, “a

integração desses conteúdos na vida real do indivíduo (opus ad rubeum!)” (Idem, 1997, p.

147, § 175), somente poderá ser vivenciado se o alquimista for confrontado com uma união

dos opostos. Eis também porque a albedo e a rubedo, eram simbolizadas nos tratados

alquímicos concomintantemente juntas, pois a feminina alba e o servo rubedo formam o par

tradicional do Casamento alquímico, isto é, o relacionamento recíproco do feminino e do

masculino. Assim a conjunção do úmido, do corpo e da (Lua) com o quente, o espírito e o

(Sol) resulta naquele bálsamo. Por isso também esta concepção alquímica se repete em

Dorneus, que não hesita em afirmar que a mistura toda é então unida “com o céu do vinho

vermelho ou branco ou com o Tartarus” (tártaro)...” (DORNEUS, p. 234, §345. In: JUNG,

1990). Sobre este aspecto, Jung acrescenta: 98 Os alquimistas também não hesitavam em afirmar que a fase da rubedo somente consistia no aumento gradual do fogo, isto é, do ponto de vista psicológico, do aquecimento gradual pelo desejo. O fogo significa paixão, afeto, concuspicência e as forças impulsivas e emocionais da natureza humana em geral, ou seja, tudo o que se pode entender sob o termo “libido”. Sobre este aspecto acrescenta Jung: O aquecimento pelo desejo tem o seu análogo na alquimia, que é o aquecimento gradual daqueles corpos que contenham o arcanum. Neste caso tem papel importante o símbolo da cura pelo suor, como indicam certas representações. Como no maniqueísmo o suor dos arcontes significa a chuva, assim entre os alquimistas o suor representa o orvalho (JUNG, 1997, p. 36,§ 33).

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Se procurarmos conceber a natureza em sentido mais elevado como uma noção geral que abranja todos os fenômenos, veremos que um dos seus aspectos é o físico e o outro espiritual (pneumático). Desde a antiguidade o primeiro deles é considerado o feminino e o segundo o masculino. A meta do primeiro é a união, mas o segundo tende para a distinção (JUNG, 1997, p. 85, § 101).

Eis porque a conjunção da unio mentalis com o corpo é uma tarefa ainda a ser

realizada pela humanidade no futuro. A alquimia parece ter suspeitado disso e, por isso, era o

corpo que merecia ser tratado pela sua corrupção99, de outra forma a unio mentalis nao

suportaria o conflito entre a vida do mundo e o modo de ser do espírito. A existência corporal,

seria uma espécie de imã hostil, as quais as exigências vitais deveriam ser atendidas em

primeiro lugar. Nesta situação o eu somente entra em consideração por poder oferecer

resistência, defender sua própria existência e afirmar-se, onde o conflito for de pouco valor, a

pessoa se coloca do lado da razão e da moral convençional100. Deste modo os motivos

inconscientes são novamente reprimidos101. Entretanto alerta jung:

... que ninguem tire desta constatação geral precipitadamente a conclusão que em um caso individual exista cada vez uma hybris (soberba) da consciÊncia do eu, que mereça ser subjugada ao inconsciente. Mas de modo algum o caso é sempre esse, pois ocorre muito frequentemente que tanto a consciencia como a responsabilidade do eu sao fracas demais e antes estao necessitadas de reforço (JUNG, 1990, p. 304, § 433).

Auto crítica é faculdade discriminatória que acompanha o indivíduo para descobrir as

razões do seu próprio comportamento. Por isso, a transição de uma atitude meramente

estética, perceptiva para uma atitude crítica, segundo Jung, “pressupõe-se naturalmente que o

juízo formado seja obrigatório tanto moral como intelectualmente” (JUNG, 1990, p.288, §

409). O criterio moral aqui é a consciência reflexa e não a lei, nem a convenção; má é a

inconsciência do agir102. Jung acrescenta:

99 Sobre este aspecto acrescenta Jung: “ ... o corpo se achava na situação de quem não está com a razão, pois em consequência de fraqueza moral havia contraído o pecado original. Por isso era o corpo com sua escuridão que precisava ser preparado. E isso acontecia, como já vimos, pela extração de uma quintessência” (JUNG, 1990, p. 300, § 429). 100 Sobre este aspecto, acrescenta Jung: “... Quanto a ideais considerados corretos, como é sabido, é impossível impô-los por meio do esforço da vontade, por algum tempo e até certo ponto, a saber, até que se manifestem sinais de cansaço e diminua o entusiasmo inicial. Mas então a decisão livre se transforma em espasmos da vontade e a vida reprimida força, por todas as brechas , seu caminho para a liberdade. Esta é lamentavelmente a sorte de todas as decisões tomadas exclusivamente pela razão” (JUNG, 1990, p. 279, § 398). 101 O recalque, segundo Jung, “ é a maneira semi -consciente de deixar correr as coisas, ou de externar desprezo por uvas que pendem de ramos demasiado altos, ou de olhar em direção contrária para não enxergar os próprios desejos” (JUNG, 1999[B], p. 80, §129). 102 Sobre este aspecto considera Jung, “...Jesus procurou ensinar a concepção mais adiantada e psicologicamente mais correta de que a oposição à essencia do mal não é a fidelidade à lei, mas muito mais o amor e a bondade.” (JUNG, 1997, p. 163,§200)

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... há uma grande diferença, subjetivamente falando, em o individuo saber o que ele esta vivendo e compreender o que esta fazendo e declarar-se responsável ou não pelo que intenciona fazer ou já fez. Cristo formulou compkexivamente em uma única frase aquilo que constitui a consciencia reflexa ou sua ausencia: “Se sabes o que fazes, és feliz, mas se não sabes, és um maldito e transgressor da lei”. A inconsciência nunca pode valer como desculpa perante o tribunal da natureza e do destino. Ao contrário, grandes castigos pesam sobre ela e é por isso que toda a natureza inconsciente anseia pela luz da consciência, à qual, no entanto, se contrapõe (Idem, 2001, p. 102, § 745).

Como foi visto anteriormente, a estrutura do espírito própria da sombra primitiva nao

pode ser atingida pela razão, mas na mais completa oposição103. Existem camadas profundas

da psique que não podem ser atingidas pela intelecto e nem pela força da vontade. Nesta

altura do processo de individuação, a natureza vem ao nosso encontro com uma ajuda, isto é,

forças impessoais que se ocultam no interior e escapam ao nosso arbítrio e intenções. A

numinosidade destes fatores psíquicos então torna difícil um tratamento intelectual, pois é o

caráter afetivo que entra sempre em conta. O intelecto mera parte e função da psique não

basta para compreender a totalidade humana. O indivíduo participa pro et contra no processo,

de estados de conflitos agudos, e choques de deveres, ate que o inconsciente produza um

simbolo de natureza unificante, proponha um terceiro termo irracional,e consequentemente

imprevisto, e nao esperado como solução. Na alquimia o corpo era restaurado, como já vimos,

pela extração de uma quintessência. Entretanto, sabe-se que o que “a alquimia tenta para sair

de seu dilema é uma operação química que hoje poderíamos designar como um símbolo”

(JUNG, 1990, p. 283, § 404). A dinâmica força deste processo é o instinto que cuida, para que

tudo quanto pertence a uma vida individual seja nela integrado:

Jamais faltam ao eu razões opostas, de natureza moral e racional, que nem se pode nem se deve pôr de lado enquanto elas ainda servem de apoio. Pois somente então alguém se sentirá em um caminho seguro quando a colisão de deveres se resolver como que por si mesmo, e esse alguem se tiver tornado vítima de uma decisão, que foi tomada independentemente de nossa cabeça e de nosso coração. Nisto se manifesta a força numinosa do si-mesmo, que dificilmente poderia ser experimentada de outra maneira. Por isso a vivencia do si-mesmo significa uma derrota ao eu. A enorme dificuldade dessa vivência consiste no fato de que o si-mesmo apenas pelo conceito se distingue do que desde sempre chamamos de “Deus”, não porém na prática (JUNG, 1990, p. 303-304, § 433).

103 A sombra é simplesmente vulgar, primitiva, inadequada e incômoda, e não uma qualidade maligna absoluta. Ela contêm qualidades infantis e primitivas que, de algum modo, poderiam vivificar e embelezar a existencia humana; mas o homem se choca com as regras tradicionais.

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Sabe-se que Jung localiza a base da função religiosa da psique na sua capacidade

natural de gerar a experiência do sobrenatural104. Sendo assim, quando Jung trata da

experiência religiosa, está se referindo a uma experiência psíquica, ou seja, à uma relação da

consciência do indivíduo com uma instância que é inapreensível totalmente por conceitos105.

Isto é, deixando de lado os atos da graça que fogem à alçada humana, Jung considera que,

sem a relação entre a consciência e o Si-mesmo, mediante a exploração do inconsciente, não

há experiência da totalidade e portanto não há acesso interior às formas sagradas. Porém, Jung

sofreu uma enorme resistência por parte dos teólogos da época, quanto à essa qualificação da

experiência religiosa, como podemos observar neste trecho a seguir:

... É quase uma blasfêmia pensar que uma vivência religiosa possa ser um processo psíquico; é então introduzido o argumento de que tal vivência "não é apenas psicológica". O psíquico é só natureza - e por isso se pensa comumente que nada de religioso pode provir dele. Tais críticos não hesitam, no entanto, em fazer todas as religiões derivarem da natureza da alma, excetuando a que professam (...) (JUNG, 1991 [A], p.22, § 9).

Sendo assim, chega sempre o momento em que a pessoa está só com “Só” em que

pode dizer como João da Cruz: “perdi o rebanho que seguia antes”. O encontro com o Si-

mesmo é um encontro solitário, é um encontro com o seu “máximo outro”. Segundo Jung, na

medida em que “o homem se acha somaticamente comprometido, o ‘adversário’, não é senão

o ‘outro em mim’” (JUNG, 1999 [B], p. 82, § 133). Na reconciliação com o outro dentro de

mim o que importa saber é se o homem é capaz por si de alcançar um degrau moral mais

alto. Sobre este aspecto acrescenta Jung:

... É justamente por esse o motivo que a observância da moral cristã nos faz cair nos piores conflitos de deveres. Só quem se habituou a não tomar as coisas rigorosamente ao pé da letra estará em condições de escapar deles.O fato de a ética cristã nos levar a conflitos de deveres constitui um argumento a seu favor. Produzindo conflitos insolúveis e, consequentemente, uma certa “afflictio animae”,

104 Ele também empresta de Rudolph Otto o termo que o fez famoso no mundo dos estudos religiosos do século XX. Para os dois isso significava a experiência imediata do divino. Para Otto essa experiência era ambígua, surpreendente, estimulante, condenatória e encorajadora. Nesse ponto, Jung concordaria com a descrição de Otto sobre a experiência do sobrenatural. Eles só descordam em relação à origem dessa experiência. Para Otto, essa experiência tinha como objetivo uma divindade que era chamada de “o outro completo”. O que Jung faz com a idéia de Otto é internalizar a experiência desse outro Deus completo e discutir que o poder ou poderes que geram essa experiência, não devem ser entendidos como um outro completo, mas como um interno completo. Ele localiza esses poderes na dimensão arquétipa da psique, o inconsciente coletivo. 105 Jung acrescenta: “...este Deus age através do inconsciente do homem, obrigando-o a unir e a harmonizar as influencias contrárias e permanentes, às quais sua consciencia esta submetida. O inconsciente pretende ambas as coisas: separar e ubir. É por isso que o homem , em suas tentyativas de unificação pode sempre contar com a ajuda de um mediador metafísico (...). o inconsciente quer introduzir-se na consiência, a fim de poder chegar à luz, mas ao mesmo tempo, é impedido de tal designio” (Idem, 2001, p. 98, § 740).

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ela aproxima o indivíduo do conhecimento de Deus: qualquer contraste pertence a Deus e por isso o homem deve tomá-lo sobre si; tão logo o faça, Deus se apossará dele, juntamente com as suas antinomias. O homem é, então, invadido pelo conflito divino. Não é sem fundamento que ligamos a idéia de sofrimentom ao estado no qual os contrários se chocam dolorosamente, e temos receio de considerar uma experiência desta como libertação (Idem, 2001, p. 59, § 659).

As aflições, conflitos e sofrimentos no entanto adquirem um sentido e objetivo que o

livram de seu caráter amedrontador; a partir disso, se o indivíduo conseguir reconhecer o

inconsciente ao lado do consciente, vivendo de modo amplo as exigências conscientes e

inconscientes (instintivas), entao o Si-mesmo se colocará como centro vívído e o espírito

diretor na vida diária:

Tais problemas nunca serão solucionados por meio de um da legislação ou por artifícios. Só podem ser resolvidos poruma mudança geral de atitude. E esta mudança não se inicia com a propaganda ou com reuniões de massa, e menos ainda com violencia. Ela só pode começar com a transformação interior dos indivíduos. Ela produzirá efeitos mediante a mudança das inclinações e antipatias pessoais, da concepção de vida e dos valores, e somente a soma dessas metarmorfoses individuais poderá trazer uma solução coletiva (Idem, 1999 [B], p. 84, § 135).

Os alquimistas desde sempre procuraram fora de si encontrar aquela substância do

arcano que devia estar por toda a parte, como panacéia ou tintura de ouro ou elixir para

prolongar a vida e, “somente no século XVI passou a aludir a um efeito interno com uma

clareza de que já não se podia duvidar (JUNG, 1990, p. 290, § 412). Gerardus Dorneus era um

deles. Por isso, a problemática unio corporis, segundo a qual os alquimistas tanto se

debruçaram no axioma alquímico “torna o fixo volátil, e, de novo, torna o volátil fixo”;

Dorneus entende este enigma do seguinte modo: “faze do corpo inerte (pertinax) o flexível

(tractabile), de maneira que pela excelência do espírito (animi), que se adapta à alma, surja

um corpo resistente, que possa tomar sobre si todas as provações. Pois o ouro é

experimentado no fogo” (DORNEUS, p. 236, § 346. In: JUNG, 1990). Sobre este aspecto,

considera Jung:

... não obstante acredita ele na possibilidade da espiritualização unilateral, sem dar-se conta de que a condição para esse efeito consiste justamente em uma materialização do espírito, a saber, a quintessência azul. Na realidade, entretanto, seu esforço eleva o corpo até aproximidade da espiritualidade, mas também atrai o espírito até a proximidade da matéria. Ao sublimar ele a materia, materializa ele o espírito (Idem , 1990, p. 293, § 419).

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Chegamos assim, ao final das considerações sobre a fase alquímica albedo e sua

relação com a produção da Quintessência de Gerardus Dorneus, analisados à luz da Psicologia

Profunda de Carl Gustav Jung.

IV. 6. Sobre o axioma de Maria Prophetissa

Sendo assim, através da constatação destas relações no decorrer da dissertação, isto é,

tanto através do exame dos estágios alquímicos do alquimista Dorneus, quanto das fases

alquímicas, foi encontrado um duplo subsídio para promover um maior entendimento dos três

principais processos psíquicos que se desenrolam no opus alchymicum até a Conjunção final.

Com esta constatação chegamos ao axioma central da alquimia, ou seja, ao aforisma de Maria,

a Prophetissa: “Um torna-se dois, dois torna-se três e do três provêm o um, que é o quarto”106.

Sobre o axioma de Maria na alquimia, observa-se a seguinte citação do tratado anônimo De

Sulphure:

...Assim o fogo começou a atuar sobre o ar e produziu o enxofre. Em seguida o ar começou a atuar sobre a água e produziu o mercúrio. Depois a água começou a atuar sobre a terra e produziu o sal. Mas a terra, como nada tinha sobre o que atuar, nada produziu, mas o produto permaneceu nela: resultaram assim apenas três princípios, a terra se tornou a nutriz e o lugar maternal dos outros. Desses três procedem o masculino e o feminino, isto é, manifestadamente o primeiro provêm do enxofre e do mercúrio, e o último do mercúrio e do sal. Mas os dois produzem o um incorruptível (unum incorruptibile), a saber, a Quinta Essentia (quintessência), “e assim o quadrilátero corresponde ao quadrilátero”.107

Na citação acima, a produção da Quintessência se faz de acordo com o axioma de

Maria108. Do estado caótico dos quatro elementos, isto é, o Um, provêm o enxofre (princípio

masculino –ativo) e o Sal (neste caso, representa o princípio feminino-passivo), )

demonstrando que a alma-espírito (o masculino, o paterno, o espiritual) separa-se do corpo,

106 MARIA PROPHETISSA. In: JUNG, C. G. Psicologia e Alquimia. Rio de Janeiro: Ed. Vozes,1991, p. 34, §26. 107 De Sulphure. Museum Hermeticum. 1678, p. 622s. Apud: JUNG, C. G. Mysterium Coniunctionis. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 1990, p. 212, §320. 108 Jung comenta esta citação do De Sulphure, e acrescenta: “A síntese do um incorruptível ou respectivamente da Quinta Essentia se realiza de acordo com o Axioma de Maria, no qual o quarto corresponde à terra. O estado de separação cheio de inimizade da parte dos elementos corresponde ao caos e às trevas. Das sucessivas uniões provêm um agens (agente: Sulphur, enxofre) e um patiens (paciente: Sal), como também um intermediário, um ambivalente, a saber, o Mercúrius. Dessa clássica trindade alquímica resulta a relação de home m e mulher como a oposição suprema e essencial. O fogo se acha no início e não é produzido por nada, e a terra se encontra no fim e não atua sobre nada.Entre o fogo e a terra não reina nenhuma interactio (interação), e por isso os quatro não formam um círculo, isto é, nenhuma totalidade. Esta apenas é produzida pela síntese do masculino e do feminino (Idem, 1990, p. 212, § 321).

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(feminino, o materno, o físico); assim também como há um intermediário, um ambivalente, a

saber, o Mercúrio, que de uma parte se divide em metade masculina e em outra feminina; isto

é, o masculino, que provêm do enxofre e do mercúrio e, o feminino, que provêm do mercúrio

e do sal. O terceiro, o Mercúrio, é capaz de unir ambas as partes restabelecendo a unidade

primordial. Sendo assim, pela síntese do masculino e do feminino, os dois produzem o um

incorruptível, a saber, a Quinta Essentia (quintessência), “e assim o quadrilátero corresponde

ao quadrilátero”109:

Substancia universal

Sal Enxofre Água-terra Fogo - ar Feminino Masculino

Mercúrio Água-ar Feminino-masculino

Do ponto de vista psicológico, O Um, corresponde ao estado de entrelaçamento difícil

de desfazer entre a alma e o corpo, com o qual eles formam uma unidade sombria. No caos da

prima materia, estes elementos nao estão unidos no caos, apenas coexistem lado a lado,

devendo por isso, ser unidos mediante o processo alquímico. As designações da matéria-

prima, segundo Jung, “indicam algo que não consiste em uma determinada substância, mas

que deve ser, certamente, o conceito intuitivo de uma situação psíquica inicial” (JUNG, 1988,

p. 146, § 240). O processo de diferenciação da consciência exige que se retirem todas as

projeções que podem ser alcançadas e, quanto mais a consciência reivindica para si uma

natureza luminosa, mais permanece uma oposição, pois só quando uma pessoa se conserva

legitimamente inconsciente de seus impulsos, não há cisão110. A essência do consciência é a

diferenciação; para ampliar a consciência é preciso separar os opostos uns dos outros:

O desenrolar do processo de individuação começa em geral com uma tomada de consciência da “sombra”, isto é, de uma componente da personalidade que, ordinariamente apresenta sintomas negativos. Neste personalidade inferior está contido aquilo que não se enquadra ou não se ajusta sempreàs leis e regras da vida

109 Como se sabe, “o um que é o quarto” remete ao tema da quadratura do círculo,, ou seja, aos símbolos da totalidade, que o inconsciente em determinadas circunstancias produz espontaneamente. Deve-se mencionar nesse sentido, antes de tudo, os objetos geométricos que encerram os elementos do círculo e da quaternidade. O círculo e a quateridade possuem caráter de totalidade: “o primeiro por causa da “pefeição” de sua forma e a segunda enquanto número mínimo resultante da divisão natural do círculo” (JUNG, 1988, p. 214, § 351). 110 Segundo Jung, a “psicologia sabe que os opostos correlatos constituem condições imprescindíveis e inerentes ao ato de conhecimento, pois sem eles seria impossível qualquer tipo de diferenciação” (JUNG, 1988, p. 57, §112).

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inconsciente. elaé constituída pela “desobediência” e por isso é rejeitada não só por motivos de ordem moral, mas também por razões de conveniência (JUNG, 1999 [A], p. 87, § 292).

Sendo assim, o “Um torna-se dois”, segundo o axioma. A diferenciação da

consciência, no entanto, leva o indivíduo a um conhecimento cada vez mais ameaçador da

contradição, e significa nada mais nada menos que uma crucificação do eu, isto é, uma

suspensão dolorosa entre dois opostos irreconciliáveis111. A estrutura do homem, Jung

acrescenta, corresponde a esta bifurcação: “o corpo provém do elemento feminino, cuja

característica fundamental é a emocionalidade,ao passo que o espírito provém do elemento

masculino, ao qual corresponde a racionalidade” (Idem, 1988, p. 52, § 100). A separação da

consciência e a subordinação desta última à pontos de vista racionais não agrada, uma vez que

a razão nao é capaz de lidar de maneira satisfatória com os dados irracionais do inconsciente.

Como é impossível unir os contrários em seu próprio nivel, é preciso encontrar um terceiro

termo de ordem superior, no qual as partes possam encontrar-se. Aqui costuma falhar o

intelecto com sua lógica, pois em uma oposição lógica não existe um terceiro termo. O que

traz a solução somente pode ser de natureza irracional. Como o símbolo provém tanto da

consciência como do inconsciente, ele é capaz de unir ambas as partes, “o caráter antitético e

ideal deles, devido a sua forma, correesponde ao caráter antitético emocional de sua

numinosidade” (Ibidem, p. 170, § 280). Sendo assim, o inconsciente em determinadas

circunstancias produz espontaneamente um simbolo arquetípico da totalidade acrescentando-

lhe um significado central e supremo, e isto justamente porque ele constitui uma “coniunctio

oppositorum” [integração dos opostos]. O simbolo arquetípico da totalidade, segundo Jung,

“é uma criação do inconsciente, muitas vezes é personificado pela anima, uma figura

feminina” (JUNG, 1999 [B], p. 68, §106). Este símbolo, é o terceiro mediador, que reconduz

ao um, que ele traz em si. A anima, personificação da atmosfera psíquica ativada, “representa

sempre a ‘função inferior’, que está de tal modo contaminada pelo inconsciente coletivo, que,

“ao se tornar consciente traz consigo entre outros o arquétipo do Si-mesmo (...)” (JUNG, 1991

[A], p. 37, § 31). O fenômeno da contaminação se baseia no fato de haver na psique um

estado de fusão e mistura: em um ponto qualquer os opostos se revelam idênticos; segundo

Jung, isso “corresponde à imagem da anima, a qual em virtude de seu estado

111 Edinger acrescenta: “This brings stage 2, the beginning of ego development, which is characterized by the separation of subject and object. Here the ego begins to experience itself as separate from the world while still caught in the polarity between Nature (Mother) and Spirit (Father)” [Isto traz o estágio 2, o começo do desenvolvimento do ego, que é caracterizado pela separação do assunto e do objeto. Aqui o ego começa a experimentar-se como separado do mundo apesar de ainda capturado ainda na polaridade entre a Natureza (Mãe) e o Espírito (Pai)] (EDINGER, 1995, p. 279-280).

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preponderantemente ‘inconsciente’ traz em si o sinal característico de não ser distinguível”

(Idem, 1990, p. 172, § 267). Sendo assim, a conscientização deste processo arrasta consigo o

“quarto”, devido à contaminação do arquétipo com a natureza arcaica em contraposição à

qualquer aspiração consciente:

... Este conhecimento dá origem, no homem, a uma tríade, um terço da qual é transcendente, ou seja; o sujeito masculino, o sujeito feminino, o seu contrário e a anima transcendente. (...) No homem, o quarto elemento que falta à tríade para chegar à totalidade é o arquétipo do velho sábio. (...) Estes elementos formam uma quaternidade, que é metade imanente e metade transcendente, ou seja aquele arquétipo que denominei quaternio de matrimônios. Este quatérnio forma um esquema do si-mesmo (JUNG, 1988, p. 20, § 42).

O velho sábio não é apenas “o si-mesmo psicológico”, mas também o próprio processo

de transformação. A formula alquímica para isso é o axioma de maria; deste modo ele é

reconduzido ao um que tem em si, e por isso ele é o três e o quatro. O indivíduo é assim

obrigado à suportar o oposto em benefício de sua inteireza. Aquilo que se achava mais

distante da consciência desperta e, parecia inconsciente assume, segundo Jung, “como que um

aspecto ameaçador, ao mesmo tempo que o valor vai crescendo na seguinte progressão:

consciência do eu, sombra, anima, si-mesmo” (Ibidem, p. 27, § 53). Chegamos, neste sentido,

ao final do axioma central da alquimia: “Um torna-se dois, dois torna-se três e do três provêm

o um que é o quarto”112.

112 Jung conclui: “... O material apresentado mostra como o drama arquetípico de morte e renascimento está oculto na coniunctio opositorum, ou também quais os afetos humanos primitivos se chocam violentamente nesse problema. É o problema moral da alquimia de colocar em concordância com o princípio do espírito aquela camada profunda da alma masculina, revolvida pelas paixões, a qual é de natureza feminino-maternal – na verdade uma tarefa hércula (Idem, 1997, p. 37, § 34).

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V – UNUS MUNDUS E O SÍMBOLO QUATERNÁRIO: UMA CONTRIBUIÇÃO

PARA O ESTUDO DO RELIGIOSO NO CAMPO SIMBÓLICO

O terceiro grau da Coniunctio de Dorneus, a união do homem total com o Unus

Mundus, em contrapartida, não encontra respaldo análogo nos três procedimentos gerais da

alquimia, pois como assegura Jung, "a produção do lapis (pedra) é de modo geral a meta final

da alquimia. Dorneus, porém, forma uma exceção importante. Para ele até agora apenas se

completou o segundo grau da coniunctio (conjunção)" (JUNG, 1990, p.290, § 413).

Entretanto, o terceiro e último grau de Dorneus, a união com o Unus Mundus, apenas reforça

o retorno àquela unidade original antes perdida, a substância universal, a matéria básica junta

ao espírito na própria unidade da substância criada e imortal. Sendo assim análogo ao

mercúrio filosófico, substância essa de dupla natureza, a Quintessência de Dorneus, é o

remédio alquímico corpóreo-espiritual e um terceiro mediador que prepara o corpo, e realiza a

conjunção do espírito e da alma com o corpo. A união com o Unus Mundus é universal, é o

restabelecimento do estado cósmico primordial, o retorno ao núcleo de ouro da uroboros

sublimada de Neumann. Além deste aspecto, a terceira etapa de união se tornou também

objeto das representações figurativas, como no estilo da Assunção e coroação de Maria, como

assegura Jung no trecho a seguir:

... Esta terceira etapa da unio (união) se tornou objeto de representações figurativas, no estilo da assunção e coroação de Maria , nas quais Maria representa o corpo. A Assumptio (assunção) é propriamente uma festa de núpcias, a versão cristã do hierósgamos (casamento sagrado), cuja a natureza incestuosa primordial desempenhou grande papel entre os alquimistas. (...) Por isso os alquimistas representaram a unio mentalis (união mental) pelo Pai e pelo Filho e a união deles pela pomba (Espírito Santo) (a spiratio ou espiração comum ao Pai e ao Filho), mas o mundo corpóreo pelo feminino ou o “patiens” (passivo), a saber, Maria. Assim prepararam eles, a seu modo, pelo espaço de mais de um milênio, o caminho para o dogma da Assumptio (Assunção). Entretanto a partir do dogma e de sua fundamentação, não é ainda evidente por si só a implicação amplíssima de um casamento do princípio espiritual paterno, com o que é “material”, isto é, com a corporeidade materna (Ibidem, p. 219- 220, §329).

Os esforços dos alquimistas em unir os opostos alcança a meta no “casamento

alquímico”, no relacionamento recíproco do masculino e do feminino, cujo o símbolo é o

Sol-Lua, por ocasião da Lua nova. No pensamento teológico fundamental, segundo Jung, esse

pensamento foi expresso na simbólica da Lua como igreja1, e na versão cristã do hierósgamos,

1 Jung acrescenta que “o ‘morrer’ da igreja está ligado à parábola da lua escura” (JUNG, 1997, p. 24, § 20). O momento desse eclipse e matrimônio místico é a morte na cruz. Assim Cristo foi ferido na cruz pelo amor à

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que elevou a Coniunctio ao estado de núpcias do esposo (Cristo) e da esposa (Igreja). Na

alquimia, o Mercúrio no papel de noiva-mãe “se identifica com Luna e chega, por meio da

simbólica eclesiática de Luna-Maria-Ecclesia, a ser equiparado à Virgem” (Idem, 1997, p. 97,

§ 118), a qual, no papel de vaso alquímico (lua), receberá a alma-espírito, para dar a luz ao

Mercúrio Filosofal. Assim, na tradição alquímica, há uma apoteose da Virgem-mãe sob a

forma de elevação de Maria, da “Assumptio Beatae Mariae Virginis”2. Na figura de Pandora,

a mãe virginal como instrumento de novo nascimento, é identica à árvore e, representada sob

a forma de uma virgem nua e coroada. Jung acrescenta3 :

... Os antigos filósofos da natureza representavam a Trindade –enquanto imaginata in natura (imaginada através da natureza) – como os três asomata , spiritus ou volatilia , ou seja, água, ar e fogo. A quarta parte integrante era o somaton, a terra ou o corpo. Eles simbolizavam esta última por meio da Virgem. Desta maneira, acrescentaram o elemento feminino à sua Trindade física, criando assim, a quaternidade ou o círculo quadrado, cujo o símbolo era o Rebis hermafrodita, o filius sapientiae ( o filho da sabedoria) (Idem, 1999 [B], p. 68, §107).

A veneração de Sophia como a noiva mística dos filósofos ou “senhora do mundo

interior” cruza-se muitas vezes com a mãe da criança divina, isto é, do filius sapientiae [filho

da sabedoria] da alquimia medieval, porque se trata evidentemente de uma mulher celeste,

isto é, de uma deusa e companheira de um Deus. Sophia corresponde a esta definição, como

também Maria Glorificada4. Assim, Mercúrio é chamado “a nossa amada virgem”, porque,

igreja. Sobre este aspecto acrescenta Jung: “A sponsa é a lua nova escura – de acordo com a concepção cristã a Igreja no tempo do amp lexo matrimonial – e esse amplexo é simultaneamente o ferimento do sponsus Sol-Christus” (Ibidem, p. 28, §25). Além disso, H. Rahner em sua pesquisa Mysterium Lunae, segundo Jung, “fala de modo apropriado das ‘trevas místicas da união dela (Lunae, i. E.. Ecclesiae) com Cristo’ no tempo da lua nova, que significa a ‘Igreja moribunda’” RAHNER. H. Mysterium Lunae. I.c. p. 314.Apud: JUNG, C.G. Mysterium Coniunctionis p. 24, §20, nota 138. 2 Jung acrescenta: “Depois de o magistério eclesiástico ter hesitado por longo tempo, e de já haver passado quase um século da declaração da Conceptio Immaculata como verdade revelada, foi somente então em 1950 que o papa achou ser oportuno declarar a Assumptio como verdade revelada, ao ver-se como que impelido por uma corrente popular, que se tornava cada vez mais intensa. Tudo parece confirmar que essa declaração dogmática foi motivada principalmente por uma necessidade religiosa das massas cristãs. Por trás disso se encontra o numem arquetípico da divindade feminina, que se fez notar pela primeira vez como exigência no concílio de Éfeso em 431, ao reclamar para ela o direito ao título de Theotokos (mãe de Deus) em oposição ao racionalismo nestoriano se simples Anthropotokos (mãe do homem)” [sem grifo no original] (JUNG, 1997, p.179-180, § 231). 3 Sobre este texto alquímico, Jung acrescenta: “A Pandora é uma das mais antigas, senão a primeira apresentação sinótica da alquimia em linguagem alemã. Sua primeira edição foi publicada em 1588 por Henricpetri, na Basiléia. Atribui-se sua autoria ao doutor em Medicina HIERONYMUS REUSNER, tal como o prólogo sugere” (JUNG, 2003, p. 146, § 180, nota 129). Cf. a figura em ROOB, Alexander. Alquimia e Misticismo . Trad. Portuguesa de Teresa Curvelo. Lisboa: Ed. Taschen, 1997, 503. Jung acrescenta: “... A figura de Pandora indica o grande arcano que os alquimistas sentiam de maneira pouco clara estar implicado na Assumptio” (JUNG, 1997, p. 180, §232). 4 O culto à “senhora do mundo interior” na alquimia também intercepta muitas vezes o culto da água mercurial divina. No Aurora consurgens, o Espírito Santo é comparado com a água mercurial que transforma tudo em celestial, e tem um efeito purificador, vivificador e fertilizante. A água de extraordinária natureza, que é água e espírito, como foi visto anteriormente, mata e revifica. Neste sentido, “uma vez que a água procurada e

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como Maria, concebe a “solução do céu” e depois a gera como lapis philosophorum. Desta

maneira a tradição alquímica, mediante as representações da coroação de Maria prepara o

caminho para a quaternidade acrescentando o elemento feminino da terra, do corpo e da

matéria à sua Trindade física. Sobre possível argumento, de que Cristo foi elevado aos céus

em corpo e alma, na perspectiva de Jung, aqui existe algo bastante diferente, pois “Cristo é

Deus, o que não se pode dizer de Maria. No caso desta, trata-se- ia, de um corpo muito mais

material, isto é, de uma realidade ligada ao espaço e ao tempo” (Idem, 1999 [A], p. 59, § 251).

Entretanto, analisando os textos alquímicos, nota-se que Mercurio como Cristo satisfazia esta

Trindade alquímica, pelo menos em parte, pois Cristo, participa de duas naturezas, isto é, da

divina e da humana, ou seja, é constituído de duas partes, a celeste e a terrena5. De modo

semelhante fala o anônimo da Ars chemica:

... É certo que a terra não poderia subir, se o céu antes não tivesse descido; da terra se diz que ela será elevada ao céu quando, dissolvida em seu próprio espírito, ela se unificar a com ele. Com a seguimte parábola quero satisfazer-te: O Filho de Deus desceu (!) ao seio da Virgem e nele tornou-se carne, e nasceu como ser humano; ele que, para a nossa salvação, nos mostrou o caminho, sofreu e morreu por nós e voltou para o céu após a ressureição. Nele, a terra, isto é, a humanidade, foi elevada e transferida sobre todas as esferas do mundo, para o céu espiritual da Santíssima Trindade.6

Como foi possível constatar nesta dissertação, na alquimia se fala primeiro em subida

e somente então em descida. Como nas sentenças da Tábua da Esmeralda de Hermes

Trismegisto: “Ele sobe da terra ao céu e de novo baixará à terra e recebe a força das coisas

superiores e das coisas inferiores. Terás por esse meio a glória do mundo”7. Quanto à isso, é

preciso atender-se especialmente que o Opus, acrescenta Jung, “consta em geral de uma

subida que é seguida de uma descida, ao passo que o modelo provável cristão-gnóstico

primeiro apresenta uma descida e depois de uma subida” (Idem, 1997, p. 210, § 282). Como é

de conhecimento para os estudiosos da alquimia na visão junguiana, sabe-se que Jung

considera a alquimia “como que uma corrente subterrânea em relação ao cristianismo que

necessária representa um ciclo de nascimento e morte, todo o processo, consistindo em morte e renascimento, significa a água da vida” (JUNG, 2003, p. 104, § 135). 5 Em Orthelius, lê -se acerca deste mediador: “pois... assim como.. o Bem sobrenatural e eterno, nosso mediador e salvador, Jesus Cristo, que nos liberta da morte eterna, do diabo e de todo o mal, participa de duas naturezas, isto é da divina e da humana, assim também este nosso Salvador terreno é constituído de duas partes, a celeste e a terrena, mediante as quais ele nos restitui a saude e nos livra das enfermidades celestes e terrenas, espirituais e corporias, visíveis e invisíveis” Theatrum Chemicum, 1661, VI, p.431. In: JUNG, C. G. Psicologia e religião. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 1999, p. 96, § 150. 6 Liber de arte chimica incerti authoris. In: Art. Aurif.I, p. 612s. Apud: JUNG, C. G. Estudos Alquímicos. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 2003, p. 105, §137, nota 209. 7 TRISMEGISTO, Hermes et al. Alquimia e ocultismo , Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991.p. 23.

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reina na superfície” (Idem, 1991 [A], p. 34, §26.). No entanto, se em um primeiro olhar existe

a máxima tentação de aludir ao Mercúrio Filosófico, apenas um reflexo do salvador que é

Cristo, esta adução não se confirma em um segundo olhar. Isto ressalta o fato de o

inconsciente não atuar simplesmente em oposição à consciência, mas em compensação à ela.

Sendo assim, completa Jung, “não é uma imagem complementar de filha que o tipo do filho

do inconsciente chama do inconsciente ctônico, mas um outro filho” (Ibidem, p. 35, § 26).

Neste sentido, o filho dos filósofos, o Mercúrio Filosófico, na qualidade de hermafrodita,

apresenta os traços da contrapartida ctônica revelando que “o segredo alquímico é um

equivalente inferior dos mistérios superiores; é um ‘sacramentum’ não do espírito paterno,

mas da matéria materna” (Idem, 1999[C], p. 178, § 533).

Entretanto, a apoteose da Virgem-mãe sob a forma de elevação de Maria como

mostram as representações alquímicas, sugere que “a componente feminina exige como a

masculina, uma representação de caráter pessoal” (JUNG, 2001, p. 107, § 753) e assim,

provoca um aumento da Trindade física, mediante um quarto elemento de natureza feminina,

que coincide com a terra ou o corpo. Sem querer entrar no mérito atual das consequências que

este arquétipo (da divindade feminina) traz hoje em dia, que é algo da última moda e, que está

na linha de frente das idéias progressistas de nosso tempo, como por exemplo, as discussões

em torno do best seller O código da Vinci e o tema da entronização da mulher e do feminino;

a questão é que o fato deste tema ter encontrado tanto crédito, de uma parte prova, a

credibilidade fácil e generalizada, bem como a ausência de crítica do público e, de outra parte,

revela a existência da profunda necessidade que haja uma instância espiritual colocada acima

do eu. Porque supervalorizamos o aspecto físico falta à nossa razão hoje em dia a orientação

espiritual. Tal instância, como ja foi discutido anteriormente, impossível de ser apreeendida

pelo intelecto, não surge jamais através de uma ponderação racional, por ficar reduzida ao

âmbito da consciência, mas apenas pela graça divina, isto é, a natureza8. Neste relação,

destaca-se a importância da psique que, por ser o ponto de encontro das representações

possíveis, nos permite reunir subjetivamente o que Jung chamou de “etiquetagens” de

procedência material ou espiritual e, devido à substância metafísica própria da psique, como

tal, toma parte da mesma trancendentalidade dos reinos da matéria e do espírito. Não há 8 Entretanto Jung acrescenta: “... A interpretação racionalista da autoridade interior como sendo “forças naturais” ou como instintos satisfaz a inteligência moderna, mas tem o grande inconveniente de que a decisão, aparentemente vitoriosa do instinto, ofenda a auto-consciência; por esta razão facilmente nos persuadimos de que a coisa só foi resolvida por uma decisão racional da vontade. O homem civilizado tem tanto medo do “crimen laesae maiestatis humanae” [crime de lesa majestade humana] que, sempre que possível, retoca posteriormente os fatos da maneira descrita, para dissimular a sensação de uma derrota moral sofrida. Seu orgulho consiste, evidentemente, em acreditar na própria autonomia e na onipotência de seu querer, e, em desprezar aqueles que são logrados pela simples natureza” (JUNG, 1988, p. 24, § 48).

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duvida que na investigação simbólica do Opus, a alquimia aponta a solução para um quarto

elemento de natureza feminina-terrestre e, atrás dela, toda a psique arcaica e todo o mundo

arquetípico entram em contato direto com a consciência, impregnando-a de influências

arcaicas; portanto esta instância procede de uma tradição que se estende muito mais

profundamente tanto do ponto de vista histórico como psicológico:

Nos sonhos modernos, a quaternidade é uma criação do inconsciente, muitas vezes é personificado pela anima, uma figura feminina. Ao que parece o simbolo da quaternidade provém dela. Assim, pois, ela seria a matriz, a terra-mãe da quaternidade, uma Theotokos ou Mater Dei (Mãe de Deus), do mesmo modo pelo qual a terra foi considerada como a mãe de Deus (…) (JUNG, 1999 [B], p. 68, §106).

Os simbolos arquetípicos da totalidade, como o terceiro mediador, provém tanto da

consciência como do inconsciente, sendo capaz de unir ambas as partes. A conscientização

deste processo arrasta consigo o “quarto”, devido à contaminação com a função inferior,

constituindo por conseguinte uma certa mediação com a obscuridade do inconsciente.

Segundo Jung, “a interpretação herética do Espírito Santo como Sophia corresponde a esta

realidade psicológica (...). Sem dúvida foi esta associação que levou ao Espírito Santo a

suspeita de feminilidade” (Idem, 1991[A], p. 164, § 192). Sendo assim, o Espírito Santo, o

mediador do nascimento na carne, que possibilita a manifestação visível da divindade

luminosa na escuridão da matéria, também foi associado ao femininino. Segundo Jung:

A qualidade de mãe era originariamente um atributo do Espírito Santo, que um grupo de cristãos dos primeiros tempos chamou de “Sophia- Sapientia”. Não era possível extirpar de todo esta propriedade feminino, e ela perdura ligada, pelo menos ao símbolo do Espírito Santo: a columba spiritus sacti (a pomba do Espírito Santo) (Idem, 1999 [B], p. 78, §126).

Como se sabe, qualquer conteúdo que transcenda a consciência, segundo o qual não há

uma possibilidade de apercepção gera um símbolo paradoxal. O inconsciente luta em

significar um conteúdo inconsciente para o qual nao há entendimento no plano da

consciência. Sendo assim, “são justamente as antinomias impressionantes da simbólica do

Espírito que provam existir uma complexio oppositorum (uma união dos contrários) no

Espírito Santo” (Idem, 1999 [A], p. 74, § 277). Com a intervenção do Espírito na vida dos

homens, estes são inseridos no processo divino e, consequentemente, também no princípio da

individuação. Entretanto, sob a ótica do mediador Mercurius, nota-se que, como a Tríndade,

“também a tríade alquímica é uma quaternidade disfarçada; provém isso da duplicidade da

figura central: Mercúrius de uma parte se divide em metade masculina e em outra feminina”

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(Idem, 1997, p.178, § 229). Sobre isso, Jung expõe o seguinte esquema em Mysterium

Coniunctionis9 :

Mercurius Lapis - masculino Espírito Santo (Pomba) Sulphur Sal Cristo Deus Pai Mercurius Serpente -feminino Maria

Apesar da duplicidade evidente de Mercúrio, o filho como mediador reúne o um ao

três; e por isso, é uno e trino, (corpo, espírito e alma), isto é, sulphur (enxofre), sal e

Mercúrio; e, muitas vezes é representado como uma serpente tricéfala, aludindo o seu

compromisso com o mundo ctônico. Trata-se de uma quaternidade, na qual o quarto

elemento, é ao mesmo tempo a unidade de todos. De qualquer modo, acrescenta Jung,

“Mercurius se comporta não apenas como a contraparte de Cristo, (na medida em que é

‘filho’), mas também como contraparte da Trindade de um modo geral, na medida em que é

interpretado como triunidade ctônica” (Idem, 2003, p. 218, § 271). De qualquer modo, o

mercúrio sempre foi designado como “quadratus” (quadrado), a substância arcana que

promove a transformação da Lapis e, pela qual a meta é realizada:

Embora Mercurius seja considerado trinus et uno (trino e uno) em muitos textos, isto empede que ele tenha uma participação intensa na quaternidade da lapis, com a qual se identifica essencialmente. Ele exemplifica pois o estranho dilema reprsentado pelo problema do três e do quatro. Trata-se do conhecido e enigmático Axioma de Maria Profetisa (Ibidem, p. 219,§ 272).

É importante ressaltar que estas são representações coletivas que desde os primórdios

permitiram a ligação entre o consciente e o inconsciente. A evolução dessas grandezas

simbólicas corresponde a um processo de diferenciação da consciência humana, que como

fatores autônomos (árquétipos) são resultado da intervenção de um dinamismo de caráter

transcedental. Os alquimistas sabiam que a Arte era, em parte natural e, em parte divina.

Neste ponto estava toda a dificuldade. Os antigos também sabiam que uma virgem conceberia

9 Jung acrescenta sobre a duplicidade da figura central:'“... e de outra parte ele é também o dragão venenoso e o lapis celeste. Está perfeitamente claro que aqui o dragão é análogo ao demônio e o lapis a Cristo, de acordo com a concepção cristã de que o demônio é o adversário de Cristo. Acresce que não é apenas o dragão que se identifica com o demônio, mas também o aspecto negativo do sulphur, ou o sulphur comburens, como Glauber diz do sulphur: ‘O verdadeiro e preto demônio do inferno, que não pode ser vencido por nenhum outro elemento, a não ser pelo sal’. Em correspondência com isso o sal é uma “substância ‘luminosa’ e semelhante ao lapis (...)” (Idem, 1997, p. 178, §229). Confira o esquema proposto em JUNG, C. G. Mysterium Coniunctionis. Rio de Janeiro: Ed. Vozes,1997, p. 179, § 230-231.

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e daria luz a à si própria. Nisso está incluído toda a compreensão do Opus, cujo o símbolo da

famosa serpente ouroboros desenhada no manuscrito alquímico de Cleópatra do 1° século

D.C. encontrou sua maior expressão. O segredo reside, Jung conclui, “no fato de que só tem

vida aquilo que por sua vez pode suprimir-se a si mesmo” (Idem, 1991 [A], p. 82, § 93).

V. 1. – Paul Tillich e Carl Jung

Essa discussão em torno do símbolo da quaternidade alquímica traz uma contribuição

para o estudo do religioso no campo simbólico. Entre os estudiosos desta área destaca-se Paul

Tillich. Professor alemão de filosofia e teologia, Tillich juntamente com Jung são os dois dos

maiores apologétas da religião do século vinte. Os dois perceberam que a religião

rapidamente se desacreditava nas culturas deste século. Para Tillich, no ocidente, a aliança

peculiar entre as forças científicas, filosóficas e religiosas era responsável pelo sentido do

religioso ter sido, aos poucos, abandonado até chegar à quase extinção na metade do século,

culminando em um estado da humanidade, reduzida ao racionalismo estéril. Tillich buscava

salvaguardar as profundesas humanas presentes na experiência religiosa; para ele a

experiência universal originária de todas as religiões particulares fundamenta-se no próprio

espírito humano. Sendo assim, a teologia que admite a dinâmica vital no indivíduo como

necessário elemento em sua expressão pessoal devia estar aberta à dimensão de profundidade,

do ser e do sentido, que é, em categorias teológicas, o Espírito. A recuperação dessa base, o

único verdadeiro alívio da ansiedade de existência, foi chamada por Tillich de

“essencialização” e atribuída a esse processo, a questão da salvação, intimamente associada

ao trabalho do Espírito Santo.

Da mesma maneira e pelas mesmas razões, a análise que Jung faz da situação religiosa

contemporânea tem muito em comum com a de Tillich. Para Jung, a transformação histórico-

universal da consciência para o lado “masculino” é, em primeiro lugar compensada pelo

inconsciente ctônico-feminino. Neste sentido, o processo, em si positivo, da emancipação do

ego e da consciência diante da supremacia do inconsciente, tornou-se negativo no

desenvolvimento ocidental, porque há um poderoso outro lado que resiste ao processo. Assim

como Tillich, Jung achava que as discussões teológicas não tinham a experiência imediata do

divino e, sua intenção, consistia em religar a consciência deteriorada da cultura

contemporânea espiritual, teológica e filosóficamente, com o poder e a presença do divino em

suas profundesas. Para Jung, a insensibilidade ao poder do inconsciente privava o ser humano

do acesso ao poder numinoso; esta dimensão de profundidade, do ser e do sentido, que é em

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categorias teológicas, o Espírito significava para ele, a articulação da consciência do ego à

totalidade superior, à qual não se pode chamar de “Eu”, mas é visualizada melhor como uma

entidade mais ampla.

Sobre este aspecto, ao considerar a contribuição de Paul Tillich e Carl Jung ao diálogo

religioso atual entre as culturas, John Dourley, sacerdote católico, doutor em Filosofia e

diplomado em Psicologia Analítica pelo Instituto C. G. Jung de Zurique, em seu artigo Tillich,

Jung e a Situação Religiosa Atual, assegura que os dois “diagnosticaram os males de sua

época situando-os nas rupturas do humano resultantes de sua redução à consciência separada

de suas bases bem como das energias que possibilitariam o seu renascimento e renovação”10.

Além deste aspecto, Tillich, como Jung, valorizou altamente o símbolo. Todo símbolo

religioso, afirma Tillich, em seu trabalho Teologia Sistemática, “se nega a si mesmo em seu

sentido literal, mas afirma-se a si mesmo em seu sentido auto-transcendente” (TILLICH,

2000, p. 252). Neste sentido, assim como Jung rebela-se contra as teologias contemporâneas

incapazes de entender o simbólico como a expressão fundamental da experiência religiosa,

Tillich considera que a humanidade contemporânea é levada a escolher entre duas formas

incompletas: De um lado, a exigência teológica da fé literal anula a mente dos que percebem a

natureza simbólico-mítica das expressoes fundamentais da fé; por outro lado, separada de sua

unidade essencial com Deus, a razão existencial só pode ler sua profundidade por meio da

linguagem do símbolo e do mito. Desta maneira, conclui Dourley, “o crente religioso e o

devoto da razão são igualmente cortados da plena humanidade e deixam de participar na

experiência do divino inatamente presente em suas profundezas”11.

Sobre este aspecto e relevância do simbólico no fenômeno religioso, Jung em sua obra

Interpretação Psicológica do dogma da Trindade aborda justamente o mais sagrado dos

símbolos cristãos, isto é, o dogma da Trindade, como objeto de investigação psicológica por

estar convencido do seu valor psicológico. Para Jung, o símbolo central do Cristianismo, a

Trindade, significa a essência de um processo que se desenvolve em três etapas que podem

ser consideradas, por um lado como um processo secular de tomada de consciência e por

outro, como “fases de um amadurecimento inconsciente no interior do indivíduo” (JUNG,

1999 [A], p. 82, §287). Segundo Jung, a realidade psicológica do dogma da Trindade consta

dos seguintes termos: Pai, Filho e Espírito Santo. Analogamente à inconsciência original, ou

10 DOURLEY, John. Tillich, Jung e a Situação Religiosa Atual. Trad. de Jaci Maraschin. (s.d.) Acesso em: http://www.metodista.br/correlatio/num_01/a_dourle.htm. 11 Loc. cit.

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ao estágio urobórico inicial de Neumann, o Pai determina um estágio cultural incapaz de

reflexão12 :

Em geral, o Pai representa o estagio primitivo da consciência, o estágio ainda infantil, quando se depende ainda de uma forma de vida preexistente, de um habito que tem o carater de lei. É um estágio que se aceita passivamente, um estado de não-reflexão, puro conhecimento de um fato onirico, sem que haja um julgamento intelectual ou moral. Isto se aplica tanto no plano individual como no coletivo (Ibidem, p. 69, § 270).

A "transformação do Pai no Filho", da unidade na dualidade, do estado de irreflexão

no da crítica, se verifica no momento em que começou a crítica do mundo pelos gregos, na

época da gnose em seu sentido mais amplo e da qual surgiu o Cristianismo. Segundo Jung, a

clássica pergunta sobre a origem do mal ainda não existia na era do Pai. Só com o

Cristianismo é que se colocou o problema relativo ao princípio das disposições morais. Junto

com a discriminação entre o ego e o outro, natureza e espirito, vem a conscienc ia moral dos

opostos bem e mal. No estágio do filho, começa o processo da reflexão e a quebra da unidade

original13 :

Se Deus se revela e se converte num ser determinado, isto é , num determinado Homem, então os seus contrários deveriam dissociar-se: de um lado o Bem e do outro o Mal. Desfizeram-se assim as oposições latentes na divindade quando o Filho foi gerado, para manifestarem-se depois na oposição Cristo-Diabo. (...) O mundo do filho é o mundo da cisão moral, sem a qual a consciência humana dificilmente teria podido conseguir aquele progresso na diferenciação espiritual a que realmente chegou (Ibidem, p. 63, § 259).

Jung considera que no Cristianismo, o simbolo paradoxal, o terceiro mediador que

completa a tríade e termina com o estado de dualidade e crítica do estágio do Filho, não é uma

figura humana, nem caráter definitivo, mas espírito, isto é o Espírito Santo14. A vida, segundo

12 Análogo ao primeiro estágio, isto é, ao ego identificado ao Si-mesmo, na alquimia o caos da prima materia, reflete um entrelaçamento difícil de desfazer entre a alma e o corpo, por ocasião da nigredo. 13 De modo análogo, o segundo estágio, ou seja, o ego alienado do Si-mesmo, corresponderia ao estado de superação em relação os afluxos do corpo e da matéria e, em uma discussão psicologica profunda, dos impulsos animais do inconsciente por ocasião da albedo, alcançando uma Unio mentalis. Neste estágio, o indivíduo, havendo saído da unidade inconsciente, indiferenciada, passará de lá para o mundo da dualidade. 14 Análogo ao Mercúrio filosofal e à Quintessência de Dorneus, que, respectivamente, restaura a unidade da substancia ou promove o Unus Mundus a partir da união da unio mentalis com o corpo; o terceiro elemento comum entre o Pai e o Filho, o Espírito Santo, enquanto representação coletiva, originado por conteudos arquetípicos, significa uma eliminação da dualidade no estágio do Filho e um retorno ao Pai. Sobre possível argumento do ponto de vista teológico, de que o espírito de Deus já estava presente parirando sobre as águas na gênese, e portanto não corresponderia ao papel de terceiro mediador, é necessário afirmar que, do ponto de vista da alquimia este fato retrata o estado caótico da matéria, como se observa na citação de Eirenaeus Philaletha em seu tratado A entrada aberta ao palácio fechado do rei, no quinto capítulo intitulado “ O chaos dos sábios”:

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Jung, “sempre extrai da tensão da dualidade um terceiro elemento desproporcional e

paradoxal. Por isso na qualidade de "tertium" o Espírito Santo é necessariamente

desproporcional e paradoxal” (Ibidem, p. 47, § 236). Esse terceiro estágio significa a

articulação da consciência do ego à uma totalidade superior e, até mesmo uma subordinação à

este15. Aqui costuma falhar o intelecto com sua lógica, pois em uma oposição lógica não

existe um terceiro termo. O que traz a solução somente pode ser de natureza paradoxal16:

Ele é psicologicamente heterogêneo, por não derivar logicamente da relação Pai-Filho, mas pelo fato de só poder ser entendido, como representaçõa, à base de um processo de reflexão humana. Na verdade, trata-se de um conceito “abstrato”, pois uma espiração comum a duas figuras diversamente caracterizadas e não permutáveis dificilmente poderia ser considerada comum fato evidente (Ibidem, p. 48- 49,§ 237).

Essa discussão em torno do mais sagrado dos símbolos cristãos, isto é, o dogma da

Trindade, como objeto de investigação psicológica também remete à Paul Tillich. Tillich se

aprofundou no significado dos símbolos cristãos que se tornaram cada vez mais problemáticos

dentro do contexto cultural deste tempo. Segundo Tillich, as oposições da humanidade

solucionam-se por meio da participação na Trindade. Há um paralelo para o pensamento

junguiano na fórmula apresentada por Tillich para a recuperação do eu essencial primordial

expresso no dinamismo da vida trinitária. Sobre este aspecto considera Dourley:

A humanidade essencial, pessoal e universal, fundamenta-se na Trindade, especificamente no Logos que é a base do eu essencial individual tanto no tempo como na eternidade. À medida que o indivíduo sai do eu essencial para a existência no momento da criação, deixa também a sua realidade essencial que estava na Trindade e passa a participar nas ambigüidades e fragmentações da vida existencial. (...). O ser humano existencial, em virtude da experiência ou memória do eu essencial, intui imediatamente a queda ou separação do ser essencial e percebe a própria alienação. Essa alienação em face do eu essencial baseia -se no eros ou na pulsão em busca da recuperação plena. O objeto universal da experiência religiosa humana universal bem como o objeto da preocupação suprema universal (que também pode ser chamada de

“Que o filho dos filósofos, unânimes em concluir que esta obra deve ser comparada à criação do Universo. Pois no princípio, Deus criou o céu e a terra, e a terra era vazia e deserta, e as trevas cobriam o abismo, e o espírito de Deus era levado sobre as superfícies das águas” PHILALETHA, Eirenaeus. A entrada aberta ao palácio fechado do rei. (s.d.). Acesso em: http://www.templodetoth.hpg.ig.com.br/alquimia.htm. 15 Jung, na carta dirigida à Victor White, acrescenta sobre esta fase do conflito: “ ... quanto mais estiver envolvida nesta guerra e nestas tentativas de paz, ajudada pela anima, tanto mais começará a olhar pra frente, para além do éon cristão, para a unidade do Espírito Santo. Ele é o estado pneumático que o criador alcança através da fase da encarnação . Ele é a experiência de todo indivíduo que sofreu a completa abolição de seu ego através da oposição absoluta (...)” (JUNG, 2002 [B], p. 305). 16 Dourley analisa a interpretação psicológica da Trindade, do ponto de vista Junguiano e, considera: “Em seu ensaio sobre a Trindade Jung elogia o símbolo e a sabedoria de sua história conciliar ao descrever o movimento básico da psique entre o inconsciente, que é o mundo do Pai, o consciente, o do Filho, Logos ou razão discernente, e o Espírito, poder do eu que une o Pai e o Filho, o inconsciente com o consciente. Sem esses três elementos a psique ficaria patologizada com o ego imerso no inconsciente ou separado dele” Loc. cit.

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fé) é a recuperação do eu essencial do qual estamos todos alienados na existência.(...)17

Desta forma, Tillich considera que a teologia que admite a dinâmica vital no indivíduo

como necessário elemento em sua expressão pessoal deve saber que ela tem aceitado a vida

dentro da ambigüidade divina-demoníaca e isto é triunfo da Presença Espiritual18. A Presença

espiritual (uma racionalização da doutrina teológica do Espírito Santo) seria, neste sentido,

para Tillich, a fórmula para a recuperação do eu essencial primordial expresso no dinamismo

da vida trinitária. Sendo assim, a Presença Espiritual, segundo Tillich, “é, então, o primeiro

símbolo que expressa a vida-sem-ambigüidade” (TILLICH, 2000, p. 467). Sobre este aspecto,

conclui Dourley:

... A vida, para Tillich, significa a experiência de opostos em tensão que se dirigem para a resolução. Em páginas inspiradas em Jacob Bohème, Tillich demonstra a intuição natural humana de Deus combinada com o poder escuro e tremendo do primeiro momento da vida divina com a luz do segundo para se resolver no terceiro, que é o Espírito. Segundo Tillich, o Ser é vivo, e o movimento da consciência existencial na direção de seu fundamento para a recuperação do eu essencial é, ao mesmo tempo, o movimento, embora fragmentado, na direção da resolução dos principais conflitos da vida que Deus já providenciou desde a eternidade. Esse movimento dirige-se sempre para o fundamento de cada pessoa onde o poder da Trindade, aí presente, age na vida existencial para a sua integração.19

Neste ponto, Jung e Tillich, assim, compartilham versões semelhantes da experiência

ligadas à integração dos opostos no ser individual. A primeira dessas afinidades é o uso que

fazem do antigo princípio da unio oppositorum. Sobre este aspecto, Dourley considera que os

dois pensadores entendem o princípio da união dos opostos em seu sentido mais profundo e

abrangente que é a da união da consciência com sua origem ou matriz20. Para Tillich, segundo

17 Loc. cit. 18 Tillich acrescenta: “... Aquele que tenta evitar o aspecto demoníaco do sagrado perde igualmente o aspecto divino e lucra apenas uma segurança enganadora entre eles. A imagem da perfeição é o homem que, no campo de batalha entre o divino e o demoníaco, vence o demo níaco, embora fragmentária e prolepticamente (isto é, em antecipação). Essa é a experiênciaem que a imagem da perfeição sob o impacto da Presença Espiritual transcende o ideal humanista de perfeição” (TILLICH, 2000, p. 568). 19 Loc. cit. 20 Além desta união mais geral de opostos, Dourley acrescenta: “...os dois pensadores entendem a reunificação da consciência com sua fonte para unir, mesmo se de forma ambígua, as divisões ou fragmentos da própria consciência existencial. Tillich elabora essa unidade da fragmentação existencial por meu de seu entendimento trinitário de Deus. A Trindade para ele representa a unidade suprema dos opostos em cuja vida as dimensões de poder, profundidade ou abismo da vida se unem com sua expressão no Logos por meio do Espírito. À medida que essa vida existencial participa em seu fundamento trinitário, ela frui, embora parcialmente, a unidade de opostos que a vida divina possui desde a eternidade.(...). Ao reunir tais opostos por meio do Espírito que induz maior participação na Trindade, Tillich entende que a teleologia do Espírito divino leva o espírito humano a se unir nos níveis da moral, da cultura e da religião” Loc. cit.

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o autor, “tal união se dá entre a humanidade existencial e sua realidade essencial no seu

fundamento divino. Para Jung, é a união entre o mundo consciente do ego e sua fonte nas

profundezas do psiquismo”21.

Voltando ao símbolo central do Cristianismo, a Trindade, para Jung, significa a

essência de um processo que se desenvolve em três etapas que podem ser consideradas como

um processo secular de tomada de consciência. No conceito cristão da Trindade encontramos

a interpenetração mediante o qual o Pai aparece no filho, o Filho no Pai, o Espírito Santo no

Pai e no Filho, ou estes dois naquele, em sua qualidade de Paráclito, pois nesta perspectiva,

“as Três Pessoas divinas são personificações das três fases de um acontecimento psíquico

regular e instintivo” (JUNG,1999 [A], p. 82, § 287 ). O motivo do símbolismo trinitário na

trindade cristã é apenas um exemplo disso. Jung também descreve trindades babilônicas e

egípcias. Sobre este aspecto, Edinger também assegura uma tendência na humanidade no

sentido de conceber a divindade como tendo natureza trinitária e, ao analisar estas imagens

trinitárias, acrescenta:

... Essas imagens trinitárias podem referir-se a divindades funcionais ou de processo, em oposição a divindades estruturais. Em outras palavras, elas seriam personificações do dinamismo psíquico em todas as suas fases. Desse ponto de vista, uma trindade poderia exprimir a totalidade, tal como o faz a quaternidade, mas a representação trinitária teria uma natureza completamente diversa da representação quaternária. No primeiro caso, a totalidade abranderia as várias fases dinâmicas de um processo de desenvolvimento; no segundo, seria uma tota lidade de elementos estruturais. Três simbolizaria um processo; quatro, um alvo (EDINGER, 2000, p. 249-250).

Tillich também analisa os motivos do símbolismo trinitário e, principalmente com

relação ao número três implícito na palavra trindade, o autor observa que “é o conflito

possível entre essas figuras e a ultimacidade daquele que é último que motiva o simbolismo

trinitário em muitas religiões (...)” (TILLICH, 2000, p. 601). Sendo assim, Tillich se

preocupou com a razão de se conservar esse número e, segundo o autor, “essas questões tem

um fundamento histórico bem como sistemático” (Ibidem, p. 608). A diferença neste

pensamento para a concepção junguiana é que, para este segundo, trata-se de um padrão

arquetípico. Nesta concepção, Tillich não estaria equivocado, pois se associarmos os

arquétipos ao contingente, este último assume o aspecto específico de uma modalidade que

tem o significado funcional de um fator constitutivo de mundo. Novamente, nesta concepção,

Tillich estaria correto ao afirmar que “ os simbolismos trinitários são uma descoberta que

tinha que ser feita, formulada e defendida” (Ibidem, p. 601). Sendo assim, a substância de 21 Loc. cit.

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todo pensamento trinitário, assegura Tillich, “está dada em experiências revelatórias, e, a

forma tem a mesma racionalidade que toda a teologia, como deve ter toda a atuação do

Logos” (Ibidem, p. 603). O fato de Tillich ter associado o pensamento trinitário à experiências

revelatórias, na concepção junguiana, se atribui este caráter revelador à autonomia das

projeções arquetípicas, pois são fenômenos espontâneos que escapam ao nosso arbítrio e, por

isso podemos atribuir- lhes uma certa autonomia. Portanto esta instância procede de uma

tradição que se estende muito mais profundamente tanto do ponto de vista histórico como

psicológico e, embora seja óbvio que a presença desse conceito seja fruto de uma reflexão

humana, tal reflexão não constitui necessariamente um ato consciente22. Sobre este aspecto,

acrescenta Jung:

... Ela pode muito bem provir de uma “revelação”, isto é, de uma reflexão inconsciente, fruto de uma atividade autônoma do inconsciente, ou melhor, do Si-mesmo, cujos símbolos, como vimos, não podem ser separados das imagens de Deus. É por isso que a interpretação religiosa insistirá na revelação divina desta hipótese, contra a qual a psicologia nada pode objetar, embora se atendo firmemente à sua natureza inteligível; pois afinal de contas a Trindade é o resultado de um paulatino e assíduo trabalho do espírito, ainda que predeterminado pelo arquétipo intemporal (JUNG, 1999 [A], p. 48, §237).

Neste sentido, Jung atribui à Trindade a forma mais completa do respectivo arquétipo,

ou seja, a manifestação gradativa de um arquétipo, no decurso do tempo, “que organizou as

representações antropomórficas de Pai, Filho, Vida, Pessoas distintas, numa figura arquetípica

numinosa, ou seja, a “Santíssima Trindade” (Ibidem, p. 39, § 224). Em outras palavras, a

tríade é o desdobramento do uno, e, segundo Jung, “sua transformação num conjunto

cognoscível” (Ibidem, p. 8, § 180). Embora a presença desse conceito seja fruto de uma

reflexão humana, tal reflexão não constitui necessariamente um ato consciente, mas sim

“como um processo coletivo que se prolonga ao longo de séculos, isto é, um processo de

diferenciação da consciência que se estende por milênios” (Ibidem, p. 68, § 268). Sendo

assim, com relação ao arquétipo da trindade, este parece estar ligado à um esquema

ordenador, pois quando lidamos com “eventos temporais ou ligados ao desenvolvimento,

parece haver uma tendência arraigada de carácter arquetípico, a organizar eventos em termos

de um ritmo ternário” (EDINGER, 2000, p. 247). Neste sentido, os símbolos trinitários

22 Jung acrescenta: “Se as representações da Trindade nada mais fossem do que sutilezas da razão humana, talvez não valesse a pena mostrar todas as conexões sob uma luz psicológica. Mas sempre defendi o ponto de vista de que essas representações pertencem à categoria da revelação. (...) A revelatio, é em primeira instância, uma das descobertas da alma humana, a ‘manifestação’ em primeiro lugar de um modus psicológico que como se sabe, além disto, nada nos diz acerca do que ela poderia ser” (Idem, 1999 [B], p. 78, § 127).

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estariam ligados à associações dinâmicas e não estáticas e, implicariam em crescimento,

desenvolvimento e movimento no tempo. Nesta concepção, o que inicialmente parece apenas

um esquema ordenador, de organização e diferenciação da consciência, “se mostra como

veículo de síntese, na qual culmina o processo de individuação” (JUNG, 1999 [A], p. 78, §

281). Desta maneira a síntese se faz pelo movimento ternário, pois, o número três representa,

segundo Edinger, “a totalidade do ciclo de crescimento e de mudança dinâmica – conflito,

resolução, e mais uma vez, conflito. Logo de acordo com a fórmula trinitária, a tese três e a

antítese quatro devem ser resolvidas numa nova síntese” (EDINGER, 2000, p. 253-254). Este

processo de separação e de reconhecimento, ou de atribuição de propriedades, assegura Jung,

“é uma atividade intelectual que, embora inicialmente se desenvolva de maneira inconsciente,

passa gradativamente à consciência, à medida em que vai se realizando” (JUNG, 1999 [ A], p.

48, § 238). Sobre este aspecto, também Tillich, analisa os motivos do símbolismo trinitário e,

assegura:

...os símbolos trinitários são dialéticos; eles refletem a dialética da vida, a saber, o movimento de separação e reunião. (...) Se significa a descrição de um processo real, não é paradoxal ou irracional de nenhuma maneira, mas é uma descrição precisa de todos os processos da vida. E na doutrina trinitária é aplicado à vida divina em termos simbólicos (TILLICH, 2000, p. 602).

Entretanto, com relação ao símbolo central do Cristianismo, a Trindade, Jung constata

que, se entendermos a Trindade como um processo em três etapas, este processo deveria

prolongar-se até chegar à totalidade absoluta, isto é, no símbolo quaternário23. Isso significa

que a Trindade, agora enquanto símbolo da totalidade (não mais como um processo e um

dinamismo psíquico em todas as suas fases), é quaternária e, por isso, falta o quarto elemento,

o qual tem sido associado ao demônio: o ctônico, o institual, o feminino, que representa a

parte condenável do cosmo cristão24. Jung percebeu que a cultura perdera a alma ao perder

23 A quaternidade é, segundo Jung, “o pressuposto lógico de todo e qualquer julgamento de totalidade” (Idem, 1999 [A], p. 55, §246). Este fato parece estar ligado também ao quatérnio espaço-tempo, que segundo Jung, “é a condição e a possibilidade arquetípica do conhecimento físico em geral” (Idem, 1988, p. 241, §398). aion). Em ambos os casos, o quarto fator, “representa algo de incomensuravelmente diverso, o qual entretanto, é necessário para determiná-los, um em relação ao outro” (Idem, 1988, p. 240, §397). 24 A associação do diabo com a terra provêm do fato de que este como anjo “caiu do céu a modo de um relampago” e se tornou senhor deste mundo. A matéria é a verdadeiramente a morada do Diabo, que tem o seu inferno e o fogo de sua fornalha no interior da terra .Especialmente, Gerardus Dorneus “acha que o demônio, por ocasião da queda dos anjos, ‘in quaternariam et elementariam regionem decidet’ (foi precipitado na região da quaternidade e dos elementos)” ( DORNEUS, p. 65, § 104 In: JUNG, 1999[B]).Na alquimia, não se mencionava abertamente o princípio do mal, “mas este parecia no carácter venenoso da prima materia, assim como em outras alusões” (JUNG, 1999 [B], p. 68,§107). Além disso, a prima materia é saturnina, e “o maleficus Saturnus é a morada do diabo, ou ainda ela á a coisa mais desprezível e abjeta”(Idem, 2003, p. 171, § 209). Já a associação do demônio ao feminino provêm do número binário, que é o secreto parentesco entre o diabo e a mulher. Fato

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contato com as suas profundezas. Acreditava que a experiência religiosa aparece na

consciência a partir das profundesas da psique. Sobre este aspecto, Dourley considera que a

crítica cultural de Jung é, na verdade, contra a consciência patriarcal e seus efeitos

reducionistas. Para ele, assegura Dourley, “a recuperação do senso religioso vivo significava a

recuperação da fonte da razão, que era a Deusa, que cria e recria a consciência a partir de seus

fundamentos”25. Dourley ao analisar o ensaio de Jung sobre a Trindade, observa que o

inconsciente, que fez nascer o mito cristão, quer agora exceder-se num quarto mito:

Esse novo mito honraria o símbolo do andrógino no qual o masculino e o feminino recuperam a oposição que estava faltando, primeiramente na base intra-psíquica. Também a oposição entre o espírito e a terra seria superada. Neste contexto, Jung sentiu-se impressionado pela doutrina da Assunção que lhe pareceu simbólica não apenas da restauração da Deusa na trindade cristã mas também da divindade da terra e do corpo por meio dos quais Deus nasce na consciência humana.26

Além disso, Jung observa que, por um lado, a declaração da Assunção de Maria como

dogma aponta para a realização do hierógamos no pleroma, isto é, realiza a união no céu com

seu corpo originário e, isto ocorre, para a glória eterna. Por outro lado, o nascimento do

Salvador se dá no homem, no decurso do tempo; sendo assim, Jung conclui que a união

nupcial constitui a etapa preliminar da encarnação, isto é, do nascimento daquele Salvador

este que Dorneus descobre com grande astúcia: Dorneus observa que na tarde do segundo dia da criação, depois de haver separado as águas superiores das inferiores, Deus não disse que “era bom”, tal como nos outros dias. E isto, “precisamente porque no segundo dia Deus criou o Binárius, que é a origem do Mal”. (JUNG, 1999 [A], p. 61, § 256). Segundo Jung, Dorneus é o primeiro a mostrar a discrepância que há entre a trindade e a quaternidade, entre Deus, enquanto espírito, e a natureza empedocliana, cortando, com isso, o fio vital da projeção alquimista. Jung assegura que para este autor, a emancipação da dualidade deu origem à desorientação, à separação e às desavenças. Do binário surgiu ‘sua prole quaternária’. Como a dualidade é feminina, significa Eva, enquanto que a tríade corresponde a Adão. Por isso o diabo tentou Eva em primeiro lugar. Sendo assim, Dorneus oferece uma descrição minuciosa da operação simbólica mediante a qual o demônio criou a “serpente dupla” (dualidade) de quatro chifres (quaternidade):“Ele (o diabo), cheio de astúcia, sabia com efeito que Adão fora assinalado com a marca do um; por isso não o assediou em primeiro lugar, pois não tinha a certeza de que poderia conseguir algo. Mas sabia também que Eva tinha sido separada de seu marido, à semelhança do número binário que se separa da unidade do número três. Por isso, apoiado numa certa semelhança do número dois com o número um ... decidiu atacar a mulher. Efetivamente, todos os números pares são femininos e sua base é o número dois, correspondendo Eva a este primeiro número (par)” DORNEUS, Gerardus. De Tenebris contra Naturam et Vita Brevi; In: TheatrumChemicum, 1602, I, p. 527. Apud: JUNG, C.G. Psicologia e religião . Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 1999 [B], p. 65, §104, nota 48. Neste sentido, assim como o Diabo se caracteriza pela sua oposição e, pelo fato de querer sempre o contrário, do mesmo modo que a desobediência caracteriza o pecado original, foi principalmente pelo pecado original e pela sedução da mulher que a morte entrou no mundo. Jung acrescenta: “O inconsciente do homem também é feminino e personificado pela anima. Esta última representa sempre a ‘função inferior’ e por isso constitui não raro um caráter moral duvidoso; às vezes representa o proprio mal. Geralmente é a quarta pessoa (...). É o ventre materno, escuro e temido, e enquanto tal, de natureza ambivalente” (JUNg, 1991 [A], p. 162, § 192). 25 Loc. cit. 26 Loc. cit.

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que por sua vez, se refere ao futuro nascimento do menino divino27 que, “em virtude da

tendência divina a encarnar-se, escolherá o homem empírico para nele se realizar. Este

acontecimento metafísico é conhecido como processo de individuação” (JUNG, 2001, p. 110,

§755). Sobre este aspecto, ao comentar que a Trindade se transforma em quaternidade, com o

acréscimo de uma quarta pessoa, a saber, a Rainha, Jung assegura que a quaternidade e o

círculo, de um lado, e o ritmo ternário, de outro, se interpenetram de um modo que um se acha

contido no outro. Desta maneira, portanto a quaternidade “aparece como conditio sine qua

non do nascimento de Deus e portanto da vida interna da trindade, em geral” (JUNG, 1999

[B], p. 77, § 125). Sobre este aspecto concorda Edinger, pois o quatro, ou a totalidade

psíquica, deve ser realizado, segundo o autor pela sua “submissão ao processo ternário de

realização no tempo. Devemos nos submeter à dolorosa dialética do processo de

desenvolvimento. A quaternidade deve ser complementada pela trindade" (EDINGER, 2000,

p. 256). Neste sentido, como a individuação, na realidade, jamais está verdadeiramente

completa, “cada estágio temporário de completude ou totalidade deve ser submetido, uma vez

mais, à dialética da trindade, para que a vida continue” (Ibidem, p. 259). Sobre este aspecto,

Tillich, analisa o motivo do símbolismo trinitário e, assegura, que o simbolismo trinitário é

dialético pela persistência do número “três” nas fórmulas devocionais e, no pensamento

teológico:

Esses fatos mostram que não é o número “três” que é decisivo no pensamento trinitário mas a unidade numa multiplicidade de automanifestações divinas. Se perguntarmos porque, apesar dessa abertura a números diferentes, prevaleceu o número “três”, parece muito provável que o três corresponde à dialética intrínseca da vida experienciada e, portanto, é o mais adequado para simbolizar a Vida Divina. A Vida foi descrita como sendo o processo de saída de si e o retorno a si mesma. O

27 A união nupcial consumada no tálamo celeste exprime o hierógamos que, por sua vez, constitui a etapa preliminar da encarnação, isto é, segundo Jung, “do nascimento daquele Salvador que desde a antiguidade clássica era considerado como um ‘filius solis et lunae, filius sapientiae’, correspondente a Cristo. Ora se o desejo de que a Mãe de Deus fosse glorificada estava presente no coração do povo, é indício de que esta tendência, em suas últimas consequências, exprime o anseio profundo de que nasça o Salvador, um pacificador,(…). Embora Ele tenha nascido no pleroma, antes de todos os tempos, o seu nascimento só pode realizar-se no tempo, quando percebido, conhecido e proclamado (declaratur) pelo homem” (JUNG, p. 105). A divindade de Jesus, rejeitada por três concílios, o mais importante dos quais foi o de Antióquia (269), foi, em 325, proclamada pelo de Nicéia, nestes termos:"A Igreja de Deus, católica e apostólica, anatematiza os que dizem que houve um tempo em que o Filho não existia, ou que não existia antes de haver sido gerado." Paul Tillich, em seu trabalho Teologia Sistemática, aponta para uma Unidade inquebrantável entre Jesus e Deus: “A história do nascimento virginal faz remontar essa unidade até o próprio início e mesmo além dele, até seus antecessores. O símbolo de sua pré-existência dá a dimensão eterna, e a doutrina do Logos que se tornou realidade histórica (carne), aponta para para aquilo que foi chamado “Encarnação”. Era necessária a cristologia encarnacional para explicar a cristologia adocionista” (TILLICH, 2000, p. 359). Sendo assim, o Logos não desapareceu quando Jesus de Nazaré nasceu. A encarnação do Logos, conclui Tillich, “não é metamorfose mas sua manifestação total numa vida pessoal” (Ibidem, p. 359).

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número “três” está implícito nessa descrição, como já o sabiam os filósofos dialéticos (TILLICH, 2000, p. 608).

Como foi observado no decorrer desta dissertação, os alquimistas encontraram assim a

solução da problemática da união simbólica do elemento animal com as mais elevadas

conquistas morais e intelectuais do espírito humano em um terceiro-mediador. Esta substancia

de dupla natureza, corpóreo-espiritual, volátil e fixa, feminina e masculina, que os sábios

chamaram o seu hermafrodita é o objetivo da opus, porque era ela que realizaria a união dos

opostos na pedra. Neste sentido, é ela que restaura a unidade da substancia, ou seja, a matéria

básica junta ao espírito na própria unidade da substância criada e imortal, o que coincide com

o conceito alquímico de Unus Mundus. O conceito de Unus Mundus como ápice do processo

alquímico, no qual o terceiro e mais alto grau da coniunctio significa a união do homem total

com o “unus mundus”, se aproxima do conceito ontológico de vida, ou melhor, do que Tillich

chama de “recuperação do eu essencial primordial”; uma união final do que se tornou

verdadeiramente essencial na humanidade existencial em um certo tempo, com a vida da

Trindade na eternidade. Do ponto de vista junguiano, sem dúvida alguma, a idéia do unus

mundu, “se baseia na suposição de que a multiplicidade do mundo empírico repousa no

fundamento da unidade dele” (JUNG, 1990, p. 295, § 422). De modo semelhante, a unidade e

diversidade da vida em sua natureza essencial descreve aquilo que Tillich chama de “unidade

multidimensional da vida”. Segundo o autor, somente se for entendida essa unidade e a

relação das dimensões e reinos da vida, “poderemos analisar as ambigüidades de todos os

processos da vida de forma correta e expressar a busca da vida sem ambigüidade ou vida

eterna de forma adequada”. (TILLICH, 2000, p. 394). Sobre este aspecto, também concorda

Dourley:

A psicologia de Jung reveste-se de profundo sentido da imanência divina. No seu trabalho descreve o ápice do processo alquímico em termos do unus mundus. Procura descrever por meio dessa frase a consciência capaz de perceber-se a si mesma e o meio ambiente como teofania. Por meio do processo de distanciamento do corpo e de retorno a ele, a alma é capaz de perceber a realidade a partir do "... fundamento eterno de todos os seres empíricos". Essa postura se parece bastante com a de Tillich. Jung também entende que à medida que o eu encarna na consciência, esta, assim abençoada, torna-se capaz de ver a realidade e de responder a ela a partir de sua inserção no seu fundamento. Aí as perspectivas de Deus e dos seres humanos acabam coincidindo.28

28 Loc. cit.

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Embora essas afinidades contenham em si elementos semelhantes, carregam também

diferenças irreconciliáveis. Atribuindo à realização do essencial na existência, Tillich, no

final, confessa que a realização do potencial humano no tempo, complementa a vida divina na

eternidade; sendo assim, as contradições da humanidade e a resolução das oposições que

constituem a vida, se resolvem por meio da participação na Trindade, na qual todas elas já

foram superadas desde a eternidade. Essa resolução, segundo Dourley, “pode ser verificada

fragmentariamente no tempo à medida que o ser humano participe no fluxo harmonioso da

vida trinitária que só será consumada além das ambigüidades na eternidade”29. Este aspecto

não coincide com o pensamento junguiano. A intimidade dialética que Jung estabelece entre o

consciente e suas fontes dentro da psique, demonstra que desde o princípio, o centro da

consciência está relacionado à matriz da totalidade; esta fonte constantemente busca uma

consciência maior na sua criatura, o consciente e, por isso, está sempre em processo de

criação. Sendo assim, para Jung, as contradições da vida nunca são definitivamente superadas,

pois o inconsciente, que busca se realizar na consciência existencial, sempre ultrapassa sua

realização na consciência. Sobre este aspecto, considera Dourley:

A sugestão de que o mundo arquetípico pudesse se completar em suas manifestações parece-lhe impossível psicologicamente. Em vez disso, Jung imagina uma humanidade incapaz de realizar plenamente o pleroma de sua potencialidade arquetípica muito embora conserve o impulso dos arquétipos na direção de sua maior realização histórica. A humanidade está obrigada a viver em constante estado de aproximação nesse conflito entre a exigência por maior realização do arquétipo e a impossibilidade de alcançá-la plenamente.30

Além disso, na concepção junguiana, o processo de individuação exige a cooperação

da criatura; o eu atua para unir os opostos na consciência e é um produto dessa unidade

quando conscientemente percebida. Neste sentido, a colisão dos opostos se resolve na vida

humana, mais precisamente no eu, capaz de incluir e unir em si mesmo a totalidade da criação

como uma expressão adequada da totalidade da base divina. Portanto Jung vê a resolução

daquela contradição na consciência humana, diferentemente da concepção de Tillich, na qual

todas elas já foram superadas com a vida da Trindade na eternidade.

Conforme sucintamente esquematizado, num primeiro momento desse processo o

inconsciente, busca se tornar progressivamente consciente na consciência. A consciência

humana, uma vez criada, consegue guiar sua fonte na consciência por meio da morte na fonte

29 Loc. cit. 30 Loc. cit.

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e da volta dessa mesma fonte31. Quando o ego adentra novamente o útero (ovo) cósmico, do

inconsciente da Grande Mãe e se dirige a um momento de unidade com a fonte primal da

totalidade; esse momento parece promover essa dupla integração na psique daqueles que

submergem nessa reentrada e retornam à consciência; ou seja, promove a integração dos

componentes complexos do indivíduo em direção a uma personalidade mais unificada e

portanto, revitalizada e, ao mesmo tempo, correlaciona essa personalidade com a totalidade a

partir da qual esse indivíduo emergiu. Esse processo, do ponto de vista psicológico, está bem

descrito na obra alquímica, principalmente nos três graus da Coniunctio de Dorneus.

Resumidamente no primeiro grau, tem-se a unio mentalis, que corresponde a união

(conjunção) do espírito mais a alma. O segundo grau consiste em reunir a unio mentallis com

o corpo. Finalmente no terceiro grau da Coniunctio, ocorre a conjunção completa, a saber, a

união com o unus mundus (mundo uno). Sendo assim, pelo processo de extração da alma do

corpo e do seu retorno à este, atinge-se o estado de consciência que os alquimistas descreviam

como unus mundus. Jung interpreta o termo para descrever um estado natural, porém

avançado de maturação psicológica, num idioma com profundas implicações religiosas. Essa

maturação psicológica e maturidade religiosa vêm de encontro não ao além da vida mas

inserida nela como objetivo da psique e da vida enquanto no corpo físico. Do ponto de vista

psicológico, esta terceira etapa da Coniunctio, segundo Jung:

... pode tratar-se, primeiro de mera “unio mentalis” (união mental) intrapsíquica do intelecto e da razão com o Eros, que representa o sentimento. Uma operação interna dessa espécie sem dúvida não significa pouco, por representar um grande progresso tanto do conhecimento como do amadurecimento pessoal, mas sua realidade é apenas potencial e se torna verdadeiramente real somente depois de sua união com o mundo físico dos corpos (JUNG, 1990, p. 219- 220, §329).

Chegamos assim, ao final das considerações sobre o conceito de Unus Mundus, como

ápice do processo alquímico e, suas contribuições para o estudo do religioso no campo

simbólico, à luz da Psicologia Profunda de Carl Gustav Jung.

31 Esse lado do pensamento de Jung pode levantar sérios problemas teológicos sobre a auto-suficiência do divino e atribui um papel à atividade humana no processo de salvação em alguma tensão considerável com doutrinas tradicionais sobre a gratuidade salvação e a prioridade de Deus por todo o processo de salvação.

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VI -- CONCLUSÃO

Tendo em vista que a alquimia é um fenômeno histórico extremamente complexo e

obscuro, no qual, qualquer um que se dedique ao seu estudo, mergulha numa massa caótica de

símbolos e alegorias alquímicas; esta dissertação, no intuito de evitar uma sobrecarga no

próprio objeto de estudo, optou por esboçar algumas linhas de orientação que contribuíram

para dar a forma que a alquimia finalmente viria a apresentar na Idade Média, percorrendo a

alquimia chinesa-hindu, alexandrina e a árabe. Desta maneira, se preparou assim o próprio

terreno simbólico para o objeto de estudo em questão.

É necessário, no entanto, advertir que tanto a simbólica, quanto os textos alquímicos,

foram escritos por homens, pode-se mesmo dizer que com exclusividade; portanto, tanto

através do exame dos estágios alquímicos do alquimista Dorneus, quanto das fases

alquímicas, os três principais processos psíquicos que se desenrolam no opus alchymicum até

a Conjunção final, devem ser observados sob a ótica da psicologia masculina “que é a única a

permitir comparação com a da alquimia"( JUNG, 1997, p.102, § 124).

Jung encontrou nos três graus da conjunção de Dorneus um terreno seguro para

explicar a seqüência dos processos psíquicos que ocorrem na "retorta", em busca do centro no

processo de individuação, e demonstrou que a conjunção alquímica na verdade ocorrem em

três estágios. O primeiro grau da Coniunctio de Dorneus ou primeiro estágio da conjunção, é

descrito pela união da alma com o espírito, o qual ocorre simultaneamente a separação da

alma do corpo. Este estágio recebe o termo em Latim de unio mentalis, que significa uma

união mental. Como o próprio Jung indicou, é possível estabelecer relação do primeiro grau

de Dorneus, com a primeira fase da alquimia, a nigredo. Na perspectiva da psicologia

junguiana, esta simbólica do primeiro grau de Dorneus, significa:

... o desprender-se, por parte da alma e de suas projeções, da esfera corporal e de todos os condicionamentos do mundo ambiente relacionados com o corpo (...) tem o discípulo, por ocasião deste processo, toda a sorte de oportunidade para descobrir o lado sombrio de sua personalidade, os desejos e motivos de menor valor, as fantasias infantis e os ressentimentos, enfim, todos aqueles traços do temperamento que a gente procura esconder de si próprio. Por meio disso ele se confronta com sua sombra (...) (JUNG, 1990, p.228, § 338).

As operações alquímicas ligadas à primeira fase alquímica, ou seja, a solutio, a

separatio e a mortificatio (solução, separação, mortificação) descrevem o processo de

dissolução, discriminação e mortificação do composto que tinham como objetivo a “extração

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da alma” do caos da prima materia. Esta idéia provém das concepções mágico-pagãs, a

respeito de uma alma divina ou da anima mundi (alma do mundo), que estava inerente à

physis (natureza) ou nela aprisionada. Neste sentido, é compreensível que Jung tenha indicado

a relação do primeiro grau da conjunção de Dorneus, a unio mentalis, a qual ocorre a

"separação da alma do corpo" com o primeiro processo geral da alquimia, a nigredo, como se

pode observar no trecho abaixo:

...A inconsciência original, ainda meio animal, era conhecida ao adepto como nigredo (negrura), caos, massa confusa e como um entrelaçamento difícil de desfazer entre a alma e o corpo, com o qual ele forma uma unidade sombria (unio naturalis). Justamente dessas cadeias queria ele libertá-la pela separatio (separação) e estabelecer uma posição contrária , de natureza psíquico-anímica, isto é uma compreensão consciente e conforme à razão, que se apresentava como superior às influências do corpo. Mas tal compreensão, (...), somente é possível quando se pode retirar as projeções enganosas, que encobrem como um véu a realidade das coisas. (Ibidem, p. 243, § 356).

O alquimista se propõe a criar um ser volátil (ou aéreo, espiritual), no entanto inicia a

obra no caos da prima materia, refletindo um entrelaçamento difícil de desfazer entre a alma e

o corpo. Na fase alquímica nigredo, a dissolução e mortificação do corpo, pelo processo da

“extração da alma”, denota, do ponto de vista psicológico do Opus, que a consciência,

desembaraça-se desta fusão com a natureza, isto é, dos afluxos do inconsciente. Mantendo-se

em um campo factível, que é o da investigação simbólica destes processos alquímicos, nota-se

que, embora o primeiro grau da Coniunctio do alquimista Dorneus não apresente equivalência

com a simbólica envolvida no contexto da nigredo, em seus aspectos psíquicos, estabelece

sim equivalência com tudo aquilo que culmina, produz ou almeja produzir a respectiva fase

“negra”: segundo a tese, uma unio mentalis, ou seja, um estado de superação em relação os

afluxos do corpo e da matéria e, em uma discussão psicologica profunda, dos impulsos

animais do inconsciente1. Acrescenta-se à esta questão, a constatação feita pela presente

dissertação, de o motivo da renovação do rei na alquimia ocorrer em paralelo com as

transformações tanto nos simbolos teriomórficos como na mutabilidade do símbolo da lua.

Sendo assim, quanto mais se realiza o processo alquímico de “extração da alma”, tanto mais

os símbolos teriomórficos progridem da esfera dos instintos (corpo), representado pelos

animais ligados à terra, para a esfera do espírito, isto é, aproximam-se dos símbolismo

1 Edinger acrescenta: “So the unio mentalis brings about a state where the ego is separated from the unconscious, and able to take an objective and critical atitude toward affects and desirousness – the spirit and soul are joined together and separated from the body” [Então a unio mentalis traz aproximadamente um estado onde o ego está separado do inconsciente, e capaz de ter uma atitude crítica e objetiva com os afetos e desejos -- o espírito e a alma estão juntos unidos e separados do corpo] (EDINGER, 1995, p. 281).

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teriomórficos das aves; respectivamente, com relação à simbólica Sol- Lua, acrescenta-se

também a constatação feita pela presente dissertação de que, quanto mais se afasta da

inconsciência original no negrume da lua nova, na mesma proporção é importantíssimo o

plenilúnio (lua cheia), como aquele estado de completa oposição ao Sol, que transcende a

afetividade e o aspecto instintivo do corpo (Lua).

O processo simbólico alquímico de “separação da alma do corpo” é bastante

conhecido na psicologia, que usa o mesmo procedimento ao tornar objetivo os afetos e

instintos e ao confrontar à consciencia com eles. Erich Neumann, discípulo e colaborador de

C. G. Jung, aborda este processo, caracteristico do desenvolvimento individual da primeira

metade da vida, em seu livro História da origem da consciência, ao descrever a ruptura do

estado uroborico inicial, no qual a consciência, alem de desembaraçar-se da sua fusão com a

natureza, ao mesmo tempo, constela a sua independência da natureza como independência do

corpo. O ser contido na uroboros significa que a consciência se encontra à mercê dos

instintos, impulsos sensações e reações advindos do mundo do corpo. Sendo assim, a

"separação da alma do corpo" descrita na unio mentalis de Dorneus e concomitantemente no

estágio da nigredo, na concepção junguiana:

... tem em vista subtrair o espírito e a afetividade (Gemüt) ao influxo das emoções e com isso estabelecer uma positio (posicionamento) espiritual superior à esfera turbulenta do corpo, o que conduz primeiro a uma dissociação da personalidade e a uma violenta correspondente do homem meramente natural. (Ibidem, p. 225, §335).

A separação da consciência da fusão com a natureza constela ao mesmo tempo a sua

independência da natureza como independência do corpo. Neste ponto do Opus Alchymicum,

o assentimento intelectual fortalecido pela alma racional chama a atenção para o risco de

facilmente se considerar o conhecimento filosófico como bem supremo2. Com relação à este

aspecto psicológico do Opus, podemos citar o fato de que os alquimistas insistiam, sem

exceção, no estudo meticuloso dos livros e na meditação dos mesmos. Assim o leitor

esforçado, partindo da filosofia meditativa, atingiria a sabedoria, se desde o início, estivesse

ocupado em ler e meditar, e isso era justamente o que consistiria a preparação da pedra.

Entretanto, em certa altura da obra, insistiam também, na expressão “rasguem os livros”3.

2 Jung acrescenta: “No plano psicológico, equivaleria a considerar a conscientização dos conteúdos inconscientes e eventualmente a exploração teórica como meta do trabalho. Em ambos os casos, estaríamos impondo ao conceito de espírito a definição de que o mesmo tem a ver com o pensar ou o intuir (JUNG, 1999[C], p. 143, § 486). 3 Embora a expressão “rasguem os livros” apresente-se como uma tomada de decisão da consciência, o mesmo não poderá ser afirmado com relação ao conjunto de imagens que se apresentam na sucessão das fases

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Sobre este aspecto psicológico da expressão alquímica, Jung conclui que os alquimistas

perceberam o perigo de a realização estagnar no âmbito de uma determinada função da

consciência4:

Parece que os alquimistas perceberam o perigo de a realização estagnar no âmbito de uma determinada função da consciência. Por isso ressaltam a importancia da “theoria”, ou seja, da compreensão intelectual, em relação à “practica”, que poderia dar-se por satisfeita com o mero experimentar. Este último corresponderia à percepção simples; no entanto, esta tem que ser complementada pela apercepção. Mas nem mesmo esta segunda etapa significa a realização completa. Fica faltando o coração, isto é, o sentimento , que confere àquilo que foi entendido um valor de compromisso. Os livros devem, pois, ser destruídos, a fim de que o pensamento não prejudique o sentimento, porque de outra forma a alma não pode retornar (Idem, 1999 [C], p. 143-144, § 488).

No entanto, se no início do Opus, a substância de transformação é extraída; na fase da

albedo, nota-se que os alquimistas chamam a atenção para o estado momentâneo da parte

volátil da matéria, demonstrando também, do ponto de vista psicológico, que aquele que

alquímicas, visto que estas tratam-se naturalmente, de projeções psíquicas, sendo, portanto, necessariamente identificações inconscientes. Isto decorre do fato de os alquimistas desde sempre procuraram fora de si encontrar aquela substancia do arcano e, somente no século XVI passou a aludir a um efeito interno com uma clareza de que já não se podia duvidar. Sendo assim, como a diferenciação psicológica inexistia na época da alquimia com relação à expressão “rasguem os livros”, Jung acrescenta que, “não é de se estranhar que encontremos apenas ligeiras alusões nos tratados a considerações deste tipo que acabo de fazer. Contudo, tais alusões existem, conforme podemos ver” (JUNG, 1999[C], p. 144, §490). 4 Jung neste ponto de sua obra chega a estabelecer uma sequência de 4 etapas de realização das funções da consciência durante o opus alchymicum: sendo a sensação (entrelaçamento difícil de desfazer entre a alma e o corpo), seguido pelo pensamento na segunda etapa; seguido da função em oposição mais forte ao pensamento, ou seja, o sentimento, e terminando na antecipação da lapis, ou seja, na atividade imaginativa da quarta função, “a intuição, ou pressentimento, sem a qual nenhuma realização é completa” (JUNG, 1999[C], p. 145, § 492). Como o processo de individuação é um processo cíclico, esta sequência de realização dessas funções também o seria. Além disso, como é do conhecimento junguiano, sabe-se que a anima , assim como o animus, apresentam quatro estágios de desenvolvimento. Levanta-se aqui uma hipótese se estes estágios de desenvolvimento da anima-animus também não obedecem esta sequência de 4 etapas de realização das funções da consciência apontadas por Jung. Com relação à anima: o primeiro é uma simples personificação do relacionamento puramente instintivo e biológico (sensação). O estágio seguinte personifica um nível romântico e estético, uma tentativa para diferenciar ( pensamento) o lado feminino da natureza masculina na relação com a mulher (exterior) e em relação ao seu próprio mundo interior, passando a distinguir tanto os seus sentimentos quanto a sua conduta para com as mulheres. No terceiro estágio, o eros é elevado à grandeza da devoção espiritual (sentimento).O quarto estágio é simbolizado pela Sapiência, a sabedoria que transcende (intuição) até mesmo a pureza e a santidade, “fazendo descortinar novos horizontes e perspectivas (VON- FRANZ, 1964, p. 185). Por outro lado, a personificação dos quatro estágios do animus aparecem associados primeiro à uma simples personificação do relacionamento puramente instintivo e biológico (sensação), ligado apenas à força física. Na psicologia feminina, como o consciente da mulher é caracterizado mais pela vinculação ao Eros, o carácter diferenciador e cognitivo do Logos, via de regra, aparece menos desenvolvido do que o primeiro. Sendo assim, o segundo estágio, personifica o homem romântico (sentimento) e, como o pensamento é geralmente a função menos diferenciada que o sentimento, aparece por isso, apenas no terceiro estágio, tornando-se o “verbo”, na figura de um professor ou clérigo (pensamento). Finalmente a quarta manifestação é a personificação do sábio guia que leva à verdade espiritual (intuição), relacionando “a mente feminina com a evolução espiritual da sua época, tornando-a assim mais receptiva a novas idéias criadoras do que o homem. É por esse motivo que antigamente, em muitos países, cabia às mulheres a tarefa de adivinhar o futuro ou a vontade dos deuses” (VON-FRANZ, 1964, p.194).

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alcançou uma unio mentalis, apresenta o risco de que uma redução à consciência separe-o da

experiência imediata com a base inconsciente. Mais uma vez, mantendo-se em um campo

factível, que é o da investigação simbólica destes processos alquímicos, acrescenta-se a

constatação de que nesta etapa da Obra, a alquimia volta-se para a matéria, isto é, segundo

Dorneus, o chamado corpus (corpo), onde está projetado o inconsciente, que dá a luz à si

mesmo. Sendo assim, um fato digno de nota, diz respeito à importância que a alquimia dá

para a volta e a fixação no corpo; fato este que a presente dissertação buscou abordar nas

citações apresentadas no decorrer do capítulo referente à albedo, onde as repetidas extrações

do espírito mercurial, demonstraram ter como objetivo, a fixação da parte volátil-espiritual da

matéria em um corpo apropriado Na alquimia, no que diz respeito à fixação e permanência da

alma- espírito ao fina l da sublimação, no somaton, (a terra ou o corpo), demostra que nesta

etapa do Opus, há uma exaltação do ctônico, do institual, do feminino, isto é, em um

discussão psicológica, do inconsciente. Esse enredamento nos conteúdos inconscientes

provocados pelo efeito numinoso destes, ocorre com a finalidade expressa de integrar à

consciência os enunciados do inconsciente por causa de seu conteúdo compensativo e, assim,

realizar esse sentido da totalidade. Os conteúdos personificados do inconsciente uma vez

reconhecidos pela consciência provocam uma mudança psíquica, visto que estes não poderão

voltar a ser inconscientes. A aquisição do conflito nesta fase pode ser considerada uma

vantagem especial, pois sem ele não existe união, nem nascimento. Como foi visto, pelo

processo alquímico da Circulatio, a obra alquímica se aproxima da operação da união dos

opostos (Coniunctio). Neste ponto, nota-se que símbolos teriomórficos voltam à aparecer, mas

formados por dualidades, (como a águia e o sapo, ou ainda, duas aves e de dois dragões,

sendo sempre um desses animais alado e, o outro, desprovido de asas), indicando assim, a

ultima e mais forte oposição entre o espírito e corpo. Além disso, os símbolos também

aparecem na maneira de efetuar esta importante operação sob um conjunto de dualidades

ligados ao masculino e ao feminino, como branco e vermelho, esposo e esposa, rei e rainha

(no Rosarium Philosophorum também por imperador e imperatriz), homem vermelho e

mulher branca, leão macho e leão femea, etc. Do ponto de vista psicológico do opus, a idéia

clássica da circulatio, da repetição do processo ainda e sempre num outro nível, é a idéia

clássica de circum-ambulação do Si-mesmo. Esta aproximação chega até que se atingir a mais

completa oposição. Isso acarreta o confronto com o inconsciente e a tentativa de estabelecer

uma síntese dos opostos.

De modo igual, assim como os simbolos voltam a aparecer, mas formados por

dualidades, indicando a última e mais forte oposição entre o espírito e corpo; mais uma vez,

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mantendo-se em um campo factível, que é o da investigação simbólica destes processos

alquímicos, acrescenta-se a constatação com relação também à simbólica Sol- Lua. Desta

maneira, embora seja importantíssimo o plenilúnio (lua cheia), como aquele estado de

completa oposição ao Sol, que transcende a afetividade e o aspecto instintivo do corpo (Lua);

a união dos contrários, Sol e Lua, na Lua nova é, de fato, uma das formas das núpcias

interiores, que trazem consigo a restauração do andrógino primordial, um dos símbolos da

realização, que é a finalidade da obra psicológica5.

Por fim, acrescenta-se a constatação feita pela presente tese de que, assim como na

sublimação filosófica na fase da albedo, a separação da mistura da parte mais volátil por

evaporação, seguida da condensação, era repetida diversas vezes e, a essência extraída levada

ao estado máximo de pureza pelo movimento circular continuado, assim também a

quintessênia do vinho filosófico é submetida em seguida à rotação mencionada acima. O

processo alquímico da produção da Quintessência de Dorneus, resulta assim em um líquido

“da cor do céu”. Esta “substancia- espirito” é uma união dos opostos, pois representava, como

foi visto, o equivalente físico do céu.

A geração dos metais é circular, passando facilmente, de um a outro, segundo um

círculo; desta maneira, quanto mais se caminha para a produção da Quintessência, mais se

afasta da simbólica da albedo e mais se aproxima em seus aspectos psíquicos, de tudo aquilo

que culmina, produz ou almeja produzir a respectiva fase “branca”: uma união dos opostos.

Em uma discussão psicológica do processo alquímico, é compreensível que a produção da

Quintessência, esteja incluído no próprio segundo estágio de Dorneus, ou seja, entre a união

da unio mentalis com o corpo, visto que tal "substância misteriosa", corresponderia também à

um terceiro mediador. Análogo ao mercúrio filosófico, substância essa de dupla natureza, a

Quintessência de Dorneus, é o remédio alquímico corpóreo-espiritual. Segundo Jung:

...O bálsamo, que ‘está acima da natureza’, deve encontrar-se também no corpo humano, como pensa DORNEUS, e deve ser semelhante a uma substancia aérea. Ele conserva e assegura a persistência das partes elementares dos corpos vivos e é o melhor remédio não apenas para o corpo, mas também para o espírito. Ainda que ele seja de natureza corpórea, contudo ele é essencialmente espiritual, por ser a união do

5 Edinger acrescenta: “So now we`re at level 2 on our way, and at this level the ego has achieved the acceptance of the opposites and is able to endure tha paradox of the psyche`s two-sidedness” [Assim agora nós estamos no nível 2 em nosso caminho, e neste nível o ego conseguiu a aceitação dos opostos e pode resistir ao paradoxo dos dois lados da psique] (EDINGER, 1995, p.281). Análogo ao Mercúrio filosofal, a Quintessência de Dorneus, restaura a unidade da substancia, no terceiro estágio. Edinger acrescenta: “ The event that takes place is the third stage of the coniunctio, the called union with the unus mundus” [ O evento que ocorre é o terceiro estágio da coniunctio, a chamada união com o unus mundus] (Ibidem, p. 281). Neste sentido, o processo é ternário: origem, desenvolvimento do conflito, e reunião. Mas a imagem é quaternária, devido ao desdobramento na oposição.

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espírito (spiritus) e da alma (anima) do remédio espagírico (JUNG, 1990, p.218,§ 328).

Mantendo-se em um campo factível, que é o da investigação simbólica dos processos

alquímicos, tanto através do exame dos estágios alquímicos do alquimista Dorneus, quanto

das fases alquímicas, esta dissertação encontra um maior entendimento dos três principais

processos psíquicos que se desenrolam no opus alchymicum até a Conjunção final. Entretanto

a contribuição da presente tese não se encerra aqui. Esta pesquisa poderá enriquecer neste

sentido a análise e a constatação junguiana de que, se entendermos a Trindade como um

processo em três etapas, este processo deveria prolongar-se até chegar à totalidade absoluta,

isto é no símbolo quaternário. Esta hipótese é enriquecida pela opinião compartilhada de

Edinger, em seu trabalho O Ego e o Arquétipo6:

Em capítulos anteriores, fiz o esboço de um esquema de desenvolvimento psicológico com o fito de explicar as relações existentes entre o ego e o Si-mesmo. Também fiz uso de um padrão ternário – sendo as três entidades o ego, o Si-mesmo (ou não-ego) e o vínculo que os liga (o eixo ego-Si-mesmo). De acordo com essa hipótese, o desenvolvimento da consciência ocorre através de umm ciclo de três fases que se repete ao longo da vida do indivíduo. As três fases desse ciclo repetitivo são: (1) o ego identificado ao Si-mesmo; (2) o ego alienado do Si-mesmo; e (3) o ego unido de novo ao Si-mesmo através do eixo ego-Si-mesmo. Em termos mais resumidos, esses três estágios poderiam ser denominados: (1) estágio do Si-mesmo; (2) estágio do ego; e (3) estágio do ego-Si-mesmo. Esses três estágios correspondem precisamente aos três termos da cristã: a idade do pai (Si-mesmo); a idade do Filho (ego); e a idade do Espírito Santo (eixo ego-Si-mesmo). Eis outro exemplo de um padrão ternário que exprime a totalidade de um processo temporal, de um processo de desenvolvimento (EDINGER, 2000, p. 250-251).

Entretanto Edinger, apenas aponta o estabelecimento dessas relações sem, no entanto,

aprofudar-se nestas; fato este que o projeto inicial desta dissertação procurou fazer ao

estabelecer a relação entre, tanto os estágios alquímicos do alquimista Dorneus, quanto as

fases alquímicas, com o ritmo ternário dos processos psíquicos em busca da totalidade

quaternária no símbolo central do Cristianismo, a Trindade, segundo C. G. Jung. Sendo assim,

6 De acordo com o esquema ternário de desenvolvimento psicológico de Edinger, o primeiro estágio, isto é, o ego identificado ao Si-mesmo corresponderia na alquimia ao caos da prima materia, refletindo um entrelaçamento difícil de desfazer entre a alma e o corpo, por ocasião da nigredo. O segundo estágio, ou seja, o ego alienado do Si-mesmo, corresponderia ao estado de superação em relação os afluxos do corpo e da matéria e, em uma discussão psicologica profunda, dos impulsos animais do inconsciente por ocasião da albedo, alcançando uma Unio mentalis. Neste estágio, o indivíduo, havendo saído da unidade inconsciente, indiferenciada, passará de lá para o mundo da dualidade. Finalmente o terceiro estágio, isto é, o ego unido de novo ao Si-mesmo através do eixo ego-Si-mesmo, corresponde agora a integração desses conteúdos na vida real do indivíduo; fato este que somente poderá ser vivenciado se o indivíduo for confrontado com uma união dos opostos. Eis também porque a albedo e a rubedo , eram simbolizadas nos tratados alquímicos concomintantemente juntas.

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com intuito de não apresentar-se repetitiva, a presente dissertação restringirá a Conclusão

apenas nos aspectos essencias desta questão. Esta pesquisa poderá enriquecer neste sentido a

análise e a constatação junguiana de que, se entendermos a Trindade como um processo em

três etapas, este processo deveria prolongar-se até chegar à totalidade absoluta. Isso significa

que a Trindade, agora enquanto símbolo da totalidade, é quaternária e, por isso, falta o quarto

elemento, o qual tem sido associado ao demônio: o ctônico, o institual, o feminino, que

representa a parte condenável do cosmo cristão. Na alquimia, “...não há dúvida de que o

quarto elemento dos filósofos medievais se referia à terra e à mulher” (JUNG, 1999 [B], p. 68,

§106). Desta maneira a tradição alquímica, mediante as representações da coroação de Maria

prepara o caminho para a quaternidade acrescentando o elemento feminino da terra, do corpo

e da matéria à sua Trindade física. Neste sentido, Jung nota que, enquanto a fórmula do

inconsciente representa uma quaternidade, o simbolo cristão central é o da Trindade. No

entanto, consciente de que esta discussão traria consequências demasiadamente longe, tanto

do ponto de vista ético quanto intelectual, Jung considera:

Minha opinião é que a Igreja deve repelir qualquer tentativa de se levar a sério tais resultados. E é até mesmo possível que deva condenar qualquer tentativa de aproximação em relação a essas experiências, pois não se pode permitir que a natureza reúna aquilo que ela separou. Percebe-se claramente a voz da natureza em todas as experiências vinculadas à quaternidade, e isto desperta a antiga suspeita contra tudo aquilo que lembre o inconsciente, por mais remotamente que seja. O estudo científico dos sonhos é a antiga oniromancia com novas roupagens e talvez por isso seja tão condenável como as demais artes “ocultas”. Nos tratados alquimistas encontramos paralelos próximos ao simbolismo dos sonhos, e estes são tão heréticos quanto os primeiros. Parece que aí está uma das razões essenciais para se manter tais conceitos em segredo, ocultando-os com metáforas protetoras (JUNG, 1999 [B], p. 66, § 105).

Sendo assim, ao estabelecer uma relação entre os processos alquímicos e os processos

psíquicos que se desenrolam no Opus alchymicum até a Conjunção final, a presente tese de

dissertação busca ter dado um passo adiante na compreensão tanto da representação, quanto

da realização enquanto processo de individuação, como duas diferentes interpretações

respectivas e intercambiadas: com relação ao arquétipo da quaternidade, como representação

em si completa do processo. O alvo é quaternário, ou seja, símbolo da totalidade; neste

sentido, a imagem da natureza quaternária da psique, segundo Edinger, “fornece uma

orientação estabilizadora. Ela nos traz vislumbre da eternidade estática” (EDINGER, 2000, p.

246). Entretanto, com relação ao arquétipo da trindade, como realização enquanto processo

de individuação, ou seja de um dinamismo psíquico em todas as suas fases, não há espaço

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para um quarto elemento7. Trata-se, neste sentido, “do aspecto de desenvo lvimento, temporal,

de realização. Embora o alvo seja quaternário, o processo de realização do alvo é ternário”

(Ibidem, p. 254). Edinger ao se aprofundar nesta questão, conclui que nesse caso o arquétipo

da quaternidade e o da trindade se refeririam a dois diferentes aspectos da psique:

A imagem da quaternidade exprime a totalidade da psique em seu sentido estrutural, estático ou eterno, ao passo que a imagem da trindade exprime a totalidade da experiência psicológica em seu aspecto de desenvolvimento, dinamismo e temporalidade (EDINGER, 2000, p. 246).

Paul Tillich também se aprofundou no significado dos símbolos cristãos que se

tornaram cada vez mais problemáticos dentro do contexto cultural do século vinte. A partir de

uma perspectiva teológica, Paul Tillich foi o representante mais importante da tentativa de

eliminar a distância entre o religioso e o psicológico. É importante reforçar que a menção

desta dissertação à Tillich está longe de esgotar o que este último entende por reconciliação.

No entanto, como um dos maiores apologetas da religião, no que diz respeito ao símbolismo

trinitário, e especialmente com relação à doutrina da Trindade, ele conclui:

A doutrina da Trindade não está encerrada. Ela não pode nem ser descartada nem aceita em sua forma tradicional. Ela deve permanecer aberta para que cumpra sua função original – expressar em símbolos abrangentes a auto-manifestação da Vida Divina ao homem (TILLICH, 2000, p. 610).

Mantendo-se em um campo factível, que é o da investigação simbólica dos processos

alquímicos, tanto através do exame dos estágios alquímicos do alquimista Dorneus, quanto

das fases alquímicas, esta dissertação confirmou a hipótese de que, do ponto de vista

psicológico, os graus da Coniunctio do alquimista Dorneus, possuem relação com as fases

alquímicas. Sendo assim, conforme o axioma alquímico "Non fieri transitum nisi per

medium" (Não ocorre a passagem a não ser por um meio), a presente dissertação, se

concentrou nos processos e implicações desta passagem, encontrando assim um duplo

subsídio para um maior entendimento dos três principais processos psíquicos que se

desenrolam no opus alchymicum até a Conjunção final, confirmando ser o ritmo ternário dos

processos psíquicos em busca da totalidade quaternária.

7 Edinger acrescenta: “ Se pensarmos na trindade como reflexo de um desenvolvimento, um processo dinâmico, o terceiro termo é a conclusão do processo. O terceiro estágio restaurou a unidade original do 1 num nível mais elevado. Essa nova unidada só poderá ser perturbada pela emergência de uma nova oposição, que repetirá o ciclo trinitário” (EDINGER, 2000, P. 248).

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É importante ressaltar que a sequência no tempo das fases do Opus é coisa bastante

incerta. Como foi visto anteriormente, no que diz respeito à seqüência dos estágios

alquímicos, a divisão do processo era inicialmente feita em 4 fases assinaladas caracterizadas

pelas cores originárias: o enegrecimento, o embraquecimento, o amarelamento, e o

enrubescimento. Porém, mais tarde, as cores foram reduzidas a três. Jung na citação abaixo,

analisa este fato; e suas considerações enriquecem ainda mais a tese da presente dissertação:

…Embora a tetrameria original fosse equivalente à quaternidade dos elementos, sempre se acentuou que, apesar dos elementos serem quatro (terra, água, ar e fogo) e quatro as qualidades (quente, frio, úmido e seco), havia apenas três cores: preto, branco e vermelho. Uma vez que o processo nunca conduzia à meta desejada, cada uma de suas partes nunca era levado a termo de modo padronizado; a mudança na classificação de seus estágios era devida ao significado simbólico do quatérnio e da Trindade ou, em outras palavras, era devida a razões de ordem interna e psicológica, e não externa (JUNG, 1991 [A], p. 242-243, § 333).

Por fim, embora a sequência no tempo das fases do Opus seja coisa bastante incerta,

deparamos com a mesma incerteza no processo de individuação, no qual só se pode

estabelecer um esquema típico da sequencia de fases, de modo genérico. Entretanto, a simples

possibilidade de ordenação destes simbolismos presentes nas três fases, dentre uma massa

caótica de simbolismos que a alquimia engloba e, o estabelecimento de analogias apropriadas,

como as propostas nesta tese com relação aos estágios da Coniunctio de Dorneus, embora não

represente o esquema geral do fenômeno, já se justifica, por mais que sua imperfeição possa

dar margem a desentendimentos.

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